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Estudos no Novo Testamento 1 1

Estudos no Novo Testamento I

Evangelhos e Atos

1º. Semestre de 2.018

Prof. Me. Sandro Pereira

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Estudos no Novo Testamento 1 2

SUMÁRIO

I. A PALESTINA DO SÉCULO I a.C.................................................................................. 5


I.1. Contexto político e social do Novo Testamento ........................................................... 5
I.1.1. Antecedentes do século I d.C.................................................................................... 5
I.1.1.1. Período Grego .......................................................................................................... 6
I.1.1.2. Os Macabeus ............................................................................................................ 7
I.1.1.3. Período Romano ...................................................................................................... 8
I.1.2. O século I d.C. ............................................................................................................ 9
I.1.2.1. A política romana da Judeia................................................................................. 11
I.1.2.2. Aspectos Econômicos ........................................................................................... 11
I.1.2.2.1. A pirâmide social ............................................................................................... 12
I.1.2.3. Aspectos do Mundo Religioso............................................................................. 14
I.1.2.4. Filosofias greco-romanas ..................................................................................... 15
I.2. As Instituições religiosas e os partidos político-religiosos ........................................ 16
I.2.1. O Templo ................................................................................................................... 16
I.2.2. A sinagoga ................................................................................................................. 18
I.2.3. O Sinédrio.................................................................................................................. 20
I.2.4. Fariseus ...................................................................................................................... 20
I.2.5. Saduceus .................................................................................................................... 21
I.2.6. Zelotes........................................................................................................................ 21
I.2.7. Essênios ..................................................................................................................... 22
I.2.8. Samaritanos ............................................................................................................... 23
II. EVANGELHOS: QUESTÕES INTRODUTÓRIAS ................................................... 24
II.1. Conceito teológico......................................................................................................... 24
II.2. Estágios da formação do evangelho ............................................................................ 25
II.3. A Crítica das Formas ..................................................................................................... 27
II.3.1. Categorias ou Gêneros............................................................................................ 28
III. A QUESTÃO DOS EVANGELHOS SINÓTICOS ................................................... 33
III.1. A Crítica das Fontes..................................................................................................... 33
III.2. As semelhanças nos Sinóticos .................................................................................... 35
III.3. As diferenças nos Sinóticos ........................................................................................ 36
III.4. Inventário ...................................................................................................................... 37
III.5. A Crítica dos Evangelhos ............................................................................................ 38
III.5.1. Hipóteses de origem dos Evangelhos canônicos ............................................... 39
III.5.1.1. Hipótese de que Mateus foi o primeiro Evangelho e foi usado por Lucas . 39
III.5.2. Hipótese baseada na prioridade de Marcos ........................................................ 39
III.5.3. A Crítica da Redação ............................................................................................ 41
III.5.3.1. Propósitos da Crítica da Redação ..................................................................... 41
III.5.3.2. Principais Características .................................................................................. 41
IV. O EVANGELHO SEGUNDO MARCOS ................................................................... 43
IV.1. Questões Históricas ..................................................................................................... 43
IV.1.1. Autoria .................................................................................................................... 44
IV.1.2. Data ......................................................................................................................... 45
IV.1.3. Lugar de Composição ........................................................................................... 45
IV.1.4. Propósito ................................................................................................................. 45

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IV.2. Questões Literárias ...................................................................................................... 46


IV.2.1. Crítica Textual ....................................................................................................... 46
IV.2.2. Linguagem e Estilo ............................................................................................... 47
IV.2.3. Estrutura Literária ................................................................................................. 47
IV.3. Questões Teológicas .................................................................................................... 49
IV.3.1. Jesus é o Messias, o Cristo ................................................................................... 49
IV.3.1.1. Jesus: Messias investido com poder ................................................................ 49
IV.3.1.2. O segredo messiânico ........................................................................................ 50
IV.3.2. Jesus é o Filho do Homem ................................................................................... 50
IV.3.3. Jesus é o Filho de Deus......................................................................................... 51
V. O EVANGELHO SEGUNDO MATEUS ..................................................................... 53
V.1. Questões Históricas ....................................................................................................... 53
V.1.1. Autoria...................................................................................................................... 54
V.1.2. Data........................................................................................................................... 55
V.1.3. Lugar de Composição............................................................................................. 55
V.1.4. Propósito .................................................................................................................. 55
V.2. Questões Literárias ........................................................................................................ 56
V.2.1. Crítica Textual ......................................................................................................... 56
V.2.2. Linguagem e Estilo ................................................................................................. 59
V.2.3. Estrutura Literária ................................................................................................... 60
V.3. Questões Teológicas ..................................................................................................... 61
V.3.1. Núcleo do pensamento mateano ........................................................................... 61
V.3.1.1. Dimensão Eclesiológica...................................................................................... 62
V.3.1.2. Dimensão Cristológica........................................................................................ 63
V.3.1.3. Dimensão Ética e Moral ..................................................................................... 64
V.3.2. O Reino de Deus ..................................................................................................... 65
V.3.3. Escatologia............................................................................................................... 66
VI. O EVANGELHO SEGUNDO LUCAS ....................................................................... 67
VI.1. Questões Históricas ..................................................................................................... 67
VI.1.1. Autoria .................................................................................................................... 67
VI.1.2. Data ......................................................................................................................... 69
VI.1.3. Lugar de Composição ........................................................................................... 69
VI.1.4. Propósito ................................................................................................................. 69
VI.2. Questões Literárias ...................................................................................................... 70
VI.2.1. Crítica Textual ....................................................................................................... 70
VI.2.2. Linguagem e Estilo ............................................................................................... 73
VI.2.3. Estrutura Literária ................................................................................................. 74
VI.3. Questões Teológicas .................................................................................................... 74
VI.3.1. A salvação .............................................................................................................. 75
VI.3.2. O universalismo da salvação ................................................................................ 76
VI.3.3. A paixão de Cristo................................................................................................. 76
VI.3.4. O Espírito Santo .................................................................................................... 77
VI.3.5. A oração .................................................................................................................. 78
VI.3.6. O louvor, a gratidão e a alegria............................................................................ 78
VI.3.7. A importância das mulheres................................................................................. 79
VI.3.8. O Evangelho para os pobres ................................................................................ 79

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VII. O EVANGELHO SEGUNDO JOÃO ......................................................................... 81


VII.1. Questões Históricas .................................................................................................... 81
VII.1.1. Autoria................................................................................................................... 81
VII.1.2. Data ........................................................................................................................ 83
VII.1.3. Lugar de Composição.......................................................................................... 84
VII.1.4. Propósito ............................................................................................................... 85
VII.2. Questões Literárias ..................................................................................................... 85
VII.2.1. Crítica Textual ...................................................................................................... 85
VII.2.2. Linguagem e Estilo .............................................................................................. 86
VII.2.3. Estrutura Literária ................................................................................................ 88
VII.3. Questões Teológicas .................................................................................................. 89
VII.3.1. Deus ....................................................................................................................... 89
VII.3.2. Jesus ....................................................................................................................... 90
VII.3.3. Espírito Santo ....................................................................................................... 91
VII.3.4. Espírito Santo: fonte da vida eterna e princípio de adoração ao Pai ............. 92
VII.3.5. O universalismo da salvação .............................................................................. 92
VII.3.6. A eficácia da oração ............................................................................................ 93
VII.3.7. Perseverança final e ressurreição futura............................................................ 94
VII.3.8. O dualismo Joanino ............................................................................................. 94
VIII. ATOS DOS APÓSTOLOS ......................................................................................... 96
VIII.1. Questões Históricas .................................................................................................. 96
VIII.1.1. Autoria ................................................................................................................. 96
VIII.1.2. Data ...................................................................................................................... 97
VIII.1.3. Lugar de Composição ........................................................................................ 98
VIII.1.4. Propósito .............................................................................................................. 98
VIII.2. Questões Literárias .................................................................................................100
VIII.2.1. Crítica Textual ..................................................................................................100
VIII.2.2. Linguagem e Estilo...........................................................................................101
VIII.2.3. Estrutura Literária.............................................................................................102
VIII.3. Questões Teológicas ...............................................................................................102
VIII.3.1. A importância da ressurreição de Cristo........................................................103
VIII.3.2. O Espírito Santo................................................................................................104
VIII.3.3. A universalidade da salvação ..........................................................................104
VIII.3.4. Os marginalizados ............................................................................................104
VIII.3.5. A Igreja ..............................................................................................................105
VIII.3.6. A importância da oração ..................................................................................106
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..............................................................................107

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I. A PALESTINA DO SÉCULO I a.C.

Antes estudarmos os textos bíblicos propriamente ditos, é bastante importante


conhecermos alguns aspectos relevantes da Palestina1 do século I. a.C. Para obtermos
melhor proveito no estudo dos textos bíblicos, precisamos ter um conhecimento, ainda
que introdutório, das situações política, econômica, social e religiosa que constituíam o
ambiente no qual Jesus nasceu, viveu, desenvolveu o seu ministério, morreu e
ressuscitou. De igual modo, devemos compreender o ambiente onde seus seguidores
deram sequência ao movimento iniciado por Jesus de Nazaré dentro do judaísmo da
época.
É de conhecimento geral que Jesus pertencia ao povo judeu. Ele nasceu e
morou na região que, a partir do século II d.C., ficou conhecida como Palestina. De
acordo com os relatos nos Evangelhos canônicos, Jesus atuou em várias regiões da
Palestina, desde a região da Galileia até a capital Jerusalém. Ele atravessou fronteiras
indo à Síria e Samaria. Assim, para uma melhor compreensão dos Evangelhos é
importante que tenhamos ao menos uma visão panorâmica desse mundo em que Jesus
viveu.

I.1. Contexto político e social do Novo Testamento

Aqui iremos nos concentrar no Império Romano, em geral, e na Palestina, em


particular. Começaremos por averiguar a situação que precedeu o século I d.C. ou seja,
os antecedentes históricos que propiciaram o surgimento do mundo que encontramos
no Novo Testamento.

I.1.1. Antecedentes do século I d.C.

Antes de ser constituído como povo, Israel foi dominado por vários impérios
estrangeiros, no tempo do Novo Império egípcio (1552-1070 a.C.). A Assíria, a partir
de 722 a.C., arrasou o Reino de Israel (Reino do Norte). Depois a Babilônia, em
587/586 a.C., destruiu o Reino de Judá (Reino do Sul), sendo sucedida pela Pérsia em
538 a.C. Um pouco mais de 200 anos e Israel passou para o domínio dos gregos em
333 a.C.
Foi um período marcado pela sucessão de dominadores, cada um querendo
dominar aquela terra. O povo ficou como que sendo jogado, ora na mão de um, ora na

1 Falar em Palestina no século I a.C. é um anacronismo. A região só ganhou esse nome no tempo do imperador
Adriano (117-138 d.C.). Esse imperador transformou Jerusalém em um importante centro de adoração gentia
chamado Aeolia Capitolina em cerca de 135 d.C.. Os judeus foram despejados de Jerusalém e proibidos de
entrar. A partir de então eles podiam entrar apenas um dia por ano, para lamentar seu destino no Muro das

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mão de outro. Com a morte de Alexandre Magno, em 323 a.C, Israel passou para as
mãos dos generais. Primeiro foram os Ptolomeus ou Lágidas do Egito; depois, em 198
a.C., os Selêucidas da Síria; e, por último, Israel caiu nas mãos dos romanos.2

I.1.1.1. Período Grego

Mesmo sabendo que os contatos comerciais entre as terras gregas e a Palestina


existiram durante séculos, precisamos admitir que a partir de 332 a.C. tem início um
novo período. Alexandre Magno, depois de conquistar os territórios de Tiro, na
Fenícia, estendeu seu domínio por toda a Samaria e Judeia. Estas regiões eram, no
período anterior, dominadas pelo regime persa. 3 Este domínio foi além de uma
conquista militar. Os judeus da região siro-palestinense tornaram-se parte da grande
massa que compunha a civilização grega oriental, conhecida como mundo helênico. 4
Depois da morte de Alexandre Magno, o Império Grego foi dividido entre
seus seis generais.5 O território da Síria ficou sob posse de Laomedon; o Egito foi dado
a Ptolomeu Lagus (Soter), enquanto a Babilônia ficou debaixo do governo de Selêuco.
Os demais não tiveram relação com o povo judeu. Dentro de um breve período de dois
anos, os generais Ptolomeu e Selêuco derrotaram Laomedon e, ao final, dividiram o
território da Síria. A Palestina ficou sob o domínio de Ptolomeu.
Dessa forma, politicamente, os Sumos sacerdotes na Judeia ficaram
aprisionados entre as ambiciosas dinastias no Egito – os ptolomeus – e na Síria – os
selêucidas. Os ptolomeus dominaram toda a Judeia durante os primeiros cem anos.
Todavia, através de acordos com os governantes do Egito, a família mercante judaica
dos Tobias atingiu o auge na Transjordânia e, por intermédio de uma estratégia de
cooperação política e financeira, os Sumos sacerdotes de Jerusalém conseguiram evitar
a interferência ptolomaica na religião durante a maior parte deste período. 6
Essa situação praticamente prevaleceu no período de 323 – 175 a.C.
Entretanto, ainda nesta etapa da história, entre 223 e 200 a.C., o general selêucida sírio
Antíoco III humilhou os ptolomeus e assumiu o controle de toda a Palestina. Durante
esse período de conflitiva fidelidade, os judeus sentiram-se perseguidos pelos
ptolomeus. De início, Antíoco parecia menos opressivo nas exigências financeiras.
Todavia, após ter sido derrotado pelos romanos em 190 a.C. teve de aumentar suas
exigências, uma vez que exigiram dele o pagamento de enormes indenizações de

Lamentações. Veja BLOMBERG, Craig L. Jesus e os Evangelhos: uma introdução ao estudo dos 4
evangelhos. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 42.
2 MESQUITA, Antônio Neves de. Povos e nações do mundo antigo: uma história do Velho Testamento. Rio

de Janeiro: JUERP, 1995, pp. 283-318.


3 Veja em HALE, Broadus David. Introdução ao estudo do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2001. pp. 8

– 11.
4 BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo Testamento I: cuestiones preliminares, evangelios y obras

conexas. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 119.


5 Chamados diádocos.
6 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 120.

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guerra aos romanos. É assim que, Heliodoro, o general sírio ficou na lembrança por ter
saqueado o tesouro do Templo de Jerusalém no governo de Seleuco IV (187-175),
filho de Antíoco.7

Impérios Antes de Cristo 8

No período seguinte, 175 – 163 a.C., ocorre a revolta macabaica. Por causa da
situação ocasionada pelos selêucidas, sob Antíoco IV Epifânio 9 (175-164), a situação
tornou-se bastante difícil. Antíoco deu continuidade na obtenção da unidade entre seus
subjugados e os fez partilhar a cultura e a religião gregas. A corrupção e o coração
ambicioso dos Sumos sacerdotes em Jerusalém serviam bem a esses propósitos.
Antíoco IV atacou Jerusalém em 169 e 167 a.C., massacrou a população e erigiu uma
estátua a Zeus no altar do holocausto do Templo.10 Além disso, ele instalou uma
guarnição síria permanente em uma fortaleza na cidade – a Acra.

I.1.1.2. Os Macabeus

7 Idem, p. 120, 121.


8 Bíblia Online – Módulo Avançado – V. Versão: 3.0, Oct. 7, 2002. Sociedade Bíblica do Brasil.
9 Como um substituto para Epifânio (manifesto) – manifestação como um deus – o historiador antigo Políbio

comentou que os detratores do imperador se referiram a ele como Epimânio: o “louco”. BLOMBERG, Craig L.
Op Cit., p. 28.
10 Aqui encontramos a referência à abominação da desolação de Daniel 11.31; 12.11.

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Na luta dos Macabeus combinaram-se a grandeza e a tragédia. As suas


decisões e lutas eram inspiradas no zelo e na Lei do Deus de Israel. Eles salvaram a
Lei e o culto divino no Templo da mais grave crise produzida até então pela
helenização. Os Selêucidas eram fortes no poder militar e na política, mas nunca
conseguiram impor-se de forma estável na Judeia, diante da resistência dos judeus
observantes. Os Macabeus foram além dos interesses religiosos. Viram-se obrigados a
passar do zelo pela Lei à política do poder. Somente a indecisão e a debilidade do
governo central sírio poderiam permitir aos Macabeus alcançar seu objetivo religioso e
sua independência política.11
Em 167 a.C. irrompe uma revolta judaica, liderada por Matatias, um sacerdote
que vivia ao noroeste de Jerusalém, em Modin. Esta revolta se alargou por trinta e
cinco anos, levada a cabo por Judas Macabeu, Jônatas e Simão, filhos de Matatias. 12
Nesta ocasião, alguns piedosos – os assideus – uniram-se à revolta, esperando que uma
vitória pusesse fim à corrupção do culto do Templo pelos reis selêucidas. Momentos-
chaves incluem a vitória judaica em 164 a.C., que conduziu à purificação e
reinauguração – Hanuká – do lugar do altar. Ocorre a indicação de Jônatas para o
cargo de Sumo Sacerdote em 152 a.C.; a Acra é tomada e em 142 a.C. a guarnição
síria termina expulsa.13
Roma acabou reconhecendo a independência judaica durante o reinado do
Sumo Sacerdote João Hircano – 135/134 – 104 a.C. Hircano destrói o santuário no
Monte Gerizim, o que faz aumentar o ódio entre samaritanos e judeus. Aristóbulo, seu
filho, assume o título de rei, permanecendo de 104 a 103 a.C., somente. Aqui ocorre
uma combinação entre Sumo Sacerdócio e realeza, sendo mantida, por seus
sucessores, por um período de 40 anos.14

I.1.1.3. Período Romano

Desde 148 a.C. os romanos já vinham transformando as antigas nações, antes


dominadas pelo império helênico, em províncias romanas. Assim foi com a Macedônia
(148 a.C.), a Ásia (Pérgamo), com o centro-oeste da atual Turquia (129 a.C.), com
Creta, no Mediterrâneo, e Cirene, na África (67 a.C.). Pompeu conquistou o Ponto e a
Bitínia, no norte da atual Turquia (66-65 a.C.) e a própria Síria (64 a.C.),
transformando-as em províncias romanas. Por fim, em 63 a.C., chegou a vez de Israel.
Dessa forma, podemos afirmar que entre os anos 63-64 a.C.,
aproximadamente, inicia o domínio romano. Antípater II emerge como uma força de
grande importância na Palestina. Ele iniciou como conselheiro de Hircano e, com a
11 MESQUITA, Antônio Neves de. Op Cit., p. 301.
12 Os irmãos são normalmente conhecidos como os Macabeus. A dinastia que iniciou com Jo ão Hircano, filho de
Simão, ainda que da mesma família, é mais frequentemente chamada asmonéia. Talvez isto se deva ao nome do
bisavô de Matatias – Asamonaios.
13 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 109.
14 Ibidem.

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aprovação de Júlio César passou a procurador ou superintendente com direito próprio.


Seu filho, Herodes o Grande, argutamente forjou submissão durante as guerras
romanas subsequentes ao assassinato de César em 44 a.C. Em torno de 37 a.C., por
intermédio da atrocidade e da rápida aliança com a família asmonéia, Herodes torna-se
rei da Judeia, sendo aprovado por Otaviano em 31/30 a.C.15
Herodes tinha bastante afinidade com a cultura Greco-romana. Realizou
muitos projetos de construção, dentre os quais incluem, em Jerusalém, a Fortaleza
Antônia, um palácio real e uma grandiosa expansão do Templo. Sua grande
desconfiança levou-o ao assassinato de alguns de seus próprios filhos. Em 29 a.C.
executou sua própria esposa, Mariana I. Nos anos 9-8 a.C. ele quis capturar um grupo
de rebeldes da Traconítide que tinha sido acolhido pelo ministro Sileu, da Nabatéa.
Entrou no território nabateu, causando a revolta de Sileu, que se queixou a Augusto e
do qual recebeu apoio. Herodes mandou estrangular Aristóbulo e Alexandre, os dois
filhos que teve com Mariana I. Essa crueldade só é explicada pela ganância do poder.
É dele a brutal crueldade encontrada na narrativa de Mateus a respeito da disposição
de massacrar todas as crianças do sexo masculino até dois anos de idade, em Belém,
como parte de seu desejo de matar Jesus.16

I.1.2. O século I d.C.

No século I d.C. o domínio da Palestina estava totalmente nas mãos do


Império Romano. Neste período o Império se estendia desde o Oceano Atlântico até o
rio Eufrates no Oriente (Leste-Oeste). Desde a região próxima à atual Inglaterra,
chegando ao rio Danúbio, o Mar Negro até o Mar Cáspio, até a África dominando
todos os povos que habitavam as margens do Mar Mediterrâneo até o Mar Vermelho. 17
Não podemos nos esquecer, contudo, que Roma herdou este “mundo” do
legendário Alexandre Magno que em treze anos no poder (336-323 a.C.) dominou o
Império Persa e estendeu-o, estabelecendo um vasto império que deixaria suas marcas
séculos depois. Alexandre Magno sonhava com a possibilidade de toda a terra ser
unida num único estado em que todos participariam da mesma cultura.18
Os gregos tinham um modo particular de conceber a vida em família e na
sociedade, muito menos marcada pela tradição e pela dimensão comunitária. Tinham
diferentes formas de organização social, de tradições culturais e de vivências
religiosas. É com essa realidade que o povo de Israel teve que conviver por muitos
anos e em constante conflito.19

15 DOCKERY, David S. Manual Bíblico Vida Nova. São Paulo: Vida Nova, 2001. p. 546.
16 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 110, 111.
17 MAINVILLE, Odette (org). Escritos e ambiente do Novo Testamento: uma introdução. Petrópolis: Vozes,

2002, p. 20.
18 Idem, p. 19.
19 GUSSO, Antônio Renato. Panorama Histórico de Israel para Estudantes da Bíblia. Curitiba: A. D.

SANTOS EDITORA, 2003, pp. 171-184.

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O movimento iniciado por Alexandre, que ficou conhecido como “helenismo”,


ainda que no século I o império fosse o romano, prevaleceu na cultura e ainda
dominava durante este período. Tal era seu domínio que a língua grega era uma das
principais na parte oriental do Império Romano. As diversas regiões podiam conservar
seus idiomas ou dialetos locais. A Síria utilizava o aramaico, a Palestina o hebraico.
Contudo, no mundo dos negócios, política e cultura seguramente utilizavam o grego.
Dessa forma, podemos dizer que qualquer pessoa na Palestina era de fala bilíngue, ou
talvez até trilíngue, em virtude da necessidade. Todavia, a língua oficial do império era
o latim, o que fazia que pelo menos as pessoas que tinham mais acesso as autoridades
romanas também conhecessem a língua do imperador.20
Retomando o período um pouco anterior, podemos dizer que Antíoco IV
Epifânio foi quem promoveu a helenização na Judeia. Como ele não era aceito em
Jerusalém, mandou Apolônio para helenizar a cidade e tomar as medidas necessárias
para sua segurança militar. Em todos os seus empreendimentos encontrou grande
apoio nos Sumos sacerdotes helenizados. Mandou construir ao lado do Templo, na
colina ocidental, Acra, a cidade alta, também conhecida com o nome de “Antioquia de
Jerusalém”. Não era muito grande, mas servia para abrigar a guarnição sírio-
macedônica e refugiar os judeus helenizantes, até ser conquistada, como vimos, por
Simão Macabeu (1Mc 1.29; 1.33-35; 13.49-51).
Logo após ter derrotado Marco Antonio e Cleópatra na batalha naval Actium,
no ano 31 a.C. Augusto tornou-se imperador de Roma. Em seguida houve um período
de expansão e de paz conhecido como Pax Romana. Foi nesta época que Otaviano
recebeu o nome de Augusto e reinou até o ano 14 d.C. O Império Romano dividia os
extensos territórios em províncias, as quais estavam sujeitas ao governo central.21
Todas elas eram tributárias de Roma. Essas províncias eram de duas espécies:
Províncias Senatoriais e Províncias Imperiais.22
Vejamos em primeiro lugar as Províncias Senatoriais. Com a paz estabelecida
e a lealdade declarada a Roma, estavam sob a tutela do Senado romano, e eram
governadas por procônsules. Alguns deles, inclusive, são mencionados no Novo
Testamento (At 13.7; 18.12, por exemplo). Uma província podia incluir várias
nacionalidades (At 14.6,11). O apóstolo Paulo menciona várias dessas províncias ao
longo de suas cartas (Rm 15.19,24,26; 2Tm 4.10; Gl 1.21). Sabemos que havia relativa
liberdade religiosa e política nessas províncias. Algumas delas, até mesmo tinham
conselhos (At 19.31).23
As Províncias Imperiais eram as que apresentavam maior risco de
turbulências. O imperador indicava procuradores que exerciam autoridade civil e
militar através de um exército para a repressão de rebeliões e o estabelecimento da

20 MAINVILLE, Odette (org). Op Cit., pp. 39-41.


21 Idem, p. 20-21.
22 COLLI, Gelci André. Evangelhos e Atos. Curitiba: Unidade, 2010, p. 22.
23 Ibidem, p. 22.

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paz. Alguns desses procuradores também são mencionados no Novo Testamento (Mt
27.11; At 23.24-24.27; 25.1-26.32). Este era o caso da província imperial da Síria e da
região procuratoriana da Judeia.24

I.1.2.1. A política romana da Judeia

Herodes, o Grande, foi durante muitos anos o braço de ferro do Império


Romano, na Judeia. Com a sua morte, os filhos deram continuidade à dinastia
herodiana e à política da vassalagem ao então grande senhor do mundo, Otaviano, o
Augusto, de Roma. Herodes morreu na residência de Jericó, em fins de março ou
começo de abril do ano 4 a.C. Seu filho Arquelau transladou seu corpo para o
Herodion. No fim desse mesmo ano, Augusto confirmou o testamento de Herodes,
mas não deu a Arquelau o título de rei. Ele tornou-se etnarca, ou seja, o governador da
Judeia, da Iduméia e da Samaria, de 4 a.C. a 6 d.C. Seu irmão Herodes Antipas foi
nomeado tetrarca (governador de uma quarta parte da província (da Galileia e da
Peréia, e leste do Jordão (4 a.C. – 39 d.C.) Filipe II, por sua vez, foi tetrarca da
Gaulanítide, Batanéia, Traconítide e Auranítide, bem como do distrito de Panéias
(Ituréia), de 4 a.C. a 34 d.C.25
Arquelau, filho de Herodes, o Grande, acabou sendo deposto do cargo pelo
imperador Augusto, em 6 d.C. e seus territórios passaram para o regime dos
procuradores imperiais. Este regime de procuradoria vigorou até o ano 41 d.C. e, foi
durante esse período que Pôncio Pilatos assumiu o governo da Judeia entre 26 e 36
d.C. no tempo de Jesus. Foi este Antípas, que governou a Galileia e Peréia até o ano 39
d.C., que João Batista repreendeu, e com quem Jesus se encontrou, por ocasião do seu
julgamento (Lc 23.8-12). Portanto, Herodes Antípas, por governar a Galileia, foi o
governador que mais teve contato com a atuação de Jesus de Nazaré.26

I.1.2.2. Aspectos Econômicos

Jesus nasceu num contexto concreto, a Judeia (Galiléia), segundo a tradição


cristã. Terra pobre em minério, com uma pequena produção agrícola, pecuária,
pesqueira, industrial e comercial. Como vimos, era dominada pelo Império Romano e,
por isso, pagava impostos como os demais povos subjugados. 27
A estrutura piramidal do poder se reproduzia na estrutura social e econômica.
No topo da pirâmide social romana estavam os nobres: a corte imperial, os altos
funcionários do Estado como os senadores e os generais do exército. Esta era também
a classe rica do Império. Na base da pirâmide estavam os escravos, que praticamente

24 Idem, p. 23.
25 DOCKERY, David S. Op Cit., p. 549.
26 COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 24.
27 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 117.

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eram todos os que não detinham o direito de cidadão romano. Aí se incluíam os povos
conquistados, inclusive Israel.

I.1.2.2.1. A pirâmide social

Em primeiro lugar, no topo da pirâmide estavam os ricos que, como sempre,


eram os donos do poder. No tempo de Jesus, a corte contituía-se pela família de
Herodes e de seus partidários, que detinham grande parte da riqueza em suas mãos.
Conseguiam manter os privilégios e interesses porque apoiavam o sistema de
dominação romana. Ocupavam espaços e áreas reservadas junto ao palácio e ao
Templo, e em lugares bem situados.28
A aristocracia leiga formava-se pelos grandes comerciantes, donos de grandes
mercados, pelos chefes do sistema de arrecadação de impostos para o Império e pelos
grandes proprietários de terras.29 Para o povo judeu era difícil conviver com essa
realidade, por não corresponder aos seus princípios religiosos. Eles viam a terra como
propriedade de Deus e devia servir para o sustento de todos. Nos Evangelhos
conhecemos alguns nomes dos que pertenciam à aristocracia leiga: Zaqueu (Lc 19.2);
Nicodemos e José de Arimatéia, membros do Sinédrio (Jo 3.1; Mc 15.43).30
A aristocracia sacerdotal era formada pelo Sumo Sacerdote e pelos chefes
dos sacerdotes. Este era o alto clero. Também eram proprietários de terras e donos do
comércio de animais para os sacrifícios. Em diversos momentos Jesus entrou em
conflito com os sacerdotes, pelo modo como julgavam e discriminavam as pessoas de
acordo com as leis do puro e do impuro (Mc 1.44; 7.1-19; Lc 17.14). Jesus relativiza
os seus privilégios (Mc 2.26) e opõe o comportamento deles (Lc 10.31) com as
exigências das Escrituras (Mt 12.7). Os mais influentes faziam parte dos que
condenaram Jesus à morte.31
Os remediados eram, naquele tempo, os que hoje constituem a nossa classe
média. São os artesãos, os pequenos proprietários de oficinas e de casas de comércio.32
Entre eles encontrava-se também o baixo clero, que recebia uma parte das vítimas
oferecidas em sacrifício no Templo (Lc 2.24). Podemos mencionar ainda os alfaiates,
padeiros, perfumistas, carpinteiros, tecelães e outros.33
Em seguida vinham os pobres. Estes estavam mais próximos a Jesus. Os
diaristas faziam parte dos empregados pobres dos mercados e das fábricas de
artesanato e carregadores de água e lenha. Entre eles havia, ainda, os pobres
“profissionais” que sobreviviam em virtude da caridade e da esmola dos outros, e eram

28 JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no tempo de Jesus: pesquisa de história econômico-social no período


neotestamentário. São Paulo: Paulus, 1983, pp. 127-134.
29 TENNEY, Merryl C. O Novo Testamento: sua origem e análise. São Paulo: Vida Nova, 1972, p. 78.
30 JEREMIAS, Joachim. Op Cit., p. 139.
31 Idem, p. 140.
32 TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 78.
33 JEREMIAS, Joachim. Op Cit., pp. 145-155.

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os escribas e os mendigos. Os escribas eram também conhecidos como mestres ou


rabinos. Ensinavam a lei e as Escrituras sem serem pagos pelo trabalho, mas viviam do
que os alunos e o povo lhes ofereciam. A família de Jesus era modesta. José exercia a
profissão de carpinteiro (Mc 6.3). Na apresentação de Jesus ao Templo, eles deram a
oferenda dos pobres, “um par de rolas e dois pombinhos” (Lc 2.24). Os ricos
costumavam oferecer um cordeiro (Lv 1.3). Jesus recomenda a pobreza e exalta os
pobres porque estes acolhem sua mensagem. Jesus e seus discípulos pertenciam ao
grupo dos pobres.34
Descendo um pouco mais na escala piramidal nós encontramos os escravos.
Muitos se tornavam escravos por serem prisioneiros de guerra, por causa de furto, de
dívidas contraídas sem possibilidade de pagamento, por empréstimos sem restrição e
por outros motivos.35 Esses perdiam sua liberdade e se tornavam escravos. Na tradição
israelita só podia se tornar escravo o homem e a filha com menos de 12 anos de idade.
O filho e a mulher não podiam ser reduzidos à escravidão. A filha, quando atingia 12
anos, adquiria a liberdade, a não ser que seu senhor quisesse casar-se com ela. O
homem ficava escravo por no máximo seis anos, depois era libertado pela lei do ano
sabático (Ex 21.2; Jr 34.8-22). O escravo judeu, juridicamente, era igual ao filho mais
velho do seu senhor. O escravo pagão de um judeu era considerado propriedade sua.36
Contudo, a base da pirâmide descia um pouco mais. Existiam os miseráveis:
os indesejáveis da sociedade. Havia muitos marginalizados e excluídos do convívio
social pela sua própria condição de extrema pobreza e falta de higiene, como os
leprosos (Mc 1.40-45), mendigos, possessos pelo demônio (Mc 1.32-34), doentes
mentais, cegos e coxos.37 Jesus acolheu as pessoas que levavam uma vida irregular,
como as prostitutas, os criminosos e os ladrões. Jesus era rodeado pelas pessoas
marginalizadas, que viviam junto aos caminhos pedindo esmola. Diversas vezes foi
interrompido em sua caminhada pelos cegos e doentes que gritavam por sua ajuda (Mc
10.46-52).38
Em meio a tudo isso, todavia, havia um espaço para a solidariedade. Havia
algumas práticas de caridade em favor dos mais pobres em Israel: uma parte do
dízimo, as espigas e feixes deixados pelos ceifadores, a permissão de apascentar o
rebanho no próprio campo, a coleta de lenha das florestas, o corte do capim no próprio
prado, a pesca no lago de Genesaré. Essas práticas não erradicavam o problema social
da fome e da miséria, mas amenizavam as necessidades imediatas de grande parte da
população.
No tempo de Jesus conheciam-se duas instituições de beneficência pública: o
cesto dos pobres e o prato dos pobres. No cesto dos pobres eram recolhidos

34 JEREMIAS, Joachim. Op Cit., p. 156.


35 TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 79.
36 JEREMIAS, Joachim. Op Cit., p. 158.
37 TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 79.
38 JEREMIAS, Joachim. Op Cit., p. 159, 160.

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alimentos e roupas para serem distribuídos, uma vez por semana, aos mais carentes. O
prato dos pobres era a distribuição diária de sopa aos necessitados. Estas duas
instituições, em Jerusalém, eram assumidas pelo Templo. Nele havia também um cofre
onde se depositavam as ofertas para os mais pobres (Mc 12.42). Mesmo assim
podemos concluir que não havia condições, para a maioria do povo, de ter sequer uma
vida digna e justa.39

I.1.2.3. Aspectos do Mundo Religioso

Os judeus desta época deviam ter algum tipo de conhecimento a respeito das
religiões não judaicas dos povos com os quais mantinham contato. Também é verdade
que muitos desses povos tinham conhecimento da religião judaica. Na Palestina,
inclusive em regiões em que a maioria da população era judaica, havia uma forte
influência do helenismo.40
O mundo greco-romano no tempo de Jesus Cristo apresentava um vigoroso
fluxo religioso. Diversos cultos proliferavam. As misturas e as combinações de
crenças (sincretismo) e comportamentos criavam por vezes um pluralismo que era
intolerante somente com as religiões exclusivistas e fechadas, como o judaísmo e o
cristianismo.41
Diversos cultos de mistério acabaram por surgir derivados de antigas
cerimônias tribais e até de fertilidade. Alguns eram oriundos da Grécia, outros eram
importações estrangeiras, especialmente da Pérsia e do Egito. As práticas rituais
podiam variar desde a serenidade até o grotesco.42
Meditações a respeito da espiga do ramo de trigo, no culto de Deméter (deusa
do cereal), um calmo banho de rio como parte do culto de Ísis (deusa do Nilo) ou
refeições comunitárias com pão e água, no mitraísmo, eram bastante serenos.43
No extremo grotesco estava o “batismo de sangue” do culto de Cibele, em que
o Sumo Sacerdote ficava numa cova coberta por uma grade de madeira trançada, em
cima da qual um touro era morto, de forma que o sangue escorria e cobria a face e as
vestes do ministro.44 Os Sacerdotes de níveis inferiores que se dedicavam a Atargatis
tinham o costume de se castrar, e as orgias de embiraguez associadas à adoração de
Dionísio (deus do vinho) eram bem conhecidas e menos secretas ou misteriosas do que
muitas das outras religiões ou seitas religiosas.45
O Império Romano era politeísta. De modo geral deixava que cada um
adorasse e cultuasse os deuses que quisesse. Mas, ideologicamente, obrigava os povos

39 JEREMIAS, Joachim. Op Cit., pp. 160-169.


40 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 129.
41 Idem, p. 141.
42 BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 51.
43 Idem, p. 52.
44 TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 97, 98.
45 BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 51, 52.

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conquistados a cultuar também os deuses romanos.46 A partir de Otaviano, que se


intitulou Augusto (31 a.C. a 14 d.C.), os imperadores romanos também passaram a
considerar-se “divinos”, ou seja, semideuses, merecendo por isso um culto à sua
imagem. No caso de Israel, devido ao seu zelo extremo pela religião monoteísta e a
absoluta proibição de imagens como objeto de culto, os romanos foram mais brandos
na exigência do culto ao imperador. Impuseram, porém, o oferecimento de um
sacrifício diário ao imperador no Templo de Jerusalém, em substituição ao culto a
ele.47
O Gnosticismo (de gnosis, “conhecimento”) é um termo de difícil definição,
usado para descrever um modelo de pensamento religioso, em geral com elementos
judeus e cristãos, defendido por grupos da parte oriental do Império Romano (Síria,
Babilônia e Egito).48 Em 1945, em Nag Hammadi, a 480 quilômetros ao sul do Cairo,
no Egito, fez-se a importante descoberta de treze códices coptos (contendo cinquenta
tratados distintos), enterrados por volta de 400 d.C. As origens do gnosticismo são
discutidas até hoje: uma helenização do cristianismo, ou uma helenização do judaísmo
e de suas tradições acerca da sabedoria; uma derivação do mito persa; uma
combinação da filosofia grega com a mitologia do Oriente Próximo; ou uma novidade
radical derivada da experiência do mundo com um lugar estranho..49

I.1.2.4. Filosofias greco-romanas

A cultura grega distinguiu-se por sua filosofia de vida e pela filosofia clássica,
que teve grande influência na cultura universal. Entre os primeiros filósofos helenistas
estão os cínicos, que surgiram por volta do ano 350 a.C. 50 Diógenes foi uma das
figuras mais representativas desse movimento, tornando-se conhecido pelo seu gesto
de procurar, em pleno dia, com uma lanterna acesa, um homem honesto. O objetivo
maior de sua vida era o cultivo da autossuficiência; cada um deveria encontrar dentro
de si a capacidade de satisfazer suas próprias necessidades. 51
Nessa mesma época surgiram duas escolas, cada qual com sua filosofia de
vida. A primeira foi a escola de Epicuro, surgida por volta de 350 a.C. Ela deu origem
ao epicurismo, cujo princípio era o de alcançar níveis de prazer e felicidade tão
elevados a ponto de a pessoa não sentir mais medo da morte, dos deuses e ficarem
insensíveis à dor. O ideal almejado era a ausência total de perturbação, a ataraxia.52

46 TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 96, 97.


47 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 143, 144.
48 TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 103.
49 BLOMBERG, Craig L. Op Cit., pp. 53-56.
50 REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. São Paulo: Paulus,

2003, p. 253.
51 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 146, 147.
52 REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Op Cit., p. 259.

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A segunda filosofia de vida da época nasceu como reação aos epicureus; é a


escola estóica de Zenão de Cício.53 Esta primava pelo rigorismo na observância da
disciplina e das regras do bem-viver. Trazia listas de virtudes que deviam ser seguidas
e de vícios que deveriam ser evitados. Paulo, o apóstolo, sofreu influência da escola
estóica. Nos seus escritos encontramos, com certa frequência, lista de defeitos e
virtudes (Rm 1.29-32; 1Co 5.10-11; 6.9-10; Gl 5.19-21 e outras).54
Contemporaneamente às filosofias de vida, havia a filosofia clássica desenvolvida
pelos grandes filósofos Platão, Sócrates, Aristóteles e outros. 55

I.2. As Instituições religiosas e os partidos político-religiosos

O Novo Testamento apresenta uma atmosfera religiosa bastante diferente


quando comparada com a do Antigo Testamento. Encontramos algumas instituições e
grupos que até o último livro da Bíblia Hebraica ainda não tínhamos tomado contato
algum. Dessa forma, é de extrema importância uma introdução ao ambiente religioso
da época, bem como uma abordagem dos partidos político-religiosos.

I.2.1. O Templo

Uma das primeiras atitudes do primeiro grupo de exilados, ao retornar para


Jerusalém, foi a reconstrução do Templo. Na verdade, podemos afirmar com segurança
que foi este o principal propósito para muitos dos que retornaram.56 Aqueles que
permaneceram na Babilônia, inclusive, deram apoio financeiro para o retorno, com o
objetivo de que o Templo fosse reconstruído. Sob a pregação dos profetas Ageu e
Zacarias, o Templo – conhecido como o Templo de Zorobabel – foi concluído e
dedicado em 516 a.C. Com alguns poucos acréscimos, para aumentar as áreas de
reunião, o Templo de Zorobabel durou até a época de Herodes, o Grande.57
Para os judeus do século I o Templo era o único lugar em que Yahweh podia
ser adorado de modo real e conveniente. Sabemos, contudo, que havia louvor e
adoração no lar e na sinagoga e, sem dúvida, muitas pessoas devotas, de temperamento
místico mantinham comunhão com Deus em devoções particulares. Todavia, a
adoração em sentido rigoroso como concebida pelo judeu só era possível no Templo.
Assim este lugar ocupava um espaço insubstituível na religião do judaísmo . Era o
lugar no qual os judeus podiam ter o contato mais próximo com as forças que
determinavam sua vida e seu ser. Sua própria existência, a da nação e, na verdade, até

53 Idem, p. 288.
54 TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 102.
55 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 148, 150.
56 TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 120.
57 HALE, Broadus David. Op Cit., p. 17.

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a do mundo inteiro dependiam das forças divinas que entravam na esfera terrestre
exatamente naquele ponto.58
Na época de Cristo o Templo havia sido reconstruído por Herodes. Era um
belo edifício de forma oblonga irregular, mais largo ao norte que ao sul. Situava-se no
monte Moriá, elevação existente no lado mais baixo, isto é, lado oriental da cidade de
Jerusalém. A área total era fortificada por uma muralha atravessada por vários portões.
Era uma das obras arquitetônicas mais imponentes que já produziu o engenho humano.
Fora da cidade imperial não existia em todo o Império Romano edifício maior.59
O Segundo Templo, como também ficou conhecido, foi terminado por volta
da época do nascimento de Jesus. Os alicerces de tamanho avantajado permitiram que
o rei e seus arquitetos remodelassem a área do velho Templo na parte sudeste de
Jerusalém, dentro de uma enorme plataforma – quase 500m x 300m que existe até os
dias de hoje. O local da construção do Templo, propriamente dito, acredita-se que seja
mais ou menos onde hoje fica a Mesquita Islâmica da Rocha.60
O Templo mesmo media aproximadamente 50m x 35m; era dividido em três
partes principais e seguia o mesmo projeto do Templo de Salomão: o Ulam, conhecido
como vestíbulo; o Hekal, mais tarde chamado Santo; e o Debir, que correspondia ao
Santo dos Santos. Esta última parte era o lugar sagrado, onde ficava a Arca da Aliança
durante o período do primeiro Templo (de Salomão).
Todo o espaço do Templo era bem ocupado. A área do pátio externo era
reservada aos pagãos. Nela ficavam instalados os comerciantes de bois, carneiros,
cordeiros, pombos, óleo, farinha, incenso e de outros produtos utilizados durante o
culto. Na mesma área ficavam ainda os cambistas, que trocavam as moedas que
vinham de fora do país para a moeda local de Jerusalém. Os pagãos não podiam
ultrapassar seu espaço, sob pena de morte. Eram separados por um muro interno.
Subindo as escadarias tinha-se acesso ao Templo, por meio de quatro portões
ao norte, quatro ao sul e mais um a leste. Eles davam acesso ao pátio das mulheres,
depois ao dos homens e, por fim, ao dos sacerdotes, que já circundava o altar dos
sacrifícios. O vestíbulo (Ulam) estava situado no pátio dos sacerdotes e propiciava
acesso ao Santo, e este por sua vez ao Santo dos Santos. O Santo tinha 15 metros de
comprimento, 5 de largura e 5 de altura. No seu centro havia o altar dos perfumes ou
do incenso, a mesa dos pães da proposição e o candelabro de sete braços. O Santo dos
Santos ficava totalmente vazio. Nele não havia porta, mas era fechado com uma
cortina dupla, conhecida como “véu do Santuário” (Mc 15.38). Media 20 côvados
quadrados – aproximadamente 9 m2. Apenas o Sumo Sacerdote podia entrar nele uma

58 DANA, Harvey Eugene. O Mundo do Novo Testamento: um estudo do ambiente histórico e cultural do
Novo Testamento. Rio de Janeiro: JUERP, 1990, p. 89.
59 DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 89.
60 OTZEN, Benedikt. O judaísmo na antiguidade: a história política e as correntes religiosas de Alexandre

Magno até o imperador Adriano. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 130-137.

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vez por ano no Dia da Expiação, porque era o lugar sagrado onde se encontrava Deus,
o único Santo.61
O culto era realizado todos os dias do ano. Neste culto diário, o aspecto mais
acentuado, e, sem dúvida, o mais importante, era o sacrifício oferecido pelo povo em
seu todo. Todos os dias imolavam-se dois cordeiros de um ano, um pela manhã e outro
à tarde. Esse era considerado o sacrifício perpétuo que se oferecia ao Deus de Israel. 62

I.2.2. A sinagoga

Desde o período do exílio, o povo de Israel, longe da terra, buscou solidificar


sua identidade por meio de algumas práticas que já existiam entre eles antes do exílio e
que perduram até hoje: a circuncisão, a observância do sábado, das regras alimentares
e, fundamentalmente, a leitura da Lei de Moisés ou Toráh. Esses sinais externos os
identificavam diante dos outros povos.63
Ainda não está muito claro quando e onde a instituição da sinagoga surgiu. A
maioria das evidências aponta para a diáspora egípcia – alguns apontam a Babilônia-,
onde podemos encontrar referências às sinagogas existentes já em 225 a.C. Com todas
as atividades realizadas no Templo, seria razoável supor que os judeus da diáspora
tinham necessidade de um tipo de culto que não dependesse do Templo de Jerusalém.
Acreditamos que tanto no Egito quanto na Babilônia, na Pérsia e em outros lugares, já
se desenvolvia nela o culto religioso, uma vez que, como vimos, o Templo ficava
muito distante. Para a maioria dos judeus da diáspora era impossível ir a Jerusalém
diversas vezes ao ano para as celebrações das festas religiosas. 64
No decorrer dos séculos seguintes, a sinagoga tornou-se comum em todas as
comunidades judaicas, tanto dentro quanto fora da Palestina. Além do mais, o fato de
haver sinagogas até mesmo em Jerusalém – na realidade, dentro da área do Templo –
demonstra que não se pensou no culto da sinagoga originalmente para substituir o
culto do Templo, mas sim para complementá-lo.65
O termo sinagoga é de origem grega e significa: “reunidos juntamente”, ou
seja, em assembleia; em hebraico se diz Bêit Knésset – casa da assembleia. Sua função
principal era prover um lugar para o culto, a oração, o canto, a leitura, o estudo da Lei
e de outros escritos do judaísmo. A sinagoga era, pois, um lugar de instrução, a
instituição educacional do judaísmo. Diversas pessoas são responsáveis por diferentes
funções dentro da comunidade sinagogal. O ensino era administrado por escribas ou
rabinos, especialmente preparados para este fim e separados para este serviço por meio
de cerimônias especiais de ordenação. O centro da sinagoga é a Toráh, guardada em

61 OTZEN, Benedikt. Op Cit., pp. 130-137.


62 DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 91.
63 TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 122.
64 OTZEN, Benedikt. Op Cit., p. 138.
65 Idem, p. 138.

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um “armário sagrado”. Sobre esse armário encontra-se uma lâmpada acesa dia e noite,
e chama-se “luz eterna”. Há também uma mesa de apoio para a leitura dos textos
sagrados e uma pequena tribuna com um púlpito.66
A liturgia era mais ou menos fixa. Em primeiro lugar vinham os serviços
preliminares que constavam de “bênçãos” (berakah) de abertura, e da recitação de um
ritual de confissão conhecido por “Shemá Yisra’el” “Escuta, Israel” (Dt 6.4-9; 11.13-
21). Nessa oração, o povo judeu professa a sua fé no Deus UM, reafirmando sua
fidelidade a Ele. Essa oração era realizada duas vezes ao dia, de manhã e à tarde.
Depois do Shemá vêm as dezenove bênçãos (Tefillah). São breves orações de
bênção. Provavelmente, já eram recitadas no tempo de Jesus com seu conteúdo
principal. Em seguida temos a parte didática. Esta parte compreende a leitura e
explicação das Escrituras. No tempo de Jesus e nas sinagogas atuais, ela só pode ser
feita por homens maiores de idade. A explicação é dada igualmente para todos que
participam do culto: crianças, mulheres e homens. Consiste na leitura e explicação de
um texto da Toráh e dos Profetas. Faz-se a leitura de um determinado trecho da Lei
(Pentateuco ou Toráh); em seguida, geralmente outro dos Profetas. A leitura é
realizada do original hebraico traduzido contemporaneamente para a língua falada no
local onde se encontra a sinagoga. Após a leitura alguém faz um comentário de caráter
expositivo ou exortativo, podendo ser uma reflexão teológica para a formação do
povo, e no fim fazia-se o convite para se viver segundo a Toráh. A liturgia era
concluída com a bênção final. Em conexão com a sinagoga havia um grupo de oficiais,
cujos mais importantes eram os anciãos, escolhidos pela congregação para
supervisionar a vida comunitária. Um oficial subalterno, conhecido como “ministro”
(no grego diákonos), atuava como auxiliar do dirigente da sinagoga, e outro, que era o
“recitador de orações” oficial, servia na qualidade de secretário da sinagoga em suas
transações com o mundo exterior.67
Cabe ressaltar que a adoração e o estudo na sinagoga assumiram formas que
vieram a se tornar centrais no desenvolvimento da Igreja cristã. O preceito do culto aos
sábados era amplamente aceito pelos primeiros adoradores cristãos. Orações e hinos
abriam e fechavam cada culto. Entre um e outro havia a leitura da Lei, Profetas e
Salmos – por vezes num ciclo de sermões fixos -, com o Targum e a homilia (sermão)
sendo apresentados por um dos anciãos da sinagoga, baseados nos textos do dia. Os
assistentes dos anciãos podem mesmo ter sido um modelo do que mais tarde inspiraria
o ofício cristão do diácono.68
A sinagoga ainda era utilizada para reuniões de vários tipos da comunidade, de
modo mais destacado para a educação primária de meninos com idades entre cinco a
doze ou treze anos. Não é verdade que a maioria dos homens judeus do século I era
analfabeta – uma ideia por vezes baseada na má compreensão de Atos 4.13, que
66 DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 88.
67 Ibidem.
68 BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 64.

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Estudos no Novo Testamento 1 20

apenas declara que os primeiros discípulos não haviam sido instruídos formalmente
por um rabino além da idade de treze anos.69

I.2.3. O Sinédrio

O Sinédrio era constituído por um grupo de setenta e um (71) anciãos judeus e


presidido pelo Sumo Sacerdote – perfazendo um total de setenta e dois (72). Essa
corporação cumulava para si tanto o poder legislativo como o judiciário. Quando a
Palestina foi unificada em apenas uma província, o Sinédrio passou a ter jurisdição
sobre toda a região, mas no tempo de Jesus controlava apenas a Judeia. O nome vem
do grego “Synedrion” e significa “sentados juntos”. É citado pela primeita vez em
conexão com os acontecimentos ocorridos por volta de 55 a.C. Suas prerrogativas
foram recebidas do governo romano pouco depois de 63 a.C.70
Esta corporação desempenhava um papel de crescente importância na vida
judaica, ao menos na Judeia. Era uma espécie de “corte suprema” e órgão legislativo;
formava um único conjunto. Ela incluía fariseus, saduceus e talvez outros anciãos não
alinhados. Embora os fariseus pareçam ter sido em geral superiores em número aos
saduceus e mais populares entre o povo, as nomeações no tribunal normalmente
levavam a uma maioria de saduceus no Sinédrio.71
A partir da tradição rabínica, parece que essa corporação adquiriu o poder de
legislar regras de conduta para todos os judeus, em todos os lugares. Por causa de seu
prestígio, suas decisões eram honradas por toda a diáspora judaica.72

I.2.4. Fariseus

A origem dos fariseus parece estar nos assideus (1Mc 2.42), grupo de judeus
piedosos que zelavam pela observância da Toráh, diante da ameaça de helenização
imposta pela política intolerante dos Selêucidas, a partir do século II a.C. Os assideus
uniram-se ao movimento rebelde liderado pela família dos Macabeus, também
desejosa de salvar o judaísmo da torpe influência do helenismo e a ingerência política
dos sírios (Selêucidas) na vida dos judeus.73
Os fariseus eram considerados especialistas nas Escrituras e na tradição, mas
combinavam o estudo permanente da Toráh com o exercício de uma profissão. Muitos
aprendiam um ofício. Havia, entre eles, curtidores; ganhava-se a vida com a confecção
de tendas – como Paulo e sua família, ou como carpinteiros – à semelhança de José e
Jesus (cf. Mt 13.55). Na literatura rabínica tardia, inclusive, os carpinteiros são
69 Idem, p. 65.
70 DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 94.
71 BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 65.
72 HALE, Broadus David. Op Cit., p. 18.
73 HEYER, C. J. den. Paulo: um homem de dois mundos. Coleção Bíblia e Sociologia. São Paulo: Paulus,

2009. p. 22.

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elogiados por sua habilidade e considerados especialistas no atento estudo dos


mandamentos da Toráh.74
O matrimônio e a família desfrutavam de uma elevada estima nos círculos
fariseus. Eles não se afastavam do mundo e de suas ações cotidianos, como faziam os
essênios, com os quais definitivamente tinham relações de parentesco. Estes buscavam
a solidão do deserto na região do Mar Morto, a fim de poder observar os mandamentos
da Toráh o mais estritamente possível. Os fariseus, ao contrário, estavam firmemente
estabelecidos na sociedade de seu tempo e tinham de ganhar a vida.75
Entre os anos 18 e 15 a.C. surgiram os fariseus Hillel e Shammai. Cada um
fundou a sua “escola”, que acabou se tornando rival uma da outra.76 Cada escola tinha
os seus discípulos que recebiam instrução sobre a Toráh, baseada na interpretação que
os “mestres” (rabi) faziam dela. Buscavam aplicar os seus preceitos aos mais diversos
casos. Hillel era mais liberal, enquanto Shammai era mais rigoroso. Eles deram origem
ao rabinato, que adquiriu mais importância no judaísmo posteriormente. 77

I.2.5. Saduceus

Formavam um partido religioso e político, cujo nome deve estar relacionado


com Zadoque, o Sumo Sacerdote colocado por Salomão em lugar de Abiatar (1Rs
2.35). Os saduceus separaram-se dos fariseus quando Jônatas, irmão de Judas
Macabeu, usurpou o sacerdócio (152 a.C.).78 Desde então os saduceus se tornaram
adversários dos fariseus, dos quais se distinguem pelas crenças religiosas. Suas
convicções religiosas tendiam a negar o sobrenatural (Mt 22.38; Mc 12.18; At 23.6-
10).79 Eles só aceitavam estritamente a tradição escrita, particularmente da Toráh,
afirmando não encontrar aí a doutrina da ressurreição da carne. Na política, os
saduceus apoiavam a dominação romana e controlavam a nomeação dos Sumos
sacerdotes. Constituíam, por isso, uma espécie de elite na sociedade judaica, pois se
associavam mais ao poder econômico. Eles não aceitavam as tradições orais judaicas,
apegando-se somente ao que está escrito na Lei.80

I.2.6. Zelotes

Os zelotes ou zelotas eram extremistas religiosos. Esse nome vem do grego


“zelos” que significa zelo, ciúme, defesa extremada de uma convicção própria quando
esta é ameaçada. Eles teriam surgido na época da revolta de Judas Galileu e do fariseu

74 TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 138.


75 HALE, Broadus David. Op Cit., p. 18.
76 OTZEN, Benedikt. Op Cit., pp. 153-166.
77 HALE, Broadus David. Op Cit., p. 19.
78 OTZEN, Benedikt. Op Cit., pp. 147-153.
79 TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 141.
80 DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 97, 98.

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Sadoc, no ano 4 d.C., durante o governo de Arquelau.81 Seu zelo pela liberdade do
povo diante dos romanos e pela “limpeza” política expulsando os intromissores
estrangeiros, levou-os a assumir a rebelião armada como caminho de instauração do
novo reino messiânico. Os zelotes formavam um partido revolucionário e nacionalista.
Seus membros eram fanáticos opositores na dominação romana. Seu ideal era
estabelecer uma teocracia, expulsando pela força os dominadores estrangeiros (At
5.37). Por causa disso os zelotes foram duramente reprimidos e massacrados pelos
romanos, exatamente por representarem a forma mais perigosa de movimento judaico
contra os interesses do império. Simão, um dos doze apóstolos, era zelote (Mt 10.4; Lc
6.15).82

I.2.7. Essênios

Por volta do ano 150 a.C., em plena efervecência do movimento macabeu,


nascia outro grupo dentro do judaísmo: os essênios. Eles eram uma espécie de monges
judeus: fundaram uma comunidade no deserto da Judeia, próximo ao Mar Morto,
numa localidade chamada Qumran.83 Ali viviam no mais absoluto respeito à Lei
Mosaica, mas numa linha divergente dos fariseus. De fato, alguns estudiosos situam
sua origem também nos assideus (1Mc 2.42). Contudo, esse grupo não é mencionado
na Bíblia. Com a descoberta dos escritos do Mar Morto (1947) e das ruínas de
Qumran, tornaram-se conhecidos os costumes e a doutrina dos essênios e seu possível
relacionamento com os fariseus.84 A comunidade tinha suas regras próprias,
geralmente muito austeras, buscando o ascetismo. Os essênios 85 não apoiavam a
revolta dos Macabeus, por considerá-la apenas de cunho político, ou seja, uma briga
pelo poder. Consideravam-se o “resto” eleito de Israel, separado da sociedade
“perdida”, que, para eles, já não teria mais conserto. Esperavam a vinda do Messias
levando uma vida de vigilância oração e penitência.86
O movimento dos essênios é muito importante sob diversos aspectos, mas,
sobretudo, para os estudos bíblicos, pois eles deixaram muitos escritos bíblicos, e
sobre a vida da comunidade.87 Nas grutas próximas ao mosteiro foram encontrados

81 TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 78.


82 HALE, Broadus David. Op Cit., p. 19.
83 OTZEN, Benedikt. Op Cit., pp. 178-205.
84 TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 140.
85 Os essênios eram ultrapiedosos e contestavam a usurpação do cargo de Sumo Sacerdote por parte de Antíoco

Epífanes IV; por isso, refugiaram-se na área do Mar Morto para fugir da profanação de Jerusalém. Houve um
período de interrupção ou dispersão do grupo no tempo de Herodes, o Grande, talvez provocada por um
terremoto. No início do século I se restabeleceram, mas não por muito tempo. Por volta do ano 68 d.C.
desapareceram definitivamente com a invasão do exército romano.
86 DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 98, 99.
87 BOCCACCINI, Gabriele. Além da hipótese essênia: a separação dos caminos entre Qumran e o judaísmo

enóquico. São Paulo: Paulus, 2.000, p. 251

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todos os livros do cânon da Bíblia hebraica, exceto o livro de Ester, Targuns 88, escritos
apócrifos e pseudoepígrafes como o livro de Henoc e o Livro dos Jubileus. Também
foram encontrados comentários de Habacuque, Salmos, Isaías, Naum, entre outros.
Além disso, a comunidade compôs literatura própria, sendo que os textos mais
conhecidos são: O Documento de Damasco (CD, 4QD, 5QD, 6QD), a Regra da
Comunidade (1QS, 4QS, 5QS), o Rolo da Guerra (1QM, 4QM), Os Cânticos do
Sacrifício Sabático, o Rolo do Templo, dentre outros.89
Embora, como dissemos acima, a seita não se apresente mencionada no Novo
Testamento, parece que podemos encontrar alguns reflexos de seus ensinos e
costumes. Muitos estudiosos afirmam com convicção que os essênios influenciaram
profundamente muitas das correntes de vida em circulação no tempo de Jesus e seus
discípulos.90

I.2.8. Samaritanos

Os samaritanos não pertenciam ao judaísmo originário da reforma de Esdras.


Contudo, eles formavam uma comunidade na Palestina no século I. De acordo com o
relato encontrado no Antigo Testamento a origem dos samaritanos deu-se com o
assentamento de grupos de estrangeiros pelos Assírios depois da destruição do Reino
do Norte em 722 a.C. Entretanto, a história política de Israel adiciona a informação de
que os samaritanos descenderiam das tribos de Efraim e de Manassés. Isto fazia com
que eles reivindicassem serem os únicos continuadores da fé israelita de acordo com a
Toráh. Os samaritanos aguardavam um Messias, como um novo Moisés, que
chamavam de taheb “o restaurador”.91
A partir do momento em que os samaritanos se separaram da comunidade
judaica e construíram o seu templo sobre o monte Gerizim, sérias tensões surgiram
entre judeus e samaritanos. No início do século II a.C temos testemunhos de palavras
cheias de ódio de Eclo 50.25-26: “Há duas nações que minha alma detesta e uma
terceira que nem sequer é nação: os habitantes da montanha de Seir, os filisteus e o
povo estúpido que mora em Siquém”. Essa oposição entre judeus e samaritanos
continuava forte na época de Jesus.92

88 São as traduções dos textos bíblicos do hebraico para o aramaico conhecidas no século II a.C. São importantes
para o estudo textual, porque representam um meio para reconstruir o texto hebraico através do aramaico.
89 NICKELSBURG, George W. E. Literatura judaica, entre a Bíblia e a Mixná: uma introdução histórica e

literária. São Paulo: Paulus, 2011, pp. 237-356.


90 DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 99.
91 COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 20.
92 JEREMIAS, Joachim. Op Cit., p. 464, 465.

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II. EVANGELHOS: QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

Com Marcos surgiu um tipo de escrito que faria sucesso na literatura cristã: o
Evangelho. Ele foi imitado pelos outros três Evangelhos e por autores apócrifos até o
século IV. Ao reunir tradições esparsas em um relato de natureza biográfica
consagrado à vida de Jesus, Marcos fez uma obra inédita; até então, a tradição cristã só
conhecia sequências narrativas limitadas – a história da Paixão, por exemplo –
coleções de ditos – logia, ou as cartas de Paulo. O primeiro evangelista se descobre
criador de um gênero literário. Pergunta-se: o Evangelho é um gênero literário ímpar
na literatura, é um fenômeno único, ou pode-se afiliá-lo a outros gêneros literários que
circulavam na época?93

II.1. Conceito teológico

Na origem, euvagge,lion – euanguélion (a boa-notícia) não designa um livro,


mas um anúncio favorável ou a mensagem transmitida por esse anúncio favorável. No
grego extra bíblico, euvagge,lion indica as vitórias militares e os grandes feitos do
Império. Sua significação religiosa intervém no contexto do culto do imperador. Uma
inscrição de Priéne (Ásia Menor), datada de 9 a.C., definiu assim o aniversário do
imperador Augusto: “o dia do nascimento do deus foi, para o mundo, o início das
boas-novas (tw/n euvagge,liw/n – tôn euanguélion) que chegaram através dele”.94
No Antigo Testamento era significativa a forma verbal e não a nominal. O
termo hebraico bissár (evangelizar) já trazia em seu bojo o conteúdo alegre do anúncio
(frequentemente corroborada pelo adjetivo “bom”), como o nascimento de um filho (Jr
20.15), a vitória sobre os inimigos ou a morte do adversário (1Sm 31.9; 2Sm 1.20;
18.19,20,31). De forma muito rápida o verbo adquiriu um significado teológico, como
proclamação da salvação na assembleia de culto dado por Deus, que põe na boca
daquele que ora um cântico novo (Sl 40.4,10).95
A versão grega do Antigo Testamento (a LXX96 ) aplica o verbo “anunciar uma
boa-nova” (euvaggeli,zw - euanguelízo) à proclamação das vitórias de Deus para Israel.
Isaías usa o termo para designar o anúncio da salvação escatológica (Is 40.9; 52.7;
60.6; 61.1). Este último texto é citado por Jesus na resposta à questão messiânica do
Batista: “a boa-nova é anunciada aos pobres” (Mt 11.5; Lc 7.22).97

93 MARGUERAT, Daniel. Novo Testamento: história, escritura e teologia. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
p. 35. Cf. BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo Testamento I: cuestiones preliminares, evangelios y
obras conexas. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 172.
94 MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 36.
95 MARCONCINI, Benito. Os Evangelhos sinóticos: formação, redação, teologia. São Paulo: Paulinas, 2012,

p. 5.
96 Septuaginta.
97 MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 36.

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Estudos no Novo Testamento 1 25

O apóstolo Paulo herda um uso forjado pela tradição cristã helenista:


euvagge,lion designa a proclamação da boa-nova da salvação em Jesus Cristo (1Ts 1.5;
1Cor 15.1; Rm 1.1,9). Evangelho designa, portanto, o anúncio do kérygma e não o seu
veículo literário; esse anúncio é “poder de Deus para salvação de todo aquele que crê”
(Rm 1.16). Toda a pregação do apóstolo, aliás, pode ser concentrada na palavra
euvagge,lion (Gl 1.11). Quando Marcos inaugura sua narração com essa palavra:
“Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1.1), ele não indica o
início de seu livro, mas o início da boa-nova. Nenhum dos quatro Evangelhos se
autodenomina por essa palavra.98
Na realidade, somente na metade do século II que euvagge,lion é aplicado ao
escrito portador da boa-nova. A Didaché designa assim o Evangelho Segundo Mateus
(11.3; 15.3s.), II Clemente 8.5 o de Lucas. Justino Mártir usa pela primeira vez a
palavra no plural para designar os escritos que guardam a memória das palavras e dos
atos de Jesus, de sua Paixão e de sua ressurreição (Apologia 1.66.3). As mais antigas
notícias que temos da intitulação dos Evangelhos, que emanam dos copistas e não dos
autores, datam de fins do século II e são provenientes de papiro (î66), dos escritos de
Ireneu (Contra as heresias 3.11.10) ou do cânon de Muratori10 . O uso parece remontar
mesmo ao fim do primeiro século, por causa da multiplicação dos Evangelhos nas
comunidades. É de notar que mesmo então os Evangelhos foram denominados
euvagge,lion kata. – euanguélion kata, Evangelho segundo (Mateus, Marcos, ...). O uso
singular (que contrasta com os evangelhos greco-romanos e o uso plural da
Septuaginta) e a modalidade kata (segundo) conservam traço do sentido inicial; o
Evangelho não é de Mateus ou Marcos, mas transmite a boa-nova na linguagem
segundo Mateus ou Marcos. A nuança é importante. Vai de par com o reconhecimento
canônico de um Evangelho quadriforme, em vez e no lugar dos quatro relatos
concorrentes entre os quais a Igreja primitiva teria tido de escolher.99
Junto à diversidade de literatura greco-romana dos séculos imediatamente
anteriores e posteriores ao Senhor Jesus Cristo, encontravam-se muitos tipos de
biografias, como “a Vida de gregos e romanos famosos, de Plutarco; A vida dos
Césares, de Suetônio; A vida de Apolônio de Tiana, de Filostrato; e A vida dos antigos
filósofos, de Diógenes Laércio”. Essas propostas como contraposição aos Evangelhos
possuem tonalidades divergentes.100

II.2. Estágios da formação do evangelho

O primeiro estágio na formação do Evangelho pode ser identificado com o


ministério público ou a atividade de Jesus de Nazaré . Alguns autores chamam de

98 Idem. p. 36.
99 MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 37.
100 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 163.

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Estudos no Novo Testamento 1 26

“momento histórico”.101 Desssa forma, este estágio está situado na primeira terça parte
do século I d.C.
O Senhor Jesus realizou coisas notáveis, proclamou oralmente sua mensagem
e interagiu com outros, como João Batista, por exemplo, e outras figuras religiosas.
Jesus escolheu companheiros que viajaram com ele, viram e ouviram o que ele fez e
disse. Tudo aquilo que eles se recordavam de suas palavras e ações proporcionaram o
“material sobre Jesus” em estado bruto. Estas recordações eram já seletivas, uma vez
que eles se concentraram naquilo que dizia respeito à proclamação de Deus por parte
de Jesus, e não às muitas trivialidades da vida ordinária. Em um nível prático, é
importante que tenhamos sempre presente de que essas são memórias daquilo que foi
dito e feito por um judeu que viveu na Galileia e em Jerusalém na década dos anos 20
do século I. A maneira de falar de Jesus, os problemas que ele enfrentou, seu
vocabulário e suas perspectivas (estruturas de pensamento) eram próprios daquele
tempo e lugar. Muitos erros nas tentativas de entender a Jesus e muitas aplicações
falsas de seus pensamentos provêm do fato de que os leitores dos Evangelhos
removem-no do espaço e do tempo, e imaginam que ele estava tratando de problemas
que, na verdade, nunca enfrentou. Podem dar-se formas eruditas de representar mal a
Jesus impondo sobre ele categorias que realmente não se aplicam a sua pessoa, por
exemplo, a do camponês ou a daquele que lutou pela liberdade política.102
O segundo estágio na formação do evangelho refere-se à pregação apostólica
sobre Jesus. É o momento da tradição. Trata-se do kérygma apostólico. Palavra que
evoca o anúncio solene do arauto depois de uma retumbante vitória, a espontaneidade
e a difusão rápida de um acontecimento, o grito forte para tornar pública a oficial
notícia (At 2.36,24).103 Este estágio situa-se na segunda terça parte do século I d.C.
Aqueles que haviam visto e seguido a Jesus viram confirmado o seguimento
deles pelas aparições após a ressurreição (1Co 15.5-7). Chegaram assim a ter uma fé
plena no Jesus ressuscitado como a pessoa através da qual Deus manifestou seu
absoluto amor salvífico por Israel e finalmente por todo o mundo – uma fé que
verbalizaram por meio de títulos que expressavam sua crença (Messias/Cristo, Senhor,
Salvador, Filho de Deus, etc.). Aquela fé pós-pascal iluminou as recordações do que
eles tinham visto e ouvido antes da ressurreição; assim, eles proclamaram as obras e as
palavras de Jesus com mais plenitude de significado. (Os leitores modernos,
acostumados com uma informação factual, sem implicações pessoais, necessitam
reconhecer a atmosfera bem diferente da pregação cristã primitiva.) Dizemos que esses
pregadores são “apostólicos” porque se viram a si mesmos como enviados
(avpeste,llein - apostellein) pelo Jesus ressuscitado, e porque sua pregação muitas
vezes é descrita como proclamação querigmática (ke,rugma - kérygma), cuja finalidade
era atrair outros à fé. Finalmente, o círculo dos pregadores missionários alargou-se

101 MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 37.


102 Idem. p. 169.

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Estudos no Novo Testamento 1 27

para além dos companheiros originais de Jesus, e as experiências de fé dos novos


convertidos, como Paulo, enriqueceram o que foi recebido e proclamado. 104
Outro fator que exerceu sua influência nesse estágio do desenvolvimento foi a
necessária adaptação da pregação aos novos ouvintes. Jesus foi um judeu Galileu da
primeira terça parte do século I, que falava aramaico; contudo, em meados desse
século, seu evangelho estava sendo pregado a judeus habitantes em grandes cidades e
aos pagãos em grego. Essa mudança de língua implicava tradução, no mais amplo
sentido da palavra, isto é, uma remodelação do vocabulário e dos padrões que faria a
mensagem inteligível e viva para os novos ouvintes. Por vezes, esta nova fraseologia
(que deixou traços visíveis nos Evangelhos escritos) afetou detalhes secundários. Por
exemplo, em Lc 5.19 menciona-se um tipo de telhado familiar aos leitores gregos em
contraste com o telhado palestino no qual foi feita uma abertura do qual se fala em Mc
2.4.105
O terceiro e último estágio na formação do evangelho refere-se aos
Evangelhos escritos. Trata-se do momento da redação, a última fase da formação do
evangelho e diz respeito ao trabalho do evangelista.106 Agora estamos na última terça
parte do século I d.C., aproximadamente.
Ainda que na metade do período anterior, enquanto o material sobre Jesus era
objeto de pregação, devem ter aparecido algumas coleções primitivas escritas
(perdidas atualmente), e não obstante a pregação baseada na conservação e
desenvolvimento oral do material sobre Jesus tenha continuado até o século II107 , a
época entre 60 e 100, aproximadamente, foi o momento em que se compuseram os
quatro Evangelhos canônicos. Com respeito aos evangelistas ou autores/redatores,
conforme tradições provenientes do século II e refletidas nos títulos que precedem os
evangelhos, por volta do ano 200 ou até mesmo antes, dois destes eram atribuídos a
apóstolos (Mateus e João), e dois a homens apostólicos, ou seja, companheiros dos
apóstolos (Marcos [companheiro de Pedro] e Lucas [companheiros de Paulo]).108
Resta dizer ainda que os Evangelhos foram organizados numa ordem lógica,
não necessariamente numa ordem cronológica. Os evangelistas se mostram como
autores que dão forma, desenvolvem, revisam o material transmitido sobre Jesus e,
como teólogos, orientam este material para um fim determinado.109

II.3. A Crítica das Formas

103 MARCONCINI, Benito. Op Cit., pp. 55-57.


104 Ibidem. p. 170.
105 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 170.
106 MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 69.
107 Por volta de 115 d.C. Papias, bispo de Hierápolis, procurava por aqueles que tinham estado com a geração

apostólica mais velha ou seus sucessores imediatos, buscando tradição oral independente dos evangelhos
escritos, que ele também conhecia (HE 3.39.3-4).
108 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 171.
109 Idem, p. 172.

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Estudos no Novo Testamento 1 28

O método da Crítica ou História das Formas se baseia no princípio de que a


forma de uma unidade literária corresponde a uma situação histórica determinada.
Aplicado aos Evangelhos, este princípio auxilia no conhecimento da obra de Jesus e da
criatividade da Igreja primitiva na transmissão desta obra.
O ceticismo dos resultados sobre Jesus de Nazaré, ao qual chegaram os
primeiros promotores deste método, é devido não ao método em si mesmo, mas aos
seus preconceitos.110
O pioneiro da nova escola foi o ilustre professor de Heidelberg, Martin
Dibelius. No ano de 1919 ele publicou a obra Die Formgeschichte des Evangeliums.
Isto se refere ao período da tradição oral e da imediata formação de algumas unidades
primárias. Procura determinar a natureza e o conteúdo da tradição oral, classificando
as unidades individuais do material escrito dos Evangelhos, de conformidade com a
forma literária e o uso comum na Igreja Primitiva.111
Hermann Gunkel foi quem despertou a crítica alemã para as possibilidades da
História da Forma (Formgeschichte), quando aplicou esse método na tentativa de
elucidar as narrativas encontradas no livro de Gênesis. Gunkel começa por indagar a
respeito do Sitz im Leben, a situação geratriz ou geradora, das velhas narrativas do
primeiro livro canônico.112
Martin Dibelius, Rudolf Bultmann, Karl Ludwig Schmidt, são alguns dos
estudiosos que contribuíram para a elaboração da critica dos Sinóticos 113
estabelecendo alguns critérios e padrões literários para a pesquisa.
A ênfase de Dibelius não está na tradição evangélica primitiva, mas sim na
vida da comunidade cristã, com o objetivo de determinar as condições e atividades da
Igreja Primitiva como fonte da tradição. O estudioso quer observar a pregação
missionária e chega a esta conclusão ao observar o prólogo do Evangelho Segundo
Lucas ao lado de outros textos.114
A seguir procuraremos apresentar, ainda que de forma resumida, as mais
importantes formas (categorias ou gêneros) e como elas ficaram conhecidas.

II.3.1. Categorias ou Gêneros

Uma leitura de Atos dos Apóstolos nos leva a pensar que o sermão, nos
primórdios da Igreja, possuía um plano definido: kérygma, ou mensagem curta, então a
prova pelas Escrituras e, finalmente, o chamado ao arrependimento. Foi assim que, os
objetivos do sermão criaram a Forma da história evangélica e um estilo definido para a
divulgação das boas notícias. Essas pequenas unidades em circulação receberam o
110 O’CALLA GHAN, José. A formação do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 28.
111 COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 50.
112 BITTENCOURT, B. P. A Forma dos Evangelhos e a Problemática dos Sinóticos. São Paulo: Imprensa

Metodista, 1969, p. 24-26.


113 Mais à frente iremos compreender melhor o significado deste termo.
114 BITTENCOURT, B. P. Op Cit., p. 26.

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Estudos no Novo Testamento 1 29

nome de Paradigma (Dibelius), Apotegmas (Bultmann), Relatos de pronunciamentos


(Taylor): relatos que chegam a seu ponto culminante com uma declaração de Jesus, p.
ex.: ditos (Mc 2.1-12; 2.18-22; 2.23-28; 3.1-12; 3.20-30; 3.31-35; 10.13-16; Lc 9.51-
56; 14.1-6).115
Como podemos observar nos textos mencionados, os paradigmas nada mais
são do que pequenas histórias que giram em torno de uma ou mais palavras de Jesus.
Berger emprega a designação “créia” (do grego, uso, emprego), sinalizando o emprego
de determinado dito para um caso concreto.116
Outro grupo de Dibelius é intitulado Histórias de Milagres. Em Bultmann este
tópico também é considerado sob o título Histórias de Milagres que são separadas em
Milagres de Cura, Milagres da Natureza e A Forma e a História dos Milagres. Tudo
faz parte do material narrativo. Depois de uma acurada análise individual Bultmann
afirma ter encontrado uma estrutura formal que compreende, em geral, uma
introdução, uma exposição de motivos, uma descrição do ato milagroso e um final. 117
Abaixo apresentamos alguns motivos que, de acordo com Bultmann, são típicos desse
gênero.118

A duração da enfermidade Mc 5.25ss: 12 anos; 9.21: desde a


infância; Lc 13.11: 18 anos; At 3.2, 4.22,
9.33, 14.8; Jo 9.1
O caráter perigoso ou mortal da Mc 5.3-5, 9.18, 22
enfermidade
A ineficácia do tratamento médico Mc 5.26
Dúvida ou zombaria do tratamento do Mc 5.40; 2 Rs 5.11
curador
Operação da palavra miraculosa Mc 1.41, 2.11, 3.5, 10.52; Lc 8.54, 13.12,
17.14
O demônio pede um favor Mc 5.7
Demonstração da cura Mc 1.31, 44, 2.11ss, 5.43; Jo 5.8
Impressão causada pelo milagre sobre os Mc 1.27, 2.12, Lc 4.36, 5.26, 7.16; At
circunstantes 9.35, etc.

Temos ainda as Histórias a Respeito de Jesus. Um bom inventário de todas as


narrativas, tomado de Bultmann e Dibelius, nos é dado por Bittencourt. Abaixo
apresentamos um quadro resumo.119

Marcos Lucas

115 BITTENCOURT, B. P. Op Cit., p. 26, 27.


116 BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 1998, p. 78.
117 WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. São Leopoldo: Sinodal, 1998, p.

232.
118 BITTENCOURT, B. P. Op Cit., p. 62, 63.
119 Idem, p. 74-76.

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Estudos no Novo Testamento 1 30

1.4 A pregação de João 2.1-20 O nascimento de Jesus


Batista
1.9-11 O batismo de Jesus 2.22-40 A apresentação de Jesus no
templo
1.12-13 A tentação de Jesus 2.41-52 O menino Jesus no meio dos
doutores
1.16-20 A vocação dos discípulos 4.16-30 A visita a Nazaré
1.35-39 Jesus se retira para orar 5.1-11 A pesca maravilhosa
2.13-14 A vocação de Levi 7.36-50 A pecadora que ungiu os pés
de Jesus
3.13-19 A escolha dos doze e seus 8.1-3 As mulheres que serviram a
nomes Jesus
6.7-13 As instruções para os 9.52-56 Os samaritanos não recebem a
doze Jesus
7.24-30 A mulher sirofenícia 10.38-42 Marta e Maria
8.14-21 O fermento dos fariseus e 19.1-10 Zaqueu, o publicano
o de Herodes
8.27-30 A confissão de Pedro 19.39-40 O júbilo dos discípulos
9.2-8 A transfiguração 19.41-44 Jesus chora à vista de
Jerusalém
11.1-6 A procura do jumento
11.7-10 A entrada triunfal
14.12-16 Os discípulos preparam a
páscoa

Mateus João
1.18-25 O nascimento de Jesus 1.45-51 O chamado de Natanael
2.1-23 Os Magos, fuga e retorno 3.1-21 Nicodemos visita Jesus
do Egito
3.22-30 Jesus e João Batista
Narrativas pascais 4.1-41 A mulher samaritana
Mc 16.1- A história do túmulo 12.20-22 Os gregos e Jesus
8 par. vazio
Mt As histórias das aparições 13.4-10 Jesus lava os pés aos
28.9s, do ressurreto. discípulos
16-20;
Lc
24.13-
35,36-
49; Jo
20.14-
18,
19.23,
24-29;
21.1-14,
15-17

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Estudos no Novo Testamento 1 31

7.1-13 Visita à Festa dos


tabernáculos
10.22-42 Visita à Festa da dedicação

Além do material narrativo encontramos ainda o material discursivo. Este


gênero compreende o conjunto de todos os ditos, parábolas e imagens usadas por Jesus
em sua pregação.
Em primeiro lugar vamos ver o que são os Ditos ou Lógia. Este gênero
também é conhecido como sentenças. “Sentenças” são ditados ou provérbios em que
se expressa uma experiência universal, em geral na forma descritiva e em pequenas
frases. Alguns estudiosos destacam que as principais características das sentenças são
a brevidade, a construção simples e evidente proximidade da linguagem falada. Por
causa disso são muito difundidas e funcionam como logia errantia (itinerantes).120
Podemos afirmar com relativa segurança que boa parte dos ditos (sentenças)
foi originalmente transmitida de forma isolada. Uma comparação entre as sentenças do
Sermão da Montanha em Mateus e Lucas demonstra isso com facilidade. Diversos
ditos (lógia) do Sermão da Montanha em Mateus reaparecem em contextos bastante
diferentes em Lucas. A título de exemplo podemos comparar Mt 5.17-20 (Jesus e a
lei); 6.9-15 (o Pai-Nosso) e 7.7-11 (o atendimento da oração), que no Evangelho
Segundo Lucas encontram-se, respectivamente, em Lc 16.17 (cf. 21.33); 11.2-4 e 11.9-
13.121
Segundo Bultmann podemos encontrar elementos da literatura judaica nos
ensinos de Jesus.122 Esse estudioso classifica os ditos de acordo com a forma da
seguinte maneira:
Formulação material: onde algo material é objeto – 1 Sm 24.13; Pv 15.16; Mt
12.34b; 6.34b;
Formulação pessoal: Ez 16.44; Pv 11.22; Lc 10.7b; Mc 10.31;
Bênçãos: Pv 3.13-14; Lc 11.28;
Argumentos a maiore ad minus: Pv 15.11; Mt 6.23; 7.11;
Exortação: Pv 1.8-9; 3.11; Lc 4.23b; Mt 8.22;
Perguntas: Pv 6.27-29; Mt 6.27; Lc 6.39.
Ainda dentro das sentenças, lógias ou ditos, podemos encontrar material que
alguns autores denominam de poesia de Jesus. Aqui encontramos facilmente o
paralelismo, o ritmo e mesmo a rima. Vejamos os exemplos com as devidas
definições.123
Paralelismos:

120 BERGER, Klaus. Op Cit., p. 61.


121 WEGNER, Uwe. Op Cit., p. 242.
122 BITTENCOURT, B. P. Op Cit., pp. 44-46.
123 Idem, pp. 47-60.

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Estudos no Novo Testamento 1 32

a) Sinonímico: “porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons e a
chuva desça sobre justos e injustos.” (Mt 5.45);
b) Antitético: “Assim, toda árvore boa produz bons frutos, e toda árvore má
produz frutos maus.” (Mt 7.17);
c) Sintético: “pois alargam os seus filactérios e alongam as suas franjas.” (Mt
23.5).
Também encontramos as formas em Ditos Proféticos e Apocalípticos. A
ênfase desses ditos é sobre “o Reino de Deus” e tem “Arrependei-vos”, como apelo
(Mt 3.10-12; 24). Ditos Legais e Regras Eclesiásticas: preceitos disciplinares e
reguladores (Mt 5.27-28). Ditos iniciados com “eu”.124
Ainda dentro das narrativas temos de considerar o uso de Parábolas. Dentre os
diversos ditos do Senhor Jesus, os estudiosos afirmam que as parábolas são os únicos
que possuem forma. Esses pronunciamentos de Jesus consistem de uma verdade
espiritual ou moral que é enfatizada por meio de uma analogia ou comparação
concreta, expressa ou subentendida.
Na opinião de Reclich as parábolas contêm quatro características:
1) Comparação expressa ou implícita. Faz uso de expressões do tipo “como”,
“semelhante”, etc. (Mt 5.11-16);
2) Esta comparação deve ser simples, uma vez que o objetivo da parábola é
ensinar uma lição simples, de forma clara. Tomemos como exemplo a parábola da
ovelha perdida (Lc 15.3-7), ou a do filho pródigo (Lc 15.11-32);
3) Outra característica é que a parábola deve ter somente uma aplicação. Isto
significa que não devemos descer aos pormenores para não convertermos a parábola
em alegoria. A parábola do amigo inoportuno (Lc 11.5-8) serve para exemplificar esta
característica. Já imaginou se tentarmos identificar o amigo inesperado, os filhos no
leito, o pai que já estava na cama com os filhos?
4) Em último lugar, a parábola deve ser objetiva. Seu propósito é convencer
alguém de uma realidade espiritual. Significa dizer que os ouvintes precisam tomar
uma decisão (Mt 17.25 “Que te parece?”; 21.28 “E que vos parece?”). Observe que a
pergunta exige uma decisão imediata.125
Por fim126 , temos de considerar a Narrativa da Paixão. Podemos assumir que
ela teve desde o início, a forma de um bloco orgânico e homogêneo, cujo texto
encontra-se em cada um dos quatro Evangelhos. Os estudiosos em geral lembram que
era preciso, de alguma forma, mostrar que uma ocorrência paradoxal e sem sentido
para o pensamento humano– um evento ignominioso como a morte de cruz –
representava o início do tempo final, ou seja, uma parte da consumação da salvação. 127
124 Idem, p. 51.
125 BITTENCOURT, B. P. Op Cit., p. 55, 53.
126 Na realidade, o problema das formas é por demais extenso para ser tratado em uma obra introdutória como

esta. O estudante de exegese deve procurar maiores informações em obras especializadas. Remetemos o leitor à
obra de BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 1998.
127 WEGNER, Uwe. Op Cit., p. 240, 241.

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Estudos no Novo Testamento 1 33

III. A QUESTÃO DOS EVANGELHOS SINÓTICOS

Chamamos aos três primeiros Evangelhos pela designação “sinóticos”. A


palavra foi introduzida por J. J. Griesbach em 1776, porque sua grande semelhança
permite “vê-los juntos” (sunoyij – synópsis); desde então se dá o nome de sinopse ao
manual que, dispondo o texto de Mateus, Marcos e Lucas em colunas paralelas,
permite a visão simultânea e a comparação de suas formulações. Serve para, além de
unir os três evangelhos, separá-los do Evangelho Segundo João.128
O termo “sinótico”, como vimos, é de origem grega e significa “visão de
conjunto”. Aplicada aos Evangelhos, é, portanto, a visão de conjunto dos textos de
Mateus, Marcos e Lucas em uma sinopse. Nestes três Evangelhos encontramos muitas
narrativas iguais de: milagres, parábolas, discursos, paixão, morte, ressurreição e
aparições, às vezes com pequenas diferenças.
Podemos observar no quadro abaixo a quantidade de versículos comuns a três
ou a dois evangelistas e também os versículos próprios de cada um:

Mc Mt Lc
Comum aos três Evangelhos vv. 330 330 330
Comum a Marcos e Mateus vv. 178 178
Comum a Marcos e Lucas vv. 100 100
Comum a Mateus e Lucas vv. 230 230
Exclusivos de cada um vv. 53 330 500
Total de versículos em cada evangelista vv. 661 1.068 1.160

Os textos paralelos aos três evangelistas são conhecidos como tripla tradição;
os textos paralelos entre Mateus e Lucas, como dupla tradição; e os textos particulares
de cada um são chamados de tradição singular, particular, ou exclusiva.
É assim que, o problema sinótico consiste no seguinte: que relação esses três
escritos tem um com o outro? A Crítica das Fontes compreende essa questão de um
ponto de vista genealógico: a relação entre os três sinóticos é detectada na dependência
que revelam de um em relação ao outro; a pesquisa visa, portanto, a identificar que
Evangelho tem prioridade literária na relação de cada um com os outros. 129

III.1. A Crítica das Fontes

Na seção anterior (Crítica das formas) tivemos a oportunidade de examinar a


etapa oral do desenvolvimento dos Evangelhos. Esta incluía, provavelmente, diversas
tradições escritas a respeito da vida e dos ensinos de Jesus. Precisamos admitir que

128 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 1997, p. 19.
129 MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 15.

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Estudos no Novo Testamento 1 34

alguns apóstolos podem ter anotado os ensinamentos de Cristo durante o próprio


ministério. Contudo, é provável que somente mais tarde, o período da oralidade cedeu
lugar ao da escrita, num processo que levou ao surgimento dos Evangelhos canônicos.
A Crítica das Fontes busca entender que fontes, escritas ou orais, os redatores dos
Evangelhos empregaram na compilação de seus livros (Lc 1.1-4).130
Como principais propósitos da Crítica das Fontes nós podemos elencar:
estabelecer o quê dos Evangelhos foi escrito independentemente uns dos outros; a
natureza das fontes, comuns ou exclusivas; qual Evangelho é primário e se serviu de
fonte para os outros; explicar as diferenças até mesmo no material em comum; indicar
a fonte de um material peculiar a um Evangelho não primário.131
A solução da questão dos sinóticos tem procurado ser respondida ao longo dos
séculos e as mais variadas soluções têm sido dadas. A primeira tentativa de organizar
uma harmonia dos Evangelhos foi empreendida por Taciano, em seu Diatessaron –
ainda dentro do século II. Agostinho parte do princípio de que nenhum de nossos
autores evangélicos escreveu a obra desconhecendo seu predecessor, contudo,
afirmava que a ordem de redação é aquela encontrada no Novo Testamento. Clemente
de Alexandria, contrariamente, coloca Mateus e Lucas antes de Marcos e de João.
Agostinho afirmava ainda que Marcos resumiu o Evangelho Segundo Mateus. Essa
última afirmação entra em choque com o que disse Papias, mencionado por Eusébio de
Cesaréia.132
A tradição de Agostinho foi quebrada no século XVIII por Lessing, que
afirmou a dependência comum. Lessing notou em Atos 24.5 que os cristãos eram
chamados Nazarenos e, a partir daí, aventa a possibilidade de um Evangelho original
escrito em aramaico ou hebraico e utilizado de forma independente pelos
evangelistas.133
A proposta de Lessing foi adotada por outros, com leves modificações levadas
a efeito por Eichorn, foi postulada a existência de alguns Evangelhos perdidos como
fontes dos Evangelhos Sinóticos. J. G. Herder, por sua vez, propôs a dependência
comum de um sumário oral. Em seguida temos a formulação de F. Schleiermacher,
que afirmou a dependência comum de um número limitado de fragmentos escritos.
Esta hipótese já não é mais defendida, contudo, continua sendo relevante por haver
sido a primeira a sustentar que os “lógia” de Papias referiam-se a um desses
fragmentos, ou seja, uma coleção dos ditos de Jesus.134
Interdependência. Outra solução propõe que dois dos evangelistas fizeram uso
de um ou mais Evangelhos para elaborarem o seu. Mateus foi o primeiro a ser escrito,
Lucas o segundo, e Marcos depende dos dois para sua redação.

130 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 28.
131 COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 53.
132 BITTENCOURT, B. P. Op Cit., p. 114, 115.
133 Idem, p. 115, 116.
134 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 31, 32.

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Estudos no Novo Testamento 1 35

A hipótese da primazia de Marcos foi aventada pela primeira vez na década de


1803 simultaneamente por Karl Lachmann e C. G. Wilke. A proposta completa das
duas fontes foi formulada por C. H. Weisse em 1838. Para este último, Marcos e uma
fonte desconhecida chamada “Q” (do alemão Quelle 135 ou fonte – reconstruída
inteiramente valendo-se de Mateus e de Lucas), foram utilizados por Mateus e Lucas.
B. H. Streeter defendeu a existência de mais duas fontes além de Marcos e “Q”. Para
Streeter (1951), devemos ainda considerar uma fonte “M”, contendo informações
peculiares ao Evangelho Segundo Mateus e uma fonte “L”, com informações
peculiares ao Evangelho Segundo Lucas.136
Mais abaixo voltaremos a essa discussão. Aqui veremos brevemente as
hipóteses mais aceitas na atualidade. Antes, porém, é interessante destacar as
semelhanças e as diferenças existentes entre os Evangelhos Sinóticos.

III.2. As semelhanças nos Sinóticos

De posse de uma sinopse verificamos que Marcos, Mateus e Lucas têm


basicamente uma mesma estrutura, cronologia e geografia. Existem grandes
semelhanças e podemos destacar blocos distintos de capítulos “para o início da vida
pública de Jesus após o batismo, para o ministério de Jesus na Galileia, para o
itinerário que Jesus fez da Galileia até Jerusalém e a atividade de Jesus na própria
Jerusalém”.137
Nos três, podemos observar claramente que a história de Jesus é relatada na
mesma sequência. João Batista batiza o Senhor. Jesus é tentado. Jesus atua
publicamente na Galileia. Diferentemente do Evangelho Segundo João, Jesus realiza
somente uma viagem até Jerusalém, sofre e morre ali, para, em seguida ressuscitar
dentre os mortos. Do mesmo modo, em todos os três a história de Jesus está
subdividida em muitas histórias curtas completas em si (perícopes). Essas narrativas
muitas vezes também se inserem na mesma sequência, ainda que nem sempre
possamos identificar claramente um nexo entre elas. Por fim, podemos acrescentar que
nos Sinóticos encontramos coincidências totais até na letra do texto, que são mais
exatas nos ditos do Senhor do que nas partes narrativas. Existem mesmo alguns
exemplos de coincidências literais (Mt 3.3; Mc 1.3; Lc 3.4 - Mt 11.10; Mc 1.2; Lc 7.27
- Mt 9.6; Mc 2.10; Lc 5.24 - Mt 16.28; Mc 9.1; Lc 9.27, por exemplo).138

135 Q refere-se a uma coleção de palavras ou pronunciamentos de Jesus, conhecida como logia, palavra grega.
Mateus e Lucas devem ter obtido acesso a esta fonte independentemente um do outro. Eles copiaram muitos
textos iguais dessa fonte que forma a dupla tradição, comum só a Mateus e Lucas. Marcos parece não ter
conhecido esta fonte. OPORTO, Santiago Guijarro. Ditos primitivos de Jesus: Uma introdução ao “Proto-
evangelho de ditos Q”. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 12.
136 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 35.
137 COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 49.
138 RIENECKER, F. O. O Evangelho de Mateus. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1998, p. 10, 11.

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Estudos no Novo Testamento 1 36

Desse modo observamos que Mateus e Marcos dão bastante destaque para a
atividade de Jesus realizada na Galileia. Enquanto isso, Lucas destaca o itinerário de
Jesus que parte da Galileia até chegar a Jerusalém. Notamos que toda a teologia lucana
é voltada para Jerusalém.139

III.3. As diferenças nos Sinóticos

Além do que foi dito precisamos observar que encontramos diferenças em


blocos semelhantes nos três evangelistas sinóticos. A título de exemplo podemos
destacar os relatos da infância. Marcos não o tem; Mateus narra dentro de uma
perspectiva masculina, dando evidência ao papel de José; Lucas relata dentro de uma
perspectiva feminina destacando a figura de Maria. O mesmo se dá com as bem-
aventuranças. Mais uma vez o Evangelho Segundo Marcos não tem; Mateus relata oito
bem-aventuranças (Mt 5.1-12), enquanto Lucas menciona apenas quatro (Lc 6.20-
23).140
De igual modo é fácil perceber as diferenças nas genealogias. Mateus remonta
até Abraão fazendo três grupos de 14 gerações (Mt 1.1-17), com Davi sendo o décimo
quarto. Em hebarico, a gematria (a soma dos equivalentes numéricos das consoantes
em uma palavra) de Davi (David) resulta em 14 (D+V+D= 4+6+4). Em razão da
poplaridade de vários usos criativos da gematria no judaísmo antigo, Mateus pode
muito bem ter utilizado deste dispositivo para estilizar sua genealogia e realçar Jesus
como Filho de Davi.141 Lucas, por sua vez, relaciona setenta e sete nomes chegando
até Adão (Lc 3.20-38).
As diferenças mais fáceis de serem identificadas, com certeza, referem-se ao
material exclusivo de cada um dos Sinóticos. Sob material exclusivo entendemos
aquilo que cada evangelista apresenta sozinho. Isso compreende aproximadamente um
terço do material todo. Podemos destacar os seguintes materiais:
Material exclusivo de Marcos: A parábola da semente (4.26ss), a cura do
surdo-mudo (7.31ss), a cura do cego de Betsaida (8.22ss), prisão e fuga de um jovem
(14.51s) etc.
Material exclusivo de Mateus: convite aos cansados e sobrecarregados
(11.28ss), as parábolas do joio entre o trigo, do tesouro, da pérola, da rede (cap. 13), o
imposto do Templo (17.24ss), as parábolas do credor incompassivo (18.23ss), dos
trabalhadores na vinha (20.1ss), dos filhos desiguais (21.28ss), das dez virgens e do
julgamento do mundo (cap. 25), os guardas do sepulcro (27.62ss) etc.
Material exclusivo de Lucas: o jovem de Naim (7.11ss) e a grande pecadora
(7.36ss), e depois, no assim chamado relato de viagem, no qual se encontra a maior
parte do material exclusivo: o bom samaritano (10.25ss), Maria e Marta (10.38ss), a
139 COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 49.
140 Ibidem.
141 BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 262.

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Estudos no Novo Testamento 1 37

parábola do agricultor rico (12.16ss), a cura do hidrópico (14.1ss), as parábolas da


moeda perdida (15.8ss), do filho perdido (15.11ss), do administrador injusto (16.1ss),
do rico e Lázaro (16.19ss), do samaritano agradecido (17.11ss), do juiz iníquo
(18.1ss), do fariseu e do publicano (18.9ss). Dos capítulos finais: Zaqueu (19.1ss),
Jesus diante de Herodes (23.8ss), os discípulos de Emaús (24.13ss), a ascensão
(24.50ss) etc.142
Para finalizar temos o relato do Jesus ressuscitado. Enquanto Marcos e Mateus
descrevem suas aparições na Galileia, Lucas as descreve em Jerusalém.143

III.4. Inventário

As narrativas de Mateus, Marcos e Lucas apresentam duas características que


os distinguem do Quarto Evangelho. O modo de composição narrativa, por um lado, é
análogo: consiste em uma sucessão de pequenas unidades literárias (lógia, parábolas,
milagres, controvérsias) articuladas mais ou menos firmemente uma à outra. Por outro
lado, em número apreciável, essas unidades literárias se encontram nos três
Evangelhos, ou em dois.144
O Quarto Evangelho, por seu lado, organiza o relato em grandes sequências
narrativas cujo texto coincide muito pouco com o dos Evangelhos Sinóticos.145
A pré-história das pequenas unidades literárias, antes de sua integração no
texto dos evangelhos, foi esclarecida pela Crítica das Formas (Formgeschichte):
parábolas, relatos de milagre, controvérsias, lógia da oralidade. A tradição de Jesus
não foi guardada pelos primeiros cristãos com interesse documentário, mas para
responder às necessidades do ensino, da proclamação missionária, da celebração
litúrgica ou de codificação ética das primeiras comunidades cristãs. Foi por isso que
ela se fixou já oralmente em formas literárias ditadas pelo meio da vida comunitária
(Sitz im Leben), nas quais se inscreviam: catequese, culto, debate com a Sinagoga, etc.
Sua recepção nos Evangelhos Sinóticos não despojou essas unidades literárias de suas
características formais; a comparação de um Evangelho com outro ficou, desde então,
muito mais fácil.146
Vamos retomar a observação estatística que já fizemos acima para enfatizar
algo mais. Essa observação estatística nos levará a descobrir que Mateus, Marcos e
Lucas apresentam, cada um, mas em proporção extremamente variáveis, dois tipos de
materiais narrativos: os materiais que eles têm em comum com um ou dois dos outros
Evangelhos e os que lhes pertencem como próprios. A repartição pode ser
quantificada. Convém, entretanto, ter em mente que esses números têm só um valor

142 RIENECKER, F. O. Op Cit., p. 11.


143 COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 49.
144 MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 16.
145 Ibidem.
146 Ibidem. p. 16.

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Estudos no Novo Testamento 1 38

global, pois a atribuição de um versículo ou de uma parte do versículo permanece, às


vezes, duvidosa. Perceba que para esse quadro o número de versículos varia um pouco
em relação ao anterior. Isto se deve ao fato de que certos autores assumem ou não
determinados textos que a Crítica Textual julga incertos. Portanto, não devemos nos
aferrar a estes dados estatísticos como se isso fosse matéria de fé. 147

Estatísticas: 148

Marcos 661 versículos


330 com Mateus/Lucas
325 com Mateus ou Lucas
26 provenientes de material próprio

Mateus 1.068 versículos


523 com Marcos e Lucas
235 só com Lucas
310 provenientes de material
próprio

Lucas 1.149 versículos


364 com Marcos e Mateus
235 só com Mateus
550 provenientes de material
próprio

Percebemos que Marcos e Lucas apresentam traços inversos: Marcos contém


apenas uma pequena quantidade de material próprio (26 versículos em um total de
661), ao passo que a parte específica de Lucas atinge quase a metade do texto (550
versículos em 1.149); a repartição proporcional de Mateus situa-o entre esses dois
Evangelhos. Por outro lado, identificamos 80% do material de Marcos em Mateus e
55% em Lucas. O texto comum a Mateus, Marcos e Lucas (tradição tríplice) cobre 330
versículos, enquanto o texto de tradição dupla (Mateus-Lucas) comporta cerce de 235.
As coincidências narrativas entre os Sinóticos são, portanto, ao mesmo tempo grandes
e múltiplas.149

III.5. A Crítica dos Evangelhos

147 MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 16.


148 Esses números costumam variar de acordo com o manual que empregamos. Aqui tomamos a estatística de
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 17.
149 Ibidem.

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Estudos no Novo Testamento 1 39

III.5.1. Hipóteses de origem dos Evangelhos canônicos

O número de semelhanças é grande demais. Percebemos que existe uma


dependência literária entre os escritos. Surge assim mais uma questão: que
dependências e em que sentido?150 Para isso voltemos ao problema das fontes.

III.5.1.1. Hipótese de que Mateus foi o primeiro Evangelho e foi usado por Lucas

Conforme vimos acima, durante longo tempo prevaleceu a opinião de


Agostinho, um dos pais da Igreja que, ao tentar responder às críticas relativas à
contradição entre os Evangelhos; publicou, no ano 400 De consensu evangelistarum.
Sua tese era que os Evangelhos tinham aparecido segundo a ordem canônica, Mateus
primeiro, Marcos como uma abreviação de Mateus (1.2) e Lucas para evidenciar a
dimensão sacerdotal de Cristo (1.3). Sua teoria exerceu enorme influência ao longo da
história da Igreja.151
Foi a partir do fim do século XVIII que a pesquisa, estimulada pela busca do
Jesus histórico, situou a questão da dependência entre os Sinóticos não mais no plano
dogmático, mas nos planos literário e histórico. Até hoje, as teorias explicativas se
dividem em duas categorias: a derivação de um modelo comum ou o estabelecimento
de uma genealogia entre os sinóticos.152

III.5.2. Hipótese baseada na prioridade de Marcos

Marcos foi escrito primeiro e, em seguida, Mateus e Lucas fizeram uso dele.
Uma vertente dessa teoria chega a postular que Lucas fez uso de Mateus também, mas
enfrenta certas dificuldades. A tese mais comum “argumenta que Mateus e Lucas
dependem de Marcos e escreveram independentemente um do outro”. O que eles têm
em comum e não derivou de Marcos é explicado com base em Q. Essa é conhecida
como a Teoria das Duas Fontes.153

150 Ibidem. p. 19.


151 Ibidem.
152 Idem. p. 20.
153 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 178.

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Estudos no Novo Testamento 1 40

BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo


Testamento I: cuestiones preliminares, evangelios y
obras conexas. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 178.

A Teoria das Duas Fontes é resultante do desenvolvimento no fim do século


XIX (C. H. Weisse, 1838; H. J. Holtzmann, 1863; P. Wernle, 1899). Ela recebe
atualmente a aprovação de um grande número de pesquisadores. 154
O argumento básico para a prioridade do Evangelho Segundo Marcos é que
esta resolve mais problemas do que qualquer outra teoria postulada. Além disso, ela
oferece a melhor explicação para o fato de Mateus e Lucas concordarem tão
frequentemente com Marcos na sequência e na construção das frases, e permite
razoáveis conjecturas para o fato de Mateus e Lucas diferirem de Marcos quando isso
acontece independentemente. Podemos observar, por exemplo, que nenhum dos
evangelistas gostava das redundâncias de Marcos, de suas expressões gregas
deselegantes e da apresentação pouco lisonjeira dos discípulos. Ao fazer uso de
Marcos, ambos expandem as narrativas do primeiro evangelista à luz da fé pós-pascal.
O argumento básico contra a prioridade marcana assenta-se nas concordâncias
menores. Para muitas delas, podemos oferecer boas explicações, contudo, outras
permanecem muito difíceis de serem explicadas.155
Podemos resumir afirmando que a Teoria das Duas Fontes trabalha com três
princípios:156
1. Marcos é o Evangelho mais antigo;
2. Uma fonte denominada Q está na origem da tradição dupla;
3. Mateus e Lucas se beneficiaram, cada um, de tradições particulares.

154 MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 25.


155 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 179.
156 MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 25.

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Estudos no Novo Testamento 1 41

As quatro fontes. Como vimos, Streeter acrescenta às duas fontes, Marcos e


“Q”, a fonte “M” com material peculiar a Mateus, e a fonte “L” com material peculiar
a Lucas.

Teoria das quatro Fontes

III.5.3. A Crítica da Redação

A Crítica da Redação (Redaktiongeschichte), também Crítica da Composição


(Kompositionsgeschichte) surgiu como reação à Crítica das Formas (Formgeschichte),
que considerava os autores bíblicos meros compiladores do material transmitido pela
tradição – oral e escrita. A Crítica da Redação defende que os redatores bíblicos são
verdadeiros autores. Eles selecionaram, modificaram e organizaram o material
proveniente da tradição; além disso, eles acrescentaram novos textos e estabeleceram
uma estrutura geral da obra. Isto fica evidenciado ao percebemos que cada evangelista
tem um estilo, habilidades literárias diferenciadas, além, é claro, de sua teologia
própria.157

III.5.3.1. Propósitos da Crítica da Redação

A Crítica da Redação procura fazer distinção entre o que é tradição e o que é


redação. Para os críticos da redação, tradição é tudo, “desde longas fontes escritas até
breves relatos e declarações transmitidos oralmente”, que o redator de cada Evangelho
tinha a disposição na composição de seu texto final. Redação, por outro lado, refere-se
ao processo de modificar e ajustar tal tradição à medida que o Evangelho era de fato
redigido.158

III.5.3.2. Principais Características

157 SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia da exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2009.
158 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 44.

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Podemos visualizar a atividade redatorial ou editorial dos evangelistas


observando diversas áreas.159
Em primeiro lugar podemos visualizar os dados que os evangelistas
escolheram incluir e excluir: O Sermão do Monte em Mateus (5-7) e Lucas (6.10-49).
Observamos atividade redatorial também ao verificar a disposição dos dados.
É fácil verificar que Mateus diverge de Marcos (4.35-5.23) e Lucas (8.22-56) na
colocação de três relatos significativos de milagres: a tempestade aquietada (8.18, 23-
27), a cura do(s) endemoninhado(s) gadareno(s) (8.28-34) e as duas histórias
entremeadas da ressurreição da filha de Jairo e da cura da mulher com fluxo de sangue
(9.18-26).
As “costuras” que o evangelista utiliza para juntar suas tradições também é
uma área tratada pela Crítica da Redação. A mais perceptível dela encontramos em
Mateus que se utiliza da repetida fórmula “Quando Jesus acabou de proferir estas
palavras” (Mt 7.28; 11.1; 13.53; 19.1; 26.1).
Acréscimos aos dados. No relato a respeito do ministério de cura de Jesus e da
chamada dos 12 (Lc 6.12-19), que parece depender de Marcos 3.13-18, Lucas
menciona o fato, não registrado por Marcos, de que Jesus “retirou-se para o monte a
fim de orar, e passou a noite orando a Deus”. Percebem-se indícios de uma
preocupação tipicamente lucana.
Omissão de dados. Alega-se com frequência que Lucas, ao redigir seu texto,
omitiu a referência a Jesus “vindo sobre as nuvens do céu” (22.63-71 cf. Mc 14.62 e
Mt 26.64) na resposta dada ao sumo-sacerdote (22.29) porque Lucas pretende evitar a
ideia de uma parousia iminente.
Por fim, temos as alterações do fraseado: a bem-aventurança sobre os pobres.
De acordo com Mateus são bem-aventurados os “pobres de espírito” (5.3); de acordo
com Lucas, “os pobres” (6.2).160
Concordamos com Carson que afirma a necessidade de tomar cuidado,
contudo, com as afirmações exageradas, pressuposições falsas e aplicações
inadequadas. Se a utilizarmos de forma adequada, na exegese dos textos, a Crítica da
Redação pode ser de ajuda real na interpretação dos Evangelhos.161 Vale ressaltar que
o mesmo se aplica para a Crítica das Formas e para a Crítica das Fontes.

159 Idem, p. 45, 46.


160 Para uma análise mais detalhada da Crítica da Redação sugerimos SILVA, Cássio Murilo Dias da.
Metodologia da exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2009.
161 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 52.

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Estudos no Novo Testamento 1 43

IV. O EVANGELHO SEGUNDO MARCOS

Desde que os Evangelhos passaram a ser estudados como documentos


históricos mais do que como simples tratados de edificação, o livro de Marcos saiu de
um longo período de injusto esquecimento para ocupar o seu lugar de primazia no que
concerne à autoridade sobre a vida e o ensino de Jesus. Na realidade, não é nova a
posição de preeminência que os modernos especialistas dão a este documento, visto
como o que agora se faz é simplesmente restaurar a situação original. Se as conclusões
a que chegam os estudiosos do problema Sinótico estão certas, Marcos desfrutava,
naqueles dias antigos, quando os Evangelhos foram escritos, de uma reputação muito
semelhante à que hoje tem.
O primeiro passo ao considerar qualquer livro do Novo Testamento é lê -lo por
inteiro lenta e atentamente. A leitura cuidadosa deve preceder – e tornar compreensível
– toda especulação erudita sobre o livro.162 Dessa forma, é de vital importância que
cada um dos livros canônicos estudados seja lido vagarosa e atentamente antes de
proceder ao estudo do material introdutório. Depois de estudar o material introdutório
o livro canônico deve ser lido novamente, desta vez de posse das informações
históricas, literárias e teológicas aqui obtidas.
Para estudarmos o Evangelho Segundo Marcos faremos uma divisão em três
seções: questões históricas, questões literárias e questões teológicas. Ao término
dessas seções o estudante deverá obter uma compreensão panorâmica desse Evangelho
e apontar caminhos pelos quais poderá ler, interpretar e ensinar o conteúdo do livro.
Faremos o mesmo com cada um dos Evangelhos seguintes e também com o livro de
Atos.
A razão de iniciarmos com o Evangelho Segundo Marcos é, como já vimos, a
aceitação generalizada pela erudição de que este foi o primeiro Evangelho canônico a
ser redigido. Sendo assim, procuraremos seguir uma ordem cronológica; apenas o
bloco Lucas-Atos deverá ser dividido ao meio com o objetivo de estudarmos o
Evangelho Segundo João antes do segundo volume de Lucas. Neste caso a razão é por
causa do conteúdo e não por causa da cronologia.

IV.1. Questões Históricas

Ao tratarmos desse Evangelho, trazemos de volta à memoria as informações


pertinentes ao período apostólico. Foram várias as realidades e necessidades que
fizeram com que grupos, comunidades ou indivíduos, reunissem as tradições orais em
pequenas coleções, escritas num texto que abrangesse essas diversas tradições e que
fosse organizado com determinado propósito editorial e teológico da referida
comunidade ou indivíduo.

162 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 193.

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Estudos no Novo Testamento 1 44

Nesta primeira seção analisaremos a origem, autor, data, lugar de composição,


destinatários e situação que motivou a obra e as fontes utilizadas. Iniciemos então com
a autoria.

IV.1.1. Autoria

Da mesma forma como todos os Evangelhos que nós temos, para o Evangelho
Segundo Marcos, dependemos totalmente do testemunho externo para nomear o autor.
Contudo, ficamos tranquilos ao saber que a voz da antiguidade é unânime em atribuir
este Evangelho a João Marcos.163
O mais antigo e importante testemunho data do início do século II e foi
registrado por Eusébio no início dos anos 300. Trata-se do testemunho de Papias. No
livro de Eusébio podemos ler que:

[...] Marcos, que foi intérprete de Pedro, pôs por escrito, ainda que não com ordem,
o quanto recordava do que o Senhor havia dito e feito. Porque ele não tinha ouvido o
Senhor nem o havia seguido, mas, como disse a Pedro mais tarde, o qual transmitia
seus ensinamentos segundo as necessidades e não como quem faz uma composição
das palavras do Senhor, mas de tal forma que Marcos em nada se enganou ao
escrever algumas coisas tal como as recordava. E pôs toda sua preocupação em uma
só coisa: não descuidar nada de quanto havia ouvido nem enganar-se nisto o mínimo
(HISTÓRIA ECLESIÁSTICA, 3.39.15).164

Se pudermos entender que “não com ordem” diga respeito à sequencia


cronológica, esse testemunho tão antigo também confirma nossas observações a
respeito da leitura crítica dos Evangelhos. Contudo, nosso foco aqui recai sobre o
testemunho da autoria. Além de Papias, citado por Eusébio, sabemos que Justino,
Irineu, o Cânon Muratoriano e o Prólogo Anti-Marcionista também atribuem o
Evangelho a Marcos, um intérprete de Pedro.165
Esse Marcos é já no início do século II, identificado com João chamado
Marcos, o filho da Maria para cuja casa o apóstolo Pedro fugiu logo após escapar da
prisão (At 12.12); o mesmo Marcos que Paulo e Barnabé levaram na chamada
Primeira Viagem Missionária (At 12.25). Ele também aparece em Colossenses 4.10
como sobrinho ou primo de Barnabé (avneyio.j o vocábulo grego (anepsios) serve para
os dois casos).166
Diversos estudiosos questionam a confiabilidade dessa tradição. Entretanto,
somos obrigados a observar que o colorido gentio do texto é suficiente para mostrar
que os destinatários eram principalmente gentios, e não que o autor era gentio.
Observamos que dificilmente alguém, exceto Pedro, pudesse dar um tratamento tão

163 BERKHOF, Louis. Introdução ao Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2014, p. 65.
164 CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica. São Paulo: Novo Século, 2002, p. 41.
165 EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Comentário Bíblico Beacon. Volume 6. Rio

de Janeiro: CPAD, 2015, p. 219.


166 HALE, Broadus David. Op Cit., p. 73, 74.

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Estudos no Novo Testamento 1 45

negativo a respeito dos discípulos. Por fim, considerando-se que Marcos não fazia
parte do círculo dos doze, é pouco provável que alguém com pouco conhecimento
seguro sobre o verdadeiro autor desse Evangelho, mas disposto a dar-lhe uma
credibilidade e um testemunho autorizados, tivesse escolhido Marcos como tal
autoridade.167168

IV.1.2. Data

A data em que foi escrito nosso Evangelho em estudo tem sido fixada entre
50-70 d.C. Isto concorda com a suposição de que Marcos escreveu depois da morte de
Pedro – ocorrida provavelmente durante a perseguição de Nero em 64-66 d.C., mas
antes da destruição de Jerusalém em 70 d.C. Precisamos levar em conta ainda que, o
Evangelho Segundo Lucas e o Livro de Atos, foram escritos antes da morte de Paulo –
aproximadamente em 66 d.C. Uma vez que, segundo a Crítica das Fontes, o Evangelho
Segundo Lucas utiliza-se de Marcos como uma de suas fontes, deveríamos recuar
Marcos para antes do Evangelho Segundo Lucas, pelo menos. 169 Isto sugere uma data
por volta do final dos anos 50.

IV.1.3. Lugar de Composição

A grande maioria das evidências externas associa o Evangelho Segundo


Marcos a Roma ou a “regiões da Itália”. João Crisóstomo (c. 400 d.C.) relaciona a
escrita de Marcos ao Egito. A origem romana é claramente aceita e ajusta-se bem à
evidência interna do Evangelho. O texto inclui diversos latinismos (quadrans; 4.1:
modius; 5.9, 15: legion, por exemplo) e inúmeras explicações de conceitos e termos
judaicos (o ritual de lavar as mãos e a corbã em 7.3-4,11). Tudo isso descarta uma
origem e destinatários judeus.170

IV.1.4. Propósito

Entre os estudiosos da Bíblia a conclusão é que os Evangelhos foram escritos


com um objetivo teológico. Ou seja, não se trata de biografia pura, mas sim de uma
interpretação teológica dos fatos que aconteceram na vida, morte e ressurreição de
Jesus de Nazaré. João Marcos escreve com a ênfase de que Jesus foi o Messias, o Filho
do Homem e o Filho de Deus. Parece que a comunidade cristã destinatária estava
passando por uma crise. Talvez a igreja estivesse sofrendo até mesmo uma
perseguição “política” simplesmente por ser cristã. Ela necessitava de uma declaração

167 BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 163, 164.


168 O mesmo argumento servirá para o Evangelho Segundo Lucas.
169 EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Op Cit., p. 219.
170 BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 159.

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Estudos no Novo Testamento 1 46

clara e abrangente sobre a pessoa de Jesus Cristo, que morrera em uma condição
ignominiosa numa cruz romana.

IV.2. Questões Literárias

Na segunda seção iremos analisar as questões literárias. Começaremos


desenvolvendo o tema da confiabilidade textual (crítica textual), depois analisaremos o
estilo e a forma. Ao final desta seção propomos uma estrutura geral da obra. A partir
daqui já poderemos tentar uma primeira leitura da obra como unidade literária.

IV.2.1. Crítica Textual

Segundo as conclusões da Crítica Textual o texto desse Evangelho chegou até


nós de uma forma completa e substancialmente boa, atestado em papiros, manuscritos,
traduções, lecionários e testemunhos de escritores eclesiásticos que remontam até os
inícios do século III. O texto contém 16 capítulos (1.1-16-8), com um apêndice (16.9-
20). Apesar de a crítica afirmar que o apêndice seja um acréscimo tardio, temos
indícios de sua existência já a partir do ano 150. 171 , Contudo, é importante salientar
que ele não consta nos manuscritos mais antigos (Vaticano e Sinaítico). Vários
patriarcas da Igreja Primitiva confirmam essa omissão, inclusive o grande historiador
da igreja, Eusébio, e Jerônimo, o tradutor da Vulgata. Além disso, o comentário mais
antigo que existe sobre Marcos termina em 16.8. 172
As denominações mais antigas que temos documentadas a partir dos
manuscritos são as seguintes:
KATA MARKON ¥ B pc
euaggelion kata Markon A D L W Q f13 1. 33. 2427 Û lat
to kata Markon agion euaggelion 209. 579. al (vgcl)
Ao códice ¥ acrescentamos que no final ele traz uma subscrição que é típica
do sistema livreiro da Antiguidade: EUANGGELION KATA MARKON.173
Uma vez que assumimos o estudo dos Evangelhos Sinóticos, talvez seja
interessante conhecermos quais são os textos exclusivos do Evangelho Segundo
Marcos. Na tabela abaixo estão dispostos os relatos que não são mencionados nem em
Mateus nem em Lucas.174

Textos em Marcos Conteúdo

171 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Evangelios sinópticos y echos de los
Apóstoles. Espanha: Editorial Verbo Divino, 1991, p. 149.
172 EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Comentário Bíblico Beacon. Volume 6. Rio

de Janeiro: CPAD, 2015, p. 325.


173 MAUERHOFER, Erich. Introdução aos Escritos do Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2010, p.

121, 122.
174 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 121.

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Estudos no Novo Testamento 1 47

sem paralelos
3.20,21 Temor dos familiares de que Jesus esteja fora de si
4.26-29 A parábola da semente que cresce por si
7.31-37 A cura de um surdo-mudo na Decápolis
8.22-26 A cura gradual do cego em Betsaida
13.33-37 Exortação à vigilância dos servos e porteiros
14.51-52 Homem jovem que fugiu nu
16.17-18 Os sinais que acompanham a fé
16.19,20 O Senhor exaltado e a atividade missionárias dos
apóstolos

Muitos estudiosos consideram o texto de 14.51-52 “Homem jovem que fugiu


nu” uma menção velada do próprio autor do Evangelho Segundo Marcos.

IV.2.2. Linguagem e Estilo

O Evangelho Segundo Marcos foi redigido em grego koiné com forte


influência semita, uma característica comum dos países semitas bilíngues do Oriente,
como a Sírio-Palestina e o Egito.
Estilisticamente caracteriza-se pelo pouco cuidado no uso do vocabulário, pela
liberdade no uso da sintaxe e pela vivacidade e realismo de seus relatos que, apesar das
incorreções gramaticais, captam a atenção do leitor desde o primeiro momento.
O vocabulário marcano é composto de 1.345 palavras, das quais 60 são nomes
próprios e 79 são hápax legomena, ou seja, únicas no Novo Testamento. Repete
frequentemente uma série de palavras, tais como ter (ekho, 60 vezes), um (heîs, 38
vezes), de novo (palin, 28 vezes). Contêm semitismos, especialmente aramaísmos, a
maioria relacionados com a topografia, onomástica e com as Instituições de Israel,
como thalassa com o sentido de lago, Barabbas, Bartholomaios, Bartimaios, Thomas,
Satanas, Bethsaida, Gennesaret, Golghota, Kafarnaoum, Paskha. Do mesmo modo,
como antecipamos acima, emprega latinismos oriundos da linguagem técnica militar,
comercial e jurídica: denarion, denário; kensos, censo; kentyríon, centurião; legion,
legião; modius, módio medida; xestes, estrangeiro; spekoulator, sentinela; fragelloun,
açoitar. A sintaxe é própria da linguagem popular, pouco trabalhada estilisticamente.
Temos o predomínio da parataxe. Além disso, é pobre em conjunções. Por fim,
devemos ressaltar que o estilo é popular e vivo, próprio da linguagem falada.175

IV.2.3. Estrutura Literária

175 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., pp. 151-157.

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Estudos no Novo Testamento 1 48

O Evangelho Segundo Marcos não apresenta um estrutura harmônica como


Mateus e João. O autor queria fazer uma seleção de “palavras e obras” para pintar com
eles um “retrato vivo de Jesus”.
Observamos facilmente que o evangelista não se empenhou em escrever a
“história” de Jesus de acordo com os cânones da historiografia moderna. Dessa forma,
o autor não seguiu uma cronologia estrita. Isto já ficou evidenciado na citação de
autoria dada por Eusébio acima. Os comentaristas adotam diferentes critérios para
descobrir a estrutura do segundo Evangelho. Alguns propõem uma estrutura levando
em conta os dados geográficos e as viagens de Jesus. Há quem prefira fixar-se nos
indícios literários e doutrinais. Outros acreditam que Marcos escreveu seu Evangelho
para combater algum tipo de heresia.
Nós adotaremos a estrutura que procura demonstrar as diversas etapas da vida
de Jesus de acordo com o texto mesmo.
Estrutura do Livro.
I. Preparação para o ministério de Jesus 1.1-13.
II. Ministério na Galileia 1.14-6.13.
III. Ministério além da Galileia 6.14-8.26.
IV. Interlúdio estrutural 8.27-30.
V. A Caminho de Jerusalém 8.31-10.52.
VI. Ministério de Jesus em Jerusalém 11.1–13.37.
VII. A última ceia 14.1-31.
VIII. A narrativa da paixão de Jesus 14.32–15.47.
IX. A ressurreição do Senhor 16.1-20.

Antes de encerrarmos este tópico, é interessante notar, contudo, a semelhança


da estrutura marcana com a pregação de Pedro. Observamos que depois de uma
introdução, a narrativa segue para o ministério na Galileia, seguida de um relato a
respeito da atividade de Jesus além da Galileia, da viagem para Jerusalém e do último
ministério com o ápice da paixão e ressurreição de Jesus. Certo estudio so conseguiu
identificar esse mesmo arcabouço em Atos dos Apóstolos, sobretudo em 10.34ss.
Vejamos a comparação abaixo:

At 10.34ss Marcos
v. 36 Anúncio do Cristo como Senhor sobre todos 1.1-3
v. 37-38a Batismo por João e começo da atuação na Galileia; 1.4-37
preparação com o Espírito Santo e poder
v. 38b Andou pela região, fazendo o bem, curou enfermos e 1.38-10-52
expulsou demônios
v. 39ª Atuação de Jesus na terra da Judeia 11.1-13.37
v. 39b Crucificação 14.1-15.47
v. 40-42 Ressurreição, aparições, ordem missionária 16.1-20

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Estudos no Novo Testamento 1 49

IV.3. Questões Teológicas

Nesta terceira e última seção continuamos a análise da obra sob o ponto de


vista do seu conteúdo. Não podemos jamais esquecer que a obra de Marcos, assim
como a dos demais evangelistas, é fundamentalmente teológica, tendo a cristologia
como o lugar central.
A finalidade teológica do Evangelho Segundo Marcos fica claramente
evidenciada no título mesmo da obra: proclamar a Boa Notícia “o Evangelho de Jesus
Messias, Filho de Deus” (1.1).
O Evangelho em estudo, mais que apresentar sistematicamente a doutrina do
Mestre, põe em relevo os atos e palavras que apresentavam a Jesus como o Messias,
como o Filho do Homem e como o Filho de Deus. Tudo isto é uma verdade de fé
aceita e vivida, que não tem a intenção de provar, mas de manifestar.

IV.3.1. Jesus é o Messias, o Cristo

Tudo tem seu início no acontecimento do Jordão. Logo que sai da água os
céus se rasgam e Jesus vê que o Espírito, como pomba, desce sobre ele, e escuta-se a
voz do céu: “Tú és o meu Filho amaro, em quem me comprazo” (1.10-11). Jesus é,
pois, o Ungido (Messias em hebraico ou Cristo em grego) com o Espírito; é o Messias
que vem para instaurar o Reino de Deus (1.14-15).

IV.3.1.1. Jesus: Messias investido com poder

O Messias Jesus supera em grandeza aos profetas do Antigo Testamento. Ele é


“o santo de Deus” (1.24), vencedor sobre os demônios, senhor da natureza animada e
inanimada, que vem para resgatar os homens por meio de seu sacrifício na cruz do
calvário (8.31; 10.45). Disso resulta a importância dos exorcismos, dos milagres e das
curas, que ostentam a onipotência do Salvador (1.23-25; 4.39).
Em primeiro lugar podemos compreender que os exorcismos refletem a luta da
ordem espiritual e escatológica que opõe o Reino de Deus ao Reino de Satanás (sem
cair no dualismo cósmico). Esta luta, em geral invisível, manifesta-se no modo de agir
e falar dos demônios, a quem Jesus proíbe de falar e revelar mais coisas (1.24 -25;
3.11-12; 5.7).
Em segundo lugar temos os milagres e as curas. Estes são forças ou atos de
poder (dynameis) que manifestam que o Reino de Deus chegou e está presente em
Jesus. O Mestre ordena aos curados que não falem da obra que realizou neles, contudo,
isso é praticamente impossível (7.36s).

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Estudos no Novo Testamento 1 50

IV.3.1.2. O segredo messiânico

Várias vezes, o Evangelho Segundo Marcos destaca o fato de Jesus pedir


silêncio a respeito de algum feito extraordinário que realizara (1.25,34,44; 3.12; 5.43;
7.36; 8.26). Nos estudos e comentários exegéticos, convencionou-se chamar essa
concepção teológica de “segredo messiânico”, o que, uma vez percebido, tornou-se
uma das características desse Evangelho, que também foi acolhida pelos outros
Evangelhos (Mc 8.30; Mt 16.20; Lc 9.21; Mc 9.9; Mt 17.13, entre outros). 176
O termo hebraico e aramaico mashiah não se refere nunca, no Antigo
Testamento, a uma figura salvadora do futuro, mas a uma personagem histórica
presente, geralmente o rei e, poucas vezes, aos sacerdotes, patriarcas e profetas. Só
posteriormente o termo passa a ser aplicado a tais figuras para designar a salvação
escatológica.177
No pensamento judaico, o termo “messianismo” se refere geralmente a dois
elementos: a espera de um tempo futuro caracterizado pela felicidade e pela justiça; e a
crença de que o mundo feliz será trazido não tanto pela ação de forç as somente
humanas – por exemplo, pela observância estrita da Lei – como pela mediação de uma
ou várias figuras divinas, denominadas Messias.178
Na época de Jesus, o conceito de Messias era de um descendente de Davi,
guerreiro nacionalista, que reconquistaria a liberdade para o povo de Israel e
reestabeleceria o reino aos judeus (Mc 8.29-33; 12.35-37; Jo 6.15; At 1.6).
Todavia, este conceito era tão alheio ao messianismo de Jesus que ele mesmo
não gostava de ser chamado publicamente de Messias (1.34,44; 3.12; 5.43; 7.36;
8.26,30; 9.9). Somente após a sua morte e ressurreição, depois da descida do Espírito
Santo sobre a igreja, os discípulos puderam compreender sua autêntica missão. Assim
ele foi reconhecido e proclamado como Messias-Cristo.
Dessa forma, observamos que o “segredo messiânico” encerra uma visão
cristológica muito profunda.

IV.3.2. Jesus é o Filho do Homem

O termo “Filho do Homem” aparece oitenta e duas (82) vezes bem distribuídas
entre os quatro Evangelhos. Observamos, em primeiro lugar, que esse título nunca
aparece em nenhum dos Evangelhos como uma designação de outras pessoas aplicada
a Jesus. Em todas as narrativas encontramos somente o próprio Cristo utilizando -se
desse título. Ele demonstra um particular interesse por essa designação. 179 Esse título
176 ZUCK, Roy B. Teologia do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2010, pp. 79-81.
177 SCHIAVO, Luigi. Anjos e messias: messianismos judaicos e origem da cristologia. São Paulo: Paulinas,
2006, p. 37.
178 Ibidem.
179 RIBEIRO, Jonas Celestino. Os ensinos de Jesus – O Evangelho de Marcos. Rio de Janeiro: JUERP, 2000,

p. 49.

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Estudos no Novo Testamento 1 51

tem a vantagem de sugerir um papel messiânico, particular e misterioso (Dn 7.13 -14;
Mc 2.10,28; 8.31,38; 9.9,12,31; 10.33,45; 13.26; 14.21,41,62) .
Paradoxalmente o título ressalta a condição débil e limitada do ser humano. O
evangelista destaca claramente os traços humanos de Jesus: é um trabalhador cuja
família é bem conhecida (6.3); não pode fazer milagres por causa da incredulidade de
seus patrícios (6.5s); mostra diversos sentimentos humanos (3.5; 6.34; 8.2,12;
10.14,16,21; 14.34); faz perguntas (5.30; 8.5; 9.16-21).
Outro aspecto de Jesus como o Filho do Homem é que ele deve passar pela
humilhação, o sofrimento e a morte. Ele mesmo predisse (8.31; 9.31; 10.38s). Esse
caminho faz parte do desejo de Deus e foi anunciado pelas Escrituras (9.12; 14.21). A
morte de Cristo possui um caráter redentor (10.45; 14.24). A salvação, conquistada
pelo preço de sua própria vida, trará benefício a toda a humanidade (12.8-12; 13.10;
14.9).180
Mais um aspecto oculto e doloroso da pessoa de Jesus reflete-se em sua obra.
O Reino de Deus, que ele inaugura, possui origens modestas e difíceis. O capítulo das
parábolas traz esta afirmação (4.1-34). Seus discípulos somente podem segui-lo por
um caminho de humilhação, de desprendimento e de cruz (8.34s; 9.35; 10.15;
10.24s,29s,39; 13.9-13).
A narrativa marcana demonstra que os acontecimentos foram a confirmação
deste plano divino. Em Jesus, humanamente falando, encontramos somente
contradições e fracassos. É assim que Marcos destaca a insensibilidade das multidões
(4.12; 5.40; 6.2s), as hostilidades das autoridades judaicas (2.1-3,6; 3.22; 7.5; 14.1), a
incompreensão de sua própria família (3.21) e, por fim, a fraqueza de seus discípulos
(6.52; 7.18; 8.17s.21,33; 9.19,32,34; 10.38; 14.4s,27,30,37s,66-72).
De outro lado, Jesus como “o Filho do Homem”, manifesta, como adiantamos
acima, um mistério mais profundo. Ele é o misterioso personagem messiânico de
origem celeste anunciado em Daniel (7.13-14), o qual padecerá, morrerá, mas
ressuscitará (8.31; 9.9,31; 10.33-34) e virá na glória de seu Pai com os anjos (8.38),
sentado à destra de Deus sobre as nuvens e com grande poder (13.26; 14.62).
A chave para a compreensão desse Evangelho está na eminente dignidade de
Jesus e em sua condição menosprezada: Jesus é um Messias crucificado. Contudo, o
escândalo da cruz só pode ser compreendido através do fato de sua ressurreição
gloriosa.

IV.3.3. Jesus é o Filho de Deus

Esse é o título que destaca mais nitidamente a divindade de Jesus. A confissão


do título aparece em momentos cruciais da vida de Jesus: na apresentação do

180 BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 526, 527.

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evangelho (1.1); depois do batismo no Jordão (1.11); na transfiguração (9.7); nos dias
de sua pregação em Jerusalém (13.32); na confissão do centurião (15.39). 181
A realidade ontológica de ser “o Filho de Deus” se manifesta em poderes que
correspondem somente a Deus: perdoar os pecados (2.10-12); poder sobre o shabbát
(2.28; 3.1-5); expulsa os demônios (1.28.34; 3.11), conhece os segredos do coração
(2.8; 8.17; 12.15); prediz o futuro (8.31s; 10.39; 13.1ss); é Senhor das for ças da
natureza (4.41).182
Por fim, Jesus se apresenta como o Filho amado, o Herdeiro, a quem Deus
envia à sua vinha (12.6); ele é superior aos anjos (1.13; 13.32); em sua pessoa vem o
Reino de Deus (1.15), que será instaurado de maneira definitiva quando vier na glória
de seu Pai com os anjos (8.38s).183

181 RIBEIRO, Jonas Celestino. Op Cit., p. 48.


182 LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003, p. 212, 213.
183 BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 529.

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V. O EVANGELHO SEGUNDO MATEUS

Na ordem tradicional, o Evangelho Segundo Mateus faz a abertura do Novo


Testamento. A justificativa e que ele é aquele dos quatro evangelhos que procura, mais
acentuadamente, estar dentro da linha do Antigo Testamento. Mateus lança uma ponte
entre a expectativa do reino messiânico, cuja vinda é proclamada nos livros proféticos
do Antigo Testamento, e o advento de Jesus Cristo, que O Novo Testamento apresenta
como a resposta a essa espera.184
Um olhar atento sobre a obra de Mateus pode nos ajudar a perceber, na
experiência de Jesus, o retrato da experiência de seu povo, que foi exilado, perseguido
por causa de sua fé, resistência aos seus profetas, morte de suas lideranças e, mesmo
assim, tornou-se luz das nações. Jesus é o herdeiro e, ao mesmo tempo, a
concretização das promessas dessa fé. Mateus demosntra como as promessas feitas a
Israel se cumpriram em Jesus, filho de Davi, filho de Abraão e filho de Maria de
Nazaré. Toda a história do nascimento, vida, obra e morte de Jesus evocam a
caminhada do povo de Deus.
Do mesmo modo como fizemos com o Evangelho Segundo Marcos faremos
com o Evangelho Segundo Mateus, ou seja, dividiremos nossa abordagem em três
seções: questões históricas, questões literárias e questões teológicas. O objetivo
também é o mesmo: o estudante deverá obter uma compreensão panorâmica desse
Evangelho e apontar caminhos pelos quais poderá ler, interpretar e ensinar o conteúdo
do texto.
Este evangelho – com cerca de 18.300 palavras em grego – é mais de 50%
maior que o de Marcos (11.300 palavras em grego). Grande parte deste aumento se
explica pelos dois capítulos que relatam a infância de Jesus e pelos longos sermões
formados com base em ditos e sentenças do Mestre ausentes em Marcos. A cura do
jovem servo do centurião e a do endemoninhado cego e mudo (Mt 8.5-13; 12.22-23),
tomadas de Q são as únicas histórias de milagres completamente não marcanas no
ministério de Jesus segundo Mateus. Ademais, estima-se que Mateus reproduza cerca
de 80% de Marcos.185
Mais uma vez iniciaremos, então, com as questões históricas.

V.1. Questões Históricas

Como questões históricas estamos fazendo referência à origem, autor, data,


lugar de composição, destinatários e situação que motivou a obra e as fontes utilizadas.

184 CULLMAN, Oscar. A formação do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2001, p. 20.
185 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 247.

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V.1.1. Autoria

Já sabemos que todos os quatro Evangelhos, em sua origem, são anônimos.


Isto significa que os manuscritos originais não levaram o nome dos autores. Contudo,
a tradição da igreja primitiva os atribui respectivamente a Mateus, Marcos, Lucas e
João.186
Eusébio de Cesareia menciona Clemente de Roma – morto em 101 d.C. –
como dizendo que “o primeiro dos quatro Evangelhos, que são inquestionáveis, foi
compilado por Mateus, que ‘outrora fora coletor de impostos, mas posteriormente um
apóstolo’”. Também Eusébio afirma: “Com efeito Mateus, que primeiramente tinha
pregado aos hebreus, quando estava a ponto de ir para outros, entregou por escrito seu
Evangelho, em sua língua materna, fornecendo assim por meio da escritura o que
faltava de sua presença entre aqueles de quem se afastava”. 187 Se isto for um fato, uma
edição grega acabou por substituir completamente a hebraica (aramaica) uma vez que
não encontramos nenhum fragmento de um Mateus em sua língua materna.
Alguns estudiosos atuais contestam que o texto grego seja uma tradução do
original hebraico ou aramaico em virtude de que o texto não se parece com uma
tradução. Contudo, as passagens “Q” de Mateus demonstram regularmente um
cuidadoso paralelismo semita, “o evangelho não é desprovido de seus semitismos e
não é necessário se argumentar que Mateus [...] tenha traduzido literalmente”. 188
O nome próprio Mateus significa “dom de Deus, dádiva de Javé” e aparece em
todas as listas dos doze apóstolos (Mt 10.2-4; Mc 3.16-19; Lc 6.13-16; At 1.13). No
primeiro Evangelho, Mateus é identificado como um publicano, o que não ocorre nas
demais listas. Na narrativa da chamada, o primeiro Evangelho menciona “Mateus” (Mt
9.9); Marcos o chama “Levi, filho de Alfeu” (2.14) e Lucas menciona simplesmente
“Levi” (5.27). Sem dúvida os três querem indicar a mesma pessoa. É bom lembrarmos
que era bastante comum um judeu ter dois nomes.189
Depois do texto de Atos 1.13, Mateus – Levi – não é mencionado outra vez no
Novo Testamento. Pouco se sabe de sua vida e ministério. Novamente é Eusébio quem
preserva as tradições do século II acerca da autoria de Mateus, mas existe pouca coisa
a respeito de sua obra depois disso. Diversas histórias afirmam que ele evangelizou a
Etiópia, Macedônia, Síria, Pérsia e Média. Existe uma tradição sobre ele ter sofrido
morte natural na Etiópia ou na Macedônia. De outro lado, as Igrejas Grega e Romana
celebram seu martírio.190
Uma coisa deve ficar clara: a igreja primitiva é unânime em atribuir a Mateus
a autoria do primeiro Evangelho canônico. A razão de nos remetermos sempre à

186 EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Op Cit., p. 21.


187 CESAREIA, Eusébio de. Op Cit., p. 65.
188 BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 180.
189 HALE, Broadus David. Op Cit., p. 87.
190 Idem, p. 88.

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Estudos no Novo Testamento 1 55

tradição da igreja antiga é que as informações dela são muito precisas, de maneira que
prometem fornecer, ao menos, boas coordenadas para nossas indagações.

V.1.2. Data

A data máxima para composição final deste Evangelho deve ser colocada em
115 d.C., quando Inácio, Bispo de Antioquia da Síria, referiu-se a ele em sua carta à
igreja de Esmirna. Do mesmo modo, como vimos, Eusébio menciona Clemente de
Roma como tendo feto referência ao Evangelho Segundo Mateus. Como Clemente
morreu por volta de 101 d.C., significa que este Evangelho não poderia de modo
algum ter sido escrito depois desta data.
A data mais antiga depende da datação que fizemos do Evangelho Segundo
Marcos, uma vez que ele forma a estrutura de nosso Mateus. Precisamos conceder
certo tempo para a composição e circulação de Marcos. Levando em conta esses
diversos fatores uma época antes de 60 d.C. seria difícil de ser defendida. 191
Há quem coloque a redação deste Evangelho para o início da década de 70 do
primeiro século.192 Outros advogam o surgimento do Evangelho entre os anos 80 a 90
d.C. Na nossa compreensão fica difícil aceitar uma data posterior a 70 uma vez que
Jerusalém já estaria destruída e o Evangelho desenvolve toda a sua narrativa como se a
cidade e o Templo ainda existissem. Podemos assumir uma data entre 63 e 67 d.C.

V.1.3. Lugar de Composição

Com referência ao local em que foi escrito o Evangelho Segundo Mateus,


também temos diversas informações. Atanásio afirma que foi escrito em Jerusalém;
Ebedjesu, diz que foi na Palestina; e Jerônimo, na Judeia, para beneficiar os discípulos
daquela região.193 Atualmente grande parte dos estudiosos afirma que o local foi
Antioquia da Síria.194
Antioquia era capital da província romana da Síria e a terceira cidade do
império, depois de Roma e Alexandria. Uma cidade bastante cosmopolita que tinha o
grego como língua oficial e o helenismo como aglutinador de diversos povos. A
colônia judaica dessa cidade era muito importante, e nela a infiltração do helenis mo
era um fenômeno bastante notável.195

V.1.4. Propósito

191 HALE, Broadus David. Op Cit., p. 89.


192 CHAVES, Irênio Silveira. Mateus – o Evangelho do reino. Rio de Janeiro: JUERP, 2002, p. 25.
193 BERKHOF, Louis. Op Cit., p. 61.
194 EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Op Cit., p. 22.
195 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 343.

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Levando em conta o conteúdo do Evangelho podemos inferir que a


comunidade de Mateus era bastante heterogênea: tinha uma componente
fundamentalmente judeo-cristã, parcialmente judeo-cristão helenista – o texto está em
grego e faz uso da LXX, mas também parece abrigar cristãos procedentes do
paganismo. A igreja de Mateus polemiza com o judaísmo farisaico. É uma igreja
estabelecida num centro urbano, com certa organização, como se depreende por seus
ministérios (23.8-10, 34) e seu procedimento disciplinar (18.15-20).196
Uma leitura de todo o texto pode nos apontar pelo menos quatro finalidades
básicas: litúrgica, “kerygmática”, didática e apologética.197
Dessa forma, Mateus escreveu para atender as necessidades de adoração e
leitura pública; uma leitura casual demonstra que este é o mais fácil, dos evangelhos,
de se ler. Parece dispor o material por tópicos.
No que diz respeito ao kérygma Mateus propõe-se a preservar todos os
elementos da pregação apostólica primitiva. Seu interesse é evangelizar os judeus
(15.24; 10.5,6), mas não se limita a eles (8.11; 24.14; 28.20). O tema da morte de Jesus
é desenvolvido através da demonstração do cumprimento das profecias, descendência
davídica, nascimento, vida, morte, ressurreição, ascensão e a promessa da volta de
Jesus.
A estrutura do Evangelho também nos leva a concluir que seu propósito é
instruir, ou seja, didático. O texto está divido em cinco seções em torno dos discursos
do Senhor.
Quanto ao caráter apologético, precisamos nos lembrar da crescente tensão
entre o cristianismo e o judaísmo; parece ter surgido certa indecisão, por parte de
alguns judeus, em entrarem completamente na justiça, que só pode ser recebido como
um dom de Deus. Observe que Mateus retrata a trágica rejeição, por parte de Israel, de
seu Messias. A meta apologética pode ser resumida na seguinte sentença: “Jesus é o
Messias e nele a profecia judaica foi cumprida”.198

V.2. Questões Literárias

Agora chegou o momento de analisar as questões literárias. Seguiremos o


padrão adotado para Marcos: crítica textual, conteúdo, linguagem e estilo. Depois,
dentre inúmeras opções, propomos uma estrutura geral do Evangelho Segundo Mateus.
Mais uma vez alertamos o estudante para a necessidade de uma primeira leitura da
obra como um todo. Trata-se de um reconhecimento inicial.

V.2.1. Crítica Textual

196 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 342.


197 HALE, Broadus David. Op Cit., pp. 93-98.
198 TASKER, R. V. G. Op Cit., p. 14.

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Podemos dizer que Mateus faz fundamentalmente uma síntese a partir de dois
projetos anteriores, o Evangelho Segundo Marcos e o documento Q (Quelle). Esse
evangelista assume o Evangelho Segundo Marcos como referencial, o que resulta,
assim, em uma obra essencialmente narrativa, mas na qual inclui material discursivo
do documento Q.199
A leitura mais bem documentada de Mt 1.16 é “Jacó gerou José, o esposo de
Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo”. Existem leituras variantes desse
versículo: uma destinada a evitar chamar José de “esposo de Maria”, outra
preservando o padrão usual de X gerou Y, mas ainda assim chamando Maria de
virgem.
Em Mateus 6.13 temos o término “do Maligno, do mal”. De acordo com o
testemunho de importantes e antigos manuscritos alexandrinos e ocidentais, dentre
outros, bem como de comentários sobre o Pai-Nosso escritos por diversos Pais da
Igreja antiga, o texto termina com ponerou. Para adaptar essa oração ao uso litúrgico
na Igreja antiga, copistas acrescentaram vários finais diferentes, com destaque para os
seguintes: “pois teu é o reino, e o poder, e a glória para sempre, Amém”; “pois teu é o
reino e a glória para sempre. Amém”; e “pois teu é o reino e o poder e a glória do Pai e
do Filho e do Espírito Santo para sempre. Amém”.200
As denominações mais antigas de que temos conhecimento a partir dos
manuscritos são as seguintes:
KATA MAQQAION ¥B
euaggelion kata matqaion D f13 33 Û bo
euaggelion kata maqqaion W
agion euaggelion kata matqaion f1 al
arch sun qew tou maqqaion euaggelion 1241 al
ek tou kata maqqaion L al
A inscrição EUANGGELION KATA MAQQAION também foi preservada em
uma folha de papiros conexos î 4.64.67 com fragmentos de Mateus e Lucas do final do
século II. Essa forma longa também é sustentada pela tradução latina antiga, que
presumivelmente tenha surgido no último quartel do século II. 201
Na tabela abaixo estão dispostos os relatos que ocorrem exclusivamente no
Evangelho Segundo Mateus.202

Material Conteúdo
exclusivo
1.1-17 A genealogia real de Jesus

199 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 149.


200 OMANSON, Roger L. Variantes textuais do Novo Testamento. Análise e avaliação do aparato crítico de
“O Novo Testamento Grego”. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010, p. 7, 8.
201 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 78, 79.
202 Idem, p. 77, 78.

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1.18-25 Anúncio do nascimento de Jesus a José


2.1-12 Visita dos astrólogos do Oriente
2.13-23 Fuga para o Egito e assassinato de crianças em
Belém
5.4s, 7-10 Partes do Sermão do Monte
5.14, 16-24
5.27-29
5.31-37
6.1-18
7.6, 15
9.27-31 Cura de dois cegos e um mudo possesso
10.5-15 Envio dos discípulos exclusivamente aos israelitas
10.34-39 Condições do discipulado
10.40-42 O salário dos que auxiliam os mensageiros de Jesus
11.28-30 O convite de Jesus – Venham a mim
12.36-37 Advertência contra o falar inútil
13.24-30,36- Parábola do joio no trigo
43
13.44 Parábola do tesouro no campo
13.45, 46 Parábola da pérola preciosa
13.47-50 Parábola da rede de pesca
13.50-52 Comparação com um patrão
14.28-32 Pedro anda sobre a água
16.17-19 Resposta de Jesus à confissão de fé de Pedro
17.24-27 O imposto do templo
18.15-22 Sobre o perdão
18.23-35 A parábola do servo impiedoso
20.1-16 A parábola dos trabalhadores na vinha
21.14-16 Curas no templo e o louvor das crianças
21.28-32 Os dois filhos desiguais
22.1-14 As bodas reais
23.15-22 Contra os fariseus
25.1-13 Parábola das dez virgens
25.31-46 Discurso sobre o julgamento dos povos
27.3-10 O fim trágico do traidor Judas
27.19 O sonho da esposa de Pilatos
27.52,53 Ressurreição de muitos santos durante a
crucificação de Jesus
27.62-66 A guarda do sepulcro de Jesus
28.11-15 A fraude do Sinédrio
28.16-20 Aparição no monte da Galileia, ordem missionária
e promessa

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Estudos no Novo Testamento 1 59

Mateus modifica a ordem de suas fontes para obter composições de caráter


temático, diferente de Lucas, que respeita a ordem de Marcos, embora seja
interrompido em alguns momentos para introduzir o material do documento Q e o
material próprio.203

V.2.2. Linguagem e Estilo

Lembremo-nos de que os textos de O Novo Testamento surgem na


encruzilhada cultural do mundo helenístico e do mundo semítico. Podemos perceber
isso de maneira nítida no Evangelho Segundo Mateus, o mais judaico dos Evangelhos,
que não obstante, escreve num grego mais correto que o do Evangelho Segundo
Marcos e que, contra o que se acreditava em outros tempos, não pode mesmo ser mera
tradução de um original aramaico ou hebraico. Contudo, faz uso de diversos
procedimentos estilísticos de origem semítica. Ao ler Mateus descobrimos de imediato
esses recursos estilísticos. Vamos destacar aqui os recursos que mais se sobressaem ao
longo do texto mateano: 204
Inclusões. Trata-se da repetição de palavras ou expressões-chave no início e
no fim de uma seção que a delimita e a orienta sobre o conteúdo. No princípio do
Evangelho, Jesus é apresentado como o Emanuel (VEmmanouh,l), Deus-Conosco (1.23);
ao final, o Senhor diz aos apóstolos “eu estou convosco todos os dias, até à
consumação dos séculos” (28.20). Os versículos 4.23 e 9.35 são uma inclusão que
delimita a seção melhor construída de toda a obra e indica seu conteúdo. As inclusões
ocorrem com frequência em seções pequenas (pelos seus frutos os conhecereis –
7.16,20; Reino dos céus na primeira e na oitava bem-aventurança, 5.3,10).
Outro recurso estilístico bastante comum em Mateus são os paralelismos e
quiasmos. Em 7.24-27 encontramos duas estrofes paralelas em tudo, mas com
conclusões contrárias: trata-se de um paralelismo antitético; o texto paralelo em Lucas
6.47-49 não apresenta essa forma literária exata. Por vezes, o paralelismo tem forma
circular, dando lugar ao quiasmo. Veja a estrutura abaixo:

porque aquele que quiser salvar a sua vida (a)


perdê-la-á (b)
e quem perder a sua vida (b’)
por amor de mim achá-la-á (a’)

Outros exemplos podem sem encontrados em 10.39; 13.13-18; 18.10-14. O


quiasmo é um procedimento frequente no Antigo Testamento.

203 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 149, 150.
204 Idem, pp. 150-154.

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Devemos incluir aqui as citações de cumprimento: 1.22; 2.5; 2.15; 2.17; 2.23;
4.14; 8.17; 12.17; 13.14; 13.35; 21.4; 27.9. São citações do Antigo Testamento
próprias de Mateus, que se caracterizam por uma reflexão introdutória do evangelista,
na qual se afirma explicitamente o cumprimento do texto das Escrituras hebraicas em
algum episódio da vida de Jesus.
Temos ainda a fórmula que está no final dos discursos de Jesus em 7.28; 11.1;
13.53; 19.1 e 26.1. É evidente a importância dessas fórmulas mateanas; servem tanto
para fechamento como transição. Além disso, modifica o ambiente ou o assunto.
Existem diversos outros recursos estilísticos, mas eles podem ser verificados à
medida que lermos e estudarmos o texto mesmo.

V.2.3. Estrutura Literária

Enquanto Marcos termina seu relato de forma abruta, sem a descrição formal
da ressurreição, Mateus inclui um capítulo inteiro dedicado à volta de Jesus do mundo
dos mortos e à comissão final dada por ele aos discípulos. Mateus apresenta
basicamente cinco grandes blocos de material discursivo. A intensão de Mateus de que
esses cinco principais sermões de Cristo fossem vistos como unificados, intercalados
ao longo de sua narrativa, fica evidenciada por meio da repetição, já mencionada
acima, com que encerra cada um dos sermões: “Havendo Jesus concluído essas
palavras”.
Aqui também adotaremos a estrutura que procura demonstrar as diversas
etapas da vida de Jesus de acordo com o desenvolvimento natural do texto.
Estrutura do Livro.
I. A origem e a infância de Jesus, o Messias 1.1-2.23.
II. Início do Ministério de Jesus, o Messias 3.1-4.25.
III. A Ética do Reino de Deus 5.1-7.29.
IV. As obras poderosas de Jesus 8.1-9.34.
V. Jesus e seus pregadores missionários 9.35-10.42.
VI. As prerrogativas de Jesus, o Messias 11.1-12.50.
VII. Sete parábolas do Reino do Céu 13.1-52.
VIII. A rejeição de Jesus em Nazaré
e o martírio de João Batista 13.53-14.12.
IX. Jesus se retira dos domínios de Herodes 14.13-17.27.
X. A vida na comunidade messiânica 18.1-35.
XI. A viagem para Jerusalém 19.1-20.34.
XII. O Messias desafia Jerusalém 21.1-22.46.
XIII. O Messias denuncia os escribas e fariseus 23.1-39.
XIV. A queda de Jerusalém
o aparecimento do Filho do Homem 24.1-51.

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Estudos no Novo Testamento 1 61

XV. Três parábolas de julgamento 25.1-46.


XVI. A narrativa da paixão 26.1-27.66.
XVII. A ressurreição de Jesus 28.1-10.
XVIII. Narrativas pós-ressurreição 28.11-20.

Optamos por uma estrutura um tanto mais detalhada apenas por objetivos
didáticos.

V.3. Questões Teológicas

Chegamos à última seção de nossa análise do Evangelho Segundo Mateus.


Lembre-se de que as obras dos evangelistas são fundamentalmente teológicas. Dessa
forma, interessa-nos saber qual a abordagem teológica mateana. Nisto consiste o
grande diferencial no que diz respeito ao conteúdo. Isso também é importante para as
questões interpretativas.

V.3.1. Núcleo do pensamento mateano

O Evangelho Segundo Mateus desenvolve uma teologia da história em


perspectiva dupla: do passado, com as genealogias (1.1-7), as citações e as frases
evocativas de amplos contextos do Antigo Testamento, como a “Boa Nova do Reino”
(4.23; 9.35; 24.14), palavra e doutrina do Reino (13.19,52); do futuro, anunciando que
todos os povos devem ser feitos discípulos através do ministério da pregação dos
enviados (28.16-20). Deus faz história com os seres humanos de maneira única e
decisiva em Jesus, o Cristo e Filho de Deus.205
O trajeto terreno de Jesus proposto por Mateus é único. Pouco a pouco, Jesus
foi se revelando às multidões enquanto formava seus discípulos na construção
progressiva de sua Igreja – instrumento para o mundo da presença do Reino dos Céus
(como ele chama o Reino de Deus).
O ponto de partida desse trajeto aparece no evangelho da infância. Evocando
as profecias hebraicas, Mateus explicita a maneira como Jesus realiza as esperanças
judaicas. Mateus atribui-lhe os títulos messiânicos tradicionais. Segundo o anúncio
profético, ele nasce em Belém, cidade real: é verdadeiramente “Filho de Davi” (9.27).
Contudo, Jesus não é o Messias nacionalista esperado pelos seus contemporâneos. A
fim de corrigir este equívoco, Mateus apela para a figura do “Servo” de Deus (8.17);
extraída de Isaías (Is 42.1-4 e 53.4); se ele é rei (21.5), é um rei humilde, segundo a
visão de Zacarias (9.9). De toda forma, são as Escrituras que, incessantemente,
legitimam sua identidade.

205 MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 130.

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Estudos no Novo Testamento 1 62

O núcleo do pensamento de Mateus é dividido em três dimensões


fundamentais que dão sustentação à teologia do Evangelho: a dimensão eclesiológica,
a dimensão cristológica e a dimensão ética e moral. Vejamos de forma introdutória
cada uma dessas três dimensões.

V.3.1.1. Dimensão Eclesiológica

A primeira dimensão é Eclesiologia. Ela é profundamente enfatizada. O


Evangelho Segundo Mateus sempre foi considerado o evangelho eclesial por
antonomásia, devido a duas razões fundamentais: em primeiro lugar, dos Sinóticos,
Mateus é o único Evangelho em que aparece a palavra ekklesia, três vezes.206 Nas duas
vezes que Jesus utiliza o termo, uma tem conotação universal, referindo-se uma a todo
o novo povo do Messias Jesus (16.18) e outra, tem um sentido particular, como uma
comunidade ou igreja local, com seus problemas disciplinares (18.17); em segundo
lugar, na obra inteira, sobretudo nas partes discursivas, transparece a vida da Igreja. É
possível descobrir mesmo os conflitos da comunidade e, até certo ponto, seus
ministérios.207
A dimensão eclesiológica desse Evangelho está centrada no discipulado
daqueles que são chamados a viver no “agora” o “ainda não”, ou seja, a viver no
tempo presente os ensinamentos do Mestre como se estivessem vivendo os tempos
finais, do juízo. A comunidade de Mateus, formada por judeo-cristãos, é chamada a
viver no aqui o Reino de Deus. A Igreja, neste Evangelho, é apresentada como uma
realidade complexa na multiplicidade de imagens que a representam: ora como a rede
lançada ao mar, que acolhe uma diversidade de peixes (13.47-50), ora é figurada no
campo de um pai de família, que plantou nele a boa semente e o inimigo nele semeou a
cizânia. Ambos crescem juntos e a colheita só pode ser feita no final (13.24 -43).
Precisamos ressaltar que quando Jesus declarou que edificaria a Sua Igreja,
não tinha em mente a formação de uma estrutura como se tornou a Igreja
posteriormente. Não podemos afirmar categoricamente que Jesus queria formar a
Igreja da maneira como a conhecemos hoje. Naquele momento Jesus estava dando os
fundamentos para o surgimento do novo conjunto do povo de Deus, a partir da
afirmação de Pedro: “tu és o Cristo, o filho de Deus vivo” (16.16), do mesmo modo
como estava estabelecendo a autoridade conferida a essa nova comunidade (18.19). A
vida da Igreja de Cristo deveria ser marcada pela comunhão e pela unidade.208
O Evangelho é um discipulado continuado referente à construção da
comunidade, constituída de regras próprias, o perdão, a oração, a correção fraterna

206 ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 54.


207 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 318.
208 CHAVES, Irênio Silveira. Op Cit., p. 42.

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(18) e que termina no Reino. A Igreja está aberta para todos os povos, fazendo aí uma
diferença com o Antigo Israel (21.43).209
Lembre-se de que Jesus chamou pessoas para o seguirem, formando um grupo
de fiéis, a quem chamou de discípulos (maqhth,j - mathetes), servos ou escravos (dou/loj
- doulos) e serviçais da casa (oivkiako,j - oikiakós) (10.25).210
Em Mateus, a Igreja é uma continuidade de Israel, enquanto povo separado
por Deus. Como novo povo de Deus, a Igreja é o lugar para congregar pessoas vindas
de todas as partes, gentios e judeus, em torno do Reino dos Céus (8.11). A Igreja e o
Reino de Deus são expressões que estão muito próximas, mas dizem respeito a
realidades distintas. O Reino é o domínio total de Deus sobre tudo o que existe; a
Igreja é a família composta pelas pessoas que entram no Reino e estão submissas ao
poder soberano de Deus. A Igreja, portanto, é o verdadeiro povo de Deus, pertencente
ao Messias.211

V.3.1.2. Dimensão Cristológica

A segunda dimensão é a Cristologia. Jesus é o fundamento da Igreja. A Igreja


pertence a Ele. Ele é o seu Senhor. Entre os vários títulos dados a Jesus, Filho de Deus
(2.15) unido a Senhor (ku,rioj - Kýrios) fortalece a imagem referencial para as
comunidades em formação.212 Talvez possamos afirmar com segurança que este seja o
mais importante título em Mateus dado para Jesus. Muitas pessoas chamavam Jesus de
“Senhor” e, em diversos casos, parece que isso queria significar pouco mais que
“Mestre”. Todavia, em muitos lugares, o contexto sugere que Senhor (Kýrios) é o
título correto utilizado pelos discípulos plenos, especialmente quando eles precisam da
ajuda que apenas alguém que possua prerrogativa e poder divinos pode oferecer
(8.2,6,25; 9.28).213 Portanto, parece mesmo apropriado falar de pessoas “adorando”
(proskune,w - proskynéo: termo utilizado para o culto a Deus) o Senhor durante a sua
vida (2.2,8,11; 14.33).214 . Observamos assim, que em Mateus, muitas vezes, a
expressão Senhor em si mesma não precisa indicar meramente cortesia social. 215 Por
esse, e os demais motivos que observaremos abaixo, a cristologia de Mateus é “mais
elevada” e mais explícita do que a de Marcos e de Lucas.
Observe que a primeira designação que aparece para Jesus é Messias (Cristo,j
- Christós) (1.1), título que se repete diversas vezes no início do Evangelho
(1.16,17,18). Esse título corresponde a uma preocupação fundamental dessa seção
introdutória: apresentar a Jesus como o Messias enviado a Israel e como cumprimento

209 MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 131.


210 CHAVES, Irênio Silveira. Op Cit., p. 43.
211 Ibidem.
212 MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 131.
213 ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 27.
214 BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 172, 173.
215 LADD, George Eldon. Op Cit., p. 287.

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das promessas. No restante da obra, esse título ocorre poucas vezes (11.2 -3; 16.16;
26.63).216
Ainda na seção introdutória, junto ao título de Messias (Cristo), tem
importância fundamental o tema da descendência davídica de Jesus. Observamos isso
em 1.1,6,17,20; 2.6. O Evangelho Segundo Mateus é o texto de O Novo Testamento
que mais faz uso da expressão “Filho de Davi”; das nove vezes em que aparece no
Evangelho, sete foram introduzidas pelo seu redator, ou seja, por Mateus. O uso do
título Filho de Davi confirma o caráter judeo-cristão de Mateus.217
O ressuscitado ainda conserva a fisionomia do Mestre. Ele não envia os onze,
como aparece em Marcos e Lucas, Atos e João, como testemunhas da sua ressurreição,
ou para proclamar o evangelho. Jesus envia seus apóstolos para fazerem discípulos
Seus em todas as nações. Isto é, eles são enviados não apenas para ensiná-las, mas para
torná-las seus discípulos, ensinando-as a observarem tudo o que Jesus lhes havia
ensinado a observar (28.19s). O Jesus glorioso, ressuscitado, os reenvia para que
recordem seus ensinamentos, dados na condição terrena, antes da ressurreição.
Jesus é o único Mestre (23.10) capaz de iluminar, exortar, julgar e tornar leve
o jugo (11.28-30) da Igreja. Ele está constantemente presente, desde a encarnação,
quando se apresenta como Emanuel (VEmmanouh,l - Deus conosco, 1.23), no dia-a-dia,
quando garante “estar no meio” daqueles que se reúnem para orar (18.20), continuando
a assistência também após a ressurreição (“estarei com vocês todos os dias até a
consumação dos séculos”, 28.20).218
Para Mateus, em Jesus se realiza a presença de Deus (VEmmanouh,l) no meio de
seu povo e, consequentemente, esse novo povo de Deus se caracteriza por sua relação
com Jesus. Em 18.20, Jesus fundamenta o poder da comunidade e a eficácia de sua
oração na promessa de que, “onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí
estou eu no meio deles” (evkei/ eivmi evn me,sw| auvtw/n - ekei eimi em mesô autôn). Jesus,
que por seu nascimento humano era Deus-Conosco, continua agora desempenhando
esse mesmo papel para além de sua vida terrena. Mateus não diz que Jesus é Deus,
mas fala de tal forma que insinua sua pertença especial à esfera da divindade. Em 9.2
Jesus é acusado de blasfêmia por sua pretensão de perdoar os pecados, do que não se
retrata em absoluto.219

V.3.1.3. Dimensão Ética e Moral

A terceira dimensão é Ética e moral. O Evangelho Segundo Mateus coloca-se


na mesma linha de Tiago. Ele oferece indícios da ética e moral da comunidade cristã.
O que importa é agir (7.21). O juízo final, fortemente enfatizado, é levado a cabo com

216 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 311.


217 Ibidem.
218 MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 131.
219 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 314.

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base nas obras de caridade. Não basta pertencer fisicamente à comunidade: tem-se o
chamado, mas ainda não se é eleito. A condição de eleito transparece diante de ações
cristãs concretas.220
Esse Evangelho traz cinco grandes discursos descritos em uma forma
característica de apresentação (Mt 5.1-2; 13.1-3, por exemplo). Ao terminar, Mateus
faz a conclusão do discurso com fórmulas fixas: “... concluindo Jesus este discurso”
(7.28; 19.1) ou “... acabando Jesus de dar instruções aos doze discípulos” (11.1; 13.53;
26.1). O conteúdo desses discursos é a ética. Nesse enfoque entendemos melhor o
sentido da afirmação de Jesus que veio para levar ao cumprimento a Lei (5.17-19), a
superação de certas normas mosaicas (5.21-48), isso não para atenuar, antes, para
realizar, de forma mais profunda, a vontade de Deus (19.8), concentrando-se no amor
que já era central no Antigo Testamento.221
Em Mateus, Jesus deixa claro que a fonte de todas as ações humanas, justas e
boas, consiste em três princípios elaborados em polêmica, contra uma religião
superficial e hipócrita: 1) a experiência religiosa dos discípulos de Jesus deve superar
o comportamento dos escribas e fariseus (5.20); 2) a experiência religiosa dos
discípulos deve levá-los a uma confiança tal no Pai dos céus, a ponto de acreditarem
na recompensa daquilo que é feito em segredo (6.4,6,18) e não se mostrarem religio sos
e piedosos aos outros, apenas pelas aparências (6.1,5,16); 3) essa experiência religiosa,
deve levar os discípulos a consagrarem sua vida, seguindo um só mandamento: amar a
Deus totalmente, na experiência concreta do amor aos irmãos (7.12) e não se deixarem
aprisionar na gaiola dos preceitos e de normas religiosas. 222
Contudo, se quisermos tratar de normas, podemos resumí-las em quatro
atitudes: o amor (ágape); a justiça, a retidão, a piedade (dikaiôsyne); a misericórdia
(heléos); o perdão (afiémi). Essas quatro atitudes, como essência da religião, são
aprofundamentos e princípios norteadores da vida moral e espiritual.

V.3.2. O Reino de Deus

Em Mateus encontramos a declaração de que, juntamente com o advento de


Jesus Cristo, é chegado o Reino de Deus (basilei,a| tou/ qeou/ - Basileía tou Theoû) ou
Reino dos Céus (basilei,a tw/n ouvranw/n - Basileía tôn ouranôn). A expressão
preferida por Mateus é Reino dos Céus, empregada 32 vezes, enquanto Reino de Deus
é empregada apenas quatro vezes.223
O Reino de Deus é apresentado em Mateus como um tesouro (13.44-46),
como um presente aos pequeninos (19.14) e como uma prioridade (6.33). O próprio
Evangelho é a boa nova do Reino (4.23). O Senhor Jesus nos convida para tomarmos

220 MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 132.


221 ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 50.
222 MARCONCINI, Benito. Op Cit., pp. 133-142.
223 CHAVES, Irênio Silveira. Op Cit., p. 39.

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parte de seu Reino como quem convida para um baquete ou uma festa (8.11; 22.1-
14).224 A entrada no Reino de Deus se dá por meio do arrependimento (4.17). Isso
implica em uma vida que deve ser marcada por uma nova ética (conforme vimos
acima) que Jesus Cristo veio ensinar, baseada na nossa condição de sal da terra e luz
do mundo (5.13-14). Desse modo, a nossa justiça deve exceder a dos escribas e
fariseus (5.20). Um dia prestaremos conta de nossas atitudes e pensamentos, quando
do juízo eterno (12.36). Portanto, Jesus exige a renúncia total a todo o ti po de apego
aos valores seculares (16.24).225

V.3.3. Escatologia

Mateus destaca a vinda de Cristo como Filho do Homem na função de juiz


universal e glorioso, que dará a cada um segundo as suas obras (16.27). Este é o único
evangelista que utiliza a expressão parousia (parousi,a - 24.3,27,37,39) para falar da
vinda do Filho do Homem.226 Também é Mateus quem dá mais destaque ao juízo
futuro, com um anúncio de juízo mais ou menos claro. O homem pode seguir o
caminho largo que leva à perdição ou o estreito que conduz à vida (7.13-14), pode
edificar sua casa sobre rocha, de modo que possa resistir sempre, ou sobre a areia, que
acaba logo em ruínas (7.24-27). O discurso do capítulo 13 termina com a parábola da
rede, que é tipicamente de juízo, sobre a separação dos peixes bons e dos maus (13.47-
50; cf. 13.36-43).227
Em Mateus o juízo será precedido pela ressurreição dos mortos. A segunda
vinda de Jesus será o evento escatológico marcante. O termo preferido por Mateus
para descrevê-lo, como vimos acima, é parousia, que significa presença. O sermão do
monte das Oliveiras concentra o maior conteúdo dos ensinos de Jesus a esse respeito.
Aqui, fica evidente que a segunda vinda de Cristo será iminente (24.24), repentina
(24.27) e visível em poder e grande glória (24.30). A incerteza do tempo em que
acontecerá é comparada com a chegada do ladrão da noite (24.43) e com os tempos de
Noé (24.37-39).228

224 ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 36.


225 CHAVES, Irênio Silveira. Op Cit., p. 40, 41.
226 ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 63.
227 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 329, 330.
228 CHAVES, Irênio Silveira. Op Cit., p. 45.

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Estudos no Novo Testamento 1 67

VI. O EVANGELHO SEGUNDO LUCAS

Lucas é o pesquisador dos fatos. Este Evangelho é o mais longo dos quatro.
Contudo, é apenas a metade da grande obra lucana, uma vez que originalmente estava
unido aos Atos como a primeira parte de uma obra em dois volumes, cuja extensão é
maior que um quarto de todo O Novo Testamento. Uma narrativa magnífica que
conjuga a história de Jesus com a da Igreja dos primórdios. Lucas se distancia de
Marcos mais do que Mateus, e podemos dizer que teologicamente está a meio caminho
entre Marcos-Mateus e João. Certamente, ainda que todos os evangelistas sejam
teólogos, o número de obras sobre a teologia de Lucas é surpreendente.229
O estudo do Evangelho Segundo Lucas também será feito em três seções:
questões históricas, questões literárias e questões teológicas. Os objetivos continuam
sendo os mesmos.
Cabe ressaltar que durante o estudo de Lucas faremos algumas menções ao
Livro de Atos. Isto se justifica tendo em vista que, ao que tudo indica, trata-se de uma
obra que pretende dar continuidade ao Evangelho. Dessa forma, diversas questões
tratadas aqui no Evangelho Segundo Lucas servirão igualmente para o Livro de Atos e,
por isso, devemos aproveitar para trata-las em conjunto.
Vamos conhecer algumas questões históricas.

VI.1. Questões Históricas

Como já deve ser de conhecimento do leitor, as questões históricas irão tratar


da origem, autor, data, lugar de composição, destinatários e situação que motivou a
obra. De igual modo, trata também das fontes porventura utilizadas.

VI.1.1. Autoria

O Evangelho Segundo Lucas e o Livro de Atos dos Apóstolos são obras


concebidas e escritas para o serviço da comunidade cristã e, portanto, provavelmente
foram escritas como obras anônimas. No século II, quando foram sendo agrupados os
diversos escritos apostólicos e teve início a formação do cânon dos livros do Novo
Testamento, foram colocados os títulos nas duas obras, da mesma forma que nos
outros escritos, para distingui-las das demais. A primeira parte se chamou Evangelho
Segundo Lucas, atribuindo-se assim a obra a tal personagem. A segunda parte recebeu
o título de Atos dos Apóstolos, sem aludir ao autor, mas a tradição antiga sempre o
atribuiu à mesma pessoa que escreveu o Evangelho, devido às afinidades entre as duas
obras, dedicadas, além disso, à mesma pessoa.230

229 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 311.


230 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 433.

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A tradição, desde Marcião e Irineu, no século II, identificou esse Lucas com o
companheiro de Paulo, médico, aquele de quem falam as cartas de Paulo (Cl 4.14; Fm
14; 2Tm 4.11), e até o século XIX não se duvidou dessa identificação. Irineu afirma
que “Lucas, o companheiro de Paulo, registra em um livro o Evangelho pregado por
ele”. Do mesmo modo, os testemunhos de Orígenes, Eusébio, Atanásio, Gregório de
Nazianzo, Jerônimo, e outros condizem com isso.231
Na atualidade prevalece a ideia de que o autor se chamava Lucas, pois este
nome nunca foi discutido na tradição; além disso, não pode ser pseudoepígrafe,
porque, neste caso, seria mais sensato atribuir a obra a um personagem de maior
relevância, como Pedro, Paulo, ou outro nome de maior destaque na Igreja Primitiva.
De igual modo, se aceita que o autor não foi uma testemunha direta de Jesus (Lc 1-4),
mas um cristão da segunda geração cristã; pessoa culta, familiarizada com a cultura
helenista e veterotestamentária, possivelmente nascida fora da Palestina e de origem
gentílica, relacionada com as igrejas paulinas, para as quais escreve. 232
O único conhecimento que temos sobre Lucas deriva de algumas passagens
nas epístolas paulinas (cf. acima). Das duas primeiras passagens (Cl 4.14; Fm 14)
resulta o seguinte: em primeiro lugar podemos afirmar que Lucas foi um dos
colaboradores de Paulo no trabalho missionário entre os gentios; em segundo lugar,
uma vez que em Cl 4.10s Paulo destaca os colaboradores da circuncisão de forma
específica, sem arrolar Lucas entre eles, podemos ter certeza de que ele era um gentio
cristão; do título de médico (Cl 4.14) podemos inferir que ele era cientificamente
instruído. A partir do texto de 2Tm 4.11 descobrimos que Lucas esteve com Paulo
enquanto ele estava preso em Roma pela segunda vez (por volta do ano 66). 233 As três
vezes em que Lucas é mencionado, Marcos também aparece, o que nos leva a crer que
os dois evangelistas se conheciam muito bem.
Os patriarcas da Igreja, Eusébio e Jerônimo, afirmam que Lucas era de
Antioquia, na Síria, o que bem pode ser verdade; contudo, também é possível que esta
afirmação se deva a uma variação do entendimento de Lucas a partir do nome Lúcio
(At 13.1) em vez de considerar o nome Lucanus.234
A ligação de Lucas com Paulo parece ter sido tão forte que o testemunho
antigo chega a afirmar que “A compilação de Lucas é frequentemente atribuída a
Paulo. E de fato é comum um discípulo publicar o trabalho de seu mestre”
(Tertuliano); e ainda “Lucas registrou certa quantidade de coisas em seu Evangelho à
medida que teve certeza delas através de seu conhecimento e familiaridade profundos
com Paulo, e sua ligação com outros apóstolos” (Eusébio). Por fim, vale mencionar

231 BERKHOF, Louis. Op Cit., p. 79.


232 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 434.
233 RIENECKER, F. O. O Evangelho de Lucas. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2005, p. 11.
234 BERKHOF, Louis. Op Cit., p. 79, 80.

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Estudos no Novo Testamento 1 69

que Atanásio afirmou que o Evangelho Segundo Lucas foi ditado pelo apóstolo
Paulo.235

VI.1.2. Data

Se o Livro de Atos dos Apóstolos foi escrito por volta do final do primeiro
cativeiro de Paulo 62-63, o Evangelho deve ser situado antes disso. Se Lucas depende
de Marcos, deve ser situado depois da redação deste. Dessa forma, a redação do
Evangelho Segundo Lucas deve ficar situada depois do Evangelho Segundo Marcos e
antes de Atos dos Apóstolos. É provável que, durante os anos de prisão de Paulo em
Cesareia, Lucas tenha realizado suas investigações intensivas. Essa prisão pode ser
datada para os anos 57-59. Portanto, a redação deste Evangelho deve ter acontecido ou
durante esse período ou logo depois.236

VI.1.3. Lugar de Composição

Diversas fontes antigas citam como lugar da redação deste Evangelho a Acaia,
ou seja, a Grécia. Assim ocorre no prólogo monarquiano, Jerônimo e Gregório
Nazianzo. Alguns manuscritos sírios da Peshitta situam a redação em Alexandria.
Barth sugere Antioquia.237 Os diversos estudiosos modernos têm sugerido Roma,
Cesareia, Ásia Menor, Éfeso e Corinto.238
Da leitura de Atos 21 depreendemos que Paulo foi acompanhado por Lucas
quando retornou da terceira viagem missionária para Jerusalém. Assim, Lucas
presenciou a detenção do apóstolo, acompanhando-o dois anos mais tarde até Roma. É
provável que tenha ficado junto de Paulo até o martírio dele (2Tm 4.11). Como alguns
manuscritos já trazem Roma como lugar da redação, podemos indicar Cesareia, a
viagem para Roma ou a própria Roma.239 Há ainda quem fique mesmo com
Cesareia.240

VI.1.4. Propósito

Tanto o Evangelho quanto Atos são dirigidos ao mesmo destinatário: Teófilo


(Lc 1.3; At 1.1). Infelizmente, não temos nenhum meio de determinar quem foi esse
Teófilo. Há quem suponha que o nome seja uma generalização aplicada a todos os

235 Idem, p. 80.


236 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 191.
237 Idem, p. 184.
238 BERKHOF, Louis. Op Cit., p. 84.
239 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 185.
240 EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Op Cit., p. 350.

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Estudos no Novo Testamento 1 70

cristãos, como um ente querido ou um amigo de Deus. Mas a opinião geral é, com
razão, de que se trata mesmo de um indivíduo.241
Percebemos facilmente que Teófilo é uma pessoa conhecida de Lucas, grego
ou romano. O fato de Lucas abordá-lo da mesma forma que Félix (At 23.26; 24.3) e
Festo (At 26.25), nos leva a concluir que Teófilo era uma pessoa de posição elevada.
Alguns sugerem até mesmo que ele tenha patrocinado a redação das duas obras.
Lucas escreve primordialmente para que Teófilo tenha um conhecimento mais
completo e satisfatório a respeito de Jesus Cristo. Pode ser que o destinatário tivesse
recebido informações rudimentares e Lucas pensava que fossem necessárias mais
instruções, ou possivelmente o próprio Teófilo tenha pedido ao evangelista para lhe
fornecer um relato mais adequado. Contudo, não resta dúvida de que Lucas tinha em
mente uma audiência mais numerosa que um único e “excelentíssimo” indagador.
Pode ser que o evangelista tenha percebido que a Igreja, como um todo, precisava de
um Evangelho mais completo do que aquele que existia na ocasião. 242

VI.2. Questões Literárias

A unidade das duas obras, conforme mencionado no início deste capítulo, já


afirmada em 1679 por J. Lightfoot, foi claramente demonstrada por estudos da
primeira metade do século XX e hoje em dia é admitida pela maioria dos exegetas;
apoiados fundamentalmente na unidade da linguagem, estilo e teologia. As duas obras
juntas constituem um bloco de aproximadamente 37.778 palavras. O conjunto
quantitativamente mais completo de todo O Novo Testamento (32.303 palavras nas
cartas paulinas) costuma ser designado com a sigla Lc-At. Este conjunto representa o
empreendimento literário mais ambicioso do cristianismo primitivo, que pela primeira
vez procurava autocompreender-se no marco da História da Salvação.243

VI.2.1. Crítica Textual

O texto alexandrino do Evangelho é representado, entre outras testemunhas,


pelos papiros î4, î45 e especialmente pelo î75 , todos eles do século III. Além disso,
ele também consta nos grandes manuscritos do século IV, Sinaítico (¥) e Vaticano (B);
é um texto que possivelmente remonta ao século II. O texto ocidental, contido no
Codex Bezae Cantabrigiensis (D), do século V, e na Vetus Latina, do século II/IV,
oferece um texto caracterizado por adições, omissões e trocas que explicam o texto,
suavizam-no ou harmonizam-no com os outros sinóticos e às vezes lhe dão um caráter
antijudaico.244

241 BERKHOF, Louis. Op Cit., p. 82.


242 EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Op Cit., p. 350.
243 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 365.
244 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 135.

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Estudos no Novo Testamento 1 71

Geralmente a Crítica Textual considera esse texto como secundário embora,


em casos concretos, possa conter leituras de maior valor do que o alexandrino. Existe
ainda um terceiro tipo de texto, o chamado Koiné ou Textos Receptus, que possui
pouco valor. As atuais edições dos manuais críticos usam fundamentalmente o texto
alexandrino, suprimem como não autênticos 9.55b-56a; 23.17, e duvidam da
autenticidade de 22.43-44; 23.34 e dos textos que Westcott e Hort chamaram de “não
interpolações ocidentais”, ou seja, uma série de fragmentos que não aparecem no texto
ocidental, como 22.19b-20; 24.3,6a,12,26b,40,51b,52a. O estado atual da questão pode
ser encontrado na quarta edição do O Novo Testamento Grego, que duvida seriamente
de 22.43-44; 23.24, apresentando o texto entre colchetes, e admite a autenticidade das
“não interpolações ocidentais”, apoiado na autoridade de î75 .245
Apesar de todas essas considerações não existem motivos para duvidar que
nós possuímos o texto de Lucas substancialmente como foi escrito. 246
As denominações mais antigas de que temos conhecimento com base no
acervo de manuscritos são mencionadas abaixo.247
KATA LOUKAN ¥ B pc vgst bo ms
euaggelion kata Loukan ADLWQ X Y
33 Û lat samss bo pt
to kata Loukan agion euaggelion 209. 579. al
arch tou kata Loukan agiou euaggelion 1241 pc
No Evangelho Segundo Lucas do manuscrito ¥ também encontramos na
subscriptio a forma longa EUAGGELION KATA LOUKAN. Os mesmos dizeres
constam na subscriptio também em î75 , o mais antigo exemplar de Lucas preservado
do período entre 175 e 225.
Do mesmo modo como fizemos com Marcos e Mateus, iremos dispor em uma
tabela os relatos que ocorrem exclusivamente no Evangelho Segundo Lucas. 248

Material Conteúdo
exclusivo
1.1-4 Prólogo
1.5-25 Anúncio do nascimento de João Batista
1.26-38 O anjo anuncia a Maria o nascimento de Jesus
1.39-45 Visita de Maria a Isabel
1.46-56 Louvor de Maria
1.57-80 Nascimento de João Batista e louvor de Zacarias
2.1-7 Censo e nascimento na estrebaria
2.8-14 Anúncio do nascimento por meio de anjos e pastores no

245 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., pp. 367-368.
246 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 137.
247 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 167.
248 Idem, pp. 165-167.

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Estudos no Novo Testamento 1 72

campo
2.15-20 Pastores visitam o recém-nascido Jesus
2.21-40 Circuncisão de Jesus; sua apresentação no templo
2.41-51 O menino Jesus no templo aos 12 anos
3.10-14 João Batista responde à pergunta: “O que devemos fazer?”
3.23-38 Genealogia de Jesus (de sua mãe Maria)
4.16-30 “Sermão inaugural” de Jesus em Nazaré
5.1-11 A pescaria de Pedro
6.24-26 Os quatro ais
7.11-17 Ressurreição do jovem de Naim
7.36-50 Unção de Jesus pela pecadora
8.1-3 Mulheres na companhia de Jesus
9.51-56 Rejeição pelos samaritanos
10.1-12 O envio dos 70 discípulos
10.17-20 Retorno dos 70 discípulos
10.21-24 Bem-aventuranças de Jesus aos discípulos
10.30-37 A parábola do samaritano misericordioso
10.38-42 Jesus com Maria e Marta
11.5-8 O amigo suplicante
11.27-28 Quem pode se dizer feliz
12.13-21 Parábola do rico agricultor
12.47,48 “A quem muito foi dado, muito será exigido”
13.1-5 Os galileus vitimados. Torre de Siloé
13.6-9 Parábola da figueira estéril
13.10-17 Cura, no sábado, da mulher encurvada
13.22-30 Conclamação para a decisão correta
13.31-33 Inimizade de Herodes
14.1-6 A cura de um hidrópico no sábado
14.7-14 Da ordem hierárquica e seleção dos convidados
14.15-24 A parábola da grande ceia
14.28-32 Estimativa de custos para construir uma torre e para guerrear
15.8-10 A parábola da moeda perdida
15.11-32 A parábola do filho perdido
16.1-10 A parábola do administrador infiel
16.19-31 Lázaro e o homem rico
17.7-10 Trabalho indiscutível dos servos
17.11-19 A cura de dez leprosos
18.1-8 Parábola do juiz injusto e da viúva suplicante
18.9-14 A parábola do fariseu e do publicano
19.1-10 O publicano-mor Zaqueu
19.41-44 Jesus chora sobre Jerusalém
22.43,44 Um anjo fortalece Jesus no Getsêmani e agonia de morte
22.49-51 Pedro corta a orelha de um servo do sumo Sacerdote
23.7-12 Jesus perante Herodes

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23.27-31 No caminho ao Calvário Jesus fala com as mulheres que o


seguem
23.34,43,46 Três palavras proferidas na cruz
23.39-43 Diálogo na cruz com os dois criminosos
24.4 Dois anjos com as mulheres na manhã da Páscoa
24.13-35 Jesus com dois discípulos a caminho de Emaús
24.50-53 A ascensão de Jesus

O Evangelho Segundo Lucas tem um total de 1.149 versículos. Possui, em


paralelo com Marcos, cerca de 350 versículos e, além desses, 250 versículos em
paralelo com Mateus. Dessa forma, restam cerca de 520 versículos de material
exclusivo em Lucas. Conforme pode ser observado, são principalmente a introdução
ao Evangelho e o relato de viagem (Lc 9.51-19.27) que apresentam a maior parte de
“material exclusivo”.249250

VI.2.2. Linguagem e Estilo

Desde o período patrístico considera-se o grego de Lucas, junto ao de


Hebreus, como o mais cultivado e o mais elegante de todo O Novo Testamento. Utiliza
com correção literária o koiné, de uma forma superior ao uso vulgar do povo e de
muitos escritos bíblicos, mas sem chegar a ser um classicista ou aticista. O domínio
que Lucas tem da linguagem aparece nos mais diversos tipos de grego que utiliza em
sua dupla obra, onde encontramos por uma parte o grego literário aticista do prólogo
do Evangelho e, por outra, os vários tipos de grego semelhantes aos da LXX, o
semitizante do evangelho da infância, o que aparece no restante do Evangelho,
semelhante ao de Marcos, mas melhorado, e o dos Atos, no qual escreve com maior
liberdade. Essa diversidade de estilos talvez seja devida ao uso de diversas fontes.
Toda a obra requer a utilização de uma linguagem sagrada, semelhante à que fora
utilizada pela LXX, para narrar a obra de Jesus e da primeira geração de cristãos, nas
quais continuam as maravilhas de Deus. Quem escreveu o prólogo poderia ter escrito
toda a sua obra com um estilo semelhante. Se não fez isso, foi porque preferiu imitar
outro tipo de linguagem e porque preferiu respeitar suas fontes. Lucas é, portanto, um
verdadeiro historiador helenista menor, às vezes elegante, às vezes vulgar, que não
chega a alcançar a altura dos grandes literatos de sua época.251
Há quem divida o Evangelho, linguisticamente, em três seções. O Prefácio
(1.1-4) escrito em estilo clássico. O resto do capítulo 1 e o capítulo 2 têm um sabor
nitidamente hebraico. A partir de 3.1, o Evangelho está escrito em um tipo de grego

249 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 165.


250 Observe novamente as tabelas apresentadas anteriormente e perceba como existe sempre uma pequena
variação nos diferentes manuas estatísticos. Isto se deve, como dissemos, ao uso que fazem do texto grego, se
aceitam ou não determinados versículos duvidosos, etc.
251 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 374, 375.

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Estudos no Novo Testamento 1 74

helenístico que lembra fortemente a LXX. Às vezes a linguagem de Lucas contém


hebraísmos e, às vezes, aramaísmos. Além disso, sua linguagem é mais semítica em
alguns trechos do que em outros.252
O evangelho emprega 2.055 palavras diferentes com um total de 19.404 usos,
o que apresenta uma média de 9,44 usos por palavra. Destas, 971 são hápax legomena
e 640 não são usadas por Marcos nem por Mateus.253
Em geral, precisamos afirmar que Lucas-Atos não é a obra de um estilista,
mas a de um pastor. Para Lucas, a linguagem está a serviço da fé e somente levando
em consideração podem-se explicar adequadamente todos os recursos de seu estilo.
Conhece os recursos estilísticos dos semitas e helenistas e domina as técnicas que
ajudam a uma apresentação viva dos materiais, como estes facilitam uma adequada
composição dos relatos.254

VI.2.3. Estrutura Literária

Para determinar a estrutura de uma obra, podemos aplicar de modo especial


critérios objetivos que nos ajudem a descobrir a inteção do autor sem cair em
subjetivismos. Os critérios geralmente utilizados são: estilo, resumos redacionais,
geografia, protagonistas, temática, temas teológicos e sumários. Esses diversos
critérios servem para ajudar no descobrimento de uma possível leitura contínua,
progressiva e com sentido de todo o texto.
O Evangelho Segundo Lucas apresenta uma estrutura clara, que podemos
desenvolver da seguinte forma:
I. Prólogo 1.1-4.
II. Nascimento e vida oculta de João Batista e de Jesus 1.5-2.52.
III. Pregação de João e apresentação de Jesus 3.1-4.13.
IV. Ministério de Jesus na Galileia 4.14-9.50.
V. Viagem a Jerusalém 9.51-19.27.
VI. Ministério de Jesus em Jerusalém 19.28-21.38.
VI. Última Ceia 22.1-38.
VII. A paixão de Jesus 22.39-23.56.
VIII. A ressurreição do Senhor 24.1-53.

Observe que se trata de uma estrutura simples que abarca as grandes cenas da
narrativa lucana.

VI.3. Questões Teológicas

252 MORRIS, Leon L. Lucas: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 25, 26.
253 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 375.
254 Idem, p. 378.

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Estudos no Novo Testamento 1 75

Lucas se empenha em narrar a história de Jesus na perspectiva de uma história


da salvação (Heilsgeschichte), e esta história é vista em três etapas: 1) o período de
Israel (16.16) – preparação; 2) o período do ministério de Jesus (4.16ss: At 10.38) –
acontecimento; 3) o período desde a ascensão, ou seja, o período da igreja –
realização.255 Há uma única história de salvação em contínuo estar presente de Jesus
nas diferentes economias de Deus. Assim, para Lucas, a Igreja constitui o
prolongamento da história da salvação.

VI.3.1. A salvação

A obra de Conzelmann resume admiravelmente em seu título a posição do


autor – O Centro do Tempo (Die Mitte der Zeit). Ele sustenta que Lucas vê Jesus como
totalmente central, e que escreve seu Evangelho baseado nesta convicção. 256
É por isso que Lucas é chamado de “teólogo da salvação”. Ele tem muito a
dizer sobre a história da salvação (Heilsgeschichte).257 Relacionando salvação e os
eventos históricos, Lucas traz à tona uma ideia nova sobre a teologia da salvação: a
salvação divina manifestada na vida, morte, ressurreição e ascensão de Jesus são
perpetuadas na vida diária da Igreja. Deus se faz presente na vida humana agindo em
tudo o que Jesus disse e fez (cf. 2.1-2; 3.1).258
A libertação de toda a forma de mal, especialmente do pecado e da perdição
eterna e uma relação de amizade e comunhão com Deus está presente na forma como
Lucas utiliza o termo “salvar” (sozêin) 17 vezes no Evangelho e 13 vezes nos Atos dos
Apóstolos.259 Outras variantes da palavra “salvar” aparecem em Lucas-Atos:
“salvador” (sóter), 4 vezes, e “salvação” (sotería ou sotérion), 13 vezes. Estas citações
revelam claramente a intenção do autor.260
É importante destacarmos o fato de que O Novo Testamento emprega o
vocábulo salvação com diversos matizes. Em geral podemos resumir em dois blocos:
1) salvar do mal, tirando de uma situação de ameaça: livrar de um mal que ameaça,
livrar de um mal já presente, manter-se fora desse mal (aspecto ontológico) e,
consequentemente, nos três casos, livrar da opressão psicológica que se sente diante do
mal iminente ou presente (aspecto psicológico); 2) dar um bem, situar num estado
positivo; dar o bem plenamente ou começar a dá-lo, com a esperança de chegar a
recebê-lo plenamente; nos três, manter-se nesse situação (aspecto ontológico) e,
consequentemente, na alegria e na certeza dali derivadas (aspecto psicológico). A
salvação que Jesus oferece ao homem quer livrá-lo das trevas e na realidade do

255 MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 30, 31.


256 Idem, p. 31.
257 Idem., p. 33.
258 MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 161.
259 ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 130.
260 MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 161.

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pecado, de Satanás e seus demônios, da dor e da enfermidade, da morte, da


incredulidade e dos incrédulos e dos ídolos.261

VI.3.2. O universalismo da salvação

Se os sistemas humanos de salvação são parciais, uma vez que não cobrem
todas as necessidades do homem, com frequência marginalizam aqueles que não têm
meios salvadores (dinheiro, poder, prestígio), com o que produzem dor; pelo contrário,
a salvação que Jesus nos oferece é total, pois cobre todas as necessidades do ser
humano, e chega a todos, embora privilegiando os marginalizados e, por isso, é motivo
de alegria. É, portanto, universal por seu conteúdo e por seus destinatários. 262
O universalismo da salvação entra no plano de Deus como um elemento
essencial, desejado por si mesmo e não somente como consequência da rejeição que o
povo eleito fez de Jesus e de sua missão.263
Nesta perspectiva, Jesus não é somente descendente de Abraão, senão de
Adão, criado por Deus (3.38). Os anjos cantam lembrando-se do ser humano em geral
(2.14); a razão disto é que Jesus é um Salvador (2.11), e é uma luz para todas as
nações (2.32). João Batista prega que “toda carne verá a salvação de Deus” (3.6) e o
evangelho será proclamado a todas as nações (24.47). Diversos personagens não
judeus se beneficiam da salvação trazida por Jesus: o samaritano misericordioso
(10.25-27); o leproso samaritano (17.11-19); o centurião romano que tem fé em Jesus
(7.9), ou o centurião que reconhece a inocência do crucificado (23.47).264
Ainda temos a salvação oferecida aos pecadores, aos pobres e às mulheres.265

VI.3.3. A paixão de Cristo

Lembre-se de que o Evangelho Segundo Lucas, assim como os demais, não é


uma história ou biografia no sentido moderno da expressão. Lucas se propõe não
somente fazer referência aos feitos que narra, senão, dar-lhes uma interpretação
teológica. Isto se realiza projetando sobre eles a luz da paixão e da ressurreição. Lucas
é o evangelista do Plano de Deus: o mistério da Páscoa é seu foco, o Espírito Santo é
seu autor e a comunidade universal dos crentes é seu término. 266
O evento pascoal ilumina todo o Evangelho de Lucas. A tríplice profecia sobre
a paixão e ressurreição, que Lucas faz questão de sublinhar (9.22,44; 18.31-34) quer
demonstrar:
1) Jesus como sinal de contradição (2.34);
261 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 418, 419.
262 Idem., p. 422, 423.
263 ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 97.
264 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 35.
265 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., pp. 419-421.
266 MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 41.

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Estudos no Novo Testamento 1 77

2) Jesus, objeto de admiração e de ódio (4.16-30);


3) A transfiguração, durante a qual Jesus trata com Moisés e Elias de sua
partida que estava por realizar-se em Jerusalém (9.31);
4) Jesus arde em desejos de ser batizado em sua paixão (12.50);
5) Todo profeta deve morrer em Jerusalém (13.32-33);
6) O Filho do Homem tem que sofrer muito (17.24s);
Depois da ressurreição, Jesus recorda às mulheres, aos discípulos de Emaús e
aos discípulos reunidos no cenáculo, os anúncios que havia feito durante a sua vida
(24.7,25s,45s.).267

VI.3.4. O Espírito Santo

Lucas demonstra claramente que o propósito de Deus não cessa na cruz.


Continua na obra do Espírito Santo, que significava tanto na Igreja nos dias de Lucas
como significa na Igreja de todos os tempos.268
O Espírito Santo é a alma, o princípio vital, em toda a obra de Lucas
(Evangelho e Atos). Sem o Espírito Santo não existe nem Jesus-Messias, nem a Igreja.
O Espírito Santo é o poder (du,namij - dýnamis) do alto que está em plena atividade.
1) Ele é quem move aos pais de João Batista (1.41,67);
2) Ele enche o precursor do Messias (1.15,80);
3) O Espírito Santo opera na Virgem Maria a concepção de Jesus, o Filho
de Deus (1.35);
4) Ele ilumina a Simeão (2.25-27);
5) O Espírito Santo desce sobre Jesus para ungi-lo (3.22);
6) Impulsionado por Ele, Jesus foi levado ao deserto (4.1);
7) Sob sua ação soberana, Jesus inicia seu ministério (4.14);
8) O Espírito do Senhor repousa plenamente sobre Jesus-Messias, com a
finalidade de realizar o plano salvífico de Deus (4.18);
9) Na virtude do Espírito, Jesus expulsa os demônios (11.20);
10) Jesus exulta no Espírito (10.21);
11) O Espírito Santo é o dom de Deus por excelência (11.13);
12) Os discípulos serão instruídos pelo Espírito (12.12);
13) Lucas termina seu Evangelho anunciando que Jesus enviará sobre seus
discípulos a Promessa do Pai (24.49).269
Lucas tem mais a dizer acerca do Espírito Santo no seu Evangelho do que
qualquer um dos demais evangelistas. Isto forma um vínculo de continuidade. Tanto

267 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 34.
268 MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 43.
269 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 35.

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Estudos no Novo Testamento 1 78

no ministério de Jesus quanto na vida da Igreja primitiva, o Espírito de Deus está


operante.270
Viver segundo o Espírito implica caminhar em um processo de crescimento e
fortalecimento. A ação do Espírito não é “mágica” como se ao invoca-lo Ele descesse
do céu sobre nós. Mas Ele está presente em nós. Ele irrompe na comunidade a partir
das entranhas dos fatos históricos.

VI.3.5. A oração

Se no ensino acerca do Espírito Santo Lucas nos mostra que Deus leva a efeito
o Seu propósito; esta operação exige uma atitude da parte do povo de Deus.271 Dessa
forma, no Terceiro Evangelho encontramos o verbo “orar” até 19 vezes (1.10; 3.21;
5.16; 6.12,28; 9.18,28-29; 11.1,1,2; 18.1,10,11; 20.47; 22.40,41,44,46).
Lucas revela Jesus como “um homem de oração”, através da qual cultiva a
intimidade com o Pai. Ora no momento de seu batismo (3.21); durante seu ministério
(5.16); para escolha dos Doze (6.12); para multiplicação dos pães (9.16); antes da
confissão messiânica de Pedro (9.18); durante a transfiguração (9.28); durante a
dolorosa agonia no Getsêmani (22.39-44); e finalmente durante as horas em que esteve
pendurado na cruz (23.34, 46).272

VI.3.6. O louvor, a gratidão e a alegria

No Evangelho Segundo Lucas podemos respirar constantemente em um


ambiente de louvor, de ação de graças, de bênção e de glorificação a Deus.273 Nesta
atitude aparecem Zacarias, Maria, os anjos em Belém, os discípulos, o centurião ao pé
da cruz (cf. 1.46,64,68; 2.13,20,28; 5.26; 7.16; 10.17; 13.13,17; 17.15; 18.43; 23.47;
24.41,53).274 Alguns dos grandes hinos da fé cristã são registrados aqui: Magnificat,
Benedictus e Nunc Dimitis (1.46ss., 68ss.; 2.29ss).275
O verbo “regozijar-se” e o substantivo “alegria” são encontrados com muita
frequência (1.14, 44, 47; 3.17; 10.21). Há alegria na recepção que Zaqueu fez para
Jesus (19.6); quando a ovelha perdida e a moeda perdida são achadas, e há jubilo no
céu por causa da recuperação de pecadores perdidos (15.6-7, 9-10). O Evangelho
Segundo Lucas termina, assim como começou, com regozijo (24.52; 1.14).276

270 MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 45.


271 Ibidem.
272 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 36.
273 ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 177.
274 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 36.
275 MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 45.
276 Ibidem.

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Estudos no Novo Testamento 1 79

VI.3.7. A importância das mulheres

É digno de nota o lugar que Lucas concede às mulheres através de seu


Evangelho. As mulheres ocupam lugar especial. No relato da infância de Jesus,
mulheres (Maria e Isabel) são as duas protagonistas. Em Lucas-Atos, mulheres são
mencionadas mais do que pelos demais autores de O Novo Testamento: Jesus as cura
(8.43-48; 13.10-17), defende-as (7.36-50; 13.10-17) perdoa-as (7.36-50), ressuscita
uma jovem (8.49-56; cf. At 9.36-39) e o filho de uma viúva (7.11-17), e elogia uma
viúva (21.14), aceita seus serviços materiais (8.1-3). Contrariando o costume da época,
Jesus admite mulheres em seu seguimento (24.1-11,22). Elas estão presentes no grupo
que persevera na oração, esperando o dom do Espírito Santo (At 1.14).277
No século I as mulheres não tinham vez. Lucas, contudo, as vê como objetos
do amor de Deus, e escreve a respeito de muitas delas. 278

VI.3.8. O Evangelho para os pobres

Maria canta à pobreza e à humildade (1.52); os anjos aparecem aos pastores


pobres (2.8); José e Maria são pobres (2.24). Jesus é pobre (9.58) e prega aos pobres
(6.21). Os apóstolos deixam tudo e se fazem pobres (5.11; 14.33; 18.22; cf. 2.24; 4.18;
6.20; 16.15,20; 21.3).279
No Evangelho Segundo Lucas os pobres não são espiritualizados, como em
Mateus. São carentes economicamente, marginalizados e excluídos socialmente. Não
têm relevância na sociedade. O contraste entre “ricos” e “pobres” transcende as
dimensões socioeconômicas.
Os pobres forma um conjunto heterogêneo, que podemos separar em três
grupos, conforme o grau de carência de bens. O primeiro grupo é formado pelos
pobres-miseráveis, os anawim (~ywIn"[]) do Antigo Testamento (Am 2.7, por exemplo). O
segundo grupo (6.20-23) se refere aos cristãos perseguidos, que foram reduzidos à
situação de miséria. O último grupo é formado pelos que vivem na pobreza por
austeridade.280
Fica evidenciado que Lucas escreveu com um propósito profundamente
teológico. O evangelista consegue enxergar Deus operando para trazer a salvação e
tem prazer em ressaltar uma variedade dos aspectos desta grande e universal obra
salvífica.281

277 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 421.


278 MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 39.
279 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 37.
280 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 419.
281 MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 45.

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Estudos no Novo Testamento 1 80

Na concepção da história de Lucas, o acontecimento Cristo finca suas raízes


na história humana, com uma visão universalista. A cristologia lucana com ênfase na
soteriologia é uma das peças teológicas da sua obra. Lucas apresenta um Jesus
eminentemente humano e, por isso, divino.
Dante Alighieri, autor da Divina Comédia, descreveu Lucas como scriba
mansuetudinis Christi, isto é, “cronista da magnanimidade de Cristo”.282 De fato, as
qualidades de misericórdia, amor, atenção, alegria e delicadeza que confirugam a
imagem de Jesus no Terceiro Evangelho tendem a suavizar uma apresentação mais
rude dos outros Evangelhos.

282http://www.internetculturale.it/opencms/directories/ViaggiNelTesto/dante/print/c10.html Acesso em
06/02/2017.

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Estudos no Novo Testamento 1 81

VII. O EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

Conhecemos diversas comunidades cristãs iniciadas por Paulo e outras que ele
visitou e solidificou na fé cristã, em sua segunda viagem missionária: Neápolis,
Filipos, Anfípolis, Tessalônica, Bereia, Corinto e, no retorno dessa viagem passou por
Éfeso. Paulo transformou essa última cidade em seu centro missionário,
aproximadamente por três anos. Não muito tempo depois, por volta dos anos 80,
algumas comunidades da Ásia Menor, por onde Paulo passou, continuaram a
caminhada cristã sob a orientação da escola joanina.
A realidade que essas comunidades viviam já não era a mesma do tempo de
Paulo. Ele abriu caminho para a fé cristã, enfrentou muitas dificuldades, sobretudo
com os judaizantes. João também enfrentou muitas dificuldades, porém de um novo
teor. As comunidades já haviam sido evangelizadas, já tinham recebido a fé cristã, mas
estavam sendo influenciadas por interpretações errôneas sobre Jesus e sua doutrina. Na
região da Ásia Menor cresciam com maior força os movimentos religiosos como a
religião dos mistérios e a gnose. Foi neste contexto que surgiu o Evangelho Segundo
João.
Denominado de “espiritual” desde a Antiguidade (Clemente de Alexandria,
segundo Eusébio de Cesareia) e reconhecido pela riqueza de sua teologia, o Quarto
Evangelho vale-se de sua forte reputação. Para alguns estudiosos, o Evangelho
Segundo João constitui a maior prova do ministério de Jesus, espécie de “supra-
evangelho”.
Assim como temos feito até aqui, estudaremos, em primeiro lugar, as questões
relativas à sua dimensão histórica. Depois nos centralizaremos em sua dimensão
literária, para concluir com alguns tópicos dedicados às questões teológicas.

VII.1. Questões Históricas

João tem características estilísticas significativas para as quais devemos


chamar a atenção do leitor desde o início. Nesta seção abordaremos os dados
corriqueiros: autoria, data, lugar de composição e propósito que motivou a obra.

VII.1.1. Autoria

O Quarto Evangelho é comumente denominado “Evangelho de João” ou


“Evangelho Segundo João”. Na verdade, o texto em si não traz o nome do autor. Como
vimos isto também ocorre com os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, e com o
livro dos Atos dos Apóstolos. No caso do Evangelho Segundo Lucas e dos Atos, o
máximo que se sabe é o nome do destinatário, certo Teófilo (Lc 1.1; At 1.1), mas nada
se diz a respeito do nome do autor. Somente no final do século II, na obra de Irineu, é

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Estudos no Novo Testamento 1 82

que encontramos pela primeira vez as designações dos autores a que estamos
habituados: Mateus e João, que fazem parte do grupo dos Doze; Marcos e Lucas, que
não integram o colégio apostólico, mas têm autoridade em virtude da relação com
Pedro e Paulo, respectivamente. Dessa forma, o título “Segundo João” foi
acrescentado quando os quatro Evangelhos foram reunidos e começaram a circular
como uma coleção, para distingui-lo dos outros.283
O autor presumido do Quarto Evangelho é identificado com um dos
personagens mais familiares dos Evangelhos sinóticos: João, filho de Zebedeu,
membro do colégio dos Doze, mencionado com frequência ao lado de seu irmão,
Tiago, e em companhia de Pedro. Apesar de o Evangelho não mencionar o nome do
autor, ele confessa sua dívida para com um personagem misterioso, o Discípulo que
Jesus amava.284
O Discípulo que Jesus amava aparece três vezes na última parte da narrativa
do Evangelho. Ao final da última Ceia, surge como intermediador entre Pedro e Jesus
(13.23-26). Sua intimidade com Jesus é ressaltada duas vezes: ele não só está sentado
ao lado de Jesus (v.23), como ainda se reclina sobre seu peito, em uma atitude que
lembra a do herdeiro no momento em que recebe as últimas palavras do mestre ou do
pai. Cabe a ele, portanto a honra de fazer a Jesus a pergunta constrangedora, mas
decisiva, a respeito da identidade do traidor.285
A identificação do Discípulo amado com João, o filho de Zebedeu, tem sido
fundamentada em bases positivas e negativas. Do lado negativo, está a ausência do
nome de João neste Evangelho (e de seu irmão Tiago), exceção feita para a afirmação,
no início do Epílogo, de que os “filhos de Zebedeu” estavam entre os sete discípulos
que se encontraram com o Senhor ressurreto (21.2). Do lado positivo , está a presença
do Discípulo amado na última Ceia.
Se for correto concluir de Marcos 14.17 (e paralelos sinóticos) que somente os
doze estiveram com Jesus ali, então o Discípulo amado era um dos doze – certamente
não Pedro, de quem ele é distinguido em 13.24, e provavelmente nenhum dos outros
discípulos mencionados pelo nome em 13.17. Na mesa da Ceia (13.24), no túmulo
vazio (20.2-10) e à beira do lago (21.7,20) o Discípulo amado é associado de maneira
especial com Pedro; João consta repetidas vezes como companheiro de Pedro nos
primeiros tempos da igreja (At 3.1-4,23; 8.15-25; Gl 2.9).286
Como testemunho externo temos, como já foi mencionado, desde Irineu a
afirmação de que o autor do Quatro Evangelho é João, o filho de Zebedeu. 287 Em sua
obra Contra as heresias (III, 1.1) ele escreve: “Depois disso João, o discípulo do
Senhor, que também jazia em seu peito, publicou por sua vez o evangelho, enquanto

283 BRUCE, F. F. João: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1987, p. 11.
284 BLACHARD, Yves-Marie. São João. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 12.
285 Idem, p. 14.
286 BRUCE, F. F. Op Cit., p. 13, 14.
287 BROWN, Raymond E. El Evangelio Según Juan. Madrid: Ediciones Cristandad S.A., 1999, p. 111.

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Estudos no Novo Testamento 1 83

residia em Éfeso na Ásia Menor”. Em outra passagem, Ireneu afirma que João
escreveu o evangelho contra o falso mestre daquele tempo, Cerinto, e contra a heresia
dos nicolaítas (III, 11.1).288
No Cânon de Muratori, a passagem dedicada ao Quarto Evangelho está assim
redigida: “O quatro evangelho é de João, um dos discípulos. Como o exortassem seus
bispos e condiscípulos, disse-lhes: ‘Jejuai comigo a partir de hoje durante três dias e
narraremos uns aos outros o que nos for revelado’. Na mesma noite, revelou-se a
André, um dos apóstolos, que João deveria escrever tudo em seu próprio nome com o
aval de todos”.289
Além disso, temos os testemunhos do Prólogo antimarcionista, Papias,
Eusebio, Taciano, Teófilo de Antioquia, Tertuliano, Orígenes e ainda o Prólogo
monarquiano. Neste último podemos ler: “Esse é o evangelista João, um dos discípulos
de Deus [...] Escreveu, porém, esse evangelho na província da Ásia, depois que havia
escrito o Apocalipse na ilha de Patmos [...] E é aquele João que, sabendo que havia
chegado o dia de falecer, reuniu seus discípulos em Éfeso e através de muitas
demonstrações de milagres, revelando a Cristo, desceu ao lugar escavado para seu
sepultamento e, depois de fazer um discurso, foi reunido a seus ancestrais [...] Embora
tenha escrito seu evangelho depois de todos os outros, apesar disso é colocado depois
de Mateus na sequencia do cânon ordenado”.290
O período de vida do apóstolo João tem seu início perto do século I e vai até o
século II. Ele era galileu e, de acordo com a tradição, da cidade de Betsaida, que ficava
na margem ocidental do mar da Galileia, não muito longe de Cafarnaum e Corazim.
Seu pai era Zebedeu; sua mãe, Salomé (Mc 16.1; Mt 20.20), estava entre as mulheres
que apoiaram o Senhor com seus recursos (Lc 8.3) e compareceram à crucificação dele
(Mc 15.40). Dessa forma, sua família não era desprovida de recursos materiais.
Zebedeu era um pescador e tinha empregados contratados para ajuda-lo com seu
trabalho (Mc 1.20). Salomé ministrava para Jesus, e parece que João tinha sua própria
casa (Jo 19.27). Tão logo conheceu Jesus, ele tornou-se seu entusiástico discípulo. A
tradição comumente recebida, conforme pode ser observado acima, retrata-o
encerrando sua carreira apostólica na Ásia e em Éfeso. 291

VII.1.2. Data

No que diz respeito à data da redação do Quarto Evangelho as estimativas têm


variado entre a metade do século I até a metade do século II. Fica difícil aceitar uma
datação tão antiga, assim como não é possível aceitar uma datação tão recente, como

288 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 234.


289 BLACHARD, Yves-Marie. Op Cit., p. 23, 24.
290 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 239, 240.
291 VINCENT, Marvin R. Estudo no vocabulário grego do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2013, p.

1, 2.

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Estudos no Novo Testamento 1 84

na metade do século II. Os estudiosos que defendem a data mais antiga, o fazem com
base nas descobertas arqueológicas na antiga colônia grega de Pella.292 Os estudiosos
que defendem uma data mais recente deveriam levar em conta o î52 . Talvez o
argumento mais decisivo contra uma datação tardia tenha sido a descoberta de diversos
papiros datados do início do século II.293 Roberts publicou um dos papiros John
Ryland, um fragmento de João 18.31-33, 37-38, que foi paleograficamente datado por
volta de 125 d.C. O período de circulação da cópia teria que ter começado décadas
antes desta data.294
Existem inúmeras comprovações na Igreja antiga de que a permanência de
João na ilha de Patmos deve ter ocorrido sob o imperador Domiciano (81 -96) e que
João viveu até o período do imperador Trajano (98-117). Além disso, nos foram
legadas muitas provas que situam o Evangelho Segundo João claramente mais tarde
que os Evangelhos Sinóticos. Em João 21.19 já se pressupõe a morte de Pedro. João
21.23 parece ter sido escrito muito mais tarde, do contrário teria sido necessária uma
explicação.295
Ademais, o Evangelho Segundo João pressupõe que o leitor esteja
familiarizado com os Evangelhos Sinóticos. Pessoas conhecidas desses Evangelhos
não são mais apresentadas de forma especial, enquanto, por exemplo, para Nicodemos
se tornou necessária uma descrição precisa. Esses pensamentos possuem um peso
muito grande para favorecer uma datação para o último decênio do século I, isto é, em
torno do ano de 95 d.C.296

VII.1.3. Lugar de Composição

Diversas introduções histórico-críticas situam a redação do Quarto Evangelho


na Síria. Já Efrem, no comentário ao Diatessaron de Taciano, cita Antioquia como
lugar de redação. A defesa atual dessa afirmação ocorre por causa da postulada
proximidade de João com o incipiente gnosticismo, cuja localização se presume ,
sobretudo, na Síria. Contudo, essa proximidade teológica de João com o incipiente
gnosticismo tem sido rejeitada, de modo que a localização geográfica também cai por
terra.297
Já Ireneu e outros testemunhos, conforme pode ser visto acima, citam como
lugar de redação do Evangelho Segundo João a cidade de Éfeso, na Ásia Menor. Nada
contradiz essa informação. Portanto, levando em conta as evidências mais antigas, este

292 EARLE, Ralph; MAYFIELD, Joseph H. Comentário Bíblico Beacon. Volume 7. Rio de Janeiro: CPAD,
2015, p. 22.
293 BROWN, Raymond E. El Evangelio Según Juan. Madrid: Ediciones Cristandad S.A., 1999, p. 104.
294 PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento no Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008,

p. 153.
295 Veja ainda BROWN, Raymond E. El Evangelio Según Juan. Madrid: Ediciones Cristandad S.A., 1999, pp.

100-109.
296 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 268.

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Estudos no Novo Testamento 1 85

Evangelho foi redigido na cidade de Éfeso, a pedido dos amigos mais íntimos de João,
os quais queriam ter o ensino oral dele registrado para o uso permanente da Igreja. 298

VII.1.4. Propósito

O Evangelho Segundo João é o único que anuncia claramente seu propósito.


Para definir os propósitos de João o texto de 20.30s pode ser a passagem-chave. Ali
lemos que “Jesus realizou na presença dos seus discípulos muitos outros sinais
miraculosos, que não estão registrados neste livro. Mas estes foram registrados para
que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em
seu nome”. Devemos estar atentos aos aspectos evangelísticos, bem como apologéticos
ou polêmicos.299
Como caráter apologético ele serve para defesa contra as objeções judaicas ao
evangelho. Os judeus aparecem no Quarto Evangelho como adversários de Jesus que o
perseguem com ódio fanático e o encaram.300 Ademais ele ressalta os seguintes
tópicos: 1) a natureza e a missão messiânica de Jesus; 2) a singularidade de Jesus
como “o Filho de Deus”, isto é, a pessoa verdadeiramente divina cujos milagres
atestam a realidade das ousadas afirmações que João fez a Seu respeito no capítulo 1;
3) o escopo universal de Sua obra redentora (3.16-17; 6.40). Dessa forma, João
consegue ser ao mesmo tempo evangelístico, polêmico e pastoral.301 Ele quer despertar
a fé e fortalecê-la.302

VII.2. Questões Literárias

Analisaremos aqui os diversos aspectos relativos ao texto, desde os


manuscritos que chegaram até nós, tais como se nos apresentam, veremos um pouco a
respeito da linguagem e do estilo do texto para, em seguida, propormos uma estrutura
literária tendo como ponto de partida a narrativa mesma.

VII.2.1. Crítica Textual

Os diversos manuscritos gregos que sobreviveram ao longo dos séclos variam


levemente quanto ao sobrescrito do Quarto Evangelho.
Nos manuscritos que dispomos as denominações mais antigas de que temos
conhecimento possuem as seguintes variantes.303

297 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 264.


298 VINCENT, Marvin R. Op Cit., p. 4.
299 PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Op Cit., p. 155.
300 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 263.
301 PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Op Cit., p. 156.
302 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 264.
303 Idem, p. 234.

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Estudos no Novo Testamento 1 86

KATA IWANNHN ¥B
euaggelion kata Iwannhn î66 î75A C D L Ws Q Y
f1 33 Û vgww
agion euaggelion kata Iwannhn (28) al
arch tou kata Loukan agiou euaggelion 1241 pc
Da mesma forma como ocorre nos Evangelhos de Marcos e Lucas, no Códice
¥ também encontramos na subscriptio a forma longa EUAGGELION KATA
IWANNHN. A mais antiga atestação segura do Novo Testamento, como vimos acima,
refere-se de um recorte de cinco versículos do Evangelho Segundo João (18.31 -33, 37-
38), trata-se do papiro î52 (fragmento John Ryland). Justamente o Evangelho mais
atacado pelo método histórico-crítico possui a atestação extraordinariamente antiga e
sólida. Tudo o que consta nos manuscritos refletem tradição antiga e forte da autoria
apostólica da obra.304
Cabe ressaltar aqui a perícope da adúltera (7.53-8.11). O trecho não consta em
importantes manuscritos antigos, sem que apresentem um indício dele ou uma lacuna:
î66 î75¥ B T W X Y e muitos outros. Parece estar ausente em C. 305 As versões
Almeida Revista e Atualizada e a Bíblia na Linguagem de Hoje colocam estes
versículos entre colchetes com a observação de que “não fazem parte do texto grego
original”. A Bíblia de Jerusalém acrescenta a isto, em nota de rodapé a seguinte
informação: “sua canonicidade, seu caráter inspirado e seu valor histórico, no entanto,
não sofrem contestação”.306

VII.2.2. Linguagem e Estilo

Nas primeiras décadas do século XX alguns comentaristas levantaram a


hipótese de que o Evangelho Segundo João havia sido escrito em aramaico. As
investigações sobre esta questão continuam, mas as provas para inclinar à convicção
por um original aramaico não tem sido suficientemente fortes. Prevalece assim a
convicção de que o Evangelho foi escrito diretamente em grego.307
Acostumamo-nos a nos aproximar do Evangelho Segundo João com a
convicção de que se trata de uma obra de um cunho teológico pouco comum. Pode ser
que isto justifique o pensamento de que se trata de uma obra com uma linguagem sutil
e de uma profundidade pouco corrente. Todavia, a linguagem de João é sumamente
simples e inclusive, sob o ponto de vista literário, pobre. O grego do Evangelho
Segundo João é extremamente simples. Pertence à koiné, ou seja, a linguagem única e
comum que nos tempos do Novo Testamento era a herdeira da grande diversidade de

304 PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Op Cit., p. 149.


305 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 256.
306 BRUCE, F. F. Op Cit., p. 351.
307 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 43.

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Estudos no Novo Testamento 1 87

dialetos gregos anteriores. Era uma espécie de língua franca utilizada no território
mediterrâneo como veículo de comunicação.308
Podemos dizer ainda que o grego de João – em contraste com o de Lucas –
representa mais bem a koiné falada e popular do que a literária. Estamos mais
próximos da linguagem de uma criança do que da de um adulto instruído. Ainda que o
grego do Evangelho Segundo João seja correto, ele é bastante pobre do ponto de vista
literário: encontramos somente umas 1.000 (ou 1.011) 309 palavras diferentes ao longo
de todo o texto e a frase mais longa do evangelho está em 13.1. Percebe-se assim que o
vocabulário é escasso. As mesmas expressões ocorrem continuamente. 310
Este evangelho tem um estilo direto e uma sintaxe bastante elementar. Abunda
o chamado presente histórico, mais do que no Evangelho Segundo Marcos, e as frases
se ligam muitas vezes através da conjunção kai, (kaí – e). Em outras ocasiões as frases
simplesmente se justapõem sem partícula alguma que as enlace. 311
Além de o vocabulário ser muito limitado, ele é muito unitário. Não
encontramos diferenças de estilos de acordo com os personagens. Há mais, não existe
uma distinção clara entre a linguagem do narrador ou do evangelista e a linguagem de
Jesus. No Evangelho, inclusive Jesus fala exatamente igual ao autor e também de
forma muito parecida ao mundo conceitual das cartas joaninas: utiliza os mesmos
vocábulos, os mesmos movimentos, tem o mesmo estilo. Por causa disso, em alguns
fragmentos torna-se difícil saber se é Jesus quem fala ou se é o evangelista ou mesmo
outros personagens. Para comprovar isto basta uma leitura atenta de João 3. 312
Ao que já foi dito podemos acrescentar que em umas poucas seções os
estudiosos descobrem um estilo poético formal, caracterizado inclusive por estrofes,
por exemplo, no prólogo e, talvez, no capítulo 17. Encontramos também uma
combinação particular de duplo sentido e mal-entendido quando os adversários de
Jesus formulam juízos sobre ele, declarações sarcásticas, incrédulas ou, ao menos,
inadequadas ao sentido que pretendiam. Ironicamente, contudo, esses juízos muitas
vezes são verdadeiros e tem mais sentido com um significado que os interlocutores
não chegam a captar.313
O Evangelho oferece muitos vocábulos hebraicos e aramaicos, alguns dos
quais o autor traduz para seus leitores, que não conheciam essas línguas: Rabbi (1.38);
Amém, amém (1.51) (25 vezes); Messias (1.41; 4,25); Kéfas (1.42); Bethesda (5.2);

308 TUÑI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joánicos y cartas católicas. Espanha: Editorial Verbo
Divino, 1995, p. 19, 20.
309 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 44.
310 VINCENT, Marvin R. Op Cit., p. 16.
311 TUÑI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Op Cit., p. 20.
312 Idem, p. 21.
313 BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo Testamento I: cues tiones preliminares, evangelios y obras

conexas. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 443, 447.

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Manná (6.31, 49); Siloam (9.7); Thomas (11.6; 21.2); Hosanna (12.13); Gabbathá
(19.13); Golgotha (19.17); Rabbouni (20.16).314
O Evangelho Segundo João possui características peculiares facilmente
identificáveis. Uma vez lido em comparação com os sinóticos percebemos que existem
expressões que aparecem somente em João: “em verdade, em verdade... vos digo, te
digo”; “respondeu e disse”; “acreditar em”; “dar testemunho”; “dar a vida”, etc.315
Como conclusão, podemos perceber que se detecta uma pessoa que, pensando
com mentalidade semita, escrevia ou ditava em grego.316

VII.2.3. Estrutura Literária

Existem diferentes propostas de organizar o Evangelho. Há os que dividem a


partir das grandes festas que culminam na Páscoa de Jesus. Outros o apresentam em
duas grandes partes: após o prólogo (1.1-18), a primeira conhecida como o Livro dos
Sinais (1.19-12.50). Nela aparecem sete narrativas de sinais, que são os milagres que
Jesus realizou, confirmam a missão de Jesus como o Enviado de Deus. A segunda
parte é conhecida como o Livro da Exaltação ou glorificação de Jesus (13.1 -20.31).
Nela revela-se o amor e a bondade de Deus, na face do Pai. Por fim, o Epílogo (21.1-
25) que apresenta ainda uma aparição de Jesus. Vamos adotar essa perspectiva.
O Evangelho Segundo João prenuncia o plano no prólogo. Aquele que era o
Verbo estava com Deus desde o princípio, por meio de quem todas as coisas vieram à
existência, era vida e luz – a luz dos homens. O texto apresenta uma estrutura clara.
I. Prólogo 1.1-18.
II. O Livro dos Sinais 1.19-12.50.
1. A água convertida em vinho em Caná 2.1-11.
2. A cura a distância do filho de um funcionário real 4.46-54.
3. A cura do paralítico de Betesta em Jerusalém 5.1-15.
4. A multiplicação dos pães na Galileia 6.1-15.
5. O caminhar sobre as águas do lago de Tiberíades 6.16-21.
6. A cura do cego de nascimento em Jerusalém 9.1-41.
7. A ressurreição de Lázaro em Betânia 11.1-44; 12.18.
As alusões gerais aos sinais e as narrativas em particular aparecem ao longo de
doze temas maiores.
1. Semana inaugural: a epifania de Jesus 1.19-2.11,12.
2. O sinal do tempo 2.13-22.
3. Jesus e Nicodemos 2.23–3.21.
4. O último testemunho do Batista 3.22-36.
5. A revelação aos samaritanos 4.1-42.
314 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 44.
315 TUÑI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Op Cit., p. 23, 24.
316 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 44.

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Estudos no Novo Testamento 1 89

6. A cura do filho de um funcionário real 4.43-54.


7. O sinal de Betesda 5.1-47.
8. O pão da vida 6.1-71.
9. A festa dos Tabernáculos 7.1–10.21.
10. A festa da Dedicação 10.22-42.
11. A ressurreição de Lázaro 11.1-54.
12. Os últimos dias 11.55–12.50.
III. O Livro da Exaltação 13.1-20.31.
1. A última Ceia, os discursos de despedida e a oração de Jesus ao Pai
13.1–17.26.
2. A narrativa da paixão de Jesus 18.1–19.42.
3. A semana da ressurreição 20.1-31.
IV. Epílogo 21.1-25

Até mesmo pela estrutura ficam flagrantes as diferenças entre o Evangelho


Segundo João e os Sinóticos. Isso também pode ser confirmado por meio do elevado
percentual de material exclusivo. O Evangelho Segundo João possui 879 versículos
(incluindo a perícope da adúltera). Disso cerca de 80% são material exclusivo. 317
O único milagre que aparece em todos os quatro Evangelhos é o da
multiplicação dos pães para a alimentação dos cinco mil (Mt 14; Mc 6; Lc 9; Jo 6).

VII.3. Questões Teológicas

Alguns breves apontamentos sobre “a teologia do Quarto Evangelho”, em uma


introdução, não pretende aspirar a ser uma síntese completa da doutrina do evangelista.
Por esta razão, nos limitaremos a assinalar somente as pistas mais relevantes do
pensamento teológico deste Evangelho.

VII.3.1. Deus

Quem é Deus no Evangelho Segundo João?


O Evangelho Segundo João – podemos afirmar – é por antonomásia “O
Evangelho da revelação de Deus como Pai”, e Pai do Verbo encarnado: Jesus.318
Desde o hino ao Verbo feito carne nós já encontramos a identificação de Deus
com a pessoa do Pai e Pai do Verbo, Jesus Cristo: “E o Verbo se fez carne e habitou
entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e de
verdade” (1.14) e “[...] a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (1.17).319

317 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 233.


318 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 30.
319 Ibidem.

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Estudos no Novo Testamento 1 90

O prólogo do Quarto Evangelho tem mesmo o objetivo de proporcionar ao


leitor uma lente adequada para interpretar a narrativa que se segue. Neste prólogo são
abordadas duas questões de fundamental importância: 1) o relacionamento entre Deus
e o Verbo (Jesus); e 2) a possibilidade de um relacionamento próximo entre Deus e os
seres humanos. O prólogo traz oito referências a theos (qeo,j)
(1.1[bis],2,6,12,13,18[bis]). Destas, seis se referem a Deus-Pai (1.1,2,6,12,13,18) e
duas ao Verbo, ou Jesus Cristo (1.1,18). O vocábulo theos (qeo,j) é conhecido dos
leitores de João, que o usa em referência ao Deus revelado no Antigo Testamento. O
termo ocorre em Gênesis 1.1 em referência ao Criador.320
A partir do primeiro capítulo, João vai desvelando pouco a pouco ao Deus das
Escrituras como “Pai” e “o Pai de Jesus”, até culminar sua revelação nos discursos de
despedida, aonde o título “Pai” é mencionado até 51 vezes (13.31-17.25).321
Intimamente vinculado com o Pai aparece no Evangelho “o Parákleto
(para,klhtoj), o Espírito da verdade, o Espírito Santo” que procede do Pai, e que o Pai
dará e enviará aos discípulos de Jesus (14.17,26; 15.26). A partir desta perspectiva, o
Evangelho Segundo João se revela essencialmente trinitario.322323

VII.3.2. Jesus

Uma vez tendo obtido uma compreensão inicial da pessoa do Pai no


Evangelho, precisamos tentar responder a uma segunda pergunta: Quem é Jesus?
O Quarto Evangelho se apresenta essencialmente como um Evangelho
“cristológico”. Todo ele constitui uma revelação de quem é Jesus. Sua pessoa está no
centro de sua teologia. O próprio evangelista declara o propósito de seus escritos
dizendo que “foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e
para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (20.31). João destaca a nota cristológica,
em sua introdução, ao chamar Jesus de “Logos” (lo,goj).324
Desde o hino inicial Jesus aparece como alguém em relação com Deus. Jesus é
a verdadeira e última manifestação de Deus.325 Com efeito, Jesus é o Verbo
eternamente existente em Deus, e ele mesmo é Deus (1.1); esse Verbo se fez carne
para habitar (evskh,nwsen – eskénosen, estendeu a sua tenda) em meio aos homens
(1.14); é o Unigênito-Deus (monogenh,j – monogenés) que está no seio do Pai (1.18).326

320 KÖSTENBERGER, Andreas J. Pai, Filho e Espírito: a trindade e o evangelho de João. São Paulo: Vida
Nova, 2014, p. 61.
321 ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 30.
322 Ibidem.
323 Para uma exposição completa a respeito da Trindade e o Evangelho de João veja KÖSTENBERGER,

Andreas J. Pai, Filho e Espírito: a trindade e o evangelho de João. São Paulo: Vida Nova, 2014.
324 LADD, George Eldon. Op Cit., p. 356.
325 DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977, p. 27.
326 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 31.

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Estudos no Novo Testamento 1 91

No corpo do texto do Evangelho, Jesus aparece antes de tudo como o Filho de


Deus (ui`o.j tou/ qeou/ - huiós tou Theoû). Na realidade, uma das diferenças mais
marcantes entre os Sinóticos e João é o papel distinto desempenhado pela filiação de
Jesus a Deus. A primeira referência a Jesus como Filho de Deus é feita por Natanael; a
referência do Evangelista a Jesus como Filho de Deus em 3.18 encontra seu
complemento na declaração do propósito final de seu Evangelho em 20.31.327 Deus é
nomeado “Pai” em relação a Jesus 106 vezes.328 Sendo o Filho um com o Pai-Deus,
não é raro que em diversas ocasiões Jesus se proclame em forma absoluta “Eu Sou”,
(evgw, eivmi – egô eimi) atribuindo-se assim o equivalente do nome divino e situando-se
no mesmo nível de Deus “Que É” (8.24,28,58; 13.19; Is 43.10,25; 45.18).329
Jesus também é o Filho do Homem (13 vezes). Da mesma forma que nos
Sinóticos, a expressão “Filho do Homem” é usada somente pelo próprio Jesus. Essa
expressão, contudo, nunca é aplicada a Ele, quer por seus discípulos quer pelo povo. 330
Ele é o Messias-Rei331 , o Ungido-Cristo anunciado na Lei e nos Profetas (1.41,45;
4.26; 20.31); é o Mestre e o Senhor (13.13; 20.28).332
Finalmente, ao longo do Evangelho Jesus se apresenta com sete títulos que
manifestam suas funções salvíficas em relação aos homens: “Eu sou o pão da vida”
(6.35,51); “Eu sou a luz do mundo” (8.12); “Eu sou a porta” (10.7,9); “Eu sou o bom
pastor” (10.11,14); “Eu sou a ressurreição e a vida” (11.25); “Eu sou o caminho, a
verdade e a vida” (14.6); “Eu sou a videira verdadeira” (15.1,5).333
Para completarmos esta visão do ministério de Jesus é necessário aludir a suas
relações com o Espírito de Deus. O Espírito Santo é mencionado treze vezes em
estreita relação com Jesus: o que o recebe, o que o promete, o que o entrega (1.32,33;
3.5,6,8,34; 7.39; 14.17,26; 15.26; 16.13; 19.30; 20.22).334

VII.3.3. Espírito Santo

Outra das diferenças mais marcantes entre os Evangelhos Sinóticos e o Quarto


Evangelho é o destaque que João dá ao Espírito Santo, especialmente no sermão no
cenáculo com seu ensino singular a respeito do Parákletos (para,klhtoj).335 Em João o
Espírito Santo é o princípio de purificação.
Como se purifica o pecado do mundo? Este ministério de purificação é
manifestado quando o evangelista escreve: “[...] o que me mandou a batizar com água,
esse me disse: Sobre aquele que vires descer o Espírito e sobre ele repousar, esse é o

327 KÖSTENBERGER, Andreas J. Op Cit., p. 103.


328 LADD, George Eldon. Op Cit., p. 365, 366.
329 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 31.
330 LADD, George Eldon. Op Cit., p. 363.
331 Idem, p. 361.
332 ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 31.
333 Ibidem.
334 Ibidem.

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Estudos no Novo Testamento 1 92

que batiza com o Espírito Santo” (1.33). Batizar é lavar, limpar, purificar. Como Jesus
purificará com o Espírito?336
A resposta pode ser obtida em determinados textos-chaves do Antigo
Testamento, particularmente de Ezequiel, quem nos dá a formulação mais precisa (Ez
36.26-27; cf. Is 32.15-19; 44.3-5).337
É assim que, a missão do Jesus-Messias, o Servo de Deus, será purificar, lavar,
batizar aos homens nesse Espírito, com esse Espírito, mediante esse Espírito, com a
dádiva desse Espírito divino.338 A dádiva desse Espírito e a subsequente bênção aos
homens encontram-se refletida em outra declaração: “Quem crê em mim, como diz a
Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre” (7.38). A explicação está no
próximo versículo (7.39). O Espírito viria para assumir o lugar de Jesus e para
capacitar os discípulos, a fim de que estes fizessem o que não poderiam fazer por si
mesmos, ou seja, levar os homens à fé e à vida eterna. 339
É assim que, na segunda metade do Evangelho as referências ao Espírito
aumentam drasticamente, tanto em número quanto em importância, em consonância
com o papel fundamental do Espírito na missão dos discípulos depois da partida de
Jesus e de seu retorno a Deus-Pai.340

VII.3.4. Espírito Santo: fonte da vida eterna e princípio de adoração ao Pai

A água que Jesus promete à samaritana é símbolo do Espírito Santo. Essa água
viva, misteriosa por sua origem, uma vez que não vem de um poço, mas que Jesus a
dá, é também misteriosa por sua natureza, pois é “o dom de Deus” que saciará a sede
para sempre; mais ainda, se converterá, naqueles que a beberem, em uma fonte a jorrar
para a vida eterna (4.10-14). Esse dom de Deus está no crente como principio
dinâmico de um culto novo e autêntico, próprio da era messiânica instaurada por Jesus.
É o que anunciam as palavras de Jesus em 4.23.341

VII.3.5. O universalismo da salvação

A humanidade inteira é o objeto do amor do Pai e da obra salvífica de Jesus.


Distribuídas ao longo do Quarto Evangelho encontramos expressões que sublinham o
universalismo. João Batista disse ao apresentar a Jesus: “[...] Eis o Cordeiro de Deus,

335 LADD, George Eldon. Op Cit., p. 416.


336 ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 32.
337 Ibidem.
338 Ibidem.
339 LADD, George Eldon. Op Cit., p. 419.
340 KÖSTENBERGER, Andreas J. Op Cit., p. 121.
341 ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 34.

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Estudos no Novo Testamento 1 93

que tira o pecado do mundo” (1.29), ou seja, o pecado enquanto tal, em sua totalidade
e em sua universalidade.342
Os samaritanos confessam: “[...] este é verdadeiramente o Cristo, o Salvador
do mundo” (4.42). Jesus mesmo disse: “[...] tenho outras ovelhas que não são deste
aprisco; também me convém agregar estas, e elas ouvirão a minha voz, e haverá um
rebanho e um Pastor” (10.16).343
Todavia, esse universalismo salvífico estava dependendo da doação de sua
própria vida. O Evangelista já descortina na palavra do Sumo Sacerdote: “[...] nos
convém que um homem morra pelo povo e que não pereça toda a nação” (11.50), uma
profecia segundo a qual “[...] Jesus devia morrer pela nação. E não somente pela
nação, mas também para reunir em um corpo os filhos de Deus que andavam
dispersos” (11.51-52).344
O próprio Jesus faz esse anúncio quando diz: “[...] o pão que eu der é a minha
crne, que eu darei pela vida do mundo” (6.51). No domingo da festa (12.20) Jesus
proclama solenemente a fecundidade de seu sacrifício na cruz: “Na verdade, na
verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas,
se morrer, dá muito fruto... Agora, é o juízo deste mundo; agora, será expulso o
príncipe deste mundo. E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim”
(12.24, 31-32).345
Todas essas passagens a respeito do futuro rebanho único e universal, unidas
aos textos sobre os discípulos enviados (4.35-38; 17.20-21) com o poder de perdoar os
pecados (20.21-23), fundamentam a eclesiologia do Quarto Evangelho. 346

VII.3.6. A eficácia da oração

A união entre os discípulos e Seu Senhor Jesus-Cristo por intermédio do


Espírito Santo é a fonte do êxito na oração: “Se vós estiverdes em mim, e as minhas
palavras estiverem em vós, pedireis tudo o que quiserdes, e vos será feito” (15.7). Essa
oração na nova economia é diferente. Na Antiga Aliança era dirigina a Deus-Yahweh;
agora, a nova oração é ao Pai em O Nome de Jesus, e sua eficácia está assegurada em
virtude da obra que Ele realizou: “[...] Na verdade, na verdade vos digo que tudo
quanto pedirdes a meu Pai, em meu nome, ele vo-lo há de dar. Até agora, nada
pedistes em meu nome; pedi e recebereis, para que a vossa alegria se cumpra” (16.23b-
24).347

342 Idem, p. 37.


343 Ibidem.
344 Ibidem.
345 Idem, p. 38.
346 ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 43.
347 Idem, p. 38.

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Estudos no Novo Testamento 1 94

Entretanto, o próprio Jesus escutará a oração que se dirige ao Pai em nome do


Filho. E isto redundará em glória do Pai: “E tudo quanto pedirdes em meu nome, eu o
farei, para que o Pai seja glorificado no filho” (14.13; cf. 15.11). 348

VII.3.7. Perseverança final e ressurreição futura

Por fim, essa mesma união é a garantia da perseverança final e da ressurreição


futura. Outra série de textos sublinha uma escatologia ainda por realizar-se (5.28-29;
6.40,44,54; 12.48; 14.2-3; 17.24).349
A união com Cristo é garantia de perseverança, porque estar em Jesus é estar
no Pai, e “[...] ninguém pode arrebata-las das mãos de meu Pai” (10.29), e é segurança
de ressurreição futura, porque “E a vontade do Pai, que me enviou, é esta: que nenhum
de todos aqueles que me deu se perca, mas que o ressuscite no último Dia. Porquanto a
vontade daquele que me enviou é esta: que todo aquele que vê o Filho e crê nele tenha
a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último Dia”, (6.39-40).350

VII.3.8. O dualismo Joanino

Um dos problemas mais difíceis na teologia Joanina é seu dualismo


aparentemente diferente daquele apresentado nos Evangelhos Sinóticos. O dualiso nos
Sinóticos é primariamente horizontal: um contraste entre duas eras – a era presente e o
século futuro. O dualismo Joanino é primariamente vertical: um contraste entre dois
mundos – o superior e o mundo inferior (Jo 8.23; 11.9; 13.1; 16.11; 18.16).351
O mundo inferior é o reino das trevas, mas o mundo de cima é o mundo da
luz. Nosso Senhor Jesus Cristo entrou no reino das trevas com o objetivo de trazer a
luz. A luz e as trevas são consideradas como dois princípios em conflito (1.5). Jesus é
a própria luz (8.12).352 Antes da vinda da luz, todos eram cegos. Os “videntes” são
apenas aqueles que imaginavam enxergar; os “cegos” são os que tinham consciência
de sua cegueira ou a tem agora, quando lhes aparece a luz. 353
O kosmos (ko,smoj) é outro conceito dualístico importante. Algumas vezes João
usa o vocábulo paralelo ao modo sinótico, similar ao da linguagem filosófica grega, e
pode designar ou a ordem criada como um todo (Jo 17.5, 24), ou a terra em particular
(Jo 11.9; 16.21; 21.25). Também pode designar aqueles que habitam no mundo: o

348 Ibidem.
349 Ibidem.
350 Ibidem.
351 LADD, George Eldon. Op Cit., p. 338.
352 Ibidem.
353 BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Editora Academia Cristã, 2008, p. 453.

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Estudos no Novo Testamento 1 95

gênero humano (12.19; 18.20; 7.4; 14.22). 354 O mundo (kosmos) jaz no maligno; mas é
da salvação que ele carece.355
Com o objetivo de resumir o conceito de Dualismo Joanino, uma vez que o
objetivo deste trabalho não é o de uma “Teologia do Novo Testamento”, podemos
salientar que a forma estilística é a expressão para a concepção dualista básica; é a
pressuposição dos discursos de revelação. A ela também correspondem os termos
antitéticos, que perpassam esses discursos: luz e trevas, verdade e mentira, em cima e
embaixo (ou celestial e terreno), liberdade e escravidão. 356

354 LADD, George Eldon. Op Cit., p. 339.


355 BULTMANN, Rudolf. Op Cit., p. 443.
356 Idem, p. 439.

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Estudos no Novo Testamento 1 96

VIII. ATOS DOS APÓSTOLOS

Certo estudioso afirmou que é muito estranho ler um livro que traz em seu
encerramento um advérbio. É o que ocorre com o Livro de Atos que , em grego,
encerra-se com akolutos (avkwlu,twj), um advérbio que pode ser traduzido por
“desimpedido”, “desimpedidamente”. Segundo este mesmo estudioso, parece ser essa
a ideia central do segundo volume da obra de Lucas, mostrar que o evangelho
alcançou a liberdade, mesmo a muito custo.357
De todos os textos do Novo Testamento, o livro Atos dos Apóstolos – ou
simplesmente Atos, ocupa uma posição ímpar. É o único livro que tenta apresentar
uma narrativa histórica dos tempos imediatamente seguintes à ascenção de Cristo aos
céus. Esse segundo volume da obra de Lucas retoma a narrativa onde o primeiro
terminou. É de extrema importância o estudo desta obra, uma vez que muita coisa do
Novo Testamento só é compreensível quando vista à luz do pano de fundo histórico
encontrado no segundo livro de Lucas.358
Conforme salientamos acima, durante o estudo de Lucas fizemos algumas
menções ao Livro de Atos. Deve ter ficado evidente que o estudo do Terceiro
Evangelho está necessariamente ligado a um estudo de Atos. Que o mesmo autor
escreveu ambos os livros, é amplamente aceito. As duas obras iniciam sendo
endereçadas à mesma pessoa, Teófilo (Lc 1.1-4; At 1.1). No prefácio de Atos, o autor
faz referência ao primeiro volume (tratado), a respeito da vida de Jesus. Além disso,
temos a semelhança de estilo e vocabulário.
Para encerrar com o mesmo padrão que iniciamos, vamos às questões
históricas.

VIII.1. Questões Históricas

A estrutura de um livro revela, sem dúvida, algo da intenção do autor.


Contudo, informações externas à obra também podem nos auxiliar na compreensão
dessa mesma intenção. É o que estamos tentanto fazer ao procurar situar o leitor
quanto à origem, autor, data, lugar de composição, destinatários e situação que
motivou a obra em destaque.

VIII.1.1. Autoria

Mesmo sabendo que estamos diante de duas obras com uma mesma autoria,
tanto Lucas quanto Atos são anônimos, no sentido estrito da palavra. Tomando por
base o prefácio de Lucas, com o qual o autor provavelmente pretendeu introduzir tanto
357 STAGG, Frank. Atos: a luta dos cristãos por uma igreja livre e sem fronteiras. Rio de Janeiro: JUERP,
1994, p. 15.
358 HALE, Broadus David. Op Cit., p. 169.

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Estudos no Novo Testamento 1 97

seu Evangelho como Atos, nós podemos concluir que o autor foi pessoa de boa
cultura. O grego de Lucas 1.1-4, como vimos, é grego literário de bom nível. Disso
resulta que não deve ter sido um dos apóstolos ou discípulos originais de Cristo – o
próprio autor escreve das coisas que “nos transmitiram os que desde o princípio foram
deles testemunhas oculares e ministros da palavra” – mas mesmo assim pode ser
alguém que participou de alguns dos eventos que narra – “fatos que entre nós se
realizaram”. Perecebemos que o autor tem conhecimento do Antigo Testamento na
versão dos LXX, além de possuir um ótimo conhecimento das condições políticas e
sociais vigentes em meados do século I e tem o apóstolo Paulo em alta estima.359
Outra inferência bastante comum sobre o autor procede dos trechos que
empregam o pronome “nós” em Atos. São quatro trechos em que o autor passa da
narrativa na terceira pessoa “eles” para uma narrativa na primeira pessoa do plural
(16.8-10 é a primeira delas). Ademais, parece que o autor acompanhou Paulo até
Roma e provavelmente esteve com o apóstolo durante os dois anos em que este esteve
sob prisão domiciliar em Roma.360
Desde o segundo século afirma-se que Lucas, o médico amado (Cl 1.14)
também foi o autor de Atos. O prólogo antimarcionista de Lucas (160 -180 d.C.)
identifica o autor do Evangelho como sendo Lucas, uma pessoa de Antioquia da Síria,
e médico de profissão. Além disso, adiciona que “o mesmo Lucas posteriormente
escreveu os Atos dos Apóstolos”. Do mesmo modo, o Cânon Muratori (170 d.C.)
afirma que “Lucas compilou para ‘o mui excelente Teófilo’ aquelas coisas que se
deram em detalhe em sua presença. Tanto Ireneu quanto Clemente de Alexandria, de
modo explítico, admitem Lucas como o autor de Atos. 361
Além dos testemunhos externos mencionados acima ainda temos Tertuliano
(Adv. Marc. 4.2) e Eusébio (H.E. 3.4; 3.24.25).362 Um pouco mais tarde também
testemunham Cosmas Indicopleustes e George Hamartolos. Jerônimo ainda acrescenta
que a data da redação deve ter ocorrido por volta do final da prisão de dois anos de
Paulo.363
Não existe motivo para negar que o autor de Atos foi um companheiro de
Paulo; de igual modo o testemunho da Igreja antiga deveria ser suficiente para
continuarmos afirmando a autoria lucana.

VIII.1.2. Data

Conforme vimos ao estudar o Terceiro Evangelho, a sua datação dependeria


do lugar de composição que assumíssemos e da data em que Atos foi escrito. Na

359 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 208, 209.
360 Idem, p. 209.
361 STAGG, Frank. Op Cit., p. 33.
362 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 210.
363 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 273.

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Estudos no Novo Testamento 1 98

ocasião afirmamos que o livro dos Atos dos Apóstolos foi escrito por volta do final do
primeiro cativeiro de Paulo 62-63. Podemos afirmar com absoluta certeza que só foi
redigido depois de 62 d.C. (a história termina em 62, com a primeira prisão de Paulo
em Roma). A narrativa de Lucas termina com Paulo preso (At 28.30-31). A maneira
abrupta de encerrar pode ser mais bem compreendida justamente pelo fato de Atos ter
sido escrito antes do aparecimento de Paulo perante Nero. Não seria natural um livro
ser terminado assim, se o autor tivesse conhecimento de que Paulo havia sido solto.
Outra argumentação é que não há nenhuma insinuação de que a Guerra Judaico-
Romana (66-70 d.C.) já se havia iniciado ou de que Jerusalém havia sido destruída (70
d.C.). Por causa de tudo isso nós sugerimos mesmo que o livro de Atos dos Apóstolos
deve ter sido redigido por volta de 62-63 d.C.

VIII.1.3. Lugar de Composição

Alguns estudiosos consideram insolúvel a questão do lugar de composição,


condicionados que são por sua rejeição da autoria do companheiro de viagens do
apóstolo Paulo. Lembremos mais uma vez que o Livro de Atos termina com uma
breve menção do primeiro cativeiro de Paulo em Roma (28.30s). Por isso, nós somos
adeptos da convicção de que Lucas escreveu este segundo volume em Roma. 364

VIII.1.4. Propósito

Precisamos admitir que, por vezes, uma obra pode abarcar uma diversidade de
propósitos. Atos talvez seja o melhor exemplo desta afirmação no Novo Testamento.
Com certeza isso depende muito das pressuposições do leitor que, muitas vezes,
podem extrapolar a intenção do atutor. Devemos tomar cuidado com isso. Os leitores
em geral enchergam em Atos o livro da história da igreja primitiva. Devemos ter em
mente novamente que se trata da segunda parte de uma obra em dois volumes, e que,
os propósitos de ambas podem estar interligados. Na realidade, os estudiosos têm
enfatizado em geral os seguintes propósitos: apologético, teológico, didático, história
dos começos do cristianismo, confirmação do Evangelho e foco na salvação. Vejamos
cada um desses propósitos ainda que de forma resumida.
Alguns autores advogam a teoria de que Lucas pretendia defender o
apostolado de Paulo, complementando, assim, com base histórica, as defesas do
próprio Paulo em tais cartas como Gálatas e 2 Cortíntios. Além disso, muitas vezes
acrescenta-se a ideia de que Lucas-Atos tenha sido escrito como um dossiê jurídico
para o primeiro julgamento de Paulo em Roma, com o objetivo de demonstrar que o

364 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 287.

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Estudos no Novo Testamento 1 99

apóstolo não se envolvera com atividades anti-romanas, uma vez que esta seria a
principal acusação a ser levantada contra ele pelos seus compatriotas judeus. 365
Veja na tabela abaixo as comparações que podem ser feitas entre o ministério
apostólico de Pedro e de Paulo.366

Atos poderosos de Pedro Atos poderosos de Paulo


3.1-11 Curou um homem paralítico 14.8-18 Curou um homem paralítico
de nascença. de nascença.
5.15- Sua sombra curava pessoas. 19.11- Lenços e aventais de Paulo
16 12 curava pessoas.
8.9-24 Lidou com Simão, um 13.6-11 Lidou com Bar-Jesus, um
ilusionista. feiticeiro.
9.32- Curou Enéias de paralisia. 28.7-9 Curou o pai de Públio e
35 outros.
9.36- Trouxe Dorcas de volta à vida. 20.9-12 Trouxe Êutico de volta à vida.
41

Quanto ao propósito teológico, não resta dúvida de que uma obra do Novo
Testamento o tenha. Mas aqui se defende a ideia de que a afirmação teológica primária
que Lucas tentava fazer através de sua obra em dois volumes era a continuidade do
Reino de Deus no livro de Atos. De fato, o segundo volume começa com uma
pergunta escatológica (1.6) e encerra com terminologia escatológica (28.31). Afirma-
se, portanto, que Lucas pretendia explicar o relacionamento entre a Igreja e o Reino de
Deus, ou seja, como a mensagem do Reino soberanamente passara de um fenômeno
principalmente judaico para um movimento principalmente gentílico, com seu centro
passando de Jerusalém para Roma.367
Lucas, ao mencionar “o primeiro tratado” que compôs, referiu-se a esse
propósito declarado em seu Evangelho, isto é, apresentar um relato preciso e
sistemático do desenvolvimento do cristianismo. No Evangelho, ele narra as palavras e
as obras de Jesus Cristo, e em Atos, ele narra a obra do Cristo Ressurreto levada a
cabo por meio dos Seus apóstolos e discípulos. A intenção do evangelista era que
Teófilo e outros leitores conhecessem plenamente as coisas em que foram instruídos.
Lucas escreve tendo em vistas o fortalecimento e a edificação.368
Lucas parece que procurava escrever a história dos começos do cristianismo
em amplo sentido. O evangelista reúne juntamente a história de Jesus Cristo e a
história da Igreja primitiva. Além disso, ele considera que essas duas obras juntas
formam a narrativa da fundação da Igreja. Ele quer explicar como tiveram início as

365 PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Op Cit., p. 188.


366 Idem, p. 188.
367 Idem, p. 189.
368 Idem, p. 190.

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Estudos no Novo Testamento 1 100

boas-novas, e como elas se espalharam ao ponto de abarcar o mundo mediterrâneo,


desde Jerusalém até Roma.369
Lucas-Atos pode ser considerada uma obra evangelística que proclama aos
seus leitores a universalidade da salvação em Cristo Jesus. Ele demonstra que o
evangelho tinha em mira os gentios também, e não apenas os judeus. Ele evidencia que
o que ocorreu na Igreja primitiva estava em plena conformidade com as profecias (Lc
24.47; At 1.4-5, 20; 2.16-21; 3.24; 13.40-41, 47; 15.15-18; 28.25-28).370
Se quisermos adotar os diversos conceitos apresentados acima, temos de
rejeitar a ideia de que o Livro de Atos tenha sido redigido para providenciar algum
tipo de apologética política em prol do cristianismo ou mesmo de Paulo. Não
queremos negar o interesse apologético, mas de colocá-lo, contudo, como um alvo
subordinado em comparação com o tema principal da apresentação do fundamento
histórico da fé cristã.371

VIII.2. Questões Literárias

Nestes próximos tópicos tentaremos compreender alguns aspectos relativos ao


texto. Veremos quais são os principais manuscritos de que dispomos atualmente
(Crítica Textual). Introduziremos o estudo ao estilo e à linguagem do autor para, ao
final sugerirmos uma estrutura literária, um esboço mesmo da obra.

VIII.2.1. Crítica Textual

Nos diversos manuscritos que chegaram até nós, as denominações mais


comuns possuem as seguintes variantes.372
PRAXEIS ¥ 1175 pc
PRAXEIS APOSTOLWN B Y pc
PRAXIS APOSTOLWN D
ai praxeij twn apostolwn 323 s.945 al
ai praxeij twn agiwn apostolwn 1505.1739 s
praxeij twn agiwn apostolwn 453. 1884 pm
arch sun qew ai praxeij twn apostolwn 1241
Louka euaggelistou praxeij twn agiwn apostolwn
3. 189. 1891.2344 al
praxeij twn agiwn apostolwn suggrafeis para tou apostolou kai
euaggelistou Louka 614

369 MARSHAL, I. H. Atos: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1991, p. 17.
370 MARSHAL, I. H. Op Cit., p. 18.
371 Idem, p. 19, 20.
372 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 272.

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Estudos no Novo Testamento 1 101

praxeij twn agiwn apostolwn suggrafeis para tou agiou Louka tou
apostolou kai euaggelistou 1704
Conforme podemos observar, exceto alguns manuscritos tardios, não consta
nenhum nome de autor no título, “não porque se estivesse incerto quanto ao autor, mas
porque o tíeulo deve ser de uma época em que o evangelho de Lucas e Atos ainda
eram transmitidos como uma só obra dupla”.373
Ainda que o título não seja preciso, uma vez que o livro se concentra nas
atividades de apenas dois dentre treze indivíduos reconhecidos como apóstolos, Pedro
e Paulo, e dedica porções consideráveis a não-apóstolos, como Estêvão e Filipe, o
título é perfeitamente aceitável, visto que os apóstolos foram os instrumentos através
dos quais Jesus Cristo deu prosseguimento na difusão da mensagem do Reino de
Deus.374
O texto alexandrino é representado principalmente pelos papiros î45 (s. III),
î74 (s. VII) e pelos manuscritos Sinaítico (¥), Vaticano (B), Alexandrino 9ª),
Ephraemi Rescriptus (C) e outros. Trata-se de um texto breve que costuma ser
considerado autêntico até mesmo pela maioria dos críticos. O texto ocidental, a seu
turno, é representado pelos papiros î38 (s. IV), î48 (s. III) e especialmente pelo
manuscrito Codex Bezae Cantabrigiensis (D), além da Vetus Latina (s. II/IV). Possui
um texto quase 1/10 mais amplo que o anterior, com aproximadamente 400 adições
nas quais atenua as dificuldades, corrige as inexatidões, oferece detalhes pitorescos,
inclusive textos litúrgicos. A linguagem, por vezes, é vulgar e possui diversos
semitismos; as citações bíblicas são tomadas de um texto bastante diferente da LXX;
teologicamente ressalta as figuras de Pedro e Paulo e, pelo contrário, apresenta de
forma negativa o povo judeu. É um texto bem difundido tanto no oriente quanto no
ocidente, remonta a meados do século II e parece ser tão antigo como o anterior .
Atualmente, as edições críticas dos manuais reproduzem o texto alexandrino e
suprimem como não autênticos 8.37; 15.34; 24.6b-8a; 28.29.375

VIII.2.2. Linguagem e Estilo

Ao que já dissemos com relação à linguagem e estilo do Evangelho Segundo


Lucas, que também se aplica a Atos, podemos acrescentar as seguintes informações. A
obra de Atos emprega 2.036 palavras de um total de 18.374 usos, das quais 942 são
hápax legomena; a proporção entre vocabulário e total dos usos é de 9,01, quase igual
à do Evangelho, uma boa proporção numa obra literária. 376
As metáforas são frequentes, o estilo direto, os discursos, os sumários e os
coros. O texto oferece elementos psicológicos que evocam com maestria a presença do

373 W. Michaelis, p. 129, apud MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 272.


374 PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Op Cit., p. 179.
375 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 283, 284.
376 Idem, p. 289.

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Estudos no Novo Testamento 1 102

divino: além da apresentação da transfiguração de Jesus (9.28), o rosto de Estêvão


parece o de um anjo ao ver a glória de Jesus (At 6.15, 56). Quanto à composição
mesma, ele une os materiais estreitamente, formando um todo coerente, mas evita
formar blocos ininterruptos de demasiado grandes, cuja leitura cansaria o leitor. Com
objetivo de apresentar a sua história como plano salvador de Deus, ele une
acontecimentos com as categorias de promessa (anúncio, pregação, projeto) e
cumprimento (cf. citações do Antigo Testamento) (At 2.17-21).377
Os resumos redacionais ajudam a descobrir as diversas etapas da narrativa,
conforme a intenção do autor. At 1.1-2 resume-o em fazer e ensinar, marcado entre um
“começo” e a subida de Cristo ao céu; At 1.8 explicita-se o campo do testemunho,
concretizando-se em Jerusalém, Judeia, Samaria e até os confins da terra. Em 14.27
apresenta o sentido desse itinerário afirmando que a salvação também foi dada aos
gentios, sugerindo assim duas grandes partes: judeus e gentios.378

VIII.2.3. Estrutura Literária

O Segundo Volume da obra de Lucas apresenta uma estrutura consistente com


o conteúdo programático de 1.8.379 Dessa forma, a obra parece estruturada
geograficamente:
I. Introdução: preparação para o recebimento do Espírito 1.1-26.
II. Missão em Jerusalém 2.1-8.1a.
III. Missão em Samaria e Judeia 8.1b-12.25.
IV. Missão de Barnabé e Saulo aos gentios, aprovação de Jerusalém
13.1-15.35.
V. Missão de Paulo até os confins da terra 15.36-28.31.

Observamos que, até o final da obra, o texto está muito bem travado por uma
sequência geográfica sem solução de continuidade, na qual os acontecimentos vão
sendro entrelaçados a partir da atividade missionária do apóstolo Paulo, livre, até a sua
chegada em Roma, aprisionado.380

VIII.3. Questões Teológicas

Ainda pensando que Lucas serviu a Paulo como seu fiel companheiro, seus
escritos parecem não ser dependentes das epístolas que o apóstolo enviou para várias
igrejas e pessoas. Quando Lucas escreveu Atos, Paulo já havia escrito muitas de suas

377 Idem, p. 292.


378 Idem, p. 294, 295.
379 BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo Testamento I: cuestiones preliminares, evangelios y obras

conexas. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 378.


380 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 298.

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Estudos no Novo Testamento 1 103

cartas. Contudo, em Atos, o propósito de Lucas parece ser escrever tanto como
historiador quanto como teólogo. Encontramos diversos aspectos da teologia que
podemos dizer ser propriamente lucana.381
Já vimos um aceno à teologia da obra de Lucas quando analisamos o seu
Evangelho. Tudo o que foi dito acima vale também para o segundo volume da obra.
Aproveitaremos o espaço aqui para ressaltar melhor alguns pontos de interesse
teológico.
Como vimos quanto aos propósitos, o livro de Atos quer fornecer um esboço
da história da Igreja desde seus primeiros dias, em Jerusalém, até a chegada de seu
maior personagem – Paulo – na principal cidade do Império Romano. Assim,
teologicamente, Lucas quer demonstrar como isso aconteceu através da atuação do
Espírito Santo na vida dos primeiros discípulos. Antes é claro, é vejamos a
importância da ressurreição de Cristo nesta obra lucana.

VIII.3.1. A importância da ressurreição de Cristo

Os discípulos de Jesus se apegaram firmemente à esperança do


estabelecimento do Reino de Deus dentro de um breve período de tempo. A morte de
Jeeus, contudo, abalou todas as esperanças. Quando Jesus foi aprisionado, seus
discípulos o abandonaram e fugiram, procurando colocar-se em segurança, a fim de
não serem aprisionados também.382
Em poucos dias, todavia, tudo mudou. Aqueles galileus que haviam ficado
desiludidos começaram a proclamar uma nova mensagem em Jerusalém. Afirmavam
que Jesus era de fato o Messias (At 2.36), que sua morte tinha sido a vontade e o Plano
de Deus, muito embora fosse, humanamente falando, um assassinato indesculpável (At
2.23). Com ousadia eles asseveravam que aquele que os judeus tinham assassinado era
o autor da vida (At 3.15), e que, por intermédio desse Jesus, Deus oferecia o
arrependimento e o perdão dos pecados e, além disso, cumpriria tudo o que havia
prometido pelos profetas do Antigo Testamento (At 3.21). 383
Sabemos que a ressurreição é o cerne da mensagem cristã primitiva – o
kérygma. O primeiro sermão registrado refere-se a uma proclamação do fato e da
importância da ressurreição (At 2.14-36). Observamos que Pedro não declara quase
nada a respeito da vida e do ministério terreno de Jesus (At 2.22). O mais importante
foi o fato de que Jesus, que fora executado como criminoso, havia ressuscitado dentre
os mortos (At 2.24-32). É assim que, a função primária dos apóstolos na comunhão
cristã primitiva não era dominar ou governar, mas dar testemunho da ressurreição de
Jesus (At 4.33).384

381 KISTEMAKER, Simon J. Exposicion de los Hechos de los Apóstoles. Espanha: Libros Desafío, 2001, p. 25.
382 LADD, George Eldon. Op Cit., p. 454.
383 Idem, p. 455.
384 Idem, p. 456.

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Estudos no Novo Testamento 1 104

VIII.3.2. O Espírito Santo

O Espírito Santo é quem conduz a ação da comunidade cristã nos Atos dos
Apóstolos, guia os apóstolos enviados e irradia a Palavra de Deus de “Jerusalém até
Roma”. Por 52 vezes o Espírito é mencionado como condutor da ação nos Atos dos
Apóstolos. Aqui o Espírito é “o grande personagem”. Na primeira parte de Atos (At
1.1-15.35), o Espírito Santo é mencionado 19 vezes, enquanto na segunda parte (At
15.36-28.31) aparecem 11 referências.
A vida da Igreja foi dirigida por Deus em etapas cruciais. Às vezes o Espírito
dirigia a Igreja naquilo que deveria fazer (13.2; 15.28; 16.16). Em outras ocasiões,
anjos falavam a missionários cristãos (5.19-20; 8.26; 27.23), ou vieram mensagens
através dos profetas (11.28; 20.11-12). Em algumas ocasiões, o próprio Senhor
aparecia aos Seus servos (18.9; 23.11).385

VIII.3.3. A universalidade da salvação

A salvação está disponível para todas as pessoas, judeus e gentios, mediante o


arrependimento. Os judeus, de certa forma, são considerados culpados pela morte de
Jesus, e os gentios são entendidos como pecadores.
O Evangelho pregado trata do que Jesus fez e ensinou até sua morte. Atos
mostra o Cristo ressuscitado, vivo e ativo como o Senhor que salva e doa o Espírito
Santo aos crentes. O conceito que Lucas tem da história da salvação (Heilsgeschichte)
não cessa na ascensão de Cristo. Os judeus têm um lugar especial da dispensação
divina, e até ao fim é “a esperança de Israel” que os pregadores do evangelho
proclamam (At 28.20). Mas a recusa deles importou em a Igreja ficar
predominantemente gentia (At 13.36ss). Tiago especificamente inclui os gentios em
“um povo para o seu nome” (At 15.14). O evangelho é oferecido gratuitamente a todos
os homens, mas eles têm uma responsabilidade no sentido de se arrependerem, e serão
julgados no devido tempo (At 17.30-31).386

VIII.3.4. Os marginalizados

Assim como no Evangelho, em Atos os marginalizados encontram seu lugar.


“Cuidem dos enfraquecidos” (At 20.35); este é o apelo do apóstolo Paulo no seu
testemunho espiritual, escrito por Lucas, que conservava na mente e no coração a
imagem de Paulo como alguém que dava especial atenção aos empobrecidos. No
discurso aos presbíteros (At 20.17-35), encontramos o alerta para o cuidado com os

385 MARSHAL, I. H. Op Cit., p. 23.


386 MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 34, 35.

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Estudos no Novo Testamento 1 105

pobres, porque provavelmente os presbíteros estavam preocupando-se menos com


aqueles.
Aqui, como no Evangelho, a mensagem é anunciada aos samaritanos (At 8.4),
ao “eunuco” etíope (At 8.27), aos judeus da cidade de Lida, da planície de Saron e da
cidade de Jope (9.32-43), e finalmente aos gentios (At 10.1-11-18).
Lucas menciona diversas mulheres nos Atos dos Apóstolos. Elas até lideram
comunidades cheias da força do Espírito. Além de Maria, a mãe de Jesus, Safira foi a
primeira mulher citada como membro efetivo e participante nas decisões da
comunidade. Ela se solidarizou com a comunidade ao consentir em vender bens e
coloca-los a serviço da comunidade. Lucas ressalta que o pecado de Safira não foi o
mesmo do seu marido Ananias. Ela pecou pelo fato de não ter reagido em público, na
assembleia, ao sistema que regia o casamento patriarcal, segundo o qual era muito
difícil a mulher reagir de modo diferente do modo do marido. Safira acabou sendo
conivente e coautora da traição feita à comunidade e consequente traição ao Espírito
Santo.387
Na tradicional “instituição da diaconia” (At 6.1-7), viúvas helênicas, pobres e
estrangeiras, aparecem reagindo contra a discriminação (At 6.1s). Lucas não diz que
todas as viúvas estavam sendo relegadas na assistência social, mas apenas as viúvas de
origem grega. Outra mulher que exerceu liderança libertadora nas primeiras
comunidades cristãs foi Tabita (At 9.36-43). Maria, a mãe de João Marcos (At 12.12-
17) aparece como ponto de referência para uma igreja, uma reunião da comunidade.
Além disso, temos a escrava Rode (At 12.12-17), Lídia (At 16.13-15-40) – líder de
comunidade, Priscila (At 18.18,26-27), as quatro filhas de Filipe, que eram profetisas
(At 21.9).388

VIII.3.5. A Igreja

No dia de Pentecostes acontece algo de maravilhoso. Os discípulos


experimentam uma manifestação divina, acompanhada de certas manifestações
visíveis e audíveis, que os convenceu que Deus derramara seu Espírito Santo sobre
eles. Aqui vemos mais uma vez a importância do Espírito Santo na obra lucana. A
vinda do Espírito manifestou-se de várias formas, que foram evidentes às percepções
físicas. Um som veemente e impetuoso; algo que parecia com chama de fogo. Pedro
esclarece que esse maravilhoso poder foi o sinal visível do cumprimento da profecia
de Joel, de que Deus derramara seu Espírito Santo. Pedro interpretou o dom
pentecostal com o cumprimento profético. Assim nasce a Igreja em Jerusalém.389
Contudo, a experiência pentecostal não levou os cristãos primitivos a romper
com o judaísmo e a formar uma comunidade separada e distinta. Mesmo assim, certos
387 MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 39, 40.
388 Ibidem.
389 ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 155.

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elementos distintos são evidentes, os primeiros dos quais é “o ensinamento dos


apóstolos” ou didaquê. O batismo; a igreja recebia em sua comunhão todos os que
aceitassem a proclamação de Jesus como o Messias, se arrependessem e recebessem o
batismo nas águas.
Os empregos do termo ekklêsia (evkklhsi,a) levam à compreensão de que a
Igreja não é meramente um número total de igrejas locais ou a totalidade de todos os
crentes; antes, a congregação local é a Igreja em sua expressão local. Somente podia
haver uma Igreja; e essa única Igreja de Deus se expressava de forma local na
comunhão dos crentes. Um dos elementos mais admiráveis na vida das igrejas
primitivas era o sentido de comunhão (At 2.42; 2.44, 47). O sentimento de partilhar
das bênçãos da era messiânica levou a um compartilhamento real de suas posses.390

VIII.3.6. A importância da oração

Segundo os Atos dos Apóstolos, uma das colunas mestras que sustentava a
vida das primeiras comunidades cristãs era a oração. Oravam juntos (12.12) e
cultivavam um novo ambiente na vida em comum. Perseveravam na oração (1.14;
2.42; 6.4; 10.2) nas casas, no Templo (3.1), às margens do rio (16.13), na praia (21.5)
etc. Pela oração criava-se intimidade com o Espírito Santo (4.31; 8.15; 10.30; 22.17) e
consagravam-se líderes na comunidade a serviço da Palavra e da assistência social
(6.6; 9.11). Os visitantes também entravam no clima da oração (16.13). Pela oração, os
seguidores de Jesus permaneciam unidos entre si e a Deus (5.12b), fortaleciam-se nas
tribulações (4.23-31) e faziam discernimento crítico e criativo (1.24; 13.3).
As orações eram libertadoras (28.8) e acolhidas por Deus (10.4,31 ). A
comunidade orava pelos que tinham sido presos na perseguição (12.5) e, muitas vezes,
jejuava enquanto orava (e vice-versa). Fazia como Jesus, que, pela oração, enfrentava
as tentações (Mc 14.32; At 8.24; 16.25).391
O acento posto sobre a atividade do Espírito Santo como motor da história da
salvação é praticamente único em todo O Novo Testamento. A escatologia lucana diz
que a parousia já começou com Jesus. Jesus não voltará somente no final dos tempos,
pois já está voltando desde sua encarnação.

390 LADD, George Eldon. Op Cit., pp. 488-502.


391 MARSHAL, I. H. Op Cit., p. 30.

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Estudos no Novo Testamento 1 107

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