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Evangelhos e Atos
SUMÁRIO
Antes de ser constituído como povo, Israel foi dominado por vários impérios
estrangeiros, no tempo do Novo Império egípcio (1552-1070 a.C.). A Assíria, a partir
de 722 a.C., arrasou o Reino de Israel (Reino do Norte). Depois a Babilônia, em
587/586 a.C., destruiu o Reino de Judá (Reino do Sul), sendo sucedida pela Pérsia em
538 a.C. Um pouco mais de 200 anos e Israel passou para o domínio dos gregos em
333 a.C.
Foi um período marcado pela sucessão de dominadores, cada um querendo
dominar aquela terra. O povo ficou como que sendo jogado, ora na mão de um, ora na
1 Falar em Palestina no século I a.C. é um anacronismo. A região só ganhou esse nome no tempo do imperador
Adriano (117-138 d.C.). Esse imperador transformou Jerusalém em um importante centro de adoração gentia
chamado Aeolia Capitolina em cerca de 135 d.C.. Os judeus foram despejados de Jerusalém e proibidos de
entrar. A partir de então eles podiam entrar apenas um dia por ano, para lamentar seu destino no Muro das
mão de outro. Com a morte de Alexandre Magno, em 323 a.C, Israel passou para as
mãos dos generais. Primeiro foram os Ptolomeus ou Lágidas do Egito; depois, em 198
a.C., os Selêucidas da Síria; e, por último, Israel caiu nas mãos dos romanos.2
Lamentações. Veja BLOMBERG, Craig L. Jesus e os Evangelhos: uma introdução ao estudo dos 4
evangelhos. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 42.
2 MESQUITA, Antônio Neves de. Povos e nações do mundo antigo: uma história do Velho Testamento. Rio
– 11.
4 BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo Testamento I: cuestiones preliminares, evangelios y obras
guerra aos romanos. É assim que, Heliodoro, o general sírio ficou na lembrança por ter
saqueado o tesouro do Templo de Jerusalém no governo de Seleuco IV (187-175),
filho de Antíoco.7
No período seguinte, 175 – 163 a.C., ocorre a revolta macabaica. Por causa da
situação ocasionada pelos selêucidas, sob Antíoco IV Epifânio 9 (175-164), a situação
tornou-se bastante difícil. Antíoco deu continuidade na obtenção da unidade entre seus
subjugados e os fez partilhar a cultura e a religião gregas. A corrupção e o coração
ambicioso dos Sumos sacerdotes em Jerusalém serviam bem a esses propósitos.
Antíoco IV atacou Jerusalém em 169 e 167 a.C., massacrou a população e erigiu uma
estátua a Zeus no altar do holocausto do Templo.10 Além disso, ele instalou uma
guarnição síria permanente em uma fortaleza na cidade – a Acra.
I.1.1.2. Os Macabeus
comentou que os detratores do imperador se referiram a ele como Epimânio: o “louco”. BLOMBERG, Craig L.
Op Cit., p. 28.
10 Aqui encontramos a referência à abominação da desolação de Daniel 11.31; 12.11.
15 DOCKERY, David S. Manual Bíblico Vida Nova. São Paulo: Vida Nova, 2001. p. 546.
16 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 110, 111.
17 MAINVILLE, Odette (org). Escritos e ambiente do Novo Testamento: uma introdução. Petrópolis: Vozes,
2002, p. 20.
18 Idem, p. 19.
19 GUSSO, Antônio Renato. Panorama Histórico de Israel para Estudantes da Bíblia. Curitiba: A. D.
paz. Alguns desses procuradores também são mencionados no Novo Testamento (Mt
27.11; At 23.24-24.27; 25.1-26.32). Este era o caso da província imperial da Síria e da
região procuratoriana da Judeia.24
24 Idem, p. 23.
25 DOCKERY, David S. Op Cit., p. 549.
26 COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 24.
27 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 117.
eram todos os que não detinham o direito de cidadão romano. Aí se incluíam os povos
conquistados, inclusive Israel.
alimentos e roupas para serem distribuídos, uma vez por semana, aos mais carentes. O
prato dos pobres era a distribuição diária de sopa aos necessitados. Estas duas
instituições, em Jerusalém, eram assumidas pelo Templo. Nele havia também um cofre
onde se depositavam as ofertas para os mais pobres (Mc 12.42). Mesmo assim
podemos concluir que não havia condições, para a maioria do povo, de ter sequer uma
vida digna e justa.39
Os judeus desta época deviam ter algum tipo de conhecimento a respeito das
religiões não judaicas dos povos com os quais mantinham contato. Também é verdade
que muitos desses povos tinham conhecimento da religião judaica. Na Palestina,
inclusive em regiões em que a maioria da população era judaica, havia uma forte
influência do helenismo.40
O mundo greco-romano no tempo de Jesus Cristo apresentava um vigoroso
fluxo religioso. Diversos cultos proliferavam. As misturas e as combinações de
crenças (sincretismo) e comportamentos criavam por vezes um pluralismo que era
intolerante somente com as religiões exclusivistas e fechadas, como o judaísmo e o
cristianismo.41
Diversos cultos de mistério acabaram por surgir derivados de antigas
cerimônias tribais e até de fertilidade. Alguns eram oriundos da Grécia, outros eram
importações estrangeiras, especialmente da Pérsia e do Egito. As práticas rituais
podiam variar desde a serenidade até o grotesco.42
Meditações a respeito da espiga do ramo de trigo, no culto de Deméter (deusa
do cereal), um calmo banho de rio como parte do culto de Ísis (deusa do Nilo) ou
refeições comunitárias com pão e água, no mitraísmo, eram bastante serenos.43
No extremo grotesco estava o “batismo de sangue” do culto de Cibele, em que
o Sumo Sacerdote ficava numa cova coberta por uma grade de madeira trançada, em
cima da qual um touro era morto, de forma que o sangue escorria e cobria a face e as
vestes do ministro.44 Os Sacerdotes de níveis inferiores que se dedicavam a Atargatis
tinham o costume de se castrar, e as orgias de embiraguez associadas à adoração de
Dionísio (deus do vinho) eram bem conhecidas e menos secretas ou misteriosas do que
muitas das outras religiões ou seitas religiosas.45
O Império Romano era politeísta. De modo geral deixava que cada um
adorasse e cultuasse os deuses que quisesse. Mas, ideologicamente, obrigava os povos
A cultura grega distinguiu-se por sua filosofia de vida e pela filosofia clássica,
que teve grande influência na cultura universal. Entre os primeiros filósofos helenistas
estão os cínicos, que surgiram por volta do ano 350 a.C. 50 Diógenes foi uma das
figuras mais representativas desse movimento, tornando-se conhecido pelo seu gesto
de procurar, em pleno dia, com uma lanterna acesa, um homem honesto. O objetivo
maior de sua vida era o cultivo da autossuficiência; cada um deveria encontrar dentro
de si a capacidade de satisfazer suas próprias necessidades. 51
Nessa mesma época surgiram duas escolas, cada qual com sua filosofia de
vida. A primeira foi a escola de Epicuro, surgida por volta de 350 a.C. Ela deu origem
ao epicurismo, cujo princípio era o de alcançar níveis de prazer e felicidade tão
elevados a ponto de a pessoa não sentir mais medo da morte, dos deuses e ficarem
insensíveis à dor. O ideal almejado era a ausência total de perturbação, a ataraxia.52
2003, p. 253.
51 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 146, 147.
52 REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Op Cit., p. 259.
I.2.1. O Templo
53 Idem, p. 288.
54 TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 102.
55 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 148, 150.
56 TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 120.
57 HALE, Broadus David. Op Cit., p. 17.
a do mundo inteiro dependiam das forças divinas que entravam na esfera terrestre
exatamente naquele ponto.58
Na época de Cristo o Templo havia sido reconstruído por Herodes. Era um
belo edifício de forma oblonga irregular, mais largo ao norte que ao sul. Situava-se no
monte Moriá, elevação existente no lado mais baixo, isto é, lado oriental da cidade de
Jerusalém. A área total era fortificada por uma muralha atravessada por vários portões.
Era uma das obras arquitetônicas mais imponentes que já produziu o engenho humano.
Fora da cidade imperial não existia em todo o Império Romano edifício maior.59
O Segundo Templo, como também ficou conhecido, foi terminado por volta
da época do nascimento de Jesus. Os alicerces de tamanho avantajado permitiram que
o rei e seus arquitetos remodelassem a área do velho Templo na parte sudeste de
Jerusalém, dentro de uma enorme plataforma – quase 500m x 300m que existe até os
dias de hoje. O local da construção do Templo, propriamente dito, acredita-se que seja
mais ou menos onde hoje fica a Mesquita Islâmica da Rocha.60
O Templo mesmo media aproximadamente 50m x 35m; era dividido em três
partes principais e seguia o mesmo projeto do Templo de Salomão: o Ulam, conhecido
como vestíbulo; o Hekal, mais tarde chamado Santo; e o Debir, que correspondia ao
Santo dos Santos. Esta última parte era o lugar sagrado, onde ficava a Arca da Aliança
durante o período do primeiro Templo (de Salomão).
Todo o espaço do Templo era bem ocupado. A área do pátio externo era
reservada aos pagãos. Nela ficavam instalados os comerciantes de bois, carneiros,
cordeiros, pombos, óleo, farinha, incenso e de outros produtos utilizados durante o
culto. Na mesma área ficavam ainda os cambistas, que trocavam as moedas que
vinham de fora do país para a moeda local de Jerusalém. Os pagãos não podiam
ultrapassar seu espaço, sob pena de morte. Eram separados por um muro interno.
Subindo as escadarias tinha-se acesso ao Templo, por meio de quatro portões
ao norte, quatro ao sul e mais um a leste. Eles davam acesso ao pátio das mulheres,
depois ao dos homens e, por fim, ao dos sacerdotes, que já circundava o altar dos
sacrifícios. O vestíbulo (Ulam) estava situado no pátio dos sacerdotes e propiciava
acesso ao Santo, e este por sua vez ao Santo dos Santos. O Santo tinha 15 metros de
comprimento, 5 de largura e 5 de altura. No seu centro havia o altar dos perfumes ou
do incenso, a mesa dos pães da proposição e o candelabro de sete braços. O Santo dos
Santos ficava totalmente vazio. Nele não havia porta, mas era fechado com uma
cortina dupla, conhecida como “véu do Santuário” (Mc 15.38). Media 20 côvados
quadrados – aproximadamente 9 m2. Apenas o Sumo Sacerdote podia entrar nele uma
58 DANA, Harvey Eugene. O Mundo do Novo Testamento: um estudo do ambiente histórico e cultural do
Novo Testamento. Rio de Janeiro: JUERP, 1990, p. 89.
59 DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 89.
60 OTZEN, Benedikt. O judaísmo na antiguidade: a história política e as correntes religiosas de Alexandre
Magno até o imperador Adriano. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 130-137.
vez por ano no Dia da Expiação, porque era o lugar sagrado onde se encontrava Deus,
o único Santo.61
O culto era realizado todos os dias do ano. Neste culto diário, o aspecto mais
acentuado, e, sem dúvida, o mais importante, era o sacrifício oferecido pelo povo em
seu todo. Todos os dias imolavam-se dois cordeiros de um ano, um pela manhã e outro
à tarde. Esse era considerado o sacrifício perpétuo que se oferecia ao Deus de Israel. 62
I.2.2. A sinagoga
um “armário sagrado”. Sobre esse armário encontra-se uma lâmpada acesa dia e noite,
e chama-se “luz eterna”. Há também uma mesa de apoio para a leitura dos textos
sagrados e uma pequena tribuna com um púlpito.66
A liturgia era mais ou menos fixa. Em primeiro lugar vinham os serviços
preliminares que constavam de “bênçãos” (berakah) de abertura, e da recitação de um
ritual de confissão conhecido por “Shemá Yisra’el” “Escuta, Israel” (Dt 6.4-9; 11.13-
21). Nessa oração, o povo judeu professa a sua fé no Deus UM, reafirmando sua
fidelidade a Ele. Essa oração era realizada duas vezes ao dia, de manhã e à tarde.
Depois do Shemá vêm as dezenove bênçãos (Tefillah). São breves orações de
bênção. Provavelmente, já eram recitadas no tempo de Jesus com seu conteúdo
principal. Em seguida temos a parte didática. Esta parte compreende a leitura e
explicação das Escrituras. No tempo de Jesus e nas sinagogas atuais, ela só pode ser
feita por homens maiores de idade. A explicação é dada igualmente para todos que
participam do culto: crianças, mulheres e homens. Consiste na leitura e explicação de
um texto da Toráh e dos Profetas. Faz-se a leitura de um determinado trecho da Lei
(Pentateuco ou Toráh); em seguida, geralmente outro dos Profetas. A leitura é
realizada do original hebraico traduzido contemporaneamente para a língua falada no
local onde se encontra a sinagoga. Após a leitura alguém faz um comentário de caráter
expositivo ou exortativo, podendo ser uma reflexão teológica para a formação do
povo, e no fim fazia-se o convite para se viver segundo a Toráh. A liturgia era
concluída com a bênção final. Em conexão com a sinagoga havia um grupo de oficiais,
cujos mais importantes eram os anciãos, escolhidos pela congregação para
supervisionar a vida comunitária. Um oficial subalterno, conhecido como “ministro”
(no grego diákonos), atuava como auxiliar do dirigente da sinagoga, e outro, que era o
“recitador de orações” oficial, servia na qualidade de secretário da sinagoga em suas
transações com o mundo exterior.67
Cabe ressaltar que a adoração e o estudo na sinagoga assumiram formas que
vieram a se tornar centrais no desenvolvimento da Igreja cristã. O preceito do culto aos
sábados era amplamente aceito pelos primeiros adoradores cristãos. Orações e hinos
abriam e fechavam cada culto. Entre um e outro havia a leitura da Lei, Profetas e
Salmos – por vezes num ciclo de sermões fixos -, com o Targum e a homilia (sermão)
sendo apresentados por um dos anciãos da sinagoga, baseados nos textos do dia. Os
assistentes dos anciãos podem mesmo ter sido um modelo do que mais tarde inspiraria
o ofício cristão do diácono.68
A sinagoga ainda era utilizada para reuniões de vários tipos da comunidade, de
modo mais destacado para a educação primária de meninos com idades entre cinco a
doze ou treze anos. Não é verdade que a maioria dos homens judeus do século I era
analfabeta – uma ideia por vezes baseada na má compreensão de Atos 4.13, que
66 DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 88.
67 Ibidem.
68 BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 64.
apenas declara que os primeiros discípulos não haviam sido instruídos formalmente
por um rabino além da idade de treze anos.69
I.2.3. O Sinédrio
I.2.4. Fariseus
A origem dos fariseus parece estar nos assideus (1Mc 2.42), grupo de judeus
piedosos que zelavam pela observância da Toráh, diante da ameaça de helenização
imposta pela política intolerante dos Selêucidas, a partir do século II a.C. Os assideus
uniram-se ao movimento rebelde liderado pela família dos Macabeus, também
desejosa de salvar o judaísmo da torpe influência do helenismo e a ingerência política
dos sírios (Selêucidas) na vida dos judeus.73
Os fariseus eram considerados especialistas nas Escrituras e na tradição, mas
combinavam o estudo permanente da Toráh com o exercício de uma profissão. Muitos
aprendiam um ofício. Havia, entre eles, curtidores; ganhava-se a vida com a confecção
de tendas – como Paulo e sua família, ou como carpinteiros – à semelhança de José e
Jesus (cf. Mt 13.55). Na literatura rabínica tardia, inclusive, os carpinteiros são
69 Idem, p. 65.
70 DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 94.
71 BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 65.
72 HALE, Broadus David. Op Cit., p. 18.
73 HEYER, C. J. den. Paulo: um homem de dois mundos. Coleção Bíblia e Sociologia. São Paulo: Paulus,
2009. p. 22.
I.2.5. Saduceus
I.2.6. Zelotes
Sadoc, no ano 4 d.C., durante o governo de Arquelau.81 Seu zelo pela liberdade do
povo diante dos romanos e pela “limpeza” política expulsando os intromissores
estrangeiros, levou-os a assumir a rebelião armada como caminho de instauração do
novo reino messiânico. Os zelotes formavam um partido revolucionário e nacionalista.
Seus membros eram fanáticos opositores na dominação romana. Seu ideal era
estabelecer uma teocracia, expulsando pela força os dominadores estrangeiros (At
5.37). Por causa disso os zelotes foram duramente reprimidos e massacrados pelos
romanos, exatamente por representarem a forma mais perigosa de movimento judaico
contra os interesses do império. Simão, um dos doze apóstolos, era zelote (Mt 10.4; Lc
6.15).82
I.2.7. Essênios
Epífanes IV; por isso, refugiaram-se na área do Mar Morto para fugir da profanação de Jerusalém. Houve um
período de interrupção ou dispersão do grupo no tempo de Herodes, o Grande, talvez provocada por um
terremoto. No início do século I se restabeleceram, mas não por muito tempo. Por volta do ano 68 d.C.
desapareceram definitivamente com a invasão do exército romano.
86 DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 98, 99.
87 BOCCACCINI, Gabriele. Além da hipótese essênia: a separação dos caminos entre Qumran e o judaísmo
todos os livros do cânon da Bíblia hebraica, exceto o livro de Ester, Targuns 88, escritos
apócrifos e pseudoepígrafes como o livro de Henoc e o Livro dos Jubileus. Também
foram encontrados comentários de Habacuque, Salmos, Isaías, Naum, entre outros.
Além disso, a comunidade compôs literatura própria, sendo que os textos mais
conhecidos são: O Documento de Damasco (CD, 4QD, 5QD, 6QD), a Regra da
Comunidade (1QS, 4QS, 5QS), o Rolo da Guerra (1QM, 4QM), Os Cânticos do
Sacrifício Sabático, o Rolo do Templo, dentre outros.89
Embora, como dissemos acima, a seita não se apresente mencionada no Novo
Testamento, parece que podemos encontrar alguns reflexos de seus ensinos e
costumes. Muitos estudiosos afirmam com convicção que os essênios influenciaram
profundamente muitas das correntes de vida em circulação no tempo de Jesus e seus
discípulos.90
I.2.8. Samaritanos
88 São as traduções dos textos bíblicos do hebraico para o aramaico conhecidas no século II a.C. São importantes
para o estudo textual, porque representam um meio para reconstruir o texto hebraico através do aramaico.
89 NICKELSBURG, George W. E. Literatura judaica, entre a Bíblia e a Mixná: uma introdução histórica e
Com Marcos surgiu um tipo de escrito que faria sucesso na literatura cristã: o
Evangelho. Ele foi imitado pelos outros três Evangelhos e por autores apócrifos até o
século IV. Ao reunir tradições esparsas em um relato de natureza biográfica
consagrado à vida de Jesus, Marcos fez uma obra inédita; até então, a tradição cristã só
conhecia sequências narrativas limitadas – a história da Paixão, por exemplo –
coleções de ditos – logia, ou as cartas de Paulo. O primeiro evangelista se descobre
criador de um gênero literário. Pergunta-se: o Evangelho é um gênero literário ímpar
na literatura, é um fenômeno único, ou pode-se afiliá-lo a outros gêneros literários que
circulavam na época?93
93 MARGUERAT, Daniel. Novo Testamento: história, escritura e teologia. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
p. 35. Cf. BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo Testamento I: cuestiones preliminares, evangelios y
obras conexas. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 172.
94 MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 36.
95 MARCONCINI, Benito. Os Evangelhos sinóticos: formação, redação, teologia. São Paulo: Paulinas, 2012,
p. 5.
96 Septuaginta.
97 MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 36.
98 Idem. p. 36.
99 MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 37.
100 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 163.
“momento histórico”.101 Desssa forma, este estágio está situado na primeira terça parte
do século I d.C.
O Senhor Jesus realizou coisas notáveis, proclamou oralmente sua mensagem
e interagiu com outros, como João Batista, por exemplo, e outras figuras religiosas.
Jesus escolheu companheiros que viajaram com ele, viram e ouviram o que ele fez e
disse. Tudo aquilo que eles se recordavam de suas palavras e ações proporcionaram o
“material sobre Jesus” em estado bruto. Estas recordações eram já seletivas, uma vez
que eles se concentraram naquilo que dizia respeito à proclamação de Deus por parte
de Jesus, e não às muitas trivialidades da vida ordinária. Em um nível prático, é
importante que tenhamos sempre presente de que essas são memórias daquilo que foi
dito e feito por um judeu que viveu na Galileia e em Jerusalém na década dos anos 20
do século I. A maneira de falar de Jesus, os problemas que ele enfrentou, seu
vocabulário e suas perspectivas (estruturas de pensamento) eram próprios daquele
tempo e lugar. Muitos erros nas tentativas de entender a Jesus e muitas aplicações
falsas de seus pensamentos provêm do fato de que os leitores dos Evangelhos
removem-no do espaço e do tempo, e imaginam que ele estava tratando de problemas
que, na verdade, nunca enfrentou. Podem dar-se formas eruditas de representar mal a
Jesus impondo sobre ele categorias que realmente não se aplicam a sua pessoa, por
exemplo, a do camponês ou a daquele que lutou pela liberdade política.102
O segundo estágio na formação do evangelho refere-se à pregação apostólica
sobre Jesus. É o momento da tradição. Trata-se do kérygma apostólico. Palavra que
evoca o anúncio solene do arauto depois de uma retumbante vitória, a espontaneidade
e a difusão rápida de um acontecimento, o grito forte para tornar pública a oficial
notícia (At 2.36,24).103 Este estágio situa-se na segunda terça parte do século I d.C.
Aqueles que haviam visto e seguido a Jesus viram confirmado o seguimento
deles pelas aparições após a ressurreição (1Co 15.5-7). Chegaram assim a ter uma fé
plena no Jesus ressuscitado como a pessoa através da qual Deus manifestou seu
absoluto amor salvífico por Israel e finalmente por todo o mundo – uma fé que
verbalizaram por meio de títulos que expressavam sua crença (Messias/Cristo, Senhor,
Salvador, Filho de Deus, etc.). Aquela fé pós-pascal iluminou as recordações do que
eles tinham visto e ouvido antes da ressurreição; assim, eles proclamaram as obras e as
palavras de Jesus com mais plenitude de significado. (Os leitores modernos,
acostumados com uma informação factual, sem implicações pessoais, necessitam
reconhecer a atmosfera bem diferente da pregação cristã primitiva.) Dizemos que esses
pregadores são “apostólicos” porque se viram a si mesmos como enviados
(avpeste,llein - apostellein) pelo Jesus ressuscitado, e porque sua pregação muitas
vezes é descrita como proclamação querigmática (ke,rugma - kérygma), cuja finalidade
era atrair outros à fé. Finalmente, o círculo dos pregadores missionários alargou-se
apostólica mais velha ou seus sucessores imediatos, buscando tradição oral independente dos evangelhos
escritos, que ele também conhecia (HE 3.39.3-4).
108 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 171.
109 Idem, p. 172.
Uma leitura de Atos dos Apóstolos nos leva a pensar que o sermão, nos
primórdios da Igreja, possuía um plano definido: kérygma, ou mensagem curta, então a
prova pelas Escrituras e, finalmente, o chamado ao arrependimento. Foi assim que, os
objetivos do sermão criaram a Forma da história evangélica e um estilo definido para a
divulgação das boas notícias. Essas pequenas unidades em circulação receberam o
110 O’CALLA GHAN, José. A formação do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 28.
111 COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 50.
112 BITTENCOURT, B. P. A Forma dos Evangelhos e a Problemática dos Sinóticos. São Paulo: Imprensa
Marcos Lucas
232.
118 BITTENCOURT, B. P. Op Cit., p. 62, 63.
119 Idem, p. 74-76.
Mateus João
1.18-25 O nascimento de Jesus 1.45-51 O chamado de Natanael
2.1-23 Os Magos, fuga e retorno 3.1-21 Nicodemos visita Jesus
do Egito
3.22-30 Jesus e João Batista
Narrativas pascais 4.1-41 A mulher samaritana
Mc 16.1- A história do túmulo 12.20-22 Os gregos e Jesus
8 par. vazio
Mt As histórias das aparições 13.4-10 Jesus lava os pés aos
28.9s, do ressurreto. discípulos
16-20;
Lc
24.13-
35,36-
49; Jo
20.14-
18,
19.23,
24-29;
21.1-14,
15-17
a) Sinonímico: “porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons e a
chuva desça sobre justos e injustos.” (Mt 5.45);
b) Antitético: “Assim, toda árvore boa produz bons frutos, e toda árvore má
produz frutos maus.” (Mt 7.17);
c) Sintético: “pois alargam os seus filactérios e alongam as suas franjas.” (Mt
23.5).
Também encontramos as formas em Ditos Proféticos e Apocalípticos. A
ênfase desses ditos é sobre “o Reino de Deus” e tem “Arrependei-vos”, como apelo
(Mt 3.10-12; 24). Ditos Legais e Regras Eclesiásticas: preceitos disciplinares e
reguladores (Mt 5.27-28). Ditos iniciados com “eu”.124
Ainda dentro das narrativas temos de considerar o uso de Parábolas. Dentre os
diversos ditos do Senhor Jesus, os estudiosos afirmam que as parábolas são os únicos
que possuem forma. Esses pronunciamentos de Jesus consistem de uma verdade
espiritual ou moral que é enfatizada por meio de uma analogia ou comparação
concreta, expressa ou subentendida.
Na opinião de Reclich as parábolas contêm quatro características:
1) Comparação expressa ou implícita. Faz uso de expressões do tipo “como”,
“semelhante”, etc. (Mt 5.11-16);
2) Esta comparação deve ser simples, uma vez que o objetivo da parábola é
ensinar uma lição simples, de forma clara. Tomemos como exemplo a parábola da
ovelha perdida (Lc 15.3-7), ou a do filho pródigo (Lc 15.11-32);
3) Outra característica é que a parábola deve ter somente uma aplicação. Isto
significa que não devemos descer aos pormenores para não convertermos a parábola
em alegoria. A parábola do amigo inoportuno (Lc 11.5-8) serve para exemplificar esta
característica. Já imaginou se tentarmos identificar o amigo inesperado, os filhos no
leito, o pai que já estava na cama com os filhos?
4) Em último lugar, a parábola deve ser objetiva. Seu propósito é convencer
alguém de uma realidade espiritual. Significa dizer que os ouvintes precisam tomar
uma decisão (Mt 17.25 “Que te parece?”; 21.28 “E que vos parece?”). Observe que a
pergunta exige uma decisão imediata.125
Por fim126 , temos de considerar a Narrativa da Paixão. Podemos assumir que
ela teve desde o início, a forma de um bloco orgânico e homogêneo, cujo texto
encontra-se em cada um dos quatro Evangelhos. Os estudiosos em geral lembram que
era preciso, de alguma forma, mostrar que uma ocorrência paradoxal e sem sentido
para o pensamento humano– um evento ignominioso como a morte de cruz –
representava o início do tempo final, ou seja, uma parte da consumação da salvação. 127
124 Idem, p. 51.
125 BITTENCOURT, B. P. Op Cit., p. 55, 53.
126 Na realidade, o problema das formas é por demais extenso para ser tratado em uma obra introdutória como
esta. O estudante de exegese deve procurar maiores informações em obras especializadas. Remetemos o leitor à
obra de BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 1998.
127 WEGNER, Uwe. Op Cit., p. 240, 241.
Mc Mt Lc
Comum aos três Evangelhos vv. 330 330 330
Comum a Marcos e Mateus vv. 178 178
Comum a Marcos e Lucas vv. 100 100
Comum a Mateus e Lucas vv. 230 230
Exclusivos de cada um vv. 53 330 500
Total de versículos em cada evangelista vv. 661 1.068 1.160
Os textos paralelos aos três evangelistas são conhecidos como tripla tradição;
os textos paralelos entre Mateus e Lucas, como dupla tradição; e os textos particulares
de cada um são chamados de tradição singular, particular, ou exclusiva.
É assim que, o problema sinótico consiste no seguinte: que relação esses três
escritos tem um com o outro? A Crítica das Fontes compreende essa questão de um
ponto de vista genealógico: a relação entre os três sinóticos é detectada na dependência
que revelam de um em relação ao outro; a pesquisa visa, portanto, a identificar que
Evangelho tem prioridade literária na relação de cada um com os outros. 129
128 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 1997, p. 19.
129 MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 15.
130 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 28.
131 COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 53.
132 BITTENCOURT, B. P. Op Cit., p. 114, 115.
133 Idem, p. 115, 116.
134 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 31, 32.
135 Q refere-se a uma coleção de palavras ou pronunciamentos de Jesus, conhecida como logia, palavra grega.
Mateus e Lucas devem ter obtido acesso a esta fonte independentemente um do outro. Eles copiaram muitos
textos iguais dessa fonte que forma a dupla tradição, comum só a Mateus e Lucas. Marcos parece não ter
conhecido esta fonte. OPORTO, Santiago Guijarro. Ditos primitivos de Jesus: Uma introdução ao “Proto-
evangelho de ditos Q”. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 12.
136 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 35.
137 COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 49.
138 RIENECKER, F. O. O Evangelho de Mateus. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1998, p. 10, 11.
Desse modo observamos que Mateus e Marcos dão bastante destaque para a
atividade de Jesus realizada na Galileia. Enquanto isso, Lucas destaca o itinerário de
Jesus que parte da Galileia até chegar a Jerusalém. Notamos que toda a teologia lucana
é voltada para Jerusalém.139
III.4. Inventário
Estatísticas: 148
III.5.1.1. Hipótese de que Mateus foi o primeiro Evangelho e foi usado por Lucas
Marcos foi escrito primeiro e, em seguida, Mateus e Lucas fizeram uso dele.
Uma vertente dessa teoria chega a postular que Lucas fez uso de Mateus também, mas
enfrenta certas dificuldades. A tese mais comum “argumenta que Mateus e Lucas
dependem de Marcos e escreveram independentemente um do outro”. O que eles têm
em comum e não derivou de Marcos é explicado com base em Q. Essa é conhecida
como a Teoria das Duas Fontes.153
157 SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia da exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2009.
158 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 44.
IV.1.1. Autoria
Da mesma forma como todos os Evangelhos que nós temos, para o Evangelho
Segundo Marcos, dependemos totalmente do testemunho externo para nomear o autor.
Contudo, ficamos tranquilos ao saber que a voz da antiguidade é unânime em atribuir
este Evangelho a João Marcos.163
O mais antigo e importante testemunho data do início do século II e foi
registrado por Eusébio no início dos anos 300. Trata-se do testemunho de Papias. No
livro de Eusébio podemos ler que:
[...] Marcos, que foi intérprete de Pedro, pôs por escrito, ainda que não com ordem,
o quanto recordava do que o Senhor havia dito e feito. Porque ele não tinha ouvido o
Senhor nem o havia seguido, mas, como disse a Pedro mais tarde, o qual transmitia
seus ensinamentos segundo as necessidades e não como quem faz uma composição
das palavras do Senhor, mas de tal forma que Marcos em nada se enganou ao
escrever algumas coisas tal como as recordava. E pôs toda sua preocupação em uma
só coisa: não descuidar nada de quanto havia ouvido nem enganar-se nisto o mínimo
(HISTÓRIA ECLESIÁSTICA, 3.39.15).164
163 BERKHOF, Louis. Introdução ao Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2014, p. 65.
164 CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica. São Paulo: Novo Século, 2002, p. 41.
165 EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Comentário Bíblico Beacon. Volume 6. Rio
negativo a respeito dos discípulos. Por fim, considerando-se que Marcos não fazia
parte do círculo dos doze, é pouco provável que alguém com pouco conhecimento
seguro sobre o verdadeiro autor desse Evangelho, mas disposto a dar-lhe uma
credibilidade e um testemunho autorizados, tivesse escolhido Marcos como tal
autoridade.167168
IV.1.2. Data
A data em que foi escrito nosso Evangelho em estudo tem sido fixada entre
50-70 d.C. Isto concorda com a suposição de que Marcos escreveu depois da morte de
Pedro – ocorrida provavelmente durante a perseguição de Nero em 64-66 d.C., mas
antes da destruição de Jerusalém em 70 d.C. Precisamos levar em conta ainda que, o
Evangelho Segundo Lucas e o Livro de Atos, foram escritos antes da morte de Paulo –
aproximadamente em 66 d.C. Uma vez que, segundo a Crítica das Fontes, o Evangelho
Segundo Lucas utiliza-se de Marcos como uma de suas fontes, deveríamos recuar
Marcos para antes do Evangelho Segundo Lucas, pelo menos. 169 Isto sugere uma data
por volta do final dos anos 50.
IV.1.4. Propósito
clara e abrangente sobre a pessoa de Jesus Cristo, que morrera em uma condição
ignominiosa numa cruz romana.
171 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Evangelios sinópticos y echos de los
Apóstoles. Espanha: Editorial Verbo Divino, 1991, p. 149.
172 EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Comentário Bíblico Beacon. Volume 6. Rio
121, 122.
174 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 121.
sem paralelos
3.20,21 Temor dos familiares de que Jesus esteja fora de si
4.26-29 A parábola da semente que cresce por si
7.31-37 A cura de um surdo-mudo na Decápolis
8.22-26 A cura gradual do cego em Betsaida
13.33-37 Exortação à vigilância dos servos e porteiros
14.51-52 Homem jovem que fugiu nu
16.17-18 Os sinais que acompanham a fé
16.19,20 O Senhor exaltado e a atividade missionárias dos
apóstolos
175 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., pp. 151-157.
At 10.34ss Marcos
v. 36 Anúncio do Cristo como Senhor sobre todos 1.1-3
v. 37-38a Batismo por João e começo da atuação na Galileia; 1.4-37
preparação com o Espírito Santo e poder
v. 38b Andou pela região, fazendo o bem, curou enfermos e 1.38-10-52
expulsou demônios
v. 39ª Atuação de Jesus na terra da Judeia 11.1-13.37
v. 39b Crucificação 14.1-15.47
v. 40-42 Ressurreição, aparições, ordem missionária 16.1-20
Tudo tem seu início no acontecimento do Jordão. Logo que sai da água os
céus se rasgam e Jesus vê que o Espírito, como pomba, desce sobre ele, e escuta-se a
voz do céu: “Tú és o meu Filho amaro, em quem me comprazo” (1.10-11). Jesus é,
pois, o Ungido (Messias em hebraico ou Cristo em grego) com o Espírito; é o Messias
que vem para instaurar o Reino de Deus (1.14-15).
O termo “Filho do Homem” aparece oitenta e duas (82) vezes bem distribuídas
entre os quatro Evangelhos. Observamos, em primeiro lugar, que esse título nunca
aparece em nenhum dos Evangelhos como uma designação de outras pessoas aplicada
a Jesus. Em todas as narrativas encontramos somente o próprio Cristo utilizando -se
desse título. Ele demonstra um particular interesse por essa designação. 179 Esse título
176 ZUCK, Roy B. Teologia do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2010, pp. 79-81.
177 SCHIAVO, Luigi. Anjos e messias: messianismos judaicos e origem da cristologia. São Paulo: Paulinas,
2006, p. 37.
178 Ibidem.
179 RIBEIRO, Jonas Celestino. Os ensinos de Jesus – O Evangelho de Marcos. Rio de Janeiro: JUERP, 2000,
p. 49.
tem a vantagem de sugerir um papel messiânico, particular e misterioso (Dn 7.13 -14;
Mc 2.10,28; 8.31,38; 9.9,12,31; 10.33,45; 13.26; 14.21,41,62) .
Paradoxalmente o título ressalta a condição débil e limitada do ser humano. O
evangelista destaca claramente os traços humanos de Jesus: é um trabalhador cuja
família é bem conhecida (6.3); não pode fazer milagres por causa da incredulidade de
seus patrícios (6.5s); mostra diversos sentimentos humanos (3.5; 6.34; 8.2,12;
10.14,16,21; 14.34); faz perguntas (5.30; 8.5; 9.16-21).
Outro aspecto de Jesus como o Filho do Homem é que ele deve passar pela
humilhação, o sofrimento e a morte. Ele mesmo predisse (8.31; 9.31; 10.38s). Esse
caminho faz parte do desejo de Deus e foi anunciado pelas Escrituras (9.12; 14.21). A
morte de Cristo possui um caráter redentor (10.45; 14.24). A salvação, conquistada
pelo preço de sua própria vida, trará benefício a toda a humanidade (12.8-12; 13.10;
14.9).180
Mais um aspecto oculto e doloroso da pessoa de Jesus reflete-se em sua obra.
O Reino de Deus, que ele inaugura, possui origens modestas e difíceis. O capítulo das
parábolas traz esta afirmação (4.1-34). Seus discípulos somente podem segui-lo por
um caminho de humilhação, de desprendimento e de cruz (8.34s; 9.35; 10.15;
10.24s,29s,39; 13.9-13).
A narrativa marcana demonstra que os acontecimentos foram a confirmação
deste plano divino. Em Jesus, humanamente falando, encontramos somente
contradições e fracassos. É assim que Marcos destaca a insensibilidade das multidões
(4.12; 5.40; 6.2s), as hostilidades das autoridades judaicas (2.1-3,6; 3.22; 7.5; 14.1), a
incompreensão de sua própria família (3.21) e, por fim, a fraqueza de seus discípulos
(6.52; 7.18; 8.17s.21,33; 9.19,32,34; 10.38; 14.4s,27,30,37s,66-72).
De outro lado, Jesus como “o Filho do Homem”, manifesta, como adiantamos
acima, um mistério mais profundo. Ele é o misterioso personagem messiânico de
origem celeste anunciado em Daniel (7.13-14), o qual padecerá, morrerá, mas
ressuscitará (8.31; 9.9,31; 10.33-34) e virá na glória de seu Pai com os anjos (8.38),
sentado à destra de Deus sobre as nuvens e com grande poder (13.26; 14.62).
A chave para a compreensão desse Evangelho está na eminente dignidade de
Jesus e em sua condição menosprezada: Jesus é um Messias crucificado. Contudo, o
escândalo da cruz só pode ser compreendido através do fato de sua ressurreição
gloriosa.
evangelho (1.1); depois do batismo no Jordão (1.11); na transfiguração (9.7); nos dias
de sua pregação em Jerusalém (13.32); na confissão do centurião (15.39). 181
A realidade ontológica de ser “o Filho de Deus” se manifesta em poderes que
correspondem somente a Deus: perdoar os pecados (2.10-12); poder sobre o shabbát
(2.28; 3.1-5); expulsa os demônios (1.28.34; 3.11), conhece os segredos do coração
(2.8; 8.17; 12.15); prediz o futuro (8.31s; 10.39; 13.1ss); é Senhor das for ças da
natureza (4.41).182
Por fim, Jesus se apresenta como o Filho amado, o Herdeiro, a quem Deus
envia à sua vinha (12.6); ele é superior aos anjos (1.13; 13.32); em sua pessoa vem o
Reino de Deus (1.15), que será instaurado de maneira definitiva quando vier na glória
de seu Pai com os anjos (8.38s).183
184 CULLMAN, Oscar. A formação do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2001, p. 20.
185 BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 247.
V.1.1. Autoria
tradição da igreja antiga é que as informações dela são muito precisas, de maneira que
prometem fornecer, ao menos, boas coordenadas para nossas indagações.
V.1.2. Data
A data máxima para composição final deste Evangelho deve ser colocada em
115 d.C., quando Inácio, Bispo de Antioquia da Síria, referiu-se a ele em sua carta à
igreja de Esmirna. Do mesmo modo, como vimos, Eusébio menciona Clemente de
Roma como tendo feto referência ao Evangelho Segundo Mateus. Como Clemente
morreu por volta de 101 d.C., significa que este Evangelho não poderia de modo
algum ter sido escrito depois desta data.
A data mais antiga depende da datação que fizemos do Evangelho Segundo
Marcos, uma vez que ele forma a estrutura de nosso Mateus. Precisamos conceder
certo tempo para a composição e circulação de Marcos. Levando em conta esses
diversos fatores uma época antes de 60 d.C. seria difícil de ser defendida. 191
Há quem coloque a redação deste Evangelho para o início da década de 70 do
primeiro século.192 Outros advogam o surgimento do Evangelho entre os anos 80 a 90
d.C. Na nossa compreensão fica difícil aceitar uma data posterior a 70 uma vez que
Jerusalém já estaria destruída e o Evangelho desenvolve toda a sua narrativa como se a
cidade e o Templo ainda existissem. Podemos assumir uma data entre 63 e 67 d.C.
V.1.4. Propósito
Podemos dizer que Mateus faz fundamentalmente uma síntese a partir de dois
projetos anteriores, o Evangelho Segundo Marcos e o documento Q (Quelle). Esse
evangelista assume o Evangelho Segundo Marcos como referencial, o que resulta,
assim, em uma obra essencialmente narrativa, mas na qual inclui material discursivo
do documento Q.199
A leitura mais bem documentada de Mt 1.16 é “Jacó gerou José, o esposo de
Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo”. Existem leituras variantes desse
versículo: uma destinada a evitar chamar José de “esposo de Maria”, outra
preservando o padrão usual de X gerou Y, mas ainda assim chamando Maria de
virgem.
Em Mateus 6.13 temos o término “do Maligno, do mal”. De acordo com o
testemunho de importantes e antigos manuscritos alexandrinos e ocidentais, dentre
outros, bem como de comentários sobre o Pai-Nosso escritos por diversos Pais da
Igreja antiga, o texto termina com ponerou. Para adaptar essa oração ao uso litúrgico
na Igreja antiga, copistas acrescentaram vários finais diferentes, com destaque para os
seguintes: “pois teu é o reino, e o poder, e a glória para sempre, Amém”; “pois teu é o
reino e a glória para sempre. Amém”; e “pois teu é o reino e o poder e a glória do Pai e
do Filho e do Espírito Santo para sempre. Amém”.200
As denominações mais antigas de que temos conhecimento a partir dos
manuscritos são as seguintes:
KATA MAQQAION ¥B
euaggelion kata matqaion D f13 33 Û bo
euaggelion kata maqqaion W
agion euaggelion kata matqaion f1 al
arch sun qew tou maqqaion euaggelion 1241 al
ek tou kata maqqaion L al
A inscrição EUANGGELION KATA MAQQAION também foi preservada em
uma folha de papiros conexos î 4.64.67 com fragmentos de Mateus e Lucas do final do
século II. Essa forma longa também é sustentada pela tradução latina antiga, que
presumivelmente tenha surgido no último quartel do século II. 201
Na tabela abaixo estão dispostos os relatos que ocorrem exclusivamente no
Evangelho Segundo Mateus.202
Material Conteúdo
exclusivo
1.1-17 A genealogia real de Jesus
203 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 149, 150.
204 Idem, pp. 150-154.
Devemos incluir aqui as citações de cumprimento: 1.22; 2.5; 2.15; 2.17; 2.23;
4.14; 8.17; 12.17; 13.14; 13.35; 21.4; 27.9. São citações do Antigo Testamento
próprias de Mateus, que se caracterizam por uma reflexão introdutória do evangelista,
na qual se afirma explicitamente o cumprimento do texto das Escrituras hebraicas em
algum episódio da vida de Jesus.
Temos ainda a fórmula que está no final dos discursos de Jesus em 7.28; 11.1;
13.53; 19.1 e 26.1. É evidente a importância dessas fórmulas mateanas; servem tanto
para fechamento como transição. Além disso, modifica o ambiente ou o assunto.
Existem diversos outros recursos estilísticos, mas eles podem ser verificados à
medida que lermos e estudarmos o texto mesmo.
Enquanto Marcos termina seu relato de forma abruta, sem a descrição formal
da ressurreição, Mateus inclui um capítulo inteiro dedicado à volta de Jesus do mundo
dos mortos e à comissão final dada por ele aos discípulos. Mateus apresenta
basicamente cinco grandes blocos de material discursivo. A intensão de Mateus de que
esses cinco principais sermões de Cristo fossem vistos como unificados, intercalados
ao longo de sua narrativa, fica evidenciada por meio da repetição, já mencionada
acima, com que encerra cada um dos sermões: “Havendo Jesus concluído essas
palavras”.
Aqui também adotaremos a estrutura que procura demonstrar as diversas
etapas da vida de Jesus de acordo com o desenvolvimento natural do texto.
Estrutura do Livro.
I. A origem e a infância de Jesus, o Messias 1.1-2.23.
II. Início do Ministério de Jesus, o Messias 3.1-4.25.
III. A Ética do Reino de Deus 5.1-7.29.
IV. As obras poderosas de Jesus 8.1-9.34.
V. Jesus e seus pregadores missionários 9.35-10.42.
VI. As prerrogativas de Jesus, o Messias 11.1-12.50.
VII. Sete parábolas do Reino do Céu 13.1-52.
VIII. A rejeição de Jesus em Nazaré
e o martírio de João Batista 13.53-14.12.
IX. Jesus se retira dos domínios de Herodes 14.13-17.27.
X. A vida na comunidade messiânica 18.1-35.
XI. A viagem para Jerusalém 19.1-20.34.
XII. O Messias desafia Jerusalém 21.1-22.46.
XIII. O Messias denuncia os escribas e fariseus 23.1-39.
XIV. A queda de Jerusalém
o aparecimento do Filho do Homem 24.1-51.
Optamos por uma estrutura um tanto mais detalhada apenas por objetivos
didáticos.
(18) e que termina no Reino. A Igreja está aberta para todos os povos, fazendo aí uma
diferença com o Antigo Israel (21.43).209
Lembre-se de que Jesus chamou pessoas para o seguirem, formando um grupo
de fiéis, a quem chamou de discípulos (maqhth,j - mathetes), servos ou escravos (dou/loj
- doulos) e serviçais da casa (oivkiako,j - oikiakós) (10.25).210
Em Mateus, a Igreja é uma continuidade de Israel, enquanto povo separado
por Deus. Como novo povo de Deus, a Igreja é o lugar para congregar pessoas vindas
de todas as partes, gentios e judeus, em torno do Reino dos Céus (8.11). A Igreja e o
Reino de Deus são expressões que estão muito próximas, mas dizem respeito a
realidades distintas. O Reino é o domínio total de Deus sobre tudo o que existe; a
Igreja é a família composta pelas pessoas que entram no Reino e estão submissas ao
poder soberano de Deus. A Igreja, portanto, é o verdadeiro povo de Deus, pertencente
ao Messias.211
das promessas. No restante da obra, esse título ocorre poucas vezes (11.2 -3; 16.16;
26.63).216
Ainda na seção introdutória, junto ao título de Messias (Cristo), tem
importância fundamental o tema da descendência davídica de Jesus. Observamos isso
em 1.1,6,17,20; 2.6. O Evangelho Segundo Mateus é o texto de O Novo Testamento
que mais faz uso da expressão “Filho de Davi”; das nove vezes em que aparece no
Evangelho, sete foram introduzidas pelo seu redator, ou seja, por Mateus. O uso do
título Filho de Davi confirma o caráter judeo-cristão de Mateus.217
O ressuscitado ainda conserva a fisionomia do Mestre. Ele não envia os onze,
como aparece em Marcos e Lucas, Atos e João, como testemunhas da sua ressurreição,
ou para proclamar o evangelho. Jesus envia seus apóstolos para fazerem discípulos
Seus em todas as nações. Isto é, eles são enviados não apenas para ensiná-las, mas para
torná-las seus discípulos, ensinando-as a observarem tudo o que Jesus lhes havia
ensinado a observar (28.19s). O Jesus glorioso, ressuscitado, os reenvia para que
recordem seus ensinamentos, dados na condição terrena, antes da ressurreição.
Jesus é o único Mestre (23.10) capaz de iluminar, exortar, julgar e tornar leve
o jugo (11.28-30) da Igreja. Ele está constantemente presente, desde a encarnação,
quando se apresenta como Emanuel (VEmmanouh,l - Deus conosco, 1.23), no dia-a-dia,
quando garante “estar no meio” daqueles que se reúnem para orar (18.20), continuando
a assistência também após a ressurreição (“estarei com vocês todos os dias até a
consumação dos séculos”, 28.20).218
Para Mateus, em Jesus se realiza a presença de Deus (VEmmanouh,l) no meio de
seu povo e, consequentemente, esse novo povo de Deus se caracteriza por sua relação
com Jesus. Em 18.20, Jesus fundamenta o poder da comunidade e a eficácia de sua
oração na promessa de que, “onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí
estou eu no meio deles” (evkei/ eivmi evn me,sw| auvtw/n - ekei eimi em mesô autôn). Jesus,
que por seu nascimento humano era Deus-Conosco, continua agora desempenhando
esse mesmo papel para além de sua vida terrena. Mateus não diz que Jesus é Deus,
mas fala de tal forma que insinua sua pertença especial à esfera da divindade. Em 9.2
Jesus é acusado de blasfêmia por sua pretensão de perdoar os pecados, do que não se
retrata em absoluto.219
base nas obras de caridade. Não basta pertencer fisicamente à comunidade: tem-se o
chamado, mas ainda não se é eleito. A condição de eleito transparece diante de ações
cristãs concretas.220
Esse Evangelho traz cinco grandes discursos descritos em uma forma
característica de apresentação (Mt 5.1-2; 13.1-3, por exemplo). Ao terminar, Mateus
faz a conclusão do discurso com fórmulas fixas: “... concluindo Jesus este discurso”
(7.28; 19.1) ou “... acabando Jesus de dar instruções aos doze discípulos” (11.1; 13.53;
26.1). O conteúdo desses discursos é a ética. Nesse enfoque entendemos melhor o
sentido da afirmação de Jesus que veio para levar ao cumprimento a Lei (5.17-19), a
superação de certas normas mosaicas (5.21-48), isso não para atenuar, antes, para
realizar, de forma mais profunda, a vontade de Deus (19.8), concentrando-se no amor
que já era central no Antigo Testamento.221
Em Mateus, Jesus deixa claro que a fonte de todas as ações humanas, justas e
boas, consiste em três princípios elaborados em polêmica, contra uma religião
superficial e hipócrita: 1) a experiência religiosa dos discípulos de Jesus deve superar
o comportamento dos escribas e fariseus (5.20); 2) a experiência religiosa dos
discípulos deve levá-los a uma confiança tal no Pai dos céus, a ponto de acreditarem
na recompensa daquilo que é feito em segredo (6.4,6,18) e não se mostrarem religio sos
e piedosos aos outros, apenas pelas aparências (6.1,5,16); 3) essa experiência religiosa,
deve levar os discípulos a consagrarem sua vida, seguindo um só mandamento: amar a
Deus totalmente, na experiência concreta do amor aos irmãos (7.12) e não se deixarem
aprisionar na gaiola dos preceitos e de normas religiosas. 222
Contudo, se quisermos tratar de normas, podemos resumí-las em quatro
atitudes: o amor (ágape); a justiça, a retidão, a piedade (dikaiôsyne); a misericórdia
(heléos); o perdão (afiémi). Essas quatro atitudes, como essência da religião, são
aprofundamentos e princípios norteadores da vida moral e espiritual.
parte de seu Reino como quem convida para um baquete ou uma festa (8.11; 22.1-
14).224 A entrada no Reino de Deus se dá por meio do arrependimento (4.17). Isso
implica em uma vida que deve ser marcada por uma nova ética (conforme vimos
acima) que Jesus Cristo veio ensinar, baseada na nossa condição de sal da terra e luz
do mundo (5.13-14). Desse modo, a nossa justiça deve exceder a dos escribas e
fariseus (5.20). Um dia prestaremos conta de nossas atitudes e pensamentos, quando
do juízo eterno (12.36). Portanto, Jesus exige a renúncia total a todo o ti po de apego
aos valores seculares (16.24).225
V.3.3. Escatologia
Lucas é o pesquisador dos fatos. Este Evangelho é o mais longo dos quatro.
Contudo, é apenas a metade da grande obra lucana, uma vez que originalmente estava
unido aos Atos como a primeira parte de uma obra em dois volumes, cuja extensão é
maior que um quarto de todo O Novo Testamento. Uma narrativa magnífica que
conjuga a história de Jesus com a da Igreja dos primórdios. Lucas se distancia de
Marcos mais do que Mateus, e podemos dizer que teologicamente está a meio caminho
entre Marcos-Mateus e João. Certamente, ainda que todos os evangelistas sejam
teólogos, o número de obras sobre a teologia de Lucas é surpreendente.229
O estudo do Evangelho Segundo Lucas também será feito em três seções:
questões históricas, questões literárias e questões teológicas. Os objetivos continuam
sendo os mesmos.
Cabe ressaltar que durante o estudo de Lucas faremos algumas menções ao
Livro de Atos. Isto se justifica tendo em vista que, ao que tudo indica, trata-se de uma
obra que pretende dar continuidade ao Evangelho. Dessa forma, diversas questões
tratadas aqui no Evangelho Segundo Lucas servirão igualmente para o Livro de Atos e,
por isso, devemos aproveitar para trata-las em conjunto.
Vamos conhecer algumas questões históricas.
VI.1.1. Autoria
A tradição, desde Marcião e Irineu, no século II, identificou esse Lucas com o
companheiro de Paulo, médico, aquele de quem falam as cartas de Paulo (Cl 4.14; Fm
14; 2Tm 4.11), e até o século XIX não se duvidou dessa identificação. Irineu afirma
que “Lucas, o companheiro de Paulo, registra em um livro o Evangelho pregado por
ele”. Do mesmo modo, os testemunhos de Orígenes, Eusébio, Atanásio, Gregório de
Nazianzo, Jerônimo, e outros condizem com isso.231
Na atualidade prevalece a ideia de que o autor se chamava Lucas, pois este
nome nunca foi discutido na tradição; além disso, não pode ser pseudoepígrafe,
porque, neste caso, seria mais sensato atribuir a obra a um personagem de maior
relevância, como Pedro, Paulo, ou outro nome de maior destaque na Igreja Primitiva.
De igual modo, se aceita que o autor não foi uma testemunha direta de Jesus (Lc 1-4),
mas um cristão da segunda geração cristã; pessoa culta, familiarizada com a cultura
helenista e veterotestamentária, possivelmente nascida fora da Palestina e de origem
gentílica, relacionada com as igrejas paulinas, para as quais escreve. 232
O único conhecimento que temos sobre Lucas deriva de algumas passagens
nas epístolas paulinas (cf. acima). Das duas primeiras passagens (Cl 4.14; Fm 14)
resulta o seguinte: em primeiro lugar podemos afirmar que Lucas foi um dos
colaboradores de Paulo no trabalho missionário entre os gentios; em segundo lugar,
uma vez que em Cl 4.10s Paulo destaca os colaboradores da circuncisão de forma
específica, sem arrolar Lucas entre eles, podemos ter certeza de que ele era um gentio
cristão; do título de médico (Cl 4.14) podemos inferir que ele era cientificamente
instruído. A partir do texto de 2Tm 4.11 descobrimos que Lucas esteve com Paulo
enquanto ele estava preso em Roma pela segunda vez (por volta do ano 66). 233 As três
vezes em que Lucas é mencionado, Marcos também aparece, o que nos leva a crer que
os dois evangelistas se conheciam muito bem.
Os patriarcas da Igreja, Eusébio e Jerônimo, afirmam que Lucas era de
Antioquia, na Síria, o que bem pode ser verdade; contudo, também é possível que esta
afirmação se deva a uma variação do entendimento de Lucas a partir do nome Lúcio
(At 13.1) em vez de considerar o nome Lucanus.234
A ligação de Lucas com Paulo parece ter sido tão forte que o testemunho
antigo chega a afirmar que “A compilação de Lucas é frequentemente atribuída a
Paulo. E de fato é comum um discípulo publicar o trabalho de seu mestre”
(Tertuliano); e ainda “Lucas registrou certa quantidade de coisas em seu Evangelho à
medida que teve certeza delas através de seu conhecimento e familiaridade profundos
com Paulo, e sua ligação com outros apóstolos” (Eusébio). Por fim, vale mencionar
que Atanásio afirmou que o Evangelho Segundo Lucas foi ditado pelo apóstolo
Paulo.235
VI.1.2. Data
Se o Livro de Atos dos Apóstolos foi escrito por volta do final do primeiro
cativeiro de Paulo 62-63, o Evangelho deve ser situado antes disso. Se Lucas depende
de Marcos, deve ser situado depois da redação deste. Dessa forma, a redação do
Evangelho Segundo Lucas deve ficar situada depois do Evangelho Segundo Marcos e
antes de Atos dos Apóstolos. É provável que, durante os anos de prisão de Paulo em
Cesareia, Lucas tenha realizado suas investigações intensivas. Essa prisão pode ser
datada para os anos 57-59. Portanto, a redação deste Evangelho deve ter acontecido ou
durante esse período ou logo depois.236
Diversas fontes antigas citam como lugar da redação deste Evangelho a Acaia,
ou seja, a Grécia. Assim ocorre no prólogo monarquiano, Jerônimo e Gregório
Nazianzo. Alguns manuscritos sírios da Peshitta situam a redação em Alexandria.
Barth sugere Antioquia.237 Os diversos estudiosos modernos têm sugerido Roma,
Cesareia, Ásia Menor, Éfeso e Corinto.238
Da leitura de Atos 21 depreendemos que Paulo foi acompanhado por Lucas
quando retornou da terceira viagem missionária para Jerusalém. Assim, Lucas
presenciou a detenção do apóstolo, acompanhando-o dois anos mais tarde até Roma. É
provável que tenha ficado junto de Paulo até o martírio dele (2Tm 4.11). Como alguns
manuscritos já trazem Roma como lugar da redação, podemos indicar Cesareia, a
viagem para Roma ou a própria Roma.239 Há ainda quem fique mesmo com
Cesareia.240
VI.1.4. Propósito
cristãos, como um ente querido ou um amigo de Deus. Mas a opinião geral é, com
razão, de que se trata mesmo de um indivíduo.241
Percebemos facilmente que Teófilo é uma pessoa conhecida de Lucas, grego
ou romano. O fato de Lucas abordá-lo da mesma forma que Félix (At 23.26; 24.3) e
Festo (At 26.25), nos leva a concluir que Teófilo era uma pessoa de posição elevada.
Alguns sugerem até mesmo que ele tenha patrocinado a redação das duas obras.
Lucas escreve primordialmente para que Teófilo tenha um conhecimento mais
completo e satisfatório a respeito de Jesus Cristo. Pode ser que o destinatário tivesse
recebido informações rudimentares e Lucas pensava que fossem necessárias mais
instruções, ou possivelmente o próprio Teófilo tenha pedido ao evangelista para lhe
fornecer um relato mais adequado. Contudo, não resta dúvida de que Lucas tinha em
mente uma audiência mais numerosa que um único e “excelentíssimo” indagador.
Pode ser que o evangelista tenha percebido que a Igreja, como um todo, precisava de
um Evangelho mais completo do que aquele que existia na ocasião. 242
Material Conteúdo
exclusivo
1.1-4 Prólogo
1.5-25 Anúncio do nascimento de João Batista
1.26-38 O anjo anuncia a Maria o nascimento de Jesus
1.39-45 Visita de Maria a Isabel
1.46-56 Louvor de Maria
1.57-80 Nascimento de João Batista e louvor de Zacarias
2.1-7 Censo e nascimento na estrebaria
2.8-14 Anúncio do nascimento por meio de anjos e pastores no
245 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., pp. 367-368.
246 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 137.
247 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 167.
248 Idem, pp. 165-167.
campo
2.15-20 Pastores visitam o recém-nascido Jesus
2.21-40 Circuncisão de Jesus; sua apresentação no templo
2.41-51 O menino Jesus no templo aos 12 anos
3.10-14 João Batista responde à pergunta: “O que devemos fazer?”
3.23-38 Genealogia de Jesus (de sua mãe Maria)
4.16-30 “Sermão inaugural” de Jesus em Nazaré
5.1-11 A pescaria de Pedro
6.24-26 Os quatro ais
7.11-17 Ressurreição do jovem de Naim
7.36-50 Unção de Jesus pela pecadora
8.1-3 Mulheres na companhia de Jesus
9.51-56 Rejeição pelos samaritanos
10.1-12 O envio dos 70 discípulos
10.17-20 Retorno dos 70 discípulos
10.21-24 Bem-aventuranças de Jesus aos discípulos
10.30-37 A parábola do samaritano misericordioso
10.38-42 Jesus com Maria e Marta
11.5-8 O amigo suplicante
11.27-28 Quem pode se dizer feliz
12.13-21 Parábola do rico agricultor
12.47,48 “A quem muito foi dado, muito será exigido”
13.1-5 Os galileus vitimados. Torre de Siloé
13.6-9 Parábola da figueira estéril
13.10-17 Cura, no sábado, da mulher encurvada
13.22-30 Conclamação para a decisão correta
13.31-33 Inimizade de Herodes
14.1-6 A cura de um hidrópico no sábado
14.7-14 Da ordem hierárquica e seleção dos convidados
14.15-24 A parábola da grande ceia
14.28-32 Estimativa de custos para construir uma torre e para guerrear
15.8-10 A parábola da moeda perdida
15.11-32 A parábola do filho perdido
16.1-10 A parábola do administrador infiel
16.19-31 Lázaro e o homem rico
17.7-10 Trabalho indiscutível dos servos
17.11-19 A cura de dez leprosos
18.1-8 Parábola do juiz injusto e da viúva suplicante
18.9-14 A parábola do fariseu e do publicano
19.1-10 O publicano-mor Zaqueu
19.41-44 Jesus chora sobre Jerusalém
22.43,44 Um anjo fortalece Jesus no Getsêmani e agonia de morte
22.49-51 Pedro corta a orelha de um servo do sumo Sacerdote
23.7-12 Jesus perante Herodes
Observe que se trata de uma estrutura simples que abarca as grandes cenas da
narrativa lucana.
252 MORRIS, Leon L. Lucas: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 25, 26.
253 MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 375.
254 Idem, p. 378.
VI.3.1. A salvação
Se os sistemas humanos de salvação são parciais, uma vez que não cobrem
todas as necessidades do homem, com frequência marginalizam aqueles que não têm
meios salvadores (dinheiro, poder, prestígio), com o que produzem dor; pelo contrário,
a salvação que Jesus nos oferece é total, pois cobre todas as necessidades do ser
humano, e chega a todos, embora privilegiando os marginalizados e, por isso, é motivo
de alegria. É, portanto, universal por seu conteúdo e por seus destinatários. 262
O universalismo da salvação entra no plano de Deus como um elemento
essencial, desejado por si mesmo e não somente como consequência da rejeição que o
povo eleito fez de Jesus e de sua missão.263
Nesta perspectiva, Jesus não é somente descendente de Abraão, senão de
Adão, criado por Deus (3.38). Os anjos cantam lembrando-se do ser humano em geral
(2.14); a razão disto é que Jesus é um Salvador (2.11), e é uma luz para todas as
nações (2.32). João Batista prega que “toda carne verá a salvação de Deus” (3.6) e o
evangelho será proclamado a todas as nações (24.47). Diversos personagens não
judeus se beneficiam da salvação trazida por Jesus: o samaritano misericordioso
(10.25-27); o leproso samaritano (17.11-19); o centurião romano que tem fé em Jesus
(7.9), ou o centurião que reconhece a inocência do crucificado (23.47).264
Ainda temos a salvação oferecida aos pecadores, aos pobres e às mulheres.265
267 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 34.
268 MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 43.
269 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 35.
VI.3.5. A oração
Se no ensino acerca do Espírito Santo Lucas nos mostra que Deus leva a efeito
o Seu propósito; esta operação exige uma atitude da parte do povo de Deus.271 Dessa
forma, no Terceiro Evangelho encontramos o verbo “orar” até 19 vezes (1.10; 3.21;
5.16; 6.12,28; 9.18,28-29; 11.1,1,2; 18.1,10,11; 20.47; 22.40,41,44,46).
Lucas revela Jesus como “um homem de oração”, através da qual cultiva a
intimidade com o Pai. Ora no momento de seu batismo (3.21); durante seu ministério
(5.16); para escolha dos Doze (6.12); para multiplicação dos pães (9.16); antes da
confissão messiânica de Pedro (9.18); durante a transfiguração (9.28); durante a
dolorosa agonia no Getsêmani (22.39-44); e finalmente durante as horas em que esteve
pendurado na cruz (23.34, 46).272
282http://www.internetculturale.it/opencms/directories/ViaggiNelTesto/dante/print/c10.html Acesso em
06/02/2017.
Conhecemos diversas comunidades cristãs iniciadas por Paulo e outras que ele
visitou e solidificou na fé cristã, em sua segunda viagem missionária: Neápolis,
Filipos, Anfípolis, Tessalônica, Bereia, Corinto e, no retorno dessa viagem passou por
Éfeso. Paulo transformou essa última cidade em seu centro missionário,
aproximadamente por três anos. Não muito tempo depois, por volta dos anos 80,
algumas comunidades da Ásia Menor, por onde Paulo passou, continuaram a
caminhada cristã sob a orientação da escola joanina.
A realidade que essas comunidades viviam já não era a mesma do tempo de
Paulo. Ele abriu caminho para a fé cristã, enfrentou muitas dificuldades, sobretudo
com os judaizantes. João também enfrentou muitas dificuldades, porém de um novo
teor. As comunidades já haviam sido evangelizadas, já tinham recebido a fé cristã, mas
estavam sendo influenciadas por interpretações errôneas sobre Jesus e sua doutrina. Na
região da Ásia Menor cresciam com maior força os movimentos religiosos como a
religião dos mistérios e a gnose. Foi neste contexto que surgiu o Evangelho Segundo
João.
Denominado de “espiritual” desde a Antiguidade (Clemente de Alexandria,
segundo Eusébio de Cesareia) e reconhecido pela riqueza de sua teologia, o Quarto
Evangelho vale-se de sua forte reputação. Para alguns estudiosos, o Evangelho
Segundo João constitui a maior prova do ministério de Jesus, espécie de “supra-
evangelho”.
Assim como temos feito até aqui, estudaremos, em primeiro lugar, as questões
relativas à sua dimensão histórica. Depois nos centralizaremos em sua dimensão
literária, para concluir com alguns tópicos dedicados às questões teológicas.
VII.1.1. Autoria
que encontramos pela primeira vez as designações dos autores a que estamos
habituados: Mateus e João, que fazem parte do grupo dos Doze; Marcos e Lucas, que
não integram o colégio apostólico, mas têm autoridade em virtude da relação com
Pedro e Paulo, respectivamente. Dessa forma, o título “Segundo João” foi
acrescentado quando os quatro Evangelhos foram reunidos e começaram a circular
como uma coleção, para distingui-lo dos outros.283
O autor presumido do Quarto Evangelho é identificado com um dos
personagens mais familiares dos Evangelhos sinóticos: João, filho de Zebedeu,
membro do colégio dos Doze, mencionado com frequência ao lado de seu irmão,
Tiago, e em companhia de Pedro. Apesar de o Evangelho não mencionar o nome do
autor, ele confessa sua dívida para com um personagem misterioso, o Discípulo que
Jesus amava.284
O Discípulo que Jesus amava aparece três vezes na última parte da narrativa
do Evangelho. Ao final da última Ceia, surge como intermediador entre Pedro e Jesus
(13.23-26). Sua intimidade com Jesus é ressaltada duas vezes: ele não só está sentado
ao lado de Jesus (v.23), como ainda se reclina sobre seu peito, em uma atitude que
lembra a do herdeiro no momento em que recebe as últimas palavras do mestre ou do
pai. Cabe a ele, portanto a honra de fazer a Jesus a pergunta constrangedora, mas
decisiva, a respeito da identidade do traidor.285
A identificação do Discípulo amado com João, o filho de Zebedeu, tem sido
fundamentada em bases positivas e negativas. Do lado negativo, está a ausência do
nome de João neste Evangelho (e de seu irmão Tiago), exceção feita para a afirmação,
no início do Epílogo, de que os “filhos de Zebedeu” estavam entre os sete discípulos
que se encontraram com o Senhor ressurreto (21.2). Do lado positivo , está a presença
do Discípulo amado na última Ceia.
Se for correto concluir de Marcos 14.17 (e paralelos sinóticos) que somente os
doze estiveram com Jesus ali, então o Discípulo amado era um dos doze – certamente
não Pedro, de quem ele é distinguido em 13.24, e provavelmente nenhum dos outros
discípulos mencionados pelo nome em 13.17. Na mesa da Ceia (13.24), no túmulo
vazio (20.2-10) e à beira do lago (21.7,20) o Discípulo amado é associado de maneira
especial com Pedro; João consta repetidas vezes como companheiro de Pedro nos
primeiros tempos da igreja (At 3.1-4,23; 8.15-25; Gl 2.9).286
Como testemunho externo temos, como já foi mencionado, desde Irineu a
afirmação de que o autor do Quatro Evangelho é João, o filho de Zebedeu. 287 Em sua
obra Contra as heresias (III, 1.1) ele escreve: “Depois disso João, o discípulo do
Senhor, que também jazia em seu peito, publicou por sua vez o evangelho, enquanto
283 BRUCE, F. F. João: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1987, p. 11.
284 BLACHARD, Yves-Marie. São João. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 12.
285 Idem, p. 14.
286 BRUCE, F. F. Op Cit., p. 13, 14.
287 BROWN, Raymond E. El Evangelio Según Juan. Madrid: Ediciones Cristandad S.A., 1999, p. 111.
residia em Éfeso na Ásia Menor”. Em outra passagem, Ireneu afirma que João
escreveu o evangelho contra o falso mestre daquele tempo, Cerinto, e contra a heresia
dos nicolaítas (III, 11.1).288
No Cânon de Muratori, a passagem dedicada ao Quarto Evangelho está assim
redigida: “O quatro evangelho é de João, um dos discípulos. Como o exortassem seus
bispos e condiscípulos, disse-lhes: ‘Jejuai comigo a partir de hoje durante três dias e
narraremos uns aos outros o que nos for revelado’. Na mesma noite, revelou-se a
André, um dos apóstolos, que João deveria escrever tudo em seu próprio nome com o
aval de todos”.289
Além disso, temos os testemunhos do Prólogo antimarcionista, Papias,
Eusebio, Taciano, Teófilo de Antioquia, Tertuliano, Orígenes e ainda o Prólogo
monarquiano. Neste último podemos ler: “Esse é o evangelista João, um dos discípulos
de Deus [...] Escreveu, porém, esse evangelho na província da Ásia, depois que havia
escrito o Apocalipse na ilha de Patmos [...] E é aquele João que, sabendo que havia
chegado o dia de falecer, reuniu seus discípulos em Éfeso e através de muitas
demonstrações de milagres, revelando a Cristo, desceu ao lugar escavado para seu
sepultamento e, depois de fazer um discurso, foi reunido a seus ancestrais [...] Embora
tenha escrito seu evangelho depois de todos os outros, apesar disso é colocado depois
de Mateus na sequencia do cânon ordenado”.290
O período de vida do apóstolo João tem seu início perto do século I e vai até o
século II. Ele era galileu e, de acordo com a tradição, da cidade de Betsaida, que ficava
na margem ocidental do mar da Galileia, não muito longe de Cafarnaum e Corazim.
Seu pai era Zebedeu; sua mãe, Salomé (Mc 16.1; Mt 20.20), estava entre as mulheres
que apoiaram o Senhor com seus recursos (Lc 8.3) e compareceram à crucificação dele
(Mc 15.40). Dessa forma, sua família não era desprovida de recursos materiais.
Zebedeu era um pescador e tinha empregados contratados para ajuda-lo com seu
trabalho (Mc 1.20). Salomé ministrava para Jesus, e parece que João tinha sua própria
casa (Jo 19.27). Tão logo conheceu Jesus, ele tornou-se seu entusiástico discípulo. A
tradição comumente recebida, conforme pode ser observado acima, retrata-o
encerrando sua carreira apostólica na Ásia e em Éfeso. 291
VII.1.2. Data
1, 2.
na metade do século II. Os estudiosos que defendem a data mais antiga, o fazem com
base nas descobertas arqueológicas na antiga colônia grega de Pella.292 Os estudiosos
que defendem uma data mais recente deveriam levar em conta o î52 . Talvez o
argumento mais decisivo contra uma datação tardia tenha sido a descoberta de diversos
papiros datados do início do século II.293 Roberts publicou um dos papiros John
Ryland, um fragmento de João 18.31-33, 37-38, que foi paleograficamente datado por
volta de 125 d.C. O período de circulação da cópia teria que ter começado décadas
antes desta data.294
Existem inúmeras comprovações na Igreja antiga de que a permanência de
João na ilha de Patmos deve ter ocorrido sob o imperador Domiciano (81 -96) e que
João viveu até o período do imperador Trajano (98-117). Além disso, nos foram
legadas muitas provas que situam o Evangelho Segundo João claramente mais tarde
que os Evangelhos Sinóticos. Em João 21.19 já se pressupõe a morte de Pedro. João
21.23 parece ter sido escrito muito mais tarde, do contrário teria sido necessária uma
explicação.295
Ademais, o Evangelho Segundo João pressupõe que o leitor esteja
familiarizado com os Evangelhos Sinóticos. Pessoas conhecidas desses Evangelhos
não são mais apresentadas de forma especial, enquanto, por exemplo, para Nicodemos
se tornou necessária uma descrição precisa. Esses pensamentos possuem um peso
muito grande para favorecer uma datação para o último decênio do século I, isto é, em
torno do ano de 95 d.C.296
292 EARLE, Ralph; MAYFIELD, Joseph H. Comentário Bíblico Beacon. Volume 7. Rio de Janeiro: CPAD,
2015, p. 22.
293 BROWN, Raymond E. El Evangelio Según Juan. Madrid: Ediciones Cristandad S.A., 1999, p. 104.
294 PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento no Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008,
p. 153.
295 Veja ainda BROWN, Raymond E. El Evangelio Según Juan. Madrid: Ediciones Cristandad S.A., 1999, pp.
100-109.
296 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 268.
Evangelho foi redigido na cidade de Éfeso, a pedido dos amigos mais íntimos de João,
os quais queriam ter o ensino oral dele registrado para o uso permanente da Igreja. 298
VII.1.4. Propósito
KATA IWANNHN ¥B
euaggelion kata Iwannhn î66 î75A C D L Ws Q Y
f1 33 Û vgww
agion euaggelion kata Iwannhn (28) al
arch tou kata Loukan agiou euaggelion 1241 pc
Da mesma forma como ocorre nos Evangelhos de Marcos e Lucas, no Códice
¥ também encontramos na subscriptio a forma longa EUAGGELION KATA
IWANNHN. A mais antiga atestação segura do Novo Testamento, como vimos acima,
refere-se de um recorte de cinco versículos do Evangelho Segundo João (18.31 -33, 37-
38), trata-se do papiro î52 (fragmento John Ryland). Justamente o Evangelho mais
atacado pelo método histórico-crítico possui a atestação extraordinariamente antiga e
sólida. Tudo o que consta nos manuscritos refletem tradição antiga e forte da autoria
apostólica da obra.304
Cabe ressaltar aqui a perícope da adúltera (7.53-8.11). O trecho não consta em
importantes manuscritos antigos, sem que apresentem um indício dele ou uma lacuna:
î66 î75¥ B T W X Y e muitos outros. Parece estar ausente em C. 305 As versões
Almeida Revista e Atualizada e a Bíblia na Linguagem de Hoje colocam estes
versículos entre colchetes com a observação de que “não fazem parte do texto grego
original”. A Bíblia de Jerusalém acrescenta a isto, em nota de rodapé a seguinte
informação: “sua canonicidade, seu caráter inspirado e seu valor histórico, no entanto,
não sofrem contestação”.306
dialetos gregos anteriores. Era uma espécie de língua franca utilizada no território
mediterrâneo como veículo de comunicação.308
Podemos dizer ainda que o grego de João – em contraste com o de Lucas –
representa mais bem a koiné falada e popular do que a literária. Estamos mais
próximos da linguagem de uma criança do que da de um adulto instruído. Ainda que o
grego do Evangelho Segundo João seja correto, ele é bastante pobre do ponto de vista
literário: encontramos somente umas 1.000 (ou 1.011) 309 palavras diferentes ao longo
de todo o texto e a frase mais longa do evangelho está em 13.1. Percebe-se assim que o
vocabulário é escasso. As mesmas expressões ocorrem continuamente. 310
Este evangelho tem um estilo direto e uma sintaxe bastante elementar. Abunda
o chamado presente histórico, mais do que no Evangelho Segundo Marcos, e as frases
se ligam muitas vezes através da conjunção kai, (kaí – e). Em outras ocasiões as frases
simplesmente se justapõem sem partícula alguma que as enlace. 311
Além de o vocabulário ser muito limitado, ele é muito unitário. Não
encontramos diferenças de estilos de acordo com os personagens. Há mais, não existe
uma distinção clara entre a linguagem do narrador ou do evangelista e a linguagem de
Jesus. No Evangelho, inclusive Jesus fala exatamente igual ao autor e também de
forma muito parecida ao mundo conceitual das cartas joaninas: utiliza os mesmos
vocábulos, os mesmos movimentos, tem o mesmo estilo. Por causa disso, em alguns
fragmentos torna-se difícil saber se é Jesus quem fala ou se é o evangelista ou mesmo
outros personagens. Para comprovar isto basta uma leitura atenta de João 3. 312
Ao que já foi dito podemos acrescentar que em umas poucas seções os
estudiosos descobrem um estilo poético formal, caracterizado inclusive por estrofes,
por exemplo, no prólogo e, talvez, no capítulo 17. Encontramos também uma
combinação particular de duplo sentido e mal-entendido quando os adversários de
Jesus formulam juízos sobre ele, declarações sarcásticas, incrédulas ou, ao menos,
inadequadas ao sentido que pretendiam. Ironicamente, contudo, esses juízos muitas
vezes são verdadeiros e tem mais sentido com um significado que os interlocutores
não chegam a captar.313
O Evangelho oferece muitos vocábulos hebraicos e aramaicos, alguns dos
quais o autor traduz para seus leitores, que não conheciam essas línguas: Rabbi (1.38);
Amém, amém (1.51) (25 vezes); Messias (1.41; 4,25); Kéfas (1.42); Bethesda (5.2);
308 TUÑI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joánicos y cartas católicas. Espanha: Editorial Verbo
Divino, 1995, p. 19, 20.
309 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 44.
310 VINCENT, Marvin R. Op Cit., p. 16.
311 TUÑI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Op Cit., p. 20.
312 Idem, p. 21.
313 BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo Testamento I: cues tiones preliminares, evangelios y obras
Manná (6.31, 49); Siloam (9.7); Thomas (11.6; 21.2); Hosanna (12.13); Gabbathá
(19.13); Golgotha (19.17); Rabbouni (20.16).314
O Evangelho Segundo João possui características peculiares facilmente
identificáveis. Uma vez lido em comparação com os sinóticos percebemos que existem
expressões que aparecem somente em João: “em verdade, em verdade... vos digo, te
digo”; “respondeu e disse”; “acreditar em”; “dar testemunho”; “dar a vida”, etc.315
Como conclusão, podemos perceber que se detecta uma pessoa que, pensando
com mentalidade semita, escrevia ou ditava em grego.316
VII.3.1. Deus
VII.3.2. Jesus
320 KÖSTENBERGER, Andreas J. Pai, Filho e Espírito: a trindade e o evangelho de João. São Paulo: Vida
Nova, 2014, p. 61.
321 ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 30.
322 Ibidem.
323 Para uma exposição completa a respeito da Trindade e o Evangelho de João veja KÖSTENBERGER,
Andreas J. Pai, Filho e Espírito: a trindade e o evangelho de João. São Paulo: Vida Nova, 2014.
324 LADD, George Eldon. Op Cit., p. 356.
325 DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977, p. 27.
326 ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 31.
que batiza com o Espírito Santo” (1.33). Batizar é lavar, limpar, purificar. Como Jesus
purificará com o Espírito?336
A resposta pode ser obtida em determinados textos-chaves do Antigo
Testamento, particularmente de Ezequiel, quem nos dá a formulação mais precisa (Ez
36.26-27; cf. Is 32.15-19; 44.3-5).337
É assim que, a missão do Jesus-Messias, o Servo de Deus, será purificar, lavar,
batizar aos homens nesse Espírito, com esse Espírito, mediante esse Espírito, com a
dádiva desse Espírito divino.338 A dádiva desse Espírito e a subsequente bênção aos
homens encontram-se refletida em outra declaração: “Quem crê em mim, como diz a
Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre” (7.38). A explicação está no
próximo versículo (7.39). O Espírito viria para assumir o lugar de Jesus e para
capacitar os discípulos, a fim de que estes fizessem o que não poderiam fazer por si
mesmos, ou seja, levar os homens à fé e à vida eterna. 339
É assim que, na segunda metade do Evangelho as referências ao Espírito
aumentam drasticamente, tanto em número quanto em importância, em consonância
com o papel fundamental do Espírito na missão dos discípulos depois da partida de
Jesus e de seu retorno a Deus-Pai.340
A água que Jesus promete à samaritana é símbolo do Espírito Santo. Essa água
viva, misteriosa por sua origem, uma vez que não vem de um poço, mas que Jesus a
dá, é também misteriosa por sua natureza, pois é “o dom de Deus” que saciará a sede
para sempre; mais ainda, se converterá, naqueles que a beberem, em uma fonte a jorrar
para a vida eterna (4.10-14). Esse dom de Deus está no crente como principio
dinâmico de um culto novo e autêntico, próprio da era messiânica instaurada por Jesus.
É o que anunciam as palavras de Jesus em 4.23.341
que tira o pecado do mundo” (1.29), ou seja, o pecado enquanto tal, em sua totalidade
e em sua universalidade.342
Os samaritanos confessam: “[...] este é verdadeiramente o Cristo, o Salvador
do mundo” (4.42). Jesus mesmo disse: “[...] tenho outras ovelhas que não são deste
aprisco; também me convém agregar estas, e elas ouvirão a minha voz, e haverá um
rebanho e um Pastor” (10.16).343
Todavia, esse universalismo salvífico estava dependendo da doação de sua
própria vida. O Evangelista já descortina na palavra do Sumo Sacerdote: “[...] nos
convém que um homem morra pelo povo e que não pereça toda a nação” (11.50), uma
profecia segundo a qual “[...] Jesus devia morrer pela nação. E não somente pela
nação, mas também para reunir em um corpo os filhos de Deus que andavam
dispersos” (11.51-52).344
O próprio Jesus faz esse anúncio quando diz: “[...] o pão que eu der é a minha
crne, que eu darei pela vida do mundo” (6.51). No domingo da festa (12.20) Jesus
proclama solenemente a fecundidade de seu sacrifício na cruz: “Na verdade, na
verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas,
se morrer, dá muito fruto... Agora, é o juízo deste mundo; agora, será expulso o
príncipe deste mundo. E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim”
(12.24, 31-32).345
Todas essas passagens a respeito do futuro rebanho único e universal, unidas
aos textos sobre os discípulos enviados (4.35-38; 17.20-21) com o poder de perdoar os
pecados (20.21-23), fundamentam a eclesiologia do Quarto Evangelho. 346
348 Ibidem.
349 Ibidem.
350 Ibidem.
351 LADD, George Eldon. Op Cit., p. 338.
352 Ibidem.
353 BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Editora Academia Cristã, 2008, p. 453.
gênero humano (12.19; 18.20; 7.4; 14.22). 354 O mundo (kosmos) jaz no maligno; mas é
da salvação que ele carece.355
Com o objetivo de resumir o conceito de Dualismo Joanino, uma vez que o
objetivo deste trabalho não é o de uma “Teologia do Novo Testamento”, podemos
salientar que a forma estilística é a expressão para a concepção dualista básica; é a
pressuposição dos discursos de revelação. A ela também correspondem os termos
antitéticos, que perpassam esses discursos: luz e trevas, verdade e mentira, em cima e
embaixo (ou celestial e terreno), liberdade e escravidão. 356
Certo estudioso afirmou que é muito estranho ler um livro que traz em seu
encerramento um advérbio. É o que ocorre com o Livro de Atos que , em grego,
encerra-se com akolutos (avkwlu,twj), um advérbio que pode ser traduzido por
“desimpedido”, “desimpedidamente”. Segundo este mesmo estudioso, parece ser essa
a ideia central do segundo volume da obra de Lucas, mostrar que o evangelho
alcançou a liberdade, mesmo a muito custo.357
De todos os textos do Novo Testamento, o livro Atos dos Apóstolos – ou
simplesmente Atos, ocupa uma posição ímpar. É o único livro que tenta apresentar
uma narrativa histórica dos tempos imediatamente seguintes à ascenção de Cristo aos
céus. Esse segundo volume da obra de Lucas retoma a narrativa onde o primeiro
terminou. É de extrema importância o estudo desta obra, uma vez que muita coisa do
Novo Testamento só é compreensível quando vista à luz do pano de fundo histórico
encontrado no segundo livro de Lucas.358
Conforme salientamos acima, durante o estudo de Lucas fizemos algumas
menções ao Livro de Atos. Deve ter ficado evidente que o estudo do Terceiro
Evangelho está necessariamente ligado a um estudo de Atos. Que o mesmo autor
escreveu ambos os livros, é amplamente aceito. As duas obras iniciam sendo
endereçadas à mesma pessoa, Teófilo (Lc 1.1-4; At 1.1). No prefácio de Atos, o autor
faz referência ao primeiro volume (tratado), a respeito da vida de Jesus. Além disso,
temos a semelhança de estilo e vocabulário.
Para encerrar com o mesmo padrão que iniciamos, vamos às questões
históricas.
VIII.1.1. Autoria
Mesmo sabendo que estamos diante de duas obras com uma mesma autoria,
tanto Lucas quanto Atos são anônimos, no sentido estrito da palavra. Tomando por
base o prefácio de Lucas, com o qual o autor provavelmente pretendeu introduzir tanto
357 STAGG, Frank. Atos: a luta dos cristãos por uma igreja livre e sem fronteiras. Rio de Janeiro: JUERP,
1994, p. 15.
358 HALE, Broadus David. Op Cit., p. 169.
seu Evangelho como Atos, nós podemos concluir que o autor foi pessoa de boa
cultura. O grego de Lucas 1.1-4, como vimos, é grego literário de bom nível. Disso
resulta que não deve ter sido um dos apóstolos ou discípulos originais de Cristo – o
próprio autor escreve das coisas que “nos transmitiram os que desde o princípio foram
deles testemunhas oculares e ministros da palavra” – mas mesmo assim pode ser
alguém que participou de alguns dos eventos que narra – “fatos que entre nós se
realizaram”. Perecebemos que o autor tem conhecimento do Antigo Testamento na
versão dos LXX, além de possuir um ótimo conhecimento das condições políticas e
sociais vigentes em meados do século I e tem o apóstolo Paulo em alta estima.359
Outra inferência bastante comum sobre o autor procede dos trechos que
empregam o pronome “nós” em Atos. São quatro trechos em que o autor passa da
narrativa na terceira pessoa “eles” para uma narrativa na primeira pessoa do plural
(16.8-10 é a primeira delas). Ademais, parece que o autor acompanhou Paulo até
Roma e provavelmente esteve com o apóstolo durante os dois anos em que este esteve
sob prisão domiciliar em Roma.360
Desde o segundo século afirma-se que Lucas, o médico amado (Cl 1.14)
também foi o autor de Atos. O prólogo antimarcionista de Lucas (160 -180 d.C.)
identifica o autor do Evangelho como sendo Lucas, uma pessoa de Antioquia da Síria,
e médico de profissão. Além disso, adiciona que “o mesmo Lucas posteriormente
escreveu os Atos dos Apóstolos”. Do mesmo modo, o Cânon Muratori (170 d.C.)
afirma que “Lucas compilou para ‘o mui excelente Teófilo’ aquelas coisas que se
deram em detalhe em sua presença. Tanto Ireneu quanto Clemente de Alexandria, de
modo explítico, admitem Lucas como o autor de Atos. 361
Além dos testemunhos externos mencionados acima ainda temos Tertuliano
(Adv. Marc. 4.2) e Eusébio (H.E. 3.4; 3.24.25).362 Um pouco mais tarde também
testemunham Cosmas Indicopleustes e George Hamartolos. Jerônimo ainda acrescenta
que a data da redação deve ter ocorrido por volta do final da prisão de dois anos de
Paulo.363
Não existe motivo para negar que o autor de Atos foi um companheiro de
Paulo; de igual modo o testemunho da Igreja antiga deveria ser suficiente para
continuarmos afirmando a autoria lucana.
VIII.1.2. Data
359 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 208, 209.
360 Idem, p. 209.
361 STAGG, Frank. Op Cit., p. 33.
362 CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 210.
363 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 273.
ocasião afirmamos que o livro dos Atos dos Apóstolos foi escrito por volta do final do
primeiro cativeiro de Paulo 62-63. Podemos afirmar com absoluta certeza que só foi
redigido depois de 62 d.C. (a história termina em 62, com a primeira prisão de Paulo
em Roma). A narrativa de Lucas termina com Paulo preso (At 28.30-31). A maneira
abrupta de encerrar pode ser mais bem compreendida justamente pelo fato de Atos ter
sido escrito antes do aparecimento de Paulo perante Nero. Não seria natural um livro
ser terminado assim, se o autor tivesse conhecimento de que Paulo havia sido solto.
Outra argumentação é que não há nenhuma insinuação de que a Guerra Judaico-
Romana (66-70 d.C.) já se havia iniciado ou de que Jerusalém havia sido destruída (70
d.C.). Por causa de tudo isso nós sugerimos mesmo que o livro de Atos dos Apóstolos
deve ter sido redigido por volta de 62-63 d.C.
VIII.1.4. Propósito
Precisamos admitir que, por vezes, uma obra pode abarcar uma diversidade de
propósitos. Atos talvez seja o melhor exemplo desta afirmação no Novo Testamento.
Com certeza isso depende muito das pressuposições do leitor que, muitas vezes,
podem extrapolar a intenção do atutor. Devemos tomar cuidado com isso. Os leitores
em geral enchergam em Atos o livro da história da igreja primitiva. Devemos ter em
mente novamente que se trata da segunda parte de uma obra em dois volumes, e que,
os propósitos de ambas podem estar interligados. Na realidade, os estudiosos têm
enfatizado em geral os seguintes propósitos: apologético, teológico, didático, história
dos começos do cristianismo, confirmação do Evangelho e foco na salvação. Vejamos
cada um desses propósitos ainda que de forma resumida.
Alguns autores advogam a teoria de que Lucas pretendia defender o
apostolado de Paulo, complementando, assim, com base histórica, as defesas do
próprio Paulo em tais cartas como Gálatas e 2 Cortíntios. Além disso, muitas vezes
acrescenta-se a ideia de que Lucas-Atos tenha sido escrito como um dossiê jurídico
para o primeiro julgamento de Paulo em Roma, com o objetivo de demonstrar que o
apóstolo não se envolvera com atividades anti-romanas, uma vez que esta seria a
principal acusação a ser levantada contra ele pelos seus compatriotas judeus. 365
Veja na tabela abaixo as comparações que podem ser feitas entre o ministério
apostólico de Pedro e de Paulo.366
Quanto ao propósito teológico, não resta dúvida de que uma obra do Novo
Testamento o tenha. Mas aqui se defende a ideia de que a afirmação teológica primária
que Lucas tentava fazer através de sua obra em dois volumes era a continuidade do
Reino de Deus no livro de Atos. De fato, o segundo volume começa com uma
pergunta escatológica (1.6) e encerra com terminologia escatológica (28.31). Afirma-
se, portanto, que Lucas pretendia explicar o relacionamento entre a Igreja e o Reino de
Deus, ou seja, como a mensagem do Reino soberanamente passara de um fenômeno
principalmente judaico para um movimento principalmente gentílico, com seu centro
passando de Jerusalém para Roma.367
Lucas, ao mencionar “o primeiro tratado” que compôs, referiu-se a esse
propósito declarado em seu Evangelho, isto é, apresentar um relato preciso e
sistemático do desenvolvimento do cristianismo. No Evangelho, ele narra as palavras e
as obras de Jesus Cristo, e em Atos, ele narra a obra do Cristo Ressurreto levada a
cabo por meio dos Seus apóstolos e discípulos. A intenção do evangelista era que
Teófilo e outros leitores conhecessem plenamente as coisas em que foram instruídos.
Lucas escreve tendo em vistas o fortalecimento e a edificação.368
Lucas parece que procurava escrever a história dos começos do cristianismo
em amplo sentido. O evangelista reúne juntamente a história de Jesus Cristo e a
história da Igreja primitiva. Além disso, ele considera que essas duas obras juntas
formam a narrativa da fundação da Igreja. Ele quer explicar como tiveram início as
369 MARSHAL, I. H. Atos: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1991, p. 17.
370 MARSHAL, I. H. Op Cit., p. 18.
371 Idem, p. 19, 20.
372 MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 272.
praxeij twn agiwn apostolwn suggrafeis para tou agiou Louka tou
apostolou kai euaggelistou 1704
Conforme podemos observar, exceto alguns manuscritos tardios, não consta
nenhum nome de autor no título, “não porque se estivesse incerto quanto ao autor, mas
porque o tíeulo deve ser de uma época em que o evangelho de Lucas e Atos ainda
eram transmitidos como uma só obra dupla”.373
Ainda que o título não seja preciso, uma vez que o livro se concentra nas
atividades de apenas dois dentre treze indivíduos reconhecidos como apóstolos, Pedro
e Paulo, e dedica porções consideráveis a não-apóstolos, como Estêvão e Filipe, o
título é perfeitamente aceitável, visto que os apóstolos foram os instrumentos através
dos quais Jesus Cristo deu prosseguimento na difusão da mensagem do Reino de
Deus.374
O texto alexandrino é representado principalmente pelos papiros î45 (s. III),
î74 (s. VII) e pelos manuscritos Sinaítico (¥), Vaticano (B), Alexandrino 9ª),
Ephraemi Rescriptus (C) e outros. Trata-se de um texto breve que costuma ser
considerado autêntico até mesmo pela maioria dos críticos. O texto ocidental, a seu
turno, é representado pelos papiros î38 (s. IV), î48 (s. III) e especialmente pelo
manuscrito Codex Bezae Cantabrigiensis (D), além da Vetus Latina (s. II/IV). Possui
um texto quase 1/10 mais amplo que o anterior, com aproximadamente 400 adições
nas quais atenua as dificuldades, corrige as inexatidões, oferece detalhes pitorescos,
inclusive textos litúrgicos. A linguagem, por vezes, é vulgar e possui diversos
semitismos; as citações bíblicas são tomadas de um texto bastante diferente da LXX;
teologicamente ressalta as figuras de Pedro e Paulo e, pelo contrário, apresenta de
forma negativa o povo judeu. É um texto bem difundido tanto no oriente quanto no
ocidente, remonta a meados do século II e parece ser tão antigo como o anterior .
Atualmente, as edições críticas dos manuais reproduzem o texto alexandrino e
suprimem como não autênticos 8.37; 15.34; 24.6b-8a; 28.29.375
Observamos que, até o final da obra, o texto está muito bem travado por uma
sequência geográfica sem solução de continuidade, na qual os acontecimentos vão
sendro entrelaçados a partir da atividade missionária do apóstolo Paulo, livre, até a sua
chegada em Roma, aprisionado.380
Ainda pensando que Lucas serviu a Paulo como seu fiel companheiro, seus
escritos parecem não ser dependentes das epístolas que o apóstolo enviou para várias
igrejas e pessoas. Quando Lucas escreveu Atos, Paulo já havia escrito muitas de suas
cartas. Contudo, em Atos, o propósito de Lucas parece ser escrever tanto como
historiador quanto como teólogo. Encontramos diversos aspectos da teologia que
podemos dizer ser propriamente lucana.381
Já vimos um aceno à teologia da obra de Lucas quando analisamos o seu
Evangelho. Tudo o que foi dito acima vale também para o segundo volume da obra.
Aproveitaremos o espaço aqui para ressaltar melhor alguns pontos de interesse
teológico.
Como vimos quanto aos propósitos, o livro de Atos quer fornecer um esboço
da história da Igreja desde seus primeiros dias, em Jerusalém, até a chegada de seu
maior personagem – Paulo – na principal cidade do Império Romano. Assim,
teologicamente, Lucas quer demonstrar como isso aconteceu através da atuação do
Espírito Santo na vida dos primeiros discípulos. Antes é claro, é vejamos a
importância da ressurreição de Cristo nesta obra lucana.
381 KISTEMAKER, Simon J. Exposicion de los Hechos de los Apóstoles. Espanha: Libros Desafío, 2001, p. 25.
382 LADD, George Eldon. Op Cit., p. 454.
383 Idem, p. 455.
384 Idem, p. 456.
O Espírito Santo é quem conduz a ação da comunidade cristã nos Atos dos
Apóstolos, guia os apóstolos enviados e irradia a Palavra de Deus de “Jerusalém até
Roma”. Por 52 vezes o Espírito é mencionado como condutor da ação nos Atos dos
Apóstolos. Aqui o Espírito é “o grande personagem”. Na primeira parte de Atos (At
1.1-15.35), o Espírito Santo é mencionado 19 vezes, enquanto na segunda parte (At
15.36-28.31) aparecem 11 referências.
A vida da Igreja foi dirigida por Deus em etapas cruciais. Às vezes o Espírito
dirigia a Igreja naquilo que deveria fazer (13.2; 15.28; 16.16). Em outras ocasiões,
anjos falavam a missionários cristãos (5.19-20; 8.26; 27.23), ou vieram mensagens
através dos profetas (11.28; 20.11-12). Em algumas ocasiões, o próprio Senhor
aparecia aos Seus servos (18.9; 23.11).385
VIII.3.4. Os marginalizados
VIII.3.5. A Igreja
Segundo os Atos dos Apóstolos, uma das colunas mestras que sustentava a
vida das primeiras comunidades cristãs era a oração. Oravam juntos (12.12) e
cultivavam um novo ambiente na vida em comum. Perseveravam na oração (1.14;
2.42; 6.4; 10.2) nas casas, no Templo (3.1), às margens do rio (16.13), na praia (21.5)
etc. Pela oração criava-se intimidade com o Espírito Santo (4.31; 8.15; 10.30; 22.17) e
consagravam-se líderes na comunidade a serviço da Palavra e da assistência social
(6.6; 9.11). Os visitantes também entravam no clima da oração (16.13). Pela oração, os
seguidores de Jesus permaneciam unidos entre si e a Deus (5.12b), fortaleciam-se nas
tribulações (4.23-31) e faziam discernimento crítico e criativo (1.24; 13.3).
As orações eram libertadoras (28.8) e acolhidas por Deus (10.4,31 ). A
comunidade orava pelos que tinham sido presos na perseguição (12.5) e, muitas vezes,
jejuava enquanto orava (e vice-versa). Fazia como Jesus, que, pela oração, enfrentava
as tentações (Mc 14.32; At 8.24; 16.25).391
O acento posto sobre a atividade do Espírito Santo como motor da história da
salvação é praticamente único em todo O Novo Testamento. A escatologia lucana diz
que a parousia já começou com Jesus. Jesus não voltará somente no final dos tempos,
pois já está voltando desde sua encarnação.
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