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Marcelo de Lima Lessa

Autor de “Gênesis Proibido – A Tragédia de Adão e Lilith”

EVANGELHO
PERDIDO
A HISTÓRIA OCULTA DE JESUS

Renascimento, espiritualidade e conspiração:


a emocionante trajetória do filho de Deus sob uma
perspectiva nunca antes vista.
EVANGELHO PERDIDO: A HISTÓRIA OCULTA DE JESUS
©2016 Marcelo de Lima Lessa
Todos os direitos reservados

Supervisão geral: Betti Pellizzer


Diagramação e capa: Equipe Editora Raredes
Imagem da capa: Gene D. Austin – Crown of Thorns and nails
Vetores internos: Freepik – br.freepik.com
Revisão de Texto: Luciana Papale / Anna Torres / Victor Anziani
Editor Responsável: Anna Torres

L638e

Lessa, Marcelo de Lima


Evangelho Perdido: A história oculta de Jesus/Marcelo de Lima Lessa – 2ª edição – Rio do Sul: Raredes,
2019.

Livro eletrônico.

1. Ficção brasileira 2. Literatura brasileira 3. Misticismo 4. Angelologia I. Autor. II. Título.

CDD 869.93

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Esta é uma obra de ficção.

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Agradeço a todos que tornaram este projeto possível, dentre eles, meus
amigos e leitores, sem os quais eu não teria motivação para continuar a
escrever.
À bailarina Íhsis Nur, pela graciosa assessoria nas linhas dedicadas à
dança do ventre engendrada pela inebriante personagem Salomé.
E aos abnegados e inquebrantáveis espíritos obreiros que servem na ação
pastoral da Câmara de Guf, a “Tesouraria das Almas”, aos quais este livro é
dedicado.
“Seres luminosos nós somos, não essa matéria rude...”
“The Empire Strikes Back” (trecho do filme homônimo)

“Se as pessoas que amamos são tiradas de nós, o jeito de mantê-las vivas é
continuar amando-as; os prédios queimam, as pessoas morrem, mas o amor
verdadeiro é para sempre”
“The Crow” (trecho do filme homônimo)
Sumário
Sumário
Vez mais; réu confesso
Prelúdio
A Conceição Virginal
Um guerreiro sem armas
A queda das Presenças
Uma voz no deserto
Pedras em peixes
Mirian Magdalena
A adúltera de Edom
A Grota dos Leprosos
A caminho de Jerusalém
Sejam diferentes
Conspiração no Sinédrio
Jardim de Getsêmani
Condenado Sem Culpa
Marte caiu
O trono de Magdalena
Até o final dos tempos
Vez mais, réu confesso
Eu sempre achei que o amor verdadeiro é imortal. Ele transpõe a matéria
e, por si só, suplanta a própria razão. Nada, conosco, acontece por acaso e, desde
que Abel partiu da Terra pelas traidoras mãos do irmão Caim, muitos passaram
a, nela, ir e vir, até que as suas almas finalmente encontrassem a derradeira
evolução que as tornasse aptas para a vida definitiva no Éden Espiritual[1].
O primeiro homem — Adão — e a primeira mulher — Lilith — estavam
fadados a se amar para sempre, mas diante das tragédias que marcaram as suas
vidas, a raça humana acabou dividida entre a adoração a Deus e a afronta às
rígidas leis Dele; o bem e o mal, por assim dizer.
Não há — não entre nós — homem santo ou isento de pecado. Aliás, cá
estamos apenas para dosarmos a força da nossa fé, pois disso dependerá o
término — aqui — ou a continuidade — acolá — das lidas que nos foram
reservadas.
Embora muitos pranteiem a morte física, entendo que ela nada mais é do
que o fim de um ciclo, onde a vida — que, por graça, nos é perene — seguirá
contínua, seja na felicidade do paraíso, seja nos frios calabouços da Câmara de
Guf, a “Tesouraria das Almas”, onde muitos espíritos permanecem presos e
suspensos à espera de uma possível chance de redenção.
Adão e Lilith, assim como muitos de nós, foram separados pelo ciúme e
pelo orgulho, características que, com o passar dos séculos, quase chacinaram a
humanidade: “Querida, sempre estiveste em minha mente; eu desejaria jamais
tê-la deixado ir...”, pranteava o primeiro homem ao se lembrar de tê-la visto
fugir do seu leito.
Mas o Eterno foi sapiente ao transformar o primeiro jardim em passagem
e, assim, dar-nos uma nova oportunidade; pois, ao contrário dos anjos, nós
viveremos para sempre, seja na graça ou fora dela.
Pois para que os homens pudessem continuar a sua saga, Deus despachou
para a Terra o Seu leão como cordeiro, a fim de que, diante de um ato de
sacrifício, o ser humano finalmente entendesse que Ele — embora muitos
tenham tentado fazer ver o contrário — é amor. E essa, em verdade, foi a
mensagem deixada por Jesus de Nazaré: o amor do Pai.
Ao final da vida terrena, os nossos únicos legados serão os atos pelos
quais seremos sabatinados, disso não há como fugirmos. Assim, a ausência de
uma religião ou crença pode até ser compreensível, mas a falta de fé numa
energia maior que nos regula é algo que, a meu ver, não se coaduna com a
equação cósmica da nossa própria existência.
Comprometer-se com a evangelização; ajudar o homem a se aproximar de
Deus; e dar às pessoas um melhor conhecimento sobre a mensagem de fé; são
essas as três tônicas que permeiam este livro, onde as perguntas deixadas em
“Gênesis Proibido – A Tragédia de Adão e Lilith”, finalmente encontram as suas
respostas.
“Evangelho Perdido – A História Oculta de Jesus” é uma adaptação
ficcional baseada em fatos históricos. Em razão disso, personagens e pontos
geográficos foram propositalmente redesenhados, a fim de dar, ao enredo, uma
visão inovadora, ainda que fiel aos acontecimentos descritos nos inúmeros
Evangelhos, sejam eles oficiais ou não.
Vez mais eu peço perdão por bulir com temas tão sagrados — o intuito
não é ruim, acreditem — e também pelas minhas faltas, as quais, bem sei e
assumo, não são poucas.
Enfim, espero que, desta vez, eu finalmente me forme na Universidade da
Vida e que, cada vez mais, eu aprenda e evolua com os erros e acertos que nela
cometi.
Em 1980, um desenho feito pelo menino Marcelo de Lima Lessa, inconscientemente retratando, aos oito
anos de idade, o grande protagonista deste livro: Jesus de Nazaré.
Prelúdio
PERVERTIDA E DISTORCIDA, mesmo após o dilúvio universal que deveria ter
limpado o mundo, a humanidade continuava a brindar o Céu com espetáculos de
maldade cada vez mais impactantes.
Um Deus que deveria ser uno passou a ser invulgarmente multiplicado nos
mais diversos altares, tornando a fé e a crença partidas.
Há muito derrotado pelo ousado querubim Caliel[2], Lúcifer não havia
mais retornado à Terra, entretanto, ele jamais deixou de influenciar os passos
daqueles que por ela caminhavam, afinal, as pérfidas energias vindas do Inferno
e as odiosas doenças aqui plantadas por Baalberith[3] repercutiam facilmente
sobre a fraqueza dos homens. Some-se a isso a influência negativa dos vários
espíritos obsessores fugidos da Câmara de Guf[4] que atormentavam aqueles cuja
aura era pífia e descrente.
Mas duas grandes promessas haviam sido feitas por Deus no passado.
Uma, ao primogênito Adão, alusiva à vinda de um salvador; e outra, a Noé —
descendente daquele — de que o mundo nunca mais seria enxurrado. Foi
pensando nelas que o Elevado depositou uma alma ungida ao Arcanjo Miguel e
o mandou em missão para um mundo que precisava de imediata redenção, sob
pena de se consumir na própria perfídia.
Esse guerreiro nato, cujas mãos ainda tinham manchas de sangue humano
e angélico, mudaria o seu foco de ação, deixando de lado uma furiosa espada
flamejante para dar nova exegese à Lei ditada no Sinai[5], a qual, durante séculos,
foi distorcida em atos de desmedida violência por alguns extremistas que,
dizendo-se sacerdotes, estavam, em grande maioria, divorciados do real dever de
fidelidade ao Criador.
Ao deixar a planície etérea, o marechal da milícia celeste sabia que o seu
encargo seria por tempo certo, mas os detalhes dele só lhe seriam revelados com
o suplantar dos anos — num total de trinta — pelos misteriosos meandros
advindos do Pai de todos.
Ainda assim, alguns velhos conhecidos de outrora, cujos espíritos
condenados estiveram na lúgubre Tesouraria das Almas, estavam prestes a ter
uma nova chance pelas mãos do filho feito homem do Senhor, o qual, a partir de
certa idade, passaria a usar os poderes Dele não apenas para curar o corpo das
pessoas, mas também seu espírito.
E os caminhos a percorrer não seriam fáceis; nada fáceis. Deus daria boas
armas ao filho, mas também o poria a dura prova, pois da fé dele dependeria o
destino de muitos, ou melhor, de todos os homens e mulheres nascidos e ainda
por nascer.
Capítulo 1
A Conceição Virginal
JÁ ERA NOITE quando José, entorpecido pelo excesso de vinho, cambaleava
junto ao sopé de uma das colinas que cercava a aldeia de Nazaré[6]. Pela sua
cabeça doída e confusa passeavam inúmeras cenas recentes, principalmente as
de quando a menina Maria, cuja idade não era tão distante da de Sara, uma das
filhas do seu primeiro casamento, lhe fora prometida como esposa pelo
Sacerdote Zacarias.
Mas após ter visto a estranha proeminência junto à barriga daquela que lhe
havia sido destinada — uma gravidez extemporânea! — sua primeira reação foi
a de emprestar cumprimento à rígida lei mosaica[7] e deixar com que as pedras
justiçassem a sua maculada honra pré-nupcial. Entretanto, os judiados olhos
daquele velho carpinteiro já haviam tido o desprazer de presenciar execuções
similares e, tendo ele um bom coração, sentiu enorme desconforto em imaginar
aquela jovem indefesa ser massacrada pelos seus concidadãos, afinal, a
possibilidade de ela ter sido violentada por algum soldado romano não era nula,
principalmente diante do notório assédio que ela sofria por parte do decurião[8]
local, o atrevido Iulius Panthera.
Somava-se a isso o fato de argumento da tal gestação estar sendo
creditada ao toque do Elevado se mostrar pouco verossímil, tamanho o grau de
insensatez daquele aparente delírio vindo de alguém que, havia pouco tempo,
nada mais era do que uma simples criança, a alternativa menos hostil que lhe
restou foi a de não denunciar a noiva e partir sozinho, pois, mesmo sendo viúvo,
os seus seis filhos receberiam a tutela de um irmão que, com ele, mantinha
sociedade num negócio de construção braçal. Quanto à pequena Maria, que
Deus, em Sua misericórdia, se apiedasse dela.
Pois, prestes a ser vencido pelos rigores da bebida, José encontrou refúgio
sob a fronde de um carvalho, desabando, logo em seguida, debaixo dele; e já
estando na iminência de perder os sentidos, percebeu que algo incomum surgiu
de trás dos arbustos ali fincados, algo que expandia uma luz extraordinária,
estranha à negritude que por lá pairava apenas maculada pelo incômodo estrilo
dos grilos. Ao friccionar as pálpebras para tentar identificar o que via, notou
quando uma emanação fantasmagórica surgiu repentinamente diante de si,
trazendo, como numa grande tocha, extrema claridade àquela escuridão.
Em pé e na sua frente, estava o que, à primeira vista, pareceu ser uma
jovem mulher, cujos cabelos curtos e ruivos contrastavam com a toga azul e a
couraça dourada que lhe cobriam partes do corpo. Percebendo que, das costas do
estranho — ou seria estranha? —, ergueram-se enormes asas que obstruíram o
revérbero lunar, José se manteve vergado e receou pela própria vida, afinal, a
entidade também carregava uma espada coruscante na cintura.
— Nada tema, filho de Davi[9]... — adiantou-se a aparição, levantando a
mão direita.
— Quem sois vós? — inquiriu José, acuado e com a voz ainda viscosa.
— Eu sou aquele vindo a mando e ordem do Altíssimo, O que inicia e
finda todas as coisas; seja aqui ou além daqui.
— Então viestes me punir-me pelos meus pensamentos impuros? —
receou, em alusão à ideia de fuga que tinha em mente.
— Não te subestimes José. Eu vim apenas ajudar-te a melhor
compreender os rumos operados pelo Senhor — respondeu o ser com a fala
levemente metalizada pelo frio da noite. — Embora virgem, a tua futura consorte
foi tocada pela força do Criador, e a criança que ela já traz no ventre virá ao
mundo para fiar a dívida que os teus possuem para com Ele. E o filho que dela
nascerá será o prometido ungido que reinará sobre os nascidos e os ainda por
nascer.
— Estais a vos referir àquele esperado pelo meu povo, o “Messias[10]”? —
balbuciou, incrédulo.
— Sim — anuiu. — Por isso, retoma a tua lucidez e zela por ambos, pois
essa é a missão que o Grandíssimo tem para ti até que os teus dias se findem na
Terra.
Ainda de joelhos e comovido, José fechou forçosamente os olhos e fez
menção de chorar, mas, do anjo ali presente, ouviu uma última instrução:
— E lembra: por ser ele o filho do Altíssimo, deverá receber o nome de
Jesus, que significa “a eternidade de Deus” — alertou o mensageiro, esboçando
partir.
— “Jesus” — repetiu. — Mas espere, senhor! — apelou. — E vós, quem
sois?
— Eu me chamo Gabriel. E sou apenas um servo; assim como tu —
concluiu o celeste antes de bater as asas e se pulverizar no breu.
Ainda atordoado com o que havia acabado de presenciar, José abandonou
o bornal quase seco e tomou o caminho da morada de Maria a fim de, com a
mente agora esclarecida, aclamá-la como esposa perante todos. E o “mensageiro
do pacto” aludido no passado, por Deus, a Adão, ao que tudo indicava, estava
prestes a aportar na Terra.

***
Rompendo a greta de luz[11] ainda posta no alto do palácio divino, o
príncipe-primeiro dos anjos regressou da Terra a fim de prestar contas ao Senhor.
Os querubins da Guarda Negra[12] o assediaram com o costumeiro festejo e, após
mimoseá-los um a um, o encarregado-mor dos serviços postais ganhou a
antecâmara dos aposentos de Deus. Lá chegando, cruzou com o Arcanjo
Metatron que, deveras apressado, deixava os santos cômodos. Ao ver a exaltação
do recém-chegado, o escriba real se adiantou de forma extrovertida.
— Cansado, Gabriel?
— A fadiga é algo que não se adéqua a um mensageiro de Deus —
respondeu, sorrindo e sem perder o passo.
— É muito bom saber disso, pois Ele acabou de me ditar um documento e,
adianto-te, tu deverás ser o portador ao destinatário dele.
— Outra missão? — estranhou.
Metatron apenas assentiu com a cabeça e, escorado pelos ajudantes de
ordens do Elevado, licenciou Gabriel para ir ter com o Pai, que, estando de
costas para um cômodo oval posto atrás de Si, foi, de pronto, reverenciado pelo
filho.
— Cá estou; de volta e aos Vossos serviços.
— Cumpriste com o teu encargo? — indagou o Regulador.
— Sim, Meu Senhor. Tanto o sacerdote Zacarias como a menina de
Nazaré foram notificados dentro dos dois intervalos que estipulastes. E até
mesmo o bom homem José, confuso, conforme o originalmente previsto,
também foi apaziguado e a rigor instruído.
— Tudo então corre bem. Pois agora eu tenho mais dois serviços para ti;
um burocrático, e outro de guarda — disse Deus voltando-Se ao filho.
Sério, o Altíssimo caminhou vagarosamente na direção do anjo, entregou-
lhe um alvará selado com uma magna de ouro, o qual, de fato, não aparentava se
tratar de uma simples missiva.
— Toma. Leva esta ordem de soltura para o tesoureiro-mor da Câmara de
Guf; e a entrega em mãos — determinou.
Surpreso por se tratar de uma missão típica de Justiça — e não de correio
que era a sua especialidade — Gabriel ponderou, intrigado.
— Referi-Vos ao gestor da “Tesouraria das Almas”, Senhor?
— O próprio — anuiu. — E para nela ingressar, deverás apresentar este
passe aos arcanjos que a guardam — esclareceu, entregando um cetro trabalhado
em ouro, único passaporte que emprestava acesso àquela secreta fortificação
espiritual.
— E o que eu haverei de fazer com o beneficiado da ordem, Senhor?
— Segue as instruções do tesoureiro-mor e leva a alma que te será
confiada à província terrena constante do alvará. Nela chegando, dirige-te ao
palácio de um nobre chamado Judah de Migdal e toca o ventre da esposa dele, a
qual já está à espera desse espírito.
— Será feito. E quando a ação de guarda? — insistiu, curioso.
— Após entregar a dita alma, permanece na Terra e vigia o casal que já
acautela o teu irmão feito homem[13]. E providencia, usando o grau de força que
se fizer necessário, para que nada de ruim aconteça com eles, principalmente
com a criança. Me fiz claro?
— Claro como a luz!
— Vai, então. Desejo êxito em tuas tarefas — concluiu o Infinito ao
reacomodar-Se, circunspeto, no sólio imponente.
Gabriel prestou-Lhe respeito e deixou a galeria munido de um passaporte
de trânsito e uma ordem de libertação dirigida a uma alma decerto importante,
que pelo visto estaria prestes a reencarnar no mundo físico. Embora estranhando
as incumbências, o anjo-mor haveria de cumprir o deliberado, pois com Miguel
fora do Céu e prestes a nascer na Terra com o corpo de um humano, ele tinha
passado a ser o braço direito do Senhor.
E lá foi o grão-estafeta novamente, veloz e preciso, a fim de preparar o
terreno para o tão aguardado nascimento do Cristo.

***

Sob a música alegre e as efusivas palmas dos parentes presentes, a menina


Maria teve o véu do rosto suspenso e o semblante formalmente revelado ao
prometido José que, com um beijo comedido na face direita da noiva, selou o
acordo ao qual, perante os sacerdotes, ele havia assumido na sinagoga.
A beleza daquela donzela — ainda contando com doze anos — destoava
das demais aldeãs da mesma idade, pois sua tez era invulgarmente mais clara
que o padrão, contrastando com os vastos cabelos enegrecidos que, embora na
oportunidade presos, lhe corriam sobre as costas.
— Eu cuidarei de ti e da criança; eu te prometo — anunciou José para a
recém-tomada esposa, que a ele aquiesceu com um sorriso inocente.
A jovem e os seus, então, se reconfortaram, pois todos temiam que, com
uma eventual e até então esperada recusa de José em desposá-la, o destino dela
viesse a ser cruel. Mas quis a graça divina que um homem justo, cerca de
quarenta anos mais velho que ela, abdicasse de uma falsa vergonha e cedesse aos
desígnios de Deus para prover aquela filha pura de Eva e uma criança cujo
nascimento era, havia muito, esperado pelo povo cativo de Israel.
Vencidas as bodas e findas as festas, ocorreu que, alguns meses após o
enlace — pela conta do tempo, oito no total —, uma agitada guarnição romana
aportou no centro da cidadela e, em meio ao alvoroço, todos viram quando o
indócil decurião Iulius Panthera, responsável por policiar parte daquela área da
Galileia[14], bradou para quem o pudesse ouvir:
— Atenção, habitantes de Nazaré! — disse ele, manejando as rédeas do
seu bravio cavalo. — Faço-vos saber que o imperador manda que se realize um
censo geral de tributação, donde cada homem deverá retornar ao seu local de
nascimento a fim de ser contado e registrado.
Temerosos com a parca gentileza dos soldados — principalmente José, em
razão do antigo interesse de Panthera pelas valorosas virtudes de Maria —, todos
se puseram afoitos e, sem muita demora, recolheram as mulheres para o interior
de suas casas.
— E são essas as ordens, cujo não acatamento implicará em represálias!
Portanto, espalhai a notícia e obedecei! — concluiu em meio àqueles grandes
pendões que envergavam a máxima “SPQR”.
SPQR. Esse acrônimo lançado nos pomposos estandartes das legiões
romanas aludia à máxima “Senatvs Popvlvsqve Romanvs” – “Senado e Povo de
Roma” e, naqueles dias, confundia-se com o símbolo de submissão que César
Augusto[15] impunha aos seus conquistados.
Como José era natural da cidade de Belém[16], fincada ao sul e na
província da Judeia[17], ele achou prudente apanhar a esposa, cuja gravidez já era
avançada, e partir sem demora para se alistar, afinal, não seria viável — não
naqueles dias religiosamente aluídos — ir contra um édito real e se envolver
numa rusga com os soldados do pontífice romano, já que agora ele possuía uma
venerável incumbência pela frente.
— Então irás mesmo, José? — indagou-lhe o irmão mais novo, este sim,
filho da cidadela de Nazaré.
— Eu não posso me furtar Cleófas, pois agora temo pela sorte da minha
família. E de mais a mais, não deixarei Maria aqui sozinha; não com aquele
decurião rondando as cercanias — respondeu, enquanto desamarrava o seu
sempre disposto animal de carga. — Nós aproveitaremos a companhia de
algumas caravanas que partirão hoje de Séforis[18], mas a grata parte do caminho,
eu e ela haveremos de fazer sozinhos.
— Tens razão, creio ser o certo — concordou. — Pois vai e não te
preocupes, eu darei conta da oficina e zelarei pelos teus filhos enquanto estiveres
fora.
— Que assim seja — agradeceu, sem esconder a preocupação.
Ele então se despediu dos rebentos — Judas, José, Tiago, Simão, Lígia e
Sara — e, com poucos recursos e mantimentos, descansou a esposa no lombo do
seu jumento a fim de, juntos, enfrentarem os rigores dos quase cento e sessenta
quilômetros de distância até o seu destino.
— Estás pronta para ir? — indagou José à mulher.
— Eu sinto ser a vontade de Deus que a criança nasça fora de Nazaré. Que
seja então cumprido o desígnio Dele — respondeu, sem demonstrar medo.
— Cuida bem dela, meu genro — interveio Hannah, mãe de Maria. —
Não deixes que nada de ruim aconteça com a minha menina e com o filho que
ela carrega.
— O Senhor olhará por nós, minha sogra, estou certo disso! —
tranquilizou-a, mesmo sabendo dos perigos que uma viagem como aquela
poderia ofertar, como a distância, a solidão e, principalmente, as nocivas
armadilhas do deserto.
— Quisera eu estar em condições de acompanhar-vos, mas a parca saúde
que me resta só me faria mais um fardo... — justificou-se num tom de bênção.
— Não chores, mãe, pois eu sei que nós estaremos protegidos e em boas
mãos — acalentou-a Maria.
— Minha filha querida, desde sempre eu soube que tu eras uma dádiva,
pois mesmo idosa, tive o privilégio de dar-te à luz pelas mãos de Deus. E o
Senhor, acredita-me, estará sempre convosco! — concluiu num abraço choroso.
Sob o comovido olhar dos poucos aldeões que lá estavam, ambos se
juntaram aos demais peregrinos e partiram a caminho das distantes montanhas
de Judá, sem saber que o retorno deles ao povoado de Nazaré, ao contrário do
que se poderia prever, ainda demoraria muito a ocorrer.

***

Seguindo a rota secreta posta no passe que havia auferido do Pai, Gabriel
deixou o Céu e caiu num túnel contínuo de fogo que o lançou numa dimensão
opaca e sombria, o Guf, totalmente inversa às paisagens — mesmo as mais
austeras — a que ele estava acostumado em seu primeiro lar.
O espaço navegado não tinha quaisquer nuvens, e a escuridão
predominante era apenas quebrada por alguns estranhos relampejos que
rareavam no alto.
Após alguns instantes voando, aparentemente sem rumo, o anjo
visualizou, ainda do alto, uma estrutura gigantesca cerrada por muralhas bem
maiores que as do palácio do Regulador, sendo que a energia que pulsava no
local era extremamente negativa, o que lhe causou certo desconforto no ar.
Mirando algo que se assemelhava a um enorme portão, Gabriel logo
encontrou pouso no solo frio, sendo, de imediato, interpelado por dois
abrutalhados arcanjos que davam vigília naquele tétrico prédio. Ao reconhecer a
fisionomia do importante recém-chegado, um deles o recepcionou surpreso.
— Príncipe Gabriel, o que faz no presídio de Guf?
— Eu venho a serviço, meus irmãos. Viajo com este passaporte de Deus e
por deliberação Dele trago um alvará de soltura — esclareceu, envergando o
documento.
Ao observar a permissão real, os falangistas descruzaram as lanças e
abriram imediato caminho para o mensageiro maior, reverenciando-o conforme o
protocolo hierárquico:
— Desculpe a cautela príncipe, mas desde a criação deste complexo
penitenciário nós nunca recebemos visitas, que não apenas as dos nossos já
conhecidos oficiais de diligências celestes — justificou um deles.
— Não vos apoquenteis, amigos, afinal, assim como vós, eu também
estou cumprindo o meu dever. Mas ao ensejo, como faço para encontrar-me com
o tesoureiro-mor?
— Ele permanece na grande capela que antecede as galerias dos
ergástulos, uma de nossas sentinelas irá levá-lo até ele — explicou o lanceiro
apontando para um outro que estava no sóbrio corredor do corpo da guarda.
— Agradeço a acolhida e vos peço licença — asseverou o emissário, já se
adiantando no interior da fortificação.
Os dois guerreiros ficaram ressabiados com aquela extraordinária
chegada, mas como soldados obedientes, apenas retornaram aos seus postos e
nada disseram.
Num ritmo acelerado, Gabriel e o seu condutor transpuseram uma soturna
via erguida sobre enormes blocos de rocha negra, onde o absoluto silêncio só se
fazia quebrar pela coreografia da marcha de ambos contra o solo. A Tesouraria
das Almas era um lugar melancólico, uma zona purgatória onde o ar era gélido,
pesado e quase asfixiante, e que servia de cárcere para os espíritos atormentados
que, carentes de fé na vida terrena, haviam se apartado da retidão e necessitavam
se livrar daquilo que os impedia de evoluir ao Éden Espiritual[19].
Inquieto com aquele ingrato ambiente e ainda diante de um elevado
número de arcanjos pouco amigáveis que lá davam vigília, o embaixador de
Deus ponderou:
— Percebo que a segurança aqui é um tanto ostensiva, cabo-da-guarda;
excessiva, se me permite observar.
— Houve várias fugas no passado, senhor — respondeu-lhe o graduado.
— Espíritos revoltados e vingativos que não acataram a interrupção dos pecados
de suas vidas materiais. E desde então, o tesoureiro-mor despachou inúmeros
esquadrões de lanceiros atrás deles na Terra, por isso a segurança foi reforçada.
— “Espíritos revoltados...” — replicou. — Os tais “obsessores”, não é
mesmo? Eu já ouvi terríveis comentários sobre eles.
— Correto — confirmou. — Esses espíritos são bem difíceis de serem
recapturados, pois suas energias se escondem facilmente nas iniquidades do
mundo material. Eles atormentam e influenciam os comportamentos daqueles
que lá estão, principalmente no campo da libido humana. Bem, felizes talvez
sejamos nós, por termos apenas uma existência — observou o armígero sob a
concordância do príncipe dos anjos.
Ao chegarem na grande capela da Tesouraria, um espaço descomunal
cercado por milhares de estantes que iam do chão ao teto, eles se depararam com
Razyel, arcanjo que, em meio a uma inflexível bancada abarrotada de
cartapácios e velas acesas, cumpria, havia muito, o posto de tesoureiro das almas
ali presas.
Ao observar, diante de si, o irmão celestial que havia tempos não via, o
oficial estranhou a sua chegada, principalmente quando dele recebeu uma ordem
de soltura vinda de alguém que não um dos costumeiros meirinhos que lá as
apresentavam por lotes; e ao romper delicadamente o selo divino pré-posto
naquele documento, Razyel leu para si o teor, mostrando-se surpreso com o seu
conteúdo.
— Algo errado? — inquiriu o mensageiro.
— Creio que não, Príncipe Gabriel. É que se trata de uma alma muito
antiga, para cá trazida antes mesmo do dilúvio. Soa mais estranho, é que ela
nunca teve direito a progressão — explicou. — Enfim, eu irei confirmar a
localização dela nos livros, mas creio que deva estar suspensa nos níveis mais
baixos.
Após um acurado exame em diversas anotações que remetiam a séculos
terrestres, Razyel e Gabriel deixaram aquelas dependências e passaram a descer
por infindáveis lances de escada, até que finalmente aportaram num corredor
estreito e escuro da seção leste, apenas iluminado pela presença do vigia daquela
ala, o Arcanjo Marcyal.
— Príncipe; tesoureiro-mor? — assustou-se o guarda.
— Salve, soldado! — disse o oficial em voz baixa e sem pompas. — O
nosso visitante é portador de um alvará individual especialmente emitido para
uma alma que, em meus registros, consta estar numa das últimas solitárias deste
flanco — esclareceu Razyel sob o eco que se fazia no ambiente.
— Deixe-me examiná-lo, senhor — respondeu o miliciano ao folhear o rol
nominal de presos. — Sim, o nome confere com o da ordem que Vossa
Excelência tem em mãos; por favor, acompanhem-me para o consentâneo
cumprimento.
Os três celestes se dirigiram até a última cela que, pelo alfabeto angélico,
descrevia o número dois e a qual, com certa dificuldade, foi sendo, aos poucos
aberta pelo guardião. A luminosidade natural vinda do corpo deles fez com que o
interior do ambiente fosse paulatinamente clareado, revelando-lhes, em meio a
colunas fúnebres, a opaca silhueta de uma mulher deitada de costas que, pelo
visto, lá jazia havia muitos séculos. Ao mirá-la de costas, o guarda do cárcere se
posicionou e procedeu à obrigatória liturgia de libertação, lendo ipsis litteris o
que constava do documento que tinha em mãos:

“Pela força conferida ao presente, o Criador faz saber ao


excelentíssimo Arcanjo Razyel, major-em-armas da legião Animus,
designado como tesoureiro-mor da Câmara de Guf, ser de expressa
vontade Dele, que seja posta em liberdade e incontinente levada à
aldeia terrena de Magdala[20], província fincada na costa ocidental
do chamado Mar da Galileia, a alma da réproba que, em sua
primeira existência física, recebeu o nome de Lilith...”

Lilith! Pois ao descobrir a graça daquela importante reclusa, Gabriel


sentiu um calafrio percorrer o corpo, afinal, ele conhecia muito bem a história da
temida dama da noite que, no passado, tantos dissabores havia causado, não
apenas ao esposo Adão, mas também ao próprio Deus.

“... Pois fica também decretado que a beneficiária seja entregue à


cautela do celeste Gabriel, príncipe-primeiro dos anjos, para as
providências decorrentes da soltura e, por ser essa a expressão do
que quer e manda o Altíssimo, eu, Arcanjo Metatron, oficial-maior
de escrivania do palácio real, o escrevi e selei em ouro.”

Ao término da leitura, a segregada, que ainda se fazia cobrir por uma fina
camada de gelo, abriu os olhos num único ímpeto. E depois de anos presa
naquele gélido calabouço, ela finalmente obteve autorização para deixar a
clausura e enfrentar um mundo totalmente diferente daquele em que havia vivido
e, sobre o cadáver do ex-marido Adão, feito a passagem devorada pelo fogo que
os consumiu juntos.
A primeira mulher posta na Terra, doravante num outro corpo e numa
outra vida, estava prestes a ter uma chance de redenção.

***
Durante o dia, o sol castigava José e a esposa; e à noite, o calor vindo das
fogueiras lhes trazia conforto. De alguns mercadores que encontravam nas
trilhas, o homem comprava um ou outro mantimento de fácil conservação e
rápido consumo, a fim de que a jornada, a qual transpunha grandes regiões
desérticas, lhes fosse menos penosa.
Embora já íntimos da solidão da estrada, foi no oitavo dia de viagem que
algo atípico lhes aconteceu. No cair da noite, e em meio a um caminho fechado e
traiçoeiro, o casal sagrado acabou emboscado por três homens de aparência rude
e agressiva, verdadeiros salteadores da senda, que haviam se acostumado a
atacar os viajantes incautos que porventura viessem a encontrar. A investida dos
mesmos ocorreu no exato momento em que José, após acender uma pequena
fogueira, buscava um pouso adequado para poder acomodar Maria e prender o
animal que lhe servia de montaria.
— Ora, quem vem lá? — tripudiou o mais encorpado dos ladrões.
O carpinteiro e a mulher ficaram acuados, já que o trejeito daqueles
malfeitores era um prenúncio do que eles aparentemente tencionavam.
— Nós viajamos em paz; eu e minha esposa, que está prestes a dar à luz...
— apelou José na tentativa de sensibilizá-los.
— Esposa? Pois eu pensei que fosse tua neta! — divertiu-se um deles, em
razão da crassa diferença de idade entre ambos. — E por acaso trazes algum
dinheiro contigo, velho? — indagou o mesmo, cuja enorme cicatriz que lhe
cortava a face impunha temor.
— Eu só tenho algumas moedas, ficai com elas e deixai que sigamos o
nosso caminho — respondeu, remexendo a bolsa e ofertando-lhes o pouco valor
material que carregava.
— E porventura nos julga dignos dessa ninharia? — berrou o líder deles
ao desferir um violento golpe no rosto de José, o qual, atordoado, caiu ao chão e
perdeu os sentidos ao chocar a cabeça contra uma pedra.
— Mas veja o que nós temos aqui, uma delicada jovenzinha! — riu o mais
forte ao tomar a virgem e colocá-la em pé diante de si.
Fragilizada ante o próprio estado físico e atemorizada com o que ocorria,
Maria segurou a barriga com uma das mãos e ergueu instintivamente a outra, na
pretensa tentativa de repudiar aquele homem imenso, cujas intenções para
consigo pareciam ser as mais pérfidas possíveis.
Seu esposo, ferido e inerte, nada podia fazer para protegê-la; e clamar por
socorro naquela despovoada imensidão seria inútil, até porque, o pânico lhe
havia tolhido, sumariamente, a voz.
Limitando-se a recuar, ela se viu encurralada por uma enorme parede
rochosa que a impediu de continuar se afastando e, diante de si, enxergava
apenas aquele arremedo de monstro humano, malcheiroso pela bebida e
envergando vestes imundas. Vencida pelo medo e pelo desespero, a jovem
começou a se agachar, oportunidade em que os outros dois se aproximaram do
maioral para coadjuvar um crime cujo grau de aberração sequer poderia ser
definido.
Pois estando numa posição mais baixa em relação àquele malfazejo, Maria
entrou numa espécie de transe, passando então a focar os seus pensamentos em
algo que pudesse lhe trazer um pouco de acalento para tentar enfrentar a
desgraça que estava por vir. Mas num repente que teve da própria realidade, ela
foi surpreendida por um vertiginoso facho de fogo que inesperadamente se
ergueu do chão por trás do perverso homenzarrão e, numa só passada, o partiu ao
meio. Assustada com a violência da cena, Maria esboçou perder os sentidos, não
sem antes ver aquela mesma língua fulgurante — entre uma nuvem de areia que
se levantou — calar os urros terrificantes dos outros dois facínoras.
A imaculada não se conteve e desfaleceu, sendo que o silêncio, após
aquele ímpar momento de tensão, foi, aos poucos, retornando. Estacionado bem
diante dela, ali se revelou o grande mensageiro de Deus, com a sua afiada espada
de fogo erguida e bem segura numa das mãos.
Igualmente desacordado, José foi gentilmente posto pelo tal anjo no
lombo do seu animal. Erguida nos braços pela mesma entidade, Maria ficou
segura. Tomando as rédeas do jumento que havia se recusado fugir, aquela
sentinela celeste que lhes dava guarida os levou daquele lugar ermo, deixando
para trás três cadáveres lacerados e à mercê dos mais baixos calabouços do Guf.
O Príncipe Gabriel, que pouco antes havia retornado de Magdala após
fazer a entrega do espírito recém-liberto de Lilith, seguia à risca as orientações
do Senhor, vigiando o casal à distância desde que haviam partido de Nazaré. No
caminho, o mensageiro olhava, vez ou outra, para a barriga daquela jovem e,
com um singelo sorriso no rosto, lembrava-se do bom irmão Miguel, cuja
essência, agora, estava num ser forjado da mesma matéria que séculos antes ele
próprio havia auferido nos quatro cantos da Terra para que o Criador moldasse o
primeiro homem.
Na manhã seguinte os dois despertaram ao lado de um bornal que
continha água fresca e de pequenos cestos com uvas passas e castanhas, como se
nada lhes tivesse acontecido. Mas, afinal, teria aquilo sido um pesadelo? Talvez
não, pois os trejeitos da aparição foram descritos por Maria ao esposo, fazendo
com que este, nela identificasse o mesmo ser misterioso que, meses antes, o
havia visitado para dar paz ao seu atormentado coração; e ela, o que havia
anunciado a vinda do seu filho.
— Aqueles homens horríveis, José. Fomos salvos... — disse a menina,
ainda aparentemente emocionada.
— É mais um sinal de Deus, mulher; o terceiro ao que me parece —
ponderou. — Bem, sigamos, então, adiante, afinal, já estamos próximos de
Belém.
Embora aquele dia de viagem, o último, houvesse sido tranquilo, assim
que a tarde caiu no sul da Judeia, Maria sentiu a criança se encaixar na sua
região pélvica, o que, mal sabia ela, era um prenúncio do nascimento. Inúmeras
contrações passaram a tomar conta do seu corpo, e o desconforto causado por
elas fez com que José, um tanto nervoso, se pusesse a buscar um lugar adequado
para tentar abrigá-la; afinal, a noite se avizinhava e, para piorar, uma garoa
ardida havia começado a cair sobre eles. Ainda que o centro da cidade já
estivesse próximo, e José, por ser um nativo, pudesse facilmente encontrar
abrigo, o tempo urgia, pois a parição parecia ser iminente.
Pois ainda na estrada e em meio à chuva que começou a piorar, de longe
avistou alguém que saiu do que lhe pareceu ser uma espécie de gruta fincada
entre as pedras, uma mulher idosa de trejeitos simples e simpáticos.
— Venham cá, meus filhos! — bradou a estranha ao acenar para eles. —
Protejam-se e aqueçam-se um pouco.
Mesmo à distância, José não percebeu qualquer hostilidade nela e, no afã
de acalentar a esposa, aceitou o convite e a levou para aquela caverna, onde a
anciã os recepcionou:
— Sede bem-vindos — disse ela. — E nada temais, pois, no passado, este
lugar serviu de estábulo para os pastores em trânsito de Betânia[21] até Belém,
mas já faz um bom tempo que ele está abandonado — esclareceu a senhora já no
interior do abrigo, cuja iluminação interna, embora presente, não teve a origem
de pronto identificada.
— A minha esposa está prestes a dar à luz, nós precisamos de ajuda —
asseverou José, aflito.
— Pois então vinde para mais perto, deita-a sobre esse monte de feno —
ofertou a velha calmamente.
— A senhora pode auxiliar de alguma forma? — indagou José, ao
cuidadosamente acomodar Maria.
— Bem, faz muito tempo que eu não assisto alguém num parto. Muito
tempo... — respondeu, passando as mãos nos cabelos já descobertos e soltos da
virgem. — Mas saibas que a melhor ajuda é aquela vinda de ti mesma, menina.
Pois assim, quando sentires as contrações aumentarem, apenas faças força para
fora. Está bem? — orientou-a. — A jovem assentiu com um suave movimento
de cabeça e esboçou um sorriso, dando mostras de que havia compreendido. —
Ótimo! Agora, relaxa e deixa que tudo aconteça naturalmente — disse a
desconhecida sob o ansioso olhar de José.
Pois contrariando a severa lei da dor que havia sido posta em Eva, Maria
se mostrava imune ao sofrimento da parição; afinal, ali, nascia o rebento de
Deus, e com o auxílio daquela estranha, pariu uma criança saudável, a qual
ganhou o mundo, não chorando, mas sorrindo.
— Meu filho... — sussurrou a mãe, feliz ao vê-lo. — Jesus!
— Abençoada és tu, menina, o Senhor livrou-te da dor do parto. E saúdo a
ti e ao teu marido, pois recebestes um menino forte, muito forte — afirmou a
parteira, num tom envolvente e igualmente misterioso.
O casal ficou tão entretido com o exitoso nascimento, que não percebeu
quando a idosa amarrou o cordão umbilical que unia a mãe à criança com dois
finos fios de ouro e, com um belo punhal cravejado de esmeraldas que tirou da
cintura, o seccionou sem quaisquer dificuldades.
A chuva que ainda caía parou de maneira inesperada, dando azo a uma
grande estrela que se fincou acima da caverna. A dita senhora então se levantou
e, vagarosamente, deixou a gruta, sem que José ou Maria se apercebessem. Já
estando na entrada dela, olhou para o alto e desfez o seu disfarce, de pronto se
revelando como sendo um anjo, um príncipe-primeiro da ordem das virtudes. Foi
então que Rafael, que centenas de anos antes havia auxiliado Eva a trazer os
gêmeos Caim e Luluvah ao mundo, recepcionou alguns pastores que lá
chegaram atraídos pelo fulgor do astro que havia repousado sobre aquela gruta.
— Entrai e contemplai o “rei dos reis” que aqui nasceu!
Feito isso, o celeste cobriu a cabeça com um capuz esverdeado e
desapareceu no ar, deixando atônitos os espectadores que lá estavam.
Os pastores entraram na gruta e se depararam com uma menina
acalentando um recém-nascido que se recusava a chorar. No afã de proteger a
família, José ficou arisco ao vê-los, mas ao ouvir deles que um anjo de Deus os
havia licenciado para saudar o novo monarca que tinha acabado de chegar ao
mundo, ele desarmou o coração e permitiu que todos se aproximassem e o
adorassem. Nem mesmo quando a noite findou, o brilho daquela magnífica
estrela de Belém se consumiu. Era dia vinte e cinco do mês de dezembro, três
mil setecentos e sessenta anos haviam se passado desde que Deus havia deixado
o Céu para criar a Terra.

***

Já era manhã quando uma caravana de astrólogos vindos da Pérsia foi


vista entrando nos limites de Jerusalém[22], o que chamou a atenção da guarda[23]
do rei Herodes I[24], um edomita[25] e judeu convertido nomeado por Roma para
impor suas leis no território palestino.
— Magos em Jerusalém? — surpreendeu-se ao tomar ciência da nova.
— Sim, majestade; vindos dos desertos do leste — assentiu o capitão da
milícia. — Perguntamos quais seriam os negócios deles por aqui, e aquele que
alegou se chamar Baltazar nos disse que há cerca de três meses eles
acompanham uma estrela menor que busca alinhamento com outras duas
maiores.
— “Estrelas” — repetiu o regente, ao coçar as feridas que mantinha
escondidas sob as vestes.
— Correto, senhor. E ao que parece, eles falavam por enigmas, aludindo a
astros que estranhamente chamavam de “pai” e “mãe”.
— Certamente faziam referência a Júpiter e a Vênus — interferiu um dos
adivinhos da corte, ao lembrar de um antigo presságio feito pelo profeta
Isaías[26], o qual dava conta de que uma estrela — entre duas — anunciaria o
nascimento do rei puro dos judeus, um imperador estranho à linhagem edomita
que, envergando o sangue real de Davi, salvaria o cativo povo de Deus.
— Sim, a tal profecia — bradou o monarca, visivelmente nervoso.
— E, senhor... Causou-me espécie o fato de que eles foram uníssonos em
dizer que aqui estavam para visitar um rei — afirmou o chefe da guarda
mercenária.
— “Um” rei ou “o” rei? — insistiu Herodes.
— Meu... — gaguejou o oficial. — Segundo eles, o nobre a que aludiam
estaria prestes a nascer. E em Belém — completou com latente desconforto.
Herodes ficou aterrorizado, afinal tudo parecia se encaixar. Na sequência,
ele deu ordens ao armígero:
— Capitão Khamal, encontres esses magos e os espreites. E caso o tal
“rei” seja identificado, mantém vigilância sobre ele e avisa-me imediatamente!
— Será feito! — assentiu o miliciano, ao deixar o palácio-fortaleza.
Khamal se imiscuiu na cidade a fim de conseguir informações sobre o
destino dos três adivinhos e, ao preço de uma moeda aqui e outra acolá, soube
que eles haviam saído da cidade logo após terem reabastecido a frota.
— Eles seguiram o curso do pórtico — disse um cambista fazendo alusão
à entrada da urbe. — E eu ouvi, de um dos servos da comitiva, que estariam a
caminho de Belém.
Seguindo a pista auferida, o vil capitão da guarda transpôs a Porta dos
Jardins[27] a fim de tentar alcançar os seus alvos. Já era final de tarde, dentre o
intervalo em que vira os magos pela manhã, cerca de seis ou sete horas já
haviam se passado, talvez tempo suficiente para estarem bem longe dali. Tendo a
noite finalmente caído, o agente real não se deu por vencido e, ao aportar numa
região rochosa, já beirando a cidade de Belém, viu o comboio estacionado diante
de uma gruta, onde uma mulher, ou melhor, uma menina, tinha uma criança
recém-nascida nos braços.
— Será esse o tal rei dos judeus? — pensou ironicamente ao ver os
magos, iluminados por tochas, ofertarem presentes a ele. — Se for, o seu reinado
está prestes a terminar — sussurrou, com um sorriso funesto no rosto.
Tudo então se fechava. Bastaria uma tímida guarnição para colocar fim a
todos os que lá estavam, inclusive os pomposos membros daquela intrusa frota
persa. Como Jerusalém não estava muito distante, seria uma questão de horas
para que tudo estivesse, por assim dizer, “definitivamente resolvido” em nome
de Herodes I.
O sinistro oficial, até então camuflado por trás de alguns arbustos,
levantou-se para retornar ao palácio e executar o tramado, mas, ao se virar,
deparou-se com uma presença quimérica, a qual, de pronto, o interpelou pelo
nome.
— Khamal?
O espião sequer teve tempo hábil para tomar fôlego ou envergar armas,
pois ao arregalar os olhos diante daquele ser, teve a cabeça desraigada do corpo,
o qual, sem o suporte do sistema nervoso central, caiu instantaneamente inerte.
Com a sua espada resplandecente segura na mão direita, a mesma arma
que, dias antes, havia destroçado três violentadores que tencionavam atentar
contra Maria, o Anjo Gabriel se mantinha firme em sua vigília e, mesmo não
sendo um vingador[28], ele estava a agir como um. Na qualidade de mensageiro,
ele não era, por assim dizer, “um anjo de armas”, mas quando necessário, as
dominava como poucos. Que o dissessem os seus finados irmãos Belial e
Belphegor — este, ex-líder da ordem dos principados — os quais foram mortos
pelas suas mãos na Segunda Batalha Etérea que culminou com a queda de
Lúcifer e um terço dos anjos que o seguiram, em revolta, quando do nascimento
de Adão.
Pelo visto, Herodes I não seria avisado. Mas, por prudência, caberia ao
carteiro celeste acelerar a partida do casal e da criança daquelas bandas, afinal, o
perigo ali lhes haveria de ser constante.
Não demorou muito, e os três reis magos, igualmente preocupados,
retomaram o caminho que lhes cabia; afinal, eles desconfiavam que Herodes
tentaria interceptá-los, como de fato havia tentado.
Tão logo José, Maria e Jesus se recolheram ao estábulo e dormiram, o
velho foi, sem demora, visitado por um sono deveras agitado, e vendo-se
perambulando perdido numa cidade onde as pessoas corriam desesperadas e sem
rumo, sentiu um toque no seu ombro esquerdo. Pois sem virar o rosto, ouviu do
misterioso interlocutor:
— Um vento de morte se aproxima daqui, meu amigo. Portanto, toma a
mulher e o menino e foge ainda hoje para o vale do Nilo[29].
Ao tentar identificar o autor do aviso, uma luz desmedida repercutiu
fortemente sobre ele, fazendo com que acordasse de forma repentina. Assustada,
Maria também despertou e foi, de pronto, alertada.
— Mulher, eu creio que aquele santo anjo de Deus falou comigo
novamente — asseverou, arfando. — Ele me disse que, onde estamos, corremos
perigo; portanto, pega o menino, e vamos fugir.
— Mas fugir para onde, José? — indagou ainda sonolenta.
— Para longe, Maria... Para o Egito[30]!

***

Preocupado com a demora de Khamal, o Rei Herodes mandou alguns


batedores atrás dele, tal não sendo a sua surpresa ao constatar que os mesmos,
horas depois, retornaram munidos de notícias pouco alvissareiras.
— Senhor, seguimos os rastros deixados pelo Capitão Khamal e o
encontramos morto além dos muros da cidade, próximo ao antigo estábulo que
antecede Belém. E o que é estranho, a cabeça dele foi extirpada do corpo, mas os
seus pertences estavam intocados — lamentou um graduado. — Entretanto..., a
arma usada para o feito... Confesso que jamais havia visto um corte dotado de
tamanha precisão — ponderou confuso.
— Assassinado por uma arma especial, quiçá “santa”? — interpelou o
monarca. — Pois pelo que eu estou a perceber, algo de verdadeiramente perigoso
repercute sobre nós... — ponderou, preocupado.
— Ordens, senhor? — indagou um dos guardas.
— Ordens... — repetiu. — Sim, eu as tenho. Essa tal criança já se revelou
numa séria ameaça, e precisa ser exterminada o mais rápido possível. — Os
soldados olharam uns para os outros como se já previssem o teor da
determinação que estava por vir. — Pois hei de acabar com as esperanças desses
agitadores de uma vez por todas. Escriba real! — bradou em cólera. — Que
fique consignado que eu, o Rei Herodes I, imbuído do dever de manter segura a
coroa da Judeia, sentencio de morte todos os recém-nascidos das cercanias,
sejam eles do sexo que forem.
Ídmas, o escrivão do palácio, anotou, trêmulo, o tal decreto, cuja carga de
crueldade havia transposto todas as sandices já anteriormente encetadas pelo
monarca, como, por exemplo, o assassinato da esposa e a degola de dois filhos
seus com ela. Mas por serem mercenários, os soldados se entregavam por
qualquer preço e, tendo Herodes lhes ofertado cinquenta denários[31] a mais pela
atroz missão, eles deixaram o alcácer ávidos por sangue.
Pois o cruento monarca, já muito doente e com várias gangrenas ocultas
sob os trajes reais, haveria de pagar muito caro pela autoria daquelas mortes que,
por obra dele, estavam prestes a acontecer.

***

O silêncio que pairava sobre a adormecida cidade de Jerusalém foi


rompido pelo som de inúmeros cascos que se chocavam velozmente contra o
chão. Relinchando agressivamente, os cavalos da milícia real transportavam os
arautos da morte, cujas armas envergavam sede por sangue inocente, e foi então
que a paz daqueles lares humildes foi de uma só feita rompida.
Os soldados se puseram a cumprir a cruel sentença do rei e a matar todas
as crianças de pouca idade, a maioria em seus berços ou nos braços das mães,
cujo desespero as punha insanas. Os homens que tentavam opor resistência ao
ato eram mortos de forma gratuita, tamanha a agressividade daquele vil exército
que parecia ter saído do próprio Inferno.
Ao término da chacina operada por Herodes I, a Judeia experimentou o
mais atroz banho de sangue da sua história, cujas consequências, ao menos para
o tirano, seriam graves, bem graves.

***

Jany-El era procurador do prefeito do Éden Espiritual, o Arcanjo Zuriel.


Este, ante a inesperada chegada de centenas de almas vindas da região da Judeia,
e não possuindo registros de batalhas ou ações dos vingadores por lá,
surpreendeu-se sobremaneira e emprestou parte dos fatos ao seu interlocutor no
Céu, no afã de auferir algum posicionamento superior a respeito.
Após uma breve perquirição, Jany-El descobriu que a referida adversidade
teria ocorrido em razão de uma investida ordenada pelo Rei Herodes I, o qual
tencionava assassinar o futuro Messias, cujo avatar, naquela região da Terra, já
era titulado pelo Arcanjo Miguel.
Numa audiência com o Altíssimo, o representante do alcaide do novo
paraíso ficou deveras apreensivo com a furiosa reação Dele:
— Aquele tirano selvagem! Como ousou fazer o que fez? — bradou o
Etéreo, fazendo o salão do trono tremer. — Pois é chegado o tempo de Herodes
responder por todos os males que já causou, seja em obras ou mesmo em
pensamentos.
— Meu Senhor, o Prefeito Zuriel requer orientações sobre a grande
quantidade de almas que aportou no Éden Espiritual sem se desligar da matéria,
por isso eu tomei a cautela de vir consultá-Lo sobre o destino delas.
— Que sigam na ala de transição curativa até segunda ordem.
— Transmitirei o determinado, Senhor. E quanto ao tal humano; Herodes?
— O seu destino já foi traçado. E pela morte das crianças eu decreto luto
de dez anos terrenos até que a Judeia se limpe do sangue delas — asseverou. —
E Jany-El, ao deixar-me, diz a Laoviah que eu quero vê-lo imediatamente.
— Sim, Senhor — acatou dando meia volta.
Ao ganhar a antecâmara, o arcanjo emprestou a recém-auferida
deliberação ao dito ajudante de ordens da Guarda Negra, pouco mais que um
meninote em aparência, que, de pronto, apresentou-se ao Elevado, e Dele ouviu:
— Laoviah, despacha dois oficiais de justiça até a Câmara de Guf. Eles
deverão dar ciência a Razyel que, em breve, lá irá aportar uma alma marcada, a
qual deverá ser, sumariamente, levada ao furnorum[32], onde deverá permanecer
cerrada e esquecida até o dia do julgamento final.
— Como queira — assentiu o querubim, já sabedor de que aquele destino
era apenas reservado aos humanos dotados de uma perversão tal, que sequer as
frias celas da Tesouraria das Almas os admitia para uma pena pré-estabelecida.
— E mais, filho, chama o capitão da Guarda aqui, eu tenho um encargo
especial para ele.
“Capitão Caliel”, pensou Laoviah, pávido. Pois diante daquela
convocação, o trágico fim do Rei Herodes I, autor de tantos crimes e atos
aberrantes, parecia estar definitiva e dolorosamente selado.

***

Satisfeito com o odioso massacre das crianças, o traiçoeiro regente dos


judeus embebia-se com um vinho cuja cor escarlate remetia ao sangue que, por
obra dele, havia jorrado naquelas bandas. Convicto de que, dentre os inúmeros
assassinados, estava o anunciado redentor que lhe tomaria o trono, ele se deixou
tomar pelos excessos e, após ter expulsado a corte para se revigorar — “O forte
só é forte sozinho!”, berrava — Herodes I se esparramou no assento real e se
rejubilou.
— Malditas crianças — balbuciava em meio a um gole e outro da bebida.
— Que morram todas! — finalizou, jogando um copo no meio do salão vazio.
Mesmo estando entorpecido pela ação da bebida, ele percebeu, com certo
espanto, que por trás das cortinas transparentes que cercavam a galeria real,
pequenos rostos infantis começaram a brotar, logo sumindo quando eram
diretamente encarados.
Herodes se levantou sem muita firmeza e, buscando identificar o que
enxergava por entre os véus, esboçou se aproximar. O vento então começou a
erguê-los e misturá-los, revelando novamente, diversas faces de crianças, cujas
aparências não denotavam ser tão diferentes daquelas que haviam sido
executadas por ordem dele. E quanto mais o monarca se aproximava, mais elas
se expunham e se escondiam, rindo como se zombassem do estado deplorável
em que ele se encontrava. Seriam alucinações causadas pelo excesso do vinho?
Pois de parcas, aquelas risadas se tornaram estridentes, generalizadas e,
como numa desafinada sinfonia, invadiram a mente mórbida do rei. Já estando, o
rei, na iminência de esmaecer, de repente, fez-se um silêncio abrupto, e aquele
bando de crianças que o cercava simplesmente sumiu.
— Eu devo estar ficando louco... — refletiu para si próprio, ao golpear as
cortinas na tentativa de encontrar ao menos um daqueles espectros que pareciam
assombrá-lo. — Louco! — completou escumando.
Mas ao se virar para retornar ao trono, ele viu, estagnada diante de si, uma
menina de bem pouca idade, a qual, demonstrando certa passividade, levantou o
belo rosto devagar e, passando a rir copiosamente para ele, a pequenina se
manteve com as mãos para trás e balançando o corpo, como se pedisse atenção
pelos gracejos que fazia.
Encolerizado, o maligno rei sacou um punhal que mantinha secretamente
preso num bracelete e passou a cambalear na direção da menina, mas quando
finalmente se achegou da tal criança, aquele riso pueril sumiu, dando lugar a
uma expressão facial aterrorizante e digna de pavor.
Assustado, ele caminhou para trás e deu às costas para aquela aparição, tal
não sendo a sua surpresa ao lidar de frente com outras tantas crianças, cerca de
dez ao total, os quais, envergando vestimentas negras com adornos dourados,
tinham o semblante bem menos simpático do que o daquela.
Vendo-se cercado, ele deixou a faca cair, momento no qual um dos
pequenos presente, exatamente o primeiro que lhe havia chamado a atenção, fez
surgir, do ar, uma foice de fogo que, de imediato, lhe transpassou a perna
esquerda. Embora emitindo um urro lancinante, ninguém pareceu ouvi-lo. Ainda
se equilibrando com latente dificuldade, viu outra daquelas criaturas se
aproximar e lhe arrancar a perna direita, fazendo-o finalmente tombar ao chão.
Como mariposas na luz, aquelas entidades avançaram com ferocidade
sobre o corpo doente de Herodes I e, com suas lâminas fulgurantes, começaram
a esquartejá-lo com uma violência incrível, fazendo com que, ao final da
investida, apenas pedaços da carne apodrecida remanescessem espalhadas pelo
salão.
Após ter matado centenas de crianças inocentes, Deus usou as Suas — o
implacável Capitão Caliel e mais dez pequenos camareiros da Guarda Negra —
para desforrar àquelas, cujos espíritos acalentados e em recuperação já estavam
em paz no Éden Espiritual. Tão logo concluíram a missão — para eles, algo
similar a uma peraltice —, aqueles onze sanguinários querubins deixaram o
palácio e ganharam as alturas com divisada rapidez, cortando a luz refletida na
lua e sumindo sem deixar rastros no meio da escuridão que encobria a cidade de
Jerusalém.
Inesperadamente desperto por um terrível pesadelo, um dos filhos do
finado, o príncipe Herodes Antipas, deixou o leito, assustado, e ganhou as
galerias que davam acesso ao espaço do trono, pois algo parecia ter acontecido.
Lá chegando, ele se deparou com os restos do que outrora havia sido o pai e,
temeroso com a severidade de um inquérito romano a respeito, afinal aquela
cena de morte beirava o surreal, ele e os demais irmãos decidiram cremar o que
havia sobrado do rei e, em seguida, reportar a César Augusto que ele havia
morrido em razão das graves doenças que o acometiam.
Herodes I havia sido, enfim, destruído; fulminado em razão dos seus
próprios pecados. E pelos crimes dele, os seus três filhos acabaram dividindo a
coroa de Israel. O despótico Herodes Arquelau ficou com a Judeia, donde
acabaria banido e substituído pelo político romano Copônio; Filipe, com a
Traconítida; e Herodes Antipas, o mais astuto deles, com a Pereia e a Galileia,
esta última, a nação onde Jesus, muito em breve, haveria de se fazer homem.
Capítulo 2
Um guerreiro sem armas
A NOTÍCIA DA AUSÊNCIA de Miguel correu depressa e, no Quartel General
dos arcanjos, muitos ficaram apreensivos. Embora a dolorosa cerimônia de
emasculação dos vigilantes[33] tivesse, de certa maneira, pacificado o Céu, era
certo que alguns celestes desgostosos não teriam muito a perder num levante de
menor escala; dentre os quais, o próprio anjo Azeyzel, havia muito, ávido por
encontrar alguma falha na segurança da sua cela, ocupada desde que ele havia
sido repatriado da Terra e preso por traição aos mandamentos do Eterno. Pois
agora, vendo, diante de si, uma oportunidade de agir — o escrivão-real passando
por um dos corredores do cárcere após findar o interrogatório de um detido —
ele não se fez de rogado.
— Salve, Metatron! — disse-lhe o prisioneiro.
Ao dirigir o olhar para o local de onde vinha o brado, o dito arcanjo se
deixou trair por um instante:
— Azeyzel? — respondeu parando a marcha. — Pelo que percebo, não
ficaste tão apático quanto os demais — completou em referência à euforia que a
deposta potência ainda mantinha, mesmo após ter sido castrada em razão de ter
bulido com as humanas num passado não tão recente.
— A apatia nunca foi uma característica minha, caro irmão. Mas me diz, a
quantas andam os vossos preciosos livros? — indagou em alusão aos seis
cartapácios sobre a história do nascimento da humanidade que Metatron, havia
muito, compilava por ordem de Miguel.
— Escrevem-se sozinhos — retrucou secamente.
— Isso é bom. Mas embora eu tenha dito muita coisa quando do meu
primeiro interrogatório, existem alguns pontos de relevo que inicialmente omiti,
mas que agora gostaria de compartilhar contigo.
Obcecado pelo desejo de deixar a sua obra cada vez mais completa,
Metatron resolveu dar-lhe atenção e se aproximou do alvéolo.
— E por que desejas falar somente agora? — desconfiou.
— Irmão, eu já não represento perigo algum — disse, mostrando-lhe as
costas marcadas pelo ferro quente que lhe havia tolhido as asas. — Mas se, por
acaso, eu conseguisse progredir para um regime mais brando, talvez eu pudesse
ajudar-te em mais alguma coisa, além de dar melhor forma à tua preciosa escrita.
— De fato, há muito que aí estás sem causar incidentes — assentiu. — Eu
não posso comutar a tua pena, mas não vejo problemas em ter-te na biblioteca
prestando pequenos serviços, afinal, tolhido, não tens como fugir.
— Pois então, Metatron, mostra um pouco de piedade e me ajuda a sair
temporariamente deste lugar, nem que seja para limpar as estantes da grande
livraria — sugestionou com aparente humor.
— No momento tenho outros afazeres, mas quem sabe eu peticione
solicitando o que me pedes — esclareceu na sequência.
A segregada potência agradeceu com um singelo movimento de cabeça e
se deu, aparentemente, por satisfeita pela atenção recebida e, com um sorriso
falso, viu o arcanjo se afastar e sumir nas austeras galerias.
Azeyzel estava inquieto, pois mesmo depois de tanto tempo de prisão, ele
ainda tinha a ex-companheira na mente, a inebriante Layla-Li[34]. E por conta
disso, ele faria de tudo para tentar escapar do Céu e ir procurá-la, onde quer que
a alma perdida dela, finda na época do dilúvio universal, estivesse.

***

Não fosse pela constante proteção do sempre presente Gabriel, certamente


a família abençoada não teria vencido a perigosa marcha de mais de
quatrocentos quilômetros até as fronteiras de Gazzah, vilarejo egípcio que, assim
como os bairros hebreus de Matarieh e Heliópolis, lhes serviria de lar pelos dez
anos seguinte, período necessário para que as bandas da Judeia se limpassem do
sangue inocente que Herodes I havia derramado.
Alguns anos após a morte da mítica rainha Cleópatra, o Egito passou ao
jugo de Roma, e foi nessa realidade que José, Maria e o menino Jesus lá
chegaram; exaustos, mas incólumes.
Como se previa, as ruas estavam infestadas de soldados romanos
pertencentes às Legiões lá estacionadas, os quais se encarregavam de policiar a
cidade e pregar nas cruzes os insurgentes mais afoitos. Os centuriões que
serviam no Egito eram deveras experientes, mas a grata maioria da soldadesca
era recém-arregimentada, principalmente a destacada para as áreas hebreias,
consideradas mais hostis.
Assistido pela solidariedade dos seus compatriotas, José conseguiu, para
si, um casebre humilde onde passou a oferecer serviços de carpinteiro, e Maria,
de lavadeira. Tudo parecia conspirar para uma vida normal, sem quaisquer luxos
ou maiores teres, até que Jesus, cujo brilho da alma era perceptível, finalmente
começou a dar mostras de que era especial.
Como de costume, a menina Maria, agora já contando com treze para
quatorze anos de idade, percorria as vielas para entregar as roupas que lavava
para as senhoras egípcias e, mesmo ainda bem pequeno, Jesus seguia sempre
junto dela, preso a um conjunto de panos trançados que o deixavam seguro no
colo da mãe.
Sempre que podia, a virgem deixava alguma esmola para o velho Jendayi,
um egípcio cego que costumava mendigar nas imediações da urbe. Embora
maltratado e malcheiroso, isso não a impedia de se achegar e lhe entregar ao
menos um pequeno pedaço de pão, ato que causava repulsa aos mais
conservadores, mormente os que acreditavam na impureza dele em razão dos
seus pecados pretéritos, o que, sob certo ponto de vista, não deixava de ser
verdade. Mas enfim, o pobre nada mais era do que uma vítima do paganismo que
o havia acometido no passado.
— Muito obrigado, que os “deuses” te acompanhem — respondia mesmo
sem poder enxergá-la.
Pois naquele dia, ao se afastar do ancião com o filho no colo, Maria parou
mais à frente para acomodar Jesus e o privou rapidamente de um arremedo de
xale que lhe cobria a cabeça. O vento passou sorrateiro e levou aquela manta,
fazendo com que Maria esboçasse reavê-la ainda no ar. Mas após dar alguns
passos, ela percebeu que aquele pedaço de pano havia ganho velocidade e, logo
adiante, impactado o rosto daquele pedinte. Ao se reaproximar constatou quando
o dito mendigo sentiu o fragmento da veste cair sobre a sua face, o qual, ao ser
retirado, revelou que as escaras que lhe vedavam os olhos haviam desaparecido.
Assustada, Maria não teve coragem de permanecer ali por muito tempo,
pois, ao observar o olhar limpo e marejado daquele velho a fitá-la com emoção,
ficou atônita e se afastou, afinal, com a chegança dos curiosos, ela temeu pelo
juízo que fizessem dela e do filho, a quem, em segredo, sabia ser o profetizado
Messias.
Ao retornar para casa, ela relatou o ocorrido ao esposo e, olhando para o
menino ainda pequeno, ambos perceberam que a missão dele era
verdadeiramente sagrada. Instado sobre como tudo se sucederia dali por diante,
José respondeu:
— Isso é apenas o começo, Maria. Apenas o começo.

***

A casa de Judah de Migdal, príncipe da província de Magdala, havia


ganhado novo brilho com o nascimento, alguns dias antes, da pequena Mirian.
Era ela, em segredo, a detentora da alma entregue aos cuidados de Gabriel na
Câmara de Guf, o espírito liberto da primeira mulher moldada na Terra, Lilith,
ex-esposa de Adão.
Entretanto, doze anos antes, o soberano de Magdala já havia sido
agraciado com outra filha, Martha, a qual, desprovida de beleza e contaminada
pela inveja desde os tenros anos, jamais haveria de enxergar a nova irmã com
bons olhos. Martha era cruel e moralmente distorcida, judiava de pequenos
animais e, na mesma toada, dos próprios servos do pai, os quais destratava e
desprezava.
Pois Mirian haveria de ser o oposto dela, e quando os anos começaram a
ser superados, ela passou a mostrar incrível familiaridade com as plantas e
flores, sempre dispostas como enfeites nos seus longos cabelos negros. Ela
também tinha por costume colocar frutas da própria mesa, numa bandeja, e
distribuí-las entre os empregados da casa e, não raro, escapava do palácio e fazia
o mesmo com os menos favorecidos. Certa feita, a sua perversa irmã queimou a
mão de um dos servos de Judah e, mesmo ainda tendo cerca de sete anos de
idade, Mirian fragmentou um galho de Aloe Vera[35] e besuntou a ferida, a qual,
em poucos dias, regrediu e sumiu de maneira inacreditável.
Entretanto, Mirian havia nascido com uma doença um tanto
incompreendida naqueles dias, a epilepsia. Em razão disso, Martha via as não
raras crises convulsivas da irmã como algo antinatural, talvez ligado ao mundo
oculto, o que a mantinha longe dela.
Mirian aparentava ter os olhos azuis perdidos e, mesmo cercada de
riquezas, não se mostrava feliz com a abastada vida que levava, pois o seu
coração, embora bom e caridoso, parecia vazio. E mesmo ainda criança, ela
chamava a atenção de muitos reis que desejavam vê-la como a prometida dos
seus filhos, o que incomodava, em muito, a sua desafortunada irmã. Mas Judah
recusava todas as investidas, e de igual forma, os polpudos dotes, pois, no fundo,
acreditava que os caminhos da filha menor seriam outros que não os de uma
mera consorte passiva.
E assim, lidando com os elementos da Terra, ela haveria de suplantar a
infância, oportunidade em que a vida começaria a testá-la. Mirian de Magdala
ainda não sabia, mas aquela seria a primeira e a última chance que Deus daria à
sua alma, que havia muito tinha sido marcada, ainda no início dos tempos.

***

Enfim, passaram-se dez anos desde que a família sagrada havia fugido de
Jerusalém após um aviso do anjo Gabriel. E nas bandas do Egito, o cenário atual
retratava um grupo de crianças gazeteiras penduradas na fronde de um grande
choupo-preto, onde uma delas, equilibrando-se no galho mais alto, flexionava
um arco rudimentar que abrigava uma flecha cuja ponta metalizada refletia em
razão da luz solar.
O arqueiro, um pré-adolescente de tez bem morena e sobrancelhas
grossas, mostrava particular intimidade com o artefato e, soltando
confiantemente a seta nele posta, viu quando ela cortou em cheio uma das
frondes pinadas do alvo; uma grande tamareira que já exagerava nos frutos.
Tão logo um dos folíolos se espatifou no chão seco, os meninos e meninas
correram, ariscos, para resgatá-lo, afinal aquelas tâmaras agridoces estavam lhes
apetecendo os olhos e, agora ali dispostas, seriam devoradas sem qualquer modo
ou cerimônia.
Vendo os amigos satisfeitos, o tal “arqueiro” pôs a arma nas costas e
desceu, com destreza, da árvore, não demorando muito a ser agraciado com um
galho cheio de frutos suculentos, apenas capturados graças à sua ímpar
habilidade com aquele instrumento impulsor manufaturado, dificilmente
manejado por alguém que não um adulto.
Mas enquanto os jovens rumavam para o vilarejo, eles se desconcertaram
ao perceber que o velho pai de um deles, enfezado e à procura do filho
conhecidamente travesso, os surpreendeu com os rostos ainda melados por tais
frutas. Embora todos se pusessem a correr assustados, um dos garotos,
exatamente o autor da dita façanha, ficou imóvel ao mirar o genitor diante de si.
E ao ouvir o seu nome ser firmemente bradado, “Jesus!”, abaixou a cabeça e
quedou-se silente.
— Tu não deverias estar na escola comunal[36]? E quantas vezes eu já te
disse que não te quero bulindo com armas? — bradou José, ao tomar-lhe o arco
das mãos e parti-lo ao meio numa das pernas.
— Mas, pai, dessa vez, a minha intenção era justa; eu só queria saciar a
fome dos meus amigos...
— A fome ou a gulodice? — indagou num tom espirituoso. — Pois tu
devias usar as habilidades que tens para aperfeiçoar-te na leitura e ajudar-me no
ofício, e não para exibir-te com peças que podem ferir ou até matar alguém —
ponderou, preocupado.
— Tens razão, peço-te desculpas.
— Desculpas, desculpas... — repetiu José ao tomá-lo pelo braço. — Não
sei se já percebeste, mas essa tem sido a tua expressão predileta nos últimos
tempos, não é, Jesus?
O rapazote assentiu calado e fechou o rosto.
Embora fosse um tanto peralta, como, aliás, eram todos os meninos
daquela idade, José acabou desarmando o coração, e não conseguiu continuar
com a severidade daquela reprimenda.
— Bem, vamos para casa, a tua mãe já estava a perguntar por ti. E sorte
não ter sido ela a te encontrar, pois bem sabes que Maria é muito mais severa do
que eu — disse o carpinteiro, sorrindo.
Jesus era deveras apegado aos pais e, junto a José, auferia uma proteção
ímpar. Não porque este — embora já tendo ultrapassado a casa dos sessenta anos
de idade — ainda fosse um homem fisicamente forte, mas porque o amor e a
dedicação que o mesmo e a mulher tinham para consigo suplantavam qualquer
outro sentimento.
Ao chegarem no portão do humilde casebre onde viviam, Jesus viu Maria,
agora uma mulher de vinte e três anos, preparando a ceia.
— Mãe! — bradou, festivo, ao entrar correndo no quintal.
— Jesus! Onde tu estavas? Eu e teu pai já estávamos preocupados —
disse ela, sempre atenta às traquinagens do filho.
O rapaz diminuiu o passo e, de soslaio, encarou José.
— Ele já estava a caminho de casa, eu não tive trabalho em encontrá-lo —
esclareceu, piscando ao rebento.
— Tu estás com o rosto todo lambuzado menino; vai te lavar — ordenou
Maria, já o tomando pelos ombros. Jesus obedeceu e se debruçou num tanque de
madeira, e a sua mãe, no afã de auxiliá-lo, o cercou pelas costas. — Ao menos
deste graças pelas tâmaras que comeste? — disse ela, ao facilmente perceber a
efetiva origem daquelas manchas.
Envergonhado pela falta — “eu fui descoberto!” —, Jesus fechou os olhos
e declamou:
— “Bendito és tu, ó Deus, pelos frutos que criaste”.
— Agora sim! Aliás, antes tarde do que nunca, não é, meu filho? —
ponderou, ao mandá-lo se sentar à mesa.
Percebendo que o sol já estava à pique, o menino fez menção de avançar
sobre a ceia, afinal, ele tinha outros “planos” para aquela tarde. Mas, ao fazer
isso, acabou novamente repreendido, desta vez pelo pai:
— Não estás se esquecendo de nada, Jesus?
Estagnando a mão sobre um pedaço de pão, o arteiro guri respondeu:
— Mas, meu pai, eu acabei de lavar as mãos. Por que devo lavá-las
novamente?
— Porque é um costume do nosso povo que deves seguir.
Aparentemente contrariado, Jesus verteu água por três vezes sobre cada
uma das mãos e, após enxugá-las, abaixou a cabeça e repetiu:
— “Venturoso é o Senhor, os mandamentos sagrados Dele vindos, e o pão
que vem do trigo da terra” — rezou de forma automática e sem ainda aceitar a
severidade de todas aquelas liturgias.
José e Maria olharam, orgulhosos, para o filho e se puseram a cear,
satisfeitos, não apenas pela boa saúde dele, mas pela sua inteligência e pelo
acatamento — ainda que de certa forma forçado — das coisas sagradas.
Mas Jesus ainda era um garoto e, como um, engoliu a refeição a fim de
honrar um compromisso que tinha para logo mais. Assim, “inocentemente”
ofertando-se para ir até a cidade entregar as roupas que a mãe havia lavado, ele,
vez mais, desobedeceu a José e levou consigo um gládio de madeira que, algum
tempo antes, havia cunhado à revelia do pai. Embora disposto a cumprir com a
tarefa assumida, Jesus apenas omitiu o fato de que também iria encontrar um
amigo um tanto inusitado, o que talvez não agradasse os seus pais.
Sempre ativo e muito comunicativo, aliás, até por demais, Jesus interagia
facilmente com qualquer pessoa, até mesmo com as consideradas inimigas dos
judeus e, correndo pelas ruas da urbe egípcia, não demorou muito para que ele
visualizasse uma guarnição de soldados romanos próxima a um poço d’água. E
em meio a ela, um miliciano jovem e bem feito de rosto, mas com uma
perceptível deficiência no olho esquerdo, a qual, mesmo assim, não lhe
prejudicava a lida, principalmente num lugar distante de Roma.
Jesus o fitou de longe e escondeu a trouxa de roupas atrás de alguns vasos
de barro. O soldado o replicou com rigor e, deixando a companhia, premiu o seu
pilo, a famigerada lança padrão da Legião Romana, e foi na direção do menino
que, ao perceber a manobra, correu para dentro de um beco na tentativa de se
esconder. O miliciano ganhou facilmente aquele espaço e, procurando pelo
fugitivo, foi surpreendido com um forte golpe dado na sua panturrilha, que o fez
vergar o corpo.
— Ora, seu judeuzinho danado, venha até aqui e eu te darei uma lição! —
bradou aquele soldado com a face ruborizada.
— Se és tão bom com essa arma; roga a Marte[37] e vem pegar-me! —
provocou o garoto ao, vez mais, investir contra ele com aquele gládio de
madeira.
Com o cabo da sua lança, a qual era de verdade, o armígero passou a
obstar os rápidos golpes efetuados contra si pelo menino. De fato, Jesus
demonstrava uma habilidade ímpar com a “espada” e, quando a usava, mesmo
que brincando, parecia incorporar o grande guerreiro celestial que ele, em
verdade, era. O instinto de combate lhe surgia com frequência, mormente
quando cunhava arcos, flechas, floretes ou fingia ser o comandante de um
exército imaginário com as demais crianças que o seguiam. José o repreendia
sempre, mas o menino, do mesmo jeito que apresentava incrível facilidade em
decorar as leis mosaicas, parecia ter verdadeira fascinação pelas guerras
fantasiosas que vivenciava com os amigos.
Pois aquele jovem soldado romano, chamado Quiricus Longinus, havia
conhecido Jesus na praça da cidade e, tendo crescido numa família na qual, até
certa idade, havia cuidado dos irmãos menores, “adotou” o pequeno como
amigo. E foi pensando na família que havia ficado em Jerusalém, que o
legionário perdeu momentaneamente a atenção e acabou tendo o equilíbrio das
pernas comprometido por astuta manobra do garoto, caindo no chão sob os
brados de êxito dele: “Marte caiu; marte caiu!”. O soldado então se “rendeu” ao
vencedor e sorriu ao ver a satisfação no rosto do menino, de quem parecia muito
gostar.
— Meu jovem amigo, a cada dia que passa, a tua habilidade bélica só
aumenta! — disse, suplantado. — E cá estou a temer pelo meu futuro; pois, caso
lideres um exército com a mesma força que a tua, serás capaz de derrubar César!
— riu.
Jesus processou aquele comentário visivelmente zombeteiro e, por um
instante, ficou desconcertado, como se estivesse prevendo que, num futuro
próximo, ele, de fato, lideraria o povo num levante moral contra o império
romano, o qual mudaria o rumo da história do mundo.
— Achas mesmo que, ao invés de carpinteiro, eu seria um bom soldado?
— Já o és, jovem Jesus! Agora, a ajuda-me a levantar. Afinal, não condiz
com um legionário romano ficar à mercê de um pirralho assim como tu! —
Percebendo que o garoto ficou ressabiado, ele continuou. — Algo te incomoda?
— Sabe, amigo Longinus, um dia eu haverei de ser um grande soldado!
— disse quebrando o silêncio. — Só não sei ao certo quais armas usar... —
completou, fazendo pouco daquele arremedo de espada que tinha em mãos.
— Pois saibas que um bom soldado é, antes de tudo, um bom seguidor de
ordens. Portanto, elege o teu comandante e faz o que ele disser, somente assim
serás um bom soldado! E enquanto esse dia não chega, cumpra com as tuas
tarefas, pois o teu pai pode não gostar dessa beligerância toda que carregas
dentro de ti.
— Meu Pai... — respondeu, olhando para o alto. — Um dia Ele terá muito
orgulho de mim, pois foi para cumprir com a lida Dele que eu nasci.
— O que disseste, menino?
— Nada... — desconversou, voltando a si. — E tens mesmo razão, é
melhor eu correr, pois se José desconfiar que saí de casa com esta espada que fiz,
certamente terei problemas.
— Bem, até breve, então. E não te esqueças do que eu disse! — pontuou
Longinus ao se despedir.
E lá se foi Jesus; tomou a trouxa de roupas que havia deixado nas
proximidades e, para a sua sorte, conseguiu entregá-las ainda intactas.
A caminho de casa, ele novamente envergou a sua “arma” de brinquedo e
se pôs a manuseá-la em instinto, golpeando o ar num pontuado balé bélico,
similar àqueles originalmente aprendidos pelos arcanjos-cadetes em Vigilum, no
alto do Céu: “Marcha, afundo; estocada... Marcha, afundo, estocada!”, repetia,
sem sequer entender o sentido daquelas palavras.
Mas do mesmo jeito que ele tinha as suas tarefas, José também tinha as
dele, e foi ainda na estrada, que o velho, de longe, viu o filho “bailando” e
munido daquele objeto que o havia proibido de bulir. De manobra em manobra,
Jesus se viu diante do pai e, não tendo mais como obstar a justa severidade dele,
acabou voltando para casa com as nádegas um tanto quentes, pois bastaram duas
ou três lambadas com aquela “espada” para que ele se convencesse de que as
armas que deveria usar dali por diante deveriam ser outras.
A partir daquele dia, Jesus decidiu tentar controlar o seu temperamento
ousado e, pensando na conversa que teve com o romano Longinus, imaginou
como seria se tornar um guerreiro; um guerreiro sem armas.

***

Recém-saído do palácio do Eterno, o escriba-real tinha acabado de, lá


lavrar, uma importante certidão na qual Maria havia sido agraciada com o título
celeste de “mãe dos homens”, comenda outrora pertencente a Eva, de quem ela
diretamente descendia. A morte trágica das crianças pelas mãos de Herodes I
havia atingido a mãe de Jesus em demasia e, pela força das suas orações, Deus a
fez aceitar o encargo e acatar os, por vezes incompreendidos, desígnios do
destino.
E no caminho de volta ao Quartel-General, onde o documento seria
cerrado com honras, o arcanjo foi interceptado por um mensageiro que lhe
reportou que dois arcontes[38] queriam vê-lo, afinal, examinando uma petição por
ele outrora protocolada, a qual versava sobre a progressão de regime de Azeyzel,
eles estavam prestes a emitir um veredito.
A sentença original, outrora dada ao vigilante, era corporal e constritiva, o
que não significava que o preso, conforme o seu comportamento carcerário, não
pudesse ter certas regalias, como a de, por exemplo, trabalhar nas áreas internas
do quartel. A liberdade plena estava fora de questão; apenas Deus poderia dá-la,
mas os delegados do Senhor tinham o múnus de analisar pedidos como aquele,
os quais eram impetrados pelos procuradores celestes em favor dos condenados.
E já estando diante do escrivão-real, um dos famosos arcontes ponderou:
— Metatron, eu não vejo no que um anjo sem asas lhe possa ser útil.
— Ele carrega informações importantes, Daurah — respondeu ao
interlocutor. — Muitas delas, preciosas para os meus compêndios que ainda
então sendo escritos, e por ordem expressa do nosso Marechal Miguel, registre-
se — retrucou o escriba.
Haudax, que havia muito se ocupava de interrogar alguns espíritos
desencarnados que chegavam ao Guf, olhou para o seu irmão de armas e
resolveu assentir, dando a entender que não se opunha ao pleito, desde que a
permanência de Azeyzel ficasse limitada a pequenos serviços, como no átrio da
biblioteca.
— Bem, a tua petição foi deferida... Soldado! — bradou Daurah ao
ordenança. — Traz o prisioneiro para a audiência admonitória, a fim de que ele
tome ciência das condições do novo regime — assentou ao lançar uma chancela
no documento.
Azeyzel, havia muito trancafiado numa cela, estava prestes a dar um passo
perigoso. Os seus demais irmãos presos estavam mentalmente mortos, dentre os
quais, Semyaza[39] e o belo Samael[40], mas ele, não se sabe como, havia
conseguido se manter incólume ao pesadelo da pós-emasculação. O que
ocorreria dali por diante, graças a um ato de altruísmo de Metatron, mudaria
efetivamente a vida de muitos, fossem eles anjos ou mesmo humanos.

***

Maria estranhou o fato de que, após chegar em casa, Jesus pôs-se quieto
na oficina do pai. Mas ao vê-lo apalpar o próprio assento, logo desconfiou que
ele havia aprontado outra das suas. Ela, por vezes, lidava com um estranho
conflito sobre o filho, pois como poderia o Messias, o legítimo herdeiro do trono
de Davi, ser tão traquinas? Mas tencionando novamente orientá-lo, resolveu ter
com ele.
— Jesus?
— Sim, mãe — respondeu, surpreso, e tentando ocultar o incômodo.
Ela se achegou e disse:
— Eu estava aqui a observar-te... E só agora me dei conta de que, com a
idade que tens hoje, eu já estava prestes a receber-te de Deus — disse ao,
carinhosamente, abraçá-lo.
— E o que isso significa? — indagou, curioso.
— Que tu já és um rapaz crescido, tem quase onze anos de idade; por isso,
precisas ser mais obediente e mais dado às coisas de Deus.
— Eu sei. Perdoa-me se dou tantos dissabores a ti e a José.
— Não foi isso que eu quis dizer — ponderou. — És inteligente e muito
habilidoso, no entanto, necessitas ser menos menino e mais homem.
Jesus abaixou a cabeça, pois se sentia culpado.
— Sabe, mãe... — respondeu, cabisbaixo. — Um dia eu serei um soldado
muito poderoso, o maior que já existiu, e eu vou dar a minha vida para que as
pessoas não precisem mais lutar entre si.
— Esse teu espírito beligerante às vezes me assusta, filho — ponderou,
agora preocupada. — Eu ainda não sei de onde vem tanta disposição para bulir
com espadas e sonhar com guerras e exércitos, mas deves entender, de uma vez
por todas, que a arma mais poderosa que um homem pode ter é o conhecimento
da palavra de Deus, que, se bem empregado, pode suplantar qualquer obstáculo.
Nesse mesmo instante, José ingressou na oficina e surpreendeu a esposa e
Jesus conversando.
— Hum... — murmurou satisfeito. — Eu espero que estejas ouvindo os
conselhos de tua mãe — disse, ao lavar as mãos numa tina.
— Sim, está — respondeu Maria. — E ele agora haverá de focar os seus
talentos de outra forma. Não é, filho?
O garoto concordou e sorriu ao pai, o qual, sem demora, o acolheu num
abraço e arrematou:
— Tu tens um futuro próspero, Jesus. Por isso, concentra-te em Deus e
luta, sim, a tua guerra, mas com armas de fé que libertem o nosso povo do jugo
daqueles que ofendem ao Senhor e ousam se arvorar Nele! — apelou com
seriedade.
Com o cenário já apaziguado, os três foram cear como de costume e, por
volta das nove horas da noite, recolheram-se para o repouso. Entretanto, assim
que a madrugada chegou, José ouviu um barulho incomum vindo dos fundos da
casa. Atraído pela luz que lá emergia, ele se levantou sem chamar a atenção de
Maria e do filho e, ao ganhar a porta dos fundos, foi surpreendido por um velho
conhecido de outrora.
— Há quanto tempo, meu amigo! — disse o anjo Gabriel, ao devolver, à
mesa da oficina, uma ferramenta manufaturada que examinava.
— Tu! – respondeu José, surpreso e em voz baixa. — Bem, se vieste até
aqui, creio que teremos novas — ponderou, arisco.
— De fato. Dez anos já se passaram desde que eu vos alertei sobre os
perigos que o menino então corria, e dez anos foram necessários para que o
banho de sangue que manchou a Judeia se esvaísse. — Passivo, o carpinteiro
ouvia a tudo atento. — É chegada a hora de ficares novamente junto dos teus
outros filhos e, mais ainda, voltar com a tua nova família para Nazaré. E
acalenta-te, pois Deus estará convosco na viagem de volta.
Ao perceber que o mensageiro esboçava ir embora, José o interpelou:
— Espere, senhor! E quanto ao meu filho? Diga-me se, acaso, eu ou a mãe
erramos de alguma forma. Refiro-me a essa inclinação dele por lutas e batalhas.
Pois, afinal, Jesus não haveria de ser um mensageiro da paz?
Mesmo já estando de costas, Gabriel estacionou o passo e sorriu com o
canto da boca e, voltando a metade do rosto a José, esclareceu:
— Jesus vem de uma boa forja — disse, referindo-se subliminarmente a
Miguel. — E tranquiliza-te; no momento certo, ele mudará a estratégia.
— Felicito-me ao saber! Mas, senhor... — insistiu —, permita-me fazer
uma última pergunta. Eu ainda o verei novamente?
Ainda meio oculto, o anjo-mor lhe respondeu:
— Sim. Mas neste plano, apenas por mais uma vez.
Abrindo as grandes asas, o príncipe saltou do chão e ganhou o firmamento
numa velocidade similar à da luz.
Vencida aquela etapa preliminar, o menino Jesus finalmente começaria a
se transformar num homem de verdade.

***

Munida dos poucos pertences, a sacra família ensaiou uma partida


repentina já ao nascer do dia, sendo que Jesus sequer teve tempo de se despedir
dos amigos que tanto prezava. Mas ao aportarem na saída da cidade, José se
distraiu ao falar com o filho e, sem querer, esbarrou no cavalo de um dos
soldados que lá dava guarda. Irritado, o romano percebeu e se voltou, agressivo,
para ele, tencionando agredi-lo com uma vara. Pois antes que o instrumento
pudesse atingir José, um outro militar obstou-lhe o braço e o segurou com força.
— Não tens vergonha de bater num velho, Cartaphilus?
Embora conhecido pela exacerbada rudeza, aquele áspero legionário não
teve como suplantar a intervenção, afinal, o soldado que o havia contido —
Longinus — era mais forte e respeitado entre os demais. Mesmo visivelmente
contrariado, Cartaphilus recolheu a sua fúria e os deixou ali: “Maldito amigo dos
judeus...”, balbuciou à distância.
Ao ver Jesus acuado, o bom soldado o interpelou:
— E então, meu amigo. Estás de partida?
O menino deixou a guarida do pai e correu na direção do militar, o qual se
agachou para melhor recepcioná-lo.
— Eu não tive tempo de me despedir de ninguém; tão pouco de ti... —
respondeu, entristecido.
— Jesus, a nossa vida nos leva a plagas distantes, para lá e para cá; mas as
boas amizades, estas sim, são para sempre — pontuou Longinus, ao devolvê-lo à
cautela dos pais. — Pois segue em paz, meu amigo, e que, um dia, o teu
“exército” jamais colida com o meu — ponderou, aparentemente emocionado.
E ao ver Jesus se afastar, Longinus levantou a lança e bradou com
emoção:
— Marte caiu!
José agradeceu o soldado com um movimento positivo de cabeça e,
retomando o filho pelas mãos, pôs-se, finalmente, a caminho de Nazaré,
província onde tudo havia começado.
No caminho, reminiscências do que haviam vivido até então, desde a noite
em que Gabriel lhe havia tirado as dúvidas sobre a inusitada gravidez de Maria,
até a última e ainda recente aparição do grão mensageiro celeste. José preparou o
filho revelando a ele que tinha seis irmãos por parte de pai, além de uma grande
família, da qual estavam, havia muito, apartados. Jesus ouvia a tudo com atenção
e, convicto de que seria outro dali por diante, procurou se portar de maneira séria
e receptiva.
Após alguns rigores, mas sem quaisquer adversidades, a família aportou
na região agora gerida pelo outrora príncipe, Herodes Antipas e, reconhecendo
as vias que pouco haviam mudado, José e os seus chegaram no vilarejo onde ele
e Cleófas haviam estabelecido o meio laboral de sustento.
Ao rever o irmão, envelhecido mas ainda acompanhado da esposa Maria.
— José? — surpreendeu-se. — José! — disse Cleófas, ao largar um feixe
de madeira que tinha em mãos e partir, feliz, na direção do irmão.
Ambos então se abraçaram e, suplantando uma distância de mais de dez
anos, encontraram real acalento nos braços um do outro. Vagarosamente, os
demais filhos homens de José, trabalhadores artesanais como o velho pai, logo
miraram a cena e foram se aproximando, deixando-se entregar pela mesma
emoção que tinha acabado de tomar conta do tio. Jesus ficou um pouco arisco,
mas ante a felicidade de José, logo se aproximou da nova família e experimentou
uma boa recepção, mormente a do meio-irmão Tiago, o qual não era tão mais
velho que ele. Tanto Lígia quanto Sara já haviam contraído núpcias e,
lembrando-se do pouco, mas proveitoso tempo que haviam passado sob os
cuidados de Maria, a receberam como se, apesar da pouca idade, mãe delas
fosse.
— Seja bem-vindo de volta, meu pai! — disse Judas, primogênito de José.
— E esse, então, é meu irmão caçula? — perguntou ele, ao tomar Jesus nos
braços.
O jovenzinho logo se afeiçoou dos irmãos, e tudo então parecia conspirar
para a edificação de um clã próspero e feliz.
Os dias se passaram, e a nova da volta de José se espalhou, sendo
providenciado um pequeno festejo que atraiu diversos parentes vindos de
Naím[41] e das montanhas de Judá. E tal não foi a surpresa de Maria, ao
reencontrar a prima Isabel, a qual, embora viúva de Zacarias havia já alguns
anos, trazia, consigo, o filho, apenas alguns meses mais velho que Jesus.
— Isabel! Rejubilo-me em saber que estás bem e com saúde! — disse a
virgem, ao achar acalento nos braços da prima.
— Pois eu é que fico feliz em poder afagar a escolhida de Deus! —
respondeu num tom de reverência. — E veja, menina Maria, este é o meu filho,
João, gestado na mesma época da vinda do teu — concluiu, apontando o garoto.
Maria chamou Jesus para apresentá-lo ao primo. Pois ao vê-lo diante de si,
João, que desde cedo era sensitivo, deu, involuntariamente, um passo para trás,
pois, no recém-chegado, notou uma estranha e poderosa força espiritual.
— Nós ficaremos alguns dias hospedados em Nazaré, espero que os
nossos filhos se aproximem e fortaleçam laços — ponderou Isabel.
Percebendo que João havia ficado ressabiado, Jesus lhe estendeu a mão
como se o convidasse a acompanhá-lo. O garoto, então, desfez a cisma e se pôs a
seguir o primo, que, havia pouco, ainda se divertia com Tiago.
Embora fossem estranhos um ao outro, era certo que ambos tinham uma
forte ligação antes mesmo de nascerem, afinal, o Anjo Gabriel havia anunciado a
vinda deles em espaços distintos de tempo — seis meses —, primeiramente, a
Zacarias e, na sequência, a Maria. O filho de Deus ainda não sabia ao certo, mas
a sua ordem de missão na Terra seria auferida pelas mãos daquele seu primo, o
qual, anos mais tarde, seria conhecido não apenas pelo simplório prenome João,
mas como João, o “Batista” do mítico Rio Jordão[42].
Pois aqueles dias em que os dois primos passaram juntos foram deveras
proveitosos. Embora mediamente escolado — naquele tempo, as lições eram
auferidas nas famílias e nos ajuntamentos comunais e religiosos —, Jesus
também aprendeu muito com João, cuja base do ensino era rígida e advinda da
sinagoga onde o seu finado pai, o sacerdote Zacarias, havia tido importante
destaque. Jesus declinava com facilidade as citações de Isaías; ao passo que João
tinha predileção pelas de Elias, de quem, futuramente, viria a copiar os trejeitos
de rezar e o modo de se vestir.
Ambos desenvolveram profícuo laço de irmandade, mas João só atestou a
realeza de Jesus quando este, correndo com o primo numa das vielas de Nazaré,
parou repentinamente junto a um casebre para interpelar um menino aleijado
que, avesso à folia das demais crianças, apenas as observava pela janela da sua
humilde morada e, ao lado dele, jazia, havia muito, uma gaiola malfeita e vazia.
Ao ver Jesus e João na rua, o garoto se mostrou um tanto arredio, afinal,
os anos de solidão o haviam tornado amargo, mormente diante daqueles em que
enxergava algo que parecia não possuir.
— O que fazes aí sozinho? — indagou-lhe Jesus. — O menino não
respondeu de pronto e, segurando algumas pequenas pedras nas mãos, continuou
a olhá-los sem muita simpatia. Percebendo que ele não mexia o corpo da cintura
para baixo, o filho de Maria insistiu. — Por que não vens aqui fora brincar
conosco?
Irritado diante daquela indagação, o meninote disparou ríspido:
— E por acaso não percebes que eu não posso andar?
Jesus o fitou silente e se aproximou. E, achegando-se da janela, envolveu
as mãos cerradas do menino e disse a ele:
— Tu não andas porque não quer.
Sentido uma demasiada energia vinda do interlocutor, o paralítico logo
repuxou as suas mãos e, ao abri-las, viu quando aquelas pedras se transformaram
em pequenas rolinhas que voaram para a tal gaiola vazia e, após emitirem alguns
arrulhos, saltaram para fora e sumiram no ar.
Estupefato, ele arregalou os olhos e encarou Jesus, que o reinquiriu:
— Como te chamas?
— Ba... Baruch... — respondeu, gaguejando.
— Baruch. O teu nome significa bênção. E se agora acreditas que podes
conseguir uma, levanta-te e vem aqui fora conosco.
Emprestando guarida às palavras que havia acabado de ouvir, o garoto
apoiou os braços na cadeira e finalmente se ergueu.
— Vês? — indagou Jesus. — O teu único mal se chamava falta de fé.
— Mas... Mas como fizeste isso? — titubeou Baruch.
— Eu nada fiz... — Sorriu-lhe, o ungido. — Quem o fez foste tu mesmo
— concluiu, ao apontar-lhe o dedo.
João ficou boquiaberto e, no primo, viu alguém verdadeiramente
diferenciado. Os aldeões ficaram maravilhados com a imprevista sorte do
pequeno Baruch, o qual, agradecido a Jesus por ter perdido a carapaça de dor
que lhe cobria, jamais revelou algo que, ante a ignorância de muitos, pudesse
comprometer o amigo.
Tais atos, por alguns chamados de milagres, não eram novidade na vida do
filho de José e Maria, que desde os tenros anos, já os realizava sob a égide
divina, e nos anos futuros, muitos, muitos outros ainda estariam por vir.

***

Cerca de mil e trezentos anos antes do dia em que Jesus completou doze
anos de idade, Deus, através do profeta Moisés, libertou o povo hebreu do
cativeiro no Egito, terra cuja base populacional advinha do clã de Cam, o filho
expulso de Noé. Desde então, os descendentes daquele tronco passaram a
comemorar tal evento numa festa chamada Páscoa, solenidade religiosa que
culminava com uma peregrinação em massa para o Templo de Jerusalém, o qual
era fincado sobre o Monte Moriá[43], bem a leste da cidade santa.
Fiel e agora possuindo melhores condições financeiras, José arregimentou
a família e partiu de Nazaré com outros peregrinos, a fim de acamparem nas
redondezas da urbe e se prepararem para o ritual de sacrifícios que, segundo a
lei, deveriam todos oferecer ao Senhor.
De toda as viagens feitas por Jesus, aquela foi a menos extenuante, haja
vista a companhia das demais crianças da caravana, que se divertiam durante o
trajeto e pouco sentiam os rigores da peregrinação. Durante o longo caminho, ele
se lembrou da infância no Egito e de quando tomava a liderança dos demais
amigos, sendo que, nessa nova oportunidade, parecia repetir aquela mesmíssima
postura.
Após chegarem e edificarem as suas tendas, os aldeões de Nazaré
rumavam para Jerusalém no intuito de trocar os seus dinheiros pelo shekel
hebraico, única moeda aceita no Templo e que se prestava a comprar um animal
para o sacrifício sagrado. Aliás, os sacerdotes do Sinédrio[44] se fartavam durante
essa época do ano, graças ao lucro elevado que tinham em razão da chegada em
massa dos fiéis, mostrando que a fé em Deus, ao menos para eles, tinha um
preço bem alto.
Jesus, por sua vez, ficou impressionado com as altas muralhas da cidade e
a grande presença de soldados romanos, o que o fez se lembrar do legionário
Longinus, a quem parecia instintivamente procurar em meio àquela agitada
multidão.
Por um instante, o menino perdeu a visão em meio aos bois, ovelhas e
carneiros que lá estavam, afinal, o sacrifício os aguardava pelas mãos dos
sacerdotes, os quais, alegando a descendência de Aarão[45], usavam vestes
brancas e se responsabilizavam pelos ritos diários do Templo.
Mas Jesus não via aquela estranha liturgia com tanta simpatia. Não com
relação à simbologia dela, mas sim, com referência ao abate conciso dos
animais, pelos quais ele nutria especial afeição. E após observar, contrariado, um
dos sacerdotes degolar um ovino não muito gordo que coube à sua família, ele
acompanhou, à distância, a queima das entranhas dele nos grandes chifres de
bronze do altar, afinal, a tradição assim o exigia. O cheiro da carnificina era
insuportável, e sequer o incenso e a mirra com canela esbraseados eram capazes
de minimizá-lo.
Tão logo o tal rito se findou, o restante do corpo do animal — desprezado
pelos sacerdotes diante da pouca monta — foi levado de volta ao acampamento
dos aldeões de Nazaré para, juntamente aos outros trazidos pelas demais
famílias, ser assado e consumido numa comemoração, pois o início da jornada
de retorno à cidade só haveria de ocorrer na manhã seguinte. Quanto à pele dos
bichos, mormente a dos cordeiros, ficavam em poder dos sacrificantes, que
teriam um bom lucro na revenda. Como visto, desde então já se usava o santo
nome de Deus para o patrocínio de privilégios pessoais sujos, algo que, no
futuro, o próprio Jesus revelaria crassa ojeriza.
Tendo em vista a grandeza do comboio, os segmentos dele — jovens e
adultos — eram divididos, e as famílias não viajavam unidas, afinal, os mais
moços aproveitavam o evento para adquirir maior responsabilidade. E sendo
Jesus um pré-adolescente, os seus pais não tiveram como se opor ao costume.
Mas no fim daquela mesma madrugada, após o banquete festivo, o
menino de Nazaré despertou antes de o sol nascer e, sem dar parte a ninguém,
retornou à cidade e ficou nos portões do Templo aguardando o momento certo
para poder entrar, pois parecia ter sido, para lá, levado por um magnetismo
involuntário, o qual nem ele sabia ao certo explicar.
E o calor do dia então adveio, e os peregrinos finalmente partiram. Mas tal
não foi a surpresa de José e Maria ao, na primeira parada da caravana, já
próximo ao cair da noite, procurarem o filho junto à ala dos menores e não o
encontrarem.
Embora conhecidamente peralta, Jesus nunca lhes havia saído,
efetivamente, das vistas, pois mesmo que desse as suas costumeiras escapadelas
com os amigos, ele jamais se apartava daquela forma. Seus pais ficaram deveras
angustiados e, em desespero, regressaram a Jerusalém a fim de tentar encontrá-lo
incólume, ainda que pela estrada. Finda a parte de um dia de viagem pautado
pela tristeza no coração, eles chegaram na cidade e, após procurá-lo, sem
sucesso, nos poucos acampamentos que ainda a rodeavam, o casal ingressou na
urbe para continuar a lida.
A virgem estava desconsolada; recusava-se até mesmo a beber água,
afinal, que fim teria tido aquele que havia sido profetizado como Messias?
Pois não tão longe dali, várias plateias haviam sido formadas diante dos
escribas e dos mestres da Lei, os quais, ao longo do dia, se faziam circundar por
dezenas de jovens ávidos em aprendê-la. Numa delas, um dos doutores fazia
alusão a Samuel, o profeta que havia ungido os reis Saul[46] e Davi e, conforme
as escrituras sagradas, citava um trecho de Natan[47].
— “E disse o grande juiz, que o Senhor Deus levantaria um descendente
de Davi que estabeleceria o reino dos céus na Terra...”.
Os doutos se puseram a discutir a máxima entre si, ponderando que o
referido líder israelita talvez estivesse aludindo ao filho de Davi e Betsabá[48], o
notável Rei Salomão. Mas de forma inusitada, um dos jovens que ali estava deu
um passo à frente e, mostrando reverência aos sábios, ousou tomar-lhes a
palavra.
— Rabino, se me permite, eu creio que o profeta Natan não fazia
referência ao terceiro rei de Israel.
Os demais, tantos os jovens quanto os adultos, mostraram-se surpresos
com aquela intervenção.
— E a quem então achas que o proclamador fazia alusão? — indagou um
dos mestres ali presentes.
— Certamente ao rei ungido que Deus fez referência ao seu primeiro
filho... — respondeu, de pronto, o menino.
— “Primeiro filho?” — replicou o idoso.
— Sim. Pois disse o Senhor, ao primogênito Adão, que orasse até que o
redentor surgisse de sua casa e o salvasse. E mais... que, da descendência dele,
seriam benditas todas as famílias da Terra.
— Falas do Messias que trará a salvação ao povo de Israel, menino?
— Eu falo daquele que nos exporá a um reino sem fronteiras; a um reino
de amor que haverá de permear o coração de todos. Pois o verdadeiro eleito
haverá de ser o anjo do pacto, o filho do fogo sagrado que trará a derradeira
salvação aos filhos do homem — pontuou, efusivo.
— E quando ele haverá de chegar? — perguntou um deles.
— Rabi, ao que sinto, ele já está entre nós...
— Pois então crês que o ungido já é nascido e nos libertará do látego
romano? — insistiu o curioso letrado.
— Os romanos são conquistadores, mas também são homens. E não
apenas os homens de Deus serão libertos, mas também os que se apartaram Dele
e precisam retornar ao Seu reino.
— E como achas que se entra nesse reino? — questionou um espectador.
— Entra-se nele ouvindo o interior da própria alma, reparando faltas
simples e seguindo o lado certo; valorizando e respeitando o espírito,
equilibrando as falhas e preservando o santuário da vida. Entrar no reino de Deus
é considerar o silêncio e ouvir antes de falar, pois aquele que grita não consegue
ouvir o que o seu “eu” tem a lhe dizer.
Boquiabertos, os escribas ficaram impressionados com a sabedoria
daquele meninote e encerraram a leitura, oportunidade em que, guiada pelo amor
que lhe trasbordava o coração, Maria foi atraída para as colunas do Templo e, ao
lado do esposo, viu quando os demais se achegavam daquele garoto — sim,
Jesus, o seu rebento fugido — cuja aura, ao menos para ela, resplandecia naquele
ambiente.
— Jesus; filho! — gritou emocionada, ao correr na direção dele e abraçá-
lo com os olhos encharcados. — Nós estávamos desesperados atrás de ti!
Pois o menino, que naqueles dias já possuía um pouco menos do tamanho
da mãe, olhou-a e respondeu:
— Mãe, desculpa por ter atormentado o teu coração; mas se fiz o que fiz,
agi apenas no dever que carrego em obedecer ao meu Pai.
— Pois eu não me lembro de ter-te mandado retornar ao Templo, Jesus!
— pontuou José. — E mais, sem avisar-nos! — concluiu, visivelmente nervoso.
— Perdão, senhor, mas eu estava fazendo alusão àquele que, antes de ti, é
o Pai do primeiro homem e também o Pai de todos nós.
Sabedores dos desígnios primários dele, José e Maria assentiram e não
mais o repreenderam, afinal, ao que tudo indicava, Jesus estava despertando a
consciência para a missão que, dentro em breve, ele haveria de iniciar no mundo.

***

Pois o inexpugnável arco do tempo girou e se estagnou dez anos depois


daquela Páscoa, e ele parou no exato dia em que José contava com setenta e sete
anos; e Jesus, um homem feito, vinte e dois.
Embora velho, José ainda guardava a aparência da média idade e, à revelia
da família, mantinha em segredo, uma artrite degenerativa contra a qual lutava
havia alguns anos. O valoroso homem sempre foi um trabalhador braçal e, nessa
qualidade, acabou tendo as juntas comprometidas, mas por ser um brigador nato,
recusava-se a se entregar.
Naquela oportunidade, Jesus havia saído com os seus irmãos e o tio
Cleófas para entregar alguns bancos no espaço que servia como sinagoga na
cidade e, já sendo final de tarde, José se sentiu um tanto indisposto e foi se deitar
mais cedo. Maria, ao seu turno, estava na morada da enteada Sara, pois esta
havia dado à luz havia alguns dias, e a imaculada a assistia e auxiliava.
Tão logo encontrou encosto para a sua cabeça, José se sentiu tonto e notou
um brilho invulgar diante de si, o mesmo que, havia muitos anos, lhe havia
surpreendido aos pés dos montes de Nazaré e na sua casa no Egito. E tal não foi
sua surpresa ao perceber que, à sua frente, estava o mesmo anjo que lhe havia
orientado, limpado a mente e salvado a vida numa estrada rumo a Belém.
— Se eu bem me recordo, disseste que nos veríamos apenas por mais uma
vez nesta vida — ponderou José.
— Tens uma boa memória, meu amigo — respondeu Gabriel, já ao lado
dele. — Pois adianto-te: a grande missão que o Altíssimo te deu foi concluída
com êxito.
— Rejubilo-me — disse satisfeito. — E já que o dizes, sinto que minha
lida não foi em vão.
— E não foi, José. O menino se transformou num homem e, daqui a oito
anos contados do dia de hoje, ele finalmente receberá o plano de Deus.
— Então apenas me resta agradecer ao Senhor pelo grato privilégio que,
em vida, eu auferi.
— O Elevado sabe bem disso e mandou-me aqui para agraciar-te, afinal,
na Terra, foste o tutor do filho Dele.
José esboçou um sorriso sincero, como se quisesse agradecer ao Altíssimo
pela oportunidade de ter criado aquele que haveria de mudar o mundo. Gabriel
elevou o dedo indicador direito e tocou os lábios do velho carpinteiro, que
fechou os olhos de maneira serena e visivelmente indolor.
Mensageiro de inúmeros talentos, Gabriel havia recebido, de Deus, a
incumbência de ser o anjo da morte dos bons reis e, embora José fosse um
simples artesão, a majestade que ele tinha envergado em vida — e também a sua
descendência longínqua — lhe deu créditos de sobra para auferir tal benesse.
Tão logo tudo se consumou, um querubim surgiu e tomou a alma de José
pelas mãos, a qual, ao finalmente se ver livre das capas materiais, soube que a
sua vida estava prestes a continuar num outro plano; pois embora o camareiro
houvesse lhe tomado a mão direita, o espírito de seu antepassado Davi logo lhe
tomou a esquerda, a fim de que o Éden Espiritual recebesse o seu mais novo
habitante.
Embora tivesse olhado por José e Maria por muitos anos, e assim, criado
certo afeto por eles, Gabriel passaria a se focar apenas em Jesus. E ainda que o
Altíssimo houvesse determinado que, nos piores momentos, o avatar de Miguel
estaria sozinho, o anjo-mor havia se encarregado de permanecer por perto até a
aferição de um chamado divino, o que em breve ocorreria.
Ao voltarem da lida e constatarem que o pai havia finalmente partido, os
filhos de José pratearam em demasia. Seguindo a tradição judaica, o corpo do
finado foi lavado e ungido com bálsamo, com a finalidade de, numa mortalha,
seguir ao sepulcro que lhe cabia. Jesus foi o responsável por olear o corpo. De
forma inconsciente, tomou aquela resina odorífera e, no peito do pai, desenhou
um símbolo estranho, como se, no fundo, quisesse assegurar a ele uma já
providenciada entrada no paraíso. No colo de José, Jesus fez lançar uma
inscrição simples, algo similar a uma grafia contínua e cruzada entre si,
incompreensível para os homens, mas que aludia, em essência, à assinatura
angélica do Príncipe Miguel, passaporte válido e seguro para ingressar em
qualquer plaga, aqui ou além de aqui.
Durante o cortejo, que foi acompanhado por inúmeros filhos de Nazaré,
Jesus se pegou pensando no pai terreno e no quanto havia aprendido pelas mãos
dele. A compreensão e bondade de José para com o filho tinha sido acima da
média para a época, pois, em sua vida, melhor amigo ele não havia tido. O
romano Longinus e os colegas de infância lhe tinham sido queridos, mas o velho
foi o maior exemplo de coragem e honradez já vistos por ele. Desta feita, no
momento em que o corpo foi levado para o sepulcro, Jesus se ajoelhou e pediu a
Deus:
— Receba, Senhor, o maior pai que um homem na Terra já teve.
Após o féretro, Maria foi tomada por uma grande tristeza, afinal, ela se
casou com José ainda menina e, durante os anos que com ele conviveu, foi
plenamente respeitada em suas virtudes, assim como queria o Senhor.
Os dias se passaram e, doravante envergando apenas vestes soturnas, ela
parecia se calar para o mundo. Jesus, que por muito tempo assistiu, passivo, o
sofrimento da genitora, decidiu tentar confortá-la:
— Mãe? — indagou-a ao vê-la chorar em silêncio. Ela não respondeu com
palavras, mas ao perceber que o filho a interpelava, tentou forçar um sorriso
entre as próprias lágrimas. — Estás bem?
— Sim, meu filho... — respondeu, sem conseguir esconder a
consternação.
— Percebo que ainda choras pela passagem de José, não? — indagou
acolhendo-a nos braços.
Maria não se conteve diante daquela indagação e desabou a chorar,
perdendo, de pronto, a condição de responder à pergunta. Jesus a abraçou com
mais intensidade e a levou para um banco que ficava nos fundos da casa,
fazendo com que ela se sentasse. Era um espaço aberto, nem grande, nem
pequeno; onde parte do sol repercutia sem muito rigor. Percebendo que a mãe
tinha diminuído o pranto por estar segura em seus braços, ele continuou:
— Mãe, José não está morto... — ponderou sorrindo. — Deus, ao
degredar os seus primeiros filhos no início dos dias, fez da Terra que habitamos
apenas um lugar de passagem, uma espécie de graduação pela qual os homens e
as mulheres devem transpor antes de atingir a verdadeira vida, a qual, asseguro-
te, não é a deste plano.
Ainda apoiada no ombro do filho, Maria se acalmou um pouco e
continuou a escutá-lo.
— Eu sei que é costume chorar pelo próximo que nos deixa, pois é nato ao
homem, ligar-se afetivamente às coisas palpáveis; aquelas materializadas diante
de si. E quando alguém nos deixa, a primeira sensação que temos é a de perda,
de tristeza. Mas não pode ser assim — asseverou, agora mais firme. — Pelo
contrário, nós devemos nos rejubilar, pois na maioria das hipóteses, a passagem
nada mais é do que o fim de um ciclo de ensino e o início de uma graduação
superior, sendo que, no caso de José, a pureza dele já o remeteu a uma dimensão
onde a paz é a única regra. — Jesus então enxugou as lágrimas da mãe e
concluiu: — Muitos dos que aqui vêm ter, certamente retornarão, já que a lei
divina da causa e do efeito é, de fato, implacável. Mas para os que em vida
apenas praticaram o bem e honraram o amor e a caridade, a transposição da
matéria nada mais é do que uma espécie de galardão, pois, com ela, findam-se as
dores e se inicia a verdadeira vida que Deus nos reserva em Seu reino.
— Fazes tudo ficar tão claro, meu filho — disse ela, já melhorando a
feição. — Vendo dessa forma, não há, de fato, como eu me manter triste.
— Felicito-me por isso, afinal, saibas que o teu esposo, o meu querido pai,
continua vivo, bem e forte, e a serviço do Senhor. — Maria finalmente voltou a
sorrir. — E lembra-te, mãe: não chores com tristeza a partida daqueles que foram
retos. Ao levá-los daqui, Deus nada mais faz do que recompensá-los com a vida
eterna, uma vida livre de moléstias, melancolias e maiores abrolhos — finalizou,
mostrando-lhe as mãos judiadas pelo trabalho braçal.
A imaculada acariciou o rosto de Jesus e acatou aquele importante
ensinamento, pois tudo lhe pareceu óbvio. Ela então passou a evitar as
vestimentas escuras, já que tal comportamento, segundo lecionou o filho, apenas
traria mais dor para os que aqui tinham ficado; e pela oração sincera, a virgem
vez mais se aproximou daquele por quem nutria inigualável respeito, o seu
amado José.
Entretanto, haveria de ocorrer que, num dia não tão distante daquele,
Maria se lembraria daquelas palavras ao presenciar, com o coração dilacerado, o
Eterno levar embora o seu único e mui amado filho de sangue, cujo sacrifício
seria necessário para que a raça humana quitasse a sua dívida com Ele.
Com a morte de José, os seus descendentes logo tomaram frente do
negócio de construção artesanal da família e, no prazo aludido por Gabriel, oito
anos contados dali, Jesus finalmente deixou a oficina para exercer outro tipo de
ofício, um que traria uma nova opção a rígida lei civil dos profetas passados.
***

E do mesmo jeito que a tristeza se abateu em Nazaré, ela não demorou


muito a pairar sobre as terras de Magdala.
Judah, que já era viúvo havia seis anos, se deixou vencer pelas agruras da
idade e padeceu de morte natural. Sua filha mais velha, Martha, já havia
contraído núpcias com o promíscuo varão de um rico mercador da cidade de
Joppa[49], o qual, havia muito, alimentava um desejo ilícito pela jovem cunhada,
que embora adulta, ainda era a moça da casa.
Mirian era muito apegada ao pai e, vendo-o falecer, sentiu que a sua
invejosa irmã teria o caminho livre para investir contra ela, algo que só não
havia ocorrido em razão ao temor reverencial nutrido ante o genitor de ambas.
Pois numa das noites que se seguiram àquele dia doloroso, Mirian estava
em seu quarto, como de costume e, deitada, prestes a dormir, não percebeu
quando um vulto sorrateiro lá ingressou, a fim de, num campo agora livre, tentar
odiosamente burlar o último acesso que a mantinha pura. Ao notar que estava
sendo observada, ela se ergueu assustada.
— Issachar, o que fazes aqui? — indagou, ao ver o ardiloso cunhado.
— Não te apoquentes; eu estava apenas a admirar-te — disse ele,
aparentemente embriagado e se achegando do leito dela.
Percebendo as más intenções do marido da irmã, Mirian tentou se
esquivar dele, contudo, ele foi mais rápido e deitou um punhal afiado sobre o seu
pescoço.
— Não resistas — sussurrou. — Pois hoje finalmente conhecerás um
homem de verdade — asseverou, arfando bem próximo a ela.
Acuada e com medo, Mirian sentiu quando Issachar começou a percorrer
o seu corpo com uma das mãos asquerosas.
— Agora fica quieta. Quieta! — disse, forçando-a a se deitar.
Percebendo o instinto de sobrevivência emergir, Mirian tentou se manter
calma até que vislumbrasse uma oportunidade de se livrar dele, afinal, bastaria
um pequeno movimento, e a sua garganta seria aberta de um lado ao outro.
Resistir ativamente, portanto, não lhe parecia uma boa saída; não sem a figura do
pai por perto.
Ao se perder nos robustos seios da moça, Issachar se deitou sobre ela e,
capturado pela luxúria, diminuiu a pressão da lâmina. Percebendo que ele havia
levantado a túnica para pressionar o emporcalhado sexo no seu, Mirian deixou-
se aparentemente dominar e, prestes a ser violada, conseguiu tomar-lhe o punhal
e, sem muito pensar, fincou-o de uma só feita nas costas do agressor, que deu um
urro imoderado ao experimentar o rigor do golpe.
Desperta em razão do brado que ecoou no palácio, Martha correu para o
quarto da irmã e viu o esposo deitado com uma enorme ferida nas costas, já
morto e coberto de sangue. Com a lâmina ainda nas mãos, Mirian mantinha-se
inerte no canto do cômodo, como se estivesse em estado de choque.
— Assassina! — gritou Martha. — Sua assassina! — bradou, ao se lançar
no corpo do marido.
Enquanto a confusão ocorria, um dos empregados que lá estava, sabedor
da má fama de Issachar e do ódio de Martha pela caçula, tomou Mirian nos
braços e tentou tirá-la dali, pois sem a proteção do pai, ela certamente seria
morta por ordem da irmã. Mas a raiva não impediu Martha de obstar aquela
evasão e, com o poder que agora lhe cabia, mandou prender Mirian na torre mais
alta de Magdala, a fim de dar a ela um destino não tão diferente do de Issachar,
cujo óbito apenas servia de desculpa para ela, finalmente, castigar a irmã.
No dia seguinte, enquanto os funerais do seu algoz corriam, Mirian
percebeu que a porta da sua cela estava sendo forçada e, assustada, viu quando
Zeevi, um servo fiel de seu pai, nela entrou rapidamente.
— Vem, princesa! Depressa! — disse ele, envolvendo-a com os braços.
— Zeevi? O que está acontecendo? — perguntou Mirian assustada.
— Estão para inumar o esposo de tua irmã. Entretanto, ela deixou
transparecer que tem intenções pouco nobres para contigo, pois há pouco
mandou um emissário buscar Calistrato, aquele grego mercador de escravas.
— Um mercador de escravas?
— Sim. E antes que ela te venda; eu te levarei daqui! — esclareceu,
ganhando os corredores onde uma das sentinelas, pelas hábeis mãos dele, jazia
morta.
Ao deixar a torre, Mirian foi levada para o estábulo e, sempre
acompanhada pelo seu protetor, fugiu rapidamente de Magdala.
— Mas para onde nós vamos? — perguntou confusa. — Martha não
descansará enquanto não me encontrar.
— Por ora, nós iremos para Séforis — disse ele, soltando dois cavalos. —
Sei que eu não tenho muita saúde. — Zeevi era tuberculoso. — Mas possuo uma
irmã que lá reside e certamente haverá de te esconder.
— Eu não queria matá-lo, Zeevi — apelou assustada —, mas não tive
escolha!
— Princesa, aquele homem era um devasso, todos sabiam disso, mas no
momento, é bom que aceites que o teu destino reside fora daqui, pois a tua irmã
sempre te quis morta.
Ajudados por outros servos, ambos deixaram rapidamente o palácio de
Migdal e rumaram para Séforis, onde Mirian tentaria desaparecer e se manter
oculta, sabe-se lá como e por quanto tempo.
Para Issachar, o preço por ter tentado macular a sagrada honra de uma
mulher foi a sua própria vida miserável.
Capítulo 3
A queda das Presenças
JÁ CAMINHANDO EM LIBERDADE VIGIADA pelos imensos corredores do
Quartel-General dos arcanjos, Azeyzel, recém-ingresso num regime de prisão
mais brando graças à intervenção de Metatron, trazia consigo alguns
pergaminhos sem importância que deveriam ser recolocados nas respectivas
estantes da biblioteca. Havia algum tempo, ele tinha conseguido aquilo que
desejava, a progressão por bom comportamento, e, aos poucos, auferia confiança
para circular mais tranquilamente.
Enquanto cumpria a tarefa numa das alas de acesso à livraria, ele olhava,
arisco, para os lados, no intuito de verificar se ninguém o espreitava. Em seu
íntimo, o alijado vigilante tinha planos obscuros, pois havia muito planejava
escapar do seu cárcere e, se encontrasse alguns dos segredos mágicos da extinta
ordem angélica das presenças[50] — várias anotações sobre elas estavam
escondidas naquelas dependências —, ele talvez pudesse ter as asas de volta,
bem como o conjunto sexual que lhe havia sido brutalmente trinchado pelos
lanceiros em represália ao contato promíscuo que ele havia ousado ter com
mulheres na Terra.
Enfim, surgiu uma oportunidade de agir. Vendo-se sozinho nas
inexoráveis dependências da livraria, mesmo que cercado por enormes estátuas
de arcanjos já mortos que pareciam vigiá-lo, ele caminhou devagar até o
afastado salão de Prohibitum, onde o ingresso era restrito e controlado por uma
detalhada fechadura de seis chaves, cujas cópias ficavam em poder de Metatron
e de Miguel. Entretanto, aquele maquinário tinha sido confeccionado havia
muito tempo numa importante casa de armas celeste, a mesma onde ele e o
irmão Semyaza, igualmente preso, costumavam dar expediente como mestres.
— Ora, ora... Se não me trai a memória, fui eu mesmo quem projetou
parte desse interessante mecanismo... — sussurrou, ao examinar o tal cadeado.
— Deixe-me ver — completou, ao procurar, em volta de si, algum instrumento
que pudesse auxiliá-lo.
Após uma breve busca pela antessala, ele vislumbrou algumas penas
metálicas usadas para escrituração e, tomando duas delas, entortou-as de modo a
criar um arremedo de chave, a qual, graças a sua ímpar destreza, não o
decepcionou em suas intenções. Pois ao fazer alguns movimentos cíclicos em
cada um dos seis orifícios, Azeyzel ouviu o clique final que liberou o seu
ingresso naquele salão colossal.
Sem alarde, ele ganhou o interior do compartimento e fechou
vagarosamente o portão, a fim de se manter oculto. A majestade daquele
ambiente era estupenda; nele, havia estantes que pareciam ser infinitas, sem
contar as obras de arte que lá jaziam. Mas o seu foco logo o direcionou para um
pequeno gradil aberto que emprestava passagem a uma espécie de cubículo
inferior, acessível por um pequeno lance de escadas, onde pareciam ficar os
documentos mais raros.
Diminuindo a silhueta para ali entrar, Azeyzel experimentou certa
decepção ao, nas parcas prateleiras lá dispostas, encontrar apenas planos das
legiões militares e algumas listas sócio-políticas de determinados anjos outrora
investigados por subversão, dentre os quais, ele próprio.
— Tanto esforço para nada... — balbuciou, ao fazer pouco daqueles
relatórios que davam a ele o status de líder dos descontentes que, no passado,
haviam desejado derrubar o portal palaciano para imigrar à Terra em busca da
formosura das humanas.
Sem ter encontrado o que originalmente procurava, ele deixou aquelas
pastas onde as havia encontrado e voltou pelos mesmos degraus, expandindo luz
do próprio corpo para iluminar o caminho, afinal, o ambiente era escuro e
sombrio. Já estando de volta ao nível superior, mas ainda no interior do austero
salão, Azeyzel teve a sua atenção chamada para o fundo de um corredor, onde
um enorme globo descansava sobre uma coluna cercada por adereços de metal
similares a gavetas. Num deles, sob a forma de uma maçaneta arredondada, jazia
a expressão “Archangeli Custos” – arcanjos guardiões.
De pronto, o exilado percebeu que se tratava de mais um trinco, talvez
montado por outra potência que não ele, e a qual sequer viva estaria. Mas qual
seria o segredo dele? O tal cadeado não envergava orifícios, mas tão somente um
acionador circular que podia ser girado para a esquerda ou para a direita. Mas
sem o código, o que fazer? Sim, pois ele sabia que as travas angélicas mais
rebuscadas, como aquela aparentava ser, tinham um mecanismo de segurança
contingencial e, caso fossem erroneamente forçadas, quebrariam a tranca
primária e acionariam outras tantas, tornando a abertura praticamente
impossível. Some-se a isso que o tal obstáculo poderia ser armadilhado,
perigando avançar-lhe o braço e ceifá-lo ao meio.
Dúvidas.
Entretanto, Azeyzel não era um simples celeste da ordem das potências.
Como renomado mestre-armeiro, ele foi um dos mais requisitados metalúrgicos
do Céu e, como poucos, tinha a astúcia aguçada para enigmas. Diante disso, ele
pensou por mais alguns instantes e, engenheiro de formação que também era,
decidiu fazer uso de uma antiga fórmula lógica baseada na separação de
fonemas.
Azeyzel dividiu as seis vogais das dez consoantes da máxima “Archangeli
Custos”. Aquelas, diante das regras matemáticas celestes, aludiam ao positivo; e
as últimas, ao negativo. E, considerando o caminho mais comum de uma chave,
ele classificou as letras positivas — vogais — para a direita; e as negativas —
consoantes — para a esquerda. Assim, seis movimentos à direita e outros dez à
esquerda.
Tenso, ele decidiu arriscar a combinação e, ao concluir as seis rotações,
verificou que a maçaneta teve a estrutura retraída em parte, mantendo-se inerte.
Feito isso, ele operou as dez torções à esquerda e, para a sua surpresa, a peça
retraiu-se novamente e encaixou-se no molde, sem que nada ocorresse.
Crente de que talvez tivesse feito algo errado, Azeyzel deu alguns passos
para trás com o intuito de observar o acessório à distância, quando percebeu que
o globo posto sobre a coluna começou a girar para cima e cintilar. Após mais
alguns instantes, a peça da base se ergueu e revelou uma gaveta funda, na qual
estava posto um velho calhamaço que envergava a expressão: “Praesentia
Agitur” – Tratado das Presenças!
Pronto! Lá estava o tão aspirado livro proibido da velha casta das
presenças, onde parte dos seus sortilégios haviam sido preservados. Surpreso,
Azeyzel tomou aquele material nas mãos e, cuidadosamente, o levou para uma
mesa, sempre olhando para os lados a fim de se assegurar que não era vigiado.
Ao folhear as primeiras páginas e nelas ler algumas notas, ele foi tomado por
uma sensação muito estranha, talvez um arremedo de saudosismo de épocas
passadas e bem distantes daquela.
— É esquisito como tudo aparenta ser tão recente, pois parece que foi há
pouco tempo que Pyriel e os seus anjos magos foram esmagados pela armada de
Deus... — balbuciou, já folheando aquele compêndio. — Bem, tomara que eu
encontre as respostas que tanto procuro — sussurrou, deixando-se
instintivamente levar pelas reminiscências de um passado muito distante, onde
uma das treze ordens angélicas havia sido brutalmente extinta. As lembranças de
como tudo tinha acontecido começaram à lhe voltar a mente, como num
sorrateiro passe de mágica.

***

Bem antes da fatídica rebelião de Lúcifer e do degredo de um terço dos


anjos, a paz celeste não era em regra rompida. Fora algumas desordens aqui e
acolá, sempre reprimidas pelos implacáveis destacamentos dos arcanjos, o Céu
vivia num clima de aparente normalidade. Entretanto, algo naqueles tempos
longínquos estava prestes a mudar, e para sempre.
Foi numa das reuniões ordinárias com Deus, que o ainda alto serafim
Lúcifer observou o irmão Pyriel, o príncipe-primeiro da ordem das presenças,
envergar um olhar estranhamente perdido, pois pouca atenção havia dado às
liturgias discutidas. Findo o encontro, ele achou por bem fazer uma visita de
cortesia ao confrade, talvez para desvendar a possível motivação daquele
aparente desconforto.
Os anjos da Presença. Eles compunham a ordem dos dramaturgos, dos
artistas que abrilhantavam os coliseus, e dos dançarinos que davam espeque às
orquestras dos Tronos. Mestres da arte e da pintura, eles faziam uso de uma tinta
à base de hematita que embelezava os seus templos e monumentos, e de um
extrato da mesma matéria; tatuavam belíssimos desenhos na própria pele, algo
que celeste algum, dada a ação invasiva e bastante dolorida do processo, fazia.
Eram eles, enfim, os únicos anjos cujo sangue envergava uma oleosidade
aromática, que misturada à resina, gerava uma espécie de incenso que, ao ser
seco e queimado, trazia particular perfume aos seus domínios.
Ao ganhar o grandioso corredor do mosteiro de Artium, a casa das
Presenças, Lúcifer observou Pyriel sentado num trono pomposo que lhe permitia
manter os cotovelos apoiados. Na mão esquerda, ele mantinha aceso um
pequeno pomo de fogo rodopiando, o qual encarava detidamente. Pois ao
perceber a chegada do líder dos serafins, Pyriel pontuou:
— Observa, meu caro Lúcifer — disse ele, mirando aquele rotativo
conglomerado em chamas. — A preciosa matéria da nossa forja: o fogo.
O serafim deu alguns passos na direção dele e o fitou ressabiado.
— Mas eu estava aqui a pensar... Esse fogo? De onde foi ele tirado? —
concluiu, sorrindo maliciosamente e fazendo o tal foco se autoconsumir de
forma inesperada.
Lúcifer circundou Pyriel e, dado o teor daquela estranha conversa, sentou-
se ao lado dele e disse:
— Eu me recordo de quando nasci pelas mãos do Senhor, pois outrora fui
um conglomerado desse mesmo fogo. Mas confesso que jamais fui tão a fundo, a
ponto de questionar a efetiva origem dele — esclareceu, apoiando o queixo
numa das mãos.
— Tenho refletido e estudado muito sobre isso — respondeu-lhe Pyriel.
— Sempre que um de nós morre, Deus doma esse mesmíssimo fogo e replica
mais um anjo no Céu.
— E o que pretendes dizer com isso?
— Que todos nós nascemos pela força das mãos Dele, isso é um fato.
Mas... E se o Criador, porventura, viesse a nos faltar? Quem então forjaria mais
anjos? — indagou já se erguendo. Ao perceber que Lúcifer havia ficado
intrigado com a ousadia daquela estranha tese, Pyriel tentou minimizar o tom da
conversa. — Não me julgues mal, irmão. Trata-se apenas de uma indagação
meramente acadêmica, a qual agora divido contigo — justificou, ao passar as
mãos pelos seus compridos e sempre perfumados cabelos alourados.
— É estranha essa ponderação. Eu prefiro não pensar em tal possibilidade,
afinal, acredito que a energia do nosso Pai há de ser infinita — replicou Lúcifer
de maneira segura.
Pyriel, já estando de costas para o grande serafim, virou-lhe a face e,
esboçando um sorriso cáustico, disse:
— Mas ainda “academicamente” falando, quem te assegura isso? — Pois
antes que Lúcifer pudesse dizer alguma coisa, o arisco príncipe das Presenças
voltou-se para ele e vez mais se adiantou. — Peço-te escusas, confrade, por
vezes eu me supero em indiscrição — ponderou com o semblante agora mais
leve. — Mas já que vieste me visitar, acompanha-me até um dos anfiteatros.
Gostaria de mostrar-te o ensaio de um novo espetáculo.
Lúcifer anuiu e seguiu Pyriel, mas estava intrigado com aquela conversa e,
no fundo, não lhe faltava razão. De forma secreta, o místico líder das Presenças
estava, havia muito, enveredando-se em terrenos perigosos. Estava obcecado
pelos segredos da concepção e a relação dela com os anjos e, desde então,
tentava desenvolver suas faculdades internas a fim de conhecer plenamente a
própria natureza e dominar certos poderes que julgava ter dentro de si.
Embora a aproximação dos aspectos ocultos do Senhor fosse proibida,
Pyriel passou a exercitar fragmentos nervosos que os anjos ainda não usavam e,
envergando magnetismos extraídos da força de Deus, os quais passou a
paulatinamente repassar aos demais celestes da sua casta, o líder das Presenças
foi, aos poucos, potencializando os seus poderes.
De início, ele começou a movimentar pequenos objetos sem tocá-los, até
que, com o passar do tempo, conseguiu atingir um equilíbrio energético que lhe
deu um controle absoluto sobre o sentido da existência. Sua mente foi inundada
por ideais inéditos, e a sanha pelo poder passou a lhe atormentar.
Mas antes de dar um passo maior, o da criação, era necessário um
pequeno teste. E em breve, ele haveria de ocorrer.

***

E aconteceu que um alto anjo da presença chamado Barakyel foi


convocado às pressas ao salão de Artium e, em razão da hierarquia, reverenciou
o Príncipe Pyriel que lá estava, sozinho. Barakyel, uma espécie de vice-gestor
das Presenças, estranhou o fato de o superior ter lhe estendido a mão direita, algo
que não era comum ao protocolo angélico. Ao estender a sua em resposta, ele foi
surpreendido pelo líder que, com a mão esquerda até então oculta, sacou um
florete de fogo e, com ele, arrancou-lhe a metade do braço.
A severa acústica do local fez com que ninguém se apercebesse do
ocorrido e, sem nada entender, Barakyel caiu de joelhos, aterrorizado e, o que é
pior, sem parte do membro superior.
— Estás fora de si, senhor? Por que fizeste isso? — balbuciou com
dificuldade em razão da extremada dor que experimentava.
Pyriel, em contrapartida, manteve-se silente e, com uma incomum
amabilidade no rosto, aproximou-se vagarosamente do irmão, o seu lugar-
tenente. Sem encontrar resistência, tomou-lhe gentilmente o braço ferido e, com
a ponta do dedo, fez, dele, se expandir uma onda energética que o recompôs aos
poucos, deixando o recém-chegado ainda mais boquiaberto do que já estava.
— Mas o que... — gaguejou. — O que é isso? — indagou, ao perceber
que o seu membro decepado havia sido integralmente refeito.
— Isso se chama mágica, Barakyel. Mágica!

***

Os anjos em geral, mormente os serafins, eram grandes apreciadores das


tragédias teatrais encenadas pelas Presenças e, de tempos em tempos, lotavam as
arenas para assistir à performance dos talentosos irmãos.
Ocorreu que, nos novos espetáculos, passou a se tornar uma constante o
uso de efeitos visuais nunca antes vistos, os quais, pela realidade, pareciam
desafiar a ordem das coisas. Creditados à ficção, atos como o da
desmaterialização passaram a ser aplaudidos com veemência. “Estariam, as
Presenças, atingindo o clímax da evolução artística?”, refletiam os estupefatos
espectadores.
Pois Lúcifer continuava intrigado e, sem chamar a atenção, introduziu
alguns espiões naquela ordem a fim de farejar algo que revelasse as reais
intenções de Pyriel. Afinal, seria ele apenas um entusiasta da arte ou um traidor
em potencial?
Em segredo, Pyriel continuava a aperfeiçoar ainda mais as habilidades
daquilo que chamava de “mágica” e, magnetizando as plateias, vendia como
fantástico o que já beirava o real. Muitas fórmulas passaram então a ser, por ele,
escrituradas num tratado, a fim de que aqueles estudos não se perdessem. E o
que havia sido apenas uma curiosidade sobre a origem dos anjos, passou a ser
uma obsessão para aquele celeste que, de artista, passou a mago, um mago
obscuro que distorcia suas intenções. Ao recriar parte do braço do seu auxiliar,
Pyriel transpôs um limite defeso a qualquer anjo, já que o poder de cura, restrito
à virtude Rafael, não se poderia ser confundido com o da recriação, exclusivo de
Deus.
Após auferir uma pequena parcela dos poderes divinos ao se alimentar da
força motora vinda do Senhor, ele passou a doutrinar os seus, os quais, sem
alardear as novas, não mais precisavam de asas para se deslocar e, sem operar
força motora, iam e vinham de uma plaga a outra, como se desaparecessem aqui
e surgissem acolá.
Enfim, a matéria se transformava em energia e se reconstituía em outro
local. Pyriel, então, arrebatou a autoridade do teletransporte.

***

Passado certo ciclo temporal, Pyriel finalmente resolveu reunir quatro


grandes anjos da Presença na távola de Artium, pois lá, após muito imiscuir-se
nas ciências proibidas, pretendia quebrar a barreira da concepção e replicar anjos
por si só. E diante delas, num magnífico cenário, anunciou o que havia muito
planejava:
— Irmãos, eu vos convoquei para transpormos o último obstáculo que nos
separa de uma condição divina — anunciou efusivo. — E pelo poder místico da
concentração, aliado aos ritos mágicos que venho desenvolvendo, estou
plenamente convencido de que estamos prontos para conceber a partir do fogo.
— Príncipe, se o que pretendes fazer for auferido, haveremos de ser a
ordem angélica mais poderosa do Céu — acentuou uma das Presenças.
— Se o que eu desejo finalmente se concretizar, vos asseguro que a nossa
casta terá um exército bem maior que a dos arcanjos! — respondeu Pyriel,
estendendo-lhes as mãos e convidando-os a formarem um círculo.
Os quatro, até então meros entusiastas da magia negra, ficaram eufóricos
com a revelação, pois criar uma nova armada só poderia significar uma coisa:
sublevação para conquista.
Enfim, diante da concentração geral, cada uma daquelas Presenças
contribuiu com uma força distinta. Unidas, elas começaram a ressoar um dialeto
estranho, o mesmo que Lilith, num futuro ainda muito distante daquele, viria a
entoar em seus sortilégios, e, após entrarem em transe, expeliram, dos seus
corpos, diversos focos energéticos que, convergindo para um ponto central na
mesa, começaram a moldar uma forma de fogo similar à deles próprios.
Os relampejos de luz expandidos eram extraordinários, e nem mesmo o
temor das consequências daquele perigoso ato obstou a ousadia dos anjos magos,
cujo anseio pelo poderio ilimitado lhes passou a ser uma obsessão. Pois ao fim
do ritual, viu-se posto no meio deles um arremedo de ser vivente, em brasa, o
qual se mexia com dificuldade. As presenças, dali por diante, finalmente
criariam a vida, ação que, até então, era exclusiva da seara de Deus.
— Nós conseguimos, está feito! — desabafou Pyriel, sem esconder o
aparente cansaço pelo cerimonial.
Entretanto, visando preservar a casta caso algo de errado acontecesse
naquela solenidade, ele proibiu que Barakyel, seu substituto direto, participasse
do rito. Esse foi o seu erro. Enciumado por ter sido preterido, ele observou a
cerimônia escondido e, estupefato, viu o pecaminoso resultado dela. Tocado pela
inveja, ele não manteria aquele segredo guardado por muito tempo.

***

As estranhas habilidades artísticas que as Presenças passaram a apresentar


começaram a chamar atenção. A rotatividade do uso dos anfiteatros foi sendo
restrita a alguns espaços menores, fato este que levantou a suspeita dos espiões
de Lúcifer. Ninguém de fora da casta ainda sabia, mas os maiores coliseus
haviam sido fechados e passaram a ser usados para esconder a raça bastarda
criada pelas Presenças, a qual crescia assustadoramente.
Deus, havia muito, sentia um distúrbio na sintonia da criação. Constatando
que o foco vinha dos domínios das Presenças, convocou Miguel em segredo e
determinou uma investigação mais detalhada, sem alardear aos demais. O
príncipe percebeu que o Pai estava aparentemente abatido, entretanto preferiu
não entrar nesse mérito com Ele.
De outra banda, Lúcifer já havia se adiantado nesse particular e, com base
nos informes que auferira, assediou o enciumado lugar-tenente de Pyriel e dele
obteve o que precisava. Barakyel, cego por acreditar ter sido preterido, acabou
delatando as pouco ortodoxas intenções do seu príncipe, cujo poder de criação já
estava esbarrando no do Elevado. Com isso, o serafim-mor tratou de participar
aquela traição a Miguel, mesmo sem saber que ele já estava à frente de uma
inquisição sigilosa contra as Presenças.
— Respeito a tua discrição, irmão... — disse Lúcifer, ao saber do
inquérito. — Pois se o Senhor tivesse me pedido sigilo, eu também zelaria por
ele — concluiu.
— Felicito-me em saber que entendes — disse Miguel, ao perceber que
Lúcifer não havia ficado ostensivamente melindrado. — Mas como Pyriel
conseguiu auferir todo esse poder? — arrematou confuso.
— Eu ainda não sei ao certo. Barakyel me confidenciou que o seu príncipe
lhe moldou um novo braço após ceifá-lo com um golpe de espada.
Miguel ficou surpreso com a revelação.
— Um braço?
— Sim — anuiu Lúcifer com um aceno positivo da cabeça.
— E se ele conseguiu fazer isso, já deve ter ido bem mais longe.
— E foi... — respondeu o serafim com um olhar incisivo. — Barakyel
disse que as Presenças estão forjando corpos de fogo similares aos nossos, mas
não foi preciso nem me dizer onde ou em que condições eles seriam utilizados.
— Corpos de fogo!? — surpreendeu-se novamente o arcanjo.
— De certo. E outrora, Pyriel deixaou escapar uma estranha tese pessoal,
sobre um Céu desprovido de Deus...
O guerreiro segurou a própria espada e ponderou:
— Isso soa perigoso. Creio ser chegado o momento de ele prestar contas.
— Tenhas cuidado, Miguel. Eu acho que isso deve ser feito de maneira
discreta, a fim de que as coisas não escapem do nosso controle.
— Tens razão — assentiu. — E se, ao acaso, restar comprovada a infâmia
de uma pretensa lesa-majestade, eu temo pelo destino de Pyriel e da ordem das
Presenças.
— Irás atrás dele? — indagou o primogênito de Deus.
— Certamente. Não há alternativa. Mas antes, darei parte disso ao nosso
Pai, afinal, o cetro real não pode correr perigo nesse ínterim.
Lúcifer então se despediu de Miguel e deixou Barakyel aos cuidados de
dois lanceiros, preventivamente preso.
Ao saber do ocorrido, o Elevado não demonstrou demasiada surpresa,
afinal, aquela revelação nada mais era do que a comprovação das Suas suspeitas
iniciais. Mantendo a mesma estratégia, Ele orientou Miguel a ir até Artium e
“convidar” Pyriel para uma audiência com os arcontes e, quem sabe, resolver
aquele impasse sem maiores problemas; problemas “mais violentos” por assim
dizer.
— “Instruam um processo; deem um veredito preliminar e me tragam a
conclusão” — assentou o Senhor.
Feito isso Miguel convocou dois arcontes e mandou que eles se dirigissem
ao teatro das Presenças. Ao perceber que os delegados do Senhor haviam lá
chegado com um nada agradável destacamento de lanceiros, o ousado Pyriel,
ciente de que já havia sido descoberto, os recebeu sem deixá-los esperar.
— Lanceiros aqui em minha casa? Pois seria, eu, tão digno de uma escolta
dessa magnitude? — asseverou aos arcanjos como se já soubesse da vinda deles.
— Temos ordens divinas de levar-te até Vigilum, príncipe — disse Haudax
de maneira aparentemente cortês.
— Bem, se “Deus” dá uma ordem, ela deve ser cumprida! — respondeu
Pyriel, já fitando os seus, como se os estivesse licenciando a fazer algo pré-
combinado e que mudaria tudo dali por diante.

***

Na sede do quartel dos arcanjos, Pyriel sofria um duro interrogatório, mas


com a habilidade de um ator, ele se esquivava de dar respostas diretas e, fazendo
pouco dos arcontes, vez ou outra dizia frases sem sentido, como se estivesse
atuando numa peça. Mas o celeste admitiu, entretanto, que havia atingido um
plano místico diferenciado.
— Pois então, príncipe, diga-nos no que consiste esse plano? — pontuou o
Arcanjo Daurah.
— Em três dogmas, caro arconte: autoconhecimento, aprendizado e
utilização da ciência.
— E o que pretende fazer com eles?
— Manter o equilíbrio das coisas e celebrar a vida!
— E Vossa Excelência crê ser certo tomar para vós o equilíbrio do nosso
ciclo vital?
— Eu apenas acredito que o corpo e a mente podem ser melhor
exercitados, e que a meditação pode nos levar a caminhos outros que não os da
mera servidão.
— E o que isso significa?
— Que nós não podemos ficar adstritos a uma única fonte vital —
defendeu. — Irmãos, é difícil perceber que estamos aptos a auferir o poder da
criação? — Os arcontes se entreolharam, e a mais alta Presença, sem se inibir
com eles, continuou a discursar. — Digam-me sem temor, que mal existe em
ousar, em saber?
— Nós somos apenas servidores, Pyriel — interferiu Miguel, que a tudo
assistia à distância. — E nessa qualidade, não devemos ousar acima do que nos é
permitido.
O príncipe cativo se mostrou enervado com aquela observação e, ainda
estando com os pulsos livres, bateu com os braços sobre o apoio da cadeira em
que estava.
— Será que é tão difícil entenderem isso? — insistiu. — Deus age através
de nós, Seus dez príncipes-primeiros. E diante disso, não podemos nos limitar a
uma lealdade obtusa de submissão, pois o poderio que se manifesta através de
nós também há de ser divino.
— O que estás a dizer? — perguntou Haudax.
— Que o que eu fiz visa nos alinhar ao caminho natural da vida, da
evolução. Entendei! Não devemos temer o que nos torna mais fortes, já que o
poder é algo nosso. Portanto, esqueçais a hierarquia cega e aceiteis aquele que,
embora não sendo Deus, também pode vos dar o conhecimento.
— Domar esse poder é algo que não nos é lícito, príncipe! — continuou o
arconte, agora com um pouco mais de firmeza.
— Nós desenvolvemos um novo conceito, as Presenças querem apenas
exercer as suas forças interiores e tornar a vida possível. E é por isso que nós não
devemos nos limitar a um único caminho — retrucou Pyriel.
— Então, isso é o que chamou de “magia”? — insistiu o inquisidor.
— Chama da forma que quiseres, Haudax, eu apenas desenvolvi
faculdades que estão ocultas em todos nós, inclusive em ti. E, de mais a mais, é
preciso admitir que é muito egoísmo mantê-las adstritas apenas a uma força.
— Basta disso! — bradou Miguel, nervoso. — Creio que temos provas
suficientes de que, embora sejas um anjo precedente, transpuseste os caminhos
da ciência e buscaste meios alternativos para aferir poder.
Pyriel se mostrou deveras decepcionado com a recalcitrância dos arcanjos
e se calou. O inquérito prosseguiu de forma rápida e, ao final, foi entregue aos
cuidados do procurador de justiça celeste, o mítico serafim Baalberith, a quem
caberia ofertar uma já certa denúncia. Sem prejuízo disso, os arcanjos
entenderam que seria prudente alijar as Presenças a fim de, ao menos até o final
do julgamento, nada viesse a perturbar a ordem celestial.
Miguel não acreditou que as coisas iriam tão longe e, por cautela,
despachou uma centúria para reforçar o cerco ao palácio de Artium. Mas o que
ele mal sabia, era que o astuto Pyriel já havia preparado um plano contingencial
para tentar garantir a continuidade da pecaminosa ordem dos magos. E no
momento certo, um levante sem precedentes ocorreria no Céu.

***

No Fórum localizado na primeira torre de Vidiam[51], Pyriel jazia algemado


entre dois lanceiros e, à sua frente, estavam três dos seus juízes: Jofiel,
presidente da audiência e árbitro das causas mais graves, e Jeliel e Melahel,
arcontes-substitutos. E, na condição de amicus curiae[52], o querubim Caliel,
capitão da Guarda Civil da Câmara, representando a divindade e corte angélica.
O Eterno aparentava estar estranhamente fatigado, o que talvez se devesse
à energia que o príncipe das Presenças havia lhe subtraído de forma ilícita.
Ainda assim, o mago-mor seria, agora, submetido a um tribunal de iguais. E
quanto às presenças em Artium, estas não se mostraram surpresas com a chegada
dos soldados mandados por Miguel e, como se nada estivesse ocorrendo,
permaneceram silentes e misteriosamente passivas.
Enfim, a audiência estava prestes a começar. Todos os príncipes-primeiros
estavam nas bancadas do Tribunal e, tão logo soou o toque triplo pela trombeta
de Israfel[53], o arrogante Baalberith, representante da Procuradoria de Justiça,
subiu na bancada e rezou o libelo.

∷ ∷ ∷

“Meritíssimos arcontes, pelo rito de instrução especial e por seu


procurador ora constituído, irá a Ordem de Diabolus[54] contra o anjo da
presença, Pyriel, príncipe-primeiro da consentânea casta, nos termos
acusatórios seguintes:
Por delação e por confissão, o réu é acusado de incidir no hediondo
crime de lesa-majestade, pois ousou se erguer contra a regra da concepção da
vida, a fim de suplantar o Criador, além de fomentar e defender a abominável
tese de que Ele poderia ser dispensável.
Esta Procuradoria irá demonstrar que o acusado assim agiu por odiosa
soberba, imbuído na crença de que subiria ao trono de Deus usando algo que
ousou chamar de “magia”.
Nesses termos, apresentamos a denúncia, a qual requeremos incontinente
recebimento para que o réu seja submetido a julgamento, mirando a sua
condenação à pena máxima, qual seja, a de morte por esquartejamento a ser
executada pelos lanceiros da seção de arcanjos.
Por oportuno, postulamos a inquirição em plenário da primeira
testemunha, o Anjo da Presença Barakyel, nos termos das tábuas legais”.

∷ ∷ ∷

Pois cumprida essa formalidade, deflagrou-se então o que deveria ser o


maior julgamento da história dos anjos.

***

Na casa de Artium, tudo estava aparentemente calmo. Entretanto, o plano


nefasto de Pyriel estava prestes a ser iniciado. Ciente de que seria preso —
como, de fato, foi — o príncipe-primeiro das presenças licenciou os seus irmãos
a agirem tão logo soube da chegada dos arcontes. Ao usar a expressão “se Deus
lhe dá uma ordem, ela certamente deve ser cumprida”, a presença-mor estava nas
entrelinhas se referindo a ela própria, como se estivesse ordenando um revide
aos que viessem a atentar contra a secreta ordem dos magos, cujo “deus”, agora,
era ele.
Pois estando os arcanjos a postos nos domínios das Presenças, eles, de
repente, notaram quando um estranho, cujo corpo flamejava, surgiu caminhando
cabisbaixo pela grande escadaria de Artium. Crendo que ali talvez estivesse um
artista envergando algum tipo de vestimenta teatral, um dos soldados investiu
contra ele, alertando-o para não ir adiante.
— Alto! Nós temos ordens para que ninguém deixe esse recinto!
Pois ao mirar o rosto do ser, tal não foi a surpresa do miliciano ao
vislumbrar, por entre o capuz que ele trajava, uma face inteiramente feita de
fogo.
Ao recuar alguns passos, aquele mesmo arcanjo, e outros tantos que ali
davam guarda, viram surgir uma grandiosa turba por trás dos muros da província
das Presenças, cujas asas, ao invés de penas afiadas, chamuscavam.
O arcanjo então sacou a sua espada fulgurante e tentou golpear o estranho,
mas ela simplesmente o transpassou sem causar-lhe qualquer dano físico, afinal,
ele não tinha carne, não tinha sangue, era somente fogo. Mas ao contrário, os
militares envergavam matéria corpórea diversa — sangue além de chamas — e,
pegos de surpresa, foram atacados por aquelas criaturas espúrias, as quais
surgiam aos milhares.
Enquanto a instrução processual transcorria em Vidiam, o plano de Pyriel
— e também, uma guerra inesperada — eclodia. Sentindo-se acuadas ante a
prisão do líder, as Presenças interpretaram a linguagem corporal do seu príncipe
e puseram os bastardos em liberdade com o intuito de, ao usar magia negra,
tentarem suplantar quem quer que lhes fizesse oposição para, ao fim, implantar
um novo reinado no Céu.
Pois a primeira missão já lhes era conhecida: libertar o futuro rei deles,
Pyriel, quiçá o próximo regente no lugar de Deus.

***

Num ímpeto, a austeridade do depoimento do Anjo Barakyel foi


abruptamente interrompida. Alertados pelo estranho movimento vindo das áreas
externas do Fórum, os espectadores da tribuna foram surpreendidos com a
notícia de que estranhos haviam sido soltos em Artium e, blindando as
Presenças, rumavam para as torres de Vidiam destruindo tudo o que se punha
diante deles.
Contido por severas algemas energéticas, Pyriel ergueu vagarosamente a
cabeça e esboçou um sorriso ardiloso, como se apenas aguardasse pelo seu
resgate, o qual, ao que tudo indicava, não tardaria a chegar.
Miguel se ergueu depressa e ficou estupefato com o que viu: entes
armados e forjados tão somente de fogo. Sem demora, ele deu um sinal ao
corneteiro, o qual entoou um chamado contingencial que repercutiu em
Vigilum[55], onde grande parte das legiões estava estacionada. Entretanto, àquela
altura, e diante daqueles seres, elas talvez não fizessem muita diferença.
Assim que os rebentos das Presenças se aproximaram da torre onde ficava
o Fórum, muitos espectadores tomaram armas para se defender, afinal, o cenário
externo aludia ao de uma batalha campal desenfreada, pois os bastardos estavam
dilacerando os seus obstáculos a fim de ganhar o interior do prédio. Percebendo
que os ataques aos invasores eram inúteis — as espadas angélicas os varavam
sem lhes causar danos —, os fiéis operaram uma retirada em massa, pois nada
parecia suplantar aqueles invasores.
Miguel tentava abrir caminho sem muito sucesso, pois embora a sua
habilidade o livrasse dos severos golpes que eram dados contra si, os poucos que
ele conseguia acertar eram indiferentes aos “soldados” de Pyriel. Diante disso,
ele achou por bem retornar ao Quartel-General e buscar descobrir algo que
pudesse fazer efetiva frente àquelas abominações, as quais pareciam
indestrutíveis. Como ele, centenas de outros anjos tiveram a mesma iniciativa e
deixaram o plenário, onde o príncipe das Presenças acabou resgatado sem
quaisquer dificuldades.
— Cercai a torre e matai quem se aproximar! — ordenou aos seus
asseclas. — Daqui, nós iremos até o palácio de Deus e poremos um fim nisso de
uma vez por todas! — asseverou Pyriel, no domínio da situação.
A estratégia parecia boa, pois a grata parte das presenças já havia
escapado de Artium e seguia protegida pelos seres de fogo que lhes abriam
passagem. Entretanto, aquela era a morada dos serafins, e o primeiro deles,
Lúcifer, jamais se deixaria vencer sem lutar.

***

Tão logo o alarde eclodiu, a Guarda Negra selou os aposentos de Deus, O


qual, naquele instante, demonstrava estar bem mais enfraquecido, afinal, o poder
despendido pelas nefastas obras de Pyriel havia Lhe abatido misteriosamente. Os
querubins da Câmara eram sanguinários por instinto, portanto, com vida, nada
atravessaria aqueles portões.
Reunidos em Vigilum, militares e membros das demais castas corriam
contra o tempo para encontrar uma estratégia que lhes desse uma chance de
resistência, pois combater alvos inatingíveis como aqueles estava fora de
questão.
Ciente de vários detalhes do inquérito levado a cabo pela polícia dos
arcanjos, Baalberith teve um repente inusitado e ponderou que os bastardos nada
mais eram do que produtos da mágica das Presenças, magia esta que, a princípio
branda, converteu-se em negra para inverter a ordem da criação.
— Baalberith tem razão! — assentiu Lúcifer, arisco. — Se nós
conseguirmos atingir aqueles que lhes deram a vida, talvez a força deles se
dissipe.
— É uma tese aceitável, príncipe; talvez a mais sensata no momento... —
interviu o Arconte Jofiel. — Mas como faremos isso?
— Se eles são feitos apenas de fogo, não são imunes à ação do gelo.
Entretanto, as bandas de Vidiam destoam pelas suas extensas cortinas de chamas,
as quais talvez os fortaleçam ainda mais — ponderou Lúcifer —, mas creio que
algo em menor escala pode ser tentado.
— Bioluminescência pura? — sugeriu o Mestre Azeyzel; químico,
arquiteto e engenheiro da ordem das Potências.
— Sim. Talvez seja a única forma de burlarmos parte das nossas próprias
fortificações — disse Lúcifer.
— Mas sobre o que estão falando? — perguntou Miguel, um tanto
nervoso e aparentemente confuso.
— Em contraste de temperaturas, marechal — esclareceu o príncipe dos
serafins. — Mas, infelizmente, essas cargas frias me são limitadas — lamentou.
— Bem, se conseguirmos abrir caminho dessa forma, talvez tenhamos
condições de igualdade num confronto direto com as próprias Presenças, pois eu
não creio que elas terão condições de formar uma nova armada de forma tão
rápida — concordou Miguel.
— O plano é bom, mas se ainda tivéssemos alguns dos nossos no plenário
talvez eles conseguissem abater algumas das Presenças lá postas e, com isso,
enfraquecer o foco que alimenta os tais seres — completou o armeiro.
— Tens razão, Azeyzel. Mas durante o ataque, houve uma evasão em
massa e, quem quer que tenha lá ficado, neste momento já deve estar morto —
lamentou o primeiro serafim.
De repente, um dos príncipes-primeiros ali presentes, até então quieto,
tomou forçosamente a palavra e, elevando o adorno de um belíssimo colar que
envergava sobre o pescoço, revelou com um sorriso ousado.
— Eu não contaria com isso, Lúcifer... — Pois, ao olharem para Beelzebu,
o formoso gestor dos querubins, talvez o anjo mais belo do Céu, este lhes
revelou o que havia acabado de descobrir. — Senhores, um dos partícipes da
tribuna ainda está em Vidiam e, neste exato momento, escondido e à espera de
uma chance para agir.
— Mas quem? — indagou Lúcifer, ansioso.
— O capitão da Guarda Negra. Embora tenhamos todos debandado,
alguém que sabemos ser um tanto inconsequente lá permaneceu. Meus irmãos,
participo-vos que o Lorde Caliel ainda está no mosteiro — concluiu, ao envergar
a cintilação positiva do seu colar das constelações[56].

***

No interior da primeira torre de Vidiam, Pyriel reiterava ordens para que


os bastardos de fogo cercassem inteiramente a morada dos serafins. A estratégia
era usá-los como escudo até a morada de Deus, afinal, o príncipe subversivo
sentia que o Elevado estava abalado pela força que lhe havia sido rapinada, algo
que jamais tinha acontecido. Mas a sua preocupação principal era proteger as
quatro Presenças que, com ele, haviam criado os alados de fogo, pois sem o foco
mágico deles cinco, as criaturas, como já se esperava, certamente pereceriam.
Entretanto, o seu aparente empenho acabou comprometendo a sua
perspicácia e, de uma coluna a outra, um pequeno e astuto querubim saltitava
com divisada rapidez, como se a cada toque dos pés dele no chão emergissem
notas musicais crescentes e decrescentes.
Caliel era o único anjo estranho à ordem das Presenças que lá
permaneceu, e certamente, tentaria fazer algo para desestruturar as pérfidas
intenções de Pyriel. Ainda escondido, ele recebeu de Beelzebu informações
psíquicas sobre o planejado contra-ataque, pois tão logo as legiões se
aproximassem, Lúcifer tentaria abrir caminho com a sua energia fria, cabendo,
então, a Caliel, a tarefa de tentar exterminar as cinco grandes presenças dentro
do Fórum, sem se deixar pegar pelos inexpugnáveis seres de fogo.
— Essa reação já era esperada — disse Pyriel, ao ser informado da
reaproximação dos fiéis. — Deixai que venham, eles serão presas fáceis.
Assim que os militares se aproximaram cobrindo os demais, uma grande
cortina de chamas se ergueu diante deles. Beelzebu segurou firmemente o colar
das constelações e transmitiu novas instruções a Caliel, o qual deveria agir tão
logo um comando lhe fosse dado.
Lúcifer abriu caminho por entre os escudeiros da infantaria e, após
envergar o máximo de força que pôde, expeliu uma onda fria que, como o
esperado, descompôs boa parte daqueles corpos em chamas. Era, enfim, o sinal
de ataque.
Vislumbrando a cena, a armada sentiu confiança e investiu contra o
“exército” de Pyriel, com escopo de tentar auferir acesso aos espaços internos de
Vidiam, onde estavam encasteladas a grande maioria das Presenças; dentre elas,
as quatro que, com o príncipe, haviam concebido os bastardos pela força da
magia.
Enquanto os seres de fogo destruíam inúmeros fiéis, alguns poucos
tentavam, em vão, transpor espaços a fim de ganhar o interior da primeira torre.
Tendo em vista que a frente de batalha, ou melhor, da chacina, estava na parte
exterior dos templos, as Presenças se mantiveram cerradas na crença de que suas
criações suplantariam o ataque, afinal, nada parecia poder superar os bastardos.
— Eles não conseguirão nos dominar. Enquanto estivermos juntos, a força
dos nossos filhos se manterá — bradou Pyriel.
Mas sem que eles percebessem, um pequeno foco de luz começou a
sobrevoar a tribuna, chamando a atenção dos que lá estavam. E sobre a grande
mesa do plenário, pousou o intrépido querubim Caliel, cujo peso da chave-
mestra que carregava no pescoço parecia pender-lhe o corpo para baixo.
— Ora, se não é o bravo capitão da Câmara — tripudiou o príncipe das
Presenças, ao perceber que o pequenino não havia fugido com os demais. —
Mas eu não creio que este seja um bom momento para visitas... — provocou-o,
com certa ironia.
Caliel não se deixou apavorar e, com a rapidez que lhe era peculiar,
começou a revoar o salão em círculos, atraindo inúmeras Presenças que lá
estavam. Incautas, elas investiram sem sucesso contra o camareiro-mor, o qual se
pôs a abatê-las e assim, contribuir para que o círculo mágico que dava vida aos
bastardos fosse arranhado. Ao liquidar os seus primeiros alvos, Caliel foi ávido
na direção da távola de Pyriel e, de uma só feita, dilacerou os anjos da Presença
Issiel e Kharyel, dois dos partícipes da cerimônia que havia criado os estranhos
alados.
Impressionado com a manobra de Caliel, o príncipe rebelde sentiu que a
força das criaturas havia sido, de pronto, consumida em dois quintos. Na
vargem, os guerreiros, que até então eram meros alvos, passaram a ver centenas
de oponentes se autoconsumirem no ar, o que deu mostras de que a tese de
Baalberith estava certa: da vida das cinco principais Presenças, dependia a dos
bastardos.
Encontrando as brechas que precisavam, Miguel, Lúcifer e alguns
soldados começaram a rodopiar velozmente pelo ar e, confundindo os inimigos,
conseguiram se aproximar dos dutos inferiores das seis torres. Aproveitando-se
das peculiaridades do conhecido terreno, voaram pelo seu interior, explodiram o
chão da tribuna e nela ingressaram, colocando em polvorosa as acuadas
Presenças que lá estavam.
Com um caminho aberto e a força reversa diminuta, a paridade de armas
foi finalmente alcançada e, avessos às artes bélicas, os anjos magos foram presas
fáceis. Cientes do êxito da manobra, parte da legião que havia ficado em Artium
invadiu aquelas edificações e arrasou sumariamente as Presenças lá escondidas.
Com o violento passamento dos rebeldes, os bastardos começaram a sumir
com rapidez no campo, deixando aquela poderosa barreira de fogo
comprometida e proporcionando uma aproximação maciça das torres. Tão logo
Arisy-El e Jostiel, os dois outros membros da távola mágica, foram mortos por
Miguel e Lúcifer, a guerra passou a ter o tempo contado.
Pyriel, que havia pouco ainda achava que seria o próximo Deus, estava
amedrontado, afinal, nem mesmo a sua mágica tinha sido hábil a protegê-lo. E se
eram as cinco Presenças os vetores dela, a fonte daquele poderio proibido se
esvaiu tão logo elas começaram a ser dizimadas.
Percebendo que o seu mundo ruía, o príncipe se viu premido pelos que
estavam ávidos em justiçá-lo e tentou escapar. Encurralado diante dos que o
subjugaram, Pyriel soube que o seu destino estava selado, pois se ficasse vivo, o
perigo da magia viveria nele.
— Eu ia mudar toda a nossa existência, seus tolos! — disse coagido. —
Mas prefiro encarar a minha morte a sobreviver a uma derrota, agora
consubstanciada no passamento de minha ordem. — O anjo mago encarou
Miguel e Lúcifer e, a este último, fez lembrar. — Tu és o primeiro entre nós. Não
permitas que a nossa espécie seja alijada do conhecimento e da sabedoria. —
Com essas palavras, o príncipe das Presenças deu alguns passos para trás, sacou
uma adaga e, como nobre que era, tratou de dar cabo honroso da própria vida, no
que não enfrentou a resistência de seus demais confrades. Bastou uma incisão
em cada pulso para que ele caísse de joelhos e, aos poucos, visse o próprio corpo
se desfazer. Porém, antes de desfalecer, Pyriel encarou o líder seráfico
novamente e balbuciou. — Não te esqueças, Lúcifer. Tu és o zelador da nossa
força.
O serafim se enfureceu com aquela observação e golpeou o pouco que
restava do irmão, cujas cinzas se desfizeram no ar e levaram consigo os últimos
seres de fogo que ainda resistiam na área do conflito.
Miguel ficou deveras confuso com a expressão de Lúcifer, pois nela
enxergou ódio. Mas que ódio seria aquele? De Pyriel? Da ousadia dele? Ou algo
que lhe era nato, mas ainda oculto? Bem, num futuro ainda distante, o marechal
dos arcanjos teria a sua dura resposta.
A primeira guerra no Céu teve um saldo catastrófico: milhares de anjos
mortos e uma ordem inteira extinta. Pyriel tinha um plano odioso que visava
depor o Criador e impor as presenças como autônomas e autossuficientes, mas
ele falhou.
Findo o conflito, Deus mandou arrasar a casa de Artium e, a Miguel,
confiou a essência de todos os sortilégios praticados pelas presenças, bem como
a guarda do espólio delas numa área cerrada da biblioteca do Quartel-General
dos arcanjos.
Depois daquele conflito, pouco se ouviu falar nas Presenças, pois, com o
tempo, elas acabaram, de certa forma, esquecidas. A arte em geral morreu com
aquela ordem, e muito pouco daquilo sobreviveu. E após aquele levante, o Céu
só seria novamente banhado em sangue com a insurreição motivada pela criação
do homem, onde Lúcifer e um terço dos celestes haveriam de cair, forçosamente,
em desterro.

***

Ainda oculto naquela ala da biblioteca dos arcanjos, Azeyzel voltou a si


num repente e, após ter rememorado passo a passo a trágica história da ascensão
e queda das Presenças, da qual havia sido partícipe, ele fechou abruptamente o
velho livro proibido, não sem antes arrancar algumas páginas que o
interessavam. E como as lembranças vieram; elas logo partiram.
— Obrigado, Pyriel... — balbuciou para si mesmo.
Olhando em sua volta, a Potência se levantou e recolocou o tomo na
mesma gaveta de onde o havia tirado. Embora ele não tivesse conseguido tudo,
aquilo já era um começo; o começo da execução de um plano que culminaria
com a sua fuga do Céu.
Capítulo 4
Uma voz no deserto
NAQUELES DIAS DA MOCIDADE DE JESUS, Lúcifer vivia apenas de amarguras.
Suas sucessivas derrotas o haviam deixado desgostoso e, embora há muito preso
nas profundezas do Inferno, a sua sanha em destruir o homem simplesmente não
findava.
Diante do seu séquito sombrio, a única coisa que lhe apetecia era o fato de
que os descendentes de Noé, frutos da má semente de Noemah[57], haviam
contaminado grata parte da humanidade, a qual vivia apenas para burlar as leis
do Eterno.
Nas terras más por ele geridas, a escuridão e o fogo se confundiam e,
como se buscasse respostas para perguntas que sequer tinha, o príncipe deposto
dos serafins fitava os seus vastos domínios com certa inquietude. Mas num
estranho repente, os anjos derrubados lá presentes, que iam e vinham sem rumo
certo, começaram a ter os movimentos paulatinamente desacelerados, até que,
num dado momento, cessaram de vez.
Incomodado com o ocorrido, Lúcifer se viu diante de um reino imóvel,
como se os seus demais irmãos perdidos tivessem se tornado estátuas de minério
rochoso.
Pois em meio ao grande salão negro, um incomum ponto de luz surgiu de
maneira inadvertida e, após atingir certo corpo, revelou, ao banido monarca, um
Ente que havia muito o visitava apenas em seus mais ocultos pensamentos.
Lúcifer se ergueu, incrédulo e devagar, pois as palavras lhe haviam fugido.
Acuado e surpreso, o combalido creditou tal cena a uma possível alucinação.
— Pai?
— Vejo que finalmente tens um trono só teu — disse o espectro de Deus,
ao estacionar diante dele.
Ainda procurando uma explicação plausível para tudo aquilo, Lúcifer não
se conteve e inquiriu a imagem do Elevado.
— Mas o que viestes fazer aqui? Tripudiar do teu primogênito ou
finalmente dar cabo dele? — provocou-Lhe.
— Percebo que nem mesmo esse tempo todo de degredo foi o suficiente
para acalmar o teu coração.
— Coração este que partistes ao preterir-me perante o tal Adão; se é que
eu bem me lembro — replicou na sequência.
O reflexo do Altíssimo deu alguns passos na direção do antigo serafim da
aurora, fazendo com que ele, instintivamente, recuasse.
— Nada temas, meu filho, se eu te quisesse morto, certamente nós não
estaríamos conversando. Eu vim até aqui apenas para parlamentar contigo.
— Parlamentar? — indagou perplexo.
— Sim — anuiu calmamente. — E dar-te uma oportunidade de tentares
cumprir a jura que me fizeste quando da tua queda.
— Eu creio que já cumpri aquele meu voto — retrucou Lúcifer. — Os
homens são fracos e pervertidos; eles dão mostras disso desde que foram
criados, e sob o meu expresso protesto, frise-se bem — respondeu, circundando
o seu sólio.
— Pois parece-me que a perversão e a fraqueza não são características
apenas deles, pois não? — indagou o Altíssimo, ao encarar o que havia sobrado
dos anjos rebeldes expulsos do Céu após o homem ter sido concebido. Lúcifer
declinou e se pôs a ouvi-Lo. — Bem, eu vim para dizer-te que, em breve, deixar-
te-ei livre; tu e teu confrade, o outrora procurador-geral da Ordem de Diabolus.
— Baalberith? Mas por quê?
— Existe alguém na Terra; um descendente de Davi a quem deverão
encontrar.
— Isso não me parece ser tão difícil.
— Isso caberá a ti descobrir.
— E o que mais?
— Caso consigas vertê-lo, a Terra que tanto queres finalmente será tua.
— E se eu não conseguir?
— Bem sabes que, cedo ou tarde, serás julgado por mim; o teu destino
está preso a isso. Portanto, creio que não tens muito a perder.
— E quanto a Baalberith? Por que ele?
Deus mirou os caídos estagnados e fitou as severas feridas que neles ainda
envergavam. Sabedor de que havia sido Baalberith a trazer as doenças aos
homens, esclareceu:
— Leva-o como teu lugar-tenente. Talvez ele te seja útil.
Lúcifer refletiu por um instante e, ainda mostrando certo inconformismo,
ousou enfrentar Deus.
— Eu me recuso a entender tudo isso — asseverou confuso. — A esses
humanos miseráveis que vivem a desacatar-Te, Tu sempre estendes a mão e lhes
dá graças. E a mim, o Teu primeiro filho que só Te desobedeceu por uma vez,
tratas com desdém e punição. Por quê?
Pois o Eterno, que já dava as costas ao banido líder dos serafins, parou por
um instante e, virando-lhe a face, respondeu com uma pergunta.
— E por acaso, alguma vez me pediste perdão? — O velho decaído cerrou
os olhos e abaixou a cabeça sem mais ponderar. Sua soberba, ali posta às claras
pelo próprio Pai, o fez concluir que era essa a diferença dele para com alguns
homens: a ausência de arrependimento. E ante ao silêncio dele, o Altíssimo
arrematou. — Procura o tal homem a que fiz referência no deserto das
montanhas fincadas ao sul de um lugar chamado Israel. Eu não irei interferir —
finalizou, o Senhor.
A sacra imagem Dele então se desfez e, no alto da capela infernal, um
pequeno sulco se abriu. Baalberith despertou sem nada entender e Lúcifer,
inquebrantável na sua sanha por eliminar o homem, tomou-o consigo e partiu
rumo ao local citado pelo Altíssimo, deixando para trás um Inferno congelado.
Pois aqueles dois anjos caídos acusadores — frise-se, os mais poderosos
deles —, estavam novamente livres. E se eles iriam ter êxito no desafio dado,
isso ainda era um mistério.

***

Tão logo chegou fugida a Séforis, Mirian foi acolhida por Esther, irmã do
servo Zeevi, o qual, anos após, faleceria em razão da tuberculose que carregava.
Segundo notícias chegadas tempos depois de Magdala, Martha não demorou a
descobrir que tinha lepra, doença que desenvolvia havia muito tempo sem que
soubesse, e, em razão da extremada vergonha que passou a ter de si, acabou
fechando-se para todos e ceifou a própria vida: saltou para a morte física da
mesma torre em que havia aprisionado a irmã. Faltou-lhe, por assim dizer,
coragem espiritual para sobreviver às duradouras consequências resultantes das
diversas más ações que havia praticado.
Mas enfim, o que seria feito dela? Qual o destino de uma perversa
suicida?
No lugar dos costumeiros ajudadores do novo Éden que recepcionavam os
que deixavam a Terra, o espírito de Martha foi arremessado numa estrada
sombria, cujo único fim culminava na tétrica Tesouraria das Almas. Embora ela,
em vida, tivesse esperado que a sua dor fosse ceifada com a morte, ocorreu
exatamente o contrário.
Embora fisicamente extinta, ela se arrastava com extrema dificuldade por
aquele caminho, afinal, ainda experimentava as dores causadas pelos seus ossos
fraturados. Essa marcha angustiante — para nós, talvez rápida, levando-se em
conta a discrepância de tempo e espaço das nossas dimensões —, aos suicidas,
poderia significar centenas de anos terrestres, talvez um caminho quase sem fim.
Pois demorou muito para que o espírito inquieto de Martha, acompanhado
de outras tantas almas aflitas e igualmente destroçadas, chegasse ao penoso
destino que lhe cabia e, ao finalmente aportar na capela do Guf, ela foi triada e
posta diante do austero tesoureiro Razyel, o qual leu seus direitos.
— Mulher, tu estás carregada de ódio e sentimentos negativos. E deverias
saber que, salvo em defesa própria, apenas Deus pode tirar uma vida. Pois agora,
antes de aplicar a penalidade que te cabe, eu te indago para que conste dos
registros: queres ajuda?
Embora aparentemente estranha, essa pergunta fazia parte do rito de
admissão na Tesouraria, pois todos os que para lá iam envergavam rancores e
mágoas, estando avessos a qualquer oferta de auxílio. Em caso positivo, algo
raríssimo de se ocorrer, o Guf possuía uma ação pastoral formada por espíritos
que lá davam expediente para resgatar aqueles que eventualmente os
chamassem. Mas transtornada ante ao infausto fim que lhe havia cabido, ela
retorceu ainda mais a face e, visivelmente deformada pelas graves lesões que
teve em vida, potencializou ainda mais o sofrimento que envergava.
— Não; eu não quero.
— Foi o que pensei — pontuou Razyel sem encará-la. — Pois, por ter
burlado a norma alusiva à preciosidade do sopro divino da vida; tu, que na Terra
tiveste o nome de Martha de Migdal, serás sentenciada a cumprir uma pena de
prisão celular por um mil novecentos e noventa e seis anos ordinários, ao final
dos quais serás, vez mais, reconduzida a esta bancada para uma audiência de
revisão — afirmou lançando algumas notas num livro de controle carcerário. —
Guardas, levai-a à cela dois, nível inferior leste, a mesma que pertenceu àquela
que essa segregada tanto odiou.
Pois, enfim, coube a ela o mesmo espaço que, por séculos, havia sido
ocupado pela psique de sua irmã Mirian, a encarnação da alma de Lilith. Mas
Martha não haveria de dormir; sequer seria congelada. Sua consciência suicida
haveria de lhe perseguir, e suas dores continuariam até que o arrependimento a
visitasse; se visitasse. Essa era a pena para os suicidas. Embora pensassem que a
vida se extinguiria com a morte, ela continuaria real e ainda bem mais dolorosa.

***

Desde então vivendo modestamente em Séforis, embora auferindo haveres


dos pesqueiros herdados de Magdala, Mirian se mudou para a cidade de
Cafarnaum[58] em busca de novos ares, onde, por puro altruísmo, se tornou um
misto de curandeira e comadre, ajudando as mulheres na parição e assistindo os
doentes em razão das suas habilidades com as plantas e ervas.
Entretanto, Mirian lutava, havia muito, contra a epilepsia e, embora já
contando com trinta anos e ainda sendo extremamente bem-feita para a idade —
o que era bem raro naqueles dias —, ela jamais havia se entregado a alguém,
tamanho o temor que sentia em experimentar um assalto ao seu corpo ou ser
rejeitada em razão da moléstia, cujos efeitos eram assustadores. Some-se a isso
que alguns cidadãos, a maioria deles, não a enxergava com bons olhos, dada as
práticas não convencionais a que ela, por via inconsciente, até então se dedicava.
Mirian não sabia, mas a origem daquela doença lhe havia sido impingida
enquanto viveu no corpo de Lilith, em razão de um severo trauma sofrido na
Lua, ao se debater braviamente no parto de Asmodeu[59], o primeiro nefilim[60].
Embriagada pela magia das Presenças e pelo sangue venenoso de Samael[61], ela
nada experimentou em sua primeira vida, mas carregou graves resquícios para a
segunda como parte da sua pena. E assim ela vivia, embora caridosa e
benevolente, constantemente triste pela solidão e pelo medo de enfrentar o
mundo.
Mas na cidadela, ela tinha ouvido falar de um Deus maior do que tudo;
entretanto, diante das agruras que já havia experimentado, não conseguia, por
fraqueza espiritual, enxergar um propósito firme para crer Nele. E por lidar com
doentes das mais variadas ordens, crianças inclusive, Mirian custava a crer que
uma força divina pudesse permitir que as pessoas sofressem tanto. Que o
dissesse o pequeno Yigal, filho de uma meretriz chamada Joana, tetraplégico de
nascença, e de quem ela se apiedava. Embora tivesse sido uma das amantes
prediletas de Cusa, um alto intendente da corte de Herodes Antipas, Joana foi
expulsa de Tiberíades assim que engravidou dele e, entregue à própria sorte,
sustentava a si e ao desafortunado filho fazendo uso da extremada beleza e, com
ela, praticando o comércio do próprio corpo.
Muitas desgraças Mirian via e vivia à sua volta. Mas o sentido disso tudo
isso estava prestes a mudar.

***

Manejando uma plaina afiada sobre um pedaço irregular de madeira bruta,


aquele artesão, cuja tez era escurecida pelo sol e pela descendência, dava
mostras de que possuía especial habilidade com a ferramenta.
Embora tivesse uma compleição física pouco avantajada se comparada à
de um romano, com cerca de um metro e setenta de altura, seus braços eram bem
fortes; afinal, a árdua lida o havia forjado daquela forma. E usando um arremedo
de turbante para aplacar o suor que já lhe corria a testa, Jesus, com trinta anos de
idade, observou, satisfeito, que aquela trave serviria bem para dar base a uma
mesa que lhe havia sido encomendada por um mercador de Naím.
Tentando debelar o calor que castigava Nazaré naqueles dias, ele pausou o
trabalho e lavou o rosto com um pouco da água que a sua irmã Lígia lá havia
deixado. Mas ao sentir o frescor percorrer a sua face e molhar superficialmente a
barba arredondada que cultivava, ele percebeu quando, diante de si, pousou uma
pomba branca cujos olhos brilhavam como dois diamantes. De repente, um
clarão extremo dela surdiu, e Jesus ouviu uma voz metálica ressoar: “Carrega a
tua fé e busca pelo teu primo João; ele tem algo especial para ti”. E após alguns
instantes, a luz recuou, e a ave levantou voo, deixando para trás um extenso
rastro de fogo, que logo desapareceu no horizonte que marcava o rumo para o
mar da Galileia.
Quando Maria adentrou nos aposentos do filho e o viu, ansioso, arrumar
uma bolsa com algumas mudas de roupa, ela sentiu que o momento tão esperado
finalmente havia chegado. Maria sorriu para o rebento, e ele a olhou como se
quisesse dizer algo; algo que sequer sabia o que era. Mas antes que Jesus tivesse
qualquer reação, a virgem declamou:
— Não digas nada, meu filho... — asseverou, passando as mãos delicadas
pelos seus longos cabelos negros que estavam presos. — Vai e segue o teu
caminho, e quando precisares de acalento, sempre terás a mim, o colo daquela
que, mesmo menina, te trouxe ao mundo e cuidou de ti com zelo e amor.
Jesus abraçou afetuosamente a mãe e partiu confiante, levando consigo
tudo o que havia aprendido durante a vida. Na “bainha”, ao invés da afiada
espada de fogo comum a todo arcanjo, apenas a fé nas palavras de Deus...

***

Em Hasbaya, encosta do mesmo monte[62] onde Azeyzel e o seus anjos


vigilantes haviam descido séculos antes para testar os homens, nascia uma
torrente cristalina que se juntava aos lagos Hula e Tiberíades, desaguando no
Mar Morto[63]: o Rio Jordão.
Naqueles dias religiosamente turbulentos, os leitos do Jordão serviam de
palco para um polêmico pregador que dava grande importância ao ritual do
batismo, onde a imersão em água simbolizava uma mudança de vida perante o
Criador. Envergando uma longa barba rebelde, vestindo um cinto de couro e
trajes feitos de pele de camelo, o pastor João, na época, alcunhado de João
Batista, vociferava duramente ante a uma multidão que nele via uma presença
firme e digna de crédito.
— Arrependei-vos e purificai-vos! Pois aqueles que, entre vós, estiverem
embriagados de iniquidades jamais terão acesso ao reino do Senhor! — gritava,
ao imergir, na água, aqueles que aceitavam o chamado batismo, rito unificador
sem precedentes na cultura judaica, como passagem para uma nova vida; uma
que tivesse a bênção e a graça do Eterno. — Extirpai os vossos pecados e sede
chamados de filhos de Deus! — insistia, ao vê-los tomar de volta a margem
ocidental do Jordão.
Pois em meio a muitos curiosos, dúvidas, por vezes, emanavam, como a
de um astuto fariseu[64] que o indagou de maneira inusitada.
— És tu o esperado Messias?
— Não; não sou eu! — respondeu sem perder o foco no que fazia. — O
verdadeiro Messias está a caminho e haverá de nos guiar entre as trevas — disse,
ao abaixar e erguer uma mulher nas águas do rio.
— Dizem que és o profeta Elias[65] reencarnado. Negas isso? — inquiriu,
com vigor, um arrogante saduceu[66] que lá estava.
— Elias não está morto! — bradou João. — Ele é um arauto de Deus que
foi levado pelos anjos e irá voltar quando do juízo final — completou nervoso.
E, indiretamente, não lhe faltava razão. O profeta Elias, porta-voz do
Eterno e responsável pelo épico desafio aos vaticinadores de Baal[67], havia sido
arrebatado séculos antes naquele mesmo rio por uma guarnição de arcanjos que,
numa carruagem feita de fogo, o levaram, ainda vivo, para o Ministério dos
Grandes Estudos do Éden Espiritual, onde ele permaneceria se preparando para o
dia em que o Guf fosse temporariamente fechado e um julgamento geral,
visando regeneração e mudança ocorresse, já que lhe caberia o papel de auxiliar
os arcontes que executariam essa empreitada.
— Diga-nos então quem tu és! — insistiu o mesmo indagador.
— Eu sou apenas um errante do deserto que vos batiza com água —
respondeu mais calmo. — Mas haverá de vir um, bem mais forte, o filho
encarnado de Deus, que vos batizará com o fogo; o fogo que irá queimar e
jamais se apagará — afirmou, erguendo uma das mãos com o punho cerrado.
— Pois enquanto aguardamos esse bravo, peço que me recebas com os
braços abertos — interferiu, de maneira inusitada, um viajante que, envergando
uma surrada túnica de linho listrada, lá repentinamente aportou.
Inquieto com a ousadia daquela fala, João ignorou os fariseus e os
saduceus que o estavam provocando e tentou se aproximar de tal homem, o qual,
já ganhando as margens do Jordão, também foi de embate ao profeta. E ao se
aproximar do estranho, o evangelista felicitou-se de forma inesperada, algo
incomum ao seu temperamento conhecidamente rude.
— Jesus? — indagou, ao reconhecer as feições do primo. — Jesus! —
repetiu, acelerando os passos e indo ao encontro do bem quisto recém-chegado.
— Primo João, felicito-me em encontrar-te depois de tantos anos! — disse
o filho de Maria, após ter percorrido cem quilômetros de estrada e três dias de
caminhada para vê-lo. — E eu que sempre te imaginei substituindo o teu pai na
linhagem sacerdotal, agora te encontro como um respeitado pregador —
ponderou, fazendo referência ao finado Zacarias.
— Deus me deu outros misteres não menos nobres, como agora podes ver
— esclareceu, aludindo aos ritos que ali fazia. — Até hoje rogo para que meu
pai não me tenha tido como um desertor — lamentou saudoso. — Mas e tu,
primo? O que fazes tão longe de Nazaré?
— Bem sei que há muito não nos vemos — justificou-se. — Mas uma
estranha força me moveu até aqui para auferir algo de especial pelas tuas mãos.
— Jesus; Jesus! Ainda vejo em ti aquela mesma força que te destacava
entre nós. Mas hoje eu não passo de um pobre pregador, que nada mais faz do
que lavar os pecados alheios.
— Pois se é um banho de fé que me podes dar, saibas que eu o aceito de
bom grado, afinal, creio que foi para isso que eu, certamente guiado por um
poder superior, deixei o meu ofício e a minha família.
João Batista convidou Jesus para adentrar o Jordão e, estando ambos com
a água pela cintura, aquele se pôs ao lado do filho de Maria e lhe segurou as
mãos, imergindo-o a fim de completar a liturgia.
Assim que Jesus se viu coberto pela água, o mundo pareceu parar. Embora
aquela manobra não tivesse demorado mais do que alguns segundos para os
demais espectadores, a sua mente ficou estagnada e, sem muito entender, viu-se
ainda como um alto arcanjo no início da criação do mundo. Na sequência, lhe
vieram imagens da viagem que havia feito pelos quatro cantos da Terra em busca
da matéria árida que forjou Adão; dos anos em que ajudou o primeiro homem a
transformar-se num e, finalmente, do palácio de Deus onde recebeu um beijo que
o pôs em coma e o fez renascer: “Tu és o meu anjo, o filho eterno, o mensageiro
do pacto”.
João, que ainda tinha o primo em mãos, auferiu indiretamente repentes das
mesmas visões que ele, e crendo estar diante do prometido, levantou-lhe o corpo
para fora d’água, sendo tocado por um brilhante clarão que se elevou do rio,
fazendo com que olhasse, assustado, para aqueles que os cercavam. E foi então
que aquela mesma pomba, cujos olhos brilhavam como pedras preciosas,
ressurgiu inesperadamente e pousou no ombro direito de Jesus, encarando-o e
voando em seguida. Feito isso, um fulgor tomou conta do corpo do ungido. Pois
maravilhado com o que viu, João admitiu:
— Eis aqui o cordeiro de Deus, o justiçador que fará o império do mal
decair; aquele que irá tirar os pecados do mundo e quitar a dívida de Adão.
Pois a profecia feita pelo Altíssimo ao seu primogênito na Terra, aquela de
que um homem nasceria da sua casa para salvá-lo e, por via de consequência, a
toda a humanidade, havia sido, finalmente, cumprida.
Estranhando aquele espetáculo, os saduceus e os fariseus que lá estavam
para inquirir João se retiraram incomodados e receosos. Iniciava-se ali, então, a
fatal rusga deles com o mestre de Nazaré.

***

A noite já havia caído quando Jesus e o primo conversavam diante de uma


fogueira que se consumia próxima ao rio. Ciente de que o caminho para o
aguardado Messias havia sido finalmente aberto, o primeiro revelou:
— Estou convicto da relevância do trabalho que irei fazer, mas é certo que
precisarei ser muito forte para não sucumbir às fraquezas que me cercam —
revelou. — E tu bem sabes que, sem um preparo espiritual, eu talvez não resista,
afinal, aqui somos apenas carne, e a carne é fraca por demais.
— Creio então que deverás desintoxicar o teu corpo a fim de te
aproximares do Criador, pois se suplantares o desejo físico, estarás bem apto
para enfrentar qualquer adversidade.
— Tens razão — assentiu Jesus. — Por isso, deverei partir para
reconhecer a minha dependência de Deus e, em assim agindo, renovarei as
minhas forças, as quais precisarei muito daqui por diante.
— Faça isso, rabi — disse João num tom respeitoso.
Jesus sorriu e se levantou, partindo, ainda naquela noite, para o rigoroso
deserto da Judeia, onde haveria de permanecer, em jejum, por quarenta dias e
quarenta noites.

***

Depois que conseguiu sair do regime fechado, Azeyzel se tornou um


exemplo de bom comportamento carcerário, passando a cumprir todas as tarefas
que lhe eram emprestadas.
Mas ninguém ainda sabia que ele havia conseguido furtar algumas páginas
do Tratado das Presenças cerrado na biblioteca dos arcanjos e, no silêncio dos
seus regulares resguardos, as estudava de maneira quase que obsessiva. As
fórmulas mágicas deixadas por Pyriel lhe tomaram a mente e, influenciado pelos
fragmentos da energia perdida daquele suplantado príncipe-primeiro, ele
conseguiu decifrar o raro segredo do teletransporte, talvez o seu passaporte para
tentar escapar dali. Mas a condenada Potência ainda não estava satisfeita.
Azeyzel também queria de volta as asas e a genitália que lhe havia sido
trinchada, tamanha a gana de novamente sentir o prazer carnal que o havia feito
cair do Céu num passado distante.
Entretanto, um pequeno pormenor emergiu. Embora os sortilégios da
criação absoluta não estivessem ao seu alcance — somente Miguel os detinha
—, alguns indicativos de regeneração parcial foram por ele desvendados
naquelas anotações proibidas, mas nada que pudesse dar base a muita coisa. Era
uma fórmula restrita e bem difícil, cuja limitada matemática eclodia em apenas
uma escolha: ou as suas asas; ou o seu órgão sexual. Por não conseguir esquecer
Layla-Li, mesmo sabendo que séculos já haviam se passado desde a morte dela
no dilúvio que atingiu a cidade de Nod[68], Azeyzel optou pelo último, afinal,
caso conseguisse fugir, tentaria encontrá-la onde quer que fosse, pois, no Céu,
ele soube que os homens e mulheres falecidos reencarnavam de tempos em
tempos e, portanto, existia uma chance em mil de ela estar na Terra, quiçá num
corpo físico tão ou mais tentador que o de outrora.
Pois sem causar alardes, ele logrou, aos poucos, recriar aquilo que os
lanceiros haviam lhe arrancado com ferros quentes, a exemplo do que havia feito
Pyriel com o braço decepado de Barakyel e, por debaixo das vestes, agora se
sentia apto para tentar se aventurar fora do Céu. E tal haveria de ocorrer naquele
ciclo de tempo, após a conclusão das suas lidas periódicas.
Como de costume, um dos arcanjos-sentinela abria e fechava as celas dos
presos que cumpriam pena no regime semiaberto, a fim de que eles recebessem
uma nova ordem de missão e passassem um período trabalhando fora do cárcere.
Ao aportar na enxovia de Azeyzel, o guarda o chamou como de praxe e,
ante o silêncio verificado, adentrou no cárcere. Ao examiná-lo, e vê-lo
inteiramente vazio, ele constatou que o chão da masmorra estava estranhamente
queimado e, assustado — as fugas tentadas eram raras, e as consumadas
impossíveis —, deu o alarma.
O oficial do dia foi, de pronto, ao seu socorro.
— O que houve, soldado? — indagou-lhe um primeiro-tenente.
— Senhor, eu não sei como reportar, mas o prisioneiro sumiu! —
respondeu o praça, deveras surpreso.
— Mas isso não é possível! Vinde! — bradou para os demais vigias que lá
chegaram, ariscos. — Vasculhai tudo! — completou.
Ao revirarem aquele diminuto aposento que possuía, além da entrada, uma
janela gradeada intacta, os soldados encontraram alguns escritos cuja origem não
puderam precisar. Assim que foi avisado do evento, Metatron dirigiu-se depressa
para a ala das masmorras e, ao examinar o chão chamuscado e o material
achado, ficou deveras preocupado.
— Isso não é nada bom... — balbuciou.
— O que descobristes? — indagou o oficial que ali estava.
— As Presenças — lamentou. — Ao que me parece, Azeyzel furtou
algumas páginas do tratado proibido que estava cerrado na nossa biblioteca.
— Olhe, senhor! — interferiu um dos carcereiros. — Veja isso! —
completou, ao entregar ao escriba-mor outra listagem, desta feita, uma com
nomes estranhos aos dos prisioneiros celestiais.
— Isso está ficando cada vez pior... — preocupou-se ao examinar o título.
— Este documento é uma reprodução do rol de presos da Tesouraria das Almas
— esclareceu Metatron, ao se referir ao achado. — Mas esperai... “Layla-Li!?”
— indagou a si próprio ao lê-lo.
— Layla-Li? — retrucou o oficial. — Quem é ele?
— É “ela”, tenente; uma humana — esclareceu, ainda inspecionando
visualmente a cela. — Bem, por ora, reportes a fuga ao alto comando — disse o
escrivão já esboçando sair dali.
— Em senhor, para onde vai? — indagou o encarregado.
— Falar com Deus e rumar ao presídio de Guf. Talvez, lá, seja o único
lugar onde eu consiga auferir informações que nos levem ao destino do fugitivo
— finalizou num tom enigmático.

***

Os rigores do deserto da Judeia eram temidos. De dia, o calor extenuante;


à noite, o frio rigoroso. As diversas montanhas daquele ambiente inóspito
contrastavam com um imenso mar de pedregulhos estorricados que se faziam
cobrir por uma vegetação predominantemente seca, a qual tornava o local rude e
quase sempre solitário.
Pois, numa das cavernas formadas pelas estruturas rochosas que lá
existiam, precisamente, no alto do monte da Quarentena, dois anjos caídos
recém-libertos por Deus espreitavam à espera de alguém, decerto, especial.
— Nós já estamos aqui há quase quarenta dias terrestres, e nada de o tal
homem, ao qual o Senhor fez menção... — pontuou Baalberith a Lúcifer.
— Paciência, meu inquieto irmão; paciência. Ele virá.
Visivelmente agitado, Baalberith se levantou, arisco e, coberto por uma
capa escura e desgastada nas pontas, atingiu a entrada da gruta a fim de
novamente observar a fauna desértica formada por serpentes, lagartos e
escorpiões. Foi então que, em meio a um caminho estreito fincado abaixo deles,
finalmente surgiu a cambaleante silhueta de um homem adulto, protegido por um
manto surrado que lhe cobria a cabeça e o protegia do sol.
— Lúcifer! Olha! — asseverou Baalberith.
O archote observou o recém-chegado detidamente e nada mais disse; fez-
se em luz e saltou do alto da caverna. E sem dizer uma única palavra ao irmão
que havia ficado para trás, pôs-se a espreitar o tal errante, a fim de encontrar o
melhor momento de abordá-lo e cumprir a jura feita ao Pai.
O dito homem — Jesus — já estava vagando pelo deserto havia quase
quarenta dias, alimentando-se superficialmente de pequenas ervas e do raro
líquido que extraía de um ou outro pedaço de cacto que porventura encontrava.
Pois, ao vê-lo agachar-se para tentar auferir o fragmento de um na relva, Lúcifer
se achegou.
— Não achas que essa refeição é um tanto mirrada, meu amigo?
Ao voltar o rosto para o caído e nele fixar os olhos, algo de estranho
aconteceu, como se a visão de ambos fosse invadida por um clarão inesperado
que os remeteu a outros tempos. Jesus ficou um tanto confuso, de repente, viu
uma cena não muito nítida de dois anjos se abraçando; e Lúcifer teve um repente
do mesmo palco, do último contato afetuoso que havia tido com Miguel antes
deste ser sugado pela greta de luz que os levou à Terra durante a época da
criação do homem. Mas num instante, tudo voltou ao que era, e ambos se
encararam com divisada seriedade.
— Desculpa a minha reação — respondeu Jesus, na crença de estar
sofrendo algum tipo de alucinação em razão da fome que sentia. — Eu não
imaginava encontrar alguém em meio ao deserto.
Ainda tentando compreender o repente mental que havia tido, o deposto
serafim passou a encarar o homem e, encontrando escora numa estrutura rochosa
lá fincada, ponderou:
— É estranho como algo em ti me soa familiar — afirmou seguro. — Mas
me satisfaz uma pequena curiosidade: de que casa descendes?
— Da casa de Davi — respondeu com os lábios secos e superficialmente
feridos.
— Davi! — repetiu o banido de forma efusiva. — O pequeno pastor de
Belém que suplantou o último nefilim liberto do Inferno[69], se é que eu me
lembro da lenda.
— O próprio — assentiu Jesus, ao sentar-se deveras cansado.
— E o mesmo que reinou sobre Israel no lugar de Saul[70], pois não? —
continuou o ex-príncipe dos serafins, ao ensaiar pequenos passos na direção
dele.
— Ora, pareces conhecer bem a história das escrituras sagradas —
afirmou o fadigado ungido já tendo o interlocutor próximo de si.
— “Escrituras sagradas” — repetiu Lúcifer, fazendo aparente pouco caso
da terminologia. — Digamos que eu conheça bem a sofrida saga do vosso, ou
melhor, do “nosso povo” — corrigiu-se com os braços abertos. — Aliás, também
me recordo que Davi vem de uma casa ainda bem mais antiga, a casa de Adão; o
“filho de Deus” — disse, forçando a pronúncia dessa última expressão.
— É verdade, vê-se que sabes sobre Ele — anuiu Jesus, pressionando o
lado esquerdo do pescoço.
Ao ouvir aquela frase que aludia à figura do próprio Pai, o olhar frio do
suplantado serafim se estagnou no nada por um instante. Mas retomando o seu
foco inicial, ele continuou:
— Bem, pois se Adão é pai de Davi, ele, por via de consequência, também
é o teu pai, afinal, tu descendes do primeiro homem.
— Decerto — concordou Jesus. — Deus é o Pai de todos; o meu e o teu
também.
— Bem, nisso eu não discordo de ti, meu judiado rapaz — continuou, com
o tom da voz, embora grave, sempre dócil.
— Mas o que fazes neste deserto? És um viajante ou estás perdido? —
inquiriu Jesus.
— Eu sou apenas um viajante e me faço acompanhar de um irmão que
está abrigado numa caverna não tão longe daqui. Ele tem, por assim dizer, um
pequeno problema epitelial que o impede de se expor demasiadamente ao sol —
ponderou Lúcifer em alusão às feridas que ambos mascaravam em razão do rigor
do ambiente desértico. — Mas e tu, meu amigo, o que fazes aqui?
— Eu vim comungar, buscar purificação para cumprir um árduo desígnio
que me aguarda.
— Um desígnio! — repetiu o derrubado, de forma sempre bem humorada.
— Pois eu e meu irmão, de certa forma, também viajamos em razão de um. Mas
ao ensejo, nós estamos aguardando o sol diminuir para seguirmos o nosso
caminho. E até que isso ocorra, que tal fazeres um pouco de companhia para
nós?
Jesus sentia algo de estranho naquilo tudo, mas os rigores do tempo em
que ali estava pareciam ter lhe subtraído os freios inibitórios e, quase que por
instinto, decidiu acompanhar o seu oculto inimigo.
A caverna onde Baalberith estava escondido ficava no alto de uma colina
de rochas e, à direita, havia um espaço que margeava um grande precipício.
Assustado com a aproximação de Lúcifer e daquele estranho — seria ele o tal
homem? — o ex-procurador celeste recuou para o fundo da gruta e permaneceu
de atalaia.
— Irmão? — bradou Lúcifer, ao lá adentrar sem muita pompa. — Eu
trouxe comigo um viajante, ele nos fará companhia até o sol se pôr.
Baalberith se aproximou aos poucos e, ao vê-los de perto pela fresta do
seu capuz, foi tomado por um estranho déjà vu, como se, ao observar Lúcifer
com a mão esquerda no ombro daquele homem, enxergasse o serafim
acompanhando Miguel num dos extensos corredores, do agora distante, palácio
de cristal. — Achegai-vos — disse ele com um ar solícito. — Apenas sinto em
não ter mais água ou comida para te ofertar — asseverou, dirigindo-se ao
homem.
— Se é sincera a tua acolhida, isso já me basta — respondeu-lhe Jesus.
— Pois, sim, os nossos dias não têm sido fáceis. A comida e a água
rareiam, e quem muito tem, pouco compartilha — continuou Baalberith, ao olhar
sutilmente para Lúcifer.
— Em verdade, amigos, eu jamais entendi os motivos pelos quais Deus
permite que Seus filhos sintam sede e fome. Aliás, bom seria se nós, como filhos
Dele, pudéssemos transformar pedras em pães, não achas? — indagou Lúcifer,
tomando uma pedra na mão direita.
Entretanto, mesmo estando com o corpo faminto e deveras judiado, ele
não se verteu àquela assertiva.
— Discordo de ti — respondeu ironicamente. — Nem só do pão vive o
homem, pois a palavra de Deus é o verdadeiro alimento da alma, é ela que nos
dá força e estabilidade para vivermos — explicou. — E se edificarmos as nossas
vidas na palavra Dele, estaremos sempre aptos a enfrentar quaisquer privações,
mesmo as físicas, e ainda assim permanecemos fortes.
Baalberith, outrora um dos maiores oradores do Fórum celeste, retorceu os
lábios para cima em silêncio, como se tivesse ficado surpreso com a astúcia
daquela pertinente resposta.
Lúcifer sorveu a observação e jogou a dita pedra no chão. Entretanto, não
desistiu.
— De fato, denotas ser instruído. Mas em teus olhos, eu enxergo uma
majestade nata, como se tivesses nascido para liderar exércitos e nações.
— Exércitos... — riu novamente Jesus. — Quando eu era menino,
costumava imaginar que lideraria um.
— Pois também percebo que tens predicados de sobra para, agora homem
feito, tomar a frente de um verdadeiro. Tu não achas, irmão? — indagou Lúcifer
a Baalberith.
— Sim, claro! E vendo-te diante de nós, estou convicto que tens
condições para guiar-nos na conquista de todos os reinos e riquezas do mundo.
Basta dizeres sim; e nós te seguiremos — replicou o exilado serafim das leis.
Não se sabe se pela fome ou pelo extenuante cansaço, Jesus passou a ser,
inadvertidamente, cercado por visões, as quais lhe apresentaram palácios
gigantescos edificados em ouro e pedras preciosas. Suas condições físicas lhe
trapacearam os sentidos e, aproveitando-se disso, Lúcifer potencializou aquele
cenário e fez com que luzes diversas convergissem entre si e revelassem lugares
ainda mais belos.
— Vê toda a exuberância! Irmana-te a nós e tenhas tudo isso aos teus pés.
Pois o que mais vale nesta vida miserável, se não as glórias e as fortunas? —
provocou o velho archote.
Livrando-se das alucinações, Jesus logo voltou a si e, ainda revelando
certo humor, o que lhe era peculiar, ponderou:
— Nós não devemos nos curvar à opulência, irmãos, mas apenas ao poder
de Deus! — respondeu num tom professoral. — Não é lícito adorarmos as
riquezas, pois aqui na Terra, ao contrário do que ocorre no reino do Senhor,
“tudo está; e nada é”! — afirmou, seguro.
Baalberith se levantou arisco, afinal, Jesus parecia ser um advogado nato,
alguém cujos argumentos e domínio da dialética, mesmo diante de um anjo
letrado nos cânones legais como ele, pareciam irrefutáveis.
Mas Lúcifer, a quem se poderia pensar estar furioso, apenas o aferia. E a
sua desconfiança ia aumentando a cada palavra que Jesus dizia, afinal, por que o
Altíssimo os soltaria para testar aquele humano em especial?
Jesus então, finalmente, se ergueu, agora fazendo menção de ir embora.
— Agradeço-vos a acolhida, a companhia e a breve conversa. Mas agora
eu devo continuar com a minha lida.
Os dois, agora inquietos, também se levantaram e se puseram a
acompanhar Jesus até a saída da caverna.
— Espera, amigo — obstou-lhe Baalberith, já o vendo próximo do
precipício. — Vê-se que crês piamente na palavra divina, no que não te censuro.
Mas antes que te vás, permita-nos um último repto.
— Sim! — engatou Lúcifer, arisco. — Olha para baixo! Se acreditas
piamente em Deus, lança-te daqui! Pois se a tua crença é verdadeira, Ele
certamente te tomará nos braços e não permitirá que morras.
Sem prejuízo disso, nem assim Jesus alterou o seu temperamento sereno e,
na mesma toada de outrora, arrematou a ambos:
— Nada do que disserem me fará ceder, pois se eu me lançar, o farei
somente para pôr o Senhor à prova; o que me é, ou melhor, nos é defeso. — E
dando mostras de que, inconscientemente, havia enxergado a verdade que estava
por trás dos dois, finalizou. — E se sois quem sois; bem sabeis que um filho
jamais deve pôr o pai à prova, afinal, não se dá ultimatos a Deus.
O Messias esboçou um novo sorriso — um mais seguro — e lhes deu as
costas, retomando o seu caminho por entre as intempéries do deserto. Sua cabeça
doía, o seu estômago gemia e o seu corpo reclamava pelo alimento físico, mas
ele continuou adiante e não olhou para trás.
Ao vê-lo se afastar da caverna, o rei do Inferno balbuciou sozinho:
— “Vai e ora, até que o Redentor surja de tua casa um dia e vos salve”.
— O que disseste, irmão? — perguntou Baalberith confuso.
— “Vai e ora, até que o Redentor surja de tua casa um dia e vos salve” —
repetiu pacientemente. — Eu ouvi Deus dizer isso a Adão ao expulsar ele e a
segunda mulher do Éden. E esse tal humano descende da casa dele. Agora, eu é
que te pergunto, Baalberith. Seria esse homem o tal “Redentor”?
— Talvez. Pois ele superou a riqueza, o poder e a glória terrestre que
ofertamos, coisas que qualquer humano haveria de adorar — ponderou sob a
aquiescência de Lúcifer.
Ambos se quedaram silentes e, somente aí, entenderam os motivos que
levaram o Eterno a soltá-los temporariamente do Inferno. Se nem Lúcifer ou o
próprio Baalberith conseguiram quebrar moralmente aquele homem, que força
seria capaz de fazê-lo? Mas aquela, para ambos, havia sido, por assim dizer, uma
primeira derrota. Ainda soltos, eles não desistiriam de tentar colocar todos os
percalços possíveis na vida terrena do ungido.
Enfim terminou o quadragésimo dia em que Jesus andava pelo deserto e,
já sem forças, caiu vencido pela fraqueza corporal, e surpreendentemente diante
dele, surgiu um espectro que se estagnou. Trêmulo, o homem se esforçou para
erguer o próprio rosto a fim de identificá-lo, e viu, diante de si, o desconhecido
amigo de seu pai José, o seu querido irmão celeste numa outra vida, o príncipe
Gabriel. Em seguida, desfaleceu.
O anjo-mor o levantou cuidadosamente e, de um bornal impregnado com
a água mais pura do mundo, saciou-o da sede física. Diante do estado deveras
debilitado em que o avatar de Miguel se encontrava, ele jamais se lembraria
daquele momento. Não naquela vida.
— Venceste uma dura partida, irmão. Continua assim, firme, pois aqueles
que te amam aguardam, pacientemente, a tua volta para o Céu — acalentou-o, o
mensageiro de Deus, ao deixá-lo em segurança.
Ao despertar algumas horas depois, Jesus percebeu que as feridas e os
rigores do deserto haviam recuado. Refeito daquela provação, ele se recolocou a
caminho do Jordão para começar a arregimentar aqueles que o acompanhariam
pelos próximos três anos, até que a sua tarefa na Terra acabasse. Era, enfim,
chegado momento de escolher os seus primeiros discípulos.

***

Quando o Eterno foi cientificado da fuga de Azeyzel, Ele não mostrou


aparente zanga. Os arcanjos estranharam tal atitude, mas Metatron logo
desconfiou que tudo aquilo talvez fosse parte de um quebra-cabeça ainda maior.
— Ele deixou o regime fechado por uma iniciativa unicamente tua —
disse Deus sem repreendê-lo —, mas se tencionas ir até o presídio de Guf, te dou
a minha licença, pois a chave que procuras talvez esteja por lá.
— Eu o encontrarei e o trarei de volta, Senhor.
Sem demonstrar rigor, o Eterno abrandou a face e esclareceu:
— Talvez o destino remeta Azeyzel a outras plagas que não as masmorras
do teu quartel. Ele buliu com forças consideradas proibidas e, seja pelas Minhas,
pelas tuas, ou pelas mãos dos homens, ele, inexoravelmente, haverá de pagar
pelos seus crimes.
Metatron não entendeu aquela assertiva de pronto, mas, sem maiores
delongas, reverenciou o Pai e o deixou.
— Adeus, meu filho... — sussurrou o Eterno, ao vê-lo sair do salão, como
se já soubesse do fim que o esperava.
Após ter uma rápida conversa reservada com o seu principal oficial de
cartório, o Anjo Lamechiel, Metatron partiu do Céu, levando consigo os seis
cartapácios que escrevia sobre a história da humanidade, os quais, àquela altura,
estavam estagnados no capítulo referente à tentação de Jesus no deserto. E na
tétrica Tesouraria das Almas, ele, em breve, haveria de chegar.

***

Assim como Gabriel, ao ali aportar pela primeira vez, o Arcanjo Metatron
deixou um extenso túnel de fogo e foi cuspido na dimensão secreta do Guf, onde
a dor moral pairava no ar parecia contagiante; aliás, tal não poderia ser diferente,
dada a péssima energia que os desencarnados lá produziam.
Após as necessárias apresentações ao severo corpo da guarda, ele
atravessou rapidamente o portal que levava à capela da Tesouraria, onde, sem
demora, foi ter com o seu irmão de armas, Razyel, desde sempre o guardião
daquele tenebroso lugar.
— Layla-Li? — retrucou o tesoureiro-mor, ao ser inicialmente perquirido
pelo visitante.
— Sim, major. Eu verifiquei, ainda em Vigilum, que após a tragédia em
Nod, a alma dela veio para cá, dadas certas fornicações a que ela praticou na
Terra.
— Layla-Li... Sim! Eu me lembro do nome. Ela foi a companheira de um
dos anjos vigilantes castrados; Azeyzel se não me trai a lembrança.
— A própria — assentiu. — Mas agora, eu preciso saber. Ela reencarnou
ou ainda cumpre pena sob a vossa autoridade?
Razyel levou o escrivão-chefe aos grandes arquivos da Tesouraria, onde,
com ele, passou a buscar informações sobre a tal mulher, outrora esposa do
fugido líder dos vigilantes. Foi um dos seus ajudantes que localizou o prontuário,
o qual foi, de pronto, entregue a ele.
— Cá está. Entretanto, pelo que consta dos autos, ela não está mais aqui
— esclareceu Razyel. — O espírito dela reencarnou há cerca de dezoito anos
terrestres.
— E para onde foi? — inquiriu ansioso.
— Deixa-me ver... Na última atualização, surde que ela foi solta em razão
de uma petição de clemência feita por Harual — concluiu surpreso.
— Harual? Eu não me recordo de nenhum procurador com esse nome.
— Ele não é um de nós, Metatron. Harual é um espírito humano, bisneto
de Adão, e um dos primeiros a atingir o ápice de evolução no Éden Espiritual.
Embora muito elevado, ele, ou melhor, “ela”, pois se trata da alma que
originalmente pertenceu a uma mulher, aceitou um ministério um tanto ingrato,
que é o de compor, como obreira, a nossa pastoral de auxílio.
— Pastoral de auxílio? E o que é isso? — perguntou curioso com o teor
daquela desconhecida expressão.
— É um grupo importante formado por alguns espíritos que atingiram o
nível máximo de desenvolvimento mental, e agora se dedicam a ajudar os que
aqui rogam por socorro.
— E a alma dela pleiteou esse auxílio?
— Do prontuário, consta que Layla-Li já reencarnou seis vezes, e para cá
voltou na mesma conta, sempre por imputações graves, a última delas, por ter
assassinado dois filhos ainda impúberes. Pois lhe foi esclarecido que a sétima
chance seria a sua última e, em razão disso, ela pediu ajuda a Harual, a qual
passou a prepará-la para essa nova existência, que se daria numa província
chamada Judeia.
— Judeia... — repetiu. — Então é para lá que devo ir. Mas antes, eu
gostaria de conversar com essa tal humana Harual.
— Certamente. Um dos guardas o levará até a ação pastoral, estou certo
que ela o receberá.
Metatron agradeceu o irmão e seguiu um carcereiro que o encaminhou a
uma das mais altas torres do Guf, onde permaneciam os obreiros espirituais. Ao
aportar na entrada, o nobre oficial de escrivania observou de longe a forma
similar de uma humana de avançada idade. Ela usava uma toga marrom bem
simples, tinha os cabelos escuros e curtos e, de estatura, nada que ultrapassasse
um metro e meio de altura.
— Harual? — chamou.
O espírito se voltou para o interlocutor e, sereno e sorrindo, estendeu-lhe
as mãos.
— Venha, arcanjo; achegue-se e traga a vossa paz.
Metatron se aproximou ressabiado, entretanto, em razão da necessidade,
logo deu início ao diálogo.
— Desculpa a invasão e a oportunidade, mas eu estou à procura de
informações sobre uma alma que ajudaste no passado, o seu primeiro nome de
batismo foi Layla-Li.
— A concubina da combalida Potência? — replicou Harual de pronto. —
Uma alma deveras perturbada a qual muito auxiliei.
— É muito importante que eu a encontre, pois a mesma Potência a que
fizeste alusão escapou da prisão no Céu e certamente fugiu para a Terra atrás
dela.
— Layla-Li... — pronunciou calmamente. — A ela, foi dada outra
oportunidade. A última. E a chave dela remanesceria numa escolha: ou a paixão
imoral pela carne ou caridade pela palavra de Deus. E se ela vencesse essa etapa
e não mais pecasse, migraria para a ala curativa do Éden, a fim de renascer por
uma última vez e cumprir uma importante missão com as almas dos dois filhos
que ela matou em sua penúltima vida.
— Uma assassina de crianças? Quanta desgraça! — lamentou o arcanjo.
— Mas te referiste a “uma escolha”? — insistiu.
— Sim. Pois, pelo que sei, esse anjo exilado que procuras tentará ser um
obstáculo à evolução dela. Layla-Li está presa a um carma muito antigo e,
somente ao extirpá-lo, conseguirá se libertar desses ciclos seguidos de
reencarnação.
— Desculpa, mas falaste em carma? — perguntou, estranhando o termo.
— O carma é um conjunto de atitudes que enverga um fluxo de intenções,
as quais podem ser boas ou más. Se boas, bons frutos nascerão; se más, os frutos
podres se alastrarão.
— Então devo apressar-me antes que Azeyzel a encontre.
— Mesmo que não consigas interceptá-la, já existe alguém na Terra que
tentará se encarregar de resgatá-la. As vidas passadas de Layla-Li carregam
pecados gravíssimos, e apenas a voluntariedade de uma remissão poderá salvá-
la. Livre-arbítrio, meu caro arcanjo, lembra-te que os homens e as mulheres o
possuem desde que perderam o primeiro paraíso em razão de um pedaço de figo
— arrematou sorrindo.
— Bem, eu espero que ela faça a escolha certa — pontuou.
— Embora deveras distorcida, ela me pediu essa chance, o que é bem
difícil de acontecer por aqui. A cura efetiva deve ser conquistada pela alma, pois
a fé suplanta não apenas os efeitos, mas também as causas. Antes que te vás,
deixa-me entregar-te o atual código genético dela — disse ela, ao tocar-lhe as
mãos. — Pois, para o faro aguçado de um bom arcanjo, ele certamente será útil.
— Agradeço muito a tua preciosa ajuda, foi um grande prazer conhecer-te
— disse, após auferir aquelas informações.
— No que eu puder ser útil, sabes onde me encontrar — respondeu,
ofertando-lhe novamente as mãos.
Metatron se despediu e partiu da Tesouraria, pois a responsabilidade pela
fuga de Azeyzel parecia incomodá-lo. E bem mais do que isso, parecia
assombrá-lo.
Capítulo 5
Pedras em peixes
EMBORA ROMA estivesse apenas preocupada em evitar tumultos e recolher
impostos nos territórios dominados, não era segredo que alguns focos de
insurgência na Judeia incomodavam Tibério[71], o qual havia assumido a regência
em razão do passamento de seu padrasto, César Augusto. Era a chamada época
dos profetas e, crentes na vinda do Messias para salvá-los, o povo judeu se
tornou, de certa forma, atrevido, chegando ao ponto de menoscabar
publicamente dos dísticos reais que, como ordens de submissão, haviam sido
forçosamente fincados no grande Templo em Jerusalém.
Tencionando impor controle na região — ou melhor, minimizar problemas
—, o finado imperador, por influência do chefe da Guarda Pretoriana, Lúcio
Sejano, havia, quatro anos antes, nomeado o esposo de uma de suas filhas como
procônsul[72] da província romana na Judeia[73], subordinando-o apenas ao
governador da Síria, Lucius Vitélio.
Entretanto, a incerteza causada por um partido subversivo cujos membros
eram conhecidos por “zelotes”, judeus que incitavam a rebelião armada contra a
opressão de Roma, acabou, de certa maneira, unindo o tetrarca[74] da Galileia ao
prefeito[75] outrora indicado pelo imperador Tibério, o sul-italiano Pôncio Pilatos.
Este, um samnita[76] da ordem equestre e detentor do título de tribuno[77] ainda
jovem, não mostrava aparente satisfação em administrar aquela parte tumultuada
do mundo, pois acreditava que os seus talentos poderiam ser melhor
aproveitados em outras plagas, já que as suas aspirações políticas não poderiam
ser, a contento, executadas em terras notoriamente hostis. Registre-se que a
chegada do novo prefeito romano em Jerusalém não havia sido pacífica, tendo os
zelotes causado grandes baixas nas coortes de infantaria[78] que acompanhavam a
caravana do tribuno, dando mostras que o trabalho de administração naquelas
terras, outrora geridas por Valerius Gratus[79], não seria fácil. De antemão, ele
percebeu que os seus sacrifícios ao deus Marte — feitos em Roma antes da
viagem — pareciam ter sido em vão.
Pois visando manter uma boa política com Herodes Antipas, o prefeito
romano e a esposa dele, a belíssima Cláudia Prócula, neta do finado Augusto,
deixaram temporariamente a cidade portuária da Cesareia[80] e o receberam,
acompanhado da mulher Herodíade[81] e da enteada Salomé, numa grande ceia no
palácio que havia pertencido ao finado Rei Herodes I, mais precisamente, na
fortaleza Antônia[82], o qual, havia muito servia de residência oficial para os
prefeitos romanos em Jerusalém, mormente quando vinham aplicar a justiça. E
naquela mesma oportunidade, o sacerdote do Templo judeu nomeado por Gratus
oito anos antes, o saduceu Josefo ben Caifás, também se fazia presente.
— Honra-me sobremaneira essa suntuosa recepção, prefeito! — anunciou
Herodes, no afã de tentar bajular o romano.
— Pois tens a minha recíproca, Antipas — respondeu-lhe Pilatos com
aparente gentileza. — A distância nunca nos foi proveitosa, principalmente
quando os zelotes estão aumentando em número e conspirando como nunca
contra Roma.
— Zelotes... — interferiu Herodíade de forma impertinente. — Fossem
apenas eles os chacais que nos rodeiam...
— Perdoes a minha esposa, prefeito, mas ela anda um tanto aborrecida
com a má língua de alguns difamadores do deserto.
— Difamadores? — insurgiu-se ela, elevando a voz. — Pois saibas que a
língua de João Batista já deveria ter sido arrancada de sua garganta há muito
tempo! — asseverou enfezada.
Cláudia Prócula, usando uma brilhosa estola romana que a embelezava
ainda mais, assustou-se com aquele tom; afinal, ela tinha a personalidade calma,
era gentil e educada, incapaz de interferir — ao menos publicamente — num
colóquio em que não fosse convidada a participar.
— Pareces ter uma enorme prevenção contra esse tal João Batista, senhora
— observou Pilatos com sarcasmo, afinal, ele sabia da notória má-fama moral
dela. — Eu confesso que ouvi alguns relatos sobre ele, mas até então, o tinha
apenas como um selvagem que prega entre os escorpiões.
— Ele ofende a mim e à minha filha, acusando-nos de práticas vis e
hediondas — bradou cercada pela perturbadora Salomé, rebenta do seu primeiro
matrimônio. — Mas o meu esposo, que de tudo aufere absoluta ciência, nada faz
para calá-lo de uma vez por todas.
— O problema é que João Batista não viu com muita simpatia o
intempestivo divórcio de meu irmão Filipe e Herodíade e, em razão de um meio
parentesco dela comigo[83], vive a acusar-nos de incesto — esclareceu em tom de
zombaria. — Mas ele é um pobre mendigo adorado por muitos. Atormentá-lo
seria pouco sábio, afinal, nós não queremos problemas em razão de assuntos
religiosos.
— No que fazes muito bem — assentiu Pilatos.
— E perto de Barrabás[84] — continuou o tetrarca —, o líder dos zelotes,
ele não representa perigo algum — concluiu, mirando a esposa de forma rude e
com o intuito de tentar fazê-la se calar.
— Barrabás... — interessou-se o romano. — Há tempos que nós estamos
atrás desse tal rebelde, desde que aqui cheguei pelo que me lembro. Por vezes,
recuso-me a crer que ele, de fato, exista, e que nada mais é do que uma lenda
criada pelos insatisfeitos para dar aparente força moral aos movimentos
revolucionários.
— Ele existe, é um velho ladrão e assassino — completou Antipas. —
Embora ultimamente corram certos rumores de que a liderança dele vem sendo
ameaçada por uma espécie de lugar-tenente, um homem chamado Judas, também
alcunhado de “Iscariote”.
— Iscariote? — indagou o tribuno curioso com aquela palavra.
— Sim. É uma corruptela da expressão “sicário” ou o “homem da faca”,
um segmento mais agressivo dos zelotes que se encarrega de degolar os seus
inimigos — esclareceu Herodes, ao espirituosamente correr um dos polegares
sobre o próprio pescoço.
— Esses homens precisam ser presos, eles são muito perigosos —
pontuou o romano, aparentemente preocupado.
— Além de perigosos, são astutos — interferiu Caifás que, até então, se
mantinha silente. — E os que são presos pela Polícia do Templo[85] acabam
revelando muito pouco. Some-se a eles a malta de ladrões que infesta a cidade,
dentre os quais, um chamado Dimas, o qual tem predileção por saquear os
judeus de maior posse para desafiar-nos. O Sinédrio pôs um prêmio pela sua
captura, mas ele enverga a simpatia da ralé e, em razão disso, continua fora das
nossas mãos.
— Dimas... O tal que rouba e deixa rosas? — retrucou o prefeito, ao
revelar saber dos métodos do bandoleiro.
— O próprio. Pois eu temo que a sua postura sacrílega ainda o leve à cruz
— sugestionou o sacerdote.
— Ladrões... — pontuou Pilatos, com aparente desdém. — Mas, e sobre
esse tal João Batista, o que a autoridade judaica nos diz? — indagou o romano,
voltando o rumo da conversa.
— João é deveras agressivo em suas falas, por isso tem a veneração de
muitos descontentes. Ele e os seus não acatam passivamente as nomeações
sacerdotais feitas por Roma, inclusive a minha, se me permite dizer.
— Quanto a isso, saibas que eu mantenho empenhada a minha palavra
inicial, e no que depender de mim, continuarás à frente da função, desde que
mantenha o teu Templo-Estado em consonância com os auspícios de César —
asseverou o prefeito em razão da conhecida ganância de Caifás.
Aliás, é digno de menção, que o encargo de sumo-sacerdote era
extremamente lucrativo naqueles dias, sendo que o atual ocupante dele
descendia de uma nobre família judia, cuja moral, ao menos diante dos
princípios retos de Deus, não era nada imaculada. E para o prefeito romano, essa
vivência colaborativa era necessária, afinal, ele precisava do apoio dos líderes
religiosos judeus para manter a paz e arrecadar impostos.
Vencida a ceia, e já recolhidos nos suntuosos cômodos que cabiam ao
gestor romano, Cláudia Prócula queixou-se ao marido.
— Não gosto dessa gente, Pôncio. Eles são muito estranhos, de certa
forma, promíscuos por assim dizer.
— Promíscuos? — repetiu sem dar muita atenção.
— Sim. Não percebeste como Herodes encara a enteada? Parece que ele
está a devorá-la com os olhos.
— Refere-te à tal menina, Salomé? — perguntou, ao retirar parte da túnica
que o ornava.
— Menina... — pontuou, fazendo aparente pouco caso. — Pois aquela
“menina” parece ter a morte nos olhos, arrepio-me só de lembrar dela.
— Cláudia, querida, eu os classificaria como um mal necessário. E no
momento atribulado em que vivemos, precisamos deles, assim como eles de nós.
— Eu não sei. Tenho um mau pressentimento quanto a eles, e também
quanto a este lugar — desabafou, aparentemente incomodada.
— A tua única preocupação, agora, deve ser com o nosso herdeiro —
disse Pilatos, referindo-se à gravidez da esposa. — E deixa, que da gestão
política deste fim de mundo, cuido eu — finalizou abraçando-a.
Cláudia Prócula aceitou aquele afago, mas não desfez a feição temerosa.
Ela ainda não sabia, mas os seus medos, em boa verdade, não eram tão
infundados. Aliás, das pérfidas ações daqueles que ela agora dizia temer,
eclodiria, num futuro não tão distante, o destino de todos eles.

***

Ainda era manhã quando João Batista viu Jesus surgir na linha do
horizonte, egresso dos rigores do deserto da Judeia. Ao lado do rude pregador,
estavam dois dos seus mais queridos discípulos, André e o jovem João.
Quando Jesus se aproximou deles, o primo pôs-se de joelhos e,
respeitosamente, lhe beijou os pés ainda sujos de areia. O aprendiz André, que
estava a consertar uma tarrafa, estranhou a atitude do mestre, mas, por respeito,
não a censurou. Ao erguer o rosto, o pastor disse aos dois.
— Nada mais tenho a ensinar-vos. Eis aqui o filho de Deus, aquele que
pregará para o mundo! Portanto, segui-vos; ele agora é o vosso rabi.
— João, muito me honra ter sido tu o portador das ordens do Eterno —
disse o ungido.
— Não me agradeças, apenas cumpras a vontade Dele e redima, não
apenas o nosso povo, mas o mundo todo.
Ambos se abraçaram e verteram lágrimas sinceras, e finalmente, Jesus se
colocou a caminho da sua aguardada incumbência.
André e João se puseram a segui-lo, sendo que o segundo, aparentemente
ressabiado, olhava o novo mestre com certo receio, afinal, ele parecia estar bem
abatido, resultado dos quarenta dias que havia passado no deserto.
— Estás a pensar se sou eu mesmo aquele por quem esperáveis? — disse
Jesus a João, que naquele instante, imaginava exatamente o que lhe fora
perguntado.
— Como sabes disso, rabi? Por acaso consegues ler pensamentos?
— Não. Digamos que eu leia a linguagem corporal das pessoas —
gracejou. — E é isso que a tua está a me dizer — afirmou sorrindo.
— Então vieste, finalmente, nos libertar? — completou André, apressando
o passo para ficar ao lado dele.
— Percebo que és um pescador, André — ponderou o rabi, em alusão à
tarrafa que ele trazia nos ombros. — Pois da mesma forma que enches a tua rede
de peixes e separas os bons dos ruins, eu vim para tarefa similar, a de apartar os
maus dos justos através de uma ode de amor pela palavra. E quem a aceitar, tal
qual da forma como dizes, será, por assim dizer, liberto.
— Falas em redes cheias, mestre. Mas ultimamente, os peixes têm rareado
nestas regiões, que o diga o meu irmão mais velho, cujo humor, em razão disso,
não tem sido nada bom — queixou-se André.
— E qual é o nome do teu irmão? — perguntou Jesus.
— Ele se chama Simão; nós somos filhos de Jonas.
— Então vamos visitá-lo; quem sabe eu consiga tirar-lhe o aziúme com
algo que tenho para ofertar a ele.
André se surpreendeu com o agradável desprendimento do novo professor,
o qual diferia, em muito, de João Batista, principalmente pela maneira serena e
gentil de se expressar. Entretanto, achou por bem adverti-lo.
— Desculpa-me, rabi, mas eu creio que, na atual conjuntura, somente uma
rede abarrotada de peixes seria capaz de aplacar o extremado mau-humor de
Simão.
Jesus achou graça naquela observação e afirmou:
— Vamos até ele então! Creio que o teu irmão terá uma surpresa.
Ao chegarem próximo ao grande braço d’água onde os barcos vindos do
mar da Galileia aportavam, os três não demoraram muito a encontrar o tão falado
pescador, cujos gritos de contrariedade, como já era de se esperar, o destacavam
dentre os demais.
— Uma noite inteira de trabalho e nada. Nem uma mísera tilápia para
podermos salgar — reclamava. — E depois, ainda virão aqueles malditos
publicanos[86] exigirem taxas pela nossa inútil labuta — queixava-se, ao saltar do
barco e atingir o raso. — Ao observar o irmão caçula acompanhado de João,
Simão deu continuidade àquela tormentosa ladainha. — E tu? Ao invés de me
ajudares com as redes, perdes o teu tempo com aquele desatinado que se
alimenta de insetos — vociferou, fazendo pouco do Batista.
Mas mesmo acreditando que aquela visita talvez fosse inútil, André se
adiantou apenas em respeito ao recém-auferido professor.
— Simão, ouve-me! Este é Jesus, filho de José; o nosso novo rabi. E ele
insiste que tem algo a te oferecer.
— Oferecer a mim? — Riu alto. — No momento, só me interessa encher
as tarrafas para poder alimentar os nossos e saciar a sanha do fisco romano.
André olhou para Jesus como se visse cumprida a assertiva sobre a rudeza
do irmão.
Pois o escolhido deu um passo à frente e entrou na água, a fim de se
aproximar daquele pescador que, embora aparentemente incivil, não era de todo
ruim no quesito sociabilidade, mormente a auferida aos brados, mais típica dos
romanos do que dos judeus.
— Simão, por acaso tu sabes como Deus criou esses peixes que tanto
desejas? — perguntou Jesus, ao imergir uma das mãos na água e retirar um
punhado de pequenas pedras. — Antes deles, Ele criou as estrelas e, ao fazê-las
cair no mar, deu vida às primeiras criaturas marinhas — esclareceu com alegria.
— Pois, leva-me contigo e joga as redes mais uma vez. Quem sabe, tu tenhas
melhor sorte — sugestionou.
— E, por acaso, também és pescador? — bradou Simão.
— De certa forma, sim... — respondeu-lhe o abnegado rabi. — Mas eu
não vim até aqui para pescar peixes.
— E o que então esperas pescar? Feras? — indagou com impertinência.
— Não, Simão... Homens — concluiu, ao forçar o corpo e subir no barco.
— E então? Tu não vens? — provocou Jesus.
Simão olhou para o irmão e para João e, vendo latente confiança nos
rostos de ambos, balbuciou algumas lamúrias desconexas e resolveu arriscar.
— Tu és muito estranho, forasteiro. Mas eu confesso que fiquei curioso
para ver onde queres chegar com estas tuas charadas.
O barco zarpou e logo ganhou uma profundidade média, sendo que Jesus,
sentado na popa e com o semblante tranquilo, apenas fitava Simão, o qual
parecia se enervar ainda mais com aquela calma toda. Ao atingirem um ponto
considerado ideal, Simão fez menção de lançar sua rede ao mar, mas Jesus o
obstou.
— Espera!
O mestre levantou a mão direta, onde ainda jaziam aquelas mesmas
pedrinhas douradas colecionadas na beira do lago e, na sequência, lançou-as na
água.
— Pronto! Agora, arremessa a vossa rede — disse, seguro, voltando à
popa e nela encontrando assento.
Simão espremeu os olhos em razão do sol que se fazia rigoroso e, com
força, jogou o tecido de malha que impactou, aberto, naquele brilhoso espelho
d’água. E, após alguns instantes, Jesus o encarou, como se o licenciasse a trazer
de volta a armadilha. Pois tamanha foi a surpresa de Simão ao repuxá-la e, no
seu pequeno convés, ver um amontoado de peixes impactar. Incrédulo, a
sensatez simplesmente lhe fugiu naquele momento.
— Pedras... Tu transformaste pedras em peixes — gaguejou.
— As pedras ajudam a construir, a edificar — assentiu. — Acompanha-
me, Simão. Vem comigo, e sê como uma pedra.
Ao vislumbrarem o barco retornar, André e João ficaram maravilhados
com a visão dos peixes e com o assombrado semblante de Simão. O primeiro,
então, voltou-se para o irmão e falou:
— Eu te disse, ele é quem nós esperávamos.
— O teu irmão está agora entre nós, André — esclareceu Jesus. — E para
nós, Simão agora será Pedro, uma das nossas mais valiosas pedras.

***

Depois do milagre dos peixes, os quatro partiram para a aldeia de


Betsaida[87], com o intuito de dar início ao processo de evangelização. Lá
chegando, a eles se juntou outro peregrino, Filipe, um conhecido dos irmãos
pescadores. Impressionado com a desenvoltura de Jesus em interpretar as leis de
Moisés sem o rigorismo e a hipocrisia dos fariseus e saduceus, inflexíveis e
virtuosos apenas na aparência, Filipe tratou de procurar o amigo Natanael de
Canaã[88], a quem havia conhecido na Galileia, a fim de participar-lhe que o
herdeiro de Davi parecia finalmente ter chegado.
Ao encontrá-lo orando sob a sombra de uma figueira, tratou de convencê-
lo a se juntar ao grupo.
— Eu falo sério, Natanael! É ele, sem dúvida! Três pescadores, incluindo
o cético Simão, a quem muito conheço, o viram transformar pedras em peixes.
— Pedras em peixes... — desdenhou. — E de onde vem esse tal mago,
Filipe?
— Ele é um artesão e vem de Nazaré; muitos estão a segui-lo para ouvir
as suas palavras de fé e de esperança.
— Nazaré? — Gargalhou. — E por acaso aquele vilarejo insignificante
teria o condão de parir algo que prestasse?
— Deixa de preconceitos! — respondeu Filipe, ao rebater a aparente má-
fama que aquela aldeia gozava entre alguns judeus.
— Eu não irei mais discutir Natanael, vem comigo e vê! E se não te
convenceres, quedar-me-ei silente.
— Filipe, Filipe... — lamentou, ainda incrédulo. — Só mesmo tu, um
sonhador, para crer que o esperado Messias, um rei vindo da casa de Davi, sairia
daquele mísero povoado agrícola — duvidou. — Pois, quanto a mim, amigo,
confesso-te que já estou com as esperanças esvaídas sobre a efetiva vinda dele.
Mas enfim, por mera comodidade, e pelo laço antigo de amizade,
Natanael seguiu o amigo e, ao chegar a um pequeno lugar onde Jesus se fazia
acompanhar de Pedro, João, André e mais alguns seguidores, foi, de imediato,
surpreendido pela fala do rabino, que ao vê-lo diante de si, interrompeu um dos
ensinamentos.
— Vede, vós, amigos, eis aqui, diante de nós, um israelita de coração. Um
que ainda reza durante o dia e também teme a Deus.
Surpreso e assustado, o recém-chegado o indagou:
— Como sabes que sou filho de Israel? E mais, que eu estava a rezar?
— Antes que o teu amigo Filipe te chamasse, vi-te orando sob a sombra
de uma árvore antiga, a qual, no primórdio dos tempos, carregou os frutos da
ciência. — Natanael sentiu a espinha gelar. Por conhecer as leis e a saga de
Adão, e concluir que Jesus fazia alusão a uma figueira, ele olhou para Filipe e
tremeu. — Mas já que estavas sob uma grande figueira, ajuda-me a explicar um
ponto de vista para os que aqui estão. Diz, por acaso ela tinha muitos frutos?
— Sim... — titubeou.
— Pois dá-nos a tua opinião. E se essa árvore estivesse seca e nada
ofertasse, num período corrido de duas ou três colheitas, por exemplo, acharias
justo ceifá-la a fim de que ela desse lugar a outra?
— Eu... creio que não.
— E por que não?
— Por ser, a árvore, uma obra de Deus, entendo que ela, mesmo fraca,
mereceria mais uma chance, ainda que fosse a última.
— Assim como os homens — ponderou Jesus, já se levantando e indo em
direção a Natanael —, os ramos e folhas das figueiras se renovam a cada verão,
assim como a vossa fé que, como um novo figo que teima em nascer, agora
também se renova.
Mirando Filipe, Natanael disse:
— Tu estavas certo. Eu vim e o vi. Ei-lo aqui diante de nós.
— Fica na nossa companhia, Natanael — ofertou Jesus ao abraçá-lo. —
Fica e sê chamado, daqui por diante, de Bartolomeu[89] — asseverou, sob a
concordância do mais novo discípulo.

***

Com a arregimentação de um novo seguidor, Jesus decidiu retornar com


eles para Nazaré, a fim de visitar a mãe, a quem não via desde que tinha partido
para deflagrar o seu ministério.
Maria se alegrou em ver o rebento bem e feliz e, ao seu turno, recebeu os
cinco principais companheiros dele como se filhos seus fossem.
Coincidentemente, na mesma noite, haveria bodas na cidade de Canaã, cidade
natal de Natanael, agora Bartolomeu, a qual ficava a nordeste e cerca de sete
quilômetros da vila de Nazaré.
Acostumados à parca sociabilidade de João Batista, André e João ficaram
entusiasmados quando Jesus anunciou que todos iriam para os festejos, onde a
dança e a música não haveriam de faltar. Pedro e os demais não abriram mão do
convite e, acompanhados dos familiares diretos do mestre, finalmente tomaram o
caminho da tal cidade.
Durante o trajeto pela estrada de Séforis, chamou-lhes a atenção o
excessivo apego de Jesus a Maria, a quem expressava um carinho incomum de
se ver naqueles dias. Aliás, ele não se avexava em dar, à mãe, constantes
demonstrações públicas de afeto, abraçando-a e beijando-a com anotada
frequência. Embora isso não fosse muito típico naquela sociedade, tal o era para
o filho de Deus, que na mãe terrena via um porto seguro, um símbolo do amor
puro, assim como aquele que o Eterno tinha para consigo e ele para com a
humanidade.
O casamento seria entre os filhos de duas famílias tradicionais da região e,
aos costumes, ele transcorria sem adversidades, sendo que, ao verem Jesus
dançando, os demais seguiram os passos dele, afinal, aquela série ritmada de
movimentos nada tinha de ofensiva, pelo contrário, era um costume sadio do
povo judeu desde os tempos de Noé.
Aconteceu que, no decorrer da celebração, no terceiro dia, o vinho servido
aos convidados terminou antes do previsto. Maria percebeu e olhou apreensiva
para o filho, afinal, os convidados ainda chegavam de longe, e a mãe do noivo
lhe era deveras querida, sendo que a falta da bebida poderia significar, ao menos
para os pais da moça que contraía núpcias, um sinal de má sorte.
Maria se dirigiu ao filho e lhe deu parte do ocorrido. Confuso, Jesus
respondeu com um ligeiro movimento dos ombros, indiretamente dizendo “Mas
o que pode se fazer, minha mãe?”. Pois a imaculada, um símbolo de grandeza
num corpo mirrado, sorriu a ele e disse aos empregados:
— O que o meu filho disser para fazer, façam! Pois para aqueles que
seguirem o que ele diz, nada é impossível — afirmou, encarando-o e retornando
para o lugar que estava.
Entretanto, o teor daquela frase era bem mais significativo do que se podia
parecer: “Sigam o que ele diz e nada será impossível”, ou seja, sigam as palavras
dele e tudo se realizará; esse era o sentido figurado de tudo na visão vanguardista
de Maria.
Ao perceber a genitora insistir em fitá-lo com o canto dos olhos, Jesus
viu-se premido pelo dever de não desfavorecer a felicidade daqueles que o
haviam acolhido tão bem, assim como aos seus novos amigos. E mais, Maria deu
a entender aos empregados, ainda que indiretamente, que a palavra dele era
capaz de tudo para quem nela acreditasse.
Nos seis cântaros vazios que lá estavam, ele pediu a um dos servos que os
enchesse com água. Percebendo que o mestre estava a fazer algo, Pedro e
Bartolomeu se levantaram e, curiosos, ficaram por trás dele.
— Mas estão, senhor — disse o serviçal. — E o meu amo certamente me
repreenderá se eu servir água ao invés de vinho.
— Estão vazios, assim como vazios estão os corações de muitos. Enche-
os, e o vazio que tens dentro de ti será preenchido com a esperança de dias
melhores.
Confuso, o servidor não mais contestou e encheu os vasos com a água.
Feito isso, Jesus fechou levemente os olhos e sussurrou:
— Faça-se a boa ventura dos cônjuges, hoje acolhidos em santo
matrimônio perante Deus. — Em seguida, determinou ao criado: — Agora, toma
uma jarra desse líquido e serve-o ao pai da noiva.
Ainda incrédulo, o servo acatou, ressabiado, e levou o vaso conforme lhe
havia sido determinado. Tal não foi a surpresa de Pedro e Bartolomeu — e do
empregado, agora trêmulo — ao verem que o líquido vertido na taça do genitor
da nubente estava rubro, era vinho. Ao provar o suave sabor daquele néctar, o
homem disse satisfeito ao genro que ofertava a festa:
— Sei que é costume servir o melhor vinho no início das comemorações
e, quando todos estão entorpecidos, servir o menos nobre. Mas espanta-me que,
mesmo passados três dias do início dos festejos, tu guardaste o melhor vinho
para o final.
Sem entender o que havia se passado, o noivo reverenciou as palavras do
sogro e com ele brindou.
Logo depois, os dois discípulos reportaram o feito aos demais que lá
estavam, afinal, os poderes de Jesus pareciam ser sobrenaturais. E o filho de
Maria, pondo-se novamente no lugar que lhe cabia, sorriu aos amigos e aceitou
um pouco do mesmo vinho que o incrédulo empregado, com as mãos trêmulas,
serviu a ele.
Poucos, que não o serviçal, Maria, Pedro e Bartolomeu, foram
testemunhas daquele milagre, afinal, o que importava era manter a continuidade
das comemorações e não macular aquele momento de alegria. Mas ainda
descrente, o servidor tomou coragem, procurou Jesus e o indagou:
— Eu ainda não consigo crer, senhor. Não entendo como fizeste aquilo.
— Pois então não crês no que os teus olhos veem?
— Sim; não. Eu não sei... — respondeu ainda sem entender.
— Como te chamas?
— Eu... — hesitou. — Eu me chamo Tomé.
— Tomé, se crês na verdade, segue-me. E se o fizeres, assim como
aqueles cântaros que estavam vazios, a tua fé também será reposta.
E ali, então, Jesus arregimentou mais um seguidor fixo, o sexto, que, com
os demais, de lá partiu, tão logo o casamento findou.
Na sequência, o círculo só passou a aumentar. Por onde passava, o filho de
Deus chamava e as pessoas o seguiam, e quem o fazia não estranhava o poder da
palavra dele, já que, daqueles lábios, saíam apenas boas novas de como o nosso
próximo era importante. Embora Jesus estivesse se cercando de apoiadores, nem
todos teriam por ele o mesmo apreço. E não apenas entre os homens, mas
também entre os anjos, os mesmos caídos que ainda tentariam quebrá-lo.

***

Nas cavernas da Judeia, um ajuntamento de descontentes se reunia em


segredo. Imbuídos apenas em atacar pela força, os zelotes haviam arregimentado
um número razoável de colaboradores e, pelas mãos deles, muitas armas eram
forjadas para alimentar o exército rebelde que aumentava dia a dia.
Quando o finado Judas de Gamala[90], ainda na infância de Jesus, liderou
uma revolta contra uma guarnição romana em Séforis, tal movimento ficou
marcado como o ponto de início da seita dos zelotes, que, depois de anos
adormecida, passou a ser liderada pelo bandido Barrabás, nascido nas vielas de
Jopa[91] e, desde cedo, cunhado para odiar os seus conquistadores. Fervoroso em
suas convicções, ele havia crescido com outro garoto também chamado Judas,
homem extremamente crente na tese de que tudo que fosse feito em nome dos
escolhidos de Deus era justificável, inclusive o assassinato. Diante disso, ele
liderava os sicários, a ala mais radical dos zelotes, uma espécie de ajuntamento
de “anjos vingadores” escalados para as missões mais agressivas.
Embora sendo um homem de sangue e de armas, Barrabás sentia que, ao
revés de João Batista, era ele o preparador para a vinda do Messias, a quem
acreditava ser um conquistador, e não um simples profeta. Já Judas tinha a
certeza de que o ungido não haveria de ser apenas um guerreiro, mas aquele que,
também trazendo a palavra de Deus, agiria no tempo certo como um verdadeiro
exterminador.
Mas enquanto ambos aguardavam a vinda do Messias, rumores sobre a
ação imiscuída de espiões de Pilatos se espalharam, trazendo desconforto ao
grupo. E ao descobrirem que um dos judeus recrutados havia sido visto na
companhia de um centurião[92] e, o que é pior, surpreendido com certa soma em
dinheiro que lhe era incompatível, não houve sequer um julgamento. Judas
interpelou o suspeito e, elevando o seu punhal ao alto como se pedisse uma
bênção para aquele ato, degolou o pretenso delator, já que, com as informações
dele, cerca de quatorze zelotes acabaram mortos na cruz. E sobre o cadáver do
infeliz, o Iscariote rogou de joelhos e com os olhos fechados:
— Deus é comigo; os traidores da fé não merecem viver.
Esse era Judas. Capaz de qualquer coisa para trazer liberdade aos judeus,
dono de uma fé insana, quase doentia, pois o que o movia era apenas a figura do
Messias da espada.

***

Havia cerca de trinta anos terrenos que o Anjo Gabriel se deslocava com
frequência entre o Céu e a Terra, principalmente nos primeiros anos da vida de
Jesus, onde o seu florete de fogo fez a diferença na segurança da sagrada família.
Após ter levado água ao ungido no deserto, ele finalmente voltou ao seu lar,
sendo que, chamado que foi por Deus, Dele recebeu novas.
— Como anjo de correio que és, doravante focarei os teus préstimos
apenas para comunicar-me com o vosso irmão, cuja missão há pouco se iniciou.
Daqui por diante, estás licenciado de ir à Terra com a constância que tens feito,
afinal, Metatron saiu à caça de Azeyzel e por lá estará.
— E sozinho ele dará conta do encargo, Senhor?
— No momento, ele está só, mas em breve outros três voluntários se
juntarão a ele de forma paulatina. E todos ficarão por perto zelando pelo avatar
de Miguel, até que a expiação se consume.
— Como queiras. Mas..., Senhor — insistiu —, e o que será feito de
Lúcifer e Baalberith? Pondero, pois ambos ainda estão livres, embora tenham, a
princípio, falhado em verter Miguel.
— Deles, eu me encarregarei depois. Entretanto, existem outros que ainda
deverão tentar resistir. E quando o teu irmão terminar a missão que lhe foi dada,
estejas certo que já tenho destinos traçados para ambos.
— Como queira, Senhor.
— Agora vai. Congratulo-te pelos teus sucessos, e logo te farei saber
quem são os que descerão à Terra para acompanhar o teu irmão.
O príncipe dos anjos deixou o palácio intrigado, afinal, o jogo parecia
estar mudando. Que Miguel voltaria ao Céu em breve, era fato. Mas como e em
que circunstâncias, Gabriel apenas descobriria quando fosse visitá-lo pela última
vez, num longínquo e solitário jardim chamado Getsêmani[93].

***

Findas as bodas de Canaã o grupo retornou para Cafarnaum, de onde


iniciaram uma peregrinação que chegaria nas imediações da grande cidade de
Jerusalém. Por onde passava, Jesus continuava a pregar, ao ponto de os
ajuntamentos em volta dele começarem a chamar a atenção dos soldados
romanos. “Mais um agitador judeu...”, caçoavam. Mas em contrapartida, ele
certamente não era mais um.
Sempre comunicativo e caminhando por entre as pessoas, Jesus destoava
pela alegria, pela linguagem acessível e pela sinceridade moral. Acostumados
aos fariseus, os humildes passaram a ver, diante de si, um pregador diferente,
que ao invés de falar apenas de pecados e castigos, entoava temas sobre o amor e
o reino de Deus. E nas suas andanças — agora já nas cercanias de Jerusalém —,
ele foi instado nesse particular por um dos seus atentos espectadores.
— Mestre, como é a nação de Deus?
Embora já tivesse falado sobre ela, ainda menino, no Templo, diante dos
doutores, o mestre não se fez de rogado e, com uma linguagem menos
rebuscada, respondeu a dúvida.
— A nação de Deus se assemelha a este grão de mostarda-branca! —
esclareceu ao mostrar um fragmento da semente.
— Como assim, rabi? — insistiu o observador.
— O grão é pequeno, assim como a fé de algumas pessoas. Mas se for
plantado e regado, haverá de crescer e se fará numa grande árvore, onde
inúmeras aves haverão de encontrar bom pouso. Pois para entender o significado
de tudo, compares as aves com as pessoas e o grão que se tornou árvore com a
nação de Deus, a qual não está aqui ou acolá, mas dentro do espírito que habita
em cada um de nós!
— Mas onde fica esse lugar?
— Num plano à parte, onde a justiça é feita aos que cumprirem os
mandamentos divinos.
— Referes-te às leis de Moisés? — perguntou um fiel.
— Eu me refiro às leis do Sinai e, principalmente, à maior norma de Deus.
— E qual é ela?
— Amá-Lo acima de tudo, e ao teu próximo como a ti mesmo, afinal,
Deus não é ameaça, é perdão. Eu não vim para quebrar as leis, mas sim devolver
a elas o sentido original e com isso restaurar a fé.
— Mestre, e o que é fé? — inquiriu uma mulher.
— Pensa neste mesmo grão de mostarda que tenho em mãos — afirmou
Jesus com entusiasmo. — Se a tua fé se aproximar de metade do tamanho dele,
tu encararás uma amoreira e dirás: “arranca-te!”, e ela se soltará do chão e irá na
tua direção! Isso é fé! É a confiança inquebrantável que depositamos no poder
dos feitos de Deus sobre as leis da Terra!
Ali também estava um cego chamado Bartimeu, cuja presença se fazia
anunciar pelo tilintar de um pequeno chocalho que ele trazia junto à ponta do
cajado. Tentando abrir caminho entre os demais, o velho passou a se guiar pela
voz de Jesus, para quem então falou:
— As vossas palavras me fazem crer que és o herdeiro do rei Davi. Pois,
te peço humildemente que caminhes até mim e permitas que eu peça a tua
bênção — apelou.
Alguns discípulos ficaram nervosos com aquela situação, mormente o
sisudo Pedro, mas Jesus o desestimulou e tomou a direção do cego. Pois ao se
aproximar do rabi, Bartimeu procurou a mão direita dele e, ao encontrá-la,
levou-a junto ao próprio rosto.
— Tens as mãos muito sofridas, senhor; mãos de um trabalhador braçal.
— E acreditas que essas mãos judiadas podem fazer algo por ti?
— Senhor, enquanto eu te ouvia ensinar, visualizei facilmente em minha
mente o reino a que fizeste alusão. Rogo então, sempre com respeito às coisas de
Deus, que me licencies a ver a luz que irriga o dia.
— E crês realmente que eu possa ajudar-te?
— Eu pedi que vieste até mim, e tu o fizeste. Pois, para mim, tu és a
amoreira da parábola.
Jesus então colocou os polegares sobre as pálpebras maltratadas de
Bartimeu e, após fazer alguns movimentos circulares, disse a ele:
— A tua fé, grande como o Sol, acabou de libertar-te da escuridão! Agora
abre os olhos e revê a luz que tanto aspiras.
De nula, a visão do tal cego passou a turva; e de turva, passou, aos
poucos, a encontrar sintonia, até finalmente se estabelecer, límpida. Num
repente, Bartimeu largou o cajado e se dirigiu sozinho para uma fonte de água ali
existente. Sentando-se próximo dela, colocou as suas mãos naquele líquido
corrente e enxaguou o rosto como se o lavasse de todo o incômodo que havia
experimentado durante a vida desde que a cegueira lhe havia acometido na
infância. Agora sentado e tendo uma plateia estupefata à sua volta, ele fitou
Jesus à distância e o descreveu fisicamente.
— Eu consigo ver agora, diante de mim, um homem com a majestade no
rosto. Ele tem os cabelos negros separados na altura dos ombros e a pele
marcada pelo sol. Nele também enxergo serenidade e uma barba espessa, além
de um olhar afetuoso e expressivo. Pois agora eu vejo e atesto, és o prometido
que Deus afiançou ao nosso pai Adão.
Tomé então presenciou Jesus fazer mais um milagre, o que o fez crer,
agora sem maiores dúvidas, que o ungido estava diante de todos, inclusive dos
que a princípio não conseguiam enxergá-lo. Satisfeito, ele sussurrou:
— De fato, eis aí o verdadeiro portador da palavra. O nosso salvador.

∷ ∷ ∷

“Doravante, empresto-te o poder da vida, das palavras e da compaixão, e quem


tiver fé, será curado pelo teu toque.”

(Gênesis Proibido)

∷ ∷ ∷

Embora o povo estivesse começando a admirar Jesus em razão dos seus


feitos, logo ocorreu que certo segmento passou a vislumbrar aqueles eventos
com particular desconfiança. Atentos para qualquer ação que viesse a colocá-los
em xeque perante o submisso povo judeu, os espiões do Sinédrio atentaram para
aquela inusitada visita de Jesus às redondezas da cidade, bem como os efeitos
dela sobre a massa.
Entretanto, um respeitado fariseu daquela seita teve o privilégio de, em
meio aos demais, assistir a uma das palestras do rabi de Nazaré. E enquanto a
maioria dos seus desprezava o galileu, o bom Juiz Nicodemus, judeu de grande
influência no Sinédrio, resolveu procurar Jesus em segredo e, sabendo que ele e
os seus discípulos estavam acampados próximos ao jardim de Getsêmani para,
no dia seguinte, iniciarem uma nova romaria de volta a Cafarnaum, decidiu
visitá-lo quando a noite caiu.
Percebendo que o fariseu se aproximava na escuridão acompanhado de
outras duas pessoas — empregados —, Pedro se assustou e fez menção de sacar
a sua espada. Mas Jesus o desestimulou e se levantou para receber aquele
magistrado com o respeito inerente ao que ele representava na crença judaica.
E não foi preciso que Nicodemus dissesse uma única palavra, pois Jesus,
logo na sequência, o convidou para se sentar junto a um espaço donde jazia uma
cristalina corrente d’água próxima ao jardim.
— Desculpai o adiantado da hora, rabi. O caso é que eu assisti a vossa
explanação hoje à tarde, e confesso que fiquei muito impressionado com a
interpretação que destes à palavra de Deus. E aquele conhecido cego, Bartimeu...
Ninguém pode realizar uma cura como aquela se não estiver verdadeiramente
acompanhado do Altíssimo.
— Aquele cego sempre enxergou. O que eu fiz, foi apenas tirá-lo da
escuridão — esclareceu.
— Mas como operastes aquilo?
— Eu já vos disse, apenas lhe abri os olhos — sorriu timidamente.
— Sei que sois da parte de Deus, isso é fato. Mas vós também falais sobre
o reino Dele, e foi por isso que eu vim até aqui, afinal, manejais com habilidade
a nossa Lei. E se estiverdes disposto, eu gostaria de saber mais um pouco sobre a
vossa visão do reino do Pai Eterno. Como se adentra nele?
— Qual a vossa graça? — perguntou Jesus ao nobre.
— Nicodemus ben Gurion, ao vosso dispor — respondeu solicito.
Olhando para baixo e em seguida para o alto, Jesus respondeu a indagação
de maneira serena:
— Mestre Nicodemus, eis uma verdade inquebrantável. Ninguém poderá
entrar no reino de Deus sem antes renascer em espírito.
— Mas como é possível, a um homem, renascer? Por acaso haveríamos de
voltar ao ventre de nossas mães?
— Não. — Achou graça, o nazareno. — Em verdade vos digo, ou nós
nascemos carne e seremos carne; ou renascemos espírito e seremos espírito, mas
num outro plano.
— Poderias me explicar melhor?
— Todos os que andam sobre a Terra nasceram carne, e a carne
invariavelmente se destrói. E os que renascem após aqui ter, serão espíritos, os
quais não se consumem ou se destroem, afinal, são ligados ao espaço. — Jesus
se levantou sem pressa e continuou a sua explanação. — Bem sabes que este
plano já foi parte do reino de Deus. Mas o pecado apartou o homem Dele e tudo
foi perdido, ou seja, depois disso, nós fomos impelidos a nascer carne para
mostrarmos se somos ou não merecedores da vida eterna no reino do Senhor e,
se fracassarmos, continuaremos indo e vindo, até limparmos definitivamente a
nossa alma.
— Então crês em vida após a morte?
— A mansão de Deus tem muitas moradas, e ao contrário do que pode
parecer, vida e morte não são conceitos antagônicos, eles se completam, pois
mesmo os mortos ainda vivem — disse seguro. — E eu creio que saibas, como
mestre que és, que há um palco diferente deste à espera desses assim chamados
mortos. Os aprovados na escola da vida certamente irão nele ter, e os reprovados,
ante a regra da causa e do efeito, renascerão novamente em carne para trabalhar
e tentar completar um novo ciclo de evolução.
— E qual o vosso papel nisso tudo?
— Eu não vim julgar ou condenar os homens, mas tão somente salvá-los.
Deus é tão misericordioso, que deu um dos filhos em sacrifício à causa humana,
pois se isso não tivesse ocorrido, estejas certo de que, nem a Terra e nem os
homens, mais existiriam.
— E serias tu esse filho? — perguntou num tom respeitoso.
Jesus respirou fundo, apoiou as mãos sobre os joelhos e novamente se
sentou. E ao fazer isso, esclareceu:
— Eu sou aquele que abrirá as portas que estavam fechadas e saciará a
fome daqueles que a têm. Eu curo o rei que quer ser curado e ajudo o mendigo
que quer ser ajudado. Por isso, aquele que acreditar na palavra de Deus não será
condenado, e quem não acreditar, por via óbvia, já está condenado.
— Condenado, rabi?
— É uma equação bem simples, Mestre Nicodemus. Quem procura a luz
irá para a luz; quem procura as trevas irá para as trevas. E quem acreditar no que
falo, mesmo estando morto, viverá.
— Acho que entendi o teu ponto de vista.
Pois o nobre fariseu deu-se por satisfeito e, naquela noite, empenhou
respeito e amizade a Jesus:
— Agradeço-te pela acolhida e pela lição — disse o nobre visitante.
— Eu é que fico satisfeito em saber que, mesmo dentre os intérpretes da
lei, ainda existem aqueles que não cerraram a alma para o amor.
Ainda assim, Nicodemus haveria de ser minoria entre os judeus do
Sinédrio, os quais, em Jesus, passariam a ver apenas um inimigo, alguém que
haveria de ameaçar o soberbo e hipócrita modo de vida deles.

***

No alto de uma enorme muralha fincada em Jerusalém, um conhecido


arcanjo com uma bolsa de tecido mineral a tiracolo punha-se a espreitar a cidade.
Empoleirado como uma ave e feito em luz para os humanos, Metatron procurava
pacientemente uma sintonia que o levasse aos seus alvos: Azeyzel e Layla-Li.
De repente, ele percebeu que, do outro lado de uma via movimentada,
estava uma jovem com uma criança no colo, a qual, de forma estática, o fitava de
longe. Mas como isso seria possível, se ele estava camuflado aos homens? Pois a
tal moça usava vestes humildes, tinha um véu surrado sobre a cabeça e, em meio
à agitada multidão, destacava-se por manter-se imóvel; estagnada.
Num piscar de olhos, ela acabou se imiscuindo entre os demais
transeuntes e, ao tentar novamente localizá-la, Metatron a perdeu de vista. E ao
enfrentar aquele dilema — quem seria ela? —, foi surpreendido por uma voz
feminina que surgiu de trás dele e disse: “Irmão?”. Ele então se virou assustado
e, finalmente reconhecendo a tal “moça” e a “criança” que havia visto havia
pouco, revelou estupefato.
— Príncipe? Capitão! O que fazeis aqui?
Sim, diante dele estava o nobre Beelzebu, príncipe-primeiro dos
querubins, usando roupas que o assemelhavam a uma mulher vinda do povo. E
no colo dele, ou melhor, dela, dada a sua aparência física notadamente
feminizada, outra surpresa: o também querubim Caliel, o camareiro-mor de Deus
e capitão da inexpugnável Guarda Negra! Ambos envergavam roupas que os
faziam parecer humanos comuns, como se fossem mãe e filha ou, em razão da
aparente parca idade de Beelzebu, irmãs.
— Seriam ambos parte dos alistados pelo Senhor? — indagou-lhes
surpreso.
— Sim. Nós fomos os voluntários para acompanhar a ti e ao avatar de
Miguel até que a tarefa dele entre na fase final, donde então virão outros dois nos
ajudar. Na verdade, o Capitão Caliel se ofereceu para vir antes de mim, mas
quando eu soube que ele voltaria à Terra, ofereci-me, de imediato, para
acompanhá-lo, afinal, devo a vida a ele — esclareceu, enaltecendo o heroico
resgate que o pequeno engendrou ao invadir o Inferno no dia do dilúvio
universal e de lá repatriá-lo de volta para o Céu e junto, Nataniel, o arcanjo cego
preso nas masmorras de Lúcifer.
— Bem, irmãos, creio que toda ajuda será bem-vinda. Eu só não
imaginava que ela seria tão seleta e viria tão depressa — felicitou-se ante a fama
de ambos.
— De início, eu e Caliel fomos instados a ir até a aldeia de Cafarnaum e
procurar o tal Jesus, nome pelo qual Miguel aqui responde. E o Senhor também
nos entregou algumas instruções nesta carta, cujo selo real só poderá ser
quebrado quando a paixão estiver efetivamente começando — esclareceu, ao
mostrar um documento cerrado ao arcanjo.
— Rejubilo-me em saber, afinal, Lúcifer e Baalberith também estão
soltos, e isso pode significar percalços, principalmente se eles encontrarem
Azeyzel antes de mim, ou melhor, de nós.
— Pois sim, ainda temos a questão desse fugitivo de Vigilum. Mas algo
me diz que a tua busca convergirá na mesma que a nossa — disse Beelzebu. —
Então vamos adiante, deixemos que o destino se encarregue do cumprimento das
nossas missões.
Metatron se lembrou que Harual o havia alertado de que haveria mais
alguém encarregado de ajudar Layla-Li na Terra e, diante do quilate dos seus
companheiros, decidiu acatar a sugestão do príncipe dos querubins. Por fim,
disfarçando-se igualmente num humano, isto é, fragmentando as asas em luz e
cobrindo-se com vestes ordinárias, ajuntou-se a eles e formou o trio que tentaria
fazer a diferença no conflito entre as forças do bem e do mal.
Quanto ao quarto anjo desse quadro, ele desceria à Terra tempos depois e
se apresentaria em missão num vale chamado Aceldama, quando a história de
Jesus já estivesse prestes a ter o seu desfecho.
Capítulo 6
Mirian Magdalena
IGUALMENTE IMISCUÍDOS ENTRE OS HOMENS, dois anjos caídos aproveitavam a
auferida liberdade para tentar cumprir o desafio que Deus havia feito a um deles.
Embora a primeira tentativa tenha sido frustrada, Lúcifer e Baalberith
ainda estavam soltos e, em suas andanças pelas terras que circundavam a Judeia,
eles não demoraram muito a ter informações sobre aquele cuja fé os havia
derrotado no interior de uma caverna. Ele se chamava Jesus, vinha de uma aldeia
chamada Nazaré e, para muitos, era tido como o filho de Deus. O filho de Deus!
Ora, matematicamente, quem senão um anjo, poderia envergar tal condição?
Sim, pois o Eterno havia tido apenas três filhos humanos: Adão, Lilith e Virago,
que depois passou a se chamar Eva. Soma-se a isso o peculiar faro angélico de
ambos ao terem vislumbrado na figura viva de Jesus a aura de Miguel que os
havia expulsado do Céu e ainda pisado sobre a cabeça da estrela da manhã.
Eles também estranharam o fato de o Altíssimo não tê-los mandado
novamente ao Inferno depois do “fracasso” que tiveram e, nessa toada, passaram
a crer que Ele ainda desejava submeter o filho feito homem — foi esse o melhor
resultado dedutivo que chegaram — a algum tipo de provação ou, quem sabe,
manter a paridade de armas entre as duas forças a fim de verificar qual delas
sairia vencedora.
— Custo crer nessa tese, Lúcifer. O que levaria o Príncipe Miguel a
submeter-se a um papel ridículo desses?
— A fé cega, meu descrente Baalberith — respondeu com a peculiaridade
que lhe era comum. — Eu ainda não sei ao certo, mas juntando as peças do que
averiguamos, fica claro que, se marechal voltou à Terra, ele o fez para provar
que os homens ainda merecem redenção. Aliás, caso não lembres, foi ele,
Miguel, que ajudou o nosso Pai a moldar o primeiro deles e, no mesmo passo,
auxiliou aqueles dois humanos que, com um pequeno empurrão nosso, foram
expulsos do Jardim do Éden.
— Sim, mas nós precisamos saber qual é, efetivamente, o plano de Deus.
Dar um trono na Terra a um arcanjo feito homem ou entregá-lo em sacrifício a
uma causa muito maior? — sugestionou o acusador celeste.
— Eu não acredito na tese do sacrifício, pois Miguel é um guerreiro —
ponderou Lúcifer. — Talvez ele tenha assumido essa forma infeliz para liderar
um levante contra os opressores, a fim de estabelecer a paz entre os homens.
— Levando essa ideia em consideração, melhor seria que ele não
sobrevivesse a tempo de fazer isso. Pois se Miguel está na pele de um humano,
talvez ele agora tenha as mesmas fraquezas que qualquer um — alertou
Baalberith.
— Nisso eu concordo contigo — assentiu Lúcifer. — Creio, assim, que
devemos focar esforços no sentido de impedir que uma guerra ocorra, pois com
Miguel à frente de um exército, as chances de os humanos saírem vencedores é
quase que absoluta.
— Talvez seja melhor abarcarmos a tese do sacrifício, ainda que ela me
pareça obscura e perigosa — observou o caído tribuno. — Ou seja, obstarmos as
aspirações bélicas desse tal Jesus, para que ele tenha um destino penoso, e o que
é melhor, pelas próprias mãos daqueles que ele tenciona salvar.
— Exato! E começaremos acompanhando os passos dos escravos da
cobiça. E será pelas mãos deles que o impediremos de reinar sobre a Terra —
concluiu Lúcifer.
Assim, crentes de que estavam fazendo a coisa certa — e indiretamente
estavam, afinal era esse o plano original de Deus —, ambos passariam a viver
junto daqueles que tanto desprezavam: os homens. Era, enfim, a eterna rusga
entre o certo e o errado que, vez mais, ganharia voz.

***

No casebre de Joana em Cafarnaum, Mirian estava deveras agitada, pois a


saúde de Yigal, o filho tetraplégico da amiga, parecia estar pior do que de
costume. Com o corpo integralmente atrofiado, o menino mal conseguia respirar,
talvez em razão de alguma moléstia oportunista que o tivesse acometido. E nada,
nem as ervas, nem tão pouco os chás que lhe eram ministrados pareciam abreviar
aquele sofrimento.
Mirian olhava quase sem esperanças para Joana, a qual creditava a má
sorte do filho aos vários pecados que ela, por ter se tornando uma prostituta,
carregava consigo. Embora fosse uma mulher de bom coração, o comércio da
carne era visto com grandes reservas e, por conta do desprezo de muitos, Joana
enxergava em Mirian a única pessoa que, vez ou outra, conseguia minimizar os
sofrimentos daquele pobre menino.
— Eu não sei mais o que fazer, Joana — lamentou. — Desculpa-me, mas
eu já tentei de tudo.
— Mirian, eu ouvi falar de um homem vindo de Nazaré que cura os
impuros e traz visão aos cegos. E ontem, eu soube que ele chegou a Cafarnaum e
se hospedou na casa do pescador Simão. Tu me acompanharias até ele, nem que
seja para o meu filho ouvir uma simples palavra de consolo? — rogou.
Mirian olhou, aparentemente incrédula, para a amiga, mas ficou comovida
com o pedido; o pleito de uma mãe desesperada. Para ela, Jesus talvez sequer as
recebesse, mas àquela altura, não custaria tentar. E com a ajuda de dois vizinhos,
elas enrolaram Yigal numa manta e, com o auxílio de uma trave, puseram-se a
carregá-lo pelas ruas numa espécie de maca.
Chegando nas proximidades da casa de Simão, agora chamado Pedro, elas
viram um grande ajuntamento de pessoas, afinal, o rabi lá estava a ensinar, e
centenas de pessoas se amontoavam para ouvir as lições dele.
— Nós não conseguiremos atravessar por essa multidão, Joana —
preocupou-se Mirian. — Existem muitas pessoas aqui.
— Mirian, mesmo sendo eu uma pecadora, a vida ainda não me tirou a
esperança. E seja qual for o destino que o Deus de Israel tem para o meu filho,
eu gostaria que ele apenas recebesse uma bênção desse homem, nada mais.
— Está bem, vejo que nada haverá de te impedir. Pois permaneças aqui
com o menino, e eu tentarei sensibilizá-lo de alguma forma.
— Não! Fica aqui com Yigal. Quem sabe, ao ouvir o apelo de uma mãe
aflita, ele se apiede de mim e diga algumas palavras — disse, sob a relutante
concordância da amiga.
Pois lá foi Joana, tentando desesperadamente abrir caminho por entre o
povaréu que cercava a casa de Pedro. Nesse ínterim, algumas mulheres a
reconheceram em razão das vestes ligeiramente transparentes que as prostitutas
eram obrigadas a usar e, diante disso, tentaram impedi-la de se aproximar do
rabi, puxando-a pelos cabelos e jogando-a ao chão.
Mirian percebeu o que ocorria com Joana e, entregando a cautela do
garoto aos vizinhos que a acompanhavam, correu na direção da amiga com o
escopo de resgatá-la da sanha imoderada daqueles que a estavam agredindo.
Mas, estando em meio à turba, e sendo também obstada por alguns
aldeões que a acusavam de ser uma bruxa, Mirian começou a ter agressivas
contrações musculares e invulgares cargas elétricas no cérebro, as quais fizeram
com que ela caísse e passasse a ter terríveis convulsões. Ao vê-la se debater fora
de si, os seus acusadores passaram a gritar que ela estava tomada pelos “sete
demônios”, como se eles, de fato, soubessem o que era um “demônio[94]”.
Pois o alvoroço chamou a atenção dos discípulos mais próximos de Jesus,
que o alertaram sobre o que acontecia. O mestre se levantou e passou a abrir
caminho até o lugar onde a desordem ocorria e, ao nele aportar, viu Mirian caída
no chão, contorcendo-se em razão da crise que a acometia. Nesse meio tempo,
Joana conseguiu se livrar das pessoas que a seguravam e, mesmo estando ferida,
jogou-se aos pés de Jesus, para quem, de pronto, implorou:
— Meu senhor, tende piedade de nós! Somos apenas mulheres sozinhas,
mas em meu nome e no dela, rogo o vosso auxílio! — bradou em desespero e
com a excessiva pintura dos olhos já lhe borrando a face. — E por misericórdia,
ajuda também ao meu pequeno filho doente.
— Essa mulher é uma mundana! — urrou um velho que lá estava. — E
essa que a acompanha está possessa; afasta-te delas, rabi!
Sem demora, Jesus acolheu Joana em seu peito e, indignado pelo
preconceito dos que lá estavam, respondeu rispidamente ao tal homem:
— Não são os saudáveis que precisam de médicos, mas sim os doentes.
Eu não vim até aqui para chamar pelos justos, mas pelos pecadores; e se não tens
uma palavra de amor para dizer, cala-te e retira-te daqui, pois se não o fizeres
por si só, eu o farei por ti — finalizou num tom agressivo.
Pois ao ver Mirian tremer de forma incontrolável e expelir espuma pelos
cantos da boca, Jesus logo soube que não se tratava de “demônio” algum
conforme quis fazer ver aquele ignorante, mas sim uma herança da vida passada
dela, algo que a mesma, sob a forma de uma moléstia, carregava como marca.
Sabedora da doença da amiga, Joana se dirigiu, nervosa, até ela e tentou
segurá-la pelos braços, mas Mirian estava agitada por demais, como se um
relâmpago a tivesse atingido. Jesus então se aproximou rapidamente e, de uma
só vez, pôs firmemente as duas mãos no colo dela e gritou: “Para o mal que
carregas, eu agora trago-te a cura!”. E naquele instante, tudo mudou.
Pois ali estavam dois avatares, o de Lilith e o de Miguel, os quais, no
início da criação do mundo, já haviam tido um contato físico similar. Embora
estranhando a visão que lhe inundou a cabeça — um anjo e um arremedo de
mulher ainda disforme sendo tocada no chão para receber a ciência —, Jesus se
afastou dela, oportunidade em que todos puderam perceber que os fortes
espasmos que a haviam acometido simplesmente desapareceram. Os olhos dela
voltaram a ficar fixos e serenos e, de acelerada, a respiração de Mirian passou a
ficar cada vez mais pausada.

∷ ∷ ∷

“Liberado por Deus, Miguel se aproximou da estrutura ainda quente e fincou as


mãos nela, passando então a lhe transmitir todo o conhecimento da Terra
conforme orientação do Altíssimo.”

(Gênesis Proibido)

∷ ∷ ∷
Assistindo a tudo, Joana abraçou a amiga ainda inerte e, emocionada,
continuou:
— Senhor, por favor, olha também para o meu pobre filho e dá a ele um
pouco de esperança, nem que seja a última.
— E onde está o teu filho? — indagou-lhe o mestre.
— Ele não pode andar. Está próximo daqui, preso a uma rede que fizemos
para trazê-lo até ti.
Jesus segurou Joana pelos ombros e anunciou:
— A tua fé é muito grande, mulher. E em razão dela, enfrentaste teus
medos em nome do amor que tens pelo teu filho. Pois saibas que eu não irei até
ele; ele é que, já redimido, virá até nós! — disse ao apontar para o lado.
De um modo que a todos ali surpreendeu, aquele menino cuja idade não
passava dos dez anos, surgiu ereto diante deles; ainda levemente atrofiado, mas
se soltando aos poucos e andando em passos curtos. Movimentando os lábios de
forma pausada, todos lá ouviram quando Yigal conseguiu, com certa dificuldade,
balbuciar a palavra “mãe”.
Joana se atracou emocionada ao filho, afinal, desde que havia nascido, ele
jamais havia feito um movimento ou pronunciado uma única palavra. Mirian, ao
seu turno, logo começou a voltar a si, sentindo-se limpa como nunca. E a
epilepsia, moléstia que a tinha perseguido desde os tenros anos, finalmente a
havia abandonado.
Jesus se levantou e sorriu a ambas, deixando-as sem reação. Joana teve
um repente e se reaproximou do rabi. E após beijar-lhe as mãos, disse chorando:
— Quanta bondade, meu senhor... E justo para comigo.
— Mas por que estás a dizer isso? — indagou, tocando-lhe gentilmente o
rosto. — O que tens de diferente dos outros?
— Eu... — titubeou —, eu sou uma prostituta, senhor — disse, vertendo a
cabeça envergonhada.
— Não — discordou Jesus. — Não és uma prostituta.
— Mas como não, senhor? Não consegues ver? — indagou Joana
alertando-o para a sua pintura, tatuagem e vestes características.
— Tu “eras” uma prostituta — concluiu, ao despedir-se delas.
Ainda caída, Mirian observou Yigal dando os seus primeiros passos.
Assustada e estranhando tudo o que havia acontecido, ela sequer conseguia se
expressar.
— Mirian, Mirian! Ele curou a ti também! — vociferava Joana, agora
tomada de felicidade. — Eu te disse, ele é o salvador; é o filho de Deus.
A fugitiva de Magdala ainda tentava se recompor naquele chão batido e,
por um instante, de longe, os olhos azulados dela cruzaram com os castanhos de
Jesus, afinal, eles já haviam se visto antes, mas em outra vida. Pois aquele medo
e aquela inquietude que a perseguiam desde a infância finalmente tinham
desaparecido. E a partir daquele dia, tanto ela como Joana haveriam de ter uma
nova vida, uma vida de amor ao Cristo.

***

No Éden Espiritual, a claridade do que para nós é o dia, jamais terminava.


O breu noturno, típico do nosso mundo, não repercutia naquelas bandas onde a
luz reinava absoluta.
Pois um dos mais antigos habitantes daquele plano havia pedido uma
audiência com o administrador do paraíso, o Arcanjo Zuriel. Ao saber que o
primeiro homem desejava falar-lhe, o prefeito ficou receoso, afinal, desde que lá
havia chegado, o espírito de Adão nada mais fez do que trabalhar em prol de
todos. Aliás, ele se mostrou um excelente empreendedor braçal, já que, de sua
lida, foram erguidos inúmeros edifícios que serviam de morada e ministério para
os habitantes daquele plano.
Zuriel fez questão de recepcionar o nobre visitante no grandioso arco
dourado que dava acesso à prefeitura e, dando-lhe as mãos e com ele sentando-se
nas extensas bancadas lá existentes, pôs-se a ouvi-lo.
— E no que eu posso ajudar o filho de Deus? — indagou com simpatia.
— Eu apenas vim parlamentar; buscar algumas respostas.
— Para respostas, antes se fazem necessárias as perguntas — pontuou
Zuriel sempre espirituoso.
— Sim... — sorriu-lhe Adão. — É verdade.
— Bem, se aquilo que procuras saber estiver em minha alçada esclarecer,
terei imenso prazer em poder ajudar.
Adão parecia nervoso; inquieto melhor seria. Zuriel também sentia o
mesmo, afinal o espírito do primeiro homem ainda trazia consigo as mesmas
feições do rosto de Deus e, de certa forma, aquilo intimidava o arcanjo.
— Eu sei que o nosso tempo é diferente do da Terra. E também sei que os
que aqui vêm ter já se livraram do que os prendia ao mundo material.
— De fato, Adão. Pois para transições menos nobres existem outros
espaços; outros métodos.
— E é sobre isso que eu gostaria de falar. Dessas “transições”.
— Da de alguém em especial? — indagou-lhe Zuriel.
— De certa forma, sim. Eu ainda me lembro de quando me despedi da
matéria, consumido pelo fogo que fui — esclareceu saudoso. — E também me
recordo que o fiz tendo a minha última respiração expelida na boca de uma
mulher; a minha mulher.
— Sim, continue — disse o arcanjo.
— Eu sou feliz aqui — esclareceu o homem. — Reencontrei a grata parte
da minha família e trabalho para o coletivo, para a constante evolução de todos.
Mas eu ainda sinto falta de algo.
— De algo ou de alguém? — questionou o prefeito fitando-o.
— Receio que seja de alguém — respondeu com um suspiro. — Zuriel, eu
sei que Lilith e eu morremos juntos, pois fomos naturalmente cremados pelo
fogo solar que a matou após eu ter feito a passagem. E também sei que, logo que
vim para cá, renasci em espírito. Mas e ela? Onde está?
O prefeito engoliu seco e tentou ponderar.
— Adão, não compete a mim traçar a pista de prisioneiros. Infelizmente,
essa é uma resposta que eu não tenho como te dar.
— Que seja! — acatou aparentemente contrariado. — Mesmo assim, eu
gostaria de saber a tua opinião. Por acaso acreditas que eu possa a encontrá-la
novamente?
— A tua assertiva é de complicada análise — disse o prefeito se
levantando. — Se ela não veio para o Éden Espiritual, certamente foi despachada
para as zonas inferiores, afinal, o histórico dela clamava por isso.
— Sim, eu entendo e aceito. Mas mesmo passado tanto tempo, não
acreditas na possibilidade de ela ter tido uma chance de se redimir?
— Não posso responder-te. O Guf, ou a “Tesouraria das Almas” como o
chamam, é fechado aos de fora e, salvo os nossos obreiros que lá servem, muito
pouco se sabe sobre o que efetivamente ocorre naquelas dependências.
— Será que ela ainda está presa?
— Eu conheço a vossa história e sei das iniquidades da tua primeira
mulher. Mas também sei que o espírito dela não era de todo obscuro, o que
certamente a salvou da extinção e lhe deu créditos para aspirar ao menos uma
nova vida em carne.
— Então acreditas ainda ser possível que eu volte a vê-la?
— Quem sabe do futuro é apenas o nosso Pai. E se for a vontade Dele que
ela se junte a ti novamente, nada poderá evitar isso.
— Zuriel, eu seria capaz de enfrentar uma eternidade no Guf apenas para
poder encontrá-la novamente. Aliás, na noite em que nós dois fizemos a
transposição, algo me diz que ela pediu perdão a Deus e Ele aceitou. Entretanto,
nós dois seguimos caminhos diferentes, e Lilith ainda deve estar na tal
“Tesouraria”, quem sabe esperando por uma nova chance.
— Pode ser, meu amigo, lá, ou talvez na própria Terra, já buscando uma
nova admissão para a luz.
— Por que dizes isso?
— O meu procurador no Céu me reportou que o teu bom amigo Miguel
deixou os domínios celestes para executar um importante trabalho para Deus.
Uma missão pouco convencional para um anjo, pois me parece que ele renasceu
em carne para uma espécie de sacrifício.
— Miguel está na Terra?
— Sim, e apenas em matéria. Aliás, me consta que uma renovação moral
sem precedentes está para ocorrer por lá, e quem sabe não seja essa a chance que
Lilith tanto esperou para poder redimir-se contigo.
— Eu faço votos de que estejas certo quanto a isso. Pois, caso contrário,
eu irei peticionar ao nosso Pai para tentar visitá-la na prisão.
— Foquemos energias positivas para que isso não seja necessário. Sê
paciente e deixa com que os meandros de Deus se encarreguem de unir-vos de
novo, se essa for da vontade Dele.
— Eu quero acreditar que sim, afinal, esse era o Seu plano original.
Ademais, estou certo que o nosso Pai a ouviu e lhe estenderá clemência.
Zuriel assentiu com a cabeça e vez mais sorriu.
Ao que tudo indicava, o amor de Adão por Lilith ainda estava intacto. E
mesmo que o destino dela ainda estivesse nebuloso, uma coisa era certa: onde
quer que ela estivesse, o sentimento do primeiro homem haveria de fazer a
diferença em qualquer processo de evolução que ela tivesse que passar.

***

Logo após aquele inusitado encontro com Joana e Mirian, Jesus continuou
em Cafarnaum anunciando as boas novas de fé e amor, arregimentando
seguidores por onde passava. Embora os saduceus e os fariseus já estivessem no
encalço dele, nada parecia obstar aquelas palavras de chegar a quem delas
necessitava.
Ao findar mais um ministério na praia da Galileia, Jesus e os discípulos
estavam à beira-mar quando, de repente, vislumbraram um conglomerado de
pessoas no local onde ficava a coletoria de impostos — a taxa marítima e a taxa
de fronteira —, os quais eram recolhidos em nome do tetrarca da Judeia. A
guarda que dava apoio aos publicanos costumava hostilizar os mais humildes,
fato este que sempre incomodou Pedro, o qual nutria verdadeira ojeriza pelos
judeus que, assim como o ali presente Levi, ministravam aos romanos em
desfavor do próprio povo subjugado.
De longe, Jesus observava Levi, e na fisionomia dele, percebeu, de
antemão, que algo o tornava diferente dos demais coletores. Ele orava e
frequentava a sinagoga, mas, em contrapartida, era odiado por servir a Roma,
afinal, não abria mão da vida de posses que a função lhe proporcionava. O
nazareno então se achegou e o encarou calado. Percebendo a manobra, Levi, de
forma seca, se adiantou.
— Tens algo a declarar? — indagou em genérica alusão aos impostos que
recolhia.
— Sim — respondeu-lhe o recém-chegado. — Eu tenho a declarar o
irrestrito amor que Deus tem por ti.
— O que disseste? — retrucou surpreso.
— O amor de Deus; Levi, filho de Alfeu.
— Mas como tu sabes o meu nome e o de minha família? — perguntou o
cobrador, ao se erguer da bancada.
— Percebe-se facilmente que não és feliz. E embora vivas com conforto,
mesmo assim tens a tristeza estampada no rosto.
Levi estranhou tudo aquilo, mas, por instinto, tentou se justificar:
— Pois saibas que eu também sou crente ao Senhor, mas por ser letrado,
acabei arregimentado como publicano. Mas não penses que sinto orgulho do que
faço.
— Então sejas sincero consigo mesmo. Crês em Deus ou não? — insistiu
o rabi.
— Sim, por certo que creio. Entretanto, sinto vergonha de olhar para Ele e
pedir perdão, pois eu sei e admito, sou um pecador aos olhos do Senhor.
— E por admitires isso, já serás exaltado. Mas deves saber que ninguém
pode servir a dois senhores — advertiu o mestre.
— Como assim “a dois senhores”?
— Ou serves a Deus — ponderou apontando para o alto —, ou ao
dinheiro. — Apontou para as moedas. — Não há meio termo.
Levi olhou para as pessoas que o encaravam e ficou intrigado.
— A decisão é apenas tua. Se quiseres seguir quem em verdade te ama,
abandona essa banca e torna-te um de nós. E se aceitares o meu convite, daqui
por diante serás chamado Mateus.
— Mateus... — replicou Levi com os olhos já marejando. — Essa
expressão significa...
— Significa “dádiva de Deus”! — completou Jesus, estendendo-lhe, com
confiança, a mão direita.
— Eu não creio no que estou vendo — sussurrou Pedro ao irmão André.
— Ele está a verter um maldito publicano! — concluiu incrédulo.
— E então, Levi; vens ou não? — insistiu o rabi.
— Não! — respondeu seguro. — Não me chames assim. Doravante serei
Mateus, assim como dizes. E vinde! — disse, agora voltando-se para os demais
discípulos. — Estão todos convidados para cear comigo na casa de meu irmão,
pois, a partir de hoje, eu vos seguirei até o fim dos meus dias.
E tal assim ocorreu, Levi, o odiado publicano de Cafarnaum, tornou-se,
num repente, o discípulo Mateus.
Como o combinado, assim que o sol caiu, Jesus e os seguidores mais
próximos foram até a casa do irmão de Mateus, um fariseu chamado Jairo, onde
haveriam de se reunir para celebrar a mais nova conversão. O velho Jairo já
havia ouvido falar dos feitos de Jesus e, por não ser radical, embora fosse um
tanto conservador, desejou conhecê-lo melhor e ouvir as suas palavras, afinal, o
seu próprio irmão agora haveria de ser um dos peregrinos dele.
Pois estando a ceia em pleno curso, percebeu-se uma invulgar
movimentação na entrada daquela morada, sendo que, ao tentar verificar o que
ocorria, os presentes foram surpreendidos pela ação de duas mulheres que
praticamente invadiram o recinto à procura de Jesus. Os olhos exageradamente
azuis de uma delas logo cruzaram com os do mestre, o qual, de pronto, nela
reconheceu a jovem que havia curado naquela mesma manhã, a tal que, segundo
as más línguas da praça, estaria possuída pelos “sete demônios”.
— Mas o que essas duas pecadoras fazem em minha casa? — vociferou
Jairo, ao ostensivamente desprezá-las.
Percebendo hostilidade no dono da casa, Jesus o desencorajou a continuar
com aquelas palavras rudes e, assim, permitiu que elas se achegassem, o que
ambas fizeram aparentemente assustadas.
Pois uma delas, Mirian, trazia consigo um pequeno vaso de alabastro
tomado por um raro unguento oriundo de Magdala — essência de nardo[95] —, o
qual, pelo elevado valor, estava, havia muito, guardado. Ela então se pôs aos pés
de Jesus, oportunidade em que começou a chorar impulsivamente. O assassínio
do parvo marido de sua irmã, embora em legítima defesa, pesava-lhe sobre os
ombros e, sentindo que essa culpa também poderia ser minimizada pelo rabino,
ela passou a enxurrar os pés dele com o produto sincero do seu pranto.
Joana, que estava perto e a assistindo, logo se achegou dele e desamarrou
os seus longos cachos negros e, humildemente, os ofertou ao salvador.
— Além da minha eterna gratidão, eu não tenho muito para dar-te, a não
ser os meus cabelos para secar os vossos pés — disse ela, ao enxugá-los com
latente respeito e sob as rigorosas vistas de todos os que ali estavam.
Feito isso, Mirian tomou o óleo de nardo que portava consigo e passou a
ungir os pés de Jesus, como se os estivesse consagrando. Mas, ainda contrariado
com tudo aquilo, Jairo não conseguiu se manter silente e vociferou:
— Mestre! Então crês ser certo socializar-se com mulheres dessa estirpe?
Uma prostituta e uma feiticeira?
Jesus sorriu e o encarou, ilustrando então o que pensava:
— Jairo, tu me recebeste em tua morada e sequer um jarro com água para
molhar os pés me deste. Já esta mulher está a ungir-me com um bálsamo raro, o
qual poderia ter sido vendido ou escambiado por algo de grande monta. Por
assim dizer, ela não tem a cobiça ou a soberba dos muitos ditos “santos”.
O fariseu se calou e, doravante encorajada pelo bom pregador, Mirian,
ainda chorosa, quebrou o silêncio:
— Muito obrigada por amar-me da forma que sou, mesmo carregada de
pecados desta e de outras vidas — disse ao derramar nos pés dele aquele
dispendioso óleo aromático.
— Como te chamas, mulher? — perquiriu o mestre.
— Eu me chamo Mirian, senhor.
— E de onde vens?
— Eu nasci em Magdala.
— Magdala — repetiu espirituoso. — Mirian de “Magdala” —
acrescentou. — Mirian “Magdalena” — finalizou, sorrindo pra ela.
— E tu? — perguntou dirigindo-se à outra.
— Eu sou Joana, outrora alcunhada “Joana de Cusa”, nativa de Tiberíades.
E pelo que fizeste pelo meu filho, serei hoje e sempre vossa fiel seguidora.
Mas ao ver o inconformismo em Jairo, Jesus disse, não apenas para ele,
mas para todos os que calados os observavam.
— Estas duas mulheres foram chamadas de “pecadoras”. Pois eu vos digo
que, se um pastor perder duas das suas cem ovelhas e abandonar a maioria para
reaver as perdidas e com elas voltar sãs e seguras, ele deverá regozijar-se,
“vejam, eu achei as minhas ovelhinhas perdidas”. Pois o mesmo ocorreu aqui.
Haverá maior júbilo no Céu por duas mulheres que se arrependem, do que por
outras noventa e oito que não necessitam de qualquer reparo.
Jairo ouviu silente e, admoestado pelo teor daquela verdade, verteu a
cabeça.
E diante de todos ali, Jesus havia auferido mais duas seguidoras, Mirian,
agora chamada de Mirian “Magdalena”; e a ex-prostituta Joana; as quais,
juntamente a outras que ainda estavam por chegar, o acompanhariam até o final
dos seus dias na Terra.

***
No palácio de Herodes Antipas, uma reunião estava a definir o
compromisso do casamento de Salomé. A fim de garantir boas participações nos
lucros de uma das mais rendosas rotas comerciais da região, Herodes havia
consentido nas intenções de um rico mercador de Pereia[96] chamado Chilo
Lazzar-Sah, o qual, embora bem mais velho que Salomé, tencionava desposá-la
da forma que fosse. A única imposição do tetrarca além do dote, que era
vultuoso, era que ambos deveriam fixar morada em Tiberíades, sede do governo
de Antipas e ainda, no próprio castelo de Herodes, que em segredo, não desejava
tirar a enteada das vistas, pois por ela nutria notório desejo.
Indiferente a tudo o que lá se passava, Salomé não deu a mínima
importância para o casamento arranjado que lhe havia sido imposto, afinal, não
seria aquela cerimônia que poria fim as suas escapadelas com os capitães da
guarda ou com quem quer que lhe apetecesse os olhos. Ela era indiferente a
qualquer coisa que não patrocinasse a sua luxúria e, sabedora da atração que o
padrasto tinha por ela, na hora certa faria uso de algum subterfúgio sexual para
tentar atender aos caprichos da mãe, cuja obstinação em acabar com João Batista
era notória. E para tanto, a moça atingiria as consequências que fossem
necessárias, mesmo que elas transpusessem qualquer barreira moral ou familiar.
Naqueles dias longínquos, o selo do compromisso de noivado já era
considerado o casamento propriamente dito, mormente com a compensação do
dote, e o povo humilde da Judeia, que desprezava o rei, a esposa dele e a própria
Salomé, recebeu a nova com latente escárnio, pois tinham Herodíade e a filha
em baixíssima conta, em razão da conhecida promiscuidade a que ambas eram
dadas.
João Batista se pôs a discursar com maior veemência em desfavor da
esposa de Antipas, a qual, na verdade, era meio-sobrinha deste. E para se casar
com ela, Herodes foi obrigado a divorciar-se de Fasélia, filha do rei nabateu
Aretas IV[97], o que gerou instabilidade política e desagradou os judeus,
potencializando ainda mais os focos locais de sublevação.
Ao saber da nova, Cláudia Prócula confidenciou ao esposo que sentia
pena do comerciante da Pereia, pois comparava a perfídia de Salomé, cuja
libertinagem era conhecida graças à língua comprida dos que com ela se
deitavam, à de uma víbora. Pilatos não deu muita atenção à esposa, afinal, não
lhe interessavam os negócios pessoais de Herodes, desde que os mesmos não
conflitassem com os de Roma.
Pois na noite em que a corte comemorava o noivado de Salomé, João
Batista rumou ao paço de Tiberíades juntamente a centenas de seguidores para os
quais prometia um inflamado discurso contra o rei deles. Atraídos pela gritaria
vinda das ruas, Herodes e Herodíade ganharam o alpendre para ver a origem de
tudo aquilo, oportunidade em que, ao se depararem com os urros do Batista,
ficaram sem reação.
— O pecado vive nessa casa maldita! — gritava João. — Renunciai às
vossas práticas, ou sereis ceifados pela fúria de Deus.
— Desaparece daqui, homem infame e desprezível! — contra-atacou
Herodíade, visivelmente nervosa.
— Mulher, com que autoridade me repreendes? Logo tu, que violaste o
sexto mandamento ditado a Moisés. E tu, cujos inúmeros leitos me fogem as
contas, não tem moral para admoestar quem quer que seja, afinal tu te colocaste
acima da Lei, e por isso zomba do povo de Israel. — Pois ao notar que Salomé
havia surgido, arisca, ao lado da mãe, João foi ainda mais duro. — E tu, menina.
Não dês guarida às perversidades de vossa mãe, e arrepende-te das tuas práticas
enquanto é tempo. E se não quiseres ter o mesmo fim que o dela, procura o
cordeiro de Deus para tirar-te do abismo em que estás.
— Herodes! — irritou-se Herodíade sem alardear. — Se não fizeres nada
com o Batista, esses cães que o acompanham derrubarão a porta do palácio e nos
apedrejarão até a morte.
— Atentai, povo de Israel! — insistia o pastor do deserto. — Pois os
governantes que zombam e desrespeitam a Lei de Deus só podem nos trazer uma
coisa: a desgraça.
Premido pelas circunstâncias e diminuído pelos olhares venenosos dos
seus convidados, Herodes finalmente cedeu aos apelos da mulher e deu ordens
para que o capitão da guarda detivesse João Batista.
— Podes prender o meu corpo, mas jamais prenderás o meu espírito! —
vociferou o pregador em resposta ao ato.
Entretanto, ao perceber que a turba esboçava reagir violentamente ao édito
do rei, João tratou de impedi-los e os mandou em busca daquele que, depois
dele, haveria de guiá-los.
— Não lamenteis por mim. Lamentai pelos que já estão condenados e
insistem em não comutar a própria pena. Procurai Jesus de Nazaré, e ele vos
trará a vida eterna — ponderou, desprezando o guarda mercenário que o
continha pelo braço.
O pastor do deserto foi, então, arrastado pelas ruas e, já estando no interior
do palácio, jogado numa espécie de gaiola funda, gradeada por cima e com
acesso apenas pelas galerias mais baixas da fortaleza de Antipas, logo na
primeira noite de privação dele, Salomé dirigiu-se para as masmorras a fim de
provocá-lo, afinal, a ousadia dela parecia não ter quaisquer limites. E estando ele
acorrentado junto à parede, a princesa fez com que um dos guardas lhe
franqueasse acesso à cela, o que ocorreu sem qualquer resistência. João Batista
tinha a idade de Jesus, trinta anos, mas era mais alto e encorpado e tinha a pele
bem mais curtida pelo sol. Ele envergava uma beleza considerada selvagem, a
qual, em boa verdade, acabou atraindo a jovem para aquele ergástulo.
Vendo-o privado dos movimentos por estar acorrentado, ela adentrou no
cárcere bem devagar, quase que desfilando do alto dos seus quase um metro e
sessenta e oito de altura. Sua tez nevada, mesmo no breu, conseguia contrastar
com os seus olhos esverdeados, e os cabelos excessivamente escuros lhe
escorriam pelos ombros, os quais se faziam cobrir por adornos dourados que os
trançavam na quase totalidade. Ela não era apenas bela; era bela e fatal.
Seminua, Salomé passou a tentar o inquebrantável Batista.
— Não te agradas o meu corpo, homem bravio? — balbuciou, gemendo e
roçando-se nele. — Por acaso não há fogo em ti que te motive a abnegar a tua
crença e possuir uma mulher de verdade? — insistiu, friccionando as pontas
tesas dos seus seios junto às judiadas costas dele. — Pois saibas que esse teu
cheiro bruto e essa linguagem truculenta me excitam — finalizou, premindo uma
das pernas entre as dele.
Percebendo que o preso se mantinha imóvel e não tirava a visão de um
ponto fixo na parede, ela não se fez de rogada e deitou-se sobre um amontoado
de palha que jazia à frente dele, revelando o seu sexo e o latente desejo de ser
possuída ali, em meio a rudeza de um insalubre calabouço.
Negando-se ser vencido pelo impulso, o Batista descongelou a expressão e
a fitou com seriedade.
— Menina... — murmurou. — Esses teus belos olhos ocultam pecados
horrendos, desta e das outras existências que tiveste. E eles também revelam que
esta é a última chance que terás para se redimir. Ouve pois o meu conselho, sai
deste lugar e vai à procura daquele que poderá acolher-te, pois somente ele
poderá evitar com que a tua alma fique presa na escuridão para sempre.
Salomé ouviu e retorceu a face. Fechou as pernas rapidamente e levantou-
se com o ódio escancarado no rosto.
— Homem algum teve o desplante de me recusar! — disse ela, rangendo
os dentes. — Tampouco um assim como tu, que mais parece um mendigo... E
saibas que me inspiras e também me enoja, e essa rejeição terá um preço,
Batista. Um preço muito alto.
João ouviu, fechou os olhos e disse:
— Deus, olha pelos caminhos dessa pobre criança. Faz com que ela saia
das trevas e encontre um caminho que a liberte de si mesma.
Salomé, avessa àquelas palavras que parecia não entender, se aproximou
do profeta e cuspiu ferozmente na sua face.
— Seu tolo, simplório, sujo — disse com a voz baixa, mas envolvida em
cólera. — Ainda terás notícias minhas, eu prometo — asseverou no mesmo tom
e já deixando a cela.
Embora João não soubesse, a sua árdua jornada na Terra, graças à
maledicência da peçonhenta Salomé, estava bem próxima do fim.

***

E já estando Jesus e os seus discípulos se preparando para deixar


Cafarnaum e voltar a Nazaré, outras pessoas, além de Magdalena, Joana e o filho
curado, juntavam-se a ele.
Sentado numa pedra e à espera da efetiva partida, o rabi não percebeu de
pronto quando, pelo caminho da estrada por onde haveriam de seguir, surgiu, do
nada, uma pequena criança, uma menininha, que, saltitando e se equilibrando
com certa dificuldade, parecia tomar apressadamente a direção dele.
Notando que a pequena iria de embate ao seu mestre, Pedro, que era
robusto e bem forte, adiantou-se no trajeto e a tomou do chão, erguendo-a apenas
com uma das mãos à altura do seu próprio rosto.
— Aonde tu pensas que vais, menina? E onde estão os vossos pais que
não cuidam para que fiques junto deles?
Pois ao passar o dedo indicador da mão esquerda nos lábios da pequena,
talvez com o intuito de com ela gracejar, ela o fitou com latente reprovação e
deu-lhe uma furiosa dentada no indicador.
Em razão da dor que sentiu, Pedro a deixou cair e, abismado, pôde
perceber que a tal menina, de forma inexplicável, manteve-se no ar por alguns
segundos antes de chegar ao chão amortecida e em segurança.
Percebendo a notável destreza daquela manobra, o agora assustado Pedro
não teve tempo hábil de esboçar qualquer reação proativa, pois logo surgiram,
diante dele, uma moça e um rapaz de elevada estatura. A primeira, dizendo-se
irmã da pequena travessa, adiantou-se e pediu-lhe desculpas.
— Perdoa-nos senhor — rogou-lhe a jovem. — A nossa irmã é deveras
ativa e, como percebeste, um tanto travessa e desobediente — arrematou
acautelando-a com os braços.
“Mas o que significa isso?”, pensou Pedro. “Uma menina que amortece a
própria queda no ar?”, perquiriu a si mesmo enquanto tentava minimizar o
incômodo causado pela forte mordida que havia levado, a qual mais parecia ter
sido dada por um animal selvagem.
Ao perceber o que ali se passava, Jesus disse algumas palavras que
fizeram o rústico pescador interromper o seu intrigante raciocínio.
— Pedro, não sejas tão rígido e não os impeçais. Deixa que venha a mim
essa pequena criança.
— Pequena criança... — murmurou rabugento. — Ela merecia umas boas
palmadas, isso sim — concluiu, ainda incomodado pela situação.
Pois o inusitado trio — em verdade, o Arcanjo Metatron e os querubins
Beelzebu e Caliel disfarçados de simples romeiros —, ali havia chegado para
tentar fazer parte do rol de seguidores de Jesus, e com isso, manter as coisas em
ordem até o dia da expiação. E o escriba celeste ainda tinha outra missão:
encontrar Azeyzel e identificar o avatar de Layla-Li.
Percebendo o caminho livre, Caliel correu para os braços de Jesus. já o
fazendo sabedor de que, por trás daquela forma humana, estava o príncipe dos
arcanjos, o seu amigo e grande companheiro de inúmeras proezas no Céu.
Embora arisco com Simão Pedro — e essa rusga entre eles haveria de ser
constante — o capitão disfarçado entregou-se ao rabi e interpretou muito bem o
papel de criança comum, esbanjando meiguice e conquistando-o de pronto.
— E quem sois vós? — perguntou o mestre, ao perceber a aproximação de
Beelzebu e Metatron.
— Nós... — balbuciou receoso o último.
— Nós somos irmãos, senhor — adiantou-se rapidamente o líder dos
querubins, ao perceber que o arcanjo havia titubeado diante do seu marechal. —
Apenas peregrinos que ouviram sobre os teus feitos e decidiram seguir-te.
— Peregrinos... — repetiu Jesus, sorrindo de forma levemente sarcástica,
no que pôs os três celestes tensos. Mas em seguida, ele esboçou um sorriso
compreensivo; minimizou a tensão e, com Caliel no colo, disse. — Se é do vosso
desejo e vontade, ficai conosco. Aliás, é muito bom que a família de Deus se una
à dos homens — ponderou, como se soubesse quem eles eram.
— Mestre — interrompeu André —, nós estamos prontos para ir.
— Bem, a nossa viagem é longa e talvez tenhamos alguns percalços pela
frente — anunciou o rabi, ao restituir a tal “criança” a Pedro e novamente fitar
aqueles dois recém-chegados, ainda desconfortáveis quanto à identidade que
tiveram que fraudar.
Ao ver novamente a braveza no rosto daquela pequena, o pescador ficou
temeroso em levar outra mordida — o que fatalmente haveria de ocorrer! — e,
de pronto, entregou-a aos cuidados da primeira pessoa que viu diante de si,
Magdalena, como Mirian passou a ser chamada e de quem ele também não
esboçava muita simpatia, afinal, Pedro não via com bons olhos a presença de
mulheres que não as da família no grupo dos seguidores. O mascarado querubim
ficou, a princípio, receoso no colo de Magdalena, pois ele logo sentiu que estava
nos braços de Lilith, a qual, sem ter boas lembranças, conheceu ainda serpente,
no primeiro Éden. Mas o olhar dela estava tão sereno e diferente, que ele acabou
se rendendo e aceitando a cautela.
Metatron, entretanto, ficou inquieto.
— Príncipe Beelzebu, me parece que ele desconfiou de nós. E ouso ir
adiante, creio até que nos reconheceu... — disse-lhe ao pé do ouvido.
— Deixemos isso para depois. O importante é que nós fomos aceitos no
grupo e, de mais a mais, temos nossas missões a cumprir — respondeu
sussurrando.
O escrivão anuiu sem esconder a preocupação. Enfim, onde estaria
Azeyzel? E em que mulher o espírito de Layla-Li estaria oculto? Pois em muito
breve ele haveria de descobrir.

***

Nos arredores de Jerusalém, os zelotes andavam um tanto receosos, alguns


dos seus membros haviam sido delatados e mortos na cruz, sendo que os demais
temiam que outros traidores ainda estivessem entre eles.
Barrabás então propôs que os ataques aos publicanos passassem a ser
decididos por um conselho menor e executados por forças de assalto rápido, para
evitar que os romanos tivessem tempo de reagir ou organizar algum tipo de
defesa. Com isso eles desmoralizariam os soldados e desorganizariam as suas
forças, principalmente as policiais.
Durante a palestra, Judas Iscariote mantinha os olhos fechados e mexia a
cabeça de trás para frente, como se orasse em silêncio. Percebendo isso,
Barrabás o interpelou no intuito de tentar auferir dele uma opinião sobre o que
era ali discutido. Ainda assim, o sicário-mor mantinha-se inerte, dando mostras
de que sua obsessão religiosa estava acima de qualquer coisa. Pois alguns
instantes depois, ele despertou daquele transe e, diante de todos, emitiu um
parecer sobre o discutido.
— Eu discordo em parte. Creio que devemos nos manter escondidos por
certo período, a fim de que os romanos pensem que o movimento morreu. E no
momento certo nós haveremos de nos levantar guiados pelo Messias e os
esmagaremos sem piedade — sugestionou com a mão sob o punhal embainhado.
— Judas, aqui tu és uma liderança respeitada. Mas se nós baixarmos
guarda de uma única vez, as consequências podem ser drásticas para a moral do
partido.
— Barrabás, drástico será o nosso destino se os romanos não forem
eliminados — respondeu Judas, enervado. — E eu mantenho a minha crença de
que o descendente de Davi em breve erguerá a sua espada sobre essa
abominação chamada Roma, uma feitora de escravos que insiste em querer
subjugar o mundo.
A tua crença no Messias é justa, todos partilham dela. Por outro lado, não
podemos nos fiar apenas nisso, afinal, ninguém sabe quando ele chegará; se é
que chegará.
Judas Iscariote não apreciou as palavras de Barrabás, as quais classificou
como desprovidas de fé. E para não causar maiores polêmicas, assentiu com a
maioria e ao final ponderou.
— Eu não irei contra vós, meus suicidas irmãos. Mas sabeis que não
seremos nós, os zelotes, que faremos a diferença nessa batalha. Somente o novo
Josué[98] conseguirá fazer com que os romanos componham um único corpo que
terá a cabeça ceifada por um só golpe.
— Mas enquanto ele não chega, seremos nós os guardiães da terra
prometida — pontuou Barrabás sem alongar a discussão. — E então? Estás
conosco? — insistiu sob o tenso olhar dos demais.
— Eu estarei sempre ao lado dos que se opõe a Roma e que zelam pelo
santo nome de Deus — respondeu Judas.
— Então fica decidido; agiremos em investidas rápidas.
O sicário ficou inquieto, contrariado, melhor dizendo. Barrabás percebeu
isso e, findo o encontro, resolveu ir ter com ele.
— Judas, se eu faço o que faço, é visando o bem do partido. Nós não
podemos recuar agora.
— Eu não te censuro. Mas confesso que ando um tanto confuso, creio que
preciso me reencontrar em minhas crenças.
— A vida me forjou apenas para lutar, e é isso que eu farei até o dia da
minha morte. Sugiro que então vá se reencontrar, pois decerto não estás preso a
nós — disse o líder dos zelotes de maneira incisiva.
— Eu vou, Barrabás, mas haverei de retornar. E quando o fizer, serei
testemunha viva da destruição de Roma pelas mãos do ungido, o qual certamente
não haverá de ser tu.
Judas lhe deu as costas e deixou o esconderijo, pondo-se a vagar por entre
os caminhos que, de cidade em cidade, o fariam chegar até a longínqua Galileia,
afinal o seu íntimo clamava por uma providência divina e não apenas por um
insignificante levante de alguns poucos descontentes.
“Revolução com fé”, era isso que Judas queria; era isso que Judas
esperava.
Capítulo 7
A adúltera de Edom
COMO O ESPERADO, os discursos de João Batista galgados nos pecados de
Herodíade e da filha Salomé o levaram à prisão. E independentemente dessa
medida, o ódio da rainha pelo pregador do deserto aumentava dia a dia, ao ponto
de ela constantemente pressionar Herodes a ceder aos seus apelos e finalmente
mandar executá-lo.
Entretanto, nada o convencia em contrário, afinal, ele parecia nutrir certo
respeito por João, a quem intimamente considerava um bom profeta e o invejava
pela conhecida popularidade. Ademais, as masmorras do palácio pareciam estar
de bom tamanho para aquele, por assim dizer, “reverenciado subversivo”.
Mas Herodíade não estava satisfeita. Os não raros brados do preso
ecoavam como adagas afiadas pelos corredores do alcácer, e farta de ouvir
aquelas palavras rudes dirigidas contra si, ela finalmente resolveu colocar em
prática um plano imoral e maligno.
Embora convicta de que Salomé estava noiva, e pelas regras vigentes na
época, de fato, casada, Herodíade sabia que a obsessão de Herodes pela filha era
gritante, ao ponto de, numa noite, ele balbuciar o nome da enteada enquanto se
deleitava com ela. Traiçoeira, a esposa fingiu não perceber tal confusão e, como
uma vil cafetina, se aproveitaria desta feita para armar a morte de João, da forma
que fosse. Salomé, pérfida como a mãe, aceitaria fazer parte do plano, afinal, a
recusa de João Batista em se deitar com ela ainda lhe estava presa na garganta.
Pois uma semana antes dos efetivos festejos do casamento da filha,
Herodíade promoveu um jantar para a corte a fim de, propositalmente, tentar
vergar o marido numa cilada e chantageá-lo. Assim ela deu ordens para que, em
determinado momento da festa, os músicos entoassem uma canção sutilmente
sensual, a qual serviria de cenário para um peculiar balé a ser executado por
Salomé, já que isso o apeteceria.
E foi o que então ocorreu naquela noite. Ao ouvir as notas sopradas por
um dos flautistas e sentir como se um vento gelado lhe atingisse a pele, Salomé
tomou um generoso gole de vinho, levantou-se vagarosamente e, com as unhas
dos belíssimos pés cintilando como se fossem brilhosas opalas brancas, desfilou
até o centro do salão onde todos podiam observá-la.
Ela usava uma tiara dourada e um cinto de ouro com pedrarias, o qual
amparava a conta de sete véus transparentes que quase não lhe cobriam as partes.
E com os seios propositalmente à mostra, abriu os braços ornados por braceletes
que, como guizos, passaram a acompanhar a cadência daqueles instrumentos e a
pautar os passos de uma dança provocativa e quase erótica que se deflagrava.
Forjada pela escola das melhores dançarinas do Oriente, Salomé tinha
domínio total sobre o próprio corpo e, valendo-se disso, passou a ritmar os
passos de modo a estimular o imaginário dos observadores, em especial, o do rei
Herodes. Ainda que a dança fosse originalmente uma arte dos anjos, ela abusava
daqueles movimentos para envolver os seus alvos com a sinuosidade de uma
serpente ávida pela presa, ao passo em que ia retirando, um a um, aqueles parcos
véus que a cobriam.
A música ganhava fôlego e ritmo, fazendo com que, na sequência, ela
passasse a executar uma série de movimentos exóticos pautados por ondulações
que iam do seu tronco ao abdômen, e que faziam pulsar cada vez mais o cálido
sangue dos excitados espectadores, cujos pensamentos passeavam entre a
volúpia e a devassidão.
Tão logo se aproximou do desatinado tetrarca, ela lhe deu propositalmente
as costas e, remexendo tão somente o ventre, fez com que as suas voluptuosas
nádegas ficassem invulgarmente trêmulas, de modo a derrubá-lo pela libido. E
com o aumento do ritmo da música, Salomé passou a circundar Herodes com a
finalidade de capturá-lo pela lascívia, o que não tardou a ocorrer.
Pois tão logo a nota final foi tocada, ela retirou o último véu que mantinha
entre as pernas e o lançou na altura da cabeça do padrasto — esse era o sinal —,
deixando-o experimentar o inebriante aroma do seu cio, para, somente então,
despejar-se sobre as almofadas que lá jaziam e pô-lo finalmente submisso.
Herodes Antipas ficou completamente fora de si.
Herodíade percebeu que o momento era aquele e tratou de levar o marido
para os aposentos de ambos, onde o deitou na cama e continuou a estimulá-lo. E
na medida em que o corpo dele respondia, ela desapareceu por entre as cortinas e
deixou que a própria filha tomasse a frente da empreitada. Ao ver Salomé
totalmente nua, Herodes, embriagado pela bebida e enlouquecido pelo
imoderado desejo, entrou em crasso delírio e, ao finalmente tocá-la, ficou
totalmente à mercê dela.
— Desejas este corpo? — gemeu ela de modo a enfeitiçá-lo ainda mais.
— Sim... Eu o quero — asseverou, ao sentir o amadeirado perfume de
sândalo que impregnava a pele dela.
— E ao acaso achas que vou me entregar a ti gratuitamente; sem auferir
nada em troca? — indagou, agora esboçando um leve recuo.
— Eu te darei o que quiseres — apelou, desesperado por tocá-la
novamente.
— Tu não podei dar-me aquilo que quero... — tripudiou com falsidade. —
Não tens poder para tanto.
— Ouve-me, Salomé! — asseverou, tentando desesperadamente
convencê-la. — Eu sou a única força da Galileia, tenho o poder de realizar todos
os teus desejos — apelou com a voz ainda pastosa pela bebida.
— Todos? — sussurrou, vez mais se aproximando dele.
— Todos — assentiu com vigor. — Quaisquer que sejam... — ofertou
com latente passividade.
— Pois saibas que eu tenho uma imaginação fértil, muito fértil... —
provocou, com a voz melosa e passeando as mãos pelas suas largas ancas.
— Então não ponhas limites no que queres. Pede e terás!
— Empenhas a tua palavra? A palavra do monarca da Galileia?
— Eu nunca falei tão sério em toda a minha vida — rendeu-se. —
Salomé, tu és a minha obsessão.
— Obsessão... — repetiu ela. — Pois saibas que, ao final da noite, far-te-
ei saber o meu pleito. E até lá, perde-te em mim e encontra o prazer que tanto
desejas.
Herodes ficou alucinado, afinal, Salomé era uma mulher cujos predicados
físicos beiravam o surreal: corpo lúbrico, cabelos negros, olhos exageradamente
esverdeados e seios que pareciam afrontar a gravidade.
Pois ele, enfim, deleitou-se das mais variadas formas, cego ante as
catastróficas consequências daquela promíscua interação. O tetrarca nunca teria
coragem de possuí-la sóbrio, afinal, ele sabia do compromisso de noivado da
enteada e dos resultados que aquele colóquio, caso fosse revelado ou descoberto,
poderiam lhe trazer, na condição de titular de uma coroa subordinada a Roma.
Após desvendar cada parte do corpo sensual de Salomé, Herodes
finalmente sentiu o extraordinário clímax que havia muito desejava, e com tal
beldade, não o experimentar seria algo improvável a um homem ordinário.
Herodes, então, quedou-se inerte na cama e ficou quase sem os sentidos, arfando
vagarosa e pausadamente.
Percebendo que parte do plano havia sido vencido, ela então se deitou ao
lado dele e, indiferente ao que havia feito, assim ficou, espreitando-o até o
nascer do dia.
Tão logo os primeiros raios de sol repercutiram naqueles cômodos reais,
Herodíade, conforme havia previamente combinado com a filha, entrou no
quarto e, sorrateiramente, sentou-se ao lado do marido, o qual, derrotado pelo
excesso de prazer que havia auferido, ainda dormia. Salomé, nua e ao lado dele,
percebeu a presença da mãe, e com ela passou a fitar o régio. Tão logo ele
despertou com a cabeça dolorida, assustou-se ao se ver premido pelo fulminante
olhar das duas.
— Então, finalmente conseguiste o que querias, não é, meu esposo? —
ponderou Herodíade, ao referir-se ao corpo da filha.
Confuso e tentando voltar a si, ele percebeu, tarde demais, que havia caído
numa armadilha.
— Bem, agora só me resta denunciar-te a Pilatos e a Caifás, afinal, eu não
acredito que eles verão com bons olhos o fato de o nobre e “judaizado”[99]
tetrarca da Galileia ter tomado a própria enteada como mulher — satirizou. — E
Salomé, por ser minha filha, certamente irá relatar com detalhes a violência de
que foi vítima — disse de maneira confiante e cantada, afinal, ela sabia que o
marido tinha a personalidade fraca e, por vezes, temia a própria sombra, quiçá o
prefeito romano e a fúria dos sinedristas.
— Não podeis fazer isso comigo! — desesperou-se. — Salomé, poupa-me
dessa desgraça, ninguém jamais poderá saber do que aconteceu essa noite —
apelou Herodes, aparentemente em vão.
— Como bem sabes, tudo na vida tem um preço — respondeu-lhe a
dissimulada dançarina. — Eu não vos denunciarei, afinal, és marido de minha
mãe e tens uma dívida comigo. E se porventura saldá-la, asseguro-te que tudo o
que aconteceu essa noite será esquecido.
— Pois então pede! Pede! — implorou, quase caindo de joelhos.
— Eu quero; agora e sem demora...
— Sim, o que desejas? Fala de uma vez! — apelou demasiadamente
nervoso.
— Eu desejo a vida daquele cão que insultou a mim e à minha mãe. Eu
desejo a cabeça de João Batista.
Herodes ouviu e não acreditou.
— Tu estás fora de si? — replicou descrente. — Queres a cabeça de um
homem pelo preço do teu silêncio?
— Me desculpa, meu padrasto; eu acho que usei mal as palavras... —
justificou-se com um sorriso aparentemente inocente no rosto. — Eu não desejo.
Eu exijo a cabeça dele cortada e a mim servida numa bandeja de ouro — bradou
encolerizada.
Ao fitar Herodíade, ele constatou que ambas estavam em vantagem. Fosse
ele o finado pai, Herodes I, matá-las talvez fosse uma boa saída. Mas isso estava
fora de cogitação, pois além de covarde, ele talvez selasse o seu infeliz destino
como monarca, afinal, como justificar a Roma um duplo homicídio real naqueles
dias? Um acidente? Não, seria muito perigoso. E acresça-se a isso que ele não
tencionava terminar os dias como o pai, um conhecido assassino de parentes e
crianças.
— Bem, então eu fui traído pelo meu desejo — lamentou cabisbaixo.
Pois entre encarar a vergonha pública de ter se deitado com a própria
enteada, e a tirar vida de um miserável pastor do deserto, Herodes não teve outra
escolha: optou pela última. Após vestir a sua túnica, ele chamou pelo fiel servo
Cusa[100] e transmitiu-lhe a inusitada ordem, cujo cumprimento haveria de ser
imediato.
Ainda nas masmorras, João dormia, quando foi inesperadamente desperto
pelo seu abrutalhado carrasco. Ao perceber a afiada cimitarra dele fora da
bainha, soube que a sua tão esperada liberdade espiritual havia chegado.
O golpe que lhe ceifou a cabeça foi tão rápido, que ele sequer o sentiu.
Aliás, ele somente sentiu a guarida do espírito de Elias, que lá estava para
resgatá-lo e guiá-lo a salvo para o Éden Espiritual onde já era aguardado.
João Batista viveu uma vida de entrega e de sujeição a Deus; foi
celibatário, fez voto de pobreza e alimentava a alma apenas de palavras de
esperança. Sua morte, ao contrário do que Herodes poderia prever, foi recebida
com fúria pelos seus seguidores, os quais, em represália, passaram a acampar
nos portões do palácio e entoar agressivas palavras de repulsa ao mesmo. Por
outro lado, aquele segredo imundo dele com a filha de Herodíade havia sido
preservado.
Satisfeita com o prêmio, Salomé teve a audácia de demarcá-lo com os
próprios fluídos, tamanho o grau de abominação a que ela já se dava. Ao
saberem do ocorrido — afinal, a cabeça de João ficou um dia inteiro em poder
da princesa antes de ser descartada numa fossa comunal —, os humildes de
Tiberíades passaram a nutrir crassa repulsa por ela, a quem Herodes passou a
temer em silêncio, afinal, ao menos para o público, a execução do pastor se tinha
se dado em razão da prática de crimes contra a coroa.
Pelo visto, Salomé não parecia ter sangue, mas veneno nas veias. E pelo
curso da história, tudo levava a crer que a vida dela seria como a da sua mãe,
quiçá pior, pautada por pecados, aberrações e iniquidades das mais variadas
formas. Mas poderia uma alma obscura como aquela ter salvação? Bem, uma
inusitada manobra do destino estava próxima a responder tudo isso.

***

Após uma breve visita à cidade de Nazaré, Jesus e os seus haveriam de


retornar a Cafarnaum, onde muitos mais ainda queriam ouvi-lo. Ao grupo, que já
beirava os setenta membros, havia se juntado a mãe do salvador, Maria, que
deixou os afazeres para acompanhar o filho em suas peregrinações e, de certa
forma, ficar mais tempo ao lado dele. Ela era muito bem quista, pois todos nela
enxergavam a mãe de todas as horas e, tê-la nas romarias, trazia paz e segurança
moral.
Por outro lado, é de se considerar que a iniciativa dela pesou em razão de
um incidente ocorrido um dia antes na tímida sinagoga de Nazaré, onde Jesus,
após ler um trecho da profecia escrita pelo profeta Isaías sobre a vinda do
Messias, concluiu que as escrituras estavam cumpridas e deu a entender que ele
era o ungido. Enfurecidos, os fiéis esboçaram expulsá-lo do recinto e apedrejá-lo
na encosta do vilarejo. Entretanto, Maria, deveras respeitada em razão da
memória do esposo José, pôs-se diante dele e impediu a desgraça. Pois
acreditando que o filho talvez estivesse mais seguro com ela, a imaculada
decidiu segui-lo, como assim o fez.
Já transcorria o dia de domingo e, numa parada de descanso dos romeiros,
a virgem percebeu que Magdalena nutria particular apreço pelas crianças e, em
especial, por uma que recentemente havia se juntado a eles na companhia de
irmãos mais velhos. Caliel, a aludida “criança”, era um anjo polêmico, pois
embora envergasse a frieza de um exterminador de nações, a sua aparência física
o aproximava de uma pequena garotinha indefesa e, como uma, não costumava
desprezar demonstrações de carinho para consigo.
Pois estranhamente tentada a se aproximar da nova discípula do filho, a
qual soube ser oriunda da aldeia de Magdala, Maria se achegou solícita e disse:
— Elas são adoráveis nessa idade, não achas? — ponderou em relação a
Caliel, a quem, sequer de longe, desconfiava ser um querubim.
— Sim... — Sorriu Magdalena. — Parece que não carregam qualquer
maldade — concluiu sem também saber do longo histórico de matanças do
pequenino.
— Ela é tua filha? — indagou a imaculada ante a visível aparência
feminizada do pequeno celeste.
— Infelizmente não. A vida não me deu o privilégio de ser mãe —
respondeu em tom de lamento.
— Pois saibas que nunca é tarde — ponderou a virgem de modo afável.
— Talvez para mim o seja — respondeu aparentando tristeza e soltando
Caliel junto à grama.
Maria se manteve serena e não replicou aquela observação.
— A senhora é a mãe dele, não? — demandou Magdalena, referindo-se ao
mestre.
— De Jesus? Sim, eu sou.
— Perdoa-me a liberdade, mas aparentas ser tão jovem.
— Eu dei à luz a ele ainda muito menina; eu devia ter de doze para treze
anos de idade — respondeu com saudosismo. — Mas me desculpa a
indiscrição... — insistiu Maria. — Eu não sei se é impressão minha, mas pareces
carregar uma grande tristeza dentro de si.
Magdalena suspirou e logo respondeu:
— Confesso-te que ela já me foi maior. Mas graças ao teu filho, eu passei
a ter um novo foco na vida, pois pelas mãos dele, descobri o sentido do amor
verdadeiro, aquele que é dado sem que se tencione auferir nada em troca.
— Jesus tem esse dom desde menino — esclareceu orgulhosa. — Tu és a
jovem vinda de Magdala, pois não?
— Sim...
— E tens família por lá?
— Eu já tive. Mas hoje não me restou mais nada que não algumas
lembranças e os haveres deixados pelo meu pai.
— Referes-te a tua querência com certa mágoa.
— É que nem todas as memórias que eu tenho dela são boas, senhora.
— Não necessitas ser tão formal comigo — licenciou-a. — Chama-me
apenas de Maria.
— Maria... — sorriu intimidada.
— Pois saibas que todas as famílias têm más lembranças, Magdalena. —
Notando que ela recalcitrava em dizer algo que parecia incomodá-la, a mãe de
Jesus tentou estimulá-la. — Filha, caso queiras desabafar, estou à disposição. —
Magdalena sentiu um apelo forte e verdadeiro vindo dela e, então, deixou verter
uma lágrima tímida. — E se é para livrar-se daquilo que vos incomoda, não
derrube apenas uma, mas tantas lágrimas quantas forem necessárias.
Sentindo guarida, ela então se pôs a chorar com maior intensidade,
fazendo com que Maria a amparasse num generoso abraço, como se a mãe dela
de fato fosse.
— Abre o teu coração, diz o que sentes e, certamente, haverá de sentir-se
melhor.
— Eu... — titubeou. — Eu matei um homem — revelou chorosa e com
certo temor na fala.
Maria mostrou-se surpresa com o teor daquela revelação, mas nem assim
deixou de albergá-la.
— Mas como isso ocorreu?
— Ele... — Hesitou em meio ao pranto. — Ele tentou me estuprar —
completou soluçando. — Tudo foi tão rápido, eu não tive escolha. E quando
percebi, ele já estava morto diante de mim. — Tentando refrear o choro, ela se
esforçou para continuar. — Eu não sei se consegues imaginar o quão terrificante
é se ver à frente de um agressor que tenciona roubar-te a castidade.
Sempre com a face tranquila, Maria respondeu:
— Magdalena, eu creio que sei como tu te sentiste.
— Sabes? — indagou surpresa.
— Sim. Quando Jesus ainda estava em meu ventre, eu e o meu finado
esposo fomos atacados no deserto, a caminho de Belém. Alguns homens rudes o
agrediram, e ele acabou perdendo os sentidos. E um deles, o maior e mais hostil,
estava prestes a investir contra mim. Mas no entanto...
— No entanto? — repetiu, curiosa com o desfecho daquela lembrança.
— Esse é um segredo que apenas eu e meu saudoso José sabíamos —
confessou. — No entanto surgiu diante de nós um grande anjo de Deus e o
impediu, ou melhor, o matou; matou todos eles — revelou com a face
impressionada pela recordação.
— Um anjo de Deus? — interessou-se.
Maria gracejou de forma comedida e respondeu:
— Bem, não me tomes por desatinada — continuou, oscilando
espirituosamente a cabeça. — Mas é verdade. Eu estava na iminência de ser
atacada quando então um ser de luz surgiu repentinamente com uma espada
brilhante e fez o que fez... — revelou erguendo um dos braços como se revivesse
aquela marcante cena pretérita. Magdalena ficou surpresa com aquela inusitada
revelação; não se sentia mais só em sua dor. — E se esse anjo teve a licença de
Deus para me defender, não quero crer que escusa similar não possa ter sido
estendida a ti, afinal, tu estavas numa situação de perigo idêntica à minha.
— Mas eu tirei a vida dele! E já me foi dito que a Lei de Deus considera
isso um pecado mortal.
— Sim, e não estás errada. Mas não permita que tua consciência te puna
de forma sumária. Busca encontrar-te com Senhor e pede a Ele perdão, pois
somente assim conseguirás extirpar essa dor que carregas dentro de ti.
— E achas que Ele me perdoaria? — perguntou menos nervosa.
— Quem pede com fé, recebe; e se o que dizes vem do teu coração, estou
certa que Ele jamais te faltará.
— Mas como eu haverei de encontrar-me com Deus?
— Confessa-te com o meu filho. Ele achará um meio de te guiar até Ele.
Mais confiante, Magdalena agradeceu afetuosamente Maria e procurou
pelo rabi que, naquele momento, estava a certa distância das duas.
Já era final de tarde e, enquanto alguns descansavam, Jesus se entretinha
com uma canção entoada por Metatron, que munido de uma flauta feita de
madeira, estava muito bem a interpretar o papel de um ser humano ordinário.
Com os olhos fechados, em razão da força sentimental daquela cantiga, uma
tradicional composição angélica e uma das marchas prediletas do Príncipe
Miguel, ele ainda assim percebeu quando ela se achegou.
— Mestre?
— Magdalena... — respondeu ele com os olhos ainda fechados, mas
reconhecendo a suave sonoridade da voz dela.
— Mestre, perdoa-me se eu incomodo, mas eu gostaria de falar-te apenas
por um instante... — solicitou com recato.
— Não é incômodo algum, senta-te a meu lado — respondeu, ao
instintivamente dispensar o flautista. — Magdalena acatou o convite e o encarou
com a mesma humildade de outrora, quase que se desculpando pela inoportuna
investida. — Percebo que o teu semblante está mais sereno. Mas ainda deixas
transparecer certo ressentimento, certa dor... — observou, perspicaz.
— Pois é sobre essa dor que eu gostaria de falar.
— Então abre o coração — licenciou-a sempre disposto.
— Mestre, eu estava a conversar com a vossa mãe Maria. E acabei
confessando a ela um pecado grave que carrego há anos.
— E o que fizeste de tão tormentoso para que sofras tanto?
— Eu... — balbuciou abaixando a cabeça. — Eu tirei a vida de um
homem — finalizou, cerrando forçosamente os olhos. — Mas eu asseguro,
apenas me defendi.
— Magdalena... — falou sério. — E por acaso tu não sabes que a Lei de
Deus diz que a um homem é defeso matar o outro?
— Sim... — lamentou. — E aceito que já estou condenada por isso.
Entrementes, Jesus tentou minimizar-lhe a culpa.
— Pois, falando em normas, tu por acaso sabes o que a Lei de Moisés diz
sobre aquele que é pego roubando?
— Não, mestre. Admito que sei muito pouco sobre isso, quase não tive
acesso ao ensino religioso, embora eu saiba ler e escrever em vários idiomas.
— Então, preste atenção ao que eu te direi: “Se o roubador for ferido de
sangue; aquele que o feriu não será réu de sangue”.
— Mas isso não se contrapõe ao mandamento a que fizeste alusão?
— Não sob certo ponto de vista — ponderou. — Pois aquele que fere para
defender a vida tenciona salvar uma, que é a sua própria.
— Então acreditas que nem tudo está perdido para mim?
Jesus vez mais sorriu e continuou a explicação.
— Não sei se tu sabes, mas até mesmo os anjos matam em nome de Deus
— esclareceu sob o distante e acanhado olhar dos três recém-arregimentados ao
grupo, em verdade, três celestes mascarados, um dos quais, Caliel, o mais hábil
matador do Céu.
— Sim, eu soube há pouco — respondeu em alusão ao segredo que Maria
havia lhe confidenciado.
— Pois então. Se Deus nos dá a vida, e a vida é o maior bem que temos,
nós não podemos abrir mão dela, ainda que indiretamente. E se tu defendeste a
tua, nada mais fizeste do que zelar por esse bem sagrado que te foi dado. —
Percebendo que ela ainda aparentava estar confusa, Jesus tentou se fazer mais
claro. — Magdalena. Entendas que o nosso corpo físico é um templo, é o
santuário do Espírito Santo. Assim, aquele que mata gratuitamente se aparta de
Deus, mas aquele que deixa de zelar pelo seu templo, também o faz. Enfim,
tolerar um ataque de morte contra si próprio é um pecado tão ou mais severo do
que aquele que te assombra.
— Acho que estou começando a entender o que dizes.
— Então, sepulta de vez as tuas dúvidas. Se tivesse agido por ódio ou
indiferença, serias culpada pelo sangue vertido. Mas se não querias pura e
simplesmente a morte do teu agressor e desejavas apenas defender esse santuário
a que fiz menção, não vejo reparos que te possam ser feitos.
— Mas ainda assim, eu pratiquei um pecado, não é?
— O ato não apaga o sentido da ação, afinal, uma vida foi perdida. Houve,
de fato, um pecado, e as consequências para ti foram o medo, a tristeza e essa
culpa que ainda carregas. Mas saibas que, no teu caso específico, escolheste a
tua vida num momento de desespero. Dos males, o menor.
— Então eu não sou uma assassina, mestre? — indagou agitada.
— Assassino é aquele que mata por desprezo e por rancor, são nesses
sentimentos que residem as raízes do mal. E tu, pelo que disseste, não agiste
dessa forma. Mataste, sim; mas não como uma assassina; afinal, a autoproteção
foi um ato de preservação da vida que fulminou a ilegitimidade da tua ação. Não
te esqueças Magdalena: Deus julga o intento e não a ação física.
— Mestre, tiraste outro peso de mim — satisfez-se. — Então eu posso me
considerar perdoada?
— A tua justificativa já te serviu de perdão, pois Deus, ao contrário
daqueles que aplicam a justiça dos homens, não é cego.
Magdalena carregava essa última mácula dentro de si, a qual, pela verdade
da isenção, foi extirpada graças àquelas sábias palavras de Jesus. Ela sentiu
vontade de abraçá-lo efusivamente, mas o recato não permitiu. Ainda assim,
tomou forçosamente as mãos dele e, nelas, deitou a própria face.
— Como pode existir alguém como tu? Tão bom; tão inteligente e tão
caridoso? Pois deverias ser rei; o nosso rei!
Jesus ouviu àquelas palavras tomadas de emoção e ponderou sem
desmerecê-las.
— O reino que os justos procuram não está aqui. Portanto, vede-me
apenas como um pastor que busca arregimentar um rebanho, o qual haverá de
encontrar bom pasto no paraíso, onde a paz e a concórdia não são leis postas,
mas regras de vida.
— Mestre, quisera eu ser um homem, pois assim poderia ajudar-te a
construir a tua igreja — desabafou, em alusão ao caráter patriarcal da sociedade
de então.
— Pois eu te digo que os tijolos do meu templo serão formados por todos
os que creem em mim. E se tu acreditas, também será um deles; quiçá, o mais
forte.
Ela, vez mais, ficou extremamente grata e, na figura de Jesus, encontrou o
foco para a sua vida. Mirian Magdalena havia se apaixonado pela majestade
dele, algo que transpunha a mera atração carnal tão comum entre os seres
humanos. Embora fosse demasiadamente bela para os padrões convencionais das
mulheres israelitas — dona de longos cabelos negros, olhos bem claros e um
capitoso nariz levemente aquilino que lhe coroava o conjunto —, Jesus estava
imune a quaisquer sentimentos corporais que ultrapassassem o amor puro, afinal,
como arcanjo que ele originalmente era, estava, inconscientemente, preso à lei
restritiva de Deus sobre as mulheres: “a mulher pertence apenas ao homem”.
E foi por isso que, durante todo o período de sua vida, o rabi de Nazaré se
manteve em continência aos seus princípios, apaixonando-se e amando sempre,
mas dentro das regras que unissem apenas os corações, não os corpos.

***

Tão logo o casamento de Salomé ocorreu, ela e Lazzar-Sah passaram a ter


morada fixa no palácio de Antipas conforme havia sido anteriormente
convencionado. O tetrarca, ainda ressabiado com a sordidez da esposa e da
enteada, passou a se focar mais nos assuntos de Estado; afinal, a morte de João
Batista havia lhe poupado do escárnio, mas acabou lhe trazendo problemas
outros, como a ostensiva revolta dos seguidores dele que, vez ou outra, eram
brutalmente reprimidos pela guarda mercenária em razão das suas investidas.
Sua esposa Herodíade era uma mulher de inúmeros leitos, e ainda que o fogo do
marido tivesse se exaurido após o famigerado colóquio com Salomé, isso pouco
importava para a rainha, afinal, ela sabia em quais alcovas caçar os seus prazeres
mundanos. E embora já estivesse na casa dos quarenta anos de idade, ela era
extremamente bem lapidada, e ficar sem um amante era algo improvável; se não,
impossível.
Conquanto o desconfiado consorte da Princesa Salomé estivesse em teto
alheio, ele carregou consigo vários servos fiéis, os quais, como moscas,
passaram a rondá-la a fim de mantê-lo informado sobre a rotina dela,
principalmente quando de suas costumeiras viagens para tratar de assuntos
profissionais nas inúmeras rotas de comércio que lhe pertenciam.
Pois aconteceu que, alguns dias depois, Salomé se banhava sozinha na
grande piscina do palácio, a qual ficava na parte térrea e não tão longe dos
acessos que davam aos portões laterais. Do lado de fora do salão, estavam alguns
criados de Lazzar-Sah, os quais, em regra armados, estavam sempre à espreita.
De certa maneira entediada, afinal os tais “guardiães” estavam atrapalhando as
suas costumeiras escapadas sexuais, ela se ergueu, enfadonha, daquela terma
particular e, após ter se autoestimulado, deixou revelar o seu corpo nu e ainda
molhado. Enquanto se secava, ela sentiu uma leve brisa gelada vinda por trás de
si, a qual lhe arrepiou a pele. Olhando para os lados e nada vendo — as aias a
haviam deixado sozinha conforme o determinado —, ela ficou, de certa maneira,
incomodada, para não dizer, assustada.
Salomé deu mais alguns passos, ressabiada, procurando por algo que não
conseguia ver, quando, de repente, uma voz grave e baixa invadiu aquele recinto.
— Parece que foi ontem que eu te vi assim pela primeira vez; nua e
encantadora naquela bela lagoa dourada na cidade perdida de Nod...
Ao se virar rapidamente para tentar identificar o autor daquela fala,
Salomé teve uma extraordinária surpresa que a pôs em estado de choque. Sua
mente foi invadida por várias imagens de suas vidas passadas, culminando com
uma despedida forçada e um encantamento que a fez se esquecer do
companheiro, mas, naquele instante, ela se lembrou de tudo. Ao romper o seu
forçado silêncio diante daquele intruso, Salomé o fez com uma expressão dita de
maneira involuntária e ao mesmo tempo surpresa.
— Azeyzel!
Pois parte daquele grandioso mistério se findou naquele momento.
Iniciado em magia negra, o ainda fugitivo celeste havia procurado
exaustivamente pelo avatar de sua inesquecível amante, a inebriante e renascida
Layla-Li! E sim, no corpo de Salomé, cujos pecados nos parcos anos daquela
vida já eram incontáveis, estava oculto o espírito original de sua companheira,
liberto da Câmara de Guf para tentar, na Terra, a sua última redenção.
E foi naquele confuso cenário que ela passou a reexperimentar vários
momentos das seis vidas que havia tido antes daquela, mormente os piores,
terminando com o assassinato dos dois filhos pelas próprias mãos.
Nesse instante, Azeyzel se aproximou dela e a tomou efusivamente nos
braços.
— Voltei, minha querida! E dessa vez, para levar-te comigo — disse,
abraçando-a e beijando-a com intenso frenesi, na verdade, um furor de séculos.
Deixando-se momentaneamente levar pelo ímpeto da aura lasciva de
Layla-Li, ela se agarrou ao vigilante e cruzou com força as suas pernas entre as
nádegas dele, fazendo com que o reconquistado sexo de Azeyzel reagisse de
pronto.
Mesmo estando confusa, a primeira reação de Salomé foi a de se entregar
em pecaminoso prazer, tamanha paixão que aquele anjo lhe tinha impingido em
sua primeira vida. E sentindo a reciprocidade dela, ele a possuiu em pé e com
um furor abrasante.
Mas ao sentir o exilado dentro de si, vez mais um repente de todos os
pecados que havia praticado, bem como das tormentosas passagens que havia
tido na Tesouraria das Almas. E finalmente lembrando da conversa sincera que
teve com a obreira Harual antes de ganhar a liberdade, ela emitiu um grito doído,
como se uma adaga afiada tivesse lhe transposto o coração.
Alertados pelo alto som do brado, os servos de Lazzar-Sah forçaram a
entrada e surpreenderam Salomé e o estranho em pleno ato sexual, o qual, ao que
tudo indicava, estava sendo por ela consentido. Fiéis ao mestre, que ali parecia
estar sendo traído, eles investiram braviamente na direção dos dois, oportunidade
em que, desordenada com tudo aquilo, ela se livrou do inusitado parceiro e
tomou uma peça da cobertura de seda que estava prestes a vestir, saindo, a
seguir, em desabalada carreira pelo térreo do palácio.
Azeyzel agora não passava de um meio-anjo, sequer asas tinha, e lutar
contra homens armados talvez não lhe fosse vantajoso. Diante disso, ele
astuciosamente se camuflou em luz e conseguiu despistar dois dos guardiães de
Lazzar-Sah, ao passo que os demais, três deles, ávidos por justiçar a atacada
honra do seu amo, se puseram a perseguir Salomé.
Perdida e com a mente desordenada, a princesa sequer teve o ímpeto de
subir as escadarias para buscar a guarida dos seus, pondo-se então a correr
tresloucada em direção à saída dos fundos do palácio, ganhando as ruas de
Tiberíades seminua e em completo descontrole emocional.
Enquanto iam atrás dela, os servos de Lazzar-Sah a acusavam
publicamente de traição, imputando-lhe, de forma sumária, a mortal pecha de
adúltera.
Ao embrenhar-se pelas vielas lotadas de judeus, Salomé tentava, de algum
modo, reencontrar-se, pois a sua mente estava a trapacear e a levá-la para cada
uma das suas vidas findas. Ao ser reconhecida e apontada como a maligna filha
de Herodíade, os radicais passaram também a persegui-la e exigirem, na mesma
conta, o sangue dela pelo de João Batista.
— É Salomé! — gritavam. — Pegai essa rameira maldita e apedrejai-a até
a morte — entoavam com ódio nas palavras.
Arisca, ela vez ou outra tropeçava e caía e, embora conseguisse se
levantar depressa, àquela altura, um sem número de amargurados a estava
acossando, e talvez nem mesmo o exército do padrasto conseguisse aplacar a
fúria deles.
E foi nesse cenário confuso, derrubando bancas pelas ruas e empurrando
os mais incautos para fugir de algo que sequer sabia ao certo, que Salomé
ganhou uma via e tropicou pela última vez, caindo violentamente sobre a terra
batida e esbarrando nos pés de uma inusitada pessoa, talvez a única que pudesse
salvá-la dos seus furiosos perseguidores.
De rápida passagem por Tiberíades, a qual antecedia a cidade de
Cafarnaum, Jesus e parte dos discípulos haviam adentrado na cidade para
comprar mantimentos, tal não sendo a surpresa deles ao se depararem com
aquele cenário beligerante.
Trêmula ao extremo, Salomé mal conseguia erguer o rosto e, ao
instintivamente tocar nas sandálias de Jesus, caiu num transe que a colocou em
coma. Metatron, que seguia logo atrás com discípulos, adiantou-se no terreno e a
tomou no colo, identificando, pelo cheiro do sangue que dela vertia em razão dos
ferimentos, o tão procurado código genético de Layla-Li.
— Entregai-a a nós! Ela merece ser apedrejada! — gritavam uns.
— Adúltera, que sejas morta! — bradavam outros.
Perfurando a multidão com o olhar, Jesus tomou à frente do impasse.
— O que fez esta mulher para receber tanto ódio?
Nesse instante, o encarregado de Lazzar-Sah lá chegou e, com a espada
erguida, vociferou em grego algumas palavras que esbarravam num afamado
bordão judaico: “sozinho com sozinha; nu com nua e em outro leito”.
Embora Jesus não fosse tão letrado — era um camponês que tinha
fluência apenas no aramaico, embora possuísse certo conhecimento do hebraico
e do grego —, aquela frase fazia genérica alusão à severa lei mosaica, isto é, ao
delito de adultério, por aqueles dias, punido com a morte.
Salomé era de Edom, uma espécie de descendência-prima da nação
judaica, assim, era tida como “meio” judia e, apenas por isso, a severidade da
Lei de Moisés também haveria de recair sobre ela.
— Queremos o sangue dela pelo do Batista! — interferiu outro popular,
tomando uma pedra nas mãos, no que foi seguido pelos demais que ali se
amontoavam.
Percebendo que a multidão em fúria tomava corpo, Jesus cruzou olhares
com Metatron e, sutilmente, deu a entender para que este, com Salomé
inconsciente no colo, se colocasse por trás dele. Esboçando sacar a espada curta
diante do impasse, Pedro a levou novamente à bainha, ao perceber que o seu
mestre, a exemplo dos demais, também tinha tomado uma pedra do chão.
— De fato, é de Lei que o adúltero haverá de ser morto — bradou Jesus,
tomando a dianteira dos seus. — Pois se ela merece o severo castigo da
lapidação[101], também o merecem todos os que profanaram a mesma Lei.
— O que estás a dizer, estranho? — bradou um afoito popular ameaçando
avançar contra ele.
— Eu estou a dizer, Raviv — afirmou Jesus, inusitadamente referindo-se
àquele homem pelo nome —, que apedrejados também devem ser aqueles que,
como tu, já se deitaram com uma virgem comprometida — disse sob o
atemorizado olhar daquele insurgente — ou como tu, Phineas — asseverou, já se
dirigindo a outro —, que tomaste os bens de teu pai e o amaldiçoaste — bradou,
ao segurar com firmeza aquela mesma pedra e encarar aqueles para os quais se
dirigia. Pois ao perceber que a multidão passou a recuar diante das suas
revelações, verdades que apenas ele via por trás da soberba dos pecadores que lá
estavam, ele foi ainda mais duro. — E então? Ireis ou não matar essa infratora?
— desafiou. — Nem tu, Elad? Que deu falso testemunho para beneficiar-te da
má-sorte de uma pobre viúva? — insistiu, desmascarando os que lá estavam. —
E tu, Deena? — indagou sarcasticamente a uma das mais agressivas insurgentes.
— Será que não merece a morte, uma devassa que, assim como tu, se dá em
prazer às feras? — asseverou, revelando, diante de todos, que ela se rendia ao
execrável pecado da bestialidade. A multidão ficou chocada e, admoestada,
passou a perder força. E enfim, Jesus deu o golpe decisivo. — E enfim, que tal
tu, Barzilai? — desafiou, agora, o servo do esposo da fugitiva, o mesmo que
havia esbanjado soberba ao envergar o idioma grego. — Tu, que com esse
mesmo gládio constrangeu a própria filha a ser tua mulher — finalizou, diante de
um cabisbaixo e acuado acusador. — Vamos! Jogai as pedras! — provocou. —
Jogai... e elas, graças a implacável justiça de Deus, irão se voltar para as vossas
próprias cabeças.
Os acompanhantes do mestre perceberam que ele havia tomado o controle
da situação, afinal, diante da parcela de divindade que carregava, havia sido
capaz de enxergar os ilícitos de todos os que lá se ajuntavam.
— Ninguém? — continuou, ao enfrentá-los com aquele fragmento ainda
erguido para o alto.
E percebendo que havia acuado todos os que lá ficaram, temerosos em ter
os graves pecados publicamente revelados, Jesus finalmente jogou a pedra que
tinha em mãos no chão e a viu se pulverizar.
Confiante, ele e os discípulos perceberam quando todos começaram a se
afastar, vencidos que haviam sido pelos seus inquebrantáveis argumentos. Pois
Metatron, embora imponente em razão dos seus mais de dois metros de altura,
tamanho médio de um arcanjo, não quis arriscar e, mesmo percebendo a tensão
diminuir, ponderou ao rabi.
— Senhor, acho melhor tirarmos esta mulher daqui. E depois do que
aconteceu, seria melhor que também deixássemos a cidade.
— Ele tem razão, rabi — disse André —, com a morte de João Batista, o
povo tem andado nervoso, e não seria prudente nos arriscarmos novamente.
— E quanto a essa menina? Ela parece morta — indagou Pedro nervoso.
— Não, ela ainda vive — respondeu Metatron. — Mas se nós a deixarmos
aqui, aí sim ela correrá perigo de morte. Senhor, permite que eu e minha irmã
cuidemos dela — pleiteou, aludindo ao igualmente disfarçado príncipe dos
querubins.
Jesus olhou para Salomé e sentiu que a ajuda que ela precisava não se
resumia apenas a livrar-se da sanha daqueles rudes revoltos; ela precisava,
também, ser salva da perdição da sua alma. Com um simples movimento de
cabeça, ele concordou com o pleito e todos deixaram Tiberíades sob o ainda
impressionado olhar de muitos que presenciaram aquele acontecimento.
Azeyzel havia escapado, mas o avatar de Layla-Li foi encontrado num
inusitado golpe de sorte. Metatron tentaria mantê-la por perto e usá-la como isca,
a fim de tentar colocar as suas mãos no fugitivo celeste, ao passo que, agora
junto de Jesus, ela talvez encontrasse o caminho aludido pela obreira Harual. Ou
seja, de um jeito ou de outro, ela estaria segura.
Tão logo a notícia da fuga de Salomé chegou ao conhecimento de
Herodíade, ela entrou em desespero. Entretanto, Antipas ficou intimamente
satisfeito, afinal, sem o testemunho da enteada, a rainha havia ficado, de certa
forma, enfraquecida para chantageá-lo. Em razão do depoimento dos servos de
Lazzar-Sah, sedimentou-se que ela havia sido flagrada em adultério com um
desconhecido e, mesmo para os edomitas, isso era um crime de morte. Para
tentar manter as aparências, Herodes Antipas despachou algumas guarnições
atrás dela, mas já previamente orientadas por Cusa a não serem tão rigorosas nas
buscas.
Crente na versão dos seus, o esposo dela considerou as bodas
sumariamente desfeitas e, levando consigo a própria vergonha, partiu de
Tiberíades para nunca mais voltar.

***

Ressabiados com o retorno repentino de Jesus, os demais membros da


comitiva, acampados nas imediações da cidade, tiveram a atenção chamada para
uma mulher desacordada que um dos seguidores trazia nos braços. Ao ver
Metatron andar de forma apressada, Beelzebu percebeu quando ele passou do
seu lado e sussurrou: “Eu a encontrei”.
Sem muita demora, todos voltaram à estrada precariamente policiada e,
nos braços do arcanjo, a jovem seguia ainda inerte. Na parada seguinte, já ao cair
da noite, Joana e Magdalena se achegaram de Salomé para tentar ajudar em algo,
oportunidade em que a primeira, ao vê-la aparentemente dormindo, esboçou uma
feição de notório espanto.
— O que houve Joana? — indagou Magdalena.
— Essa menina... — respondeu afoita.
— O que tem ela?
— Eu me recordo dela ainda criança no palácio de Tiberíades —
esclareceu a ex-amante de Cusa. — Eu dificilmente me engano, estou certa de
que ela é a enteada de Herodes Antipas, a Princesa Salomé.
Mostrando-se surpresa com a revelação, Magdalena achou por bem dar
ciência desse fato a Jesus, uma vez que a refugiada poderia trazer as tropas do
tetrarca contra eles. Entretanto, o fato é que haveria de ocorrer exatamente o
oposto.
Jesus recebeu a notícia com tranquilidade, afinal, depois daquilo tudo,
Salomé, assim como Joana, não seria mais Salomé. Mas para evitar maiores
temores, ele pediu cautelar silêncio a ambas, no que foi atendido. Metatron se
pôs de guarda ao lado dela, pois sabia que Azeyzel voltaria atrás da alma da ex-
companheira, agora presa em outro corpo, tão belo quanto o de Layla-Li.
Quando os primeiros raios do sol nasceram, Salomé abriu lentamente os
olhos e se viu numa terra estranha. Ao invés da suntuosidade a que estava
acostumada no palácio, apenas o firmamento, pássaros cantando e um vai e vem
de pessoas que, havia bem pouco tempo, ela desprezava. Pedro, que limpava os
dentes com algumas folhas de sálvia, a fitou, marrento e desconfiado. Ela tentou
entender o que se passava ali, mas, em verdade, parecia ter experimentado uma
espécie de renascimento. Sem que se apercebesse, alguém que, naquele
momento, estava ao lado dela, tomou a iniciativa da conversa.
— Nada como despertar sob um belo teto como esse, não é mesmo?
A princesa ainda estava confusa, mas ao ver a figura serena de Jesus
diante de si, tentou se levantar apoiando-se num dos braços, mas não conseguiu.
Percebendo a dificuldade dela, o rabi a confortou.
— Está tudo bem agora, não faças tanto esforço.
— Onde eu estou? — indagou, tentando recuperar a voz.
— Entre amigos, entre irmãos — respondeu o mestre sorrindo.
— Eu não me lembro de nada...
— Tu não sabes quem és?
— Quem sou eu... — repetiu apalpando a cabeça. — Mas quem sou eu?
— Isso cabe apenas a ti decidir. Quem tu eras talvez não importe. Mas
quem serás daqui por diante, isso, sim, importa — disse o rabi, tomando-a pelas
mãos.
A verdade é que Salomé havia, de certa forma, morrido. Não fisicamente,
afinal, ainda estava ali em matéria, mas ela havia renascido em vida, enterrando
todos os fantasmas que a atormentavam.
Quando ela tocou Jesus durante sua fuga, teve apagada a sanha maligna
que a caracterizava e, por via de consequência, acabou perdendo parte da sua
memória, remanescendo apenas a necessária para que interagisse com as demais
pessoas. O rabi, de certa forma, a tinha curado de uma doença extremamente
grave e, na mesma toada, a libertado do que a perseguia desde que tinha vivido
como Layla-Li na cidade de Nod, antes mesmo do dilúvio universal.
— Não sabes o vosso nome?
— Eu... não me lembro — justificou-se.
— Permite-me, então, chamar-te de Susana — disse ele, vertendo algumas
gotas de água sobre a testa dela.
— Susana?
— Sim, pois, para nós, és um “lírio renascido” — explicou em metáfora.
— Fica conosco e renasce não apenas para ti mesma, mas também para o reino
de Deus.
Ela ainda estava, de certa forma, túrbida; Magdalena então se aproximou e
lhe cedeu uma muda de roupa, afinal, ela mal conseguia se cobrir com um
arremedo de capa que Metatron lhe havia posto. Salomé, agora chamada Susana,
cujo significado era, de fato, “lírio”, estava com o rosto sem pinturas, pois havia
se banhado e não teve tempo hábil para que as suas aias a tornassem ainda mais
bela. Contudo, a naturalidade da sua beleza estava intacta, agora acrescida de um
resquício de pureza que ela jamais havia tido.
Susana não recusou a oferta da veste e, igualmente auxiliada pela ex-
cortesã da corte de Antipas, ornou-se de modo a imiscuir-se entre as demais
mulheres que acompanhavam Jesus na caravana de discípulos, a fim de nela
desaparecer.
Pois não tão longe dali Beelzebu se achegou de Metatron e o indagou:
— Então é mesmo ela?
— A jovem sangrava pela boca quando a encontramos. Toquei o seu
tecido conjuntivo, e me foram reveladas as instruções genéticas que a obreira do
Guf me repassou. É ela, não há dúvidas.
— Ontem, Caliel se aproximou dela e a sentiu impregnada pela estirpe de
Herodes I, a quem ele próprio matou há alguns anos. Mas e Azeyzel? O viste por
lá?
— Não, mas acredito que ele deflagrou tudo isso, afinal, ela estava sendo
acusada de ter se deitado com um homem que não o marido, talvez ele... –
considerou. — E ao cair aos pés de Miguel, ou melhor, de Jesus, ela desfaleceu.
— Se a vossa tese está correta, Azeyzel não tardará a rondá-la novamente.
— E quando isso ocorrer, eu haverei de colocar as mãos nele.
— E essa tal menina?
— Eu terei que ficar ao lado dela; é o meu chamariz.
Sem nada entender, a recém-batizada Susana se entretinha com a atenção
que estava recebendo e, mais ainda, com um estranho sentimento de gratidão que
havia brotado no seu coração, cuja frieza de anos — ou melhor, de séculos —
estava agora se esvaindo.
De outra banda, Pedro andava ressabiado com a constante arregimentação
de mulheres ao grupo, principalmente aquela, acolhida quase nua numa praça da
grande Tiberíades, cujo marido ou tutor poderia estar furioso em busca dela.
Forjado numa sólida base patriarcal, ele relutava em aceitar a igualdade que
Jesus emprestava às mulheres, afinal, na cabeça obtusa do pescador, ele temia
que elas auferissem conhecimentos outros que as tornassem aptas a suplantar a
casta masculina até então dominante. Some-se a isso que embora fiel e dado aos
ensinamentos de Jesus, ele ainda resistia em entender o real conceito de
reconciliação, mormente para prostitutas – Joana; curandeiras – Magdalena; e
adúlteras – Salomé.
Sempre solicito, Jesus percebeu o incômodo e, vez mais, tentou fazê-lo
mudar de ideia.
— Pedro, aceites que alguns mortos revivem e alguns perdidos se acham.
— Eu não entendo, mestre...
Jesus o abraçou com afeto e o levou para uma clareira onde ficaram a sós.
Feito isso, o rabi continuou com a prosa.
— Sabe Pedro, eu me lembro que, certa feita, acompanhei meu pai até
Gadara[102], a fim de prestar serviços na morada de um rico mercador. Ele tinha
dois filhos, sendo que o mais novo insistia em ter o seu quinhão da herança
adiantado. Convencido, o homem atendeu-lhe o pedido e entregou a parte que
cabia ao moço, o qual, num país distante, dissipou toda a fortuna que lhe coube.
Depois disso, a fome foi visitá-lo e, aqueles que se diziam seus amigos, na
verdade, eram amigos apenas da sua ventura. Enfim, o pobre se pôs a guardar
porcos e, acredite, passou a desejar as alfarrobas que eram dadas a eles, tamanha
a miséria que lhe havia acometido. — Pedro permanecia atento ao que, do rabi,
ouvia. — Pois, ele se lembrou de casa e do pai, e de como os empregados dele
eram bem tratados. O rapaz não pensou duas vezes e voltou para o seu lar e,
perante o genitor, assumiu os seus pecados e chegou até a dizer-se indigno de ser
seu filho, contentando-se em ser apenas mais um servo.
— E o que fez o pai dele? — perguntou o pescador curioso.
— O velho, contrariando todas as expectativas possíveis, vestiu o rebento
com a melhor roupa e mandou sacrificar o melhor novilho para festejar a volta
do filho que, para todos, havia sido dado como morto. Pois o irmão mais velho
do jovem, ao ver o que ocorria, mostrou o seu inconformismo ao pai, afinal ele
continuava reto e temente aos princípios que lhe haviam sido ensinados e, nem
por isso, o pai lhe festejava, já para um fornicador, um pecador como o caçula,
foram dadas todas as pompas.
— E não assistia razão ao irmão mais velho?
— Esse é o foco da história. Pois o pai respondeu ao primogênito que este
sempre esteve com ele, nos piores e nos melhores momentos da vida, mas
presente, da forma que fosse. Já o menor estava morto e reviveu; estava perdido
e se encontrou; estava pecando e se redimiu, daí o júbilo. — Pedro se
emocionou. — Meu irmão, eu te contei essa parábola para que entendas que não
existem faltas que não possam ser perdoadas, afinal, não se alcança a perfeição
do espírito sem o arrependimento dos erros e sem o reconhecimento de que
ainda podemos recomeçar. Portanto, independentemente do que as três fizeram,
nesta ou em outras vidas, nós devemos sempre estar prontos a perdoar, pois só
assim faremos com que elas se reconciliem com Deus.
— Eu é que agora peço perdão, mestre — lamentou o pescador. — E se
não fosse pelas tuas mãos e pelos teus ensinamentos, eu certamente continuaria a
ser o bronco que sempre fui.
— Aprende a perdoar, Pedro. Pois as culpas que foram arraigadas a
Magdalena, a Joana e a Susana também são nossas, afinal, diante de Deus,
somos todos iguais.
O pescador de Cafarnaum aparentou absorver aquela lição, mas, no fundo,
não o fez. Em suas parábolas, Jesus tentava mostrar que o preconceito e o
julgamento eram como espelhos, pois eles refletiam as falhas que, vez ou outra,
as pessoas viam apenas no próximo, mas nunca em si mesmas.
Capítulo 8
A Grota dos Leprosos
JUDAS ISCARIOTE CONTINUAVA A SUA PEREGRINAÇÃO e, de plaga em plaga,
encontrava tão somente revolta. O povo judeu, exausto do cativeiro, tolerava os
desmandos dos seus conquistadores na esperança de que o salvador não tardasse
a vir.
Ele atravessou a Samaria[103], galgou o Tabor[104] e enfim chegou a
Tiberíades, sendo que, em todos os lugares em que havia passado, tinha ouvido
falar da inusitada figura de um artesão de Nazaré que estava fazendo milagres e
curando as pessoas. E mais, que ele estava arregimentando multidões, tendo até
quem o estivesse chamado de Messias.
Curioso com a notícia, Judas partiu para a Galileia a fim de tentar
encontrar aquele sobre o qual o povo tanto falava; ele precisava ver por si só se o
tal Jesus era ou não o homem por quem tanto procurava.
Àquela altura, a fama do rabi havia atingido todo o norte da Judeia e,
estando ele diante de uma multidão em Cafarnaum, foi necessário que subisse na
proa de um barco para poder ser visto por todos. Percebendo uma excessiva
movimentação a beira-mar, Judas se pôs entre os presentes e passou a ouvir as
curiosas lições do nazareno, o qual, em suas palavras, falava basicamente de paz
e de amor. Incomodado, ele ficou tentado a intervir, entretanto, achou por bem
esperar a palestra terminar, a fim de, quem sabe, conversar com aquele homem
que difundia ideias distantes das suas.
Pois um sicário astuto como Judas não teve dificuldade em descobrir onde
o rabino estava hospedado e, já na casa de Pedro, tentou ter com ele. No
momento Jesus e os seus ceavam e, ao ser informado de que um sujeito deveras
mal-encarado desejava vê-lo, o mestre não se fez de rogado e, sem demonstrar
qualquer incômodo, mandou que o fizessem entrar.
Tão logo os presentes visualizaram Judas, ficaram incomodados com a
aparência agressiva dele, afinal, o zelote ostentava uma severa cicatriz que ia dos
lábios à altura da sua orelha esquerda e, na cintura, percebia-se que ele trazia
uma adaga embainhada. Pedro se levantou, arisco, ao passo que o próprio
forasteiro, antecipando-se a um mal-entendido, tratou de serenar os ânimos.
— Nada temais, meus irmãos. Eu também sou judeu como vós, apenas
mais um descontente em busca de respostas — disse, retirando o punhal da cinta
e entregando-o voluntariamente à cautela do pescador.
Percebendo que as intenções dele aparentavam ser sinceras, Pedro
guardou a arma e o deixou se achegar. Jesus aparentava estar avesso ao que
acontecia, mas tomando um pequeno pedaço de pão e molhando-o num copo de
vinho, estendeu-o na direção de Judas como se o chamasse para se sentar com
eles. Ele não se fez de rogado e assentiu, afinal, os rigores da sua jornada talvez
fossem minimizados com uma boa refeição e um teto firme.
Após o jantar, onde foram apenas enfrentados temas recreativos, Jesus
sentiu que era chegado o momento de conversar com Judas a sós, afinal, havia
sido para isso que o forasteiro tinha ido vê-lo.
— Eu percebo que vieste até aqui para parlamentar comigo. Pois cá estou,
pronto para ouvir-te — ofertou-lhe, durante uma caminhada.
— Senhor, eu venho de Jerusalém, uma terra um tanto agitada nos dias
atuais. E nessas minhas caminhadas, ouvi muita coisa sobre ti e, curioso, decidi
procurar-te. Entretanto, creio que talvez eu tenha perdido o meu tempo.
— O tempo não se perde amigo; ele apenas se esvai — ponderou de forma
espirituosa.
Judas achou graça naquela observação cantada, o que lhe era raro. E ele
então continuou.
— Eu ouvi o teu discurso com atenção, falaste, basicamente, em paz. Mas
acreditas que paz é o que teremos daqui por diante?
— Vê-se que apenas ouviu as minhas palavras. Mas não as escutou.
— Perdão?
— Tu não te prendeste ao tema central, pois, se o tivesses feito, saberia
que eu não vim apenas trazer a paz, mas sim a espada.
Quando ouviu a expressão “espada”, Judas mudou a fisionomia.
— Disseste “espada”?
— Sim. — assentiu. — Não penses que as minhas palavras serão
estabelecidas de forma pacífica.
— Então falas em revolução? — interessou-se.
— De certa forma, sim. Haverá lutas longas e sangrentas e, infelizmente,
muitos haverão de morrer em razão do nome de Deus.
Pois aquelas palavras capturaram Judas. Espada; lutas; morte. Seria, Jesus,
o aguardado Messias da Guerra? Embriagado pela sonoridade daquelas
expressões, o zelote se decidiu naquele mesmo momento.
— Rabi! Desculpa a minha anterior falta de visão. E ao ensejo, tu permites
que eu te siga?
— Se é o que o teu coração deseja, fica conosco — assentiu o mestre
tomando-lhe pelas mãos.
Pois impressionado com aquela assertiva, Judas talvez tivesse encontrado
quem tanto procurava. Entretanto, assim como o próprio Jesus o havia alertado,
ele apenas ouviu as palavras dele, e não as escutou.
Embora a paz estivesse ao alcance de qualquer um, não eram todos que a
acolhiam de pronto e, em razão da doutrina de fé pregada por Jesus, a cólera
entre os irmãos, ou seja, entre as nações, logo iria emergir, afinal, quantas
guerras tidas como santas ainda estariam por vir a pretexto do nome dele?
Pois, na verdade, a espada era a divisão entre os homens de bem e os
rebeldes a Deus, que se levantariam para tentar derrubar a crença no verdadeiro
amor, e para estes, não haveria paz sem guerra e, embora Jesus fosse o
pacificador, as palavras dele, de certa forma, iriam gerar ebulição entre as pátrias
religiosas. Assim, Jesus não seria propriamente o portador dessa espada, mas
sim, o motivo pelo qual muitos ainda a haveriam de levantá-la. E se Judas talvez
tivesse entendido isso desde o início, o cruel destino dele certamente haveria de
ser outro.

***

Embora um tanto receoso no começo, o bravio zelote passou a


acompanhar a caravana de peregrinos e, a princípio, satisfez-se, pois todos ali
eram dados às coisas de Deus, assim como ele também acreditava ser.
Judas achava divertido ver Jesus brincar com as crianças do grupo, as
quais, não raro, faziam uso de arremedos de impulsores para tentar derrubar as
frutas das árvores, assim como o mestre, enquanto menino, também fazia no
Egito.
Uma das jovens do ajuntamento, o querubim Beelzebu disfarçado, era o
maior arqueiro do Céu e, nessa qualidade, tentava pacientemente instruir os
pequenos para de que eles não se ferissem com aqueles instrumentos rústicos,
cuja ponta das flechas era cega e servia apenas para entretê-los. Embora experto
na mesma arma, o igualmente mascarado Caliel preferiu sonegar os seus dotes
aos demais, pois se os demonstrasse, fatalmente seria descoberto, afinal, como
seria possível a uma pequena criança, que sequer andar direito sabia, ser tão
hábil com o arco e a flecha?
Na mesma toada, Pedro ainda mantinha certo receio com relação a Caliel,
o qual logo evoluiu para um arremedo de respeito, principalmente após ter visto
de relance o fragmento do punhal de ouro que a pequenina trazia escondido
sobre a bata surrada que vestia. Para o pescador, aquela “menina” talvez fosse
um anjo guardião, pois demonstrava ser diferente das demais crianças, estando
coincidentemente por perto sempre que alguém parecia correr perigo.
Pois dias antes, Pedro estava para vestir suas sandálias pela manhã e, sem
perceber, Caliel, ali chamada de Chaya, surgiu e as arrancou rapidamente das
suas mãos. Inicialmente irritado, ele fez menção de repreendê-la, mas ao ver que
a pequena as balançou entre as mãos e afugentou um escorpião que nela estava
escondido, ele quedou-se silente e, assustado, a agradeceu com a cabeça.
Definitivamente aquela “criança”, sempre sisuda com ele, não era daquele
mundo, não aquele que Pedro conhecia. Em razão disso, ele achou por bem ir ter
com Jesus, o qual, ao ouvir dele sobre as peripécias da jovenzinha, assim
respondeu.
— E por qual motivo um filho do homem deve temer um filho de Deus?
Pedro não era letrado como Magdalena, mas também não era tolo. Ao
ouvir aquela observação não mais questionou o rabi, afinal, ele foi indiretamente
instado a aceitar sumariamente a presença daqueles três estranhos no grupo, e
sem fazer maiores perguntas.
Depois de alguns meses, até Judas efetivamente amoleceu o seu coração
após presenciar um fato que ocorreu nos campos próximos ao monte Tabor.
Acampada havia mais de três dias para ouvir as pregações de Jesus, uma
multidão que ultrapassava a casa de cinco mil pessoas foi alimentada graças a
dois cestos que continham poucos pães e tilápias. Ao pôr as mãos sobre eles,
Jesus deu graças ao Pai e fez com que se multiplicassem de modo a alimentar
todos os que lá estavam. Um milagre, o primeiro que ele via com os próprios
olhos.
Ainda que fosse inclinado à guerra, Judas começou a perceber a vida sob
outro ponto de vista e, na devoção pela caridade, mote maior de Jesus, encontrou
um contrapeso para a sua sanha de justiça pelo sangue. Mas, no fundo, ele ainda
era um homem de armas, e crendo piamente naquele “Messias da Espada”,
passou a ponderar que a benevolência também pudesse ser uma das
características do rabi, o qual haveria de ser um rei como nenhum outro além de
Davi.
Foi pensando nisso que Judas começou a assediar o seu mestre para irem a
Jerusalém, onde a grata parte dos insatisfeitos estava. Jesus ponderou que o
tempo da referida cidade estava próximo e que em breve eles haveriam de rumar
para aquelas bandas, desta feita, o ungido também tencionava visitar Lázaro[105],
seu amigo de muito tempo. Ouvindo isso, o sicário sentiu-se ainda mais
estimulado para segui-lo, afinal ele havia previsto a queda de Roma e da
fortaleza Antônia, pois a força do rabi parecia ser absoluta e livre de qualquer
outro poderio posto sobre a Terra.
Mas o trabalho de Jesus urgia, os dias lhe eram contados, e, para que os
seus dogmas fossem levados adiante, ele passou meses direcionando os seus
ensinamentos a alguns dos seguidores mais próximos com a finalidade de
prepará-los para, em nome dele, levar a palavra de Deus para quem a precisasse
ouvir.
Num dia especial, à beira do mar dourado da Galileia, ele convocou
quatorze dos seus discípulos a fim de dar-lhes autoridade para, com a prudência
das serpentes e a simplicidade dos pombos, pregar e curar os aflitos: “Que a paz
esteja convosco!”, anunciou. “Divulgai, em meu nome, a chegada do reino de
Deus”.
Em seguida, o mestre os chamou um a um e, ao final, notou que os dois
últimos nomes causaram surpresa entre os primeiros. E foi então que, Simão,
chamado Pedro; André; João; Tiago, primo de Jesus; Levi, chamado Mateus;
Tiago, filho de Alfeu; Filipe de Betsaida; Tomé; Natanael, chamado Bartolomeu;
Tadeu; Simão[106]; Judas Iscariote; Mirian Magdalena; e Joana, a de Cusa; de
discípulos, passaram a ser chamados de apóstolos.
Quando o mestre lhes disse “Ide e dizei que o reino de Deus está
próximo”, Judas pensou que Jesus estaria prestes a se levantar contra os romanos
e acabar com a escravidão na Judeia. Mas o tempo, agora contado, haveria de
mostrar que ele estava errado, muito errado.

***

Vagando sem rumo pelas vias de Jerusalém, um meio-anjo tentava


reencontrar a mulher que ele havia ido buscar na Terra. Comunicativo e deveras
desprendido, Azeyzel imiscuiu-se entre o povo e não tardou a auferir
informações sobre como a Princesa Salomé havia desaparecido nos braços de
um homem um tanto abrutalhado, em verdade, o Arcanjo Metatron. E mais,
soube também que um exímio orador havia vertido a multidão ávida por justiçá-
la. Uns disseram que ele era um mágico; já outros, um profeta. Pois entre uma
andança e outra, ele se deparou com um ambiente que lhe soava familiar, um
lugar que, em Nod, ele frequentava com deleite: uma taberna.
Pois ao nela entrar e bebericar um copo de vinho barato, coisa que não
fazia havia séculos, ele rememorou o seu passado e como ele próprio havia
ensinado os homens a fermentar as uvas e auferir aquele néctar que se
disseminou no mundo. Lembrou-se também do seu gêmeo Semyaza, que com
ele veio do Céu para conhecer as formosas mulheres da linhagem de Caim e por
elas igualmente caíram. E entre um gole e outro daquela bebida, eis que diante
dele surgiram dois velhos conhecidos, os quais, também em busca de respostas,
não se fizeram de rogados ao reencontrar o irmão que havia muito não viam.
— Se eu bem me lembro, a última vez que nós estivemos juntos foi num
lugar muito parecido com este — disse Baalberith a Azeyzel.
Pasmo ao ver, diante de si, o ex-procurador e o caído príncipe dos
serafins, ele os encarou assustado.
— Nada tema, cara Potência — disse Lúcifer ao tentar tranquilizá-lo. —
Só não diga que estás aqui desde o dilúvio que devastou a Terra.
Azeyzel então desarmou o medo, sorriu sem muita pompa, degustou mais
um gole daquele vinho e, na sequência, respondeu:
— Não, muita coisa aconteceu depois disso. Mas, para resumir, posso
antecipar-vos que, no momento, eu não preciso mais mimetizar as minhas asas.
Cientes de que o corte de asas era uma pena grave prevista no Código
Criminal Celeste, ambos se sentaram e mostraram interesse pelos detalhes
daquela revelação.
— Baalberith deve lembrar bem, inclusive da mulher que eu cheguei a
desposar aqui antes da tormenta universal. Entretanto, logo depois, os arcanjos
vieram no meu encalço e dos demais vigilantes e, além das asas, eu e os demais
perdemos a liberdade e também as genitálias.
— Perdeste a liberdade? — estranhou Lúcifer. — Mas não estás livre?
— Livre? — retrucou em voz baixa. — Irmãos, eu sou um fugitivo;
consegui escapar das masmorras celestes.
— Como? É impossível escapar das masmorras de Vigilum, Azeyzel —
retrucou Lúcifer rindo alto.
— Não para um mago — esclareceu vertendo mais um gole.
Ao ouvir aquela expressão — um mago! — o monarca infernal mudou a
feição e fitou seriamente a Potência, afinal, a magia havia morrido com a ordem
das Presenças, a quem os três, na primeira grande guerra angélica, tinham
ajudado a eliminar.
— O que disseste? — inquiriu o caído, aparentemente incrédulo.
— Isso mesmo que ouviste. Quando eu perdi as asas, também me
arrancaram as partes, afinal, como sabem, fui um anjo “fornicador”. Mas mesmo
estando preso, engendrei um plano e consegui ter acesso às fórmulas de Pyriel,
que havia muito estavam escondidas na biblioteca de Vigilum e daí, para uma
fuga, e cá estou eu agora, diante de vós.
— Um mago... — repetiu Lúcifer, escorando-se no assento da cadeira.
— Mas me diz, o que precisamente vieste fazer aqui?
— Baalberith deve saber o motivo — afirmou Azeyzel.
— Hum... — suspirou com malícia. — Por acaso não seria aquela tua bela
e provocante amiga? — completou o marechal do Inferno, ao se lembrar que,
milênios antes, ele e Lucífago Rofocale[107] haviam encontrado Azeyzel na
companhia de Layla-Li na velha taberna de Metusiu[108], estendida na hoje
destruída cidade de Nod.
— A própria — concordou satisfeito.
— Irmão, ao que me consta, um ser humano não tem a longevidade tão
grande como a nossa. E diante disso, não existe a possibilidade de ela ter
sobrevivido por tanto tempo.
— É aí que te enganas. Eles é que têm a vida eterna, e não nós —
ponderou com razão.
— E a chave disso é a tal “alma” — completou Lúcifer, que milênios
antes, havia assistido a criação do primeiro homem.
— Sim, pois eles morrem e renascem, mas em corpos diferentes. E ao
contrário do que sentem, eu me afeiçoei deles; delas, melhor dizendo.
— E por acaso tens pistas da tal moça? — insistiu Baalberith.
Azeyzel esboçou uma feição astuta e respondeu.
— Digamos que sim. Mas em razão de um pequeno percalço involuntário,
eu a perdi temporariamente. — Lúcifer riu alto novamente e chamou a atenção
de alguns que lá estavam. Mas ao perceberem que o decaído os fulminava com o
olhar agressivo por entre o capuz que vestia, eles logo se retraíram com medo.
— Nós dois tivemos um reencontro turbulento há pouco, e ela escapou de mim.
E um homem, bem grande pelo que eu soube, a levou. E tal só foi possível,
graças à intervenção de um outro, o qual alguns chamaram, dentre outras coisas,
de “filho de Deus”. — Lúcifer e Baalberith se entreolharam. — E o que soou
mais estranho, é que as pessoas com quem falei me esclareceram que o
grandalhão tinha o cabelo de um dos lados da cabeça raspado... — asseverou,
aludindo ao penteado padrão dos arcanjos abaixo da patente de marechal.
— Um corte militar... — concluiu Lúcifer pensativo. — Mas nos conte
mais, e sem pressa — solicitou, gentilmente, o líder das terras más.
Azeyzel detalhou como havia sido o seu reencontro com o avatar de
Layla-Li, agora ocupando o corpo de Salomé, e de como ela lhe havia
escapulido pelos dedos. Pela descrição dos partícipes, os dois egressos do
Inferno logo concluíram que o tal orador só poderia ser Jesus e, se não lhes traía
a astúcia, o encorpado haveria de ser um arcanjo disfarçado, reforçando a tese
sobre a real identidade do Messias. A Potência também foi inclinada a chegar no
mesmo resultado, afinal, o acompanhante dele poderia ser Metatron, o qual teria
descido à Terra no encalço dele.
— Isso é coerente, Azeyzel, afinal, Metatron talvez tenha se sentido
responsável pela tua fuga, pois, segundo nos disseste, foi ele que peticionou aos
arcontes pedindo a tua progressão. E além do mais, parece que aqui temos um
arcanjo ajudando o outro.
— O que estás a dizer?
— Que esse tal Jesus, na verdade, só pode ser Miguel.
— Miguel? — insurgiu-se o antigo armeiro celeste.
— Sim, meu emasculado amigo. O nosso antigo marechal celeste, aqui em
sigilosa missão no corpo de um homem qualquer.
— De fato, quando eu progredi, fui informado de que ele não estava no
Céu, pois havia saído em encargo. Isso faz sentido.
— Bem, então sugiro que se irmane a nós nessa empreitada. Eu e
Baalberith te ajudaremos a encontrar a tal mulher, e tu nos auxiliará a refrear os
planos de Miguel.
— Mas como haveremos de agir?
— Uma coisa de cada vez, Azeyzel. Uma coisa de cada vez — reforçou
Lúcifer, ao remexer sobre a cabeça aquele imundo e aterrador capuz negro que o
cobria.

***

No pátio da austera fortaleza Antônia, as guarnições estavam enfileiradas,


afinal, a chefia de fração da coorte responsável pela guarda de Pilatos e pelos
esquadrões de crucificação[109] de Jerusalém estava prestes a ser alterada.
Deixando o seu posto de muito tempo, o velho centurião-chefe Lucius
Pullo estava deveras satisfeito com o ano de soldo extra que havia recebido e,
com ele, pretendia adquirir uma pequena fazenda nas imediações e dedicar-se à
agricultura.
Em seu lugar, assumia um oficial romano de quarenta e três anos de idade,
já experiente em confrontos e batalhas mas que buscava se aproximar do que
havia restado de sua família em Jerusalém e encontrar um pouco menos de
agitação. Diante da tropa, ele se apresentou formalmente ao prefeito romano.
— Centurião-chefe Quiricus Longinus, último posto na Terceira Legião
Gálica, apresentando-se ao comando de Vossa Excelência! — asseverou
firmemente, ao cruzar o braço direito e bater o punho contra a própria armadura.
— Foste muito bem recomendado, oficial — respondeu Pilatos, em razão
da fama heroica dele. — Pois a ti agora confio a guarda das nossas casas de
gestão e, enquanto eu estiver aqui, da minha própria família — finalizou.
Acatando formalmente o encargo, Longinus passou a tropa em revista e,
do alto do seu cavalo branco, fitou um dos homens que, mesmo um tanto
pequeno, parecia se sobressair entre os demais. Encurvado pela idade — os
cinquenta anos lhe pesavam — e ainda assim um simples immune[110], Servius
Cartaphilus era o responsável por uma das unidades de crucificação de
Jerusalém, a Décima Terceira, e, mesmo sabedor da prevenção que o seu agora
comandante tinha para consigo desde os tempos do Egito, onde serviram juntos,
nem assim ele se fez de rogado. Aliás, a função de executor lhe caía com
perfeição, pois, embora inicialmente escalado para ser um dos porteiros de
Pilatos, ele, sem demora, tratou de conseguir transferência para um serviço
menos nobre, afinal, lhe apetecia torturar os condenados.
Longinus premiu o seu olho bom — ele já estava cego do esquerdo — e
continuou com a marcha. Entretanto reencontrar o antigo e cruel companheiro de
Legião não lhe agradou nem um pouco. Em seguida ele foi vez mais recebido
pelo prefeito, que o havia convocado para que conhecesse aqueles a quem
deveria proteger, Cláudia Prócula e Diocletianus, filho de ambos.
Poucos sabiam, mas a vinda de Longinus tinha sido arranjada para, de
certa forma, recompensar os valorosos bons anos de serviço que ele havia
dedicado à coroa romana nas campanhas bélicas na Síria, onde, com muito
esforço, galgou o posto que ocupava. E graças ao respeito que havia ganho, o
agora centurião-chefe acreditava que teria um pouco de paz naquelas plagas,
onde se estabeleceu numa casa em que viveria com a família da irmã mais velha
e alguns empregados, dentre os quais, um jovem grego chamado Eliseu, mais um
filho do que propriamente um servo.
De acordo com as instruções de Pilatos, Longinus soube que Jerusalém
estava mais amena, tanto é que o prefeito havia trocado a sua mansão na
Cesareia Marítima pelo primor do palácio de Herodes I, onde a proximidade dos
sacerdotes do Templo lhe facilitava a missão de vigiar as polpudas somas que lhe
eram mensalmente repassadas como tributo pela permanência de Caifás como
sacrificador-mor.
Embora os ataques dos zelotes estivessem controlados, a vigília deveria
ser mantida à risca, principalmente sobre a mítica figura do bandido Barrabás,
ainda foragido. Fora isso, nada que não algumas ebulições aqui ou acolá,
causadas pelos inúmeros profetas que pululavam naqueles dias e que eram
reprimidas pela Polícia do Templo dos judeus.
Embora a fama de Jesus ainda fosse tímida no coração da Judeia, afinal,
ele só havia pregado por uma única vez nas imediações de Jerusalém no começo
do seu ministério, os viajantes e mercadores falavam efusivamente sobre as
realizações daquele carpinteiro e, mesmo no Sinédrio, ele já era objeto de debate
entre alguns círculos, mormente depois que o Juiz Nicodemus passou a nutrir
notório respeito para com ele.
Pois enfim, depois de mais de vinte anos, aquele outrora jovem soldado
romano e o travesso menino galileu que havia vivido no Egito, finalmente
voltariam a se reencontrar. Mas em quais circunstâncias, isso era ainda um
mistério.

***
Com o passar dos meses, Susana passou a interagir com as demais pessoas
que seguiam Jesus e, sempre vigiada por Metatron, havia ocultado na memória a
sua vida mundana como Salomé. Mas, sem perceber, ela, às vezes, via-se
dançando timidamente com as crianças do grupo, cuja flauta doce daquele oculto
arcanjo vez ou outra a embalava.
De Tiberíades, Herodíade mandou emissários para todos os lugares da
Judeia, mas, em vão, nada auferia sobre o paradeiro da filha, fato este que
Herodes Antipas via de forma positiva, afinal, enquanto ela estivesse sumida o
seu segredo libertino estaria oculto.
Naqueles dias, alguns apóstolos haviam deixado o ajuntamento para
ensinar a palavra de Deus nas cidades vizinhas, ao passo que, após algumas
semanas, haveriam de se encontrar na encosta do Monte Tabor para seguirem
viagem a Betânia e ao centro de Jerusalém, onde a doutrina de fé haveria de
finalmente ser pregada com maior afinco. Sabedor que o seu destino jazia na
última cidade, Jesus a evitou desde o início do seu ministério, as poucas
pregações foram apenas nas suas redondezas, afinal, ele precisava preparar
aqueles que, depois dele, seriam os portadores do Evangelho de Deus.
Seriam dias difíceis para os apóstolos, eles estariam privados da efetiva
presença do mestre, mas, por ele licenciados, não tardariam a encontrar aqueles a
quem tanto buscavam e, nas vilas e aldeias, experimentariam aceitação e
resistência, fé e desdém, acolhida e indiferença.
No entanto, de forma geral, o trabalho para o qual haviam sido talhados
haveria de ter o esperado êxito, pois ao começarem a curar os cegos e os
doentes, a doutrina por eles professada passou a ser multiplicada conforme o
plano inicial de Jesus.
Mateus e Judas Iscariote seguiram para Giscala[111]. Pedro seguiu com
João para o sul e, embora anteriormente admoestado por Jesus, ainda assim ficou
incomodado com o fato de Magdalena e Joana não terem partido no mesmo
tempo que os demais, afinal o mestre havia anunciado que tinha uma missão
especial para elas.
Não obstante fosse bom e reto, Pedro relutava em aceitar o fato de que
ambas eram suas iguais, “apóstolas” conforme o rabi as chamava. João o
advertiu sob o argumento de que se Jesus as fizera merecedoras do encargo não
lhes seria lícito discutir os desígnios dele, uma vez que, perante Deus, todos
eram iguais, fossem homens ou mulheres. Esse conflito de gêneros, embora
aparentemente inofensivo, haveria de futuramente interferir nos destinos da
igreja, já que, entre o grupo, Pedro tinha outros partidários da necessidade de
proeminência masculina no processo de evangelização.
Pois agora em Nazaré, Jesus, sua mãe e alguns discípulos lá ficariam até
que chegasse o momento de, aos pés do Tabor, o grupo se reunir e seguir para
Jerusalém, de acordo com o planejado.
Magdalena e Joana haviam sido as únicas que ainda não haviam partido e,
após auferirem do mestre o inusitado destino que haveriam de tomar, se puseram
a arrematar algumas iguarias, como mudas de salsaparrilha e extratos de
damasco, afinal, com parte dos haveres vindos dos pesqueiros de Magdala,
Mirian havia tomado a frente das necessidades financeiras da ordem, cuja bolsa
se prestava à conveniência dela — da igreja — e dos humildes. Some-se a isso
que, para a missão, ela contratou a um bom peso, dois carregadores de Tiro[112]
para transportarem uma carga que deveria ser vigiada nos arredores do lugar
onde iriam, pois, de tempos em tempos, ela seria utilizada no trabalho que urgia.
Susana, a essa altura já iniciada na evangelização, observava a tudo
curiosa e, mesmo sem saber aonde as duas estavam indo, pediu para acompanhá-
las. Jesus ficou satisfeito com os bons passos que ela estava dando e, ao assentir,
fitou Metatron e o licenciou para seguir com as três.
— Sinto que a nossa parceria está prestes a terminar, irmão... — disse
Beelzebu para o arcanjo ao vê-lo arrumar a sua bolsa para escoltá-las.
— E por que dizes isso?
— Intuição... — retrucou. — E mesmo que estejas armado, eu temo pela
tua sorte sem Caliel por perto — ponderou, enaltecendo as virtudes bélicas do
camareiro de Deus.
— Caliel é quem deveria ter nascido um arcanjo; e eu um querubim — riu
timidamente ao admitir a sua repulsa pelas armas. — Mas eu fiz uma promessa a
Deus e tenho que cumpri-la. E só voltarei ao Céu com Azeyzel sob ferros.
— Mas e os teus livros?
— A história dos homens está sendo escrita por si só. E seja qual for o
meu destino, as minhas anotações estarão preservadas, da forma que for.
— Bem, desejo sorte na tua missão.
— E eu na tua — finalizou, ao se despedir sem pompas.
Pois lá se foram os quatro — Magdalena, Joana, Susana e Metatron —
rumo a um vale sombrio e esquecido que ficava nos limites de Jerusalém. Era
nele que habitavam os considerados impuros, os quais eram proibidos de
frequentar as cidades abertas sob pena de sumaria execução[113].
A várzea dos proscritos, também conhecida por Grota dos Leprosos,
ficava numa depressão onde apenas poucos estrangeiros iam ter. Assim, salvo
um ou outro altruísta que para lá levava alguns restos de comida, ninguém tinha
coragem de ali entrar, haja vista a temida possibilidade de contágio, deformidade
e morte.
A vida dos leprosos era extremamente difícil[114] e, fora o medo pela
doença, o mau cheiro que advinha da maioria deles mantinha os curiosos longe
dali. Eles tinham os corpos, as mentes e os espíritos definhados, daí a dificuldade
de aproximação, sendo que os poucos que se arriscavam a esmolar nas cidadelas
eram repelidos com punhados de terra que lhes eram brutalmente arremessados,
afinal, segundo o povo, eles já estariam mortos e, como mortos, deveriam voltar
à poeira de onde vieram.
Após alguns dias de exaustiva viagem, os peregrinos aportaram nos
limites do vale e, embora advertidos para dele se afastar, nada os obstou a seguir
adiante. Susana e Metatron foram instados a ir até as proximidades de Betânia a
fim de aguardar a comitiva de Jesus, que passaria pela grota a fim de buscar
Magdalena e Joana, mas, em contrapartida, a jovem fez questão de descer a
colina e acompanhá-las, no que se fez seguir pelo arcanjo que a guardava.
Para acessar o vale, fazia-se necessário transpor uma pequena estrada de
pedras afiadas e, ao perceberem a aproximação daqueles estranhos, os primeiros
doentes se puseram temerosos e ariscos. Eram homens, mulheres e crianças sem
qualquer amparo social ou médico, os quais, acostumados apenas com a repulsa
e a rejeição, custaram a acreditar nas boas intenções dos forasteiros.
Magdalena insistiu e se colocou num ponto visível, anunciando que eles
haviam vindo em nome do filho do Deus único de Israel, a fim de trazer caridade
e cura para aqueles que tivessem fé. Diante disso, um daqueles doentes, exausto
e desesperado com a abertura das suas feridas, aproximou-se e deixou com que
ela viesse até ele. O homem estava visivelmente deformado e o seu rosto
envergava crostas que pareciam lhe tirar a própria condição humana. Pois Mirian
então, num gesto de bondade e entrega, abriu os braços e abraçou aquele pobre,
causando comoção nos que lá estavam e, com certa dificuldade, ele disse a ela:
— – Eu sei que não sou digno, mas se foi Deus que vos mandou, eu aceito
o que viestes nos trazer.
Joana, Susana e Metatron desceram um pouco mais e foram de encontro a
Mirian e ao velho, cujo odor do corpo se assemelhava ao da podridão. Após
tocar-lhe o rosto coberto por trapos imundos, Magdalena o levou com cuidado
para o braço de um pequeno riacho que cortava o vale e, com recato, ela e Joana
retiraram vagarosamente as vestes fétidas que o cobriam. Feito isso passaram a
banhá-lo com água misturada a salsaparrilha, tida como ideal para as moléstias
da pele, e após o untaram com óleo de damasco, indicado para hidratação.
Percebendo o alívio visitar aquele homem cujas lágrimas de gratidão lhe
brotavam nos olhos, os demais então começaram a se achegar aos poucos, a fim
de aceitar a filantropia daquelas duas mulheres.
Fazia muito calor naqueles dias e, ao ver o estado deplorável dos
arremedos de roupa que os doentes usavam, Susana se adiantou por si só e,
desprovida de qualquer temor, as pegou uma a uma e as imergiu na água, a fim
de tentar deixá-las mais dignas de serem vestidas por um ser humano. Sabedora
do que lá iam encontrar, Joana havia levado consigo uma mistura de óleo de
oliva com barrela[115] e, tencionando usá-la como sabão, entregou um fragmento
do composto a Susana, que, sem demora, encarregou-se de ajudá-las.
Se voltássemos alguns meses no tempo, jamais imaginaríamos que uma
mulher pervertida como Salomé pudesse sequer sonhar em estar num lugar
terrível como aquele. Mas agora, mostrando que estava espiritualmente disposta
a se aproximar de Deus, ela amarrou as mangas da sua veste simplória e, a
exemplo de Magdalena e Joana, passou a fazer o mesmo com os demais doentes,
os quais, deixando o medo de lado, começaram a enfileirar-se para auferir
aqueles preciosos cuidados.
Pois ao mandar as três para a Grota dos Leprosos, Jesus sabia que aquela
missão só poderia ser executada por pessoas cuja essência fosse naturalmente
sensível, como o eram — e são — as mulheres. A rudeza típica dos homens
talvez fosse uma barreira para aqueles doentes, os quais, na figura feminina e na
aparente fragilidade das recém-chegadas, talvez não vissem perigo contra si e,
assim, deporiam os seus temores. E nesse particular, não faltava razão ao mestre
Jesus, pois as mulheres, no mundo, só não haveriam de conquistar aquilo que
verdadeiramente não quisessem.
E ocorreu que uma das leprosas que lá estava, aparentando por baixo das
suas severas feridas estar na casa dos quarenta anos de idade, impressionada com
a beleza física de Susana — e a qual, no passado, também havia tido —, fez uma
indagação com a voz ainda rouca pela pouca prática da fala.
— És tão linda, menina. Por acaso não temes ficar assim como eu? —
perguntou ao aludir às escaras que lhe destroçavam o corpo.
— Não — respondeu ela sorrindo. — Já faz algum tempo que eu não sei o
que é ter medo, pois aquele que tem Deus ao teu lado não conhece o medo.
— Belas palavras.
— Sim, elas me foram ditas por alguém especial — respondeu ainda
limpando aquela mulher. — Alguém que me ensinou a amar por amar.
— De onde tu vens? — interessou-se a leprosa, a quem parecia não
conversar com alguém há anos.
— Eu não sei de onde venho, mas hoje certamente sei para onde vou —
concluiu sempre simpática e sem perder a mão ao besuntá-la com o óleo de
damasco.
Bastou uma semana ali para que a vida de parte dos habitantes do vale
mudasse drasticamente. É claro que nem todos as aceitaram e, ainda escondidos
em seus espaços, sequer foram recepcioná-las. Entretanto, nem isso as impediu
de agir, pois percorrendo aquelas grutas escuras, elas iam de doente a doente
com o objetivo de levar uma palavra de esperança até mesmo para os que se
recusavam a ouvi-las. Não foi nada fácil, mas, de um modo geral, elas atingiram
o objetivo inicial, que era o de evangelizar o maior número de enfermos
possível.
Os dias foram passando e, profetizando apenas o amor, elas conseguiram
mudar o modo de vida daquelas pessoas, outrora atingidas pela falta de fé e pela
individualidade. O nome de Jesus passou a ser corrente e, sabendo que alguém
se importava com eles, a luta pela vida voltou a fazer sentido. A partir de então,
aqueles doentes passaram a acreditar que a verdadeira existência estava bem
longe dali, num plano cósmico onde o sofrimento não existia, e, para chegar lá,
bastava-lhes a verdadeira crença no filho de Deus, que lá estava representado
pelas ações e palavras daquelas mulheres. Aliás, por abdicarem da vida mundana
e se casarem com a doutrina de Jesus, poder-se-ia dizer, feitas as devidas
ressalvas de tempo e espaço que, Magdalena, Joana e a jovem Susana foram as
primeiras freiras da história cristã, cujo trinômio “doação, entrega e caridade”,
ali as coroou como tais.

***

Três semanas após terem partido, a grata parte dos apóstolos, seguidos por
centenas de fiéis, começou a regressar ao Tabor a fim de reencontrar o mestre e
seguir viagem. Efusivos, eles haviam tido êxito na missão que lhes havia sido
dada, afinal, nos lugares em que estiveram, a palavra de Deus foi divulgada e
potencializada.
O rabi os recebeu com o costumeiro carinho e, satisfeito com o proceder
dos emissários, sentiu que as pedras da sua igreja estavam sendo sedimentadas.
— Mestre, a empreitada foi positiva — disse Pedro, entusiasmado. —
Conquanto alguns incrédulos de costume, a maioria nos ouviu e ofertou apreço
pela palavra.
— Sim! — completou Judas Iscariote com um humor que não lhe era
típico. — Houve até quem me chamasse de rabi.
Mas verificando a ausência de Magdalena e Joana — “afinal, para onde as
duas haviam ido?” —, o pescador assuntou sem omitir a curiosidade.
— E as nossas irmãs, senhor? Onde estão?
— Nós iremos encontrá-las em breve, pois elas estão a meio caminho do
nosso primeiro destino.
Pedro anuiu curioso, visto que, embora com a mesma missão, a de
evangelizar, Magdalena e Joana foram as únicas que partiram para um destino
ainda desconhecido dos demais.
Todos então se uniram e tomaram a estrada para o sul, a fim de
reencontrá-las e rumarem para Betânia e Jerusalém. No caminho, Jesus percebeu
que Beelzebu, a quem os peregrinos chamavam de Betseba, havia se afeiçoado
de Yigal, o filho curado de Joana. Caliel — conforme já visto, lá conhecido por
Chaya, nome hebraico feminino em razão da aparência feminizada dele —
seguia no colo da virgem Maria e, encantado com a figura maternal dela, fazia
birra quando alguém fazia menção de pegá-lo. A imaculada cresceu entre
crianças, cuidando dos primos e primas, e por elas tinha um afeto ímpar. Pois
observando Beelzebu caminhar de mãos dadas com o agora purificado menino,
Jesus se achegou.
— E então, Betseba, conta-me: como tem sido caminhar conosco? —
indagou dando mostras de que no fundo sabia quem era ele.
O querubim o fitou desconfiado e, rendendo-se ao avatar de Miguel,
acabou se entregando.
— Eu me pareço tão óbvio assim, rabi?
Jesus achou graça na réplica e continuou:
— Eu sei que estão aqui para me ajudar. Tu, a pequenina e aquele que se
disse chamar Matatias. — Nome pelo qual o Arcanjo Metatron havia se
apresentado ao grupo.
Beelzebu, ou melhor, Betseba, abaixou a cabeça e sorriu, arrematando
logo na sequência.
— Eu acho que agora estou mais à vontade para responder à tua pergunta.
Pois saibas que eu já caminhei por lugares inimagináveis — pontuou, referindo-
se ao seu degredo no Inferno. — E após muito viver, hoje entendo por que Deus
te mandou para cá.
— Então crês que eu sou da parte de Deus?
— Tu és, bem sei, um dos filhos Dele. E no final, nós somos todos irmãos;
eu, tu, Chaya e Matatias.
— Eu compreendo o teu ponto de vista. Mas pareces ter gostado muito do
menino, pois não? — perguntou o rabi, referindo-se a Yigal.
— Foi-me dito que ele sofreu demais. E vê-lo agora redimido me fez
lembrar de mim mesmo, ou melhor, de mim “mesma”... — corrigiu-se, em razão
do sexo que personificava. — E nisso, incluo até a pequena Chaya, que
encontrou em tua mãe uma figura que ela até então desconhecia.
— Mas estou bem certo que “ela” teve um Pai que lhe fez às vezes —
ponderou Jesus, ao instintivamente fazer alusão a Deus, a quem Caliel tinha cega
devoção. — Pois muito me satisfez essa prosa contigo — asseverou. — E se sois
quem dizeis ser; sabeis que o meu tempo na Terra urge.
— Sim, nós sabemos. Portanto, cumpre com a tua missão e retorna em
breve ao convívio dos teus — disse Beelzebu, já se emocionando e apertando o
passo para, vez mais, tomar as mãos de Yigal.
Jesus absorveu aquela frase em silêncio e se juntou aos demais, ao passo
que Beelzebu, talvez agora menos tenso depois daquele desabafo, também
retomou o caminho da estrada. Mas antes de chegarem aos destinos
programados, eles ainda fariam uma inusitada parada num vale onde aquele
disfarçado querubim haveria de ter lembranças muito ruins.

***

O clima nas dependências do Sinédrio estava arrefecido, afinal, um


conhecido ladrão havia sorrateiramente ingressado no átrio das mulheres e,
aliciando uma das sacerdotisas, conseguido escapar sem deixar maiores rastros.
Conhecido pela beleza física extremada, aquele salteador era admirado pelas
mulheres de má fama — e pelas de boa também —, que nele viam um amante
ousado e inigualável.
Seduzida pelos mesmos encantos, a jovem Mira se deixou enamorar por
aquele doce bandido e, pelas astutas mãos dele, acabou vítima da própria
vergonha, ao ser abandonada nua e com uma rosa nas mãos num dos cantos
escuros do Templo, logo após ter se entregado voluntariamente àquele romântico
criminoso.
Quando o fato chegou ao conhecimento do pai da moça, Caifás, a
sentença de morte do intrépido Dimas praticamente se selou, pois, não contente
em furtar o erário dos aristocratas, ele também havia subtraído a virtude da
moça, filha do mais astuto deles.
Pilatos não demorou a receber uma dramática queixa de Caifás e, na sala
de audiências da fortaleza Antônia, onde já estava havia meses residindo para
oficialmente supervisionar a construção de um aqueduto em Jerusalém, mandou
chamar por Longinus.
— Há pouco eu recebi um reclamo do sumo-sacerdote judeu dando conta
de que um certo criminoso burlou a vigilância do átrio das mulheres[116] e levou
consigo algumas peças de ouro.
Estranhando a pouca monta da reclamação, ainda assim, o centurião-chefe
mostrou-se solícito e indagou o prefeito:
— Mas, senhor, isso não seria um caso para a Polícia do Templo?
— A princípio, sim. Entretanto, não foi apenas isso que ele surrupiou.
— Senhor? — questionou o miliciano.
— Ele é acusado de ter seduzido a filha de Caifás. Entretanto, conhecendo
a fama desse ratoneiro, fico em dúvida se a história se deu mesmo dessa forma.
— Ao acaso seria o tal Dimas, senhor?
— Ora, ora... Nem bem chegaste e já conheces a fama daquele?
— Eu tenho o costume de estar entre os meus homens, e eles me puseram
a par das práticas dele — justificou, aparentemente incomodado.
Pois percebendo que Longinus tinha um pouco de sangue respingado em
sua armadura, Pilatos indagou:
— Por acaso tu estás ferido?
— Eu, não, senhor — justificou-se. — Mas um prisioneiro, a quem, há
pouco, detivemos, sim.
— Conta-me mais sobre isso — interessou-se o prefeito, ao colocar um
pouco de vinho numa taça dourada.
— Dois guardas tiveram a sorte de se deparar com um conhecido facínora
de Jerusalém, um assassino que já há algum tempo é procurado.
— Um assassino... — repetiu.
— Sim, senhor. Eu estava na cidade alta com alguns homens quando
escutamos o povo se alvoroçar, pois, aos prantos, uma meretriz havia ganho as
ruas com as pontas dos seios cortadas. — Pilatos torceu a face em repulsa ao
relato. — Pois o autor da façanha foi perseguido e detido, mas não sem antes
resistir ativamente e ferir um dos guardas. Eu fui em apoio a ele e acabei
obrigado a desacordá-lo, e por estar, o agressor, coberto pelo sangue da
mundana, fiquei tal qual estou.
— Então não prendeste um homem, mas um animal.
— É o que ele aparenta ser, senhor. Mas apuramos que ele já pertenceu ao
bando dos zelotes, foi um dos homens de confiança de Barrabás.
— Barrabás?
— Sim, Excelência. E ele acabou divorciando-se da causa e decidiu
entregar-se sozinho a essas práticas hediondas.
— Bem, que seja levado às masmorras até o dia em que for instado a
conhecer a justiça romana. E como se chama esse pérfido violentador?
— Disseram-me os guardas que ele se chama Gestas.
— Gestas... Pois bem, e quanto ao assunto para qual te chamei, eu preciso
dar uma satisfação a Caifás. E confiando nos teus talentos, espero que Dimas
tenha um fim análogo ao desse perigoso Gestas.
O centurião assentiu e deu meia-volta, e as empreitadas de Dimas, graças
à sua própria impetuosidade, estavam prestes a ter fim.
Capítulo 9
A caminho de Jerusalém
EMBORA OS ATAQUES DOS ZELOTES tivessem diminuído, era certo que Roma
não havia baixado guarda. E após muito assuntar, aquele trio de anjos contrários,
finalmente havia conseguido uma rota de acesso ao partido rebelde — o da
guerra pela força — e, apresentando-se como estrangeiros aliados, lograram ter
acesso a Barrabás.
Lúcifer, Baalberith e Azeyzel haviam se unido temporariamente a fim de
tentar evitar que o avatar de Miguel conseguisse força bélica, pois na mente dos
dois primeiros, se isso fosse auferido, nada o impediria de reinar sobre a Terra.
Embora eles ainda não soubessem que o plano de Deus era exatamente o
oposto — o leão havia vindo à Terra como cordeiro —, ainda assim, os caídos
fariam o possível para que os próprios homens se voltassem contra Jesus, pois o
que, para Lúcifer, talvez significasse o fracasso do filho do Senhor, em verdade
seria o êxito dele. Ainda assim, imbuídos em erro, eles tentariam jogar os zelotes
contra o nazareno, pois sem o apoio deles, a arregimentação de um imaginado
exército seria quase impossível.
Barrabás estranhou a aparência física dos recém-chegados, mas estando
eles sob o patrocínio de um homem de confiança habilmente aliciado por
Baalberith, não teve como recusar-lhes uma audiência.
— Pelo que vejo, parece que estiveram em guerra — ponderou o líder dos
zelotes, em razão da aparência sofrível dos dois caídos serafins.
— Sim, não estás errado, meu astuto amigo. Mas digamos que a nossa
batalha é bem mais antiga que a vossa, e as marcas insistem em não abandonar
os nossos corpos. E para poupar-vos do rigor delas, preferimos andar com o
rosto coberto — disse Lúcifer, ao tentar disfarçar o amarelado dos seus olhos
com uma coloração menos agressiva.
— O meu tenente me disse que possuis informações importantes vindas
das terras do norte.
— De fato — assentiu Lúcifer. — Nós viemos de longe para alertar-vos
que um embusteiro que diz ser o Messias está se aproximando daqui. E com ele,
uma malta de mendigos que talvez tentem persuadir-vos a segui-los.
— O Messias em Jerusalém? — duvidou Barrabás.
— Na verdade, me parece ser alguém que diz sê-lo — corrigiu Baalberith.
— E como soubemos que encabeçais uma luta séria contra Roma, achamos por
bem preveni-vos.
— E por qual motivo eu devo temê-lo?
— Porque ele não visa a boa luta como tu, mas apenas a submissão pelo
amor ao próximo. E caso vos irmaneis a ele, enfraquecer-se-ão vossas raízes, e
acabareis escravos dos romanos para sempre.
Barrabás entreolhou o companheiro de lida e convidou os forasteiros para
se sentarem. Azeyzel se pôs a examinar algumas espadas que ali estavam
empilhadas e, mostrando desdém por elas, ponderou:
— É com isso que pretendem lutar com os vossos inimigos?
Sentindo-se desprestigiado, um dos ferreiros o enfrentou:
— Mas com que autoridade contestas o nosso trabalho?
Azeyzel o encarou e esboçou um sorriso sarcástico. Aquele matuto artífice
sequer desconfiava, mas tinha sido Azeyzel — e o irmão Semyaza — que,
séculos antes, havia ensinado aos homens a arte da metalurgia e da forja de
armas, dando origem ao primeiro exército humano liderado por Tubal-Caim[117].
Mas inclinado a não revelar o seu disfarce, ele desconversou.
— Não te apoquentes, é que, no passado, eu também fui um armeiro. E
confesso que já vi espadas mais bem-feitas do que esta — tripudiou, ao
manobrá-la no ar.
Lúcifer encarou o Trono exilado com um ar de reprovação e, visando
retomar o seu raciocínio, continuou com a ladainha.
— Bem meu amigo, na verdade, nós temos alguns assuntos pendentes
além do deserto, e paramos aqui para prevenir-vos.
— E, por acaso, esse Messias tem um nome?
— Sim. Chama-se Jesus, é filho de José, da Casa de Davi.
— Jesus! — replicou o bandido rindo aos demais.
— Eu disse algo engraçado? — perguntou Lúcifer encarando os presentes.
— Não! — divertiu-se. — É que esse também é o meu nome, Jesus[118];
Barrabás é o meu sobrenome.
— Bem, Jesus Barrabás — retrucou Lúcifer forçando a pronúncia —, eu
espero que o vejas por ti mesmo e que, para o bem do teu movimento, não dês
qualquer guarida a esse covarde, afinal, a palavra dele é poderosa e poderá verter
aqueles que ainda querem lutar.
— Eu ficarei atento. Mas agora, se me permitirdes ser hospitaleiro... —
disse, ao ofertar-lhes vinho.
— Nós somos gratos pelo convite, mas precisamos seguir viagem —
respondeu Lúcifer. — E como eu havia dito, não podemos nos demorar.
Barrabás agradeceu e não se opôs à partida deles. Azeyzel seguiu a
marcha dos dois irmãos e, ao passar pelo ferreiro que o havia instado, fitou-o
como se zombasse do amadorismo dele. Pois o zelote-chefe, ao vê-los deixar a
gruta, acenou para dois sequazes e mandou que os seguissem. Eles obedeceram,
mas, mal sabiam que jamais iriam voltar.

***

Após dias de exaustiva caminhada, a comitiva de Jesus aportou no


pequeno acampamento que os carregadores contratados por Magdalena haviam
levantado. Já havia se passado cerca de três semanas desde que ela, uma vez ao
dia, ia visitá-los na companhia de Matatias — isto é, Metatron — a fim de levar
mantimentos para os leprosos.
Embora a soma do carreto não tivesse sido alta, Mirian não lhes revelou o
efetivo destino que teriam, afinal, talvez isso os afugentasse. Entretanto, ela
resolveu arriscar e confiar neles, os quais, misteriosamente, não a decepcionaram
e mantiveram a devida guarda sobre as provisões. Pois os tais carregadores,
anjos disfarçados, a serviram sem questionar e, embora com as faces mudadas e
envelhecidas, foram, de imediato, reconhecidos por Metatron, o qual se manteve
silente nesse particular.
Jesus se achegou e os viu com seus camelos, passivos e à espera de
instruções de Mirian. Ele então convocou a mãe, os apóstolos e Beelzebu para
acompanhá-los até a Grota dos Leprosos, afinal, conforme o acordado, o mestre
ali haveria de resgatar Magdalena, Joana, Susana e Matatias.
Ao chegar no centro do vale, o regenerado querubim ficou chocado em
ver o estado físico dos muitos que lá estavam, e percebendo o rigor das feridas
que eles carregavam, já bem melhores que dias antes, acabou se lembrando dos
milênios de dor e solidão em que havia passado no Inferno, coberto de escaras e
moscas, até ser salvo por Caliel durante a torrente que despencou sobre a Terra
nos anos de Noé.
Pedro e os demais também ficaram desconfortáveis, e ao verem as
protegidas de Jesus lavando os doentes, finalmente entenderam por que o mestre
as havia mandado para lá. Pois o vigor feminino, que suplantava e suplanta o
masculino, era tamanho, que elas não se importavam em expor a própria
integridade para tentar redimir aqueles pobres que, embora vivos, lá jaziam
como mortos. E, mesmo acostumados a ver um ou outro leproso nas cidadelas,
lhes causou espécie o fato de que, naquele momento, estavam num lugar
infestado deles.
Ao vislumbrar o mestre, Magdalena se levantou e foi até ele, auferindo
um abraço afetuoso e um respeitoso beijo na face, Joana fez o mesmo. De longe,
Susana continuou a trocar o curativo de uma doente e sorriu ao levantar os olhos
e ver o rabi.
Metatron ficou eufórico e se aproximou de Beelzebu, indagando-o,
afobado.
— Onde está o capitão? — perguntou referindo-se a Caliel.
— Não tão longe — respondeu, visivelmente incomodado com aquele
ambiente. — Mas que espécie de lugar é este? Parece-me o próprio Inferno!
— É um refúgio de doentes; de leprosos.
— Leprosos... — repetiu, ao mirar o seu corpo agora curado, mas que no
passado, havia envergado feridas mil vezes piores que aquelas.
— Sim, uma contribuição de Baalberith para a humanidade. Foi ele que,
antes de Caim matar o próprio irmão, despejou na Terra uma gama de energias
negativas que futuramente haveriam de repercutir nas funções vitais dos homens.
Enfim, ele trouxe as doenças aos humanos.
Magdalena então se dirigiu aos leprosos que ali estavam e anunciou que
Jesus de Nazaré estava entre eles, o mesmo Jesus de quem ela tanto havia falado
naqueles dias. A maioria se aproximou, sem medo, do mestre, o qual, ao vê-los
libertos da clausura, não se absteve de estender-lhes as mãos. E graças ao
empenho daquelas três abnegadas mulheres, a carapaça de medo que os
proscritos carregaram havia sumido.
Satisfeito, ele elevou as mãos para o alto e fez com que, sobre o vale,
caísse uma névoa fina e perfumada, a qual atingiu os que ali estavam. Pois a fé
de alguns dos doentes passou a ser tão grande que, ao experimentarem aquele
frescor lhes escorrer pela pele, todas as máculas que ainda lhes restavam
acabaram limpas. E, exceto por alguns, cuja aura ainda insistia em residir na
escuridão e que sequer saíam daquelas cavernas, quase uma centena de doentes
acabou instantaneamente curados da lepra.
Os apóstolos não se fizeram incrédulos, afinal, eles acreditavam nos
poderes de Jesus, mas não conseguiram esconder o espanto em presenciar uma
cura coletiva de pessoas até então esquecidas por todos, inclusive por elas
próprias.
— Agora, ide! Ide e mostrai-vos para aqueles que outrora vos
desprezaram.
Embora sem quaisquer haveres, aquelas pessoas partiram de forma
instantânea, afinal, deixar aquele lugar equivalia a deixar o próprio túmulo, pois,
ainda que em vida, elas lá se sentiam como mortas estivessem.
Entretanto, não foram todos que lograram auferir a boa bênção do mestre.
Muitos ressentidos ainda habitavam as profundezas da grota e, cercados por uma
carapaça de medo, sequer ouvidos deram às palavras das apóstolas.
— Mestre, infelizmente nós não conseguimos convencer a todos —
lamentou a dama de Magdala. — Ainda existem muitos doentes por aqui.
Jesus olhou satisfeito para ela e disse:
— Fizeram, por essas pessoas, o que ninguém antes havia feito. Deram a
elas caridade e esperança quando muitos davam apenas desdém e rejeição. Pois
com isso lograram tirá-las da marginalidade, e assim praticaram o verdadeiro
apostolado, o apostolado do coração.
— Eu agradeço o reconhecimento, senhor, mas o que será dos outros que
aqui ficaram? — indagou chorosa. — Com o devido respeito, eu acho melhor o
senhor seguir viagem com os demais e nos deixar aqui para tentar vertê-los.
— Não! — disse uma voz feminina. — Segui até Betânia com o mestre,
eu ficarei aqui.
Ao voltarem a atenção para a origem daquela graciosa oferta, perceberam
que ela havia partido de Susana, outrora presa à vida vazia de Salomé e aos
inúmeros pecados existenciais de Layla-Li. De fato, conhecer Jesus a havia
libertado de tudo o que a mantinha cativa — João Batista havia previsto isso —
e, embora ela não se lembrasse dos crimes que tinha praticado naquela e nas
outras vidas, tudo agora parecia mudado.
— Estás dizendo que queres ficar aqui, cuidando de pessoas que sequer
ouvem o que tens a dizer? — indagou Jesus um tanto interessado.
— Sim, mestre! Pois neste lugar, eu finalmente descobri uma saída para o
labirinto da minha mente. E conforme disse para uma mulher que aqui conheci,
eu não sabia quem era, mas agora sei.
Jesus olhou, orgulhoso, para Magdalena e respondeu de pronto.
— Pois se é o que desejas; segue o teu coração, Susana.
Metatron ficou receoso ao ouvir aquilo e, num ímpeto de ousadia,
interferiu no colóquio.
— Rabi, se a jovem ficar, eu também ficarei. Pois para onde ela for, eu
também irei.
Jesus não se opôs, pois embora Susana estivesse purificando o próprio
espírito, a presença física de Metatron certamente lhe traria maior segurança.
— Espero que estejas bem certa das dificuldades que terás pela frente,
afinal, os que aqui ficaram parecem não desejar ouvir a nossa palavra.
— Eu não me importo com dificuldades. Pois saibas que, quando
retornares, todos estarão convencidos e aptos a serem curados. Eu prometo!
Ao vislumbrar a força de vontade de Susana, Metatron se lembrou da
conversa que teve com Harual na capelania dos obreiros do Guf e, naquele
momento, estava testemunhando que o trabalho daquela agente espiritual não
havia sido em vão. Que Jesus era aquele que na Terra haveria de resgatá-la, não
havia dúvidas. Entretanto, Azeyzel ainda haveria de rondá-la e, com certeza,
tentaria arrebatar aquele corpo para si. Evitar que isso acontecesse e recapturar a
fugida potência era a missão dele fora do Céu.
Pois enfim, mesmo que Jesus não aceitasse o pleito de Susana, ela haveria
de ficar ali de qualquer forma, afinal, embora limpa, ela ainda era uma mulher, e
como uma, jamais deixaria de fazer algo que intimamente desejasse.
Magdalena e Joana ficaram contentes, afinal, a segunda sabia quem, de
fato, era Susana e, nesse passo, concluiu que ela estava no caminho da salvação.
Mas foi a virgem Maria que, de maneira inusitada, se aproximou da jovem e a
segurou pelas mãos. E ao fitar os olhos esverdeados de Susana, profetizou:
— Toda boa recompensa é precedida de sofrimento e, bem sei, a tua
existência está impregnada dele. Pois saibas que destes um bom passo, mas a tua
missão não termina aqui, tampouco a minha. Então, até um dia, menina — disse
ela, abençoando aquela que, num futuro ainda muito distante[119], haveria de
encontrar numa longínqua terra do ocidente que, futuramente, viria a se chamar
Europa.
Pedro, o apóstolo relutante, via nas ações de Magdalena e Joana, atos que
muito agradaram o mestre e, em razão disso, convenceu-se de que ele as amava
mais do que todos, o que não correspondia à verdade. O ciúme do pescador por
elas estava ficando cada vez mais latente e, embora Jesus já o tivesse
aconselhado, o seu íntimo lutava contra o fato de que elas estavam tendo um
destaque maior do que deveriam. Maliah, esposa de Pedro, era um exemplo do
que uma mulher deveria ser para ele, uma cuidadora da casa e dos filhos, pois
era assim que o velho Simão havia sido criado e, pela idade e teimosia, não
conseguia aceitar a igualdade entre os sexos, questão esta que haveria de refletir
na gestão da doutrina católica pelos séculos à frente.
A vida, enfim, havia visitado parte daquele vale e, para onde quer que se
olhasse, dezenas de ex-leprosos marchavam de volta para as suas querências. Os
apóstolos que acompanhavam Jesus se puseram a segui-lo novamente. Betânia
era a próxima parada.
Beelzebu ficou tocado com aquele milagre, pois Deus fizera o mesmo por
ele ao ser repatriado do degredo no Inferno, e, sem pensar, aproximou-se de
Susana e do interior da veste surrada que usava, retirou e entregou a ela o colar
das constelações[120], a mesma joia que, no passado, havia servido de canal de
comunicação entre ele e Caliel e que otimizou a sua salvação.
Enxergando a grota como uma espécie de Inferno, o oculto querubim
talvez quisesse deixar aquele adereço com Susana a fim de que, num momento
de apuro, alguém viesse salvá-la do mesmo modo que ele havia sido salvo.
Embora Metatron fosse um arcanjo, as suas inclinações eram tipicamente
acadêmicas, e quem sabe um pouco de auxílio externo, em caso de perigo, fosse
bem-vindo. Susana aceitou o adereço e o colocou no pescoço, ao passo que
Beelzebu, ainda visivelmente tocado com o que tinha acabado de ver naquele
ambiente, afastou-se cabisbaixo e seguiu com os demais.
E dali eles partiram, deixando para trás uma pecadora próxima da
redenção e um arcanjo erudito, cujo futuro parecia incerto. Problemas em razão
da repercussão daquela cura generalizada certamente adviriam, afinal, só era
permitido a um sacerdote judeu purificar um leproso, isso após uma cerimônia
que envolvia ritos específicos e extremamente antigos. Mas enfim, esse era um
detalhe que parecia não importar, não para Jesus.
Dali por diante, nas sombrias grutas daquele vale, Susana tentaria resgatar
os que lá ficaram, ao passo que, ao mesmo tempo, tentaria salvar a si própria.
Magdalena orientou os carregadores a retornar àquele ponto de tempos em
tempos, munidos do que Susana necessitasse, e, após com eles firmar um
contrato verbal, obteve um compromisso livre de maiores discussões, afinal,
ambos eram anjos e, assim, estavam a irrestrito serviço de Deus.
Pois assim que a noite caiu, já nas proximidades de Jericó[121], o grupo
parou para descansar, sendo que, na oportunidade, Jesus se sentou com os
apóstolos e, em razão das diversas andanças deles, perguntou-lhes qual a
impressão que o povo havia tido dele e da doutrina que lhes havia sido
anunciada.
Uns responderam que Jesus tinha sido comparado a João Batista; já
outros, ao icônico profeta Elias ou mesmo Josué.
— E para vós, quem sou eu? — perguntou indistintamente.
Até então silente e sem tirar os olhos da fogueira que, aos poucos, se
consumia, Magdalena tomou a palavra.
— Mestre, quando nós chegamos à Grota dos Leprosos, eu disse que
vínhamos a mando do filho de Deus, o Cristo encarnado.
Jesus a fitou por alguns instantes e, erguendo-se em direção a ela,
segurou-a pelas mãos e afirmou:
— Pois eu te digo, Magdalena, que sobre ti será fincado o nosso templo,
cujas honras te confio. A casa das almas perdidas foi definitivamente fechada
para ti, afinal, conquistaste duas grandes chaves, a dela e a do paraíso.
Alguns apóstolos não entenderam o teor daquela nova. E jamais
entenderiam. Quando Magdalena viveu no corpo de Lilith, ela rogou perdão a
Deus sobre o cadáver de Adão em razão das centenas de pecados que havia
praticado e, na mesma toada, pediu por uma oportunidade de redenção para com
ele. Assim, embora ainda viesse a ter inúmeros percalços durante aquela vida
material, ao menos o que ela buscava, a redenção com o primeiro esposo, foi ali
auferida.
Jesus então voltou ao seu lugar sob o sempre desconfiado olhar de Pedro
e, aparentemente emocionado, anunciou que a sua missão na Terra estava prestes
a ser concluída e que, sem ainda explicar como, ele viveria para sempre no
coração dos que lá estavam[122].
A maioria, inclusive Judas Iscariote, acreditou que aquilo era uma
confissão de que o Messias finalmente assumiria o leme de tudo e salvaria o
cativo da Judeia. Tal vertente, embora correta sob certa perspectiva, era vista de
maneira diversa por alguns apóstolos, os quais acreditavam que fariam parte de
um novo governo que estava na iminência de ser instalado. Mas para Judas, caso
eles chegassem a Jerusalém com aquelas centenas de pessoas que os seguiam, os
sinedristas teriam que apoiá-los e declarar Jesus o novo rei da Judeia.
Pois o tempo, agora exíguo, mostraria o que de fato os esperava.

***

A casa de Lázaro era a mais vistosa de Betânia. Ele vinha de uma rica
família de agricultores e era amigo de Jesus desde a mocidade, sendo que ambos
haviam se conhecido cerca de quinze anos antes, quando o então jovem artesão
foi ter com o finado pai naquelas bandas, a fim de trabalhar na ampliação dos
jardins da casa do genitor de Lázaro.
Ele tinha duas irmãs, Marta e Mariah, esta última, desde havia muito,
encantada pelos predicados de Jesus, a quem, além de fisicamente atraente,
achava um exemplo de sabedoria. Aliás, a última vez que ambos se haviam se
visto não tinha sido muito auspiciosa, pois Mariah, talvez com intenções
próprias de uma mulher — casar-se — experimentou certa decepção ao ouvir, do
amigo do irmão, que a lida dele na Terra haveria de ser outra, que não a de um
homem ordinário.
Pois a fama de Jesus já havia repercutido naquelas bandas e, ao perceber
que ele não estava de todo errado em suas previsões, Mariah aceitou aquela
verdade e, sem deixar o orgulho feri-la, continuou a amá-lo do seu jeito.
Ao ver o velho amigo despontar por entre a colina das figueiras, Lázaro
deixou os seus afazeres e, efusivo, foi recepcioná-lo.
— – Há quanto tempo! — disse ao abraçar o rabi. — Espero que não
estejas apenas de passagem.
— Infelizmente, estou. E penitencio-me de não te ter visitado da última
vez que estive nas proximidades de Jerusalém há alguns anos, espero que me
entendas.
— Jesus, Jesus! A paz das tuas palavras já ecoou por aqui. E os
mercadores com quem falo sempre nos trazem boas novas, inclusive, das curas
que tens feito.
— Eu sou apenas um instrumento; quem cura é a fé de cada um —
esclareceu sem esconder a felicidade por lá estar.
Ao ver Jesus, Mariah arrumou os longos cabelos e tomou o rumo dele.
Mas nesse ínterim, ela observou quando Magdalena se achegou do mestre e,
carinhosamente, tomou-lhe a túnica que vestia a fim de limpá-la da poeira da
estrada e salpicá-la com um perfume que sempre trazia consigo.
Pois ao perceber o seu amado tomar as mãos de Magdalena e beijá-las
com visível afeto, Mariah recuou ao constatar que a mesma estava com a cabeça
coberta, o que poderia significar, pelos costumes de então, que ela e Jesus eram
casados. Disfarçando o próprio incômodo, ela se retraiu e chorou escondida,
afinal, como mulher, sentiu o toque da rejeição tocar-lhe o coração.
Lázaro mandou que fosse preparada uma grande ceia para os recém-
chegados, os quais, pela aparência, haviam experimentado os rigores de uma
longa viagem. Pois ao abraçar Marta, Jesus perguntou por sua irmã Mariah, tal
não sendo a resposta de que ela estava ali e, havia pouco, se mostrado ávida por
vê-lo.
Mas enquanto todos se acomodavam, Mariah se pôs sorrateiramente no
encalço de Magdalena, a qual, não tão longe dali, higienizava a túnica do mestre.
Percebendo a aproximação da jovem, a apóstola disse:
— Deus esteja convosco.
Fitando-a com crassa desconfiança, Mariah logo respondeu:
— E Ele está. Mas me diz, és tu a escolhida de Jesus?
— Perdão? — respondeu Magdalena, achando certa graça naquela
observação.
— Escolhida; a esposa dele — insistiu um pouco mais invasiva.
— Esposa? E por que dizes isso? — respondeu ainda sorrindo.
— Pelo modo com que se dirigiu a ele; e ele a ti. Além de que estás com a
cabeça coberta.
— Bem, vendo por esse lado; sim, eu sou esposa dele. — Mariah ficou
chocada com a resposta, irritada melhor dizendo. Mas Magdalena continuou. —
Aliás, além de mim, veja outra ali com o menino. O nome dela é Joana, e
também é casada com ele.
— Estás a me dizer que Jesus tem várias esposas? — insistiu incrédula.
— Digamos... que sim — anuiu calmamente. A irmã caçula de Lázaro
aparentou sentir-se mal e, buscando escora em algo, sentou-se num banco que
precedia o varal onde Magdalena havia estendido a túnica de Jesus a fim de batê-
la. — Tu estás bem? — indagou aparentemente preocupada.
— Eu só preciso de um pouco de ar, apenas isso — retrucou a moça.
Magdalena era uma mulher vivida e, embora pura, sabia ler os
sentimentos das pessoas. E, em Mariah, enxergou claramente o amor físico,
aquele que Jesus jamais poderia retribuir.
— Ele me rejeitou e agora tem duas; quiçá três mulheres! — ponderou
sozinha e sem compostura.
— Acalma-te, talvez eu não me tenha feito entender — asseverou
Magdalena. — Tanto eu como as outras assim chamadas “esposas” temos apenas
um compromisso espiritual, nada mais do que isso.
— Espiritual?
— Sim. Nós abdicamos das nossas vidas e vivemos para servir o
evangelho que ele prega, ajudando quem precisa e quem necessita.
— Então nunca se deitou com ele?
Magdalena riu envergonhada.
— Não! Nem com ele e nem com ninguém, pois a vida para mim não se
resume ao chamado amor físico. Jesus nos ensinou que o amor verdadeiro é uma
entrega ao próximo, sem vaidades e desejos outros que não os de meramente
servir. Por isso as mulheres que o seguem o amam como a um marido e o servem
como uma esposa, com humildade e principalmente respeito.
Mariah ficou muito envergonhada por ter dito aquelas palavras rudes e
pediu desculpas pela sua falta de visão e de sensibilidade. Magdalena então
ungiu o manto já limpo de Jesus com o perfume e o entregou a irmã de Lázaro,
para que ela própria o vestisse no rabi.
Entretido com as falas de Lázaro, Jesus demorou a perceber que, na porta
do cômodo onde estavam, Mariah surgiu trazendo a sua túnica, a mesma que,
havia pouco, ele havia entregue aos cuidados de Magdalena. Satisfeito em revê-
la depois de tanto tempo, ele se levantou e a recebeu com um abraço sincero, no
que ela então o vestiu e tomou o lugar que lhe cabia.
— Fico muito feliz em rever-te, Mariah!
— E eu, em continuar aprendendo contigo — respondeu ela.
Marta então trouxe algumas especiarias e se colocou a lavar os pés de
Jesus e dos apóstolos que os acompanhavam, ao passo que Mariah fez o mesmo
com Magdalena e Joana, as quais estavam com a mãe do mestre e alguns outros
peregrinos fora da casa.
— Mas me diz, que bons ventos te trazem até aqui? — perguntou Lázaro.
— Eu vim dar continuidade ao meu ministério; a Judeia precisa ser
pacificada.
— E pensas que conseguirás pacificá-la com tantos romanos por lá?
— Lázaro, uma semente não floresce do dia para a noite. Por ora, nós
viemos plantar, e não colher.
— Pois, no que eu puder ajudar, conta com a minha família.
— Eu sei disso, amigo, por isso eu vim ver-te.
— E fizeste bem — respondeu Lázaro que, ao esticar o braço para pegar
uma taça, sentiu um desconforto na região estomacal.
— Estás bem, meu amigo?
— Coisas da idade e do trabalho, mas nada que me impedirá de ainda
viver muito.
— Se é o que crês, que assim seja.
— E será! — brindou.
Pois a noite caiu, e todos se reuniram para ouvir Jesus, cujos planos
doravante incluiriam imiscuir-se em terrenos perigosos, como Jerusalém.
Percebendo que os que o seguiam eram convictos, Lázaro o advertiu sobre o
medo que as pessoas poderiam ter de apoiá-lo publicamente, afinal o peso do aço
romano fazia a diferença naquelas terras.
Mas Jesus, sempre sábio, ponderou:
— Quem acende uma candeia não tenciona cobri-la com um vaso, mas
sim pô-la num suporte para que todos vejam a luz que ela emana. E é essa
função dela, iluminar onde existe escuridão, pois não seria plausível escondê-la.
Quando alguém recebe e aceita a palavra de amor, acende-se uma luz na vida
dessa pessoa e, se Deus é a luz do mundo, quem o seguir não andará nas trevas.
Os presentes ficaram tocados com aquela nova, a qual transmitia
segurança e fé. Entretanto, mesmo os que andavam com Jesus, ainda teriam
medo do brilho dessa luz e, temendo pela vida material, haveriam de tentar
escondê-la.
Pois o dia logo nasceu, e a caravana seguiu o caminho que lhe cabia,
demorando cerca de dois dias para chegar aos arredores de Jerusalém. A
princípio Jesus começou a pregar nas cidades vizinhas, coisa que ele já havia
feito no início do seu ministério, e, aos poucos, pessoas de todos os lugares
vinham para assisti-lo. Entretanto, da mesma forma que os seus feitos chegaram
aos necessitados, eles também repercutiram no Templo e na fortaleza Antônia. E
o cerco contra ele, outrora tímido, começou a ficar cada vez mais perigoso.

***

Num grande cômodo fincado em uma esquecida fortaleza romana na


Germânia inferior[123], um homem aparentava estar visivelmente desolado. E, à
procura dele, a sua desesperada esposa percorria uma floresta sem fim, cuja
severa nevasca que caía lhe dificultava o trajeto. Após muito esforço — a
floresta parecia querer devorá-la —, ela conseguiu galgar as escadarias daquela
austera edificação, as quais, de forma absurda, pareciam não terminar.
Ao finalmente conseguir chegar no quarto onde o seu marido estava, ela
se assustou com a terrível cena que viu. Imerso numa banheira encharcada de
sangue e com os pulsos lacerados, aquele por quem ela procurava estava morto.
Desesperada, deu um grito que fez ruir o teto e, estando o mesmo prestes a
atingi-la, uma luz devastadora invadiu o cenário e a fez acordar.
Desperta de um pesadelo terrível, Cláudia Prócula se ergueu suada da
cama e, em razão do susto, também acordou o marido.
— O que houve? — indagou Pilatos um tanto assustado.
Ofegando em demasia, ela abraçou o marido e assim ficou por alguns
segundos.
— Nada... Apenas um pesadelo horrível...
— Pois, ultimamente, os tem tido com invulgar frequência, não é mesmo?
— ponderou, preocupado.
— Sim, é verdade — lamentou.
Cláudia se levantou e, de um jarro contendo água fresca e melissa[124],
bebeu de uma só feita todo o seu conteúdo, cujas propriedades calmantes haviam
se tornado uma constante em sua vida. Pôncio Pilatos estava preocupado, já que
a mulher estava dando sinais de que não estava bem, afinal, aquelas crises eram
constantes.
O prefeito ainda estava na cama quando escutou baterem na porta dos seus
aposentos. Estranhando a hora — embora já fosse manhã — ele se dirigiu até ela
e a abriu, ouvindo do seu ajudante de ordens que Longinus desejava reportar-lhe
um evento que certamente o agradaria.
Pilatos vestiu a sua toga e se dirigiu ao salão nobre, onde o referido
centurião o aguardava. Ao lado dele, com as mãos presas por cordas, estava um
homem alto, bem feito de rosto e corpo, o qual, visivelmente embriagado,
tentava manter o equilíbrio.
Longinus referenciou o prefeito e se adiantou:
— Senhor, desculpe acordá-lo, mas determinaste que fosses avisado da
prisão deste homem tão logo ela ocorresse...
Pilatos circundou o detido, cuja pompa lembrava a de um nobre, e disse:
— Ora, ora... Se não é Dimas, o “bandido galante”.
O conduzido nada dizia, mantendo-se apenas com a cabeça baixa.
— Ele foi detido numa taberna a caminho de Jaffa[125]. Um dos soldados
de folga lá estava e o reconheceu pela ostentação e pela gama de mundanas que
o cercavam.
— Mundanas? Sim, não poderíamos esperar outra coisa dele. Mas me diz,
meu rapaz, satisfaças minha curiosidade. Como conseguiste verter a filha do
sumo-sacerdote do Templo? — indagou em referência a queixa de Caifás.
— Digamos que eu tenha oferecido algo que ela jamais haveria de ter —
respondeu rindo baixo.
— E o que seria?
— Os favores de um homem de verdade, senhor — concluiu ainda
cambaleando.
Pois, ao se lembrar das pouco atraentes dádivas da filha de Caifás, a quem
havia conhecido sem muito júbilo, Pilatos achou graça naquela observação. E
sem mais nada dizer, acenou com a cabeça para que o levassem à prisão.
— Chama Caifás aqui — ordenou ao serviçal. — Creio que ele haverá de
apreciar as novas.
Percebendo que o prefeito aparentava estar um pouco tenso, Longinus
tentou ser prestativo.
— Estás bem, senhor?
— Eu não ando dormindo muito bem. Mas ao ensejo, darei um soldo extra
a esse soldado, afinal, ele me poupou de continuar a ouvir as lamúrias de Caifás
sobre a má sorte da filha — desconversou.
— Como queira, senhor.
Longinus saiu do recinto e percebeu quando um emissário de Pilatos
deixou a fortaleza para cumprir com o determinado. Ao saber da detenção,
Caifás se dirigiu rapidamente para a casa de ordens romana, onde, ao ser
formalmente recebido, apelou de forma dramática.
— Esse ousado bandido merece a cruz! Ele furtou o Templo e a virtude da
minha filha!
— Acalma-te, Caifás. Ele já foi preso, e o produto do seu crime,
recuperado. Pois lembra-te que, da mesma forma que tendes vossas leis, nós
temos as nossas. E enquanto esse tal ladrão não for julgado, o rigor das
masmorras romanas é o que ele terá.
O sacerdote se sentiu admoestado e determinou para que o chefe da
Polícia do Templo, um ortodoxo chamado Malco, arrecadasse os adereços
encontrados com Dimas, dentre os quais, várias joias rapinadas.
— Eu confio na justiça romana — respondeu Caifás.
— Pois saibas que ela é implacável com infratores desse escol —
retrucou-lhe o prefeito.
— E já que falas em infratores, faço uso do ensejo para trazer-te novas.
— Se falas sobre os zelotes, deves saber que temos sido severos com eles.
— Sim, já fui informado. Mas, desta vez, falo de um agitador; um
autointitulado milagreiro que tem circundado a cidade e sublevado o povo.
— Outro agitador?
— Esse é diferente. Muitos o têm seguido, pois ele alega falar em nome
de Deus, e isso pode ser um problema para o Sinédrio e também para Roma.
— E por que afirmas isso?
— Dizem que ele curou centenas de leprosos do vale dos proscritos. E em
razão disso, estão começando a chamá-lo de rei, de Messias.
Até então um tanto disperso, Pilatos retomou a atenção, afinal, aquela
expressão, Messias, era sinônima de “distúrbio” para os romanos.
— Toma isso como um alerta, pois eu soube que, embora pouco instruído,
ele é muito hábil com as palavras, de forma que exista até quem, no senado
judeu inclusive, dê certo crédito ao que ele diz.
— E por onde ele anda? — interessou-se.
— Pregando nos arredores de Jerusalém. E ele ainda se faz acompanhar de
uma comitiva um tanto estranha, composta por ex-publicanos e prostitutas.
— Ex-publicanos e prostitutas? Eu ficarei atento.
Caifás reverenciou o prefeito e deixou a fortaleza aparentemente
satisfeito, pois Dimas havia sido preso e certamente encontraria a morte pelos
seus inúmeros crimes. Mas sem perceber, Cláudia Prócula os espreitava por trás
das cortinas e, preocupada, escutou o colóquio de ambos. Algo então lhe veio à
mente: “Quem é esse tal milagreiro?”

***

Quando iniciou o seu ministério cerca de três anos antes, Jesus chegou a
estar nas adjacências de Jerusalém e, mesmo sem entrar na cidade, arregimentou
seguidores e entusiastas; dentre eles, alguns de notório prestígio, como
Nicodemus, um fariseu de grande projeção no Sinédrio.
Após ter com o rabi e ouvir palavras sutis sobre a transmigração da alma,
algo em que os judeus acreditavam, o magistrado confidenciou-se com um
amigo de longa data, o também sinedrista José de Arimateia, um rico mercador
que se interessou pelos princípios defendidos por Jesus. Sabedor de que ele
havia voltado à região, Nicodemus ficou feliz e preocupado ao mesmo tempo,
afinal, isso poderia significar problemas.
Os ataques constantes contra a legitimidade dos sacerdotes talvez
passassem desapercebidos se Jesus se mantivesse avesso à majestade de
Jerusalém. Embora fosse um dever dos membros do Sinédrio controlar e vigiar
os profetas, aquele artesão de Nazaré estava aparecendo demais — incomodando
seria a palavra certa — afinal, ao invés de ficar adstrito aos campos, ele havia
resolvido investir nas grandes cidades, onde as autoridades judaicas não teriam
como fechar os olhos.
Assim, diante dos milagres e da doutrina contraposta à hipocrisia dos
saduceus, os interesses de Jesus acabariam colidindo com os dos conservadores
do Templo e, silenciá-lo, passou a ser uma opção cada vez mais discutida entre
alguns juízes do Sinédrio. Some-se a isso que Roma não desejava ebulições,
entretanto, a mensagem de Jesus começou a ser vista com perigo, afinal um
reino estranho ao romano estaria próximo. O exemplo vindo de Moisés no Egito
havia causado certa prevenção ao Império e, para preservá-lo, certos limites não
poderiam ser ultrapassados.
Embora a distância propositalmente mantida de Jerusalém tenha
preservado o apostolado até então, a partir do momento em que aquelas terras
conquistadas fossem bulidas, tudo mudaria, afinal, até mesmo Herodes Antipas
já havia sido prevenido sobre o tal Messias de Nazaré.
Enfim, no curso do tempo os dias pararam nos parcos meses que
antecediam a tradicional festa da Páscoa em Jerusalém. E seriam naqueles dias
que o pré-ordenado plano de Deus finalmente teria a sua conclusão.

***

Acostumados a ambientes inóspitos, Lúcifer, Baalberith e Azeyzel


buscaram refúgio nos pontos mais altos das montanhas de Jerusalém, a fim de
acompanhar os rumos de Jesus e agir quando necessário. Como os anjos não
dormem, apenas descansam sem se desligar do espaço que os cerca, eles usaram
aquela oportunidade para reforçar estratégias e falar um pouco sobre o passado.
Curioso, mas até então ocupado com outros assuntos, Lúcifer finalmente
teve algum tempo livre para conversar com Azeyzel e saber das novas que lhe
haviam sido sonegadas.
— Queres dizer que um grupo dos nossos desceu à Terra e caiu pelas
mulheres?
— Sim, literalmente caímos — respondeu, sem perder o humor.
— Eu me lembro de uma delas, a tal Lilith — disse Lúcifer. — Embora
não fizesse o meu gênero, não posso negar que a tal era deveras interessante e, se
não fosse por ela, certamente o meu plano de degredar Adão do Éden não teria
dado certo.
— Pois então sabes como me senti. Elas são belas e fatais, Deus acertou a
mão ao criá-las.
— Bem, mas o que mudou após isso? — insistiu — Depois que Miguel e
os seus vieram até aqui caçá-los por ordem de Deus?
— Nada mudou — confessou-lhe a Potência. — Depois da prisão dos
vigilantes sobreviventes, o Céu foi apaziguado, afinal, o caráter cruel da nossa
pena serviu para desestimular levantes similares. E logo depois, Deus mandou
um dilúvio que arrasou a Terra matando a quase totalidade dos humanos.
— Mas uma questão ainda me perturba — ponderou Lúcifer. — Na noite
dessa tal tormenta, o Capitão Caliel invadiu os meus domínios e me surpreendeu
no momento em que eu me preparava para executar Beelzebu, a quem descobri
ser um traidor. Mas após livrar Nataniel, também mantido preso, ele me
suplantou e conseguiu escapar do Inferno levando Beelzebu desacordado. Por
acaso soubeste algo sobre o desfecho disso?
Azeyzel riu baixo e, na sequência, esclareceu.
— Capitão Caliel... O pequenino fez grandes estragos em vossas plagas
pelo que eu soube. Mas com relação a Beelzebu, saiba que eu o vi no Céu antes
de escapar; vivo, assim como nós. E assuntando entre os guardas, soube que ele
havia ido à prisão visitar Samael, que castrado e sem asas, também cumpre pena
em Vigilum. Ou seja, ele escapou das tuas mãos e ainda acabou redimido por
Deus.
— Redimido... — retrucou Lúcifer. — Eu ainda não entendi por que, no
término da guerra, quando ainda estávamos no Céu, Beelzebu atirou aquela
flecha no braço de Caliel para me salvar da morte, para no final me trair ao
revelar a nossa localização.
— Talvez pelo mesmo motivo que me levou a voltar à Terra em busca de
Layla-Li.
— E qual seria ele?
— O amor — respondeu a Potência se levantando.
— Eu não entendo esse tal amor ao qual fazes alusão, afinal, o amor
verdadeiro se materializava apenas na nossa devoção a Deus.
— Lúcifer, eu sei da tua ojeriza pelos seres humanos. E também da
batalha que engendraste em razão da criação deles, na qual, bem lembras, eu
lutei contra ti e ao lado de Miguel. Mas nisso, meu irmão, eu não estou do teu
lado.
— Tu és tão degredado quanto nós, Azeyzel — interferiu Baalberith que a
tudo escutava.
— Sim, eu sei. Mas tu e os teus queriam derrubar o Criador. E eu e os
meus queríamos apenas ser livres para amarmos e sermos amados, assim como
Deus.
— “Amarmos e sermos amados” — desdenhou Lúcifer ao arremedá-lo.
— Sim, e eu encontrei isso nos humanos. Essa mulher me amou muito, e
eu a ela. Mas nós, os anjos, burlamos a lei divina e bulimos com uma espécie
alienígena e, em razão disso, acabamos punidos — desabafou ao apalpar as
grandes escaras que tinha nas costas.
— E o que te faz crer que terás paz aqui na Terra? Afinal, pelo me que
disseste, a tal mulher que hoje ampara a alma daquela que amaste, fugiu de ti.
— É verdade. Mas talvez eu a consiga de volta em razão de algo que
ainda vos falta.
— E o que é? — insistiu.
— Esperança! — respondeu, entreolhando o velho confrade.
— Isso agora pouco me importa — desconversou Lúcifer. — Nós temos
que fazer com que Miguel falhe na sua missão e, pelo que venho percebendo nas
entrelinhas, ele talvez não tenha vindo liderar revolução alguma.
— E por que dizes isso? — interessou-se Baalberith.
— De início eu achava que Deus o havia nomeado para um embate bélico.
Mas diante das atitudes que ele vem demonstrando, creio que não é esse o
caminho.
— Então estás inclinado a mudar de estratégia?
— Em tese, não. Pois aconteça o que acontecer, nós temos que destruir o
corpo desse Jesus. Mas isso deverá ocorrer pelas mãos daqueles que ele tanto
assiste, pois só assim nós provaremos, de uma vez por todas, que o homem é
mais repugnante do que qualquer anjo caído.
— Então não deveríamos ter procurado os tais zelotes.
— Não, Baalberith, é aí que tu te enganas. Pois querendo ou não, eles
ainda nos auxiliarão em nosso plano. Eles e a tal nobreza judaica, cuja pureza,
permite-me dizer, esbarra, inclusive, na nossa.
Percebendo que Lúcifer e Baalberith haviam mudado o rumo da prosa,
Azeyzel interferiu:
— Peço desculpas, mas sou obrigado a confessar que não me apetece essa
vossa guerra contra os humanos.
Pressentindo que talvez Azeyzel os atrapalhasse pela falta de
comprometimento, Lúcifer se adiantou:
— Vais nos abandonar, irmão?
— Eu não posso agir tal qual esperais. Logo eu, que os ensinei a forjar
armas, a fermentar o vinho e até a enfrentar os nossos filhos, os nefilins.
Azeyzel havia vivido muito tempo entre os homens e, assim, deu a
entender que não teria coragem de prejudicá-los. Embora cruel, Lúcifer ainda era
um anjo e, em razão do laço de irmandade, não o forçou a agir:
— Bem, ainda que não te ombreies a nós, permite-me aconselhar-te.
A Potência, agora já mais próxima da fogueira que lá se consumia,
mostrou-se interessada.
— Pela descrição que auferimos em nossas andanças, o homem que
carregou a tua amada só pode ser um arcanjo, dado o seu porte físico avantajado
e o corte militar que envergava. E dessa ordem, sabemos de alguém que ficou
muito descontente com a tua fuga e, no afã de recapturar-te, veio à Terra a fim de
usá-la como chamariz.
Azeyzel ergueu o rosto e encarou firmemente o derrubado farol.
— Sim, irmão... Metatron! Encontra-o e acharás a tua amada.
O mestre-armeiro se levantou arisco, afinal ele viu coerência na tese de
Lúcifer. Azeyzel sabia que o Arcanjo Metatron carregava os seis livros da
história dos homens e, caso conseguisse rapiná-los, talvez pudesse tentar trocá-
los por Layla-Li.
— Pois sim, tudo leva a crer que o que dizes é crível.
— Então segue o teu caminho, e nós seguiremos o nosso. E se viermos a
nos cruzar novamente, que seja como irmãos que, em verdade, sempre fomos.
Azeyzel se convenceu de que, ao lado dos dois, iria lutar numa guerra que
não era sua. E vendo ali uma chance de trilhar rumo diverso, não desconsiderou
o sugerido.
— Lúcifer, eu acho que ainda não é tarde para desistirdes disso. Quem
sabe assim consigais o perdão de nosso Pai, da mesma forma que Beelzebu
conseguiu.
— Para nós já é um tanto tarde — respondeu Lúcifer vertendo a cabeça.
— Bem, desculpai-me se vos decepcionei.
— Não há de ser nada — retrucou Lúcifer ao vê-lo partir.
Baalberith ficou em silêncio e, esboçando um sorriso tímido, encarou
Lúcifer como se o instasse a refletir sobre o que Azeyzel havia lhes dito. Mas o
grande caído, ao perceber aquela manobra, logo disparou:
— E tu, não me olhes assim! — retrucou de modo a tentar manter uma
postura insensível. — Nós não amamos mulher alguma e ainda temos algo de
muito importante a fazer.
— O senhor é quem manda — lamentou Baalberith, ao erguer os braços e
constatar que nada seria capaz de obstar a sanha de Lúcifer, nem mesmo a parca
esperança de, quiçá, auferirem o perdão de Deus.
Capítulo 10
Sejam diferentes
DURANTE O BANHO, Cláudia Prócula notou que Verônica, uma das aias que
lhe eram mais próximas, a observava com o semblante preocupado. Intrigada, a
esposa de Pilatos fitou a dama de companhia e quebrou o silêncio.
— O que te aflige?
— Vossa mercê, senhora... — confidenciou.
— E por que dizes isso? — indagou enquanto buscava secar-se.
— Eu percebo que não está bem, afinal todas as manhãs eu recolho,
vazias, as taças daquela mistura de melissa que bebe.
— Essa tua aguçada sensibilidade sempre me denuncia, Verônica. E sim,
tu estás certa, este lugar não tem me feito nada bem — lamentou e, percebendo
que a criada esboçava uma fala, insistiu. — Queres me dizer alguma coisa?
— Senhora, eu ouvi falar de um homem que chegou há pouco nas
cercanias da cidade. E também soube que ele tem trazido uma mensagem de paz
e esperança para os que nele creem.
— E quem é ele?
— Dizem que ele vem da aldeia de Nazaré; é um artesão chamado Jesus.
— Jesus? — indagou, ao lembrar-se da conversa de Pilatos e Caifás. —
Eu ouvi o sacerdote judeu referir-se a ele como um milagreiro, um possível
Messias. Mas no que ele poderia me ajudar?
— Perdoe-me a impertinência, mas falam que ele cura graciosamente as
pessoas dos seus males, por isso eu pensei que a senhora talvez pudesse ir vê-lo
— ponderou com recato.
— Jesus de Nazaré... — repetiu. — Agora eu fiquei curiosa.
— Ele está ensinando nos vales que cercam Jerusalém, e amanhã irá
pregar junto às colinas que margeiam o Cedron[126].
Cláudia Prócula tinha a mente nítida e, diante da sugestão da ama,
vislumbrou um fio de esperança para os seus problemas, afinal, aquele homem
talvez lhe trouxesse algum acalento, senão, algumas respostas.
— Verônica, vai à casa da criadagem e providencia trajes do povo, mas
atenta!, nada que chame muito a atenção. Pois amanhã, eu e tu iremos até o
Cedron ouvir o que esse tal homem tem a dizer.

***

Tão logo amanheceu, o vale de Cedron já estava totalmente tomado por


pessoas vindas de todas as plagas, as quais, de forma uníssona, lá estavam para
ouvir as palavras daquele que tanta comoção estava causando entre o povo.
Somando-se a chegança da Páscoa que por si só já atraía milhares de fiéis
a Jerusalém, a fama de Jesus conseguiu arregimentar uma multidão ávida pela
esperança e pela liberdade outrora prometidas pelos profetas e, para onde quer
que se olhasse, viam-se pessoas chegando e acampando no decorrer da colina.
Era, enfim, um evento como jamais visto, um ajuntamento de romeiros unidos
numa só vertente de adoração ao aclamado Messias.
Saindo da cidade alta e aportando na baixa, Cláudia Prócula e Verônica
ganharam a porta de Teqoa[127] a fim de tomar o caminho das colinas. Pois tão
logo saíram dos limites de Jerusalém, elas foram interpeladas por um homem
que, trajando vestes civis simples, obstou-lhes repentinamente o caminho.
Assustada com a intervenção, Cláudia se tranquilizou quando, ao tirar o capuz
que tinha sobre cabeça, o estranho se revelou a elas.
— Longinus? — surpreendeu-se a dama romana. — O fazes aqui?
— Talvez o mesmo que Vossa Excelência. Eu vim em razão do carpinteiro
de Nazaré.
— E por acaso também tencionas ouvi-lo? — perguntou sorrindo.
— De certa forma, sim, senhora. Mas ao contrário de vós estou em missão
oficial, pois o vosso marido está preocupado com o tipo de doutrina que esse tal
homem possa estar difundindo.
— Ao que eu soube, ele fala apenas de paz — respondeu segura.
— Pois é exatamente isso que eu vim constatar. É cediço que a festa da
Páscoa está chegando e o prefeito não deseja distúrbios.
— Bem, já que estás aqui, eu me sentiria mais segura se viesses conosco
— disse ela, ao ofertar-lhe o braço. — Ou será que pretendes obstar a nossa ida a
esse inofensivo profeta? — ponderou sem perder o aparente bom-humor.
— Senhora, ainda que eu achasse isso prudente, este não seria o melhor
lugar para chamarmos a atenção da turba, principalmente porque eu, embora
armado, estou sozinho. Por isso, é melhor que ambas venham comigo, e sem
alardes — respondeu, ao respeitosamente aceitar o braço de Cláudia.
Os três então foram abrindo caminho até onde o povo se ajuntava, sendo
que o centurião-chefe da fortaleza Antônia, diante do elevado número de pessoas
que lá estavam, chegou a temer por um eventual reconhecimento da mulher do
prefeito, já que os traços tipicamente ocidentais dela destoavam dos das
mulheres judias, motivo pelo qual a orientou a cobrir a face.
Jesus ainda meditava no topo da maior colina que circundava o Cedron,
onde o sol quente refletia à pique. De repente, foi ele desperto pela presença
passiva de Magdalena, cujo perfume que lhe foi roubado pelo vento logo a
denunciou.
— Mirian de Magdala... — declinou pausadamente o santo rabi ao
experimentar aquele doce aroma que arremetia à paz.
— Mestre, desculpa a minha intromissão. Mas muitos já aguardam para
ouvir-te.
Jesus respirou fundo, abriu os olhos e se levantou devagar. Cruzou olhares
com Magdalena e foi passando por todos os apóstolos, até chegar em sua querida
mãe Maria, que carregava Caliel no colo. Ao vê-la diante de si, sempre
orgulhosa pela sua majestade nata, ele se aproximou e a beijou na testa, num
gesto de carinho e respeito. E após gracejar com o querubim, começou a descer o
monte. Pois ao fazer isso, cruzou com um ancião calejado pelas agruras da vida,
o qual, de pronto, o abordou.
— Mestre, nós estamos ansiosos...
— Ansiosos? — replicou Jesus ao abraçá-lo.
— Sim... — respondeu-lhe o velho. — E também em dúvida...
— E onde reside essa dúvida?
— É sobre o conceito de felicidade. Afinal, quem neste mundo sofrido,
pode se considerar verdadeiramente feliz?
Diante dos que lá estavam, Jesus passou a desfiar um discurso de
princípios para o acesso ao reino espiritual de Deus, os quais haveriam de
condensar as bases da doutrina da felicidade que, naqueles dias, apenas ele e os
seus apóstolos ensinavam.
— Falemos então sobre o que é ser feliz... — anunciou receptivo. —
Felizes são os humildes, porque deles é o reino de Deus. Eles pedirão e
alcançarão, pois o paraíso é para os simples de coração e para os recatados de
espírito; felizes são os que choram, porque serão consolados. E aqueles que
suportarem as suas provas e expiações, evoluirão; felizes são os que têm fome e
sede de justiça, pois serão saciados. Justo é Deus, e mais justa é a causa Dele;
felizes são os que são perseguidos por conta da justiça dos homens, porque deles
é o paraíso. Quem for odiado e perseguido por causa das coisas de Deus, será
certamente recompensado com a vida eterna; felizes são os mansos, porque
possuirão a Terra. E o manso não é o covarde, mas sim o paciente; felizes são os
pacificadores que procuram conciliar os seus irmãos, pois serão chamados filhos
de Deus; felizes são os que têm misericórdia pelo próximo, pois alcançarão a
mesma misericórdia. Os misericordiosos usam a bondade para discernir e
reconciliar, procuram o melhor no pior e, ao invés de condenarem, orientam;
felizes são os puros de coração, pois a pureza do coração fulmina o egoísmo e a
ganância; e, finalmente, felizes são os perseguidos por causa da palavra de Deus,
pois eles irão evoluir em espírito e serão recompensados.
Impressionado com a riqueza daquela resposta, um outro presente tomou a
palavra.
— Rabi, e como nós poderemos adquirir uma passagem para esse reino e
sermos felizes como dissestes?
— Ela não se compra com ouro ou com prata, mas com as atitudes que
tivermos aqui. Pois nem o amor e tampouco a caridade poderão ser corroídos ou
roubados.
Dentre os nobres presentes, Nicodemus e José de Arimateia assistiam à
palestra satisfeitos com as lições de Jesus, ao passo que alguns sinedristas, dentre
os quais, o próprio Caifás, escutavam com desconfiança.
— Jesus! — perguntou-lhe um outro fiel. — Como devemos lidar com a
justiça dos homens?
— Com equidade! Pois pelo modo que julgares serás julgado. E com a
régua que medires, serás medido. Portanto, não aponta para o teu próximo se
estiveres com o dedo mais sujo que o dele.
Àquela altura, os poucos que estavam em dúvida começaram a se
convencer da condição transcendental de Jesus, afinal, as palavras dele atingiam
em cheio os seus corações.
Cláudia Prócula, que a tudo assistia ao lado da ama Verônica e de
Longinus, foi imediatamente tocada pela pertinência do que estava ouvindo e,
livrando-se, em instinto, da cautela do centurião-chefe de Pilatos, adiantou-se no
terreno e aproximou-se de Jesus.
— Senhor, é certo que podes trazer alívio para os aflitos?
Jesus a segurou pelas mãos e, mirando-a caridosamente, respondeu sem
maiores delongas.
— Os aflitos que vierem até mim terão descanso; os famintos e sedentos
serão saciados. O que estiver nu será vestido; quem estiver preso será libertado e
quem estiver doente será curado. Pede e receberás, bate à porta e ela se abrirá.
E ao soltar as mãos da mulher, Cláudia, cuja cabeça latejava com invulgar
frequência, sentiu um alívio quase que instantâneo. Jesus sorriu e se afastou, ao
passo que a aia e o disfarçado centurião vieram afoitos assisti-la.
— Senhora, está bem? — perguntou Verônica aflita.
— Bem? Sim... Eu estou... — respondeu ainda atônita com aquela bênção.
— Senhora, o que fizestes não foi nada prudente — advertiu Longinus.
— Mas a minha angústia... Ela... — titubeou. — Ela sumiu!
Verônica a abraçou satisfeita, crente de que Jesus havia minimizado os
males de sua senhora. Longinus, então, teve a oportunidade de vê-lo mais de
perto, mas, ainda assim, não reconheceu o seu pequeno amigo do Egito agora
feito homem.
E foi então que um dos membros do Senado judeu que lá se fazia presente
por orientação de Caifás tentou provocar o orador.
— Rabi, qual, para ti, é o maior mandamento da Lei de Moisés?
— Ama a Deus e ao teu próximo; trata-o apenas como gostarias de ser
tratado. Essa é a verdadeira essência da Lei.
— E um romano? Ele também é o meu próximo? — insistiu com astúcia.
Nesse instante, o centurião Longinus atentou para a resposta que Jesus
haveria de dar.
— A lei do amor é incondicional — respondeu o nazareno. — Portanto,
reza por aquele que te persegue, seja ele romano ou não, pois se não souberes
amar, jamais serás amado.
— E como amar e não punir aquele que atenta contra a lei? — indagou
outro sinedrista.
— Eu não vim para revogar a lei dos profetas, mas para dar nova
interpretação a ela. E se punires com uma pedra, pela mesma pedra sereis
punido. Entendas que, fora da caridade, não existe possibilidade de salvação.
Cláudia Prócula ainda experimentava o êxtase do toque de Jesus, afinal,
ela agora procurava por uma dor que não mais sentia. Verônica viu-se satisfeita,
pois a vinda delas à colina mostrou que a fé naquele magnífico pregador não
havia sido em vão.
Sempre andando por entre a multidão que o cercava, Jesus continuava a
falar sobre a vinda de um reino de paz e de como o mundo poderia mudar se as
pessoas abdicassem da ambição em nome do humanitarismo.
Mas foi então que um jovem, cuja idade ainda o distanciava da vida
adulta, fez uma pergunta que, pela sua pertinência, daria azo a um pacto de fé
que muitos, a partir daquele dia especial, haveriam de fazer com o Eterno.
— Senhor? E como devemos pedir a Deus? Como devemos rezar?
Jesus suspirou e, dirigindo-se a todos, pontuou.
— Em primeiro lugar busqueis os vossos próprios templos. E eles não
estão nos edifícios ou nas acrópoles, mas em vossos corações. E não rezeis
publicamente apenas para que os outros pensem que os vossos corpos falam —
disse ele, ao fazer bem-humorada alusão aos movimentos físicos de devoção dos
sinedristas. — E adiante — continuou Jesus, agora mais sério —, agi apenas
como filhos de Deus e glorificai o santo nome Dele:

“Pai nosso...”
Aceitai o Senhor Deus como Aquele que acalenta e assiste, nas boas
e nas más horas;
“Que estais no Céu...”
Abdicai do apego a esta mera passagem e reconhecei a grandeza do
plano etéreo que nos deu a verdadeira existência;
“Santificado seja o Vosso nome...”
Adorai o Pai Celestial e O valorizai pela vida eterna que nos é
perene;
“Venha a nós o Vosso reino...”
Acatai o desígnio do amor, pois dele é feito o trono de Deus;
“Seja feita a Vossa vontade, assim na Terra ou mesmo no Céu...”
Abdicai da cobiça e dividi o que conquistastes com os que nada têm,
pois esse é o desejo do Pai;
“O pão nosso de cada dia nos dai hoje...”
Alimentai não apenas os vossos corpos, mas também os vossos
espíritos;
“Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos
têm ofendido...”
Sede justos com aqueles que vos devem, pois todos devem a Deus;
“Não nos deixeis cair em tentação...”
Resisti às seduções ilícitas dos maus espíritos obsessores;
“Mas livrai-nos de todo a mal...”
Sede fortes, sede diferentes;
“Amém!”

Esperando palavras de ódio e de revolta, Longinus desarmou o seu


coração ao constatar que o homem Jesus nada mais era do que um emissário da
paz, alguém que, quanto muito, poderia tão somente causar uma revolução na
crença e no amor, algo que nem mesmo os romanos cultivavam. Pois como ver
perigo nas palavras de alguém que clamava por amor aos próprios inimigos?
Enfim, o centurião-chefe ficou mais tranquilo, afinal, não enxergou
temores no pregador. Entretanto, o soberbo modo de vida dos que distorciam os
mandamentos de Deus — a grata parte dos saduceus, fariseus e escribas —
passaria a ser ameaçada, e chacinar as ideias de Jesus talvez fosse o melhor
caminho de preservar-lhes a bonança em vida. Mas mal sabiam eles, acabar com
o nazareno não mataria suas ideias, pelo contrário, as engrandeceriam.
Daquele dia em diante, muito sangue ainda haveria de correr, mas o
triunfo daquela semente, querendo os sinedristas ou não, mudaria o mundo para
sempre.

***
Susana e Metatron ainda estavam na grota dos leprosos e, com muito
esforço, aquela tentava insistentemente quebrar a barreira dos resistentes.
O vale dos leprosos, ninguém sabia, era um imã para os espíritos errantes
que haviam fugido do Guf, os quais, nos doentes que lá jaziam, encontravam
morada para toda a sorte de tristezas que carregavam. A negatividade que por lá
pairava servia de alimento para aqueles espíritos imundos que, não querendo
evoluir, não permitiam que os outros o fizessem.
Por ter passado seis períodos de tempo presa nas celas da Tesouraria das
Almas, Susana não sentiu o rigor daquele ambiente, o qual, para ela, lhe servia
de desafio. Metatron continuava arisco e atento, afinal, o astuto Azeyzel poderia
surgir a qualquer instante a fim de tentar atrapalhar os planos de redenção da
jovem e, nesse passo, um conflito entre ambos já era esperado.
Pois aquela jovem, outrora símbolo de libidinagem e de perfídia —
naquela e em outras vidas —, seguia firme no propósito assumido perante Jesus,
isto é, o de preparar os doentes que ali haviam ficado para serem curados quando
este regressasse de Jerusalém. Entretanto, Susana ainda não sabia que o seu
mestre jamais sairia vivo daquele lugar e, nesse passo, continuava firme em sua
missão. E de tentativa em tentativa, ela vergava um ou outro que ainda relutava
em aceitar a palavra de fé de Jesus, a qual, sozinha, ela passou a proclamar. Pois
ali, finalmente aprendeu o quão difícil é ajudar alguém que reluta em ser
ajudado. A batalha interna dela era árdua, pois muitos dos espíritos inquietos que
ali jaziam não tiveram dificuldade em reconhecê-la de suas outras vidas, ou
melhor, das suas outras mortes. A alma original de Layla-Li era escrava do
desejo carnal e, durante as seis passagens que teve pela Terra, experimentou toda
a sorte de iniquidades, as quais, cada vez mais, a amarraram num poço de
escuridão sem fim. E diante disso, não era incomum a ela, enquanto repousava,
ser visitada por espíritos obsessores que, visando roubar-lhe a energia,
personificavam tentações bem atraentes, afinal a abstinência sexual ainda a
perseguia. Ainda assim, Metatron tentava protegê-la, afinal, como arcanjo, ele
conseguia enxergar aqueles espíritos sorrateiros e, embora não tivesse como
mandá-los de volta ao presídio de Guf, os afugentava com a sua espada de fogo,
a qual aqueles seres temiam em razão da luz que dela surdia.
Pois a saga de Susana ainda não havia terminado. Mas a de Metatron já
estava prestes a ter um fim.

***

Após o sermão no Cedron, Jesus e os seus ficaram pelas redondezas de


Jerusalém na expectativa de nela ingressar. Mas logo na manhã seguinte, um
homem chegou a cavalo no acampamento dos peregrinos e, deveras afoito,
perguntou pelo mestre, o qual estava em companhia de José de Arimateia. E ao
ser para ele encaminhado, o afobado recém-chegado não se conteve em dar-lhe
uma nova desagradável, bem como transmitir-lhe um pedido.
— Mestre, eu me chamo Tamir, deves se recordar de mim, sou empregado
do vosso amigo Lázaro.
Percebendo que o homem estava por demais preocupado, Jesus se
aproximou e o recepcionou.
— Pelo que percebo, as notícias que trazes não são boas.
— Temo que não, senhor... — disse ainda arfando. — Eu vim até aqui a
pedido de Mariah; Lázaro adoeceu repentinamente e está inconsciente. Por isso
elas pedem para que sigas comigo a fim de salvá-lo da morte.
— Uma vida pela outra... — sussurrou Jesus, sem fazer os demais
entenderem. — Homem, volta para Betânia, eu seguirei para lá esta noite.
— Mas, senhor! — retrucou apreensivo. — Elas me orientaram a levar-te
comigo a cavalo, afinal, o tempo do meu mestre urge.
— A areia da âmbula relativa à vida de Lázaro ainda repercute —
ponderou Jesus. — Portanto, segue o teu caminho e anuncia que eu partirei ainda
hoje, mas o farei com as testemunhas de Deus que haverão de me acompanhar.
Frustrado pela recusa de Jesus, Tamir se viu sem saída e o obedeceu, ao
passo que o rabi olhou para José de Arimateia e o convidou para seguir viagem
consigo até Betânia. O juiz ficou receoso, mas extasiado ante a majestade do
amigo, arregimentou alguns empregados e anuiu.
Alguns dos discípulos ficaram no ajuntamento provisório sob a tutela de
Maria, já que Jesus e os seus apóstolos, acompanhados do juiz judeu e alguns
criados deste, tomaram, a pé, o rumo de Betânia. O rabi permaneceu
misteriosamente quieto durante a viagem e, sem revelar temor ou remorso,
seguia adiante até Betânia. Quando eles finalmente aportaram na divisa da
aldeia, exatos dois dias após a partida, eles perceberam que várias pessoas
pranteavam ativamente no espaço que antecedia os jardins da casa de Lázaro, o
que sugeria que as novas não eram alvissareiras.
Sempre sereno e seguro, Jesus abriu caminho e, de pronto, soube que o
amigo não havia resistido; havia feito a passagem na mesma noite em que Tamir
retornou da sua busca infrutífera. Ao ver o rabi chegar em circunstâncias que não
as esperadas, Marta deixou-se levar pela emoção e interpelou Jesus de forma
ríspida, como se a culpa pela morte do irmão fosse dele, em razão da sua
premeditada ausência.
Mariah tentou minimizar aquela situação amparando a desconsolada irmã
e, em silêncio, fitou Jesus. Este, sem perder o passo, perguntou a ela:
— Onde está Lázaro?
— Ele foi inumado numa gruta próxima daqui — lamentou Mariah. —
Agora é um tanto tarde para ele.
— Pois leva-me até a tal gruta — insistiu.
— Mas, Jesus, ele está morto! — respondeu.
— Mariah, aquele que crê na palavra de Deus não morre; não da forma
como se quer fazer ver — disse ele adiantando o passo.
Todos então seguiram para o sítio onde Lázaro havia sido colocado e, ao
lá chegarem, Jesus pediu para que a grande pedra que o cerrava fosse removida,
mas ninguém o obedeceu. Ele então se dirigiu ao local e, com a ajuda dos seus
apóstolos, removeu o pesado obstáculo. Em razão do forte odor pútrido que de lá
saiu, o rabi e os seus se afastaram um pouco, afinal, tudo levava a crer que um
cadáver ali estava.
E já estando de volta à presença dos demais, Jesus abraçou Mariah e
perguntou a ela:
— Tu crês em mim?
— Eu sempre acreditei, sabes bem disso.
— Pois saiba que o teu irmão, o meu amigo, ainda não foi ter com o Pai.
— O que dizes? Eu não compreendo — respondeu com lágrimas correndo
a face.
— Tem fé, apenas isso. Pois olha novamente para a gruta e chama pelo teu
irmão.
Marta era tão ou mais crente que Mariah, mas por ter sido deveras
apegada ao irmão — foi ela quem praticamente o criou — não se conteve e
jogou-se ao chão em lágrimas, afinal, aquilo pareceria ser um desrespeito à
memória de Lázaro.
— Vamos! Chama-o! — insistiu Jesus.
Presa ao sentimento que nutria por ele, a jovem então obedeceu e, sob as
vistas dos que lá se amontoavam, bradou o nome do irmão três vezes. E tal não
foi a surpresa de todos ao perceberem que uma silhueta repercutiu na porta
daquela cova, revelando uma forma que, em poucos instantes, ganhou a saída da
furna. Pois lá estava Lázaro, com o corpo inacreditavelmente preservado; em pé
e vivo.
A comoção foi indescritível, afinal, a grata parte dos que lá estavam havia
participado do enterro dele.
Mariah ficou inerte e caiu de joelhos. E ao erguer vagarosamente a cabeça
na direção de Jesus, disse a ele:
— Não há dúvida. Tu és o caminho; a ressureição e a vida.
José de Arimateia ficou boquiaberto e beliscou a si próprio para constatar
que não estava sonhando. Magdalena sorriu, assim como Joana, afinal, para elas,
Jesus era filho de Deus e capaz de operar qualquer coisa.
A repercussão daquele evento foi enorme e, como não poderia deixar de
ser, logo transpôs os limites do vilarejo de Betânia graças à língua dos inúmeros
que lá estiveram. Mas afinal, quem era aquele que ressuscitava os mortos? Dias
depois, todos saberiam.

***

Por estar abandonando os antigos vícios, Susana se afastava cada vez mais
das auras passadas, o que tornava mais difícil a sua localização. Azeyzel estava
obcecado em tê-la de volta e, ao experimentar uma leve sintonia angélica ao
norte — Metatron e os anjos carregadores disfarçados —, ele tomou o rumo
daquelas bandas a fim de dar continuidade ao seu plano e, por não ter mais asas,
o fez a pé e diante dos rigores da estrada. Pois ao lá chegar e estranhar a rudeza
do local, ele se pôs à espreita até localizar um foco que denunciasse a presença
dela, o que não tardou a ocorrer.
De longe, ele observou o acampamento levantado pelos anjos disfarçados
e, para sua surpresa, percebeu que, ao nascer do dia, Metatron surgiu ao lado de
uma jovem que, com o rosto escondido por um véu, havia ido buscar algumas
provisões. Ainda silente e sem despertar suspeitas, ele se fez em luz e pôs-se a
segui-los, até que os dois ingressaram no coração da Grota, onde desapareceram
numa das várias cavernas lá existentes.
A impetuosidade o impulsionou a adentrar naqueles domínios, mas a
prudência o obstou. Layla-Li era a força motora que o havia trazido à Terra, e tê-
la de volta era a sua obsessão. Mas expor-se de forma desavisada talvez fosse
algo pouco inteligente. Diante disso, ele decidiu tirar Metatron do jogo e, nesse
passo, arrebatá-la, mesmo que a força.

***

No suntuoso palácio de Herodes I, agora casa de ordens do prefeito


romano, Longinus estava diante de Pilatos para reportar o que tinha ouvido
durante a palestra de Jesus aos pés do Cedron. Já haviam se passado alguns dias
desde a ocorrência do édito, e o centurião-chefe, refletindo sobre tudo o que lá
ouviu e presenciou, temeu usar uma palavra errada para definir aquela pregação,
afinal, Jesus não lhe parecia uma ameaça.
— Ele falou apenas de paz, amor e fraternidade.
— E o que mais? — indagou o prefeito.
— Eu creio que mais nada, senhor.
— E ficaste quase uma manhã toda nas colinas apenas para ouvir isso?
— Não, senhor... — respondeu. — Ele falou sobre muitas outras coisas,
mas nada que escapasse desse trinômio que eu reportei.
— Bem, então eu não devo preocupar-me com ele?
— Creio que não, senhor. Ocorre que, entre os expectadores, eu também
vi alguns juízes judeus.
— E como eles se portaram? — interessou-se.
— Alguns se revelaram atentos e, de certa forma, simpáticos às ideias do
pregador. Já outros pareciam deveras incomodados.
— E, dentre esses incomodados, por acaso estava o sumo-sacerdote do
Templo?
— Sim, Caifás era um deles.
— Pois se, por ora, esse homem nada fez contra o império, não vejo
motivo algum para monitorá-lo, creio que esses judeus estão se preocupando
demais com ele. Enfim, dispensado, e caso fato novo surja, reporta-me
imediatamente — finalizou Pilatos, com um semblante mais sereno, afinal,
Cláudia havia melhorado de forma inesperada e repousava tranquila e em paz.
— Sim, senhor.
Longinus deixou a fortaleza Antônia um tanto confuso, afinal, as palavras
de Jesus estavam martelando a sua mente.
Ao voltar à sua morada na cidade, ele notou uma movimentação invulgar
no átrio de sua casa e, alertado pela irmã mais velha, soube que o jovem grego
Eliseu, aquele seu empregado tido como filho, havia acabado de cair de uma
elevação ao tentar consertar o telhado do curral e, em razão do tal infortúnio,
havia se ferido gravemente e estava inconsciente.
A história de Longinus e Eliseu era similar à do romano com o pequeno
Jesus no Egito. Numa de suas campanhas, ele encontrou Eliseu ainda bem novo,
oculto sob o corpo da mãe que havia sido morta numa investida romana no
estrangeiro. Mirrado e chorando baixo, ele atraiu a atenção do recém-nomeado
centurião, o qual, condoído com a má sorte do menino, sentiu-se responsável
pela sua condição de órfão e, desde então, o acolheu e o arregimentou na própria
família. Eliseu era calado e obediente, bem diferente daquele Jesus do Egito,
cujas estripulias eram correntes.
Chamou um médico conhecido, o qual, limitando-se ao que a ciência até
então conhecia, desacreditou o pobre. Pois lembrando-se do toque do artesão de
Nazaré em Cláudia Prócula, e da cura imediata dela, Longinus subiu no seu
cavalo e disse a irmã:
— Eliseu não vai morrer assim, eu prometo!
Em seguida, saiu em disparada, afinal, pelo monitoramento informal que
até então tinha feito, Longinus sabia que o rabi havia partido havia alguns dias a
fim de visitar um parente em Betânia. Cavalgou até o local onde os peregrinos
haviam estado antes do sermão da montanha e, já estando bem próximo do
destino, alguns metros antes, o seu cavalo se assustou com a repentina aparição
de uma pequena criança no meio da estrada, o que quase causou a sua queda da
montaria. Retomando as rédeas do esquivo animal, Longinus, que usava a veste
padrão da milícia romana, encarou a pequenina e bradou nervoso:
— Não sabes que é perigoso surgir numa via dessa forma? Como ficaria
eu em saber que feri uma pequenina assim como vós?
Pois logo atrás dela surgiu uma moça — Betseba —, que, sem demora, a
tomou no colo. Longinus as encarou desconfiado, pois algo de estranho lhe
chamou a atenção nelas.
— Estás procurando alguém, senhor? — indagou a maior.
— Sim, eu procuro pelo rabino de Nazaré, aquele que se chama Jesus.
Ao ouvir isso, Caliel fez menção de sacar o seu punhal — um romano à
procura de Jesus só poderia significar problemas — e, antes que outros
chegassem, talvez fosse melhor calá-lo depressa e ali mesmo. Mas Beelzebu foi
diligente e conteve o pequeno, respondendo de pronto ao cavaleiro:
— Ele não está mais aqui, Jesus seguiu viagem.
— E, por acaso, estás na caravana dele? — perguntou ao oculto querubim.
— Sim. Eu e minha irmãzinha somos parentes dele.
— Parentes... — repetiu intrigado, fitando as duas. — Nada temais. Eu
venho em paz a gostaria apenas de pedir um favor a ele. — Beelzebu não
respondeu de pronto e, ainda com Caliel no colo, aproximou-se de Longinus e
fixou-lhe o olhar, atordoando-o por segundos. De imediato, ele sentiu que as
energias dele eram sinceras e, mais ainda, conseguiu ver, de relance, o passado
do miliciano e, nele, enxergou Jesus feliz e ainda menino. Sem perceber a
investida, o centurião logo voltou a si e insistiu. — Moça, eu preciso muito falar
com ele. Mas como eu disse, nada tendes a temer, pois eu vim como homem e
não como um soldado romano.
Beelzebu assentiu e convidou-o a segui-lo. Quando os discípulos que
estavam no acampamento viram o centurião chegar, com Betseba e Chaya
montados na sela daquele enorme animal, entraram em polvorosa. O romano,
sereno, mas visivelmente preocupado, puxava a montaria pela rédea, ao passo
em que proporcionava àqueles dois anjos disfarçados uma experiência inédita:
andar a cavalo.
Maria, a mãe de Jesus, ficou receosa; afinal, ela guardava certo trauma dos
soldados romanos, pois, na sua mocidade, havia sido exaustivamente assediada
por um, Iulius Panthera, e, desde então, não os via com tanta tranquilidade. Mas
algo nele chamou-lhe a atenção. Ao perceber a crassa deficiência que ele tinha
no olho esquerdo, tal a arremeteu a uma lembrança havia muito esquecida. Ela já
havia o visto antes e, revendo as suas memórias, evocou um fragmento perdido
da sua vida, de um instante quando ela e o finado esposo deixavam o Egito na
companhia do pequeno Jesus e um jovem soldado protegeu José da agressão
iminente de outro romano, cujo cavalo havia sido involuntariamente abalroado.
E mais, que aquele mesmo militar havia abraçado o seu filho como se o
conhecesse e dele muito gostasse. Entretanto, as tais reminiscências foram logo
fragmentadas com os brados que anunciavam o retorno do mestre e dos seus
apóstolos, os quais, ávidos, traziam a nova já difundida de boca em boca de que
Jesus havia ressuscitado Lázaro.
Ao perceberem a presença daquele centurião romano no acampamento,
Pedro e Judas tomaram uma posição ofensiva no afã de protegerem Jesus. Mas
este, cuja memória jamais o traiu, de imediato percebeu que ali estava o velho
amigo Longinus, um pouco mais velho de rosto, mas ainda carregando os
mesmos traços gentis de vinte anos antes. Jesus estava fisicamente diferente e,
em razão da barba espessa e do nome comum que tinha, não despertou qualquer
lembrança no miliciano.
— Acalmai-vos, amigos — disse o mestre, ao ver Betseba e Chaya
ajeitados no enorme cavalo do oficial. — Aquele que ampara os nossos, já é um
de nós.
José de Arimateia ainda o acompanhava com os seus criados e, deveras
curioso, prestou atenção ao comportamento do rabi, cuja força e poder já o
haviam vergado. Pois sem se revelar — isto é, sem dizer que era o garoto peralta
do Egito —, Jesus tomou a direção de Longinus e, receptivo, ponderou com um
sorriso:
— Eu bem estou certo que essas duas nunca haviam subido num cavalo
antes — asseverou, ao acariciar o animal e fitar os dois querubins que lá
estavam. — Mas, enfim, o que procuras entre nós, centurião? — indagou, ao
reconhecer a sua patente militar.
— Senhor, eu asseguro que venho em paz, pois já te vi pregar nas colinas
do vale Cedron. E vim, não como oficial romano, mas, conforme já havia dito a
essas tuas duas parentes, venho como homem, quase que como um pai —
revelou, choroso. — Os demais ficaram em silêncio e impressionados com
aquelas palavras, afinal, elas vinham da boca de um alto oficial romano, cujas
crenças religiosas eram diversas das deles. — Por isso eu gostaria muito de
rogar-te um favor, afinal, não é segredo que tens curado aqueles que creem na
tua palavra.
— Pois então fala, abre o coração.
— Mestre, eu tenho um criado. É mais um filho do que um criado, ele é
órfão, e eu o adotei numa de minhas campanhas no estrangeiro. Pois há pouco,
ele sofreu um grave acidente e foi desacreditado pelos nossos médicos.
— Então queres eu que vá até ele e o cure? — perguntou Jesus, já
adotando uma posição proativa e dando alguns passos para frente.
— Não! — respondeu Longinus de modo a obstá-lo. — Não... — repetiu
novamente e de forma mais afável. — Eu sou um guerreiro, as minhas mãos
estão manchadas de sangue, e as mortes que eu carrego me tornam indigno de
receber-te em minha casa... — ponderou com a cabeça baixa.
— Pois, o que então desejas que eu faça? — perguntou Jesus tentando
fitar-lhe a face.
— Rabino..., como vês, eu sou um centurião-chefe, tenho ascendência
sobre mais de seiscentos homens. E se eu lhes der uma ordem, ainda que ela lhe
seja transmitida de forma indireta, eles irão cumpri-la. Portanto, eu vim até aqui
apenas pedir-te para dizeres algumas palavras, que dês uma ordem, e ele
certamente será salvo — concluiu, com uma lágrima escorrendo do seu olho já
cego.
Jesus não respondeu de pronto. Ele então se voltou para os demais
apóstolos e discípulos e, aparentando surpresa, torceu o lábio inferior para cima
e movimentou levemente a cabeça, de modo a estimular-lhes uma reflexão.
— Ouviram isso? — provocou-lhes. — Pois nem mesmo entre aqueles
que dizem pertencer ao povo de Israel eu havia visto tanta fé — asseverou sob
um Judas agora cabisbaixo. O nazareno se aproximou daquele centurião e,
segurando-o pelos ombros, revelou. — Tu és digno de qualquer coisa, pois o teu
coração, embora levemente turvo pelas vidas que já tiraste, é, em essência, puro.
Agora vai e retorna para tua casa, pois o menino grego estará na porta te
esperando, como sempre o fez.
Longinus ergueu a cabeça e, ainda impressionado com aquelas palavras,
ajudou Beelzebu e Caliel a descerem do seu cavalo e, com um sorriso que se
transformou em riso, subiu na montaria e agradeceu Jesus com uma saudação
tipicamente militar, um toque forte no peitoral da armadura, retomando, então, o
caminho para Jerusalém.
Maria, que a tudo assistiu, foi ao encontro do filho e o abraçou. Ela nada
disse sobre a lembrança que havia tido, mas sentiu que Jesus, em seu íntimo,
também o havia reconhecido.
Tão logo ganhou a via da sua morada, o centurião viu, de longe, o jovem
Eliseu no portão, como se absolutamente nada lhe tivesse acontecido. O rapaz
então segurou a brida do cavalo do amo, como desde sempre fazia, e sorriu para
ele. A irmã do oficial, impressionada com o ocorrido, interrompeu a cena e disse:
— Meu irmão, ele, há pouco, simplesmente se levantou, como se alguém
o tivesse tocado e lhe tirado a inconsciência.
Longinus desceu do cavalo, abraçou o jovem caridosamente e respondeu:
— E alguém, em verdade, o tocou. E foi o filho de Deus.
— Mas a qual deus te referes?
— Ao Deus verdadeiro, Ruana... O único; o legítimo — afirmou, seguro.
A partir dali o centurião haveria de encarar a sua vida de modo diverso.
Pelas mãos de Jesus, ele tinha acabado de se tornar um cristão.

***

Pois era manhã de domingo quando Jesus, já no alvorecer, tomou o


caminho de Jerusalém para finalmente ganhar a grande urbe.
Na pequena estrada que levava aos portões da cidade baixa[128], ele e a
comitiva de apóstolos foram surpreendidos por Betseba, a qual trazia consigo um
jumento, um animal de paz, que a seguia sem recalcitrar. E no lombo dele,
Chaya se equilibrava, efusiva. O querubim havia gostado tanto da experiência
que havia tido sobre o cavalo de Longinus, que, ao contrário daquele jumento,
era um animal de guerra, que fez questão de experimentar aquele jumentinho,
afinal, como celeste, tal era novo e prazeroso para ele.
— Mestre, eis aquele que te servirá de transporte. Pois, sobre ele,
certamente terás melhor visão dos que haverão de te receber.
Jesus sorriu e não recusou a oferta. Entretanto, a pequenina Chaya não
mostrou muita satisfação em constatar que teria que descer do animal e,
percebendo isso, o rabi não lhe frustrou a alegria e, com a pequena junto de si,
seguiu o caminho que lhe cabia, sempre guiado pelas prudentes mãos do
príncipe dos querubins.
Ao se aproximar de Jerusalém, a multidão correu para os portões da
cidade a fim de anunciar que Jesus, o mesmo que havia ressuscitado Lázaro e
arregimentado centenas de fiéis nas colinas do Cedron, estava prestes a ganhar a
cidade. Efusivos, os hebreus tomaram vários ramos de palmeira e,
chacoalhando-as no ar passaram a entoar, de forma repetida e intercalada:
— Messias, hosana, hosana[129]!
Ao ver Jesus montado no animal com uma criança de aparência inocente,
todos nele viram uma figura quase paternal, como se ele pudesse de, certa forma,
adotar toda a nação cativa da Judeia e dar a ela a derradeira liberdade. E em
homenagem a ele, alguns começaram a jogar suas capas ao chão, as quais, junto
às galhas, serviram de tapete para ele e a comitiva de apóstolos que alegremente
o seguia.
Entretanto, Jesus sabia que, naquela cidade, o sofrimento final iria lhe
visitar e, diante disso, verteu algumas lágrimas que, ante a euforia do povo,
passaram por todos despercebidas, menos para o oculto querubim que lhe fazia
companhia no lombo do jumento.
Percebendo que Jesus parecia ter o apoio da massa, a ala radical do
Sinédrio mostrou preocupação com o ocorrido e, de pronto, colocou alguns dos
seus no encalço dele. O exército romano estava sempre de prontidão para conter
qualquer sinal de levante, mas diante da exaltação pacífica até então verificada,
os soldados ficaram de mãos atadas.
Dentre a multidão, Barrabás e alguns zelotes seguiam devidamente
imiscuídos e, boquiabertos, constaram que o recém-chegado tinha o povo nas
mãos. Entretanto, a dúvida residia nas reais intenções dele, as quais, segundo
Lúcifer, eram nimiamente pacíficas.
Tão logo adentrou na cidade, Jesus desceu da montaria e passou a
abençoar os que o reverenciavam, sendo que, em meio a uma daquelas vias,
surgiu um homem tresloucado que se debatia entre as pessoas e expelia
secreções pela boca e nariz. Embora alguns pedestres tentassem detê-lo, ele
parecia estar tomado por uma força incontrolável, e gritando palavras
desconexas, foi na direção do rabi e tentou agredi-lo com um murro no rosto.
Mas antes que a mão cerrada daquele insano pudesse atingir Jesus, este a
segurou sem aparente dificuldade e, de forma a causar espanto, começou a vertê-
lo para o chão, como se aquela força maligna não conseguisse resistir à energia
do nazareno.
Vendo a inusitada cena, um saduceu bradou que Jesus fazia aquilo por
estar possuído por Belzebu[130], entidade considerada pelos sinedristas como um
grande demônio, um dos príncipes do Inferno. Ao ouvir tal brado, o verdadeiro
Beelzebu, que de demônio nada tinha, torceu os lábios e olhos para cima e
pensou consigo mesmo: “Deus meu, quem é esse humano obtuso para dizer tal
sandice?”. Caliel viu graça naquela assertiva do judeu e caçoou sadiamente do
seu príncipe, cuja saga e sina entre os homens havia sido objeto de inúmeras
lendas, todas elas desprovidas de segura base fática[131].
Quando o tal louco foi finalmente domado e voltou a si, Jesus mirou os
juízes e os escribas e bradou:
— Quem sois vós para falar em demônios, sem sequer saber o que são
eles? Pois este pobre estava apenas tomado pelos espíritos impuros, afinal, caído
algum tem poder sobre o homem, que não aquele que o homem dá a ele.
— E com que autoridade falas sobre demônios, galileu? — desafiou um
saduceu.
— Falo com a autoridade de Deus, pois, em nome Dele, eu expulso
aqueles que, fugidos das prisões inferiores, atormentam os cuja aura é fraca,
assim como a deste pobre.
— Blasfêmia! — urrou o judeu. — Como ousas dizer que fala em nome
do Eterno? E de mais a mais, essas tuas curas não passam de meros truques de
ilusão, afinal, trabalhas através do demônio, és um herege e um pecador.
Jesus ficou deveras irritado com aquelas acusações e, após ter trazido
aquele homem de volta a si, dirigiu-se aos seus acusadores e os cercou.
— Malditos sois vós, fariseus, saduceus e escrivães! Vós não passais de
guias cegos, pois violais o coração das leis de Deus. Olhai para si próprios, belos
por fora e corruptos por dentro. Vós não entrareis no reino dos Céus e também
não deixareis que ninguém o faça! Hipócritas! Serpentes! — concluiu, em
cólera.
Ao verem o comportamento agressivo de Jesus, os membros do senado
judaico ficaram ainda mais contrariados e, sem demora, haveriam de acelerar o
processo de conspiração para que aquele pregador fosse definitivamente calado.
Mas o mestre ainda tinha um trabalho pela frente e, desprezando-os, dirigiu-se
ao Templo.
Mas em meio àquela multidão, tal não foi a surpresa de Judas Iscariote, ao
ser interpelado por um dos velhos irmãos, o qual o convidou para uma conversa
reservada num dos becos onde o líder dos zelotes se escondia sem chamar a
atenção.
— Ora Judas! Pelo que vejo te reencontraste — disse Barrabás, ao
finalmente rever o sicário.
— Pode-se dizer que sim — anuiu sem pompas.
— E ele é o tal homem pelo qual procuravas?
— Eu já não sei bem se ele é, de fato, um homem. Mas ele tem a força
suficiente para suplantar quem quer que seja, neste mundo ou fora dele.
— Fora dele? — duvidou.
— O meu mestre tem habilidades extraordinárias, o seu poderio repercute
inclusive sobre os mortos — revelou. — E no tempo certo, ele finalmente será
coroado o rei da Judeia, e sobre os cadáveres dos romanos.
— Bem, mas pelo que eu soube há pouco, ele carrega apenas a bandeira
da paz — ponderou Barrabás.
— É aí que te enganas — discordou. — Por trás dessa benevolência,
reside o fogo da espada; ele mesmo me disse isso.
— Espada?
— Sim, Barrabás. Ele é justo e clemente como todo rei deve ser. Mas
também é forte e muito poderoso, como nenhum outro rei já foi.
— Estás sonhando. Eu o vi na praça, ele não passa de um pregador que
sequer saberia lidar com o peso de uma boa espada.
— Se não acreditas em mim, vai e fala com ele, eu te levarei — disse
Judas ao tomá-lo pelo braço.
Barrabás olhou, incrédulo, para os seus, mas ainda assombrado pelas
palavras que havia ouvido anteriormente do então disfarçado Lúcifer, decidiu ver
por si só quem era aquele tal homem e, na companhia de Judas, dirigiu-se ao
Templo, onde o rabi de Nazaré haveria de pregar.
Chegando ao pátio dos gentios[132], ele percebeu quando Jesus, enfurecido,
estava a derrubar as bancas dos cambistas e a abrir as jaulas onde os animais
vendidos para serem sacrificados estavam.
— Tirai essas coisas daqui! Não façais da casa de Deus uma casa de
dinheiros! — bradava, ao arremessar para o alto punhados de shekels e outras
moedas estrangeiras que eram trocadas, causando pânico aos vendilhões que,
previamente mancomunados com os sacerdotes, assistiam, passivos, aquela
inusitada investida contra o patrimônio que lá era escambiado.
— Ele é louco? — perguntou Barrabás a Judas, ao vê-lo agir daquela
forma.
— Não! Ele é o Messias – respondeu e, a exemplo de Jesus, também virou
uma banca que estava próxima, aumentando a confusão instalada.
Alertados pela atenta Polícia do Templo, os sinedristas se dirigiram ao
local da invocada balbúrdia e se depararam com Jesus e os seus, os quais, em
razão do caos instalado, deram azo para que as práticas comerciais lá
patrocinadas ficassem comprometidas. Caliel, que no colo de Beelzebu a tudo
acompanhava, achou graça na ação de Jesus e, livrando-se da cautela do seu
príncipe, passou a saltitar pelo átrio e a igualmente derrubar as mesas e cadeiras,
como se aquilo fosse uma mera brincadeira. E ao ver alguns bois libertos e
correndo, e neles perceber uma oportunidade de diversão e montaria, ele
esboçou voar instintivamente para domar um deles, a tempo de, a sua disfarçada
“irmã” perceber aquela imprudente manobra e o obstar de pronto, chamando-lhe
a atenção como se mãe dele fosse. Caliel ainda não havia se dado conta, mas a
sua convivência com as demais crianças o estava tornando numa, arisca e
indomavelmente travessa.
— É o tal Jesus novamente — balbuciou Caifás. — Esse homem é uma
ameaça.
— Ele vai comprometer todos os nossos negócios — argumentou outro
saduceu, preocupado com o que aquele movimento poderia causar na moral dos
mais de quatro mil romeiros que lá estavam.
— Precisamos calá-lo antes que os romanos coloquem soldados no
Templo — respondeu o sacerdote. — Pois se isso ocorrer, será o fim para nós.
Ao perceber que os altos sinedristas haviam chegado, Jesus estagnou-se e
os fitou, como se os desafiasse.
— Galileu! Com que intenção tripudias dos costumes sagrados do nosso
povo?
— Costumes? Vós agis nas entrelinhas, pois desde sempre, vos fartastes
nos lucros desses assim chamados sacrifícios. Deus quer apenas a misericórdia, e
não o sangue desses animais. E vós, usando o santo nome Dele, tão somente vos
embebedais nos lucros auferidos da fé do povo de Israel.
— E quem tu pensas que és para falar em nome Dele?
— Eu sou apenas um mensageiro, o portador do pacto que vós,
gananciosos que sois, quebrastes há muito tempo.
— Sacrílego! — gritou um escriba. — Se és tão poderoso assim, mostra-
nos ao menos um sinal.
— Queres um sinal? Pois então, destruí o templo! Destruí-o e eu o
erguerei em três dias.
— O Templo demorou quarenta anos para ser construído! Dizes que o
reerguerá em três dias? — retrucou o ortodoxo.
— Vê-se que nada sabeis das coisas de Deus. Destruí o meu corpo com as
suas mesquinharias; assassinai o meu templo, e ele então se levantará. Pois o
Senhor me deu autoridade para entregar e retomar a vida, e esta substituirá o
vosso Templo.
Nesse mesmo instante, José de Arimateia chegou e dirigiu-se ao sumo-
sacerdote Caifás, rogando para que este recuasse e não piorasse ainda mais a
situação, afinal, uma guarnição romana, atraída pela balbúrdia, aproximava-se
do palco. Percebendo isso, um dos juízes cochichou algo a Caifás, o qual, em
viva voz, bradou para quem pudesse ouvi-lo:
— Dize-nos então, já que anuncias ser o dono da verdade: crês ser certo
que paguemos tantos tributos aos romanos?
Era uma cilada! Vendo alguns legionários por perto, Caifás tencionava pôr
Jesus à prova diante do exército romano e, da resposta dele, talvez dependesse a
antecipação do seu fim.
Pois Jesus voltou-se aos expectadores que o cercavam e, do chão, recolheu
um denário[133] com a efígie de Tibério num dos lados. E ao sacerdote, perguntou
confiante:
— Digas de quem é o rosto que está nesta moeda.
— Daqui não consigo enxergar que moeda é essa — retrucou o sumo-
sacerdote. — Mas decerto deves estar te referindo à face de César.
Ao escutar o nome do rei, os soldados entraram em polvorosa, afinal, uma
prisão talvez tivesse que ser feita. Mas a todos surpreendendo, Jesus respondeu:
— De longe não vês? Não enxergas, pois estás cego pela cupidez! Pois
aqui está a face de César! E pela lei da Terra, dai a César o que é de César! E
pela Lei de Deus, dai a Deus o que é de Deus! — bradou ao arremessar aquele
dinheiro na direção do agora assustado grupo de sinedristas.
Diante do alvoroço, os acuados juízes judeus se retiraram sob o olhar
confiante do nazareno. Os soldados ficaram sem reação ante a obviedade
daquela declaração e, aproveitando-se da deixa, os apóstolos retiraram Jesus do
Templo a fim de levá-lo a um lugar que fosse menos hostil. E em meio àquela
agitação toda, Judas se adiantou e foi ter com Jesus:
— Mestre, eu gostaria que conversasses com uma pessoa. É um velho
amigo meu, talvez as tuas ideias possam se coadunar com as dele.
O rabi deixou aquele local às pressas e, numa via afastada, foi finalmente
apresentado ao bravio líder dos zelotes. Barrabás, estudando-o, iniciou o
colóquio:
— Foi-me dito que tu és um covarde. Mas, pelo que vi no Templo, tal
assertiva não corresponde à verdade.
— O temor não deve ser característica de um missionário, amigo —
respondeu-lhe Jesus já mais calmo.
— Eu senti força nas tuas ações — revelou, satisfeito. — E através de ti,
creio que possamos nos libertar do jugo romano.
— Mestre! — interveio Judas. — É chegada a hora de o povo segui-lo e,
assim, formarmos um exército para tomarmos Jerusalém e proclamarmos o reino
de Deus na Terra.
Jesus os fitou e, com seriedade, respondeu:
— Israel irá renascer. Mas não pela força da espada, e sim pelas mudanças
que o próprio livre-arbítrio dos homens irá operar.
— Não existe mudança que não seja feita pela força do aço — retrucou
Barrabás, ao sacar uma das espadas que carregava e apontá-la na direção de
Jesus, gerando uma inesperada tensão no ambiente.
Pois a todos ali surpreendendo, o nazareno fez um movimento rápido e,
sem que ninguém notasse, tampouco Barrabás, ele arrebatou a outra espada que
o zelote mantinha do lado esquerdo do corpo e, manejando-a com uma
extraordinária destreza, própria da de um arcanjo, cruzou-a contra aquela que lhe
era apontada e a arrancou das mãos do rebelde, fazendo-a rodopiar e cair fincada
no chão. Antes que o bandido pudesse reagir, Jesus deitou a arma que tinha em
mãos sobre o pescoço de Barrabás e o encarou por alguns segundos, pondo os
presentes em polvorosa. Ato seguinte, disse:
— Se matares pela espada; morrerás por ela.
Após afirmar isso, Jesus lançou a arma para o alto, e ela rodopiou a
própria altura, fazendo com que Barrabás, chocado, a pegasse ainda no ar pela
empunhadura.
— Pensa no que eu disse. E se tiveres senso, irás seguir-me e não
ameaçar-me com esse reles fragmento de metal.
Barrabás e alguns zelotes que o acompanhavam ficaram surpresos com
aquela cena inusitada e, reconhecendo que Jesus era especial poderoso, não
ousaram molestá-lo. Mas da mesma forma, não ousaram segui-lo.
Messias ou guerreiro? Leão ou cordeiro? Pois tais questões, cruciais e
também existenciais, estavam na iminência de serem descortinadas.
Capítulo 11
Conspiração no Sinédrio
VERÔNICA ENTROU DEVERAS AGITADA NOS APOSENTOS de Cláudia Prócula e,
sem demora, anunciou:
— Senhora! Jesus de Nazaré chegou ainda ontem à cidade.
— Jesus, aqui em Jerusalém?
— Sim! E o povo o aclamou como sendo o Messias. — Cláudia aparentou
preocupação ao ouvir aquela assertiva, no que a sua criada então a indagou. —
Algo errado, senhora?
— Eu não sei. Tenho ouvido alguns rumores; rumores de que a nobreza da
Judeia não o vê com bons olhos. E em razão da força política, temo que um
complô possa se armar contra Jesus, já que ele ousou entrar na cidade.
— Complô? — indagou confusa.
— Verônica, enquanto Jesus era apenas um simples pregador do interior,
ele era visto como mais um entre os desesperados. Mas ao ser aclamado como o
Messias, isso o torna diferente, o torna perigoso.
— Estou entendendo o seu ponto de vista.
— Tu sabes em que parte da cidade ele está?
— Nas ruas, dizem que ele tem ido de canto a canto levar a palavra. Mas
ainda se encontram acampados no Monte das Oliveiras, para onde sempre
voltam ao cair do dia.
— Pois então prepara-te. Esta noite, o meu marido terá um encontro
político com Herodes Antipas e, em razão da ausência dele, nós duas iremos até
esse acampamento, pois eu preciso falar com ele.
— Isso não pode ser perigoso, senhora?
— A vida por si só já é um perigo. E de mais a mais, sou devedora dele.
Verônica anuiu, deixou aqueles cômodos e se pôs a preparar a ida de
ambas ao encontro, não só de Jesus, mas de algo bem mais significativo.

***

Chamado às pressas na casa de ordens, Longinus apresentou-se a Pilatos,


o qual lhe cobrou explicações:
— Eu soube, há pouco, por um emissário de Caifás, que aquele tal
pregador do Cedron entrou ontem na cidade; o milagreiro que diz ser o Messias.
— Pois se me permite uma observação, senhor, eu creio que ele, de fato,
seja quem diz ser — respondeu na sequência.
— O que disseste?
— Esse homem, Jesus. Ele não é como os outros profetas que vimos no
passado, ele é diferente, profundo.
— Eu já havia percebido que tu ficaste intrigado quando do discurso dele
nas colinas. Mas daí a creres que ele possa ser o afamado Messias... — Riu
Pilatos.
— Senhor, eu insisto na tese de que a única ameaça que ele representa é
para o senado judeu. Jesus tem uma força incrível nas palavras, e isso certamente
incomodou o sumo-sacerdote, a quem sabemos não ser assim tão dado às coisas
do Deus deles.
O prefeito o observou por um instante e indagou desconfiado:
— Eu estou errado, ou pareces admirar esse homem?
— Vossa excelência não está errado. E quisera eu que todos os ditos
profetas fossem emissários de paz assim como ele, senhor.
— Longinus, se queres mesmo saber, nunca tive Caifás em boa conta, mas
tenho compromissos com o império, e ele é um aliado importante nesta terra
infeliz. Portanto, antes de mais nada, eu devo pensar no bem-estar da
administração local e, em razão disso, espero que esse tal Jesus não me crie
problemas.
O centurião estava tendo que administrar um enorme conflito dentro de si,
pois a servidão a dois senhores, outrora aludida por Jesus, não era permitida. E
desde que Eliseu havia sido curado, Longinus tinha abandonado a sua crença no
deus Marte e elegido Jesus como o porta-voz do Deus único, a quem, em
segredo, passou a cultuar.
— Bem, retoma o encalço dele — continuou o prefeito. — Eu não quero
que nada atrapalhe o festival da Páscoa, mormente, porque Antipas também está
em Jerusalém, e isso, por si só, já incomoda um grande número de judeus que
não o apreciam.
— Sim, senhor — anuiu.
— Agora, vai. Vai e cuida para que não tenhamos quaisquer incidentes.
O miliciano acatou Pilatos e deixou o cômodo cabisbaixo. Pois a mãe
Roma, ainda sem saber, estava prestes a perder um dos seus mais valorosos
filhos.

***

Já era tarde da noite quando duas estranhas se aproximaram do


acampamento de peregrinos no Monte das Oliveiras e, ao verem um pequeno
grupo de mulheres, uma delas disse de forma recatada:
— Saudações... Eu vim procurar Jesus.
— Pois então vos achegueis e vos aqueçais, ele logo falará com as
senhoras — respondeu uma das romeiras de maneira gentil.
Elas então se sentaram próximas a uma convidativa fogueira que aquecia
os que lá estavam e, enquanto aguardavam ser recebidas, uma das apóstolas se
achegou.
— Eu sou Mirian, mas todos me chamam de Magdalena. E vós, quem
sois?
— Eu me chamo Cláudia. E esta é uma amiga, Verônica — disse ao
referir-se a aia.
Ao perceberem pelos nomes e trejeitos que uma delas era romana, as
mulheres se entreolharam superficialmente, mas sem perder a sociabilidade.
Maria então ofereceu algo para que elas bebessem, no que ambas aceitaram sem
cerimônia. E logo a seguir, deu início a um colóquio:
— As senhoras vêm de Jerusalém? — perguntou a virgem.
— Sim — respondeu a esposa de Pilatos. — Nós não somos judias como
podes perceber, entretanto, somos crentes aos ideais do rabi de Nazaré. Por isso,
eu espero que não nos temais ou façais mal juízo de nós.
— Filha, todos os que procuram a palavra de Deus são bem-vindos —
esclareceu.
— Obrigada, senhora — respondeu Cláudia vertendo aquela bebida que
lhe havia sido ofertada, uma mistura de mel e vinho quente, cujas propriedades
eram calmantes.
Mirian e Joana ficaram muito curiosas com a presença daquelas duas,
afinal, não era comum que os considerados gentios fossem em busca de Jesus,
mormente num momento inusitado como aquele.
— As senhoras devem estar confusas com a nossa presença. Eu... —
recalcitrou. — Eu sou a esposa do prefeito romano, Pôncio Pilatos — esclareceu
Cláudia, abaixando de vez o capuz que cobria os seus belos e trançados cabelos
louros. — Mas garanto que venho em paz.
As mulheres da comitiva mostraram-se surpresas e, antes que pudessem
dar uma resposta, fosse ela qual fosse, Jesus surgiu repentinamente e disse:
— Que a paz de Deus esteja convosco! Por acaso, desejais falar comigo?
Cláudia ainda sentia a força daquele toque que a havia libertado de suas
dores e, ao ver Jesus diante de si, achegou-se dele e beijou-lhe a mão.
— Senhor! Peço-te desculpas pelo adiantado da hora, mas eu creio que
não teria outra oportunidade de vir até aqui.
— Pois diz; abre o coração.
— Há até bem pouco tempo, eu era uma mulher doente e, graças a ti, me
livrei da angústia e da dor que me perseguiam. E por isso, desde aquela
magnífica palestra que deste no vale do Cedron, eu sou tua devedora.
— Nada deves a mim, afinal, o que cura é apenas a fé de cada um.
— E foi em nome dessa mesma fé que vim até aqui. Eu já havia adiantado
às suas discípulas que não sou judia, mas romana. E mais, venho da casa de
ordens da cidade, onde estou hospedada com o meu marido, Pôncio Pilatos.
Jesus ouvia a tudo atento, sem demonstrar qualquer espanto diante
daquela revelação.
— Eu não posso me demorar por aqui, mas rogo para que redobres
cuidados, pois eu vi o sumo-sacerdote judeu queixar-se de ti ao meu esposo. E
diante disso, temo pela tua sorte, mormente por estar se imiscuindo no terreno de
ganhos deles.
— O que me conta não é novidade, afinal, eu desafiei a autoridade dele
perante o povo. Homens como Caifás foram os responsáveis pela minha missão
neste plano, pois eles distorceram a palavra de Deus e se tornaram escravos da
ganância. Eu te agradeço muito, mas o destino que me cabe não pode ser mais
mudado.
Cláudia Prócula não entendeu ao certo aquele desabafo. Mas ainda assim,
sentiu que havia tirado um peso da própria consciência, afinal, Jesus não poderia
ser pego de surpresa. Entretanto, os caminhos ditados por Deus já haviam sido
traçados e, naquela semana, uma nova visão de fé surgiria entre os homens.
— Pois seja, rogo-te que tenhas cuidado. E no que depender de mim,
terás, hoje e sempre, uma fiel seguidora — finalizou a dama romana.
Jesus tomou novamente as mãos de Cláudia e as levou ao rosto, num claro
gesto de gratidão. A esposa de Pilatos e Verônica retomaram o caminho da urbe
com o sentimento de dever cumprido, mas ainda assim, não poderiam mudar o
desfecho daquela história, cujos dias que se seguiriam haveriam de escrevê-la
com penas encharcadas de sangue.

***

Judas ainda estava impressionado com o que tinha visto o mestre fazer
com Barrabás. “E que espadachim ele era!”. Contudo, sua mente ainda estava
aflita sobre a real finalidade dos planos de Jesus. Que uma revolução viria, isso
era bem óbvio, mas as condições dela é que intrigavam o velho zelote.
Jesus passou a terça-feira pregando nas imediações do Templo e, vigiado
pelos sinedristas, parecia ignorá-los. Fazendo parte das plateias, Judas parecia
perdido e disperso, afinal, martelava-lhe a mente uma questão: “Que ‘espada’
seria aquela que o seu mestre haveria de levantar?”.
Pois foi no final da tarde daquele dia que Judas, escorado numa das
pilastras da santa fortificação dos hebreus, foi interpelado por um estranho que, a
certa distância, também assistia à palestra de Jesus.
— Ele é um ótimo orador, pois não?
Ao se virar para o interlocutor, Judas percebeu que ele estava
acompanhado de outro e, pelas vestes sujas que usavam, pareciam ter vindo do
deserto. Entretanto, a sua nova missão de vida não mais permitia julgar alguém
pelas aparências e, percebendo que eles tinham feridas nas mãos, tirou uma
moeda de prata da bolsa e a ofertou ao dito sujeito, cuja voz rouca e grave
parecia clamar por uma esmola.
— Agradeço-te pelo gesto — respondeu o estranho ao aceitar o dinheiro.
— Eu e meu pobre irmão não temos qualquer fortuna em vida, mas fico grato em
saber que os homens ainda amparam uns aos outros. — Judas não deu muita
importância para a fala daquele sujeito e, esboçando deixar o local em que
estava, teve o braço segurado. — Mas, por favor, espera... — disse o forasteiro a
fim de obstá-lo. Pois ao voltar o rosto para o pretenso mendigo, talvez
tencionando admoestá-lo pela liberdade, Judas cruzou olhares com ele e ficou
magnetizado. E diminuindo a velocidade dos seus movimentos, acatou o
solicitado e, aos poucos, foi voltando para onde estava. — Eu te tomarei apenas
alguns minutos, nada mais do que isso — asseverou o andarilho que, por trás
daquela capa escura, escondia o combalido serafim caído que ainda espreitava o
nazareno.
— O que queres de mim?
— Eu somente havia dito que ele é um bom orador. Concordas comigo?
— Sim... — respondeu um tanto confuso. — Ele é.
— Mas pelo que senti ao te tocar, as tuas energias não se contentam
apenas com meras palavras, não é mesmo?
— Talvez... — disse ainda cismado.
— Senti também que és um nacionalista fervoroso, cuja fé é enorme. E a
tua sede por liberdade, também. Mas tu bem sabes que não serão ações pífias
como essas que destronarão os romanos.
— E o que queres dizer com isso?
— Estou a dizer que tu és o único que pode forçar Jesus a estabelecer o
reino de Deus na Terra.
— Forçá-lo?
— Sim! Embora fale apenas de paz, ele certamente mudará de ideia caso
sinta o peso do aço romano no próprio pescoço. E poderoso que é, erguerá o
braço e destruirá todos eles! — asseverou convicto. — Entretanto,
voluntariamente, sabes muito bem que ele jamais fará isso.
— Talvez tenhas razão — retrucou com certa decepção.
— Pois então. O teu mestre e o povo cativo precisam de ti. E o momento
atual é propício, pois, se Jesus liderar um contra-ataque, os milhares de romeiros
que estão em Jerusalém tomarão o partido dele, e a Judeia voltará para as mãos
dos seus legítimos donos. E para isso, a tua lida será decisiva — desafiou,
esboçando ir embora.
O tal estranho, acompanhado de outro, deu as costas a Judas e o deixou
ali, confuso com tudo o que havia ouvido. Pois, cansado da pouca ação e
contrariado com o desfecho do colóquio de Jesus com Barrabás, ele acatou
aquela ideia e passou a regá-la na mente.
Mas de outra banda, atento a tudo o que lá ocorria, um homem misterioso
seguia à distância os passos de Jesus desde que ele havia chegado a Jerusalém.
Vindo originalmente do sul do continente africano, aquele enigmático viajante,
cuja pele manchada de rubro destoava das demais pessoas, apoiava o peso do
próprio corpo sobre um antigo cajado ainda sujo com o sangue do primeiro
inocente que a Terra havia chorado. Pois ali também estava, atento ao
cumprimento de profecias que remontavam a séculos, o segundo homem
nascido, aquele que, na figura de Jesus, talvez encontrasse o perdão que desde
antes do dilúvio universal ele incansavelmente buscava.

***

Era manhã de quarta-feira, quando o alto conselho de magistrados do


Sinédrio se reuniu extraordinariamente nas suas suntuosas dependências.
Detentores do múnus de administrar a justiça entre os hebreus desde os tempos
de Moisés e, no mesmo passo, impedir revoltas, os juízes judeus eram os
legítimos intérpretes dos ditames da Torá[134] e representavam o povo dominado
perante a imposta autoridade dos romanos.
Embora titulassem a nobreza sacerdotal de uma cultura religiosa
extremamente antiga, era certo que nem todos os setenta juízes do Sinédrio eram
fiéis ao verdadeiro espírito da Lei de Deus, afinal, homens que eram, a
falibilidade os visitou no ato em que alguns se deixaram contaminar pela cobiça
do dinheiro fácil que advinha da exploração do Templo. Exceções em verdade
existiam, mas infelizmente elas eram minoria e, ao menos em Jerusalém, o
destino dos judeus estava nas mãos de homens muito pouco comprometidos com
a caridade.
Assim, embora notáveis como Nicodemus e José de Arimateia tivessem
boa voz no senado judeu e contrabalançassem a visão rude e conservadora da
maioria, era certo que a grata parte daqueles juízes era comprada por Caifás e,
embora privados de sentenciar processos cuja pena fosse a morte — os romanos
foram sábios em retirar esse poder do conselho judeu[135] —, os sinedristas
tinham irrestrito poder sobre a justiça política, civil e criminal de menor porte.
Mas naquele dia, a reunião tinha um propósito, afinal, a economia do
santuário estava sendo arranhada pelas incandescidas investidas de Jesus de
Nazaré.
— Ele não é o Messias, tampouco um rei — bradou o sumo-sacerdote. —
Esse homem é um farsante, como muitos que pululam pelas redondezas —
concluiu, sob o aplauso de muitos.
— Sim, Caifás — concordou um nervoso saduceu com os olhos
esbugalhados. — E usando o santo nome do Eterno, esse curandeiro profissional
vem realizando truques mágicos que muitos acreditam ser milagres.
— Profissional, irmão? Que eu saiba, ele jamais cobrou pelos seus
préstimos — interveio Nicodemus, no afã de tentar desqualificar aquela vil
assertiva lançada contra Jesus.
— Mestre Nicodemus, é de conhecimento expresso deste senado, que o
senhor já assistiu a várias palestras desse tal Jesus — disse Caifás. — Aliás, eu
mesmo já o vi pregar. Mas nós, legítimos representantes do povo judeu, não
podemos compactuar com as ofensas que ele tem lançado contra este conselho, e
mais, contra nós, os nobres que o representam por vontade de Deus.
— Sim, meu caro sumo-sacerdote, eu, de fato, já tive o privilégio de
conversar com ele por várias vezes. Mas nós temos que concordar que as
palavras dele atingem os nossos corações. Elas trazem conforto, esperança e
pureza. E o que isso tem de errado diante dos olhos do Altíssimo?
— Senhores, senhores! — apelou José de Arimateia. — Nós não podemos
esquecer que, antes de mais nada, Jesus de Nazaré é nosso irmão, afinal, ele
também é judeu.
— Ele é um blasfemo, isso sim! — insurgiu-se outro juiz. — Pois é certo
darmos guarida a um “irmão” que se intitula falsamente “filho de Deus”?
Nicodemus caminhou para o centro do senado e ponderou:
— Todos aqui estão preocupados em acusá-lo, mas muitos sequer se
deram conta de algo que suplantaria qualquer discussão que pudesse ser travada.
— E o que seria, Nicodemus? — insistiu o mesmo saduceu.
— Que esse mesmo homem, o nosso irmão Jesus, talvez seja o Messias
que tanto aguardamos — insistiu tentando sensibilizá-los.
— Sim, pois saibam que eu vi, com os meus próprios olhos, Lázaro de
Betânia se levantar do leito de morte diante de um simples comando dele —
completou José de Arimateia.
— Tolice! — retrucou um dos senadores. — Aquilo não passou de uma
encenação motivada por substâncias medicinais que causam um aparente efeito
de morte, como muitas vezes já vimos pelo interior.
E diante daquela afirmação — a de Jesus talvez ser o Messias —, os
sinedristas mais radicais se ergueram afoitos, e uma balbúrdia generalizada se
instalou, a ponto de a própria Polícia do Templo ficar temerosa com a reação dos
seus gestores. E foi então que Caifás, astuto que era, levantou os braços e tratou
de arrefecer os ânimos:
— Mestre José, que esse jovem galileu tem características extraordinárias,
isso é inconteste; e que ele aparenta ser um mago deveras habilidoso, também.
Mas quais as provas concretas de que ele é quem diz ser?
— Sumo-sacerdote Caifás, eu sei o que vi, e o que vi já me basta. Mas a
verdade é que o nosso povo está dividido. E quanto a Jesus, todos sabem o que
penso dele, o homem é um exemplo de virtudes e sabedoria e, por isso, eu ainda
não me convenci de que ele não é quem alega ser.
Diante dessa assertiva, muitos outrora ávidos, calaram-se e, em pequenos
grupos, passaram a debater qual haveria de ser a posição oficial do Sinédrio. E
após muito confabularem, coube a Caifás, o qual tinha o partido saduceu
comprado, influenciar a conclusão que chegariam.
— Irmãos, a maioria de nós acredita que as ações desse homem são
nocivas não apenas para nós, mas também para a tradição judaica, pois se ele
continuar a provocar distúrbios por onde passa, certamente os romanos irão
intervir de forma violenta e, no final, a nossa própria gente estará em risco.
Diante disso, na qualidade de guardião da paz e da integridade do povo hebreu,
hei de concluir que uma única vida não pode comprometer a de toda uma nação.
Intrigados com aquele parecer, Nicodemus e José de Arimateia se
retiraram com outros poucos, afinal, a vergonha tinha ido visitar o conselho. Ato
seguinte, e doravante se sentindo fortalecido, o sumo-sacerdote chamou Malco,
chefe da Polícia do Templo, e secretamente ordenou a ele:
— Detém Jesus antes da festa da Páscoa, afinal, nós não queremos
revoltas. E se o encontrares durante o dia, providencia para que ele seja
apresentado na casa do mestre Anás[136] apenas à noite, onde as “formalidades”
não terão tanta voz.
— E quanto aos discípulos dele?
— Não nos interessam por ora. Se reagirem, usa dos métodos que julgares
necessários. Mas Jesus, nós querermos vivo.
— Sim, senhor — anuiu. — Contudo, existem boatos de que alguns
zelotes andam com ele. Diante disso, talvez exista uma possibilidade de
enfrentamento.
— Zelotes... — interessou-se Caifás. — Seria interessante se nós
conseguíssemos persuadi-los com uma espécie de pantomina — disse,
gesticulando maliciosamente com as mãos. — Uma que os fizesse acreditar que
apoiaríamos uma revolução armada contra Roma, objetivo principal deles.
— Se o senhor determinar, talvez nós consigamos encontrar alguém
disposto a colaborar.
— Faz isso, tens a minha licença... E, Malco, ajas com discrição,
principalmente com relação aos romanos.
O encarregado da Polícia do Templo venerou o sumo-sacerdote e, na
companhia de alguns homens de confiança, retirou-se rapidamente. Cabia-lhes,
agora, encontrar as suas presas, onde quer que elas estivessem.

***

Descendo apressadamente as extensas escadarias da morada do Eterno, o


Anjo Gabriel envergava uma expressão séria. Recém-despachado por Deus, ele
tinha auferido a nova de que, finalmente, deveria descer à Terra a fim de levar
uma palavra de acalento ao irmão Miguel, cujo avatar estava prestes a
desencarnar.
A passagem dele seria deveras tormentosa e, com o sacrifício, o pacto
Divino com os homens seria renovado. Gabriel tinha uma ligação muito especial
com os seres humanos, principalmente com a família de Jesus, a qual ele havia
guardado por um longo tempo. E ao ver a conclusão dos planos de Deus se
avizinhar, a felicidade e a saudade vieram visitá-lo, saudade de um tempo em
que havia se aventurado num mundo distante e onde ele fez a diferença na vida
de alguém.
Por ordem expressa do Altíssimo, grande parte das legiões angélicas
estava se movimentando na direção do castelo, afinal, o príncipe-primeiro dos
arcanjos estava para retornar em breve e uma recepção digna dele se fazia
necessária. Fora isso, Miguel haveria, doravante, de ostentar um outro título que
não apenas o de marechal dos arcanjos, visto que ele se sentou ao lado direito de
Deus e, nessa qualidade, o seu papel agora certamente seria outro.
Some-se a isso que não apenas Miguel era esperado, mas também outro
príncipe-primeiro, Beelzebu, e outros celestes que compunham aquela
importante missão. Mas serem aguardados não significava que eles retornariam,
pois o único que tinha a passagem garantida era o grande guerreiro que
personificou o filho de Deus, afinal, os outros foram voluntários e, assim,
poderiam ou não ter êxito em suas lidas.
Enfim, tudo levava a crer que o Céu entraria em festa, pois o maior anjo
desde Lúcifer era aguardado com ansiedade. Mas até que isso acontecesse,
muitas desgraças ainda ocorreriam. E dessas desgraças eclodiriam o destino de
muitos, para não dizer, de todos os implicados naquela saga de vida.
Pois Gabriel despediu-se de alguns querubins da Guarda Negra e,
acompanhado de um arcanjo especialmente destacado, o último dos quatro
voluntários que ajudaria Miguel, abriu as asas e se lançou no olho da greta de luz
que os levaria ao mundo dos homens. E nele, eles permaneceriam, até que o
plano de Deus fosse efetivamente cumprido.

***

Ciente de que a sua missão estava prestes a terminar, Jesus reservou a


quarta-feira para ficar junto aos seus e, ao cair da tarde, recolheu-se mais cedo,
pois alegou que precisava repousar. Antes disso, despediu-se da mãe e pediu
para que ela e alguns peregrinos retornassem a Betânia, onde Lázaro lhes
hospedaria com maior conforto.
— Estou muito orgulhosa de ti, filho, afinal, mudaste a forma de muitos
verem a vida no mundo. E depois disso, certamente nada mais será como antes.
— Orgulho tenho eu de ti, que perseverou para que eu me tornasse o
homem que hoje sou. E tudo isso devo a José e a ti, minha amada mãe — disse e
a abraçou.
— Eu nada mais fiz do que otimizar a vontade de Deus, a Quem sou grata
por ter me dado o privilégio de, entre muitas, parir o filho Dele.
Jesus novamente acolheu a mãe e deixou escorrer algumas lágrimas,
afinal, ele sabia que só a veria novamente quando, fragilizado e vertido,
estivesse prestes a deixar a Terra.
Ao observá-la se distanciar com um sorriso sincero, ele tentou ser forte,
mas não conseguiu. E como uma criança que ruma para o colo seguro da mãe,
Jesus correu na direção de Maria e, vez mais, a abraçou, repousando a cabeça
junto ao peito daquela que lhe havia dado tudo, mormente o amor. Durante a
vida, ele não havia podido experimentar o amor carnal de uma mulher — afinal,
era um arcanjo —, e as humanas, por lei de Deus, eram proibidas aos celestes.
Mas o amor que Maria deu ao filho suplantou qualquer sentimento que uma
esposa ou amante pudesse fazê-lo, pois o amor de mãe não tem rosto, forma ou
graduação; ele é imponente, incondicional; eterno.
— Filho, eu vivo e sempre viverei por ti, és a minha vida — disse a
virgem ao consolá-lo.
Jesus retomou o próprio senso e viu a mãe se afastar e, vez ou outra, fitá-
lo com aquele olhar tipicamente pueril, pois Maria, embora já contando com
quarenta e seis anos de idade, ainda envergava a mesma figura daquela doce
menina para quem o Anjo Gabriel tinha aparecido na cidade de Nazaré.
Ao perceber que Maria estava partindo, Caliel foi tomado por um
sentimento jamais experimentado, como se um pedaço dele estivesse sendo
seccionado. Embora desejasse instintivamente acompanhá-la, ele estava preso ao
dever de escoltar Jesus até a passagem designada a ele ser concluída. Sentindo-
se agoniado, saltitou rapidamente na direção da Virgem, a qual, ao vê-lo
visivelmente entristecido, o tomou no colo e disse:
— Oh, minha pequenina... — balbuciou ao abraçá-lo com ternura. —
Nada temas, pois em breve haveremos de estar juntas novamente — expôs, em
alusão à inesperada decisão de Betseba de permanecer em Jerusalém com a irmã,
sob a escusa de visitar um parente doente nas proximidades da cidade.
Caliel se apegou a Magdalena e, no decorrer dos meses, também a Maria,
mãe de Jesus. Entre os humanos, ele havia vivenciado experiências que jamais
teve no Céu e, embora visualmente confundido com uma menina, ele era um
querubim violento e sanguinário, mas tinha uma história de respeito. Ele teve
papel primordial na guerra contra a ordem das Presenças; exterminou duzentos
Tronos rebeldes na insurreição de Lúcifer; zelou pelo jardim do Éden após a
expulsão de Adão; resgatou Beelzebu e o Arcanjo Nataniel das profundezas do
Inferno; esquartejou o maléfico Rei Herodes I e, mesmo depois de tudo isso,
ainda estava ali, no papel de uma criança pura e indefesa.
Pois ao experimentar o colo de Maria, Caliel fez algo que não fazia desde
que Beelzebu, objetivando salvar Lúcifer no fim da segunda guerra celestial,
lançou uma flecha traidora que lhe atravessou o braço: Caliel chorou. E não foi
só. Embora os pequenos querubins não falassem, eles tinham um dialeto próprio
de risos e sussurros, pela primeira vez, o pequeno balbuciou com os olhos
marejados:
— “Mã... Mãe...”.
Mãe. Essa expressão, para um truculento querubim como ele, significava
muito. Talvez na mente de Caliel, o binômio “Deus e Maria” formasse uma
fórmula perfeita, na qual ele, ao menos uma vez na sua existência, pôde se sentir
como uma criança de verdade, com um pai e uma mãe, e não como o implacável
capitão da Guarda Negra do Céu, responsável pela segurança dos cômodos
divinos e por incontáveis missões de morte concisa. Mas aquele momento
comovente foi fragmentado quando Beelzebu, percebendo a emoção tomar conta
do pequenino, o tomou do colo de Maria. A imaculada ainda gracejou para
Caliel, o qual, esfregando a mão num dos olhos, logo acabou voltando a si, ao
intrépido anjo que lá estava deslocado em missão.
— Caliel, o término de nossa missão está bem próximo — sussurrou
Beelzebu com ele ainda no colo. — Portanto, não coloques tudo a perder,
principalmente agora que as coisas caminham para o final.
O pequenino celeste se deixou levar pela emoção que aprendeu a ter entre
os peregrinos de Jesus. Mas em razão da prudente admoestação do seu príncipe,
ele logo voltou a se portar como um anjo, ente cujos sentimentos só eram
dosados diante dos desígnios de Deus, e abaixou a cabeça.
Percebendo que Caliel havia ficado triste, Beelzebu tentou, de alguma
forma, animá-lo, fazendo-lhe uma inédita revelação:
— Sabe, capitão — disse, com o camareiro ainda no colo —, certa feita,
Deus me confidenciou que as crianças, tal qual nós as conhecemos, não faziam
parte do Seu plano original, tanto é que o primeiro homem e a primeira mulher
nasceram adultos. Mas em razão do apreço que o nosso Pai possui para contigo,
ele passou a permitir que os humanos também tivessem, por um curto período de
tempo, a mesma aparência física que a tua, um dos filhos mais queridos Dele. E
foi assim, por tua causa, que nasceram as crianças humanas como são
conhecidas. — O querubim levantou o rosto e pareceu se interessar pela história.
— Eu sei que eles, os homens, são fáceis de se afeiçoar. Mas nós dois não somos
humanos, somos anjos; os acariciamos com uma mão e, se preciso for, os
matamos com a outra — lamentou.
Caliel ouviu e, na sequência, balbuciou algumas expressões ininteligíveis
para nós, mas que para Beelzebu soaram com o seguinte significado: “De certa
forma, somos irmãos deles, afinal descendemos do mesmo Pai. Mas nós nunca
tivemos uma mãe, isso foi um privilégio apenas deles”.
Beelzebu captou a mensagem e o embalou nos braços, sendo que ambos
voltaram para a lida original, qual fosse, a de zelar para que o sacrifício do
Arcanjo Miguel ocorresse conforme queria Deus. Quanto a Jesus, ninguém ainda
sabia, mas aquela seria a última noite de sono do grande celeste feito homem.

***

No amanhecer do dia, e após se banharem num rio, o rabi chamou por


Judas Iscariote e, tencionando reunir-se em comunhão com os seus apóstolos, em
razão da proximidade da Páscoa, mandou que ele, que conhecia bem as ruas de
Jerusalém, fosse com João e Joana à procura de um lugar que servisse de palco
para a ceia que se realizaria naquela noite e que, pela tradição, deveria ser entre
os muros da urbe, donde, após, retornariam para o vale de Cedron e pernoitariam
num jardim fincado no sopé do Monte das Oliveiras, o Getsêmani.
Embora aparentemente felizes, alguns dos apóstolos estavam receosos,
pois eles sabiam que a voz nas ruas dizia que Jesus estava sendo vigiado e,
diante disso, talvez um retorno extemporâneo à Galileia fosse mais seguro.
Judas chegou a conversar com Pedro sobre Jesus ser “forçado” a reagir
com a força, mas o pescador respondeu que a sua fé não era assim tão forte para
emitir uma opinião segura, pois o mestre parecia amar mais as mulheres do
grupo, principalmente Magdalena. Diante disso, quem sabe ela tivesse alguma
influência sobre o rabi.
Momentos depois, Magdalena lá chegou e entregou a Judas certa soma
para que fossem adquiridas provisões para a celebração, as quais deveriam ser
levadas ao local escolhido para a ceia e para onde os demais haveriam de ir
naquela noite.
E enquanto recebia o quantum, ele sugestionou:
— Irmã, tu és a escolhida do nosso mestre, pois ele te ama mais do que a
nós. Por isso, eu apelo para que intercedas a favor do nosso movimento, pois a
hora deve ser agora.
— Judas, parece que não andaste com Jesus. A revolução que ele trará é
moral, já que depois da vinda dele neste plano, nada mais será como antes. —
Contrariado pela admoestação, ele ainda ouviu. — Eu mesma já sofri pelo
incômodo peso do aço que ainda carregas contigo — disse ela, aludindo à espada
que ele trazia junto de si. — Mas se me libertei, tal se deve unicamente a Jesus.
Portanto, faz o mesmo, aprende pelo amor, e não pela dor.
Judas fez pouco das palavras de Magdalena e, dando-lhe as costas, rumou
para a cidade com João e Joana, esta última, em razão dos predicados,
encarregada da ceia.
Embora tido como um fora-da-lei, o sicário tinha um considerável círculo
de amizades na urbe, mormente entre os comerciantes, pois o seu pai havia sido
um, e conseguir um casebre não lhe custou muito, aliás, não lhe custou nada,
pois o senhorio, Marcus, era um admirador de Jesus.
Conquanto as estalagens estivessem lotadas dada a iminência das
festividades da libertação dos judeus, tudo parecia correr conforme tencionava o
mestre. O local auferido parecia ideal, tinha dois andares, um bom forno e ficava
na cidade baixa, não tão longe da fonte de Giom[137]. Mas, mesmo assim, Judas
parecia distante, preocupado, afinal, as palavras daquele estranho — Lúcifer,
disfarçado de pedinte — lhe martelavam a mente.
— Irmão, tu estás bem? — indagou-lhe João.
— Sim... Apenas um pouco apreensivo.
— Com a nossa ceia?
— Não, com os destinos da causa. Tu não achas que o momento é
propício para que Jesus lidere as massas contra os romanos? E mais, que
destrone Herodes Antipas que está na cidade para os festejos?
— Judas, não percebeste que este não é o mote do mestre? Se as nações
tiverem que ser conquistadas, elas o serão pela palavra; pela compressão, e não
pela força ou pela agressividade.
O zelote pareceu recuar.
— Sabe, irmão, certa feita, o mestre me disse que ele havia vindo para
trazer uma espada. E eu acreditei nisso até ontem à tarde, quando ele afrontou
Barrabás e o deixou viver.
— A espada — sorriu João. — Eu o ouvi falar sobre isso também. Mas
desde então, entendi que a espada significava divisão, as lutas que não ele, mas
os contrários a ele travariam em nome de uma falsa fé que imperaria no mundo.
— Pois sim. Hoje eu vejo que essa talvez seja a interpretação correta. Mas
pensa comigo, João. Será que Jesus, cujo poder é incontestável, ficaria inerte se
os agentes de Caifás ou de Pilatos se voltassem contra ele ou até mesmo contra
nós? Será que ele se permitiria derrotar depois de tanto trabalho?
— O plano de Deus é bem maior do que podemos entender. Peço-te
desculpas, mas não sei que resposta dar a tua pergunta.
— Jesus vai libertar Israel. E tudo o que ele tem a fazer é levantar a mão
que Deus aparecerá — asseverou o sicário com os punhos em riste.
— Talvez... — anuiu João sempre espirituoso.
— E tu, o que achas disso, Joana? — insistiu Judas.
— Homens, espadas e falos — tripudiou ela com certo sarcasmo. — Eu
prefiro não interferir nessa discussão, pois destes conflitos suicidas, eu já estou
farta — concluiu, apertando o passo a fim de escapar das cansativas lamúrias de
Judas.
Pois ele não desistia, e a cada instante, se convencia de que o seu papel
seria o de forçar a mão de Jesus, afinal, voluntariamente, o mestre dava mostras
de que jamais atentaria contra alguém. Mas se ele fosse ameaçado, a ira divina
talvez caísse sobre os insurgentes a fim de esmagar qualquer possibilidade de
revide. Isso parecia obvio a Judas, afinal, não seria crível que o filho do Eterno
viesse à Terra, revolucionasse o modo de ser das pessoas e não tivesse qualquer
proteção em sua lida. Diante disso, talvez Barrabás levantasse a multidão em
revolta quando Jesus estivesse no Templo durante a Páscoa, e assim Pilatos e
Antipas seriam esmagados de uma única vez.
Decidido a levar o seu plano adiante, ele entregou o dinheiro que
Magdalena havia lhe dado a João e, após dizer que precisava resolver alguns
assuntos pessoais, orientou-o a comprar os mantimentos necessários para ceia, e
que tão logo a noite caísse, ele os encontraria na casa cedida após buscar o
mestre e os demais. João já havia ajudado Joana nas refeições do grupo várias
outras vezes e, ficar na companhia dela para preparar o jantar, não seria tarefa
difícil.
Na tentativa de sair da cidade e encontrar Barrabás a tempo, outras
pessoas acabaram por achar o apóstolo atormentado antes. Malco e os policiais
judeus, imiscuídos entre o povo na procura de notícias sobre Jesus,
interceptaram Judas antes que ele encontrasse o velho irmão de ordem e,
premido pelas circunstâncias, foi “convidado” a acompanhá-los até o Templo
onde Caifás esperava por um dos zelotes do grupo do nazareno.
Ao ver Judas, Caifás desceu as escadarias com os braços abertos, numa
posição teatral e quase que de subserviência ao apóstolo:
— Judas, meu irmão. Foi a providência divina que te trouxe até aqui —
disse ele, remexendo as mãos e fazendo expor a sua dentição não tão bem
cuidada.
Desconfiado, o Iscariote permaneceu passivo.
— És Judas, o zelote, pois não? — indagou ao saber quem era ele pelos
guardas do Templo.
— Sim, eu sou Judas, mas não sou mais um zelote.
— Pois eu fui informado que és um dos seguidores de Jesus — investigou
de forma ardilosa. — Estou certo?
— Sim, eu ando com ele. Mas o que queres de Jesus? E de mim?
— A nossa situação é deveras delicada! Muitas vozes se levantam contra
ele e, diante disso, eu temo pelo destino de Jesus e da doutrina que ele professa
— disse, exagerando na linguagem corporal.
— Mas que “vozes” são essas? — indagou o sicário.
— Vozes são vozes; dos romanos e até mesmo do nosso povo. Eu admito
que fui rude com ele, é verdade, mas embora Jesus seja judeu, eu, na condição
de sacerdote, não posso permitir que profetas pululem por aí atacando valores
tradicionais.
— Jesus é um grande homem, senhor. E somente ele tem condições de
liderar o nosso povo contra os romanos.
— Sim! — concordou falsamente. — É essa a conclusão que eu cheguei
após muito refletir. Mas em razão disso, temo que ele acabe morto como o primo
João Batista — disse Caifás, de maneira baixa, como se quisesse manter aquela
conversa entre eles. — Os romanos são extremamente perigosos, e se Jesus
continuar a causar distúrbios no Templo, eles poderão se enfurecer e destruí-lo.
— Jesus jamais permitiria isso.
— Eu também espero que não. Mas para que tomemos um partido,
precisamos saber das reais intenções dele. Nós tivemos diferenças? Sim, mas
quem não as tem? — asseverou sorrindo. — Pois se ele conseguir convencer o
Sinédrio de que tem poder suficiente para restaurar a nossa liberdade, nós
recuaremos e patrocinaremos qualquer pretensão dele e, mais ainda, faremos
com que os zelotes formem a base do exército oficial da nova Judeia.
Judas ficou tão cego com aquelas promessas, que se recusou a aceitar a
verdade de que Jesus nunca iria tomar frente de um levante bélico. Embora João
lhe tivesse esclarecido que a espada aludida pelo mestre não seria por ele
empunhada, os seus sonhos de glória encobertaram essa impossibilidade e, por
um instante, ele vislumbrou Jesus sentado no trono de Pilatos, e ele à frente das
legiões militares da Judeia, as quais poderiam conquistar o mundo. No fundo,
Judas sabia que tudo aquilo era impossível, mas as pérfidas energias de Lúcifer
haviam confundido a sua mente fraca e, naquele momento, ele voltou a acreditar
que, num caso excepcional e para preservar a sua doutrina, Jesus deixaria de
lado a paz e seria implacável com quem o desafiasse.
— E o que queres de mim? — indagou voltando a Caifás.
— Jesus anda ressabiado com o Sinédrio, e nós não tiramos as razões
dele. Por isso, eu gostaria muito da tua ajuda, pois caso ele nos convença da sua
força, nós o apoiaremos. Por isso, se conseguires trazê-lo até aqui para
parlamentarmos, a tua lida será primordial.
— Primordial... — repetiu pensativo.
— Judas... Entendas que não é o homem que escolhe a coroa; mas a coroa
que escolhe o homem! E se Jesus está recalcitrando em usá-la, ajuda-nos a
colocá-la sobre a cabeça dele! — disse o falso Caifás, de modo a tentar
convencê-lo.
As peças pareciam estar se juntando na cabeça de Judas. Por mais pacífico
que fosse, Jesus, segundo ele acreditava, não se deixaria pegar pelos soldados
romanos e, caso reagisse, o povo judeu reagiria com ele. Era essa operação que
Judas desejava desde o início, desde que ouviu Jesus dizer que havia vindo ao
mundo para trazer uma espada.
— E então, Judas? Podes conduzi-lo até nós? — insistiu o sumo-
sacerdote.
— Ele não virá, senhor. Não voluntariamente.
— Então dize-nos onde encontrá-lo, eu mandarei uma comitiva de
emissários de paz para convencê-lo.
— E garantes a nossa segurança aqui em Jerusalém?
— Meu irmão, eu afirmo que o que farei visa garantir não apenas a vossa
segurança, mas também a de todo povo judeu.
Judas suspirou e respondeu:
— Esta noite nós iremos cear numa morada da cidade baixa, próxima ao
Giom. Depois, creio que lá permaneceremos, afinal, muitos foram para Betânia.
— Bem, caso então haja alguma mudança nos planos, peço que me avises
a hora que for, afinal, nós precisamos conversar com ele o mais rápido possível.
— Estou confiando em vós, senhor, espero que nós cheguemos num bom
acordo, um que sirva de curso para a nossa derradeira liberdade.
— Apenas tira-me uma dúvida — insistiu Caifás. — Eu soube que, entre
vós, existem alguns homens de espada. Será que eles não tentarão um revide?
— Não creio, todos são pacíficos.
— Então vai! Vai e traz a paz ao nosso futuro império.
Caifás viu Judas se afastar e, dando um sorriso maligno, satisfez-se ao
verificar que finalmente havia conseguido colocá-lo numa perigosa teia, onde o
fim de Jesus já estava pré-traçado.
O chefe Malco foi chamado e recebeu, do sacerdote, uma pequena bolsa, a
qual, no momento certo, serviria de ardil para virar o jogo contra Judas e expô-lo
como inconfidente. Pois naquela pequena capanga estava guardado o odioso
estigma que acompanharia o nome dele para todo o sempre.
Capítulo 12
Jardim de Getsêmani
CADA VEZ MAIS OBSTINADA em convencer os doentes resistentes em aceitar a
palavra de Jesus, Susana havia oficializado a sua condição de enfermeira na
Grota dos Leprosos e, usando as receitas que tinha aprendido com Magdalena e
Joana, tentava minimizar as dores dos que haviam escapado da primeira
investida delas.
Metatron mantinha-se firme na sua vigília e, com a ajuda dos anjos
cooptados por Magdalena, colaborava para que nada faltasse a ela naquele vale
de morte. Nas horas vagas, ele continuava firme na sua escrita, afinal, de tempos
em tempos, Beelzebu o mantinha mentalmente informado sobre tudo o que
ocorria no círculo de Jesus. Curioso era que, a cada capítulo vencido, ele deitava
a palma da sua mão sobre os cartapácios e fechava os olhos, como se entrasse
numa espécie de transe. E numa dessas oportunidades, ele foi inadvertidamente
interrompido por Susana:
— Matatias? Estás ocupado?
Tentando guardar os livros, ele, de pronto, respondeu:
— Não, menina. Precisas de algo?
— Magdalena havia me dito que estariam de volta em alguns dias. E eu
prometi a Jesus que conseguiria sensibilizar os doentes.
— E pelo que vi, fizeste um bom trabalho durante o tempo que aqui
estamos, afinal, a grata maioria deixou a escuridão e tem aceito os vossos
cuidados.
— Sim... — concordou. — E eu vos agradeço por ter ficado aqui comigo,
zelando por mim.
— Digamos que é o meu dever — disse ele, abaixando a cabeça.
Susana se aproximou dele e passou uma das mãos sobre um dos lados da
cabeça do arcanjo, aquele cujos cabelos eram cortados quase raspados.
— Eu gosto do teu penteado. Ele é bonito; diferente...
— De onde eu venho, todos os militares o usam, à exceção do nosso
marechal.
— Então és um soldado, Matatias?
— De origem, sim. Mas eu confesso que nunca fui muito hábil com a
espada, ao contrário dos meus demais irmãos — respondeu, sorrindo.
— E foi por isso que desertaste?
— Não, eu não sou um desertor. Eu deixei o exército pois precisava
encontrar alguém.
— E será que eu posso ajudar-te?
— Inconscientemente, já estás me ajudando.
A moça, que àquela altura em nada lembrava a fútil Salomé, aproximou-se
do arcanjo e, olhando para si própria, resumiu o que sentia:
— Eu não me lembro de muita coisa da minha vida; aliás, não lembro de
quase nada. Mas gosto da sua música, me sinto bem quando tocas. E isso talvez
seja o foco de uma boa lembrança, de uma vida que não sei qual foi.
— Susana, no fundo, o nosso passado não importa, afinal, são nossas
ações, boas ou más, que mudam o nosso futuro. E assistindo ao que tens feito,
estou certo de que, se tinhas dívidas a saldar, elas estão sendo bem pagas.
— Então tu acreditas que nós já tivemos outras vidas?
Ciente de que, diante de si, estava o avatar de uma mulher que já havia
tido não apenas uma, mas seis vidas antes daquela, Metatron respondeu:
— Sim, eu acredito piamente.
— Que assim seja — concordou. — E se eu, de fato, já tive outra vida
antes desta, espero estar de qualquer forma me redimindo.
— E estás; acredita-me – retrucou o arcanjo.
— Mas existe algo estranho em torno de mim.
— Estranho de que maneira? — interessou-se.
— Às vezes, quando eu estou só, banhando-me próximo ao braço d’água
que corta o vale, sinto que estou sendo observada, como se alguém estivesse me
vigiando.
Metatron atentou para aquela observação, pois ela ia de encontro aos seus
propósitos.
— Disseste “observada”?
— Sim. E é uma presença que, de certa forma, me soa familiar.
— Susana... — disse ele seriamente. — Existem forças que, por vezes,
conspiram contra nós, e suplantá-las é a nossa missão.
— Eu não entendo o que dizes... — respondeu, aparentemente confusa.
— E não tentes. Por ora, segue adiante conforme vens fazendo, e do
restante, deixa que eu me encarregue.
— Bem, eu me deixei levar pela nossa conversa e, por um instante,
esqueci que havia vindo aqui buscar um pouco de extrato de damasco. É que
encontrei uma mulher muito debilitada, e após alimentá-la, tentarei banhá-la com
ele.
— Sabe, menina, eu conheço alguém que deve estar muito orgulhosa de ti.
— Orgulhosa? — riu ela timidamente ao auferir a mistura.
— Sim... — respondeu em alusão a Harual, a obreira da Câmara de Guf
que a havia ajudado a renascer.
— És tão misterioso, Matatias. Mas és um bom amigo — ponderou
sempre com o semblante feliz.
Quando Susana se afastou, Metatron mudou a sua fisionomia e ficou sério
e, por que não dizer?, preocupado. Se ela estava se sentindo vigiada, e as
mulheres têm um sentido de sensibilidade infinitamente maior que o dos
homens, ele concluiu que o fugitivo Azeyzel estava perto. E bem perto.

***

Era manhã de quinta-feira, quando uma flecha certeira vinda de trás de um


arbusto, atingiu fatalmente um zelote que dava guarda na entrada de uma das
cavernas que o partido usava de esconderijo.
Diante da morte instantânea do dito rebelde, eclodida pela destreza de um
hábil arqueiro romano, uma feroz guarnição tomou de assalto aquele refúgio e
surpreendeu inúmeros rebeldes enquanto eles ainda dormiam.
Conquanto tenha havido alguma resistência, ela foi prontamente debelada
pela fração militar que lá adentrou, cuja missão era reprimir, com o vigor
necessário, os insurgentes contra Roma. Barrabás tentou fugir usando um atalho
da gruta, mas àquela altura, já era um tanto tarde para ele. Delatado por dois
traidores do movimento, os quais sabiam que ele preparava um levante na área
do Templo para o dia da Páscoa, o seu mundo ruiu quando percebeu que estava
cercado pelos seus inimigos.
Embora tivesse tentado dar um fim honroso à vida, um soldado lhe
arrebatou a adaga e o arremessou ao chão, onde acabou contido e amarrado pelos
milicianos, assim como outros tantos que, por não terem resistido, saíram de lá
vivos e presos.
Quando o prefeito romano soube da prisão do líder dos zelotes, ocorrida
às vésperas da Páscoa, saltou do seu leito e foi até o pátio da guarda, onde os
detidos começavam a chegar. Ao ver Longinus a certa distância coordenando a
patrulha, o prefeito lhe fez um sinal e o centurião-chefe foi ter com ele.
— Então nós finalmente colocamos as mãos nesse afamado bandido!
Houve resistência?
— Houve, senhor. Parca, mas houve. Alguns rebeldes acabaram mortos,
mas, no geral, a operação foi exitosa — esclareceu, aparentemente incomodado.
— Mais um troféu para a tua coleção, meu caro Longinus. E com este, são
três os criminosos de fama que tiraste das ruas.
— Eu apenas cumpri com o meu dever, senhor.
— Bem, já que falaste em dever, eu preciso participar-te outra missão,
uma que talvez não tenhas maiores dificuldades em executar. Vem! Acompanha-
me ao paço. — Ao chegarem ao interior da fortaleza, Pilatos se sentou e
ofereceu um copo de vinho ao centurião que, com o capacete seguro sob um dos
braços, aceitou com recato. — Ontem à tarde, eu recebi uma visita de Caifás. —
Ao ouvir o nome do sacerdote, um conhecido opositor de Jesus, Longinus se
engasgou levemente com a bebida, mas sem chamar a atenção do prefeito. —
Pois ele me participou, assim como já havia feito em outra oportunidade, que
aquele tal milagreiro está a causar efetivos distúrbios na cidade, o que talvez seja
um perigo durante o feriado de Páscoa. Portanto, peço que dês apoio à Polícia do
Templo nesse particular.
Longinus premiu as sobrancelhas e se manteve silente. E após dar um
último gole na bebida e colocar a taça sobre uma mesa, respondeu:
— Senhor, eu o venho servindo fielmente desde que me nomeaste para o
posto de comandante da fração da coorte estacionada em Jerusalém. Mas essa é
uma ordem que eu não posso cumprir — lamentou com a cabeça baixa.
Pilatos ficou surpreso com a recusa e, incrédulo, tentou recompor o
subalterno:
— O que disseste, comandante?
— Tribuno, eu vos confesso que falei com o homem Jesus há pouco
tempo e, conforme eu já vos havia reportado, ele não é um rebelde.
— Mas falaste com ele em que condições?
— Ele... — hesitou. — Ele curou um dos meus servos, o qual estava
desacreditado pelos nossos médicos; médicos romanos. E ele fez isso sem sequer
vê-lo, mas apenas com uma palavra... — esclareceu, como se visualizasse aquele
inesquecível cenário de outrora.
Pilatos se sentou e tentou entender o que se passava.
— Longinus, tu tens consciência do que estás dizendo? És um centurião a
serviço de César, não podes recusar uma ordem.
— Senhor, se me permite ser ousado, vós, como militar de formação que
sois, bem sabe que a força de um soldado reside no orgulho pelo seu gládio. Mas
quando esse mesmo soldado olha para ele e passa a ver apenas um pedaço de
metal, eu creio que certas coisas perderam o significado. — O centurião-chefe
então sacou a sua espada e a ofertou ao prefeito romano. — Peço desculpas
senhor, mas...
— Mas...? — provocou Pilatos.
— Mas creio que não estou mais apto a servi-lo. E se preza pela minha
pessoa, rogo que permita que eu me entregue à reserva. Mas caso opte por me
mandar à corte marcial, eu não irei culpá-lo.
Pilatos ficou impressionado com aquela cena, afinal, bastou que ele
citasse o nome de Jesus para que o seu oficial comandante depusesse armas,
apenas para não ter que persegui-lo.
— Longinus, talvez não estejas no teu juízo normal. Quem sabe emotivo,
por acreditar que esse homem possa ter curado o teu empregado — ponderou.
— Mas ele o fez, senhor... — insistiu. — E fez o mesmo por mim.
Pilatos, sabedor da vasta ficha de bons serviços que o centurião tinha para
com a mãe Roma, buscou ser compreensivo e humanitário, afinal, embora fosse
um prefeito, ele originalmente era um militar da arma de cavalaria e, mantendo o
espírito de corpo com os seus, chamou pelo segundo em comando daquela
fração, o qual permanecia na antessala:
— Marcellus!
Sem demora, o centurião Marcellus Galba adentrou ao recinto e se
apresentou a ambos:
— Centurião, o teu comandante necessita de um afastamento temporário
para resolver assuntos de foro íntimo e, enquanto perdurar a já autorizada
ausência dele, tu responderás pela fração estacionada.
O oficial ficou aparentemente confuso com a ordem, afinal, Longinus
mantinha-se cabisbaixo e estava desarmado. Mas ao ouvir a máxima dispensado,
ele voltou a si, saudou o prefeito e o chefe e saiu um tanto incomodado do salão
de ordens.
Pilatos então se achegou do seu leal soldado e, tomando-o pelos ombros,
disse-lhe:
— Um ato impensado não anula centenas de outros que foram
proveitosos. Segue o teu caminho, eu providenciarei para que a tua ida à reserva
passe desapercebida pelos homens, a fim de não afetar a moral.
— Eu vos agradeço, senhor... — respondeu Longinus, ao levantar a
cabeça e, com um dos olhos marejado, saudar o tribuno que, naquele momento
difícil, o tratou com dignidade e consideração, algo raro de se ver nas cortes
romanas.
— Agora vai; vai antes que eu me arrependa — afirmou igualmente
emocionado. — Mas quando o centurião se preparava para sair, Pilatos o
interpelou novamente e, ao se voltar para ele, Longinus ouviu a seguinte
indagação. — Um último favor. Esse homem, o tal Jesus. Estás mesmo certo de
que ele não é uma ameaça para nós?
— Senhor, se o conhecer, verá que a única ameaça que ele traz é contra os
que são perfeitos por fora e podres por dentro, assim como alguns juízes do
Templo.
Pôncio Pilatos retorceu levemente os lábios e fez um movimento vertical
com a cabeça, dando a entender que havia entendido aquela mensagem.
Entretanto, embora ele fosse um homem dotado de elogiável senso de justiça, ele
era um homem. E como um, a fraqueza causada pelo temor reverencial sobre a
própria vida logo o visitaria.

***

Já era noite quando Jesus e os seus entraram em Jerusalém e, com as


cabeças cobertas, foram guiados por Judas até o local de ceia: a casa de Marcus,
partidário dos ideais deles.
Joana e João estavam na cidade desde a manhã e, já hospedados no local
do encontro, findavam os últimos preparativos para a ceia da Páscoa.
Com o dinheiro dado por Mirian Magdalena, eles haviam comprado
peixes, um cordeiro, que foi abatido por João a pedido de Jesus[138], ervas finas e
algumas frutas, além de um vinho fermentado para a festa da libertação. Joana,
que havia frequentado a corte de Herodes por muito tempo, conhecia receitas
sublimes e, em razão disso, foi oficialmente eleita a responsável pelas provisões
alimentícias do grupo, onde não raro os brindava com iguarias dignas do rei que
o rabi era.
Jesus estava acostumado a mesas simples, mas após a chegada de Joana,
todos, até os resistentes a ela como Pedro, foram obrigados a reconhecer que as
ceias, mesmo as mais simples, passaram a ter outro significado.
Assim que Judas chegou com os demais, todos sentiram o agradável
aroma que impregnava o espaço onde haveriam de cear. Pois enquanto alguns
deles se ajeitavam nas almofadas que cercavam a mesa, Joana e João se
encarregavam de servir os pratos no suporte onde os quatorze apóstolos e Jesus
haveriam de sentar.
Entre os pratos quentes, tilápias deitadas num molho doce feito de
vinagre, açúcar e tomates esmagados; recém-saídos da brasa, generosos pedaços
de cordeiro assado no alho haviam sido banhados numa mistura de nozes,
hortelã e tâmaras moídas, além de alguns fragmentos de canela, açafrão e
tomilho, os quais, em conjunto, davam àquelas paletas um sabor indescritível;
para a liturgia, pão e chicória; e, para a sobremesa, damascos e abacaxis secos ao
mel. Enfim, um banquete, digno da magnitude dos seus partícipes.
Jesus segurou as mãos de Joana e as beijou, num claro sinal de
agradecimento pelo jantar que, ninguém sabia, seria o último dele. O mestre
passou ao lado de João e piscando-lhe o olho, esbarrou o ombro no do apóstolo
num sadio sinal de satisfação, afinal ele havia ajudado Joana nos preparativos.
Apressada, Magdalena subiu as escadarias após os demais, pois, atraída
por um grupo de mendigos que havia visto na rua, parou para lhes dar alguma
esmola. Ao vê-la, Jesus disse satisfeito:
— Sempre caridosa, não é, irmã?
Ela sorriu com recato e, assim como os demais, tomou um lugar à mesa.
Mas por ter acelerado o passo, ela acidentalmente sujou os pés numa cavidade de
lama e, percebendo isso, o mestre se levantou e trouxe para perto dela uma bacia
com água que havia sido lá deixada para higienização.
E sem que ninguém esperasse por aquilo, tampouco Magdalena, ele
retirou as sandálias dela e passou a lavar os seus pés. Envergonhada, Mirian
tentou desestimulá-lo a continuar com aquilo:
— Senhor, por favor... Não, não é certo...
— Mirian, permite-me retribuir o que no passado fizeste por mim.
— Mas, rabi...
— E que este ato sirva de inspiração para todos, pois se tendes os pés
lavados por aquele a quem chamais de mestre, deveis agora lavar uns aos outros,
como sinal de que somos todos iguais.
Pedro e Judas se entreolharam, afinal, embora inúmeras vezes
admoestados, eles relutavam em aceitar a autoridade que Jesus emprestava a
Magdalena. Embora todos tivessem os seus méritos na evangelização, a força
dela no grupo parecia suplantar a de todos os outros, pois apenas ela e Joana
permaneceriam firmes ao lado dele até o final.
Após concluir a lavagem dos pés, Jesus disse a Magdalena:
— Não usarei óleos ou perfumes, mas te ungirei com uma missão, pois,
dentro em breve, caberá a ti mostrar o caminho aos nossos irmãos.
Ninguém entendeu direito aquela assertiva, e tão logo Jesus fez com os
demais o mesmo que havia feito com a sua apóstola, ele retornou ao seu lugar de
origem, e fez com que Mirian se sentasse à sua direita. A mesa já estava posta, e
pequenas lâmpadas a óleo iluminavam o ambiente, dando a ele um ar de
tranquilidade.
E com o semblante mais comedido, o mestre saudou a todos e anunciou:
— Eu decidi cear convosco esta noite, pois sei que a hora do meu
sofrimento está chegando. Tomai então este vinho, pois ele representa o sangue
que escorrerá do meu templo...
Aparentemente assustados com a declaração, os apóstolos ficaram
receosos.
— Mas o que estás a dizer, mestre? — indagou Tadeu.
— Em breve, eu irei a um lugar que, por ora, ninguém poderá me
acompanhar.
— Rabi — interveio Judas de maneira arisca. — Eu apelo, guia-nos para a
vitória final. Se ergueres a mão contra os romanos, o Sinédrio nos apoiará —
disse, efusivo, e ainda tentando buscar o apoio dos demais.
— Irmão, quando as trevas chegarem e o vosso pastor for ferido, a grata
parte das ovelhas se dispersará — respondeu cabisbaixo.
Pedro então se ergueu e, com vigor, ponderou a Jesus:
— Se fores ferido; feridos seremos todos.
— Pedro, saibas que, quando isso acontecer, a tua coragem te abandonará.
E antes que o galo anuncie o início do sábado, agirás como se sequer me
conhecesse.
— Nunca! Jamais! — bradou efusivamente o pescador. — Eu seria capaz
de morrer por ti.
Jesus apenas sorriu e, na sequência, Judas interveio de maneira agressiva:
— Falas em entregar a tua vida? És o Messias, o salvador, e se pereceres
sem usar o poder que tens, estarás traindo o nosso povo. — Todos então
encararam Judas que, ainda nervoso, continuou. — Eu me recuso a crer! Então é
esse o “fantástico” plano que tens? Ser morto e entregar o teu trono a
Magdalena? — arrematou apontando para a Mirian.
— Judas, se estás tão certo de que eu erguerei a minha mão sobre os
romanos, se é nisso que realmente acreditas depois de tudo que passamos juntos,
faz então o que crês ser certo — licenciou-o. — E faz bem rápido, afinal, o
tempo urge.
Judas estava confuso. E em razão disso, aquelas palavras lhe soaram quase
que como uma ordem para colocar o seu plano nefasto em ação e deixar o
restante a cargo de Jesus.
— Então dizes que devo agir tal qual tenciono?
— O teu espírito é indômito, Judas. E se crês que eu agiria tal qual
desejas, faça o que te compete e, por si só, contempla a chegada do reino que
tanto buscas.
Ao ouvir aquelas palavras, Judas acreditou que o mestre o estava
autorizando a dar o passo que poria fim definitivo àquele conflito, pois a
chegada de um “reino” só poderia significar a morte dos romanos. E vendo ali a
oportunidade que precisava, o sicário se levantou apressado e os deixou,
convencido de que faria a coisa certa, e que Jesus destruiria todos os seus
inimigos. Mas antes de sair ele ouviu do mestre:
— Judas, após a ceia, nós voltaremos ao monte das Oliveiras e, caso tenha
algum assunto a tratar comigo, estarei orando sozinho no jardim de Getsêmani.
Os apóstolos não entenderam o que havia se passado com Judas e, após
vê-lo deixar o recinto, Jesus insistiu para que os demais dividissem o vinho – o
sangue; e o pão – o corpo; como uma simbologia do que, para ele, haveria de ser
a nova Páscoa.
— Agora, comei, pois Joana e João passaram a tarde dando o melhor para
que a nossa ceia fosse realidade.
Feito isso, embora um tanto receosos, eles cearam como de costume,
sendo que o mestre não se cansava de elogiar os pratos, chegando inclusive a
sugestionar que sentiria falta daquelas preciosas iguarias.
Pois feito o louvor, a contagem regressiva para a derradeira partida do
arcanjo de Belém foi finalmente deflagrada.

***

Na fortaleza Antônia, Pilatos se entretinha com o teor de alguns


pergaminhos recém-chegados de Roma. E entre uma taça de vinho e outra, o
prefeito teve a atenção comprometida por um grito vindo dos seus aposentos,
onde Cláudia Prócula já estava a repousar.
Alertado pela movimentação da guarda, ele correu até os seus cômodos e,
ao vê-la assustada sobre a cama, foi ao seu encontro a fim de tentar entender o
que havia se passado, afinal, havia muito tempo que ela não tinha pesadelos.
— O que aconteceu? Estás bem?
Ainda tentando se recuperar, visto que arfava em demasia, ela lhe revelou
algo inusitado:
— Eu tive um sonho... — disse nervosa. — Estranho e ruim...
— E com o que sonhaste?
— Com uma águia. Uma águia gigantesca que atacava um pequeno
cordeiro e o fazia em pedaços. E quando a águia se afastou dele, não eram mais
os restos de um cordeiro que lá estavam, mas os de um homem...
— Um homem?
— Sim... O homem era Jesus; Jesus de Nazaré.
— O tal agitador da Galileia?
— Ele não é um agitador! — bradou nervosa. — Ele é um homem de
bem.
— Cláudia, creio que estás delirando! Irei chamar um médico.
— Não, Pôncio! Ouve-me! — disse ela, tomando-o forçosamente pelos
braços. — Eu sempre tive um péssimo pressentimento sobre este lugar. Portanto,
promete-me uma coisa, promete-me que não farás mal a esse homem.
— E por que me pedes isso?
— Porque, em meu sonho, quando a águia voou, ela foi abatida por um
flecheiro encapuzado e, ao cair morta, havia se transformado num homem, um
homem que tinha o teu rosto... — revelou, já chorando, nos braços do marido.
Nesse instante, Verônica entrou apressada no quarto e, reverenciando o
prefeito, logo amparou a dama romana.
— Venha, a senhora precisa se acalmar... — disse, ao levá-la para uma
área aberta e mais fresca.
Pilatos ficou intrigado com tudo aquilo, afinal, Longinus também parecia
ter sido influenciado pelo galileu, cujos poderes denotavam ser grandiosos e
sobrenaturais. E na conta de então, dois nobres romanos — sua esposa Cláudia e
o ex-centurião-chefe da coorte estacionada — estavam ao lado de Jesus de
Nazaré; e os juízes judeus, ou seja, o próprio povo dele, contra. Eis um estranho
mistério que o prefeito de Roma logo iria desvendar.

** *
*
No conforto da casa de Lázaro, a virgem Maria também despertou aflita.
Uma dor incomum no peito a fez se levantar com a respiração um tanto
ofegante. Percebendo o ocorrido, Marta, que dormia ao seu lado, ergueu-se e
perguntou o que havia se passado.
— Eu não sei ao certo. De repente, uma estranha agonia tomou conta de
mim, algo que me foge ao entendimento... — respondeu-lhe a imaculada.
— Talvez seja apenas indisposição. Vem, deixa-me preparar algo para
acalmar-te — ofereceu-se.
— Não, não é necessário... — Maria começou a se sentir ainda mais
angustiada e, de inopino, revelou à amiga do filho. — Marta... Eu preciso voltar
a Jerusalém.
— A Jerusalém? Mas acabaste de vir de lá!
— Sim. E para lá devo voltar — disse ela arrumando o véu sobre a
cabeça.
— Maria, me escuta, já é tarde, não seria melhor esperarmos amanhecer?
— O meu coração está apertado, eu preciso amparar o meu filho, pois algo
de ruim está prestes a acontecer com ele.
Verificando que não a faria desistir do intento, Marta acordou o irmão
Lázaro e lhe participou o ocorrido. E diante da infinita gratidão auferida por
Jesus, ele jamais permitiria que a mãe dele seguisse viagem sozinha, não numa
estrada vazia e naquela hora da madrugada. Diante disso, ele arregimentou
alguns empregados e montarias e, junto a Marta e Mariah, rumou para
Jerusalém, afinal, aquele era o desejo de uma mãe, da mãe de Jesus.

***
Já era tarde quando Jesus e os apóstolos voltaram ao Monte das Oliveiras
após cearem. Chegando ao jardim de Getsêmani, onde o rabi costumava rezar,
alguns perceberam que o mestre estava um tanto agitado, afinal, durante o
trajeto, ele não tinha esboçado uma única palavra.
— Para onde teria ido Judas? — indagou André. — Eu estou muito
apreensivo com relação a isso, afinal, ele é um inconsequente.
— E hoje à tarde ele estava mais arisco do que de costume — interveio
João. — Ele parece obstinado com a ideia de que o mestre deveria usar os seus
poderes para esbulhar o trono da Judeia e expulsar os romanos e os idumeus
daqui.
— Judas jamais conseguiu entender as intenções de Jesus — completou
Simão. — E eu estou bem à vontade para falar isso, pois já fui um zelote e fiz
coisas que hoje condeno.
— Ele confunde guerra com a revolução moral. Eu tentei mudar o
pensamento dele, mas confesso que já há algum tempo me cansei — interveio
Joana. — Hoje mesmo eu fugi das suas lamúrias, pois precisava estar bem
energizada para preparar a nossa ceia.
— Vós estais falando de Judas, mas é Jesus que parece estar assustado —
asseverou Pedro. — Eu acho melhor vigiá-lo.
— Não, Pedro — interferiu Magdalena. — Ele só precisa ficar um pouco
sozinho, deixa-o rezar em paz.
— Bem, se é a sucessora do trono que está a falar, quem sou eu para
contestá-la — resmungou, ao se afastar do grupo para preparar um arremedo de
cabana com alguns ramos.
Tentando aparar o mal-estar ante a provocativa declaração de Pedro,
Magdalena o ignorou e foi ter próxima à fogueira, a fim de não se indispor com
ele, o qual não fazia a mínima questão de esconder o seu incômodo diante da
liderança dela.
— Acho que nós estamos todos tensos — continuou Joana. — Essas
revelações do mestre nos deixaram temerosos com relação à segurança da causa.
Pois estando a lua a pique no Getsêmani, e o ar gelado começando a
inundar o vale, Jesus continuava aparentemente incomodado e, num ímpeto,
sentou-se no chão e abaixou a cabeça, apoiando-a sobre as duas mãos. O
silêncio, maculado apenas pela ruidosa serenata de grilos que não rareavam
naquela região, parecia não abafar as palavras ininteligíveis que ele murmurava
em tom baixo, talvez em razão do desconforto que o havia visitado.
Jesus estava trêmulo, fazia frio, mas ele suava, afinal, sabia que estava
prestes a ser sacrificado e, mesmo que fosse um arcanjo, a sua parcela humana
parecia falar mais alto.
Enquanto refletia sobre os meandros do seu destino, o rabi ouviu uma voz
rouca e estranha a dos seus apóstolos dilacerar a escuridão:
— Jesus, Jesus... — sussurrou o estranho vulto. — Ou será que devo
chamar-te de... Miguel? — concluiu, de forma ardilosa, revelando-se.
Ao encarar o inoportuno interlocutor, Jesus viu diante de si, o vestal
inimigo dos homens, Lúcifer.
O caído, que à distância se fazia assistir por Baalberith, caminhou na
direção do filho encarnado de Deus e, parando diante dele, continuou:
— Custo a crer que te entregaste a esse papel risível... — tripudiou. —
Um alto guerreiro celeste à mercê dessa ralé feita de barro. — Riu. — É, eu
confesso que esperava mais de ti.
— És o tal homem da caverna no deserto? — indagou Jesus, ao se lembrar
de tê-lo enfrentado no término dos quarenta dias de tentação.
— “Homem”? — retorquiu. — Por favor, irmão, não me ofendas com
esse adjetivo ridículo — revidou o degredado fazendo pouco da raça humana.
— Sejas quem fores, deixa-me em paz e afasta-te — pediu Jesus com o
semblante preocupado.
— “Em paz?” — disse o antigo serafim, já fazendo surgir em sua mão
direita, uma vigorosa espada flamejante. — Bem, se queres paz, talvez eu possa
dar-te, ceifando isso a que, agora, chamas de “vida”.
Ao erguer o gládio para fatalmente golpear Jesus, outra voz deveras
familiar ali surgiu e quebrou a hegemonia daqueles dois agentes do mal:
— Eu não contaria com isso Lúcifer...
Pois entendendo que ali havia surgido um outro anjo que encostou um
similar florete em chamas junto à sua pulsante jugular, o grande caído ficou
estagnado.
Percebendo a investida contra o irmão, Baalberith fez menção de se
aproximar para auxiliá-lo, mas no mesmo instante teve o colo contido por uma
idêntica lâmina de fogo, a qual, recém-expelida da escuridão, tocou-lhe o
pescoço de modo a igualmente rendê-lo.
— Se eu fosse tu, “procurador”, também não moveria um músculo! —
afirmou Beelzebu ali surgindo na mesma toada.
— Ora, ora, mas que prazer inusitado... — disse Lúcifer, ao reconhecer
Beelzebu por entre o brilho da luz refletida na lua. — E eu percebo que estás
bem melhor do que da última vez que nos vimos — concluiu, em alusão à épica
fuga dele do Inferno pelas mãos de Caliel, quando o príncipe dos querubins não
passava de um conglomerado de sarcomas apodrecidos.
— Pois eu não nutro prazer algum em rever-te, irmão — retrucou
agressivamente, ao cingir ainda mais a sua espada coruscante na garganta de
Baalberith.
Lúcifer tentou se desvencilhar da lâmina de Gabriel e recuou, entretanto
acabou tropicando num pequeno obstáculo que estava atrás dele e, ao se virar
para identificar o que o impedia de continuar a fuga, outra surpresa inesperada:
Caliel. Pois ao vê-lo ali parado o encarando com ar colérico, ele se lembrou de
quando quase foi por ele decapitado, e por duas vezes. E sem nada dizer, se
afastou pela tangente e sumiu na escuridão. Empurrado, sem gentileza, por
Beelzebu; Baalberith foi impelido a fazer o mesmo.
Jesus mostrou-se aparentemente confuso com aquela rusga, mormente
quando viu Gabriel diante de si, de quem não tinha lembrança. Mas ao observar
Beelzebu e Caliel — os quais intimamente sabia serem anjos de Deus —, ele se
sentiu mais seguro. Embainhando então a sua espada, o príncipe dos
mensageiros se aproximou e disse:
— Eu vim para dizer que o Pai aguarda o teu retorno, pois o pacto que
tinhas com Ele está prestes a ser selado. Doravante, até que desencarnes, terás
que suportar o peso de uma dor extrema, uma que apenas tu, por todos os
homens do mundo, terias condições de suportar. Portanto, sê forte! —
completou, ao entregar-lhe um fragmento de maná[139] dourado para que ele se
alimentasse.
Ao colocar o doce perolado na boca, Jesus se lembrou de imediato do
grande legionário que foi, ou melhor, ainda era, e de que, aquele corpo, que era
apenas carne, na verdade servia meramente de carapaça para outro bem mais
poderoso, o qual tinha fogo divino na mescla. Isso, de pronto, lhe devolveu as
forças físicas e místicas que precisava para suplantar os sofrimentos que, pelas
mãos dos mesmos homens a quem havia ajudado a criar, ele estava prestes a
enfrentar.
Pois ao sorrir aos irmãos celestes — “Muito obrigado!” — e vê-los
desaparecer no breu, Jesus ouviu alguns ruídos estranhos e procurou a origem
deles. Intrigado, mas agora encorajado e seguro, ele se levantou e voltou ao
ajuntamento onde os seus apóstolos estavam, quando então observou uma
comitiva se aproximar com vistosas tochas nas mãos.
Assustados, os seguidores do rabi permaneceram na defensiva, afinal, à
frente daqueles homens rudes, agora identificados como membros da Polícia do
Templo, estava um confiante Judas Iscariote.
Jesus os viu e caminhou voluntariamente na direção deles e, ao ver o
sicário na liderança do grupo, bradou sorrindo:
— Salve, irmão! O reino de Deus está chegando!
Ao ouvir tal assertiva, Judas acreditou que havia feito o certo, pois se o
reino do Altíssimo estava chegando, o seu rabi se uniria aos sinedristas e
esmagaria quem se pusesse na frente deles.
— Mestre! — respondeu efusivo. — Cumpre com o teu destino e mostra a
que vieste! — disse, ao se aproximar e dar-lhe um beijo na face direita.
Feito isso, Jesus respondeu a ele:
— Pois saibas que, ao contrário do que crês, é chegada a hora das trevas...
Percebendo que a face do seu rabi se fechou de repente, Judas Iscariote
recuou e ficou atemorizado com aquela inesperada reação.
— És tu Jesus, o galileu de Nazaré? — perguntou agressivamente o chefe
Malco ao adiantar-se no terreno.
— Sim, eu o sou... — respondeu sem aparentar medo.
Ele então deu um sinal aos policiais, que derrubaram Judas e investiram
contra Jesus, fato este que causou um princípio de distúrbio no sítio. Ao ver um
dos agentes de Caifás tentar segurar Jesus para prendê-lo, Magdalena tentou
obstá-lo e, ao agarrá-lo, fez com que ele vergasse para trás.
— Prendei essa mulher; prendei todos eles! — bradou Malco com a
espada já em riste.
— Não! — interveio firmemente Jesus. — É a mim que procurais, deixai
em paz os que aqui estão.
Magdalena estava transtornada e, nesse passo, continuava atracada com
aquele homem que havia tentado amarrar o seu mestre, sendo que ela apenas
desistiu em razão de um apelo dele, o qual a fez voltar a si e livrar-se daquela
rusga, da qual certamente sairia gravemente ferida.
Ao perceber que havia sido enganado pelo pérfido Caifás, Judas Iscariote
sacou a sua adaga e tentou investir contra um dos guardas, mas, em razão do
insucesso do golpe, que apenas resvalou a orelha de um deles, foi brutalmente
agredido e jogado novamente ao chão.
Ao ver Judas suplantado, Malco sentiu que era o momento certo para
seguir as ordens emitidas pelo sumo-sacerdote e, de forma infame, sacou a bolsa
que tinha auferido no Templo, e a arremessou na direção de Judas:
— Toma, zelote... Aí está o que pediste pela vida deste homem.
Ao virem Judas ser atingido pelas moedas que pulularam daquela capanga
de couro por cima dele, o clima se desconcertou, afinal, tudo indicava que o
mestre havia sido, por ele, vendido.
— Judas! — berrou Joana. — Maldito sejas, traíste o nosso mestre por
dinheiro — concluiu em lágrimas.
— Não, é mentira; é uma armadilha contra mim! — disse ao tentar
levantar sem conseguir.
Ao ver o desalento tomar Judas, Jesus lamentou:
— Escolheste o caminho das cobras e caíste no covil delas. Pois eu espero
que tenhas forças para suplantar tudo isso.
Ao perceberem os guardas do Templo aumentarem o grau de
agressividade com o grupo a fim de deter a todos, os apóstolos temeram pela
própria vida e, num ato instintivo, tentaram se salvar.
Embora muito assustadas, Mirian Magdalena e Joana conseguiram se
ocultar no breu, mas foram as únicas a continuar ali espreitando, afinal, elas
haveriam de seguir o mestre para onde quer que ele fosse. Percebendo que a
maioria havia fugido acuada, Malco deu ordens para que Jesus fosse finalmente
acorrentado e conduzido para a casa de Anás.
— E o restante deles? — disse um dos guardas ainda ofegante.
— Espalhai-vos e tentai encontrá-los. E se houver qualquer resistência,
fazei o que for necessário.
Enquanto Jesus era conduzido, alguns agentes do Sinédrio se imiscuíram
na mata do jardim e, sem muita dificuldade, dois deles logo cercaram Magdalena
e Joana, as quais tentavam se manter ocultas, a fim de acompanhá-los à
distância.
— Não resistais! — disse um deles, manejando um pesado pedaço de
corrente para prendê-las. — Posso fazer com que isso fique bem pior!
— O que irão fazer conosco? — perguntou Joana visivelmente aflita.
Pois percebendo que, na altura da testa, ela envergava a tatuagem de um
losango invertido cercado por quatro pontos, marca típica das prostitutas, um
deles tentou tirar proveito da situação e do ambiente ermo para ousar com ela:
— Bem, quem sabe eu possa levar-te para o meu leito — respondeu
irônico e sob os risos do companheiro de armas.
Notando a beleza de Magdalena, o outro guarda tentou fazer um gracejo
mais ousado, mas ela reagiu lhe dando uma bofetada. Deveras irritado, ele
revidou com um tapa mais forte, que a fez cair no chão. Dando mostras de que
agora estava com as más intenções potencializadas, ele tirou o cinturão e
caminhou na direção dela, a qual, ainda tonta em razão do golpe, pouco poderia
fazer para se defender. Embora Joana tivesse tentado gritar, o armígero que a
continha lhe tampou a boca.
Com ordens expressas para escoltar o avatar de Miguel até o término da
paixão, Beelzebu e Caliel já haviam deixado o cume do Getsêmani rumo à casa
de Anás e, diante disso, não puderam ajudar as velhas companheiras de
comitiva. Bem, eles não, mas outros anjos que por lá ainda rondavam, sim.
Enquanto buscava forças para reagir, Magdalena percebeu que os risos do
seu agressor cessaram, ou melhor dizendo, foram abruptamente interrompidos.
Ela então notou que ele ainda estava em pé e com um facho de fogo atravessado
no peito, o qual, ao ser repentinamente puxado para trás, fez com que o tal
guarda caísse morto.
Após isso, o outro oficial que rendia Joana a soltou e tentou fugir, mas as
asas velozes de Gabriel, assistido à distância por um misterioso arcanjo que com
ele viera do Céu, falaram mais alto e o calaram da mesmíssima forma. O ataque
do celeste foi tão preciso, que o coração do miliciano judeu ficou preso na ponta
do seu gládio, sendo então, em parcos instantes, consumido pelo mesmo fogo
que surdia dele.
Assombradas com o que viram, Mirian Magdalena e Joana se abraçaram
e, por um instante, temeram aquela inusitada figura, a qual, mesmo no escuro,
personificava uma jovem mulher armada e contornada por uma estranha aura de
luz que a destacava no breu. E olhando-as sem alterar o sério semblante, a
entidade desprezou aqueles dois cadáveres e se limitou a dizer:
— Eu abomino estupradores.
Feito isso, Gabriel se desfez no ar da noite e as deixou livres para
cumprirem o restante da lida que lhes cabia por destino.
Ainda espantada, Joana não conseguia sequer esboçar uma palavra e,
tentando ao menos gesticular, foi, de pronto, interrompida por Mirian:
— Nem ouses entender! Venha, vamos até a casa de José de Arimateia,
talvez ele ou o juiz Nicodemus possam ajudar o mestre.
Joana anuiu e, sem ainda conseguir dizer uma palavra, saiu no encalço da
irmã, e ali deixaram os dois corpos, que por terem sido atingidos por armas
santas, logo se consumiram e voltaram ao pó.
Quanto ao humilhado Judas, ele, de fato, acabou exposto à pantomina que
Caifás havia feito referência no Templo. E sozinho ali ficou, desarmado e
desacreditado. Pois percebendo que tudo em que acreditava não se havia
concretizado, ele chorou e também se desprezou. Jesus não reagiu aos guardas
do Sinédrio e, pelo visto, não reagiria contra os romanos. O sonho do aguerrido
zelote havia desabado, e continuar escravo dos romanos não era o que ele tinha
em mente. Judas então previu que o seu fim estava próximo. Mas ele estava
errado.
Capítulo 13
Condenado sem culpa
ANÁS, o qual havia sido sumo-sacerdote antes de Caifás, ainda exercia
notória influência no Sinédrio. Homem de rigores excessivos e moral discutível,
a casa dele foi escolhida para receber Jesus de maneira sorrateira, a fim de que
os sinedristas que o apoiavam não ficassem sabendo da prisão e, dessa forma,
não viessem atrapalhar os planos dos juízes mais radicais.
Ele e o genro Josefo Caifás, cuja base política era do partido saduceu,
tinham o controle sobre a maioria dos judeus de Jerusalém, e convencer os que
dependiam deles não seria difícil. Assim, caso eles conseguissem uma boa causa
contra Jesus, Caifás, encarregado de lidar com os romanos, trataria de apresentá-
lo na prefeitura, afinal os conquistadores lhes haviam castrado do poderio de
decretar penas capitais. Tal serviu, desde então, de cabresto, para alijar a força
imoderada dos titulares do Templo.
Jesus foi conduzido com os rigores de um preso comum e, após ganhar as
ruas da cidade com os punhos e os tornozelos contidos, finalmente chegou à
suntuosa casa do velho Anás. Tão logo transpôs a estreita porta da entrada, ele
subiu com dificuldade alguns degraus que o levaram a um salão cercado por uma
argamassa de mármore, a qual se assemelhava a um gabinete de audiências.
Pedro também havia fugido do Getsêmani e, ao tentar descobrir o
paradeiro de Jesus, soube que ele havia sido levado para a casa do sogro do
sumo-sacerdote. Sem prejuízo do perigo, ele se aproximou daquela morada e se
imiscuiu num ajuntamento que jazia em volta de um convidativo braseiro.
Uma das servas do decano, acordada para servir aos convocados que
chegavam, observou o pescador entre os presentes e, por já tê-lo visto na
companhia de Jesus, o acusou perante todos:
— Tu não és um dos seguidores do galileu que foi trazido preso?
— Não, estás enganada! — retrucou firmemente. — Eu estou de
passagem na cidade para a Páscoa, e por não ter encontrado pouso, cá estou
apenas para me aquecer — disse, em alusão ao frio de dez graus que já fazia
naquele início de madrugada.
— És galileu também, e estavas na companhia desse agitador quando ele
entrou na cidade — imputou um outro que lá surgiu ao reconhecer o sotaque do
norte de Pedro.
— Estais confusos! Eu vim a Jerusalém apenas para os rituais, pois sou
judeu e temente a autoridade do Templo — retrucou novamente.
Pois no interior do salão estava o ancião Anás. Ele vestia um turbante
grosso e envergava uma imensa barba branca, fazendo-se cercar por outros
sinedristas que, em sua imensa maioria, faziam parte do comprado partido
saduceu, o qual mais lucros e benefícios auferia do Templo. Some-se a isso que
Anás tinha uma antiga prevenção pelos galileus, afinal, havia sido no pontificado
dele que Judas da Galileia tinha conduzido uma grande revolta. E estando
cercado pelos seus, o ancião deu início a inquirição:
— Irmãos, se o assunto não fosse tão sério, eu não vos teria chamado a
essa hora da madrugada — disse com a voz mediana. — Malco, vai buscar o
preso!
Jesus era judeu, mas esse detalhe, naquele momento, nada importava. As
suas ações estavam pondo em xeque a autoridade do Sinédrio e arranhando os
lucros que os saduceus tinham nas cerimônias, mormente as que envolvessem
sacrifícios. A figura do nazareno havia vindo para quebrar a barreira que eles
haviam posto entre Deus e o povo, afinal, segundo professavam, somente eles
poderiam guiá-los ao Eterno. E, ao ver que os fiéis estavam começando a adorar
o Senhor sem regras e pedágios, isso os irritou em demasia.
Nesse ínterim, os guardas se dirigiram às masmorras a fim de conduzir o
preso para um julgamento cujo desfecho já havia sido engendrado. Pois assim
que ficasse em frente de seus verdadeiros inimigos, o futuro de Jesus, ali
forçosamente tratado como um criminoso qualquer, seria enfim selado.

***

Ainda impressionada com o que tinha acabado de ver, Joana, aos poucos
se convenceu de que algo sobrenatural havia ocorrido no jardim de Getsêmani.
Magdalena, cuja espiritualidade era mais aguçada, sabia que o mundo material
em que ambas estavam era apenas parte de um plano maior, onde anjos, almas
perdidas e calabouços sombrios se contrapunham à limitada ciência da razão.
Diante disso, evitou maiores delongas sobre a aparição de Gabriel, afinal, o
tempo urgia. E caminhando apressadamente pelas ruas de Jerusalém, elas
aportaram na casa do nobre José de Arimateia. Desesperadas, bateram
fortemente na porta e foram atendidas por um criado que, outrora simpático a
Jesus, ousou acordar o seu mestre a fim de que as duas pudessem apresentar os
seus pleitos.
— Preso? — surpreendeu-se o juiz. — Mas como?
— Policiais do Templo, eles chegaram no meio da escuridão e o
prenderam como um malfeitor qualquer.
— Caifás foi deveras astuto em fazer isso durante a noite. Mas eu tentarei
intervir em favor de Jesus, mandarei um empregado até a morada do mestre
Nicodemus para que juntos façamos voz diante desse absurdo.
José de Arimateia vestiu um turbante rajado e, acompanhado das duas
apóstolas, rumou para a casa de Anás, onde uma aglomeração já havia se
formado. Em razão da sua autoridade, os policiais que ali estavam não puderam
lhe obstar a entrada e, tão logo o nobre judeu ingressou no salão e se mostrou
aos demais, Anás e o seu genro ficaram incomodados.
— Mas o que se passa aqui? Eu soube que um dos nossos irmãos foi preso
e nós sequer fomos avisados? — insurgiu-se.
— O caso era urgente, Mestre José — interveio Caifás. — Não tivemos
tempo...
— Não tivestes tempo? — provocou. — Pois eu vejo aqui muitos que
pensam como vós, os quais, inclusive, residem bem mais longe do que eu, que,
com um simples grito, poderia ter sido notificado — desafiou diante do fato de
ser praticamente vizinho de Anás.
Nesse ínterim, Nicodemus ganhou o espaço e causou notório desconforto
aos sinedristas presentes, a maioria comprada por Caifás e presa aos favores de
Anás.
— O que houve, irmão José? — indagou ávido.
— Eles prenderam Jesus — respondeu com a voz baixa. — E pelo jeito,
tudo indica que irão julgá-lo à revelia da Lei.
Aproveitando o tumulto, Caifás ergueu os braços e tomou a palavra no afã
de tentar sufocar os poucos sinedristas que eram partidários dos ideais de Jesus:
— Já chega, apresentai-o a nós! — bradou de forma dramática aos
guardas do Templo que o haviam detido.
Ao verem Jesus ser conduzido amarrado e de maneira rude, os seus
defensores temeram pelo pior. Posto diante de Anás, o galileu se mostrava
sereno, bem mais do que quando estava no Getsêmani, onde a sua agonia só foi
amenizada em razão das palavras de força vindas de Gabriel e do maná sagrado
que ingeriu.
— Jesus, filho de José. Este Conselho não tem a intenção de tratar-te
como um bandido comum, mas deves entender a nossa cautela, afinal, sobre ti
recaem acusações graves, dentre as quais, as de bruxaria, blasfêmia, sedição e
tantas que eu sequer sei por onde começar. Portanto, antes de mais nada, dou-te a
grata oportunidade de explicar a natureza dos teus ensinamentos — disse Anás
de forma aparentemente gentil. — O rabi, entretanto, nada respondeu. E ao
contrário, manteve-se como estava, sério e com a cabeça erguida. — Estás
mesmo certo de que não tens nada a dizer? — insistiu Anás.
— Eu sempre falei abertamente... — respondeu Jesus. — Ensinei nas
sinagogas, no Templo e até nas ruas, e tudo o que eu fiz nunca foi em segredo. E
se assim agi, por que me fazes essa pergunta?
Irritado com a aparente impertinência daquela resposta, um dos policiais
que o conduzia avançou na direção de Jesus e o agrediu com um bastão, ferindo
a sua face direita e a base do nariz, cujo sangue começou a brotar.
— É dessa forma que respondes ao grande decano? — gritou o agente ao
vê-lo administrar a força do golpe auferido. Ao perceber que, sem prejuízo da
violência, ele não deu mostras de temor, mas fulminou-o com um olhar
indiferente e ainda ofertou-lhe o outro lado da face, o referido miliciano,
desmoralizado, se afastou instintivamente.
— Mantende a calma, senhores! — apelou Caifás, com um sorriso falso
no rosto. — Voltando ao nosso caso, tu alegas ser um “mestre”! Mas em qual
escola rabínica te formaste? — tripudiou.
— Tudo o que eu sei aprendi aqui e acolá, no Egito e na Judeia, com
pessoas letradas e até mesmo com as sem cultura alguma. E, com Deus, eu
aprendi que a Lei, distorcida em nome de interesses estranhos aos Dele, deve ter
nova hermenêutica; a hermenêutica do amor.
— És um impostor! E um impostor um tanto arrogante! — bradou o
sacerdote. — Como ousas decretar novas Leis no lugar das de Moisés?
— Irmãos, nada do que ele professou ofende a nossa fé — interveio
Nicodemus de forma apelativa. — Ele apenas pede para que sejamos pessoas
melhores, com mais esperança e mais alento — justificou, sob a concordância de
José de Arimateia.
— Jesus! — bradou Anás se erguendo. — De tudo o que possas ter feito,
me causa maior temor a máxima de que terias te autoproclamado filho de Deus!
— Andou na direção do preso, apontou-lhe o dedo e indagou com vigor nas
palavras. — Homem, eu agora te conjuro em nome do Altíssimo. Dize-nos sem
rodeios e de uma vez por todas, és tu o Cristo, o Messias, o filho do Deus vivo?
— Sim, eu sou um príncipe, o mensageiro do novo pacto — respondeu
Jesus com vigor. — E embora vós estejais cegos para determinadas verdades,
sabei que eu me sentei e ainda voltarei a me sentar do lado direito de Deus, de
quem, por sangue e fogo, sou filho legítimo.
Aparentando passar mal, Anás levou uma das mãos ao coração e buscou
escora em Caifás que, num repente de fúria, se voltou ao preso e rasgando as
próprias vestes, vociferou:
— Blasfêmia! Sedição! Que necessidade temos de ouvir mais
testemunhas[140]? Eis que todos presenciaram os horrores entoados por este
homem. Não há dúvidas, ele é um réu de morte! — finalizou Caifás, cuspindo-
lhe no rosto.
— Irmãos, isso tudo é errado! Uma decisão dessas, na calada da noite, só
trará vergonha para o nosso conselho! — apelou José de Arimateia sob os gritos
de repulsa da maioria dos sinedristas.
— Basta de tolices, Mestre José! — interferiu Anás de maneira brutal. —
O que está em jogo agora não são apenas as nossas tradições, mas a própria
existência do povo judeu, ameaçada pelos delírios desse insano! E pelo que
ouvimos aqui, apenas o prefeito romano poderá dar um fim a isso.
— Então irás entregar um irmão nosso a Pilatos? — insurgiu-se
Nicodemus.
— Já está decidido! — gritou Anás. — Leva-o daqui, iremos todos até a
fortaleza Antônia.
Ao ser agressivamente puxado pelos guardas, Jesus encarou aquele vil
sacerdote e, com a boca já sangrando, disse a ele:
— Deus disse: “não matarás”! E ainda assim apedrejais mulheres e
festejais a morte daqueles que vos contestam. Pobres de vós... — disse ao ser
arrastado para um tímido cômodo à parte, onde ficaria à espera de remoção.
— Este julgamento é uma fraude! — contestou o Mestre José em meio à
balbúrdia causada pelo veredicto. — Uma fraude! — repetia contrariado e no afã
de tentar obstar aquele absurdo.
Após a sessão, José de Arimateia e Nicodemus ganharam a rua e foram
instados por Magdalena e Joana, as quais, aflitas, ali esperavam por novas sobre
o rabi.
— Eu temo ser portador de más notícias... — disse José.
— Más notícias? Mas o que houve? E o que fizeram com Jesus?
— Jesus foi acusado de blasfêmia e sedição. E, à total margem da Lei, foi
pré-julgado sem qualquer direito a defesa.
— Sedição? — assustou-se Magdalena.
— Sim... — assentiu o judeu.
— E o que queres dizer isso, senhor? — indagou Joana.
— Que a pena a ser dada a ele pode ser a de morte.
— Morte? — desesperou-se Joana.
— Mas não esmoreçamos, isso escapa da limitada esfera de poder dos
sacerdotes, por piores que sejam as intenções deles. Somente o procurador
romano Pôncio Pilatos poderá confirmar a sentença.
Magdalena caiu de joelhos, e Joana parecia ter entrado em choque.
— Eu tenho certa entrada na casa de Pilatos e, em razão disso, tentarei
apelar. Mas já adianto que a situação é deveras delicada — concluiu. — E antes
que eu me esqueça, tendes cuidado, afinal, os apóstolos deles também são
procurados.
— O que nós faremos, Mirian? — indagou Joana.
— Nós faremos aquilo que prometemos. Ficaremos ao lado de Jesus,
aconteça o que acontecer.
— Cuidado. E se precisardes vos esconder, contai com a minha guarida.
Nesse ínterim, Jesus surgiu no pátio, conduzido pelos guardas e
hostilizado pelos efusivos sinedristas. E ao vê-lo com o rosto bem machucado,
elas começaram a chorar de forma compulsiva, mormente quando um dos vigias,
ao saber que a “condenação” versava sobre blasfêmia, segurou o prisioneiro
pelos cabelos e, com a mão direita, arrancou-lhe um considerável tufo de barba,
haja vista ser essa uma das humilhantes penas corporais reservadas aos
esconjurados por aquele delito.
Sem prejuízo disso, Jesus orava em voz baixa e não reagia: “felizes os que
não andam segundo os ímpios; não estão no caminho dos pecadores e nem se
assentam na roda dos escarnecedores”, sussurrava, no que era tripudiado pelos
que o cercavam.
Já eram cinco e meia da manhã quando Anás e os seus sequazes deixaram
o salão a fim de ganhar a fortaleza romana e, logo atrás deles, os agentes do
Sinédrio seguiram empurrando o nazareno, cuja fibra impressionava, e de certa
forma irritava, os seus detratores.
Pois ao atravessarem o portão da morada do antigo pontífice, um dos
soldados que esteve no Getsêmani se deparou com Pedro, o qual, sob a falsa
escusa de livrar-se do frio, ainda lá estava. E, encarando detidamente o pescador,
o guarda disse a ele de forma ameaçadora:
— Tu não estavas no jardim com este blasfemador?
Acuado e vendo Jesus ferido e a fitá-lo, Pedro recuou e não respondeu.
— Responde! — insistiu o miliciano. — Estavas ou não com este
homem?
— Não. Eu juro que não conheço esse mendigo! Só quero aquecer-me,
por isso estou aqui...
O mestre, mesmo com o rosto levemente inchado, olhou friamente para
Pedro e seguiu o seu caminho, impelido que foi de maneira rude e agressiva.
Pois assim que eles se afastaram, Magdalena surgiu repentinamente diante do
infiel e o encarou de forma a admoestá-lo pela sua covardia:
— Tu e Judas o traíram. Ele, por ódio; e tu, por medo da morte. Tenta
viver com isso, “senhor pescador”.
Tão logo ela findou aquela frase, ocorreu o que Jesus havia antevisto. Um
galo, seguidamente, cantou por três vezes.
Ao ouvir o brado da ave, Pedro segurou os próprios cabelos e, tomado por
um arrependimento extremo, gritou e saiu em desabalada carreira, chorando
amargamente pela fraqueza de espírito e pelo temor de perder a sua vida
material.
Magdalena e Joana, firmes no propósito assumido, seguiram a comitiva
que já subia para a casa romana, oportunidade em que os primeiros raios de sol
anunciavam a chegada do dia. Já eram, então, seis horas da manhã.
Desperto pelos fortes golpes dados na austera porta dos seus aposentos,
Pilatos acordou deveras assustado. Havia passado a noite praticamente em claro,
afinal, sua esposa estava agitada e pouco tinha descansado. Quando finalmente
ambos pareciam ter pegado no sono, um dos seus ajudantes de ordem, de forma
abrupta, o fez saltar da cama:
— Eu espero que seja algo importante, Anaxander... — disse ele.
— Senhor... — balbuciou. — O comandante da guarda deseja falar-te —
disse ele apontando o nervoso centurião.
— O que houve, Marcellus?
— Excelência... — adiantou-se. — Creio que temos problemas...
Pilatos se vestiu rapidamente e, sob o ainda assustado olhar da esposa,
seguiu o oficial e dele auferiu as novas:
— Está, no palácio, uma comissão de sinedristas lideradas pelo próprio
sumo-sacerdote...
— E o que querem eles a essa hora da manhã? — indagou ajeitando a
toga.
— Clamam por uma audiência extraordinária nas escadarias do pretório,
já que, segundo a Lei deles, não podem entrar num prédio romano durante a tal
Páscoa, sob pena de se tornarem impuros.
— Esses judeus e os seus costumes estúpidos — retrucou. — Mais
alguma coisa que devo saber?
— Eles estão conduzindo um prisioneiro. E pelo que me foi dito, trata-se
daquele tal agitador, Jesus de Nazaré.
— Jesus de Nazaré? — retrucou parando momentaneamente. — O tal que
entrou na cidade ovacionado pelos próprios judeus?
— Sim senhor. Mas parece que o jogo virou...
— Eu já desconfiava, Caifás queixou-se dele recentemente, e eu não dei a
devida atenção. Vem comigo, não podemos ter quaisquer problemas durante o
festival judaico.
Ao ganhar as pilastras do pretório, Pôncio Pilatos se deparou com um
ajuntamento de juízes judeus, cuja consentânea guarda trazia preso um homem
visivelmente ferido na face, mas de aparência serena e segura.
— Excelência, nós necessitamos dos vossos valiosos préstimos para
resolver um incidente de vultuosa gravidade — disse Caifás.
— Tão grave assim? — retrucou Pilatos, ao ver, de longe, as lesões que
Jesus tinha na região da face.
— Se não o fosse, não teríamos vindo a vós tão cedo.
— E por que a mim? Por que não o julgam conforme as vossas leis?
— Se nós fossemos uma nação livre, o faríamos com certeza. Mas por
sermos um povo conquistado, não nos é lícito condenar alguém à morte.
Diante daquela ponderação, Pilatos logo percebeu que Jesus não era tido
como um criminoso comum.
— Morte? — questionou receoso. — E o que fez ele para merecer tal
suplício?
— Esse homem praticou vários crimes graves — esclareceu o sumo-
sacerdote. — Violou o sábado, professou doutrinas ofensivas...
— Mas isso não é problema de Roma — interrompeu-o de forma abrupta.
— Senhor, isso não é tudo. Nós também fomos informados que ele é o
líder de uma seita perigosa, bem mais hostil que a dos próprios zelotes.
— Continua...
— Ele professa ser o Messias, o rei prometido aos judeus cativos. E tem
dado a entender que nós não devemos recolher tributos ao Império Romano, o
qual ele não reconhece como soberano.
Ao ouvir as expressões “rei” e “Império Romano”, Pilatos encarou
Marcellus e ordenou:
— Trazei-o aqui.
Licenciados com um singelo movimento de cabeça do oficial, dois
legionários que os acompanhavam tomaram Jesus das mãos dos carrancudos
policiais do Templo e o levaram para o interior do pretório, onde a justiça de
Roma era aplicada. Pilatos lá se pôs enfadonho, e estando de costas para o
prisioneiro, verteu um pouco de água numa taça. Ao dar um gole, aproximou-se
de Jesus e, de maneira cortês, ofereceu-lhe o restante. Sem perder o bom-humor,
ele levantou os braços contidos pelas pesadas correntes, dando a entender que
daquele modo não conseguiria segurar o copo. Pilatos então mandou que o
soltassem daquelas algemas, e ele então aceitou o gesto, o qual aparentava ser de
boa vontade. Após saciar a sua sede, o nazareno devolveu a taça e ficou à espera
de uma iniciativa do prefeito.
— Tu falas grego? — indagou envergando o idioma de emprego geral.
— Sim, um pouco... — respondeu Jesus na mesma língua.
— Bem, ouviste o que os teus estão a te acusar, então dize-me, és o
prometido rei dos judeus?
— Perguntas por ti mesmo ou apenas por que eles te disseram isso?
Pilatos o fitou surpreso com a resposta e, tencionando não se desconcertar
e aborrecer-se insistiu:
— És corajoso, nazareno, coisa rara de se ver entre os teus, afinal nem
[141]
Josué e tampouco Salomão irão se levantar dos seus túmulos para salvar-te.
Mas lembra-te que não fui eu quem te prendeu, e sim a tua própria gente.
— O que posso dizer é que o meu reino não é nesse plano. Pois, se fosse,
a minha armada não teria deixado que me detivessem.
— Eu entendo... Mas ainda assim, sou impelido a insistir. És rei; o
profetizado “Messias”?
— Digamos que eu seja um príncipe — respondeu, em alusão ao seu título
celeste junto à casta dos arcanjos. — E foi em razão disso que eu vim, para dar
testemunho da verdade.
— “A conformidade de um fato...” — ponderou Pilatos, ao analisar
friamente o significado daquela expressão. — Mas, e para ti, o que é a verdade?
— Certamente não é aquela que foi usada como pretexto para que me
trouxessem sob ferros até a vossa presença.
Cláudia Prócula ouvia, aflita, aquele colóquio numa antessala e, deixando-
se, por um momento, revelar ao esposo, este a fitou preocupado e, vez mais,
encarou Jesus, cujo inchaço do rosto parecia aumentar a cada instante. Pilatos
teve um repente e, dando por encerrado aquele interrogatório, gesticulou aos
soldados, que se puseram a reconduzir o nazareno à entrada do pretório, onde os
sinedristas aguardavam ansiosos.
— Não vi culpa alguma nele. Ele não é um bandido, é apenas um filósofo
— revelou o prefeito.
Incomodados com aquela conclusão, e ainda assim, evitando se aproximar
dos arcos da casa de ordens romana, os senadores judeus ainda tentaram
ponderar, mas Pilatos tentou lhes dar o troco pela ousadia:
— É de Nazaré que vem esse homem, pois não?
— Sim, excelência. Mas...
— Pois então ele deve ser julgado pelo tetrarca da Galileia, que por ser
judaizado, está na cidade para os vossos festejos — assentou.
E após restituir Jesus aos guardas do Templo, o prefeito romano deu as
costas a Caifás e retornou à fortaleza na certeza de que havia se livrado daquele
incômodo fardo, principalmente diante da presença física do detido, que
indiretamente pareceu assombrá-lo.
Mesmo inconformados, os sinedristas se puseram a caminho da edificação
onde Antipas ficava quando vinha a Jerusalém, afinal, a lide estava apenas
começando.
Quando o filho do finado rei da Judeia soube que Jesus estava no salão
central do palacete, ele ficou efusivo e, ao mesmo tempo, preocupado, afinal, ele
era um profeta de renome e, desde que tinha mandado matar João Batista, as
possibilidades de ele levantar a mão contra o nazareno — por medo e remorso
— eram mínimas.
— Jesus, quanta honra receber-te! Peço desculpas pela pouca pompa das
minhas vestes, afinal, confesso que fui retirado do meu leito apenas para poder te
ver.
Jesus encarou Antipas e se manteve silente, afinal, ele captou que o
regente da tetrarquia estava literalmente apavorado.
— Eu soube que és primo do finado João Batista... — lamentou de forma
teatral. — Um homem excelente, um profeta incrível... — continuou no afã de
tentar impressioná-lo. — Mas enfim, a que devo o prazer da tua inusitada visita?
— Ele é um criminoso, majestade — interferiu Caifás. — E por ser galileu
de nascença, o prefeito o encaminhou ao vosso alvedrio para julgá-lo.
— Um criminoso? Mas do que ele é acusado?
— Ele diz ser o “Messias”.
Ao ouvir tal expressão, Herodes Antipas alterou a fisionomia e recuou.
— “Messias”? — retrucou incomodado. — Pois eu me lembro que,
quando moço, o meu pai ficou atemorizado com a vinda dele. E em razão disso,
baixou um decreto que pôs fim a centenas de pequenas vidas inocentes. Enfim,
Herodes I e suas sandices, não é à toa que teve o fim que teve — concluiu, ao
sentar-se numa cadeira que lhe servia de trono. Percebendo que não havia
impressionado Jesus, ele se ergueu e foi vagarosamente em sua direção. — Mas
deixa-me dar-te uma oportunidade para que desmontes essa acusação que pesa
contra ti. Dá-nos uma pequena demonstração dos teus poderes. Faz um pequeno
milagre.
Jesus então quebrou o silêncio e disse a ele:
— O destino do teu pai foi justo, os pecados dele foram abomináveis. Mas
não me tentes, pois se não cedi ao caído, não o farei a alguém como tu...
Herodes ficou surpreso com o tom daquela resposta, e ao perceber que um
dos guardas do Templo iria agredir Jesus novamente, ele o obstou com um
movimento de braço. E ao encará-lo detidamente, ficou aterrorizado com as
verdades que viu através daqueles olhos — mormente o colóquio com Salomé
— e, recuando novamente, passou a temê-lo, assim como havia temido João
Batista. Desejando privar-se da responsabilidade sobre o destino de Jesus e não
cometer os mesmos erros do pai, o tetrarca baixou o tom e disse aos senadores
judeus:
— Levai-o de volta, pois pelas leis romanas, ele deve ser julgado no lugar
onde cometeu os crimes que ora lhe imputam — decidiu aparentemente acuado.
Os sinedristas entraram em polvorosa, afinal, todos pareciam ter medo de
Jesus, a exceção deles. E visivelmente nervosos, eles retomaram o caminho do
pretório, decididos a usar todo e qualquer subterfúgio para convencer o
procurador romano da culpa do nazareno.

***

Assim que o dia clareou na Grota dos Leprosos, Susana despertou e


passou a preparar o que seria o desjejum dos doentes que ainda não tinham
forças morais para se levantar e encarar os seus medos.
Pois vigiando-a na entrada da caverna, um anjo fugido jazia empoleirado
numa grande pedra afiada sem chamar muita atenção. E, admirando a beleza de
Susana, ele aguardava o melhor momento para tentar se aproximar dela
novamente, afinal a primeira investida na cidade de Tiberíades havia sido
infrutífera, para não dizer, catastrófica.
Pois traído pela paixão, a qual lhe retirou o foco periférico de defesa,
Azeyzel foi surpreendido por uma investida verbal que logo o fez voltar a
realidade:
— Hoje eu entendo os motivos que te levaram a fugir do Céu...
E, ao virar e identificar o interlocutor, a velha Potência se viu premida.
— Metatron! — respondeu surpreso.
— Sim, Azeyzel. Há muito estou no teu encalço.
— Irmão, tenho consciência dos dissabores que te causei. Entretanto, rogo
a ti: não tentes colocar-te no meu caminho.
— Talvez uma das minhas grandes fraquezas seja o coração fraco, algo
que não se coaduna a um anjo da minha ordem[142]. Mas mesmo depois de tudo o
que passei por tua causa, não posso voltar ao Céu sem ter-te comigo.
— Sabes que eu jamais irei voltar, não voluntariamente — retrucou. —
Pois, como tu mesmo disseste, hoje me entendes.
— De fato, os humanos são cativantes — disse o arcanjo ainda distante.
— Eu mesmo escrevo sobre eles desde a criação, mas apenas agora, por ter
efetivamente vivido em meio deles, é que me dei conta das causas que impeliram
Samael a abdicar de um principado no Céu para raptar a primeira mulher de
Adão e fugir com ela para a Lua[143].
— Pois se compreendes isso, então sabes que eu não irei abdicar de Layla-
Li.
— Layla-Li está morta, Azeyzel. Susana nasceu no lugar dela.
— Layla-Li, Susana; chama-a como quiseres. Mas eu amo essa mulher e
farei o que for preciso para tê-la de volta.
— Bem, ao que me consta, eu sou um arcanjo. E tu ainda ostentas a
condição de fugitivo. Portanto... — disse sem completar a frase.
— Metatron, não sejas leviano — disse ele, tomando uma posição
defensiva.
— Sinto muito, Azeyzel, mas eu tenho ao menos que tentar... —
respondeu ao empunhar a sua afiada lâmina de fogo.
— Pois quem sinceramente sente sou eu — retrucou fazendo surgir a sua.
Atraída pela invulgar luminosidade que surdiu no cenário, Susana se
assustou ao ver alguém na companhia do seu protetor, principalmente ao
perceber que ambos lutava com armas reluzentes. Os dois anjos que os
acompanhavam como carregadores haviam ido à cidade e voltariam ao cair do
dia. Vendo-se sozinha, ela temeu não só pela sua integridade, mas também pela
do seu amigo. Embora tivesse tido o repente de gritar por socorro, aquilo seria
inviável diante do isolamento a que eles estavam submetidos, afinal, Jesus e os
seus somente deveriam voltar ao fim da páscoa, o que só ocorreria em alguns
dias. E perto da Grota dos Leprosos, a bem da verdade, não vivia absolutamente
ninguém.
Mas de volta ao cenário do conflito, era fato que o Arcanjo Metatron
nunca havia sido um soldado de front, pois desde sempre exerceu as suas
atividades na chancelaria do palácio de Deus. Azeyzel, embora não fosse militar,
era um armeiro notável e, por isso, era bem mais íntimo da espada do que o
escriba. Aquela cena inusitada pôs Susana em desespero, e sem saber como agir,
ela correu instintivamente na direção do protetor, no afã de tentar fazer alguma
coisa. Diante disso, acabou segurando o pingente do colar das constelações que
havia ganhado de Beelzebu e, sem saber que ele era um transmissor de energias,
acabou repassando o seu temor ao príncipe-primeiro dos querubins, o qual,
àquela altura, estava em Jerusalém na companhia de Caliel, nas proximidades do
pretório onde Jesus ainda estava sendo julgado.
Bem distante dali, sentindo o fundado temor de Susana, Beelzebu encarou
Caliel e, sem dizer uma única palavra, o despachou para a direção do vale a fim
de tentar protegê-la e verificar o que por lá ocorria.
Enquanto isso, Metatron e Azeyzel ainda lutavam com ferocidade do
outro lado da grota, sendo que o primeiro, embora decidido a capturar o fugitivo,
parecia estar em desvantagem, tamanha a destreza da Potência. Ainda assim, por
estar tolhido das suas asas, o mestre-armeiro celeste não conseguia se manter
ereto com tanta facilidade e, de repente, escorregou e acabou rolando para o
fundo da depressão, caindo quase que aos pés de Susana, que assustada, o
repudiou.
Pois, ao encará-la de perto, Azeyzel percebeu que ela usava o colar
místico das constelações de Beelzebu, o qual, por estar cintilando, dava a
entender que ele havia acabado de ser usado como meio de contato.
Sabedor da qualidade da joia — a qual transmitia mensagens — ele
pressentiu que Metatron talvez viesse a receber algum tipo de retaguarda e,
vendo-o atacar por cima de si, atracou-se com o irmão e conseguiu contê-lo,
momentaneamente, com um golpe de defesa. Feito isso, revelou-lhe com
aparente pesar:
— Desculpa, irmão, mas o meu coração falou mais alto...
Azeyzel aproveitou-se da situação e expandiu a sua arma junto ao
desprotegido abdômen de Metatron, que, ao olhar fixamente para Susana e sentir
o extremo rigor daquela dor, esboçou um sorriso tímido e começou a se
desfragmentar aos poucos, logo virando cinzas que foram consumidas pelo
vento.
Mostrando aparente desconsolo em razão do crime, Azeyzel premiu as
mãos nos olhos como se segurasse um choro pelo fratricídio que tinha acabado
de cometer e tentou, em vão, apelar à sua amada:
— Agora vem comigo! — pediu ao estender-lhe a mão. — Eu te persigo
desde o início dos tempos, vamos fugir para longe daqui, para um lugar onde nós
nos amemos em paz e para sempre.
Tentando administrar o conflito que de repente tomou conta de si —
“lascívia” versus “resignação” —, Susana esboçou estender o braço, mas
repentinamente convenceu-se de que estava errada:
— Não! Eu não mancharei a minha alma para entregar-me em prazer
pecaminoso contigo! Afasta-te de mim! — bradou.
Sentindo o desprezo daquela que havia amado por séculos, Azeyzel tentou
esboçar uma ação ativa para demovê-la daquela decisão, mas, ao pressentir pela
sua aguçada audição, a iminente aproximação de um querubim menor, daqueles
cujas asas batem mais de cem vezes por segundo, não arriscou permanecer ali,
pois se o tal socorro fosse Caliel — e era! — ele fatalmente seria levado de volta
à cadeia de Vigilum, ainda que em cinzas.
A Potência tomou para si a bolsa de Metatron, a qual abrigava os livros
sobre a história da humanidade, e esboçou escapar. Invocando um encantamento
mágico, o do teletransporte, ele bradou uma expressão cabalística da linguagem
proibida das Presenças, “ega obbusd samaris hrtp!”, e conseguiu se
desmaterializar no exato instante em que o arisco e aguerrido Caliel, com a sua
amolada foice de fogo já rija, transpassou o último resquício de energia que ele
tinha deixado ao fugir para um lugar de espaço e tempo incertos.
Pousando agressivamente na rocha onde Metatron havia sido assassinado,
o querubim passou um dos dedos sobre a pedra que acolhia os restos mortais
dele e, ao levá-las a própria língua, ficou furioso ao admitir que, por questão de
poucos instantes, não havia conseguido impedir a morte violenta do seu mui
querido companheiro de lida.
Susana ficou assustada em ver aquela cena, afinal, flutuando no ar e
fortemente armada, ali estava a pequena Chaya, até então, ao menos para ela,
apenas uma das muitas crianças que compunham a comitiva de seguidores de
Jesus. Percebendo que a jovem tinha ficado desconcertada, Caliel engoliu o ódio
e decidiu retornar a Jerusalém para dar parte do ocorrido a Beelzebu, afinal, a
prisão de Azeyzel não era assunto deles, mas a morte de Metatron talvez fosse.
Ele então sorriu a Susana, tocou-lhe a testa e gerou um estranho clarão, o
qual a fez esquecer daquilo que havia visto, restando-lhe apenas uma lembrança
plantada de uma imaginária despedida de Metatron. A jovem abriu os olhos de
maneira repentina e nada mais viu, recordando-se apenas de que tinha deveres a
cumprir com os doentes que ainda lá estavam.
Inconformado com a ousadia de Azeyzel, o querubim identificou o cheiro
do fugitivo no vento, Caliel retornou a Jerusalém em poucos instantes, ao ponto
de presenciar quando os policiais do Templo voltavam do palácio de Herodes
conduzindo Jesus até as escadarias do pretório.
Ao vê-lo chegar deveras agitado, Beelzebu sussurrou:
— E então? O que houve?
Caliel balançou negativamente a cabeça e pediu colo, a fim de, sem
chamar a atenção, reportar no ouvido do seu príncipe o resultado da incursão.
Pois ao ouvir o relato do capitão da Guarda Negra, Beelzebu logo se lembrou da
conversa que havia tido com Metatron, sobre os temores dele e a crença de que
ambos não mais se veriam. Os preciosos livros sobre as guerras celestes e a
criação da humanidade haviam sido rapinados, entretanto, ao menos naquele
momento da história, nada poderia ser feito.
— Bem, a nossa missão é permanecer ao lado do avatar de Miguel. Diante
disso, pouco nos cabe fazer a respeito... — disse num tom de lamento.
Naquele mesmo instante, o centurião Marcellus ganhou o salão de
audiências da fortaleza Antônia e, constrangido, reportou ao prefeito algo que
este preferiria jamais ter ouvido:
— Senhor... — hesitou. — Eles voltaram com o galileu. E o pátio do
pretório foi tomado pelos judeus.
Envergando um misto de contrariedade e nervosismo, Pilatos se ergueu
arisco e asseverou:
— Mas não é possível!
— E o que faremos, senhor? — indagou ansioso.
— Chama reforços, talvez as coisas piorem.
Nesse ínterim, Cláudia Prócula se dirigiu ao esposo e rogou:
— Cuidado, Pôncio! Eu pressinto que estás servindo de massa de manobra
para esses senadores judeus.
— Eu tomarei cuidados até onde a nobreza do meu cargo permitir. Tibério
já me repreendeu uma vez[144], e eu não poderei deixar que ele o faça novamente.
Pilatos deixou-a no paço e voltou ao Fórum já lotado. Ao lá chegar e
auferir as novas vindas da casa de Herodes Antipas, ele bradou a Caifás e
também ao povaréu afoito que se amontoava:
— Se nem Herodes encontrou culpa nele, o que mais quereis vós?
— Excelência, nós insistimos que esse criminoso conspira para esbulhar a
coroa romana! Reflita e reveja a sua decisão.
Percebendo que no pátio do pretório uma multidão de judeus se
avolumava, a grata parte triada pelos guardas do Templo para poder fazer
número aos partidários do sumo-sacerdote, Pilatos então se lembrou de uma
regra antiga, na qual o prefeito, em nome do imperador, poderia libertar um
judeu de renome na época do festival da Páscoa. Diante disso, tal lhe pareceu
uma saída para tentar poupar Jesus da sanha dos seus, afinal, um dia antes, três
criminosos de escol haviam sido julgados e condenados, dentre eles, Barrabás.
Embora fosse um zelote perigoso, Pilatos teve que abrir mão dele em razão da
sua notoriedade e nacionalidade, pois Jesus não poderia ser exposto com um
bandido de somenos, o que contrariava o teor daquela benesse real. Ele então
mandou que trouxessem o famoso zelote até o pretório, o qual, ao lado do rabino
de Nazaré, haveria de ser exposto.
Erguendo as mãos a fim de controlar a turba que já fazia número no pátio,
Pilatos retomou a palavra e anunciou:
— É de conhecimento geral que Roma costuma conceder a liberdade de
um preso judeu durante a festa da Páscoa. E aqui, hoje, nós temos dois detidos
de notória fama: Barrabás, um nacionalista acusado de homicídio e pilhagem. E
Jesus vindo de Nazaré, a quem os juízes do Sinédrio atribuem o crime de lesa-
majestade por dizer-se “rei dos judeus”. Então vos pergunto: qual dos dois
devem ser soltos?
— Ele não é rei, solta Barrabás! — bradou um afoito sinedrista que
acompanhava Caifás.
Desesperadas por não terem conseguido ingressar no pretório, Magdalena
e Joana ficaram receosas diante da fúria dos espectadores comprados pelo
Sinédrio, os quais, a qualquer custo, tentariam fazer de tudo para levar Jesus à
morte! Em meio ao ajuntamento que já se fazia na parte de fora da fortaleza, elas
de longe viram a conhecida Betseba, a qual ali estava com Chaya no colo.
— Betseba! — gritou Magdalena de modo a chamar-lhe a atenção. — O
mestre foi preso.
— Eu já soube, Mirian. Eu e a minha irmã já estávamos fora da cidade
quando a notícia correu. Diante disso voltamos para tentar descobrir o que
houve.
— Nós estávamos todos no jardim de Getsêmani. De repente, Judas
chegou com a Polícia do Templo e Jesus acabou preso — esclareceu Joana.
— Que horror... — ponderou. — Ao que me parece, o sumo-sacerdote e
os seus estão premindo os romanos para acabar com Jesus. Mas vejam, parece
que o prefeito vai falar novamente...
— Mas se quereis que eu solte Barrabás, o que devo fazer com Jesus?
— Crucifica-o! – gritou Caifás, tomando frente daquela efusiva multidão.
Pilatos olhou para a área interna do pretório e viu Cláudia de relance, a
qual, visivelmente aflita, fez um movimento negativo com a cabeça.
— Não! Ele não é um criminoso, é apenas um sonhador — insurgiu-se
Pilatos. — E a prefeitura se contenta que ele seja apenas castigado.
Ainda sob os protestos da multidão, Pilatos chamou Marcellus e disse a
ele ao pé de ouvido:
— Leva-o ao pátio da guarda e manda dar-lhe um corretivo. E diz aos
soldados para que sejam mais severos do que de costume, pois se o povo vê-lo
debilitado, talvez se apiedem dele e amoleçam o coração.
— Sim, senhor.
— E Marcellus... — chamou-o antes de ele ir. — Eu disse “severos” e não
“fatais”, me fiz claro?
— Claro, tribuno!
Estando ao lado de Jesus, Barrabás ainda teve tempo de interpelá-lo:
— Reage, galileu... Luta!
Jesus não deu crédito àquela assertiva e, empurrado sem gentileza pelos
guardas romanos, deixou aquele local rumo ao pátio da guarda, onde, a
princípio, haveria de ser açoitado.
Ao perceberem que o seu mestre estava sendo encaminhado para uma área
interna do prédio, as mulheres tentaram segui-lo, entretanto aquele espaço era
defeso ao público e, em razão disso, a angústia as visitou. Beelzebu percebeu
que o flagelo de Jesus estava prestes a começar e, nesse passo, pediu licença e
foi para um lugar reservado a fim de abrir a carta que Deus havia dado a ele no
Céu, a qual deveria ser descerrada tão logo aquele momento chegasse. Ao
finalmente auferir o teor dela, chamou por Caliel e o orientou:
— Capitão, vai até as cercanias da cidade e procura aquele centurião meio
cego, o tal Longinus. O Senhor, ao que agora vi, tem um encargo especial para
ele.
O pequenino anuiu prontamente e, sem que ninguém percebesse,
transformou-se num espectro de luz, levantou voo e rumou a fim de cumprir o
determinado.
Pois o extremo sofrimento do corpo físico de Jesus e o desfecho da
existência de muitas pessoas, algumas delas vivas desde o início dos tempos,
estava prestes a começar.

***

Despertos em razão do movimento no pátio da fortaleza, dois dos


criminosos condenados na tarde anterior acordaram assustados, afinal, dentro em
breve, a cruz seria o destino final deles.
Numa cela rudimentar que dava acesso à área do Fórum, a chamada
“triagem” onde os sentenciados aguardavam a flagelação, os bandidos Dimas e
Gestas estavam ansiosos, pois já passava das sete horas, e os soldados ainda não
haviam vindo buscá-los. Era costume que as crucificações fossem feitas logo
após o início do expediente do pretório, às seis horas, mas, em razão do
imprevisto causado pelos sinedristas, o serviço atrasou.
Marcellus chegou ao pátio da guarda e perguntou ao encarregado do dia
qual era a unidade de crucificação que estava de serviço naquela oportunidade:
— A Décima Terceira, senhor.
— Chama então o responsável, tenho uma tarefa para que eles executem
antes de saírem com os demais condenados.
Ao reverenciar o agora centurião-chefe, Cartaphilus se apresentou pronto
a receber ordens:
— Quantos para hoje, soldado?
— Eram três, senhor, mas diante da soltura de Barrabás, a conta por ora
ficou em dois.
— Bem, o prefeito ordenou que este homem seja rigorosamente açoitado
como lembrança da justiça romana — disse referindo-se a Jesus. — Ele é
acusado de sedição, diz ser rei dos judeus, mas o tribuno está inclinado apenas
em castigá-lo.
— “Rei dos judeus...” — repetiu Cartaphilus, que desde sempre nutria
ojeriza por aquele povo. — Fica tranquilo, senhor, eu garanto que ele jamais se
esquecerá de quem está no comando — concluiu com um sorriso amarelado que
deixava à mostra os poucos dentes íntegros que lhe sobraram.
Acostumados a impor flagelos que normalmente não ultrapassavam as
quarenta chibatadas com o intuito de que os condenados não morressem e ainda
tivessem o mínimo de força para carregar o patíbulo[145] até a Gólgota[146], os
carrascos daquela unidade ficaram mais tranquilos com relação ao rigor do
suplício, afinal, Jesus seria castigado e liberado, sem ter que levantar o peso da
cruz. Diante disso, a reprimenda haveria de ser duplicada, quiçá, triplicada.
— Tirai as roupas dele e o amarrai na coluna — ordenou Cartaphilus. —
E quanto aos presos do dia, trazei-os aqui para que sintam uma pequena prévia
do que os espera — disse gargalhando.
Os executores receberam Jesus dos soldados do pretório e lhe arrancaram
as vestes, atando os seus pulsos numa incômoda algema de ferro que ficava
presa a uma longa corrente que transpunha a parte alta da coluna, de modo a
fazer com que o seviciado ficasse com os braços totalmente estendidos para não
ter a escora deles para livrar-se dos golpes que haveriam de lhe atingir as
costelas. Feito isso eles enrolaram o que havia sobrado da correia numa haste
fincada próxima à base da pilastra, a fim de deixar o conduzido pronto para o
suplício.
Assim que Dimas e Gestas chegaram, Cartaphilus e o seu auxiliar
tomaram um flagrum[147] em cada mão, e se colocaram em lados opostos,
circundando a coluna para dar início àquele flagelo especial. Ao perceber a
movimentação dos executores, Jesus fechou os olhos e, num repente, sentiu
como se ainda estivesse usando a sua armadura de guerra, a armadura de um
arcanjo, a qual sempre o havia protegido e servido de escora. E, concentrando-
se, disse a si mesmo: “O que irei enfrentar agora; enfrentarei com a força de um
anjo”.
Feito isso, Cartaphilus esticou o braço direito para trás e, com vigor, deu
dois passos firmes na direção do preso, impondo-lhe o primeiro golpe nas costas.
Ao atingir a pele de Jesus, as pontas do flagrum — intercaladamente
ornadas com esferas de metal, fragmentos de ossos de carneiro e lâminas de
ferro — destroçaram parte da epiderme do açoitado, rasgando vasos sanguíneos,
músculos e nervos, dando lugar a três lacerações profundas que esguicharam
sangue.
Quando sentiu o látego lhe fender a pele, Jesus premiu forçosamente os
olhos, rangeu os dentes e absorveu a forte dor física que experimentou. Pois
naquele mesmo instante, Maria, que estava prestes a chegar à cidade vinda de
Betânia, sentiu um forte fisgo no coração, como se aquele golpe a tivesse
atingido em cheio.
O executor contrário então deu a segunda, causando o mesmo efeito. E de
golpe em golpe, um dos membros do esquadrão, o alcunhado numerus[148],
bradava efusivo e em voz alta a sequência de cada corte, cuja severidade parecia
aumentar a cada urro daquele soldado.
Assustados com a extrema violência empregada e ante à quantidade de
sangue que era expelido do corpo de Jesus, os dois ladrões presenciaram,
chocados, o nascedouro de intensas contusões nas costas no nazareno, a qual, em
poucos minutos, ficou inteiramente rubra. Em dado momento, quando a
contagem estava beirando o número trinta e um, Jesus verteu instintivamente à
esquerda, afinal, o rigor de um dos golpes lhe comprometeu uma das costelas,
cuja fratura se fez crassa.
Percebendo isso, Cartaphilus, suando e tentando secar os respingos de
sangue que involuntariamente lhe atingiram a face, respirou fundo e continuou
firmemente com aquela tortura, alternando os golpes para a região dos rins e das
nádegas de Jesus, ao passo que o outro executor castigava as pernas do nazareno,
que embora revelando todos os efeitos externos daquelas sevícias — destroços
na pele e intensa hemorragia — absorvia os rigores das chibatadas sem emitir
um único grito, cuja contenção se dava de maneira surpreendente.
Quando o numerus bradou o número cinquenta, os executores estavam
exaustos, afinal, numa pré-crucificação, bastavam dez golpes para que o
condenado vergasse sem perder a totalidade das forças que lhe seriam
necessárias para conduzir o patíbulo até o local da sua execução.
Percebendo que Jesus, embora trêmulo, mantinha a cabeça erguida,
Cartaphilus mandou que o virassem de frente e, mais ainda, que amarrassem os
seus tornozelos na coluna, a fim de que ele fosse obrigado a suportar outros
tantos golpes ainda por vir sem ter condições de tentar reagir ao açoite.
Quando finalmente enxergou a face do seviciado, Dimas ficou
impressionado com a resistência dele, afinal, àquela altura, Jesus já havia
apanhado três vezes mais que os condenados comuns e, pelo que tudo indicava,
haveria de apanhar bem mais.
— Pareces ser de ferro, judeu — balbuciou Cartaphilus. — Mas o sangue
que sai de ti revela que és carne, e como um animal, em breve haverás de
suplicar para que eu pare.
Percebendo que o outro executor aparentava desconforto com a
continuidade daquelas sevícias, Cartaphilus se enfureceu e tomou-lhe o flagrum,
entregando-o a um terceiro soldado que lá estava.
— Fazei o que deve ser feito ou eu mesmo vos chicotearei — bradou
deveras nervoso e então se voltou para Jesus, enfurecido, e deu o primeiro golpe,
o qual, pelo rigor, lhe rasgou parte do mamilo esquerdo. E após, outro. Ambos
então passaram e se intercalar, castigando severamente a região torácica do
nazareno, que, àquela altura da contagem — setenta e três — já tinha o
revestimento de algumas costelas totalmente exposto.
A ação do flagrum — as esferas contundiam e os ossos e lâminas
laceravam — contribuiu para que o corpo de Jesus ficasse coberto de rasgos e de
sangue, afinal, as lâminas se agarravam à pele e obrigavam os executores a
puxar o azorrague de volta, destruindo ainda mais a epiderme do flagelado. E
embora estivesse experimentando visível sofrimento físico, ele não emitia um
lamento sequer, como se toda aquela dor estivesse sendo abafada no interior da
sua alma, que em verdade era ungida.
— Cem! — bradou finalmente o numerus.
Cem chibatadas. Até então, nunca se havia tido notícias de que algo
similar houvesse ocorrido no pretório, e mais ainda, que alguém tivesse
sobrevivido a um suplício horrendo como aquele.
Enfurecido e exausto pela empreitada, Cartaphilus arremessou o flagrum
no chão e, junto à bancada do esquadrão, tomou para si uma ripa de madeira
flexível. Ele então apoiou momentaneamente as mãos nos joelhos, em razão do
cansaço, e mandou que soltassem as correntes, as quais, no ver dele, eram as
responsáveis por manter Jesus de pé. Quando um dos soldados o fez, os braços
do fustigado verteram de imediato, mas, ao contrário do que se podia pensar,
Jesus ainda ficou de pé.
Incrédulo diante do que se via, o encarregado do esquadrão ergueu o
sarrafo e passou a golpear violentamente as pernas de Jesus, a fim de, a todo
custo, fazê-lo, ao menos, ajoelhar-se. Cartaphilus passou a gritar tanto com o
prisioneiro que os seus urros chamaram a atenção do comandante Marcellus, o
qual, ao retornar ao pátio, foi surpreendido pela inusitada cena. Jogando o seu
capacete no chão, Marcellus segurou o subordinado, que, tresloucado, não
conseguiu realizar o seu doentio intento.
E foi apenas então que Jesus, vendo-se livre dos golpes, cambaleou
sozinho até a mesma pilastra onde havia sido amarrado e, nela, encontrou
temporária escora, mas sem vergar.
— Idiotas! Eu disse para serdes severos e não para matá-lo — bradou
Marcellus, ao empurrar Cartaphilus e arremessar aquela ripa manchada de
sangue para longe.
O centurião então tomou uma capa surrada que lá jazia ao sol e cobriu
Jesus no afã de tentar minimizar o choque que Pilatos teria ao vê-lo destroçado.
— Agora, trazei-o de volta ao pretório, rápido!
Cartaphilus voltou a si e caminhou arfando na direção de Jesus:
— Deves mesmo ser rei... — disse esbaforindo. — Mas falta-te ainda um
pequeno detalhe.
Ele então se dirigiu a um espinheiro que crescia nos fundos do pátio da
guarda, cuja matéria servia para alimentar as fogueiras dos soldados, e dele
arrancou alguns galhos, os quais, após entrelaçá-los, fez formar uma espécie de
gorro, que com a ajuda de um caniço, afundou forçosamente na cabeça de Jesus.
Os espinhos, cujas dimensões chegavam a sete centímetros, foram cravados na
epiderme do mestre de Nazaré, dando azo a inúmeros ferimentos perfurantes,
cerca de setenta, tamanha a agressividade daquele bizarro adorno.
Pois o encarregado do esquadrão, ainda respirando de forma acelerada,
deu um sinal para que Jesus fosse finalmente levado à presença do prefeito, e
para que os outros dois bandidos, na sequência, fossem flagelados “aos
costumes”, a fim de que a unidade, sem maiores delongas, partisse rumo a
Gólgota para crucificá-los.
Gestas foi o primeiro a ser acorrentado no pilar da guarda e, tentando
mostrar destemor e desprezo pelos romanos, viu sua coragem diluir ao verter
logo no quarto golpe, quando começou a guinchar e se contorcer naquela imunda
pilastra. Dimas, o bom ladrão, experimentou o mesmo número de açoites — dez
— e assim como o seu predecessor, se entregou logo nos cinco primeiros. Jesus,
que havia levado cem delas, de fato, não era um homem comum.
Quando Pilatos saiu da área interna do Fórum e viu o estado físico de
Jesus, ficou atônito. Marcellus fitou o prefeito e se mostrou constrangido,
entretanto, a ordem dada havia sido, de certa forma, cumprida, afinal, o flagelo
havia sido rigoroso, e o preso ainda estava vivo. Diante daquilo, o romano
pareceu se convencer de que o povo certamente ficaria apiedado de Jesus e que
não teriam coragem moral de insistir para que ele, naquelas condições, fosse
mandado à cruz. O prefeito então tomou o rabi pelo ombro, aflito pelas severas
lesões que ele carregava, e o reapresentou à turba, que ainda vociferava
agressivamente no átrio.
— – Eis aqui o homem! Já não vos basta o severo castigo que teve?
A multidão, por um instante, ficou calada. O estado de Jesus era penoso,
mas ele ainda mantinha o rosto erguido, como se aquela armadura angélica o
estivesse de fato protegendo de toda a dor.
Entretanto, um grito isolado surgiu entre o povo — Crucifica-o! — o qual,
pouco a pouco, passou a ganhar corpo. Mesmo com a vista direita prejudicada
em razão do golpe que sofrera na casa de Anás, Jesus conseguiu identificar o
autor do tal brado, que por trás de uma surrada capa negra escondia o inimigo
dos homens: Lúcifer.
O serafim sombrio, expulso de Getsêmani por Gabriel e Beelzebu, estava
por si só, vendo o fechamento de um ciclo e, na sua mente, a jura feita a Deus, a
de vergar o tal homem, estava próxima de se consumar, afinal, ele não aguentaria
passivo por muito tempo. E entregar o avatar de Miguel aos humanos, na mente
doentia do grande caído, significava derrubá-lo.
Caifás e os seus ficaram muito eufóricos, já que o coro em desfavor de
Jesus aumentou, colocando o tribuno romano numa via sem saída.
Tentando atravessar os portões triados pela Polícia do Templo, Magdalena
e Joana estavam desesperadas, pois mesmo distantes, elas puderam perceber que
Jesus havia sido massacrado no pretório. Ainda assim, elas tinham esperança de
que ele fosse salvo da cruz, mas com os gritos daquela malta comprada,
influenciada pelo clamor do caído serafim, tudo parecia perdido.
Nesse meio tempo, elas viram José de Arimateia, o qual, recém-saído do
salão de audiências romano, estava vendo a confiança que tinha dado à estratégia
de Pilatos ruir, pois acreditava-se que todos ficariam compadecidos de Jesus,
mas infelizmente ocorreu o contrário.
— José, eles vão matá-lo! — chorava Magdalena ao se achegar dele.
— Filha, todas as tentativas já foram feitas. Pilatos está convencido de que
Jesus não oferece perigo, mas ao mesmo tempo, teme que Caifás lidere um
levante caso ele não seja condenado.
— Mas não há mais nada que possa ser feito? — insurgiu-se angustiada.
— Não no momento, Magdalena. E como membro do Sinédrio,
envergonho-me em ver que os meus próprios irmãos entregaram um inocente à
justiça de Roma.
Nas escadarias do pretório, Pilatos tentava pedir calma à multidão, no afã
de convencê-la de que aquele castigo já havia sido suficiente. Mas diante da
insistência, ele então tentou dar uma última cartada:
— Achais ser certo condenar à morte o Messias que veio vos libertar, o
vosso rei?
Caifás então levantou o dedo em riste e, apontando-o para Jesus, replicou:
— Ele não é o Messias! Ele não é o nosso rei, crucifica-o!
Pilatos então se voltou para Jesus e lhe disse:
— Não percebes que tenho o poder de libertar-te? Fala alguma coisa,
ajuda-me a ajudar-te.
— Homem algum tem poder sobre mim — respondeu com dificuldade. —
Eu sei que estás premido, mas mesmo que me condenes à morte, a culpa maior
não será tua, mas dos que, sabendo da minha inocência, me entregaram a ti.
Sentindo que o momento lhe era favorável, o sumo-sacerdote aproveitou-
se da deixa e deu o golpe final:
— Ele diz ser rei, o que é um crime grave! E se pensas diferente, tribuno,
não és amigo de César.
“Amigo de César”! Pois ao dizer tal expressão, Caifás selou o destino de
Jesus, forçando Pilatos a tomar uma decisão rápida, sob pena de ele próprio ser
acusado de deslealdade ao imperador.
O prefeito romano cerrou os olhos e respirou fundo. Por assim dizer, ele
temeu pela sua vida física, afinal, pouco conhecia sobre os meandros da vida
eterna. Pilatos então verteu um pouco de água nas mãos, como se as lavasse, e
cochichou algo no ouvido de Marcellus, que em seguida, lhe entregou uma placa
de condenação, onde era escrito o crime pelo qual o condenado seria morto. E
após nela escrever algumas palavras — em hebraico, grego e latim —, Pilatos a
ergueu perante a multidão e bradou:
— “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus!” Esse é o crime de que o acusam!
Marcellus — ordenou ao oficial. — Faz o que eles querem...
Ao pressentir que o rabi seria executado, Magdalena e Joana caíram de
joelhos e choraram com mais dor ainda. Jesus, traído pelos seus e pela sua
própria pátria, havia sido condenado. E condenado sem culpa.
Capítulo 14
Marte caiu
NUM VINHEDO PRÓXIMO A JERUSALÉM, um centurião reformado havia
começado vida nova com a família. Tentando se desligar da lida militar, ele se
afastou do centro do poder a fim de buscar outra conectividade.
Acostumado a levantar cedo, Longinus estava inclinado a deixar um
testemunho sobre a verdade e, de tempos em tempos, tentava esboçar algumas
palavras nuns rolos de pergaminho, até mesmo para se convencer de que havia
feito a escolha certa ao abandonar o Exército.
Embora a cegueira definitiva do seu olho esquerdo já fosse uma realidade,
ainda assim se esforçava para escrever e, apoiado numa mesa simples, não
percebeu quando, diante dele, surgiu um ente estranho cujo corpo parecia
queimar.
Forçando a vista direita, o velho militar se levantou e constatou que uma
pequena menina flutuava no ar e o encarava detidamente. Pois ao fitá-la, nela
identificou a mesma criança que, na companhia de uma jovem, o havia levado
até Jesus de Nazaré quando o mesmo esteve acampado nas imediações de
Jerusalém.
Pois a “criança” então pousou sobre a mesa e, sentando-se sem jeito,
tomou a pena que ele usava para a escrita e, em latim, escreveu numa das folhas
que usava:

“Jesus de Nazaré foi condenado à morte. Volta imediatamente


para Jerusalém e encontra-o, pois ele tem um importante
trabalho para ti.”

Confuso e ao mesmo tempo surpreso, Longinus devolveu o documento


para a mesa e percebeu que a tal menina havia sumido. Vestindo rapidamente
uma túnica, a primeira que viu, ele selou o seu cavalo e, sem pensar nas
consequências, tomou o caminho de Jerusalém, onde finalmente haveria de
encontrar não apenas as repostas para as muitas perguntas que ainda tinha dentro
de si, mas também algo que havia perdido na sua tenra infância.

***

Fora do pretório a notícia de prisão do rabi de Nazaré havia se espalhado,


e uma multidão já tomava as vias por onde os condenados haveriam de passar.
E em meio ao povo agitado, Pedro perambulava atônito e ainda
perseguido pelo arrependimento de ter negado o seu mestre, o seu amigo. Em
dado momento, esbarrou num outro conhecido, o qual, igualmente atormentado
pelo remorso, tentava auferir as novas sobre o destino que seria dado a Jesus.
Pois ao ver o companheiro de apostolado confuso assim como ele, Pedro ensaiou
um choro e, abraçando-o, lamentou pela fraqueza de ambos:
— Judas! Nós os traímos!
— Pedro? — respondeu assustado. — Não esmoreças, ainda existe
esperança para nós e para Jesus!
— Judas, tu o entregaste e eu o neguei. Nós dois somos indignos de
pronunciar o nome dele.
— Presta atenção no que eu vou te dizer — asseverou Judas arisco. — Ele
terá que reagir! Não é possível que, depois de tudo o que nós passamos, o mestre
simplesmente se deixe abater, eu ainda acredito num revide.
— Tu não entendes... Jesus sempre pregou a paz, e não será agora que ele
se portará de modo a contradizer-se.
— E onde estão as mulheres? Onde estão Mirian e Joana? — insistiu
agitado.
— Elas estão no encalço do rabi desde que ele foi levado para a casa do
sogro do sumo-sacerdote. Devem estar por perto, mas eu não tenho coragem de
encará-las, não depois do eu que fiz.
O colóquio de ambos foi então interrompido pela forçosa abertura dos
portões do Fórum, a fim de que os sentenciados do dia fossem levados para fora
da cidade e executados.
Os romanos não contavam com a crucificação de Jesus, afinal, era
Barrabás que morreria no lugar dele, e, em razão do estado do galileu, ficaram
receosos quanto à hipótese de o nazareno não conseguir aguentar o peso do
patíbulo que haveria de arrastar até a Gólgota, a qual ficava cerca de oitocentos
metros dali.
Àquela altura, o estado físico do condenado estava deplorável, pois sem
prejuízo da surra inimaginável que tinha levado dos romanos, o seu rosto
padecia de uma dor aguda causada pelos incontáveis danos sofridos nos seus
nervos diante da coroa de espinhos que lhe havia sido enfiada na cabeça. Sua
respiração, diante disso, havia se tornado superficial, pois a dor da inspiração era
terrível.
Um dos soldados se aproximou dos réprobos e passou a pendurar o
titulum no pescoço de cada condenado, ou seja, a tábua onde constava a infração
das quais eram eles acusados. Dimas e Gestas envergavam ripas com a máxima
latrus – ladrão –, ao passo que, Jesus, uma que, em três idiomas[149], lhe creditava
a pecha de sedição, isto é, a de ser o “rei dos judeus”:

Feito isso, um dos romanos apontou para um canto do pátio, onde três
patíbulos[150] com duas grossas argolas de ferro em cada extremidade estavam
postos no chão à espera de serem carregados. Os ladrões foram empurrados sem
muita gentileza e os ergueram pelos aros, ao passo que Jesus, mesmo
envergando contusões horrendas e sentido dores terríveis ao respirar, dirigiu-se
voluntariamente à única trave que lá sobrou e, com extrema dificuldade, mas
sem emitir um lamento, a colocou sobre o ombro direito e passou a arrastá-la
vagarosamente até o grande portão de saída.
Embora estando num precoce pré-estado de choque, o nazareno não
esmoreceu e seguiu firme, fato este que impressionou não apenas Cartaphilus,
que conduzia a fila com um chicote de couro convencional, mas também ao
restante da soldadesca, que acostumada àqueles rituais, custava a crer que o tal
homem ainda tinha forças para andar, quiçá com um peso daquele sobre as
costas.
Diante da inquietude que se instalou, Marcellus achou por bem tomar a
frente do esquadrão de crucificação, que àquela altura, já conduzia os três presos
para a morte. Embora flagelados, Dimas e Gestas não haviam recebido sequer
um terço do castigo auferido por Jesus mas, ainda assim, demonstravam mais
dificuldade em carregar aquele grosso pedaço de oliveira do que o judiado rabi.
Quando a multidão vislumbrou os condenados na via, houve um princípio
de tumulto, afinal, fora do pretório, muitos seguidores de Jesus finalmente
tiveram acesso a ele e, vendo-o completamente desfigurado, passaram a entoar
palavras de ordem em desfavor dos romanos, os quais tiveram que ser
extremamente rigorosos na contensão dos rebelados.
Logo na saída do Fórum, Barrabás, recém-liberto, chamou por Jesus e
visivelmente alterado, gritou:
— Por que não pegaste a espada e lutaste pelo que acreditas? Não passas
de mais um covarde, mereces mesmo morrer na cruz — tripudiou ao ser
empurrado por um guarda romano mais severo.
Jesus o encarou e seguiu adiante, esforçando-se para carregar o patíbulo e
não demonstrar fraqueza. Embora a cadência dos presos estivesse lenta diante da
multidão que se acotovelava, os soldados ficaram moralmente constrangidos em
açoitá-los, mormente a Jesus, tendo em vista o esforço descomunal que ele,
mesmo já estando quase morto, naturalmente apresentava.
No interior da fortaleza, Cláudia Prócula ganhou o salão e encarou o
marido com lágrimas nos olhos. Ao vê-lo extremamente preocupado e
visivelmente emocionado, ela se aproximou e o abraçou, quase que num tom
maternal.
— Se eu não o condenasse, Caifás incitaria uma revolta. Pois te confesso
que tive medo de que, se isso acontecesse, o sangue vertido fosse o nosso.
— Agora, infelizmente, já está feito. E eu espero que os meus piores
temores não se tornem realidade.
Dito isso, ela saiu na companhia de Verônica e de dois soldados
pertencentes à sua escolta e, como a maioria, ganhou as ruas cheias de Jerusalém
para acompanhar os últimos momentos de Jesus.
Entre ofensas, risos e choros, o nazareno se superava a cada passo, sendo
que, em razão da fadiga que começava a pesar, acabou tropeçando e caindo
sobre os joelhos, os quais, já anteriormente feridos, acabaram esfolados em razão
dos pedregulhos que inundavam o chão. Um dos membros do esquadrão
percebeu e, em instinto, ergueu um dos braços para açoitá-lo. Ao dar alguns
passos a fim de atingir as costas de Jesus, Caliel, que a tudo assistia passivo e
furioso no colo de Beelzebu, movimentou-se em disparada e, camuflado em luz,
colocou-se entre as pernas do romano e as travou de modo a fazê-lo cair.
Percebendo uma silhueta estranha se mover naquele cenário, o outro soldado se
conteve em tentar fazer o mesmo e, temendo o desconhecido, acabou erguendo
Jesus pelo braço a fim de fazê-lo retomar a cadência.
Ao retornar para onde estava, Caliel foi severamente admoestado por
Beelzebu, mas o pequeno era um tanto desobediente e não estava nem um pouco
satisfeito em ver o estado penoso do avatar de Miguel. Diante disso, o seu
instinto de proteção falou mais alto e acabou amedrontando o tal romano, que já
anteriormente impressionado com a resistência de Jesus, ficou ainda mais
convencido de que algo deveras estranho estava acontecendo por ali.
O caminho dos condenados pelas ruas da cidade parecia infinito, pois
embora as crucificações fossem normais naqueles dias, o status de um dos presos
era considerado especial, o que contribuiu para que as vias, normalmente cheias
em razão da Páscoa, ficassem infestadas de crentes e curiosos.
Até então tímido, o sol subiu e começou a arder na pele dos réprobos,
mormente na de Jesus, que em razão da contínua perda de sangue e suor, já dava
sinais de uma premente hipovolemia[151]. O rigor dos golpes dados no seu peito
lhe dificultavam a respiração e, a cada cadência de ar inspirada, uma dor terrível
o acometia. As escaras causadas pela força do flagelo pareciam ter criado
grandes coágulos enegrecidos sobre a pele do Messias, os quais deram a ele uma
aparência que já beirava a deformação. Pois assim, deslocando-se com
dificuldade em razão do peso do patíbulo, que parecia dobrar a cada passo, ele
tropeçou pela segunda vez, desta feita, deixando a trave lhe prensar severamente
o ombro, que à primeira vista, parecia ter sido quebrado.
Nesse instante, Cláudia Prócula fez a sua escolta abrir caminho a fim de
poder se aproximar de Jesus, cuja face jazia naquele terreno pedregoso e
ligeiramente aquecido. Percebendo a presença da primeira dama romana, o
centurião Marcellus manobrou as rédeas do seu cavalo e retornou rapidamente
para o cenário da queda, a fim de tentar garantir que nenhum dos executores
cometesse uma sandice que os fizessem perder a vida.
Cláudia então levantou a cabeça de Jesus e se lembrou de quando o viu
pela primeira vez nas proximidades do Cedron, pelas mãos dele, havia
conseguido a cura para as suas dores. Nesse instante, a aia Verônica surgiu por
trás dela e tirou o véu branco que vestia, levando-o incontinente ao rosto do
nazareno a fim de limpá-lo do sangue e da terra. Ele aceitou o ato sem recalcitrar
e, ao retomar o dito adereço para si, Verônica percebeu, boquiaberta, que os
traços de Jesus haviam ficado impressos nele[152].
Os soldados do esquadrão logo se adiantaram e levantaram o condenado,
o qual agarrou a argola de ferro com as duas mãos e continuou a arrastá-la, agora
com mais dificuldade. Cláudia e Verônica ficaram prostradas em respeito àquele
homem que só queria a paz entre os povos, mas que, naquele momento, estava
na iminência de ter a mais miserável das mortes.
Mesmo caminhando com crassa fraqueza, Jesus insistia em seguir sem
verter a cabeça, cuja coroa de espinhos vez ou outra resvalava no patíbulo e
potencializava a dor e os ferimentos naquela região, onde as terminações
nervosas já estavam entrando em colapso.
Dimas e Gestas vinham logo atrás e, embora tivessem sido bem menos
judiados, pareciam sentir bem mais o peso das traves.
Em dado momento da via crucis, alguns sinedristas, dentre os quais o
próprio Caifás, estavam dispostos de modo a poder encarar os condenados do
alto dos seus pomposos animais de carga, sendo que, ao ver Dimas passar
próximo de si, o sumo-sacerdote apontou-lhe o cajado e lançou-lhe uma
maldição por ter desvirginado a sua agora desviada filha:
— Tu queimarás nas profundezas, violentador maldito!
Quanto a Jesus, os juízes o encaravam com um misto de desprezo e
satisfação, afinal, eles estavam crentes que o nome dele estaria em breve
enterrado. Mal sabiam o quanto estavam errados.
Já estando, a fila, próxima à saída da cidade, alguns extremistas
investiram novamente contra Jesus e, burlando o cerco dos guardas, o
empurraram e o fizeram cair pela terceira vez. Os soldados tentaram intervir e
entraram em vias de fato com eles, o que fez com que Marcellus retrocedesse
novamente e tentasse interceder antes que aquilo evoluísse para algo que
pudesse efetivamente comprometer a execução que já se avizinhava.
Em meio à turba, Judas surgiu por entre os desordeiros e, abrindo caminho
caiu de joelhos perante o seu mestre e apelou em lágrimas:
— Reage, Mestre! Não nos faças acreditar que tudo foi em vão.
Nesse mesmo instante, um dos soldados encaixou o pé direito no peito de
Judas e o empurrou para trás, tirando-o forçosamente da frente de Jesus. E a este,
ordenou com extremo vigor:
— Vamos, Judeu! Levanta-te; caminha!
Irritado com a passividade do rabi, o apóstolo, agora tresloucado, bradou:
— Então caminha, Jesus! “Levanta-te e caminha!” — continuou,
arremedando a expressão dita pelo soldado.
Com esforço, ele voltou o rosto para o traidor e disse:
— Judas, és tu quem haverás de caminhar. E caminharás, errando e sem
destino, até o final dos dias.
Após certo rigor da guarda, a balbúrdia foi enfim controlada. Entretanto,
Jesus parecia estar sendo vencido pelas lesões, as quais haviam lhe tomado o
corpo e tolhido as forças.
Irritado com as constantes paradas, Cartaphilus se aproximou de Jesus e
ergueu o braço a fim de chicoteá-lo e obrigá-lo a levantar. Mas quando o látego
do vil romano se preparava para atingir a judiada face do nazareno, a mão do
soldado foi firmemente segura por um homem que lá surgiu, o qual,
hipnotizando-o com um olhar gélido, fez com que ele recuasse assustado.
Embora o estranho usasse um capuz que lhe vedava a grata parte do rosto
levemente deformado, Cartaphilus notou que os braços dele apresentavam uma
pigmentação estranha, como se estivessem manchados de rubro. Sem
dificuldade, aquele forasteiro que beirava um metro e noventa de altura, segurou
a grossa argola do patíbulo com a mão direta e o pôs num dos ombros, tirando-o
completamente do chão. E com a esquerda, ele levantou Jesus de maneira gentil,
afinal ele estava prestes a desfalecer. Percebendo que se tratava de um homem
avesso à compleição média dos judeus, o romano sacou o seu gládio e foi ríspido
com ele:
— De onde vens, estrangeiro?
— De longe; de um continente chamado África — murmurou por baixo
daquela velha túnica surrada.
— África... — repetiu intimamente assustado. — Pois bem, “africano”, a
tua sorte é que estamos em meio a um perigoso cenário, pois, caso contrário,
essa tua audácia te teria custado caro. Pega então essa trave e leva-a até o alto da
colina, afinal, esse infeliz já aparenta estar nas últimas — disse jocosamente em
referência a Jesus.
— Venha, senhor, o vosso martírio já está chegando ao fim — disse o tal
homem ao nazareno, cuja plena consciência já estava a lhe trair.
Pressionados pelos executores, os condenados atravessaram o grande
portão da cidade e finalmente visualizaram o temível platô da Gólgota, onde as
execuções eram consumadas em atacado. Entre si, os soldados pareciam
surpresos com a força daquele estranho, tendo um deles, de origem grega, o
comparado ao herói Hércules.
Já passava das oito horas da manhã quando a fila ganhou a subida da
última estação daquele martírio. E ainda carregando a trave com uma mão e
amparando Jesus com a outra, aquele estrangeiro chegou no cume do monte e
então largou bruscamente o patíbulo, que ao se chocar no chão levantou a areia e
espantou alguns insetos.
A Gólgota era um lugar com energia muito ruim, similar à da Tesouraria
das Almas. No alto dela, estendiam-se várias vigas de madeira medindo três
metros e meio cada, as quais eram previamente fincadas no solo. Nelas, de
tempos em tempos, eram fixados os patíbulos onde os condenados acabariam
pregados e mortos.
O ambiente cheirava demasiadamente mal, principalmente na área das
estacas-mestras, pois era comum aos prisioneiros urinarem e defecarem em
razão da dor, sendo que os seus excrementos ficavam aos pés das cruzes
acumulando moscas, larvas e outros seres repugnantes. Fora isso, a assombrosa
alcunha dada àquele sítio aludia às centenas de crânios e ossos que por lá se
espalhavam; restos dos condenados que, se não fossem devorados pelas aves de
rapina, eram entregues aos chacais que rondavam as imediações em busca de
comida. Mas dependendo do status dos condenados, eles acabavam
sumariamente desprezados no imundo vale de Geena[153].
Já estando próximo de sofrer um choque traumático, Jesus foi jogado ao
chão pelos soldados a fim de aguardar o início da sua crucificação. Mas ainda
estando ali, o forasteiro que o havia ajudado a carregar o patíbulo se aproximou
e, aparentando estar bem emocionado, rogou com recato:
— Senhor, me perdoa, eu pequei... — revelou já chorando. — Eu matei e
violentei o sangue do meu sangue, o filho e a filha de minha mãe.
Tentando encarar o penitente, Jesus respondeu com a voz já falhando:
— Hoje, ajudaste a carregar os pecados do mundo, e por isso, Deus tirará
a marca que te fez. E Ele te diz: vai em paz e passa adiante o teu cajado.
Diante da corpulência daquele forasteiro, os soldados o admoestaram à
distância para que ele saísse de lá, no que o tal, passivamente, acatou. Pois ao
descer a trilha da Gólgota, olhando vez ou outra para o agora abatido nazareno,
aquele estranho errante cruzou inadvertidamente com Magdalena, a qual,
abatida, lá chegava com a escora de Joana e Betseba. Ao vê-la diante de si, o
forasteiro ficou de joelhos, tomou-lhe as mãos e revelou:
— Depois de séculos, eu auferi o meu tão esperado perdão. E estejas
certa, minha mãe, também auferirás o teu.
Embora confusa com aquela intervenção — seria um louco? —, Mirian
Magdalena percebeu algo de muito familiar naqueles olhos verdes que se
revelaram rapidamente por entre o capuz e, por um instante, lhe veio à
lembrança a inusitada cena de uma serpente com Eva no Éden. Após
experimentar uma ligeira vertigem, ela voltou a si, mas não se deu conta de que
o seu “eu” atual abrigava a alma de Lilith e diante dela, estava o próprio filho
espúrio, Caim[154], vagabundo na Terra desde que, vários séculos antes, havia
matado o pequeno Abel e violentado a irmã, a doce Luluvah. Pois ao esperar por
milênios para poder saldar a sua dívida carregando a pesada cruz do filho de
Deus, Caim teve os seus crimes finalmente perdoados e o sangue que lhe
manchava a pele diluído. E tão logo ele achasse aquele que estava predestinado a
receber o seu cajado — uma espécie de símbolo de culpa —, a morte e a paz
iriam visitá-lo.
Aos pés das vigas, o esquadrão de crucificação já se preparava para selar o
destino dos três condenados e, sem muita gentileza, posicionaram-nos com os
braços próximos aos patíbulos e lhe arrancaram as vestes. Nu, apenas com a
coroa de espinhos e o titulum preso ao pescoço, Jesus foi jogado e amarrado à
trave que seria içada de modo a fazê-lo ficar exposto. As mulheres que o
seguiam foram impedidas de se aproximar das grandes pilastras, afinal, o clima
ainda era hostil e a área das cruzes costumava ser defesa aos familiares e
curiosos.
Já estando preso ao patíbulo, um dos guardas segurou as pernas de Jesus e
o outro sacou um prego cujo comprimento beirava os dez centímetros e, ao
posicioná-lo na mão direita do nazareno e finalmente golpeá-lo, a peça metálica
inacreditavelmente envergou e expeliu faíscas, como se tivesse se chocado numa
barra de aço.
Olhando para Caliel, Beelzebu percebeu que o querubim havia interferido
por mais uma vez e lançado um feixe que entortara o prego. Advertido sobre a
necessidade daquele processo para a expiação, o capitão da Guarda Negra
fechou os olhos e encaixou a cabeça sob os cabelos do seu príncipe, pois sequer
ele, acostumado a violência concisa, estava suportando ver aquela sequência de
sevícias junto ao mais poderoso arcanjo do Céu, que ali, nada mais era do que
um homem à beira da morte.
Percebendo que o soldado recuou assustado e recalcitrava em repetir o
golpe, Cartaphilus ficou furioso e lhe arrebatou a marreta. E espetando outro
prego no pulso de Jesus, agora selado por uma pequena ripa de madeira para
facilitar-lhe a fixação, ele deu a primeira martelada, a qual fez a tarraxa lhe
passar o punho. Jesus não reagiu ativamente, contido que estava por outro
romano, mas a dor lancinante que ele experimentou em razão do maciço ataque
ao nervo que dava sustentação ao seu antebraço, fez com que ele premisse
agressivamente os olhos e travasse os movimentos da boca. O líder do esquadrão
deu então mais dois golpes, que fizeram com que o prego atravessasse o punho
de Jesus e a trave, repercutindo, finalmente, na outra extremidade do patíbulo.
Transpondo Jesus, Cartaphilus dirigiu-se para o outro lado e repetiu a
tortuosa operação, pregando com agressividade o punho esquerdo dele naquela
mesma trave. Experiente em infligir sofrimentos, ele parecia se divertir. Em
seguida, fez com que os soldados transpassassem pesadas cordas sobre as
argolas de ferro e as arremessassem por cima dos suportes colocados sobre a
base do tronco ali fincado. Feito isso, puseram-se atrás do pilar e começaram a
puxar a trave em que Jesus já estava pregado, a fim de erguê-lo e fixá-lo na
coluna-mestra. O processo era deveras agressivo, afinal, o executado era
levantado de maneira violenta, arrastando o corpo pelo chão imundo e pelos
excrementos dos que lá haviam padecido.
Feito o pré-encaixe, eles soltaram a peça que, de imediato, encontrou a
escora necessária para deixar Jesus exposto e com os braços abertos. O som do
choque era seco e, ao mesmo tempo, forte, pois não raro ele tinha como eco um
grito do executado, ante a severa dor da manobra.
Mas enquanto se esperava que aquele rude tormento finalmente teria uma
pausa, Cartaphilus tomou um pedaço menor de corda e amarrou os tornozelos de
Jesus, um de cada lado da haste, e, tomando outros dois pregos maiores, os
cravou com firmeza nos ossos metatarsais dele, deixando-o, então, totalmente à
mercê daquela cruz. O sol, àquela altura, parecia falar. Eram, então, nove horas
da manhã de sexta-feira.

***

Maltratando o chão da estrada com as suas ferraduras, o cavalo de


Longinus rumava velozmente para a cidade de Jerusalém, afinal aquele oficial
reformado seguia na busca daquele que salvara o seu servo e, indiretamente, a si
próprio.
Embora intimamente inclinado a tentar ajudar Jesus, ele ficou intrigado
com o fato de aquela “menina”, a mesma que, com outra jovem o havia levado
ao rabi da primeira vez, ter lhe dito que o nazareno tinha um trabalho para ele.
Mas que trabalho?
Pois a locução “preso” dava a entender que Jesus estava nas mãos de
Roma e, em razão disso, Longinus achou por bem procurá-lo primeiramente no
pretório, para onde eram levados todos os acusados. E já chegando nas
proximidades da cidade, ele cruzou com uma pequena caravana que, viajando a
madrugada toda, trazia Maria, a mãe de Jesus.
Ao passar pela comitiva, algo pareceu atraí-lo, e sem mesmo saber os
motivos, parou por um instante e indagou os viajantes:
— Para onde estão indo?
— Estamos a caminho de Jerusalém... — respondeu Lázaro.
— Vieram para as festas da Páscoa?
— Não — respondeu seguro. — Nós estamos acompanhando uma mãe
aflita que teima em crer que o filho está em perigo.
Quando pôs um dos olhos em Maria, Longinus viu nela a mesma
fisionomia do nazareno, afinal, ele a havia visto, de relance, quando Jesus o
recebeu no acampamento para curar Eliseu.
— E a quem procurais?
— A Jesus... Jesus de Nazaré, filho de José.
Ao ouvir tal nome, Longinus engoliu seco e não teve como omitir a
informação que possuía:
— Homem, eu soube há pouco que Jesus de Nazaré foi preso. Sou um
oficial romano, mas... amigo dele.
E tão logo aquela notícia adveio, Maria, que já estava agoniada, foi
amparada por Marta e Mariah, as quais também ficaram desiludidas.
— Mas do que ele foi acusado? — insistiu Lázaro preocupado.
— Ainda não sei ao certo. Mas foi para descobrir isso é que vim até
Jerusalém. E senhora, o que estiver ao meu alcance será feito a favor de Jesus —
disse ele se dirigindo a Maria.
A virgem apenas lamentou o destino do filho e, apertando o passo,
continuou o caminho que já se findava.
Ao entrar cavalgando na cidade, Longinus percebeu que tudo parecia
normal, afinal, ela estava lotada ante a ocorrência da Páscoa. Pois ao chegar ao
pretório, ele foi reconhecido por um dos guardas, que o saudou e indagou:
— Comandante, o que fazes aqui?
— Eu vim à procura de um prisioneiro. Ele se chama Jesus, é um
carpinteiro que veio de Nazaré.
Constrangido, o soldado abaixou a cabeça e, apontando para o pátio,
mostrou a Longinus a excessiva quantidade de sangue que circundava a coluna.
O oficial desceu do cavalo e caminhou vagarosamente até o pilar, ajoelhando-se
e lamentando pela má notícia.
— E o que foi feito dele? — indagou, ainda refletindo.
— Jesus foi condenado a morrer na cruz. Mas o que é pior, a sentença foi
forçada pelo próprio povo dele.
Ao saber do destino do nazareno, ele se levantou e insistiu:
— E qual esquadrão de crucificação que está de serviço hoje?
— O Décimo Terceiro, senhor.
— Cartaphilus... — sussurrou baixo. — Há quanto tempo que eles
saíram?
— Há cerca de quarenta minutos.
Na maioria das vezes, esse interregno era suficiente para que um
condenado já estivesse pregado na cruz e aguardando a morte, a qual poderia ser
bem lenta, levando dias até. O romano então subiu novamente no seu cavalo e
tomou rumo da Gólgota.

***

Finda a fixação dos dois ladrões nas suas respectivas cruzes, o esquadrão
passou a reorganizar o material usado para a execução, sendo que os demais se
puseram em vigília para que ninguém se aproximasse das traves.
Jesus respirava com dificuldade e, entretidos com os despojos dos
condenados, os soldados se puseram a disputá-los nos dados, o que geralmente
ocorria em situações como aquela, no qual o que restava dos presos era dividido
entre os executores.
A certa distância, o sacerdote Caifás e os demais sinedristas olhavam para
as cruzes com satisfação, afinal, ao que lhes parecia, a doutrina de Jesus estaria
prestes a morrer com ele.
— Filho de Deus... — disse em tom de deboche. — Se o fosse, certamente
desceria dessa cruz — tripudiou o pontífice.
Nesse instante, Gestas começou a rir imoderadamente, de modo a afrontar
os romanos e vilipendiar os demais que lá estavam para morrer. Imundo pelas
fezes que já escorriam por entre as suas pernas — ele não suportou o rigor
daqueles pregos —, o bandido praguejava de modo a tentar enganar a si próprio,
afinal, as suas forças já estavam esvaindo.
— Eu sou um ladrão! E tu nazareno? Morres por ser rei? — provocou
entre risos e tossidos.
Jesus havia vertido a cabeça e parecia imóvel. Mas do outro lado, Dimas
tentou amenizar aquela provocação:
— Não vês que ele é inocente? Ao menos na hora da morte, mostra temor
pelo Deus de Israel.
— Deus? — respondeu agressivo. — Eu pouco me importo com Ele, já
que Ele pouco se importa comigo.
Nesse instante, um dos membros do esquadrão se aproximou da cruz e,
deveras irritado, chicoteou o rosto de Gestas, a fim de que ele fosse impelido a
se calar. Diante disso, bastou Beelzebu fixar o olhar no ladrão por um instante,
para que as centenas de moscas que lá estavam passassem a atormentá-lo, fato
que assustou os guardas e os expectadores, os quais já admitiam que algo de
sobrenatural estava lá acontecendo.
— Senhor... — balbuciou Dimas a Jesus. — Não dês importância a ele,
perdoa-o, é apenas uma alma atormentada.
Jesus, que até então se mantinha silente, ergueu a cabeça vagarosamente e
fitou o seu interlocutor, o qual indiretamente reconhecia os seus erros e achava
justa a punição que recebia.
— O teu coração não é obscuro. E a tua alma, garanto, não irá para o
mesmo lugar que a dele.
O bom ladrão esboçou um sorriso e, em meio àquele sofrimento, tais
palavras lhe trouxeram um pouco de acalento para aguardar a morte, a qual ainda
parecia estar bem distante.
Já se passavam das dez horas da manhã, quando, no sopé daquela ingrata
colina, a mãe de Jesus e os peregrinos de Betânia, já sabedores da tragédia ao
entrarem na cidade, começaram a subir ao Calvário para contemplar os últimos
momentos do mestre de Nazaré.
Percebendo, ainda ao longe, que o filho estava pregado numa cruz, Maria
quis correr até ele, desconsiderando os rigores daquele caminho. Contida por
Marta e a irmã, ela então fixou os olhos naquele rude estandarte romano e
continuou a caminhada.
Abrindo caminho entre os curiosos, ela e os seus logo encontraram
Magdalena, Joana, Betseba e Chaya. Ao ver Maria, Mirian desabou a chorar,
afinal, Jesus estava desfigurado e à mercê da morte. Tentando amparar a apóstola
do filho, a imaculada tocou-lhe a face e a acariciou. Joana interveio e abraçou a
dama de Magdala a fim de que Maria pudesse finalmente se aproximar do
rebento.
Ao se achegar vagarosamente da área de contenção romana, a mãe do
Cristo foi interpelada pelo sempre selvagem Cartaphilus:
— Onde pensas que vai, mulher?
Pois antes que Maria pudesse esboçar qualquer resposta, os presentes
tiveram a atenção chamada para um enorme cavalo branco que lá chegou com
grande velocidade e, empinando próximo ao perímetro, causou desconforto
àquele bronco soldado:
— Abri essa maldita linha, essa mulher é mãe do nazareno! — bradou
Longinus, dominando o animal e envergando a autoridade moral que ainda
titulava.
Percebendo a chegada do ex-comandante, Marcellus se aproximou da
contenção e mandou Cartaphilus sair do caminho, afinal, ele sabia da rusga entre
os dois e não ia querer maiores problemas.
Longinus desceu da sua montaria e a entregou a um soldado que, sem
demora o recepcionou e obedeceu. E tomando Maria gentilmente pelo braço, a
levou até o pé da cruz do meio, onde Jesus havia sido erguido. Ao perceber o
estado lastimável em que o rabi se encontrava, o romano temeu pela reação da
virgem, a qual, demonstrando ser forte, mantinha o passo firme.
Quando Maria chegou no pé da cruz, Jesus estava com a cabeça fletida e,
em razão disso, percebeu quando a mãe parou logo abaixo de si. Ainda com o
sangue escorrendo em razão dos profundos ferimentos causados pela coroa de
espinhos, uma gota acabou caindo no rosto de Maria, a qual, ao senti-la, fechou
os olhos. Em tal instante, ela pareceu ter saído daquele lugar de dor e retornado
ao Egito, quando Jesus, ainda com quatro anos de idade, lhe fazia companhia na
beira do rio onde ela lavava roupas. Travesso, ele certa feita, havia ido até a
ribeirinha e enchido as mãos com um pouco de água, fechando-as logo em
seguida. E ao se aproximar da mãe, riu e as premiu, fazendo com que a água
respingasse no rosto dela. Correndo atrás do filho e tomando-o nos braços, Maria
ficou sem jeito de admoestá-lo, afinal ela sabia que aquilo nada mais era do que
uma provocação ingênua, um jeito infantil de lhe chamar a atenção. Num
repente, aquele doce devaneio lhe foi subtraído, afinal, o fruto do seu amor por
Deus estava ali, diante dela, exposto como um animal abatido.
Ela não disse uma só palavra e, sem limpar o sangue que lhe havia caído
no rosto, assim ficou. Quando as lágrimas finalmente começaram a brotar dos
olhos dela, Jesus, cuja face estava desfigurada, disse com dificuldade:
— Mãe... Minha mãe querida... Rejubila-te, afinal, esta não é a verdadeira
vida... — balbuciou.
Pois lembrando-se da conversa que havia tido com o filho quando do
passamento de José, ela conseguiu, de certa forma, aplacar a dor da perda, mas
em contrapartida, sentia em si a dor de cada uma das chagas que haviam sido
impingidas nele.
Percebendo o estado lastimável de Jesus se comparado aos outros dois
executados, Longinus encarou os soldados do Décimo Terceiro com rigor,
mormente Cartaphilus, a quem sabia ser de índole ruim.
— Filho, o que fizeram contigo? De onde saiu tanta maldade? —
lamentou Maria diante das feridas dele.
— Eles são cegos, não sabem o que fazem...
Notando que Maria dava sinais de desfalecimento, Longinus tentou
convencê-la a recuar um pouco, mas ela insistiu em ficar ali. O experiente oficial
sabia que a morte na cruz era lenta, poderia durar dias, então ele desistiu do seu
intento e ficou com ela, a fim de que nenhum soldado viesse buli-la.
O povo da cidade ia e vinha, afinal a notícia da crucificação do Messias
havia inundado as ruas de Jerusalém, atraindo fiéis, curiosos e descrentes.
Quando chegou o meio do dia, Caifás e os demais sinedristas já haviam deixado
a Gólgota e retornado ao Templo, já que a festa da Páscoa os aguardava. E com
Jesus calado e morto nada poderia lhes atrapalhar dali por diante.
Escondidos entre a multidão, Judas Iscariote e Simão Pedro assistiam a
tudo perplexos, afinal, o Messias que haveria de reinar para sempre, não passava
agora de um cadáver ainda vivo. Crente de que Jesus se ergueria ao menor sinal
de ameaça à sua vida, Judas finalmente entendeu que os ensinamentos do seu
rabi nada tinham a ver com os ideais de conquista dele:
— Nós falhamos, Pedro... — disse ele ao pescador. — Tudo não passava
de mera ilusão, afinal, ele não é o esperado Messias.
— Sim, nós falhamos. Mas o plano de Deus é bem maior do que nós
podemos entender. O rabi é o cordeiro de Deus, e não o leão.
— Jesus não poderia morrer dessa forma. Se ele fosse verdadeiramente o
filho de Deus, não morreria assim. E eu que acreditei que ele traria uma espada
que salvaria o nosso povo. Pois de fato, ele a trouxe, mas para o próprio pescoço
— disse virando-lhe as costas.
— Aonde tu vais?
— Eu vou embora; encontrar o meu destino... — respondeu cabisbaixo.
Pedro estava confuso, afinal os demais haviam fugido. Assim, além dele,
Judas, Magdalena e Joana; a igreja parecia partida naquele momento.
Pois no instante em que Judas tomou o rumo contrário ao da Gólgota, o
tempo, até então ensolarado, começou a fechar de forma quase que imediata. A
brisa seca que pairava sobre a colina logo deu lugar a um vento mais rigoroso, o
qual obrigou os espectadores a cobrirem suas cabeças diante do excesso de areia
que se levantou. Salvo isso, um assustador espetáculo de raios brilhantes passou
a inundar o firmamento, dando mostras de que uma, até então inesperada,
tempestade estava prestes a cair.
Nesse ínterim, Jesus se queixou de sede, ao passo que um dos soldados,
após ser censurado por Longinus, espetou uma esponja na ponta do seu pilo e a
molhou com um pouco de vinho azedo[155], elevando-o à altura do rosto do
executado. Este, ao sentir o gosto amargo daquela mistura largamente consumida
pelos soldados rasos mesmo em serviço, a repudiou com o rosto.
A Terra então interceptou a parte sombria da lua, e, para a surpresa de
todos, começou paulatinamente a avançar na direção do sol, lançando uma
imensa capa escura sobre o globo e atingindo Jerusalém, cuja iluminação passou
a ser unicamente aquela vinda dos raios que se recusavam a abandonar as
alturas. Ao perceberem que o Sol desaparecia e dava espaço a uma assustadora
negritude, muitos dos presentes abandonaram a Gólgota intimidados por aquele
perigoso espetáculo.
Preocupado com a reação dos soldados romanos, afinal, ninguém jamais
havia presenciado algo parecido antes, Marcellus achegou-se de Longinus, e dele
obteve o conselho para que fossem acesas algumas tochas e preservada a guarda,
afinal, eles precisavam zelar pelos condenados até que finalmente morressem,
pois segundo a Lei não lhes era lícito deixá-los vivos na cruz e à mercê de um
eventual resgate.
Na fortaleza Antônia, Pilatos percebeu aquela atípica inconstância tomar
conta do alicerce e, por uma das janelas gradeadas, viu o Sol ser rapidamente
coberto — era um eclipse —, o que lhe pôs em crasso desconforto, mormente
diante da possibilidade dele ter mandado executar, como de fato o fez, o
verdadeiro Messias.
No edifício dos judeus onde a festa da Páscoa transcorria, o sumo-
sacerdote teve o mesmo pressentimento e, amedrontado, recolheu-se ao espaço
onde ficava o sagrado véu escarlate que os separava da presença do Senhor. E
pondo-se de joelhos diante dele — afinal o chão começou a tremer! —, ele viu
quando uma espada coruscante lá surgiu cortou o véu ao meio, de cima para
baixo[156]. Feito isso, as paredes começaram a ruir, destruindo parte da edificação
interna ali existente. Caifás, que acabou arremessado ao chão no meio do
processo, fechou os olhos e temeu.
O vento continuava muito forte e, com o passar do tempo, a Gólgota ficou
praticamente vazia, restando apenas os soldados e os fiéis de Jesus, que se
recusavam a deixá-lo. Num repente, Jesus levantou timidamente a cabeça e, em
meio ao rigor do vendaval, sussurrou:
— Pai... Leva-me! Leva-me de volta.
Ao perceber que o nazareno ainda falava, um dos soldados avançou e
tentou calá-lo com um golpe de chicote e, assim que verteu o braço para trás a
fim de golpeá-lo, um raio veio do alto e o fulminou de maneira instantânea.
Tão logo o soldado caiu morto, o solo passou a convulsionar, e um
temporal começou a cair de forma violenta, não apenas na Gólgota, mas em toda
a Judeia, fazendo a fração militar que lá estava dispersar quase que por inteiro.
Cobrindo-se e unindo os corpos diante da tormenta, os seguidores de Jesus
avançaram na linha aberta pelos soldados e se uniram a Maria e Longinus, que
segurando a mãe do mestre com firmeza, tentava a todo custo protegê-la daquela
agressiva tempestade.
A chuva e o vento aumentaram consideravelmente, e como não podia
abandonar o posto sem se certificar da morte dos condenados, Cartaphilus tomou
uma marreta que lá estava e quebrou os joelhos dos dois ladrões, os quais, ante a
menor severidade do flagelo, ainda estavam vivos. Tal manobra visava tirar-lhes
a sustentação e causar-lhes a morte por asfixia. Ao ver que ele se aproximava de
Jesus para tentar fazer o mesmo, Longinus enfureceu-se e entrou em vias de fato
com ele:
— Sai daqui, tu não comandas mais nada! — bradou ao outrora superior.
— Eu ainda comando a minha vida, ao contrário de ti que é uma vergonha
para o exército romano — retrucou o oficial, ao acertar um soco na boca do
soldado.
Pois enquanto os dois brigavam, um dos guardas que lá ficou, um soldado
raso de nome Cassius, vendo-se impossibilitado de fazer uso da marreta que
havia caído numa poça já tomada pela lama, ergueu o seu pilo e o introduziu
firmemente por entre as costelas de Jesus, a fim de tentar lhe ceifar a vida e fugir
com os demais.
Ao ver tal cena, Longinus empurrou Cartaphilus e tentou impedir a
continuidade daquela ação indo no sentido da cruz onde o nazareno estava. Ao
se levantar do chão encharcado pela chuva que castigava o platô, o carniceiro
romano sacou um punhal e lançou-se na direção de Longinus, a fim de matá-lo.
E quando a faca estava prestes a ganhar as costas do ex-centurião, uma nova
dezena de raios caiu do Céu e destroçou o corpo de Cartaphilus, o qual, em razão
da severidade da carga elétrica, foi lançado para longe da colina.
Erguendo-se arisco e correndo na direção de Cassius, que
inexplicavelmente não conseguia retirar a lança do corpo de Jesus, Longinus a
segurou e a forçou para trás. Mas a força motora adversa mostrava-se tal que
nem mesmo dois fortes militares romanos conseguiram retraí-la. Pois num
instante, onde o olho ainda bom do centurião cruzou rapidamente com os
moribundos de Jesus, o ex-comandante romano, em meio à forte tormenta, ouviu
dele:
— Meu amigo, Longinus... “Marte caiu...”.
Ao ouvir essa expressão, a mente do legionário foi inundada por gravuras
de um passado não tão distante, quando ele, ainda jovem, conheceu no Egito um
garoto que lhe havia prometido ser um grande soldado.
— Jesus? O menino judeu? — respondeu ao reconhecer aquela frase, a
qual lhe havia sido dita vinte anos antes pelo pequeno galileu ao vencê-lo numa
partida.
Nesse mesmo instante, a força que prendia a lança no corpo de Jesus
cessou e a arma se desprendeu, fazendo com que, daquela ferida que ficou
aberta, jorrasse uma mistura de água e sangue que atingiu em cheio o olho cego
de Longinus! Pois jogando a lança ao chão e esfregando a vista para conter a
ardência que nela começou a sentir, ele ficou pasmo ao perceber que a sua visão
lhe havia sido recuperada. E somente então, depois de tudo, ele soube que,
naquela cruz romana, estava morrendo aquele pequeno garoto que queria mudar
o mundo, o seu amigo querido de outrora, o qual, antes de partir, lhe devolveu a
visão havia muito perdida.
— Ele... Ele era o filho de Deus... — pronunciou o agora atônito soldado
Cassius, sob o rigor da chuva e a concordância tácita do centurião.
Eram então, três horas da tarde, e Jesus, enfim, estava morto.
Capítulo 15
O trono de Magdalena
DEVERAS ASSUSTADO com a negritude que de repente caiu em Jerusalém,
Judas Iscariote se afastou da cidade disposto a dar cabo da própria vida, afinal,
para ele, a escravidão haveria de ser o destino do povo judeu.
Ainda lamentando a sua falta de visão, ele ganhou o vale de Aceldama[157]
quando percebeu que a chuva havia recuado. Ainda assim, desiludido com o
desfecho de tudo, jogou uma corda sobre o galho de uma oliveira e a amarrou no
pescoço, a fim de tentar encontrar a tal liberdade que ele acreditava fazer jus. E
após escalar aquele tronco, lançou o peso do próprio corpo em direção ao chão,
com o crasso escopo de pôr fim a sua infeliz existência. Pois assim que a corda
se firmou, o corpo dele quicou por uma vez e, na segunda, o galho se rompeu e,
ainda vivo, caiu no solo, incrédulo, afinal a morte que lhe parecia ser certa não
foi visitá-lo.
Ainda tentando encontrar uma explicação lógica para tudo aquilo, ele viu
surgir, por entre a pesada poeira que se levantou, um homem enorme de beleza
gritante. O estranho trazia junto de si um cajado de aparência bem antiga,
manchado de sangue na extremidade, e, ao parar diante de Judas, arremessou
aquela vara no solo como se o estivesse entregando a ele. Feito isso, revelou sem
hesitar:
— Eu sou Caim, filho do pecado de Eva e de Lilith. E desde o início dos
tempos, eu vago pela Terra esperando pelo perdão que hoje finalmente auferi. —
Trêmulo ante aquela assustadora presença e da compleição do interlocutor, Judas
tentou recuar, mas parecia não conseguir se mover. — Aceita, não tens mais para
onde fugir. Pega esse bastão e segue como a única testemunha viva do martírio
de Jesus.
— Testemunha? — respondeu atônito.
— És, agora, aquele que vagaras até o dia em que o príncipe celeste
retorne à Terra para julgar-te.
Assombrado, Judas logrou se levantar para tentar fugir com aquele pedaço
de corda ainda preso ao pescoço, mas, ao fazer isso, outra surpresa: diante dele,
surgiu um arcanjo, o quarto voluntário, aquele que desceu à Terra com Gabriel
para auxiliar na lida final de Jesus. E com um dos polegares em chamas, ele se
achegou de Judas e cunhou forçosamente uma cruz na testa dele, o qual gritou
em razão da excessiva dor da queima.
O celeste então apontou para o bastão e fez com que Judas o pegasse. Ele
foi condenado, não apenas por trair Jesus, mas por ter traído a si próprio. O
velho sicário havia tido uma oportunidade única — a de se redimir e aceitar a
palavra —, mas preferiu acreditar na espada. E diante disso, ele agora teria uma
eternidade para refletir sobre os seus atos e, assim como Caim, talvez um dia ser
perdoado. Judas Iscariote, tal qual era conhecido, morreu naquela tarde. E no
lugar dele, nasceu o lendário “judeu errante”[158], o segundo imortal amaldiçoado
pela insensatez dos seus atos.
Ao ver Judas correr assustado e sem rumo, o celeste que lá surgiu
estendeu sua mão a Caim e disse a ele:
— Agora, vem comigo.
— E quem és tu? — indagou estranhando aquela inusitada presença.
— Eu sou Surya, arcanjo e mensageiro do novo Éden — respondeu aquele
ser de face feminizada, cujos cabelos repicados eram alourados e raspados numa
das laterais.
— Um emissário de Deus? Então eu terei a paz que procuro?
— A tua anistia foi concedida, Caim. Agora dorme; dorme e desperta para
uma nova vida.
Tão logo Surya tocou na face já limpa de Caim, ele começou a se desfazer
no vento, pois ele era pó, e pó voltou a ser. O filho do pecado, um fratricida e
violentador, havia cumprido uma pena de milhares de anos vivo, aprendendo dia
a dia, a conhecer os conceitos do perdão e do arrependimento. Os seus crimes
foram então perdoados, não apenas por clemência divina, mas por justiça. Caim
foi socializado e, ao carregar a pesada cruz de Jesus, mostrou que admitiu a sua
parcela de culpa pelos pecados da própria humanidade, cuja grata parcela
descendia dele próprio.
Mas era certo que ele ainda precisaria de um longo tempo na ala curativa
do seu novo lar, com o propósito de poder encontrar a devida sintonia para abrir
os olhos e finalmente reviver. E para tanto, a sua mãe Eva ali estaria, pronta para
receber o filho e conduzi-lo para um aprendizado novo, um onde a sua alma
finalmente encontrasse a derradeira felicidade.
E no leito posto ao lado do de Caim, jazia outra alma recém-ingressa no
Éden Espiritual, ferida e acuada, mas que havia pedido perdão e sido atendida no
momento da sua passagem. Era Dimas, o bom ladrão. E a promessa de Jesus a
ele, mesmo destroçado naquela cruz, fora então cumprida.

***

Quando a escuridão finalmente abandonou Jerusalém, muitos ainda


estavam assustados com aqueles fenômenos que haviam abatido a cidade.
Pilatos ficou tão impressionado com o ocorrido que, temendo um contra-
ataque de forças desconhecidas, talvez aquelas do reino aludido por Jesus,
concedeu a José de Arimateia uma licença especial para que este pudesse retirar
o corpo do nazareno da cruz e dar-lhe uma inumação decente. Os restos dos
cadáveres que lá ficavam à mercê dos abutres e dos chacais, geralmente eram
descartados no vale de Geena, o que certamente não haveria de ser o caso de
Jesus.
Ao retornarem a Gólgota, alguns romanos haviam sido destacados para
carregar os restos dos soldados que lá haviam morrido, incluindo Cartaphilus.
Este, queimado, deformado e destruído pela ação devastadora de dez relâmpagos
sagrados, haveria de ser inumado sem quaisquer pompas, afinal, o seu nome
passou a ser associado a má-sorte, pois havia sido ele que tinha seviciado Jesus
ao extremo. Amedrontados com o eclipse e o terremoto, os militares estavam
convencidos de que Jesus não era um homem comum, e que aquela tortura
excessiva havia sido a causa da morte daquele nefasto immune romano e,
também, da outra praça que havia tentado agredi-lo na cruz.
Tanto os maus espíritos de Cartaphilus quanto o de Gestas, cujos restos
foram disputados por um bando de abutres ainda na cruz, já tinham destino
certo, afinal, a conta dos seus pecados não havia sido saldada naquela vida.
Jogados num poço escuro que os levaria à estrada sombria da Tesouraria das
Almas, eles haveriam de ocupar uma cela fria e secular, onde a fome, a dor, a
tristeza, a melancolia e o medo lhes fariam companhia. O romano era perverso
por natureza, e o ladrão, um maníaco sexual que doentiamente dilacerava as suas
vítimas. Diante disso, apenas eles próprios poderiam tentar se salvar e tentar uma
remota redenção. E para tanto, eles agora iriam ter todo o tempo do mundo, o
necessário até que o Guf fosse finalmente cerrado.
Pois já estando de volta a Gólgota, José de Arimateia deu a nova aos
parentes de Jesus que lá ficaram. Longinus e alguns empregados de Lázaro o
retiraram da cruz e o levaram com cuidado para baixo, onde Maria fez questão
de abraçá-lo. Ela olhava entristecida para o que havia restado do filho, e se
lembrou do que ele lhe havia dito sobre o pós-morte, onde a vida verdadeira, esta
sim, levava os bons ao caminho da felicidade. Magdalena, Joana e as outras
mulheres ajudaram a cobrir o corpo do mestre com uma mortalha de linho
branco[159], para então ser conduzido a uma das propriedades daquele senador
judeu localizada próxima dali. Na mesma oportunidade, José de Arimateia
entregou a Longinus parte da lança[160] que havia sido usada para perfurar Jesus,
a qual havia sido ali abandonada por Cassius, agora um desertor. Percebendo que
Maria insistia em lá ficar, o ex-comandante se aproximou e pediu sua atenção:
— Senhora, eu sei que o momento é delicado, mas eu gostaria de lhe
estender os meus sinceros sentimentos pelo vosso filho.
A virgem, embora abatida, sorriu ao romano e respondeu:
— Eu é que agradeço a vossa gentileza e o esforço que fez para tentar
ajudá-lo de alguma forma.
— Eu sei que a senhora certamente não irá se lembrar de mim, mas
somente hoje me dei conta que conheci seu filho há muitos anos, ainda no Egito.
Maria, ciente de quem ele era, logo respondeu:
— És o bom soldado que protegeu meu esposo, não é? — disse saudosa.
— Sim, eu me lembro de ti.
— Eu e Jesus éramos amigos, ele dizia que um dia lideraria um grande
exército. E agora, vendo as multidões que ele reunia em seus sermões e da
revolução moral que ele conduziu, estou certo de que ele conseguiu o que queria.
Sem medo de errar, posso dizer que ele foi o líder do exército de Deus.
Nesse instante Magdalena interveio naquela conversa de forma gentil:
— Perdoa-me, senhor, mas ela está exausta. Se nos permite, eu vou levá-la
para repousar.
Mas no mesmo passo, ele fez uma oferta:
— O teu filho curou meu servo e também a mim, afinal, eu era
parcialmente cego, desde criança. E mesmo antes disso, ele me fez enxergar a
vida de outro modo, mesmo com apenas um olho. Por isso, ofereço hospedagem
em minha casa, não é longe daqui.
Mirian olhou para Maria e, em razão do assentimento dela, aceitou o
convite e para lá se dirigiu com Joana e os fiéis vindos de Betânia. Lázaro
preferiu permanecer na cidade com José de Arimateia, afinal, eles haviam
chamado para si a tarefa de tentar encontrar os demais apóstolos fugidos e, se
fosse o caso, dar-lhes guarida até que as coisas se normalizassem.
No momento daquela despedida, Beelzebu e Caliel ainda estavam na
companhia da comitiva e, agora sabedores de que aquela seria a última vez que
os veriam, ao menos com aqueles disfarces, eles ficaram emotivos. Talvez a
convivência com os humanos lhes tenha tornado mais sensíveis, principalmente
em razão da figura materna das mulheres, algo que eles não conheciam enquanto
anjos. A desculpa outrora dada sobre a visita a um parente doente, tema da
primeira despedida, aquela necessária para assistir Jesus durante a paixão, foi
reforçada. Para Maria e os demais, seria apenas um “até breve”. Mas para
aqueles dois querubins, seria o fim de um ciclo, o fim de uma missão que, no
final das contas, eles haviam tido a indescritível honra de cumprir.
Como o dia seguinte seria sábado, e o comércio era proibido, Magdalena
achou por bem acompanhar Maria até a casa de Longinus e voltar três dias
depois, a fim de untar o corpo de Jesus conforme os costumes judaicos, embora
o corpo já tivesse sido previamente limpo com um pouco de mirra e babosa.
E seria naquela oportunidade que ela haveria de ter uma grande surpresa,
talvez a maior de toda a sua vida.

***

A inumação de Jesus ocorreu de maneira rápida e antes do pôr do sol, a


fim de que não sobreviessem tumultos. A campa era recém-construída e, tão logo
o corpo do mestre foi nela posto, sete empregados do juiz José de Arimateia
arrastaram a enorme pedra que finalmente a cerrou.
Enfim, eram três horas da madrugada de sábado, quando no breu surgiram
três focos de luz que, sem qualquer dificuldade, transpuseram as paredes do
sepulcro e foram ter no interior dele. Diante do cadáver de Jesus, aqueles focos
tomaram corpo e revelaram um trio de anjos que ali permaneceu, inertes e em
compasso de espera. De repente, desprendendo-se daquela mortalha ainda
manchada de sangue, se ergueu uma silhueta brilhosa que, sentando-se sobre a
cama de pedra, fitou os seus felicitados e ansiosos espectadores. Um deles, ao
constatar a efetiva identidade daquele espectro, o saudou sem demora:
— Príncipe Miguel? — adiantou-se o Arcanjo Surya ao constatar que o
marechal havia se desligado do corpo físico de Jesus. — Nós estamos aqui a
mando do Senhor, e Ele determinou que eu vos entregasse esta epístola tão logo
despertasse — esclareceu-lhe o militar que, naquela oportunidade, se fazia
acompanhar de Beelzebu e Caliel, ambos espectadores diretos da paixão.
Percebendo que havia retomado as formas físicas originais, as de um
arcanjo que originalmente era, Miguel estendeu a mão e auferiu a tal missiva,
cujo conteúdo nela posto era o seguinte:

“Filho, depois de muito esforço, finalmente redimiste os homens


e mulheres perante mim. Mas ainda há muito a ser feito, afinal,
as portas que com sacrifício abristes mudarão o modo de vida
na Terra. Pois antes de findar o teu ofício, reorganize o teu
rebanho perdido e faz cair sobre eles o espírito ungido que
outrora te dei, isso será necessário para a continuidade da
minha obra. Porém, mesmo envergando o estandarte da paz,
ainda és o meu primeiro arcanjo e, diante disso, une-te aos teus
três irmãos diante de ti e leva justiça aos caídos serafins que
ainda caminham pela superfície terrena. Pune-os, pois, conforme
as faltas que praticaram.

Teu Pai, com infindável gratidão.”


Miguel então ficou em pé e irmanou-se àqueles celestes. E alternando-se
em luz, com eles transpôs aquelas paredes de pedra. Pois antes de reorganizar o
seu apostolado disperso, ele, Surya, Beelzebu e Caliel tinham uma missão
importante dada por Deus: Justiçar Lúcifer e Baalberith.

***

Despojados das vestes humanas, Beelzebu e Caliel sobrevoavam os


montes e ravinas que cercavam Jerusalém e, agora acompanhados por Miguel e
Surya, estavam em busca de dois anjos degredados cujas sentenças já haviam
sido expedidas. Miguel planava de modo a alongar-se, afinal, havia mais de
trinta anos ele ocupava um corpo que não o seu. Mas de repente, o arcanjo parou
de movimentar as asas e lançou-se numa depressão funda e deveras escura, a
qual sequer as brilhosas estrelas que povoavam o firmamento conseguiam
iluminar.
Seguindo o marechal da armada celeste, cuja missão na Terra ainda não
havia findado, os outros três anjos tomaram o mesmo rumo e, certeiros,
pousaram com rigor no fundo de um vale sombrio. Clareando os caminhos
inóspitos apenas com a luminosidade dos seus próprios corpos, eles se puseram a
farejar o odor dos corpos de Lúcifer e Baalberith, apenas sentido em razão das
suas características sensoriais extraordinárias.
Enquanto percorriam aqueles caminhos, uma lacerante lâmina de fogo
surgiu de forma inesperada e quase transpassou a cabeça de Miguel, que dela se
desviou ao habilmente pender o corpo para trás. Surya percebeu aquela investida
e se atracou com um dos agressores ali revelados, o traiçoeiro Baalberith,
dominando-o sem muita dificuldade. Esboçando agir de forma letal, Caliel foi
obstado pelo Príncipe Miguel, que despojado de armas apenas encarou um agora
assustado Lúcifer, o qual, após ter tentado sem sucesso decepar a cabeça do
primeiro arcanjo, ainda arfava diante deles com o seu florete aceso numa das
mãos.
Miguel permaneceu imóvel e, apenas com a serenidade do seu olhar,
destruía pouco a pouco a beligerância do serafim, mormente quando este passou
a ter a mente encharcada por diversas lembranças de outrora. Licenciado pelo
seu superior de casta, Surya baixou o punhal que havia deitado na jugular de
Baalberith e o empurrou na direção de Lúcifer, o qual, encurralado, parecia ter
sido hipnotizado pela autoridade do primeiro arcanjo de Deus:
— Eis diante de mim o “cordeiro” de Deus — disse Lúcifer, ao arremessar
a sua espada ao chão. E em seguida, indagou. — Por que, Miguel? Por que tanto
sacrifício em prol daqueles que nos apartaram e quebraram o nosso laço angélico
de irmandade?
— Engana-te, irmão... — respondeu-lhe Miguel. — O sacrifício que eu fiz
foi para Deus, nosso Pai, a quem desacataste e deste azo a toda sorte de
desgraças que os seres humanos vivenciaram desde então. E se não fosse o teu
egoísmo e a tua inveja, nada disso teria sido necessário.
— Enfim, eu, o “pai de mentira”, caí numa armadilha — lamentou
Lúcifer, sem perder o humor. — “Verta o homem, e a Terra será tua...”, disse-me
Deus. Entretanto, o tal homem não era apenas humano, mas sim um anjo, talvez
o mais poderoso deles — concluiu agora cabisbaixo.
— E o que farão conosco? — indagou Baalberith acuado e aparentemente
com medo.
Surya tirou de uma capanga duas sentenças lacradas, as quais, tão logo
tiveram os respectivos selos rompidos, revelaram o teor do aresto divino para
ambos. Miguel fitou Beelzebu, e este caminhou na direção do outrora procurador
celeste, que ficou acossado ao vê-lo escoltado por Caliel, que ao menor sinal
poderia estraçalhá-los.
— O saudoso Metatron me contou sobre um presente que deste aos
humanos no passado, tão logo convenceste Caim a matar o próprio irmão.
— “Presente?” — indagou Baalberith assustado e confuso.
— Sim. As chamadas “doenças” — revelou ao decaído. — E por força da
lei da causa e do efeito, a qual, como “procurador de justiça” que foste, conheces
muito bem, Deus mandou dar-te isso.
Tão logo Baalberith recebeu um leve toque no seu ombro direito, as
células do seu corpo passaram imediatamente a crescer e se dividir,
ultrapassando em muito os limites convencionais. Elas então invadiram seus
tecidos adjacentes e se espalharam pelo seu corpo, dando origem a tumores
agressivos e horrendos. A dor da constituição óssea de Baalberith passou a ser
insuportável e, perdendo a sustentação, ele caiu ao chão suando e transpirando.
Num único passo, as lesões tumorais eclodidas naquele combalido serafim
passaram a formar outras tantas, gerando uma via de disseminação rápida e
igualmente devastadora no seu corpo. Os sistemas de controle e defesa dele
foram finalmente eliminados, fazendo com que aquelas células alteradas
ganhassem a sua corrente sanguínea e formassem colônias completas,
concluindo aquele processo mórbido e destruidor.
Beelzebu então se ajoelhou próximo dele e concluiu:
— Eu sobrevivi no Inferno por séculos com o meu corpo coberto por
sarcomas e moscas. E aprendi pela dor, e não pelo amor. Pois o nosso Pai espera
que tu, Baalberith, tenhas esse mesmo aprendizado, pois quando o juízo final
vier, quem sabe sejas redimido.
Baalberith enfim havia recebido a sua pena: o câncer, ou cancro, como a
doença era conhecida naqueles dias. Por ter tido ele, de forma maléfica,
contaminado a raça humana com moléstias de todos os tipos, vindas de um
pútrido escarro que ele lançou na atmosfera séculos antes, o serafim haveria
agora de suportar os mesmos males que causou. “Causa e efeito”, uma das leis
mais rígidas de Deus.
Impressionado com a severidade daquele aresto, Lúcifer assistiu a tudo
passivo e na defensiva e premido, os inquiriu:
— Então irão acabar comigo? A um irmão desarmado e em desvantagem
numérica? — apelou secamente.
— A morte é pouco para ti, Lúcifer — respondeu Miguel ao retirar da
cabeça do ex-serafim o pouco que restava intacto do seu outrora magnífico
diadema de cristal. — Surya... — ordenou. — Faz o que deve ser feito!
O arcanjo então retirou um adereço que trazia na cintura, forjado de
correntes feitas de carbono celeste, e o arremessou na direção de Lúcifer,
imobilizando-o pelos braços e pernas tirando-lhe o equilíbrio. Na sequência,
Miguel se ajoelhou e golpeou o solo, fazendo com que um feixe de energia os
envolvesse e os levasse para um outro lugar, bem abaixo daquele: a mansão dos
caídos.
Pois estando agora no Inferno aludido pelo Senhor Deus, o quarteto
arrastou os dois prisioneiros para um grande abismo onde ambos haveriam de
ficar acorrentados por dez mil anos terrenos. Os demais anjos caídos
continuavam ali inertes, congelados desde a descida do Altíssimo àquele plano
para libertar Lúcifer e Baalberith, os quais, agora, retornavam não como
gestores, mas como prisioneiros das terras más.
Sem gentilezas, o ex-príncipe dos serafins foi erguido pelas pernas junto a
uma parede rochosa lá suspensa e, de cabeça para baixo, percebeu que os seus
executores se movimentavam em volta dele. Ao perceber que o pequeno Caliel
envergava a sua a arma maior, a foice de fogo, Lúcifer pressentiu o pior. Pois,
pondo-se por trás do velho farol, o capitão da Guarda Civil lhe golpeou as asas,
arrancando não apenas dor do corpo de Lúcifer, mas também a sua própria
identidade. Sem as asas, ele se tornaria similar aos que tanto odiava; sem as asas,
ele se aproximaria da natureza dos homens. Embora gritasse e se debatesse, nada
fazia o pequenino parar! E tão logo a última pena lhe foi extirpada, Lúcifer
quedou-se inerte, afinal, para um anjo, perder as asas era o mesmo que perder a
sustentação.
Feito isso, o Arcanjo Surya se aproximou e fincou os polegares na testa do
caído, dando azo a que dois grandes orifícios dela surgissem. E repuxando-os em
seguida, fez emergir entre o sangue, dois arremedos de chifres, de modo a
marcá-lo como o traidor dos traidores. Em seguida, ele segurou as pernas do
banido, que foram de pronto cobertas por uma pelagem longa, lisa e negra. Os
pés do outrora celeste então se consumiram para dar lugar a coberturas córneas
espessas e igualmente enegrecidas. Metade anjo, metade ruminante; esse foi o
nefasto fim do rei do Inferno.
Amarrado, sem as asas e com a testa brutalmente estigmatizada, o velho
archote parecia morto. Mas, de forma abrupta, Beelzebu então soltou as
correntes que mantinham Lúcifer pendurado, e este caiu violentamente no chão
férreo, à beira de um precipício que lhe serviria de túmulo. Surya então os
empurrou para aquele despenhadeiro, o qual passou a ser selado com elevadas
cargas de calor.
Quando a fenda estava prestes a ser fechada, a perspicácia de Miguel o fez
perceber, mesmo de longe, que Lúcifer chorava lágrimas de sangue.
— Que o remorso vos faça companhia..., irmãos... — concluiu o marechal
celeste ao verter a cabeça.
Baalberith, acossado pelo câncer, estava com a face irreconhecível, pois
exarava apenas dor. E Lúcifer, alijado, havia perdido o resto de sua majestade.
Dez mil anos de prisão, tempo suficiente para que repensassem suas ações.
— Com os anjos rebeldes fora de circulação, creio que os homens agora
tenham um pouco de paz... — ponderou Beelzebu diante da forte fumaça que ali
se ergueu.
— Eu creio que não. Os degredados podem estar presos, mas os fugitivos
do Guf são uma ameaça ainda bem maior — disse Miguel.
— Fugitivos do Guf? — indagou o querubim-mor.
— Espíritos obsessores, Beelzebu. Alguns bem piores do que Lúcifer e os
demais rebeldes. Mas embora a maldade não tenha sido ao todo extirpada, estou
certo de que grata parte do planeta haverá de mudar em razão da obra que será
desenvolvida pelos cavaleiros do Cristo, pois com a morte de Jesus, nascerá uma
das mais poderosas e influentes religiões do mundo — concluiu o grande
arcanjo.
— Senhor, creio ser chegado o tempo de retornar — disse-lhe Surya.
— Sim. Eu ainda tenho uma última missão a cumprir no corpo de Jesus. E
depois disso, nos reuniremos no Céu — respondeu Miguel.
Finda a execução, eles retornaram à superfície, onde haveriam de ficar até
que ocorresse a ressurreição e a despedida de Jesus.

***
Naquele mesmo sábado à noite, Caifás e os seus ainda tentavam entender
o que havia ocorrido na sexta-feira. Os pedreiros do Templo começaram a
trabalhar tão logo o sol nasceu, afinal, os estragos haviam sido bem grandes.
O véu do santuário servia de limite entre o ambiente mais sagrado da
edificação e o átrio dos sacerdotes e, nele, somente se entrava uma vez por ano,
remanescendo tal múnus a Caifás. E agora, o véu estava rasgado.
Desde a expulsão do Jardim do Éden, o homem havia se apartado do
Eterno. Agora, com a morte de Jesus, essa barreira simbólica havia sido
finalmente extirpada pela espada que lá esteve. Era certo que os sinedristas não
sabiam disso, mas no momento em que Jesus de Nazaré sofria na cruz, o arcanjo
Surya empurrava e destruía os pilares do Templo. E com a sua amolada espada
de fogo, partiu o manto do salão de cima para baixo e reestabeleceu o elo direto
entre Deus e os homens, desmerecendo a autoridade dos corrompidos sacerdotes
que por lá passaram. Doravante, o Senhor não mais estaria ali, mas sim, pela
crença, em todos os lugares onde os filhos dos homens viessem procurá-Lo.
Embora assustados, os senadores judeus que haviam condenado Jesus
apenas temiam a perda dos seus privilégios e, diante disso, faziam pouco dos
profetas. Entretanto, Jesus demonstrou não ser simples vidente, mas, conforme o
próprio Caifás passou a crer, um poderoso mago que havia atentado contra os
ganhos do Templo e o clima terrestre.
Após a morte do intitulado Messias, brotaram rumores de que ele haveria
de ressuscitar e contra-atacar os seus oponentes. E o retorno à vida de Lázaro,
boato que trouxe excessiva fama ao nazareno em Jerusalém, talvez tivesse
servido de prévia para um espetáculo que os seguidores dele estivessem
tramando para causar distúrbios ainda maiores.
Diante disso, Caifás achou por bem procurar Pilatos nas escadarias do
pretório e, sem prejuízo da hora, pedir-lhe uma guarda romana para zelar pelo
túmulo de Jesus, a fim de que ninguém tentasse algum truque para impressionar
os incautos.
— Caifás, tu não achas que já tivemos tumultos por demais? — ponderou.
— O homem está morto e com ele, a sua doutrina.
— Nós também pensávamos assim, Excelência. Mas há pouco soubemos
de teorias conspiratórias que tencionam tornar a morte dele um espetáculo...
— O que queres dizer com isso?
— Que o homem era um mágico excepcional, isso ficou inconteste —
respondeu em alusão ao eclipse e aos fenômenos sobrenaturais vistos na data da
execução.
— Mágico e blasfemador! — interveio outro pérfido juiz no afã de fazer
voz ao seu superior.
— Pois às vezes me pergunto se ele era de fato um homem... — retrucou
Pilatos ao retomar ao seu assento.
— Perdão, Excelência? — indagou Caifás.
— Eu apenas pensei alto, sumo-sacerdote. Mas, afinal, o que ainda quereis
de mim, e a essa hora da noite?
— Apenas uma pequena guarnição para vigiar a tumba desse galileu e
evitar ocorrências de embustes que possam, de qualquer forma, causar ebulições
na cidade e arranhar ainda mais o nosso prestígio.
Pilatos estava inquieto desde que havia condenado Jesus mesmo tendo se
convencido da inocência dele. No palácio, sua esposa passou a evitá-lo e, mesmo
após a morte do nazareno, os sinedristas insistiam em não o enterrar de vez. O
prefeito romano, por assim dizer, estava intimidado por um espectro que ele
ajudou a criar e, tentando afastá-lo de si, decidiu anuir quanto ao pleito:
— Marcellus, põe uma guarnição em turnos no túmulo de Jesus de Nazaré
— ordenou ao centurião-chefe que ali o assistia. — Sela-a e me reporta
imediatamente qualquer adversidade.
Ainda assim, os sinedristas tentaram arrancar uma última informação de
Pilatos:
— Excelência, sem prejuízo dos agradecimentos a que vós devemos, nós
estamos um tanto curiosos. A quem pertence o túmulo cedido ao finado?
Farto daquelas investidas, Pilatos tentou dar um basta naquilo tudo:
— Esse assunto não vos diz respeito! Já tendes a guarnição que pedistes,
agora retirai-vos daqui, afinal, é a águia imperial que ainda paira por Jerusalém,
e não a estrela de Davi! — bradou referindo-se a insígnia judaica.
Acuados em razão do nervosismo do tribuno, eles o reverenciaram e
deixaram a fortaleza sob o fulgor da lua, afinal, o pedido deles havia sido
atendido. Entretanto, o curso da história haveria de ser outro e, com vigilância ou
não, Jesus se ergueria para dar base à nova religião que inundaria o mundo, a
qual, alguns séculos depois, acabaria oficializada na própria mãe Roma.

***

Pois já era domingo de manhã quando um dos soldados romanos que


estava de guarda na tumba desde a noite anterior despertou assustado em razão
de um barulho incomum. Diante dele, parada, estava uma criança usando uma
túnica negra e alguns adereços dourados, e a qual, para manter o equilíbrio, vez
ou outra rebatia um par de pequenas asas esverdeadas que tinha sobre as costas.
Asas! Creditando aquela visão ao excesso do vinho azedo que havia ingerido
durante a madrugada, o guarda esfregou os olhos e ficou boquiaberto ao
perceber que aquela pequenina havia rasgado com facilidade o selo romano
posto nas cordas que fechavam a tumba e, apoiando-se na imensa pedra que a
fechava, começou a rolá-la até desobstruir a entrada.
Ao ver tal cena — uma criança arrastando uma pedra que sete homens
fortes haviam tido dificuldade para o fazer —, o soldado se levantou, mas
acabou tropeçando na própria capa, chamando a atenção do tal querubim que, ao
virar-lhe o rosto, o encarou com uma feição pouco amigável. O militar então
começou a arfar com severidade, e acuado em continuar com a marcha,
escondeu-se atrás de uma pedra e tentou retomar a lucidez.
Nesse ínterim, Mirian Magdalena e Joana caminhavam por entre os
lugares que levavam ao túmulo de Jesus, e por ser muito cedo, acabaram
interpeladas por alguns soldados que davam guarida ao perímetro amplo do sítio:
— Alto lá, onde pensais que ireis?
Abaladas pela morte do mestre, ambas não esboçaram qualquer reação
ativa e, de forma simplória, Mirian respondeu ao alistado:
— Nós somos parentes do morto que foi inumado neste jardim. E como
ontem foi sábado, não pudemos comprar especiarias para lavar o corpo dele.
— E o que vos faz pensar que conseguireis limpá-lo sem remover aquela
pedra? — indagou rispidamente um deles. — E de mais a mais, estamos aqui
apenas para cuidar da segurança, e não para servir de... — Nesse instante, o
romano foi interrompido pela repentina chegada de outro, o mesmo que estava
próximo à abertura do ataúde e tinha visto Caliel abri-lo. — Vitélio, o que
houve? — indagou surpreso. — Tu não devias estar guardando a entrada do
sepulcro?
Gaguejando, o soldado não conseguiu responder àquela pergunta e,
apontando para o local da tumba, continuou a se afastar tropicando, no que
chamou a atenção do companheiro de armas que então correu na direção da
gruta. Ao lá chegar, ele viu a grande pedra fora do lugar, dando a entender que
um bando de desconhecidos talvez a tivesse empurrado e arrebatado o corpo de
Jesus. Pois entrando na dita caverna, ele verificou que o cadáver havia sumido e,
no lugar onde jazia o corpo, estava apenas o sudário que o havia envolvido.
Ainda tentando entender o que ali havia ocorrido, tal não foi a sua surpresa ao
perceber que, do fundo do espaço, surgiu um grande ente iluminado que, usando
uma armadura, lhe perguntou com aparente gentileza:
— Homem, por que procuras um vivo entre os mortos?
Pois ao verificar que, das costas dele também se elevavam asas, o guarda
romano fugiu tresloucado e deixou as duas mulheres sem reação.
Adiantando-se no terreno, Magdalena fez menção de ingressar no
sepulcro, mas Joana a segurou:
— Mirian, por favor, não entres aí!
— Joana, nada de ruim pode vir do local onde o corpo de Jesus está. Eu
preciso ir até lá, desejes tu ou não.
Ao ganhar a entrada da gruta, Magdalena viu o mesmo ser, em verdade, o
Arcanjo Surya, o qual havia entregado a ela o sudário do Cristo e disse:
— Eis aqui a prova. Guarda este manto, o sangue nele encruado é o
sangue do sacrifício pelos homens.
Magdalena tomou o sudário nas mãos e fitou o anjo, dando mostras de que
não o temia.
— E agora, volta para a casa do oficial romano, pois Lázaro está
conduzindo os demais apóstolos perdidos de Jesus até lá.
Ela acatou a orientação do celeste e para lá rumou, ao passo que os
militares romanos, assombrados, correram fugidos para a fortaleza Antônia a fim
de dar parte do ocorrido ao superior do dia. Mas o que eles haveriam de dizer? E
quem acreditaria neles? Enfim, o plano de Deus estava apenas começando.

***

Assim que chegaram à casa de Longinus, Mirian e Joana souberam que


Lázaro havia encontrado os demais apóstolos, todos menos Judas Iscariote,
misteriosamente desaparecido. Eles não haviam ido longe quando da chegança
dos soldados do Templo e, escondidos numa gruta bem próxima ao jardim de
Getsêmani, foram achados ainda amedrontados. De longe, Simão Pedro seguia
Magdalena e Joana e, tão logo percebeu que José de Arimateia estava acoitando
o rebanho perdido de Jesus, ele se achegou e os acompanhou ainda acanhado. Lá
todos foram levados para um cômodo reservado, a fim de retomarem a marcha
do movimento, mormente diante da morte de Jesus.
Magdalena então invadiu o ambiente atônita e, ainda ao lado de Joana,
disse aos demais o que havia acabado de presenciar.
— Estás a dizer que um anjo falou contigo? — indagou Tomé.
— Sim! — respondeu efusiva. — O mestre não estava mais lá.
— Estás louca... — concluiu, descrente.
— Louca, Tomé? Eu vi Jesus morrer na cruz! E tu, onde estavas? —
indagou irritada. — E tu, Pedro, também duvidas da minha palavra? — afrontou-
o.
O sisudo pescador ainda cultivava um remorso terrível por ter negado
Jesus, mas, lembrando-se da pequena Chaya e das coisas estranhas que havia
presenciado ela fazer, não teve coragem de desconfiar de Mirian. Anjos
existiam, isso era um fato, pois as peripécias daquela pequenina eram reais, e
não meras visões.
— Eu falhei com o mestre, Magdalena... — respondeu Pedro entristecido.
— Talvez uma maldição pela fraqueza de meu corpo diante da possibilidade da
morte. Estou muito confuso com tudo isso e não consigo me perdoar.
— Sim, tu o negaste — lamentou Tiago. — Todos nós acusamos Judas de
tê-lo traído, mas também o abandonamos quando ele mais precisou de nós...
— Todos menos Magdalena e Joana — concluiu Pedro cabisbaixo.
— Pois se é verdade que Jesus ressuscitou, será que ele voltará a nos
liderar? — interessou-se Bartolomeu.
— O mestre veio para cumprir um desígnio e, pelo que vimos, o efetivo
lugar dele não é mais entre nós — explicou Mateus. — Jesus plantou uma
valiosa semente, e a nós caberá colher os frutos dela, mesmo que sobre os
abrolhos da terra.
— Magdalena... — disse Pedro ao se levantar e tomar-lhe as mãos. — Eu
acredito em ti, irmã — concluiu, vertendo a cabeça. — E peço sinceras
desculpas por todas as vezes em que eu tentei diminuir-te.
— Judas o traiu e quiçá teve remorso. Mas tu, Pedro, em verdade, estás
arrependido. E isso te aproximou novamente de Jesus — disse ela o afagando.
Pois nesse instante, enquanto todos ficaram tocados ante aquele gesto
voluntário de Simão, um clarão invadiu o cômodo onde eles estavam e, ao
olharem para a porta, ela se abriu repentinamente, e os apóstolos foram tomados
de sobressalto.
— Eis aqui o meu rebanho reunido, aquele que haverá de quebrar a
resistência do homem a Deus.
Tomé ficou pasmo e, ao se aproximar vagarosamente do espectro do seu
mestre, que brilhava como a luz, caiu de joelhos e percebeu duas grandes feridas
nos pulsos dele, as mesmas por onde os pregos romanos haviam passado.
— Tomé, Tomé. Sempre incrédulo... — Sorriu Jesus. — Estas chagas não
mentem, pois não?
— Mestre, mas como é possível?
— Para aquele que crê; nada é impossível.
— Senhor, mas o rebanho não está completo, um dos nossos não foi
localizado — disse-lhe Tomé. — Judas está desaparecido...
Jesus deu alguns passos, sentou-se numa bancada lá posta e disse:
— Ele foi esconjurado, não o verão mais. Mas de uma forma ou de outra,
ele será uma testemunha da nossa lida — arrematou, sem revelar maiores
detalhes.
Os apóstolos então deram as mãos, e o rabi pôs-se a abençoá-los,
sepultando de vez quaisquer dúvidas que porventura existissem em relação à
missão sagrada dele.
— Daqui por diante, vós sereis meus representantes na Terra. E para tanto,
vos darei uma parte do espírito ungido que me coube, pois hoje todos perderão
seus medos e haverão de renascer fortes e revigorados.
Tão logo Jesus disse isso, um fulgor intenso surdiu do seu corpo e se
apoderou da capa material dos presentes, fazendo com que uma poderosa energia
os cercasse. Enquanto aquele processo transcorria, eles começaram a bradar
vários idiomas, dando a entender que a evangelização, diante daquilo tudo,
haveria de ser universal.
Jesus os observava atentos e, assim que aquele processo terminou, os
homens e mulheres lá postos já não eram mais pessoas comuns, afinal, agora
dotados do espírito santo, eles haviam ganhado poderes que jamais sonharam ter.
Embora ainda atordoados, todos perceberam quando Pedro caminhou na
direção de Jesus e pediu:
— Senhor, perdoa-me pela minha falta, pela minha fraqueza. Embora
grato pelo voto, não sei se sou digno.
— Pedro, o Pai se reconciliou com o mundo todo. E o teu pleito de perdão
é o suficiente para que faças parte dessa mesma reconciliação. Ele me enviou; e
eu, agora, vos envio. Fazei os seus próprios discípulos, batizai os fiéis que vos
procurarem e ensinai o evangelho que eu vos trouxe.
— E ficarás conosco, mestre? — apelou Tadeu.
Jesus sorriu, voltou para a porta e a todos encarou.
— Eu sempre estarei entre vós. Sempre!
Feito isso, a luz que lá estava aumentou e ele desapareceu, deixando a
emoção tomar conta de todos os apóstolos, os quais retomaram a segurança que,
até pouco tempo, pareciam ter perdido diante da morte do mestre. E enquanto se
acostumavam àquela parcela de força que haviam recebido, João se dirigiu a
Magdalena e perguntou com recato:
— Irmã, agora que tudo mudou, o que faremos daqui por diante? E mais,
creio que deves nos guiar, afinal, o mestre te amava mais do que todos.
— João, todos vós bem sabeis que a nossa igreja não sobreviveria, não na
sociedade patriarcal de hoje, se eu ou Joana tomássemos frente a ela.
— E quem de nós estaria apto a fazê-lo? — interveio o pescador.
— Simão Pedro, certa vez o mestre me disse: “perdoa para te curares”. E
mesmo com toda a prevenção que tiveste contra mim, eu te perdoo. E sabeis que,
a partir de hoje, todos nós haveremos de celebrar uma nova Páscoa, pois com a
ressurreição de Jesus, morre o extremismo rabínico e nasce o cristianismo.
Felicitados pelo estímulo moral, todos se revigoraram. E então, Mirian
Magdalena arrematou: — E, Pedro, para provar que os atos suplantam as
palavras, entrego a ti a chave da nossa futura igreja, a fim de que a conduzas
como melhor te aprouver, pois eu, daqui por diante, haverei de pregar sozinha e
apenas por mim mesma. Pedro então se aproximou de Magdalena e,
impressionado com o altruísmo dela, fitou os demais, os quais deram mostras de
que não se opunham à escolha. Ele pediu-lhe a bênção, beijou-lhe as mãos e
humildemente acatou o encargo. E a primeira freira, tentando esconder a
emoção, anunciou: — Irmãos, eu vos participo que seguirei para além de Roma,
vou levar a palavra aos que não a conhecem.
— Roma é perigosa, Magdalena! Estás certa disso? — advertiu André.
— Todos nós temos um destino a cumprir, e o meu, algo me diz, está
naquelas plagas — explicou.
— Eu irei contigo, irmã — asseverou Joana, ao saber por José de
Arimateia que o seu filho seria acolhido numa casa judia, onde receberia
instrução e proteção.
— Então, amanhã, nós duas partiremos. E no caminho, passaremos pela
Grota dos Leprosos, afinal, temos uma companheira muito querida que lá está à
nossa espera — esclareceu, referindo-se a Susana.
Os apóstolos então pediram a bênção formal de Magdalena e, dali,
começaram a, vez mais, se dividir em duplas, assim como haviam feito no
passado, a fim de levarem a palavra de Jesus a todos os que quisessem ouvi-la.
Pois tão logo o encontro terminou e a noite caiu, Longinus procurou
Magdalena, a qual arrumava algumas provisões para a viagem do dia seguinte:
— Mirian?
— Boa noite, centurião! — respondeu, espirituosa. Ele então se achegou e
ofereceu a ela uma capa bem trabalhada e resistente, apta a enfrentar os rigores
das estradas. — Obrigada, mas já fizeste muito por nós... — respondeu Mirian,
sem desmerecer aquele mimo.
— Mas eu sei que muito mais há de ser feito, e é sobre isso que eu
gostaria de falar contigo... — Magdalena levantou a capa e a colocou sobre o
corpo a fim de mostrar gratidão. E mostrando que a mesma lhe servia, sorriu ao
oficial reformado e sentou-se de modo a dizer que estava à disposição dele: —
Eu sempre fui um soldado, talvez por toda a vida. Mas assim como Jesus, eu
hoje aprendi que posso continuar a lutar, mas com outras armas que não as que
tiram vidas.
— É uma bela lição. Aliás, como todas que ele nos deixou.
— Permite-me então que eu siga contigo. Jesus me fez encontrar a visão
que eu já não tinha e, diante disso, sinto que é o meu dever ajudar os outros a
encontrarem aquilo que eles vierem a perder.
— Meu irmão, os caminhos não serão fáceis. Eu tenciono passar pela
Síria, pelo Líbano, pela Grécia, pela Sicília e por Roma, afinal, o movimento
haverá de crescer.
— Sim, eu sei disso. E de todas as batalhas que eu já lutei, sinto que essa
será a mais árdua, a mais difícil.
— Se é o que desejas, quem sou eu para obstar-te? — indagou
estendendo-lhe as mãos de modo a aceitar o engajamento dele.
— Esse é o trabalho que ele tinha para mim. E eu não irei decepcioná-lo
— disse seguro.
E a noite então passou depressa, tão depressa que a manhã chegou
ensolarada e dando mostras de que o céu não haveria de amparar uma única
nuvem sequer. Pois ao saber que Magdalena e Joana estavam prestes a partir, a
mãe de Jesus foi ao encontro delas. E à apóstola predileta do filho, ela rogou:
— Filha, leva contigo uma bênção. E quando encontrares a jovem Susana,
diz a ela que eu a esperarei; ela e os seus dois filhos...
— Filhos, senhora? Ao que sei Susana, não tem filhos... — respondeu
Magdalena confusa.
— Eu já havia dito a ela que nós nos reencontraríamos. Por favor, apenas
reforce esse recado.
Maria ficou emocionada com aquela despedida, afinal, ela tinha um
carinho especial pelas apóstolas do filho, as quais, dali por diante, seriam as
vozes femininas dele. Embora no futuro elas viessem a ser relegadas em
detrimento dos apóstolos homens, e até mesmo marginalizadas nas quatro
escritas oficiais, foram ambas, na verdade, as mais importantes seguidoras de
Jesus, sendo que uma delas abdicou da titularidade do trono dele para cedê-lo a
Pedro, cujos substitutos, no futuro, passariam a personificar a figura dos
doravante chamados “papas”, como seriam conhecidos os bispos de Roma, os
líderes da vindoura Igreja Católica Romana.

***

Os rumores da ressureição de Jesus invadiram a cidade, e os sinedristas,


após saberem que o túmulo havia sido arrombado, procuraram Pilatos de
imediato:
— Alguém levou o corpo, não há dúvidas! — reclamou Caifás. — Só
podem ter sido os seguidores dele.
— Isso é impossível! — retorquiu Pilatos. — Marcellus, quem ficou
encarregado de cuidar da tumba? — indagou ao centurião.
— Eu irei verificar, senhor... — respondeu o oficial receoso.
— Pois traz a guarnição aqui, eu preciso saber o que houve.
Após alguns minutos tensos, dois soldados rasos ganharam o átrio
desorientados e, sem sequer saudar o prefeito, foram de pronto instados:
— O que houve na colina? Dizei!
— Nós... Nós não sabemos ao certo, senhor... — esclareceu um deles.
— Como assim, não sabeis? Onde está o corpo do galileu? — insistiu
nervoso.
Ambos se entreolharam apreensivos. E um deles, então, respondeu:
— Senhor... — vacilou. — Uma luz o levou... — Pilatos premiu os olhos
e fulminou o legionário, o qual continuou: — E a luz tinha...
— Tinha o quê? — persistiu irritado.
— Asas — arrematou aparentemente confuso.
— Asas? — surpreendeu-se. — Por acaso bebeste, soldado? —
interpelou-o Pilatos, chacoalhando-lhe os ombros.
— E a tal luz me disse: “homem, por que procuras um vivo entre os
mortos?”. Ao ouvir isso eu fiquei em pânico e acabei fugindo... — completou,
vertendo a cabeça.
Caifás se aproximou daquele soldado e o inquiriu nervoso:
— Por acaso, tu não temes o poderio de Roma? Como ousas inventar
tamanha sandice? — gritou de maneira teatral.
— Tens razão. Talvez eu não esteja assim tão são... — respondeu
cabisbaixo.
— E tu? — indagou Pilatos ao outro. — Também viste essa tal luz?
— Não, senhor... Eu vi outra coisa...
O prefeito parecia não acreditar no que ouvia e, amparando o rosto com a
mão direita, indagou com a voz baixa:
— E o que viste?
— Eu vi uma criança; uma menina...
— Uma menina? Não me digas que ela quebrou o selo e empurrou a porta
do túmulo! — replicou.
— Sim! — respondeu com veemência. — Ela queimou o selo posto pelo
centurião-chefe e moveu a rocha.
— E ela também tinha asas? — retrucou o prefeito agora fazendo graça.
— Verdes... — retorquiu o soldado.
— Verdes? E o que eram verdes?
— As asas dela, senhor! Elas eram verdes.
Pilatos ouviu aquilo atônito. Ele então se sentou novamente e esfregou as
mãos no rosto, como se estivesse tendo um sonho. Feito isso, fez sinal para que
os levassem, oportunidade em que, afoito, voltou-se ao sumo-sacerdote:
— Eu sabia, de início, que isso não teria um bom termo. Nós bulimos com
forças desconhecidas e tu bem sabes disso.
— Forças desconhecidas?
— Não se faças de tolo, Caifás! Não para mim! — bradou enfurecido. —
É do meu conhecimento que partes do teu Templo foram destruídas, e que o véu
que dizem ser santo se rasgou.
— Mas, senhor... — tentou desconversar.
— E o dia que virou noite quando ele foi pregado na cruz? Mera
coincidência? — bradou andando sem rumo e bracejando pelo salão do pretório.
O sinedristas ficaram acuados, afinal, no fundo, sabiam que Jesus era
diferente dos demais, entretanto, não podiam admitir aquilo, afinal, eles o
haviam matado.
— Agora ide, deixai-me em paz, já criastes problemas em demasia... —
lamentou, sentando-se novamente junto à mesa de ordens.
Caifás e os seus partiram da fortaleza em silêncio, quase que enxotados.
Durante o restante de suas vidas terrenas, eles talvez não pagassem pelos seus
crimes, mas ao término delas, as contas a serem saldadas seriam muito, muito
altas. “Conspiração para assassinar o filho de Deus”, um crime tão aberrante
quanto os cometidos por Herodes I. Caifás e os seus já eram homens
condenados, e tão logo eles se despedissem dos seus luxos e haveres — a
maioria auferida em detrimento da fé alheia —, um destino nada agradável e
doloroso os esperaria na sombria Câmara de Guf.
Capítulo 16
Até o final dos tempos
A TEMPESTADE QUE DESABOU na cidade quando Jesus fez a passagem
também repercutiu em outras bandas, em outros países inclusive. Quando tudo
se consumou, Susana ainda estava na Grota dos Leprosos e, agora privada da
cautela de Metatron, ficou deveras assustada com a mudança repentina do
tempo. Entretanto, aquela chuva sagrada foi para purificar os que haviam optado
por crer no ministério de Jesus e, tão logo a água enxurrou o vale, os doentes que
lá estavam entraram numa espécie de transe, os quais, voluntariamente,
deixaram o fundo das suas furnas e ganharam o céu negro, donde
experimentaram o frescor da torrente que lhes encharcou as escaras e,
milagrosamente, os limpou por completo.
Percebendo o que ocorria apenas quando os raios, vez ou outra,
iluminavam o breu excessivo que havia tomado conta do lugar, Susana caiu
prostrada e soube que o seu esforço não havia sido em vão, pois a promessa que
havia feito a Jesus e aos demais, de que lá ficaria a fim de converter os
resistentes, havia sido cumprida.
Igualmente banhada por aquela chuva, ela foi, aos poucos, aceitando que a
grata parte dos pecados de suas outras vidas haviam sido finalmente esquecidos.
Layla-Li, sua primeira encarnação, já havia quitado quase todos os débitos
pendentes, e aquele gesto de entrega lhe deu créditos para futuramente renascer a
fim de, com as almas revividas dos seus pequenos rebentos, cumprir uma missão
final em ode à virgem Maria, incumbência essa que os faria ascender ao novo
Éden de forma definitiva.
Ela então se sentiu pura como nunca e, embora tivesse vivido grande parte
da sua sexta vida como a fútil Salomé, ela agora partiria como Susana, o lírio
renascido pelas mãos de Jesus. E foi desta forma, vendo os últimos leprosos
serem curados, que ela repentinamente começou a perder os sete sentidos e, sem
qualquer tipo de dor, adormeceu serena sob o rigor da tempestade que ainda lá
caía, bem à beira do braço do rio que, àquela altura, já transbordava.
Embora desaparecido desde que havia assassinado Metatron, Azeyzel não
se deu por vencido e decidiu voltar do desconhecido, mesmo sabendo que Caliel
talvez estivesse no seu encalço. E, ainda escondido com os livros rapinados, e na
vã esperança de ainda verter Susana, ele percebeu que ela havia desfalecido na
lama. O fugitivo então se imiscuiu por entre a chuva que recuava e se achegou
da amada. Após tomá-la nos braços, percebeu que ela não mais respirava.
Tentando reanimá-la, o exilado sentiu que o espírito da sua outrora concubina
não mais habitava aquele corpo, tendo partido, por ordem de Deus, tão logo a
sua missão se consumou com a cura dos últimos leprosos recalcitrantes.
Assim, ao constatar que o objeto do seu desejo doentio havia finalmente
partido daquele plano, aquele anjo fugitivo envergou um misto de raiva e
tristeza, como se tudo que tivesse passado tivesse sido em vão, inclusive o
assassínio de Metatron, a quem ele, no fundo, admirava. Caso o espírito dela
tivesse retornado à Tesouraria das Almas, ele nada poderia fazer, afinal, se lá
pisasse, seria preso e morto. E se tivesse rumado ao novo Éden, muito pior,
afinal, ele sequer sabia o caminho para tal dimensão, cujo acesso era defeso a
quem nela não prestasse serviços. Chorando copiosamente e abraçando o
cadáver da sua amada imortal, Azeyzel pranteou com o coração partido:
— Tu jamais entenderás os motivos que levaram um filho de Deus a amar
a filha de um homem. Mas saibas que eu jamais te esquecerei, e comigo levarei e
perpetuarei a história da tua mãe e a tua própria... — disse, em alusão aos livros
de Metatron e à própria Lilith, de quem ela diretamente descendia.
O anjo então seguiu o costume dos homens e a pôs numa cova rasa, cuja
terra, encharcada, tratou de cobri-la sem demora. Layla-Li, Salomé e agora
Susana estavam materialmente mortas, mas a alma delas ainda vivia, una e apta
a cumprir a última jornada que a credenciaria para a vida eterna.
Azeyzel sentiu a dor da perda e, mago que ainda era, tratou de buscar
refúgio definitivo em outras plagas, afinal, com ele, estavam guardados os
valiosos segredos da verdadeira saga dos filhos de Deus, assim como a do
homem. E após bradar um encanto, ele sumiu novamente, desta feita, para um
lugar ermo e bem afastado, até que os séculos passassem e ele pudesse cumprir a
promessa de levar adiante aquela história tal qual ela verdadeiramente aconteceu.
Dias mais tarde, quando Magdalena, Joana e Longinus retornaram ao vale
para resgatar Susana, eles não encontraram mais nada. Nem ela, nem Matatias e
tampouco os leprosos. E a velha Grota, em verdade, não mais existia. Sobre ela,
jazia um grande lago que havia sepultado de vez aquele lugar de sofrimento, mas
que, no final, serviu de redenção, não apenas para os seus habitantes, mas para a
alma atormentada daquela mulher que finalmente encontrou a boa estrada que
doravante deveria seguir.

***

No suntuoso palácio de Deus, um corpo celeste há muito posto em


hibernação parecia sentir a sua força voltar. Pois tão logo a carapaça de luz que o
cobria se desfez, o já refeito Arcanjo Miguel viu-se só no salão e, com alguma
dificuldade, se levantou. Suas lembranças pareciam traí-lo, entretanto, logo lhe
veio à mente um renascimento num túmulo — como Jesus —; uma importante
missão com três irmãos, Beelzebu, Caliel e Surya, e a ulterior prisão de dois
traidores, Lúcifer e Baalberith, agora cerrados nas profundezas do Inferno.
Caminhando lentamente, ele se deparou com uma elevação de mármore, a
qual devia medir cerca de um metro e meio, quase metade da sua altura. Nela,
sob uma base esverdeada, jazia uma cintilante coroa de ouro, toda trabalhada
com diamantes púrpuras. Entretido com a formosura daquela joia e com a
retomada do seu corpo, Miguel não percebeu quando, por trás dele, uma voz que
havia muito não ouvia tomou conta do cenário:
— Sê bem-vindo, meu filho.
Ao dar meia volta, o arcanjo-mor foi tomado por uma emoção repentina e,
ao invés de prostrar-se perante o Senhor Deus, conforme exigia o protocolo, ele
foi ao imediato encontro Dele e, aos prantos, O abraçou firmemente, como um
filho que abraça o pai após passar muitos anos sem vê-lo.
Ciente de que as emoções de Miguel estavam afloradas, o Eterno
dispensou as mesuras e o acolheu com carinho, afinal, o sacrifício dele havia
sido exitoso.
O marechal da armada celeste então chorou no peito do Altíssimo e, ao
retomar a razão, afastou-se e se ajoelhou, obedecendo, assim, o ritual. E estando
nessa posição, ele sentiu quando algo repousou sobre a sua cabeça, era aquela
mesma coroa que, admirado, ele vislumbrou tão logo saiu do sono.
— Miguel, participo-te que não és mais o príncipe dos arcanjos —
adiantou-se o Altíssimo.
— Senhor? – indagou confuso.
— Daqui em diante tu és o príncipe do Céu e, a meu lado, governarás
todos os espaços e plagas onde exista a vida — concluiu.
O marechal ficou aparentemente túrbido com aquele anúncio, mas, ao
ganhar o salão externo guiado pelo Pai, ele se deparou com uma multidão de
anjos de todas as ordens, os quais, emprestando-lhe reverência, deram mostras
de que reconheciam, não apenas a autoridade de Deus, mas também, a dele
próprio.
Logo na primeira fila, quatro celestes bem conhecidos chamaram a
atenção de Miguel, afinal, eles o haviam acompanhado durante parte da sua
missão na Terra. Lá estavam Gabriel, Beelzebu, Caliel e Surya, já devidamente
trajados como anjos que originalmente eram. O príncipe-primeiro dos anjos
mensageiros, valente defensor da família sagrada de Jesus, se aproximou e disse:
— Felicito-me em ver-te de volta aos teus, pois fui testemunha direta do
teu esforço. Entretanto, coube a mim a tarefa de te trazer uma nova
desagradável.
— Desagradável? — indagou receoso.
— Sim. O escriba-real, Metatron... — esclareceu. — Ele foi assassinado
na Terra, defendendo o avatar da concubina de Azeyzel, o qual foi o autor do
crime...
— Matatias... — lembrou-se. — O flautista que seguia Jesus...
— O próprio. Na verdade, ele era Metatron.
— E Azeyzel, onde está?
— Desaparecido. E por agora, domina a arte mágica das Presenças, não
será tão fácil encontrá-lo.
Miguel ouviu entristecido e desabafou:
— Ele então morreu como um arcanjo. Lutando... — Em seguida, ao fitar
Beelzebu e Caliel, afirmou a ambos. — Eu também vos reconheço. “Betseba” e
a pequena “Chaya” — disse, auferindo o imediato sorriso deles.
Ao encarar Surya, este o saudou a moda militar, chocando o punho
cerrado no peitoral da própria armadura.
Deus então os interrompeu e apresentou formalmente o filho como o
príncipe do Céu, anunciando que um conclave seria feito na ordem dos arcanjos
para a escolha do novo marechal da casta. Tocado pela honra, Miguel pediu a
palavra e, sem se esquecer do que tinha ouvido sobre Metatron, dirigiu-se aos
demais:
— Irmãos, estar de volta ao lar e ser tão bem recepcionado, é algo cuja
sensação me escapa. Somos todos servos do Senhor e, diante da experiência que
tive na Terra, hoje eu sei o que é estar do outro lado da espada e, principalmente,
de como lutar sem ela — esclareceu. — Aceito e acato qualquer desígnio que me
for dado e, com a licença de nosso Pai, peço a todos alguns instantes de silêncio
em memória do nosso amado irmão Metatron, voluntário em missão que, como
grande arcanjo que foi, combaliu no cumprimento do dever.
O clima de comoção foi geral, afinal, Metatron era uma figura ímpar, um
erudito que, embora militar de origem, sempre preferiu os livros ao invés das
armas. Ele se sentiu culpado pela evasão de Azeyzel e, mesmo sabendo das suas
limitações como combatente, partiu do Céu e seguiu no encalço do foragido,
passando pela Tesouraria das Almas e vindo a padecer na Terra. Entretanto, tudo
agora levava a crer que a lida dele havia sido imprescindível para que o espírito
de Layla-Li achasse a sintonia necessária para renascer. E nesse particular,
Metatron teve êxito total.
Tão logo a homenagem foi feita, um dos generais de Miguel se adiantou e
lhe apresentou um jovem anjo que servia na biblioteca de Vigilum, Lamechiel, o
qual, consigo, trazia uma pasta de documentos que, por uma ordem pretérita de
Metatron, deveriam ser entregues a Miguel caso ele não conseguisse retornar ao
Céu.
— Senhor, antes de ir à Terra atrás de Azeyzel, o escriba celeste me
encarregou de arquivar cópias de um escrito que ele foi instado a compilar. E
mesmo em missão, ele paulatinamente me transmitia os acontecimentos que
vivenciava a fim de que eu mantivesse duplicatas preservadas. Mas de repente,
esses contatos pararam, estando ele num lugar da Terra chamado “Grota dos
Leprosos”.
Miguel tomou aqueles cartapácios e, com visível emoção, os cedeu a
Deus, que logo esclareceu:
— Filho, agora compete a ti completar a história, afinal, foste tu que a
viveste até o fim. E daqui por diante, em respeito à memória de Metatron,
continua a escrevê-la e perpetuá-la ao teu exclusivo alvedrio.
Assim, embora os livros originais tivessem sido rapinados, traslados deles
foram cerrados no Céu e, na Terra, a continuidade daqueles eventos haveria de
ser contada apenas pelos homens, salvo se Azeyzel revelasse aqueles segredos a
alguém.
— Azeyzel... Não seria melhor irmos atrás dele, Senhor? — sugestionou
Miguel ao Pai.
— Não — desencorajou-o o Eterno. — Azeyzel aprendeu duramente que
paixão e amor são coisas diversas e, cedo ou tarde, terá o fim que lhe cabe. E
mesmo que ele revele o teor dos livros de Metatron, talvez não seja vontade dos
homens divulgar a história tal qual ela efetivamente ocorreu. E se eles têm o
livre-arbítrio, que relatem as suas vivências por si sós... — orientou.
Miguel concordou e acautelou consigo as cópias, as quais, dali por diante,
ele haveria de continuar a escrever. O Céu então entrou em festa, afinal, o seu
novo príncipe havia sido coroado.

***

No planeta Terra, a velocidade dos dias se fazia implacável.


Cerca de quatro anos já haviam se passado desde a morte de Jesus e,
embora o cristianismo estivesse se solidificando, era certo que as perseguições
ainda se faziam constantes, fosse pelos sinistros agentes do Sinédrio liderados
pelo implacável Saulo de Tarso[161], fosse pelos próprios militares romanos.
Tibério ainda era o imperador, mas com a morte do prefeito da guarda ele
se isolou e passou a dar mostras cada vez mais crassas de insociabilidade.
Conquanto ele não tivesse preparado uma linha sucessória sólida, poucos
parentes haviam restado com condições de assumir o trono, dentre eles, o seu
neto Gêmelo[162] e o rebento de seu filho adotivo Germânico[163], o promíscuo
Calígula[164].
Pôncio Pilatos ainda era prefeito da Judeia e, desde os eventos que
culminaram com a morte de Jesus, ele se via perseguido pelos próprios
fantasmas, de modo que a sua vida social não mais existia. Assim, perseguido
por uma culpa que o assombrava, ele decidiu escrever uma carta ao imperador e
relatar o julgamento de Jesus tal qual ele de fato havia ocorrido, ou seja, de
como alguém sem culpa formada havia sido morto por ordem de Roma. E que o
réu, ao que ele concluiu após quatro anos auferindo provas dos seus milagres e
curas, era inocente e igualmente santo.
Uns disseram que, após ler tal missiva, Tibério teria se convencido de que
as perseguições religiosas poderiam mutilar o império romano e, nessa toada,
teria dado claras mostras de que, mesmo moribundo, pretendia anistiar os
cristãos, fato este que gerou crassa instabilidade em Capri[165], mormente junto ao
distorcido Calígula, o qual nutria notória aversão por eles. Diante disso, não
demorou muito para que o velho imperador acabasse propositalmente “calado”
pelo meio-neto, o qual, após o crime, usurpou-lhe a coroa romana e sepultou os
ideais do avô.
Pois tão logo assumiu o império, Calígula despachou o tribuno Marulo
para Jerusalém a fim de que este, acompanhado de uma coorte, destituísse e
substituísse Pôncio Pilatos, a quem julgava ser um traidor. Ao ver-se premido
pelas novas, Pilatos entregou-se sem resistência e foi informado que o imperador
havia decretado o seu exílio numa fortaleza da Germânia inferior. Em razão de
Pilatos e Marulo terem sido muito amigos na juventude, o novo prefeito fez
vistas grossas para um fundado pedido dele:
— Eu não peço por mim, Marulo, mas por minha família...
— Pôncio, as ordens que eu auferi do imperador é para que tu e os teus
sejam escoltados até a Germânia. Mas, meu amigo, bem sabes que daqui até lá,
muita coisa pode acontecer... — asseverou, dando a entender que um sumiço de
Cláudia e do filho de ambos poderia ser arranjado.
— Eu agradeço... — anuiu. — E toma muito cuidado. A Judeia é uma
terra hostil, e salvo alguns poucos, a escória povoa este antro.
— Sim, eu já soube. Sinto como as coisas se sucederam para ti, mas
Calígula abomina os cristãos e, segundo se comenta na corte, viu com prevenção
uma carta tua encaminhada a Tibério.
— Cristãos... — repetiu. — Bem profundos são os ensinamentos deles. E
se eu não tivesse tido tanto medo no passado, quem sabe tudo não tivesse sido
diferente para mim... — refletiu.
— O que queres dizer com isso?
— Nada, eu apenas pensei comigo mesmo...
Ambos então se cumprimentaram à moda romana, e Pilatos foi se despedir
da mulher e do filho.
— Germânia inferior? — indagou Cláudia Prócula, ao saber o destino do
marido. — Eu sabia que um dia isso iria acontecer — revelou, chorosa, ao
lembrar-se do pesadelo terrível que havia tido sobre a morte de Pilatos.
— Eu estarei bem. Quero que fiques tranquila.
— Estarás bem? — retrucou. — Longe de nós, da tua família?
— Cláudia, tu e o nosso filho devem seguir outro caminho.
— Mas que caminho? Voltarmos para Roma?
— Não! — respondeu ele de forma incisiva. — Isso não...
— E por que não?
— Marulo me disse que a tua prima Valéria agora é cortesã na Corte e,
estando ela ao lado de Calígula, a tua sorte talvez não seja a das melhores.
— Valéria? — repetiu aparentemente incomodada. — Valéria Messalina
na Corte... — refletiu assustada.
— Sim. E bem sabes que ela sempre teve a morte nos olhos para ti, desde
que nós nos casamos.
— Ela jamais aceitou o fato do nosso avô ter me entregue em matrimônio
a ti, e não ela.
— Pois bem, ela é ciumenta e vingativa. Então sabes o perigo que corres,
mesmo porque, Calígula ordenou que seguisses comigo.
— Mas o que eu farei então? Para onde irei?
Pilatos então deu alguns passos em direção ao alpendre da fortaleza e, de
costas para a esposa, revelou:
— Comigo não podes ir, afinal, não sei o que me espera. Mas desde que
Longinus foi embora, eu e ele trocamos correspondências. E de profissionais,
acabamos nos tornando amigos.
— Longinus? Referes-te ao centurião que foi curado por Jesus?
— Sim. Ele sempre cuidou de ti, de nós. Pois dentro de três dias, eu
haveria de me encontrar com ele no vilarejo de Betânia, afinal, ele estaria
visitando um amigo que reside nas imediações.
— E o que queres dizer?
— Que obviamente não poderei visitá-lo, mas em contrapartida, mandarei
alguns homens de confiança escoltar-te até ele com o nosso filho e a tua criada
Verônica. E contigo, levarás uma carta onde pedirei a ele que zele por vós. É o
melhor caminho a seguir, ao menos por ora.
— Isso pode ser perigoso, eu prefiro ir contigo...
— Não, Cláudia. Estarão mais seguros escondidos. Escondidos de
Calígula e da fúria da Messalina.
Pilatos se despediu da esposa e do filho e entregou uma carta a um dos
seus empregados, o qual os levaria em segurança até as imediações da casa de
Lázaro, onde Longinus haveria de encontrar-se com ele.
— Até breve, meu amor... — disse a Cláudia. — E se nesses últimos
quatro anos eu aprendi alguma coisa, hoje sei que um dia haveremos de nos
reencontrar, onde quer que seja.
O antigo prefeito da Judeia foi então colocado numa carruagem e levado
para o seu destino. E à distância, acenava à esposa e ao filho, já sabendo que,
mais dia menos dia os encontraria novamente, talvez numa outra vida.
Embora algumas pompas não lhe faltassem no exílio, Pilatos teria à sua
disposição a mesma banheira e a mesma adaga que povoaram os pesadelos de
Cláudia. Inicialmente, ela havia sonhado com o suicídio dele. Mas depois de ter
conhecido Jesus, talvez a história daquele tribuno mudasse. E quiçá para melhor.

***

No quartel dos arcanjos em Vigilum, diversos oficiais de alta patente


travavam intensos debates para escolher aquele que deveria ser indicado como o
novo marechal da armada celeste e, por via de consequência, o príncipe-
substituto dos arcanjos, afinal, Miguel agora estava ao lado de Deus, na condição
de vice-regente do Céu.
Tal procedimento, usual para a indicação de novos oficiais superiores, era
feito a portas cerradas e tinha regras muito antigas, pois era daquela forma que,
em tempos de paz, os militares ascendiam a um posto acima.
Diversos eram os arcanjos de renome indicados, muitos dos quais
detentores de uma fama construída nas constantes campanhas de pacificação do
Céu, cuja vida não diferia muito daquela que nós conhecemos na Terra. Embora
os anjos não tivessem contatos de cunho sexual como os humanos, eles
envergavam características muito próximas das nossas, como a vaidade, a inveja,
a soberba e o ódio. Diante disso, sem os arcanjos, os embates celestiais
tenderiam a ser constantes, o que tornaria a vida daquela sociedade
insustentável. Daí as guardas, prisões e tribunas de Justiça, afinal a ordem
precisava ser mantida.
Os generais das legiões eram os preferidos de alguns círculos, apesar que
muitos estavam inclinados a optar por juízes de instrução, dentre os quais
Haudax e Daurah. Conquanto os debates estivessem acalorados, um dos
partícipes do conclave mostrava-se apático, pois parecia questionar, de forma
velada, aquele procedimento litúrgico e formal. E aquele velho magistrado,
embora elegível como tantos outros, levantou-se e pediu a palavra, erguendo os
braços de maneira a solicitar silêncio. Jofiel era um arcanjo respeitado, afinal,
era tão antigo quanto Miguel e oriundo da primeira geração de militares
celestiais.
— Irmãos, todos vós que aqui estais são dignos; soldados, policiais e
juízes, cuja expertise vos credencia a serdes ótimos gestores. Mas, confrades,
devemos lembrar que não estamos apenas em busca de um príncipe, mas sim de
um substituto à altura de Miguel! E eu vos pergunto: quais são as características
do nosso marechal?
— Coragem! — disse um.
— Destemor! — bradou outro.
— Coragem e destemor... — repetiu Jofiel. — Características estas que,
perdoai-me a obviedade, todos temos. Mas Miguel tem algo a mais, afinal,
fomos testemunhas missão dele, o qual aceitou viver e morrer como um homem
apenas por devoção a Deus.
— Jofiel está com a razão — interveio o general Camael. — Não basta
apenas um bom histórico profissional, mas sim uma demonstração de resistência,
entrega e fé fora do comum, principalmente em cenários hostis.
— Referes-te aos campos de batalha? — indagou o Arconte Melahel.
— Não, irmão. Nós estamos no Céu, na nossa zona de conforto. Eu me
refiro à Terra, que é um lugar de missão para poucos.
— Mas vários de nós estiveram lá — retrucou Uziel. — E em missão
inclusive.
— Sim, general — anuiu o decano. — Mas poucos foram os que lá
permaneceram em provação, e que, ao final, ainda sobreviveram à própria
solidão e se ergueram em triunfo.
Olhando uns aos outros, eles estranharam aquelas palavras, afinal, além de
Miguel, apenas um arcanjo havia sofrido tanto tempo na Terra e, com os olhos
vazados e suportando anos de sevícias e sofrimentos, havia conseguido escapar
de uma cela no Inferno com a ajuda de Caliel e logrou, com ele, repatriar o então
caído Beelzebu ao Céu.
— Referes-te a Nataniel, o soldado que foi à Terra atrás dos vigilantes e
depois foi feito capitão?
— Decerto que sim! Todos vós lembrais quando Deus, antes de mandar
um dilúvio à Terra, despachou Miguel e alguns dos nossos até lá para que
recapturassem Azeyzel, Semyaza e os demais vigilantes que buliram com as
humanas e ensinaram os homens a forjar armas a partir do aço. E capturado por
uma horda de decaídos, Nataniel foi torturado por Lúcifer a fim de relevar o que
sabia.
— Nós conhecemos essa história, ele, de fato, passou por uma provação
terrível e resistiu até onde pode. E se não fosse Caliel, o pobre Nataniel talvez
ainda estivesse lá, recluso e esquecido num ergástulo do Inferno.
— Pois então! Teriam os aqui presentes a mínima ideia do que seria passar
cem anos terrenos cego, preso a uma parede de pedra e à espera de uma ajuda
que talvez nunca viesse? — indagou Jofiel.
O silêncio, então, imperou no imponente sodalício dos arcanjos.
Enquanto isso, num dos pátios do Quartel-General, Nataniel conduzia um
treino de rotina com alguns comandados, quando, subitamente, dois lanceiros
chegaram e o interromperam:
— Com licença, capitão. O líder do conclave solicita a vossa imediata
presença no salão nobre do conselho — anunciou com recato.
— Tu me trazes uma intimação ou um convite, Senoy[166]? — indagou de
maneira espirituosa em razão da seriedade daquele soldado.
— Isso cabe ao senhor decidir, capitão... — respondeu sem perder o
passo.
— Pois bem, então vou interpretar como um convite — consentiu.
Nataniel, em seguida, embainhou sua arma e passou a instrução a um
tenente, o qual, aparentemente incomodado, viu o superior se afastar na
companhia daqueles dois rudes lanceiros. Mas, afinal, o que um simples capitão
de companhia haveria de fazer numa cerimônia daquela magnitude?
Ao chegar na galeria da assembleia, o portão que a cerrava foi sendo, aos
poucos, aberto, revelando um ambiente ordenado onde estavam cem arcanjos
vestindo capas púrpuras[167]. Nataniel tinha a altura média deles e, desde havia
muito envergando uma barba rala levemente esbranquiçada — lembrança das
privações físicas que havia passado nas prisões de Lúcifer —, ele se aproximou
timidamente do mais antigo presente, Jofiel, e o saudou como todo militar faz,
com a mão cerrada sobre o peitoral da armadura. Jofiel então deu alguns passos
na direção dele e soltou-lhe os longos cabelos, que estavam presos, de modo a
cobrir-lhe o lado esquerdo da cabeça, onde a raspagem fazia parte da hierarquia
castrense.
— Nataniel, apenas o marechal é licenciado de usar o corte militar.
Feito isso, eles fizeram um círculo em volta dele e o saudaram, sendo que
o som do choque de suas mãos junto às armaduras ecoou em Vigilum. Tentando
entender o sentido de tudo aquilo, Nataniel sequer percebeu quando os generais
Camael e Uziel se aproximaram e anunciaram:
— “Senhor”, a nossa espada está a vosso serviço.
De repente, um brilho intenso surgiu na entrada daquele espaço e, em
reverência ao grande arcanjo de Deus, todos se inclinaram para recepcionar o
Príncipe Miguel, o qual se aproximou de Nataniel, ainda deveras confuso. Feito
isso, ele sacou a velha espada que trazia na bainha e, ofertando-a a ele, disse:
— Eu não vou mais precisar dela. Usa-a, pois, com sabedoria e justiça; ela
agora é tua.
— Mas, senhor... — insistia em não entender.
— Nataniel, não sou eu que está te dando tal honra. Olha à tua volta e
verás que os teus próprios irmãos te escolheram. E então? Aceitas a tua
nomeação como o novo marechal da armada de Deus?
E diante de tudo aquilo, ele então respondeu:
— Eu aceito, em nome do Senhor!
— Irmãos, eu anuncio com muita alegria. A ordem dos arcanjos tem agora
um novo marechal.
Pois Nataniel tomou aquela arma sagrada e a ergueu com vigor, no que
foi, de pronto, saudado pelos demais, que levantaram suas espadas em chamas e
comemoram a escolha, por aclamação, do novo titular do exército do Céu, o
agora excelentíssimo marechal da armada Nataniel.

***

Disfarçados de viajantes comuns, Cláudia, Deocletianus, Verônica e os


demais seguiam escoltados por quatro empregados de Pilatos, o qual, naquele
momento, já estava a caminho da Germânia inferior.
Pois assim como havia dito o esposo, Longinus estava no local marcado e,
ao ver aquela a quem, por anos, havia protegido, desacompanhada do esposo,
temeu pelo pior.
— Ele foi forçosamente conduzido para o exílio — esclareceu Cláudia, ao
ser recebida pelo velho oficial. — O novo imperador soube da simpatia dele
pelos cristãos e nada pode ser feito.
— Nós estamos cientes dessa prevenção, senhora. Calígula tem nos
perseguido impiedosamente, pois ele teme, em segredo, que a sua autointitulada
divindade tenha qualquer tipo de concorrência.
— O meu marido nos mandou aqui na crença de que tu cuidarias de nós,
pois receou que, se seguíssemos com ele ou voltássemos para Roma,
correríamos um perigo bem maior. E se aceitares esse encargo, eu e Verônica
gostaríamos de estar juntas na causa de Jesus.
— A nossa missão é voluntária, é claro que serão bem-vindas! Mas e o teu
filho? Tencionas buscar algum tipo de proteção para ele?
— Eu sei que corremos perigos daqui por diante, uma vez que a vida dele
também estará exposta. Diante disso, creio que o melhor seria escondê-lo de
sanha de Calígula, pois ele pode querer vingar-se no menino.
— Eu posso providenciar segurança para o teu filho bem longe de Roma,
isso eu te garanto. Um novo nome, uma nova família e uma vida sem maiores
privações, tudo pode ser arranjado.
Cláudia Prócula aceitou a oferta emocionada e, após despedir-se do filho
ainda pequeno, que foi entregue a boa cautela de Ruana, irmã do centurião,
seguiu com Verônica e Longinus, para um destino que ainda lhe parecia ser
incerto. Deocletianus haveria de ser abrigado numa nobre família judaica, a
mesma que já acautelava Yigal, o filho adolescente de Joana. Sabedora dos
riscos que iria vivenciar, Cláudia achou melhor apartar-se do rebento e ter a
garantia de que, se algo acontecesse a ela, ao menos o menino teria um destino
seguro. Doeu demais, muito, mas foi o melhor a ser feito naqueles dias
extremamente hostis.
Eles então seguiram viagem incógnitos e se uniram a um grupo de
romeiros, o qual era titulado por Magdalena e Joana, as quais haviam conhecido
Cláudia Prócula e Verônica em Jerusalém, mas que, ante o patrocínio de
Longinus, as acolheram como irmãs. Cláudia e Verônica começaram a conhecer
um mundo diferente daquele visto no ambiente palaciano e, aos poucos,
passaram a ter participação ativa no processo de evangelização. De tempos em
tempos, ela recebia cartas dando conta do filho — nelas tratado como a ovelha
de um grande rebanho —, o qual, bem protegido, crescia sob os auspícios do
Eterno. Seu esposo, entretanto, não lhe deu mais notícias, até mesmo para
preservá-la do destino incerto que coube a ela.
Madalena se tornou uma evangelista respeitada e, diante disso, passou a
atrair para si a atenção dos inimigos do cristianismo, que nela viam um perigo
em potencial. Longinus tentava dar segurança ao grupo, pois embora tendo
deposto armas, jamais perdeu o coração do soldado que um dia foi.
Entretanto, a corrupção de Roma estava encruada em todas as plagas e,
graças aos extensos tentáculos de Calígula, um ano e sete meses após a fuga de
Cláudia e Verônica, uma astuta guarnição romana se revelou entre os
expectadores de uma das pregações capitaneadas por Magdalena nas colinas da
Gália[168]. Encurraladas, as duas apóstolas e os seus não ofertaram qualquer
reação e acabaram presos. E após uma angustiante viagem pautada por
humilhações e escárnios de toda a sorte, Magdalena e Joana — além de
Longinus, Cláudia e Verônica — aportaram na grande Roma. Efusivo, o
centurião encarregado da missão reportou de imediato ao imperador:
— Senhor, nós conseguimos capturar cinco cristãos na Gália.
— Apenas cinco? — bradou Calígula.
— Sim, senhor. Mas dentre eles, estão duas apóstolas, um oficial romano
e mais duas mulheres desconhecidas.
— Ora, ora, o tal oficial de Pilatos, eu presumo... — ponderou satisfeito.
— Correto, senhor. Trata-se do centurião-chefe Quiricus Longinus.
— Ex-centurião! — gritou o imperador com o dedo em riste.
— “Ex”, senhor... — anuiu o miliciano acuado.
— Pois eu quero vê-los; agora! — bradou agitado.
— Eu posso acompanhá-lo, senhor? — interveio, de pronto, a astuta
cortesã que se responsabilizava pelos bizarros espetáculos que o imperador
patrocinava.
— E qual é o teu interesse em cristãos, Messalina? — indagou o
imperador num tom ríspido.
— Apenas curiosidade feminina, meu senhor.
Seguiram para a área inferior dos calabouços, onde, numa cela grande,
jaziam presos Magdalena, Joana, Longinus, Cláudia Prócula e Verônica.
— Cristãos — sussurrou Calígula, ao circundar a cela. — Eles não me
parecem tão perigosos sob essa perspectiva.
Tomando a tocha de um dos soldados — o ambiente era bem escuro —,
Messalina mandou com que as mulheres se aproximassem, a fim de lhes
examinar os rostos. Pois ao passar a luz pela face de uma delas, ficou surpresa:
— Então as minhas fontes estavam certas. Que surpresa, prima querida!
— disse ao reconhecer Cláudia Prócula.
— Prima? Que prima? — intercedeu Calígula, sempre espalhafatoso.
— Eu tenho ouvidos em vários lugares, senhor. E há algum tempo eu
soube que a esposa de Pilatos tinha conseguido escapar do exílio; a minha prima
Cláudia Prócula.
— Cláudia Prócula? A neta de Augusto é uma cristã? — irritou-se o
imperador.
— Bem, parece que sim... — arrematou Messalina.
— E eu que pensei que ela e o filho tivessem morrido na viagem até a
Germânia. Pois lembra-me de cobrar isso de Marulo — disse, referindo-se ao
prefeito da Judeia. — Entretanto, ao contrário do que eu esperava, Pilatos ainda
vive — balbuciou revelando uma nova a qual Cláudia havia muito buscava.
Longinus então se levantou e a trouxe para trás, oportunidade em que
Calígula, ao vê-lo, se enfureceu:
— E esse é o tal traidor romano. Para ele, algo de especial haverá de ser
feito — disse ao capitão da guarda. — E o pescador, o tal chamado Pedro? Tem
pistas dele?
— Ele é deveras astuto, senhor, e segundo informações, parece nunca
passar duas noites no mesmo lugar.
— Astuto e ousado — interveio Messalina. — Eu soube que ele andou
pregando nas imediações do futuro circo de Roma.
— Referes-te às colinas do Vaticano[169]?
— Sim, meu senhor. Ele se aproveita da presença dos trabalhadores
braçais para propagar os seus truques e bruxarias — completou aquela pérfida
cortesã.
— Pois bem, continuem as buscas. E em breve, esses que aí estão se
encontrarão com o carpinteiro galileu já morto — disse ele ao deixar
rapidamente o cárcere.
Tão logo se viram sós, Verônica afirmou assustada:
— Parece que nós chegamos ao fim.
— Te enganas, irmã — respondeu Magdalena. — Embora com dor, a
exemplo do que ocorreu com Jesus, será agora que haveremos de levantar para a
vida.
— Eu não sou tão forte, Mirian. Mas ao ouvir as tuas palavras, sou
obrigada a acatá-las.
— Longinus, o que tu achas que os romanos farão conosco? — interferiu
Joana.
— Calígula é insano, e ele haverá de ser intransigente — lamentou. —
Mas, como bem disse a nossa irmã Magdalena, todos nós aprendemos que somos
mais do que esta simples matéria. E seja do jeito que for, faremos a passagem de
cabeça erguida, afinal, somos crentes no Deus da vida — finalizou.
E assim o foi. Por ser romano de nascimento, Longinus teve a língua
cortada, os olhos vazados e acabou decapitado, tendo Calígula mandado colocar
a sua cabeça no pátio da prefeitura da guarda pretoriana, a fim de servir como
exemplo para possíveis insurgentes. Mas estranhamente, a cabeça dele acabou se
mumificando e, para espanto geral, não foi consumida por verme algum. Cláudia
Prócula, embora tendo sangue real, foi julgada traidora e, antes de perder a
cabeça como o centurião Longinus, teve o rosto desfigurado pela ira da cruel
Messalina, que o queimou com óleo quente um dia antes da execução, uma
revanche por ter sido ela a esposa de Pilatos, de quem havia sido enamorada. A
jovem Verônica[170], a qual introduzira Jesus a Cláudia[171], era de origem grega e,
por isso, foi condenada ao mesmo destino que Joana e Magdalena: a cruz.
Brutalmente seviciadas pelos seus executores, elas foram pregadas quase
mortas nas cruzes. Era uma noite muito fria em Roma e, praticamente nuas, elas
não demoram a morrer asfixiadas, afinal, as condições em que foram deixadas
aceleraram o doloroso processo.
Mirian Magdalena tinha o espírito mais forte que os das outras e, de todas,
foi a última a fechar os olhos. Quando elas finalmente fizeram a passagem, três
descargas celestes caíram em silêncio sobre as cruzes e as incendiaram, pondo
em polvorosa os guardas que ali estavam. Os carrascos que as haviam atacado
começaram a sentir chamas invisíveis lhes consumirem as partes e, em pânico
diante da dor experimentada, acabaram deixando as suas insignificantes
existências de modo igualmente trágico, afinal, aquele fogo abstrato logo se
tornou real e, vivos, eles foram devorados por ele.
Enfim, foi o término de um ciclo. Tão logo tudo se consumou, os espíritos
das quatro cristãs foram transportados para a ala curativa do novo Éden, onde
haveriam de se recuperar aos poucos e, de modo a finalmente seguirem os
caminhos que doravante lhes caberiam.
Na mesma ala, a alma de Susana hibernava em similar sintonia. Ela,
entretanto, haveria de renascer mil oitocentos e setenta e oito anos depois num
vilarejo europeu chamado Aljustrel[172], a fim de, com os espíritos dos dois filhos
por ela mortos em sua penúltima vida, cumprir a derradeira missão numa cidade
que viria receber o nome de Fátima[173], para, somente então, voltar ao além na
companhia deles.
Longinus, por outro lado, teve um destino diferente. A sua alma foi
incontinente apresentada na Câmara de Guf, mas, ao contrário do que se poderia
imaginar, ele não haveria de ser mais um dos reclusos dela, e sim, ao lado de
Harual e tantos outros abnegados, um grande obreiro espiritual, talvez o maior
deles. E sempre que algum fiel em Deus se perdesse, ele sairia em missão
coberto por uma capa marrom e um brilhoso farol de fogo numa das mãos, a fim
de ajudá-lo a se encontrar do mesmo modo que Jesus o fez achar a visão e o
próprio coração. Com o passar dos anos, a sua fama se tornaria imensa e, no
ideário católico, ele passaria a ser conhecido por “São Longino”, ou mais
comumente, por “São Longuinho”, o santo invocado para achar o que perdemos.
Magdalena, entretanto, haveria de ter um destino diferente de todos.
Enquanto viveu e morreu como Lilith, ela rogou a Deus, ainda sobre o cadáver
do amado esposo, Adão, para que um dia ela pudesse se reconciliar com os
homens, aos quais tantos males havia causado em razão da amargura que lhe
assombrava e dos inúmeros crimes de morte que havia cometido. Pois quando
ela finalmente acordasse, muito tempo depois das suas companheiras, o
Altíssimo, sapiente como sempre, já lhe haveria decretado o derradeiro desígnio.

***

Pois voltando ao curso da história dos homens na Terra, a roda dos dias e
das noites se estagnou no buliçoso ano cristão de 1.548.
No norte da península itálica, mais precisamente na comuna de Trento,
seis velhos livros haviam sido encontrados em poder de um ente muito estranho,
o qual se acreditava ser um enviado do próprio demônio. Quando a Guarda Suíça
do apostolado católico romano conseguiu pôr as mãos nele e naqueles
cartapácios, o Papa Paollo III ficou mais tranquilo, afinal, tanto ele quanto os
seus — substitutos diretos dos apóstolos naqueles dias — estavam obcecados em
encontrar o portador dos lendários livros que continham a história secreta dos
celestes e dos homens, e os quais se dizia terem sido escritos por um arcanjo de
Deus que havia andado pela Terra.
Em verdade, assim como alguns sinedristas do passado, aqueles
eclesiásticos haviam chamado para si a tarefa de decidir o que deveria ou não ser
divulgado e lido pelos fiéis da igreja e, ávidos em manipulá-los, ficaram
satisfeitos em saber que as pistas auferidas pelos seus cavaleiros haviam
culminado na captura do legendário portador dos tais documentos.
Assim, temas considerados hereges e um tanto perigosos — Lilith; a
Tesouraria das Almas; a origem da magia negra; a efetiva detentora do trono do
cristianismo e, principalmente, a verdadeira identidade de Jesus de Nazaré —,
agora estariam a salvo do conhecimento geral, fazendo com que a história dos
evangelhos oficiais ficasse menos mística e, por assim dizer, mais crível.
Azeyzel, que viveu mais de mil e quinhentos anos na posse dos seis livros
de Metatron até ser capturado pelos homens da Igreja, havia traduzido as páginas
deles para a Ordem das Filhas da Noite, sociedade secreta que ele, ainda
obcecado por Layla-Li, havia criado para manter viva a história dela e,
consequentemente, a história verdadeira.
Quando o fugitivo foi pego e, ao fim, decapitado pelos oficiais da Guarda
Suíça, os livros acabaram queimados na presença do papa, mas, dos fragmentos
dos contos oriundos das damas sobreviventes daquela irmandade oculta, homens
e mulheres como nós puderam ter acesso a temas tão proibidos, os quais, até
hoje, são tratados como lendas fantásticas.
Azeyzel, conquanto os seus vários crimes e pecados, acabou, por assim
dizer, proporcionando com que a história real não ficasse oculta no tempo e, de
certa forma, cumpriu uma lida que talvez lhe tivesse sido predestinada.
Mas, enfim, o relógio do tempo — na Terra e no Éden Espiritual — não
parava. E assim sendo, jamais parou.

***

Centenas de ciclos temporais se passaram e, no novo Éden, Mirian


Magdalena finalmente acordou do sono profundo. E ao olhar detidamente para o
próprio corpo, ela percebeu que havia retomado a sua antiga figura, a de Lilith, a
qual o próprio Deus havia moldado milhares de anos antes no paraíso.
Lilith estava no que parecia ser uma enorme planície esverdeada, muito
parecida com aquela que embelezava o antigo jardim do Éden, onde ela nasceu e
viveu feliz com Adão até que a tragédia da amargura os visitasse.
Estranhamente, a dama não acordou na ala curativa, assim como as outras almas,
mas sim, fora dela.
Ainda se acostumando ao lugar, cuja luz não parecia vir de astro algum,
mas de todos os lados, ela se levantou bem devagar e passou a caminhar nua
pelo campo, cujas belezas eram tão ou mais agradáveis das que havia conhecido
no seu primeiro lar.
De repente, ela percebeu por entre a vegetação, que algo se movia
próximo a uma árvore e, ao aproximar-se dela, notou que um cãozinho a estava
espreitando. Lilith — e agora somente Lilith — se agachou e tentou chamar a
atenção dele, oportunidade em que o animal, a princípio desconfiado, começou a
se achegar vagarosamente.
E tal não foi o espanto dela ao constatar que ali estava — e viva — a
mascote de seu esposo Adão, a mesma que ela, possuída pelo ódio e sob a forma
de uma serpente venenosa, havia cruelmente matado no Éden antes de seduzir e
inseminar Virago, a qual depois foi chamada Eva.
Pois o tal animal, ali ávido como nunca, se aproximou sem medo e
debruçou as duas patas dianteiras sobre as pernas dela, como se rogasse por
atenção ou até mesmo por um pouco de carinho. Lilith se lembrou do mal que
havia feito a ele no jardim perdido, e agora com a alma repurificada, tomou o
animal nos braços e o acolheu com um afeto quase que maternal, pondo-se a
chorar não de tristeza, mas de felicidade, ao constatar que aquele seu ato tão
odioso não teve consequências perpétuas, e que, naquele lugar especial, a vida
dos inocentes parecia eterna.
O pequeno retribuiu o afago e a acariciou com a língua, dando a entender
que aquele temor que nutria por ela havia simplesmente sumido, assim como
tudo de ruim que ela havia deixado na sua fria e esquecida cela na Tesouraria das
Almas.
Mas de repente, o animal pulou dos braços da dama e ganhou o chão, a
fim de tomar o rumo de um lugar não tão distante dali. E de latido em latido, ele
guiou Lilith até que eles chegassem numa espécie de enseada banhada por um
oceano bem mais azul que os belíssimos olhos dela.
Vendo-se então numa praia cuja beleza não tinha paradigmas para o que
ela havia conhecido na Terra, Lilith ficou tão impressionada que não percebeu
quando o cão que a conduzia desapareceu sem deixar rastros naquela areia
dourada. E foi então que ela, ainda a certa distância, viu o que lhe pareceu ser
alguém agachado próximo a uma estrutura, um arremedo de embarcação que,
virada para baixo, parecia estar sendo consertada.
Dali ela passou a caminhar na direção daquela entidade, cujos longos
cabelos erguidos pela brisa dificultavam a sua imediata identificação. Pois assim
que entrou na corrente do vento que repercutia naquele ser, Lilith teve o
característico perfume amadeirado do seu verdadeiro eu denunciado. Pois ao
sentir aquele aroma dado apenas à primeira mulher posta na Terra, aquele
trabalhador braçal ergueu a cabeça e, ainda de costas para a origem dele, se
levantou. E ao virar-se para ver de onde ele vinha, foi lhe revelado quem era.
Pois aquele que, por séculos, esperava pela sua amada imortal finalmente
abriu um comovente sorriso, deixou cair a ferramenta que tinha em mãos e
tomou a direção dela. Ao perceber que os traços daquele estranho lhe foram
evidenciados, Lilith deixou derreter o último fragmento de gelo que ainda tinha
dentro de si e, respondendo com a mesma alegria, acelerou o passo e correu na
direção dele, o qual, na mesma toada, a imitou.
Ao perceberem que finalmente haviam se reencontrado, Adão e Lilith se
arremessaram nos braços um do outro e, girando a primeira esposa no ar, o
primeiro homem repousou os seus lábios nos dela, coroando, para sempre,
aquele amor infinito; um amor como nenhum outro. E sem que eles
percebessem, aquele mesmo cãozinho surgiu novamente e, felicitado com o que
lá ocorria, saltitava feliz e latia alegremente em volta deles.
— Meu amor, eu sabia que tu voltarias — sussurrou Adão no ouvido de
Lilith. — Eu sabia!
— Agora vai ser diferente; vai ser para sempre! — respondeu efusiva.
Adão e Lilith, marido e esposa, homem e mulher, finalmente se
reencontraram depois de milênios apartados. E juntos no novo paraíso, haveriam
de ficar, eternamente felizes, até o final dos tempos.

∷ ∷ ∷

Junta então o teu espírito ao meu; e diz que ficarás comigo até o final dos
tempos.

∷ ∷ ∷

[1]
. Dimensão onde se reúnem os espíritos inclinados à evolução indolor e à derradeira felicidade.
[2] . Querubim-chefe da Guarda Civil da Câmara (“Guarda Negra”), responsável por zelar pelos
cômodos de Deus.
[3] . Serafim caído, marechal do Inferno.
[4] . “Tesouraria das Almas”; prisão dos espíritos condenados.
[5]
. Península montanhosa localizada no sul do Egito, onde Deus entregou as tábuas que continham os
Dez Mandamentos ao profeta Moisés.

[6]
. Cidadela de Israel localizada na baixa Galileia.
[7]
. Conforme a Lei de Moisés, o adultério (mesmo que a mulher estivesse apenas prometida ao futuro
marido) era um comportamento punido com a morte por apedrejamento (Deuteronômio, 22:22-24).
[8]
. Oficial de cavalaria do exército romano que comandava um esquadrão de trinta homens.

[9] . José descendia do tronco real do Rei Davi, o pastorzinho que matou Golias e se tornou o maior rei
de Israel.
[10]
. Messias significa “ungido” (consagrado, purificado, libertador); é um título cuja origem remete
ao ato de se derramar óleo sobre alguém que será encarregado de uma relevante missão de origem
divina. Refere-se, genericamente, à antiga profecia de que um descendente de Davi haveria de
reconstruir o reino de Israel e trazer paz para o mundo.
[11]
Portal que ligava o Céu à Terra
[12] . Expressão utilizada em razão da cor das túnicas dos querubins que faziam parte da Guarda Civil
da Câmara (veste negra com detalhes dourados).
[13] . Miguel, o arcanjo.
[14] . Grande região ao norte de Israel.
[15] . Primeiro Imperador de Roma (27 a.C. a 14 d.C.).
[16] . Região ao sul da Judeia.
[17] . Parte montanhosa ao sul da Palestina.
[18] . Centro administrativo da Galileia; a aldeia de Nazaré ficava cerca de sete quilômetros de
distância.
[19] . Dimensão de paz criada por Deus para receber os espíritos retos, contraposta à Câmara de Guf

(“Tesouraria das Almas”).


[20] . Magdala - Antiga cidade que existiu na Galileia.
[21] . Aldeia localizada a três quilômetros de Jerusalém e do Monte das Oliveiras.
[22] . Cidade fincada no planalto das montanhas da Judeia entre o Mediterrâneo e o Mar Morto.
[23] . O exército de Herodes I era composto por venais das mais variadas pátrias, daí serem eles
conhecidos pelo comprometimento mínimo com o povo judeu, pois visavam apenas auferir ganhos e
vantagens pessoais. Assim, enquanto o rei tivesse fortuna suficiente para abastecer a sua armada, ele
certamente teria o controle absoluto sobre o sofrido povo da Judeia.
[24] . Herodes I era filho de Antípeter, o qual, em razão de ter se mantido fiel a Júlio César na guerra
civil em que este travou com Pompeu Magno, foi agraciado, em 48 a.C., com a cidadania romana e a
coroa da Judeia.
[25] . Nativo de Edom, antigo reino descendente dos hebreus, fincado ao sul da Jordânia.
[26] . Profeta que exerceu o seu ministério no reino de Judá, cerca de setecentos anos antes do

nascimento de Jesus.
[27] . A Porta dos Jardins dava acesso à estrada que levava a Belém.
[28]
. Os vingadores eram anjos arregimentados por Deus para missões de guerra e extermínio na
Terra.
[29] . Rio mais extenso do mundo, com mais de sete mil quilômetros.
[30]
. País a nordeste da África; fazia fronteira com a Judeia.
[31] . Moeda de prata de maior circulação no Império Romano.
[32] . Celas de fogo para onde eram despachados os espíritos potencialmente perversos.
[33] . Os “vigilantes” (grupo de quarenta anjos liderados por Azeyzel e seu irmão Semyaza) haviam

ido à Terra para testar os homens, lá caíram em prazer pecaminoso com as mulheres, antes do
dilúvio universal e, por ordem de Deus, foram presos, repatriados e emasculados no átrio do
Quartel-General dos arcanjos, onde a maioria ainda se encontra cumprindo pena na prisão de
Vigilum.

[34] . Humana morta no dilúvio universal, irmã de Lamec (trineto de Caim), descendente da linhagem
de Lilith e ex-companheira de Azeyzel na Terra.
[35] . Planta, remédio natural para queimaduras.
[36] . Tímidos conglomerados comunitários no Egito Romano onde os meninos judeus, pelas mãos
de algum letrado egresso da Judeia, aprendiam a leitura rudimentar das linguagens mais
comuns, como o grego, o hebraico e o aramaico.
[37] . Deus romano da guerra.
[38] . Delegados de Deus (detentores de atividade judicante em menor escala); oficiais de
persecução, membros da ordem dos arcanjos encarregados das inquisições, julgamentos, cortes
marciais, execução de penas corporais e ordens de prisão em desfavor dos anjos infratores.
[39] . Anjo da ordem das potências, irmão gêmeo de Azeyzel; ex-vigilante, preso e emasculado por

ordem de Deus.
[40] . Ex-príncipe-substituto da ordem dos querubins; ex-companheiro de Lilith no exílio dela na lua;
preso e emasculado por ordem de Deus.
[41] . Cidade Galileia.
[42] . Rio que nasce na encosta do monte Hermón e segue até o mar da Galileia, desaguando no Mar
Morto.
[43] . Fincado em Jerusalém.
[44] . Corpo religioso supremo e mais alto tribunal judiciário da nação judaica.
[45] . Primeiro sumo–sacerdote dos Hebreus.
[46] . Primeiro rei de Israel.
[47] . Profeta bíblico.
[48] . Uma das esposas do rei Davi.
[49] . Cidade israelita.
[50] . Uma das dez ordens angelicais originais; casta extinta no primeiro conflito sideral, por tentar
dominar o Céu através da magia negra; foi titulada pelo anjo da presença Piryel.

[51] . Morada dos serafins composta por seis grandes torres.


[52]
. Amigo da corte de Justiça, designado para fornecer subsídios para o veredito dos arcontes.
[53] . Celeste da ordem dos anjos, maestro músico e trombeteiro-mor do Céu.
[54]. Ordem de acusadores formada pelos serafins.
[55]
. Quartel-General dos arcanjos.
[56] . Joia auferida por Beelzebu ao nascer. Estruturada basicamente em ouro branco, ela enverga um

diamante transparente que abriga uma constelação diminuta em seu interior; instrumento de
comunicação e transmissão de energia entre o príncipe dos querubins e a respectiva casta.
[57] . Mulher, descendente da linhagem de Lilith; segunda esposa de Noé.

[58]
. Cidade que ficava na margem norte do mar da Galileia, próxima a Betsaida.
[59] . Filho de Lilith com o caído querubim Samael.
[60] . Ser mestiço e de elevada estatura; meio homem, meio anjo.
[61] . Querubim, lugar-tenente da ordem dos querubins; lutou no segundo conflito sideral ao lado dos

arcanjos contra Lúcifer; exilado e emasculado em razão de ter se deitado com uma humana, Lilith;
atualmente encontra-se preso no Quartel-General em Vigilum, no Céu.
[62] . Monte Hermón.
[63] . Lago de água salgada que cobre as ruínas de Sodoma e Gomorra.
[64] . Grupo de judeus da classe empresarial devotos à Lei de Moisés; minoria no Sinédrio.
[65] . Profeta bíblico que viveu em Israel durante o reinado de Acab.
[66] . Aristocratas, alto escalão judaico; maioria no Sinédrio; titulares da função de sumo-sacerdote do
Templo.
[67] . Baal Foi um dos principais deuses supremos dos fenícios e dos cartagineses; era adorado em
Canaã.
[68] . Cidade fundada por Caim após o fratricídio do irmão Abel.
[69] . Golias, o último nefilim. Prisioneiro de Lúcifer no Inferno, foi libertado após o dilúvio e acabou

morto por Davi.


[70] . Primeiro rei ungido de Israel.
[71] . Tibério Cláudio Nero César, segundo imperador de Roma.
[72] . Governador (prefeito) de uma província romana.
[73]
. O ambicioso Herodes Antipas ainda tinha o velho sonho de gerir a Judeia, mas, vendo outro
romano tomar frente dela, não ficou muito satisfeito.
[74] . Governante de um quarto.
[75] . Administrador público detentor de certa parcela do poder imperial, exercia funções militares e
judiciárias.
[76] . Povo indo-europeu que habitou o centro da península itálica.
[77] . Magistrado romano; comandante de Legião.

[78]
. As coortes de infantaria e o esquadrão de cavalaria dispostos a Pilatos eram formados por
aproximadamente três mil homens, ficando uma parcela deles baseada na Fortaleza Antônia.
[79] . Político romano; foi prefeito da Judeia durante o governo de Tibério.
[80] . Nova capital administrativa da Judeia.
[81] . Princesa edomita, foi mulher de Herodes Filipe, irmão de Antipas. Somente aceitou casar-se

sob a condição de ser a única esposa, embora a lei judaica permitisse várias uniões.
[82] . Forte construído por Herodes I na parte oriental da muralha de Jerusalém. Recebeu o nome
em razão de uma homenagem do então rei da Judeia ao triúnviro romano Marco Antônio.
[83] . Herodes Antipas era meio-tio de Herodíade, neta de Herodes I.
[84]
. Líder dos zelotes; assassino e ladrão.
[85] . Corpo armado que policiava o Templo de Jerusalém e protegia o Sinédrio.
[86] . Cobradores de impostos.
[87]
. Povoado situado a nordeste da Galileia.
[88]
. Cidade de Cam, filho de Noé.
[89] . O que significa “vencedor”.
[90] . Líder da revolta judaica contra o censo Romano no ano 6 d.C.
[91] . Cidade portuária da Judeia.
[92] . Oficial romano encarregado de comandar uma centúria.
[93] . Jardim situado no sopé do monte das Oliveiras.
[94] . Anjo caído.
[95] . Planta usada para essências e fins medicinais.
[96] . Cidade a leste do Mar Morto.
[97] . Vice-rei da Arábia.
[98] . Líder de Israel e sucessor do profeta Moisés; implacável em suas conquistas e batalhas.
[99] . Herodes Antipas era idumeu (edomita) e descendia de Esaú, irmão gêmeo de Jacó, o qual
havia sido o gestor daquele povo que originalmente ocupou a região do Mar Morto. Quando da
conquista da Idumeia, à época do rei João Hircano, os idumeus foram obrigados a se
converterem ao judaísmo, ou seja, mesmo a princípio gentios, eram instados a seguir os
rigorosos costumes religiosos judaicos. Para manter as aparências, o Sinédrio fez vistas
grossas para o polêmico casamento de Herodes Antipas com Herodíade — o que era uma
infração às regras mosaicas —, mas certamente não se manteria inerte ante o fato de um
padrasto, através de suposta violência, ter se deitado com própria enteada.
[100]
Espécie de mordomo de Herodes Antipas; Ex-amante de Joana e pai de Yigal.

[101]
Morte por apedrejamento.

[102]
Cidade localizada ao sudeste do mar da Galileia
[103]
Cidade localizada entre a Judeia e a Galileia
[104]
Colina na Galileia
[105]
Agricultor de posses, irmão de Marta e Mariah de Betsaida. Jesus os conheceu quando,
juntamente ao finado José, prestou serviços de construção naquelas bandas, cerca de dez anos
antes. Desde então, tinham tenra amizade.
[106]
Simão foi o último apóstolo a integrar a comitiva de Jesus. Ele havia sido companheiro de Judas
na seita dos zelotes e, por discordar dos métodos de gestão de Barrabás, decidiu procurar Judas e
acabou, por este, sendo apresentado a Jesus. Foi chamado, então, de Simão, o ‘zelote’
[107]
Príncipe–primeiro — caído — da ordem dos Tronos; Marquês do Inferno.
[108]
Taberneiro em Nod; filho de Medjei e pai de Lamec; tataraneto de Caim.
[109]
Unidades responsáveis pela execução das penas de crucificação (que ocorriam as escancaras), da
flagelação à cruz.
[110]
Soldado de primeira classe.

[111]
Cidade ao norte da Galileia.

[112]
Cidade Fenícia no Líbano.
[113]
Tanto a lei judaica como a romana estabeleciam que o leproso deveria ser proscrito das aldeias.
[114]
Ao serem expulsos das comunidades, os leprosos eram condenados à solidão, a fim de refletirem
sobre os seus atos para se reaproximarem de Deus, pois se acreditava que tal doença era um
castigo.
[115]
Cinza de madeira.
[116]
Lugar de culto particular reservado às mulheres.
[117]
Filho de Lamec; “general” do primeiro exército formado na Terra; gestor de Nod; sobrinho de
Layla-Li.
[118]
Naqueles dias, o nome Jesus era comum aos judeus do sexo masculino.
[119]
Harual já havia advertido que Layla-Li ainda renasceria por uma última vez com os dois filhos por
ela assassinados em outra vida, uma anterior à de Salomé/Susana, antes de ser definitivamente
redimida.
[120]
Joia auferida por Beelzebu ao nascer. Estruturada basicamente em ouro branco, ela enverga um
diamante transparente que abriga uma constelação diminuta em seu interior; instrumento de
comunicação e transmissão de energia entre o príncipe dos querubins e a respectiva casta.
[121]
Cidade palestina localizada na beira do Rio Jordão.
[122]
Isso era um prenúncio do nascimento do cristianismo, onde a figura de Jesus estaria sempre viva.
[123]
Província do Império Romano.
[124]
Planta medicinal usada como sedativo ou digestivo.
[125]
Antiga cidade portuária da Palestina.
[126]
Vale que se estende pela parte oriental de Jerusalém.
[127]
Portão ao sul da cidade baixa.
[128]
Bairro de Jerusalém.
[129]
Salva-nos.
[130]
Divindade maligna das mitologias filisteias e cananeias; personificação do “diabo”.
[131]
Os homens temiam o chamado “diabo” e os seus “demônios”, entretanto esses eram — são —
inofensivos, se comparados com os espíritos obsessores, estes sim, responsáveis pelos males que nos
influenciam.
[132]
Pátio do Templo permitido aos gentios (pagãos).
[133]
Moeda de prata usada pelos romanos durante a República e o Império.
[134]
Manuscrito dos cinco livros de Moisés.
[135]
À exceção dos casos de invasão ao templo e adultério, estes, sim, permitidos.
[136]
Sumo-sacerdote antes de Caifás.
[137]
Fonte de água vinda do Cedron.
[138]
Conquanto o ato de sacrifício de animais recaísse, à época, apenas aos sacerdotes, Jesus dava
mostras de que tencionava dar nova interpretação às leis, afinal, ao ver dele, não era ilícito a um
membro da família degolar o seu próprio animal, aliás, tal ato teria uma simbologia até maior do
que o abate feito no Templo, cujos meandros — da compra dos animais ao aproveitamento dos
despojos dele — compunham parte dos lucros do Sinédrio. Esse ato, então, serviu de afronta
àqueles que, servindo apenas ao dinheiro, tentavam monopolizar tal ato litúrgico.
[139]
Alimento adocicado em forma de pequenas pérolas, responsável pela manutenção da beleza e da
jovialidade dos anjos.
[140]
Referência às duas testemunhas necessárias para o rito do processo.
[141]
Antigo líder de Israel, sucessor do profeta Moisés.
[142]
Ordem dos Arcanjos.
[143]
Samael foi o segundo esposo de Lilith, assim que esta abandonou o leito de Adão e caiu em
desgraça perante Deus.
[144]
Um grande incidente ocorreu quando da chegada de Pilatos na cidade de Jerusalém. Ousado, ele
determinou que vários estandartes romanos fossem fincados no Templo, o que gerou uma grande
crise, a qual só foi debelada graças à intervenção de Tibério, que recebeu queixas diretamente dos
senadores judeus. Tal episódio deixou Pilatos em desvantagem política e, desde então, ele
procurava não se imiscuir nos negócios do Templo.
[145]
Peça horizontal da cruz, a qual era encaixada na haste que permanecia fixa nos locais de
execução.
[146]
Platô geográfico fincado nos arredores de Jerusalém, cuja forma lembrava a de um crânio. Local
onde as crucificações eram executadas.
[147]
Chicote romano.
[148]
Soldado que contava, em voz alta, o número de chibatadas, para que os executores não perdessem
a conta.
[149]
Hebraico, grego e latim.
[150]
Cuja extensão era de dois metros e o peso cerca de trinta quilos.
[151]
Diminuição do volume de sangue de um indivíduo.
[152]
Tal ato deu origem à lenda do “Véu de Verônica”, uma das relíquias católicas mais adoradas de
todos os tempos.
[153]
Vale localizado fora das muralhas de Jerusalém, usado como local de descarte dos cadáveres
considerados indignos e de depósito de dejetos.
[154]
Caim e Luluvah eram filhos de Lilith (enquanto serpente) e Eva, a qual foi por ela inseminada no
jardim do Éden, sob a árvore da ciência. Caim fora marcado e condenado por Deus e vagar pelo
mundo até encontrar a derradeira redenção, afinal ele assassinara o irmão Abel e estuprara a irmã
Luluvah, donde, desde odioso colóquio, adveio toda a descendência paralela à de Seth e Aclia, seus
outros irmãos. Layla-Li (agora, Susana), descendia desse clã distorcido e, desde então, também
buscava a purificação da sua alma.
[155]
Vinho amargo misturado com água; bebida-padrão da soldadesca romana.
[156]
Esse foi um ato premeditado de Deus – de cima para baixo –, dando a entender que os homens
agora estavam licenciados para O acessarem diretamente sem o intermédio dos sacerdotes, os quais
alegavam ser os únicos autorizados a ingressar no recinto onde a presença do Eterno estaria. A
paixão de Jesus rompeu essa carapaça, a fim de, vez mais, aproximar o homem de Deus.
[157]
Vale fincado nas proximidades de Jerusalém.
[158]
Uma das mais míticas lendas da tradição oral cristã, foi o judeu que zombou de Jesus quando da
sua crucificação. Diante disso, foi condenado a vagar pela Terra, vivo, até o fim dos dias.
[159]
Um sudário trazido por José de Arimateia, o qual, anos mais tarde, viria a se tornar uma das mais
adoradas relíquias da igreja.
[160]
Artefato religioso que, futuramente, viria a ser conhecido por “lança do destino”.
[161]
Depois chamado de Paulo de Tarso, convertido após ter uma visão de Jesus em uma estrada a
caminho de Damasco. Foi um dos mais influentes escritores do cristianismo e, nos primeiros anos,
se dedicou a perseguir os fiéis de Jesus.
[162]
Filho de Druso e Lívila.
[163]
Um dos maiores e mais respeitados generais que já esteve à frente das Legiões Romanas.
[164]
Caio Júlio César Augusto Germânico. O apelido Calígula veio das Legiões Militares comandadas
pelo seu pai, cujos soldados achavam graça em ver o pequeno Caio travestir-se de legionário e
usando cáligas nos pés (sandálias militares).
[165]
Ilha de Capri, onde ficava a fortaleza de César.
[166]
Celeste da ordem dos arcanjos; lanceiro.
[167]
Indumentária padrão do conselho de arcanjos.
[168]
Província do império romano povoada pelos gauleses.
[169]
O circo romano foi concluído por Nero, próximo à via Cornélia e as colinas do Vaticano.
Coincidentemente, foi nesse mesmo local que Pedro foi crucificado, sessenta e quatro anos após o
nascimento de Jesus.
[170]
A devoção ao rosto de Jesus foi instituída oficialmente pelo Papa Leão XIII, em 1885. A partir de
então, Verônica — já vista como santa na igreja católica — passou a ser adorada na terça-feira que
antecede a quarta-feira de cinzas, dia de comemoração da Sagrada Face.
[171]
Na igreja ortodoxa, Cláudia Prócula ganharia o status de santa, tendo o dia 27 de outubro como o
de sua comemoração.
[172]
Vila portuguesa pertencente ao Distrito de Beja, sub-região do Baixo Alentejo.
[173]
Cidade portuguesa, subdivisão do conselho de Ourém.

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