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QUENTE
COMO O
INFERNO
2ª EDIÇÃO, 2021
Copyright © 2020 by Marcela Talavus
ILUSTRAÇÃO DE CAPA:
Carmel Louise
ILUSTRAÇÃO PÁGINA 05:
Ingrid de Castro
REVISÃO:
Arla Campos
Isabella Lazaroni
Nathalia Brandão
Andréa Santos
DIAGRAMAÇÃO:
Nathalia Brandão
[2021]
Todos os direitos reservados à
MARCELA TALAVUS || @babyboonn
QUENTE COMO O INFERNO
2ª EDIÇÃO, EDITORA EUPHORIA, 2020
CNPJ: 39.317.627/0001-06
Contato: editoraeuphoria@gmail.com
Site: www.editoraeuphoria.com.br
Rio de Janeiro — RJ
Talavus, Marcela
Quente como o inferno / Marcela Talavus;
[ilustração Gabriela Paraizo, Ingrid de Castro]. -1.
ed. -- Rio de Janeiro : Editora Euphoria, 2020.
ISBN 978-65-992796-1-4
1. Erotismo 2. Ficção 3. LGBT - Siglas 4. Lúcifer I.
Paraizo, Gabriela. II. Castro, Ingrid de. III. Título.
20-52837 CDD-
B869.3
Sumário
Copyright
Inferno 9
Purgatório 17
Trevas 28
Abismo 39
Tártaro 50
Martírio 60
Tormento 69
Fogo 79
Lamúria 89
Caligem 99
Brumo 112
Pélago 124
Suplício 137
Declínio 148
Alarido 158
Chinfrim 171
Limbo 191
Profundas 205
Balbúrdia.....................................................
.............................220
Paraíso........................................................
..............................233
Julgamento
Final.............................................................
........259
LÚCIFER
“Os reinos de dia e de noite, dois mundos
diferentes, vindos de duas extremidades opostas;
aquela foi a primeira fissura nas colunas. Ele também
era um tentador, o meu pecado não foi especificamente
isso ou aquilo, mas consistiu em ter apertado mãos
com o demônio. (...)
O Diabo me segurou com suas garras, o inimigo
estava atrás de mim.”
Demian, Hermann Hesse - 1919
Você conhece o inferno ou sequer imaginou como seria?
O Inferno descrito por Dantes está na forma de infundíbulo que
segue em direção ao centro da terra, onde Lúcifer está à espera. Em
cada círculo, são punidos pecados distintos, de acordo com seu grau
de gravidade:
Mas para que usar todos esses benefícios, se Caleb Heilel poderia
jogar pôquer em um cassino clandestino, na Califórnia, às três da
manhã?
A mesa de pôquer estava ocupada somente pelo Tinhoso, faltando,
no mínimo, mais um jogador para estar “completa”. Entretanto, o lugar,
rapidamente, foi preenchido pelo próprio dono do cassino: um mafioso
com bigodes longos, porte forte e dois dentes de ouro que se
mostravam de uma maneira quase impertinente.
Durante aquele horário, a maioria já estava se retirando do lugar
enquanto outra se achegava. No geral, a maior parte completamente
decepcionada pelas perdas gigantescas, alta e ferozmente pronta para
justificar seus atos mal pensados como tentações do Diabo, e finalizar
culpando-o por completo.
E Caleb sequer tinha começado a jogar.
Heilel carregava um sorriso sorrateiro e irônico, o qual deixaria
qualquer um receoso. Existia maldade ali. Fitou o dono da tavolagem,
observando o homem envelhecido mexer em seu cordão com um
crucifixo banhado a ouro que parecia bastante pesado. Ele seria seu
alvo naquela noite. Não era como se estivesse disposto a usar suas
habilidades para vencê-lo. Jamais! Lúcifer era justo.
O que poucos sabiam é que a sorte o acompanhava o tempo inteiro.
— Você sabe rezar? — Caleb perguntou, sarcasticamente, ao
mafioso.
— Como? — Não compreendeu a finalidade daquela pergunta.
Manteve, na face, uma expressão confusa enquanto enrolava seu
bigode na ponta do dedo.
— Perguntei se sabe rezar — repetiu, com a voz rouca, fitando o
crucifixo e movendo as cartas, sem fazer contato visual.
— Claro que sei, mas não compreendo a relevância da pergunta.
Tanto que chega a ser um pouco estúpida. — Existia relutância naquele
oportunista. Ele queria mostrar não temer Heilel. Deixava seu queixo
brandamente barbado, erguido, mantendo, em seus lábios, um grosso
Cohiba behike, charuto importado que fazia sua fala sempre sair um
tanto embolada.
— Então, reze bastante e use toda a sua fé, pois, hoje, o seu Deus
não irá ajudá-lo — ditou debochado e lhe lançou uma piscadela
incurial. Em seguida, mostrou seu jogo, ganhando a primeira aposta de
cara.
Gênesis 39:9
Não era costumeiro que o Diabo dormisse, visto que gostava das
madrugadas e precisava das manhãs para atentar o pequeno ruivinho.
Fitou através da janela, contemplando o irradiar do amanhecer.
— Hope, estive pensando. Conquistar o Benjamin não será muito
difícil — ditou animadamente enquanto terminava de abotoar seu terno
Willian Fioravanti Bespoke não muito clássico.
— Lúcifer, abra seus olhos — advertiu.
Caleb pôs-se a mirá-lo com pouco-caso, cheio de preguiça.
— Quero dizer… — respirou profundamente. — Você está em busca
de conquistar a pureza dele, isso, sim, será difícil, bem mais do que
podemos imaginar. — As palavras foram ditas com cautela e
austeridade, o que Heilel estranhou. Joseph não costumava falar de tal
maneira.
— Não. Será fácil, garanto. Consigo sentir. — Mantinha uma
certeza. Ele nunca se enganava, afinal, podia arrastar consigo quem
quisesse.
— Apenas tome cuidado com os sentimentos que desperta. Você
voltará para o inferno, ele não. — Apesar da censura, Lúcifer não
pareceu se importar. Deu um gole no conhaque Valdaga brandy que
estava sobre a bancada e piscou um dos olhos para Geefs que, por
vez, negou com a cabeça, lentamente, não evitando sorrir abobalhado
pela beleza de Caleb.
— Só não volte apaixonado, Caleb Heilel — gritou, mostrando
extrema ironia.
— O Diabo não ama, Joseph! — retrucou com seu melhor e mais
válido argumento.
Romanos 7:5
Ezequiel 28:18
O piano preto, que ficava no primeiro andar da Sky, era tocado com
extrema destreza e prazer pelas mãos pouco delicadas do Diabo que
parecia fascinado pelo que fazia. Foi um dos poucos deleites que
descobriu na Terra: o delicioso gozo pela música. Tocava piano e
violino: suas músicas melancólicas combinavam bem com seu uísque
quente e o cigarro importado que fazia uma fumaça, no mínimo,
elegante.
Joseph estava acomodado sobre uma das poltronas, com uma
expressão pensativa. Ele desejava conversar com Caleb, temia que o
pior viesse a acontecer. Mesmo que fosse um demônio cruel, em si,
morava um forte vínculo afetivo com o Tinhoso. Era o seu melhor
amigo e, felizmente, sabia e sentia que era algo recíproco.
— Heilel… — chamou-o com seriedade, largando o copo com vodca
e deixando-o acima do centro de vidro. — Quero conversar com você.
— Suas falas eram curtas e imprecisas, não queria irritar o outro.
— Hope, não se preocupe. Voltarei quando sentir que é o momento
correto — falou, com a voz desinteressada, e os dedos voltaram a
tocar as teclas do piano.
— O Inferno precisa de você, não há como outro comandar. Se
continuar dessa forma, Teodoro virá buscá-lo e perderá a ônix. —
Soaria como um sermão, caso seu tom não estivesse coberto por um
desespero pouco necessário.
— Deixe que venha — seu timbre era preenchido de calma.
— Você ficará preso para sempre. Ficará longe da droga desse
puritano de qualquer maneira. — Era uma verdade, porém não havia
nada pior para se usar de argumento.
— Se desejar, levo-o junto a mim. Lembre-se: posso fazer tudo que
eu quero. — Desta vez, era evidente a raiva percorrendo seu timbre
rouco. Os olhos de Lúcifer tornavam-se cada vez mais perjuros, quase
não existindo um resquício de branco.
— Não, Lúcifer... Você pode fazer muitas coisas, mas não pode
levá-lo. É exatamente por isso que você não quer partir. Teme deixá-lo,
porque o ama! — seu tom era ríspido, duro. Joseph sequer soube de
onde tirou coragem para proferir tais coisas, sabia que se arrependeria.
O ódio era latente na face suntuosa de Heilel. Ele sabia que
Benjamin não iria para o Inferno e, por esse motivo, as falas do braço
direito tornaram-se pesadas, como adagas enfiadas na pele já ferida. O
Diabo não podia se controlar, seu corpo chegava a tremer, somente em
cólera.
O silêncio, naquele instante, transformou-se em um latente grito
mudo, e o único som auditivo foi o do corpo de Geefs batendo contra a
parede com uma violência descomunal. Em seguida, o som de taças e
garrafas explodindo, e todo ambiente começou a tremer.
No fundo, o desejo momentâneo de Caleb era matá-lo, mas jamais
faria isto.
Em fração de segundos, Heilel já estava perto de Joseph, agarrando
o seu pescoço com voracidade.
— Não repita isso. — Soltou-o, sumindo, instantaneamente, da
boate.
Sempre que Caleb agredia Hope, criava-se, de alguma forma, uma
espécie de raiva; e aquela foi o estopim. Estava cansado das atitudes
de Lúcifer, principalmente pela motivação. Como Heilel poderia tratá-lo
tão mal apenas porque falou do puritano, quando quem estava sempre
lado a lado com ele era Geefs?!
Exausto, estava sobrecarregado.
Precisava fazê-lo voltar, por bem ou por mal.
Sentindo uma leve dor na coluna, o demônio levantou-se mancando
e, rapidamente, jogou-se contra o sofá. Estalou os dedos enquanto
falas aleatórias, em latim, eram proferidas com desânimo. Em seguida,
tudo se tornou pesado. Uma intuição invadiu Joseph: não era algo
bom, mas nada o impediria.
— Sabia que você mudaria de ideia. — O sorriso macabro exibido
no rosto másculo de Gadreel definia o que existia por dentro: alegria.
— Apenas me explique o plano.
Os deuses desta era cegaram o entendimento de descrentes, para
que não vissem a luz do próprio demônio e da glória do Diabo.
As palmas grandes de Caleb apertavam o volante de couro com
certa força enquanto seus dedos finos batucavam-no inquietamente,
formando um som levemente irritante. Sentia-se impaciente. O corpo
forte estava coberto por um terno Desmond Merrion preto enquanto se
apoiava, de modo desleixado, sobre o assento do veículo.
Lúcifer fitava a estrada. Pela primeira vez, parecia estar sem rumo.
A irritação que o habitava parecia querer rasgar a sua pele, consumi-la,
até que, enfim, estivesse inteiramente alastrada. Era continuamente
cansativo aquele circo de regressar ao Inferno. Ele sempre manteve a
mais absoluta consciência do que fazia e das consequências que
corria. Sabia que era inegável o fato de estar na hora de seu retorno,
mas não almejava abandonar a Terra ou o que havia construído nela.
Chateava-o em demasia saber que, a qualquer instante, tudo se
tornaria uma vasta e pequena lembrança.
Fechou os olhos com melancolia, suspirando profundamente,
sentindo o peito estufar e, no mesmo instante, esvaziar-se.
O trânsito não estava turbulento, o que era de se estranhar, visto
que as ruas de Holy Paradise eram altamente movimentadas,
especialmente durante as noites.
Repetiu o suspiro de outrora, no intuito de se tranquilizar. Precisava
colocar a cabeça no lugar, para, então, decidir o que seria o certo a se
fazer. O Diabo necessitava de um escape, com uma urgência
estrambótica. Quem sabe conhecer uma nova boate com cores e
músicas diferentes, desfrutar de novos homens e mulheres, beber tudo
o que lhe fosse oferecido, lícito ou não e, enfim, gozar de sua jornada
na Terra, antes que ela fosse brutalmente interrompida.
No entanto, o seu coração e seu Corvette o guiavam para outro
caminho, passavam entre os quarteirões já bem conhecidos por seus
pneus, volante e por ele mesmo. Benjamin era sua verdadeira
salvação, tão forte quanto um uísque envelhecido.
Não demorou para que o conversível preto e bem polido estivesse
em frente à residência dos Parker. Pisou seu solado caro, com rigidez,
sobre o gramado pouco verde e pôs-se a caminhar com tranquilidade.
Logo, volveu sua atenção para a nova porta, idêntica à anterior, de
madeira fraca e módica. Heilel negou friamente ao lembrar o momento
que a derrubou. Mal havia chegado e o desejo de quebrá-la,
novamente, mostrou-se enorme e bastante violento.
Tocou a campainha, por uma única vez, mantendo-se duvidoso de
seu funcionamento, uma vez que nunca a havia tocado. A porta foi
ligeiramente aberta, dando-lhe a visão de Karen. Instantaneamente, a
mulher sorriu-lhe grande, exibindo seus dentes certos, bem
semelhantes aos do alaranjado. Ela era uma mulher muito bonita.
— Oh, Caleb, como vai? — a pergunta foi feita em um tom animado,
apesar da voz denunciar um desgaste.
— Vou bem, Karen. — Sorriu simpático. — O Benjamin está? — o
timbre curioso soava sério, mesmo que tentasse ser o mais gentil
possível.
— Está sim. Entre, por favor. — Abriu a porta, saindo um pouco do
caminho, para que o outro pudesse adentrar a residência.
Sem delongas, o Diabo passou pelo portal, ficando de frente para a
escadaria envelhecida.
— Bem, eu estou terminando a faxina nos quartos; deixei Benjamin
na cozinha. Você quer que eu te acompanhe até lá ou pode ir sozinho?
— Suas mãos mexiam-se, gesticulando enquanto exibia uma
expressão apressada e cansada.
— Pode ficar despreocupada, sei o caminho. — Tentou soar
divertido, e pareceu funcionar.
Karen assentiu e voltou a subir os degraus, dando uma risadinha
meiga pelo modo como Heilel falava, permitindo que seu rir se
misturasse ao ranger da madeira velha.
O Tinhoso fitou-a de costas: seus braços estavam cheios de
hematomas que se encontravam mal escondidos por maquiagem de
má qualidade. Instantaneamente, lamentou-se pela escolha infeliz da
mulher: casar-se com um homem tão imundo quanto Hector foi seu pior
feito.
Caleb balançava a cabeça, em negação e desgosto, enquanto
voltava a caminhar devagar. Estava prestes a passar para o segundo
cômodo: a sala de estar. Entraria desinibido, se não fosse a visão de
Benjamin.
De imediato, um sorriso foi formado em sua face, algo tão sincero
que foi capaz de exibir toda sua dentição protuberante.
O ruivo vestia as costumeiras roupas folgadas, porém, desta vez,
elas pareciam um pouco mais judiadas e desbotadas. Seu rosto
angelical revelava certo cansaço, e seus pés estavam descalços,
porém nenhum destes fatores interferia na sua beleza. Seu jeito tão
simples de ser deixava aquele homem tão vistoso e poderoso, eufórico
e completamente encantado.
Lúcifer parou seus passos, naquele instante, somente para apreciá-
lo de longe. Suas atitudes mais ingênuas e a forma como, até fazendo
coisas comuns, ainda era um ser imensamente lindo, surpreendiam o
Diabo.
Benjamin andava com naturalidade até o pequeno centro de vidro
que havia no meio da sala. Morosamente, os olhos raivosos de Heilel
fincaram-se no sofá, onde Hector estava deitado, totalmente
desleixado. Rapidamente, um riso cresceu na face maligna do Cão. A
visão do reverendo com uma das pernas engessadas e um braço
enfaixado foi deveras gratificante. No rosto velho, existiam machucados
e uma expressão cheia de cólera; as olheiras eram profundas,
evidenciando sua insônia, e os mirantes focavam a televisão.
Caleb contiguamente arrependeu-se de ter feito tão pouco na sala
de armas. Contudo, logo seus lumes retornaram para o acobreado que,
agora, tentava carregar uma pilha de pratos sujos que estavam sobre o
móvel.
— Vamos, saia logo da minha frente — o pastor vociferou,
extremamente rude.
Parker agarrou a louça com pressa, tremendo pelo pequeno susto
que levou. Por acidente, deixou que um dos pratos caísse, fazendo um
barulho enorme que assustou o religioso.
— Será que você não consegue fazer nada direito? — inquiriu com
arrogância, causando um medo estrambótico no outro. Benjamin não o
respondia, somente mantinha de olhos arregalados e tremendo.
— Vamos, largue essa droga e limpe essa sujeira que você fez —
apesar de não gritar, seu timbre era bastante alterado, e a sua feição
exibia nojo.
Parker assentiu por vezes consecutivas, extremamente rápido e
nervoso. Abaixou-se, juntando os cacos de vidro com as mãos.
— Nem isso você sabe fazer? Será que é tão inútil assim? —
questionou retoricamente, em um tom recheado de repulsa. — Largue
essa porra, desse jeito vai cortar as mãos! — O reverendo levantou-se
bruscamente, fazendo uma careta dolorida, colocando as mãos sobre a
coluna e fechando os olhos, para suportar tal coisa.
Em cada momento, Benjamin exibia uma gigantesca preocupação.
Ao ver que seu pai havia dado um jeito na coluna, desesperou-se.
Correu para perto de Hector, segurando-o para não cair, e tentou
ajudá-lo a se deitar novamente.
— SAIA! NÃO ME TOQUE! — gritou. Agilmente, empurrou o ruivo
com extrema violência, fazendo-o pisar sobre os cacos de vidro e, em
seguida, jogou-se sobre o acolchoado.
— Desculpa… — falou pausadamente, engolindo em seco.
— Não toque em mim novamente, aberração. Quero distância de
um imundo como você. Está me ouvindo? — destilava as palavras com
maldade e frieza, sem compaixão alguma, muito menos amor.
Benjamin, por sua vez, tentou se estabilizar, apenas pegou os pratos
e saiu quase correndo, sequer notando o rastro de sangue que seu pé
deixava sobre a cerâmica clara.
Tal cena despertou um ódio impróprio no Diabo. Estava furioso.
Jamais compreenderia a mente de um lunático por regras estúpidas, e
podia ter certeza de que Deus também não o entendia.
Sem cautela, Caleb passou, mostrando presença.
— Boa tarde, reverendo — a voz era séria. Suas sobrancelhas
estavam franzidas e seu olhar transmitia todo o nojo existente em seu
íntimo.
Hector parecia ter congelado, após o acontecimento de antes.
Tomou para si um favor ciclópico, mantinha a certeza de que, diante de
si, existia o Diabo.
Em uma reação de genuíno desespero, o pastor levantou-se para
correr. Todavia, não foi capaz e apenas caiu de frente, com as mãos
sobre os fragmentos de vidro, arrancando uma gargalhada gostosa de
Lúcifer.
Heilel continuou, serenamente, seu percurso até a cozinha, ficando
de frente para o portal e encostando seu ombro sobre um dos lados,
sentindo a parede levemente gélida. Sua visão atenta passou a
analisar o pequeno Parker: ele estava de costas, segurando uma
colher de pau, mexendo uma grande panela de sopa enquanto um
pano de prato branco com bordado de patinhos estava pendurado em
seu ombro direito. O cheiro era bom, e Heilel permitiu-se sorrir de
forma contida ao vê-lo.
Era uma cena agradável e fofa, se não fosse pelo fungado
proveniente do ruivinho. Lúcifer sabia que ele chorava, podia sentir a
tristeza rodeá-lo. Ele entendia o porquê e o quanto Benjamin estava
sofrendo. De alguma forma, uma compaixão demasiada invadiu o Cão,
entretanto, rapidamente, foi desfigurada pela raiva que sentia em seu
peito.
Questionou, mentalmente, o porquê de o alaranjado continuar sendo
tão ingênuo e bom para um ser humano terrível.
— Meu bem… — chamou-o, usando de um timbre delicado e suave.
Imediatamente, o puritano virou-se e fitou o Diabo, dando-lhe um
sorriso falso. Não queria ser visto chorando.
— Você está aí há quanto tempo? — a voz chorosa era fortemente
reprimida enquanto suas mãos limpavam as lágrimas.
— Não há muito tempo… Mas você está se sentindo bem? —
perguntou-lhe, adentrando a cozinha.
Parker apenas precisava disso para desabar em um choro sem
freio. Sentia-se tão magoado que parecia querer explodir ou somente
fugir. Porém, insistiu em negar, calmamente, fitando o chão e formando
um gigantesco bico.
Não foi necessário mais nada para que Heilel abraçasse-o com
força, oferecendo o seu calor como um consolo poderoso.
O choro de Benjamin passou a ser ainda mais desregulado; as
lágrimas salgadas molhavam o tecido caro que o Cão vestia, no
entanto isso não tinha importância alguma.
Caleb sentia-se bastante descontrolado, tudo dentro de si parecia
uma bagunça, e vê-lo tão triste aumentou sua ânsia de quebrar tudo o
que estivesse em sua frente. Cada pequeno aperto ou soluço
despertava uma cólera capaz de fazer o coração do Diabo arder.
Afastou o ruivo delicadamente, pondo-se a mirá-lo. Observou os
olhinhos molhados e inchados pelo choro; as bochechas gordinhas
cheias de sardas clarinhas estavam intensamente vermelhas, e a
angústia acabava com a feição do garoto. De algum modo, isso causou
um endurecimento ao cerne do Tinhoso.
— Você sabe que não precisa continuar com isso, não precisa fazer
coisas para ele — o tom, apesar de não ser duro, mantinha certa
seriedade. — Não precisa cozinhar para ele. — Apontou a panela,
sentindo Benjamin encostar o rosto em seu peito e virar-se para olhá-
la.
— Eu não consigo ser diferente — sussurrou tristonho. Para o
ruivinho, não existia resposta mais plausível. Fazer aquilo era parte de
seu caráter; pensava e agia com bondade.
— Ben, você pode ter o melhor coração do mundo, mas não pode
ignorar tudo o que lhe foi dito há segundos — seu timbre ganhou um ar
pesado. — Você ouviu bem o que ele disse?
Caleb mantinha um olhar opaco, desgostoso. Lúcifer jamais
compreenderia o poder do perdão como Benjamin; nem mesmo Deus
iria eximir alguém como Hector, de tal forma.
— Ouvi — falou, quase inaudível.
— E, agora, está aqui, nesta cozinha, chorando sozinho e fazendo
sopa para ele? — cada palavra foi dita com um pouco de arrogância, e
sua feição evidenciava o fastio.
— Eu não preciso ser como ele, Calebie… — proferiu de forma
desanimada. Talvez, o senso de justiça de Parker o levasse a crer que
existia uma real razão para não se igualar, todavia o Diabo queria
saber até onde iria a prudência do limite.
— Isso é patético, Benjamin — ditou, rindo nasalmente, um tanto
incrédulo com o que ouvia.
— Ele é o meu pai, eu não posso abandoná-lo no momento em que
mais precisa de mim. — Parker, desta vez, fechou a expressão e
passou a falar com seriedade. O tom de deboche, usado por Heilel,
deixou-o chateado.
— Seu pé está sangrando, vá lavar isso — ordenou, desinteressado
no estresse alheio.
O ruivo fitou o chão, vendo o sangue espalhado; sequer havia
sentido. Talvez, a tristeza e a raiva estivessem em uma adrenalina tão
brutal que o seu machucado foi a coisa mais sem importância.
— Você não me entende. Não posso negar ajuda ao meu próprio
pai! — afirmou rudemente, levando o pano de prato até seu pé,
enrolando-o desajeitadamente.
— Seu pai é um verdadeiro estúpido — agora, o tom do Tinhoso
tornava-se mais alterado e bastante arrogante.
— Não fale assim comigo! — vociferou, fechando a feição e
distanciando-se de Heilel. — Também não aja como se fosse a melhor
pessoa do mundo, porque você não é. — Franziu o cenho enquanto
apontava o dedo indicador para cima, próximo ao rosto de Lúcifer, com
uma autoridade distinta. A maneira como Heilel estava falando deixava-
o inteiramente irritado. Já era exaustivo o suficiente aguentar gritos e
maus tratos de seu pai, e não aceitaria isso de Caleb. Ouvi-lo falar de
tal forma cortava o seu coração de uma maneira inexplicável.
— Isso não é sobre mim, Benjamin — refutou, desta vez mais baixo.
Sequer estava crendo que Parker defendia, com unhas e dentes,
alguém tão putrefato como Hector.
— Pois é, Caleb. Nada nunca é sobre você — respondeu-lhe,
aproximando-se e encarando-o furiosamente, de baixo para cima.
Talvez, Parker estivesse tendo um ataque emocional — as lágrimas
que escorriam incessantemente evidenciavam isso.
— E o que você quer saber sobre mim? Só me enche de perguntas
estúpidas. — Estava sendo puramente grosseiro, como um verdadeiro
idiota. Caleb sentia-se tão bravo pela discussão desnecessária que
perdeu o rumo do verdadeiro assunto. Além disso, o momento era o
mais inadequado possível, e o lugar, inconveniente.
— NÃO FALE ALTO ASSIM COMIGO! E SE SÃO PERGUNTAS
TÃO ESTÚPIDAS, POR QUE NÃO AS RESPONDE, “LÚCIFER”? —
gritou agudo, ficando na ponta dos pés, extremamente vermelho. Já
não temia que seus pais escutassem, nada importava naquele
momento. Tudo existente diante de si era o quão estressado Caleb o
estava deixando.
Por um breve segundo, foi como se Lúcifer tivesse tomado um
banho de água fria. Engoliu em seco, sentindo o seu coração palpitar
com uma violência escrupulosa. Ouvir seu nome ser proferido com
tamanha raiva causou-lhe uma angústia e um prazer inadequados. O
Diabo buscava um argumento plausível para ir contra Benjamin, no
entanto nada saía de seus lábios.
Por fim, desistiu de todo aquele circo descabido.
Seus lumes foram de encontro aos do ruivo que, rapidamente,
abaixou a cabeça, para evitá-lo. Parker estava intensamente ofegante
e usava suas mãos para limpar as lágrimas do rosto.
Ver Benjamin chorar transformou-se em algo extremamente triste
para o Diabo. No fundo, Lúcifer não queria magoá-lo; nem queria ter
gritado ou perdido o controle. Sequer havia ido com a intenção de
discutir, pelo contrário: queria alegrá-lo, vê-lo sorrir, sempre tão doce e
cheio de vida.
Sua presença não era desejada naquele momento, por isso optou
por se retirar da residência; o clima estava excessivamente pesado.
Quando o ruivinho observou Heilel saindo lentamente da cozinha,
pareceu que seu peito iria estourar de tristeza. Ele não queria que o
Diabo fosse embora, desejava abraçá-lo, beijá-lo, agarrá-lo. Tudo que
não precisava era que ele se retirasse assim, por uma discussão tola.
— Calebie… — chamou choroso, puxando-o pelo braço.
Pela entonação baixa, o Tinhoso sabia que o ruivo iria chorar muito
mais.
Contudo, naquele instante, não existia paciência alguma dentro de si
e, se continuasse lá, não demoraria cinco minutos para Benjamin estar
rouco de tanto gritar com ele.
— Benjamin, por favor, me solte — pediu francamente enquanto o
olhava, sem ânimo.
— Não vá, podemos conversar com calma. Só tenha paciência
comigo, por favor — o timbre era tão baixo que evidenciava toda a sua
fragilidade.
— É justamente esse o problema… Estou sem paciência alguma.
Me solte.
O ruivo continuava a segurar o fim da manga do terno com tamanha
força que parecia que jamais soltaria.
— Me escuta… — rogou, demonstrando uma feição intensamente
magoada. — As coisas não podem ser assim! Por que você só não
tenta me entender? Tudo isso é novo para mim, é difícil. Por favor, não
vá embora, fique aqui comigo.
— Apenas me solte — solicitou novamente, já demonstrando
cansaço. Vendo que o seu pedido foi ignorado, puxou vagarosamente o
braço. Não quis utilizar a força, para não machucar.
Benjamin, de maneira desconsolada, soltou a bainha e juntou uma
mão à outra, mexendo nas unhas, tentando reprimir a vontade violenta
de chorar. Mesmo que existisse um nó em sua garganta, que a
rasgava, não iria aos prantos, para que o outro ficasse.
— Calebie, estou muito magoado, mas, ainda assim, quero que
fique, porque eu gosto de você, de verdade. — Respirou pesado. —
Porém, a partir do momento em que você escolher cruzar a porta e me
deixar sozinho, não volte mais. — A maneira precipitada e segura com
que Benjamin falou assustou o Diabo. Apesar da voz tão baixa e
aguda, ele sentia que o ruivo falava sério como nunca.
Heilel tomou proximidade do corpo frágil, deixando um selar em sua
testa e, em seguida, voltou a sair do ambiente, deixando Parker
inteiramente magoado.
Antes de atravessar a porta principal, viu os pais de Benjamin no
sofá, que o olhavam assustados. Karen voltou a fechar a expressão e
foi para a cozinha com pressa. Ainda pôde ouvir os soluços de
Benjamin, mas aquilo evitaria que o magoasse ainda mais.
O sapato Gofer com seu solado duro, porém intensamente
confortável, batia contra o piso liso, formando uma acústica quase
impressionante.
A porta do apartamento foi aberta sem cautela e, em seguida, a
estrutura física do Diabo adentrou o espaço.
O ambiente estava escuro, o que era de se estranhar, uma vez que
Joseph deveria estar no apartamento, durante aquele horário. Não o
ver causou uma certa surpresa.
Lúcifer ainda caminhava, formando uma leve toada. Sua face exibia
uma expressão de tristeza, algo incomum. No entanto, vagarosamente,
um sorriso ladino foi crescendo de modo amedrontador.
Locomoveu-se, ainda sorridente, até o balcão que ficava em frente a
uma estante de vidro. Agarrou-se a uma garrafa de uísque Glenfiddich
e puxou da prateleira um copo pequeno, enchendo-o com o líquido
amadeirado. O imóvel encontrava-se tão silencioso que somente o som
do líquido caindo sobre o copo cristalino poderia ser ouvido ecoando,
em uma balbúrdia.
Movimentou-se devagar, passo por passo, deixando que seus
calçados fizessem leves estrondos em cada pisada. Levou o copo de
vidro até seus lábios finos e secos, bebericando o álcool amargo que,
rapidamente, fez um pequeno estrago por sua garganta. O ardor
soava-lhe deveras delicioso.
De modo calculado, apoiou o recipiente sobre o pequeno centro e,
sutilmente, começou a levitar, permitindo que sua estrutura inteira
abandonasse o chão e se deitasse sobre o ar. Seus olhos estavam
atentos.
Em segundos, o ambiente tornou-se escasso, pesado, e
absolutamente tudo estava congelado. A cena do anjo com asas
negras, que faziam um contraste em degradê cinza, e sua feição
perfeita, invadiu a visão do Tinhoso.
Gadreel carregava uma expressão vitoriosa, suas roupas estavam
diferentes e em suas costas existiam duas longas espadas, uma
cruzando a outra.
— Ora, ora, parece que cheguei em um momento inoportuno,
Lúcifer. — Caminhava calmamente, em volta de Heilel, criando uma
atmosfera desagradável.
— Não seja tão humilde, Gadreel. Você sempre é inoportuno — as
falas simplistas e com pouca emoção não satisfizeram o demônio.
— Neste exato momento, você consegue enxergar que a sua
jornada chegou ao fim? — questionou, sentindo-se superior.
Um rir sacana foi emanado da garganta de Lúcifer, e tal atitude
destruiu o coração invejoso de Gadreel que se corroeu de puro ódio.
Detestava o deboche e a falta de respeito consigo.
— Não se apresse, as coisas só acabam quando terminam. —
Piscou-lhe um dos olhos, sorrindo de seu pleonasmo. Heilel, por fim,
tombou seu pescoço para trás, relaxando.
— Será que você não se cansa dessa brincadeira? — inquiriu
retoricamente. Gadreel sentia-se desafiado com a tranquilidade que o
Diabo emanava; irritava-o. Caleb havia se desvencilhado do Inferno tão
bruscamente que não temia perder seu anel com a ônix negra. Seu
desejo era estar preso na Terra.
— Eu não tenho o hábito de me cansar, você me conhece — sua
voz estava inundada de desprendimento.
O anjo caído sentia-se no poder, pelo menos uma única vez, e o
desejo de proferir tudo o que sempre esteve engasgado poderia lhe
custar mais do que imaginava.
— Jamais vou entendê-lo... Ou pior: nunca vou compreender como
Deus pôde vê-lo como uma ameaça aos Céus. — Franziu o cenho e
manteve o queixo erguido.
— Eu tenho um humor mais ácido, mais agradável. Compreende?
— menoscabou. — Além disso, Deus é muito underground. Sem mim,
não existiria visibilidade para ele. Como o “mocinho” salvaria a “noiva”,
se não houvesse um vilão para tentá-la? — Caleb exibia seu íntegro
descoco. Estar flutuando quebrava toda a sua seriedade, mas dava um
brilho especial e uma ênfase ao seu cinismo presunçoso.
— Inferno… Como eu detesto você e esse seu jeitinho patético de
ser. — Cerrou os punhos, batendo uma mão contra a outra. Gadreel
carregava um antiquado rancor que se misturava com o pecado da
inveja, o qual o corroía poderosamente e se estendia a sua obsessão
pela organização do Inferno, formando essa personalidade tão
incoerente.
— Imagino que essa sua preciosa vinda ao meu humilde recinto não
tenha sido para um breve desabafo. — Sorriu-lhe sádico, exibindo seus
dentes e mexendo seu orbicular. — Nunca entenderei essa ladainha
que os “vilões” costumam fazer quando conseguem ter o “bom moço”
em mãos. Também quase não me vejo em uma posição tão tocante,
mas, se é o que temos para agora, será divertido. Não continue
perdendo tempo.
Heilel mexia-se lentamente, tentando deixar seu corpo ereto, como
se estivesse remansado, porém continuou as falas:
— Quanto a você, Joseph… Saia de trás desse balcão, consigo ver
a sua perna — seu tom deixava evidente o quão desacreditado estava,
totalmente abismado pela falta de inteligência alheia.
A expressão de Gadreel se desfez aos poucos, dando espaço para
uma faceta receosa e, em seguida, deu um passo para trás.
— Abandone essa zombaria, Lúcifer. Abra seus olhos para a
verdade: você está na palma da minha mão.
— Você é ingênuo demais, Gadreel… Como pôde presumir que é
mais forte e poderoso que eu? — Arqueou a sobrancelha, astuto. —
Você veio buscar algo, então venha e pegue o que quer — chamou-o,
gesticulando com a mão enquanto, ligeiramente, seu corpo retornou ao
chão, sem dificuldade alguma. Sua feição tornou-se inebrie, macabra, e
seus olhos estavam intensamente melânicos.
O anjo demoníaco deu mais alguns passos, afastando-se. Por um
instante, sentiu-se abalado e enraivecido ao vê-lo se movimentar tão
agilmente. Em sua fisionomia, cresceu um ódio deslumbrante; sentia a
genuína raiva. Se lhe fosse permitido, cortaria o Diabo ao meio.
— Tudo bem, pode ir no seu tempo, não tenho pressa. Sei que esta
briga não consumirá muito tempo, uma vez que vocês são como
pobres baratas: resistem a coisas violentas, mas, se eu pisar, vocês
morrem. — Emanou uma gargalhada gostosinha. No fim, o ego de
Lúcifer era sua maior qualidade.
Gadreel cerrou os dentes. A cólera sucumbia-lhe brutalmente,
segurava seus instintos para não bulhar enquanto Joseph recuava
pausadamente. Sentia-se imensamente arrependido, assustado e
reprimido.
Lúcifer, misticamente, direcionou a palma no caminho do braço
direito, fazendo-o ter o corpo arremessado para o outro lado da parede,
no corredor, colando-o. Geefs sentia sua estrutura dura como gesso,
era impossível se mexer.
— Eu não brigo com traidores — proferiu melancolicamente.
Durante muito tempo, o Diabo dedicou um espaço e uma confiança
absurda a Joseph, mas, naquele momento, arrependeu-se.
No âmago do demônio ajudante, criou-se um remorso péssimo, a
situação era das piores. Nunca quis trair Lúcifer, tudo o que fez foi em
nome do bem-estar grupal. Jamais o trairia.
— Acalme-se. Entendo que perder um aliado tão “vantajoso”, que
me conhece tanto, não é lá um bom jeito de começar. — Heilel expôs
seus dentes, em um rir sádico.
Traiçoeiramente, moveu sua mão, exibindo o anel de prata, com a
pedra tão preciosa e poderosa cravada nele. De modo solitário, o
objeto retirou-se do dedo e começou a flutuar.
Gadreel pôde sentir um calafrio violento.
O Cão arremessou a ônix para Hope, permitindo que ele pudesse
agarrá-la e, em seguida, voltar a sua pose petrificada.
— Lúcifer... Lúcifer, você é confiante o bastante para se sabotar
dessa forma? Aprecio sua coragem, mas quero lembrá-lo: sabe o que
vai acontecer, se eu levar aquele anel, não é? — utilizava uma voz fria,
coberta por uma alegria discreta. Gadreel sentiu como se metade de
seus problemas tivessem se resolvido. Não seria fácil derrotar Lúcifer,
todavia sentia-se mais capaz disto.
— Deixe-me pensar… Você vai me prender eternamente no Inferno?
— inquiriu, estalando a língua, sem muito interesse. — Você é
previsível, Gadreel.
Caleb deu apenas um passo à frente e, rapidamente, o anjo
demoníaco tentou socar sua majestosa face. Antes disso, o Cão elevou
a mão com uma agilidade incomum, segurando o punho alheio sem
dificuldade.
— Realmente, muito presumível — silabou. Ligeiramente, empurrou
o corpo forte de Gadreel, fazendo-o bater contra a porta de madeira,
gerando uma expressão dolorida e tenebrosa.
Diferente de Heilel, ele era sensível a dores. Os olhos cálidos do
demônio foram preenchidos de fúria e inimizade. Comprimiu-os, fitando
o Tinhoso, ao mesmo tempo que franzia o cenho.
Sem pensar duas vezes, correu na direção de Caleb e empurrou-o
na taipa, causando um estrondo árdego e estalos brutais nos ossos
alheios. Com muita tribulação, ergueu a estrutura deveras pesada do
Diabo, segurando-o pela gola do terno, sufocando-o.
— Eu vou destruí-lo — cuspiu as palavras. Gadreel sabia que uma
luta com Heilel jamais seria verdadeiramente justa, por este motivo, ele
entendia que precisava buscar um ponto fraco, algo capaz de distraí-lo
o suficiente, para roubar a ônix e regressar ao Inferno.
Caleb encarou-o raivosamente e chutou sua barriga com
brutalidade, fazendo-o ir para trás, soltando sua própria gola. Pôs-se a
ajeitá-la, utilizando uma sutileza e elegância nunca abandonadas.
— Certo. Acabe comigo, não com o meu terno. — Riu
sorrateiramente.
Sequer houve tempo para Gadreel raciocinar a piada fora de hora.
Rapidamente, foi atingido por um soco no queixo, quase deslocando
sua mandíbula. A dor foi inimaginável. Apoiou a mão no queixo,
sentindo-o formigar, e virou-se para o lado, cuspindo sangue. Em seu
coração, a raiva reinava.
Lúcifer não tinha nenhuma intenção de destruir o anjo caído. Para
ele, tudo não passava de mais um teatro, no qual ele era o protagonista
que nem todos amavam.
O anjo demoníaco ergueu-se, voltando para a direção do Demônio.
Desta vez, dava para sentir sua exuberância, ela fluía pelo ar, por todos
os lados. Começou a dar violentos chutes no estômago do Tinhoso,
vendo-o cair de joelhos. Rapidamente, deu um pontapé nas partes
baixas — era a área mais sensível em Heilel —, algo proposital, em
nome do prazer.
— Ei, isso é jogo sujo! — proferiu arrastado.
Gadreel empurrou-o com o pé e, sem demora, jogou-se sobre o
corpo alheio, iniciando socos contínuos e ligeiros, algo totalmente
paranormal. Sua ideia jamais foi a de ser contra o Diabo, afinal, no
Inferno ele tinha uma grande posição. No entanto, sem Lúcifer, naquele
lugar, sua autoridade tornava-se patética. O quebra-cabeça só
funcionava quando todas as peças estavam juntas, e isso feria seu ego
já inflamado.
Caleb sentia sua face extremamente dormente, levemente dolorida.
O outro parecia incansável, precisava agir.
O Diabo levantou uma de suas pernas, passando-a rapidamente
pelo corpo de Gadreel, juntando-a com a outra. Bruscamente, fechou-
as, fazendo com que a estrutura alheia caísse e, astutamente, trocou
as posições. Agora, foi a sua vez de despejar a fúria. Esmurrava
Gadreel com uma brutalidade sem tamanho; este já cuspia muito
sangue e sua face se tornava cada vez mais machucada.
Agarrou-o pelas vestes, erguendo o corpo e, em seguida, jogou-o
contra a estante de vidro, quebrando todas as bebidas e utensílios de
vidro que existiam ali. O som foi devastador. O móvel estilhaçou-se e
os leds queimaram, deixando o ambiente ainda mais escuro.
— Briga sem fala não é emocionante… Vamos, reaja, Gadreel —
provocou, sorrindo ofegante.
O corpo deitado sobre os cacos de vidro estava fraco, totalmente
ensanguentado, mas ainda com um sorriso execrável nos lábios.
Gadreel alteou, bastante debilitado, praticamente se arrastando,
exibindo toda sua situação deplorável.
Lúcifer permanecia intacto. Tudo o que ficou evidente foram
hematomas vermelhos por causa das pancadas recentes que sumiram
com rapidez.
— Pare de proferir tanta merda, Lúcifer — o timbre tão desdenhado
não agradou o Cão, e sua feição vencedora perdeu o ânimo.
Seus lumes percorreram as mãos do anjo demoníaco, vendo-o levá-
las para trás e puxar uma das espadas. Por um ínfimo segundo,
apenas o som da lâmina afiada foi ouvido.
Gadreel já não se sentia bem, estava tonto. Seu raciocínio tornou-se
lento, toda a sua estrutura estava doendo, e tudo o que sentia era
medo de enfraquecer. Usou a força que lhe restava para correr na
direção do Diabo que arregalou os olhos e permaneceu estático.
A espada atravessou o peitoral forte de modo tão violento que
Lúcifer foi parar do outro lado do cômodo, à frente de Geefs.
O anjo de asas degradê cambaleou para trás, perdendo o equilíbrio,
caindo sobre o chão, com seus mirantes focando Heilel.
Caleb observou-os, com os lábios abertos, em uma expressão
genuína de dor. Ajoelhou-se devagar, ameaçando cair para frente, o
que não demorou a acontecer. Logo, não havia força em seu corpo, e
tudo o que podia fazer era desmoronar, permitindo que o resto da
espada perfurasse seu peito.
A imagem aterrorizou os dois demônios presentes.
— LÚCIFER! LÚCIFER! — Hope gritou rouco, em puro desespero.
Gadreel arrastou-se para o canto da sala, com os olhos arregalados.
O Diabo parecia não mais respirar.
— Inferno! — vociferou.
Não foi essa a sua intenção, não queria matá-lo.
Uma gargalhada maléfica invadiu os tímpanos de ambos, causando
arrepios.
— Qual é, acreditou mesmo que eu iria morrer fácil assim? —
inquiriu retoricamente, galhofando intensamente.
O coração de Joseph ficou aliviado.
Lúcifer levantou-se, sem arrelia, e puxou a longa espada de seu
peito, mostrando resistência perante a dor que sentia.
— Não pensei que estávamos brigando para matar — ditou, em um
sussurro. Caminhou até o corpo exausto e fitou-o com repulsa. Apoiou
seu pé sobre o peitoral de Gadreel, colocando peso, arrancando-lhe o
ar. Heilel sentia uma cólera indefinível, suas mãos tremiam e calafrios
percorriam sua estrutura física. Jamais imaginou que Gadreel seria
capaz de tentar matá-lo.
Segurou a espada afiada pela ponta, causando uma lesão em sua
própria palma; no entanto, não havia sangue. Abaixou-se, ficando
próximo ao rosto do anjo, passando a ponta da arma branca bem
devagar.
— Eu vou rasgar o seu rosto inteiro — sussurrou risonhamente.
Seus olhos estavam integralmente negros.
— CALEBIE… — um grito agudo, muito distante, causou-lhe
confusão.
Soltou a espada, em uma atitude não pensada, e de forma
atordoada. Era a voz de Benjamin.
— Calebie, por favor, me ajude — ouviu mais uma vez. Um
desespero tomou-o, não entendia o porquê.
A visão do Diabo foi ficando turva, lenta e, de uma hora para outra,
ele visualizou Benjamin. O ruivo não vestia muitas peças de roupa
enquanto chorava incessantemente, e clamava por seu nome. À sua
volta, existiam cinco inccubus e cinco succubus perversas e, no meio
deles, Gadreel, ensanguentado e debilitado. Eles sussurravam
profanidades, coisas sujas e imorais que causavam uma profunda
tristeza em Parker. Este apertava os olhos enquanto lágrimas grossas
escorriam, sem autorização.
Os demônios apertavam os braços e as pernas, deslizando as
línguas sujas em Benjamin, na pele ávida e lisa, enquanto Gadreel
fitava-o com erotismo, o que causou nojo em Heilel.
Seus olhos exibiam os seus intensos sentimentos, e eles pareciam
caleidoscópios moventes: ora vermelho, ora preto.
A cabeça de Lúcifer doía, e seu nariz começou a sangrar em
abundância. Seu corpo congelou ao ver Gadreel com uma pequena
adaga direcionada ao pescoço branquinho de Parker.
— Me ajude, me ajude... — a voz começou a ficar mais distante,
assim como a imagem se distorcia.
— Não, não, não! — Lúcifer apregoou desesperadamente, apoiando
as mãos sobre a cabeça. Pela primeira vez, em sua existência, sentiu-
se vulnerável.
Gadreel raspou o objeto laminado pelo pescoço do acobreado,
causando um pequeno corte que sangrava como uma gigantesca
ferida.
— LARGUE-O, SEU VERME! — berrou.
Seus fios estavam molhados de suor, seu corpo inteiro transpirava
inexplicavelmente, e o seu nariz já havia feito uma enorme poça de
sangue.
— Tente imaginar o que podemos fazer com essa preciosidade… —
proferiu baixo, mas, para Caleb, soou como um grito.
— Meus demônios não fariam isso. — Ergueu o queixo, tentando
elevar a voz.
— Isso foi o que Deus pensou quando você o traiu — refutou.
Deslizou, eroticamente, a adaga no abdômen de Benjamin,
arranhando-o, até retornar ao pescoço, pressionando o objeto contra a
jugular.
— Você tem apenas uma escolha, Lúcifer. Faça-a agora — ordenou
sorrindo.
— Eu volto para o Inferno.
Na faceta de Gadreel nunca houve uma expressão tão contente.
O Diabo apenas quer realizar o desejo dele. Ele foi homicida,
desde o princípio, e não se apegou à verdade, pois não há verdade
nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai
da mentira.
João 8:44
Ezequiel 28:18
Babe, saiba que eu gosto muito de você... Sempre estarei no seu coração e você
no meu. Por favor, cuide-se bem e lembre-se: Deus ainda o escuta, mas só o Diabo
te responde.
Trinta e seis dias: foi o tempo exato que Benjamin passou sem o
Diabo. Quem olhasse a sua faceta tristonha, exaurida, com olheiras
fortes e escuras, sua estrutura evidentemente mais magra, lábios
ressequidos e olhar pesarosamente angustiado, diria que ele estava
com demônios consumindo o seu corpo e vitalidade, contudo não,
aquilo somente era a falta de um único.
Por mais que fosse pouco tempo, quando comparado a grandes
partidas com voltas, não foi o que Caleb lhe prometeu. Ele esperava
que Heilel passasse três ou quatro dias fora, quem sabe uma semana,
porém não mais do que isso.
O ruivinho mantinha-se encolhido no acolchoado macio, entre as
grossas cobertas brancas. A janela estava trancada, deixando que o
quarto ficasse um pouco mais escurecido, outorgando-lhe um ar
melancólico.
Benjamin vestia o blazer preto do Diabo, a única coisa que ele havia
deixado para trás. Sentia o cheiro bom que aquela peça caríssima
exalava e a quentura que causava em seu íntimo. Era o jeito de matar
a saudade, antes que ela o matasse. Definitivamente, Parker sentia-se
deprimido, sua ansiedade batia frequentemente, junto ao anseio de
chorar sem parar, que lhe causava um nó cruel na garganta.
Não era somente a falta sentimental, ardente e desgraçada,
entretanto não negaria que os abraços, carinhos, selares e beijos
calorosos — que sempre soavam apaixonados — faziam um enorme
buraco no coração.
Mas a sua carne também sofria, queria o encontro dos toques que
perpetravam seu corpo fervente de prazer, almejava o sexo.
Perdeu as contas de quantas vezes se tocou, pecaminosamente,
vendo as fotos em seu celular, lembrando-se da última noite,
imaginando-os mais uma vez.
Seus sonhos eróticos não lhe davam paz: sentia Caleb tocar o seu
corpo, beijá-lo, via-o como um Deus superior, uma autoridade maligna;
ele o fodia tão ferozmente, apertava seu pescoço, e era tudo quente
como o Inferno. Acordava molhado, todas as noites, suando frio,
gritando e gemendo de prazer, sentindo sua corpulência inteiramente
frágil tremer. Mas aquilo foi mais frequente nas primeiras semanas,
logo depois, tornou-se ocasional, e foi aí que a saudade real corroeu
seu cerne, pois já não poderia tê-lo fisicamente e nem mentalmente.
Benjamin parecia desesperançoso quanto à volta de Lúcifer,
contudo a tristeza exacerbada era também da solidão. Ele não podia
sair do quarto para absolutamente nada. Sentia falta de ver o sol, já
que não podia abrir as janelas. Queria a sensação prazerosa da brisa
batendo em seu rosto, de cantar no coral, de ver seus colegas da
igreja, todavia não podia, encontrava-se estritamente proibido. Tudo o
que lhe sobrava era deitar-se, desenhar e ver as fotos de Caleb,
desejando, no íntimo, o seu retorno.
Ergueu-se desanimado, suspirando profundamente, pesado.
Sentou-se amuado, escorando as costas sobre a cabeceira enquanto
massageava o cenho, deixando que algumas lágrimas escorressem
sem seu próprio controle.
— Por favor, Calebie… Por favor, volte — pediu em um fio de voz,
fechando seus mirantes com força. Seu tom era tão amargurado que
sequer parecia o Benjamin de sempre. — Eu preciso de você, não me
deixe sozinho. — Cobriu o rosto com as mãos pequenas, voltando a
chorar em soluços. — Deus, se você me escuta, por favor, me tire
daqui... Eu não suporto mais — confessou, em mais um solilóquio
doloroso.
Aquela foi a primeira vez, em trinta e seis dias, que Benjamin iniciou
um novo monólogo com Deus.
— Eu estou cansado. — Era um choro verdadeiro, dava para sentir
todo o peso e angústia em suas palavras trêmulas.
A porta branca foi levemente aberta, permitindo que Benjamin visse
sua mãe que, rapidamente, adentrou o local e fechou a limiar com
cautela, quase em câmera lenta. Karen mal podia ver o alaranjado, os
únicos momentos em que encontrava oportunidade eram quando
Hector ia à igreja. Nesses instantes, ela tinha de duas a três horas para
conversar com ele, ensiná-lo, levar comida, bebida e o que mais fosse
necessário para o dia inteiro de Parker.
Seu coração bondoso apertou com a cena do seu filho tão abalado.
Sentia-se a pior mãe do mundo, principalmente por permitir que alguém
o tratasse como indigente, sem dignidade alguma. Eram maus tratos
diários, ameaças, e sequer podia andar por sua própria residência.
— Ele vai voltar, meu amor. Não fique assim… — ditou com a voz
suave, com o intuito de passar segurança.
— Eu sinto a falta dele, mamãe... Mas também estou cansado de
ficar preso — confessou, fazendo um bico com seus lábios carnudos.
Seu cenho franziu, tornando a expressão ainda mais tristonha.
Caleb assistia àquela cena com o íntimo amargo, mantendo a faceta
séria e limpa.
— Sei que sente. Eu também sinto por você estar aqui, sozinho.
Karen aproximou-se, sentando-se sobre o colchão e puxando-o para
um abraço apertado e acalentador.
— Eu preciso sair do quarto. Eu quero sair daqui, mãe — sussurrou
enquanto a apertava. Aquilo foi uma súplica.
—Perdão, Benjamin… Não posso permitir que saia. Não quero que
Hector o machuque, eu não suportaria vê-lo no mesmo estado de
antes. Caleb não está aqui para protegê-lo. — Fez um leve carinho nos
fios de cor laranja, tirando-os da testa alheia e pondo-os para trás.
— Eu quero cantar, ver a rua, andar de bicicleta, ir ao cinema, ter
essa coisa de “internet”, quero respirar lá fora. Só quero ser normal! —
admitiu, limpando seu choro.
— Tudo vai se resolver, meu amor… Acredite em mim. Hoje, tudo
entrará nos eixos — revelou, culpando-se intensamente por suas falhas
como mãe.
— Hoje? — Ergueu a sobrancelha, mantendo um ar confuso.
— Por favor, apenas me obedeça e fique quietinho no quarto, Ben
— pediu, usando um timbre sério. — Preste atenção no que vou falar,
certo? — indagou retoricamente.
Benjamin acenou positivamente, mantendo seus olhos vidrados em
Karen.
— Agora, pela manhã, vou à casa da sua tia, em outra cidade. Eu
realmente preciso confiar que você não sairá daqui, mesmo que o seu
pai não esteja em casa. — Segurou a palma pequena e angelical,
acariciando-a.
— Na casa da tia Rose? — a voz, mais recuperada, foi baixa, um
pouco nasal.
— Sim. Prometi para mim mesma que não contaria a ninguém, mas
sei que preciso confiar e alertar você. — Fitou-o severamente. —
Quero que você faça uma pequena mala, somente com seus pertences
mais importantes. Quando eu retornar, ligarei para você, então fique
sempre próximo ao celular e bem atento.
Todas aquelas informações deixaram Benjamin altamente caótico.
— Está prestando atenção, Benjamin? — inquiriu, cruzando os
braços, olhando-o.
Parker aquiesceu freneticamente, um tanto intimidado.
— Então, quando eu ligar é porque estarei em frente a esta casa.
Você desce o mais rápido possível e vamos embora. Iremos embora
deste Inferno, para sempre — enfatizou, sentindo alívio em suas
próprias palavras.
— O quê? — interrogou atônito. — Mas como vamos fugir? Não
temos dinheiro, não temos carro, absolutamente nada, mamãe. E se o
Caleb voltar, como ele vai me encontrar? — Eram tantos
questionamentos eufóricos e agoniados. Por mais que quisesse partir,
sentia-se bastante responsável e culpado por destruir o casamento de
seus pais, e pior por fazer a sua mãe optar pela miséria, apenas por
sua causa.
— Caleb deixou um carro e dinheiro para irmos, o suficiente para
você e eu vivermos muito bem, durante muitos anos e distante daqui.
Ele cedeu um apartamento em San Francisco, então não se preocupe
com sua volta, ele saberá onde nos encontrar. — Respirou
nervosamente. — Confie em mim, eu sei que seremos mais felizes lá.
Eu, você e Heilel.
Por segundos, as frases de sua mãe agitaram o seu íntimo tão
atrozmente que seu coração palpitava com violência. Caleb amava-o o
suficiente para salvá-lo de absolutamente tudo, mesmo não estando
presente. No fundo de seu âmago, sentiu-se triste, pois deixar o seu
pai era doloroso, todavia entendia a necessidade de viver sem ele.
Com os mirantes inseguros, periclitantes e cheios de uma felicidade
esquisita, sorriu, controlando todas as emoções existentes.
— E como o papai vai ficar? — a pergunta foi feita em um balbucio.
Não era como se Benjamin não entendesse que a causa de sua
fuga era Hector, seu próprio pai, porém sentiu-se sensível. Apesar de
tudo, ainda o amava.
— Hector ficará aqui, você sabe, filho… — Pigarreou desanimada.
— Será melhor para todos nós. Rose é advogada e, ainda hoje, ela
entrará em ação com o divórcio litigioso, por isso estou indo lá.
Karen tentava ser maleável com suas falas, e jamais negaria que
dar um adeus à sua vida soava doloroso. A sensação era de estar
largando uma parte de si. Abandonar o homem que, por tantos anos,
foi a sua companhia e o seu amor… Doía muito, contudo ela seria
forte, em nome de sua própria história, em nome de Benjamin.
Apocalipse 20:10
[1]
Pintor francês do século XIX, representante do Neoclassicismo.
[2]
Protagonista da animação “Monstros S.A” (Pixar Animation Studios e Walt
Disney Pictures, 2001).
[3]
“Museu Oculto”, museu de relíquias sobrenaturais e amaldiçoadas, recolhidas
pelo famoso casal paranormal Warren (Connecticut, EUA).
[4] Livro: O amor é um cão dos diabos (2007, pág. 171) Poema: Castanho-claro.
Charles Bukowski.