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Copyright © 2021 por Debora M.

Braur
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.02.1998. É proibida a reprodução total
ou parcial sem a expressa anuência da editora. Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa.

CRÉDITO S

Edição de texto Ana Mendes @arquelanalivros


Projeto Gráfico Matheus Costa @mcosta.dg
Ilustração Capa Klayanne Ribeiro Santos @cosmikla
Apoio @amplifik

DADO S INTERNACIO NAIS DE CATALO GAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


(CÂMARA B RASILEIRA DO LIVRO , SP, B RASIL)
M ARIA ALICE FERREIRA - B IBLIO TECÁRIA - CRB-8/7964

BRAUR, Debora M.
Vermelho intenso / Debora M. Braur. — São Paulo (Crônicas de sangue e
magia; v. 1) 2021.
ePub

978-65-00-32763-2

1. Ficção - Literatura infantojuvenil 2. Vampiros - Literatura infantojuvenil I.


Título II. Série.
21-82416
CDD-028.5

Tel.: (+55 11) 98309-6886 | @amplifik


Sumário
PLAYLIST
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO QUATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E DOIS
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
CAPÍTULO VINTE E SEIS
CAPÍTULO VINTE E SETE
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
Eu até queria dedicar esse livro para minhas avós, mulheres tão
inspiradoras... mas tem muita pornografia e palavrão pra isso.
Teu Olhar – Banda Fly
Little Monster – Royal Blood
I’m Yours – Alessia Cara
I’ll be good – Jaymes
Mais Uma Vez – Renato Russo
Shooting Star – Owl City
South – Sleeping At Last
I’ll Find You – Lecrae feat Tori Kelly
Pais e Filhos – Legião Urbana
Titanium – Kait Weston (Sia cover)
Suffer – Charlie Puth
How Did You Know – On The Outside
Control – Halsey
The Lonely – Christina Perri
Frequência – U-clã feat. Kamaitachi, Sos & Duzz
Fire Meet Gasoline – Sia
The Scientist – Coldplay
Prisioner – Raphael Lake, Aaron Levy & Daniel Ryan
I’m Still Standing – Taron Egerton (Maravilhoso, ô, quer dizer, Elton John)
Losin Control – Russ
I’ll Stay – Isabela Merced
Monsters – Tommee Profitt feat. XEAH
Quem de nós dois – Ana Carolina
Learn to lose – Bakermat feat. Alex Clare
Here I am – Tomee Profitt feat. Brooke
Cycle – Lubalin
Can’t stop the feeling – Justin Timberlake
Floating through space – Sia feat. David Guetta
Changes – Hayd
To Lie Alone – Mavica
Poema – Ney Matogrosso
See me fight – Two Steps from Hell feat. Linea Adams
Day 1: Low Mist – Ludovico Einaudi
Divenire – Ludovico Einaudi
Há Tempos – Legião Urbana
Mansion – Fleurie feat. NF
The wind that shakes the barley – Solas
Follow You – Imagine Dragons
“Rir é um ato de resistência”
– PAULO GUSTAVO
V
ocê teria continuado se soubesse o que o futuro lhe reservava?
Quem seria o verdadeiro vilão?
N
ão é engraçado como o medo e o amor, embora pareçam tão
distintos, estão profundamente interligados? Ambos ativam o sistema
nervoso simpático, em outras palavras, nos dizem se devemos lutar
ou fugir.
Para mim, a principal diferença entre os dois é que viver com medo é uma
bela merda.
Humm, que carne boa. Pena que o churrasqueiro me defumou junto,
penso ao puxar com os dentes um pedaço de carne bem salgada do espeto.
Ando pela calçada de concreto degastado, poeirento, com algumas pedras
portuguesas faltando, meio imersa em pensamentos e meio atenta ao meu
redor. Atenta às olhadas de cima a baixo, a uma buzinada aqui e a um
assobio ali. Não viro a cabeça, não sorrio, apenas continuo a caminhar com
o queixo erguido, fingindo que não notei.
O vento quente que lambe meus ombros e braços desnudos não muda nada.
As estrelas sarapintam o véu azul escuro lá em cima como incontáveis
diamantes, servindo mais de testemunhas do que companheiras. Mas mesmo
se o sol resplandecesse em todo seu ardor cróceo no lugar do nosso grande
satélite natural e a magnífica abóboda celeste fosse de água-marinha, o peso
do medo não desapareceria.
As pessoas muitas vezes confundem os dois sentimentos, pois os inserem
em caixinhas onde eles não cabem. A humanidade e sua péssima mania de
querer rotular tudo. Esquecem que nós andamos sob o mesmo maldito céu.
Quem vê uma superfície bonita não pensa na podridão que pode haver por
baixo; quem vê um sorriso espontâneo não pensa que por trás dele possa
haver tanto sofrimento. Só porque eu uso um laçarote cor-de-rosa para
prender o cabelo, não quer dizer que eu não ouça Sepultura.
Não que eu use um laçarote cor-de-rosa.
Own! Olha que filhote de gato fofo. O pequeno felino malhado se espreme
por uma fresta no canto de um portão preto enferrujado à minha direita. Paro
de andar e passo o espetinho de churrasco para a mão que carrega a sacola
plástica com outros dois deles envoltos em papel alumínio. Me abaixo de
cócoras, esticando os dedos para acariciar o bichano. Oi, gatinho. Ele logo
se eriça todo e tenta me arranhar com suas garrinhas. Ai! Calma, gatinho!
Recuo a mão e volto a ficar de pé. Ok, entendi o recado, nada de carinho.
Em resumo: não deves julgar a obra por teu invólucro. Alice, capítulo 2,
versículo 10.
Após caminhar por duas quadras e meia, chego à curta grade de ferro
branca, um tanto descascada e com lanças afiadas apontadas para cima, que
introduz a varanda de casa. Abro o portão baixo para dentro, ouvindo-o
reclamar. Ao fechá-lo, tranco-o com a chave e atravesso o ambiente
preenchido por vasos de plantas, contrastando com o piso gasto cor
terracota. Meu Jesus, isso está quase uma floresta.
Empurro a porta larga de madeira para o interior, adentrando na ampla sala
de estar, e fecho-a com o pé enquanto engulo o que estava na minha boca.
— Aqui está seu pedido, Rainha do Nilo. — Caminho por trás do encosto
do sofá retangular de veludo marrom, fuçando na sacola, e me dobro ao
estender teatralmente um espetinho de churrasco enrolado no papel laminado
por cima da cabeleira castanha de minha mãe, sentada muito
confortavelmente diante da TV.
— Com farofa? — ela pergunta ao pegá-lo, sem desviar a atenção do
programa.
— Atolado na farofa.
— Obrigada, filha. — Olha só que milagre. Um agradecimento nada
forçado e de coração.
Ao lado dela está Gabriel, vulgo meu pai, com sua calvície alaranjada,
então repito o gesto lhe entregando o outro espeto.
— E pra você, Oh, Grande Guerreiro. — Ele pega o churrasco com a mão
oposta, a que não segura o controle remoto.
— Muito obrigado, querida. — Meu pai torce o rosto e eu me encurvo
ainda mais para receber seu beijo na bochecha.
— De nadinha! — falo assim que ajeito a postura e vou em direção ao
curto corredor, de onde desemboca uma escada na parede esquerda.
Mas, em vez de subi-la de imediato, me estico para pendurar a sacola
vazia na maçaneta da porta da cozinha à direita. Pulo alguns degraus,
tomando cuidado com a virada, e chego ao corredor do segundo andar. Com
certo esforço, retiro o pedaço de carne remanescente do palito, fazendo-a
deslizar na madeira fina. Só eu que me lambuzo toda com espetinho de
churrasco?
Assim que eu passo pela soleira da porta, cruzo o quarto até a escrivaninha
logo em frente. Aciono o pedal que levanta a tampa da lixeira e lanço o
palito dentro dela. Aproveito para desbloquear a tela do meu celular que
repousa sobre o vidro da escrivaninha e ponho uma música para tocar. A
batida de 3 Sum logo me envolve e me balanço conforme desato o fecho do
sutiã de tule e renda preta por dentro da blusa longa estonada, de tecido leve
e manga cavada. É um crime essa música ter somente um minuto e cinquenta
segundos. Tiro o short jeans, deixando-o sobre o assento da cadeira, e fico
com o de lycra que eu vestia estrategicamente por baixo.
Suspendo o cabelo avermelhado num rabo de cavalo à medida que
caminho para o banheiro ao lado da estante abarrotada de livros. Uso o
elástico, que já virou uma extensão do meu corpo de tanto que vive no meu
pulso, e termino de prendê-lo de uma maneira desleixada bem a tempo de me
debruçar no mármore da pia. O contato gélido da pedra com as palmas das
minhas mãos envia uma calmaria quase dolorosa pelos meus braços.
Inspiro fundo pela boca e libero o ar devagar para enfim levantar o rosto.
Encaro meu reflexo pela milésima vez no dia. A combinação dos meus olhos
de malaquitas, pele clara sutilmente salpicada de sardas, madeixas ruivas um
tanto ralas, nariz pequeno e lábios medianos, para muitos é uma visão
atraente. Mas eu só consigo enxergar as olheiras, os lábios rachados e as
maçãs pálidas na bochecha de uma pessoa cansada e patética.
Vamos lá. Sorrio, sem mostrar os dentes, e a expressão alegre – ainda que
forçada – no reflexo se mescla com o ritmo do final de Dynamite do BTS.
Me afasto da bancada com um impulso e começo a me remexer.
— ‘Cause, ah-ah, I’m in the stars tonight!
Se teve algo que mudou minha forma de ver o mundo durante minha estadia
no hospital, foi a musicoterapia. Não, desculpe, não foi minha forma de ver o
mundo que mudou, mas a forma como eu me conecto a ele.
Abaixo o pescoço e giro o rabo de cavalo como hélices de um helicóptero.
Levanto a cabeça rindo de mim mes... Eita, rápido demais, fiquei tonta.
Cambaleio para trás e estico a mão para segurar a borda da pia...
— Au! — Minha mão passa direto e meu dedo rela na aresta da maçaneta
do armário logo abaixo.
Levo a ponta do dedo indicador à boca e de imediato sinto o gosto
ferruginoso de sangue.
Será que se eu passar pasta de dente ajuda?, penso com os olhos
semicerrados na direção do tubo de creme dental, fincado no suporte ao lado
da torneira. Suspendo-o e o analiso de perto. Nããão. Pego a escova de dente
no mesmo suporte e cantarolo o início de So What com a Pink enquanto a
preparo.
Eu sempre amei música, mas agora parece que meus tímpanos captam cada
mínima frequência dos sons, das teclas do piano, das cordas do violino ou
até mesmo das batidas pulsantes das músicas eletrônicas, e juntas elas
passam pela minha pele, correm pelas minhas veias, estimulando uma
explosão dentro de mim. Por vezes é uma supernova, outras é um buraco
negro. Música e dança para mim são como a lua e as estrelas. É meu
combustível.
O que é irônico, porque eu sempre preferi estudar a vastidão atrás delas a
suas luzes. Tinha dias que eu e Bianca fugíamos de nossos quartos só para
deitar no gramado da frente e ficar olhando o céu de sodalita. Ela me
contava sobre as constelações e eu a contava sobre o que poderia estar além
delas. Mas isso foi antes.
Quando chega o refrão da música, eu já estou com a escova dentro da boca
e pulando no ritmo da harmonia. Tiro a escova e faço uma careta para o
espelho, encenando a letra da canção. Jogo a cabeça para trás e solto uma
gargalhada com a feição que surgiu no refle... Ai, me engasguei com a
espuma! Recomeço a escovação sacudindo a cabeça, os joelhos e logo deixo
a escova pendurada entre os dentes para imitar uma guitarra no ar.
Me curvo para frente e cuspo a água na pia. Levanto a cabeça, secando a
boca com o punho e miro o espelho uma última vez. Sugo o ar pelo nariz e
estico os lábios num sorriso menos forçado.
— Mais um dia.
Então expiro pela boca e já me sinto um pouco melhor.
Saio do banheiro, dando as costas para a porta estreita e a deslizando até
que fechasse por completo. Quando viro meu rosto, minha visão esbarra na
imagem do quarto vazio, silencioso e desalumiado do meu irmão mais velho.
Eu posso identificar um túnel desbotado começar a se moldar em mim,
retirando a vivacidade que eu acabara de adquirir. Porém, há ainda uma
tênue faixa de luz remanescente; inatingível.
Meu Deus, do jeito que falo parece até que o garoto morreu. Bem, talvez
tenha, só sei dele através das redes sociais mesmo.
Pensando bem, se ele tivesse morrido, nós saberíamos. Notícia triste chega
rápido.
Quando Igor se mudou, tudo começou a desandar. Toda a desgraça pareceu
acontecer ao mesmo tempo. Faz quanto tempo? Dois, três anos?
Eu sei que ele está bem, morando com a namorada, e isso me deixa
contente, mas às vezes bate saudade. Isolada em casa, mesmo com a
diferença de idade e as brincadeiras implicantes, Igor se tornara meu melhor
amigo. Foi ele quem me introduziu ao mágico mundo dos jogos de primeira
pessoa. Havia noites que assistíamos animes na sala e eu pegava no sono
com a cabeça em seu colo. Era ele quem me encorajava a ultrapassar meus
limites, era ele quem segurava minha mão quando eu tinha pesadelos.
Desencaminho o olhar e miro o quadro magnético totalmente vazio senão
pelo pedaço de papel que tem escrito “Razões para acreditar” preso por
imãs do outro lado do quarto, acima da escrivaninha. Respiro fundo e cruzo
o quarto a passos largos até a janela entre a cabeceira da cama e o armário,
obrigando o túnel a retroceder. Embora eu saiba que ele sempre estará lá no
fundo, pronto para me engolir. Ao destrancar e fazer o vidro correr para o
lado, uma lufada de ar quente me atinge. Não é surpresa estar calor no Rio
de Janeiro, mas hoje parece que o diabo fez sua entrada triunfal! Suei que
nem uma porca na Educação Física.
Porcos suam?

Depois de ficar um tempo saboreando a brisa bater no meu rosto e quase


adormecer com a bochecha apoiada no parapeito enquanto tentava canalizar
pensamentos positivos, apaguei a luz, desliguei o som do celular, pluguei-o
no carregador e subi na cama para enfim dormir. “Dormir”, né, porque não é
como se essa mera janela aberta junto ao ventilador adiantasse. Maldito
acontecimento divino que fez meu ar-condicionado quebrar em pleno verão.
Não devia ser mais de dez horas da noite, porém eu tenho tentado dormir
cedo. Assim dá tempo para os pensamentos incessantes se cansarem.
Pff! Até parece que funciona.
Passo alguns minutos rolando na cama, tentando quinhentas posições
diferentes, quando finalmente Morfeu vem me tomar em seus braços e...
— Fată ciudată.
A única parte de mim que se move são meus olhos, que se abrem num
rompante. Demora alguns instantes para minha visão se acostumar com a
pouca claridade.
Eu ouvi mesmo isso? Espero alguns segundos e volto a unir as pálpebras.
Não, é coisa da minha cabeça, é coisa da minha cabeça, é só eu ignorar
que some… AH! Paro de respirar novamente, o coração a mais de cem por
hora. Porque, o que quer que esteja no meu quarto, não é uma alucinação e
acabou de usar as pontas dos dedos para retirar alguns fios de cabelo que
caíram no meu rosto.
Pode deixar os fios na cara, moço, não se preocupe não. Só se afasta de
mim, por favor! Batalho para não me encolher.
— Você sabe que eu sei que está acordada, não é?
Estremeço.
A voz é grave, baixa e se arrasta nas consoantes de uma forma diferente.
Definitivamente não é alucinação.
Engulo em seco, sentindo meu coração martelar no peito que nem um
maldito pedreiro. Eu vou ter um treco, certeza.
Devo fugir? Continuar imóvel? Quais são as chances de eu sair dessa
viva? Mas, e se... Rumino a possibilidade de ser algo sobrenatural, o que me
seduz e me amedronta ao mesmo tempo.
Desde que eu me entendo por gente – o que, para ser mais exata, deve ter
sido por volta dos sete anos –, enquanto meus primos e as crianças ao meu
redor faziam caretas ou gritavam ao assistir filmes como Coraline ou A
Noiva Cadáver, eu sentava na frente da televisão, na sala apertada da minha
avó, e absorvia as cenas com fascínio. Provavelmente Igor tenha um dedo
nisso. Quem é que deixa uma criança de seis anos e meio assistir a Yu Yu
Hakusho?
Talvez pelo mesmo motivo eu amasse ir ao cinema. Nossa, que saudade da
sensação de estar imersa naquele universo transmitido na tela. Era como
sonhar de olhos abertos.
E se há outro sentimento que é a ruína da humanidade é a esperança.
Respiro fundo e aparto as pálpebras, encarando o canto da minha cama
grudada à parede para reunir a pouca bravura que me resta. Me amparo no
colchão, primeiro com os antebraços, depois com as mãos, me erguendo
para sentar na cama.
Não sei o que é pior: virar e não ver nada ou virar e ver um Chupa-cabra.
A curiosidade matou o gato, Alice, fica na sua, volta a dormir, caceta.
Minha visão se habitua aos poucos com a meia-luz e então eu torço o rosto
para o meu guarda-roup... Ai. Meu. Deus.
Expiro devagar pelo nariz, tentando me manter calma – em vão,
obviamente –, ao passo em que distingo a fisionomia de um homem
encostado no armário. Os braços firmes cruzados na altura do peito e uma
das pernas longas apoiadas na porta, os olhos resolutos de magnetita
cravados em mim.
O estranho é alto... Quer dizer, qualquer um é alto para mim em
comparação aos meus míseros um metro e cinquenta e cinco, mas sua
estatura se encaixa perfeitamente com o porte abrangente, ajustado em uma
camiseta escura, com as mangas encolhidas até os cotovelos, o que exibe seu
antebraço definido. Engulo em seco outra vez.
Seus cabelos negros repicados se mesclam à penumbra do quarto e deixam
ainda mais evidente a pele pálida em contraste. As sombras parecem
acomodá-lo, mas seus olhos…
Um pequeno sorriso íngreme rompe seus lábios bem delineados,
combinando com seu rosto quadrangular. Que delícia de maxilar.
Por que eu estou tarando o cara que invadiu meu quarto?!
— Oi. — Ai, Jesus, ele percebeu que eu estou olhando!
Óbvio, é difícil não reparar quando uma pessoa está na sua frente te
encarando, Alice! Devo estar vermelha, porque minhas bochechas estão
ardendo como se eu tivesse caído em um arbusto de urtiga. E um arbusto
grande.
— Assim você vai me deixar com mais sede do que já estou.
O jovem abre mais o sorriso ardiloso, mostrando seus caninos longos e
afiados demais para serem normais. Eu estava começando a cogitar a ideia
de ele ser um fantasma, mas agora, ou ele é um vampiro ou é um psicopata
bancando o vampiro. Ou um fantasma de um vampiro.
Sabe o pior? Perceber que isso não me deixou aterrorizada.
Um sorriso se expande nos meus lábios antes mesmo que eu possa reprimi-
lo. O sujeito vinca as sobrancelhas grossas, arqueando uma delas em
seguida.
Mordo o lábio e tiro a coberta de cima das minhas pernas, colocando-as
para fora da cama, pronta para ficar de pé se necessário. Os olhos do rapaz
descem devagar nelas e pressiono os lábios unidos, sentindo meus
zigomáticos doerem ao abaixar minha cabeça e a vergar de lado.
Um ser sobrenatural está olhando minhas pernas! Espera, isso pode ser
ruim. Oh, meu Odin, não consigo ficar preocupada! Tem um provável
vampiro no meu quarto! Olhando minhas pernas!
Limpo a garganta.
— Você... me entende, certo? — indago, mordendo o lábio inferior.
Ai, Senhor, estou falando com um vampiro! Ou fantasma-vampiro.
Melhor dia da minha vida! Bem, muito provavelmente também será o
último, mas com certeza é o melhor! Eu vou chorar!
— Da. Digo, sim. — Ele repuxa um dos lados dos lábios para cima contra
aquelas maçãs um tanto proeminentes, o que faz meu corpo vibrar.
— Você... — engulo em seco — você é um vampiro, não é?
Espero a resposta e observo, então suas íris esplenderem sob as
sobrancelhas negras e as pontas do cabelo caírem sobre elas.
Chorar? Eu vou ter um AVC!
— Da.
O que... Ah é, significa “sim”. Eu enrugo um pouco a testa.
— Você não é daqui, é? — Por que não consigo formular uma pergunta
decente que seja?!
Ai, meu Rá! Por pouco não pulo de susto quando o sujeito se desencosta do
armário e anda na minha direção. Seus ombros largos se movem como os de
um leopardo, e seus olhos afiados permanecem cravados nos meus, saindo
da escuridão como se ela fosse sua mera serva.
— Nu. — Provavelmente isso é um não. Ou ele quer meu corpo. Vai com
calma aí, jovem.
— Er... E de onde você é?
— Romênia. Vem cá. — Opa, opa, perto demais! Ele se dobra para frente,
apoiando as mãos nos próprios joelhos. De repente seu rosto está a
centímetros do meu. Os olhos cinza, estreitados, me forçam a retroceder.
Não cora, Alice, nã... Espera, cinza? Olhos cinza? Isso existe?! — Você
não está com medo de mim?
Eu com certeza enrubesci, pois além de notar o lento passar da língua dele
em seu lábio superior, vejo suas íris como duas luas cheias em seu perigeu
se transformarem em duas luas de sangue. Elas passam para amarelo, logo
tomam um tom alaranjado, então se concentram na cor escarlate. Eu não sei o
que me deixou mais sem palavras.
Pisco para sair do transe e pigarreio.
— Medo? — Batalho para não gaguejar. — Não.
— Nu? — O rapaz ajeita a postura. — Fată ciudată.
— O que é isso? Que você falou. — Inclino sutilmente a cabeça.
— Fată ciudată? — Ele descansa as mãos nos bolsos. — Garota estranha.
— Ah. — Levo instantes para processar a informação, e, por fim, dou de
ombros. Não é a primeira vez que me chamam disso.
— Você não se importa? — Ele arqueia uma sobrancelha grossa.
— Como já dizia as Bratz: — empino o nariz — “Quem liga se falam mal
de mim, desde que escrevam meu nome certo”.
Ambos rimos contidamente. Ou pelo menos eu contive minha risada, antes
que ela se transformasse num som de cabrito asmático e o fizesse fugir de
mim.
Devagar, o vampiro se move, retirando as mãos do bolso com casualidade,
e senta ao meu lado. Ganesha do céu, tem um vampiro sentado ao meu lado.
Garoto, você não sabe a força que eu estou fazendo para não te abraçar.
Suas íris já não estão mais vermelhas e, reparando bem, eu não lhe daria
mais de vinte e três anos. Vinte e dois? Não sei, no escuro é difícil dizer.
— Parece idiota, mas... — volto a falar, um pouco mais centrada. — O que
exatamente você pretende entrando aqui?
— Ah, não sei. Pegar um livro emprestado, talvez. — Ele logo abaixa o
queixo para mim. — Senti cheiro de sangue.
— Aaah. Faz sentido.
Nossa, que olfato potente, hein. Abaixo o olhar e analiso minha mão,
girando-a. O corte ainda está visível e arde um pouco, mas nada que precise
amputar. Eu acho. A mão do sujeito invade meu campo de visão e toma a
minha delicadamente.
Não consigo deixar de hastear os supercílios conforme acompanho o
trajeto que ambas fazem. Sua temperatura é oscilante, nem fria e nem quente.
O vampiro não desvia os orbes cinéreos de mim enquanto suspende minha
mão até a sua boca, onde a sensação velosa da língua dele roça ao redor da
ponta do meu dedo.
Ele retira meu dedo da boca, fazendo questão de envolver toda a
circunferência com os lábios macios e sugá-lo lentamente. Minha Santa
Britney Spears.
— Por que você estava dormindo com a cabeça embaixo do travesseiro?
— o homem questiona daquele modo frisado, principalmente no “s” e “r”,
enquanto me solta.
Como essa criatura saída de um catálogo de moda vampírica espera que eu
responda a uma pergunta assim logo depois de uma das cenas mais sensuais
que já me aconteceram? Não que tenham me acontecido muitas cenas
sensuais. Pisco algumas vezes e inspiro fundo, recuperando o foco.
— Porque... bem, porque eu quis. Espera — guino a cabeça franzindo o
cenho —, por isso me achou estranha? Sério?
— Não só isso. — Ele cruza os braços. — Você estava dançando e rindo
sozinha. E não está com medo de um cara que invadiu seu quarto à noite.
Meus olhos se arregalam e aos poucos minhas bochechas queimam.
— Você estava me espionando?!
— Eu diria estudando.
O que eu sou para ele? Uma nova espécie de pássaro?
Ah! Ele poderia responder todas as minhas perguntas e confirmar minhas
teorias!
O vampiro puxa o ar, expandindo o peitoral delicioso que deve portar por
debaixo da blusa – para de olhar, Alice! –, e entrelaça os dedos, estalando-
os.
— Deci, vamos ao que interessa.
O rapaz se aproxima, descaindo seu corpo para frente, mas eu o interrompo
erguendo uma mão.
— Espera. — Ele trava no lugar e arqueia uma sobrancelha. — Posso te
perguntar algumas coisas antes que você me mate ou faça sei lá o que
comigo?
O vampiro hesita por um instante, então estala a língua entre os dentes. Ele
tende para trás, usando seu braço de apoio com a mão espalmada no
colchão.
— Fale — diz ele. Dou um sorriso inseguro e encolho um pouco os
ombros.
— Bem, eu queria saber como é ser vampiro.
— Chato.
— Não, não assim! Como é de verdade. Todos os poderes, quais os tipos
de morte que... bem, matam vocês. — Eu meneio de forma vaga, um tanto
nervosa. — Como e onde vivem, reproduzem, dormem...
— Hei, vai com calma aí, Anne Rice. — Ele enruga de leve a testa.
— Desculpa. — Encolho os ombros de novo.
— Tudo bem. — O jovem toma fôlego. — Bine... Nós, vampirii,
costumamos sair à noite, mas isso não quer dizer que o sol nos mate. Em
temperaturas muito elevadas ficamos instáveis, porque nos superaquece. Isso
serve para o extremo frio, mas não é exatamente mortal. Talvez seja para
quem estiver por perto. Um deslize e... — Ele traça uma linha horizontal com
o dedão na altura do pescoço e emite um chiado. Engulo em seco mais uma
vez. — Por isso gostamos mais da noite, que é fresca, e do escuro, para fins
sanguinários. Água benta, inútil. Alho, nem pensar. Estacas realmente nos
matam. Como qualquer outra coisa que atravesse um corpo e deixe esvair
muito sangue. Claro que temos mais resistência que vocês, mas não é nada
que nos torne imortais.
— Intrigante. — Concordo com a cabeça, concentrada.
— O sangue nos dá uma espécie de energia diferente da que vocês estão
acostumados. — O vampiro abre um sorriso matreiro. — É como uma
vitamina de banana com vodca e um pingo de alguma coisa mais etérea.
Quanto mais absorvermos, mais força nós teremos.
— Entendi. — Eu deveria pegar um bloquinho?
O homem gesticula com descaso, como se estivesse cansado de falar sobre
isso.
— Nada de teletransporte, controle de mente, virar morcego... Ah! — Ele
me encara outra vez. — Somos muito competitivos. Nossa raça não se dá
muito bem uns com os outros. No máximo temos comparsas, aliados
temporários, mas nunca amigos. Não entre nós. E, provavelmente pelo
mesmo motivo, só alguns têm seus parteneri. Geralmente são aqueles que
mais carregam consigo um resquício de humanidade. Assim, eles podem
sentir o Nödi: um vínculo de lealdade e contraparte que os atraem como um
imã.
— Então como vocês têm filhos? Ou vocês não têm? — Ajeito a perna,
puxando-a para flexionar uma sobre a outra na cama.
Ponho uma mecha de cabelo atrás da orelha e... Meu Barong, agora que me
lembrei como deve estar essa juba! Começo a deslizar o elástico pelo
cabelo completamente desalinhado.
— Como qualquer um? — o vampiro indaga retoricamente e me faço de
cética.
— Perdão se eu pensei que pessoas mortas não pudessem ter filhos. —
Passo os dedos por entre as mechas, desembaraçando-as.
— Só porque temos que repor o sangue quer dizer que estamos mortos? —
Oi?!
— Mas... Como assim? O coração não bate, não bombeia o sangue...
— Isso é minciună — diz ele, displicente.
— Mintchi-quem? Mentira? — Comprimo as sobrancelhas, conforme meus
dedos ocupam-se em desatar o nó.
— Todos os nossos órgãos funcionam normalmente. Bebemos sangue
porque precisamos ficar com mais...
— Espera, mas se precisam repor, como vocês acumulam sangue como
tinha dito antes?
Ele respira fundo.
— O sangue anterior que bebemos esfria com o tempo. Nosso corpo suga
toda a energia que ele pode oferecer muito ávida e rapidamente. Precisamos
de sangue quente para ir rodando as engrenagens.
Ele termina como se explicasse para um bebê.
— Ainda assim, pra mim, uma pessoa que bebe sangue — eu torço meu
cabelo para deixá-lo de lado sobre o ombro —, é pálida e continua de pé
está morta.
Sua feição paira entre algo como entediada e irritada ao escorar o queixo
na mão e o cotovelo no joelho.
— Aí você já está confundindo com zumbis.
— Mas zumbis não bebem sangue! Eles comem... — Arregalo a vista e me
inclino para frente. — Espera, zumbis existem?
Ele apenas me encara.
— Não. Enfim... — Observo seu tronco largo expandir-se ao inspirar
fundo e passar a mão pelo cabelo. — Podemos ter filhos, só que é mais
difícil.
— Por causa da variação de temperatura?
Ele assente e ergue uma sobrancelha. Queria saber fazer isso.
— Mais alguma pergunta?
— Hum... — Olho para cima por um instante, mas logo volto a fitá-lo. —
Que eu me lembre não. — Entorto um pouco a cabeça. — Você ainda está
com sede?
Ele passa a língua pelo lábio superior e lentamente abre um sorriso
mordaz.
— Da.
Assisto suas íris se tornarem citrinos, logo duas cornalinas e depois um par
de rubis vibrantes. Então, respiro fundo e bato em minhas pernas.
— Tudo bem. — Vejo o sorriso desaparecer de seu rosto, instantes antes
de eu lhe dar as costas. Puxo meu cabelo para frente, expondo o lado
esquerdo do meu pescoço.
Remexo em minhas madeixas com movimentos inquietos. Ele vai mesmo
me morder, né? Quer dizer, pescoço + vampiro = mordida.
Por que meu coração decidiu bater tão forte? Ah é, deve ser porque eu
dei as costas para um vampiro sedento por sangue!
— Se-se puder não me matar ainda, sabe... eu... eu meio que gostaria de te
ver outra vez. Nesse plano. — Afinal, a ideia de ter um amigo vampiro não é
tão ruim, é?
Talvez seja um pouco.
Posso sentir a mudança de peso na cama às minhas costas e, logo depois,
um calor ameno me encobre. Aperto os olhos e as mãos ao redor do meu
cabelo, minha estrutura tesa. Não enxergo sua reação, mas o leve toque de
seus dedos na pele do meu braço e seu hálito acariciando a minha nuca me
arrepiam inteira.
— Fată ciudată.
Seu tom sai cavernoso, quase como um eco profundo.
Eu quero que ele me morda, no entanto... AI, CACETE!
Doeu, e doeu para um cacete, no momento em que as presas dele
perfuraram minha carne como duas agulhas de mais ou menos sete malditos
milímetros de espessura. Se você acha que uma agulha normal incomoda,
pense de novo. Recuei por reflexo, mas conforme ele suga, parece que me
seda, me entorpece.
Logo seus dentes saem do meu pescoço e uno as pestanas ao sentir o lento
passar da sua língua molhada onde eles estavam antes.
O vampiro transfere a mão que estava no meu bíceps esquerdo para o
antebraço e a outra engancha pela frente em minha cintura. Ele me suspende
com uma facilidade invejável e me coloca sentada em suas pernas. Minha
cabeça pende em seu ombro, deixando meu nariz próximo ao seu pescoço,
meu corpo sem forças. Humm, cheirinho bom. Ele emana uma essência
adocicada, mas forte. Lembra florestas e também concreto.
— A propósito, meu nome é Zaph. — Seu sussurro se assemelha a um
trovão distante.
— Zaph? Nome legal. O meu é Alice. — E, pelo visto, a minha voz
também. Mas a minha está mais para uma capivara distante.
— Foi bom te morder, Alice.
U
m corredor umbroso, afunilado e interminável se estende diante de
mim. Há somente paredes cor de romã e incontáveis portas de
madeira escura. Gritos, choros e lamúrias de puro desespero ecoam
delas. São vozes de homens, mulheres, idosos, crianças... Tenho a sensação
de que a qualquer momento agarrarão meus braços e me jogarão para dentro
de um desses quartos.
Eu o percorro devagar, mas nada parece mudar, somente se alongar,
alongar e alongar. Pouco a pouco, no que seria o final do corredor, uma
silhueta preta e enodoada se molda em uma forma humana.
— Ei! — chamo, parando de andar. — Você po...
O homem torna o rosto em minha direção, porém sua imagem está borrada.
Vejo o movimentar de sua boca, mas nada chega até mim.
— Não estou escutando! Fale mais alto!
Um chiado ao longe começa a soar em meus ouvidos.
— Mentirosa.
Finalmente uma voz soa e embora ela se pareça com a dele, está tão perto
que sei não lhe pertencer. O chiado agora é ensurdecedor e se mistura aos
gritos e prantos.
— Filha, vai se atrasar. — A voz se torna feminina.
O ruído se transforma aos poucos em algo agudo e ritmado. Então, várias
vozes bramem em uníssono, saindo da boca retorcida em fúria do homem:
— Acorda!
Separo os cílios de súbito, a respiração pesada, a ciência da realidade me
atingindo como um banho de água fétida. Tomo meu tempo, enquanto meu
peito sobe e desce. Uno as pálpebras novamente. Foi só mais um pesadelo.
— Anda, levanta! — Escuto a voz da minha mãe ao longe. Mais tangível.
— Vai se atrasar!
— Já vou.
Relaxo a musculatura no colchão, tomando coragem para ficar de pé e
encarar mais um dia. Olho para o teto de gesso, minhas lembranças
enevoadas, meus olhos pesados e minha nuca suando que nem o catiço.
Talvez só um cochilinho de nada, só mais um pouco. Eu me arrumo rápido...
— ALICE!
AI, JESUS! Reabro os olhos abruptamente.
— Tô acordada, tô acordada!
Quando entro na sala de aula, ainda lânguida pelo sono e pela escadaria
que tive de enfrentar sozinha até o terceiro andar, o foco de Melissa se
desvia para mim e logo depois Julia torce o corpo em minha direção.
Assim que atravesso a frente da sala, sento-me na cadeira e penduro as
alças da mochila no encosto da carteira de Ju. Mel se vira para mim, do seu
lugar na esquerda, debruçando-se na mesa lateral com os olhos azuis
enquadrados por cachos pretos grossos e um sorriso meigo. Julia gira no
assento e apoia o antebraço no espaldar retangular, dando um “E aí, gata?”.
Eu queria ter retribuído no mesmo nível de entusiasmo, mas tudo o que
consegui lhe dar foi um pequeno sorriso.
Eu conheci Melissa um dia antes de ingressar no Ensino Médio. Estava
andando na rua, voltando da padaria, quando vi os sacos do mercado que
uma senhora carregava rasgarem e os produtos despencarem no chão.
Quando dei por mim, eu já estava ajoelhada ao seu lado para ajudá-la.
Aparentemente, Mel havia tido a mesma ideia. Ali começamos a conversar,
enquanto catávamos as compras da velhinha, e no dia posterior eu a vi na
mesma sala de aula que eu.
Eis que, minutos depois, chegou a esbelta Julia Alcântara de Albuquerque
Albane, com seu estilo despojado, queixo moreno erguido, postura ereta, e
se sentou na minha frente. Como a cadeira dela estava com um leve defeito,
deixando a mesa inclinada, o lápis dela rolava e sempre, sempre, caía no
chão. Já que Melissa estava impossibilitada de pegá-lo por conta do apoio
de braço que a embarreirava, era eu quem abaixava para colher o objeto. E
foi com Julia surtando de frustração e fazendo piadinhas sobre o lápis que
nos tornamos a força da natureza que somos hoje.
No mês seguinte ao “incidente”, quando Ju e Mel passaram a me visitar
para ajudar a superar o impacto, elas me disseram que ambas repetiram o
ano de propósito. Elas reforçaram que não me abandonariam. Isso me deixou
extremamente feliz, mas ao mesmo tempo triste.
Ao assisti-las conversando agora sobre a pesquisa que a professora
passou, eu me pergunto se não sou um estorvo, um fardo. Só espero ser uma
amiga tão boa quanto elas são para mim.
Me sacudo para espantar o pensamento. Acorda, Alice! Somos as Meninas
Super Poderosas e fim. As Super Gatinhas e a caralhada de anime com
garotas mágicas que tiver.
— O que foi, amiga?
A voz de Ju me desperta dos meus devaneios. Encaro seus olhos cor de
mogno.
— Hã? Nada importante. Só...
— Só...? — Ela se inclina, sugestivamente. Mirar os olhos de Julia é como
espiar um prisma que esconde os espectros das cores. Você sabe que está lá,
só não consegue enxergar.
— Ela deve ter visto o último episódio de Lucifer e ficou arrasada —
brinca Mel, se intrometendo pelo lado esquerdo da conversa. Já os olhos
azuis límpidos de Mel transmitem a sensação pacata de admirar a gruta de
uma geleira.
Julia suspira teatralmente.
— Ela não veria o episódio antes da gente, né? — Ju se vira para mim,
com uma cara de cachorro abandonado na sarjeta. — Né?
— É. — Dou um sorriso desanimado. Nem sei em qual episódio parei.
— Então, é o seu ship que não aconteceu? — pergunta Mel, se apoiando na
mesa da carteira ao lado, com interesse.
— Ai, nossa, nem fala — Julia intercede. — Ainda tô frustradíssima com
Zutara. Ainda bem que fanfics existem.
— Não dá spoiler! — Melissa repreende Julia com a testa franzida.
— Você que é lerda! — Julia recosta na cadeira com cara de desgosto. —
Prefere ver Grey’s Anatomy a se deliciar com os caras de Kuroku no Basket!
Até eu faço uma careta de nojo.
Enquanto Melissa prefere filmes e séries, Julia prefere livros e animes.
Desde o primeiro ano do Ensino Médio estamos tentando fazer Melissa
assistir Avatar, A Lenda de Aang, mas faz mais de três anos que Mel
começou e ainda não acabou.
— Claro, porque os homens de Grey’s Anatomy são reais!
Ju engasga dramaticamente.
— Como você ousa?
Até que “Super Gatinhas” calha bem para nós. Modéstia à parte, sabe
aquele famoso trio popular inseparável que toda escola tem? Somos nós.
Ouvimos os nossos nomes pairando pelas rodas de conversas e não estamos
alheias aos olhares que nos enviam – alguns cheios de inveja, outros com
admiração exacerbada –, mas não nos importamos muito com eles. A única
coisa que tira a gente do sério é quando alguns garotos vêm de maldade,
achando que só porque eles são os fodões do grupinho deles têm o direito de
se aproveitarem da nossa “fama”.
Às vezes eu acho que os homens são mais medrosos do que as mulheres.
Eles parecem temer o julgamento do seu próprio sexo e acabam se
comportando como verdadeiros babacas num círculo vicioso de babaquice.
Se bem que algumas mulheres não são muito diferentes, não. Bando de
Maria vai com as outras.
Mas tudo bem, ainda somos muito novas, sem pressa, temos um mundo
inteiro de pessoas para conhecer e novas experiências para descobrir. Só
preciso continuar tentando. A vida é feita de altos, altos para cacete, e
baixos, baixos para caralho. E se não conhecer ninguém interessante, tudo
bem também, posso aprender a ser feliz comigo mesma.
Isso eu gostaria de ver, diz uma vozinha irritante no fundo da minha mente.
— Olha só — ameaço Mel, apontando o dedo em sua direção. — Você não
precisa esfregar isso na nossa cara. Já sofremos o suficiente.
Julia fecha os olhos e balança a cabeça negativamente.
— Eu só queria um Kagami na minha vida.
— Tá bom — Mel diz, voltando-se para mim outra vez. Ela inclina a
cabeça e ergue as sobrancelhas. — Mas se não é um crush inexistente, o que
é?
Dou de ombros.
— É que eu tive uma conversa muito interessante com um vampiro e
depois ele me mordeu. — O sorriso de Melissa se esvai vagarosamente. —
Só que hoje eu descobri que foi tudo um sonho. — Ressalto o lábio inferior
e as duas riem alto.
— Meninas! — A professora de Biologia ajeita os óculos grossos, quase
escondidos pela sua juba encaracolada cor de amêndoas. Sua feição brava
seria mais intimidante se ela não parecesse um leãozinho esquálido. — Eu
vou anotar vocês. Virem pra frente!
Com um último suspiro antes de voltar a olhar para frente, Julia diz
baixinho:
— Você ainda acredita que essas criaturas existem?
Emplumo o peito e preparo a enxurrada de argumentos que eu tenho
guardados na minha mente, só a espera de uma oportunidade para usar.
— O que garante que não existam? — Uso os dedos para contabilizar. —
Do oceano conhecemos menos de 10%, das florestas 36%. — Toco outro
dedo com o indicador e guino a cabeça. — Pode muito bem haver um véu
que divide esse mundo e o outro, e digo mais...
— Se disser mais alguma coisa, vai pra a coordenação, mocinha — a
professora me corta e eu paraliso. Abro um sorriso rígido.

Após três noites insones sem nenhum sinal de furo no dedo ou no pescoço,
eu já estou mais do que conformada de que tudo não passou de uma
alucinação.
E, como não adianta nada ficar só remoendo a frustração, está mais do que
na hora de pôr as coisas nos seus devidos lugares. Afinal, esse era o meu
objetivo inicial, e não vou deixar uma desilusão barata me atrapalhar.
— Ei — sussurro ao cutucar o lombo de Ju com a ponta da caneta. Ela
torna o perfil para mim pela direita. — Tá um calor do cacete, que tal irmos
à piscina?
Julia exibe seus dentes brilhantes. Menina, me indique seu dentista.
— Você leu minha mente. — Nós duas viramos ao mesmo tempo para
Melissa à nossa esquerda, que estava de cabeça baixa escrevendo no
caderno. — Ei, Mel.
Nossa amiga ergue o rosto na mesma hora. Ela pisca algumas vezes,
esperando.
— Partiu piscina? — Ju pergunta, sorrindo.
— Depois da escola — complemento.
Mel olha de mim para Julia, de Julia para mim... Então estreita os olhos.
— Vocês duas parecem estar armando algo.
Prendo um riso e Julia suga o ar, pondo a mão no peito.
— Você está duvidando de nossas boas intenções? — ela indaga.
— Oh! — Faço uma expressão de lamento exagerado e olho para o alto.
Levo um dedo ao olho, como se estivesse enxugando uma lágrima. — Sinto-
me ultrajada.
— Vocês deveriam fazer artes cênicas — Mel diz, com cara de tédio.
— Que nada, eu vou virar stripper — Ju brinca, já em seu tom usual. Ao
menos acho que é brincadeira.
— E eu vou vender minhas artes na praia.
Julia se vira para mim com os supercílios enrugados e uma expressão
cínica.
— Como, se você detesta praia?
Olho para o chão, contemplativa.
— Ah é, tinha esquecido. — Só a imagem da areia e do mar manda um
arrepio pela minha coluna. Urgh! Ouço a risada suave das duas e levanto o
rosto para fitar Melissa. — Vamos, Mel, vai ser divertido! — Exibo uma
face de dor e sofrimento, como se eu estivesse tentando fazer o cocô sair.
Julia semicerra os olhos e verga-se para o lado com um sorriso maldoso.
— E vai ter caras gatos sem camisa. — Ela movimenta as sobrancelhas.
— É o nosso último ano juntas antes da faculdade. — Faço biquinho.
Só de pensar nisso meu estômago rodopia. Eu não faço a mínima ideia de
que área seguir. Mel alterna seu foco de mim para Ju e para mim outra vez.
Por fim, suspira e abaixa a cabeça.
— Ok, eu vou.
Melissa iça o queixo rapidamente e eu logo ajeito a postura, animada.
— Mas não é pelos garotos — ela se corrige.
— Aham. Sei. — Ju olha as unhas com desdém.
— A tarada aqui é você, Julia — Mel provoca, sorrindo enquanto se
recosta na cadeira.
— Que calúnia! — Ju estufa o peito e empina o nariz, atando as longas
pestanas. — Sou apenas uma grande admiradora de homo sapiens machos.
— Claro — ironizo, guinando o rosto para olhá-la de esguelha. — E se um
deles, tão voluntariosamente, quiser trocar fluidos corporais com você...
— Pelo bem da ciência, eu faço esse sacrifício!
Marcamos de nos encontrar em frente ao clube próximo da minha casa. É
um espaço enorme, e os sócios podem usufruir de benefícios como aulas de
dança, artes marciais, natação... Mas algumas áreas, como as piscinas,
quadras e academia, são abertas para a comunidade desfrutar. Acho que vou
aproveitar para seguir a sugestão da Carol e me inscrever em algumas dessas
atividades.
Atravesso a sala de estar de casa, com meus passos mal ecoando nas
paredes de tom palha, em meio à quietude sepulcral. Tento não deixar que a
apatia me invada de imediato, que meus ombros não murchem e minhas
penas não fraquejem, mas posso sentir seus dedos cadavéricos e espectrais
tentando me alcançar. Eu realmente detesto ficar sozinha.
O silêncio me incomoda, faz eu me sentir melancólica demais. Faz meus
pensamentos ficarem mais altos. Ao mesmo tempo, o silêncio também me
conforta de um jeito quase cruel.
Eu sou uma contradição ambulante. Não sei se prefiro ficar num canto
quieto e pequeno e me isolar do mundo, ou ouvir o barulho da cidade,
conviver e conhecer pessoas novas. A calmaria me lembra da solidão e que
eu não quero ficar sozinha. No entanto, a agitação urbana me lembra da
barbaridade do mundo e que talvez seja melhor ficar sozinha.
Esse ciclo infinito de antíteses na minha mente me exaure. Principalmente
se somado ao trabalho que dá fingir que está tudo bem.

Depois de cumprimentar o demônio que provavelmente fica perambulando


pelo teto de gesso do meu quarto pra deixar marcas de mãos, me livrei do
uniforme da escola e tirei um cochilo até o despertador do celular berrar no
meu ouvido.
Me troquei, colocando um simples biquíni preto por baixo do short jeans e
regata preta, amarrei o cabelo liso num rabo de cavalo e encarei meu reflexo
miserável no espelho da cômoda, inspirando fundo. Um passo de cada vez.
Cheguei ao clube mais cedo do que as meninas, então aguardei-as dentro
do espaço comum, onde estava gloriosamente fresco. Ah, como senti sua
falta, ar-condicionado querido!
Do lado direito, há uma lanchonete com o balcão alto de granito em
semicírculo, contornado por bancos elevados de fibra. No lado esquerdo,
fica a catraca e o guichê da recepcionista. A jovem exibe os cabelos cor-de-
rosa longos de um lado e raspados na outra lateral. Há uma argola no nariz e
masca um chiclete com uma expressão enfadada, à medida que digita algo no
computador. Sento em um dos bancos altos e giratórios da lanchonete, me
balançando de um lado para o outro enquanto tomo um belo suco de morango
com leite e mato o tempo rolando pelas redes sociais no celular, tentando
não me sentir ainda pior ao ver as “vidas perfeitas” de todos, ou os vídeos
de tragédias que cismam em surgir do nada.
— Legal o seu papel de parede. — Me sobressalto ao reparar na presença
de uma pessoa à minha direita. Elevo meu olhar e me deparo com um jovem
de aparência radiante. A encarnação do sol num dia de primavera.
Debruçado no balcão, os orbes azuis límpidos do garoto me encaram de
cima e há em sua boca um sorriso inclinado, um tanto acanhado. Seus
cabelos cor de trigo apontam para cima em um topete desfiado e úmido. Um
ser humano inocente, de olhos cheios de euforia ainda não destruída pela
realidade fria.
Reparo de forma discreta – eu espero – em seu tronco nu, percebendo
gotículas de água em sua pele um tanto lúrida. Ele devia estar na piscina.
Não, não. Ele foi cuspido por um elefante. Que ideia, Alice.
— É de Bleach, não é? — o garoto questiona, inabalado. Seu modo de
falar tem breves curvas no “r” e nas vogais. Meu coração perde uma batida
por ele ter reconhecido um dos meus animes favoritos, por ter alguém com
quem conversar sobre... — Eu não esperava que uma garota do seu tipo
gostasse dessas coisas.
E lá se vai minha animação. Eu gostaria de estufar o peito e perguntar “e
que tipo de garota acha que sou?!”, mas não quero dar corda para esse tipo
de cara.
— Ah, é — respondo, um pouco sem jeito, voltando a olhar para o celular.
— Obrigada.
Meus ombros se descontraem no instante em que ele desvia os olhos para
frente, para o homem preparando outra bebida no liquidificador além da
bancada.
— Foi você quem fez? — o jovem volta a perguntar.
Uma risada nasalada me escapa quando reencaminho minha atenção para o
canudo do meu suco, remexendo-o.
— Ah não, eu não tenho esse talento. — Talvez eu tenha soado mais
amargurada do que eu pretendia.
— E qual talento você tem?
— Chorar em silêncio serve?
O som de sua risada é tão harmoniosa que dói.
— Sou Jake — diz ele, inalterado, e hasteio meu rosto para visualizá-lo.
— Ainda não conheço muitas pessoas por aqui. Como se chama, senhorita?
“Senhorita”? Quando foi a última vez que alguém me chamou de
“senhorita”? Provavelmente em 1920, na minha outra vida.
— Alice. — Abeiro os cílios. — De onde você veio?
— Dali. — Jake aponta para a catraca.
Não, seu tapado.
— Eu quis dizer o país — corrijo.
— Ah! Estados Unidos.
— Sei falar um pouco inglês, prefere?
— Não, não! — Ele franze o cenho e se reclina para trás, parecendo
ofendido. Desculpa, vocês trocaram de língua oficial e não estou sabendo?
— Não precisa, vim por intercâmbio, estou aqui para aprender o seu idioma.
O jovem atendente do outro lado do balcão coloca uma taça de suco
amarelado na frente de Jake.
— Espero que curta sua estadia. — Envio-lhe um sorriso amistoso.
— Ah, com certeza! — Jake leva a taça aos lábios e a vira para trás, junto
à cabeça. Buda do céu, menino. Isso são 500ml de suco, não um shot de
tequila. — Bem, eu vou indo. — O garoto bate de leve do granito ao
depositar o copo ali e se afasta ostentando um bigode de espuma. — Espero
te ver por aí.
Jake abre um sorriso largo, indo em direção à porta e acena para mim. É
cada um que me aparece...
— Para! — grito para Julia, por entre um sorriso, ao mesmo tempo em que
viro o rosto de olhos fechados, tentando não me afogar na água que ela lança
em mim.
Melissa mora no mesmo bairro, embora numa zona diferente, mas Ju habita
na puta-que-pariu, então não me surpreendi quando avistei Mel chegar
primeiro. Escondida sob a aba de um boné branco e um óculos de sol, ela se
sentou ao meu lado sem me olhar e pediu uma água.
— Vocês me pagam — disse ela, emburrada.
Julia enviou uma mensagem dizendo que estava a caminho e poucos
minutos depois a avistamos saindo de dentro de um Uber parado rente à
calçada.
— O quê? — nossa amiga perguntou quando o motorista foi embora com o
carro e ela parou na nossa frente. — Tá muito calor pra vir num ônibus
lotado de gente suada e fedorenta. Ia derreter minha maquiagem.
Melissa içou uma sobrancelha.
— Você se maquiou?
— Nunca se sabe quando um gato vai miar pra você. Ai, gente, vocês não
sabem!
Daí em diante Ju desatou a falar e nos dirigimos ao balcão de identificação
rindo da história que ela contava.
Julia apoiou-se no granito e pediu cartões de visitantes. Sem nem mesmo
se dignar a levantar a cabeça, a garota de cabelo rosa solicitou nossas
identidades. Ao entregar os cartões a cada uma de nós, seus olhos castanhos
pareceram repentinamente soturnos, demorando mais do que o necessário em
nós três. Seu olhar passou por mim, por Julia e terminou focando em
Melissa.
Um calafrio me percorreu.
Mesmo depois de cruzarmos a catraca, a sensação estranha às minhas
costas não desapareceu. Por todo o percurso até as piscinas eu sentia como
se estivesse sendo observada.
Fomos em direção ao vestiário feminino e nos despimos diante de um
banco. Por que estou com esse pressentimento ruim? Pulei de susto quando
Julia enrolou sua blusa e a usou como chicote para bater na minha bunda.
Seguimos para a parte rasa da piscina por causa da miniatura de ser
humano aqui. Eu e Mel descemos as escadas como duas pessoas civilizadas
enquanto Julia optou por fazer um pulo à lá Shamu. No tempo em que
conversamos sobre trivialidades, a respeito do trabalho ocasional de Mel
em legendar séries e seu curso de Húngaro sem sentido, eu tentava – em vão
– boiar.
Assim, começamos uma competição nojenta de quem conseguia acertar a
boca da outra com espirros d’água.
Eu sinto os esguichos na minha direção pararem e abro os olhos devagar,
passando a mão no meu rosto a fim de tirar o excesso de água. Vejo Julia
cortando as pequenas ondas da piscina para se aproximar de mim pela
direita.
— Olha ali — ela diz e aponta com o queixo. Mel havia se distanciado da
briga, indo para a borda da piscina. Eu e Ju trocamos olhares. — Trégua?
— Trégua.
Melissa passa os olhos de uma para outra e aponta um dedo para nós.
— Nem pensem nisso.
E é desse jeito, tentando escapar de nós, que Melissa esbarra
acidentalmente num dos rapazes de um grupo de pseudojogadores de polo
aquático. Há quatro deles, três na água e um sentado com as pernas para
dentro da piscina. Parece até cena de filme: minha amiga se desculpando
toda encabulada, ele sorrindo para ela, acanhado também. Falta só uma
orquestra de fundo.
— Beijem logo! — um dos amigos dele grita, o que está sentado na borda
onde nos reunimos para assistir ao espetáculo.
Depois de enrolos e “desenrolos”, eles finalmente se pegam. Se distanciam
para uma quina e ele a esconde com seu próprio corpo. O que rende uma
salva de palmas da minha parte e um assobio de Julia.

Acabou que os garotos não eram de todo mal e descobrimos que cursavam
Direito. Talvez uns ali dariam um ótimo partido. Principalmente um loirinho.
Reaw! No entanto, ele avisou que tinha namorada e estava prestes a pedi-la
em casamento. Own, que fofura!
Fundo musical, por favor:
Vou choraaar,
Desculpe, mas eu vou choraaar.
Queria tanto te pegaaar,
Mas você é compromissado e não vai daaar.
Tudo bem, eu me contentei em beijar os lábios do amigo dele.
Retorno sozinha para casa, com o pensamento longe, relembrando a
sensação esquisita que senti quando a recepcionista nos encarou e quando
beijei o menino. Não foi ruim, só... senti como se tivesse faltando alguma
coisa. Tem sempre algo faltando em você. Suspiro, exausta.
— Um passo de cada vez.
M
eu corpo implora por um banho.
Levo meu celular para o banheiro e o deixo na bancada da pia.
Eu não olho para o espelho. Ligo o reprodutor de faixas musicais e
entro no box. O som de Dancing With Your Ghost começa a penetrar nos
meus ossos bem na hora em que abro o chuveiro. Fecho os olhos, degustando
o jorro de água escaldante.
Eu deixo a sensação da música, misturada ao ruído do líquido caindo,
tomar conta de mim. Absorvo a letra, a cadência entra pelos meus poros e
começo a me encolher, meus lábios se contorcendo. Apoio as mãos na
parede, abaixo a cabeça e deixo as lágrimas rolarem.
Meu choro se mescla com a água fervente, meus suspiros se embaralham
com a melodia da canção. Permito que meus sentimentos lúgubres se
exteriorizem, nublando minha mente, fazendo meus ossos doerem, meus
músculos se contraírem, minhas juntas se retesarem, e concedendo que eles
me dominem só por aquele momento.

Assim que termino, abro a porta do box e saio me enrolando na toalha, os


cabelos gotejando às minhas costas enquanto cantarolo Tempo Perdido do
Legião Urbana. Quando levanto a cabeça e miro na direção da jane...
— Não deveria ficar assim com visitas em casa.
Não entre em pânico. Finco os pés na soleira da porta e olho adiante.
Encaro, petrificada, o rapaz alto, de ombros largos e pele pálida, que
contrasta com seus cabelos negros despenteados, o olhar fulminante de um
tom incomum de cinza e um sorriso ferino no rosto quadrangular. Zaph
aparece encostado com a lombar na janela, os braços firmes cruzados sobre
o peitoral coberto por uma blusa Henley preta e um calcanhar por cima do
outro.
— Fată ciudată — ele diz, malícia escorrendo de seus lábios.
Não entre em pânico, não entre em pânico...
— AAAH!
Entrei em pânico.
Dou um passo para trás e deslizo a porta do banheiro com violência.
Apoio as mãos e o dorso na bancada da pia, tentando normalizar a
respiração.
Escuto uma gargalhada grave vinda do outro lado da porta, bem na hora em
que Dua Lipa começa a cantar Don’t Start Now. Meu coração está mais
acelerado que o Michael Schumacher!
Viro para trás e desbloqueio o celular, pausando a música. O silêncio se
expande até meus ouvidos parecerem zunir.
— Calma, fica calma — sussurro para mim mesma, unindo as pálpebras.
— É coisa da sua cabeça. É a falta dos remédios, respira.
Resfolego longamente, tentando me concentrar na frieza do mármore contra
os meus dedos. Solto o ar pela boca e sacudo as mãos junto à cabeça.
Dou impulso da bancada com o corpo e abro a porta devagar. O quarto está
vazio conforme saio do banheiro, há apenas minha bagunça cotidiana
espalhada pelo piso branco e o silêncio. Ufa.
— Viu, boba? Sumiu — reafirmo a mim mesma, quase rindo da minha
própria...
— Quem sumiu?
— AH! — Seguro a toalha para ela não cair ao saltar para longe.
Zaph ressurge ao meu lado, ainda de braços cruzados, o olhar afiado me
devorando de cima. Ele é... real! Meu coração volta a marretar meu peito
conforme percebo a aura opressora de sua estatura e sua bela feição próxima
a mim.
— O que foi? — Um sorriso matreiro brinca em seus lábios e sua voz
parece se propagar pelo meu corpo. — Naquela noite você não reagiu assim.
— Vo-você... — Recuo um passo.
— E-eu? — Mesmo com o sotaque dá para entender perfeitamente o quê
de deboche. — Ah, já sei. Se deu conta de que eu posso te matar num
segundo. Por falar nisso, seu sangue é muito bom. Me deu energia por três
noites inteiras. Mulţumesc mult.
— Hã?
— Muito obrigado.
Acho que meu chip de linguagem está mal encaixado, pois eu perdi
completamente a habilidade de falar. Qualquer coisa coerente, pelo menos.
— Vem cá, você pretende continuar só de toalha? — Zaph troca o peso da
perna e inclina a cabeça com seu sorriso traquinas. — Porque por mim tudo
bem. — Eu mal tenho tempo de enrubescer quando ele aproxima o rosto do
meu e abaixa o tom. — Se quiser ficar sem, melhor ainda.
Pigarreio e abro uma boa distância entre nós. Zaph retorna à sua postura,
rindo. Filho da mãe.
— E-espera um minuto. — Me afasto até a cama, onde eu tinha posto
minhas roupas e pego-as de qualquer jeito nos braços, sem tirar os olhos do
vampiro. — Não vai ainda. É rapidinho! — Passo correndo em direção ao
banheiro outra vez. Fecho a porta às pressas e viro para encarar o espelho,
ainda arquejante.
Meu Horus! Isso... isso realmente está acontecendo! Jogo as roupas em
cima do vaso e ponho uma mão na cabeça.
Eu aperto os lábios o mais forte que posso e olho para os lados, abrindo e
fechando os dedos, querendo gritar.
Não foi um sonho, não é alucinação! Criaturas sobrenaturais existem!
Começo a pular, mordendo o lábio inferior para não gargalhar, mas em
compensação solto um ruído preso na garganta que lembra uma chaleira no
fogo.
Paro de saltitar e ponho as mãos no mármore da pia, ofegante.
Ok, chega, tem um vampiro te esperando do lado de fora. Outra vez, o
reconhecimento me abate e arregalo os olhos. Tem um vampiro. Me
esperando. Levanto o olhar para o meu reflexo úmido do banho.
Vamos lá, Alice! Me visto o mais rápido que posso, colocando às pressas
um short confortável e uma camiseta larga que bate nas coxas. Ao abrir a
porta – AI, JESUS! – dou de cara com Zaph, parado a centímetros da
moldura, com as mãos no bolso da calça. Ele me analisa de cima a baixo,
sem pressa.
— Prefiro você de toalha.
Limpo a garganta, tentando não enrubescer, e caminho lentamente para o
meio do quarto enquanto balanço os braços.
— Então. — Giro nos calcanhares e me sento na ponta da cama, tocando o
pescoço. — Como não tenho nenhuma marca?
Ele anda despreocupadamente em minha direção. Zaph suspira e tira as
mãos dos bolsos para sentar ao meu lado direito. Meu olhar é atraído para
seus pulsos grossos com veias saltadas, apoiados em seus joelhos.
— Nossa saliva. — Trato de levantar a face para a sua, antes que o
vampiro perceba minha vontade de beijar aquelas veias. — Ela tem uma
substância regenerativa que em certa quantidade ajuda a acelerar o processo
de curar feridas.
Me reclino na cama e amparo minhas mãos atrás no colchão, para ficar
confortável.
— Uau. Você poderia ser um santo milagroso.
— Ah é, e cobraria sacrifícios por isso. — Não posso deixar de perceber
o olhar que Zaph direciona aos meus seios desnudos por debaixo do algodão
da blusa. Rapidamente ele volta a me fitar, seus orbes assumindo um teor
voluptuoso. — Além do mais, eu ia precisar lamber muito.
Não cora, Alice, não cora.
— Cachorros babam muito — digo, enrijecida e rápida demais. — Se
você se transformasse em um cachorro, não teria esse problema.
Uau, essa foi sensacional.
— Eu já mordi um cachorro. — O vampiro repuxa o nariz. — Não foi
legal.
— E ele virou um cachorro-vampiro?
— Não, um lobisomem. — Zaph responde, como se fosse a coisa mais
normal. No meu silêncio, um sorriso se projeta em sua face. — É
brincadeira.
Eu rio fracamente e abaixo a cabeça, pronta para pôr uma mecha de cabelo
atrás da orelha. Por fora, talvez eu pareça tímida, mas por dentro uma parte
minha está dando uma festa enquanto a outra está tocando sirenes e gritando
para todas as “Alices” interiores manterem a porra da calma. Sou pega de
surpresa ao sentir Zaph posicionar o polegar debaixo do meu queixo,
erguendo meu rosto.
Ele me puxa em sua direção e eu não consigo desviar a atenção de sua
boca, meu coração batendo veloz. Eu vou deixar isso acontecer? É só um
beijo... não é? Opa, acabei de ver seus caninos crescendo. Definitivamente
não é só um beijo.
— Espera. — Retiro meu queixo de seus dedos num solavanco. Zaph me
encara de uma forma austera, porém não consigo decifrar a razão. — Posso
te perguntar umas coisas antes?
Um vinco se cria entre suas sobrancelhas.
— Não bastou aquele dia?
— Não, não. — Abano a mão. — Aquilo não foi nem a metade! — Ele se
mostra um pouco pasmo. — Tá, talvez tenha sido a metade. Ou grande parte
dela.
Argh, que calor! Preciso falar urgentemente com o meu pai sobre esse ar-
condicionado. Cadê as águas de março fechando o verão? Me levanto num
pulo e vou até a janela ao lado da cama.
— É verdade que os vampiros são realmente traiçoeiros? — pergunto,
conforme destravo e arrasto o vidro da janela.
— Mais ou menos — Zaph responde às minhas costas. — Nós não
mudamos muito depois que nos transformamos. Na maioria das vezes,
permanecemos com a personalidade que tínhamos quando humanos. Menos
aqueles que cedem à loucura e ao vício.
Ah, que ventinho glorioso! Fecho os olhos e degusto da brisa nas minhas
bochechas. AI, MEU RANGI!
Distraída com o raro sopro afagando meu rosto, pulo de susto e abro os
olhos quando sinto os dedos longos de Zaph tocarem de leve minha cintura.
— É muito difícil me segurar para não sugar um sangue que já foi provado.
— O tom baixo próximo a minha cerviz envia uma corrente elétrica por
todos os meus nervos. É como se sua voz fosse feita de seda e pudesse
adejar de forma suave em minha pele. Meu corpo está completa e
dolorosamente ciente de sua estrutura a milímetros das minhas costas.
Prendo a respiração quando uma de suas mãos adentra e percorre minha
barriga por debaixo da camiseta. Há uma aspereza nelas não muito
acentuada, calos de tempos antigos, lembranças de uma vida há muito
deixada para trás. Seu dedão esbarra de forma sutil na base do meu seio e
isso é o suficiente para me fazer estremecer. Ele desliza devagar os dedos da
outra mão pela minha nuca, mal tocando os pelos arrepiados ao afastar meu
cabelo úmido para o lado. Sensações ambíguas se confundem dentro de mim.
— Vai me deixar sugar seu sangue outra vez? — O filho da mãe sabe como
usar seu timbre grave.
— E eu lá tenho escolha? — Merda, sua risada rápida no meu pescoço
atinge em cheio o meio das minhas pernas, reverberando pelo meu corpo.
Mordo o lábio e meus dedos apertam o parapeito da janela.
— Não se preocupe — Zaph murmura perto do meu ouvido, sua voz rouca.
— Eu vou permitir que viva mais um pouco.
Ele passeia a ponta das presas pelo meu ombro e seu hálito me aquece. O
que, para ser honesta, nesse calor infernal, não é muito bom, não.
Libero o ar devagar.
— Se quando eu acordar eu perceber que estou morta, irei te assombrar
para o resto da sua vida. — O vampiro ri na envergadura do meu ombro, o
que provoca uma moleza em mim, e enterra os caninos no meu músculo.
Premo os olhos ao sentir outra vez uma dor aguda quando os dentes de
Zaph perfuram minha pele lentamente. Mas ela não perdura, pois logo em
seguida aquela sensação entorpecedora me invade, me deixando maleável e
sonolenta nas mãos dele.
Zaph retira as presas de mim no exato momento em que minhas pernas
fraquejam. O vampiro me segura, firmando seus braços ao redor da minha
cintura, e meu útero se contrai.
Se controlem, hormônios!
— Tudo bem? — ele pergunta.
— Uhum — respondo ainda meio tonta, piscando os olhos como se eu
tivesse acabado de acordar.
— Quer se sentar?
Já mais equilibrada, me viro para Zaph com um meio sorriso e um olhar
suspeito.
— Você é sempre tão educado assim com as suas vítimas?
O vampiro compartilha do gesto.
— Só com as ruivas. — Ele dá uma piscadela e eu rodo os olhos, mas não
consigo impedir que um sorriso apareça no canto.

— O que você quis dizer naquela hora com “ceder à loucura e ao vício”?
— pergunto a Zaph, conforme andamos lado a lado na calçada irregular.
— Há diversos tipos de vampiros — ele diz, depois de pegar fôlego. —
No geral, existem três categorias. Os que têm a natureza humana mais
apurada são chamados de Remissum. Ou só Remi, entre nós. Os que já são
mais, digamos, travessos e menos sensíveis à natureza humana que tinham,
são os Modicus. Mas os Vacors são os insanos. Perderam totalmente a
humanidade e sucumbiram à obsessão por sangue. Felizmente, eles são
minoria. Se há uma coisa que quase todos os vampiros concordam é: não
bebam sangue de virgens. Não sei explicar exatamente o porquê, mas há algo
diferente nele que o torna ainda mais viciante.
— Você já provou?
Zaph inspira fundo.
— Infelizmente. — O jeito rígido com que fala é diferente de antes. — A
categoria predominante é a Modicus. Só que um Remi pode virar um
Modicus e um Modicus pode facilmente virar um Vacor. Isso é o que
preocupa os poderosos.
— Poderosos? — Olho-o genuinamente curiosa e tentando acompanhar
suas passadas largas.
— Uma raça tão ampla como a nossa tem que ter um grupo que tome as
devidas decisões. Sem líderes para nos guiar, seríamos o terror na terra.
Eles se chamam Palatinus. — Pulo um desnível e tropeço ao tentar alcançá-
lo outra vez. Zaph permanece imperturbável, andando sossegadamente com
as mãos nos bolsos e o olhar adiante. — Os Palatinus são os maiorais e o
atual poder legislativo dos vampiros. Mas o Conselho está acima deles,
porque são sete representantes das principais raças, incluindo um humano, e
o dever deles é manter a ordem das coisas entre todo mundo.
O céu sobre nossas cabeças enfeita-se com inúmeras estrelas, revelando
que fará um calor infernal no dia seguinte. Pouco depois de me recuperar,
ainda de pé diante da janela, quando estávamos no quarto, Zaph perguntou se
eu gostaria de comer algo.
— Achei que não te satisfazia — eu disse, olhando-o de forma dúbia.
— E não satisfaz — o vampiro respondeu, colocando as mãos nos bolsos
ao enviar uma piscadela. — Mas não quer dizer que eu não possa aproveitar
os prazeres da vida.
Olha, alguém acendeu as velas certas, porque eu sair duas vezes num dia
só é um milagre.
— Isso é... incrível! — falo com um sorriso grande, ficando ao seu lado
outra vez.
— É, incrível — Zaph diz, sem humor. — Dentro dessas categorias tem as
classes. Moroi são os vampiros... fáceis de matar. Os Fără Strigoi são os
mais difíceis, vamos pôr desse modo. Os Strigoi são mais associados aos
Vacors por terem mais quantidade de sangue…
— E assim tem mais poder. Mas tem como um Vacor ser um Moroi? —
interrompo, ansiosa. Zaph retorna sua atenção para mim, não tão irritado
quanto eu pensei que ele estaria por tê-lo cortado.
— Claro, uma coisa não está necessariamente associada à outra. Eu mesmo
posso ser um Remi e ser Strigoi.
Comprimo a testa.
— Mas se é por quantidade de sangue...
— Não disse que se media pelo sangue. — Zaph inclina a cabeça de leve
em minha direção, um sorrisinho despontando na expressão esnobe e gaiata.
— Há várias outras qualidades que definem a classe de um vampiro. O jeito
que você era quando humano, ou quando foi transformado, são grandes
fatores. Uma pessoa que era fraca física, mental e espiritualmente, quando
transformada é muito provável que se torne um vampiro Vacor, louco
sanguinário, mas Moroi, fácil de matar.
— Aaah.
— Depois dessas classes tem mais uma cambada de gêneros que dependem
da subespécie — Zaph continua. — Subespécie Asanbosam, Adze… Cara,
os Rokurokubis são bizarros.
— Então, qual seria sua classificação?
— Tecnicamente falando — ele volta a olhar para frente — subespécie
Mullo, classe Strigoi, categoria… atualmente Modicus.
“Atualmente”.
Isso me preocupa um pouco.
— Eu pensava que era tudo só vampiro. Claro — movo os ombros —
tendo uma diferença aqui e ali por causa da origem, mas eu não esperava
uma taxonomia inteira.
Zaph emite uma risada nasal, no entanto estica os lábios num sorriso.
— “Toda Jacuzzi é uma banheira, mas nem toda banheira é uma Jacuzzi”.
Estreito os olhos em sua direção.
— Você está citando The Big Bang Theory?
— Você citou Bratz. — Ele arqueia uma sobrancelha de soslaio.
— Touché.
Caminhamos até parar no centro do bairro. Mesmo em plena segunda-feira
à noite há milhares de hamburguerias, bares, carrocinhas e botequins
abertos. O meu bairro é sempre assim. Não importa o dia ou a ocasião,
sempre há motivo para festejar. Um som de pagode vem dali, outro de
sertanejo ao vivo de acolá. A essência picante de especiarias invade nossas
narinas.
Sentamos um de frente para o outro numa das mesas de cimento e azulejos
da praça – até que bem cuidada para a situação atual desse município
ligeiramente largado por Deus onde resido.
— O que você quer comer? — Zaph pergunta. Apenas sacudo os ombros.
— Tanto faz. Como funciona isso, dos sentidos dos vampiros? — Cruzo os
braços sobre a mesa. — Tipo, a audição de vocês, o olfato...
Zaph expira pelo nariz de forma audível e escora a maçã do rosto
esculpido no punho.
— Essas habilidades são acentuadas de acordo com a qualidade do sangue
que absorvemos. Na verdade, não há registros de um “limite” — ele encena
as aspas com os dedos — para nossas habilidades ou poderes, como vocês
dizem, mas também nunca foi notado algo tão surreal. Vocês são
irritantemente criativos às vezes.

O odor de gordura seduziu meu estômago e pedi uma porção de batata frita
na carrocinha ali perto. Só porque Zaph está pagando. Ele espeta a ponta do
meu dedo com seu canino, espreme-a e passa o sangue numa fatia de batata.
Eu apenas observo de modo desdenhoso enquanto o vampiro estrangeiro usa
meu sangue como ketchup.
Aos poucos a conversa segue por outro rumo, adentrando em fatos
históricos e princesas da Disney.
— Você tá zoando — digo, incrédula, instantes antes de mastigar uma lasca
e instantes depois de Zaph contar que havia ido aos aniversários de
Anastásia Nikolaevna Romanov.
— Nu — rebate ele, jogando uma batata na boca. — Fumávamos ópio
escondidos juntos.
— Mas ela era uma... — Arregalo os olhos e vergo por sobre a mesa,
soltando um arquejo, quando algo perpassa minha mente. — Dragões
existem?!
Zaph apenas franze a testa.
— Não. Morreram junto com os dinossauros.
Pisco os cílios.
— É brincadeira, não é? — indago.
— Por que seria? — O vampiro pega mais uma batata e a lança na boca.
Ah, um cachorro-vampiro é totalmente impossível, mas dragões não?
Minha musculatura desaba e jogo as mãos para o ar.
— Desisto. Não sei quando você está brincando e quando não está.
A única resposta que obtenho é o sorriso largo de Zaph, oferecendo uma
malícia furtiva.
E assim os dias passaram. Zaph aparecia umas três vezes na semana para se
divertir às minhas custas, ver se os impulsos elétricos do meu coração
estavam em dia cada vez que surgia do nada e coletava um pouco do meu
sangue. Pelo menos desse jeito eu tenho dormido que é uma beleza, adeus
olheiras.
— Olá, adorada vítima — o vampiro saudou assim que “pousou” na janela
do meu quarto no crepúsculo de mais um dia.
— Olá, inconveniente vampiro — eu disse ao me aproximar. Ele pegou
uma das minhas mãos e levou meus dedos à sua boca sem tirar os orbes
cinzentos dos meus. Eu espremi os lábios, a fim de reter um sorriso.
— O que está fazendo? — Zaph apoiou a maçã do rosto no punho da mão
que, por sua vez, escorava-se em seu joelho dobrado. Dei de ombros.
— O de sempre. Admirando as paredes e tentando não surtar de vez.
— Quer dar uma volta?
Repuxei um dos lados do nariz e meneei negativamente com a cabeça.
— Ótimo. Então trarei sabres de luz e você será o General Kenobi.
Eu não aguentei quando ele esganiçou a voz e imitou Grievous no final e
soltei uma sonora gargalhada.
Assistimos anime juntos – quer dizer, eu assistia, ele criticava –,
arremessando pipoca na boca um do outro enquanto ficávamos deitados na
cama estreita, com o notebook entre nós.
— Dumnezeul meu. E eu pensava que já tinha visto de tudo — comentou
Zaph lançando uma pipoca para o alto.
— Espere até ver Devilman Crybaby.
Embora no hospital eu tenha descoberto a magia dos filmes mudos e tenha
aprendido a ler livros sem virar noites, fazia um bom tempo que eu não
mergulhava na dimensão dos animes. A presença cética de Zaph me deu um
ótimo motivo para voltar a assisti-los. Um passo de cada vez.
Ele me contava suas aventuras pelo mundo, através das épocas, encenando
duelos e... outras coisas que me fizeram sentir nojo, para ser sincera.
Contudo, não posso ignorar a angústia me corroendo por dentro. Afinal, eu
não o conheço o suficiente, ele é um potencial – e que potencial – perigo, e
eu não só o deixei entrar em casa, mas também na minha vida.
Como se não bastassem os perigos que enfrentamos normalmente. Um dia
desses meu pai chegou em casa tenso e aliviado ao mesmo tempo. Eu e
minha mãe já sabíamos o que isso significava: mais um crime atroz
resolvido.
Ele apareceu na hora do jantar, bem quando Heloise havia desligado a
panela de pressão. Gabriel se jogou ao meu lado no sofá, onde eu estava
toda largada, buscando algo para ver na TV. Ele fechou os olhos e deitou a
cabeça ruiva e calva no encosto. Eu me aconcheguei a ele e meu pai beijou o
topo da minha cabeça.
— Me promete que não vai forjar um assalto para matar seu próprio irmão
e ficar com o dinheiro dele? — perguntou ele para mim. Seu tom estava tão
estranho que eu não sabia se ria e brincava, ou se ficava compadecida.
Apenas prometi que sim, e minha mãe surgiu perguntando o que havia
acontecido.
Enquanto meu pai contava o desfecho da investigação em que estava
trabalhando, meu pensamento começou a vagar para um lugar ermo e ausente
de luz. Um lugar onde só há dor e tristeza. Um lugar onde eu tenho a perfeita
concepção da minha inutilidade. Do meu fracasso. Da minha decepção. Um
lugar apagado onde quase sempre eu me escondo.
— Alice? — uma voz soa brumal aos meus ouvidos.
Sinto meu coração se desfazer aos poucos, deixando um eco doloroso no
meu peito cada vez que visualizo homens espancando mulheres; negros
sendo discriminados e mortos devido à sua cor; pessoas LGBTQIA+ sendo
agredidas apenas por serem quem são; animais sendo maltratados;
contrabando de crianças; pessoas sendo torturadas e estupradas; políticos
corruptos; intolerância religiosa; patrões abusivos; relacionamentos
obsessivos...
— ALICE?!
Desperto da minha abstração bem a tempo de recuar antes que eu entrasse
naquele redemoinho obscuro.
Julia, Melissa e metade da turma estão olhando para mim. O que eu fiz?
Será que eu peidei?
— A chamada — Julia sussurra.
— Ah! — Endireito a coluna, tentando captar a atenção da professora por
cima das cabeças à minha frente. — Presente!
Assim que todos voltam a tomar conta de suas respectivas vidas,
conversando entre si, eu afundo na carteira. Sete horas da matina e eu
pensando nessas coisas. Realmente, eu estou indo muito bem...
Esfrego o rosto com as duas mãos, tentando me livrar tanto do sono de uma
noite em claro quanto de ideias soturnas e repletas de sombras. Sombras do
passado e sombras do presente. Sombras que me atormentam todas as horas
de todos os dias. Sombras, sombras e mais sombras.
— Tudo bem? — Ju pergunta.
Retiro as mãos do rosto lentamente. Miro minha amiga debruçada no
encosto fino da cadeira dela.
— Na medida do possível. Só me perdi pensando numas coisas.
— Hum. — Julia emite um som que sei ser uma falsa conformação. Vejo
em seu rosto o semblante de alguém quase tenuamente preocupada. Dou um
sorriso torto.
— Ei, tá tudo bem, sério.
— Que bom. Se não estiver, vai ficar agora. Escuta: — Ju chama Melissa
do outro lado e a nossa amiga a encara, piscando os olhos azuis aquamarine
— uma amiga minha tem uns convites para uma choppada da faculdade dela,
bora?
— Quando? — Mel questiona.
— Sexta.
— Essa sexta? — Descanso os pés no suporte abaixo da carteira de Julia e
remexo a caneta entre dois dedos, fazendo-a batucar na mesa. Ela se vira
para mim com a euforia reluzindo em seus olhos escuros um tanto puxados.
— Isso. E aí? O que me dizem? — Eu e Melissa trocamos olhares
desconfiados. — Ah, vai gente. — Julia choraminga. — Faz um tempão que
não saímos pra dançar juntas. Vai ser mega divertido!
Suspiro, me dando por vencida.
— Por mim, ok.
— Que horas? — Ao escutar a pergunta da Mel, Ju joga o peso do corpo
para trás com uma cara espantada de boca aberta.
— Você, senhora Melissa, está concordando em ir numa festa conosco? O
que é isso? Que feitiçaria Deus tá fazendo?
— Palhaça! Não saio muito por conta do estágio, — Mel cruza os braços
por sobre a mesa. — Mas curtir de vez em quando é bom.
— “Bom” não. É ótimo!
— Mas as provas já são mês que vem, precisamos estudar — Melissa diz,
receosa, e eu e Julia ficamos em silêncio a encarando. Como se fosse
combinado, explodimos numa gargalhada.
— Estudar? Na sexta? — Julia tira as palavras da minha boca.
— Ai, ai, Mel, você vem com cada uma. — Escorrego na cadeira, ainda
batucando a caneta e com um sorriso estampado no rosto.
Melissa faz uma careta emburrada.
— Depois não venham me pedir socorro.
— Claro que vamos pedir socorro — Julia diz cruzando os braços,
levantando os seios fartos. — Você é a nerd do trio. É sua obrigação ajudar
os membros menos favorecidos intelectualmente.
Eu pendo a cabeça de lado, com um sorrisinho angelical para Mel.
— E você gosta de ajudar a gente. Fala a verdade.
— A sorte de vocês — Mel aponta para Julia e para mim — é que eu amo
vocês. Senão eu ia mandar...
Eu e Julia levantamos as duas sobrancelhas ao mesmo tempo.
— Mandar...? — instigo, retendo um sorriso. Mel sempre foi adepta ao
palavreado politicamente correto, enquanto eu e Julia competimos para ver
quem fala mais palavrão.
— Vamos lá. — Julia estreita as pestanas e se dobra ao meio. — Você sabe
que quer mandar a gente pra puta que pariu.
— Ou tomar no cu — complemento com a opção.
— Se foder.
— Chupar uma rola...
— Parem, pelo amor de Deus! — Melissa se debruça na mesa com os
olhos esbugalhados e mais enrubescida do que um hortifrúti de frutas
vermelhas. Julia e eu rimos.
— Você pode me mandar ir chupar uma rola que eu não ligaria — diz Ju.
— Eu iria com prazer.
— Depende da rola. — Eu aponto para ela em alerta. Julia concorda com a
cabeça.
— Verdade.
Melissa abaixa a cabeça e tampa o rosto, escorregando na cadeira.
— Vocês querem parar?
— Não — eu e Julia respondemos ao mesmo tempo.
Toda a minha musculatura desaba quando agarro a maçaneta e empurro a
porta de casa. Ísis! Como é bom estar em...
— Você não lavou a louça de ontem. — Senhoras e senhores, conheçam
Heloise, minha mãe. Ela não levanta o olhar para mim, está muito ocupada
realocando os papéis sobre a mesa de vidro para o outro lado. Meus pais
sempre trazem trabalho para casa. E conceber o quanto eles ralam para
pagar nossa mordomia faz eu me sentir um peso morto, um desperdício de
espaço.
— Olá para a senhora também. — Fecho a porta atrás de mim, segurando
uma das alças da mochila no ombro. — O que faz aqui a essa hora?
— Eles me deram a tarde de folga já que troquei com uma professora que
faltou. Eu estava precisando. Aquelas crianças vão me deixar maluca.
Ela, coordenadora de uma escola pública. Ele, investigador da Polícia
Civil. Não me pergunte como isso dá certo.
Heloise ergue o olhar castanho para mim.
— Não tem só você nessa casa. Você podia fazer o mínimo para ajudar.
Meu pai é o retrato da estabilidade, mesmo embrenhado em casos
horrendos e ficando diante de criminosos doentios. Já com minha mãe
sempre foi: “Ajeite a postura!”, “Seja educada!”, “Não fale alto!”, “Sorria
para as visitas!”, “Passe uma cor nesse rosto!”, “Não me venha para casa
sem pelo menos um oito na prova!”, “Vista algo apropriado!”, “Seja
prestativa!”.
Inspiro fundo. Lá vamos nós de novo.
— Eu planejava lavar assim que eu chegasse — explico, mansa.
— Você diz agora? Agora é tarde. A idiota aqui já fez. — Brama Heloise,
me dá as costas, caminhando em direção ao corredor e logo adentrando a
cozinha. — Você nunca faz nada do que digo! Você nunca faz nada e ponto!
Eu passo as roupas, limpo a casa, faço a comida, que inclusive você também
não tem comido direito. Nem isso você é capaz de fazer! — Ouço-a rezingar,
à medida que se serve do almoço disposto sobre o fogão. — Você não faz
nada o dia inteiro. O dia in-tei-ro! Eu não sou sua empregada. Um dia eu não
estarei mais aqui, e aí? Se você não ficar do meu lado me ajudando quando
eu peço, você nunca vai aprender.
Meu cérebro exclui automaticamente a dúvida da partícula “se” e deixa
somente a certeza do “você nunca vai aprender”. Por vezes, mais do que
apenas palavras ou vírgulas, o tom de fala causa uma ferida ainda mais
profunda.
Aperto a alça da mochila, observando-a colocar a comida em seu prato por
cima da bancada, que forma uma ampla janela entre a sala e a cozinha, mas
sem a observar realmente. Meus pensamentos estão longe de novo, descendo
lentamente aquele redemoinho lúgubre, enviando uma onda gradual de
desânimo para o meu corpo. Eu já perdi a conta de quantas vezes eu escutei
essas mesmas palavras, mas eu não a culpo por repeti-las. É uma das poucas
coisas que minha mãe pode tentar fazer para me “consertar”.
Às vezes, eu me pergunto se sequer vale a pena tentar consertar algo tão
quebrado.
— O mínimo que você pode fazer é se alimentar direito. O mínimo! — ela
continua ao se afastar para pegar os talheres na gaveta mais ao lado. — Eu
estou cansada de falar isso, cansada!
Perceber que ela está certa e que, ainda assim, não consigo tomar a porra
da vergonha na cara para mudar de atitude, só reforça o quão fraca e inútil
sou.
Eu não a culpo, porque sei que não entende, mas ao mesmo tempo a culpo
por não tentar entender.
Não é que eu não queira fazer todas essas coisas, não é que eu não queira
colaborar, não é que eu não queira comer, muitas vezes eu simplesmente não
consigo. Nunca é apenas um fato ou um momento, mas sempre o somatório
de tudo o que passou. E quando digo que esqueci, é porque minha mente se
encontra tão abarrotada de dados que não servem para nada, a não ser me
causar dor, que não sou capaz de absorver muito mais. Talvez eu tenha que
apresentar um artigo inteiro à minha mãe sobre como as sinapses que passam
entre a amígdala cerebelosa e o hipocampo, em frequências entre treze e
trinta Hertz, fecham a boca do meu estômago. Ou como os
neurotransmissores falhos fazem minha carne parecer uma fronha velha e
meus ossos, penas em decomposição.
— Eu sei que é difícil, filha — ela diz, mais calma. — Mas você tem que
fazer um esforço.
Minha vontade é de rir. Ela não sabe quanto esforço eu faço todo santo dia
para encontrar razões de viver.

— Como você está? — Carol me pergunta, sentada em sua cadeira.


Eu remoo minhas mãos sobre meu colo sem encará-la.
— Bem. — Junto os lábios num sorriso teso.
— Anda tomando os remédios?
Encolho os ombros e recurvo as sobrancelhas.
— Um pouco? — respondo, incerta, e, em troca, Carol faz um bico de
reprovação.
Na tela do notebook, sobreposto no tampo de vidro da escrivaninha, vejo o
rosto alongado da minha psicóloga e seus olhos cor de marfim,
encaixilhados por madeixas caramelo onduladas na altura de seu queixo, me
alfinetam mesmo através dos pixels um tanto granulados. Me remexo na
cadeira giratória. Mas me arrependo imensamente quando seu rangido
perfura meus tímpanos.
— Já conversamos sobre isso — adverte ela. Deixo meus ombros caírem
ao mesmo tempo em que solto o ar pela boca de forma audível. Abaixo meu
rosto, focando no movimento nervoso dos meus dedos. — Alice, eu sei que
quer ser forte por si própria e acho isso lindo, como profissional também
acho muito bom, mas não pode parar de tomar seus remédios de uma hora
para outra. Você sabe dos efeitos. Você tem...
— Você disse que chocolate ajudava. — Ressalto meu lábio inferior e iço
o olhar somente o bastante para enxergar Carol erguer uma sobrancelha
enquanto disfarça um meio-sorriso.
— E vai viver de chocolate?
— Talvez — digo, movendo os ombros rapidamente, só para provocá-la.
Mas Carol solta uma risada nasal. Ela sabe que, por mais orgulhosa que eu
seja, eu não substituiria um problema por outro. Não de forma consciente. E
esse é o problema. Essa mulher me conhece tanto que dá raiva.
Carol abaixa a cabeça, folheando alguns papéis sobre sua mesa do
escritório.
— As condições e receitas continuam as mesmas. Se sentir alguma coisa,
qualquer coisa, física ou emocional, me liga. Não importa a hora. E lembra
do que a gente combinou: um...
— Um passo de cada vez. — Mostro um sorriso tristonho e a médica o
espelha. No entanto, há uma certa afetuosidade em sua curvatura que me
transmite um pouco de esperança.
— Vou te passar uma playlist de músicas que montei — ela recomeça e se
inclina para frente. — Alice, por favor, cuide mais de si mesma.
— Vou tentar.
— Essa é a minha garota. Nos vemos mês que vem, então.
Eu quero perguntar sobre Bianca, se tem notícias dela, mas o tempo que
levo para aquietar meu coração e formular uma frase coerente é o tempo que
Carol encerra a chamada.
Recosto na cadeira, que está precisando urgentemente de óleo, e miro
minhas mãos sobre as coxas ao deixar um suspiro sair pela boca, junto com
o peso do corpo. Meus batimentos cardíacos perdem o compasso por um
único milésimo, mas é o suficiente para enviar aquela sensação agoniante de
necessidade pressurosa ao meu cérebro e enrijecer meus músculos. Inspiro
fundo e me ponho de pé. Preciso de um banho.
–A gente não dorme a menos que estejamos exaustos ou precisando de
muito sangue — diz Zaph, do outro lado das fileiras de roupas
molhadas penduradas nos varais sob a escassa luz solar que resta e entra
pelo quintal dos fundos. As batidas suaves de Supalonely espalham-se pelo
espaço apertado, preenchido por materiais de limpeza em prateleiras num
canto coberto, uma máquina de lavar roupa e um tanque ao lado da porta da
cozinha.
— Então, o que fazem de dia se só saem à noite? — Fico na ponta do pé
para colocar uma blusa branca úmida num dos fios que vão de uma lateral à
outra.
— Coisas.
— Bela explicação. — Me empertigo para pegar outro pregador de
madeira na cesta atrás de mim, ao lado do meu celular, em cima da tampa da
máquina de lavar. — Ah. Como vocês se multiplicam, já que não
reproduzem com facilidade? Tem outra maneira de se transformar além da
mordida?
Pela primeira vez, Zaph parece hesitar. Ele está escorado na parede de
frente para mim, os braços cruzados atrás da cabeça, com as roupas
gotejantes entre nós.
— Nu. Não através de um vampiro.
— Como assim? — Vejo-o gemer em angústia e esfregar a nuca conforme
se impulsiona e desencosta da parede.
— É complicado. — Zaph caminha em minha direção enquanto pego outra
roupa do cesto e a estico na corda alta, ficando na ponta dos pés.
— Tenta.
O aprendiz de mosquito veio em seu horário usual, ao entardecer,
invadindo a minha janela sem nem mesmo pedir licença. Eu perguntei se ele
não tinha mais o que fazer além de perturbar as minhas ideias. No entanto, a
verdade é que suas visitas são uma das pequenas coisas que tornam minha
semana um pouco mais suportável.
Zaph afasta a blusa branca à minha frente como se fosse uma cortina e me
encara com os supercílios levemente franzidos.
— Eu vou ganhar alguma coisa com esse interrogatório?
— Estou te dando meu sangue por livre e espontânea vontade, não é o
suficiente?
Zaph ata as pestanas, ressalta o lábio inferior e movimenta os ombros. Ele
solta a blusa ao passar para o meu lado. Me estico para trás para pegar mais
prendedores…
— De acordo. — Mas Zaph pega a cesta e a traz para perto de mim. De
forma abrupta, seus olhos se alargam em minha direção. — E se fizéssemos
um acordo? Uma chupada por uma pergunta.
Minhas próprias pálpebras se retraem enquanto o olho de soslaio e fico em
meia ponta para prender a calça jeans.
— Que tipo de chupada?
— Bem — ele troca o peso da perna e estica as extremidades de sua boca
para cima revelando um teor perverso — eu me referia ao seu sangue, mas
se quiser me pagar um boquete...
Estreito os olhos, ainda mirando-o de esguelha.
— Não sei se isso é uma boa ideia.
— O que? Chupar o meu pau? É uma ótima...
— Meu sangue, Zaph. Chup... — Inspiro fundo para ignorar meu grito
interno. — Sugar o meu sangue.
— Os dois lados saem ganhando.
Recoloco os calcanhares no chão e o fito diretamente. O vampiro inclina a
cabeça de forma sutil e arqueia as sobrancelhas. No canto de seus lábios
irrompe um diminuto sorriso. Remoo a boca e semicerro as pestanas. Por
fim, suspiro.
— Tá, tudo bem — digo, pegando outro pregador e voltando à tarefa. —
Mas se vocês só podem transformar mordendo as vítimas...
— É só não sugar o sangue, embora seja difícil de controlar.
Principalmente com um sangue tão suculento como o seu. Seria um sacrilégio
para um vampiro normal não te matar.
— Espera. — Recoloco a sola dos pés no chão e hasteio o queixo para
observá-lo. — Você pareceu conseguir parar facilmente.
— Não foi tão fácil, mas eu sou o terceiro mais poderoso. — Zaph pega
um prendedor da cesta que segura com uma mão e facilmente o encaixa na
calça pendurada.
— O terceiro? — Eles têm uma posição? Vinco as sobrancelhas. — Quem
é o segundo?
— Um cara chamado Adam.
— E o primeiro seria quem? O Drácula? — Solto um riso de escárnio,
enquanto me viro para suspender uma camisola de oncinha da minha mãe,
mas Zaph não se altera.
— Cinco e sim, seria, se ele estivesse vivo. — Sua face continua um
entalhe de neutralidade conforme pega um prendedor e o coloca na camisola
dobrada.
Ai minha Jaci... O Drácula existiu?!
Eu arregalo os olhos.
— Você só pode estar zoando. O Conde Drácula de Bram Stoker... Ele
realmente viveu? — Ênfase no “viveu”, por favor.
Zaph resfolega, fechando os olhos. Logo os abre e me encara.
— Sim, ele não foi uma invenção maluca. Só que ele não era como
retrataram.
— Então — guino levemente a cabeça — o Drácula não foi baseado no
Vlad: O Empalador como dizem?
— Talvez sim, talvez não. — Zaph dá de ombros. — Nunca saberemos o
que realmente se passou na cabeça daquele escritor esquisito.
— Mas então os boatos sobre o Petar... Petar... — arrisco.
Argh! Quem mandou ter um nome difícil? Era algo com “vich”...
— Petar Blagojevich.
— Isso! — Estalo os dedos.
— O que tem ele? — Zaph troca o peso da perna, seu foco concentrado em
mim.
— Pelo que pesquisei... — Espera aí... Aproximo os cílios. — Você não
me perguntou isso no intuito de me instigar a fazer outra pergunta, né?
Seus lábios se apartem num sorriso ladino, quase predatório.
— Você ia perguntar de qualquer jeito. — Cruzo os braços e o encaro de
forma arrogante. Zaph mira meus peitos nada discretamente, mas eu opto por
ignorar.
— Eu sinto que você é bem capaz de deduzir qual seria a pergunta.
— Mas aí não vou poder contabilizar.
— Responde, por favor? — Descruzo uma mão para apontar em sua
direção com o indicador. — E nem pense em colocar essa na sua conta.
Ainda lembro de quando eu costumava passar horas imersa em livros e
artigos acerca de mitologias, das lendas que preenchiam minha mente nos
dias em que eu mais queria fugir de mim mesma. Foi nesse período que
memorizei quase por inteira o quão intricada é a história mística e heroica
do antigo príncipe Vlad da Romênia, que ajudou a libertar seu povo dos
invasores. E, por ser tão cruel com seus oponentes, criaram boatos terríveis
a seu respeito, tornando-o uma criatura que sugava o sangue de seus
inimigos. Mas, sabe como é, uma coisa leva a outra e logo eu estava
conhecendo as histórias de Petar Aquilo-que-o-Zaph-disse-Vich, que
supostamente teria sido um dos primeiros mortos-vivos a surgir na Europa.
Zaph abaixa a cabeça rindo fracamente.
— Certo, certo. O Petar de fato existiu também, e veio antes do Drácula.
De acordo com os Palatinus, o otário foi morto umas décadas depois.
Naquela época, os vampiros não eram tão resistentes, até chegar o tio
Drácula.
Hum, então minhas pesquisas não estão tão erradas assim. Apenas...
incompletas.
— Mas, se nenhum dos dois está vivo hoje, quem é o primeiro então? —
Torço o corpo e pego outra peça de roupa. É uma calcinha. Bege. Minha.
Minhas bochechas começam a queimar, mas tento desconsiderar.
— Pra dizer a verdade, ninguém o viu — ele responde ao colocar um
pregador na calcinha. — Esse troço é seu?
— É confortável! — Trato logo de dar as costas a ele para pegar outra
camisa social do meu pai. — Então como sabem que o Adam é o segundo, e
não o primeiro?
— Até apelidaram Adam de “Falso Príncipe”, o que, inclusive, acho que
subiu à cabeça do filho da puta, mas Drácula, que foi o último Primus que
vimos, teve dois filhos.
Hasteio as sobrancelhas pelo fato dele ter conseguido ter filhos, e ainda
por cima dois.
— Então... O sangue do Drácula, passou para os filhos?
— Exato. — Zaph coloca os dois prendedores na camisa e abaixa o olhar
para mim.
— Então ninguém soube quem foram os filhos?
— Nu, perdemos o rastro depois de uma parte da terceira geração. A
família ficou muito subdividida.
— Como sabem, então, que, sei lá — movo os ombros — todos já não se
foram?
O vampiro romeno solta uma risada nasalada atrás de mim quando me
empeno para içar mais uma calça jeans encharcada.
— A família era extensa, é impossível que todos os descendentes tenham
acabado.
— Sei não, pode ter acontecido uma tragédia, um incêndio. — Arremesso
a roupa por cima do varal.
— Alguns dos descendentes já foram descobertos. Bem, descobertos e
mortos, porque quem os achou não perdeu a oportunidade.
— Cruzes. E como vocês os reconhecem? — Ponho os pés no chão,
erguendo o rosto para fitar o vampiro ao meu lado.
— Na maioria dos casos, pelo cheiro do sangue. Quando sangram, o aroma
é bem único. — Zaph coloca mais dois prendedores e traz de volta sua
atenção para mim.
— Mas, provavelmente, um dos descendentes teve filhos com uma humana,
não é? Para gerar tantos tatara-tatara-tatara-e-assim-vai-netos. Já que é
difícil pros vampiros engravidarem entre si... A linhagem meio que não se
tornou impura e, por isso, mais fraca?
— Ótima 14ª pergunta. Os genes do Drácula estão adormecidos,
desativados na corrente sanguínea e no DNA do herdeiro. Assim como um
vinho que só melhora com o tempo, a parte do sangue de vampiro vai se
“alimentando” e se fortalecendo através da outra parte sanguínea do próprio
indivíduo.
— Nossa. — Coço o coque malfeito, mirando o chão empoçado e tendo os
supercílios levemente comprimidos. — Melhor trocar de assunto antes que
minha cabeça fique mais embolada e... apavorada com a ideia de um sangue
devorando o outro. — Iço a cabeça outra vez, olhando Zaph palitar os dentes
pontudos com o dedo mindinho. — E como funciona essa tal de hierarquia
entre vocês? Por acaso vocês têm um quadro de anotações?
— É, e o penduramos no varal da Torre Eiffel.
— Ha-ha. Tô rolando de rir. — Troco o peso da perna enquanto assisto a
um sorriso quase imperceptível surgir em sua boca.
— Existe um livro. — Ele fecha os olhos e estica os braços para cima,
alongando os músculos num espreguiçar. Tento não encarar demais. Só tento.
— O Livro das Maldições — diz, debochando.
— Por quê? — Me torno outra vez para o cesto de roupas molhadas.
Glória a Jeová, está acabando.
— Primeiro, porque é preciso registrar todas essas descobertas. — Zaph
relaxa mais uma vez, voltando a me observar de forma modorrenta, ao passo
em que me estico para pendurar outra blusa. — Segundo, porque uma das
leis que o Drácula estabeleceu foi a de que tínhamos de conhecer nosso
próprio passado para não esquecermos quem somos. Achei um pouco
estranha, mas cui îi pasă? — Ele balança os ombros.
— É tipo uma bíblia dos vampiros, então.
— Eca. Nu. — Ele obstringe a fronte ao depositar mais um pregador. —
Nosso livro é muito melhor e mais útil.
— Tem magia nele, por acaso? — Faço uma expressão cínica e o olho de
canto.
— Não.
— Então não é tão útil.
— Você é bruxa? — Zaph verga-se para frente e denota um pesar fingido.
— Ah é, não. Com essa são dezenove.
— Vai ficar me lembrando disso o tempo todo? — Repouso as mãos na
cintura.
— Vinte. E, sim, para depois você não dizer que eu tirei mais ou menos.
Faço um bico de insatisfação e mostro o dedo do meio para ele, o que o faz
arrastar um dos lados de seus lábios num sorriso presunçoso. Retorno para
fren… Espera aí. Algo desencadeia em minha mente. “Bruxa”? Devagar,
volto meu rosto para Zaph quando a compreensão me atinge. O vampiro
provoca uma ruga suave entre os supercílios e entorta o próprio rosto.
— O quê? Por que essa cara de boneca possuída?
— Você disse “bruxa”.
Em contraste com o meu sorriso suprimido, Zaph desfaz o vinco na testa e
sua boca se transforma numa linha reta.
— Isso quer dizer que bruxos existem, né? Tipo Harry Potter?! — Aperto a
camiseta em minhas mãos, retendo a empolgação, o que provoca uma chuva
de água no chão próximo aos meus pés.
— Se você comparar os bruxos aos de Harry Potter na frente deles —
responde Zaph, diferente de antes, mais conspícuo — eles vão te pôr numa
fogueira. Ironicamente.
— Meu Deus. — Me empertigo. — Por quê?
— Digamos que eles não são muito simpáticos.
— Mesmo?
— Alguns são muito radicais, outros são mais flexíveis, assim como
qualquer fanático por religião ou time de futebol. Mas uma característica que
todos, sem exceção, compartilham é a crueldade. Um vampiro insano ainda
sente alguma emoção ao te matar, um bruxo, não.
Enrugo a testa.
— Não é possível que não tenha um que seja bonzinho.
— Não existem bruxos bonzinhos. Misericordiosos, talvez. — Zaph dá de
ombros, olhando para a cestinha de prendedores em sua mão, ainda sisudo
demais para o meu gosto.
— Pode pedir para fazer um feitiço para mim, então?
Zaph tranca o maxilar e me olha por baixo dos cílios espessos.
— Não.
Por que ele fica tão tenso com esse assunto?
— Por favor, não inclua essa pergunta na sua contagem, mas, por que você
está assim? — pergunto, pacífica e cautelosa. Zaph demora um pouco a
responder.
— Eu não gosto de bruxos.
— Por quê?
O vampiro inspira fundo e solta o ar pelo nariz.
— É uma longa história.
A rigidez é evidente em sua mandíbula, nos ombros hirtos e,
principalmente, nos olhos. Pode ser minha impressão, mas há raiva e pesar
misturados nos seus tons cinéreos. Não quero forçar, porém vê-lo desse jeito
me comove.
— Eu adoro histórias longas. — Bato os cílios e estico um sorrisinho.
Zaph me encara por alguns segundos, indecifrável, então une as pestanas e
solta o ar pelo nariz .
— Uma das razões — ele começa, afastando as pálpebras — é porque
foram esses desgraçados que criaram os vampiros.
MEU ALÁ. Meus olhos saltam de imediato.
— Os bruxos são os seres mais antigos entre nós. — Zaph retorna seu foco
para o alto, circunspecto, como se visualizasse toda a história no céu
tangerino de contrastes arroxeados. As sombras começam a se acentuar ao
nosso redor, como espíritos fofoqueiros à espreita. — Começou com um
cadáver. Um bruxo introduziu magia pura nele. O cara voltou à vida, mas
fora de controle. Não durou muito. Depois, pegaram outro cadáver, puseram
magia nele de uma forma mais diluída, então ele conseguiu voltar à vida,
mas somente poderia sair de madrugada e morria por qualquer coisa. Vendo
que seus... experimentos não davam certo, eles descobriram que faltava
consciência. Eis que finalmente desenvolveram um ser pensante e
humanoide. Esse foi Jure Grando. Mas ainda faltava alguma coisa para
atingir a perfeição. Não sei quem foi o gênio que determinou que cada
discípulo de bruxo, para “se provar verdadeiramente digno de usar magia”,
deveria criar uma vida.
— Isso não é coisa de alquimista? — Ou será que meus breves
conhecimentos de Full Metal Alchemist estão equivocados? Abaixo a
blusa, ficando frente a frente com ele.
— Alquimistas buscam criar um ser de carne e osso a partir do zero, um
homúnculo. Já os bruxos pensaram em algo maior. Quiseram dar uma de
deuses e criar a vida propriamente dita. Aquele sopro, a fagulha etérea, que
mistura psique e espírito.
— Por isso vocês precisam do sangue. Sangue é vida. — Zaph abaixa o
rosto para mim e meneia a cabeça. — Então... vocês têm magia correndo
dentro de vocês?
Era para ser uma afirmação, mas saiu como uma pergunta.
— Um pouco. Sendo assim, ano após ano, cada maldito aluno — sua
mandíbula trava por um segundo — criou um maldito tipo de ser que vive à
base do maldito sangue a partir da maldita matéria anímica que eles
elaboraram. — Ele solta um suspiro cansado e aborrecido. Sei que Zaph
detesta interrogatórios, mas algo me diz que sua raiva vai além disso. —
Eles usaram corpos “tecnicamente mortos”, ou seja, o coração havia parado,
mas o cérebro não, e assim chegaram à sua grande obra prima. Uma criatura
viva, feita através “do sopro divino”, resistente e consciente.
— Drácula — concluo.
— Não. — Zaph me olha de forma dura. — Elizabeth Bathory.
Junto com o Petar Bla-bla-vich, eu também li um pouco sobre o tal de Jure
Grando, entretanto, preciso admitir que foi a história de Elizabeth Bathory da
Hungria, a infame Condessa Sangrenta, que me fascinou.
— Tá brincando — exclamo.
— Queria eu estar.
— Então, qual era o papel do Drácula na sociedade de vocês?
O vampiro solta um resfôlego, mas não me parece muito amofinado quando
me observa.
— Dumnezeule, as perguntas não acabam.
Na verdade, sua feição voltou a ser muito mais leve, e isso me alegra.
— Eu sou filha de um investigador, querido. — Me faço de convencida e
movimento o ombro para cima.
— Bine. — Ele guina para frente, quase me forçando a retroceder. — Eu
vou coletar meu pagamento por todas essas perguntas mesmo. E vou
aproveitar cada chupada.
Zaph passa a língua pelos lábios e ostenta um exíguo sorriso, mas com uma
maldade bem nítida em sua curvatura. Em compensação, eu o olho neutra.
— Nunca mais use essa palavra para se referir ao meu sangue. Nunca.
— E se eu me recusar a fazer isso?
— Então serei obrigada a te estapear.
Ele libera uma risada em meio a um suspiro e ajeita a postura.
— O quê? — Movo o pé e apoio os punhos nas ancas. — Acha que não
sou capaz de te descer o cacete?
Pode não ter efeito algum, mas seria muito satisfatório.
— Eu? — Zaph coloca uma mão no peito. — Jamais.
— Acho bom. — Empino o nariz e finjo não reparar no sorriso que ameaça
romper seus lábios.
— Voltando à sua pergunta antes das minhas chupadas por direito, o
Drácula era o Primus e também um Boiardo da Valáquia, ou seja, tinha
deveres para com os vampiros e os residentes humanos de suas terras. Ele
era um militar, ajudou na luta contra os otomanos, porém também cabia a ele
as decisões dos Palatinus. Seu nome era Viorel II. Quando mataram sua
mulher, sua ira o fez dizimar a vila inteira. A palavra dracul em romeno
pode ser traduzida como demônio ou dragão. Não é muito difícil de imaginar
por que o apelidaram de Drácula.
— Acho que é por isso que alguns filmes têm a representação de vampiros
como demônios — concluo, lançando a blusa no cabo.
Ouço a risada nasal de Zaph.
— Obviamente isso é culpa da Igreja. — A mão de Zaph invade minha
visão ao colocar os pregadores na camiseta. — Como quase tudo hoje em
dia, pra ser honesto. Ainda há muita influência doutrinária religiosa na
sociedade. Era muito comum na época também. Mas essa obsessão por
demônios acontecia porque a maior parte de nossa raça é impiedosa. Além
disso, quando o sangue não é o suficiente, mantemos nossos corpos quentes
com sexo. — Eu não preciso encará-lo para saber que ele assume um sorriso
parvo. — Bastante sexo.
— Vocês não têm um clube de orgia, têm? — alfineto com um sorrisinho,
sem mirá-lo e pronta para pegar outra peça de roupa. A última, aleluia!
— Por quê? Gostaria de participar?
Jogo a camiseta branca molhada em seu rosto para esconder meu
constrangimento, mas acabo rindo no processo. Zaph tira a peça do rosto
empapado, as pontas da franja úmida, e seu olhar afiado me atinge como um
raio.
Ô-ou.
Segundos depois, me vejo desviando das roupas penduradas nas fileiras do
varal para escapar de um vampiro vingativo, dentro de um espaço com
menos de doze metros quadrados. Rio de nervoso quando sinto o tecido
molhado e gélido da camiseta que eu arremessara nele enlaçar minha cintura
como um gancho e me trazer para trás. Com o movimento abrupto, meu
cabelo acaba desatando o nó e cai em meu rosto.
Continuo rindo e cuspindo os fios em agonia, quando de repente sou girada
e o corpanzil de Zaph cobre o meu, mesmo sem me tocar. Ele me embarreira
com a camiseta torcida, cingindo minha lombar.
— Aaah! — guincho ao me encolher de olhos fechados, os braços
protegendo meu rosto quando Zaph sacode a cabeça, lançando respingos de
água para todo lado. — Seu idiota! — digo, entre risos.
— Devidamente justiçado — Zaph diz, mas sua voz próxima ao meu rosto
envia uma energia que me percorre por dentro. Escolho abafá-la.
Reconheço Lights Down Low do MAX soando ao longe, infiltrando-se por
entre as peças de roupa pendentes ao nosso redor e ricocheteando pelas
paredes cada vez mais laranjas e toldadas devido ao pôr do sol lá fora.
— Eu sei dançar bolero, sabia? — Zaph substitui a blusa molhada em
minha cintura pela sua mão, me puxando para si. Meus dedos
automaticamente se apoiam em seu peitoral, e não resta um mísero espaço
entre nós. Meu pobre ar fica preso nos pulmões.
— Isso não é bolero. — Tento esconder um sorriso.
— Não, não é — sussurra o vampiro, tão perto e tão longe.
Zaph, então, me guia devagar para um lado, depois para o outro. Suas mãos
encostam de forma suave em minha lombar, embora pareçam pesadas e
mornas contra minha pele sensível mesmo por cima do tecido fino da blusa.
Não quero pensar na sensação que elas evocam em meu ventre, mas é quase
impossível. Decido fechar os olhos e mitigar, deixando as cordas do violão
me embalarem junto às nossas passadas lentas. Repouso a lateral da cabeça
em seu peito, conforme o vampiro me leva num vagaroso giro. Seu perfume
amadeirado se mistura ao aroma de amaciante e o rufar regular de seu
coração ao arranjo da música. Queria ficar assim para sempr... EITA!
— Você pisou no meu pé — constata Zaph, e eu prendo uma risada sem
abrir os olhos. — Como você conseguiu pisar no meu pé nessa velocidade?
— Sinto o reverberar de sua pergunta.
— Desculpa. Eu estou acostumada a dançar sozinha.
— O jeito vai ser te inscrever em umas aulas com o melhor professor que
há: eu.
Isso me faz gargalhar com deboche. Era só o que me faltava, um vampiro
me dando aula de dança de salão.
De repente, o nariz de Zaph está encostado na envergadura do meu pescoço
e tento não pular de susto. Suas mãos espalmadas no meu quadril deambulam
pelas minhas costas, aventurando-se pelas curvas da minha angelical lordose
e da minha cintura.
— Te tocar me deixa louco — Zaph murmura ao pé do meu ouvido.
Aos poucos, um ruído de motor familiar se estabiliza do outro lado da
casa. Limpo a garganta de forma discreta.
— Meus pais chegaram. — Cometo o erro fatal de olhar para seus orbes
logo acima.
— E? — O rosto de Zaph se abaixa até sombrear o meu. Meus olhos não
são capazes de focar em mais nada além de suas íris cálidas. Meu coração é
um bumbo.
— E que minha mãe vai surtar se te encontrar aqui.
— Ah. Aposto que sim. — Zaph usa e abusa de seu tom baixo, arrepiando
os pelos atrás da minha orelha, mesmo sua boca estando longe. No entanto,
ela está perigosamente próxima da minha.
— Você precisa ir. — Nossos hálitos se combinam entre nossos lábios e
narizes. Meu coração martela no peito desejando que isso aconteça, mas ao
mesmo tempo querendo expulsá-lo.
— Alice? — A voz da minha mãe ao entrar em casa me desperta e afasto
Zaph, empurrando-o. Ele permanece sólido e resistente como uma rocha,
mas cede, suas mãos escorregando da minha cintura devagar. Ngao Chen, eu
fiquei maluca? Um passo de cada vez, Alice. Uma porra de passo de cada
vez.
Zaph solta um suspiro um tanto insatisfeito e olha para o alto, estudando a
abertura. Ele recua uns bons passos, embrenhando-se às roupas esticadas.
Segundos depois ressurge, toma impulso indo de uma parede a outra até
segurar-se na borda e puxar o peso para cima com facilidade. Ele senta no
muro, com as pernas voltadas para mim e sorri.
Meneio a cabeça em negação, mesmo com um dos lados dos lábios
levemente enroscados para cima. Exibido.
— Alice?! — A voz de minha mãe soa mais próxima.
Zaph sinaliza com dois dedos na testa e lança o corpo para trás,
desaparecendo.

Por fim, chegou a sexta-feira da tão sonhada choppada da qual Julia não
parava de falar. Eu não estou preocupada com isso, nem um pouco... Ok, eu
estou pirando. Faz tempo que não saio assim. Meu interno se divide em:
SIMBORA, PORRA! PARTIU FESTA! e Pai nosso que estais no céu,
santificado seja o vosso nome...
Depois de alguns minutos ao som de Imagine Dragons, cantando bem
baixinho, enquanto eu estava deitada na cama com o notebook sobre a
barriga, escuto um ruído de geladeira se abrindo. Meu pai? Um ladrão?
Meu coração dá um salto. Zaph?
Desço as escadas, não querendo criar expectativas, mas...
— E aí? — Igor morde um pedaço de uma maçã, parado próximo à
geladeira, ainda com uma mão mantendo a porta aberta. Ai, a energia sendo
gasta à toa.
Memorizo cada traço seu, reconhecendo cada detalhe, até meu cérebro
assimilar a realidade. Os cabelos castanhos escuros cortados quase rente à
cabeça, o queixo quadrado exibindo uma mancha de barba, o bigode ralo ao
redor da boca fina, os olhos como os de nossa mãe contornados por olheiras
sutis – provavelmente das noites diante do computador –, a estatura alta de
silhueta esguia e a palidez.
Por um momento, eu poderia pensar que era um sonho ou uma alucinação,
mas meus sentidos estão muito bem despertos.
Sem querer, libero uma risada fraca ao abrir um sorriso. Perco o ar ao
sentir meu coração se retorcer de saudade e corro em direção ao meu irmão.
O baque do abraço o desequilibra, mas não o solto. Continuo agarrada à
blusa grossa dele, sentindo seu suor molhar a parte de trás da roupa – eca – e
meu rosto grudar em sua barriga magra, a fragrância típica misturada à
transpiração.
A sensação é de que uma parte de mim voltou. Ela nunca tinha ido embora,
apenas sido perdida entre tantas outras bagunçadas e opressoras.
Igor retribui o abraço apertado e me sinto acolhida. Lágrimas molham
meus cílios, mas antes que elas possam crescer, me afasto, fungando.
— Fala, criança, papai e mamãe estão trabalhando? — Igor segura a maçã
com a boca para fechar a porta da geladeira, em seguida pega a mochila
jogada perto dos pés.
— Nossa mãe está dormindo. — Inclino a cabeça e cruzo os braços,
trocando o peso da perna. — Sabe, existe um aparelho tecnológico chamado
celular que serve para se comunicar com outras pessoas. Você podia ter
avisado que viria.
— Queria fazer surpresa. — Igor encolhe os ombros a princípio, depois
ajeita a alça da mochila enquanto mastiga. Ele sai da cozinha e anda em
direção ao sofá comigo em seu encalço.
— A surpresa pra eles vai ser saber que você está vivo. — Sigo meu
irmão até observá-lo jogar seu peso na almofada, enquanto permaneço de pé,
em sua diagonal. — Poxa, Igor, você tem família além da namorada, podia
aparecer mais, mandar notícias de vez em quando, pelo menos. — Havia
tanto que eu queria falar para ele. Tantas perguntas do gênero “por que você
me abandonou?”. Mas não posso verbalizá-las. Não por não ser capaz, eu
simplesmente não quero. Porque sei que seriam apenas perguntas de alguém
medíocre. Minha irritação diminui um pouco e relaxo a musculatura. —
Depois que você se mudou, as coisas aqui também mudaram, Igor.
Meu irmão mais velho não desvia o olhar do meu rosto enquanto mastiga, e
bate no assento do sofá ao lado dele assim que engole.
— Eu sei. — A quietude fica pesada por algum tempo, as lembranças
penosas soterrando nós dois. Imagens alegres da nossa infância se misturam
às mais coercivas e recentes. — Vem cá, não faz esse biquinho.
Me deixo cair onde ele bateu.
— Não tô fazendo biquinho.
— Tá sim, bicuda.
— Para. — Parto para um soco, mesmo que fraco. No entanto, Igor pega
meu pulso e me imobiliza, me mantendo envolta em um abraço.
— Desculpa, mana. — Ele beija o topo da minha cabeça. — Prometo
voltar mais vezes. Vamos a eventos de anime como antigamente, até planejar
alguns cosplays e assistir alguns filmes bizarros da SyFy. O que acha?
— Acho bom.
Percebo então que o milagre verdadeiro não é Igor estar aqui, e sim ele
estar aqui sem a namorada. Transtornada com isso, eu ergo o tronco saindo
do abraço e o encaro.
— Aconteceu algo com a Fernanda?
— Não, por quê?
Franzo o cenho.
— Você hesitou.
— Não hesitei.
— Hesitou, sim.
Depois de resfolegar, meu irmão levanta o rosto.
— Quer saber, como eu sei que você não vai sossegar até arrancar alguma
coisa de mim, eu não ia vir pra cá, por isso não avisei, porque não estava
nos planos. Assim como ela engravidar também não. Aí eu quis escapar, sei
lá, sair de perto, tomar um ar, e esse foi o primeiro lugar que me veio à
cabeça.
Ele solta um longo, longo suspiro.
Meu. Santo. Mashima.
— A Fernanda está... grávida? — pergunto, assimilando a ideia.
Fernanda e ele passaram a morar juntos logo que ele se mudou. Nunca
foram o casal mais ortodoxo, mas quem liga? Me lembro de quando ela veio
nos visitar pela primeira vez, sua pele parda era repleta de tatuagens
desconexas e os cabelos loiros lisos tinham mechas coloridas. Minha mãe
ficou horrorizada, eu fiquei admirada.
— Está — Igor responde, estável. — Eu... queria um tempo longe pra
pensar.
— O filho é seu?
Igor se vira raivoso para mim.
— É claro que é meu, porra!
— Desculpa, desculpa. — Levanto as mãos em defesa. — Não custa nada
perguntar, hoje em dia, né... Você fez um teste de DNA?
— Alice!
— Tá, ok, desculpa! — Peso minhas palavras com o maior cuidado
possível, ao tempo em que abaixo minhas mãos. — Ela não avisou que não
estava tomando anticoncepcional? Ou...
— Ela avisou, fui eu quem não quis usar camisinha. Qual foi, estamos
juntos há... há quanto tempo? Quatro anos? Só que não achei que iria
acontecer assim, tão... — ele arfa.
— Eu sei. — Ninguém nunca espera que vá acontecer com eles. Eu já acho
que qualquer coisa pode acontecer com qualquer um. Obrigada, querida
distorção cognitiva.
Igor ergue o olhar para mim, fazendo um sorriso tímido surgir.
Santo Damiani! Vou ser tia! Eu vou ter uma sobrinha! Sim, estou
torcendo para ser menina.
— O que vocês farão agora? — Pisco, revelando uma faísca de animação.
Igor passa a mão pelo rosto.
— Não sei, não conversamos sobre isso, mas eu já tenho uma ideia do que
fazer.
Comprimo a testa.
— Opa, pera aí. Você fugiu antes que pudessem conversar?
— Eu não fugi. Eu só me afastei, tirei licença maternidade. — Meu irmão
empina o nariz e apresento uma expressão cética.
— Você avisou que ia sair?
— Não.
— Então fugiu.
— Nada a ver. — Ele abana a mão. — Muitas fugas são avisadas.
— Então tá, vou reformular a pergunta. — Entrelaço os dedos. — Vós
deixastes a senhora vossa amada previamente avisada sobre tua abrupta
partida?
Ele para por uns instantes.
— Não.
— Então fugistes.
Igor bufa.
— Vou pedi-la em casamento.
— Você vai fazer que nem nas novelas e esconder a gravidez dos nossos
pais até o último momento, surpreendendo o público com a revelação? —
pergunto com um sorriso, enquanto Igor apenas me fita, neutro.
— Você precisa parar de ver tantos filmes.
–A
paga isso, pelo amor de Deus! — Julia grita na minha orelha,
tentando fazer sua voz sair mais alta que a batida da música que
reverbera e retine pelas paredes. O ambiente é uma mescla de
bar rústico e boate, com um mezanino de balaústres em madeira nas laterais
e luzes coloridas iluminando de relance as mesas redondas altas, com as
pessoas espalhadas ao redor delas. Através da vidraçaria translúcida no
segundo andar, é possível observar a tintura descascada dos Arcos da Lapa
adquirir um tom forte de esfalerita devido às luzes da praça contra a noite.
— Ah, por quê? Está tão linda! — Sorrio, pois definitivamente ela não está
linda na foto.
— Você está louca ou com problema de visão?!
Solto uma gargalhada.
Eu apenas continuo analisando a nossa foto que rutila na tela do celular.
Depois que fomos ao quarto de Igor para julgarmos animes toscos, houve
uma pequena briga quando tentei ver a hora em seu telefone e ele o manteve
fora de alcance, mas triunfei em meu objetivo. Consegui me encaixar numa
calça de cintura alta, num body preto de fivelas e em meus saltos, e fiz a
tragédia que vulgarmente chamo de maquiagem no meu rosto em tempo
recorde.
Quando a buzina do carro soou fora de casa, dona Heloise passou aquele
protocolo que toda mãe passa antes do filho sair e eu despejei um beijo em
sua bochecha.
Ao entrar no carro, as meninas se espremeram e trocamos sorrisos alegres.
Meu coração palpitava fortemente, mas eu estava contente. Havia passado
um bom tempo com o meu irmão e agora eu estava saindo com as minhas
melhores amigas.
— Não vou apagar não, vou deixar de recordação. — Estendo o celular
para sua dona por cima da mesa alta e circular, onde tem uma confusão de
bebidas e bolsas. — Mel, não apaga e me passa depois.
— Se você postar isso...
— Relaxa — digo, abrindo uma garrafa de água. Odin me livre, sete reais
uma água. Da próxima, eu trago a minha própria.
— Quem topa mais um shot? — Ju sai em direção ao bar e arrasta Melissa
junto antes que eu pudesse argumentar por estar engolindo o líquido fresco.
Eu estou suor puro, a vontade é de jogar essa água na cara. Já que não bebo,
fico como a sóbria guardiã das bolsas enquanto elas vão se encher de
tequila.
Estar no meio de um ambiente caótico e abarrotado de gente faz minha pele
pinicar, mas tento não pensar nisso. Abro a minha bolsa a fim de pegar o
celular, desbloqueio a tela e... Nossa Senhora, são quatro da manhã! Deveria
ir para casa, mas Dancin começa a tocar e, poucos segundos depois,
enquanto me balanço segurando na mesa, avisto Julia atravessar a multidão
com uma mão erguida e a outra rebocando Melissa. Ambas chegam perto da
mesa e posso descontrair sabendo que elas estão ali. Fecho os olhos e deixo
a música penetrar em meus poros.
Sinto a vibração da batida, da harmonia, da melodia em mim, deixando o
ritmo me guiar. Não sei quando começou, mas sempre amei a forma como me
sinto livre para expressar meus sentimentos, extravasar minha essência
confusa, reprimida quando danço. Permitir que meu corpo traduza em
movimentos tudo aquilo que guardo.
Minhas mãos acompanham os movimentos como se pudessem tatear a
energia, o suor escorre pela minha nuca, grudando meus cabelos, e também
pelas minhas axilas, mas nesse momento eu estou pouco me fodendo! Deixo
que minha mente mergulhe num outro universo atrás das minhas retinas só
por alguns instantes. Meu universo. Um local onde me sinto plena.
Abro os olhos, voltando à realidade devagar, e, sob as luzes multicores da
festa, além do mar de corpos agitados, avisto Zaph.
Minha respiração parece ficar ainda mais pesada enquanto o observo
parado ali no meio. Jovens cruzam a minha frente, bambos e risonhos,
interrompendo minha visão do vampiro. Mesmo com a movimentação, eu
vejo claramente Zaph me fitando, seus orbes âmbar refletindo os flashes de
luzes.
Eu não paro de dançar e um sorriso se abre em mim ao saber exatamente o
que as carícias de minhas mãos em meu próprio corpo fazem ao vampiro.
Eu não deveria provocá-lo. Devo ir até ele?
Procuro as meninas ao redor da mesa. Melissa se balança na batida da
música, um pouco menos intensa do que eu, já que ela está de olho nas
bolsas e garrafas. Ju está atracada com um cara, beijando-o libertinamente.
Quando volto a olhar na direção de Zaph, ele já não está mais lá.
Será que eu o imaginei? Inspiro fundo e viro para trás.
— São quatro da manhã! — grito para Mel por cima do som, fazendo um
coque com o cabelo úmido. Ela me olha atentamente, sem parar de oscilar.
Como Melissa ainda parece meiga depois de tanta Catuaba, eu não sei. —
Acho que já podemos ir para casa!
— Também acho! — Mel coloca uma mecha do cabelo carvão cacheado
atrás da orelha e se inclina. — Até a gente chegar lá, já vai ser umas seis
horas!
Anuo e giro a tempo de ver Julia nos alcançar, cambaleante. Os olhos
parecem sonolentos, e começo a ficar preocupada. Seguro seu braço, dando
estabilidade, então a encaro. Julia mostra um sorriso embriagado, fraco.
— Vamos embora!
— Não! — ela resmunga.
— Sim! Você já está mais pra lá do que pra cá!
— Mentiiira! — Abro a boca para replicar, mas a batida se transforma em
funk e os olhos de Julia se arregalam. — Aaaah! — Ela segura meus pulsos.
— Vamos dançar só mais essa, por favooor!
Comprimo os lábios.
— Tá. Só mais essa.

Hã? Quê? Que horas são?


Me encontro de lado na minha cama e sem edredom. O que é uma raridade,
já que minha geração foi criada à base do cobertor mágico contra o demônio
que puxa o pé. O sol já está alto, iluminando o quarto que não tem uma
maldita cortina decente.
Ah, quem se importa? Afundo outra vez no colchão. Hoje é sábado.
Duas horas depois daquele “só mais essa música”, eu e Melissa estávamos
arrastando Julia para fora da festa. Nossa amiga resmoneava e ria à toa,
tropeçava e embolava as palavras enquanto a carregávamos pela cintura.
E sabe aquele banho com o qual eu estava sonhando quando chegasse em
casa? Não aconteceu. O cansaço foi maior. Só deu tempo de tirar a sandália,
abandonar a bolsa no pé da cama e adeus mundo. Eu dormi como um anjo.
Ou como uma pedra mesmo.
Eu me contorço, emitindo um gemido à medida que começo a me
espreguiçar dentro do abraço confortável de Zaph. Sinto seu peito descer e
subir tranquilamente em contato com as minhas costas, seu braço pesar sobre
minha cintura e suas pernas encolhidas aninharem as minhas. Meus lábios se
esticam num sorriso quando suas mãos grandes iniciam um passeio pelas
linhas sinuosas da minha barriga, meu ventre, meu flanco... Sua boca beija a
parte posterior da minha orelha e meus seios de repente pesam.
Involuntariamente, meu quadril se remexe e os dedos seguros de Zaph o puxa
mais para si. O tato de minha bunda contra sua pelve faz meu útero se
contorcer inteirinho. Posso discernir claramente o volume endurecido
encaixado no vale entre minhas pampas e minha boceta pulsa quando Zaph o
esfrega em mim. Que belo dia. Sem escola, os pássaros voando, as crianças
brincando, Zaph de conchinha comigo...
Abro os olhos bruscamente.
ESTOU DE O QUE COM QUEM?!
De olhos sobressaltados, me viro para o outro lado e dou de cara com o
rosto de Zaph. Ele exibe um sorrisinho traiçoeiro e os olhos cinza estão
enquadrados pelas pontas da franja preta caída.
— Buna Seara — o vampiro diz casualmente, como se não estivesse com
o corpo espremido entre a parede e o meu.
— Hãã... — Limpo a garganta. — Bom dia.
— Já são duas da tarde.
— O que pensa que está fazendo? — Agito os cílios e afasto minha face
para ver melhor a sua, sempre impecável mesmo sem dormir um pingo.
— Pensei em vir bater uma boquinha. — Ele dá uma piscadela e eu
absorvo essa informação por um momento.
— Para um vampiro romeno, você sabe bastante gíria brasileira.
— Eu sei um pouco de tudo, draga. Tive mais de trezentos anos para fazer
o que me desse na telha.
— Viu? Gíria.
Uma feição convencida se projeta em seu rosto.
— Primeiro: isso é uma expressão idiomática. Segundo: vai ficar
regulando meu vocabulário?
Decido, então, imitá-lo.
— Primeiro: tanto faz. Segundo: se você pode contar quantas mordidas,
não chupadas, eu te devo, então, sim, eu também tenho o direito de te regular
em algo. — Ele cria uma leve ruga entre as sobrancelhas.
— Céus, “chupada” realmente é uma palavra pornográfica.
— Não disse? — Estreito um pouco os olhos. — Quantas ainda restam
mesmo?
— Faltam exatas... — Zaph puxa o ar pela boca e para. — Não sei, perdi a
conta. E, por falar nisso, quanta saliva é capaz de sair da sua boca, hein.
Não sei o que me atinge primeiro: vergonha ou injúria.
— Eu só babo quando estou muito cansada!
— Nossa, se aquela festinha te deixou tão cansada, imagine quando eu
deixar sua boceta inchada de tanto te foder.
Eu não ouvi isso, eu não ouvi isso. Pelo bem da minha sanidade mental e
da minha xaninha, finjo que não escutei. E também porque algo mais urgente
me veio à mente. Eu arregalo os olhos e me ajeito na cama para olhá-lo
melhor.
— Então você estava na festa! Eu achei que estava ficando maluca. Por que
não foi falar comigo?
— Você queria que eu tivesse ido falar com você ou beijar você?
A mão de Zaph sobre minha barriga de repente parece pesar e esquentar.
Uma ardência sobe lentamente pelo meu pescoço. Contudo, ao visualizar o
sorriso mordaz expandindo-se na boca do vampiro, ela desaparece.
— Você faz isso de propósito, não é? — pergunto, as pálpebras baixas.
— Adoro como você cora. — O diacho ainda tem coragem de diminuir o
tom de voz.
— Você precisa parar de ser idiota.
— E você precisa escovar os dentes.
— Ninguém mandou se enroscar em mim, agora aguente as consequências.
— Dependendo de quais forem, eu aceito de bom grado.
Tento não demonstrar minha surpresa quando Zaph me arrasta pela minha
cintura – o que manda uma vibração para o resto do meu corpo. Minha mão
automaticamente voa para seu ombro, querendo manter uma distância entre
nós. Contudo, minha palma me trai ao tatear a rigidez de seu músculo. Quase
posso sentir minha coluna reclamar, a mesma medida que meu coração
descompassa. Zaph abaixa os olhos para minha boca, seu aroma de floresta
úmida me inundando, seu nariz tão perto... Meu Indra, eu estou vesguinha.
— Alice!
Com os olhos arregalados e o coração sutilmente na boca, me afasto de
Zaph às pressas no intuito de levantar.
— ALICE!
— JÁ VOU! — grito em resposta, batendo nas mãos de Zaph que tentam
puxar minha cintura e meu pulso. — Para, cacete.
Empurro as mãos do vampiro, que ostenta um sorriso gaiato, e fico de pé
num pulo.
Eu poderia dizer a mim mesma que a urgência era só para não contrariar
Heloise, mas cada partícula minha sabia que era porque eu estava
desesperada para sair do enlace de Zaph antes que eu fizesse uma besteira.
— E você fique quieto aí. — Aponto um dedo ameaçadoramente para o
homem folgado na cama. Ele passa os dedos unidos na boca como se
fechasse um zíper.
Como é que meu irmão não acordou com esse berro? Conhecendo-o, deve
ter passado a noite acordado trabalhando de novo. E pensando no bebê a
caminho. Ou trabalhando para não pensar no bebê a caminho. Tadinho.
Eu me apoio no corrimão, mirando a escadaria abaixo.
— O que foi? — pergunto.
A cabeça morena da minha mãe aparece no vão de acesso ao térreo e ela
olha para cima em minha direção.
— Marquei ginecologista. Às duas da tarde. — Minha mãe põe a mão na
cintura. — Vai ser o inferno na terra pra remarcar a consulta, então é sair da
escola e ir direto para o consultório, ouviu?
— Tá, vou ver se a agenda da minha menstruação está livre.
Heloise contorce a boca sem gostar da brincadeira.
— E vê se desce para almoçar. São quase três da tarde, mas é melhor que
nada.
Endireito a coluna, volto ao meu quarto e me deparo com Zaph sentado na
cama. As pernas cruzadas e a espinha arcada, folheando um álbum de fotos.
Será que ele também tem escoliose?
— Mas que criança gorda.
Chego mais perto, fazendo um coque no cabelo imundo, e observo o
vampiro virar uma página do álbum. Ali está uma foto da família no Natal.
Eu preciso urgentemente de um banho. Como é que o Zaph conseguiu ficar
perto desse cabelo fedido?
— Sempre nos reuníamos no Natal e no Ano Novo. — Me sento
atravessado ao vampiro, na ponta do colchão. — Mas cada um foi para um
lado. Nos separamos um pouco depois que dois tios foram pra Portugal. Foi
um baque para a família quando chegou uma carta atestando o óbito.
Perdemos os quatro: tio, tia e meus primos.
Foi uma época difícil. Eu era pequena, mas me lembro bem da sensação de
solidão em cada um dos meus familiares. Zaph vira outra página e mais
quatro fotos da família feliz e perfeita aparecem. Eu não guardo muitas fotos
impressas, mas tenho algumas dos momentos em que me senti viva.
Foco na fotografia em que estou com oito anos e sorridente, agachada entre
meus quatorze primos. Quatorze só por parte de mãe, quinze comigo. Ao
menos eram quatorze. Luto contra o sentimento cabisbaixo que quer afundar
meu peito.
— Foram esses dois. Eduardo e Nathalie. — Aponto na foto para dois
jovens atrás de mim. Logo indico outros três, dois garotos e uma garota. —
Esses daqui morreram num acidente de carro. Estavam voltando de uma festa
e, aparentemente, o Gabriel tinha bebido. — Relembro seus rostos risonhos,
jogando cartas com o pessoal. Na minha mente, um grande X vermelho
aparece sobre aqueles que já se foram. — E essas gêmeas, Karina e Katrina,
num assalto.
— Pula mea.
Tomo um longo e profundo fôlego para soltar em um longo e profundo
suspiro. Reconheço a sensação pesada e obscura se apossando do meu peito
aos poucos.
Zaph vira a página e, logo abaixo de uma foto minha de beca azul com
meus pais na minha formatura do ensino fundamental, é exibida uma imagem
do nosso trio “Super Gatinhas.” Um sorriso tímido se abre no meu rosto. A
foto foi tirada no dia em que saí da clínica, estou no centro entre as meninas
e todas nós ostentamos um grande sorriso.
— Você não me falou que conhecia outro vampiro. — O tom sério de Zaph
me traz de volta ao presente. Observo sua fisionomia um tanto...
preocupada? Seu foco fixado na foto de Melissa e Julia. Contraio a testa.
— Mas não conheço. — Levanto o olhar para ele, embora o vampiro
romeno não o devolva. Desvio a atenção quando ele aponta para Melissa.
— Ela é uma vampira.
Não consigo impedir uma risada nasal de escárnio. Cruzo os braços.
— Olha, só porque ela é pálida não quer dizer que...
— Alice, eu a conheço. — Zaph enfim levanta os olhos para mim, de forma
severa.
— Quê? — Meus braços despencam, quase simultaneamente com o meu
coração. Não pode ser verdade.
— O nome dela é Melissa, não é? Melissa Cilli.
O mundo parece rodar devagar. Abaixo o olhar para a figura de Mel
sorridente ao meu lado. Uma voz na minha cabeça está gritando
desesperadamente que isso não é real, negando-se a acreditar e implorando
que seja mentira. Meu coração começa a rimbombar velozmente e o ar me
falta.
— Você está brincando comigo — falo para Zaph, na esperança de tudo
não passar de uma brincadeira de mau gosto. Ainda que algo dentro de mim
diga exatamente o contrário.
Minha frequência cardíaca dispara quando Zaph me fita, sério, e nega com
a cabeça. Resfolego e me ponho de pé. Calma, fica calma, respira.
— Tudo bem? — Zaph pergunta da cama enquanto eu dou as costas para
ele, tentando não tremer e controlar a respiração. Engulo o nó na minha
garganta para responder sem que minha voz saia tão fraca quanto eu.
— Eu vou tomar banho.

Aproveito de olhos fechados cada mililitro de água quente que desaba


sobre mim e escorre pelos meus membros, como se ela pudesse dissolver e
levar a massa grotesca que vive dentro de mim para o ralo.
Eu não consigo parar de pensar no que Zaph disse sobre Melissa. As
mesmas palavras ricocheteiam na minha mente, reverberando nos meus
ouvidos na vã tentativa de me fazer encontrar razão naquilo. Eles se
conhecem? Zaph está mentindo? Descobrir que Zaph é um grande mentiroso
seria muito menos doloroso do que descobrir que uma das minhas melhores
amigas escondeu alguma coisa assim de mim. Mas eu nunca tinha falado o
nome dela para ele. Nem dela, nem de Julia, nem de ninguém próximo a mim.
Mas agora... Por que ela não me contou?
Eu quero chorar, mas não tem lágrimas para sair. Me sinto seca por dentro.
Uma batida na porta do banheiro me alerta.
— Tudo bem aí? — É a voz de Zaph e ela soa legitimamente preocupada.
— Já estou saindo. — Já a minha ecoa um pouco titubeante, então fungo,
me recuperando. Tento não olhar para o piso níveo sob meus pés descalços e
encharcados, para não voltar ao passado. Mas é quase inevitável.
Desligo o chuveiro e abro a porta do blindex. Droga. Esqueci de trazer as
roupas para o banheiro.
Será que se eu pedisse a Zaph ele me entregaria sem bisbilhotar?
Definitivamente não.
Suspiro derrotada e me enrolo na toalha. Inspiro profundamente, abrindo
apenas uma parcela da porta do banheiro. Pela fresta, vejo a imagem de
Zaph sentado de pernas abertas na cama, as mãos espalmadas no colchão
atrás de si, a cabeça rodando ao esquadrinhar cada mísero canto do meu
quarto como se estivesse procurando algo de novo, e o álbum fechado ao
lado de seu quadril. Quando seu rosto vira em minha direção, luto contra um
rubor e aponto um dedo para ele.
— Fique exatamente aí — ordeno. — Não ouse se mover um centímetro.
Zaph levanta as sobrancelhas junto com as mãos em rendição.
Inspiro outra vez, reunindo um pouco de valentia, e abro totalmente a porta
do banheiro. Ando apressada direto até a cômoda. Ignora ele, ignora ele,
ignora ele...
— Escovou os... Fată ciudată, — seu timbre entoa arrastado nas últimas
palavras, sôfrego. — Você está fazendo isso de propósito?
Abro e remexo na minha gaveta de peças íntimas, ignorando as caixas de
remédio no fundo e a presença repentinamente muito acentuada de Zaph às
minhas costas, por mais distante que ele esteja.
— Eu tenho cara de quem faria uma coisa assim de propósito?
— Tem.
Merda.
— Só esqueci de pegar minhas roupas. — digo, imperturbável.
Droga, as calcinhas mais confortáveis estão lavando.
— Por que não me pediu? — Zaph pergunta.
Vou ter que vestir esse troço que Julia me deu de aniversário, penso ao
levantar um conjunto de lingerie vermelho e torcer o nariz.
— Porque eu sabia que você faria alguma gracinha.
Zaph não responde de imediato e começo a passar a calcinha minúscula de
renda por debaixo da toalha, me equilibrando em um pé.
— É verdade.
— Eu estou me acostumando com a sua sem-vergonhice. — Ajeito a peça
de uma forma que não revele nada. Isso vai entrar no fiofó que é uma beleza.
— Só entre nós, é claro. Ainda morro de vergonha quando você decide falar
safadezas em público. Você podia filtrar mais o que fala.
— Não foi você quem disse que está pouco se fodendo para o que as
pessoas pensam?
— É, Zaph, mas isso é questão de respeito. — Cadê aquele short de
moletom?
— Não posso fazer nada se falo o que as pessoas não querem ouvir. Se eu
tenho que tolerar a opinião delas, elas também têm de tolerar a minha.
— Às vezes é o jeito como você fala. — Remexo na gaveta de blusas,
procurando uma fresca e maleável.
— Eu não vou ficar passando a mão na cabeça das pessoas mais do que já
fazem. Mas, então, isso quer dizer que entre quatro paredes está tudo bem eu
ser indecente?
— Eu não disse isso.
Pego uma regata preta de alcinha e… Ai, Jesus! As mãos de Zaph seguram
minha cintura e me giram para ele, prensando minha lombar contra a bancada
da cômoda. Aperto a blusa contra meus seios e engulo em seco. Mesmo por
cima da toalha, posso sentir meu coração tropeçar e as palmas de Zaph
pesarem em minhas laterais.
— O que você está fazendo? — indago. Seu corpo não encosta no meu, mal
está próximo, embora eu ainda tenha que elevar o queixo para fitá-lo nos
olhos. Olhos que parecem cintilar uma luz prata. Mas não é preciso estar a
átimos de distância para Zaph conseguir afetar cada célula minha. E ele sabe
disso.
— Sendo indecente entre quatro paredes.
Uma das mãos de Zaph desce devagar pela minha coxa e seus dedos entram
pela barra da toalha. O seu toque é leve em minha pele sensível e úmida,
subindo até atingir a renda da calcinha. Minha perna se arrepia inteira.
— Acho que você tem uma séria tara por toalhas — brinco, tentando fugir
dessa sensação intoxicante que seu perfume traz e da energia tênue que toda
sua estatura faz percorrer por cada ponto do meu corpo.
— Não. Eu tenho uma séria tara por você em toalhas.
Onde ele encosta desperta em mim sensações divergentes. Uma delas é a
excitação que cresce devagar, de forma masoquista, seguindo o compasso de
seus dedos. A outra é mais umbrosa, desestimulante, pois Zaph está se
aproximando de uma área perigosa. Uma área que nem mesmo eu, que sou
sua dona e anfitriã, atrevo a me aventurar.
— Zaph, por favor… — Minha voz sai quase como um sussurro, então
pigarreio. O vampiro não se abeira, mas, de repente, sua boca se torna muito
tentadora. Meu coração está tocando tambor no meu ouvido ou é minha
impressão?
— “Por favor, pare” ou “Por favor, continue”? — diz Zaph. Seus dois
dedos brincam de forma suave com a tira lateral da minha calcinha na altura
do meu osso e meu fôlego fica preso.
— Por favor, pare. — Olha só, até que minha voz saiu firme.
Zaph se interrompe como eu pedi, mas não se afasta. A ponta de seus
dedos ainda rela minha pele no quadril, espalhando um efeito fremente para
o meio das minhas pernas e para cada vértice do meu corpo. Então, ele retira
as mãos de mim como se tivesse levado um choque, e sinto frio. Zaph mostra
as palmas das mãos erguidas em derrota e recua alguns passos.
Todas as Alices dentro de mim suspiram em alívio. Ou de pesar. Não sei.
— Scuză-mă — ele diz. Subitamente sua temperatura variante não está
mais em mim, seu tamanho não está me cobrindo e, por mais duro que seja
admitir, sinto falta disso. Meu interior geme de reprovação. — Prometo que
vou me controlar. — Zaph inclina levemente a cabeça. — A não ser que
você não queira.
Não respondo, com medo do meu cérebro pensar “não, obrigada”, mas
minha boca dizer “sim, eu imploro”.
Me volto para a cômoda onde eu tinha deixado o short antes que ele tenha
ciência do meu escudo enfraquecido. Eu preciso fazer alguma coisa para me
distrair dessa sensação inebriante que ele causa em mim. Céus, onde está
meu autocontrole? Se eu um dia eu sequer tive um, ele com certeza está de
férias na puta que pariu agora. Me dobro para passar o short pelas pernas e
pego a regata. Ajeito a blusa que... Ai, urgh, prendeu no nariz! Pronto,
resolvido. Arrumo a barra da camisa nos quadris e viro para...
— Alice, eu disse para você ir almoçar.
Minha mãe surge irada na porta do meu quarto, mas sua postura logo se
transforma numa rija ao avistar Zaph. Encaro-a petrificada, porém sua
atenção está fincada no vampiro.
Fodeu.
Silêncio pesa sobre cada um de nós. Ao menos sobre mim e minha mãe.
Imagino o que deve estar passando pela sua cabeça: que eu trouxe um homem
desconhecido para dentro de casa, mesmo depois de tudo o que passamos.
— Mãe, eu posso explicar — digo, cautelosa, como se estivesse domando
um animal feroz.
O peito de minha mãe começa a subir e descer.
— Alice, se afaste dele.
— Mãe, fique calma. — Dou um passo à frente, ainda cuidadosa. — Zaph
é um amigo.
— Ele é um vampiro, Alice! — Os orbes castanhos de minha mãe
permanecem cravados no rapaz. Ambos se encaram, de lados opostos do
quarto. E eu no fogo cruzado. Eu estava a ponto de retrucar, mas paro de
boca aberta ao me dar conta do que acabou de acontecer.
Espera, o quê?
— Há quanto tempo, Heloise.
–V
ocês se conhecem? — questiono, já sentindo a falta de ar
despontar.
— Digamos que sim — responde Zaph, a atenção ainda em
minha mãe.
— Esse desgraçado... matou meus pais, seus avós — Heloise diz com a
mandíbula travada, as mãos tiritantes de tão fechadas, ressaltando as veias
nos músculos delgados, os olhos tão brilhantes quanto duros presos em Zaph.
Meu mundo parece girar devagar pela segunda vez no dia. Me sinto
ligeiramente zonza.
— O-o quê? — Meus lábios vacilam, meu corpo inteiro ondula como se eu
fosse uma mera folha de papel no vento de uma tempestade. Meus olhos
dardejam de um para o outro, sem saber em quem focar. — Isso não... isso
é...
— Verdade — Zaph diz, irredutível.
Um grito fica preso na minha garganta enquanto olho para ele, como se o
visse pela primeira vez. Como se eu visse uma figura sombria, envolta em
uma aura que exala cheiro de carne pútrida. Talvez seja apenas meu medo
distorcendo a realidade, ou talvez seja o que Zaph realmente é.
— Alice, desça e fique com o seu pai — comanda minha mãe. Quero
correr, fugir e me encolher, mas minhas pernas parecem sem forças. Ao invés
disso, retorno a encarar Zaph.
— Por quê? Por que os matou? — Eu não cheguei a conhecê-los, mas
imaginar que, se não fosse por Zaph, eu poderia tê-los ali... O vampiro olha
para mim de esguelha e volta a mirar minha mãe, movendo os supercílios
num gesto rápido.
— É, Heloise, por que eu fiz isso?
— Porque você é um monstro! — minha mãe vocifera, dando um passo à
frente. — Alice, desce!
Zaph solta um riso de escárnio.
— Para a sua informação, sua filha me deu o sangue dela por livre e
espontânea vontade, não é mesmo, draga mea?
Dessa vez, minha mãe redireciona o olhar apavorado e estarrecido para
mim.
— Você fez o quê? — diz entredentes, como se eu tivesse cometido um
crime. Engulo o aperto em meu esôfago e tento não me retrair. Eu mal
consigo respirar, o ar fica retido na minha traqueia.
— Não a culpe — fala Zaph, tranquilamente, o que, no seu timbre grave, o
conferiu um tom fúnebre. — Você sabia que ia acontecer cedo ou tarde, por
bem ou por mal, por mim ou por outro.
Ela sabia?
O que está acontecendo?!
— Mãe, do que ele está falando? — O meu nervosismo se faz presente na
minha voz trêmula.
— Há quanto tempo isso vem acontecendo? — Heloise pergunta,
intercalando o olhar de mim para Zaph. Seu semblante se torna repulsivo. —
Você se aproximou dela, você a usou assim como fez comigo!
— Como assim ele te usou, mãe? — Minha voz sai mais alta e aguda,
amparada pelo terror crescente.
— Ele e sua mãe namoraram.
Meu coração dá um salto e para. Tudo gira rápido demais e devagar
demais. Viro o rosto para trás e, através da visão levemente borrada por
lágrimas intrometidas, enxergo meu pai parado na soleira da porta, a um
passo de minha mãe. Ele se mostra sério e de postura hirta, a atenção fincada
em Zaph. Mas, diferente de sua esposa, ele tem nos olhos o brilho de quem
desafia um vulcão em erupção com a convicção que irá domá-lo. Abaixo o
olhar e meu escasso fôlego carece quando avisto uma arma na mão.
— Eu não diria namoro — Zaph ainda se atreve a provocar.
Minha mãe dá um passo à frente, mas é interceptada pela mão de meu pai
firmada em seu cotovelo.
— Heloise, não se precipite. — Seu modo de falar implica uma brandura
que esconde por pouco a aspereza.
— Mãe...
— Você fique quieta! — estanco ao ouvir minha mãe rugir para mim antes
de retornar para Zaph — E você... saia daqui.
Um mutismo carregado se instaura. As formas dos móveis e pessoas
começam a oscilar na minha vista. As tonalidades claras, as formas da
mobília, são borrões lentos...
— Tudo bem. — Zaph descruza os braços e muda o peso da perna. — Eu
preciso resolver alguns assuntos mesmo.
O vampiro para de frente para a janela e, por cima do ombro, direciona o
seu foco a mim. Sua feição me analisa como se o tempo se sujeitasse
unicamente a ele, seus lábios formando uma linha reta e suas íris cor de céu
nublado inabaláveis. Por fim, Zaph desvia o olhar e põe a mão no trilho de
correr, pouco antes de saltar e desaparecer.
Finalmente, minhas pernas cedem e desabo no piso. Meu peito ofega,
minha visão embaça completamente, graças às lágrimas mornas que
escorrem por minhas bochechas. O pavor, pressentimento de que algo
aterrorizante e invisível está acontecendo consome meus órgãos, levando
todo o oxigênio dos meus pulmões e enrijecendo meus músculos.
Mãos vêm em meu socorro, segurando meus ombros, porém mal as sinto.
Tremo e choro inconsolavelmente, o medo invadindo meus ossos como
vermes esgueirando-se por entre pedras. Vozes agudas e graves riem de mim
em minha mente, minha cabeça gira e gira...

A primeira coisa que percebo é que estou estirada em minha cama e que
molhei o travesseiro de suor. Ainda assim, prefiro continuar deitada, sem
forças. Na verdade, queria que ela me engolisse e que eu nunca mais
precisasse ver a luz do dia. Me agoniza conceber que o colchão nunca me
absorverá, e isso por si só já é o suficiente para fazer umidade brotar em
meus olhos. O desejo de desaparecer é malditamente palpável. Eu quero
abrir os olhos e ver a vida, só não essa vida.
Eu encaro as sombras vespertinas que a janela lança nas paredes de um
flavo suave. Entra um vento fresco e, aos poucos, eu posso discernir o
barulho da chuva de verão. Finalmente. Fecho os olhos, inspirando fundo, e
me imagino ensopada pela água, o rosto virado para o céu. Gostaria de ir
para debaixo dela, contudo, mal tenho forças para mover um nervo. Tento me
recuperar e concentro no movimento respiratório, assim como aprendi na
terapia.
Quando desuno as pálpebras outra vez, depois de alguns segundos, estou
me sentindo mais serena. Minha mente menos atordoada e agitada. Me
levanto devagar, apoiando as mãos na cama até sentar com as pernas para
fora. Minha boca está seca, meus lábios rachados, implorando por algo para
beber. Induzida por uma sensação distante, mas opressora como um titereiro
sádico, abaixo meu olhar para a parte superior das minhas coxas. Ainda sob
o mesmo efeito, minhas mãos vibram querendo tocá-las, mas eu rompo as
cordas e as impeço.
Respiro fundo e me ponho de pé, indo em direção à porta. A casa está
submersa numa quietude erma que quase chia nos meus ouvidos.
Desço as escadas sem pressa, perdida em pensamentos, e, ao olhar para a
direita, encontro meu irmão sentado no sofá, curvado para frente. Seu perfil
angular e seu olhar focado no tapete felpudo cor lama. Assim que nota minha
presença, eu envio-lhe um sorriso penoso, porém Igor enruga a testa e se
levanta rapidamente. Ele percorre a distância entre nós a passos velozes, e
em instantes está abraçado a mim. Primeiro, fico um tanto pasma, mas logo
fecho os olhos e me deixo repousar nos braços do meu irmão.
É incrível como um abraço é capaz de recarregar nossas energias.
Principalmente se elas vêm de alguém que amamos. Eu sinto que estou tanto
as absorvendo quanto transmitindo, e por isso concentro as poucas cargas
boas que tenho para compartilhá-las.
— Eu preciso ir — ele diz, manso. Sua voz baixa apazígua meu interior
fremente e agita meus pensamentos mais conflitantes. — Mas, se quiser é só
ligar. Quando quiser.
Ao mesmo tempo que quero contar a Igor que não é questão de se
disponibilizar, mas sim de tomar a iniciativa, quero sentir o orgulho de
quando ele descobrir por si próprio.
— Tudo bem — digo num tom parecido com o que usara comigo. Há
carinho e tristeza entremeados nas palavras. Quando ele me afasta
gentilmente, posso ver a dor da impotência em seus olhos enquanto analisa
os meus.
— Claro que você não está bem — Igor diz, segurando em meus ombros.
— Quando foi que você virou uma mentirosa?
Algo além do meu coração é atingido e tenho certeza de que isso pode ser
visto através da minha face.
— Desculpe, Alice, mas é óbvio que não está bem. Não precisa tentar
disfarçar para mim, você sabe.
— Eu que peço desculpas, mano. — olho para meus pés — Eu só não
quero que você se preocupe comigo quando tem uma criança a caminho.
— Alice, olha para mim. — Ergo o queixo para estudar a feição estoica,
mas serena, de Igor. — Eu sou seu irmão mais velho. Eu posso estar na
China, sempre vou me preocupar com você.
Uma risada nasal e fraca me escapa. Igor me puxa para um abraço e eu o
devolvo, rodeando sua cintura fina.
— Obrigada — sussurro de olhos fechados e com a cabeça encostada em
seu peito, absorvendo sua textura e aroma como se fosse a última vez.
— Você sempre, sempre será minha irmãzinha. E eu sempre, sempre vou te
amar.
Meu nariz arde e lágrimas molham minhas pestanas. Respiro fundo antes
que o choro venha e nos aparto, levantando a cabeça para fitá-lo.
— Onde estão nossos pais? — pergunto.
— Papai recebeu um chamado, nossa mãe foi à farmácia. — Igor não
precisa dizer mais nada. Eu sei que logo, logo meu estoque de medicamentos
será renovado. Talvez eu não devesse ter dado o número da minha
psiquiatra para minha mãe.
— Você... soube, então — Meu irmão confirma meneando com a cabeça.
Ele inspira fundo.
— Não se martirize tanto, ok? — Ele esfrega o topo da minha cabeleira e
eu me encolho. — Você não sabia e, mesmo se soubesse, não teria o que
fazer. Afinal, ele é um vampiro.
Franzo o cenho. Algo na estabilidade em sua voz me incomodou.
— Mas então você sabia. — deduzo, mas não era para ter soado como uma
pergunta. A resposta de Igor é apenas um comprimir de lábios. Inalo o ar
como se estivesse rarefeito, controlando os bramidos de mágoa e fúria em
minha mente. — Você sabia, não só da existência de vampiros, mas também
da relação da nossa mãe com um deles, enquanto me via cada vez mais
deslumbrada por seres sobrenaturais. — Outra vez, uma alegação que ecoou
como um questionamento, talvez porque no fundo eu esperava que ele
negasse. O que não acontece. Os gritos se calam, resta apenas a sensação
fria e um tanto quanto maleável, tal qual um lençol fino de ressentimento.
Por que não estou surpresa?
— Alice, me desculpe — ele recomeça, seu tom dolente refletido na matiz
terrosa de suas íris. — Eu prometi à mamãe que não iria contar.
Lealdade filha da puta. O pior é que admiro isso.
Eu me sinto como uma chaminé, o fogo queimando em meu peito, a fumaça
espessa subindo e tingindo de preto as paredes de tijolos sem ter por onde
sair, o que a acumula dentro de mim enquanto o incêndio agrava.
— A Fernanda sabe? — Minha voz sai dura.
Eu não sei se quero ouvir a resposta, mas preciso. Cerro os punhos ao lado
das pernas, Igor solta um suspiro audível ao tempo em que seus ombros
minguam.
— Ainda não. Pretendo contar assim que eu voltar, antes de pedi-la em
casamento. Ela precisa saber onde está se metendo.
Observo meu irmão trocar o peso da perna e liberar mais um pouco de ar.
Ele fecha os olhos, esfrega a nuca e o fogo em mim esmaece.
— Nossa mãe sempre foi assim, tão... tão...
— É, mamãe sempre foi meio superprotetora.
Meio?
— Ela te tratava assim também?
— Mais ou menos. — Meu irmão arrasta um pé. — Depois que você
nasceu, as coisas ficaram um pouco... um pouco complicadas.
Movo os supercílios de forma rápida e um sorriso satírico se implanta no
canto da minha boca.
— A caçula. Sempre a bebê da mamãe.
— Você tinha que ver quando ela foi me visitar no apartamento pela
primeira vez. Parecia que estava num programa de reforma de interiores. Se
papai não tivesse a obrigado a ficar sentada e a beber uns dez copos d’água,
aposto que ela teria transformado minha casa em um escritório. — Eu teria
os acompanhado se eu não estivesse tão ocupada presa numa clínica de
reabilitação. — Ela tentou te visitar também, sabia? Nós tentamos. — O tom
que Igor usa é mais suave, então hasteio os olhos para ele. E não, eu não
sabia. — Eles não nos deixaram entrar. Eu meio que entendo, poderia
atrapalhar na recuperação, mas ainda assim... — Igor haure o ar
profundamente mais uma vez. Parece que o oxigênio aqui em casa está
estagnado e não é o suficiente para nenhum dos dois.
Me lembro da expressão de Zaph quando ele saltou para fora da janela. De
como ele não tentou esconder o fato de que matou os pais da minha mãe, a
perseguiu e a usou emocionalmente. E de como dissera conhecer Melissa,
que também seria uma vampira.
Mentiras e mais mentiras. Uma em cima da outra.
— Bem, vou indo. — Igor ajeita a alça da mochila nas costas e dá um
sorrisinho sem graça de lado. — Por favor, se cuida. Sabe que pode me
contar tudo. Sou seu psicólogo particular e nem cobro. — Um sorriso
também brinca em meus lábios. Meu irmão mais velho iça uma mão e
encosta dois dedos na minha testa. — Até uma próxima.

Coisas ruins acontecem, coisas ruins acontecem, não é o fim do mundo,


não é o fim do mundo... Jogo a cabeça para trás no travesseiro, de olhos
fechados e respiro repetidas vezes.
Escuto uma batida na porta do quarto e abro os olhos. Vejo minha mãe
parada com os nós dos dedos quase tocando a madeira.
— Se sente melhor? — pergunta, com um semblante sério e preocupado.
Inspiro fundo.
— É. Acho que sim.
Heloise marcha em minha direção, mas volto o olhar para o meu próprio
colo. Não por vergonha, mas para tentar ordenar minhas ideias. Eu não sei
nem o que pensar. Me sinto perdida dentro de mim mesma. Um oceano
infindável com suas ondas revoltas, ou um deserto vazio de dunas
imprevisíveis, você decide. Pelo canto do olho, vejo minha mãe sentar na
ponta da cama.
— Eu não acredito que você deu seu sangue para ele.
Expiro, unindo as pálpebras.
— Você sabe que eu gosto de criaturas sobrenaturais — digo, mantendo o
controle. A raiva borbulhando no fundo.
— Isso não é motivo, Alice! Foi burrice!
Irritada, viro para ela.
— Eu sabia que era perigoso, mãe. Mas o que mais eu ia fazer? Jogar uma
meia suja nele e dizer “Não, senhor, você não pode sugar meu sangue”?
— Você podia ter morrido!
É mesmo uma pena, não acha?, penso, enquanto rio de desdém.
— Ele é um vampiro! Eu poderia ter morrido desde o momento em que ele
entrou na porra do meu quarto.
— Não use esse tipo de palavreado comigo!
A quietude se instala. Minha mãe me encara de sobrancelhas vincadas, na
mesma medida em que eu sustento o seu olhar.
Se me justifico, estou faltando com respeito; se fico calada, não tenho
senso crítico. Compreendo sua preocupação, no entanto, a única coisa que
não entendo é, por que é tão difícil de aceitar que existem métodos diferentes
dos dela?
Talvez seja culpa minha, talvez se eu me abrisse mais... No entanto, ela
nunca me ouviu quando tentei. Às vezes, eu me pergunto se realmente não
sou eu a errada de tudo isso, se não sou eu quem está deixando algo passar.
Mas recordo das sessões com Carol e abafo o dilema. Tenho para mim que,
ao gritarmos um com o outro, acabamos perdendo o argumento, mas cansei
de não ter voz. Eu falarei alto e claro.
— Alice, eu vou ser bem franca com você — ela diz, usando um timbre
sóbrio. — Pode parecer duro, mas acho que é necessário. Eu assisti a seus
avós, meus pais, morrerem diante dos meus olhos, na minha própria casa. Vi
Zaph arrancando um braço do meu pai com a boca enquanto eu me encolhia
no canto da sala. Mas, quando eu o assisti rasgar o pescoço de minha mãe,
não consegui conter um grito, e foi quando seus olhos vermelhos viraram
para mim.
O calor no meu peito esfria drasticamente.
— Mãe, eu não...
— Tudo bem. Você não sabia. Como você mesma diz, não somos leitores
de mentes, não é? — Ela solta uma risada nasal e olha para as próprias mãos
sobre as pernas. — A cena ficou marcada na minha cabeça. Desse dia em
diante, eu fugi dele. Foi quando descobri os vampiros. Nessa época, eu não
sabia ainda, mas Zaph estava atrás de mim. Eu aprendi a suspeitar de tudo e
todos. Até que em um período da faculdade conheci seu pai, um louco
varrido por vampiros. Meio hesitante, me juntei a ele para adquirir algumas
informações, mas também foi a época em que de fato conheci Zaph. Digo,
estudei com ele. Ou ao menos ele fingia que estudava. Ele estava diferente,
por isso não o reconheci de imediato. Zaph era o perfeito estudante de
engenharia que ficou de recuperação em português e pediu minha ajuda.
Clássico. Se não fosse tudo armado. Bem, o resto você sabe. Eu... me
apaixonei por ele, apesar das insistências de seu pai em afirmar que algo
estava estranho. Como fui burra em não o ouvir. No final das contas, seu pai
deu um jeitinho de me mostrar a verdade. Me levou em um lugar com a
desculpa de fazermos um trabalho, quando eu vi… Não é que seu pai tinha
achado um covil da máfia vampira? O desgraçado tem talento para
investigação, por isso, logo depois de se formar, fez o concurso para a
polícia. Mas adivinha quem estava entre os mafiosos? — Arqueio sutilmente
as sobrancelhas. — Eu, enfurecida, invadi o local, pronta para dar uma bela
bronca em Zaph. Quando dei por mim, estava cercada de vampiros. O que
me salvou foi a discussão e a briga sanguinária que se seguiu entre eles, para
ver quem iria me pegar primeiro. E foi aí que eu e seu pai escapamos. Desde
então, despistei Zaph e nunca mais voltei a vê-lo. Até que ele apareceu no
seu quarto. Eu sei que ele pode parecer um cara legal de primeira. Mas
acredite, ele não é. Ele só está aqui para nos matar.
Desvio o olhar para meu colo outra vez, absorvendo a descrição
terrivelmente detalhada de minha mãe. Zaph? Com a máfia vampira? Era só
o que me faltava. Pensar que ela viu a morte dos pais, que foi Zaph quem o
fez... Heloise se levanta e me olha incisivamente.
— Eu vou falar com o seu pai. Talvez tenhamos que nos mudar.
— O quê? — pergunto, perplexa.
— Eu não vou deixar aquele desgraçado destruir ainda mais minha família.

Durante as duas semanas posteriores, eu me vi num limbo de emoções.


Zaph havia sumido, não deu sinal de vida. Eu passei todos esses dias
olhando para a estante de manhã, para a parede à tarde e para o teto à noite.
Uma casca que estaria vazia se não fosse pelo emaranhado de sentimentos.
Existiam tantos que eu não conseguia sentir nenhum propriamente.
Em meados da terceira semana, minha mãe avisou que a menstruação dela
desceu e que ela não poderia me acompanhar à ginecologista após a escola.
Acho que foi uma bela e adorável desculpa esfarrapada para me fazer
encarar aquela doutora diabólica sozinha. Assim, a ponto de ter um ataque
diante da porta envidraçada do consultório, encontrei “acidentalmente” Zaph
perambulando pelo mesmo andar. Ele estava no meio da passagem com as
mãos nos bolsos, me olhando de longe com o semblante sisudo. Eu lhe
devolvi um olhar espantado, minha mão a centímetros de tocar na maçaneta.
Optei por ignorá-lo, retornando o foco para a maçaneta redonda de
madeira reluzente, mas hesitei. Até os pelos da minha nuca exposta, devido
aos coques gêmeos um de cada lado da minha cabeça, estavam indecisos de
se eriçavam ou não. Eu não sei se foi meu subconsciente aproveitando para
postergar o confronto com a médica, ou se foi a raiva repentina que me
impeliu naquele momento, mas me afastei da porta, fechei a cara e caminhei
a passos largos na direção de Zaph.
— O que você está fazendo aqui? — sussurro firme, parando de frente para
ele.
— Vim polir os dentes — o filho da puta brinca, mesmo conspícuo.
Uma risada de escárnio me escapa.
— Minha mãe não está aqui, pode voltar para sua caverna — rujo
entredentes, movendo os pés para longe. — Aproveita e, se puder, faça o
favor de ir se foder e nunca mais aparecer na minha frente. Aposto que o
terceiro mais forte e gostosão dentre os vampiros tem inúmeras outras
vítimas tão caridosas para visitar.
— Eu vim te ver — o vampiro fala, estável enquanto me fita de cima. Eu
paro no lugar, os punhos apertados ao lado do meu corpo.
— Não quis dizer me matar?
— Eu vim te ver — ele reforça, imutável, seguro.
Eu analiso cada íris, tentando encontrar em sua feição algo que transmita
falsidade. Mas, frustrantemente, eu não encontro nada.
— Claro. E eu acredito totalmente em você. Vamos voltar a ser
amiguinhos. Ah, espera — faço uma expressão de falsa condolência — acho
que não podemos voltar a ser o que nunca fomos.
Então, finalmente dou as costas, decidida a ficar o mais longe dele.
— Alice.
O jeito como me chama, como diz meu nome... Seu tom percorre a fina
camada por baixo da minha pele. Eu inspiro fundo e fecho os olhos. Tão
injusto. Antes que eu pudesse tentar me impedir, eu giro nos calcanhares e
retorno a encará-lo.
— Você mentiu para mim! — Eu vibro por dentro com um sentimento que
não sei nomear, mas é pesado e dói demais para eu reter.
Um barulho agudo soa às minhas costas e logo a porta do elevador se abre.
Viro meio corpo, constrangida por estar discutindo no corredor, e assisto a
duas mulheres saindo em direção ao consultório médico. De repente, uma
mão grande cinge meu bíceps e, sem tempo de argumentar, me vejo sendo
puxada para uma quina escondida. Aos tropeços, Zaph me posiciona contra a
parede, ao lado de um vaso de planta enorme.
— Eu não vou pedir desculpas, Alice — diz ele. — Eu nunca disse que era
um bom homem. Mas eu nunca menti para você.
Meu coração ribomba fortemente com o susto, mas logo se acalma ao
lembrar do porquê estávamos discutindo.
— Como eu vou saber?! — Dou um passo à frente, me inclinando para seu
tronco. Nossos rostos estão próximos, mas eu cuspo as palavras. — Como
eu vou acreditar em você? Como eu vou confiar em você?! — Cutuco seu
peito com força. — Você iludiu minha mãe para matá-la e matou os pais
dela! Você tirou os pais dos meus tios!
O que deu em mim para pressionar o vampiro que matou minha família? Só
Brama sabe.
— É isso que vampiros são, Alice, assassinos. — Zaph, desta vez, também
fala um pouco mais alterado. — O que você esperava? Nós matamos para
sobreviver.
— Acha que não sei?! Acha que eu não passei esse tempo todo tentando
não pensar em você matando as pessoas para se alimentar? Por mais
estranho que pareça, o maior problema não é você ser um assassino, mas sim
você ter omitido a verdade de mim! — Minha respiração sai entrecortada
pelas narinas. Eu tomo um tempo para recuperar o fôlego, sentindo meu peito
subir e descer. Nesse ínterim, ficamos em silêncio, terrivelmente cientes do
calor dos nossos corpos próximos demais e perscrutando as
individualidades um do outro.
É muito diferente você admirar o sobrenatural quando sabe que ele não
existe do que quando sabe que uma dessas criaturas está na sua frente e
matou sua família. Ao olhar para Zaph e ficar tão perto dele, aquele
sentimento de bem-estar implica uma dor em meu peito.
— Eu pensei que... — Enrugo a testa. — Eu sei que é estupidez, mas eu
pensei que pudéssemos ser amigos.
O rosto de Zaph finalmente expõe algo além de neutralidade. É sutil, mas
há um pesar permeado aos laivos cor de chumbo que partem de sua pupila.
— Por que você não me matou? Estava só esperando o momento certo?
— Porque não consigo — ele declara, sem hesitar.
Eu sempre acreditei que os olhos são as janelas da alma. Infelizmente, para
o meu orgulho, eu apenas enxergo verdade e um luzir prateado nos de Zaph.
Merda!
Trato de abrandar o forte pulsar dentro do meu tórax. Junto as pálpebras e
permito que o ar saia pela boca, como se expelindo meus demônios com ele.
Entretanto, não deixo de ser assertiva ao apartá-las e encará-lo.
— Eu nunca vou te perdoar pelo que fez com a minha mãe.
— Mas consegue me perdoar por eu não ter te contado?
Inspiro rápido, pega um tanto de surpresa pela proposta. Me permito
relaxar um pouco mais e abaixar o olhar para sua blusa plúmbea estonada,
pensativa. Se eu concordar, o que o impedirá de fazer comigo o mesmo que
fez com a minha mãe? O mesmo que Rafael fez? Não. Zaph e ele... são
completamente diferentes.
É, um deles é vampiro!
— Eu fiz uma promessa. Uma Promessa de Sangue. — Hasteio o olhar
desacreditado para Zaph e tento não ser seduzida pela boca bem delineada e
a maldita franja desfiada que destaca seus olhos como duas piritas. — Eu
prometi aos seus pais nunca te machucar. Isso implica em qualquer coisa que
te cause dor. Física ou emocional.
— Quando foi que isso aconteceu?
— Eu viajei, aproveitando para observar como iam meus negócios, e
pensei bastante. Quando voltei, fui até sua casa, mas você já estava
dormindo.
Perceber como os orbes de Zaph estudam minha boca faz meu coração
perder algumas batidas.
— Você é um perseguidor, sabia? — resmungo, e enxergo um sorriso torto
se esticar no canto da boca dele.
— Eu não fiquei te olhando enquanto dormia, pode ficar tranquila. —
Vagarosamente, o sorriso some. — Em vez disso, encontrei seus pais na sala.
Eles estavam discutindo algo, e aproveitei para conversar com eles.
— E minha mãe “conversou” com você?
Eu nem sequer acredito que eu ainda estou conversando com ele!
— Bem, seu pai tentou me apunhalar com uma estaca, mas, é, — Zaph dá
de ombros — depois a gente conversou.
Uma risada fica presa no fundo da minha garganta. Teso a mandíbula
discretamente para não a deixar sair.
— Então, eu fiz uma Promessa de Sangue. — Zaph abaixa o queixo outra
vez e me fita. — Um juramento selado através da escrita da primeira letra do
nome para quem essa promessa será o alvo, não necessariamente para quem
se está prometendo. É através da dor que ela nos controla. Se a quebrar,
somente quem prometeu sente uma dor excruciante, não a outra pessoa. E
quando isso acontece — Zaph começa a desatar os primeiros botões da
camiseta e repuxa a gola para o lado — a letra fica com uma cor escura,
quase como sangue concentrado ou um hematoma, para qualquer pessoa
saber que você quebrou aquela promessa.
Logo abaixo de sua clavícula esquerda, há uma cicatriz em formato de “A”.
— Por que você fez isso? — A pergunta sai antes que eu possa impedi-la,
no tom que denuncia minha dor por ver a marca em sua pele.
— Porque me importo com você.
“Perdoai-nos assim como nós perdoamos a quem nos tenha ofendido.”
Acho que de todos os atos de amor, o perdão é o mais difícil deles. Reteso o
maxilar, engolindo o orgulho ferido.
Desde o dia em que conheci Zaph, eu sentia que a morte estava cada vez
mais próxima, e, de certa forma, isso me acalentava. Acho que, um dos
motivos que me deixa amuada com tudo isso, é saber que ela não estará mais
tão perto assim.
Fecho os olhos e tento expulsar esse pensamento. Um passo de cada vez.
O que mais me frustra não é perdoá-lo, mas sim ter plena ciência de que eu
quero perdoá-lo. Ter ciência de que, por mais errada ou ambígua que essa
decisão possa ser, há uma partezinha de mim que se recusa a deixá-lo ir.
Simplesmente se recusa. E essa parte pode ser pequena, mas é muito forte.
Espero não estar errada. Rá, como espero não estar errada.
— Acho que posso te dar uma segunda chance.
Tomo fôlego e o obrigo a abrir caminho, empurrando-o com a mão. Faço a
curva no vaso de planta e volto a me direcionar para a porta de vidro do
consultório. Eu não acredito nisso. Como eu posso ter um coração tão
mole?! Eu sinto uma presença atrás de mim e paro com a mão na maçaneta.
— O que você está fazendo? — pergunto, olhando-o com a fronte
comprimida por cima do ombro.
— Eu vou te acompanhar. — Zaph recoloca as mãos nos bolsos. Meu Tyr,
que mania, garoto!
— Nem fodendo.
— Fodendo às vezes é possível. — Zaph inclina ligeiramente a cabeça e
levanta as sobrancelhas. Eu poderia ordenar a ele que ficasse fora do prédio
ou ir à merda que preferisse, mas não é como se uma porta de vidro fosse
barrá-lo. E conhecendo a peça... Mas o quanto eu realmente o conheço?
— Quem é você, Zaph?
A pergunta não parece pegá-lo desprevenido, mas o faz vanescer com a
feição espirituosa.
— Você sabe quem sou. — Franzo o cenho de leve.
— Se eu pedisse para ficar aqui fora, você ficaria?
— Você quer que eu fique?
Remoo a ideia, imaginando-o andejar pelo corredor enquanto espera não
sei por quanto tempo, e eu lá dentro, rodeada de pessoas desconhecidas, me
sentindo tão solitária quanto se eu estivesse no meio de uma multidão.
Libero o ar pelo nariz.
— Só se comporte, por favor. Ainda está pisando em ovos comigo.
— Como desejar, draga.
Zaph põe uma mão na barriga e dobra-se para frente, em uma mesura. Eu
rodo meus olhos. Tenho de resfolegar antes de empurrar a porta para dentro.
Dê-me paciência.
N
ão foi tão ruim quanto achei que seria. E até que não me espantei
muito ao retornar para sala de espera e ver o vampiro estrangeiro
ensinando as mulheres, que se aglomeram no seu entorno, a jogarem
pôquer usando balas de hortelã como fichas. Eu me recusei a articular
qualquer coisa sobre isso. O silêncio reinou entre nós como a cúpula de uma
cripta até nos confinarmos em um paralelepípedo de aço que me fez duvidar
seriamente se a manutenção estava em dia e Zaph me perguntar se eu já havia
conversado com Melissa.
Nas semanas que transcorreram, eu não consegui interagir muito bem com
Mel, sempre relembrando o que Zaph me dissera sobre minha amiga. É
verdade que quase não nos tocamos, e por isso não posso dizer como é sua
temperatura. E, em nenhum momento, vi suas presas ou os olhos azuis
passarem sequer para amarelos. Mas, pensando bem, lembro-me de quando
eu me machucava e ela virava o rosto. Sempre se prontificava a buscar o
curativo, no entanto, nunca ficava por perto. Passei os últimos dias tomando
coragem e imaginando o melhor momento para abordar o assunto.
O sinal de encerramento toca e nós descemos as escadas com Julia
tagarelando como o usual. E esse momento é agora.
— Eu vou no banheiro! — ela diz assim que chegamos ao térreo. Julia
dispara para a esquerda do corredor, com sua mochila cheia de
penduricalhos tilintando, e eu e Melissa vamos para a direita, para a saída.
Ficamos ambas com as costas escoradas na grade do portão, observando a
movimentação dos alunos e professores indo embora. Eu fito meus pés
cruzados no calcanhar, assim como meus braços abaixo dos meus seios. O
sol que bate em minha nuca, exposta pelo rabo de cavalo, não consegue fazer
com que seus raios fracos penetrem em minha pele, me deixando fria por
dentro. Me prendo às buzinas dos carros, ao ronco do motor dos ônibus, às
pessoas conversando, e até mesmo ao odor de fumaça misturado à gordura e
perfume barato, para não deixar que minha mente flutue para longe e eu
perca a bravura.
— Mel, preciso falar com você. — Pela visão panorâmica, eu posso vê-la
tornar o rosto de boneca de porcelana em minha direção. Respiro fundo e
expiro pela boca de forma fugaz, então também viro o rosto para ela. —
Lembra daquele vampiro com quem eu sonhei?
— Uhum. — Mel meneia a cabeça e pisca os olhos redondos. Um mal-
estar me toma. Como essa criatura adorável pode ser um vampiro? Ela
deve ser uma Remi, como Zaph havia explicado, não é?
— Acontece que ele é real. — Suas sobrancelhas se suavizam, mas seus
olhos deixam transparecer sua conturbação, o que não me pasma. Ela e Julia
já presenciaram episódios onde eu afirmava ter vistos coisas que depois se
provaram serem apenas alucinações. — Por favor, acredite em mim, não é
coisa da minha cabeça.
Ela aquiesce devagar.
— Tudo bem.
Balbucio, tentando formular a frase da melhor maneira possível.
— Ele viu uma foto sua e disse que te conhece, disse... — Minha garganta
trava. — disse que você também é uma vampira.
Mel retesa a mandíbula, mas continua muda, e eu tenho minha resposta.
Merda. MERDA! Eu nego com a cabeça, querendo me afastar para um canto
desbotado e solitário, onde longos braços tenebrosos me acolheriam. Eu já
posso senti-los me chamando, envolvendo meu peito devagar. Após uns
segundos, que mais pareceram horas, ela parte os lábios, hesitante.
— Esse vampiro... Qual o nome dele?
— Zaph Petrescu.
Repentinamente, Melissa me fita de forma intensa e pega minhas mãos,
impedindo que eu crie uma distância entre nós.
— Alice, me escute...
“Por que eu deveria escutar alguém se se diz amiga e esconde uma coisa
dessas por mais de três anos?!” É o que minha parte irada quer vociferar.
Finalmente, posso atestar a temperatura oscilante de Melissa e um impulso
de choro queima meu nariz. Meu coração perde uma batida e dói como se a
caixa torácica estivesse se encolhendo ao seu redor.
— Por que nunca me disse? — pergunto, minha voz engasgada. — Por que
escondeu isso de mim? Sabia que eu sempre fui fascinada por criaturas
sobrenaturais. Quer dizer, vocês.
Eu posso ver dor em seu olhar de topázio. Dor genuína. Só não sei se estou
enxergando a dela ou a minha.
— Eu pensei em contar tantas vezes. Mas eu não sabia como. — Ela
abaixa o foco para nossas mãos unidas. — Me perdoe, Alice, eu... —
Suspira. — Te conhecer, me tornar sua amiga e da Ju de um jeito normal,
como um humano normal, foi tão gratificante, me deixou tão feliz, que tive
receio de contar e vocês se afastarem de mim. De te magoar, principalmente
depois do que você passou. Eu não podia arriscar. — Lágrimas grossas
escorrem por sua bochecha. — Eu jurei a mim mesma que manteria vocês
duas a salvo.
Vê-la nesse estado parte meu coração. Mas já não sei se acredito em suas
lágrimas. E isso empurra ainda mais fundo a adaga em meu peito, torna meus
ossos ainda mais ocos.
— Antes... — Ela continua e solta de minhas mãos para secar o nariz,
recuperando o fôlego. — Antes de te conhecer eu não era bem sociável. Eu
era diferente, eu era...
A imagem que minha mãe descreveu para mim, de Zaph rasgando o
pescoço de minha vó, me vem à mente. A voz dele ecoa em minhas
memórias: “É isso que vampiros são, Alice, assassinos. O que você
esperava? Nós matamos para sobreviver”. É impossível visualizar Melissa
assim.
— Cruel?
Mel ergue um olhar abismado e injetado.
— Um pouco. Eu já fiz algumas coisas das quais me arrependo muito. —
Seus olhos vagam em alguma memória distante. — Eu queria fugir daquilo
tudo. Queria sair daquela realidade, tentar algo novo. Então, encontrei vocês
e vi um possível recomeço. Vocês se tornaram... Sua amizade para mim se
tornou minha corda de redenção.
Eu suspiro e massageio a fronte com a mão livre, tentando organizar os
pensamentos. Meu olhar esbarra em nossas mãos encaixadas. Eu devolvo o
aperto, mais por reflexo do que por querer, mas isso engatilha uma
concepção na minha mente. É o mesmo dilema. O maldito perdão.
Solto um suspiro.
— Mas, então, você conhece o Zaph.
Não foi uma pergunta, embora tenha soado como uma. Após três segundos
de silêncio, Melissa limpa as lágrimas com as costas dos dedos e me encara.
— Eu e Zaph... tivemos um caso.
Meu Pai do céu feito de jujuba e menta, o que mais aconteceu nesse meio
tempo em que estive dormindo? Demoliram a Casa Branca? Os franceses
entortaram a Torre Eiffel? Mudaram o nome da Torre de Pisa para Torre de
Picles?
Melissa e Zaph... Zaph e minha mãe... Jesus, Jeová, Maria e José. Eu vou
vomitar.
— Alice, não importa como o encontrou, só mantenha distância dele. Ele é
sorrateiro e dissimulado.
— Mas ele fez uma Promessa de Sangue para mim. Isso é importante para
vocês, não é?
Acho que nunca vi os orbes azuis de Melissa tão estarrecidos.
— Ele fez? — ela pergunta, e eu anuo. — E o que ele prometeu?
— Nunca me machucar. De forma alguma.
O olhar pétreo de Mel abaixa sem piscar e vejo-a movê-lo sem cessar.
— Por que você o odeia tanto? — pergunto, enquanto a assisto reerguer a
cabeça.
— Eu não o odeio, eu só...
— Você ainda gosta dele, então? — Os olhos de Melissa saltam.
— Não! Cruzes, não mesmo! A relação que tivemos foi pura e
simplesmente carnal.
Eu gostei e não gostei de saber disso. Me trouxe certo alívio – o que não
deveria –, no entanto, também invocou imagens... Urgh! Um calafrio escala
minha espinha e não consigo evitar fazer uma cara de repulsa.
— Mas eu me afastei dele exatamente por ele ser brutal, Alice. Zaph não
tem muitos escrúpulos. — Isso eu percebi. — Se ele quiser matar, vai fazê-
lo sem pensar duas vezes, sedento ou não.
A cena que minha mãe descreveu retorna à mente.
— Eu acredito. — Eu acredito? Merda, eu acredito. Eu ainda confio em
Melissa. Como? Eu não sei. Talvez seja apenas meu desespero de não
perder a fé numa das únicas amizades verdadeiras que tenho. Num dos meus
únicos pilares de sustentação. Porque eu sei que, se ele ruir, eu vou ruir
junto. Por isso, aponto o indicador para Mel com o cenho franzido. — Mas
me prometa de pés juntos que nunca, jamais, irá mentir ou omitir nada de
mim de novo!
— Eu prometo. — Ela funga e estica os lábios num sorriso meigo.
— Eu juro por Deus, Melissa, mais uma dessas e te mando pra lua.
Ela solta uma risada e devolve o abraço, rodeando minhas costas
fortemente. Eu correspondo, fechando os olhos com o queixo descansado em
seu ombro e tentando bloquear as lágrimas imbecis que cismam em fazer
arder a ponta do meu nariz.
Por que eu tenho que ser tão fraca? Por que eu tenho que ser tão
sentimental?
Eu solto Melissa e nos aparto um pouco para poder encará-la.
— Há mais alguma coisa que precise me falar? — indago, fingindo fingir
estar chateada.
Melissa encolhe os ombros e aperta um pouco as pálpebras.
— Eu não faço curso de húngaro. Eu sou húngara. — Permaneço na mesma
posição, a não ser pelos meus olhos bem, bem abertos. — E fui enfermeira
na Segunda Guerra. Por favor, não me bata.
— E aí, o que eu perdi? — Julia reaparece, do nada, correndo em nossa
direção enquanto faz um coque no alto. Eu sou incapaz de formular uma
sílaba sequer.
Ah, só que descobri que nossa amiga é uma vampira que participou da
Segunda Guerra Mundial e teve um caso com o vampiro que invadiu minha
casa e matou meus avós a sangue frio. Nada demais.

Quando chego em casa, meu pai aproveita uma taça de sorvete de flocos,
num inédito dia de folga. Minha mãe está ao seu lado, deitada no sofá com os
pés sobre suas coxas. Eu remexo meu próprio sorvete com a colher, as
pernas por cima do apoio da poltrona adjacente, enquanto alguma cena
melodramática passa na televisão às minhas costas. Observo o creme branco
derreter, tirando do frescor que o vidro oferece aos meus dedos a coragem
para falar.
— Encontrei com Zaph ontem.
No mesmo instante em que termino de pronunciar tais palavras, a atmosfera
de todo o andar do térreo se adensa.
— Ele me contou que vocês conversaram — continuo.
Meus pais dão um exemplo de sincronia quando inspiram fundo ao
mesmíssimo tempo.
— De fato, conversamos — Gabriel responde, estoico, os olhos verdes
fincados na TV, embora saibamos que ele não está assistindo. — Ele cortou
a própria pele para fazer uma promessa — ele continua, como se enxergasse
o desenrolar da cena ali no programa de televisão.
— E quando ele falou, o sangue dele… — Heloise, diferente do meu pai,
olha para suas mãos segurando a taça por sobre a barriga com um certo
pavor — ficou dourado.
Ela hasteia o olhar para mim, e eu posso enxergar em cada íris o assombro
de não saber o que aquilo implicaria no futuro.
Ou talvez seja só por ter visto algo mágico, não sei.
— “Eu juro pelo meu espírito e carne, mente e coração” — meu pai recita,
ainda daquela forma hipnotizada — “jamais fazer Alice de Souza Beiruth,
filha de Gabriel de Souza e Heloise Beiruth Souza, sofrer e sempre a
proteger.” — Então, ele pisca, despertando do torpor e expandindo o pulmão
ao respirar fundo, mas permanecendo com a postura hirta. Em sua feição, tão
clara e sarapintada de sardas quanto a minha, seus ombros largos de
musculatura entre a flácida e a definida, vejo a postura do investigador
sagaz, marcada pelo tempo e pelos horrores que já teve o desprazer de
acompanhar de perto.
— Ele não subornou vocês para me dizerem isso, subornou? — pergunto.
Enfim, meu pai se vira para mim e há um sorriso despontando em sua boca.
— Acredite — ele começa —, queria eu que tivesse.
Sua resposta não me fez rir ou sorrir. Porque sei que, entremeado ao tom
amável, há uma tristeza que esconde algo. E Gabriel sabe que percebo, pois
não completa com outra piada para aliviar minha tensão. Essa é a dinâmica
entre mim e meu pai. Sempre foi assim. Poucas palavras, um mundo inteiro
de significados.
Bem, mais uma estrelinha para o vampiro.
— Então, não vamos nos mudar?
— Pelo jeito...

Dias se passaram e eu mantive a janela fechada em todos eles.


Quando Zaph aparecia, ele batia no vidro e eu ponderava um minuto ou
dois se o deixava entrar.
Às vezes ele trazia chocolate, outras uma caixinha de som dramatizando
uma serenata. Havia dias em que nos comunicávamos através de cartazes, ou
ele simplesmente encostava o nariz no vidro e me encarava até eu fechar a
cortina na sua cara.
Ele disse “sofrer” na promessa, não “machucar”. Eu queria saber se ele
tinha noção do peso de suas palavras ao proferi-las.
C
om o período de torrar os neurônios nas provas bimestrais chegando,
meus bem-aventurados professores anunciaram as bombas: um
trabalho em grupo manuscrito e um seminário sobre ele. Combinamos
de fazer uma festa do pijama no sábado, tanto para estudar quanto para
quebrar a rotina.
Após chegar em casa, minha alma, carne e cerne pediam por algo bem
saboroso, porque meu útero resolveu se diluir em forma de sangue. Isso
explica por que meus seios estavam doendo horrores.
Já eram sete e meia da noite e nada do Zaph aparecer. Até mesmo havia
deixado a janela aberta dessa vez. Enquanto uma voz na minha cabeça dizia
que talvez ele finalmente tenha se cansado, outra insistia em me fazer
acreditar que ele viria, até que o filho da mãe decidiu dar as caras chegando
de fininho por trás no momento em que eu estava lavando a louça. Como as
cólicas massageavam meu útero igual a um açougueiro, seduzi o vampiro a
fazer algo regado a chocolate.
— Com uma condição: — Ele estabeleceu, um sorriso começando a
despontar em seus lábios conforme alçava as mangas da blusa grafite até os
cotovelos. — Que eu possa me aventurar pelo seu vale ensanguentado.
— Se eu entendi direito — respondi, tentando me manter neutra — sua
resposta é nem fodendo.
— Isso vai acontecer, draga mea, acredite.
Eu me sentei encolhida num canto do chão, só o vendo explicar como se
faz um bolo do zero, sem massa pronta. Coitado, não estou gravando nada.
Eu o imagino como uma das fadas da Bela Adormecida ou como um
participante de programa de TV, e isso me tira um sorriso, mas Zaph não vê,
porque ele está muito concentrado mexendo a mistura numa tigela.
Queria tanto ter tirado uma foto, mas o desgraçado confiscou meu celular.
Ainda assim, é um entretenimento e tanto ver os músculos dos braços de
Zaph trabalhando com empolgação.
Talvez eu deva tentar.
Fico de pé, me colocando ao seu lado, diante da pia.
— Posso ajudar? — Mordo o lábio. Zaph vira o rosto para mim e um
sorriso retido aparece.
— Claro. — Ok, preciso assumir que eu não estava preparada para essa
resposta positiva tão rápida e agora meu coração dá uma breve acelerada.
Expiro pela boca.
Embora o ar ainda pareça espesso, já posso senti-lo passar pela minha
pele como a névoa que cobre o amanhecer, se dissipando gradativamente.
— Muito bem, chef. O que eu preciso fazer? — pergunto, tamborilando os
dedos no granito.
— Unte a forma com manteiga e depois salpique com farinha de trigo. —
Zaph para de bater a massa achocolatada e me encara com a testa franzida de
leve. — Nós temos farinha de trigo, não é?
Me abaixo de cócoras e abro o armário embaixo da pia, procurando a...
Aha! Achei!
— Temos — respondo, pegando o saco de farinha e me levantando.
— Ótimo. Agora mãos à obra, sous chef. — Ele me passa a forma onde
derramaremos a massa que ele está preparando.
Alguns segundos se passam e a massa toma consistência. Então Zaph a
despeja na forma, eu a levo ao forno seguindo suas instruções e me ele
entrega uma panela e uma espátula, onde adiciono as medidas para o recheio
de prestígio sobre o fogo baixo.
— Segure desse jeito, é mais fácil. — Zaph envolve minhas mãos com as
suas. Ele implica uma força comedida ao posicionar a panela e mover a
espátula em círculo. Foco na atividade, entretanto, não consigo impedir de
cada molécula minha pressentir o corpo de Zaph atrás do meu. — Viu?
Seu tom baixo sopra perto do meu ouvido e meu ovário já comovido se
revolve. Suas mãos descobrem as minhas e eu continuo o movimento.
Estremeço quando as palmas de Zaph de repente firmam-se nos meus
flancos. É um toque leve, mas evoca um peso quase queimante. Seu nariz
passeia pela curva do meu pescoço, sem pressa. Meus seios incham por
debaixo da blusa longa e larga de algodão preta no exato momento em que
prendo a respiração.
Meus dedos vacilam quando os de Zaph partem em uma jornada pela curva
da minha bunda, até encontrarem o meu ânus por cima do short de lycra.
— Me diga, Alice... — Seu timbre não somente escala meus ouvidos como
também entra por eles e percorre a camada sob minha epiderme de modo
lento e formigante. Seus dois maiores dedos pressionam de forma mais
incisiva e acabo abrindo minha boca para puxar ar. — Alguém já comeu esse
cuzinho?
Meus lábios estão repentinamente secos, então os umedeço antes de
responder:
— Não.
Posso sentir seu sorriso roçar em minha nuca. Zaph leva seus dois dedos
um pouco mais a diante e encontra minha vulva. Ele a prensa como se
quisesse transpassar o short e a calcinha para entrar nela, porém, mesmo se
não o fizesse, minha vagina já se comprime inteira.
— E essa boceta? Alguém já comeu?
O fôlego me retorna como uma lufada, o mundo volta a girar, contudo, a
sensação é muito mais sobrecarregada. Imagens jorram em minha cabeça e
eu tento afastá-las. Elas são tão vívidas que me esquivo por reflexo.
Respira, respira, respira... Meu coração rimbomba no peito, quase de
maneira ensurdecedora. Respira.
— Na verdade, se pensarmos bem, é a boceta quem come — digo, tentando
escapar, minha voz um tanto esganiçada.
— Não mude de assunto, fată ciudată. — Gemidos, choros, a visão de um
sorriso, uma mão grande tampando uma boca, os olhos cansados de Bianca,
meu nome sendo chamado, a tesoura... aperto os olhos para enterrar de volta
essas cenas. — Ei. Tudo bem? — A voz de Zaph continua sóbria, mas de
uma outra forma. Sua mão volta à minha cintura e isso me acalma. —
Desculpe se...
— Não, mas vou ficar. — Relaxo meus dedos que apertavam o cabo da
espátula. Eu nem mesmo reparei que não mais a girava. — Eu só... preciso
de um tempo pra respirar.
— Você não me respondeu. — Zaph pega meu queixo nos dedos e o levanta
para ele. Encaro seus orbes pouco acima dos meus e enxergo o exato
momento em que o vampiro obtém sua resposta.
Sua mandíbula trava por um milissegundo, contudo, é o suficiente para sua
fisionomia inteira mudar. E, ainda que não tivesse transparecido qualquer
emoção, a aparição etérea dos nuances laranjas em suas íris revelam o
suficiente.
Zaph toma fôlego e desvia o olhar para o alto, retrocedendo alguns passos.
É esquisito perceber que não me sinto mais aliviada sem seu corpo
assomando-se contra mim. O que cabras e cabritos acabou de acontecer?
— Vamos voltar ao trabalho, senão esse bolo não sai hoje — ele diz,
categórico, já sem os vestígios de espessartitas. Inspiro fundo também, e
retorno minha atenção para a panela sobre o fogão, mandando as duas vozes
na minha cabeça e os meus hormônios ignorarem o que quer que tenha sido
aquilo. Um passo de cada vez, um passo de cada vez.
Não é muito difícil já que mergulho completamente na tarefa e esqueço...
ui! Zaph dá uma breve cutucada na ponta da minha língua que estava para
fora, premida entre os lábios. Isso quebra minha bolha de concentração e
envio-lhe uma carranca de sobrancelhas vincadas.
— Na competição de hoje temos Alice de Souza Beiruth, — Zaph começa,
olhando minha panela de cima — representando o Brasil na final do Quem
Faz Gostoso, Goza Gostoso.
Uma gargalhada irrompe minha garganta.
— Você é ridículo — estabeleço, ainda rindo.
O barulho da porta da frente se abrindo chega até mim, entretanto, o acesso
de riso não me permite abrir os olhos de imediato. Assim que consigo
afastar as pestanas, vejo minha mãe parada no meio da sala, por cima do
passa-prato. Ela segura uma sacola de plástico em cada mão e a mantém a
boca entreaberta, os olhos estáticos em nós. Logo ela desperta do torpor.
— Vocês vão limpar toda bagunça que fizerem. E, Zaph — ela caminha até
a assistirmos contornar a parede para entrar na cozinha e despejar os sacos
cheios ao lado da pia, para então voltar a mirar o vampiro com sua usual
feição de desgosto — posso dar uma palavrinha com você?
Zaph nada articula além de uma reverência encenada que indica a porta
dos fundos. Os dois seguem naquela direção, desaparecendo atrás da quina e
trato de me concentrar na mescla dos ingredientes para o recheio antes que a
sensação estranha na minha barriga ganhasse mais espaço. Mas até que não
foi uma conversa demorada ou preenchida de brados ou xingamentos como
geralmente é, logo Zaph e minha mãe retornam como se não fossem inimigos
mortais. O que me instiga ainda mais.
— Posso saber do que vocês falaram? — pergunto branda, sem tirar os
olhos da mistura na tigela.
— Nada demais — Zaph responde ao se colocar do meu lado outra vez.
— Hum. Quando é seu aniversário?
— De onde surgiu isso?
— Ué, estamos fazendo um bolo, me lembrou bolo de aniversário.
Ele não responde por alguns segundos, apenas inspira lentamente.
— 14 de abril. — Eu não esperava o tom taciturno em sua voz. Levanto o
rosto e admiro sua feição.
— É esse mês. Por que não me falou? — O vampiro balança os ombros.
— Faz tempo que não tenho motivos para comemorar. Depois que minha
família morreu e meu melhor amigo... desapareceu, pouca coisa teve
importância.
Um sentimento opressor se enrola ao redor do meu peito, mas ele logo
desvanece.
Desvio o olhar e passo o dedo pela superfície de prestígio, trazendo-o a
boca como uma colher pingando leite condensado. Obrigada, Obá, por
permitir que eu prove um pouco do manjar dos Orixás, te amo.
— Se geme desse jeito só com um pouco do recheio do bolo — diz Zaph
— imagine com o meu pau fazendo você gozar.
Tusso freneticamente por ter sugado o ar com o doce ainda na boca.

Assim que eu cheguei da escola, fui direto ao mercado mais próximo de


casa, empolgada com a ideia de um aniversário para Zaph. O bolo do dia
anterior tinha ficado bom, para a minha surpresa, e acabou em dois tempos.
Não sei como ninguém nessa casa não tem problema de glicose.
Quando o dito cujo resolveu dar o ar de sua graça, sentado na cama, como
de praxe, pedi para que ele fechasse os olhos.
Após acender o fósforo com cuidado e apagar as luzes logo em seguida,
comecei a cantar “Parabéns Para Você” enquanto caminhava de volta para
cama, segurando o bolinho com uma única vela fincada. Eu sentei de frente
para o vampiro, com uma expressão de “desculpa se eu sou assalariada,
minha mãe não me dá mesada e tentei fazer um bolo sozinha, mas ele
explodiu na minha cara”. Felizmente, Zaph achou isso engraçado e, bem,
como eu não tinha como comprar 314 velas, ele soprou a solitária velinha.
Eu já estava prestes a dormir – a pança cheia da pizza que havíamos
pedido para acompanhar a trajetória do filme de suspense que assistimos
deitados –, quando ele se movimenta a fim de pegar o notebook e colocá-lo
no chão, ao pé da cama.
— O que você...
Zaph de repente se põe sobre mim, com seus cotovelos apoiados no
colchão, um de cada lado da minha cabeça. Minha estrutura inteira se retesa.
Zaph porta aquela desgraça de sorriso, seus olhos estreitos enquanto me
encara de cima, o quarto desalumiado tornando sua fisionomia ainda mais a
de um ceifeiro.
— Deixe-me te tocar. — Eu não sei dizer se foi um pedido ou uma ordem,
pois só consigo me concentrar na breve quentura que paira no mínimo vão
entre os nossos corpos.
Eu bato algumas vezes os cílios.
— Como assim?
— É o meu presente. — Seu timbre sai quase inocente e, em contrapartida,
eu franzo o cenho na inabilidade de levantar uma sobrancelha.
— Você não queria comemorar seu aniversário até um dia atrás e agora já
quer exigir presentes?
— Será tão meu quanto seu.
Comprimo os lábios, sem desviar o olhar de suas íris.
— Tudo bem — digo, por fim. Seu sorriso aumenta e seus olhos adquirem
uma tonalidade fulva cintilante.
Eu enlouqueci de vez, é oficial.
— Fique parada, fată ciudată. — Então, Zaph começa a descer até ficar
próximo aos meus pés. O vampiro estica um sorriso astuto por debaixo dos
supercílios ao ver minha respiração irregular, suas íris agora como
cornalinas.
Ele se inclina e pega meus pés nas mãos, beijando o peito, subindo pela
minha canela, meu joelho, a parte interna da minha coxa... Em cada lugar que
ele deposita seus lábios macios de modo tão devoto, uma onda de excitação
é enviada diretamente para o meu útero e eu prendo o fôlego.
Eu não deveria permitir que ele faça uma coisa dessas. Não quando eu
posso ser tão facilmente quebrada.
Enquanto passa o lábio inferior na pele do meu ventre, deixando uma trilha
úmida, Zaph ergue seus orbes carmins para mim e – minha mãe Parviti! –
acho que minha alma sai do corpo nesse momento. Zaph, vagarosamente,
engatinha por cima de mim, suspendendo minha camiseta ao invadi-la com as
pontas dos dedos um tanto calejados tangendo na lateral das minhas costelas
e beijando suavemente minha barriga arrepiada, até parar com o rosto a
centímetros do meu. Sua franja roça minha testa e eu não consigo olhar para
mais nada além de sua boca. É só tesão, é só tesão... Eu repito para mim
mesma, entorpecida pelo hálito morno entre nós e a sombra confortável que
seu porte evoca sobre mim. A mão de Zaph desliza pela parte interna da
minha coxa, cada vez mais para cima, gerando uma agonia pujante no meio
das minhas pernas. Não misture amizade com sexo, Alice, não misture...
— Por que você faz isso? Por que me provoca desse jeito? — Minha voz
sai baixa naquele mínimo espaço entre nós. Os dedos de Zaph brincam com a
barra do meu short na altura da virilha.
— Pensei que estivesse óbvio o quanto a desejo. — Libero uma risada,
nossos narizes a átimos de se encostarem. Meus seios pesam, almejando
sentir a língua e a mão dele.
— E está.
Não misture, Alice, um passo de cada vez, não misture, não mis… Ah,
foda-se.
Ergo meu queixo, dois dedos de Zaph entram de modo mais decidido pelo
short e buscam pela calcinha rapidamente, o que deixa minha intimidade
inteira lubrificada e dolente. Nossos lábios…
— Alice, você… — Ouço a voz do meu pai me chamar. Tanto eu quanto o
vampiro sobre mim viramos o rosto para a porta, nossos olhos arregalados.
E os do meu pai também.
Embaraço? Vergonha? Constrangimento? Não. Não há palavra que exprima
o sentimento de desespero que me consome nesse instante.

No sábado de manhã, esse mesmo pai me dá uma carona até a casa de


Julia, já que o dia amanheceu chuvoso.
Ambos ficamos em silêncio, ignorando a lembrança do flagrante do dia
anterior. Eu não sabia onde enfiar minha fuça. A família de Julia tinha
viajado para Rio das Ostras, então tínhamos a casa só para nós. Cada uma de
nós era responsável por levar algo comestível. Eu fiquei encarregada do
sorvete, Melissa levou uma caixa de salgadinhos e Ju, a anfitriã, já nos
esperava com uma garrafa de vinho aberta.
— Vinho? Essa hora? — perguntou Melissa ao meu lado, levantando uma
sobrancelha. Julia fez uma expressão cínica e respondeu:
— Não há hora para o requinte. — Ela rodou a taça teatralmente e verteu o
vinho de uma vez, lançando a cabeça para trás.
— Ah — eu disse, cruzando os braços. — Eu tô vendo o requinte.
Primeiro nos concentramos nos últimos detalhes do seminário. Criamos
uma apresentação de slides enquanto comíamos os salgadinhos e separamos
a parte que cada uma falaria. A bagunça começou quando decidimos ensaiar.
Com os neurônios tão tostados a ponto de derreter manteiga, decretamos
que aquele seria o fim. Assistimos a um filme de romance com Julia aos
prantos, Melissa fazendo cafuné na cabeça dela e eu morrendo de tédio.
Tentamos fazer Melissa terminar de ver Avatar, fofocamos sobre as meninas
da nossa sala e das bizarrices das nossas famílias.
— Você ainda tem pizza do Carnaval?! — Julia pergunta com os olhos
estarrecidos, os lábios partidos em um sorriso largo, e logo joga o corpo
inteiro no tapete da sala ao gargalhar.
— Eram 10 pizzas de 35 centímetros de 10 sabores diferentes! — Melissa
se projeta para frente, na defensiva, mesmo que Julia estivesse muito
ocupada deitada de costas no chão segurando a barriga de tanto rir. — Você
esperava que eu comesse tudo em um dia?!
— Podia ter dado para os sem-teto — digo, sorrindo e admirando o
semblante bravo de Mel.
— Meu Deus, esse troço deve estar podre! — Julia volta a se sentar de
pernas cruzadas e de frente para nós.
— Você não pode falar muita coisa, senhorita-olha-quem-vomitou-no-gato-
do-Veeran-Cox — alfineto.
Os olhos de Ju se arregalam e suas bochechas inflamam.
— Eu já disse que não vomitei nele!
No Carnaval, ela disse que a mãe fez uma surpresa ao chegar com
ingressos de camarote para o desfile das escolas de samba na Sapucaí.
Embora tenha mostrado fotos com vários artistas, o interesse maior foi no
mais novo queridinho do pop internacional, o jovem cantor Veeran Cox. Ele
tem a aparência de um anjo e a voz de um íncubo. Ju falou que a noite com o
Veeran foi uma loucura e que não podia dar muitos detalhes, então
começamos a brincar com as possibilidades. Mas por algum motivo que
ainda não entendemos, ela sempre fica constrangida quando tocamos no
assunto.
— Se você não nos contar o que aconteceu não vamos parar de te provocar
— guino em sua direção com um sorrisinho.
— Podem tentar o quanto quiser, nada sai dessa boca. — Nossa amiga
cruza dos braços abaixo dos seios fartos escondidos pelo babydoll fino de
oncinha. Em total contraposição a mim, que mal me dei ao trabalho de pegar
uma roupa de dormir e enfurnei uma calça moletom na mochila junto a um
cropped de meia manga branco encardido com o emblema laranja de Soul
Eater bem no meio. Melissa veste uma camisola leve cor de rosa, o cabelo
encaracolado grosso e preto preso num rabo de cavalo alto.
— Só merda — Melissa farpeia e Julia pega a almofada que estava ao seu
lado para arremessar nela.
Avaliamos os paqueras de Julia no Tinder e jogamos Imagem & Ação até
perdermos a noção da hora. Fazia tempo que eu não sabia o que era me mijar
de rir. O melhor é que eu não sinto vergonha disso na frente delas.
Mas era hora de um assunto um pouco mais delicado.
— Mel — chamo, assim que Julia sai de cena para pegar mais refrigerante
e refaço o coque em meu cabelo. Estamos sentadas no chão da sala, ambas
com as costas escoradas no sofá. As luzes estão apagadas e a televisão
pausada em O Príncipe Dragão, que decidimos começar a acompanhar
juntas.
— Diga. — Ela põe um punhado de pipoca na boca e me encara com os
olhos bem abertos.
— Acho que devemos contar à Julia sobre você. E sobre o resto das
criaturas mágicas.
Ela não responde de imediato, então desvia o olhar para o corredor por
onde Ju desaparecera e volta a me olhar. A ideia de deixar Julia à deriva,
alheia a tudo isso me enoja. Melissa engole as pipocas e suspira.
— Tudo bem.
Meneio com a cabeça, bem na hora em que Ju volta equilibrando três
copos de Guaraná. Ela se joga de pernas cruzadas no tapete, bem à nossa
frente.
— Cheguéi! — Julia oferece os copos de vidro e cada uma de nós pega
um.
— Ju. — Seguro o copo com as duas mãos, sentindo o frescor do vidro
condensado nas palmas. Ela emite um “hum?”, enquanto bebe o refrigerante
e me olha com as sobrancelhas arqueadas por trás do copo. — Precisamos
conversar.
Ela abaixa o copo de supetão, quase se engasgando, e seu olhar quica entre
mim e Melissa, rapidamente.
— Não fui eu. Não sei o que foi, mas não fui eu.
Eu solto uma risada nasal e deixo um sorriso torto aparecer.
— Se lembra daquele vampiro que eu falei que encontrei? Então — mordo
o lábio —, ele é real.
Julia não ri, não fala, não se move. Apenas seus olhos desviam de mim
para Melissa, como se para confirmar a loucura que eu estava falando.
— Isso é algum tipo de brincadeira?

Despejei tudo que eu sabia. Mostrei fotos minhas e de Zaph como prova.
Mesmo com Mel reforçando tudo o que eu disse, Julia continuava afirmando
que estávamos malucas ou que havíamos posto algo no copo dela. Troquei
olhares com Mel, ambas com a mesma expressão de ceticismo, então ela
abriu a boca e fez as presas crescerem.
Ju, que falava incessantemente em descrença, para no meio de uma palavra
e mira os caninos alongados de Mel. Meu coração perde uma batida. Acho
que traumatizei minha amiga, porque Julia está há mais de dois segundos sem
falar alguma coisa, e isso é um recorde.
Mel pega a mão de Julia e a leva até seus dentes. Ao espetar a ponta do
dedo indicador de Ju em sua presa, nossa amiga se sobressalta e puxa a mão
de volta.
— Não vou te machucar, Ju — diz Mel. — Eu jamais faria uma coisa
dessas.
— Certo. — Julia limpa a garganta, encara as mãos que agarram o copo
com força e se levanta. — Eu preciso de algo mais forte.
Eu e Mel a observamos andar apressada até o corredor. Nos entreolhamos
com certa preocupação e vejo suas presas retrocederem. Melissa dá um
sorriso cabisbaixo.
— Vai ficar tudo bem. Ela vai entender.
Eu retribuo o sorriso tenso e estico a mão para pegar uma coxinha da caixa
de papelão. Eu preciso comer para aplacar um pouco do nervosismo. Escuto
os passos pesados de Julia retornando e levanto a cabeça a tempo de vê-la
se jogar e sentar em frente a nós outra vez.
— Faz de novo. — Ela tem os olhos vidrados em Melissa, que está
mastigando uma bolinha de queijo.
Melissa engole o salgado à força e mostra novamente o crescimento
acelerado dos caninos. Dessa vez, Julia chega mais perto, inclinando o
corpo até seu nariz um tanto arredondado ficar a centímetros do rosto de
Melissa. Então, de supetão, ela estica o pulso.
— Suga meu sangue.
— Quê? — Melissa recua, parecendo ofendida. — Não!
— Eu quero ver como é. E Alice me disse que aquele vizinho dela curou
as feridas com a baba dele. — Eu não disse exatamente isso. — Quero ver
com meus próprios olhos.
Julia está tão séria que chega a nos assustar.
Com relutância e contra vontade, Mel bufa e pega carinhosamente o
antebraço de Julia. Ju se retrai de dor, fazendo careta, quando Melissa finca
suas presas ali, mas, com certo fascínio e medo, não tira o foco do próprio
pulso. Logo, Mel volta a ficar sentada, e passa a língua pelos lábios
sutilmente avermelhados.
— Nunca mais me peça uma coisa dessas — diz ela, severa, para Ju, que
está concentrada demais admirando seu pulso, enquanto os furos se fecham
gradativamente. — Ju, você tem que prometer que não vai contar isso a
ninguém.
A morena ergue a cabeça com um olhar espantado.
— Por quê?
— Zaph não faz muita questão de esconder — digo. — Mas eu e Melissa
não achamos seguro sair espalhando que há vampiros à solta.
— Alguns podem não acreditar, mas não são apenas os vampiros que são
perigosos. Então, por favor, não conte a ninguém. Por precaução — Melissa
completa. O olhar de Julia vai de mim para Melissa, de Melissa para mim.
Meu coração se acelera um pouco ao ver que ela está assustada.
— Tudo bem. Prometo — diz, apontando raivosa para nós duas. Mesmo
assim, o alívio faz meus ombros distenderem. Eu solto um ar que nem mesmo
percebi estar prendendo. — Mas vocês também me prometam nunca mais me
esconderem uma coisa dessas!
Eu e Melissa trocamos olhares e sorrisos de canto, amainadas. Nem dá
tempo de responder e a garota logo dispara:
— Eu sabia que tinha alguma coisa errada com aquele seu curso de
Húngaro — diz Julia balançando a cabeça negativamente, os olhos
semicerrados.
— Não tem nada de errado com o curso. — Mel cruza os braços e volta a
se recostar no sofá. — Ele existe.
— Seu trabalho é real, né? — questiono. Quer dizer, como mais ela arcaria
com uma moradia e a escola? Por favor, mais um mafioso não.
Contudo, antes que ela pudesse replicar, Julia bate palmas.
— Opa, opa, opa. Pausa. Vamos recapitular: — Ela encara o meio de suas
pernas sem piscar e as mãos afastadas como se estivesse se equilibrando.
Então ergue seu olhar para mim. — Isso quer dizer que você esteve, esse
tempo todo, recebendo a visita de um vampiro gostoso no seu quarto?
— Hã... sim. — Reluto contra a vontade de encolher os ombros.
— À noite. E vocês ficam sozinhos — Ju reitera.
— Sim.
— E vocês ainda não fizeram nada? — Ela ergue as sobrancelhas e eu
curvo as minhas, remoendo as mãos.
— Bem, naaada naaada, depende do ponto de vista. Ele sugou meu sangue
algumas vezes.
— Zaph tem sugado seu sangue? — É Mel quem pergunta e, quando me
torno para ela, me surpreendo pelo seu semblante duro. Enfim retraio os
ombros e mostro um sorrisinho.
— Não é sempre.
— Alice, ele... ele te explicou o que o seu sangue faz conosco?
Contraio a fronte.
— Você diz sangue no geral ou o meu sangue? — O silêncio dela é tudo
que preciso. Travo o maxilar. — Melissa, desembucha.
— Alice, não sei se eu...
— Ah, não. — Ju se arrasta para mais perto. — Eu tô com a Alice, nessa.
Tu começou agora tu termina.
Mel comprime os lábios e libera o ar pelo nariz. Em contrapartida, eu
prendo o meu.
M
inhas têmporas latejam e minha coluna alfineta de tantas horas
diante da escrivaninha, debruçada sobre os livros e cadernos. Eu
havia mergulhado nos resumos que eu e as meninas fizemos quando
na casa da Julia. Mas tudo tem um limite. Eu já não consigo me concentrar
em mais nada. Uma mosca me distrai e carrega minha mente para uma
aventura de pequenos guerreiros montados em insetos.
Além disso, o que Melissa me contou no sábado não sai da minha cabeça.
Aquilo não pode ser verdade. Meus país teriam me falado. Não teriam?
Grunho de frustração ao jogar a cabeça para trás e esfregar as mãos no
rosto. A maldita cadeira faz seu maldito ganido metálico.
— Me diz que você consegue consertar essa coisa — peço, ainda com as
mãos escondendo os olhos.
— Conseguir eu consigo. A questão é — Zaph responde — o que eu vou
ganhar em troca?
Eu abaixo as mãos junto ao queixo e torço a cabeça para mandar-lhe uma
feição entediada. O vampiro está sentado de lado na cama, de frente para
onde estou, com as pernas cruzadas sob uma calça moletom cinza escura
mesclando com o tom de seus olhos, e o cotovelo que sustenta o queixo
apoiado num dos joelhos.
— É sério? — pergunto, cética. — Já não basta aquela merda de acordo?
Se eu ficar com anemia, vai ser culpa sua.
— Eu não estava me referindo ao sangue. — Zaph move as sobrancelhas
acompanhando o gesto com um sorriso sacana. Eu apenas libero uma risada
rápida pelo nariz e balanço a cabeça, incrédula. Resfolego, fechando o livro
de História e o caderno.
Meu celular vibra no tampo de vidro, emitindo um ruído agudo trépido ao
lado do meu material. Eu não sei se enrugo a testa ou arregalo os olhos ao
ver a notificação da mensagem de Igor. Os anjos já prepararam as
trombetas? Porque ou é um milagre ou é o fim do mundo.
Ela disse sim! IGOR

Em seguida vem uma foto dele e de Fernanda exibindo seus dentes brancos
num sorriso cegante e o anel de noivado no dedo. Meu peito se enche de um
sentimento morno.
UHUL! EU
Ela quer que você entregue as alianças. IGOR

Minhas sobrancelhas se erguem. Em questão de segundos, minha vista


borra gradativamente devido às lágrimas clandestinas.
seria uma honra. EU

Isso foi uma piada? IGOR

não, só irônico mesmo. EU

— Tive uma ideia. — Zaph atrai novamente minha atenção, então bloqueio
o celular e o recoloco no lugar.
— Tenho medo das suas ideias — brinco sem me alterar, continuando a
guardar meu material. Zaph até que foi de grande ajuda na hora de estudar,
descobri que ouvi-lo relatar os acontecimentos de uma maneira quase
satírica é muito mais divertido e fácil de memorizar do que vendo vídeos na
internet.
Ah, e também que vampiros romenos de cabelos negros e olhos claros
ficam deliciosos em calças de moletom.
— Você vai gostar, confie em mim — ele diz, se pondo de pé enquanto
ajeita a camiseta preta justa e eu giro para encará-lo com um sorriso sutil.
Pensar que ele talvez saiba do que Mel disse me magoa, mas não posso
culpá-lo por não contar, posso? Posso?
— Eu confio. — Zaph retribui o gesto, entendendo que há muito mais
nessas duas palavras do que parece. — Qual o plano?
— Fazer você relaxar antes das provas. Vem, você está muito tempo em
casa.
— Eu gosto daqui. — projeto o lábio inferior e Zaph apenas iça as
sobrancelhas enquanto também as enruga.
Zaph estende a mão na minha direção e, com um suspiro, tomo impulso,
encaixando a minha na dele.

— Coloque isso — ele disse, longos minutos depois, quando estávamos no


meio da praça, sob a sombra da maior árvore que tem ali. Só espero que não
caia uma jaca na minha cabeça. Se isso acontecer, Zaph vai ter que se
virar para me acordar, porque não quero voltar para um hospital nem tão
cedo.
O vampiro tira do bolso um colar prateado, desgastado pelo tempo. O
pingente tem o formato de um coração mediano preenchido por arabescos e
uma pedra de um vermelho intenso no meio.
Eu havia trocado de roupa, pois Zaph me recomendou pôr um sapato
fechado para onde estávamos indo, então coloquei um tênis casual, que
acabou combinando com a minha blusa de alça branca e meu short jeans de
cintura alta. A temperatura está um tanto baixa, mas ainda existem alguns
raios de sol para esquentar, por isso, pensei em levar um casaco também,
porém Zaph disse que eu sentiria calor. O questionei, então, porque ele
precisava do gorro cinzento que usava e o vampiro respondeu que era
porque o deixava mais estiloso. Assim, eu coloquei meias sete oitavos
pretas, tanto para implicar quanto para proteger as pernas do frio.
— Você é muito mandão às vezes, sabia disso?
— Sabia. — Ele passa a corrente pelo meu rabo de cavalo com facilidade
e eu abaixo o queixo para o coração prateado, parecendo uma antiguidade
pesando entre os meus seios e contrastando com a regata nívea. Iço o olhar
de volta para Zaph.
— O que isso significa?
— A prata vai te proteger. O lugar para onde vamos não aceita humanos
muito bem. — Zaph dá uma piscadela e meus olhos se sobressaltam. Tenho
certeza de que tudo na minha expressão facial diz “COMO ASSIM?!”, num
misto de empolgação e hesitação. Zaph reencaminha a atenção para o tronco
grosso da jaqueira e encosta sua palma na casca marrom porosa. — Existem
duas opções de entrada: uma porta num lugar abandonado, onde tenha como
desenhar o símbolo, ou um lugar público que tenha bastante trânsito de
criaturas e com a marca mágica. O que é muito fácil de fazer aqui no Brasil,
já que a marca se confunde com outras pichações.
Ele segura minha mão direita enquanto a outra afaga o tronco. Um pouco
acima do seu dedo, está cravado o desenho de uma mariposa com um sol
radiante desenhado em uma asa e três fases da lua ilustradas na outra. Suas
asas abertas ultrapassam por pouco dois losangos concêntricos, onde há um
olho simples sobre a ponta de cima.
Meu coração dispara e sugo o ar quando as cavidades do símbolo emitem
uma luz dourada. Isso é mesmo real? Um caractere é delineado em ouro ao
lado do olho, e rapidamente outros o acompanham formando um círculo de
runas ao redor da mariposa e do maior losango.
— Talvez seja melhor fechar os olhos — Zaph diz, o símbolo todo
resplandece e, de repente, o mundo desaparece.
Se antes havia as cores pastéis das casas, o ranger da grade da quadra, o
vento soprando por entre as folhas da árvore e um sutil odor acídulo de
fumaça, agora há o mais puro breu. Não há cima, baixo, frieza, quentura,
oxigênio ou gravidade, apenas o negrume infinito de um espaço nulo e a mão
de Zaph atarraxada à minha. Sinto meu corpo leve como se estivesse
submersa em água, mas pesado como se feito de pedras. Tão rápido quanto
acontece, volto a sentir o solo sob meus pés, a temperatura fresca toca meus
braços e uma tontura me abate como uma onda do mar passando por cima de
mim. Cambaleio para trás, piscando incessantemente e sinto as mãos de Zaph
me ampararem pelos ombros.
Não só minha cabeça roda, mas minha barriga também e – urgh! – uma
ânsia de vômito incita meu estômago. Meu Santo Pãozinho de Queijo, fazia
tempo que eu não me sentia tão enjoada assim! Eu me dobro para o lado,
colocando uma mão sobre o abdome conforme a outra busca algo em que me
apoiar, e acabo encontrando o antebraço de Zaph. O local é uma penumbra,
embora eu possa escutar, ao longe, sons distintos de uma grande
movimentação urbana. Espero que seja um beco, porque estou prestes a pôr
os bofes para fora.
Na verdade, o enjoo vem, espanca meu estômago, e depois vai embora.
— La naiba. Desculpe, eu deveria ter avisado — Zaph diz.
— Tô bem. — Minha voz sai esganiçada.
— Precisa de mais tempo? — Eu inspiro fundo, olhando o cimento
poeirento sob meus pés enquanto me estabilizo. — Não precisa ter pressa.
— Estou melhor — digo, massageando a barriga.
— Melhor pôr isso também, tome. — De súbito, eu sinto o topo da minha
cabeça ser envolvida e aquecida por um tecido grosso. Eu tateio perto das
minhas orelhas e sinto o gorro de Zaph. Por que ele… — Preparada?
A pergunta de Zaph envia uma corrente de adrenalina pelo meu corpo e faz
meu coração dar um único salto dentro do peito.
Eu ajeito a postura e olho para frente, me deparando com uma porta
vermelha no meio de um cubículo. Zaph tira a mão que escorava minha
lombar para ficar à minha direita e segurar a maçaneta de mesma cor,
enquanto seus dedos livres envolvem os meus. Me agarro a eles.
— Espera! — bramo, no limite da histeria. Zaph pisca os olhos algumas
vezes para mim. — O que... Como é lá dentro?
— Não quer que seja surpresa?
— Só... — Tenho medo de ter um ataque de pânico assim que eu puser os
pés naquela porta — descreve pra mim. Por favor.
— Barulhento e cheio. — Zaph tira a mão da maçaneta e se volta para
mim, talvez ficando mais próximo do que deveria. O que me tranquiliza, mas
desperta sensações indevidas. — Se quiser voltar, não tem problema. É só
dizer — ele diz, estável, com esmero demais para o meu pobre coração.
Inspiro fundo e desvio meu olhar para a porta atrás de si.
— Tudo bem.
Ele dá um passo para longe e seus dedos rodeiam a maçaneta mais uma
vez. Minhas mãos suam. O vampiro ostenta um sorriso arteiro de lado, o que
só faz minha frequência cardíaca ir ao baço e voltar.
— Bem-vinda ao Mercado das Criaturas.
Zaph abaixa a maçaneta e empurra a porta para fora, revelando uma
explosão de cores, sons e movimentos. Dizer que meus olhos se
esbugalharam é pouco. Muito pouco. Dou um passo à frente sem soltar de
sua mão, como se somente esse gesto pudesse me manter com os pés no
chão.
Ao trespassar a moldura, desembocamos num ambiente aberto, mas
claustrofóbico. Há tendas multicolores e seres de todos os tamanhos,
formatos, espécies e subespécies, andando ou voando pelo corredor estreito.
O aroma dos mais diversos temperos – picantes ou azedos – somado à
gritaria dos comerciantes invade meus sentidos. As barracas de variados
tamanhos e estilos, dos mais simples aos mais requintados, ficam de costas
umas para as outras, revelando uma trama de corredores infindáveis que se
cortam sem padrão algum. Ou eu apenas não consigo decifrá-lo. O teto
repleto de fumaça, com canos à mostra que se entrelaçam como fios de
costura, se estende até onde a vista alcança. A iluminação parece ser natural,
não há ponto de luz algum, embora o ambiente esteja mergulhado num quadro
amarelado. É um lugar onde há ordem no caos.
Eu não sei nem a que Deus clamar agora.
— Alice — Zaph me chama e eu levo meu olhar admirado para ele, mas
seu semblante remonta uma expressão mais sóbria. Quase não combina com
aquele lugar cheio de vida. — Não solte minha mão em hipótese alguma. O
colar vai te proteger de criaturas que têm a prata como fraqueza, tipo
feéricos e licantropos, mas não vai impedir que outras espécies sintam sua
presença humana. O meu cheiro camufla o seu, mas também não é 100%
seguro.
— Ok. — Eu aperto sua mão na minha, mais jubilosa que temerosa. — Eu
pensava que fad… feéricos repudiavam ferro, não prata.
O vampiro havia me explicado que, assim como bruxos detestam ser
relacionados a outros “bruxos” da mídia, as “fadas” odeiam ser chamadas de
fadas. Para elas é quase um xingamento, e muitas delas não reagem muito, er,
pacificamente a isso.
Zaph inclina de forma sutil a cabeça, apresentando um teor presunçoso em
seu perfil.
— Do que você acha que os dentes deles são feitos?
Meus olhos se arregalam, mas antes que eu possa tremer, Zaph me puxa
para frente e começamos a caminhar por entre as milhares de criaturas
mágicas. Agora não tem volta. Respiro fundo, sem piscar. Não sinto medo, é
diferente, mas não sei denominar.
— Ah. — ele continua, ainda sorrindo. — Tente não parecer tão surpresa.

Percorremos o lugar como se o tempo não existisse por aqui. E talvez não
exista mesmo. Zaph me contou que o mercado é um lugar neutro, onde
criaturas do Dia e da Noite podem andar livremente e vendem de tudo. Eu
abaixava um pouco o gorro cada vez que um ou mais olhos felídeos ou
anfíbios cruzavam com os meus. O vampiro apontava e comentava um pouco
de cada criatura que ele reconhecia e que eu nunca tinha ouvido falar na
vida. Ele me mostrou uma bela elfa de orelhas pontiagudas, pele escura e
traços geométricos pintados em dourado nos braços e no rosto conversando
com uma harpia, que exibia um cabelo trançado e penas exuberantes como as
de uma arara-vermelha no lugar dos braços. Havia um centauro analisando
uma garrafa de hidromel em uma tenda alaranjada onde o vendedor era um
leprechaun; um pequeno akaname de pele rubra e cabelos cor de capim
saltitando como um sapo com sua língua enorme a balançar; franzinas pixies
emitindo ruídos de guizos, enquanto tremiam velozmente suas asas que
pareciam de cigarras...
Eu queria parar em cada estande, das que dispõem ingredientes bizarros às
de armaria, e o puxava cada vez que algo chamava minha atenção, mas é
preciso saber jogar aqui. Como a variedade de produtos é quase infinita, os
preços também são. Alguns pedem moedas em troca, outros uma parte do
corpo, um segredo, uma memória… Zaph me levou até uma minúscula
barraca esverdeada onde a vendedora era uma ninfa de cabelos que
pareciam oscilar em tons de azul como o próprio mar, suas íris eram puras
tanzanitas. Ele quis comprar um doce em formato hexagonal e colorido. A
ninfa cobrou um canino dele, mas o vampiro desconversou e ela acabou
aceitando um beijo na bochecha. Mal deu tempo de me sentir incomodada.
— Nunca dê nada seu para nenhuma criatura — Zaph sussurra em meu
ouvido assim que saímos da tenda. Eu seguro a guloseima num guardanapo
com uma mão enquanto a outra está ocupada se unindo com a de Zaph
conforme vamos nos desviando dos transeuntes. — Um dia você pode
acordar num lugar sujo e com uma coleira de aço ao redor do seu pescoço.
Tiro uma mordida do bolinho e observo seu perfil.
— Isso já aconteceu com você? — Xandra Candra de Israel, que bolinho
bom! O bolo tem gosto de tutti-frutti e a massa derrete na boca.
Zaph apenas retesa a mandíbula. A iluminação invoca contrastes calorosos
aos traços do seu rosto, às madeixas negras que se rebelam contra a brisa
fraca e aos olhos de silício.
Zaph sempre me divertiu com suas aventuras, porém nunca me contou de
suas dores. Não sei se esse é o melhor momento para perguntar, rodeado de
criaturas que podem ser tão bondosas quanto perigosas.
— Por isso você se tornou um Vacor? — Observo-o de esguelha. Ele
libera uma risada nasal rápida e o sorriso que surge no vértice de seus
lábios tem uma ardileza que me ouriça.
— Nu.
— Foi antes de entrar para a máfia?
— Foi bem an... — Zaph franze o cenho de repente. — Como você sabe
disso?
Sacudo os ombros.
— Minha mãe me contou. Vocês, por um acaso, não chegaram a...
— Urgh, nu. — Zaph estremece e faz uma careta. — Prefiro falar do que
estávamos conversando antes. Onde paramos? Ah, sim. A razão para eu ter
perdido a cabeça não tem nada a ver com a máfia... — Zaph não me encara
quando fala. Ele mira adiante, como se as imagens de sua memória
estivessem bem à sua frente. Esquivo de uma... bananeira? Minha visão se
prende no ser revestido de folhas verdes vistosas, somente com os braços
delgados de cor marrom escura, como galhos longos, a aparecer. Ele anda
um tanto corcunda, pulando com um pé de cada vez, o que faz os colares de
dentes e sementes ao redor de seu pescoço e seus pulsos finos soarem como
chocalhos. Uma máscara de madeira encoberta sua face, onde os olhos
grandes e redondos foram desenhados em branco, da boca saem dentes tais
quais os de javalis. Eu giro no meu próprio eixo, assistindo a criatura passar
por mim e sumir dentre tantas outras. — Você está ouvindo? — Torno-me
para Zaph outra vez.
— Não, desculpa. Repete? — Encolho os ombros, esticando meus lábios
de uma maneira sem graça, e tiro mais uma mordida do bolo.
O vampiro suspira.
— Resumindo: Eu não vi porque continuar tendo compaixão de pessoas
que não sabem o significado dessas palavras. Se eles queriam um demônio a
quem culpar, ótimo, eu seria esse demônio. Daria uma razão para os
hipócritas rezarem. Vocês humanos são mais monstruosos do que um dia os
vampiros jamais serão.
Ok, eu não esperava essa raiva no tom de voz dele.
Retorno a olhar para meus pés, perdida em pensamentos sobre o passado
de Zaph, mas algo mais à frente me chama atenção. Além de tanta
movimentação, no que parece ser o fim do corredor, há uma grande porta
dupla de madeira escura, com duas aldravas redondas.
— O que tem ali? — Eu sinto a massa esfarelar na minha língua e sumir
conforme a masco, deixando uma sensação viscosa na boca. Moça, prepara
seu forno, porque eu vou encomendar uns cem desses.
— Nada que valha a pena ver agora. — Zaph me reencaminha para a
esquerda, entrando em outro corredor.
Aplausos, assobios e urros de contentamento chamam minha atenção.
Por cima das cabeças, penas e galhadas do grupo parado de costas, vejo
fitas violetas e pretas dançando no ar. Um jorro de fogo é lançado e a
multidão ao redor vibra.
— Acho que você deu sorte — Zaph diz ao meu lado, ainda me
acompanhando de mãos dadas. — Deve ser dia do Festival Outoveril. Isso
explica a movimentação.
— Festival Outoveril? — repito, confusa e maravilhada ao mesmo tempo.
— Você já ouviu falar do Efeito Mandela? Dizem que ocorre quando duas
realidades se chocam — Zaph diz, com um sorrisinho no canto da boca e
inclinado para mim, mas sem tirar os olhos da multidão próxima. — Bem,
aqui acontece algo parecido.
Desculpe, eu ouvi certo? Ele disse “DUAS REALIDADES SE
CHOCAM”?
— O Festival marca a sincronização do equinócio de primavera e de
outono nos dois hemisférios, exatamente na mesma data e na mesma hora.
Mas não é apenas isso.
Quando nos aproximamos da massa, Zaph vai na frente, utilizando de sua
altura e imponência para cortar caminho por entre o público, que abre
passagem de pronto assim que batem seus olhos nele.
Minha pele pinica de agonia por estar rodeada de seres fantásticos tão
grandes e diminutos, que cheiram a lixo e a flores. Eu peço desculpas por
onde passo, me espremendo entre roupas feitas de limo e outras feitas de
seda. Zaph de repente para e me puxa para perto de si, me colocando na sua
fren… Meu. Santo. Rodrigo Hilbert.
Estagno, boquiaberta, ao me deparar com um ambiente circular amplo,
feito em pedras de calcário, de onde um enorme salgueiro chorão brota no
centro. Ante a ele, quatro mulheres dançam movimentando panos escuros
com uma quinta no meio, que segura o véu cor violeta que eu avistara. Deles,
a cada rodopio, exalam pequenos pontos reluzentes como pérolas a voar, que
se espalham pela ágora. Embora descalças, todas vestem a cor preta como
odaliscas sensuais e sombrias, os tecidos ao redor da cintura parecem fazê-
las flutuar em nebulosas arroxeadas como galáxias. Seus cabelos loiros,
pretos, castanhos, lisos, cacheados, ondulados, longos, medianos e curtos
acompanham suas curvas mesclando à atmosfera etérea que criam.
— Elas são bruxas — Zaph comenta sóbrio ao pé do meu ouvido. Seu tom
baixo envia um breve arrepio à minha nuca, mas tento não pensar muito
nisso. — São conhecidas como Irmãs de Unhas de Ferrão Púrpuro. Fazem
parte das Bruxas Ferrão Púrpuro que, por sua vez, fazem parte do círculo
mágico da Sociedade Oculta. Que não é tão oculta assim, mas vamos rezar
para que elas não a vejam aqui, senão estamos fodidos. Os bruxos são
cruéis, mas as bruxas…
Zaph não precisa nem mesmo concluir sua frase. Quando os orbes
heterocromáticos da dançarina no centro recaem nos meus – um dourado e o
outro prata, não cinzas como os de Zaph, prata –, num único relance, eu
posso ver toda a maldade de que ela é capaz, mas que seu sorriso esconde.
Um som de flauta irrompe na roda e meu foco dispara para o fauno que
saltita pelo espaço no ritmo da melodia que entoa. De repente, a dança muda
de rumo e recomeça quando bodhráns, violinos e gaitas se juntam à
harmonia, trazidos por um kappa, uma korrigan de longos chifres, e um
anão. As criaturas ao nosso redor bradam em alegria, e um coro de palmas
começa a soar como se fosse mais um instrumento musical.
O cimento sob meus pés vibra suavemente e tudo ao meu redor, todos os
contornos, parecem oscilar aqui e ali em finos nuances de vermelho e azul.
Eita! Estava tão hipnotizada que quase pulei de susto ao sentir Zaph se
inclinar para grudar a boca à minha orelha outa vez.
— Como eu estava dizendo, além da união dos equinócios, ocorre outro
fenômeno que caracteriza o Festival. O Mercado das Criaturas fica no que
chamamos de Ponto de Fusão, um lugar onde, de tempos em tempos, os
mundos e as realidades colidem. Funciona quase como uma rosa dos ventos.
— Eu não consigo tirar meus olhos das dançarinas e de suas silhuetas que
variam em azul, ametista, carvão, vermelho e verde devido à árvore atrás
delas, como um redemoinho de cores ou um zootropo tão tangível quanto
surreal. O que será que tinha naquele bolinho? — Acho que você pode
imaginar o que está prestes a acontecer...
Eu estou sem palavras. Simplesmente sem palavras.
As bruxas param de dançar, as cinco formando uma lua crescente de frente
para o salgueiro chorão, no exato momento em que as pessoas param de
aplaudir e o instrumentos se silenciam, como se todos já soubessem o que
fazer ou como se um trovão estivesse ressoando por todo Mercado.
Pressiono ainda mais os dedos de Zaph entrelaçados aos meus, procurando
controlar meus batimentos cardíacos, e recebo seu aperto em retorno.
O teto, antes acinzentado e atulhado de canos, aos poucos desvanece na
névoa, dando lugar a duas imagens espelhadas, saídas das diagonais, ainda
mais incorpóreas. Elas refletem as barracas coloridas, a praça de pedras e o
salgueiro. As duas árvores no alto despontam como mastros de navios que
irrompem o nevoeiro e ficam de ponta cabeça, quase se encostando à que
está à nossa frente. Tudo acontece lentamente. Então, me surpreendo ao ver
uma singela borboleta sair dentre as folhas caídas de um dos salgueiros
chorões invertidos. E mais uma no lado oposto. E mais outra. E outra. Logo,
uma nuvem de borboletas desce em espiral... Não, espera, não são
borboletas. Mariposas. São mariposas grandes, amarelas e marrons. Elas
circundam as três árvores como se as ligassem, as prendessem, uma na outra,
até que, a passos vagarosos, as três tenham se tornado uma. A praça inteira
se tornou um mandala de um imenso caleidoscópio.
— Neste mundo, os humanos deram o nome a esse pequeno ser alado de
Acherontia — Zaph continua sussurrando em meu ouvido, sua voz rouca
fazendo parte de todo aquele cenário. Tão inebriante quanto todas as outras
sensações. — Para nós, seu nome é Viayña. Essa criatura é a única que
consegue atravessar mundos, realidades e planos. Não é à toa que ela é o
símbolo de todas as criaturas mágicas.
Os contornos deixam de tremeluzir entre magenta e turquesa, mas o
espetáculo não acabou. As mariposas rodeiam a árvore, seguindo o ritmo da
música, então se espalham pelo lugar, voando em milhares de direções.
É tudo tão lindo que parece irreal. Meu coração é um bosque de emoções
ininteligíveis. Sinto em meu peito um desejo de pôr tudo isso para fora em
forma de lágrimas, pois em palavras seria impossível.
Acho que é assim que as pessoas se sentem quando vão à Disney pela
primeira vez.
— É como sempre sonhou?
Tal qual uma tesoura corta um fio, a viveza que eu enxergava some quando
as palavras suaves de Zaph me trazem uma revelação.
— Eu… eu me habituei tanto aos pesadelos que esqueci como era sonhar.
Então as lágrimas vêm, silenciosas.
Tantas criaturas diferentes, criadas de maneiras diferentes, para propósitos
diferentes, unidas num único lugar e se divertindo como se fossem um só
povo… Meu peito almeja por ver isso no meu mundo mais que tudo. Uma
centelha se acende naquele poço fundo dentro de mim. Eu pude sentir, juro.
Porque eu percebi que se isso daqui podia existir, então a união que eu
sempre quis também pode. Demoraria, doeria, não seria perfeita, mas
aconteceria. E eu batalharia cada dia por ela. Fazendo a minha parte, de
pouquinho em pouquinho. Um passo de cada vez.
Duas crianças cornudas, um menino e uma menina, trajando roupas que
parecem ser feitas de folhas secas, invadem a roda e começam a dançar de
mãos dadas, rindo uma para outra, enquanto giram rapidamente por entre as
bruxas, as mariposas e os pontos luminosos.
Não muito depois, a melodia animada retorna e a multidão começa a
dançar junto. É como o Carnaval. Só um pouco mais bizarro.
Fungo, e uma risada fraca me escapa.
Opa! Do nada, sinto a mão de Zaph me puxar para cima, me obrigando a
girar na ponta dos pés até me colocar de frente para si e não restar um
mísero espaço entre nós. Meu coração ribomba no peito, e eu não sei dizer
se é pelo simples susto ou pela aproximação entorpecente de seu rosto e sua
mão pesando em minha cintura. Seguro nos antebraços de Zaph, já rendida
sem nem mesmo tentar.
— O que foi isso? — pergunto, variando meu foco de sua boca para os
olhos e vice-versa. Zaph apenas dá de ombros, sobrelevando o lábio inferior
de modo fugaz, e exibe um sorriso no limiar do imperceptível.
— Só achei que devia. E tenta não pisar no meu pé dessa vez.
Solto uma risada que começa nasal, mas finaliza verbalizada, dando uma
sensação gostosa à minha garganta.
Nos integramos à balada agitada e às criaturas que dançam em pares. Meu
sorriso, enquanto o vampiro me rodopia para lá e para cá, quase rasga minha
pele de tão largo. E ver que Zaph também ri comigo faz meu peito se encher
de uma emoção morna, confortável. Principalmente quando ele me puxa de
volta para si.
Todas as memórias e sensações parecem correr por onde nossos dedos
tocam nossa pele, como um rio de energia que encontra seu início e fim em
nós mesmos.
Mesmo nossos narizes estando perto demais, ainda assim o dedão áspero
que ele usa para limpar uma das minhas lágrimas logo abaixo dos meus
olhos me eletrifica. Meu coração soca meu tórax e aperto mais o antebraço
de Zaph, para me manter firme e não fugir, ou para tentar me despertar da
loucura. Zaph encaixa essa mesma mão em meu rosto, aproximan... SANTO
PAI!
Num momento eu estava prestes a colar meus lábios nos de Zaph, e no
outro uma jovem aparece agarrando a gola de sua blusa. Ela tira o calor dele
de mim ao puxá-lo, até seu nariz estar a átimos do dele. Seu rosto está
transfigurado em raiva, enquanto o perfil do vampiro expressa surpresa. A
mulher é apenas um pouco menor do que Zaph, mas, aparentemente, emana
uma aura tão ameaçadora quanto.
Para falar a verdade, eles poderiam ser irmãos gêmeos. Os cabelos
escuros da mulher caem em ondas até seu seio mediano, coberto por uma
regata preta de alça larga e com rasgos, a pele tão lívida quanto a de Zaph,
os olhos de um azul seco.
Com um movimento abrupto, sou empurrada para trás com os olhos
arregalados e o gorro escorrega de minha cabeça. Eu consigo segurá-lo por
pouco, mas a agitação faz as criaturas ao nosso redor olharem curiosas.
— Você é maluco ou o quê? — ela rosna. — Por acaso não sabe que vão
esfolá-la viva e arrancar cada parte dela caso saibam que é humana? Se não
sabia, o que eu duvido muito, Tertius, está avisado agora.
A jovem solta a camiseta de Zaph com violência e o vampiro se recompõe
sem demora. Pela expressão dura dos dois, não haveria argumentação.
Com o coração comprimido dentro do peito, eu seguro o punho cerrado de
Zaph e seu cotovelo. Ele abaixa o queixo para mim, suas íris ainda cinzas e
sua boca numa linha reta.
— Zaph, tudo bem, eu já vi o suficiente. — Envio-lhe um sorriso terno e,
após alguns segundos me estudando, o vampiro volta a encarar a garota, mais
calmo. Ele apenas aquiesce para ela.
— Ah. Já entendi — diz a jovem e volto a encará-la. A mulher troca o
peso da perna, ostentando um sorriso íngreme em minha direção. Se os orbes
de Melissa são grutas de geleiras, os dessa garota são a própria geleira.
Logo ela retorna a Zaph. — Tire-a daqui agora se quiser continuar tendo sua
parceira — ordena ela, branda.
Seu olhar gelado desvia para mim ao mesmo tempo em que Zaph toma
minha mão na dele outra vez e cruza nossos dedos. Somente esse gesto é o
suficiente para me apaziguar. A jovem estica um sorriso torto e troca o peso
da perna.
— Algo me diz que essa não será a última vez em que nos veremos. Então,
até mais. — Ela mostra um punho na minha direção e eu olho para ele, um
pouco atordoada. Um riso interno de alívio me percorre inteira. Eu abro um
sorriso sem jeito e bato meu punho com o dela. — Se cuida.
Zaph me puxa para longe do centro da praça, para longe da música e da
dança, entremeando-nos à multidão de seres e voltando para os corredores
menos abarrotados agora.
— Antes que você me pergunte — Zaph começa, os olhos focados à frente
—, aquela era Aurora, Guardiã da Noite.
— E o que, exatamente, uma Guardiã da Noite faz? — pergunto,
observando seu perfil. Me tranquiliza notar que ele não parece mais tão
tenso, embora permaneça atento aos arredores. Provavelmente, o aviso de
Aurora está ecoando em sua mente assim como ecoa na minha.
— O mundo oculto tem algumas repartições para facilitar a organização e
a... regularização, vamos dizer assim — ele introduz, diminuindo a
velocidade. — Há os escolhidos que trabalham arduamente, todos os dias
para manter a paz entre os humanos e os “seres sobrenaturais”. Os Guardiões
mantêm o limiar entre criaturas e humanos; os Vigilantes contribuem para a
calmaria entre humanos e divindades; e os Exorcistas… bem, só pelo nome
já dá pra saber o que eles fazem. Cada uma dessas repartições tem dois
escolhidos: um homem e uma mulher. Eles possuem tatuagens que ajudam a
identificá-los. Esse foi um dos motivos que influenciou a decisão de tatuar
os Cinco Grandes.
Franzo o cenho.
— Chico o quê?
Zaph finalmente abaixa o queixo para me encarar, um sorriso tremulando
na quina de seus lábios.
— Chico não, cinco. É como os que aparecem no topo da classificação
vampírica se denominam. Lembra que eu falei sobre ser o terceiro?
— Vocês se denominam Chico Grande? — Inclino a cabeça.
— Cinco! Cinco Grandes. Primus, Secundus, Tertius, Quartus e Quintum.
Esses são nossos nomes oficiais. E é através da tatuagem que nos
identificam. Uma flor de cerejeira com losangos sobre cada pétala. Na minha
têm três deles pintados porque sou o Tertius. — Eu deveria ter ficado
animada por saber que Zaph tem uma tatuagem? De flor? — Enfim, essas
tatuagens mágicas dão poderes aos escolhidos. Cada um é diferente. Aurora,
por mais irônico que seja, é a Guardiã da Noite. E tem o Guardião do Dia,
que vigia as Criaturas do Dia. Se eu fizer merda, por exemplo, é a Aurora
que vai me comer na porrada. Porque, tecnicamente, vampiros são criaturas
noturnas.
— Deve ser difícil — comento, voltando a olhar para frente e desviando
de um ogro marrom de dois metros de altura que passa ao meu lado direito.
— Deve.
— Imagina ter que tomar conta de vários Zaphs.
Ele abaixa a cabeça para mim com a testa vincada.
— Ei.
Rio de sua expressão e ergo o olhar para o vampiro.
— Obrigada — agradeço.
O vinco entre suas sobrancelhas some e dá lugar a um ínfimo sorriso
inclinado.
Viramos uma esquina, de volta ao... AU! Uma criatura enorme esbarra no
meu ombro direito, seus pelos espessos roçando na minha pele de forma
agressiva, a ponto de me fazer cambalear e o gorro escorregar para trás da
minha cabeça.
Solto da mão de Zaph somente para girar e pegar o gorro que cai no chão
cimentado. Assim que iço a cabeça, me deparo com o fuço colossal de um
tamanduá a poucos centímetros de mim.
A criatura me estuda com seus globos de um piche infinito e fareja o ar
entre nós. Ao falar, sua voz é um esganiçar grave.
— Humana.
Essa não.
A criatura fica ereta sobre seus dois cascos fendidos e meu corpo todo
estremece ao ver o corpanzil peludo, metade tamanduá e metade homem, me
esconder em sua sombra. A coisa lança sua língua como uma flecha em
minha direção, mas sinto dedos segurarem ao redor dos meus bíceps, me
tirando da reta da língua longa e endurecida bem a tempo.
De repente, me vejo suspensa no ar e encaixada no colo de Zaph. O
vampiro me carrega com um braço por baixo das minhas pernas e o outro ao
redor das costas e ombros, disparando pelo corredor apinhado de criaturas
mágicas.
Um rugido estridente ecoa por todo mercado.
— O que é isso?! — pergunto, sacolejando no colo de Zaph e apertando o
gorro de tal forma contra meus seios que meus dedos doem. Mais um rugido
corta as tendas coloridas das barracas e fecho os olhos, o pavor enrijecendo
meus músculos.
— Um maldito capelobo!
Eu não faço a mínima ideia do que isso seja, mas também não estou a fim
de descobrir.
Zaph trinca os dentes, correndo na mesma velocidade em que meu coração
ribomba no peito. Os seres fantásticos ao redor abrem caminho aos gritos.
Uma sombra nos cobre. Olho para ci... O capelobo salta por cima de
nossas cabeças e aterrissa a alguns metros, obrigando Zaph a frear de forma
brusca. Zaph não pode matá-lo, eles estão num território neutro, eu sou a
intrusa.
A criatura se lança em nossa direção com as unhas alongadas e arcadas,
prontas para nos dilacerar, a língua rija na boca pronta para nos atravessar,
seus dois botões pretos refletindo minha imagem... Então ela recua. Não, não
recua. Um laço prateado imobiliza seus braços junto ao tronco parrudo e o
puxa na direção contrária.
O capelobo despenca deitado no chão, distante de nós, e Aurora está atrás
dele. É ela, portando uma fisionomia dura, quem segura o fio de luz prata em
punhos cerrados que prende a criatura. Seu olhar severo nos atinge de
imediato.
Zaph apenas anui e volta a correr pelo corredor adjacente, em direção à
porta vermelha por onde viemos.

— Você está bem?


Assim que escuto a voz de Zaph soar baixa, próxima a mim, eu levanto o
olhar para ele. Meu peito se obstringe numa mistura de diversos sentimentos:
medo, alívio, tristeza e felicidade... As mãos grandes e um tanto calejadas
dele encaixam no meu rosto e eu tento recuperar o ar, sem desviar o olhar de
sua face.
Estamos naquele penumbroso espaço mínimo ante à porta, onde Zaph
finalmente me coloca no chão e sinto todos os meus músculos vibrarem.
— Estou. — Trêmula, eu seguro sua mão para ter a certeza de que ele não
vai sumir. — Desculpa, eu...
— Não precisa se desculpar. Não foi sua culpa.
— Eu soltei sua mão, eu...
— Está tudo bem, tudo bem.
Ele encosta sua testa na minha e eu fecho os olhos, assimilando todas as
sensações.
— Bem — umedeço os lábios —, pelo menos vou ter uma história para
contar aos meus filhos.
Ambos soltamos uma risada rápida.
H
oje, começo de maio, a coordenadora passou na sala de aula para
distribuir os avisos e esclarecer as dúvidas acerca do passeio
escolar que terá no próximo mês, como alívio pós-prova. Devo
acrescentar com alegria que, pela primeira vez em um bom tempo, eu quis
sair em uma excursão. Sempre gostei de História, em especial dos períodos
da antiguidade clássica, os que remetem a grandes civilizações. Talvez eu
faça isso na faculdade. Apesar de ter uma dificuldade horrorosa para gravar
datas. Então era de se esperar que uma chama se acendesse em mim quando
a coordenadora falou que o passeio seria para a Cidade Imperial, em
Petrópolis.
Ao chegarmos à casa da minha tia, o alto portão preto de aço desgastado e
sutilmente torto está aberto para dentro. Vê-se a churrasqueira de ferro feita
de latão na garagem coberta, logo na entrada. Meus parentes estão dispostos
aleatoriamente pelo espaço retangular, alguns rindo e tomando cerveja. A
voz do Roberto Carlos entoa num rádio ao longe e meu estômago roda de
apreensão. Já Zaph quase saliva ao ver a carne.
Há exatos cinco dias... ou quatro... ok, talvez não seja tão exato assim,
minha mãe anunciou que sua irmã estava planejando unir o aniversário dela
ao Dia das Mães. Eu estranhei de imediato.
— Não vai ser um pouco constrangedor demais? — indaguei, empurrando
a porta de casa com cuidado atrás de mim até ouvir o barulho da tranca.
Heloise arrumava alguns papéis sobre a mesa da sala de estar,
empilhando-os como se segundos atrás ela não tivesse me confundido com
um vampiro disfarçado de testemunha de Jeová e segurava uma estaca de
prata reluzente a átimos da minha testa.
Ela sabia do que eu estava falando. Tia Lana é aquela que perdeu as
gêmeas Karina e Katrina, e comemorar seu aniversário no Dia das Mães...
não consigo definir se é ruim ou péssimo.
— Não sei, Alice. — Heloise parou de se mexer e focou sua atenção na
papelada sobre o tampo de vidro. — Mas a decisão é dela. Talvez ela não se
sinta tão mal se estiver com as pessoas de quem gosta. Mas me pergunto se
não seria perigoso.
Contraí a testa.
— Perigoso? Por que seria perigoso?
Minha mãe levantou o rosto para mim e sua expressão era de puro
assombro.
Heloise continuo me olhando como se estivesse hipnotizada. Iiih, bugou.
— Ora — minha mãe prosseguiu como se não tivesse dado defeito — há
quanto tempo não nos vemos? Vai ser o abalo sísmico mais forte que o
Brasil já sentiu em décadas. — Ela juntou os papéis e os inseriu numa pasta
preta. — Você não faz parte do grupo da família, não sabe como aquelas
pessoas podem ser loucas.
Soltei uma risada nasal, nem um pouco convencida.
— Eles sabem sobre Zaph? — perguntei.
— Eles sabem sobre vampiros, mas nunca chegaram a ver Zaph. Quando
eu o... namorei — a palavra parecia ter um gosto azedo na língua de minha
mãe — não havia fotos. Não como há hoje em dia.
Então chegou o fatídico domingo e eu não me aguentei:
— Você está bem com isso? Com o Zaph, er... entre nós? — questionei
pouco antes de sairmos pela porta de casa.
— Bem não tenho como estar, Alice — rebateu Heloise, a feição
alternando entre desgosto e algo mais que não consegui identificar. — Mas
também não é como se eu pudesse impedir, não é? — Ela suspirou profunda
e longamente ao trespassar a moldura.
Rezei três Aves Marias e mais dois cânticos de Salomão. Heloise, Gabriel,
eu e Zaph no mesmo carro foi... catastrófico não é a palavra, caótico é
melhor. Pois é. Adivinhe só quem ouviu a palavra “churrasco” e quase pulou
da cama, com estrelinhas nos olhos, já pronto para invadir uma rara reunião
familiar.
O ambiente, embora aberto, está tomado por um aroma temperado de
cebola, alho e gordura. É um local e odor nostálgico. Eu quase posso
visualizar uma Alice ainda criança correndo por aquela garagem, fingindo
ser uma princesa guerreira mágica domadora de leões e arranhando os
joelhos de cinco em cinco segundos.
Para mim, essas datas comemorativas perderam o sentido há muito tempo.
Eu passei a repudiá-las em meados do meu ensino fundamental, quando
percebi a hipocrisia das pessoas ao “espalharem o amor para com o
próximo” apenas naqueles dias. Eu decidi ignorá-las e expandir esse
significado para todos os dias. Só que, desta vez, como se um anjo da guarda
tivesse lançado uma isca para que eu mordesse, eu tenho uma razão mais
específica para presentear a minha mãe. Como ela reagiria? Se o que
Melissa disse for verdade... não, isso não importa agora. Depois eu
resolverei esse caso.
Minha tia Lana recebe com animação – e com uma camisa florida horrível,
devo dizer – todos que entram. Ela é a imagem esculpida e escarrada da
minha mãe, apenas um pouco mais baixa. E a reação dela, suas íris castanhas
vidradas no vampiro me flanqueando como uma maldita torre de sino assim
que passamos pelo portão, era ininteligível. A casa é pequena, então, quando
todos ali se agruparam ao redor da mesa na sala de estar, com a comida
fresca disposta sobre ela para fazermos uma oração, o espaço ficou ainda
mais apertado. No entanto, ninguém reclama. É bom estarmos todos juntos
outra vez.
Tia Lana, que entoa a prece, engasga com o choro quando menciona as
filhas, os sobrinhos e o irmão falecidos. Meu primo Alberto soluça e tenta
esconder, mas ninguém o censura, pois temos a noção plena de que ele é o
único que restou da geração mais velha. Luiza, Lívia, Lia e Bruno também
estão presentes – os que sobraram da segunda geração, sem contar com o
meu irmão, que ainda não chegou. E eu, a mais nova, da terceira. De quinze,
restaram sete.
A oração acaba, meus tios se abraçam, voltando ao burburinho e à
agitação. Inspiro fundo.
— Mãe — chamo, antes que a bravura se esvaia. Heloise se vira para
mim, com os olhos castanhos levemente franzidos enquanto segura um prato
fumegante de arroz.
— O que foi, menina? Tem gente querendo se servir. — Eu solto uma
risada rápida e semi nasal. Tá, ok, você consegue, vamos lá. Inspiro fundo.
— Quero te dar seu presente — digo firme, embora meu interior trema.
— Agora? Não pode esperar eu acabar de comer? — Ela aponta para o
prato de vidro marrom em sua mão.
— Por favor. — Antes que eu saia correndo e me esconda no buraco mais
próximo.
— Tá bom. — Ela gira meio corpo, suspirando e arrumando um espacinho
na mesa de madeira pequena e cheia de travessas para repousar o prato. —
Espero que não pouse nenhuma mosca no meu arroz. — Então retorna a me
olhar e estreita as pestanas. — O que é? Você roubou dinheiro do seu pai?
Ou ele te deu? Espero que tenha extorquido aquele vampiro. Pensando bem
— ela endireita a postura e se abana com a mão —, não quero nada que
tenha sido comprado com o dinheiro dele.
— Não, mãe — rio, fraca e rapidamente. — Nem um, nem outro... não te
comprei nada.
Vejo-a enrugar a testa. Respiro fundo.
— Eu te reconheço. — O franzido não desaparece, mas noto seu olhar
analítico mais gracioso, tentando entender. O que só me deixa mais nervosa.
— Todo esse tempo... e eu nunca te elogiei pelo que fez, eu nunca te
parabenizei ou enalteci. Não de coração e não pelas coisas certas. Eu nunca
pus em palavras, eu nunca... — Procuro o melhor jeito de me expressar.
Mama Quilla, eu nunca fiz o que eu sempre quis que ela tivesse feito
comigo. — Eu reconheço e entendo o que faz por mim.
Vejo a feição de minha mãe mudar, lentamente, para uma de espanto, e seus
olhos marejaram devagar.
Heloise é rigorosa, taxativa, mas também é a mulher que me pegava no
colo para dançar quando eu estava triste, é a mulher que me contava histórias
fantásticas antes de dormir. Crescer não é o mesmo que envelhecer, embora
nenhum dos dois seja fácil.
— E obrigada. — Agora talvez seja a parte mais difícil.
Meu coração se comprime e eu aperto minhas mãos em punhos. Meu ar fica
preso nos pulmões. Eu já não me sinto nervosa, meu interior não vibra, mas
dói.
— Por ter me encontrado. Naquele dia... quando você me achou no
chuveiro... eu...
Minha visão começa a se turvar devido às lágrimas que eu estive
segurando até agora. Elas vêm porque enxergo, nitidamente, o momento em
que minha mãe identifica do que eu estou falando. Heloise me puxa para um
abraço forte e quente, e eu a seguro firme também, me agarrando a cada
ponta de seu ser. Nossos corações batem na mesma frequência, aquecendo
ambas.
— Obrigada. Por ter me procurado. Por ter... — suspiro, sentindo uma
lágrima quente escorrer e meu nariz queimar. — Obrigada por não ter me
abandonado. Obrigada por não ter desistido de mim. Obrigada por ter
cuidado de mim. Obrigada por não ter brigado. Obrigada... por ter visto
minha pior faceta... e não ter fugido.
Minha mãe subitamente se afasta, pega meu rosto entre as mãos e me olha
nos olhos. Suas pálpebras marcadas pelo tempo estão molhadas, suas
escleróticas vermelhas destacando a cor marrom de suas íris. Vejo nuances
malaquitas e cor de mel ali, me dando a impressão de poder enxergar o
universo inteiro dentro delas.
— Eu nunca, nunca vou te abandonar. Qualquer coisa que te atinja, me
atinge também. Quando vi você... quando vi você daquele jeito, cheia de
sangue e caída no banheiro... eu jamais poderia ter fugido. Sinto muito,
muito, por estar machucando você tentando protegê-la. — Ela balança a
cabeça veemente. — Eu sou sua mãe, eu deveria...
Seguro sua mão ossuda na minha bochecha.
— Antes de ser minha mãe, você é um ser vivo com pensamentos e
emoções, tudo bem-estar errado. Ninguém acerta o tempo todo.
Nossa, Carol ficaria orgulhosa de mim agora. O problema é aplicar esse
pensamento para comigo.
— Às vezes me sinto tão impotente. — Sua confissão acerta em cheio meu
peito.
— Você não pode me proteger de tudo, mãe.
— Eu te amo tanto, filha. Mesmo que você me dê nos nervos, às vezes.
Acabo por liberar um riso rápido. Ela é igualzinha a um petit gâteau: dura
por fora, molenga por dentro.
— Podia só ser menos ignorante. — Em segundos, Heloise vinca as
sobrancelhas e me solta.
— E você menos desorganizada.
— Você quem não consegue entender o intricado sistema que eu uso. Ai! —
Me encolho, risonha, quando minha mãe bate de leve em meu ombro.
— Olha o que você fez — diz ela, limpando as lágrimas com os dedos e
manchando-os com um pouco de lápis de olho. Pelo menos o rímel é à prova
d’água. — Me borrou toda. Agora vou aparecer para todos com a cara
vermelha e inchada.
— Não tem problema — digo, fungando. — Metade da festa está assim.
— Bem — ela funga rápido, mais uma vez, desviando o olhar para a mesa
— vamos comer. Aí, pousou uma mosca! — Minha mãe espanta o inseto,
agitando as mãos. — Eu falei para esperar.
Eu rio fracamente, acompanhando-a com o olhar até vê-la contornar a
mureta fina. Avisto Zaph de costas, na porta dos fundos, olhando para cima,
suas mãos no bolso como sempre.
Atravesso a sala de estar com três passos e paro ao seu lado. Observo o
quintal miúdo, repleto de vasos de plantas. Um sorriso melancólico brinca
em meus lábios. Acho que ter um matagal é de família.
— Ei — diz ele, sem descer o olhar. O muro da casa é alto, mas dá para
ver um pedaço do céu claro, com nuvens esparsas e um pássaro rodopiando
nele. — Que pássaro será?
— Um urubu, tenho quase certeza. Tem muitos por aqui, já que as pessoas
não sabem o significado de lata de lixo e depois querem culpar a prefeitura.
— Cruzo os braços, observando a ave preta com as asas abertas pairar lá em
cima. — Você ouviu tudo?
Encaminho meu olhar para seu perfil outra vez.
— Não — ele rebate, de forma curta, mas não grave.
— Obrigada por não bisbilhotar.
— Era um momento seu com a sua mãe.
Não respondo, mas olho-o com um sorriso gentil, mesmo que ele não o
enxergue.
— O que faz aqui fora?
— Vendo o pássaro.
— Ah, claro. Ele piou e você veio. — Troco o peso da perna, inclinando a
cabeça, e cutuco-o com o cotovelo. — Fala sério.
— Precisava de um lugar fresco e vazio. — Não esperava que ele dissesse
tão rápido e prontamente. Seu rosto, ainda voltado para cima, analisa os
céus, enquanto sua boca forma uma bela linha reta. — Eu me desacostumei
com isso. Estar em família.
Zaph abaixa o queixo, finalmente, e creio estar remexendo no bolso do
lado oposto. Sua mão direita volta fechada e observo com curiosidade ele a
abrir. Na sua palma, descansa aquele mesmo colar desgastado de correntes
finas argênteas e um pingente no formato de coração detalhado em arabescos
com uma gema rubra. É tão pequeno comparado ao tamanho de sua mão. Se
eu o pegasse, ocuparia quase minha palma inteira. Zaph aperta-o com o
dedão e... fico sem palavras. É um relicário. Há a foto de uma mulher ali
dentro. Está um pouco embaçada, e a qualidade está esquisita, parecendo ser
uma...
— É a minha mãe.
Levanto um olhar surpreso para Zaph, porém ele permanece com a atenção
voltada para a minúscula imagem. Sua expressão... não lembro de já tê-lo
visto assim, com um sorriso pequeno nos lábios e os olhos brandos.
Retorno a estudar a fotografia. A mulher tem cabelos negros e
encaracolados, caídos até o busto generoso escondido por um vestido ou
uma blusa branca com bordados vermelhos. Por ser uma foto muito reduzida,
não consigo ver a cor de seus olhos, mas em seu rosto oval é possível definir
um ligeiro sorriso.
— Ela era muito bonita — digo.
— Tive a quem puxar. — Cutuco-o com o cotovelo e seu sorriso se alarga,
mas ele não tira os olhos do relicário.
— Qual era o nome dela?
— Ileana. A oração que vocês fizeram me lembrou de quando nos
reuníamos à mesa para agradecer a comida.
— Vocês eram cristãos?
— Não exatamente. A Igreja Ortodoxa predominava e predomina até hoje,
mas naquela época ainda havia rastros pagãos dos germânicos. Foi um
período turbulento, com os húngaros e otomanos disputando o poder. — A
fisionomia de Zaph fica ainda mais juvenil conforme ele encara a imagem de
sua mãe. — Ela era muito inteligente e audaz para as mulheres daquela
época. Minha mãe gostava de acreditar que tinha sua própria crença. Mas
não ser cristão convicto naqueles tempos... equivalia a ser um criminoso. —
Seu sorriso some e sua feição volta a ser a de um homem duro, que viu
demais. A mão dele se fecha em volta do coração de metal, as veias
sobrelevando no pulso e dorso.
— Zaph — chamo-o, gentilmente tocando seu braço, e sua mão se afrouxa.
Eu nem mesmo sei o que quero dizer, mas o desconforto em meu peito me diz
que eu devo fazer alguma coisa.
— Nós éramos uma família de fazendeiros — ele continua. — Tirávamos
nosso sustento da terra e vendíamos no centro comercial de Câmpulung. Meu
pai estava sempre bronco, e minha mãe sempre sorrindo. Eu, como
primogênito, acompanhava meu pai pela cidade e no trabalho, para poder
dar continuidade e prosperidade à fazenda. Mas minha mãe sempre tentava
me tirar do raio de alcance dele para fazer alguma brincadeira ou pedir um
favor que envolvesse ir à cidade e falar com as garotas.
— Own! Começou cedo — brinco, debochando. Mas eu deveria debochar
de mim mesma, pois consegui sentir uma pontada de ciúme somente com essa
informação. Tá maluca, Alice? No entanto, o mais doloroso é notar que Zaph
não compartilha do momento, sua mente ainda presa às lembranças.
— Ela queria que eu me casasse com uma menina rica, de preferência filha
de um voivoda ou boiardo.
— De um quê? — pergunto, com o cenho franzido.
— Voi... Era tipo um príncipe. — Ele faz descaso. — Mas eu não o fiz.
Não por falta de pretendentes. Eu que não levei o desejo dela a sério e a
assisti morrer, doente, sem poder fazer nada — Zaph diz terrivelmente
soturno, sua feição um retrato de rigidez. Sua voz soa baixa, grossa,
carregada de séculos tenebrosos. — Eu estava ao seu lado segurando sua
mão quando, em seus últimos suspiros, ela me entregou esse relicário.
Quando meu pai também se foi, eu herdei a fazenda. Ela prosperou, mas logo
vi meu cachorro morrer e, por fim, meu irmão, que havia se unido ao
exército.
Embora seu tom seja cabisbaixo, eu não consigo evitar suspender as
sobrancelhas em surpresa e, de certa forma, admiração. É tão raro vê-lo
falar de seu passado, não quero atrapalhar o momento.
— Você tinha um irmão? — pergunto.
— Mais novo.
— E quando você pretendia me contar isso?!
Zaph apenas balança os ombros. E, finalmente, desde que me pus ao seu
lado, ele me encara. Um calor se espalha pelo meu corpo, como se fosse a
primeira vez que aqueles orbes tivessem focado em mim. Como se fosse a
primeira vez que eu via neles sombras além da rispidez e volúpia.
— Acho que vocês duas se dariam bem.
Deixo qualquer brincadeira de mau gosto de lado quando percebo que ele
ainda fala da mãe. Transmito um sorriso cortês.
— Eu teria adorado conhecê-la.
Zaph me olha e cada canto das arestas de seu rosto transborda ternura,
desde a mandíbula quadrangular, acentuada pelo sorriso torto, até as
sobrancelhas grossas e relaxadas.
Quando ele faz menção de espantar devagar uma mecha do meu cabelo que
escorre pelos ombros, seus dedos adejam de leve no meu pescoço, causando
um sutil frenesi na minha pele.
— Vem, vamos aproveitar o churrasco. — Seguro sua mão, tentando
ignorar o sentimento no meu peito e a sensação torturante entre minhas
pernas. Merda, Zaph mal toca em mim e eu já me acendo por inteira.
Puxo-o até a porta de entrada e voltamos à movimentação da minha família
na garagem. É estranho e egoísta da minha parte, mas somente agora percebo
que Zaph já teve uma vida longe daqui. Uma família agitada como a minha,
muito tempo atrás. “No máximo temos comparsas, aliados temporários, mas
nunca amigos.” Ele esteve esse tempo todo sozinho? Aperto sua mão na
minha, com o delicado relicário no meio delas. O metal frio se aquece entre
nossas palmas unidas.
Levanto o queixo para mirar o vampiro ao meu lado e, nesse instante, Zaph
parece e não parece um vampiro secular.
— Guarde para não perder — aviso. Ao remover minha mão da dele e
forçar seus dedos a envolverem o relicário, Zaph desvia o olhar e foca na
minha ação. É fofo pensar que ele leva o objeto consigo.
— Eu tenho a pintura original em casa. — Ele pisca e sorri. — Um
verdadeiro trabalho de restaurador.
— Vai me dizer que também já trabalhou em museu? — pergunto com os
ombros baixos e fazendo pouco caso.
— Não. Mas um dia quem sabe.

— Alice!
— Alice!
— Oi, oi! — Minhas primas Luiza, uma morena alta e talvez magra demais,
com olhos cor de mel, e Lia, tão alta quanto, porém loira dos olhos verdes,
vêm sorridentes até mim, com seus pratos descartáveis na mão, enquanto eu
estou diante da churrasqueira esperando pelas carnes.
Por que tem tanto nome com “L” na minha família?
Eu não tenho muito papo com elas, são mais do tipo modelos que estudam
engenharia civil e acompanham How To Get Away With Murder.
— Tudo bem, meninas? — pergunto, mais para demonstrar que também sei
ser educada.
— Tudo sim! — Luiza responde, animada.
— Tirando a faculdade, que está matando a gente — Lia complementa,
olhando para a prima.
— Argh! Nem me fale. — Luiza gira os olhos. Elas não são irmãs, mas têm
quase a mesma idade e conseguiram passar para UFRJ no mesmo período.
— Já quero férias!
— Mas, uma coisa que eu quero perguntar é: — Lia inclina-se para mim,
com os olhos verdes esbugalhados e um sorriso travesso no rosto. — Quem
é o cara que você trouxe?
Uma leve brasa se acende no meu âmago.
Espero que eu não tenha deixado isso claro no meu rosto. Minha vontade é
responder: “um vampiro que vai tirar suas tripas na primeira oportunidade”.
Mas não digo isso. Eu poderia, até deveria, mas não digo. Pelo visto elas
não sabem que ele matou nossos avós. Em vez disso, eu falo:
— Um amigo meu. Ele não tinha com quem passar o Dia das Mães, então
eu...
— Quantos anos ele tem? — Lia insiste, os olhos brilhando. O suficiente
para ser a reencarnação do nosso bisavô.
— Vinte e dois — respondo, tentando não trincar a mandíbula e ser muito
rude.
— Olha, ain, não aguento mais, vou ser bem honesta...
Antes que Luiza continue, eu libero um suspiro cansado e interrompo:
— Não, não estamos juntos. Sim, somos apenas amigos. E sim, ele ficaria
com vocês. Com as duas se quiserem. Ao mesmo tempo. — Como ambas
permanecem me encarando, eu esclareço: — Ele é muito safado. E abusado.
Aproveitem.
Elas me fitam com as sobrancelhas levemente erguidas e com seus pratos
próximos ao peito. Será que eu deixei transparecer minha irritação?
— Que faculdade ele cursa? — Luiza pergunta e Lia se vira para ela.
— Talvez ele possa ajudar a gente em...
— Anatomia? — Ambas soltam gritinhos e dão um pulo de susto quando
Zaph, um palmo e meio maior que elas, põe seu rosto bem no meio das duas.
— Disso eu entendo bastante.
E lá está o sorriso libertino de Zaph, em total contraste com a minha face
retraída. Se controla, Alice.
Minhas primas estão vermelhas e não desviam a atenção dele, apenas se
afastam um pouco, mexendo nos cabelos e escondendo os pratos. Ok, já
posso deixar que a suruba aconteça e ir pegar minhas carninhas malpassadas.
Por que esse sentimento de... Urgh! A quem eu estou tentando enganar?
Estou me remoendo de ciúmes.
Não me lembro de algum dia ter sentido tanto ciúme assim. Entretanto,
estou mais enfurecida ainda com Zaph por ser tão descarado! Mas por que
ele não seria descarado, não é? Ele é solteiro, tarado por natureza e não sabe
o que eu sinto.
Como assim “o que eu sinto”?
Ai meu Deus, o que eu sinto?
Eu não estou apaixonada pelo Zaph, estou?
Um arrepio interno, daqueles que não se exteriorizam, mas nos faz tremer
do mesmo jeito, percorre toda a minha coluna.
Será que eu tenho um pé na psicopatia? Porque para estar fodidamente
apaixonada por um vampiro-estrangeiro-matador-de-velhinhos, eu realmente
devo ter.
Eu estou fodidamente apaixonada pelo Zaph?! Tem certeza de que não é só
um tesão da porra? Um tesão por um amigo? Não, não. Paixão é uma coisa,
amor é outra, eu não acho... eu nunca me senti assim. Isso é amor ou paixão?
Meu Santo Advil, saber na teoria é tão mais fácil do que na prática. Tá,
pensa, Alice. Não, não pensa: sinta. Isso, pensa no que você sente. Isso tá
certo?
— Alice? — Seu chamado me desperta e pisco algumas vezes, voltando à
realidade. Vejo Zaph, Lia e Luiza me observando com expressões dúbias.
Ele movimenta o queixo, indicando algo atrás de mim. — As carnes.
Ah, ah é. Churrasco. Isso. Carne. Comer Zaph. Não! Carne, comer carne!
Ai, Tupã do céu, que nó na cabeça.
D
epois de pegar uma quantidade de carne malpassada que dava para
alimentar três pratos para tigres tristes por três trimestres, fui me
sentar em uma das cadeiras enfileiradas bem quando Igor chegou.
Assim que termina de falar com a cambada de tios – já ligeiramente
bêbados –, ele vem até mim, despeja um beijo no topo da minha cabeça e se
senta ao meu lado.
— E aí, mana? — Meu irmão estica a mão para o prato em minhas mãos.
— Nem pense! — bato em seu dorso e ele recua com um sorriso. — Como
anda os preparativos pro casamento?
Sua réplica é apenas um bufar de olhos arregalados e eu rio.
Aviso que vou pegar um pouco de refrigerante para nós e o deixo
encarregado de vigiar a comida pouco antes de flagrá-lo tentando surrupiar
uma carne. Haja sal, cruz credo.
Eu gostaria de ser vegana, juro, mas eu não saberia viver sem uma bela
alcatra.
Eu me curvo para retirar a garrafa da prateleira...
— Você está chateada? — AI CACETE! Dou um pulo de susto, quase
batendo a cabeça na geladeira, mas evito que o refrigerante caia.
Solto um suspiro de olhos fechados e me viro sem olhar para o vampiro
atrás de mim. Eu não estava, mas agora que ele pergunta, eu me lembro do
porquê e o ligeiro mau humor retorna.
— Estou. — Resolvo não omitir. Enquanto isso, eu passo por Zaph em
direção à mesa no centro, onde deixei os copos. Começo a fazer força com
os braços para abrir a tampa. Urgh! Que coisa dura! Quem fechou isso? O
Shrek?
Zaph a toma da minha mão e a abre em dois segundos, provocando o ruído
de gás sendo liberto.
— Por quê? Por ciúmes? — diz ele, um tom zombeteiro em sua voz.
Pensar que Zaph, nos seus trezentos e quatorze anos, deve ter comido
mulheres em mais de trezentas e quatorze posições e locais diferentes, faz
meu interior rugir.
— É. É ciúme, ok? Mas do que isso adianta, Zaph? — Continuo
carrancuda, com raiva de mim mesma, enquanto foco no líquido sendo
derramado no copo. — Nós não temos direito algum sobre o outro, eu não
sou sua dona. Faça o que quiser.
— O que eu quiser? — Ai, Jesus! A raiva some no instante em que um
calafrio me percorre. As mãos ásperas de Zaph pesam em cada lado da
minha cintura pequena, e sua estrutura enorme se assoma às minhas costas.
Meu coração perde uma batida e tento me concentrar no refrigerante para
não o derramar. Eu estava prestes a censurá-lo, mas minha respiração fica
presa, sinto borboletas no estômago quando Zaph guina-se por cima do meu
ombro direito. Sua boca pareia-se ao meu ouvido. — E se eu disser que
você é a única que eu quero?
Calma, útero, se acalme.
Engulo o coágulo imaginário na minha garganta, depositando a garrafa na
mesa antes que uma catástrofe aconteça. Não treme, Alice, não treme. O
Zaph só está acariciando a parte posterior da sua orelha com o nariz, é só
o hálito dele tocando seu pescoço, as mãos dele só estão segurando sua
cintura... Ah, merda. Minhas pernas bambeiam um pouco e me apoio na
mesa, fechando os olhos para recuperar a compostura.
— Zaph... — Eu pretendia alertá-lo, mas minha voz sai como um gemido
ao sentir o maldito vampiro mordiscar meu lóbulo e toda a minha intimidade
se contrai.
— Eu quero você. Aqui, agora, em qualquer lugar, a qualquer hora. —
Zaph passa uma das mãos vagarosamente pela minha barriga e inspiro fundo,
tentando não sucumbir, porém cometo o erro de segurá-la. Quando nossos
dedos se tocam, um curto-circuito acontece. — E eu não me refiro apenas ao
sexo, Alice.
Zaph continua depositando beijos lentos e úmidos em minha orelha, minha
jugular, e meu corpo filho da puta se rende a cada segundo. Meus seios
incham, desejando seu toque. Zaph entrelaça seus dedos nos meus e eu
permito, devorando cada detalhe.
— Eu quero poder segurar sua mão na minha e me sentir completo, sem
remorso. Ficar ao seu lado sem ter que reprimir minha vontade de te mimar,
de te fazer rir, de limpar suas lágrimas. Eu não me importo de esperar, tenho
bastante tempo. — Ambos soltamos uma risada, mesmo com a voz rouca
dele nublando um pouco meus pensamentos. — Mas a cada dia que passa eu
fico mais ansioso. Eu sei que você quer isso tanto quanto eu. Vă rog.
Outra vez, decido tomar a atitude mais estúpida, graças aos meus
hormônios traíras, e giro nos calcanhares, parando de frente para Zaph. Seu
corpo prensa o meu contra a mesa e eu seguro seu queixo fragilmente,
degustando da sensação dos pelos de barba crescendo nas pontas dos meus
dedos.
— Pedir em romeno é golpe sujo — digo baixinho. Mal há espaço para
respirar, e quando eu o faço, o ar vem quente.
Ele libera uma risada curta, quase esfregando o nariz no meu, e sua franja
resvala na minha testa.
— Se você me quer tanto assim, por que deu bola pra elas? — pergunto.
— Eu fui brincar com você, mas você deu as costas e elas começaram a
falar... Eu não vi nenhum mal em conversar um pouco.
Zaph me encasula com seus braços longos, me estabilizando com suas
mãos largas, firmadas na minha cintura. Que mal teria se eu desse um beijo
nele, não é? Só um beijinho.
— Eu não quero estragar nossa amizade — confidencio, minha boca
próxima da sua, nossas testas a milímetros uma da outra. O que eu disse é
uma meia verdade. Não é o único motivo, mas não consigo pronunciar o
outro.
O ar parece cada vez mais quente no ínfimo espaço entre nós, e eu só
consigo focar nos lábios de Zaph, tão perto e alcançáveis.
— Não vai — ele responde, no mesmo tom de sussurro carinhoso e lascivo
que eu. Seu timbre grave reverbera pelo meu corpo e quase solto um gemido.
Seu hálito mexe com meus nervos. A sensação que tenho é que meu peito
poderia explodir em luz e cor, e eu nem me importaria. — E além do mais, o
que é um relacionamento senão uma amizade com sexo?
Eu acabo rindo perto de sua boca.
— Acho que não é bem por aí.
Eu não quero alimentar falsas esperanças, pois, no fundo, sei que somente
eu serei a responsável caso me machuque.
— Eu sei. — Sua voz roça como veludo em minha pele e arrepia meu
interior. — Minha mãe um dia me disse que estar junto é entregar tanto
quanto receber, mas sem esperar receber e confiar ao entregar.
Odeio como ele fala as coisas certas nas horas erradas.
Zaph não é Rafael, eles são completamente diferentes... E já faz tanto
tempo. Mesmo fora da clínica há quase seis meses, será que eu saberia
lidar? A vida não é a mesma de três, dois ou um ano atrás, eu não sou a
mesma de dois anos atrás. Acho que, talvez, esteja na hora de arriscar,
isso faz parte de crescer mentalmente também, não é?
Meio hesitante, mas determinada, puxo devagar seu rosto para o meu e
nossos lábios inferiores se tocam.
— Vamos cantar parabéns, então!
AI, MEU RÁ! A voz estridente e alegre de minha tia se aproxima e eu pulo
de susto. Aparto Zaph com um empurrão bem na hora em que tia Lana
aparece no batente da porta.
Ela sorri para alguém, então volta seu olhar para nós e estagna. Nós dois,
sozinhos na cozinha, a centímetros um do outro, arfantes. Minha tia olha de
mim para Zaph, que esfrega a nuca, e de Zaph para mim, e eu abaixo o olhar.
Dou as costas para ele, limpando a garganta e sentindo minhas bochechas
inflamarem à medida que pego os copos na mesa. Parem de tremer, mãos!
— Vou fingir que não vi nada — ela diz. — Só vim pegar o bolo.
Eu mordo o lábio inferior, coloco uma mecha do meu cabelo atrás da
orelha e faço menção de ir embora. No entanto, sou travada pela mão de
Zaph em meu bíceps esquerdo, e quase derramo o refrigerante.
Levanto o rosto bem a tempo de ver minha tia passar com a travessa do
bolo pela porta, deixando-nos a sós outra vez. Direciono minha atenção
ansiosa para o vampiro e admiro sua feição bem mais austera.
— Eu vou viajar. Por uma semana, mais ou menos. — Mesmo sem querer,
meu coração se contrai. — Posso ao menos te dar um beijo de despedida?
Fico quieta, tentando não vacilar de nervosismo, mas aquiesço de forma
rápida.
A mão de Zaph sai do meu bíceps devagar, passeando pelo meu braço, até
se encaixar na minha nuca. Meu coração perde todas as batidas possíveis,
não escuto nada, a não ser o seu retumbar nos meus ouvidos.
Quer dizer, ouço minha pulsação e duas vozes histéricas na minha cabeça.
Elas gritam insanamente, cada uma dizendo os prós e os contras daquele
beijo. Zaph aproxima o rosto do meu, envergando-se, e eu fecho os olhos,
tentando mandar as vozes calarem a porra da boca para que eu me concentre
naquele momento.
Sou pega de surpresa quando ele escolhe despejar um beijo leve na ponta
do meu nariz.
Abro os olhos e Zaph se afasta, me deixando sem entender sua ação. Mas a
verdade é que não me importo muito. Sinto meu peito aquecido da mesma
forma.
— Até mais, fată ciudată.
Uma coisa é fato: eu nunca tive uma semana tão parada como a que passou.
Foi bom tirar um momento só para mim. Eu chegava da escola, sob a
quietude solitária usual da casa, fazia meus deveres preguiçosamente, lavava
a louça ouvindo ABBA no fone de ouvido e fazendo meu próprio show,
assistia a alguns animes que havia começado com meu irmão… Mas a
sensação de vazio não sumia. A acromasia ficava sempre à espreita nas
quinas, as vozes sussurrando, só esperando um momento de fraqueza meu,
me consumindo aos poucos sem que eu percebesse.
Assim que meus pais chegaram na quinta-feira, mais tarde do que o
habitual, eu perguntei como havia sido o dia de trabalho, mas notei o quão
cabisbaixos estavam seus semblantes. Com os olhos marejados e sem me
encarar, minha mãe me disse que Luiza havia morrido.
Meu coração entendeu, pois senti uma dor imensa nele, mas meu cérebro
não foi capaz de conceber a ideia. Luiza morreu. Parecia irreal para mim.
Minhas memórias vagaram para o Dia das Mães poucos dias atrás, onde ela
estava saudável e sorrindo junto à Lia. Deus, Lia deve estar devastada.
Meu pai contou que Luiza desapareceu assim que saiu da faculdade. A
polícia disse que ela foi encontrada num beco, horas depois. Os exames
apontaram sinais de estupro.
Eu fiquei tonta. Mas não havia terminado. Gabriel revelou que o agressor
não tinha somente a estuprado, mas a esfaqueado antes, cometendo um ato de
necrofilia. Meu estômago deu voltas.
Eu queria apenas dormir até despertar e tudo não ter passado de um
pesadelo. Mas não era. Era real e eu precisava lidar com isso.
Eu devo ter acordado umas três vezes no meio da noite, suando, arfando,
com a boca seca e o coração rimbombando sem cessar. Na última vez em
que despertei, eu já estava exausta. As malditas cenas do meu passado na
clínica, observando e ouvindo Bianca e Felipe, confundiam-se com as
imagens que criei de Luiza no beco, então abracei meus joelhos e chorei o
mais baixo possível, para não acordar meus pais. Havia uma tempestade
dentro de mim e eu não sabia como pará-la.
Na bela e ensolarada sexta-feira, enquanto meus parentes se reuniam de
novo, mas dessa vez para mais um funeral, eu estava apenas um caco na
escola. Eu chego em casa só o bagaço do bagaço. Sem forças, eu apenas
quero tomar um banho para tentar sair um pouco do estado de letargia. No
entanto, assim que fecho a porta de casa, meus pais já estão na sala.
Gabriel está sentado no sofá mais largo, o corpo torcido para trás a fim de
me fitar com os olhos verdes, sérios, mas amáveis. Já Heloise está sentada
na poltrona adjacente, a cabeça baixa, os lábios contraídos e remexendo as
mãos.
— Sente-se, Alice. Gostaríamos de contar algo a você.
Por que eu estou com essa sensação ruim?
Deixo a alça da mochila escorregar pelo braço até que ela atinja o chão
perto do pé do sofá, mas não me sento.
— Por favor, antes de tudo, — Gabriel começa, sua expressão de
investigador estampada no rosto. Detesto quando ele a usa em mim —
pedimos que ouça o que temos a dizer. Sua mãe e eu, tudo o que fizemos até
agora, as verdades que não revelamos, foi pela sua segurança, filha.
Podemos ter errado em algumas coisas, mas tudo o que fizemos foi pensando
no seu bem. — Vejo sua mandíbula se tensionar, e meu estômago embrulha.
Está vindo. Sinto como se eu estivesse no mar, meus pés fincados na areia,
vendo uma onda enorme se aproximar, mas incapaz de me mover. — Nós
viemos de uma linhagem antiga, quer dizer, sua mãe vem de uma linhagem
sanguínea antiga...
— A linhagem do Drácula — minha mãe cospe, como se não conseguisse
reter mais. Eu redireciono meu olhar para ela e vejo seu rosto me encarando
fixamente, uma fisionomia sofrida.
Meu coração martela, parecendo assimilar tudo mais rapidamente. Melissa
estava certa. Quando me revelou sua suspeita, ela disse que só poderia
comprovar caso provasse do meu sangue, mas se recusou a fazer isso e eu
não a forcei. Do mesmo jeito que decidi não forçar a confissão dos meus
pais, esperando pela iniciativa deles.
— Não pretendíamos manter segredo por tanto tempo — minha mãe volta a
falar. Meu peito parece bater lentamente, e estou um pouco zonza. — Só que
o medo foi crescendo, conforme seus primos e tios foram morrendo...
— Preciso admitir que, até certo ponto, eu concordava, mas chegamos em
um nível onde as coisas estão difíceis de ficarem sob controle. Você vai
fazer dezenove anos, é preciso que a verdade seja revelada logo, antes que a
situação piore.
— Você é a última descendente do Drácula.
Quem fala não é minha mãe ou meu pai, mas Zaph, que aparece no meio do
corredor, atrás de Gabriel. Seus braços estão cruzados e sua expressão é a
mais sombria que eu já o vi usar. O carniceiro está de volta, a diferença é
que parece ainda mais corpóreo.
— Zaph! — minha mãe ralha, encarando o vampiro parado no arco de
entrada da sala. — Não era para contar assim!
As palavras voam pela minha cabeça, se repetindo incessantemente, até
que não pareça maluquice. Última descendente do Drácula. Meu pulso
acelera, fazendo minha respiração se entrecortar.
Eu? Descendente de Drácula? Essa Alice brasileira, toda esquisita? Só
pode ser zoeira.
— Íamos falar devagar. — Meu pai também se vira com as sobrancelhas
vincadas para Zaph. Quero avisá-los de que Mel já havia me introduzido à
ideia, mas não consigo abrir a boca.
— Foram devagar demais — ele diz, cortante. — Tiveram dezoito anos
para contar, eu ainda deixei que tivessem mais tempo.
— “Deixou”?! — Heloise repete e se põe de pé.
Meu pai também se levanta, e eu me perco. Enquanto os três discutem, as
duas vozes que sempre deixam meus pensamentos acelerados estão quietas
dessa vez. Um calafrio me percorre. Isso é um pesadelo. É um pesadelo.
Então, eu me lembro de algo que me destrói. “A família era extensa, é
impossível que todos os descendentes tenham acabado”, Zaph havia dito isso
uma vez. E quando eu perguntei como os vampiros encontravam os
herdeiros, ele disse: “Quando sangram, o aroma é bem único.” Foi no dia em
que machuquei meu dedo e ele apareceu no meu quarto...
— Você sabia. Desde o início — digo, fraca e trêmula, olhando
diretamente para Zaph através da sala. Sua estrutura hirta e sem emoção dá a
resposta que preciso. — Esse tempo todo... — A perseguição à minha mãe…
O desespero por descobrir a verdade irrompe pelo meu peito, fazendo-o
doer e tirar mais uma parcela do meu ar. — Por que não me disse?
— Não cabia a mim, Alice — ele fala, sem nenhum tom amável ou
mudança de postura. Ele evoca uma calma tão letal que me assusta, as
sombras mais uma vez parecem ser meras criadas, prontas para agradar ao
mestre. — Eu sabia que você se sentiria muito pior se soubesse por terceiros
algo que sua própria família deveria ter contado.
Finalmente pisco algumas vezes, desviando o olhar sob um silêncio
fúnebre. Me dói admitir, mas ele tem razão. Se Zaph ou Melissa tivessem me
contado, e não meus próprios pais… É minha culpa. Eu sabia, sabia que
havia algo de errado, que escondiam algo de mim, mas eu não falei nada. Eu
não os pressionei ou insisti. Minha culpa. As vozes começam a voltar na
minha cabeça, sussurrando para que eu fuja. As paredes rodam devagar e o
ar fica escasso nos meus pulmões.
— Então realmente todos, inclusive meu irmão, sabiam, menos eu? —
Vinco as sobrancelhas para ela.
— Você é a mais nova, e também a única que esteve internada.
— E não achou que seria uma boa falar nesse meio tempo? — Eu posso
sentir a hulha acendendo no meu âmago abafada pela dormência. — Eu
estava internada exatamente para aprender a lidar com essas coisas.
— E-eu não sabia como falar — minha mãe revela, a voz falhada. — E no
momento em que eu falasse, vampiros apareceriam para te tirar de mim, eu
não estava preparada para isso, e também estava com medo de piorar sua
situação, eu...
— Drácula… Viorel... — Franzo o cenho, ligando os pontos devagar. De
repente, sinto meus membros pesados e meu interno agitado. — Então, se eu
sou a última descendente do Drácula, também sou…
— A Primus — diz meu pai, assertivo.
A tontura me desequilibra e me amparo no encosto do sofá. Meus dedos
apertam o estofado.
— A primeira... dos Cinco Grandes — digo, mais para mim mesma, para
tentar me convencer. A Primeira dos vampiros, a líder, a...
— Não exatamente — Zaph me corrige. Levanto o olhar incerto para ele,
ainda sério. — Você não é uma vampira.
— Seus genes vampíricos ainda não despertaram — minha mãe responde,
com a mesma expressão consternada no rosto. Ela também é uma
descendente do Drácula. Todos os meus tios e primos que morreram também
são e foram. Minha Sang Hyang. Minha visão falha, turva, meu corpo
amolece.
— Isso só ocorre quando há a maturação — meu pai complementa. — As
pessoas têm idades de maturação diferentes, mas a maioria é por volta dos
dezoito ou vinte anos. Depende do organismo de cada um.
— Os vampiros vão começar a sentir sua presença. — Zaph descruza os
braços, colocando suas mãos nos bolsos. — Assim como eu senti a da sua
mãe.
— E os outros sentiram as dos seus primos — Gabriel conclui.
Suas vozes soam misturadas e abafadas em meus ouvidos. Minha cabeça
roda, meu coração bate irregular e me sinto dormente. Eles não foram mortos
em simples acidentes de carro, ou assaltos ou... Meu Deus, Luiza! Disseram
que ela foi esfaqueada e depois estuprada.
— E-eu... — Minha própria voz trava na garganta, sem ar para continuar.
Mas eu me forço a tentar. — Eu tenho que ir descansar, hoje foi um dia —
inspiro fundo e deixo o ar sair pela boca — pesado.
Solto, com certo esforço, o encosto do sofá, meus dedos doendo pela
rigidez. Vacilante, passo por eles em direção à escada no corredor sem
enxergá-los direito. Tenho a sensação de que tudo está passando em câmera
lenta, mas ao mesmo tempo rápido demais, como se as cenas estivessem
pulando.
Quando começo a subir os degraus, sinto minhas pernas bambearem e meu
coração marreta contra meu tórax. Nos últimos níveis elas fraquejam e eu
quase caio, mas me amparo na parede e continuo a andar, meio trôpega e
tonta.
Minha boca fica seca e os tremores vêm mais fortes, implorando pelos
remédios.
Sinto um vazio cada vez maior dentro do meu peito. Em contraste, minha
mente está cada vez mais ruidosa.
Me jogo na cama e deito em posição fetal, para controlar os tremores e
buscar serenidade. Mas a única coisa que encontro é a dor no meu peito e a
barulheira na minha mente. Meus músculos se contraem e eu me abraço,
fechando os olhos bem apertados.
Vai passar, vai passar, vai passar...
Eu achava que estaria preparada depois do que Melissa dissera, mas
estava errada. Porque, no fundo, eu esperava que ela estivesse enganada.
— Dragostea...
A voz rouca e baixa de Zaph soa num tom preenchido por esmero perto de
mim, então reabro os olhos e o vejo abaixado ao pé da cama. Sua feição
enruga-se enquanto me estuda, seus dedos afagam de leve minha cabeça. Tão
diferente de antes, como pode?
Passo a língua nos lábios e tomo fôlego para falar.
— Zaph... na minha gaveta de cima — minha voz fraqueja — pega uma
caixa de remédio. A verde. Por favor.
Ele prontamente se levanta e vai até a cômoda. Observo suas costas largas
vasculharem a gaveta, mas os mínimos sons me fazem retrair ainda mais.
Aperto os olhos, tentando bloquear a sobrecarga sensorial que parece
alfinetar minha mente e meus ossos. Mais lágrimas escorrem dos meus olhos,
meu maxilar dói de tanto que o travo e começo a tremer de forma compulsiva
e involuntária.
— Alice…
— Só me dê, por favor — suplico em tom baixo, sem querer falar nada. Só
desaparecer.
Como quero desaparecer. Esquecer que tudo isso existe. Esquecer esse
espaço nulo que me corrói por dentro, esquecer cada coisa que me agoniza,
que faz meu coração se constringir. Estou tão cansada de me sentir mal, tão
cansada de representar um fardo para aqueles que amo, tão cansada de
pessoas mentindo para mim, tão cansada desse mundo egocêntrico, tão
cansada de ser uma imprestável, tão cansada de não poder fazer nada para
ajudar aqueles que mais precisam, tão cansada de tentar me convencer de
que eu não tenho a merda de um único motivo para me sentir triste porque
tenho a porra de uma vida perfeita, tão cansada...
Afasto as pálpebras molhadas e observo Zaph, um pouco relutante, abrir a
tampa da caixa, puxar uma cartela e destacar uma parte dela, até cair um
comprimido em sua palma. Ele o examina por alguns segundos e sinto as
lágrimas silenciosas e quentes escorrerem pela minha face nesse meio
tempo. O vampiro desloca-se até onde estou, se agacha e estende o
comprimido. Abro a boca e ele o coloca no final da minha língua.
— Alice... Clonazepam? — Sua voz é aveludada, carinhosa e preocupada.
O que só piora a situação e me encolho outra vez, tremendo rigidamente.
Engulo a cápsula a seco e gemo com a menção do nome.
Zaph se levanta abruptamente, vai até à cômoda e, sabendo o que ele vai
encontrar lá, premo os olhos e mais lágrimas grossas escorrem. Posso ver o
buraco negro dentro de mim com clareza, alargando meu peito à força. Zaph
remexe mais um pouco no fundo da gaveta até encontrar o que procura e
levanta outras embalagens.
— Alice — Zaph se vira para mim com a face transtornada e com uma
caixa de comprimidos na mão —, você tem depressão?
Tento sorrir, mas meus lábios tremulam.
— Tcharam — brinco, a voz embargada.
— Por que não me disse? — Zaph volta e se senta na ponta da cama. Uno
as pestanas quando sinto sua mão acariciar minha cabeça. Sou incapaz de
respondê-lo, há uma pedra áspera bem no meio da minha traqueia.
E agradeço imensamente por ele não dizer mais nada.
Eu rezo, rezo e rezo para o remédio fazer efeito. Tento buscar conforto e
tranquilidade e repito meu mantra de que tudo vai ficar bem. Sinto um peso
ser adicionado na cama e depois um movimento no colchão atrás de mim.
Um braço forte envolve minha cintura e me encaixa em seu tronco, enquanto
a outra mão acaricia minha cabeça.
Aos poucos os tremores passam, minha mente entorpece e abranda.

Quando desperto, é por causa de um incômodo na boca do estômago, pela


secura dos meus lábios e o suor que cobre minha nuca. Percebo, ainda
desnorteada, que o ambiente está mais escuro. Tento erguer meu tronco,
apoiando os cotovelos no colchão, mas minha visão se turva e perco o
equilíbrio. Logo sinto mãos me ampararem e quando consigo olhar para
cima, em meio a redemoinhos, vejo o rosto preocupado de Zaph.
Meu estômago embrulha e só consigo dizer:
— Bnhêro.
Zaph ajuda a me levantar e caminho cambaleante até o banheiro, onde
imediatamente caio de joelhos na frente do vaso e o enjoo sobe pelo meu
esôfago, liberando tudo pela boca.
Ele puxa meu cabelo para trás enquanto eu recupero o fôlego, mas não
demora muito para eu perdê-lo novamente quando uma nova onda de vômito
rasga minha garganta.
Um tremor percorre meu corpo e me abaixo até o piso, ainda me sentindo
letárgica, débil. O suor gruda meus cabelos quando Zaph os solta. Me sinto
menos zonza, porém ainda fraca. Esgotada, vazia. Noto os braços de Zaph
rodearem minha cintura por trás ao passo que ele me encaixa no meio das
suas pernas.
Não sei por quanto tempo ficamos assim, sentados e abraçados em
silêncio, apenas ouvindo o som da minha respiração ofegante. Cada vez que
eu tremia, Zaph forçava um pouco mais o aperto, e quando eu ficava tonta,
ele reclinava minha cabeça em seu ombro. É a última coisa da qual me
lembro.
A luminosidade fere minhas retinas, mesmo por trás das pálpebras. Não sei
em que momento eu adormeci de novo. Me vejo sozinha na cama, o
quarto imerso numa atmosfera clara e densa, mas não me sinto mal. Muito
pelo contrário, me sinto leve, calma. Talvez seja o efeito do remédio. E
porque, glória a Buda, é sábado.
Permaneço deitada, inspirando e expirando repetidas vezes. Ontem eu
entrei em colapso. Depois de onze meses e meio. Seis meses dentro do
hospital, acompanhada pela psiquiatra, cinco meses e meio sem tomar os
medicamentos regularmente por pura teimosia. E ontem eu entrei em colapso.
Porque Luiza morreu. Porque eu sou a Primus. Porque meus pais
esconderam a verdade de mim. Porque eu sabia que alguma coisa estava fora
do lugar e não fiz nada a respeito.
Foi por isso que Zaph achou meu sangue tão irresistível, por isso ele
perseguiu minha mãe, por isso meus primos morreram e por isso minha
família está toda afastada, para dificultar o rastreio dos outros membros. O
que eu faço com essa informação? Eu sou a Primus dos Cinco Grandes…
Não, não sou, pois não sou vampira, então… Algo se acende em minha
mente: O que aconteceria se eu me tornasse vampira?
Me levanto aos poucos, a cabeça rodando com a possibilidade. Sentada
com os pés para fora da cama, inspiro fundo, sentindo as forças um pouco
mais renovadas. Eu gostaria de ser vampira? Admirar criaturas
sobrenaturais é uma coisa, saber que elas existem e estão entre nós é outra,
agora ser uma delas é bem diferente. Ponho a mão na fronte, como se eu
conseguisse tocar minhas ideias para organizá-las, e a escorrego pelo rosto.
Ouço duas batidas na madeira e levo o olhar até a porta. Minha mãe está
parada no batente com uma expressão mansa, mas preocupada.
— Está com dor de cabeça? — ela pergunta, sem se mover.
— Não, eu só… preciso respirar um pouco de ar puro. Acho que vou dar
uma volta. Que horas são? — Viro meu rosto para um lado e para o outro,
procurando meu celular.
— Nove. Hoje é sábado, por que não aproveita para ir ao cinema com
Julia e Melissa?
Ergo minha cabeça para ela e envio-lhe um sorriso gentil.
— Boa ideia.
— Enquanto isso, desce e toma alguma coisa. — Minha mãe também sorri
cabisbaixa. — Eu trouxe presunto.
Merda, ela sabe como me comprar.
Mas, de repente, seu sorriso é substituído por pura apatia, seus supercílios
curvados.
— Alice, eu... Me perdoe.
Perdão, perdão, perdão. Por que sempre ele?
— Eu perdoo. Mas não vou dizer que está tudo bem — afirmo, convicta.
— Por um lado, eu compreendo a razão de vocês, mas me chateia vocês não
terem confiado em mim o suficiente para me revelarem isso. O que mais eu
preciso fazer para que entendam que eu não sou um ser irracional? Ser
depressiva não me faz menos capaz. Depressão não é sinônimo de
imaturidade. Na verdade, um dos motivos que mais me magoam é vocês não
confiarem na sua própria filha. Você não me criou para ser forte e esperta?
Então por que não acredita que eu seja?! Eu sei que não sou perfeita, mas
quem é que é ou sequer um dia será? — Solto uma risada nasal. — E eu não
quero ser perfeita. Sinto muito se não sou do jeito que você gostaria, se faço
coisas que não aprova, mas gosto de ser assim, e gostos mudam de tempos
em tempos de pessoas para pessoas, você não pode forçar os seus em mim!
Termino arfante. Eu não pretendia despejar tudo assim.
E pela primeira vez, eu vejo minha mãe sem palavras.

Enquanto esperava pela resposta das meninas, sentada à cabeceira da mesa


da sala, eu comia um pão francês embebido em manteiga com uma fatia de
presunto, acompanhado de um belo copo de Nescau. Assisti a alguns vídeos
de A Culpa É do Cabral, pesquisei fanfics de Boku no Hero – que
provavelmente nunca lerei – e os filmes em cartaz.
Eu preciso disso. Algo neutro, que ocupe minha mente e, ao mesmo tempo,
faça com que ela assimile as novidades com menos pressa, menos urgência,
menos irritação. Caso contrário, eu me verei no fundo do poço outra vez.
Batalhei para sair dele por conta própria, e me recuso a voltar para lá. Um
passo de cada vez.
Quando minha mãe saiu do quarto, ainda sem pronunciar uma letra, meu
primeiro impulso foi de me levantar e ir atrás dela. Eu queria me desculpar,
mas achava que não deveria. Eu disse a ela tudo que estive contendo dentro
de mim. Ou, pelo menos, o resumo de todos os anos reprimindo meus
sentimentos para não ferir os dela. E eu estou cansada de me conter.
Alguns minutos depois, a notificação de mensagem aparece na tela do
celular:
PARTIUU!q horas a sessão?CADÊ DONA MELISSA? A LÁ, TA
VENDO, A DESAPARECIDA DOS ROLÊS. JULIA

Mel, cadê tu? ALICE

Deixo o copo de achocolatado em cima da mesa para digitar. Melissa


irrompe na conversa como se nada tivesse acontecido.
Estou aqui MELIS S A

É A GLÓRIA! JULIA

Que tal às três da tarde? ALICE

às três? vamos agora! JULIA

Agora? tá loca mulier? Há essa hora o cine nem abriu ALICE

a gente faz uma horinha lá paquerando JULIA

Que mané uma horinha. Falta no mínimo 4h pra abrir ALICE

Pior que isso não me parece uma ideia tão ruim. Mordo o lábio. Tentar
conhecer outros caras poderia me ajudar a descobrir se o que eu sinto pelo
vampiro é uma “paixonite”, uma “paixãozinha”, uma “paixão” ou uma
“paixããão”.
Ótimo, como se não bastasse descobrir que minha linhagem sanguínea
advém de vampiros, eu talvez esteja amando um. Maravilha.

Abro e fecho as mãos algumas vezes, tentando não me concentrar no suor


entre os dedos enquanto caminho na direção do clube. Respiro fundo, meu
coração martelando no peito, e estico os dedos uma última vez, espirando
pela boca.
Através da vidraçaria que cobre os dois andares, posso ver os sócios se
exercitando em aparelhos de musculação. É no mínimo estranho observar
esses desconhecidos agora. Quantos deles não são Criaturas da Noite, ou, no
caso, do Dia?
A fala de Zaph, sobre nós, humanos, sermos mais monstruosos do que
vampiros jamais serão, me faz refletir. Todos esses transeuntes ocupados
com seus próprios egos, sempre individualistas, seja para ceder o lugar no
ônibus ou para governar um estado. Há algum lugar neste mundo onde não
haja pessoas tão mesquinhas?
Balanço a cabeça para espantar a melancolia. Vamos lá, Alice. O sol que
ilumina é o mesmo que provoca as sombras.
Meus olhos disparam na direção do balcão no instante em que a porta de
vidro do clube desliza para os lados, e lá está a garota de cabelos rosas, mas
desta vez há outro homem debruçado no granito, de costas para mim. Eles
parecem estar conversando algo importante. Me aproximo devagar, não
querendo interromper, mas também sem querer parecer um pinguim de
geladeira ouvindo a conversa. Assim que me ponho ao seu lado, o cara se
vira para mim e suas sobrancelhas loiras sobem acima dos olhos azuis
piscina.
— Olha só. Nós estávamos falando de você. — Automaticamente minha
testa enruga. É o mesmo garoto que havia falado comigo quando vim com as
meninas. Dessa vez ele está totalmente vestido, e sua camiseta de azurita
realça seus olhos. Qual o nome dele mesmo?
— Jake estava falando do quão bonita você era. — A recepcionista exibe
um sorriso enviesado, cotovelos apoiados em sua mesa, e quase posso sentir
seus olhos lambendo meu corpo de cima a baixo. Meu estômago se contrai
em sentimentos mistos. — E, reparando melhor agora, preciso concordar.
Não agradeço, mas retribuo com um sorriso sem graça.
— Não liga para ela. Só está com inveja. — O garoto empurra o ombro da
jovem e volta a me olhar, ficando de lado ao escorar um antebraço na
bancada e apontar com um dedão para a menina. — Essa é a Karen.
Estudamos juntos. — Karen apenas move as sobrancelhas e repousa o
queixo na palma da mão. — Mas o que a traz até aqui?
— Suas amigas estão com você? — Karen lança antes que eu possa
responder Jake. A expectativa está ali num vislumbre de luz, encoberta pelo
semblante enfadado.
— Não — respondo. — Eu moro aqui perto, vim perguntar sobre as aulas
de dança. Pode me passar algumas informações?
— Claro. — Sua resposta não passou de um muxoxo mal-humorado quando
abaixou o olhar e puxou um panfleto.
Mordo o lábio ruminando uma ideia que está cada vez mais parecendo
menos absurda na minha cabeça. Foco na garota escrevendo, mas meu
pensamento está em outro lugar, repetindo várias e várias vezes a mesma
frase para eu não a pronunciar errado e, ao mesmo tempo, me perguntando se
eu sequer deveria pronunciá-la. Até o ponto em que o balão estoura e me
viro para Jake.
— Você quer ir no cinema comigo? — lanço. — Com as minhas amigas.
Comigo e com as minhas amigas. Hoje. De tarde.
Está rolando um baile funk no meu tórax, enquanto analiso os olhos
levemente sobressaltado dele. Ai meu Wanadi e meu Geyaguga... Por fim,
um sorrisinho surge na extremidade de seus lábios e Jake entorta um pouco a
cabeça.
— Foi mal, tenho compromisso mais tarde. Sabe, estudante de
intercâmbio... preciso manter a nota.
— Ah. — Meu coração não diminui a frequência. — Tudo bem.
Reencaminho o olhar para Karen que tem um sorriso viperino nos lábios
angulosos, embora ainda esteja escrevendo. Quero me esconder, enterrar
minha cabeça na terra que nem um avestruz. Moça, você poderia me
emprestar um saco?
— Mas vamos marcar um dia — ele diz, e me recuso a encará-lo. Se eu o
fizer, eu tenho certeza de que verei a pena em seu olhar. A jovem me entrega
o papel por cima do balcão e trato logo de pegá-lo. — Aqui. — Jake é mais
rápido, toma a caneta da mão dela e aproveita o panfleto para rabiscar algo.
— Esse é o meu número. Me liga quando quiser dar uma volta.
— Ah, tá, ok. — Puxo a folha para mim. Por que eu achei que isso seria
uma boa ideia?
— Desculpa, realmente. — Dessa vez levantar rosto para observá-lo foi
mais forte que eu. Os supercílios curvados sobre seus olhos me mostram o
que eu não queria ver. — Posso te acompanhar até em casa, pelo menos?
— Não, tudo bem. Tá tranquilo — digo, já dando alguns passos para trás
enquanto dobro o papel.
— Certeza? — Um mísero passo à frente dele atira um impulso meu de sair
correndo.
— Uhum. Até — respondo apressada.
Trespasso a porta e percorro todo o caminho de volta pra casa tentando
normalizar minha frequência cardíaca. Minha mente mistura Muito bem,
você conseguiu. Idiota. Isso aí, um passo de cada vez. Idiota. Continue
assim, devagar. Idiota.

Aperto o passo, contornando uma loja de roupas caras, e aceno para Ju e


Mel ao avistá-las na entrada envidraçada do cinema. As garotas se dirigiam
para a fila na bilheteria em zigue-zague e me junto a elas com uma
corridinha.
— Oi gente! — paro num pulo eufórico, tendo que ajeitar o vestido preto e
justo nas coxas por baixo da blusa de flanela vermelha e preta amarrada na
cintura. Julia em sua jaqueta jeans se inclina para mim como se eu fosse o
marreco mais feio do mundo.
— Alice? É você? Chegando na hora assim, não pode ser.
— Escrota, nem sempre me atraso — retruco.
— Só quase sempre.
Gastamos nosso tempo na fila tentando decidir que filme assistir e
discutindo sobre os benefícios ou malefícios de se tirar a cutícula da unha.
Se elas vissem o estado da minha, teriam um infarto. Melissa queria algo
com comédia, eu não queria nada meloso, Julia afirmou que queria algo com
adrenalina.
— Você quer é o Chris Pine nessa sua perseguida — Mel diz.
— Com certeza!
— Estamos ficando sem opção, galera! — falo, andando na fila. — Ok,
vamos reduzir nossas opções para os que não têm romance, tem uma pitada
de humor e tem adrenalina: O Deus.
Julia torce o nariz.
— É, né. Fazer o quê?

O patamar de cima, além das salas, dispõe-se como se fosse uma ampla
sala de espera, e há o enorme balcão da pipoca. Assim que entramos na fila,
pedimos nossos aperitivos, já que resta algum tempo antes da sessão
começar. Sentamos num dos bancos de madeira no centro do espaço, entre
dois vasos de planta.
— E então, Ju — brinco com uma das pipocas entre os dedos —, cadê os
gatinhos que você falou? — Jogo a pipoca na boca e Julia passa o copo de
Coca-Cola para mim. Relembro rapidamente a breve humilhação que passei
com Jake na frente da amiga dele.
— Abre pra mim? Não sei que merda fizeram, mas canudo nenhum passa
nisso aí com essa finura!
Eu solto uma risada anasalada enquanto mastigo e pego o copo de sua mão,
dando o saco de pipoca em troc... Au! Jesus, que lacre filho da puta é esse?
Ponho o dedo na boca para amenizar a ardência e limpar a gotícula se
sangue. Se minha saliva fosse que nem a de Zaph, já teria dado um jeito no
corte. O que me lembra de comentar com as meninas minha recente
descoberta.
Espera, eu posso pedir para Mel lamber meu dedo?
— E eu não disse que teria garotos. Eu só propus que tentássemos capturar
alguns — Julia comenta, pegando um punhado de pipoca.
— Trouxe sua pokébola?
Ela me envia um olhar afiado e ladino.
— Ela está bem aqui. — Vejo-a dar batidinhas em sua virilha e rio.
— Então vá à caça, minha amiga — digo, repousando o copo gelado no
colo.
— Não precisa. A presa já veio até vocês. — Um rapaz de cabelos loiros
arrepiados num topete e vestindo jaqueta marrom se senta relaxadamente ao
lado de Melissa e ela o encara tão surpresa quanto o resto de nós.
— Suas preces foram atendidas. — Outro indivíduo se aproxima,
marchando em nossa direção e segurando um copo de refrigerante, com uma
mão no bolso da bermuda capri. Este também tem os cabelos em tom
trigueiro, porém lisos, quase caídos nos olhos castanhos, que estão
direcionados à Ju.
— Que tipo de Deus idiota não atenderia às preces dessas lindezas? —
Levo um susto ao perceber um terceiro jovem parar na minha frente.
Uma sensação estranha e nada agradável roda no meu estômago. Dou um
sorrisinho sem graça.
— Bem, princesas, eu sou Michel, e esses são meus primos Maicon — que
está sentado ao lado de uma Melissa meio nervosa — e Matheus. — Ele
aponta para o outro jovem em pé à nossa frente.
— E o de vocês é…? — Michel incita, retornando a encarar uma Ju de
olhos cintilantes.
— Melissa, Julia e Alice. — Ela indica com o dedo, respectivamente.
— Qual filme vocês vão assistir? — Mat pergunta, trocando o peso da
perna e captando minha atenção. Desculpa, querido, mas não vou ceder meu
lugar para você. E sim, vou chamá-lo de Mat por simples e pura preguiça.
— O Deus — respondo por elas. Eu tenho que aprender a calar porra da
boca. Maicon se inclina para frente, os cotovelos apoiados nos joelhos, os
olhos arregalados direcionados para mim.
— Não brinca. — diz ele, animado. — Vamos ver esse também.
Ah, que beleza.

Prestes a passar por uma das portas duplas prateadas da sala que Michel
segura aberta para nós, percebo que falta alguém no grupo. Olho para os
lados e vejo Melissa mais atrás, perto da parede com os cartazes, de punhos
cerrados ao lado das coxas e com uma expressão de quem tenta ativar os
raios lasers dos olhos ou liberar um peido sem fazer barulho.
Vampiros peidam? Que cheiro teria? Não sei se quero descobrir.
— Esperem um segundo — peço, já me afastando.
— E perder o começo do filme? Nem pensar. — Ju se vira para nós, entre
os três jovens, e lança uma pipoca na boca. — Vocês vão fazer o quê?
— Hã, banheiro. Não quer vir junto? — Eu tento fazer um olhar discreto
que diga “vem aqui, caralho”, entretanto Julia parece ignorar e dá de
ombros.
— Meh. Tô bem. Não demorem. — Então Ju nos dá as costas. Cacete,
Julia! Você também, hein! Ela e os meninos entram gargalhando, sumindo de
vista.
Vai ficar tudo bem. É só impressão, é só impressão.
Corro até Melissa e sussurro:
— O que houve?
— Não sei. Mas estou com uma sensação ruim.
— Eu também sinto algo estranho — respondo e ponho a mão sobre o
estômago. — Por que estamos sussurrando?
— Alice, tô falando sério!
— Acha que me refiro à dor de barriga ou aos gazes?! — Olho para cima,
pondero e movimento os ombros. — Bem, talvez possa ser, mas de qualquer
jeito, eu quis dizer que cada vez que olho nos olhos do Matheus, eu me sinto
desconfortável. Como se meus órgãos recuassem e quisessem correr sem ter
pra onde ir.
— Ah, desculpe. Pois é, sinto algo parecido. A diferença é que mexe com
os meus instintos não humanos.
— O que isso quer dizer?
— Isso que me preocupa. Eu não sei. — Ela aperta os próprios braços.
— Eles podem ser outras criaturas?
Ela balança a cabeça em negação.
— Não tenho como saber assim só observando. Algumas criaturas a gente
até aprende a reconhecer, mas não são muitas que tomam formas humanas
que são fáceis de diferenciar.
— Você não consegue reconhecer pelo cheiro?
— Eles estão com perfume demais para o meu olfato sensível. Pode ser
uma tentativa de disfarçar o cheiro da raça.
— Ou são só garotos comuns e estamos com medo por nada. — Comprimo
os lábios e observo minha amiga à frente fazer o mesmo. — O que fazemos
agora? A Ju está sozinha com eles.
— Não exatamente sozinha.
— Ao menos acho que não são Vacors.
— Verdade, eles estão muito racionais para isso. — Ela se empertiga,
ajeita os cachos negros atrás da orelha e me fita profundamente com seus
olhos azuis gelo. — Eu entro na sala e vejo como estão as coisas, se meu
instinto apitar, eu a tiro de lá.
— Tá. Tudo bem. — Eu acho. — Eu espero sua resposta aqui. — Ela
meneia a cabeça e se dirige para a porta atrás de mim. Se há alguém que
pode nos livrar de uma enrascada sobrenatural agora, essa pessoa é a Mel.
Expiro, me dando ao luxo de relaxar um pouco. Não percebi que tinha
prendido a respiração. Alá, que seja só paranoia nossa. Eu não sei se
prefiro que eles sejam vampiros ou simples babacas.
Vai dar tudo certo, vai dar tudo cert…
— Ei.
— Puta que... — Escancaro os olhos ao me virar e me deparar com Zaph
misturando-se às pessoas que transitam pela área das salas banhada em luzes
neons, em meu encalço. — O que está fazendo aqui? — Franzo o cenho e
guino sutilmente para trás. — Ou melhor, como soube que eu estava aqui?
— Sua mãe me falou — ele responde, meio sério, meio tranquilo. — Ela
disse para eu ficar de olho em você.
Não posso deixar de reparar como a camiseta Raglan branca de mangas
pretas se molda ao seu físico. Meu Krishna, eu estou parecendo uma puritana
do século XVIII que não pode ver um pedaço de pele exposta que já
hiperventila.
— A Melissa não te viu. — Era para ser uma pergunta, mas acabou sendo
uma constatação.
Talvez a presença que ela sentiu antes era a dele, mas como não sabia de
onde vinha, achou que era dos meninos. É uma opção.
— Não, não viu. Mas eu a vi. — Um luzir passa por seus olhos e não
consigo identificar que teor ele tem.
Mordo o lábio de apreensão.
— Zaph, eu e Melissa estamos com uma sensação estranha. Talvez seja só
neurose, mas pensamos que, talvez, uns garotos que se juntaram a nós
possam ser vampiros ou alguma outra criatura. Você consegue farejar algo?
Ele vinca as sobrancelhas.
— Eu sou um vampiro, não um lobisomem. Se eles não sangrarem, eu não
tenho como “farejar” nada.
— Não quer tentar falar com Melissa? — proponho, abraçando meus
próprios braços. A mandíbula de Zaph se tensiona e descontrai em questão
de segundos, mas eu consigo perceber.
— Nu. — Sua voz é quase uma trovoada. — Não acho que seja o
momento.
— Vocês não conseguem deixar suas diferenças de lado agora pelo bem
maior? — pergunto um tanto chateada.
Zaph não responde, apenas inspira fundo e iça o queixo, estudando o local.
Logo abaixa o foco para mim outra vez.
— Eu vou vigiar de longe, não se preocupe. — Ele passa pelo meu ombro,
se dirigindo a algum lugar sem nem me dar tempo de rebater. Observo-o ir,
sentindo um desconforto no cora...
— Alice? — A voz doce de Melissa vem de trás de mim e me viro em sua
direção. Ela me chama da porta, com um sorrisinho na boca fina. Ou eu acho
que aquilo é uma tentativa de sorriso.
— Tudo limpo. — Ela franze a testa enquanto caminho em sua direção,
ainda esfregando meus braços. — Ao menos por enquanto.
Mel empurra mais a porta para me deixar passar. A escuridão da rampa de
acesso me cerca conforme avanço pela subida coberta por carpete e a porta
pesada se fecha atrás de mim. Fico parada, esperando Melissa, e minha
visão se acostuma ao ambiente para eu não sair caindo por aí. Até esqueci o
número dos assentos.
Olho para as poltronas procurando Ju e vejo-a acenar sorridente. Os
rapazes estão sentados próximos, de maneira a alternar “casais”, pulando
carteiras entre mim e minhas amigas. Droga.
À medida que chegamos perto, me dobro para não atrapalhar a visão dos
outros e Ju ri de algo que Maicon diz. Melissa, à minha frente, tenta retribuir
o sorriso de Michel quando passa e se senta, e Matheus suspende as pernas
para que eu passe e me sente ao seu lado.
Um frio na barriga me toma. Zaph está lá fora e eu estou aqui dentro,
escapando dos flertes de um cara. Afundo no couro da poltrona.
— Você demorou lá fora — Matheus sussurra, quase inocentemente, em
meu ouvido. Espero que Zaph não veja. Mas, ao mesmo tempo, quero que
sinta ciúmes de mim.
— Encontrei um conhecido.
Zaph, Melissa e eu tínhamos razão. Não sei os outros dois, mas Matheus
definitivamente é um vampiro.
Como eu sei? Percebi isso no momento em que ele se ofereceu para me
acompanhar até o banheiro na metade do filme e, apesar de um tanto
desgostosa, aceitei. E foi quando encaixei minha mão da sua, conforme
descíamos a escada lateral, que notei sua temperatura oscilante.
Um frio súbito me percorre. Eu estou sendo levada para baixo, pela rampa
de acesso, mergulhada em um negrume, de mãos dadas a um vampiro
desconhecido.
P
reciso arranjar uma desculpa, não quero morrer aqui. Deuses, não
sei nem se ele vai me matar, talvez ele seja apenas um inocente
Remi. Um Remi Moroi, de preferência. Engulo em seco. Meu
Amaterasu, por favor.
Não consigo enxergar nada aqui, será que já estamos próximos da port…
De repente, sua mão se solta da minha e ouço um urro doloroso ali perto, nas
sombras. Jesus, e se não for um vampiro e ele está se transformando em
outra coisa bem aqui? Instintivamente dou um passo atrás, meu coração
agora socando meu tórax. Escuto o barulho de algo consistente e oco se
quebrar, como vários estalos graves nos nós dos dedos. Será que foi um
osso? Será que é a coluna dele?!
Tomo um fôlego longo e audível quando vejo o corpo de Matheus cair
inerte na minha frente, sob a curta faixa de luz que a tela deixa chegar até ali.
Jogado de bruços no carpete, sua cabeça dobra-se num ângulo totalmente não
natural, a centímetros dos meus pés. Antes que eu possa gritar, uma mão
cobre minha boca.
Minhas pernas tremem, e eu quero chorar. Não tiro os olhos de Matheus, há
uma parte de carne exposta em seu pescoço, de onde verte um rio veloz de
sangue, como se uma besta raivosa o tivesse mordido. Ele… morreu ali,
logo à minha frente? Por essa mesma mão que me silencia?! Dizer que
minhas pernas tremem é eufemismo, elas estão vibrando que nem corda de
violão. Acho que vou fazer xixi nas calças.
O que está acontecendo? Já sinto as lágrimas quentes escorrendo
lentamente pela minha bochecha.
— Fica quieta! — Uma voz ríspida sussurra em meu ouvido. Espera, essa
voz... — Bem, pelo menos os gritos do filme abafam seu choro. Alice,
pentru numele lui Dumnezeu, fica quieta!
Zaph afrouxa a mão quando eu paro de soluçar e eu a pego com a minha,
abaixando-a para girar e encarar as íris escarlates na escuridão.
— O que você pe-ensa que está faze-endo? — falo, fungando, um pouco
irada e me recuperando aos poucos. Meus ouvidos ainda zunem e me sinto
cambaleante pela pressão baixa. Ele inclina a cabeça e sua mão livre, a que
eu não estou apertando loucamente, limpa meu rosto das lágrimas.
— Melissa estava certa. Eles são vampiros.
— O-os três?
— É. Os três. — Eu quero perguntar como ele sabe, mas apenas consigo
soluçar, tentando recuperar o fôlego, enquanto olho assustada na direção da
rampa de acesso. — Ei, ei, — Zaph pega minha outra mão trêmula e a
aperta, atraindo minha atenção — escuta...
— Precisamos tirar elas de lá. A Melissa é uma vampira, mas a Ju não. Eu
vou até lá. — Dou um passo para correr em direção a… Zaph me impede de
me mover, mantendo minhas mãos nas suas. Me viro para ele, apressada e
transtornada. Vejo sua feição aflita clareada pela luz parca da tela.
— Você não pode ir.
— Zaph, eles não sabem que eu sei. — sussurro, meu coração batendo
depressa.
— Isso não vai impedi-los de tentarem te atacar. — O grito que a moça no
filme dá atrai minha atenção por alguns instantes.
— Têm milhares de pessoas ao redor, eles não parecem ser do tipo que
fariam algo assim em público — digo.
— Talvez não sejam Vacors, mas podem ser Strigois.
— O que sugere? Que você vá até lá? — Zaph olha para o lado por um
momento, ponderando.
— Não. Eu não vou conseguir disfarçar meus olhos vermelhos. — Esses
mesmos olhos voltam-se para mim, sua mandíbula tensa, claramente
detestando a ideia.
— Eles não sabem o que aconteceu com Matheus. Isso vai me dar tempo
para tirá-las de lá e você poder acabar com a raça deles se quiser.
Não espero sua resposta e dou as costas, sabendo que se Zaph realmente
quisesse, ele poderia me impedir com facilidade.
Subo as escadas laterais até as poltronas e paro na nossa fileira, tentando
não mostrar meu nervosismo.
Tento atrair a atenção da Mel como se eu chamasse por um gatinho,
acenando com os braços e fazendo “psiiiiu”. Só que, para o meu azar, meus
gestos discretos não funcionam. Assim, parto para a agressão e faço um
miniescândalo, falando alto o suficiente para que minha voz pareça um berro
na sala silenciosa. Todos do grupo olham para mim, e até mesmo outras
pessoas. Sorrio, sem graça.
— Er, posso falar com vocês duas um minutinho?
— Cadê o Matheus? — Maicon, ao lado direito de Ju, pergunta de
ultimato. Cruzamos o olhar e… merda. Merda, merda, merda! O que eu
falo?! Zaph não deveria ter confiado em mim para fazer isso.
— Vou procurá-lo — ele diz, com o olhar um tanto sisudo fixo no meu, e
caminha sem se importar se sua altura atrapalha a visão alheia.
Empurro o nó na minha garganta para baixo e dou um passo atrás. Uou!
Droga, esqueci que estou na escada, pisei em falso. Aproveito esse erro dos
meus pés e corro em direção à porta. Mais precisamente em direção ao…
cadê o Zaph?!
Olho para os lados e busco por ele nas sombras. Até o corpo de Matheus
desapareceu – ao menos não está onde eu possa enxergar –, porém, ao olhar
para trás, só encontro o olhar faminto de Maicon, que se aproxima sério e de
punhos fechados. Ai, cacete! Fodeu! Na penumbra, suas íris castanhas ficam
ocres e laranjas.
Um tremor trespassa meu corpo, me obrigando a dar passos para trás,
tateando o ar em busca da porta. Maicon tropeça em algo e desvia o olhar
para baixo, vendo o corpo do amigo no chão. Maicon ergue a cabeça para
mim com os olhos rubros.
Milésimos antes de eu puxar a porta atrás de mim e correr para fora da
sala, vejo mais um olhar escarlate aparecer no canto do corredor largo e ir
para cima de Maicon, levando-o para o outro lado escuro da rampa e o
encurralando com um baque contra a parede. A acústica da sala abafa a
pancada na parede de feltro carvão. Quando a figura aparece na luz da tela,
noto ser Zaph. Ele pressiona a garganta de Maicon com o antebraço, a fúria
retorcendo sua face, e mostra suas presas como um animal selvagem.
Sentimentos conflitantes fazem meu coração bater forte: a preocupação por
Zaph e a animação por presenciar tal embate. O rosto de Maicon se contorce
de dor e raiva, e ele também mostra os caninos afiados e tenta,
desesperadamente, tirar o braço de Zaph que o enforca. O terceiro dentre os
Cinco Grandes agarra Maicon pela blusa, o arremessa sem esforço para o
outro lado da rampa e desaparece nas sombras.
Acho que posso aproveitar essa brecha para passar por eles e ver se está
tudo bem com Ju e Melissa, que ainda estão com Michel.
Me esgueiro pela parede oposta à de onde eles estão se engalfinhando,
apenas escutando sons de socos, grunhidos e mais alguma coisa que não
consigo identificar. Eles parecem se movimentar entre os flashes de luz da
tela do cinema, até que… Os olhos vermelhos e os caninos afiadíssimos de
Maicon surgem na minha frente. Ele se inclina sobre mim, como se quisesse
me alcançar. Não há tempo sequer de gritar. Logo Maicon é puxado
novamente para a escuridão, mas é o suficiente para travar minha mente
naquela imagem. Eu perco o equilíbrio e tropeço nos meus pés.
Não consigo escutar nada além do meu próprio batimento cardíaco e mal
sinto minhas pernas de tanto que elas tiritam. Um líquido quente escorre
pelas minhas coxas, por debaixo do vestido.
A imagem daqueles orbes carmesim se soma à figura do capelobo diante
dos meus olhos. A trilha sonora do filme soa baixa em meus ouvidos e
aumenta a tensão em meus músculos. Miro as sombras na rampa da porta
com expectativa, para ver qual deles sobreviveu. Nenhum barulho vem de lá.
Mas como se soubesse sua deixa, finalmente há um ruído.
Lentamente, a cabeça Maicon aparece rolando no carpete plúmbeo sob a
luz da tela. Ela para quando bate de leve na ponta do meu tênis, manchando a
borda branca de sangue. Jeová... ele… ele… O miasma acre de sangue
invade minhas narinas de imediato. Meu estômago se contrai, minhas
têmporas latejam, meu coração bate devagar. Não consigo desviar os olhos
da cabeça decepada de Maicon aos meus pés. Minha calcinha está ensopada
e minhas coxas úmidas de urina.
O pescoço dele está completamente rasgado, e posso ver nitidamente os
fiapos de carne e pele. Os olhos vermelhos revirados para cima, a boca
escancarada, mostrando as presas afiadas e o sangue que escorre delas e
desliza pela bochecha. O líquido gosmento que espirra dali forma uma poça
cada vez maior.
Seguro a náusea com a mão por cima da boca.
Todo o frio do ar-condicionado me invade repentinamente, enrijecendo
minhas juntas. Sinto uma mão quente e grande envolver meu bíceps, me
içando e me obrigando a ficar de pé, mesmo assim não desvio o olhar da
cabeça decapitada.
— Alice — a voz de Zaph sussurra perto do meu ouvido e me chama a
atenção. Eu viro o rosto, ainda sem piscar, e encaro seus olhos rúbeos na
penumbra. Sangue escorre de sua boca, há arranhões em seu rosto e manchas
em sua blusa branca. Noto, ainda um pouco débil, que ele esfrega meus
braços. — Fique aqui.
— A-a-aqui? — digo, apesar do meu coração estar batendo absurdamente
mais rápido, sem eu sequer ter notado. — Pe-pe-perto desses cadáveres?
— Só um pouco. Vai ser rápido. Prometo.
— Por favor, não me deixe aqui sozinha. — Olho para Zaph, mostrando em
meus olhos e em minhas mãos, que simplesmente não se sentem confiantes o
suficiente para soltar a blusa de Zaph, a súplica desesperada. Campos
Elísios, estou apertando tanto sua roupa que meus dedos doem.
Zaph me olha sério, a luz do filme fazendo as sombras marcarem seu rosto
de um jeito sombrio, mas há algo tenro no fundo de seu olhar escarlate.
— Não se preocupe, Melissa já vem.
— Como você sabe? — Eu mal consigo raciocinar no momento. Eu quero
ir para casa. Eu quero me encolher e ficar num canto repetindo que isso
nunca aconteceu até eu esquecer o que vi.
— Ela vai sentir o cheiro de sangue e virá te procurar. Ao menos é o que
eu espero que ela faça.
Zaph desvia a atenção para algo à esquerda, na direção da abertura onde a
rampa termina e a luminosidade da tela começa. Meu tórax começa a doer,
minha respiração falha e estou tendo outra crise. Que ótimo.
— Eu vou esperar lá fora — digo quase num sussurro introvertido, ao
passo que me distancio aos poucos de Zaph. Sinto que meu peito pode
estourar a qualquer minuto pela falta de ar, e prevejo a tonteira que se
seguirá. Solto sua blusa, ainda com as mãos bambas, e faço menção de
correr trôpega até a saída. Ó, Céus, eu vou ter que passar pelos corpos de
Maicon e Matheus para sair da sala. De repente, tudo ao meu redor se torna
vívido e barulhento demais: os gritos do filme, o odor pungente de sangue e
a viscosidade dele sob meus pés... Uma ânsia de vômito rebuliça meu
estômago e minha visão turva.
Uma mão grande me ampara antes que eu possa despencar. Não preciso me
virar para saber que é Zaph quem me segura e me puxa para si, até eu me
encostar em seu peito.
— Não posso deixar que você saia. — O tom de Zaph não dá margem para
dúvidas. Por favor, me deixe ir embora. Eu preciso sair daqui, eu preciso ir
embora... Mais lágrimas rolam ao sentir a noradrenalina crescer por não
poder escapar. Elas nublam minha visão na penumbra, me fazendo enxergar
menos do que eu já enxergava. — Não posso arriscar perder você de vista,
pode haver outros lá fora. Peça à Melissa para te levar para casa. Ela não é
uma das Cinco Grandes, mas pode te proteger enquanto eu estiver fora. —
“Estiver fora”?
Me torno rapidamente para ele, me livrando do torpor aos poucos.
— Aonde você vai? — Meu coração dá mais um pulo doloroso e fecho os
olhos por reflexo quando Zaph pega meu rosto nas mãos e beija meu nariz.
Isso não ajuda meu coração a desacelerar ou o ar a voltar para meus
pulmões.
— Alice, você tá...? — As mãos de Zaph saem e, quando separo as
pálpebras, olho para o lado e vejo uma Melissa petrificada. Ela segura o
pulso de Julia, que tropeça e olha primeiro para o chão. Seus olhos se
arregalam e então ela os levanta em minha direção, depois para Zaph ao meu
lado.
Ele e Melissa se encaram, os olhos da minha amiga, cravados no vampiro,
se tornando cada vez mais rubros.
— Mel, vamos embora, por favor — rogo, minha voz embargada pelo
choro descomunal prestes a irromper e o ar me faltando cada vez mais. Me
abraço até minhas unhas se fincarem em minha pele fria, e a dor me distrai
um pouco da realidade à minha volta.
— O que está acontecendo? O que é isso escorrendo no chão?! Que cheiro
de sangue é esse?! — Julia ostenta uma expressão confusa, abismal,
enquanto Mel puxa-a num solavanco em minha direção. — Esse é o Zaph?
— Depois eu te explico. Precisamos sair daqui. — Melissa para perto de
nós, sisuda e com os olhos escarlates fixos em Zaph. A mandíbula dele se
retesa. — Zaph…
— Tire-a daqui — ele ordena, tão estável quanto ela.
Ambos se encaram em silêncio até Mel pegar firmemente um dos meus
pulsos cruzados sobre o peito e me arrastar na direção contrária, me fazendo
girar e quase escorregar no sangue do carpete. A claridade do lado de fora
me cega por alguns instantes, então me deixo ser puxada por Melissa.

Acordo num susto.


Minha respiração está ofegante e uma camada fina de suor cobre minha
nuca sobre o travesseiro.
Olho para o teto caliginoso, mas demoro a me situar. Estou em casa e está
de noite. Longe daquilo tudo, no meu quarto, na minha cama, sã e salva. Meu
coração se aquieta um pouco.
O que aconteceu depois que saímos da sala do cinema é um borrão de
imagens para mim. Me lembro vagamente de Melissa e Julia gritando meu
nome no banheiro, tentando encontrar a cabine na qual eu havia me trancado,
mas eu não conseguia responder, pois só chorava e chorava como se eu
sentisse que o mundo havia sido demolido sem aviso prévio. Talvez eu
estivesse entorpecida com o vômito que eu colocava para fora, agarrada à
borda do vaso sanitário. Porém, não sei como, senti mãos delicadas e firmes
segurarem meu cabelo no alto enquanto eu terminava de pôr tudo para fora.
Nem mesmo sei como cheguei em casa. Lembro muito mal do rosto aflito
de Julia tentando me ajudar. Recordo que braços macios me cercaram, me
levaram para o andar de cima e que eu entrei debaixo de uma ducha quente.
Alguém me deu remédios com água, então deitei na cama em posição fetal.
Imagens de Zaph lutando, a cabeça deslocada do corpo de Maicon, o
pescoço quebrado e mutilado de Matheus, a fuça do capelobo...
AI MEU ZEUS!
Um barulho vem da minha direita e imediatamente me sento, encolhida no
canto da cama. Meu coração volta a palpitar com força enquanto observo a
silhueta cair no chão entre a quina do meu armário e a janela. Será que
Michel veio atrás de mim? Será que Maicon conseguiu pôr a cabeça no
lugar? Ou será outra criatura?!
À medida que minha visão se acostuma com o negrume, distingo a mão da
pessoa apoiada na parede. Ao levantar os olhos vejo o brilho...
Seus orbes cinza o delatam e agora posso enxergar melhor sua aparência
desleixada.
— Zaph! — Engatinho pelo colchão até descer da cama e me agacho ao
lado do meu vampiro. — Zaph, o que aconteceu?
Minhas mãos pairam ao seu redor, querendo ajudar, mas sem saber como.
Deuses, ele tem sangramentos aqui e ali, hematomas, está amarrotado e sujo
de poeira. Meu coração se contorce. Observo-o se sentar com as pernas
esticadas e as costas no armário. Ele tira a mão da parede e deixa ali sua
marca borrada de vermelho. Minha mãe vai me matar. Zaph respira com
certa dificuldade, mas ainda assim estica um sorriso de canto em meio ao
sangue seco nos lábios e queixo.
— Estou bem, fată ciudată. — Logo que diz isso, seu tronco escorrega de
lado e cria uma listra rubra no meu armário.
— Bem é o cacete! Alguma coisa quebrada? — pergunto, me inclinando
sobre ele para analisá-lo melhor.
— Não — Zaph responde ainda com um sorriso fraco na boca.
Com pressa e um tanto titubeante, faço um coque no cabelo para evitar que
caia no meu rosto para auxiliá-lo a se deitar numa posição melhor. Torço
meu corpo para trás, estico meu braço até alcançar meu travesseiro sobre a
cama e o coloco sob sua cabeça.
Zaph aperta os olhos depois os abre. Sua face arranhada, inchada,
manchada de roxo e marrom é iluminada pela escassa luz da lua que provém
da fresta entre as cortinas finas. Vou ao banheiro, pego a toalha de rosto que
nunca usei, molho a ponta na pia e volto a me ajoelhar ao lado da cabeça de
Zaph.
— O que você fez? — pergunto, enquanto limpo o sangue seco e fresco em
alguns pontos do rosto dele com delicadeza.
— Dei uma lição naquele tâmpit. — Zaph fica rígido e faz careta quando
ponho a ponta molhada da toalha sobre seu machucado na testa.
— Para de ser fresco! Você com certeza já teve ferimentos piores. — Ele
dá uma risada esganiçada.
— É verdade.
Um silêncio recai sobre nós, mas não é desconfortável. Estou concentrada
em amenizar o estrago em Zaph, mas o ideal seria que ele tomasse um banho
para tirar a sujeira dos cabelos também. Eu não sei se minhas mãos tremem
mais por haver tanto sangue ou de nervoso por haver tanto sangue em Zaph.
— Scuze — diz ele, e paro o que estou fazendo para fitar seus olhos. Sua
feição parece no limiar entre a séria e a penosa.
— Está se desculpando pelo que? Fui eu quem te meti nessa...
— Por ter te traumatizado. — Seu foco desvia-se rapidamente para o
armário — E pelo guarda-roupa. E a parede. E o travesseiro. E o ch...
— Ok, eu já entendi.
Um arrepio percorre minha espinha quando me lembro da cabeça decepada
de Maicon com os olhos revirados e a boca escancarada.
— Não queria que você tivesse visto aquilo — Zaph continua.
Depois de tudo o que eu já tinha lido, de tudo o que me foi contado pelo
próprio Zaph, eu não esperava menos que isso vindo de vampiros, porém...
presenciar uma morte tão violenta é completamente diferente de imaginar. A
cena tão alegre e pacífica do Mercado das Criaturas volta à minha mente.
— Foi bom para eu ter noção do que eu realmente estou lidando.
Mais um instante de silêncio. Não sei como Zaph interpreta isso, porque eu
não me refiro somente a ele. Quer dizer, foi Zaph quem decapitou Maicon.
Foi Zaph quem quebrou o pescoço de Matheus...
— Você por acaso não poupou o último, não é? — pergunto. Ele não
responde, somente me encara com sua boca em linha reta. Ele não precisa
dizer uma palavra para que eu entenda perfeitamente.
Zaph ergue a mão devagar e toca minha bochecha de leve com a ponta das
costas dos dedos. Quero fechar os olhos e degustar dessa sensação, mas me
obrigo a continuar analisando sua feição.
— Matarei todos que se aproximarem de você.
Ok, não era bem o que eu estava pensando.
— Eca, não me toque com essas mãos sujas — zombo e dou um sorriso
triste, que Zaph retribui. Mas de onde veio tanto sangue em suas costas e em
suas mãos? Meu sorriso desaparece. — Zaph…
— Não se preocupe. A maior parte não é minha.
— E suas costas?
— É, o que está nela é meu. Aquele filho da puta me pegou por trás. Eu
sabia que, ao sentir tanto cheiro de sangue, ele tentaria escapar, mas não
esperava que ele fosse um Strigoi.
— Como você soube que eram vampiros?
— Reconheci de quando faziam parte da clientela da máfia, um bando de...
como vocês dizem mesmo? Filhinhos de papai, e depois se tornaram
associados. — Ele franze o cenho, transformando seus olhos em chumbo. —
Mas o que me perturba é não saber porque eles estavam lá. Eles não
pertenciam ao meu regime, mas sei que não faziam parte dessa zona.
— Mas eles são brasileiros. Quer dizer, eram, né?
— Da, mas não agiam nessa região, não tinham permissão.
— Eles não podiam estar só turistando? — Quando Zaph me lança um
olhar cético eu encolho os ombros e mostro um sorriso tenso.
Premo os lábios ao que vejo Zaph unir os cílios e expelir o ar pelo nariz
em uma risada fraca.
— Vamos, precisamos limpar suas costas.
— Daqui a pouco. Deixa só eu ficar deitado. — Aquiesço, e a quietude
retorna a se instaurar na noite. Zaph parece dormir tranquilamente, com a
cabeça no travesseiro posto no chão. Meu coração se comprime junto aos
meus lábios e acabo com a paz.
— Você mata até mesmo aqueles com quem eu nunca topei?
— Da — ele responde, sem abrir os olhos.
Vê-lo desse jeito descarrega uma enorme culpa sobre cada átomo do meu
corpo. Zaph cortou sua própria pele e carne para fazer a Promessa de Sangue
a mim. Ele não precisava, mas o fez. Eu chego a abrir a boca, furiosa com
ele e comigo mesma, pronta para despejar minha angústia ao questionar o
motivo idiota de ter feito algo assim… Contudo, o vampiro torna seu olhar
para mim, um sorriso despontando no canto da boca.
— Você deu sorte de ter me conhecido.
O mundo para somente por alguns segundos. O suficiente para a culpa
desvanecer e ser substituída pela completa concepção do sentimento morno
em meu peito. Rio, fraca.
— Dei sorte mesmo.
E
u obriguei Zaph a se levantar e ir ao chuveiro tomar um banho. Não
era o melhor momento, mas não pude evitar morder o lábio inferior e
dar uma boa analisada em seu corpanzil talhado quando o vampiro
saiu do banheiro enxugando o cabelo na toalha com o abdome nu. Aquilo são
seis, não, ‘pera, xô vê... um, dois, três... é, seis gomos. Ou seis e meio? O
mais agonizante era ver como seu oblíquo descia e sumia pelo cós da calça
enquanto andava preguiçoso em minha direção. Meu Santo da Carrocinha
de Churros, que homem delicioso.
Zaph está alheio ao meu olhar o comendo de cima a baixo, de um músculo
em movimento ao outro, conforme ele pendura a toalha no vidro do box. É
nítido que ele não está em seu estado normal, o que aperta meu
coraçãozinho. O vampiro levanta a cabeça e me envia um sorriso pequeno,
mas o cansaço em seus olhos é transparente como a água.
Uma água potável, claro.
Zaph se senta na ponta da cama, e eu me coloco atrás dele, tentada e
hesitante em tocar sua pele marcada, mas agora bem mais limpa e cheirosa.
Há o desenho de uma flor em tinta preta um pouco abaixo de sua cerviz. É
uma sakura com losangos na ponta de cada pétala, embora só três estejam
pintados, formando um triângulo. Suas costas largas estão arcadas ao escorar
os cotovelos nos joelhos e exibem alguns arranhões longos e finos que
cruzam suas escápulas. Não estão muito fundos, no entanto, a julgar pelo
momento em que aconteceu e a hora em que Zaph chegou em casa, ele deve
ter perdido uma boa quantidade de sangue e energia. Além deles, eu pude
notar, com pesar, outras cicatrizes de tempos longínquos. Elas são finas
como ferimentos de unhas ou lâminas. E eu quero beijar cada uma delas.
Quero acariciá-lo de forma que eu possa varrer suas mágoas e
simultaneamente dizer com os meus dedos que aquelas cicatrizes não o
definem, mas contam por onde ele andou.
O vampiro romeno fica quieto, no limbo entre a consciência e o sono,
enquanto eu faço os curativos. No mínimo toque de meus dedos em sua pele,
eu já sinto uma corrente elétrica branda em todos os meus músculos.
— Essas cicatrizes… — começo, sem saber muito bem que palavras usar.
A lembrança do que ele me dissera no Mercado das Criaturas corta minha
mente e envia uma súbita cólera para o meu estômago ao imaginá-lo com
uma coleira de ferro no pescoço. — São de quando você…
— Da — Zaph replica, ríspido. Engulo em seco.
— Desculpe, não precisa contar se não quiser.
Um silêncio ameno e suave recai sobre a penumbra do quarto. Eu rasgo um
pedaço do esparadrapo com o dente.
— Ela era uma bruxa. — Zaph cospe. Ainda bem que ele não pode ver
como meus olhos se arregalam e como meus dedos ficam tensos, prestes a
colar o esparadrapo na gaze em suas costas. — Na verdade. Eu me envolvi
com uma Quer, falei meu nome todo para ela, e a próxima coisa da qual me
lembro é de ter acordado pelado numa cela fedida a mofo, úmida e feita de
galhos retorcidos. Eles eram revestidos de magia, eu não pude quebrá-los.
Quando finalmente a piranha deu as caras, ela estava na companhia de uma
bruxa das Olhos Famintos. Eu fui vendido para a bruxa e depois, no ninho
delas, que era mais uma bagunça de teias do que outra coisa, eu fui
gentilmente entregue aos cuidados da Senhora delas. Arachn’y.
Eu não sei se quero ouvir o resto dessa história. Aperto o adesivo em suas
costas, para firmar. E, pelo silêncio, parece que nem mesmo Zaph quer
prosseguir com ela. O mais “engraçado” é que seus músculos não estão
tensos, sua postura está tão amainada quanto antes. Ou ele não se importa, ou
ele sabe esconder muito bem.
Eu deixo as mãos caírem quando termino de cobrir seus ferimentos. Me
inclino para frente, esfregando de leve seus bíceps. Acho que Zaph não faz
ideia do quanto sua força interior ampara a minha.
— Você não precisa continuar — digo baixo, próxima a seu ouvido. Então
Zaph vira o perfil austero na direção do meu rosto. Ele coloca uma de suas
mãos sobre a minha em seu braço.
— Eu juro que vou lhe contar um dia.
Inspiro fundo e desvio olhar, ajeitando uma mecha de sua franja úmida.
— Eu gosto dele assim — digo, quebrando o clima, e ouço a risada nasal
de Zaph.
— Gosta?
— Uhum. Dá pra passar os dedos. — Eu tento não corar com minha
confissão.
Zaph torce o tronco para mim sem desatar nossas mãos, e eu recebo o
baque de seus olhos metálicos nos meus. Ele porta um resquício do que seria
o sorrisinho malandro dele, o que me comove.
— Eu te beijaria se eu não estivesse tão exausto — ele diz.
Alguns segundos se passam antes que eu consiga me recuperar. Quando
acontece, suavizo a expressão, deixo o ar sair dos pulmões e estico os lábios
num sorriso manso.
— Então, descanse. — Me inclino para frente para depositar um beijo em
sua bochecha.
Não desunimos as mãos nem mesmo no momento em que deitamos na cama
estreita, um de frente para o outro.
— Não quer sugar um pouco do meu sangue? — Zaph se torna taciturno,
sumindo com o vestígio de sorriso e tensionando a mandíbula. — Só um
pouquinho. Somente o necessário para você se recompor.
Agora eu sei, não só o perigo, mas a importância que minha proposta
representa. Por isso, não o censuro nem pressiono enquanto Zaph me estuda
de lado, ponderando, até, por fim, fechar os olhos e suspirar.
— Bine. Só um pouco.
Ele ergue nossas mãos unidas e suspende meu pulso na frente de seu rosto.
Zaph o pega delicadamente com a outra mão, fecha os cílios grossos e beija
minha pele sensível antes de abocanhá-la.
A temperatura oscilante de sua mão, o jeito dedicado com que ele me toca,
até mesmo o modo como o sangue flui para sua boca me relaxa. Eu admiro
sua face angular, com uma sombra de barba, mas também suave, conforme
seus lábios se servem do meu pulso e deixa um filete de sangue correr.
Como prometido, Zaph retira suas presas de mim, causando uma sensação
fria ao lamber a pele ferida devagar. Posso sentir meu tecido muscular se
fechar. Seus olhos me atingem bem no instante em que ele decide passar a
língua pelo sangue que escorre, criando um rastro tão molhado quanto
ardente na parte interna do meu antebraço.
Odeio e adoro o modo como ele faz meu coração descompassar, como seus
olhos parecem se infiltrar na minha carne e corroê-la em êxtase. Odeio e
adoro como cada toque e sorriso seus me acolhem e enternecem.
Me aconchego ao vampiro, entre seu queixo e ombro, e junto as pálpebras,
tentando entender esse sentimento.
— O Conselho vai ficar furioso — Zaph diz, lendo a reportagem do site
comigo.
O frio é um prenúncio do inverno que se aproxima, então aproveitamos
para repousar deitados na cama debaixo do edredom e comendo um
brigadeiro de panela que fiz. Zaph de lado, e eu de barriga para cima. Acho
que ele nem mesmo percebe, mas acaricia de leve, com a ponta do dedo, a
região em volta do meu umbigo. Mantemos conversas agradáveis, assistimos
a vídeos engraçados e curiosos no celular. Até que eles são interrompidos
quando uma mensagem de Mel chega. Nela contém um endereço de website
que leva para uma reportagem sobre o “incidente” no cinema.
— Isso não vai te causar problemas?
Ele apenas dá de ombros, mas vejo pela mandíbula travada sua
consternação.
Nós limpamos o armário e a parede sujos de sangue. O que, na verdade, se
transformou numa bela faxina ao som da minha playlist que começa em Joel
Porter, faz uma curva em Rihanna na esquina com Flow, vira em Týr, passa
por Yuri Martins e chega em Falamansa.
Zaph saiu para onde quer que ele more e voltou alguns bons minutos depois
de roupa trocada e com materiais para transformar minha parede degradada
numa com formas geométricas em diferentes tons de vermelho. O que rendeu
boas risadas e implicâncias, admito.
Eu estava feliz em vê-lo bem outra vez. E eu acho que isso diferencia o
amor. Queremos ver a pessoa que amamos bem. Seja ela nossa amiga, nossa
esposa, nosso pai, nosso vizinho, nosso cachorro, papagaio ou periquito.
Minha mente ainda roda, agora menos embolada, sobre a linhagem
sanguínea que herdei do tio Drácula e tudo que a norteia.
— Zaph. Se eu me transformasse em uma vampira, eu me tornaria a Primus
dos Cinco Grandes, certo? Assim eu poderia proteger minha família e…
— Não, não poderia. — Zaph para com o carinho em minha barriga e giro
o pescoço para encará-lo. Sua cabeça descansa sobre um braço dobrado, o
que o faz ficar um pouco mais acima, e sua franja está bagunçada. — Você
seria poderosa, sim, eu nem sei dizer o quanto, mas não onipresente.
Respiro fundo, volto a olhar para frente e bloqueio o celular.
— Mas você deseja virar vampira? — Zaph enfatiza o “deseja”.
— Nem eu mesma sei, Zaph. — Pisco, olho para o teto, e sinto que ele
volta a passear com o dedo pela minha pele, por debaixo do edredom. Essa
intimidade me apazigua, mas também causa um rebuliço no coração e nas
partes baixas.
— Alice, você não vai querer ver o mundo em guerra, uns contra os outros,
sem razão, e as pessoas que ama morrendo por egoísmo, doenças ou
negligências de terceiros. De novo, de novo e de novo — Zaph fala, seu tom
carregado de raiva secular. — Além do eterno tédio, você nunca estaria
satisfeita, sempre com sede, estaria numa constante luta para não perder o
controle. Você teria de matar para viver. Matar gente inocente, muitas vezes.
— Não é possível que não haja vampiros vegetarianos. — Constrinjo os
lábios, mas sinto Zaph soltar uma risada rápida de desdém. Me viro para
ele, tentando me corrigir. — Quero dizer, tipo, só sugar sangue de animais
ou…
Zaph arqueia uma sobrancelha, ainda com um pequeno sorriso presunçoso.
— Você preferiria sugar o sangue de um animal? De um coelhinho fofinho?
— Não. — Ressalto o lábio inferior e volto a olhar para frente,
inconformada. Sinto a mão de Zaph pegar minhas bochechas entre os dedos e
virar meu rosto para ele. Sua face não está séria, porém, tampouco
sorridente. Há uma serenidade quase mortal nele.
— Não queira nunca ser uma vampira, Alice. E nunca me peça para lhe
transformar.
— Pursh quê? — pergunto, minhas bochechas comprimidas de leve pelos
dedos longos do vampiro romeno.
— Porque eu não o faria. — Dessa vez, sua voz transmite a inflexibilidade
que seu semblante não o faz. Vejo seus olhos se desviarem rapidamente para
a minha boca espremida e um sorriso brincalhão desponta no canto de seus
lábios. — E porque eu quero que você continue sendo essa adorável fată
ciudată por quem me apaixonei.
Não posso descrever o pulo que meu coração dá.
O olhar de Zaph me escrutina de cima, unido ao sorriso que salienta seu
rosto de extremidades marcadas numa forma tépida e que abrange cada canto
do meu coração. Pronto, aí está. Quer uma declaração mais óbvia que
essa? Do que mais você precisa para se entregar?
Seguro a mão dele e a afasto, me movimentando no colchão para ficar de
frente para o vampiro. Meus pés descalços roçam em sua canela por debaixo
do edredom e não consigo refrear o ímpeto de continuar esfregando-os em
sua perna para me aquecer. Ou só para tocá-lo.
— Por quê? Por que você me ama?
Talvez eu deva me abrir para ele, mas só de pensar em todos os demônios
que eu teria de enfrentar depois… Eu não conseguiria lidar com tudo isso de
novo. Não agora, pelo menos. Um passito de cada vezito. Um sorriso brinca
nos lábios de Zaph, sua expressão de puro deleite.
— Porque você é tudo o que eu nunca quis, mas tudo o que eu sempre
precisei.
Recuo um pouco meu rosto para encará-lo com o cenho franzido.
— Nossa Senhora, que coisa mais brega.

Quando chegou o dia do passeio escolar, pelo qual eu estava tão excitada,
o universo também decidiu que era hora de mandar os primeiros sinais da
maturação vampírica. Eu me senti um telescópio lunar quando, de repente,
me tornei capaz de enxergar os mínimos detalhes. Só tinha um “problema”.
— Todo sintoma tem um “efeito colateral”, vamos dizer assim — impôs
Melissa enquanto lanchávamos sentadas num banco do pátio externo e
arbóreo do palácio de veraneio de Dom Pedro II. Eu mastigava um joelho,
olhando-a atentamente do outro lado do banco, com Julia entre nós. — Na
mesma medida em que você absorve alguma coisa, você expõe alguma outra.
O efeito colateral de você enxergar super bem é a pigmentação em suas íris.
— Elas estão estranhas. Parecem manchadas — Julia pontuou depois de
comer um pedaço de seu sanduíche. — Em alguns pontos estão mais escuras,
tipo verde musgo.
— Relaxa, — Mel continua — dura só uma semana. Geralmente. Bem,
pelo menos é o que diz no Livro.
E esse foi o primeiro. O segundo que noto é minha audição aguçada. Eu
ouvia até mesmo as fofocas mais distantes. Porém, o efeito colateral é ter as
orelhas ardendo que nem o inferno. Pelo menos elas não ficaram gigantes.
Admiro os utensílios antigos em prata, bronze e ouro expostos na vitrine
translúcida e imaculada de uma das mil suntuosas salas em estilo rococó.
Minha ultra visão não poderia ter vindo em uma hora melhor. Eu estou
simplesmente apaixonada pelo palácio. Julia está ao meu lado direito,
conversando com uma guia de aparência elegante, que traja um terninho e
saia azul marinho. Era para ela estar escoltando o comboio de estudantes
com hormônios à flor da pele da nossa escola, mas como minha querida
amiga nada afoita monopolizou sua atenção, quem seguiu com o grupo foi o
outro guia.
— O modo como explicam está totalmente errado! — ela diz e eu tento
prender o riso, fingindo não prestar atenção. — Os indígenas que estavam
aqui não quiseram trocar o pau-brasil por espelhos, não dá pra generalizar
assim. O Brasil é enorme, em cada canto havia uma tribo diferente. Minha vó
vem de uma delas e as tradições passam para nós, sabe. Ela me contou que
nem todas as tribos quiseram fazer escambo, então…
Então eu vejo minha amiga ser jogada longe. É tão rápido que não dá
tempo de me surpreender. Ela bate numa parede logo abaixo de uma das
janelas guilhotina e cai sentada no chão, o rosto contorcido em dor.
— Ju! — Um segundo depois, a noradrenalina faz meu coração acelerar e
meu corpo se mov… Dedos longos e finos agarram meu pulso, me
impedindo de seguir até minha amiga, e olho para trás, estarrecida. A guia
loira me segura, seus orbes vermelhos vibrantes. Ah não, cara, até aqui?!
Ela abre a boca e mostra os caninos afiados. Fecho os olhos bem
apertados, encolhendo os ombros. Mas cambaleio ao sentir o aperto ao redor
dos meus pulsos soltar de maneira abrupta.
— Alice! — Separo as pálpebras e vejo Melissa imobilizando-a no chão,
um pé sobre a lateral do rosto contorcido em fúria bestial e as mãos
prendendo um de seus pulsos no alto. Seus olhos azuis e seu rosto denotam
uma autoridade que nunca vi antes. — Pega a Julia e saiam daqui!
Mesmo trêmula, eu corro até onde minha amiga está sentada, com os olhos
arregalados e as costas na parede.
— Vamos, Ju, levanta! — digo, meu coração martelando no peito e
ressoando nos meus ouvidos. Não quero deixar Melissa, mas se eu ficar em
seu caminho só vou atrapalhar.
Agarro a mão de Ju, ainda em choque, e a puxo para cima. Disparamos em
direção à porta dupla de madeira maciça, entretanto, antes de sairmos, eu
dou uma última verificada em Melissa e a vejo ser lançada contra o vidro da
vitrine numa chuva de estilhaços. Preciso ajudá-la… Então a vampira
metida a guia se vira para mim como uma fera raivosa e meu instinto me faz
correr.
Com as pantufas ridículas que nos obrigam a usar, deslizamos pelos
corredores de madeira lustrosa sem muito equilíbrio, nosso coração
rimbombando com força.
— Ei, mocinhas! Sem correr! — grita um guarda. Trombamos com os
visitantes, os guias e os seguranças, que ordenaram que parássemos. No
entanto, o terror de ter uma vampira sanguinária atrás de nós era maior do
que o de ser expulsa do museu.
Os corredores são longos e labirínticos demais, todos malditamente iguais.
Adoro arquitetura clássica, mas eu estou pouco me fodendo para o quão
ostensivo eles são nesse momento! Minhas pernas tiritam de fadiga, o
impulso de adrenalina diminuindo pela carência de nutrientes e ar.
Sou obrigada a parar numa trifurcação, ofegante. Ju ainda tem sua mão
colada à minha, então a encaro. Ela está tão esbaforida quanto eu. Olho para
trás, na esperança de ver Melissa nos acompanhando. Meu coração dá uma
cambalhota ao avistar a Modicus, uma classe intermediária, no entanto
provavelmente Strigoi, avançando em nossa direção com ira em seus olhos
escarlates. Merda!
Julia me tira do transe e da inércia quando me puxa.
— Por aqui!
Acho que eu teria preferido as orelhas gigantes. Viver uma perseguição é
muito menos divertido do que os filmes fazem parecer.
Subimos uma escada que estava interditada por uma corda dourada. Eu
arfo sem parar, sentindo dor na lateral do abdome. Ah, a falta de exercícios.
No meio da virada da escada…
— Ah! — grito quando sinto meu rabo de cavalo ser puxado para trás,
alfinetando meu crânio.
Por reflexo, solto a mão de Julia, que gira apavorada para me olhar,
enquanto as unhas afiadas da vampira agarram meus braços e me arrastam
para baixo com ela.
— Te peguei. — Sua voz rouca devido à fome se esfrega em minha pele e
faz lágrimas brotarem em minha vista.
O terror nos olhos arregalados de Julia me atinge, meus batimentos
cardíacos como sinos de catedrais, contando os segundos da minha morte
iminente. Estranhamente, o que mais temo é a tristeza que causarei a ela se
eu morrer na sua frente. Eis que sinto as mãos da mulher soltarem meus
ombros, o que me desequilibra e me faz rolar escada abaixo.
— Urgh! — gemo com os dentes trincados, toda dolorida da queda e
deitada de costas no chão. Minha cabeça lateja e roda, me deixando
desnorteada. Já morri? Não, ainda não, estou sentindo uma puta dor na…
Abro os olhos num rompante, preocupada em baixar a guarda, e me ergo nos
cotovelos, a costela ferroando. Logo à frente, pouco depois das minhas
pernas abertas, visualizo o corpo inerte da vampira no meio do carpete cor
de romã que cobre os degraus da escada e Melissa de pé ao lado. Ela ofega,
o peito desce e sobe, a boca e os dedos sujos de sangue. Julia também arfa,
segurando-se no corrimão. Nós três nos entreolhamos e ouvimos ao longe as
vozes exasperadas dos seguranças e professores se aproximando.

Por entre a fresta da gigantesca porta principal de madeira maciça da


igreja, posso enxergar Igor de smoking preto subindo os degraus do altar
enquanto murmura algo e tenta ajeitar o enfeite no paletó nervosamente. Rio
e me distancio.
Mesmo com uma fenda no lado direito, seguro o tule do longo vestido
cinza para não arrastar a parte da frente no chão. Há pequenos pontos
brilhantes salpicados pela saia godê que sobem como dezenas de
constelações se revelando por trás de uma nebulosa opaca e relâmpagos de
diamantes que se concentram em meu busto, onde um decote transparente
culmina quase no umbigo. Contorno a ala pelo corredor escuro, em direção a
uma das portas laterais da nave. Paro no arco de entrada próximo ao altar,
onde encontro Igor andando para lá e para cá. Um sorriso torto se estica em
meus lábios ao ouvi-lo recitar um trecho dos seus votos.
No dia do passeio, quando os professores e seguranças chegaram até onde
estávamos na escada, eu e Julia observamos em silêncio e imóveis Melissa
contar o que aconteceu depois de ter se limpado com a manga do casaco.
Mel não mentiu, mas também não contou toda verdade e eu não sabia se me
incomodava com isso ou não. Assistimos a ela explicar como a mulher de
repente nos atacou e, assim que viu que estávamos em perigo, usou seus
conhecimentos de artes marciais, até a “pobre coitada” da “guia”
“escorregar” “acidentalmente” da escada e “bater com a cabeça”. Claro que
fomos expulsas, então, enquanto eles chamavam a polícia e conferiam as
câmeras, passamos o tempo restante sentadas no banco do lado de fora, sob
um mutismo cortante e a vigilância dos guardas. Mil pensamentos confusos e
culposos apareciam na minha mente, principalmente ouvindo os cochichos,
ainda que distantes, da turma ao nosso redor, mas eles se enterneceram
quando senti Ju segurar minha mão direita e Mel a esquerda.
Assim que voltei à rotina eu finalmente fui a uma gráfica revelar as fotos
que havia tirado nos últimos dias. Quando entro no quarto, meus olhos vão
direto para as imagens penduradas por ímãs no quadro sobre a escrivaninha.
Cada vez que flagro minhas fotografias, um sorriso discreto se instala na
minha boca. As meninas na festa, no passeio — antes de entrarmos no
palácio, claro —, eu e minha família no churrasco de Dia das Mães, eu e
Zaph lanchando, Zaph dando dedo do meio...
Agora caminho devagar e paro no pé da escada do altar. Quando bato
palmas lentamente, Igor dá um pulo e torna-se para mim com espanto.
— Alice?
— Não, Marilyn Monroe. — Os olhos dele estão vidrados, as mãos
trêmulas. Nunca vi meu irmão tão nervoso. E vê-lo desse modo me deixa
instável também. Com um sorrisinho de canto, um pouco debochado, pego a
barra do vestido outra vez e começo a subir os degraus. Paro de frente para
meu irmão, agora me pareando em sua altura por conta do salto alto. Me
distraio arrumando os dados de vinte lados vermelhos pregados ao seu
paletó. — Sabe, você nunca levou jeito para se arrumar sozinho. Mas estou
impressionada que tenha conseguido fazer um nó de gravata.
— A mãe da Fernanda me ajudou.
— Eu já suspeitava. — Aliso o tecido em volta do enfeite criativo, então
levanto meus olhos para Igor, lutando para não os deixar marejados. A
aflição está estampada em seu rosto limpo e de barba feita, ainda que
também estampe felicidade se souber onde procurar. Quero dizer algo mais.
“Tem certeza do que está fazendo?”, “É isso mesmo que você quer?”, acho
que não soa muito encorajador. Dou-lhe um sorriso sem graça. — Vai dar
tudo certo. Você… você a ama?
Ele franze a testa.
— Óbvio.
— Então com certeza vai dar tudo certo. Só respira fundo. — Igor o faz e
eu o imito. — Estou tão orgulhosa de você.
Me lanço em sua direção, circundando seu pescoço. Fecho os olhos e o
aperto contra mim, sentindo-o retornar o abraço pela minha cintura.
— Você será muito feliz. Tenho certeza — digo.
Ou não. Uma voz inoportuna sussurra no meu ouvido, mas solto meu irmão
para sorrir-lhe uma última vez antes que ele repare que minha mente se
perdeu num moinho de pensamentos negativos. Tudo porque algo acionou a
lembrança da herança sanguínea do Drácula. Eu aponto com o dedão por
cima do meu ombro.
— Vou ver se precisam da minha ajuda. Qualquer coisa chama.
Igor meneia a cabeça e seguro a saia outra vez, descendo a escadaria o
mais rápido que meus saltos permitem. A porta principal ainda está fechada,
mas algumas pessoas já começam a entrar pelas laterais e se acomodam nos
bancos de madeira enfileirados. Toda a igreja cheira a eucalipto misturado a
cera derretida. A ornamentação é simples, e nem precisa de muita coisa
mesmo, pois a arquitetura barroca, os arabescos dourados e os afrescos
coloridos oferecem um visual suntuoso.
Passo pelo claustro longo velozmente, desviando dos convidados que
entram na nave central, doida para sair desse lugar que me transmite a
sensação de estar sendo vigiada. De volta ao nártex, onde há, no centro, a
imagem de Virgem Maria entre a porta principal e o pórtico, suspiro
aliviada. Há mais parentes e amigos agora, mas ainda sinto uma tensão
dentro de mim. Deve ser porque aquela voz me lembrou de que meu irmão
também é herdeiro do Drácula e que a filha dele – sim, ainda quero que seja
uma menina – será a última herdeira, ou seja, a futura Primus. Um arrepio
me percorre ao pensar no perigo em que minha sobrinha estará. Eu queria
conversar com Igor sobre isso, mas hoje é o casamento dele. Não há hora
pior para abordar um assunto desses.
E vou te contar, ô gente para arrumar festa rápido. Essa é a parte boa de ter
família grande. Quando necessário, tudo se ajeita num piscar de olhos. A de
Fernanda não é tão abrangente quanto a nossa, mas já é uma baita adição e
todos parecem eufóricos com a união. Para ser honesta, a mãe dela e a minha
são bem parecidas, e quando juntas, parecem melhores amigas. Hestia me
ajude. Bem, ao menos agora ela tem alguém com quem reclamar dos maus
hábitos dos filhos.
O céu em seus tons fortes de ametista e laranja, oferece um vento
temperado e aprazível que diz o quanto a temperatura está para abaixar. E,
ironicamente, abaixo dele, uma movimentação me chama a atenção.
Um grupo feminino está reunido em volta da porta aberta da limusine,
estacionada rente à calçada, além da escadaria. Reconheço os vestidos
lilases das madrinhas. À medida que desço os degraus, ouço as mulheres
murmurando encorajamentos, todas dengosas, o que me faz querer vomitar.
Vejo a maquiadora um pouco desesperada enquanto dá à noiva lenços para
assoar o nariz e enxugar as lágrimas. Fernanda está sentada na beira do
banco, afundada em seu vestido branco, com minha mãe, a mãe dela, e outras
mulheres ao seu redor. Seus cabelos loiros presos no alto por uma tiara de
folhas ainda contêm mechas coloridas em roxo e azul como eu me lembrava.
— Está tudo bem? — pergunto, hesitante.
— PARECE TUDO BEM?! — Algumas das mulheres gritam em uníssono,
virando-se raivosas para mim. Fernanda limpa o nariz vermelho e joga o
lenço longe, fazendo uma das madrinhas correr para buscá-lo. Cada um com
as suas superstições. Logo a noiva funga e estica os braços na minha
direção.
— Alice, olhe pra você! Está tão linda, um anjo, um anjo! Vem cá. — Dou
um passo e... Jesus, amado! Fernanda me aperta contra si, me obrigando a
me entortar para dentro do carro.
— Você está linda, Fê — digo com voz de velha em estado terminal graças
ao abraço esmagador de ossos.
— Eu seeei! — E ela desaba a chorar. O que eu fiz?! Eu só a elogiei!
— Fê, Fê… escuta, Fê — chamo-a, batendo em suas costas, porque já
estou perdendo o ar.
Glória a todos os santos misericordiosos, ela me soltou! Ah, como é bom
respirar novamente. Seguro suas mãos e sorrio, tentando arranjar alguma
coisa para dizer.
— Fernanda, querida, eu sei que você já deve ter ouvido milhares de vezes
isso de todas as madrinhas: está tudo bem. Está tudo perfeito. — Ela preme
minhas mãos e dá uma fungada profunda. Seus olhos castanhos me fuzilando
como se vissem em mim a luz no fim do túnel. — Quando você vir aquela
porta ali abrindo e o interior da igreja, vai ser como se estivesse entrando no
seu mundinho de fantasia pessoal. Uma mistura de País das Maravilhas com
Terra do Nunca.
Citei porque sei que ela gosta. E, para minha surpresa, ela solta uma
risada.
— Você vai notar que esse seu desespero de agora é tão desnecessário
quanto o lado azul da borracha. — Ela ri novamente, e dessa vez ouço
algumas das mulheres atrás de mim rirem com ela. — Porque… você o ama?
— Mais que tudo.
— Então vai dar tudo certo. Porque eu acabei de fazer a mesma pergunta
pra ele e ele respondeu a mesma coisa. — Repasso a cena na minha cabeça e
faço uma careta. — Apenas um pouco mais rude.
— Ah, Alice! — PAI DO CÉU! Lá vem ela com outro abraço de urso. Sou
puxada e esmagada em seus braços de novo. — Você é um anjo, não disse?
— Então Fernanda me afasta e se levanta num pulo, dando, ao que parece,
uma última fungada — Certo, garotas! Está na hora do show!
Retorno para frente, deixando que as madrinhas façam sua mágica, e
suspendo um pouco do tule para subir as escadas da igreja. Malditos saltos,
eu deveria ter vindo de tênis, foda-se a altura.
— Precisa de ajuda?
Olho para cima e lá está ele. Parado de costas para a imensa porta de
madeira, Zaph me observa com os lábios repuxados para cima em um dos
lados, os olhos reluzindo e as mãos escondidas no bolso da calça social,
parecendo o sonho de consumo de – quase – toda mulher e homem. O tecido
grafite do paletó se ajusta aos seus contornos perfeitamente e parece que,
pela primeira vez na vida, o vampiro ao menos tentou pentear o cabelo.
Espera, eles estão mais curtos?
Meu coração perde quinhentas mil batidas ao vê-lo ali. Zaph viajou há
pouco mais de duas semanas, mas voltou bem a tempo. Não que ele tenha
sido convidado.
Um degrau de cada vez, subo a escada com um sorriso tímido, sem desviar
os olhos dele.
— Talvez — respondo e Zaph retira a mão do bolso e a estende para mim.
— Esse vestido…
— Te deixou linda. — Ai. Meu. Rá. Me espanto ao ver suas bochechas
corarem gradativamente. Eu aceito sua mão, encaixando nossas palmas, e
ouço minha pulsação ressoar nos meus ouvidos. — Quer dizer, você é linda.
Digo, todos os dias. Às vezes, só que sempre. Mas é que nesse vestido você
ficou — ele limpa a garganta e eu prendo um riso — deslumbrante.
Minha Santa do Roda a Roda Jequiti, isso foi o Zaph sem graça? Alguém
me belisca.
— Obrigada. — A saudade não bate, ela espanca meu peito. Com um
tijolo. Então, logo que eu atinjo o topo da escada, jogo meus braços ao redor
de seu pescoço e Zaph retribui de imediato, me apertando contra si. Seu
perfume de florestas chuvosas, seu tronco colado ao meu, o toque seguro de
suas mãos, a firmeza de seus braços me envolvendo... tudo preenche meus
sentidos e eu degusto cada um. Me afasto aos poucos, voltando a pôr o salto
no chão. — Como foi a viagem?
Zaph dá ombros.
— Como sempre. Demorei um pouco mais porque tive que colocar uns
subordinados na linha. — Estreito meu olhar.
— Com o que você trabalha mesmo? — Um indício de sorriso brota em
seu rosto.
— Me perdoe, dragostea mea, mas se eu contasse teria que te matar.
— Você ainda é da máfia? — sussurro, me inclinando para fingir segredo.
— Não. — Zaph espelha meu gesto, cercando o espaço entre nós. —
Renunciei meu posto há muito tempo.
Meu ânimo decresce e uma certa irritação começa a borbulhar no meu
estômago ao relembrar do momento em que minha mãe contou como
conheceu Zaph.
— Você vendeu o sangue dos meus avós para a máfia? — indago. Ele
meneia a cabeça para um lado e para o outro, paliativo.
— Quando os encontrei, eu já não fazia mais parte.
— Por que você saiu? — me vejo perguntando, do mesmo modo que mexo
nas lapelas de seu paletó, quase inconsciente e impulsivamente. Zaph apenas
sacode os ombros.
— Enjoei. — O vampiro brinca com um feixe de cabelo meu entre dois
dedos. — Cansei de obedecer a alguém que eu nem sequer conhecia
pessoalmente.
— Alice, já vai começar! — uma das madrinhas me chama, saindo do
corredor e indo em direção à noiva, que espera no final da escadaria.
— JÁ VOU! — Iço o queixo para mirá-lo, hipnotizada pelas luzes citrinas
dançando em sua face. — Era o Secundus? O Adam?
— Não, eu e o Adam nos esbarramos algumas vezes. — A expressão que
Zaph reproduz lembra um husky siberiano entediado. — Nos encontramos o
suficiente para eu saber que com certeza ele se gabaria por ser o chefe. Cap
de pula ofilit. — Ele me puxa pela mão até que eu fique bem embaixo do seu
nariz. Meu coração palpita vigorosamente dentro do meu peito. Seu rosto
cobre o meu, me escondendo em sua sombra, e sua fragrância doce e fresca
de banho recém tomado me entorpece. — Senti saudade.
Mordo o lábio e logo o libero, levantando o queixo para encostar o meu
nariz no de Zaph.
— Também senti.
— Alice! Vamos! — A voz estridente da madrinha alcança meus ouvidos
mais uma vez.
— Melhor eu ir antes que elas tenham um ataque. — Entrelaço nossos
dedos, acariciando as veias de seu dorso com o dedão.
— Você quis dizer outro ataque.
O sorriso que penetra em minha boca, tão perto da dele, estremece ao tato
repentino da mão livre de Zaph aventurando-se pelas madeixas da minha
nuca. Roçamos as pontas dos narizes, mantendo o controle equilibrado em
um barbante fino.
— Você vai se sair bem — declara ele, seu timbre arrepiando minhas
bochechas. — Mas se ficar nervosa, olhe para mim, só para mim.
— ALICE!
Suspiro e fechos os olhos para receber um beijo suave na ponta do nariz.
Escorrego das mãos de Zaph devagar, caminhando para longe sem quebrar o
contato visual.
E é nesse momento que tomo minha decisão.
O
lha, ainda bem que não fiquei menstruada. Com esse vestido, fazer
xixi e trocar o absorvente na cabine minúscula do banheiro seria uma
prova do Big Brother. E com certeza eu seria a líder.
Necessidades fisiológicas feitas, suspiro aliviada e ando tranquilamente
em direção ao bar côncavo do outro lado do recinto. É lá que avisto o meu
vampiro, debruçado sobre a bancada de vidro e madeira repleta de garrafas
de bebidas destiladas, frutas e taças. Ele gira um copo pequeno com um
líquido amarelado na mão e conversa com o bartender.
A calça social faz com que sua bunda seja digna de prêmios, e a blusa
dobrada até os cotovelos deixa à mostra os antebraços, que me dão vontade
de morder. Zaph endireita a postura e passa a mão na nuca, como se tivesse
sentido meu chupão mental. Eros do céu, o que esse garoto faz comigo?
Acorda, Alice, acorda! Balanço a cabeça e volto a atravessar o piso polido
da pista de dança onde eu requebrei junto a Fernanda e companhia até
transbordar suor alguns minutos atrás. Zaph termina de beber o que quer que
esteja no copo numa golada só e o deposita sobre o balcão.
Glória a Amaterasu, não foi uma cerimônia longa. Chegamos ao restaurante
onde seria a festa um pouco tarde, em virtude do trânsito, e os convidados já
estão devidamente acomodados em suas mesas retangulares revestidas por
toalhas cor champagne e arranjos florais que mais parecem árvores. O que
acho que nem precisava, porque somente a arquitetura neoclássica do
palacete é um adorno em si. Há uma música ambiente, uma mistura de blues,
jazz e rock que percorre o corredor toldado após os portões de ferro fundido
e que margeia o jardim iluminado por lâmpadas coloniais penduradas à
meia-luz, o hall de entrada ostensivo com sua escadaria semicircular e
bifurcada em mármore claro coberto por um carpete vermelho realgar, o
lustre no centro e as esculturas ao lado das demais portas de madeira grossa
talhada. Alguns petiscos são servidos por garçons habilidosos e meu
estômago não ronca, ele ruge. Eu não consegui colocar nada na boca, mas
agora pretendo me empanturrar de coxinha, camarão empanado e chocolate.
Zaph fala mais alguma coisa com o homem atrás do bar, que não deve ser
muito mais velho que ele – pelo menos na aparência –, ao passo que me
aproximo cada vez mais. Ou será que ele é um vampiro também e ambos
estão trocando uma ideia? Não, Zaph o teria matado. Mas ele pode ser
outra criatura. Algo se ilumina em minha mente. E se ele for um E.T?
Mordo o lábio, repreendendo um sorriso, e me avizinho por trás o mais de
mansinho que meus saltos e vestido esvoaçante permitem. 1, 2... — levanto a
mão e conduzo meu braço para trás, preparada para tascar um belo tapa
naquela bunda empinada — 3!
Zaph vira-se de rompante e contorna seus dedos no meu pulso fino. Eu
permaneço estática, observando-o de baixo, os olhos embasbacados. As
extremidades de seus lábios se repuxam para cima devagar.
— Que feio, fată ciudată.
— Isso é muito injusto. — Seu sorriso se amplia de forma que o faz
lembrar uma pantera sedenta.
Zaph me traz para perto e minha atenção crava-se no desenho de sua boca.
— Não faça isso — ele sugere, prevendo minhas intenções. Não que eu
esteja fazendo muita questão de escondê-las.
— Por que não? — Retorno meu foco para seus olhos, sentindo os dedos
ao redor do meu pulso deslizarem de maneira suave para a palma da minha
mão. Fico na ponta do pé, mesmo de salto para tentar fechar ainda mais a
distância entre nossos rostos.
— Porque não sei se vou ser capaz de me conter.
— Então é melhor eu ocupar minha boca com outra coisa. — murmuro.
— Alice... — Zaph grunhe.
Prendo um riso ao mordiscar o lábio inferior mais uma vez. Quem foi o
gênio que inventou o batom lip tint? Pego em sua mão e o puxo comigo em
direção à magnífica cascata de três andares que jorra chocolate sem cessar.
Que visão paradisíaca, meu Bathala.
— Na verdade, estou até surpresa por você não ter me puxado pelo braço e
me roubado um beijo ainda — comento ao pararmos no fim da pequena fila.
— Se eu soubesse que você queria isso, eu teria feito há muito tempo. Eu
não quis te assustar. — Seus dedos sobem e se apertam ao redor da munheca
de minha mão esquerda, forte o bastante apenas para me forçar a dar-lhe as
costas. Sua mão livre agora passeia pela minha barriga, deambulando
perigosamente até a base dos meus seios. Zaph pressiona seu membro
semiereto na minha espinha, e eu prendo a respiração. Shiva amado, ele
parece ser tão grande. Meus peitos pesam e o meio das minhas pernas
pulsa, rogando para sentir os dedos de Zaph brincando lá dentro. — Porque
quando eu te beijar, Alice, eu não vou parar.
É oficial. Eu preciso sentir os lábios dele nos meus.
— Ah. — Ele se inclina levemente para o meu lado, olhando para a fonte
que despeja um líquido delicioso, viscoso, açucarado e marrom produzido
pelos deuses. — Eles só servem morangos, bananas, uvas, marshmallows e
maçã. O que eu queria mesmo eles não têm.
— O quê? — Olho para seu perfil, então Zaph desvia sua atenção para
mim com um sorrisinho.
— Você. Nua. — Seu hálito aquece minha orelha direita. — Coberta de
chocolate, deitada sobre uma mesa — seu ciciar grave se alastra por
debaixo dos meus poros, sinto-o na minha lombar e meu ventre se revira com
sua proximidade. Ele desliza os dedos pela parte interna dos meus
antebraços. — com as mãos e os pés presos — arquejo quando Zaph
envolve ambos os meus pulsos com firmeza — ao meu bel prazer.
— Então você curte BDSM? — indago num murmúrio, um sorriso
brincando em meus lábios conforme torço o pescoço para o lado.
Zaph pressiona mais meus pulsos, me puxando e colando mais meu lombo
e costas em seu abdômen de um jeito nada sutil. Ele roça os lábios na minha
orelha sem pressa, e tento não gemer.
— Menos a parte do sadismo e do masoquismo. De resto... — Zaph
mordisca a parte superior da minha orelha e meu corpo inteiro se incendeia.
Entorto minha cabeça para trás, encostando-a no peito de Zaph, e vejo seu
rosto de ponta-cabeça. Um leve nuance de amarelo dança em suas íris, como
em hutchinsonitas.
Porém, entretanto e todavia, antes que eu pudesse proferir qualquer coisa,
a moça que serve o chocolate chama pelo próximo da fila, cujo é a minha
pessoa.
Volto a cabeça para frente, só então dando conta do quão forte meu coração
bate, por mais estranhamente calma que eu esteja.
— Morango e banana, por favor — peço a ela e encaro a cascata como se
eu pudesse ver ali as respostas para os mistérios da vida.
Embora o pensamento de que algum vampiro — além do romeno que veio
de penetra — possa tentar se aproveitar desse aglomerado de descendentes
do Drácula não saia da minha cabeça.
Acho que em algum momento entre o Dia das Mães e o funeral de Luiza
minha família decidiu que preferiam morrer todos juntos a ficarmos
separados e assistirmos a um por um partir sem poder fazer nada pelo outro.
Talvez tenham cansado de se esconder.
— Ele era uma Criatura da Noite? — Zaph franze o cenho enquanto recebo
o espeto de frutas banhadas em chocolate morno e agradeço à mulher. Passo
a língua pelos lábios.
— Quem? O cara do bar? Não, ele é só um cara com quem eu estava
comentando sobre a qualidade do uísque.
— Ah, poxa. — Faço um bico, caminhando sem rumo certo, pouco antes de
retirar com os dentes um dos morangos do palito. Ah, minha amada Mut,
que delícia.
— Você queria que ele fosse uma criatura? — Hasteio o olhar para Zaph
me flanqueando, que arqueia uma sobrancelha ao passo que mastigo.
— Se ele fosse do bem, sim. Ia ser legal conversar com outro ser
“sobrenatural” — gesticulo as aspas com os dedos — que não quisesse me
matar, pra variar.
Retiro uma rodela de banana achocolatada e libero um gemido ao tê-la na
boca, fechando os olhos ao permitir que meus pés me guiassem. Quando
reabro as pálpebras percebo estarmos no corredor da frente, coberto por
uma lona branca em formato de canhão que leva até o portão de ferro
entreaberto. A música se torna abafada e mescla-se com os sons das buzinas
ao longe, ruídos de rodas cortando o asfalto em alta velocidade além do
jardim repleno de arbustos vistosos e meticulosamente podados. Atrás das
grades moldadas em singelos arabescos que o limitam, pode-se ver o parque
arbóreo e suas vias movimentadas que antecedem a praia do Flamengo. O ar
frio noturno é muito bem-vindo aos meus pulmões. As estrelas que reluzem
ora como crisocolas ora como escolecitas nas profundezas de uma gruta,
chamam minha atenção. Caminho para o jardim a fim de enxergar melhor a
cúpula negra pontilhada que resguarda todas essas pobres almas.
Bianca com sua língua afiada e mente astuta odiaria ver o céu daqui. Ela
diria que tem luzes artificiais demais e elas ofuscam as verdadeiras. Um
sorriso ameaça a aparecer à medida que mastigo.
— Tudo bem? — Ouço Zaph perguntar, sentado no banco às minhas costas,
os cotovelos apoiados nos joelhos. Engulo o morango para respondê-lo.
— Tudo. Só estava lembrando de uma coisa. — Sento-me ao seu lado no
modesto banco de aço pintado de branco. Logo acima fica uma das janelas
decoradas com cornijas e colunas que remontam os templos romanos. Ou
gregos. Sei lá. A claridade amarelada por trás das cortinas e a melodia
embalada aos risos oriundos lá de dentro parecem pertencer a outra
realidade
— Hum — É tudo o que ele pronuncia. Olho o Tertius de canto,
desfrutando dos meus últimos morangos. Ele também admira as estradas
submersas na noite delimitadas por faixas de verde ante à praia.
— Não vai me perguntar o que é? — questiono de boca cheia.
— Não. — Zaph guina e usa seu ombro para empurrar o meu. — Mas se
quiser falar... — Um sorriso um tanto quanto cabisbaixo curva-se em um dos
lados da minha boca. Abaixo o palito vazio para o meu colo forrado com o
tule do vestido junto ao meu olhar. Prendo-me às pequenas pedras e ao
glitter que adereçam o tecido e lucilam de acordo com a incidência da luz.
— Bianca. Uma antiga colega. Ela... — Minha mente busca memórias de
seus sorrisos para manter o tom leve na voz, até que uma recordação enfim
se mantém no lugar, nítida.
Eu estava sentada ouvindo as primeiras músicas que Carol selecionara pra
mim no fone de ouvido, olhando para a janela enquanto sentada com as
pernas dobradas no sofá, quando ela brotou ao meu lado perguntando se eu
podia dividir o fone com ela. Foi a primeira vez que nos falamos e tudo que
eu conseguia perceber era o quanto aquela garota irradiava vida. Estava em
todo lugar, nas linhas sinuosas de seus lábios cheios, nas oleosidade da pele
negra, em cada curva de seus cachos volumosos presos com um arco rosa, na
forma como ela me encarava irredutível.
— Ela foi uma inspiração. — continuo. — Acho que ela era o que eu tinha
de mais próximo de um espelho, um exemplo. Eu a admirava em todos os
aspectos. Mas eu não queria ser ela, eu só queria ser como ela. — Imagens
de seus olhos penosos, castanhos tão opacos que mais pareciam carvão,
acometem. Meus ombros mirram, meu sorriso atenua aos poucos junto às
cores. — Como você agiria, Zaph... se visse a pessoa que mais admira
sofrendo tanto e não pudesse fazer nada?
— Eu não sei. — Seu timbre baixo soou ainda mais tumular aos meus
ouvidos.
De certo modo, eu temia por essa resposta.
— O que eu sei — introduz ele — é que você está toda suja de chocolate.
Pisco algumas vezes, os sons retornando a adentrar nos meus tímpanos e as
luzes deixando de serem foscas quando toco na área ao redor da minha boca
e apalpo algo melado.
Abro bem os olhos quando, de súbito, o vampiro pega minhas bochechas
em seus dedos, mas não as aperta, apenas traz ela para mais próxi... Aaargh!
Que nojo! Zaph passou a língua pela minha maçã do rosto!
— E deliciosa — ele diz em tom cavernoso. Seu hálito morno contra o frio
da noite e o molhado de sua lambida me arrepiam a pele.
Ou não deveriam existir seres com uma voz tão rouca assim ou deveria ser
crime esse tipo de gente sussurrar ao pé do ouvido.
— Urgh! Filho da...
Não sou capaz de terminar, pois meus lábios são selados pelos de Zaph.
Não, eu não estou sonhando.
Não é um beijo avassalador, é… Bem, depende do ponto de vista. É tão
terno, tão carinhoso, e a sensação de cada lábio seu encostado nos meus é
tão aconchegante, que chega a ser avassalador.
Mal tenho tempo de atar os cílios e, no momento em que Zaph decide se
afastar, o vampiro prolonga o toque de nossas bocas. Elas se desgrudam num
estalo baixo e demorado.
Ele se afasta o suficiente para perpassar seus dedos de minhas bochechas
ao meu queixo e encostar sua testa na minha, promovendo uma sombra em
meu rosto.
— Alice... — Seu tom rouco provoca um arrepio interno no meu ventre e
eu não o deixo terminar. Dessa vez, sou eu quem uno nossos lábios. Talvez
eu esteja ficando maluca, mas agora, sinceramente, não me importo nem um
pouco.
Sinto seu gosto tão distinto junto ao do chocolate e aproveito cada parte de
seus lábios desenhados e carnudos. Meu Santo Capricorniano, é tão melhor
do que um sonho! Eu toco seu rosto de forma suave, com medo de que ele
tenha uma reação indesejada. Mas Zaph corresponde ao beijo, pressionando
mais minha boca na sua. Ele pega minha cintura, me colocando em seu colo
com as pernas para o lado, o que desperta um certo aperto em minha
intimidade. Abrimos os lábios, permitindo que cada um explore um pouco
mais o gosto do outro.
Uma explosão acontece. No momento em que nossas línguas se tocam, é
como se eu pudesse saborear o universo.
Eu seguro firme seu maxilar agora, sentindo os pelos raspados da barba
friccionarem nas palmas das minhas mãos. Nossas línguas se entrelaçam e
dançam famintas. Céus, até a saliva dele tem um gosto bom! É uma mistura
de menta, framboesa e alguma coisa mais forte que se soma à textura sedosa.
Inspiro fundo, almejando mais fôlego para prolongar o beijo, me inclinando
mais em sua direção. Zaph faz o mesmo, pressionando ainda mais suas mãos
na minha cintura e me beijando incisivamente. Mordo seu lábio inferior, sem
ser capaz de guardar a vontade, e Zaph vê a oportunidade perfeita para sugar
o meu. O membro de Zaph enrijece sob minha bunda e eu não consigo
reprimir um gemido. Para minha infelicidade, o ar me carece e preciso
apartar nossos lábios.
— Glória a Deus nada atrapalhou dessa vez — ele diz. Eu deixo uma
risada sincera sair e logo Zaph compartilha do meu riso. Mas não dura
muito. Tenho pouco tempo de retomar o fôlego antes de sua boca estar na
minha outra vez.
Sinto as madeixas repicadas resvalarem em meus dedos conforme consumo
sua língua e seus lábios. As mãos de Zaph desvendam os contornos das
minhas costas expostas pelo decote do vestido, sensível à sua temperatura
oscilante, aos calos sutis e à brisa fria. Elas me mantém no lugar. Bamboleio
em seu colo em busca de uma posição mais confortável para imergir ainda
mais em seu toque, seu perfume, seu corpo, nele.
Uso da fração de segundo em que nossas bocas se descolaram para pegar
fôlego, ao passo que Zaph me manuseia de forma a me inclinar para trás,
cobrindo-me parcialmente. Seus lábios não saem dos meus, eles mordiscam
e puxam os meus entre os caninos proeminentes, mas uma de suas mãos
abandona meu quadril e de repente a sinto por dentro do meu vestido,
palmilhando o interno da minha coxa. Minha boceta se contrai em
expectativa. Quero pedir a ele para esperar, mas deixo um ganido escapar
quando o Tertius utiliza o dedão para pressionar meu clitóris por cima da
calcinha. Posso sentir o melado grudando no tecido.
— Você já está molhada — Zaph rumoreja perto da minha boca. — Sua
calcinha está ensopada.
Arquejo, dominando sua língua e lábios inchados mais uma vez, agarrando
seu cabelo o máximo que posso enquanto seus dedos esfregam o meio das
minhas pernas em círculos delongados e seu braço cinge minha cintura com
firmeza. Minha mente enevo...
— Alice, Zaph? — Aparto as pálpebras num rompante. A voz da minha
mãe, vinda de longe, me atinge como um raio. Ai minha Chang’e!
Empurro os ombros de Zaph, desgrudando nossos lábios abruptam...
Merda! Me embolo na saia do vestido na hora de me reerguer e acabo
despencando no chão. Em segundos me coloco de pé. Fixo o olhar no
corredor, ofegante e hirta.
— Aí estão vocês! — Minha mãe aparece na quina da parede do jardim
com a porta de entrada do salão, olhando para os lados até que nos avista e
vem em nossa direção segurando a barra do vestido azul calcantita de cetim.
Zaph resmunga algo em romeno, a cabeça baixa quase escondendo o
sorriso ferino em sua boca borrada de batom rosê. Ele tenta limpá-la com o
dedão, mas a mancha não sai. Retiro o que disse sobre o lip tint.
— Vamos, Fernanda vai jogar o buquê! — Heloise diz afobada ao parar na
minha frente. Como falar pra ela que estou pouco me cagando pro buquê?
Ouço o vampiro respirar fundo e se colocar de pé, logo à minhas costas.
Meu coração ribombante é a única coisa que se mexe em mim. Os olhos de
minha mãe carregados de maquiagem inusuais dardejam de mim para Zaph e
de volta de Zaph para mim. O momento da mudança é claro. Primeiro o
sorriso disfarçado míngua, em segundo suas pálpebras se afastam, no
terceiro ela as fecha e no quarto resfolega.
— Mãe...
Ela iça uma mão.
— Não, eu não preciso de detalhes. — E reabre as pestanas, mirando
Zaph. — Então você contou a ela.
Não era bem o que eu esperava, assim, comprimo a fronte.
— Me contou o quê? — Hasteio o queixo para visualizar o semblante de
Zaph, e me deparo com sua mandíbula trancada, os olhos ainda fixos em
minha mãe. O vampiro também inspira e solta o ar pelas narinas.
— Não. Eu ainda não contei.
Os supercílios de minha mãe se levantam.
— Oh — ela diz e caímos em uma quietude somente cortada pelo som da
música proveniente do restaurante e da rua à frente. — Acho melhor deixar
vocês conversarem um minuto, então. Um minuto.
Minha mãe retrocede, voltando para o arco de entrada do jardim, até que
se vira e some na quina da porta. Eu movo meus saltos para encarar o
vampiro atrás de mim.
— Zaph?
Ele suspira de olhos fechados, ombros relaxados, logo seus orbes me
tomam como foco.
— Lembra quando eu falei que conversei com os seus pais e fiz a
Promessa? — Ele abre a boca, sem realmente pronunciar nada, procurando
as palavras ao passo que me perscruta com suas íris de piritas. — Eu contei
a eles sobre o Nödi. E você se lembra do que falei sobre ele, não é?
— Que é uma ligação entre... — Meus olhos arreganham-se e meu
batimento cardíaco se perde por um milésimo — Isso quer dizer que.... nós...
eu e você... — Zaph aquiesce, reprimindo um sorriso suave. Dou um passo à
frente, sem saber se sinto raiva ou alegria. — Por que não me disse antes?
Foi por isso que não me matou?
— Só porque o Nödi nos ligou não quer dizer que você não possa recusar.
— E-e por que eu não sinto? — Abaixo minha cabeça e toco no meu corpo
como se eu tivesse perdido a carteira. — Quer dizer, eu acho que não sinto.
— O Livro das Maldições diz que o Nödi é energia etérea em seu estado
mais puro e bruto, somente aqueles com mais afinidade ou hipersensíveis à
magia são capazes de senti-lo. — Reergo o fitar para Zaph, escutando seu
tom um tanto quanto soturno. — Os vampiros são uma das poucas criaturas
que o sentem tão intensamente pelo modo como foram criados. Talvez você
sinta, mas de uma forma diferente.
Eu não tenho palavras. O “um minuto” da minha mãe já passou, mas tudo o
que consigo fazer é estudar as feições suaves e sombrias de Zaph.
Do mesmo jeito que ele fizera comigo, não dou tempo para que reaja e
arremesso meus braços em volta de seu pescoço, puxando-o para baixo.
Não sei afirmar qual dos dois une nossos lábios primeiro. Eu o trago para
mais perto de mim, grudando meus seios em seu tronco flexionado.
O vento fresco da noite de inverno atinge minha pele, o que só me faz
querer me embrenhar ainda mais nos braços de Zaph e me manter aquecida.
Sinto sua mão passar para uma banda da minha bunda ao mesmo tempo em
que ele emite um gemido que mexe com todos os meus nervos. Eu quero
tocá-lo de todas as maneiras e nada parece ser o suficiente.
Descolo nossas bocas para recuperar o fôlego.
— Preciso ir — digo, os olhos semicerrados por meu rosto ainda estar a
milímetros do dele, nossos narizes roçando gentilmente. Eu me agarro a Zaph
como se eu pudesse afundar.
— Eu sei. — Zaph toma minha boca mais uma vez e eu sorrio.
Eu afasto nossas bocas, buscando ar novamente.
— Você precisa me soltar para isso.
— Eu sei. — Ele captura meus lábios novamente e meu sorriso aumenta.
Aprofundamos o beijo de forma rápida e lasciva. Argh! Como eu quero
enfiar a mão por debaixo da blusa dele e tatear esses gomos. Dessa vez, é
Zaph quem desgruda nossos lábios inchados. — Então agora estamos juntos?
— Como assim juntos? — indago.
— Juntos-juntos.
Meu sorriso se alarga e despejo mais um beijo em seus lábios macios. Um
passo de cada vez.
— Vamos devagar, ok? — proponho, acariciando um pouco abaixo de suas
escápulas largas.
— Como assim devagar? — Ele beija minha boca mais uma vez, mas
dessa vez eu rio com os nossos lábios colados, mais inquieta do que eu
expresso realmente.
Essa é a hora de mostrar ao menos um pouco da garota que ele não
enxerga, a que vive embaixo dessa pele. Eu o encaro, taciturna, e Zaph
retribui o olhar, atento.
— Também tenho uma coisa que preciso te contar. Não por você, mas por
mim. Eu não vou conseguir seguir em frente com você sem tirar esse peso de
mim. Só que... — Respiro fundo, pesando no que falar. Analiso os detalhes
de seu rosto angular e solto o ar pela boca. — Eu não consigo fazer isso
agora. No momento em que eu puser em palavras, será como se eu revivesse
tudo outra vez e... — nego com a cabeça de forma sutil — não estou
preparada pra isso ainda. Desculpe.
Como explicar que a garota sorridente que ele vê é só a ponta de um
iceberg de dor?
–J
á usou um teto solar? — lança Zaph.
— O que? — Minha voz treme na repressão de uma risada. O
painel de vidro na cobertura arqueada do carro emite um ruído ao
deslizar para trás e permite que um vento turbulento e frio entre.
— Vou aceitar isso como um não. Aproveite.
Mantenho os olhos na direção de Zaph, encaixado no banco do motorista, e
o vampiro perpetua com o foco na estrada, embora haja um sorriso diminuto
ali.
Há uns dias, minha mãe anunciou que havia feito reservas para uma
pousada em Visconde de Mauá, porque “precisava urgentemente de um lugar
calmo e ar puro”. O que ela não tinha planejado, no entanto, era a ida do
vampiro romeno. Ela e Zaph discutiram quando ele declarou que nos
acompanharia e ela o “proibiu de ir”, alegando que não o queria presente nas
férias dela. Eu fiquei apenas olhando de um para o outro enquanto levava um
garfo cheio de gordura hidrogenada e açúcar em forma de torta à boca.
Eu me inclinei na direção do meu pai, sentado no sofá ao meu lado, sem
desviar o foco de Zaph e Heloise à nossa frente:
— Quer apostar que ela vai pegar a vassoura pra bater nele?
— Apostado.
Minha mãe pegou a vassoura e eu ganhei dez reais.
Eis que, no dia da viagem, eu e meus pais estávamos ajeitando as coisas
dentro do carro para partir, um SUV prata da Audi estacionou atrás do nosso
Ford preto paralelo à calçada. Quem eu vi atrás do volante? Isso mesmo.
Minha mãe faltou soltar fumaça pelas narinas quando viu que, mesmo
depois da discussão, Zaph não desistiria da ideia. Ela bufou e jogou os
braços para alto, retornando para a varanda a fim de fechar a casa.
— Desde quando você tem um carro? — perguntei, debruçada na janela ao
seu lado.
— Desde quando eles foram fabricados?
Analisei a pintura reluzente, mas escura, do automóvel.
— Achei que teria um esportivo.
— Eu tenho. Alguns. Em alguns lugares. — Enquanto eu tenho que vender
minha alma para comprar uma calça jeans que não rasgue nas coxas depois
de três segundos, o garoto tem um veículo zero-quilômetro a cada dois
passos.
— E nunca foi me buscar na escola de carro por quê?
Ele sacodiu os ombros.
— Já que não durmo, prefiro fazer tudo andando.
Passar horas ou dias andando? Não, obrigada.
— Posso ir com você? — Mordi o lábio inferior entre um sorriso, mesmo
fazendo ideia da resposta.
— Deve.
— Posso colocar minhas músicas?
— Se tocar High School Musical eu juro que te abandono no meio da
estrada.
E foi desse jeito que vim parar nessa situação.
— Co-omo... — Procuro um meio de me apoiar e ficar de pé. Espera, nem
tirei o cinto ainda. Ai minha Gaia, e se eu cair? — Me segura? — indago,
os dedos apertando a borda retangular metálica acima da minha cabeça.
Enxergo Zaph abrir um sorriso, ainda mirando a diante, mas estende um
braço para envolver minhas panturrilhas. — Pensando bem, não me segura,
coloca as duas mãos no volante. Coloca as duas mãos no volante!
O sorriso se mantém estampado em seu rosto angular.
— Eu consigo te segurar e dirigir ao mesmo tempo.
Inspiro e expiro rapidamente pela boca, então emerjo pela abertura. O
vento forte e fresco me atinge de imediato, chacoalhando meu cabelo. O
perfume de terra molhada e a essência acética de asfalto queimado se
esgueiram para dentro das minhas narinas. O sol ascende cada vez mais
através das rochas intercaladas com as árvores nas margens da via expressa
serpenteando pela Serra das Araras, e elas passam como vultos que
misturam tons de verde com preto e o cróceo fugaz quando o sol brilha por
entre elas. Os automóveis voam pela pista e eu deixo a sensação me inundar,
fecho os olhos e levanto os braços, voando também.
Ao voltar para dentro, rindo — e com o cabelo mais embaraçado que um
ninho de cobra, com certeza. — os sons externos se abafam quando Zaph
aciona o botão para fechar o painel.
— Obrigada. — Me inclino para despejar um beijo em sua... era para ter
sido na bochecha, mas o filho da mãe virou na hora e sua boca se chocou
com a minha. Ele logo volta para frente.
— Esse carro originalmente não vinha com teto solar.
— Own, você mandou instalar só por mim? — Bato os cílios algumas
vezes.
— Não. — Faço um bico.
— Babaca.
— Essa vai ser a viagem mais torturante que eu já fiz — Zaph anuncia após
um suspiro. Franzo o cenho e retorço os lábios de leve.
— Por que? — pergunto, recolocando o cinto de segurança. — Eu nem pus
minha playlist de desenhos ainda.
— Porque meu pau já está duro e nem estamos na metade do caminho. —
Mordo o lábio inferior e meu foco é atraído para seu colo, onde um volume
considerável se projeta contra a calça jeans.
— Continue me olhando desse jeito e eu paro esse caro no acostamento pra
te foder.

De tardinha, depois de sair de um belo banho quente na banheira, botei


minha calça legging preta, uma blusa de manga comprida e um cachecol por
baixo do casaco moletom cobalto com o emblema dos Autobots por cima.
Fiquei encantada com o lugar logo de cara. Um vilarejo de três ruas em
lajotas, cujas duas principais são ligadas por uma ponte que atravessa um
riacho, o Rio Preto. De um lado, você está no Rio, do outro em Minas. A
mescla de estruturas simples com toques de requinte serrano, imersas a uma
luminosidade amarelada dos postes, deixa o ambiente inteiro aconchegante.
Por onde se caminha o aroma das hortênsias se mistura à essência fresca do
capim orvalhado e aos temperos apimentados das refeições.
A primeira coisa que fiz ao sairmos do chalé foi me esconder dentro do
casaco contra o vento gélido que parecia querer entrar por todos os poros da
minha pele. Buda amado, eu gosto de frio, mas porra! Essa semana meu tato
foi o alvo da vez. Tudo em que toco, ou rela em mim, sou capaz de discernir
com mais precisão do que um microscópio e um geotermômetro juntos. O
efeito colateral? Pode-se dizer que eu virei um sapo. Quando eu fico nervosa
demais, uma substância pegajosa começa a aflorar de mim.
Não queira saber como eu descobri isso.
Atravessamos a ponte estreita em direção ao lado de Minas, submersa em
pensamentos, mas Zaph para subitamente, atravancando meu passo. Me viro
para ele, observando sua feição séria direcionada a mim com certo receio.
— O que foi? — pergunto.
— Não fique assim. — Quase franzo o cenho me questionando ao que ele
se refere, mas a ciência logo se abate sobre mim. Nesses últimos dias,
confesso, tem sido mais fácil trabalhar a depressão, contudo, ela sempre fará
parte de mim. Ela pode desaparecer por alguns dias, mas uma hora ou outra,
ela sempre volta. Principalmente com esses malditos vampiros à espreita.
Zaph repuxa um lado dos lábios.
— Mesmo tristes, seus olhos são os mais brilhantes que eu já vi, sabia?
Como você reagiria a isso? Envie sua resposta e concorra a duas
passagens de avião para a “Puta Que Me Pariu, Eu Fiquei em Choque”.
Dou um passo à frente, ficando na ponta dos pés, apoio as mãos no peito
coberto pelo sobretudo de algodão dele e junto meus lábios com os seus. Se
os lábios de Zaph já eram macios antes, agora posso sentir como sua carne é
lisa e polposa em minuciosos detalhes. Zaph me envolve gentilmente com as
mãos na minha lombar, e por instantes me esqueço do mundo.
Separo nossas bocas lentamente, na medida em que abaixo até o chão, e
Zaph continua com a testa quase junta à minha.
— Eu te amo. — Eu não sei explicar a emoção que me invade, que
reivindica cada canto do meu ser e faz brotar lágrimas nos meus olhos. — Eu
te amo tanto que dói. Dói porque eu tenho medo de te amar.
Um soluço surge, o choro inunda meu peito e me tira o ar. As lágrimas
escorrem pela minha bochecha. Fraca. Boba. Imbecil. Patética. Só sabe
chorar. Agarro o tecido grosso de seu casaco até sentir os nós dos meus
dedos doerem.
— Eu quero arriscar ser feliz com você, Zaph — digo, entre arquejos e de
olhos apertados. — Eu quero tentar ser feliz. Quero viver aventuras. Com
você. Mas eu tenho medo... medo de me machucar. Tenho medo de voltar
para a estaca zero, porque se isso acontecer — soluço, as lágrimas esfriando
pelos meus zigomáticos dolentes de frio, e meu nariz escorre — eu não sei se
vou me reerguer.
— Você quer ficar junto-junto? — Sua voz soa leve no meu ouvido e um
riso rápido escapa dos meus lábios. Anuo com a cabeça, premendo os lábios
ressecados.
— Quero ficar junto-junto.
Zaph segura meu rosto com as duas mãos, mais ásperas do que o normal, e
a temperatura amena de suas palmas é muito bem-vinda à minha pele. Ele
levanta meu queixo e fecho os olhos.
Começa com um toque tenro e zeloso, saboreando a textura um do outro, o
fulgor um do outro. No entanto, assim que abrimos nossas bocas, o beijo se
torna libertino e luxurioso, exigindo todo o nosso ar. Nix, a língua dele na
minha…
Zaph desune nossos lábios e eu busco fôlego.
— Vamos para a pousada antes que as pessoas nos derrubem da ponte. —
Solto uma risada fraca, próxima ao seu rosto.
A
tingimos a varanda de madeira do chalé de Zaph aos beijos e
tropeços. Nos abraçamos com fome um do outro, buscando o calor
um do outro. Os dedos longos de Zaph se embrenham quase
dolorosamente em meu cabelo, detendo minha cabeça em seu poder para
atacar minha boca com a sua. Meu coração dança dentro do meu peito, e eu
não sei se é de emoção, medo, ansiedade, excitação ou tudo junto.
— Zaph, eu... — Sou interrompida por um beijo singelo.
— Eu quero ouvir tudo o que você tem para me dizer lá dentro. Ou melhor,
eu quero ouvir as três palavras enquanto eu estiver dentro de você.
Gemo, sentindo minha vagina se contrair. Me viro para a porta e Zaph
enlaça minha cintura por trás, arrancando um sorriso meu enquanto tento
encaixar a chave na fechadura.
Ele cola sua boca em meu pescoço, arranhando a ponta dos seus caninos na
curvatura e arrepiando minha pele. Quando abro a porta, ela se escancara
com um ruído e quase caímos dentro do quarto. Eu giro e nossos lábios se
unem mais uma vez. Assim que entramos na cabana, Zaph empurra a porta
com o pé e ela bate.
O gosto agridoce de seus lábios me distrai do ambiente ao meu redor, e o
terceiro dos Cinco Grandes não se importa em ligar a luz. Zaph aperta a
minha bunda e me suspende, então cinjo seu quadril com as pernas. Rodeio
seu pescoço com meus braços e entorto a cabeça para que a sua língua ávida
chegue à minha.
Busco ar, contudo a boca de Zaph devora a minha outra vez e eu permito,
devorando a dele em retorno. Sinto-o marchar e em pouco tempo se sentar na
ponta da cama de casal, no centro do quarto. Ele aproveita essa pausa para
puxar meu casaco por cima da cabeça e arremessá-lo longe.
Ajudo-o a se livrar do próprio casaco e prendo o ar quando os dedos de
Zaph tocam a pele das minhas costelas por debaixo da blusa. Nossos lábios
entreabertos pairam a átimos um do outro e ele eleva minha camiseta
devagar, como se pedisse permissão para continuar. Um mísero toque e eu
me torno pura estática, por isso, quando ergo os braços para facilitar o
processo, Zaph entende que pode retirá-la. O tecido é passado pela minha
cabeça, expondo minha pele à temperatura baixa. Meus mamilos estão
enrijecidos, mesmo dentro do sutiã.
Não demoro a sentir seus lábios percorrerem minhas saboneteiras, meu
pescoço, meu colo, descendo em beijos tenros e molhados até a carne
sensível dos meus seios à mostra. Glória a Oxum eu coloquei um sutiã
bonitinho.
Seu membro rijo, retido pelo jeans da calça, fica pressionado contra minha
abertura. Eu deixo escapar um gemido e começo a me mover por instinto.
Consigo definir o quão grande e grosso ele é. Rebolo os quadris em círculos,
sentindo o estímulo no meu clitóris anuviar minha mente conforme a língua
de Zaph passa pela minha clavícula sensível. Zaph ronrona guturalmente e
aperta minha coxa com seus dedos firmes, marcando minha carne… Ah, não.
Não, não, não! Uma imagem conhecida e nada agradável me vem à cabeça.
De repente, aquela sensação conhecida e odiada aperta meu tórax. O pavor
me toma e tento lutar contra essa maldita sensação.
— Zaph... — peço, ofegante, o coração acelerado, mas ele não para de
beijar meu ombro esquerdo. — Zaph, espera. — Dessa vez, quando empurro
seus ombros, o vampiro que amo me encara com suas íris rubras de desejo.
— O que foi?
— Eu… eu não consigo. Não sem antes te contar tudo. Não sem antes tirar
esse peso de mim.
Atena, me ajude. Já sinto a dor das lembranças me afogarem, querendo me
enterrar. Recupero o fôlego e Zaph faz o mesmo, me estudando com seus
orbes febris.
Espremo meus olhos com as mãos, tentando não espantar as memórias
indesejáveis, mas colocá-las em ordem e pronunciá-las sem revivê-las.
Certo, vamos lá, você consegue, Alice, você consegue. Respiro fundo,
tentando não tremer.
— Eu... — Libero o ar preso pela boca. — Há praticamente três anos, eu
conheci um garoto, Rafael. Ele era duas turmas à frente e o sonho de todas as
garotas da escola. Eu poderia dizer que não faço a mínima ideia do que ele
viu em mim, mas eu sei muito bem. O que todos sempre veem: bundas e
peitos. Nós namoramos por uns meses e ele… ele dizia coisas lindas, me
prometeu as estrelas, o mar, era um perfeito cavalheiro. Quer dizer, é o que
ele me fez acreditar. — Rio de escárnio. — Deus, como fui burra. Burra,
burra, burra!
Bato com os nós dos dedos nas têmporas. Zaph pega minhas mãos rígidas e
as abaixa devagar. Eu não o encaro, eu não abro os olhos.
— Alice, você não precisa se não quiser — diz Zaph, manso.
— Não. Se eu quero superar isso, eu preciso. Preciso. — Inspiro fundo. —
Eu... eu fazia de tudo para agradá-lo, pensando em como eu era sortuda. Eu
deixava de sair com as minhas amigas por ele, deixava que ele controlasse o
que eu comia, o que eu vestia, o que eu assistia, o que eu deveria ou não
falar, pensando que ele sabia o que era melhor. Eu perdi a virgindade com
ele, sabe? Eu confiava nele mais do que em mim mesma. — Engulo em seco
e umedeço os lábios. — Então, no Ano Novo, eu quis passar com ele, na
festa que ele daria com os amigos... Ele me apresentou às amigas dele, mas,
mesmo assim, me senti deslocada porque ele tinha desaparecido da festa.
Então, perto da meia-noite, eu fui procurá-lo e... o encontrei num quarto,
fodendo duas garotas, e, apesar de ter me visto parada na porta, dito meu
nome, ele não parou em nenhum momento. Eu olhava para ele, ele olhava
para mim, eu disse o nome dele, ele disse o meu, mas não parou.
Sinto meu nariz arder e meus olhos embaçarem com as lágrimas.
— Depois do nosso término, fiquei muito mal, mas quando eu soube que,
na verdade, muito antes, desde o início do namoro, ele me traía, eu pirei. Ele
mentiu pra mim o tempo todo. Talvez seja — fungo, sentindo uma lágrima
escorrer — comum traição e tal, sei que é, eu sei que eu era muito nova, mas
pra mim foi... Eu simplesmente não consegui lidar com isso. Não conseguia
confiar em mais ninguém, me sentia um fardo para os meus pais, não queria
mais sentir dor, não queria mais me sentir tão vazia e falsa com as minhas
amigas, o que me levou a me isolar delas. Por isso, não via mais por que
continuar vivendo uma vida de mentiras, não via mais sentido na vida, então
eu comecei… comecei a me furar.
— Furar?
— Sim. — Fungo e inspiro fundo mais uma vez. Zaph acaricia minhas
costas e eu aperto seus ombros, tentando controlar o choro. — Eu nunca tive
coragem para me cortar ou me drogar, porque no fundo eu sabia que era
errado, mas eu estava desesperada para aplacar aquela dor — outra lágrima
escorre — para preencher o vazio com alguma outra sensação. E estava com
uma ideia fixa que fazia cada vez mais sentido pra mim: combater dor com
dor. Eu pegava a tesoura e pressionava contra a minha coxa até que a lâmina
fizesse um furo ou um corte pequeno, para abafar a dor emocional com a
física. Até o dia em que minha mãe me pegou em flagrante, sentada no
chuveiro e pingando sangue. Depois de muito choro e abraços, a primeira
coisa que ela fez foi me levar à clínica psiquiátrica, onde a enxurrada de
exames confirmou a depressão crônica.
— Alice...
Preciso recuperar a compostura antes que meu psicológico me convença a
desistir. Soluço e seco as lágrimas. Inutilmente. Respiro fundo, de olhos
fechados, e levanto a cabeça.
— Não tive visitas durante um tempo, só participava de terapias em grupo
e... — Trinco os dentes.
Agora eu realmente não consigo mais impedir o choro.
Choro e soluço, perdendo ar. Encosto a testa no ombro de Zaph, inalando
seu aroma, sentindo sua temperatura e seus músculos como uma barreira
protetora. Mas parece não ser o suficiente.
Repasso as cenas que me assombram, me sentindo afundar em um mar de
desespero cada vez maior: eu empurrando a porta do quarto de Bianca e
avistando os dois na cama; eu encolhida no canto do leito, ouvindo os gritos
e prantos dela pela parede do quarto, me perguntando quando seria minha
vez; as noites insones pensando que ele estava a caminho...
Fico assim por um tempo, chorando em seu ombro enquanto recebo um
cafuné. Levanto a cabeça, tento respirar fundo, mas o catarro não me
permite. Enxugo os olhos encharcados.
— No início, eu não falava nada. Não era capaz. Só quando me
introduziram à musicoterapia foi que comecei a me abrir. Nós éramos
acompanhados por um médico particular, com sessões de terapia
individuais. Eu estava indo bem, com a ajuda da psiquiatra e psicóloga
Carol, até passar pelo quarto da minha colega e presenciar o médico es... —
a palavra trava na minha garganta e quero chorar novamente, relembrando a
cena como se fosse hoje — a violentando.
As lágrimas quentes descem em grande quantidade pelas minhas
bochechas, marcando-as, então soluço, sacudindo os ombros e cravando as
unhas nos de Zaph.
— Eu tentei, eu juro que tentei avisar aos outros...
— Por quanto tempo, Alice? — Percebo cautela em seu tom de voz.
— E-eu não sei direito. Acho que to-odo o período em que ficamos na clí-
inica.
— La naiba! Ele fez alguma coisa com você?
Balanço a cabeça em negação, tentando reorganizar os pensamentos, mas a
ideia de jogar tudo para o ar e pegar a maldita tesoura de novo me é mais
atraente. Zaph segura minha bochecha em suas mãos e abro os olhos, vendo a
expressão complacente dele. A luz em seus orbes cinza me acalma.
— Bianca foi... — continuo. — Bianca tinha Tourette e foi a primeira com
quem conversei, foi a primeira a me fazer rir. E-eu tentei conversar com
outros médicos, mas eles achavam que eu estava alucinando, como um efeito
colateral dos remédios. Até pensei que pudesse ser isso mesmo, que eu
estava enlouquecendo, misturando as lembranças de Rafael, mas eu assistia
minha colega ficar cada vez pior ao invés de melhorar, com olheiras, cada
vez mais magra, e ninguém ajudava! Eu desisti quando ele disse: “Em quem
você acha que eles vão acreditar? No médico renomado ou na louca da
paciente? Sua verdade aqui não vale nada!” — Uma lágrima gorda escorre.
— Isso ficou cravado na minha mente, Zaph. Então eu vi que não adiantava
continuar tentando. Eu me senti um lixo. Uma total e completa inútil. Eu…
me habituei a ouvir o choro dela. A ver o rosto dele como se nada estivesse
acontecendo. Às vezes, parece que ainda os ouço, ainda os vejo nos meus
pesadelos... — Encolho os ombros e tampo os ouvidos, apertando os olhos,
tentando abafar o som dos dois lá no fundo da minha mente. Zaph pega
minhas mãos e as tira da minha orelha, então miro seus olhos cálidos. —
Para os médicos, eu havia me recuperado. Mas por dentro eu só tinha… me
conformado. Quando fui liberada, depois de um tempo, fui tentar contar para
minha mãe o que tinha acontecido e tive minha primeira crise. Por isso a
verdade é tão importante para mim, Zaph. Vivemos em um mundo em que as
mentiras predominam e não há honestidade em quase ninguém, e isso é tão
triste. Eu estou rodeada de mentirosos, me sinto tão só. As pessoas são
hipócritas, eu sou hipócrita! Não existe, e nunca vai existir, a esperança de
um mundo melhor, vai ser sempre…
— Alice, olha, me escuta. — Zaph toma meu rosto em suas mãos e eu
encaro seus olhos lucilantes. — Eu não minto e nunca vou mentir pra você.
Eu, que cometi tantos erros por anos, achei um motivo para tentar ser melhor,
então os outros também podem. As pessoas às vezes só precisam de um
empurrãozinho. Há, sim, esperança. Eu já vi muita merda acontecer, mas
também muita coisa boa. Mesmo que eu seja 1% da população que falará
sempre a verdade, de 1% pode sair muita coisa. O mundo tem seu lado cruel,
mas também há tantas coisas lindas nele. São por elas que nós lutamos. Não
desista, meu amor, eu estou aqui com você e sempre estarei. — Ele ri
nasalmente. — Meu coração será seu para sempre, até o fim dos meus dias, e
além do fim dos seus.
Meu coração dói, mas dessa vez é de um jeito bom.
— Eu estava com tanto medo…
— Medo de eu estar mentindo para você? Medo de não ser real?
Meneio a cabeça em negação.
— Medo de mim mesma. — Enxergo o belo rosto consternado de Zaph
através da visão turva.
— Dragostea mea... — Ele pega minha mão trêmula e a coloca sobre o
próprio peito, onde sinto seu coração bater descompassado. — Como eu
poderia falsificar isso? Sabe o quão frustrado eu me senti quando descobri, e
finalmente aceitei, que eu estava amarrado a você pelo resto da minha pobre
existência? À maldita herdeira do Drácula? Eu serei seu para toda a porra da
eternidade, mesmo que você não seja minha para sempre.
— É só você me transformar.
— Não, nem começa.
— Mas Zaph...
— “Mas Zaph” o cacete. — Ele puxa minha nuca e prensa minha boca
contra a sua. Seria romântico, se não fosse pelo catarro no meu nariz me
impossibilitando de respirar. Zaph se afasta, mas permanece com a mão na
minha cerviz. — Te iubesc la nebunie.
— Não sei o que isso significa, mas parece ser uma coisa boa.
Rimos. Rio de nervoso e de alívio. Me sinto leve, como se eu não
estivesse mais nesse plano.
Beijo-o sorrindo, fungando, feliz por mim mesma, por ter sido capaz. Por
ter conseguido falar tudo o que tinha para falar, me entregar para alguém
novamente, ter a certeza de que ele está para mim, assim como eu estou para
ele.
— Já estamos juntos-juntos? — ele pergunta com os lábios perto dos meus
e eu libero uma risada.
— Acho que sim. AH! — Solto um gritinho quando Zaph me gira, me
jogando de costas na cama e ficando por cima de mim. Eu encaro o seu rosto
acima do meu, sua boca desenhada, seu maxilar quadrado, sua franja negra
desfiada caindo por sobre os olhos de piritas. Há alguma coisa neles que eu
não sei decifrar, mas me faz muito feliz.
Zaph se impulsiona para cima, ficando com os joelhos um de cada lado do
meu quadril e... Ay, papi! Ele pega a barra da camiseta e a passa pela
cabeça, habilmente, expondo seu abdome. Eu tiro um momento para estudá-
lo, cada sulco e saliência, cada músculo bem entalhado, nem demais, nem de
menos. O oblíquo delineado em suas laterais, sugerindo que há algo
escondido por debaixo da faixa de cueca escura e do cós baixo da calça
onde termina uma linha de pelos depilados.

Quando eu perdi minha virgindade com Rafael, eu senti agonia. Me unindo


a Zaph, eu me senti plena.
Como fazia algum tempo que eu não, er, praticava o ato de copular, houve
um leve desconforto. Mas antes de me invadir com seu membro, mesmo que
seu desejo urgente fosse nítido, ele se demorou, vagueando primeiro os
dedos longos pelo meu meio. Depois os introduziu na mesma velocidade
lenta. Zaph se deliciava ao assistir, com seus olhos carmesins no escuro, o
que seus dedos faziam comigo. Um, depois dois, e por fim três. Três
orgasmos diferentes, com três combinações de dedos diferentes. Todos
eletrizantes e torturantemente lentos. Zaph despejava beijos cálidos em meus
ombros, minha bochecha e meu colo cada vez que eu arquejava.
Quando me julgou estar empapada o suficiente, Zaph entrou em mim,
controlando sua fome e entrelaçando seus dedos nos meus. Ele ficou parado
até que eu me acostumasse, fazendo brincadeiras para eu rir. Mas agora…
— Zaph. — murmuro seu nome com os lábios colados nos dele.
O beijo segue estável, mas profundo, à medida que ele entra e sai de mim.
Nossas línguas enrolam-se fora da boca, eu capturo a sua e a sugo da base
até a ponta. Zaph posiciona a mão sobre meu clitóris, começando a
movimentar os dedos em círculos. Emito um gemido baixo entre nossas
bocas que não param de friccionar uma na outra, o pulsar da minha vagina se
tornando palpável, enviando ondas por todas as minhas terminações
nervosas. Me agarro ao seu pescoço e bíceps como se eu pudesse sair
flutuando. Posso sentir os caninos longos dele relarem de leve minha língua,
e isso faz uma eletricidade percorrer meu corpo, do dedão até o bico do meu
peito pressionado contra o torso definido de Zaph. Aproveito para contornar
uma presa sua, rodeando com a ponta da língua a protuberância lisa,
alongada e pontiaguda enquanto ele soca meu interior com seu pênis. Eu
posso sentir seus músculos, todos eles, se retesarem e o vampiro entoa um
grunhido gutural.
— Você gosta disso? — pergunto, ofegante.
— Você não tem noção do que isso faz comigo. — A voz rouca dele, tão
perto da minha epiderme, me arrepia. Zaph percebe isso através do aperto
em seu membro e solta outro gemido. Vendo seu êxtase tão tangível e
intoxicante, eu continuo a passar a língua por um dos seus caninos de um
modo demorado. Ele libera outro ganido grosso e me toma com mais força.
— Diga o meu nome — exige ele.
— Zaph.
— Mais alto. — Sua voz sai cavernosa em meu ouvido.
— Zaph!
Minha mente se torna um branco completo quando fecho os olhos,
degustando da sensação extremamente delirante e obsessiva que é ter Zaph
entrando e saindo de dentro de mim enquanto seus dedos massageiam meu
clitóris. Meu Santo da Empadinha de Frango, é melhor do que eu pensei que
seria. Minhas pernas dobram-se para cima ao lado de sua cintura, e sua mão
fixada piamente à parte interna da minha coxa queima minha pele em libido.
Amasso o travesseiro atrás da minha cabeça, meu corpo tangendo no lençol
de acordo com as estocadas fortes. Sinto o orgasmo se aproximar
gradualmente, bloqueando qualquer pensamento e me fazendo tirar as costas
da cama.
— Mais, mais! — rogo.
Zaph se coloca de joelhos e puxa meu quadril para cima, enfiando toda sua
extensão em mim. Consigo discernir as veias que o circundam raspando as
paredes contraídas da minha vagina. Suas mãos agarram a carne do meu
quadril, me mantendo presa sobre suas coxas maciças sem parar de investir
seu pau robusto contra mim. Eu estava certa, ele é enorme, mas proporcional
a sua estrutura física.
— Alice… în pula mea! — Ouvi-lo xingar em sua língua materna, com a
voz áspera encharcada de desejo saindo da garganta, só faz com que o
orgasmo venha com força.
Minha mente se perde, o frenesi percorre todos os meus nervos. Deus, que
maravilha.
Meu corpo paralisa e espasma por segundos antes de relaxar outra vez.
Arfante, eu… Mal minhas costas tocam o lençol molhado de suor e Zaph me
vira de bruços.
Meus peitos ficam esmagados contra o colchão, o cabelo ruivo uma
bagunça no meu rosto.
Uma mudança de peso no colchão acontece às minhas costas, e logo ambas
as mãos de Zaph enchem-se com a minha traseira.
— Olha essa bunda. — Ele abre e fecha meu vale, em círculos. Solto um
arquejo quando uma de suas mãos a abandona, mas volta para estapeá-la. —
Essa bunda redonda, feita para ser espancada... — Zaph desce a mão outra
vez e bate nela, fincando seus dedos em seguida. A ardência sobe, mas me
surpreendo por não incomodar. Zaph mordisca e afasta os lados da minha
bunda e, depois de alguns segundos em silêncio, minha boca se abre em um
“o” ao sentir sua língua molhar toda a extensão da minha vulva ao ânus. —
Feita para ser devorada. — Minha boceta se comprime quando as pontas de
seus dedos se encravam nas minhas pampas, mantendo-as abertas, e a ponta
de sua língua lentamente se esgueira para dentro do meu cu. Emito um
suspiro e meus dedos, tanto dos pés quanto das mãos, se encolhem,
repuxando o lençol e o travesseiro.
Não consigo reprimir um gemido quando Zaph mergulha seu pênis na
minha intimidade, sem esperar um segundo para continuar o vai e vem. Seus
movimentos são minuciosos, e ao mesmo tempo ansiosos, rebolando os
quadris para cima e para baixo.
Ai, meu Brama, meu Vishnu e meu Shiva, esse homem é tão…
— ... Gostoso. — Ops. Saiu sem querer.
O vampiro diminui a velocidade e se inclina sobre mim, aperta um lado de
minha cintura com sua mão grande para me manter na mesma posição
enquanto dá empurrões fortes dentro de mim. Eu gemo tão alto a cada golpe
que o som se sobrepõe ao baque surdo de sua pélvis conta minha bunda.
— Está gostando, dragostea mea? — Minha pele se arrepia quando Zaph
sussurra em meu ouvido, sua voz profunda. Eu não consigo entender, mas eu
não preciso pedir nada, porque é como se o maldito vampiro romeno
previsse minhas necessidades.
Ou talvez fosse só a experiência. Mas não quero pensar nisso.
Grunho numa tentativa de resposta, sentindo Zaph pressionar seu peitoral
abrangente em minhas costas úmidas de suor.
— Responda
— Sim, sim, sim! — Ishtar do céu, eu vou morrer de prazer! Seu abdome
sulcado resvala na minha coluna, indo e vindo, onde posso sentir os pelos
aparados me arranhando de leve, seus joelhos mantêm minhas pernas unidas
e esticadas.
— Argh, Alice. — Seu hálito no meu lóbulo enquanto ele despeja beijos
no meu ombro, o aroma adocicado dele impregnado em mim, faz minha
intimidade se contrair e eu sinto seu pênis latejar dentro de mim. Nós dois
murmuramos ao mesmo tempo. — Sua boceta está chupando meu pau. —
Zaph de repente provoca uma metida mais forte que me tira um arquejo e me
faz apertar o travesseiro. — Que boceta gulosa.
Ele aproveita para pegar meu queixo com a mão livre e virar meu rosto
para grudar sua boca na minha. Como eu adoro os lábios dele. Sugo seu
lábio inferior, mordiscando-o em seguida, e Zaph cativa minha língua com a
sua. Numa abertura, acaricio outra vez seu canino crescido devagar e o
rugido animalesco que ele retém em sua garganta repercute pela minha
estrutura óssea inteira. Zaph impulsiona de forma mais vigorosa, seu pau
ainda mais túrgido socando meu âmago.
— Desse jeito eu vou gozar, meu amor — revela ele, seu tom cavernoso.
— Goza. Goza bem gostoso.
Ele se favorece da minha boca entreaberta e a mão em meu queixo para
passar seu dedão pelos meus lábios inchados. Emito um ruído de deleite, na
medida em que Zaph brinca com minha boca e põe dois dedos largos na
minha língua. Eu imediatamente envolvo-os e começo a lambê-los em
círculos, chupando-os com gana, matando o desejo de degustar o sabor desse
homem. Eu nunca vou me cansar de fruir da pele de Zaph. Parece que cada
centímetro dele tem um gosto afrodisíaco diferente.
— La dracu, Alice, você está encharcada. — Assim que diz isso, suas
enterradas ficam ainda mais velozes, seus dedos escorregam pela minha
boca, deslizando pela minha garganta, e nossos urros tornam-se
descomedidos e entorpecidos pela luxúria.
— Zaph…
— Goza pra mim, meu amor.
Não demora muito e os impulsos fortes de Zaph culminam em um orgasmo
em conjunto. Nossos corpos travam, grudados. Zaph sai de mim, deixando
um vazio frio – e muito inchado –, para ejacular fora.
Quando distendemos os músculos, estamos ofegantes e exaustos. Bem, ao
menos eu estou. Zaph joga seu peso sobre mim, me afundando embaixo de si.
Adoro sentir o corpo nu dele junto ao meu.
A sensação de ter as costas quentes de Zaph sob minhas mãos, sentir o
gosto do seu suor na minha língua enquanto eu o lambia, meu peito nu
esmagado contra o dele conforme era compelida para cima pelas suas
estocadas, era inebriante. Tudo. Seus cabelos entre meus dedos, suas
nádegas enrijecidas em minhas unhas ao passo que entrava e saía de mim, os
músculos de seus braços flexionados ao apoiá-los perto de minha cabeça...
Viciante é a palavra.
Eu estou empapada de suor na nuca, na testa e entre os seios, enquanto o
filho da mãe está só úmido. E quando ele me deu orgasmos múltiplos? Até
agora não sei como sobrevivi, mas só sei que estou muito grata por poder
contar isso sem ter que assombrar alguém ou pedir uma psicografia.
— Ok, Zaph, já pode sair de cima, está me esmagando.
— Mas está tão confortável. — Sua voz sai um tanto bochornosa, por ter a
bochecha esmagada contra o travesseiro acima da minha cabeça.
— Pra quem?
Quando rola para o canto da cama, Zaph me puxa pela cintura até colar
meu corpo com o dele. Eu ainda posso sentir seu membro rijo na minha
bunda, o que me impele a rebolar, mas decido não provocar, porque sei que
o garoto vai querer continuar e minha boceta já está dolorida o suficiente. E
também porque preciso desesperadamente dormir. A claridade que entra
pela janela atinge meus olhos e… já é de manhã?
Zaph se agarra a mim pela barriga, esconde seu nariz em meu pescoço e
despeja ali um beijo. Afago seu antebraço que me circunda. O vampiro
movimenta o nariz na minha cerviz e dobro o meu braço para trás,
acariciando seus cabelos recém-cortados e um pouco ungidos de suor.
Vejo alguns preservativos amarrados no assoalho, mas das últimas três
vezes fizemos sem.
— Gastamos quantas camisinhas, afinal? — Zaph ajeita o rosto de um jeito
que sua boca cola no meu ouvido, então sussurra:
— Seis. — SEIS?! Minha Santa Tessa Dare, o que as camareiras da
pousada vão pensar?

Acordo ao som harmonioso do canto dos pássaros e minha visão se


acostuma devagar com a cabana submersa em tons areia e camurça. A luz do
sol, já baixo, entra pelas frestas das cortinas curtas, ao lado esquerdo da
cama, e atingem alguns pontos do chalé com olor de pinho, citronela e
alfazema. Ontem eu não tive tempo de reparar nas redondezas, mas agora
vejo que há uma televisão presa à parede, logo acima de uma lareira simples
diante de poltronas avermelhadas. Uma mesa pequena com duas cadeiras
fica entre duas janelas venezianas.
Preciso mandar uma mensagem para minha mãe, avisá-la que estou no
chalé de Zaph. Hauro o ar profundamente, espantando o sono ao bater as
pestanas e passo o olho por entre as embalagens de camisinha rasgadas
sobre mesa de cabeceira e o abajur. Onde está meu celular?
Viro para o lado, esperando ver Zaph dormindo, mas, opa, me deparo com
suas íris cinza me encarando, muito bem despertas. Estico os lábios num
sorriso pequeno.
— Bună Dimineaţa — ele diz, partilhando o gesto.
— Acho que isso foi um “bom dia”, sendo assim — torço meu corpo e
deposito um beijo rápido em seus lábios — bom dia pra você também.
De repente, Zaph me traz pela cintura e logo sua boca já está fixada na
minha. Deixo um riso sair por entre nossos lábios. Seguro seu queixo de
forma delicada, sentindo a aspereza dos pelos crescendo e um sentimento
brando reivindica meu peito.
Ao nos apartamos, ficamos em silêncio, apenas apreciando os sons da
natureza e da vida tranquila no lado de fora da cabana. Queria que isso
realmente fosse verdade. Eu abaixo o olhar, as pontas dos meus dedos
percorrendo o relevo de seus músculos, estudando cada centímetro seu. No
entanto, meus olhos se detêm nas marcas de lanhos e feridas antigas.
Pequenas, mas cada uma delas leva uma lembrança de uma vida solitária e
cheia de perigos. Mas a cicatriz que captura minha atenção é a do “A” perto
de sua clavícula.
— Você está bem?
— Tirando minha boceta inchada horrores, estou.
— Não era bem a isso que eu me referia.
De primeira, estranho sua voz séria, mas logo depois um arrepio percorre
minha espinha, lembrando ao que ele faz alusão. Inspiro fundo, voltando a
acariciá-lo para me manter amainada.
— Ah. Sim. Estou — respondo.
— Só de pensar no que aqueles babacas fizeram com você, com a sua
amiga... — Levanto a cabeça e vejo os orbes de Zaph se tornarem cróceos,
quase alaranjados. — Eu quero estraçalhar a garganta deles.
— Esquece isso, eu estou bem agora. — Me inclino para frente e toco seu
rosto.
— Porra nenhuma. Se você estivesse bem, não precisaria de remédios. —
Bom, nisso ele tem razão.
— Mas já passou.
— Foda-se que passou, eu quero matá-los do mesmo jeito. Os dois.
— Zaph, escuta, ignore o passado. Você era diferente, eu era diferente, as
coisas eram diferentes. Fazer algo agora não muda o que aconteceu.
— Mas dividir seu ex ao meio ia me deixar muito mais feliz.
— Bem, passaram à sua frente. — Empurro um nó que se formou na minha
garganta e continuo a tatear o “A” entalhado em sua pele, logo acima do seu
peito esquerdo. — Rafael morreu num acidente de carro. Um ano atrás.
Estava saindo de uma festa. Dirigindo alcoolizado.
— Bem-feito. — Zaph cospe e eu o olho, enfezada.
— Não ia adiantar de nada se você o matasse. Eu ia continuar depressiva,
com medo de me entregar, com pavor de mentiras. E ainda ia ficar muito
chateada com você. — Zaph me analisa minuciosamente.
— Tudo bem se eu perguntar como... como foi que tudo isso aconteceu?
— Você diz minha depressão? — Eu inclino um pouco a cabeça.
— É.
Para ser honesta, eu não gosto de falar sobre isso. Eu sinto que, quando
damos um nome ao monstro, ele se torna mais forte. Mas isso é apenas um
modo bonito de fugir e disfarçar a covardia. Só que eu estou farta de fugir.
Eu vou chamá-lo pelo nome, ficarei frente a frente com ele e não vou deixá-
lo me derrubar. Não dessa vez.
Rio de desprezo, me acomodando ao seu lado.
— Não sei nem por onde começar.
— Do início seria bom. — Zaph despeja um beijo em meu nariz e me
circunda com um braço. Me sinto segura assim, o que é estranho. Porque me
sinto segura dos meus próprios demônios.
— Por que eu me sinto tão... completa com você? É por causa do Nödi? —
Elevo o rosto para tentar encarar Zaph.
— Nu. — Ele fita o teto de madeira. — Acredito que cada um carrega
consigo um pouco do outro. Que somos feitos, não de metades, mas de vários
pedaços. — Zaph torna a atenção para mim. — Talvez você se sinta
completa comigo porque devo ser o último pedaço que restava, mas não o
único. Nós nos sentimos confortáveis perto das pessoas em quem confiamos.
Um sorriso se estende em meus lábios e eu me inclino para despejar um
beijo na boca dele.
— Você tem que parar de ser fofo às vezes. — Suspiro. — Tudo bem,
vamos lá.
Eu apoio uma mão em seu peito e ele a captura com a dele. Sentir que
tenho algo em que me agarrar faz parecer que posso escapar mais facilmente
das garras das recordações, caso elas me puxem para baixo. Aperto a mão
de Zaph em retorno.
Senta que lá vem monólogo.
Pego fôlego, escolhendo bem as palavras e tentando visualizar o passado
sem me perder nele.
— Desde que me entendo por gente eu sempre me senti insegura. Quanto a
tudo. No Ensino Fundamental eu tinha meus amigos, mas eu sempre me
perguntava se eles gostavam mesmo de mim, se eu era uma pessoa chata.
Então eu ficava mais na minha para não “atrapalhar” os outros. Eu nunca
brinquei muito na rua, ficava mais dentro de casa, construindo casas e
cidades com minhas bonecas, enquanto meus pais trabalhavam e meu irmão
estudava. Eu não sabia naquela época o que significava, mas à noite eu não
conseguia dormir. Ficava ansiosa para acordar, pôr meu uniforme, não me
atrasar para reencontrar meus amigos. Eu até me lembro de aprender
algumas coisas assistindo Telecurso e Globo Rural. Culpávamos a minha
falta de sono pela minha irritabilidade e letargia.
“Então veio o Ensino Médio. Nova escola, novas amizades, uma nova
pressão. Minha ansiedade ia às alturas e eu nem percebia. Afinal, era “só
uma fase”. Encontrei Melissa e Julia. — Sorrio, relembrando. — A química
foi imediata e consegui relaxar um pouco. Mas minhas notas não estavam
muito boas, eu chegava em casa, mal dava tempo de respirar e vinham
cobranças e mais cobranças. Eu juro que tentava… que tento dar orgulho à
minha mãe, mas nada do que eu faço parece ser o suficiente. De nove
acertos, ela sempre pontua o décimo que erro. Por que é tão difícil
diferenciar incentivo de crítica? Meus pais não passavam muito tempo
comigo. Sempre chegam muito cansados em casa e eu me sentiria uma
ingrata por não os deixar descansar. Quando não estávamos na sala
assistindo algum anime, Igor vivia trancado no quarto trabalhando. Eu me
sentia sozinha e comecei a questionar meu papel no mundo. Em meados do
primeiro ano, meu irmão se mudou definitivamente, gerando uma quebra de
rotina, e eu conheci o Rafael. Bem, o resto você já sabe — rio de escárnio e
suspiro novamente, para dar uma pausa. — Como eu fui otária.”
— Você era inocente, Alice.
— Eu apresentei sinais de distimia durante toda infância, só que ninguém
sabia, nenhum de nós notou ou conseguiu ver através dos sintomas. Carol
disse que é complexo diagnosticar a depressão numa criança, porque é muito
difícil separar o que é sintoma e o que faz parte da personalidade. Eu mesma
me perguntava se tudo o que eu sentia não era apenas drama, se todos se
sentiam da mesma forma ou era só eu. O relacionamento e a traição de
Rafael serviram como gatilhos perfeitos para a depressão mais profunda.
Fiquei praticamente um ano e meio em estado vegetativo, cada vez me
afundando mais. Chorava encolhida na cama em silêncio, olhava para o teto
sem ânimo para nada, sem vontade alguma nem para as coisas que eu mais
amava. Me sentia oca, só levantava para ir fazer xixi.
— Por isso você demora tanto no banho? — Uma risada fraca me escapa.
— É. Em parte. — Volto a ficar séria. — Eu não quero nunca mais voltar a
ficar daquele jeito, então o banho meio que virou um vício terapêutico... Não
sei explicar. Eu... eu estava desesperada para fazer aquele vazio doloroso
parecer menos real, então eu me furava na parte de cima da coxa porque...
era um lugar fácil de esconder. — Eu engulo o aperto na garganta,
controlando o ímpeto de passar a mão pela minha perna. — Eu gostava da
dor física porque ela aplacava a dor emocional e psicológica, o problema
era que durava pouco.
“Então quando minha mãe me flagrou sentada no box do banheiro —
suspiro outra vez, tentando evitar que meus lábios tremam conforme as
lembranças vêm —, ela me abraçou, chorou junto comigo e não esperou um
segundo para me levar a uma clínica de reabilitação. Eu tive ótimos
profissionais à minha disposição, psicólogos, neurologistas, psicanalistas...
Um ótimo tratamento... Mas lá dentro, conforme a depressão foi... ficando
menos intensa, a ansiedade conseguiu se igualar e desenvolvi algo que eles
chamam de transtorno misto ansioso depressivo.
“Carol disse que eu tive sorte por ter sido levada à clínica cedo. Mas, de
qualquer jeito, preciso tomar muito cuidado porque todo e qualquer
tratamento só é efetivo quando o paciente se ajuda, se esforça para melhorar.
— Rio de nervoso. — Mas... como fazer meu cérebro me convencer a
melhorar se ele mesmo está danificado? Entende? Na clínica, participando
de terapia em grupo e ouvindo os outros foi quando percebi como meu
problema se desenvolveu lá atrás sem ninguém perceber. Depressão é uma
puta sorrateira. É como uma maldita árvore seca que estende as raízes por
debaixo da terra até encontrar outras, para se enrolar nelas e sugar a vida ao
redor. Quando você vê, ela já te engoliu por completo e agora cabe a você
lidar com ela sozinha.”
— Sozinha não. — Zaph se aninha a mim. — Estou aqui com você. Eu, Ju,
Mel, seus pais, seu irmão, Fernanda... Todos te amam, nunca duvide disso, e
todos nós estaremos aqui para ajudar.
— Esse é outro problema. — Rolo no colchão, me virando para poder
encarar seus olhos. — Eu quero ajuda, gosto disso, mas tenho medo de ficar
dependente dela. Medo de que quando você, meus pais, minhas amigas, se
afastarem, eu não saiba mais o que fazer. O mesmo acontece com os
remédios. Sei que é errado tomá-los só em último caso, mas não quero
depender deles para ter um pouco de felicidade.
— Exatamente por isso que você não vai virar dependente. Nem de mim
nem de ninguém. Uma coisa que aprendi durante esses anos foi que medo e
autoconsciência são duas coisas que as pessoas geralmente não associam,
mas estão altamente interligadas. Por você ter medo, você toma atitudes que
evitam que ele se concretize. Mas me ensine: como eu posso te ajudar?
Eu sorrio gentilmente. Sinto meu peito oscilar entre uma sensação fria e
outra calorosa, mas não tem nada a ver com o fato de estar encostada a Zaph.
É como se ele não conseguisse decidir se está triste ou feliz.
— Não me sufoque. — Passo os dedos pelo rosto dele, um tanto distraída
em desenhar suas feições. — Fique perto de mim, mas não perto demais.
Quando eu tiver uma crise ou um ataque de pânico, me abrace por trás, nunca
pela frente.
— Anotado.
— E chocolate.
Zaph estica um dos lados da boca para cima.
— Muito chocolate, ok.
— Nunca diga para eu me acalmar, mas sim que tudo vai ficar bem.
— E tudo vai ficar bem. — Eu permaneço muda, séria, ingerindo suas
palavras. Então ele traz uma mão até minha têmpora e coloca uma mecha do
meu cabelo para trás. — O mundo é um ciclo, Alice. Um equilíbrio de
forças. O mal das pessoas é achar que vão resolver tudo para sempre. As
correntes não serão quebradas, mas elas podem ser transmutadas. O segredo
está em saber balancear. Saber quando forçar e quando ceder.
Eu deixo cada silaba do que Zaph diz entrar em mim, penetrar cada fresta
do meu ser, tentando enfim aceitar essa ideia. Mas a voz na minha cabeça ri
de mim. Eu quero acreditar nessas palavras, eu sempre as repito para mim
mesma, mas por algum motivo, eu não consigo absorvê-las completamente.
— Eu agradeço sua ajuda — continuo. — De verdade. Foi graças à ajuda
da Ju e da Mel que estou aqui, agora.
— E eu gosto dela cada vez mais — Zaph diz. — Da Julia, quero dizer.
Diferente daquele médico de merda, se eu o ver vou quebrar a cara dele.
Literalmente. Quero ver a pele dele sendo arrancada fatia por fatia, espremer
a carne dele com arame farpado e triturar o esqueleto dele com minhas
próprias mãos…
— Ok, Zaph, ok. Já entendi que você quer ver Felipe mais que morto. —
Iço meu tronco, usando um braço de suporte para encarar o vampiro melhor,
sem me importar com a olhada nada discreta que ele dá em meus seios
expostos quando balançaram ao me levantar. Sua mão toca de leve minhas
costas por debaixo do edredom, acariciando-a de cima para baixo, da minha
lombar ao morro da minha bunda. — Mas você não vai matá-lo.
— Por que não? — Suas sobrancelhas quase se unem de tão tensionadas.
— Não cabe a você decidir que vida tirar.
— Não. Mas eu decido de quem proteger minha fată ciudată. E se eu tiver
que matar por isso, saiba que farei sem remorso, Alice. — O aviso de
Melissa ecoa na minha mente. Contudo, outro pensamento se sobrepõe à
lembrança: se eu virasse vampira, eu não faria o mesmo?
–J
ulia. Mas aposto que você já sabia — minha amiga se apresenta,
escorada com os antebraços na janela do carona. — A gente se
encontrou naquele episódio nada bizarro do cinema, lembra? Alice
deve ter falado de mim. — Ela me olha séria. — Você falou de mim, não
falou? Bem, tanto faz. — Então volta a encarar o vampiro e estica o braço
por cima do meu banco. — Prazer. O senhor pode apertar minha mão, por
favor? Tô tentando ser educada aqui. — Zaph sorri de lado e balança a mão
dela. — Obrigada. Agora... Zéfi, né?
— Zaph.
— Dá no mesmo.
Alguém consegue me explicar por que o segundo semestre do ano sempre
passa mais rápido do que o primeiro?
De volta à escola, Zaph decidiu me buscar de carro para irmos ao
shopping almoçar. Bem, pelo menos eu vou almoçar.
— Se eu vir uma marca roxa nessa bela garota que não seja causada por
uma topada com a cômoda, pela quina da cama ou um chupão de um sexo
gostoso, ou ainda se ela entrar em depressão profunda de novo, eu juro que
te caço, menino. Eu te caço, te torturo e dou sua carcaça pros meus cachorros
comerem.
— Alice, você não me disse que ela era tão meiga. — Zaph abre mais o
sorriso. — Pode deixar, dona, vou tratar sua amiga como um micro-ondas de
diamante.
— Um micro-ondas?
— Piada interna, ignora — explico a ela com descaso.
— Ah, bem, espero mesmo. — Julia se ajeita e aponta o indicador. — Te
caço, hein. Te caço mesmo. Minha avó tem uma espingarda. Você é lindo e
um puto tesão, vou ficar com muita pena, mas vou meter chumbo em você se
for preciso. — Ela se afasta do carro, ainda sinalizando para Zaph. — Meto
chumbo, hein! Ou prata, se isso matar você. Madeira, talvez? De qualquer
jeito, você vai morrer.
Julia então joga os cabelos longos e escorridos por cima dos ombros, e
Zaph ergue as sobrancelhas enquanto nós dois a observamos caminhar de
volta para a grade azul do colégio.
— Cachorros devoradores de pessoas, avó com espingarda… O que mais
você tem?
— Um papagaio que prevê o futuro! — ela grita em resposta, atraindo a
atenção dos alunos espalhados pelo portão e pela calçada.
Esses dois não vão dar certo juntos.

Hoje também apareceram mais dois “sintomas” da maturação. Zaph


gargalhou de mim quando eu fiz uma careta ao provar o risoto que, para mim,
estava com um gosto excepcional de detergente, porque meu paladar
resolveu ficar aguçado demais. Em compensação, minha língua ficou verde.
O outro foi o olfato. Eu andarilhava perto de uma perfumaria e quase
vomitava. Mas pelo menos meu nariz não ficou verde. Não, muito pior que
isso. Eu passei a liberar um odor que eu mesma não sentia, mas atiçava os
sentidos vampíricos. Eu percebi que a postura de Zaph ficara rija, a
mandíbula retesada, os punhos abrindo e fechando o tempo todo.
Para minha segurança, optamos por não demorar demais. Zaph comprou um
celular – ALELUIA! – e logo nos dirigimos para o estacionamento.
Enquanto ele paga no guichê, eu caminho para o Audi com a chave na mão
e o celular na outra. Desvio a atenção para uma mensagem que aparece no
grupo do qual eu e as meninas fazemos parte, mas ouço um assobio
malicioso ao longe. Ignoro como de costume.
Aperto a chave para destravar o carro, chego perto da porta e a abro. AI
MEU INTI! Uma mão grande a empurra, fechando-a na mesma hora. Eu olho
para cima com os olhos arregalados de surpresa e estranhamento.
Um homem moreno de músculos mirrados e distendidos, vestindo regata
furada, eleva-se a centímetros de mim. A primeira coisa que percebo são
suas íris carmins com olheiras profundas. A segunda é seu sorriso se
esticando como uma lua crescente, preenchida por dentes afiados. Diferente
dos anteriores, este saliva como um cão raquítico faminto, e até mesmo os
dentes de baixo são acúleos. Uma única palavra surge na minha mente:
Vacor.
Minto. Há outra palavra: corra.
Acontece tão rápido que não tenho tempo nem de clamar por algum deus. O
vampiro não pronuncia uma palavra sequer, apenas se lança em minha
direção. Eu grito no mesmo instante em que o reflexo me obriga a girar os
pés para disparar. No entanto, ele me puxa de volta pelo capuz do casaco e a
ação corta meu berro, me tirando o ar.
Com o movimento abrupto, meus pés saem do chão e, ao sentir seu hálito
fétido em meu pescoço, eu sei que é o fim. Água brota em meus olhos e
minha garganta queima. Ao invés de aparecerem imagens da minha vida
como falam que acontece, o que vem na minha mente é:
Mande notícias do mundo de lá,
Diz quem fiiicaaa.
Em teu abraço venha me apertar,
Tôôô chegaaandooo.
Junto as pálpebras fortemente, rezando por algo que nem mesmo eu sei o
que seria, e as aparto com a visão turva. Então Zaph está na minha frente e
sua mão passa raspando pela lateral da minha cabeça. Seu rosto contorcido
com os dentes trincados, os caninos protuberantes e os olhos escarlates
fumegantes. Uma lufada de ar irrompe meus pulmões quando o cadarço e a
gola do casaco afrouxam na minha garganta. Resfolego, caindo sentada no
cimento, um tanto desorientada pela rapidez dos eventos.
Eu tusso sem parar com uma mão apoiada na lataria do automóvel e a outra
no solo crespo e imundo. Minha cabeça roda um pouco e meus músculos
vibram devido à adrenalina. Devagar, sou capaz de recuperar o fôlego e os
sons ambientes chegam aos meus ouvidos. Ainda com o coração
rimbombando forte no peito, viro o rosto para trás e visualizo Zaph montado
sobre o Vacor. Sangue espirra de onde ele o atinge.
O líquido rubro e caliginoso respinga na lataria preta do carro, manchando
a camiseta de Zaph, que ainda esmurra o vampiro, já totalmente imóvel. Eu
apenas consigo assistir, hipnotizada, o seu braço direito descer repetidas
vezes, os nós de seus dedos voltarem cada vez mais banhados em sangue e
sua calça ensopada na altura dos joelhos pela poça que começa a se formar e
se expandir pelo asfalto. O corpo inerte do homem apenas espasma a cada
acerto de Zaph. Meus músculos titubeiam de novo.
— Zaph, para! Para! — imploro, à beira do choro.
As mãos de Zaph pingam sangue quando ele atende ao meu pedido e se põe
de pé. Eu desvio o foco e aperto os olhos assim que tenho um breve relance
da cabeça destroçada do homem e de suas entranhas.
Eu com certeza vou ficar com trauma de shopping.
Estremeço de susto ao sentir uma mão tocar de leve minha bochecha
enquanto outra segura meu antebraço. Zaph se abaixa à minha frente, me
escrutando com suas íris vermelhas, a boca repleta do fluido puníceo, como
um leão que acaba de devorar um cervo. O líquido viscoso goteja de seu
queixo para sua blusa salpicada de vermelho. Eu posso sentir sua mão
melada de sangue cobrir minha bochecha e o bolor ferruginoso irrompe em
meus sentidos.
— Você está bem? — ele pergunta, como se não tivesse acabado de socar
um homem até não restar nada do crânio dele. No momento, eu sou incapaz
de articular uma sílaba, então apenas anuo e engulo em seco.

Zaph corre pela via expressa na velocidade em que meu coração retumba
no peito. Os vidros estão fechados para evitar que o cheiro de sangue e o
cheiro que eu libero exalem livremente. No entanto, isso só faz Zaph ficar
mais tenso, enclausurado de maneira torturante. As mãos embebidas de
sangue estão travadas no volante, seus olhos rubros estão cravados na
estrada, mas toda a sua postura não mostra ira, é... outra coisa.
— Para o carro — comando.
— Não posso, virão atrás de nós. — Seu timbre é baixo, certeiro.
— Pare o carro, Zaph. — Aumento meu tom de voz.
— Não posso!
— PARA ESSA MERDA DE CARRO!
Num movimento súbito, Zaph gira o volante para o lado, me obrigando a
fechar os olhos bem apertados e segurar na porta. Reconheço o som de
buzinas enquanto o automóvel desliza. Após meu corpo ricochetear no
assento quando o Audi estabiliza, eu abro as pestanas e nos vejo no
acostamento. O único som provém dos carros voando pela estrada ao nosso
lado.
Embora sua respiração esteja audível, seu peito sobe e desce devagar. Eu
observo com atenção por um minuto a fisionomia pétrea dele. Eu reconheço
esse olhar abstraído, essa reação. Tiro meu cinto rapidamente e Zaph enfim
ousa olhar para mim.
— O que está fazendo? — Não respondo, apenas me certifico de sair das
amarras do cinto de segurança. — Alice, o que você está...
— Cala a boca. — Me encolho ao passar a perna por cima do freio de mão
e sento em seu colo, de frente para Zaph. Eu beijo seu queixo, seu pescoço, e
Zaph enterra seu rosto no meu ombro, contornando minhas costas com seus
braços. Ele me mantém espremida em si, me abraçando forte por um tempo.
— Eu estive tão perto de te perder…
Sua voz sai abafada pelo tecido do meu casaco.
Eu me obrigo a me afastar, alargando o abraço. Embora minhas pernas
dobradas estejam mega desconfortáveis, eu ignoro a pontada de dor na
canela para fitar Zaph.
— Mas não perdeu. Eu estou aqui. — Ele me estuda. Eu nunca vi tanta
emoção no rosto de Zaph e isso põe meu coração num torno.
Eu o amo demais, mas preciso admitir que vê-lo matar alguém a socos me
assustou. Muito. Eu o assisti matar dois vampiros no cinema, mas naquela
hora a escuridão censurava a maior parte da brutalidade. Ali não. Ali eu
enxerguei ao seu redor aquela mesma aura carniceira.
— Se eu tivesse chegado um pouco depois...
E Zaph não fizera aquilo para se alimentar, mas para me proteger. Suas
mãos agarram minha bunda. O sutil tremor na ponta de seus dedos denota um
desespero para se segurar em algo que o mantenha são. E eu sou sua âncora.
— Mas chegou na hora certa — digo, de forma mansa, acariciando seus
cabelos. — Como o Capitão América.
Ele libera uma risada nasal, mostrando um vestígio de sorriso.
— Prefiro o Batman. — Reviro os olhos. Tinha que ser.
— Tudo bem. Como o Batman — consinto, desdenhosa, mas sorrio para
tranquilizá-lo. Aliso seus cabelos e circundo seu pescoço outra vez. Zaph
inspira fundo, cingindo minhas costas. Adoro ficar abraçada a ele, seu corpo
imenso me acolhendo confortavelmente, mas agora o foco é ele. Em fazê-lo
se sentir confortável.
— Agora sai do meu colo porque estou ficando com tesão e não posso te
comer aqui.
Eu rio, ainda escondida em seu ombro.
— Nem pensar! — minha mãe brame.
Zaph cruza os braços e troca o peso da perna, encarando meus pais de
forma severa enquanto todos nos reunimos na sala.
— Se eu ficar aqui — começo, tão séria quanto o vampiro ao meu lado
direito, de costas para o corredor, e capto a atenção aflita de minha mãe e a
serena de meu pai, ambos de pé no centro — meu cheiro pode e vai atrair os
vampiros. Se levarmos em consideração que nós duas temos o sangue do
Drácula, eu estaria entregando de bandeja mais poder a eles.
— Eu até poderia ficar para proteger vocês — Zaph complementa,
inclinando a cabeça. — Mas duvido que vocês queiram minha presença aqui
vinte e quatro horas por dia durante uma ou duas semanas.
— Deus me livre — Heloise acua.
— Só temos essas duas opções — digo.
Minha mãe comprime os lábios finos, me fitando intensamente com seus
orbes castanhos. Permito que ela tome seu tempo para analisar as
alternativas, na esperança de que ela compreenda a situação.
Ao entrarmos em minha casa, Zaph lavou apenas as mãos, porque as
roupas já estavam em petição de miséria. Não tinham salvação, coitadas.
Mas, momentos antes, ainda no carro, viemos conversando sobre o que
poderia ser feito a respeito desse meu “feromônio”, e essa foi uma das
possíveis soluções: Isolamento.
Por fim, Heloise libera o ar pela boca e move a perna, lançando a mão no
ar. Ela desvia o olhar, o orgulho ferido. Me dói vê-la assim, contudo,
também me sinto feliz em ver que está começando a abrir um pouco mais a
mão do controle absoluto.
— Fazer o quê? — ela resmunga.
Bloqueio um sorriso pressionando os lábios um no outro. Eu finalmente
conheceria a batcaverna!
No entanto, para o meu desapontamento, não foi nada como eu esperava.
Começando pelo lugar que ele vulgarmente chama de apartamento. Por que
vulgarmente? Ora, porque aquilo não é um apartamento, mas sim uma porra
de cobertura de frente para a praia do Recreio! Eu não sei onde fui amarrar
meu burro, mas estou muito satisfeita com o lugar onde ele está.
Quando o vampiro abre a porta do elevador eu quase deixo a mochila cair
junto com o meu queixo. A entrada pela sala de estar exibe uma limpeza e
organização impecáveis nas cores monocromáticas que, depois percebi, se
estendem por todo o ambiente. Há um sofá retangular preto encostado na
parede logo em frente, um abajur alto ao lado exibindo um brilho metalizado
e uma mesa de centro de vidro sobre o piso de porcelanato. Do lado
esquerdo, prateleiras e mais prateleiras de livros, CDs, DVDs, discos de
vinil margeiam o lugar. Um gramofone fica na quina do corredor ao lado das
estantes.
— Essa coisa ainda funciona? — pergunto, analisando o fonógrafo tão de
perto que meu nariz quase encosta a buzina de bronze.
— Sim, essa coisa ainda funciona perfeitamente — o Tertius responde às
minhas costas.
Esculturas de cerâmica enfeitam os móveis lustrosos perto da televisão de
plasma.
— São lindas — digo, esquadrinhando os detalhes em relevo tal quais
relâmpagos dourados cortando a argila do vaso.
— Talvez um dia eu possa lhe ensinar.
Viro meu pescoço para Zaph.
— Foi você quem fez?
Sua réplica é apenas um dar de ombros, detendo de um sorriso ínfimo.
Ai, meu Guaraci, aquilo tudo são videogames?! Alguns pôsteres do Elvis
Presley são iluminados por pontos de luz amarelados ao longo do corredor,
que se liga às suítes, à academia e a mais um lavabo. A cozinha à direita é
dividida da sala apenas por uma bancada de vidro como uma obsidiana lisa
com bancos giratórios e uma parede translúcida que ilumina o local, dando
acesso à área exterior, onde há uma piscina com vista para o mar.
— Eu vou só tomar um banho e vou deixar você aqui — diz ele, os olhos
sempre variando de cinza para amarelados. — Não abra a porta. Para
ninguém. Se mantenha longe das janelas. Por favor. — Noto sua mandíbula
se retesar antes de continuar. — Fique à vontade, tem comida na geladeira e
nos armários, mas não muita. Eu vou repor depois. Aproveite a estadia, mas
não faça bagunça, por favor. E não quebre meu gramofone.
Zaph não me tocou uma única vez. Nem mesmo durante o trajeto de carro.
E, quando paramos de pé no meio da sala enorme e bem iluminada pela luz
natural, ele se manteve a um bom um metro e meio de distância.
Um sorriso quase forçado aparece no canto de seus lábios e eu retribuo
com outro fraco, cabisbaixo. Não há nada que eu possa fazer. Ficar em minha
presença é um suplício para Zaph, então ele vai se manter perto o suficiente
apenas para me vigiar. É só uma semana. Nós conseguimos fazer isso.
— Tudo bem. Vou tentar não incendiar sua casa.

Em pouco tempo, eu já tinha estudado minuciosamente os pôsteres do


Elvis, as lombadas dos livros antigos e novos das estantes e analisado as
cerâmicas pensando nos dedos de Zaph moldando os vasos. Eu peguei o
tabuleiro de xadrez, equilibrando as peças de alabastro, e o levei para a
mesa de centro com cautela, tentando não tropeçar nos meus próprios pés ou
na canela de algum anjo sacana. São e salvo sobre o tampo de vidro, li um
tutorial na Internet, assisti a vídeos explicativos e comecei uma partida
contra mim mesma. No meio do jogo, eu já estava querendo me estrangular
pela rainha preta ter me dado um xeque-mate sem nem mesmo ter percebido.
Eu também tomei uma ducha e sentei na sala para jogar o último
lançamento de Tom Clancy. Parei apenas quando a fome apertou, então
decidi fazer arte na cozinha. Coloquei uma música para tocar enquanto eu
tentava reproduzir uma receita de batata gratinada. Não foi uma má
experiência. Na verdade, eu gostei muito. Quando terminei, o cômodo
repleno com o aroma de alecrim e alho, preparei dois pratos e um deles eu
coloquei do lado de fora da sacada envidraçada do quarto antes de ir para a
cama. A cama king size de Zaph. No quarto quieto, espaçoso e imaculado de
Zaph. O perfume dele estava em todo lugar, me torturando, assim como
minha essência o torturava.
No dia seguinte, o prato estava no mesmo lugar. Porém, vazio e havia um
bilhete escrito “até que não estava tão ruim” nele. Um sorriso se infiltrou
em minha boca.
As horas se tornaram dias. Eu me distraía com os jogos, os livros,
encenando as músicas agitadas que eu colocava no meu celular e a voz do
Chester Bennington que ressoava por todo o apartamento, assistia a filmes,
animes, até mesmo estudava as matérias que a meninas me mandavam.
Contudo, por mais que eu tentasse não pensar muito nisso, o sentimento de
prisão não desaparecia por completo e parecia que o desbotar me esperava
em cada aresta. Talvez a única coisa que tenha me mantido o mais próxima
de sã possível foram os antidepressivos.
Eu deixei meu orgulho de lado e voltei a tomar regularmente os remédios,
de acordo com a prescrição médica que eu havia negligenciado. Meu sono
está mais regular, me sinto menos lenta e menos cansada, minha serotonina
está uma beleza e consigo me concentrar melhor nas atividades. Os efeitos
colaterais ainda estão presentes, mas isso vai passar assim que eu me
readaptar às dosagens. Porém, cada vez que eu coloco uma cápsula na mão
parece que seguro a representação da minha fraqueza.
É sempre assim. Às vezes dura um minuto inteiro, às vezes é questão de
milésimos. Mas a sensação é sempre a mesma.

Assim que tudo voltou ao normal, dois alunos novos ingressaram na nossa
turma. Eles se apresentaram como Danilo e Elis, irmãos gêmeos, que de
gêmeos não têm nada. Para não dizer “nada”, ambos apresentam cabelos
castanhos ondulados, pele oliva e olhos castanhos, mas as semelhanças
acabam aí.
Elis é baixa como eu – não sou mais a única! –, mas o garoto é bem alto.
Ela é gorda, mas somente o bastante para atiçar a odaxelagnia nos outros,
enquanto ele é fino como a fatia de cenoura que minha mãe rala para pôr no
arroz. Danilo mantém uma postura parecida com a de Zaph, ou seja, lá vem
problema. Mas a menina assume uma aparência extremamente meiga e
acanhada.
Os irmãos se sentam no final da última fileira à direita, na minha diagonal
e a uns dois renques além de mim. Ficam em cadeiras subsequentes e
cochicham algo entre si, antes que a atenção de Danilo seja roubada pelo
grupo de garotos mais próximo. Elis abaixa a cabeça e se afunda na cadeira,
mexendo no celular. Nenhuma garota vai falar com ela? Olho para as
meninas sentadas na frente dela e nada. Nenhum movimento. Bando de vacas
necessitadas de vibradores.
Meu olhar cruza com o de Elis. Eu lhe envio um sorriso e ela retribui, um
tanto enrubescida. Assim que ela desvia o foco para a tela do celular, eu me
torno para Julia, pousando uma mão em seu ombro e chegando perto. Espero
ela interromper a sua escrita para virar a cabeça de lado e prestar atenção no
que eu vou dizer.
— Devíamos falar com a garota nova.
— Pensei nisso também — implementa Ju. — Nenhuma das garotas foi
falar com ela.
— Ela parece ser legal.
— Vamos pegá-la e criá-la como se fosse nossa! — Ju ergue seus braços e
dá dois tapas em cada bíceps nada musculosos. — E essas duas montanhas
vão protegê-la daquelas vacas que não sabem nem mugir direito.
— Desculpa, mas a menina nem pôs os pés direito na sala e você já quer
adotá-la? — Melissa se intromete na conversa, sussurrando da outra fileira à
esquerda.
— Claro, olha que coisinha mais fofinha, môdesu — Ju responde, como se
estivesse falando de um bebê.
— Achei que só eu tinha notado — Melissa retruca.
— Ih, minha filha, nada escapa desses olhos de águia aqui, ó.
— Hoje você tá muito animalesca — diz Mel, sorrindo.
— Reaw. — Julia imita as garras de uma tigresa com uma piscadela.
D
urante o intervalo entre as aulas, eu tomo coragem para ir falar com
Elis. Facilita o fato de ela estar lendo um livro que havia me
interessado há alguns dias. Ela está sentada no banco de cimento do
pátio, afastada da aglomeração. O livro está aberto em seu colo e ela parece
tão absorta na leitura que nem se incomoda com os cachos fulvos que caem
sobre seu rosto. Eu me sento ao seu lado, inclinada para frente, a fim de ver
seu rosto por trás das mechas rebeldes.
— Oi.
Elis se vira para mim com espanto e recua um tanto encolhida. Será que eu
pareço ameaçadora, ou estou tão mal arrumada assim? Já sei. Meu cabelo
deve estar parecendo um abacaxi em chamas como sempre, já que não sei
fazer um coque decente. Como ela não fala nada, decido continuar:
— Eu estava paquerando esse livro há maior tempão, mas sempre fico em
dúvida. Ele tem triângulo amoroso? Odeio triângulo amoroso. Ah, desculpe,
meu nome é Alice. Você é Elis, né?
Ela vira o rosto com um sorrisinho tímido e põe o cabelo atrás da orelha
pequena.
— Isso. Prazer, Alice. — Sua voz é bem forte para a menina miúda que é.
Notar esse contraste alarga meu sorriso.
— Essas são Julia e Melissa, minhas escudeiras. — Aponto para as
meninas de pé em nossa frente.
— Ei — Julia repreende.
— Desculpa chegar assim. — Eu retorno a encarar Elis com um semblante
mais encolhido, dessa vez. — Sou péssima para puxar assunto, mas eu
realmente estou interessada nesse livro. É bom?
— Bem — ela põe o marcador entre as páginas e fecha o livro,
repousando-o nas pernas — é meio lento no começo, muita introdução, mas
achei importante pra explicar a trajetória da personagem. — Ela me encara
diretamente e não vejo mais receio em seu olhar. — Acho que se você gosta
de fantasia, uma personagem forte e engraçada, com intrigas políticas e... —
Suas bochechas ficam um tanto vermelhas. — Er…
— Sexo? — Julia complementa.
— É. Se você gosta dessas coisas, então acho que deveria ler.
— E você gosta? — pergunto.
— Dessas coisas? Eu gosto de fantasia, não fantasias sexuais, eu nunca
tive, quer dizer — Elis enrubesce novamente, suas mãos se agitando e seus
olhos sem focar em nada por mais de quinze milésimos de segundo —, eu
acho, não sei, hã, mas também não quer dizer que eu não goste de sexo, quer
dizer, eu, er, acho que todo mundo gosta de sexo, mas…
Uma gargalhada irrompe minha garganta e isso desencadeia risos nas
meninas também. Depois de recuperar o fôlego, eu ponho a mão nas costas
de Elis para tranquilizá-la e, de certo modo, agradecê-la por me fazer rir.
— Tá tudo bem, relaxa. Eu me expressei mal. Eu estava falando do livro,
se você gosta do livro. — Rio mais um pouco.
— Ah, bem, é, eu tô gostando — ela diz, embaraçada.
— Desculpa, mas é que foi tão fofo. — Agora eu entendo por que Zaph me
faz corar de propósito.
— Você veio de outro país, não é? — Julia se abaixa de cócoras para ficar
mais próxima à altura dos olhos de Elis, que passa a mirá-la. — Ouvi seu
irmão se gabando das garotas que ele pegava lá.
Elis retorce a boca e a testa ao ouvir isso.
— Desculpa por isso — ela diz.
— Ih, fia, a gente tá acostumada. — Julia abana a mão.
— São apenas homens sendo homens. — Melissa move os ombros de
braços cruzados.
— Como é lá? — pergunto, de fato querendo saber a diferença de cultura
entre Brasil e Inglaterra.

Quando o professor virou as costas, dei uma checada em Elis de soslaio,


atravessando as duas fileiras de cadeiras entre nós. Assim que seus olhos
encontraram os meus, minha primeira reação foi retrair os lábios, posicionar
os dentes sob o inferior e mover a língua tão veloz quanto uma iguana. Elis
acabou explodindo numa risada rapidamente abafada pela mão sobre a boca.
O que chamou a atenção do professor e de alguns estudantes, mas voltamos a
olhar para os nossos respectivos cadernos e fingimos que nada aconteceu.
No final da aula, Elis nos contou um pouco sobre sua trajetória, como ela
foi, ainda pequena, para Londres e sobre a morte do pai, o que trouxe sua
família de volta ao Brasil. Como o clima ficou meio pesado, a convidamos
para ir tomar um sorvete. Já se tornou um hábito entre nós: bate uma
sensação ruim, sorvete. Sorvete e lasanha são as respostas para tudo.
— Você conhece essa autora? — pergunto, me inclinando para ela
enquanto caminhamos lado a lado pelo corredor escuro do térreo, em
direção à porta do colégio. Eu lhe mostro minha estante virtual do Skoob
através do celular, me esquivando dos alunos ao nosso redor.
— Não. — Elis prende uma mecha do cabelo volumoso atrás da orelha
para olhar a tela com mais atenção. Nela aparecia a capa de um romance
histórico.
Nas semanas que se seguiram, Elis finalmente conseguiu autorização do
professor para mudar de lugar, ficando mais próxima de nós ao se sentar
atrás de Melissa. Conversamos sobre o show do queridinho Veeran Cox que
se aproxima, e os olhos castanhos claros de Elis cintilaram.
Elis comprou o ingresso na pré-venda, pois assim vai ter acesso ao
camarim, então nós ficamos encenando como ela deveria se portar quando
encontrasse com ele. Rimos até perder o fôlego das milhares de
possibilidades, inclusive uma de Julia o reverenciando e dançando valsa
com ele – eu, no caso.
Elis se revelou uma pessoa muito dinâmica e inteligente, embora bastante
tímida também. Mais do que Melissa e eu juntas. Assim como Julia e Mel, eu
senti uma conexão natural ali, e isso acalenta meu coração. E finalmente
tenho alguém com quem conversar sobre filmes mudos!
— Ela é maravilhosa. Cara, não tem um livro dela que seja ruim. —
comento.
Paramos diante do portão, onde o irmão de Elis está conversando
calorosamente com seus próprios amigos. Falando em “calor”, os dias frios
foram deixados para trás e a temperatura voltou a subir, com o sol
resplandecendo no céu de água-marinha. Ainda há um frescor no ar e a chuva
nos obriga a usar casacos, mas já dá para ter uma noção de como será o
verão.
— Tem um que eu acho que você vai gostar. É nesse estilo — ela disse,
pegando o próprio celular e o desbloqueando. — Só que fala sobre magia
celta. É muito legal, porque não retrata como fantasia, mostra mais como era
a religião deles mesmo. Aprendi muito sobre isso lá na Inglaterra. — Quase
posso sentir meus olhos cheios de encantamento. A cabeleira de Elis balança
de um lado para o outro, procurando algo. — Onde está Julia?
— Ah, ela deve ter ido ao banheiro — digo, trocando o peso da perna. —
É meio que um ritual dela antes de sair da escola.
— Sério? — Elis inclina a cabeça com uma sobrancelha arqueada. Ah não!
Até tu, Brutus? Eu apenas elevo os ombros e mostro as palmas da mão para
cima, como quem diz “fazer o quê?”. A pequena Elis guina-se para mais
perto, seu semblante parecendo consternado, e abaixa o tom de voz. — Ela
tem algum problema intestinal? Minha mãe tem um remédio ótimo.
Meu Bathala! Eu gargalho com a seriedade de Elis e com Julia, que não
poderia ter reaparecido num momento melhor.
— Qual a graça? — pergunta ela, e eu olho em sua direção, sem esconder
o sorriso largo.
— Elis te chamou de cagona.
— QUÊ?! — A pobre coitada fica vermelha dos pés à cabeça.
— Elis! Eu nunca esperaria isso de você. Oh! — Julia recua um passo e
lança a cabeça para trás, colocando o torso da mão na testa. No entanto, ela
logo volta a encarar Elis com um cenho franzido. — Pera, em que sentido?

Eu deveria ter trazido um casaco. Ô ar-condicionado potente dessa


desgraça de estabelecimento comercial com fins gastronômicos. Meu
Susanoo, que frio do capeta! Eu poderia dizer que a estrutura do lugar é
acolhedora, charmosa, com seus sofás de couro terracota, mesas de madeira
a meia luzes amareladas, aroma temperado, mas não. Alguém avisa a eles
que a gente veio aqui para comer pizza, e não ver neve?
Bem mais tarde, minha mãe decidiu não fazer janta e eu não estava a fim de
ir para o fogão também. Zaph sugeriu uma pizzaria ótima que ele conhece e,
ao mais baixo som da palavra “pizza”, eu já estava de pé pronta para ir.
Depois de uma hora resistindo à tentação de chupar Zaph enquanto ele
dirigia em direção à zona sul do Rio, meu estômago deu pulos de alegria
quando chegamos à pizzaria.
— Frio? — ele pergunta depois de depositar a garrafa de cerveja sobre o
porta-copo na mesa e virar o rosto em minha direção. Sentamos em uma
mesa nos fundos, encostada na parede, estrategicamente posicionada para
não pegar o vento dilacerante do ar-condicionado, porém, nota-se que não
adiantou muito. O clima lá fora está com o céu nublado, mas abafado para
um cacete, por isso não me preocupei em esconder meus braços.
— O que te deu essa ideia? Meu catarro congelado ou meus músculos
atrofiados? — digo esfregando meus bíceps.
— Por que não falou antes? — Zaph segura a barra de seu moletom cinza e
o puxa por sobre a cabeça. — Toma. Pode ficar.
— Para sempre? — Pego o amontoado de tecido espesso e miro o vampiro
com olhos brilhantes.
— Claro que não. É um dos meus favoritos. — Zaph repousa o cotovelo na
mesa e a bochecha na mão, me observando enquanto tento me achar no
casaco enorme. — Por que não trouxe um casaco?
— Não queria estragar meu visual. Tudo — passo a cabeça e os braços
pela abertura — tem que ser planejado.
— Falou a menina que vai na rua quase de pijama.
— Ocasiões, Zaph, ocasiões.
Aaah, que delícia de casaco quentinho.
Minha vestimenta varia de acordo com o meu humor. Hoje eu estou me
sentindo sensual e casual, então escolhi vestir um body com decote cruzado
de alça fina – o que agradou e não agradou Zaph ao mesmo tempo, mas ele
que aceitasse – com uma calça jeans e tênis, enquanto o vampiro usa uma
blusa lisa azul por baixo do casaco.
— Humm. — Zaph se inclina para perto de mim com os olhos estreitos e
um sorriso sugestivo. — Quer dizer que sair comigo é uma ocasião especial
o suficiente para ter cuidado ao escolher uma roupa? Então não vai ter
problema se eu te comprar umas fantasias sensuais, não é?
Eu queria rebater, dizer que eu jamais faria algo assim, mas, merda, eu
faria.
— Depende da fantasia — digo, contendo um sorriso envergonhado e Zaph
expande mais o dele.
GLÓRIA A KALI! A pizza chegou!
Não senti remorso algum ao comer quatro belas fatias de pizza. Afinal, era
tamanho família e Zaph não precisa disso, então era como se eu a tivesse
toda para mim.
Satisfeita, feliz por estar com a pessoa que amo e quentinha dentro do
colossal moletom com o perfume de Zaph, eu sorria de ponta a ponta quando
saímos de mãos dadas da pizzaria. Tadinho, eu vou dar um prejuízo à
carteira desse moço.
Zaph estacionou o Audi no último andar, então pegamos o elevador – onde
o abusado tentou me bolinar apalpando minha bunda “discretamente” para
não alarmar o casal que estava na nossa frente, e eu tentei “discretamente”
bater em sua mão – e, assim que as portas se abrem, eu corro e pulo em suas
costas. O vampiro cambaleia, mas logo me apoia pela traseira. Me agarro ao
seu pescoço e despejo um beijo em sua bochecha.
Ele me carrega nas costas, olhando para cima, até... Espera, o que ele está
fazendo?
— Hã, Zaph, o carro está pra lá. — Aponto com o braço para a direção
oposta de onde ele está nos levando.
— Eu sei.
— E você está indo para a beirada do prédio por quê...?
— Para te mostrar a vista daqui de cima. — Ele tem razão. Havia parado
de chuviscar fazia algum tempo. O céu ainda está encoberto, mas as luzes da
cidade abaixo, a praia iluminada pelos postes, a avenida com os automóveis
correndo dão um ar de quadro pendurado numa sala chique. Realmente é
lin... — E te foder.
Cuma?
— Desculpe, acho que não ouvi direito. — Zaph continua me carregando, o
vento ficando mais forte conforme nos aproximamos do parapeito. Calma
coração, acho que o vampiro não é louco o suficiente para querer transar no
peitoril do estacionamento de um edifício, com mais de sei lá quantos metros
de altura. Não é? — Zaph?
O filho da mãe nada responde, apenas marcha até chegar perto da beirada.
Mas então — OPA! —, ele faz uma curva abrupta na estrutura da escada de
emergência e subitamente me vejo no chão. Um tanto desequilibrada pela
velocidade, bambeio para trás e de repente minhas costas são postas contra
uma parede de cimento. Zaph se assoma sobre mim, me protegendo do vento
que balança meus cabelos. Seus antebraços estão escorados na parede, seu
olhar de rutilo e seu sorriso mordaz me dizem que está tramando algo.
— Adorei te ver no meu casaco — ele diz e se inclina até ficar com o nariz
a metros do meu. Minha respiração falha. — Quero saber, Alice... Alguma
vez você já pensou em fazer sexo ao ar livre?
Eu me engasgo com minha própria falta de ar, mas só pigarreio.
— E-eu... nunca... hã, eu nã... eu não quero ser vista, mas, er, hã, talvez... e-
eu...
— Você gosta do perigo. — O sorriso de Zaph consegue ficar ainda mais
ferino quando a mão dele pega minha nuca e seus orbes se tornam carmim
vagarosamente. Meu coração perde não uma, mas trocentas batidas.
— Há câmeras — digo.
— Não aqui. Estamos num ponto cego. — Os lábios úmidos e macios de
Zaph passeiam pela minha bochecha. Mal sinto o vento frio graças ao calor
que percorre meu corpo e se concentra na ponta dos meus seios e no meio
das minhas pernas.
— Por isso estava olhando para cima? — Libero uma risada, sentindo
minha intimidade pulsar quando o vampiro aproxima a boca do meu ouvido.
— Da.
— Se formos pegos, seremos presos. — Eu espalmo minhas mãos em seu
abdome para mantê-lo longe, mas ao sentir os detalhes da sua musculatura
sob meus dedos é inevitável passear até seu peitoral.
— Não seremos pegos. Crede-mă. — Seu hálito sopra na minha pele
quando seus lábios roçam nos meus, enviando uma onda por meio dos meus
nervos até causar uma dorzinha na minha intimidade. Mordo o lábio outra
vez, indecisa, porém a umidade escorrendo entre minhas pernas me diz a
resposta.
— Tudo bem.
— Fată mea. Fată ciudată mea. Agora — ele afasta um pouco o rosto e
pega meu queixo entre os dedos — me mostre sua garganta. — Assim o faço,
colocando a língua para fora. — Isso. Eu quero ver seu rosto assim quando
eu gozar dentro. — Sem mais, Zaph cola sua boca na minha e eu me rendo.
É fácil esquecer que estamos num estacionamento com vista para a praia
quando o corpo grande de Zaph esconde o meu e seu casaco me esquenta por
fora, enquanto seu beijo o faz por dentro.
Seguro o rosto dele, um tanto nervosa com o rumo das coisas, mas ao
mesmo tempo confiante e... curiosa. Guaraci meu, eu não deveria fazer isso.
Eu não deveria deixá-lo fazer isso... Mas eu quero viver essa aventura. Essa
e muitas outras junto a ele.
A mão de Zaph, que segurava meu pescoço, desce pelos meus seios,
provocando uma reação em meus mamilos, passa pela minha barriga e
alcança a barra do casaco que bate em minhas coxas. Zaph move sua língua
na minha, com ternura e fome.
Zaph suspende o casaco e o passa pela minha cabeça. Sua outra mão, que
estava apoiada na parede, de repente pega meu seio com tudo, me fazendo
soltar um gemido no mesmo instante em que voltamos a nos beijar. Eu não
sabia que precisava tanto daquilo até ele o fazer. Zaph aproveita o decote
para deslizar a mão e o contato da sua palma com meu seio sensível é
inebriante. O dedão do vampiro torneia meu bico protuberante, remexendo-o
e brincando com ele sem precipitação ou afoitamento algum.
Meu murmúrio é o alerta que Zaph precisa para quebrar o contato das
nossas bocas e descer o rosto até meus seios. O Tertius aparta mais o decote
para o lado, expondo meu mamilo à baixa temperatura, e abocanha minha
auréola. Sua mão aperta a base do meu peito como se este fosse de pelúcia.
Seguro sua cabeça no lugar para firmá-lo daquele jeito, chupando meu seio
com júbilo, usando sua língua para fazer círculos grandes e pequenos, o que
repercute até minha amiga do andar de baixo. Adoro notar como ele se
delicia e se diverte com o meu corpo. Ver seu prazer só me dá mais prazer.
Zaph suga mais forte e descola os lábios da minha pele com um estalo,
focando no outro bico.
— Isso, Zaph, me mama.
O vento frio bate na minha auréola molhada e uma corrente de eletricidade
misturada a um arrepio se propaga até o meio das minhas pernas.
Porém, logo depois de mordê-lo um pouco mais forte, o vampiro se afasta,
me encarando com seus olhos escarlates, vibrantes de desejo, e começa a
abrir o zíper da minha calça sem quebrar o contato visual. Ele a abaixa até
meus joelhos, ficando de cócoras. Todos os seus movimentos conservam
uma tranquilidade que agoniza minha intimidade, porque ela o quer dentro
dela e porque o suspense de ser pega ali a deixa mais lubrificada. Zaph
acaricia meus quadris de modo beato e adorador, tirando proveito para relar
seu dedão em meu clitóris, por sobre a calcinha. Ainda bem que pus uma de
renda. Obrigada, Julia. Seus dedos longos se movem para frente e para trás
sobre o tecido.
Meu vampiro puxa a calcinha empapada junto ao body para o lado e
enterra sua cabeça... Ai, Pai amado. Quando a ponta da língua de Zaph
passa, lenta e estudiosamente, por cada canto da minha abertura, eu pendo a
cabeça para trás, encostando-a na parede, e não consigo impedir um gemido
longo.
— Shhh — ele diz, com a boca a milímetros dos meus lábios vaginais. Ao
reabrir as pálpebras e abaixar o rosto, encontro seus olhos granadas me
fitando de baixo. — Quietinha, dragostea mea.
Mordo o lábio inferior.
Seguro as madeixas sedosas e repicadas de Zaph conforme ele volta a
lamber meu clitóris devagar. Eu vou gozar, Jesus, eu juro que vou. Ele o
chupa com esmero, saboreando-o. Fecho os olhos, apertando mais as mãos
na cabeça dele. Minhas coxas tremem querendo rebolar em sua boca e
mordo mais forte meu lábio para fazer silêncio, enquanto eu sinto a língua do
meu namorado me invadir. Ela explora cada quina e devora minha boceta.
As mãos de Zaph abandonam a parte posterior das minhas coxas e seus dois
dedos engancham em minha vulva e a abrem, permitindo que sua língua
avance ainda mais fundo. Coloco uma mão sobre a boca para conter o desejo
incisivo de gritar seu nome. Porém não refreio um gemido quando o sinto
introduzir dois dedos dentro da minha vagina apertada, melada e quente. Sua
língua molhada e aveludada retorna deambular ao redor do meu ponto ideal
ao passo que seus dedos me estimulam com movimentos de vai e vem, e a
sensação percorre meu corpo, partindo da minha boceta até meu cérebro, me
deixando bamba. Santo Deus do Leão, da Feiticeira e do Guarda-roupa,
que orgasmo bom.
Separo as pestanas, ofegante, e vejo a cidade abaixo de nós iluminada por
centenas de pontos âmbar, vermelhos, esmeraldas, brancos... A temperatura
do meu corpo já está tão elevada que a brisa noturna nem me incomoda mais.
“O frio não vai mesmo me incomodar!” Porra, Alice, que merda de
momento para se lembrar de Frozen!
Parecendo satisfeito com o resultado, Zaph se levanta, abrindo a própria
braguilha.
— Abra a boquinha. Isso. — O vampiro traz os dedos lubrificados que
estavam dentro de mim até os meus lábios e eu os chupo devagar,
saboreando minha própria goza.. Posso ver suas íris chamuscarem.
Agarro o pescoço de Zaph com as duas mãos, puxando-o para um beijo, no
exato momento em que me suspende pela cintura com um dos seus bíceps,
enquanto o outro braço pega minha coxa e me dobra para cima, içando
minhas pernas presas pela calça jeans. Ele me equilibra com as mãos na
minha bunda, deixando minhas pernas unidas, mas com as panturrilhas para
os lados por sobre seus antebraços. Eu o puxo para outro beijo conforme
sinto a cabeça macia de seu pau deslizar pela minha abertura.
Zaph me penetra sem pressa e sem força, me abrindo com sua largura, ao
mesmo tempo em que empurra para dentro de mim um sentimento morno,
brando, que preenche toda a minha caixa torácica. Zaph começa lento, indo e
vindo torturantemente devagar. Me firmo em seus ombros, trazendo-o mais
para perto, e sua fragrância inebria meus sentidos. Nossas línguas travam
uma luta, ávidas e famintas uma pela outra, mas repletas de zelo.
O vento trespassa por nós e arrepia minha pele, me lembrando que estamos
transando atrás da saída de emergência, em frente ao parapeito do edifício,
com a vida noturna da Gávea abaixo de nós. Isso faz minha vagina se
contrair mais e Zaph solta um grunhido gutural com nossas bocas unidas. É
esquisito, me sinto muito subjugada, perigosamente exposta e dominada, mas
gosto disso.
Nos apartamos um pouco para pegar ar e arremesso a cabeça para trás. O
vampiro entra e sai de mim com seu membro ereto, raspando as paredes da
minha intimidade cada vez mais rápido. Sacolejando e sentindo o impacto da
minha bunda em sua pelve, eu o puxo e passo a língua pelos caninos longos
de Zaph, como sei que ele gosta, contornando-os devagar. Ele aumenta a
velocidade, levando meu quadril em direção ao seu com força.
— La dracu, Alice! — Zaph sussurra, afundando ainda mais seu pau em
mim, e eu não consigo suprimir um gemido. — Essa boceta apertada... — Ele
me acerta bem no fundo, bem onde nubla minha mente. Mordo o lábio,
prendendo um ronronar na garganta, quando sinto a onda de prazer me
percorrer a partir do meu útero até... preencher... oh!
Sei que Zaph pode sentir minha vagina se encolher de deleite, pois ele
diminui o ritmo, prolongando o tempo do clímax.
Não vou negar, minha coluna está doendo muito.
— Você... — digo, arfando e um pouco tonta — vai ter que pagar meu
RPG.
Zaph solta uma risada perto do meu rosto e eu o beijo de um jeito suave à
medida que recupero o fôlego. Meu coração bate forte pelo exercício e pelo
amor que invade cada válvula dele. Aos poucos, meu vampiro me põe de pé,
deslizando para fora de mim. Pouso a mão em seu peito, ainda um pouco
arfante, degustando o calor na minha pele devido à... “atividade física”.
Tenho uma vaga noção de Zaph segurando minha mão e se movendo para trás
de mim.
Meu Alá, olha o meu estado. Não, mentira, não olha, não. Estou toda
desalinhada, quase pelada, meu cabelo deve estar parecendo a fogueira de
São João.
Sinto a presença bem-vinda de Zaph às minhas costas quando ele se inclina
para o meu ombro e começa a despejar beijos delongados.
— Eu ainda não te fiz gozar — digo, a respiração já normalizada. Minha
mão livre vai para trás em busca do pau de Zaph e, como um imã, encontra-o
de pronto. Fecho minha mão ao redor de sua circunferência melada, quente e
de veias saltadas... Quer dizer, tento fechar.
— Você leu minha mente — Zaph murmura no meu ouvido e retira minha
mão de seu membro, segurando ambos os meus pulsos para trás. Ele une
minhas munhecas, mantendo-as juntas com uma de suas mãos, enquanto a
outra se estabelece no meio das minhas costas e a empurra para frente.
— Afaste as pernas. — Sua voz também sai embargada pela volúpia, o
sotaque arrastado ao vento.
Poucos segundos depois, sinto a glande de Zaph entrar novamente pela
minha vagina, deslizando e me abrindo aos poucos.
— Adoro quando você me alarga — confesso, mas não sei se ele ouviu.
— Que bom — ele responde. — Porque adoro te alargar.
Zaph recomeça suas investidas violentas como ondas de um mar revolto e
meus peitos as seguem. Reprimo um gemido alto. Eu quero falar para ele não
gozar dentro, mas... O QUE FOI ISSO? Ouço um barulho de motor próximo a
nós. A vibração do medo me percorre, entretanto, há também uma sensação
de... excitação, de ser pega no flagra enquanto Zaph me fode por trás, com os
braços esticados, totalmente à sua mercê. Isso não deveria ser certo, eu não
deveria sentir isso, mas não consigo evitar.
Minha boceta se espreme, ouvindo o motor do carro roncar e sentindo a
brisa da cidade abaixo de nós me atingir. Minha amada Freya, que não
sejamos pegos, que não sejamos pegos.
Zaph estoca mais rápido e mais fundo, seu pau intumescendo conforme
minha boceta o pressiona mais e mais. Logo depois sua musculatura trava e
posso sentir seu jorro morno no meu âmago.
Noto que não há mais ruídos além dos urbanos e me movo lentamente para
Zaph soltar meus pulsos. Ele permanece com uma de suas mãos atada à
minha, entrelaçando nossos dedos. Me viro para meu namorado e bato em
seu peito, com a testa franzida.
— Você gozou dentro!
— Eu avisei que ia. — Zaph pega meu rosto de supetão e prensa sua boca
na minha. — Não vai acontecer nada.
— Você não tem como saber.
— Tá bom, eu prometo que da próxima vai ser de camisinha. — Meu bico
diminui junto com a minha rápida ira e desvio olhar. Divago as mãos pelo
peito de Zaph e me guino para ele, ruminando o que estou prestes a propor.
— Talvez da próxima você possa só gozar fora — falo enquanto piso no
meu calcanhar para tirar meu tênis. Remexo na gola da blusa de Zaph com os
dedos, tentando não focar na umidade escorrendo entre minhas pernas. —
Senão vamos ter que esperar até amanhã e... — elevo meus olhos para o
vampiro grudado a mim — eu não quero esperar.
As íris escarlates de Zaph parecem resplandecer.
Zaph me puxa pela cintura, espremendo meu peito em seu abdome,
enquanto eu me remexo para tirar a calça jeans e deixá-la escorrer até o
chão, para então chutá-la para o lado.
— Tem certeza? — ele pergunta baixinho, com o nariz quase colado ao
meu. O sorriso que começa a aparecer em sua boca faz meu coração derreter.
Eu adoro vê-lo assim e adoro saber que sou eu quem o deixa assim. Passo as
mãos por seus ombros, sentindo seus músculos até segurar em seu pescoço.
— Só tenta não quebrar minha coluna.
Zaph ri e me beija. Retribuo, respirando fundo e tentando transmitir todo o
amor que eu sinto por ele, toda a alegria que esse homem me faz sentir.
Não demorou muito e eu já estava ajoelhada no cimento áspero e
empoeirado, colocando o pênis de Zaph na boca com gosto. Muito gosto. O
sabor dele, a textura... Argh, meu Santo Onofre do Bom Útero, eu nunca
imaginei que eu ia gostar tanto de chupar um pau. Ver as veias de seu
pescoço daquele ângulo enquanto ele se controlava para não emitir sons
altos com a cabeça pendida na parede é bom demais. E melhor ainda é o
modo como ele às vezes segura meu cabelo entre os dedos e empurra seu
quadril, fodendo a minha boca.
— Isso, beba tudo, draga mea — sussurrou ele, entreabrindo a boca em
puro deleite ao me observar engolindo sua porra. Adoro sentir o pau dele
pulsar em minha língua, sua grossura preencher minha boca.
Zaph me colocou em seu colo, de frente para ele dessa vez, e escorou as
costas na parede. Enquanto nos beijávamos ávidos, escorregou até o chão,
ficando sentado de pernas abertas. Eu o inseri em mim e rebolei, arrancando
grunhidos graves do vampiro enquanto ele me segurava pela cintura.
— Argh, Alice! — Sua voz carregada pela luxúria, rasteando meu nome em
seu sotaque e tentando manter um timbre baixo, só faz eu me entregar mais a
essa loucura. Eu o sinto acertando meu núcleo e não quero parar. Não
consigo parar. — Desse jeito que vou gozar rápido, meu amor.
Eu o cavalgo insaciável, como se não estivéssemos na cobertura do
estacionamento de um maldito shopping com dezenas de pessoas ligando
seus carros a toda hora.
Zaph me tira dele com pressa e goza fora como prometera, mas isso não
significa que desejamos parar. Ah, não, senhoras e senhores, não mesmo. O
vampiro me gira, obrigando-me a ficar de costas para si, e me deita para a
lateral. Dessa forma, Zaph chupa meu mamilo com força o bastante para
deixar marcado à medida que segura minha perna flexionada para cima com
uma mão, expondo minha intimidade glutinosa ao vento gelado. Ele
massageia meu peito com a outra por baixo da costela e remexe seu quadril,
metendo sem cessar. Eu mordo tão forte o lábio para segurar o gemido que
almeja romper minha garganta que o faço sangrar. Zaph ataca minha boca da
mesma forma que ataca meu bico enrijecido com os dedos, espremendo-os.
Sua língua andarilha pelos meus lábios, voraz, cobiçoso, e eu permito,
emitindo grunhidos baixos, cada vez mais molhada enquanto ele dilata dentro
de mim, pronto para ejacular outra vez. Ele desliza para fora e libera um
ronronar trovejante que aquece meu pescoço ao mesmo tempo em que mais
um carro liga seu motor.
— Só mais um pouco — digo entre um informativo e um pedido, ofegante.
— O quanto você quiser.
Monto em Zaph outra vez, ficando de costas para ele, deliciando-me de
olhos fechados e boca aberta com a sensação de sua grossura me abrindo.
Apoio minhas mãos em suas canelas enquanto abaixo e levanto a bunda para
senti-lo entrar e sair com facilidade.
— Argh, Zaph. Isso é tão bom. Seu pau é tão bom — eu gemo mais para
mim mesma, com medo de alguém ouvir.
— Isso, senta no pau que você ama, senta. — Zaph firma suas mãos na
minha bunda, usando seus dedões para afastar o vale que revela meu ânus
para ele.
Eu quero dizer a ele para jorrar dentro, me rechear com a sua semente, mas
a parte racional do meu cérebro não permite. Um farol ilumina a mureta, ao
lado da parede que nos esconde.
Zaph começa a mover os quadris para combinar com os meus movimentos,
também sem ser capaz de reter a necessidade de buscar o ápice junto a mim.
Eu abaixo a cabeça, olhos fechados, degustando a fremência que incita meu
interno.
A vontade de deixar sair um gemido alto é alucinante, então premo os
lábios unidos.
Zaph cresce em minha vagina e prendo um ganido ao sentir o orgasmo
ocupar todos os meus sentidos.

— Você não era assim antes — Zaph diz à medida que ajeita meu cabelo
logo depois de me vestir e recolocar o seu moletom em mim.
— Antes, eu estabelecia barreiras para não ceder à tentação. — Um
sorriso brinca em meus lábios, observando-o cuidar de mim. Para de se
derreter, coração! Que coisa chata!
— Ah, aí agora você se revela uma safada depravada?
— Você ainda não me conhece direito, Senhor Tertius. — Agora Zaph
abaixa seu olhar, que voltou a ser uma pirita talhada com uma centelha de
divertimento, e um sorriso torto ameaça brotar.
— Mas quero conhecer — Sua mão passa lentamente por uma mecha do
meu cabelo e o contato de nossos olhos não se rompe. — Cada canto e
nuance seu.
— Eu também, Zaph. — Me seguro em sua blusa, aproximando nossos
corpos, ainda que eu tenha que levantar mais o queixo. — Mesmo o seu lado
mais sombrio. — O sorriso dele lentamente desaparece. — Eu sei que você
não gosta, mas acho que precisamos disso.
Um silêncio um tanto incômodo se estabelece. Eu o vi matar vampiros a
sangue frio, assim como Melissa e minha mãe relataram, mas isso não
diminuiu o sentimento que sinto por ele. Me assusta, sim, imaginar o que o
futuro nos reserva, mas agora eu só quero viver o presente. Segundos depois,
o sorriso lateral de Zaph está de volta e meu coração se alivia.
— Mas aí qual é a graça? Tem que deixar uns misteriozinhos. — Ele beija
a ponta do meu nariz. — Te iubesc.
Me aconchego mais em seu abraço, pressionando meu rosto contra seu
peito. Deixo seu perfume doce, a maciez de sua blusa e o calor de seus
braços me preencherem.
É gostoso sim, me sinto completa toda vez que me aninho no corpanzil de
Zaph, mas é péssimo saber que lá no fundo, no fundo do meu abisso, mesmo
que escondido por camadas e mais camadas de sensações como essa, tão
finas quanto lençóis baratos, ainda resida a insegurança e a tristeza, o que
torna tudo uma simples ilusão. Como se os remédios e o amor que eu recebo
fossem miragens num deserto, apenas abafados por uma tempestade de areia.
E
nfim chega o final de semana do show do Veeran, e Zaph me manda
uma mensagem criptografada por emojis que, após ler e reler por duas
horas, bolar uma análise de vínculos com fios vermelhos, entendi que
ele estava me chamando para sair. Depois que o vampiro de 314 anos
aprendeu a usar o Whatsapp, ele tem me perturbado mais que nunca com
figurinhas e gifs. Shiva amado, por que eu fiz isso comigo mesma?
Os ingressos do show do Veeran se esgotaram em menos de 48 horas e uma
parte de mim agradece por isso. Menos uma desculpa para não ir ao evento.
Em compensação, Zaph me levou a uma encosta no meio da estrada que
liga Mangaratiba a Angra. O céu ostenta um azul profundo que enegrece os
cantos mais escondidos por entre as folhagens. Mesmo com o coração quase
saindo pela boca, eu segui o vampiro por dentro de um paredão de árvores e
arbustos, que cismavam em agarrar minha blusa e cabelo com seus galhos
finos. Depois de engolir meia fauna atlântica, me deparei com uma das cenas
mais exuberantes que eu já vi.
A lua cheia resplandece no alto, as incontáveis estrelas contra o véu da
noite a acompanhando, luzindo nas ondas do mar que se estende ao infinito,
sem qualquer interferência humana à vista… Como se nós nunca
houvéssemos estado aqui. Natureza completa, pura, intimidadora e
estonteante.
— Como você encontrou esse lugar? — perguntei, sem tirar os olhos de
todo o enquadro.
— Em cada estado ou província de país que visito, eu elejo um lugar
favorito. No Rio, esse é o meu — Zaph disse enquanto me puxava pela mão
até próximo do desfiladeiro.
O show do Veeran no Maracanã devia estar começando, Elis e Julia
gritando que nem loucas com certeza, mas, ao mesmo tempo, outro show
acontecia nos céus.
A claridade diminui consideravelmente quando a luz da lua vai sendo
comida pela sombra, até que reste um fino contorno prata.
— Há algo poético sobre um céu com nuvens, não acha? — digo. A grama
às minhas costas refresca não somente a minha pele através do cropped preto
de meia manga e da saia plissada de cintura alta, mas também... não diria
minha alma, mas algo próximo a ela.
— Não há nuvens esta noite — Zaph, deitado na relva ao meu lado direito,
responde num tom entre o brincalhão e o desdenhoso.
— Eu sei — respondo com um sorriso pequeno, sem tirar os olhos do
eclipse. — Ainda bem que eu não gosto de poesia.
— Disse a garota que escuta sonatas. — Ele libera uma risada rápida e
nasal. — Você é um mistério, fată ciudată.
— Assim como o preto piche entre a lua e as estrelas. — Memórias
invadem minha mente de forma gentil. — Às vezes, eu e Bianca fazíamos
isso. Ela me contava sobre os mitos que deram nomes às constelações. E
algumas nós mesmas inventávamos. — Um sorriso surge involuntariamente
em meus lábios, só para sumir em seguida. Mas a ternura que havia neles
permanece. — Eu me pergunto se ela está lá, olhando pra mim.
Ternura e algo como melancolia. É a primeira vez que penso na época da
clínica de uma forma não… dolorosa.
— Ela morreu? — Zaph questiona.
— Eu não sei. Nunca mais a vi.
— Você gostaria?
Eu já me fiz essa mesma pergunta mais vezes do que eu consigo contar. A
resposta nunca veio fácil. Não sabia se eu preferiria saber que ela se
suicidou, que foi morta ou encontrá-la viva e olhar em seus olhos, tendo
sobre meus ombros o peso da culpa.
— Gostaria. Ela falava com tanta paixão das estrelas, e eu especulava o
que haveria no vão entre elas. — Me viro para Zaph, sentindo a grama fresca
fazer cosquinhas na minha bochecha. O vampiro já me aguardava. Seu perfil
parcialmente escondido em sombras, tão semelhante à própria lua envolta
pela escuridão. — Sabe por que a cor preta é a minha favorita? Todos a
veem como algo obscuro, mas esquecem de que ela é a junção de todas as
outras.
— Então você acha que tem um arco-íris lá em cima? — ele pergunta,
jocoso.
— Talvez. O universo que vemos é composto por partículas de hidrogênio,
hélio, oxigênio, silício, campos magnéticos, elétricos e radiação em
constante choque, o que acabada gerando luz, que por sua vez são ondas
eletromagnéticas. E quando elas encontram elementos distintos, emitem o
que entendemos por cor. O a cor branca é a união de todos os espectros
visíveis a olho nu, ela emana luz. Já o preto é a união de todas as radiações,
inclusive as não visíveis, ele absorve a luz. Por isso não enxergamos as
cores que estão anos luz da Terra. — Há apenas a brisa marítima agitando as
folhas verdes e secas das árvores, os sons dos grilos, cigarras e das ondas
quebrando ao pé do desfiladeiro. Zaph quase sempre tem uma resposta na
ponta da língua, por isso eu torno a olhá-lo e o flagro já me observando, um
sorriso torto no canto dos lábios. — O quê?
— Eu amo a sua curiosidade.
Volto a esquadrinhar a cúpula celeste com seus inúmeros pontos
iridescentes contra o manto azul, quase negro, tentando não enrubescer.
— As pessoas geralmente só enxergam as estrelas e a lua, tão abismados
pelo seu brilho, que não veem quantas coisas maravilhosas estão escondidas
além delas, só esperando para serem descobertas.
— Tipo aliens — ele arrisca.
— É, tipo aliens.
— Quando eu era mais novo, minha mãe me chamava de “Copilul Lunii”,
que significa “Criança da Lua”. — Zaph ri mais uma vez, e eu volto a
admirar seu perfil enquanto ele próprio escrutina o céu. — Ela dizia que
meus olhos foram feitos para iluminar meu caminho assim como a lua faz
com a noite. — Então ele retorna a me encarar, taciturno. — Eu não posso
prometer um mundo melhor. Mas posso lhe assegurar que a acompanharei
por qualquer que seja o caminho que escolher trilhar.
— Eu não quero mudar o mundo, Zaph. Você mesmo disse que tudo é um
ciclo. Tudo que vai, volta. Uma hora ou outra. — Meu olhar é atraído para o
alto, me sinto bem ao expor esses pensamentos sem ser julgada.
É o mesmo princípio. “Gentileza gera gentileza. Então seja a gentileza
que você quer ver nos outros.” Era isso que Bianca costumava afirmar e
seguia à risca, apesar de tudo. Ela era apenas alguns anos mais velha do que
eu na época, entretanto, era a pessoa mais gentil que eu conheci. E é preciso
coragem para ser gentil.
— Mas, para um ciclo acontecer, ele precisa se mover — Zaph diz. — E
todo movimento precisa de um primeiro passo. E então, o que me diz?
Deito a lateral da minha cabeça e sorrio, sem mostrar os dentes, quando
meu olhar bate nos de Zaph.
— Darei o primeiro passo.
Devagar, os lábios de Zaph se esticam num sorriso e toda a sua feição se
ilumina.
— E eu estarei bem atrás de você.
— Eu não quero você atrás de mim, seu perseguidor — zombo, mas volto a
ficar um pouco mais estoica. — Eu quero você ao meu lado.
— Então é onde ficaremos. — Ele move o braço, trazendo sua mão para
perto do meu rosto no espaço entre nós, com o dedo mindinho levantado. —
Pela lua e as estrelas.
Detenho um sorriso no canto de minha boca e dobro meu braço para
encaixar meu mindinho ao seu.
— E as infinitas possibilidades entre elas.
Permanecemos alguns segundos analisando, absorvendo não cada mínimo
detalhe um do outro, mas tudo que nos cerca também. Material e imaterial.
Até que o sorriso acanhado de Zaph desaparece.
— Você sabe que não foi sua culpa, não é?
Abaixo nossas mãos, ainda unidas sobre as gramíneas úmidas, porém
também não sorrio mais. Vasculho as estrelas, viajando de uma constelação a
outra, navegando pelas nebulosas arroxeadas, quase imperceptíveis a olho
nu, à procura de uma resposta, como se a profusão do universo fosse um
reflexo do que habita em mim.
— Alice. Esteja ela do jeito que estiver — Zaph entrelaça seus dedos nos
meus — foi o caminho que ela escolheu seguir para aliviar sua dor. Não
você.
— Eu podia ter ajudado.
— Você fez o possível. Você fez o que estava ao seu alcance. — Meu nariz
começa a arder, mas eu retenho a urgência de chorar. Me lembro do sorriso
largo de Bianca, de seus olhos de turmalinas, iguais ao seu cabelo
encaracolado volumoso e a sua pele. De como ela era destemida, e de como
ficou abatida por causa de Felipe. “Monstro” foi o que minha mãe dissera de
Zaph, “monstruosos” foi como Zaph se referiu aos humanos. O que torna
alguém um monstro? O que torna alguém um ser humano? Talvez tudo seja
apenas questão de perspectiva.
Assim como a culpa.
— Se eu tivesse sido mais forte, mais incisiva… — As lágrimas não se
importam se eu quero deixá-las transparecer ou não, elas vêm de qualquer
jeito e borram minha visão. Chorona. Fracote.
— Você estava debilitada, Alice. Estava lá exatamente para se recuperar.
— Os dedos de Zaph apertam os meus. — Existem pessoas… Existem
pessoas que entram na nossa vida para mudá-la de forma rápida ou devagar,
por muito ou pouco tempo, mas não são elas que decidem por nós.
Eu acreditava que, entre Rafael e eu, eu era a mais culpada por ter entrado
em depressão profunda. Ele teria sido um mero instrumento, um desafio, que
qualquer que seja a força maior que rege esse universo pôs no meu caminho
para me testar, e eu falhei. Não fui forte o bastante. Mas agora repenso,
rebobino tudo o que passou, e, olhando por outro ângulo… Milhares de
fatores encaminham nossas ações, e alguns deles estão muito além do nosso
poder.
Acho que o mínimo que podemos fazer é tentar. O “não” a gente já tem, nos
resta perseguir o “sim”. 1% de chance... Relembro o que Zaph me dissera, e
um sorriso íngreme enrola-se no canto dos meus lábios.
O terceiro dos Cinco Grandes começa a compartilhar do meu gesto, porém
algo além de minha cabeça atrai sua atenção. E o sorriso dele aumenta.
— Parece que temos espectadores. Não faça movimentos bruscos. —
Devagar, viro minha cabeça no gramado. Pontos luminosos esverdeados, um
tanto vaporosos, vagam por entre o breu dos arbustos e árvores à margem do
desfiladeiro. São muito grandes para serem vagalumes, talvez sejam do
tamanho de libélulas, e deixam um rastro cintilante por onde voam.
Embrenhado ao som do mar nas rochas e do vento nas folhas, há suaves
guizos.
— São pixies? — pergunto sem tirar os olhos admirados dos seres mais ao
longe.
— Pixies são criaturas curiosas. Assim como um certo alguém que eu
conheço. — Ouço o farfalhar leve de Zaph se movimentando na grama ao
meu lado. — Elas devem ter vindo xeretar.
— Bando de fofoqueiras.
— Sabe do que elas mais gostam? Ouro.
— Ouro? — Retorno a cabeça para frente com o cenho franzido para Zaph,
que agora tem o rosto a centímetros acima do meu. Ele usa sua mão para
escorar a lateral da cabeça, o cotovelo apoiado no solo fofo. O vampiro
continua portando aquele sorriso pintado em travessura ao mirar as fad...
quer dizer, os “feériquinhos”. Ele remexe no bolso da calça e tira de lá uma
moeda de ouro, em um modelo que nunca vi na vida. Ele a gira nos dedos e
posso ver que há uma mariposa gravada de um lado e, do outro, um olho em
que os três únicos cílios parecem pontas de lanças. — Onde você conseguiu
isso?
— Ganhei de um duende num jogo de cartas. Traz sorte. — Zaph dá de
ombros, com o lábio inferior ressaltado, porém sua expressão contradiz todo
o descaso. Ele fita a moeda, virando-a em seus dois dedos. — Foi essa
belezinha que me livrou da Arachn’y. Assim como a prata fere os feéricos e
licantropos, o ouro fere as bruxas e os bruxos. As asas das pixies são muito
usadas como matéria para produzir Vílačka. E bruxas adoram mascar
Vílačka.
— Então elas usam o ouro para se proteger.
— Da.
Entre os nuances claros e escuros em seus orbes, promovidos pela parca
iluminação, consigo distinguir um pouco de angústia e pesar mesclados à
fúria, enquanto visualiza o passado preso à moeda. Eu quero que ele confie
em mim para se abrir e falar de suas mágoas, que se sinta à vontade para
compartilhar o peso delas, mas sei bem como dói colocar em palavras
aquilo que mais nos machucou e como cada um tem o seu próprio tempo de
cicatrização.
Ai minha Persefone! De repente, uma das pixies aparece bem diante dos
meus olhos e eu tento não saltar para não a espantar. A criaturinha bate
velozmente suas asas membranosas como de besouros, contornadas por uma
luminescência neon em suas articulações. Ela vai diretamente para a moeda
de Zaph, tal qual um inseto atraído pela luz. Através do seu brilho hialino,
posso discernir seus membros, tão finos quanto gravetos, e seu corpo
humanoide minúsculo completamente nu. Noto a ausência de dois dedos,
como também a de uma genitália, porém um rabo de agulha desponta na parte
de trás. Logo depois outra aparece e, instintivamente, eu levanto um dedo.
Ela o olha com curiosidade, seus olhos redondos anfíbios e a cabeça careca
de orelhas pontudas se movendo, até que por fim ela o morde. Os seus
dentinhos afiados na ponta do meu dedo fazem cosquinha, por isso libero
uma risada.
— Mas tem mais uma coisa que as pixies adoram. — Meu foco retorna a
Zaph enquanto a diminuta criatura se diverte com o meu dedo. Admito que eu
não esperava ver em sua feição, um pouco mais acima da minha, as sombras
da volúpia em cada aresta. — Tire a roupa, draga.
Seu tom era uma ordem velada de pedido. Subitamente, me vejo sem ar.
Abaixo o dedo, agora brilhante de purpurina branca. A pixie que estava
sentada nele levanta voo, mas se mantém por perto, observando. Sem tirar os
olhos dos cor de rutilo de Zaph, eu me movimento na grama a fim de arquear
a coluna e cruzar os braços para tirar o top. Ao mínimo toque da maresia
fresca em meus seios expostos, meus mamilos enrijecem.
Eu não sei o que ele pretende, mas aprendi a gostar muito das surpresas
que esse vampiro me reserva.
Zaph guarda a moeda de volta no bolso e encaixa sua mão em meu rosto,
abaixando o seu próprio até unir nossos lábios num beijo tenro. Porém, a
delicadeza começa a ser deixada de lado quando Zaph passeia essa mesma
mão pelo meu seio, apertando-o devagar com o dedão – o que me arranca um
gemido baixo. Contorço as pernas, na ânsia por sentir seu toque em meu
meio.
Seguro seu queixo com a mão livre, degustando do sabor de sua saliva
misturada à minha enquanto nossas línguas ávidas dançam.
Um gemido mais alto e gutural ecoa de mim quando seus dedos longos
finalmente chegam ao meu clitóris por cima da calcinha de renda.
Adendo: dessa vez, foi ele mesmo quem comprou a peça.
Eita! O que... Abro os olhos espantada e descolo nossas bocas num estalo
ao flexionar o pescoço para mirar meus peitos. Eu sinto uma leve sucção e
uma alfinetada no mamilo, como se um peixe o tivesse mordiscado, então
abaixo o olhar. Uma das pixies está deitada na carne macia do meu seio,
saboreando meu bico hirto, e, merda, preciso admitir que é bom. Logo outra
se acomoda, próxima ao meu umbigo, e ambas me sujam com o pó opalino
que exala de suas asas.
Acabo perdendo a concentração quando Zaph volta a me acariciar entre as
pernas. Mal fecho os olhos e o vampiro ataca minha boca. Grunho outra vez,
segurando seu cabelo mais forte do que antes e devorando sua língua. Nunca
vou me cansar disso. Nunca. Passo a ponta da minha língua por um canino
seu e o rosnado que Zaph prende na garganta reverbera por todo meu ser.
Seus dedos agarram a lateral da minha calci... Ai! Filho da mãe, rasgou a
lingerie novinha! Logo sinto outro mordiscar leve no meu mamilo esquerdo.
Ao mesmo tempo em que Zaph insere dois de seus dedos entre minha
abertura molhada, apertada e quente, sinto outra pequena sucção branda em
meu clitóris exposto ao frescor noturno.
Zaph separa nossas bocas, mas roça seu lábio inferior na maça do meu
rosto.
— Isso, inimioara mea, goze no meu dedo.
Sua voz grave entra pelo meus ossículos e percorre demoradamente cada
terminação nervosa minha, me arrepiando de dentro pra fora, da cabeça aos
pés. Zaph movimenta os dedos dentro de mim para cima e para baixo e, antes
que meu cérebro pudesse sequer registrar a informação, meu corpo obedece.
Libero um gemido extenso ao arquear a coluna. A boca de Zaph desce para o
meu pescoço, onde passa sua língua pela minha jugular e amplifica o efeito
intoxicante do clímax.
Ouço sons de guizos e não preciso abrir os olhos para saber que mais
pixies vieram se juntar a nós.
— Eu disse a roupa, não disse? — Zaph relembra ao passo que se ergue e
fica de joelhos. As pequenas criaturas voam ao nosso redor com o
movimento ligeiro, emitindo o cintilar prata de suas asas em contraste com o
breu do eclipse que começa a se desfazer, a lua saindo das sombras de forma
lenta, e as íris carmesins de Zaph encarando-me de cima.
— Tem certeza? — reluto. — Vou ficar toda suja. E você já rasgou minha
calcinha.
Zaph apenas desafivela sua braguilha e revela o membro projetado contra
a cueca boxer preta. Minha boca saliva. Tiro a saia remexendo as ancas ao
passo que Zaph se desfaz do restante da calça e a camiseta, em movimentos
rápidos.
Meus olhos cravam-se desejosos no lento massagear de sua mão em seu
pau coroado pelos cabelos escuros que começam a crescer. Capturo meus
seios com as mãos e os junto.
— Você quer colocá-lo aqui?
Zaph abre um sorriso e se locomove a fim de ficar com os dois joelhos um
de cada lado da minha costela, seu pênis ereto a centímetros acima do meu
rosto.
O Tertius solta um grunhido cavernoso ao remexer os quadris, forçando-se
para dentro e fora dos meus peitos. Sinto um beliscar em meu clitóris e sei
que uma pixie voltou a se aventurar pela minha boceta. Não tarda, sinto outro
formigamento mais abaixo, em minha abertura glutinosa e gelada por conta
do vento. Abaixo o queixo e coloco a língua para fora, e a glande macia de
Zaph a acerta toda vez que se aproxima. Zaph joga a cabeça para trás em um
urro que repercute pelo meu corpo e faz vibrar meus óvulos. Minha
intimidade se constringe ao sentir esse som e mesclar com as sucções leves
dos diminutos feéricos.
Uma delas paira sobre a cabeça de Zaph e ele exibe a língua. Ela se coloca
na boca dele, mas ele não a fecha, apenas degusta da pele lúrida da fada
como se fosse uma bala, sujando a boca de pó furta-cor. Eis, então, que o
vampiro decide abaixar seus orbes escarlates para mim. Eu escancaro a
boca e ele capta a mensagem. Meus lábios cingem sua espessura quente,
porém mal chegam até a metade. Minha língua tateia as veias salientes que o
rodeiam conforme se esfrega nela e sua cabeçorra polposa soca minha goela.
Eu o sugo, permitindo que dite o ritmo das estocadas, permitindo que use
minha boca como usa minha boceta.
Seus olhos faiscantes e sua boca entreaberta ostenta a ponta de seus
caninos crescidos. O vampiro que amo parece absorto, dopado pela volúpia.
Ondas se propagam a partir do meu ventre enquanto as pixies me chupam e
eu chupo Zaph. Uno os cílios, pressentindo o frenesi que me correrá. O
membro de Zaph incha simultaneamente em minha boca com o clímax que
nubla minha mente. O sêmen de Zaph atinge minha garganta em jatos mornos
e eu os engulo.
— É tudo seu, dragostea.
Zaph retira seu pênis de forma demorada, meus lábios não o soltam,
fazendo com que eu limpe sua extensão antes de deixá-lo sair.
Uma pixie sobrevoa meu rosto e flutua próxima ao meu nariz. Abro a boca
como Zaph havia feito e ela pousa em minha língua, estimulando-se como se
para atingir seu próprio ápice. O arrebatamento é imediato.
Rudá do céu, agora entendo porque as bruxas gostam de Vílačka. Além
da textura escorregadia, o pó que o feérico libera é doce, mas há um amargor
no final que aparece no exato momento em que meu corpo adormece em
estática e a mente vira um caldeirão de cores. É nesse contexto que sinto a
mão de Zaph passear pelas minhas panturrilhas e suspender minhas pernas
unidas, de modo a colocá-las sobre um de seus ombros.
Seguro suas mãos onde estão, prendendo sua atenção.
— Você me tocou em todos os lugares, menos nelas. — A princípio Zaph
cria rugas entre as sobrancelhas, mas uma fração depois elas somem ao
compreender minhas palavras. — Está tudo bem.
Tem um tempo que venho percebendo que, em todas as vezes que Zaph me
tocou, das mais gentis às mais brutas, ele nunca encostou na parte externa das
minhas coxas. No início isso me enterneceu, mas agora meio que me irrita.
— Toque-as — falo.
— De que jeito? — Ele pergunta, enquanto suas mãos acariciam minha
perna erguida.
— Do jeito que quiser.
Zaph dedilha minha pele de trás do joelho com esmero e prendo a
respiração. Ao passo que o toque leve de seus dedos se aproxima da área
superior da minha coxa, minha frequência cardíaca acelera. Vejo-o abaixar a
cabeça para levar sua boca ao local onde estão minhas minúsculas
cicatrizes, e quando seus lábios a encostam, as lágrimas invadem meus
olhos. Um sentimento de libert... no entanto, quando sua língua aveludada e
molhada rasteja por elas, as lágrimas desaparecem. E quando ele as morde,
cravando seus caninos na minha carne anestesiada pelo pó de fada e
arrancando um pouco do meu sangue, que sinto escorrer pela minha virilha,
minha boceta se encolhe. São muitas sensações para pouco tempo.
Estico os braços e trago seus cabelos em minha direção, obrigando-o a
retirar suas presas de mim. Agora tenho seu rosto sobre o meu, seus orbes
carmesins consomem os meus.
Forço minha língua a separar seus lábios e começo a mimosear um de seus
caninos. Chupo seu dente afiado e sensível como faço com seu pau. O
gemido que o Tertius emite é profundo e se apodera de mim.
Ele circunda minhas pernas no alto com um braço enquanto a outra mão
está ocupada segurando meu quadril, puxando-o para si. Seu pau desliza
para dentro de mim, abrindo meus lábios vaginais melados e calorosos,
prontos para recebê-lo.
Zaph me traz em direção à sua pelve, conforme investe em minha boceta e
minha boca. Meu vampiro finca os dedos em minha bunda quando aumenta a
frequência do vai-e-vem e seu pau me acerta no fundo. Afrouxo meu agarre
em seu cabelo e separo nossas línguas ávidas para inclinar a cabeça, com os
olhos fechados, e liberar um gemido longo. Ele despeja uma mordida
demorada em meu lábio inferior antes de reerguer o tronco e arremete cada
vez mais forte e veloz.
Uma pixie pousa em meu ventre e seus dentes prendem-se ao meu clitóris
como ventanas. Mais duas se posicionam em meus seios e eu os massageio
pela base enquanto elas me chupam com seus dentinhos afiados. Minha
boceta se comprime em deleite
— Arh, assim, continua. Me fode, me fode toda. — rogo.
Zaph estoca, esfregando minhas costas na grama e afundando os joelhos na
terra. Ele afasta minhas coxas dobradas para cima, deixando-me arreganhada
e move os quadris em voltas ritmadas. Uma corrente pujante espalha-se pela
minha estrutura a partir da minha intimidade, travando meu corpo em êxtase.
Sinto o pênis de Zaph endurecer dentro de mim e seu rosnado é o sinal que
preciso para saber que está a ponto de gozar. O vampiro escorrega para fora
de mim e abaixa minhas pernas, lânguidas, segurando a base de seu membro.
Ele ostenta um semblante torpecido pela visão de seu pau ejaculando sobre
mim. Os jorros mornos de Zaph aterrissam em meu abdome, misturando a
viscosidade leitosa com o brilho iridescente deixado pelas minúsculas
criaturas feéricas. Eu arquejo, observando meu namorado em todo o seu
porte se masturbar ajoelhado diante de mim, ainda expelindo suas últimas
gotas. Sua porra acaba esfriando em minha barriga ao contato com o clima
fresco. Como isso pode ser tão sensual, tão gostoso e tão nojento ao mesmo
tempo?
Zaph hasteia suas íris rúbeas para mim, emolduradas pela lua cheia que
voltou a rutilar no céu em todo seu esplendor alvo. Um arrepio me percorre,
meus ovários se revolvem.
— Quero mais — arfo, o sorriso de Zaph aparece tão rápido quanto some
quando seus olhos recaem sobre os dois feéricos em meus mamilos. O
vampiro, então, se move de modo a ficar por cima e avança diretamente em
meu seio esquerdo, fazendo as pixies alçarem voo. Vejo um círculo de
ínfimos pontos vermelhos em minha auréola pouco antes da boca de Zaph se
atarraxar ao meu bico. Ele o morde entre-presas e chupa com força. Um
sorriso irrompe em meio a um gemido meu. — Estava com ciúme, meu
amor?
A única resposta que obtenho é o baque de seus orbes granada sob as
sobrancelhas grossas. Isso e seu gesto bruto de pegar minha cintura com
ambas as mãos grandes e puxá-la para cima, posicionando-me sentada sobre
suas coxas ajoelhadas no solo úmido. O bafejo frio acomete minhas costas
expostas de imediato, criando um arrepio suave na envergadura da minha
lombar. Zaph provoca minha boceta encharcada com a cabeça melada do seu
pau, controlando os movimentos com uma mão, enquanto a outra espalma-se
no meio da minha coluna e seus dentes não desocupam meu bico. O vampiro
entra devagar, somente o suficiente para sua glande roçar dentro, seguindo
seus movimentos leves. Um ganido meu escapa e reviro os olhos, jogando
minha cabeça para trá... OHR, e é nesse momento que Zaph decide trazer
meus flancos para baixo e se enterrar inteiro em mim. Sua grossura quente e
longa me preenche totalmente. Pensar que ele está fazendo isso para se
vingar da minha alfinetada me tira uma risada. Mas ela tão logo é
interrompida quando Zaph mete forte uma, duas, três, quatro... e um grunhido
alto corta minhas cordas vocais para a noite.
— Isso — diz ele, ao retirar a boca do meu peito inchado com um estalo.
— Deixe as estrelas saberem quem te faz gozar assim.
Zaph cola sua boca na minha, conforme divaga suas mãos pelas minhas
curvas desnudas ao passo que também as usa para me manter firme no
movimento de sobe e desce. Embrenho meus dedos em suas madeixas
sedosas, não deixando de notar o roçar de meu peito nos pelos a brotar do
seu. Sua língua rodeia a minha fora da boca, seus lábios sugam o meu e seus
dentes o mordiscam com a mesma potência que seus quadris investem em
mim e seu pênis empurra meu núcleo. O sutil resvalar do meu clitóris em sua
pelve embebida pelos nossos fluidos libidinosos e os das fadas evoca uma
corrente elétrica suave até meu ventre e corre até o meu cérebro.
Quase não sinto o momento em que Zaph esgueira seus dedos longos pelas
mechas da minha nuca e se apossa delas num punho, levando minha cabeça
para trás. Gemo no mesmo compasso em que rebolo para cima e para baixo,
para frente e para trás, no pau do terceiro dos Cinco Grandes. Seus lábios
deambulam pelo meu pescoço, minha clavícula, meu colo, o vale dos meus
seios que sacolejam, tingidos de pó bismuto das pixies que pairam à nossa
volta. Zaph afrouxa o aperto em minha cerviz e me lanço em sua boca outra
vez, abraçando-o.
Em algum momento, talvez no instante em que eu o senti enrijecer, nosso
beijo deixou de ser apenas faminto. Eu tomo seu rosto em mãos e os dedos
de Zaph fincam-se no meu quadril, espasmando ao ejacular dentro de mim.
Zaph desune nossas bocas, mas permanece perto, me escondendo em sua
sombra agora que a lua cheia resplandece em sua totalidade, e me acolhendo
com seu calor.
— Scuze, não consegui impedir — ele diz, sua voz rouca e afável aquece o
mínimo espaço entre nossas faces.
— Tudo bem. — Despejo um beijo suave em seus lábios. — Nada que uma
pílula do dia seguinte não resolva. — Espera. Afasto seu rosto para poder
encará-lo. — Pílula do dia seguinte adianta contra porra de vampiro?
A gargalhada de Zaph preenche o desfiladeiro.

Eu voltei para casa leve e fascinada.


Meu Pauahtun, em que curva minha vida se tornou um pornô com fadas?
Contudo, quando o dia seguinte veio, ele trouxe uma notícia terrível.
Julia fez uma videochamada comigo e Melissa através do grupo assim que
chegou em casa. Ela estava inconsolável, aos prantos, pois assim que o show
acabou, Julia reencontrou a mãe da nossa nova amiga, mas... Elis havia
desaparecido.
Ju e a mãe de Elis foram à delegacia na mesma hora, mas, pelo que minha
amiga contou, eles não foram de muita ajuda, pois somente depois de 24
horas poderiam dá-la como desaparecida. Nós estávamos estarrecidas,
apáticas. Nem mesmo o sorvete após a aula conseguiu aliviar o clima. Eu
não sabia o que dizer e Julia se culpava, e de culpa eu entendo bem... Mas
mal consigo lidar com a minha, como vou ajudar os outros com a deles?
No término da aula, avistamos Danilo, que está mais quieto que o usual,
mais taciturno, e, com Julia tomando a dianteira, fomos conversar com ele.
Danilo está com olheiras profundas, além de um pouco descabelado, mas
fico feliz em notar que alguns dos garotos não são completos babacas e o
apoiam nesse momento difícil. O rapaz alto e magricelo contou que já
tentaram ir à polícia, chamar detetives... Eu quero dizer tantas coisas a ele,
para consolá-lo e fortalecê-lo, mas lá está minha vergonha e falta de
habilidade com as palavras outra vez. Em vez disso, é Julia quem marcha até
o rapaz e o abraça.
Vendo meu estado entorpecido por conta do desaparecimento de Elis, Zaph
fez um convite irrecusável de passar o fim de semana em seu apartamento.
Além de passear pela orla da praia, comer pipoca encharcada de leite
condensado enquanto assistíamos filmes e bailar ao som de Elvis Presley
rodando no gramofone, também pusemos nossas práticas sexuais... er, mais
ousadas, digamos assim, em execução. Começamos nos masturbando na
cozinha durante o almoço, chupamos um ao outro num glorioso meia-nove na
espreguiçadeira quando o sol ainda banhava o horizonte em dourado, não
perdemos a oportunidade de transar na piscina – dentro e fora –, com o céu
vespertino atrás de nós, Zaph me comeu por trás enquanto com as mãos
apoiadas no corrimão da sacada à noite, no sofá pela manhã...
— Volta aqui — diz Zaph, às minhas costas.
Eu estou fugindo dele, vestindo somente calcinha e sutiã pretos, em direção
à sala de estar, porque o vampirinho quer me fazer comer comida japonesa.
— Aaah! — Meu grito se transforma em gargalhada quando, no meio da
corrida desesperada, Zaph enlaça minha cintura com um bíceps e tira meus
pés do chão.
Sou levada para longe, sem ter chance de revidar, mesmo sacolejando as
pernas. Entramos em seu quarto e sem demora ele me solta, me fazendo
despencar de costas na cama macia e enorme.
Eu começo a rir e bramir de exasperação vendo-o acima de mim, me
embarreirando com seus joelhos, uma das mãos espalmada no colchão, ao
mesmo tempo em que sua mão livre segura dois hashis com um sushi no alto.
— Diga “aah”.
Premo meus lábios juntos e viro o rosto ao agarrar seu antebraço para
tentar manter a comida afastada de mim. Zaph segura meus pulsos com a
outra mão e se abaixa em minha direção. Eu solto um grito de boca fechada,
querendo rir de nervoso, mas não é o camarão cru com arroz e alga que
minha boca encontra. Em vez disso, sinto os lábios de Zaph no meu pescoço,
despejando beijos delicados.
Ao reabrir os olhos, constato que ele abandonou a ideia de enfiar um troço
nojento e cru na minha boca, deixando os palitinhos de lado na cama, para
focar em apertar meus seios.
Permito-o vaguear os lábios pela minha pele que começa a esquentar com
suas carícias, remexendo minhas coxas uma na outra ao sentir meu entremeio
latejar e umedecer. Zaph rapidamente coloca as mãos por debaixo das
minhas costas, desatando meu sutiã e o jogando para longe, para então
abocanhar meu peito. Gemo em aprovação, arqueando meu corpo em sua
direção.
Massageio seus cabelos um tanto maiores, me deliciando com sua sucção e
suas madeixas sedosas entre meus dedos. Zaph afaga meu seio como se ele
fosse um brinquedo terapêutico, o que me tira uma risada e o faz levantar a
cabeça para me encarar com seus olhos de rubis.
— Você realmente ama meus peitos, né? — Nos beijamos, esfomeados e
gananciosos, mas com brandura e carinho.
Zaph cinge minha cintura, me mantendo presa em seu braço, conforme sua
mão livre tira seu pênis ereto da cueca boxer vermelha. Adoro como essa
cueca marca as coxas dele. Trespasso minhas pernas pelas suas, dando-o
abertura para minha intimidade já mais que lubrificada enquanto eu degusto
o sabor de sua língua enroscando-se na minha.
Logo a cabeça molhada e macia de seu pau resvala por sobre minha
calcinha, seu dedo hábil tira a renda do caminho e o vampiro introduz seu
membro em mim. Lanço a cabeça para trás no travesseiro, soltando um longo
murmúrio de prazer.
Abraço-o forte, cruzando suas escápulas largas, segurando-o colado a mim
enquanto nos movimentamos sobre o lençol níveo, como se eu pudesse
perdê-lo a qualquer momento. Eu beijo os lábios macios de Zaph outra vez,
de forma mais suave. Uma grande emoção toma cada folículo meu e faz meus
olhos lacrimejarem. Uma lágrima desliza pela lateral do meu rosto, então
Zaph separa nossos lábios.
— O que houve? Tudo bem? — Ele me encara de cima.
— Está, eu só… — Zaph tira uma mecha rufa de cabelo da minha testa,
analisando cada detalhe do meu rosto enquanto eu limpo os olhos — fiquei
emocionada.
Ele abaixa sua cabeça até encostar sua testa na minha, em silêncio e
imóvel. O calor de nossos corpos me faz suar na nuca e no pescoço, mas não
me incomoda.
— Sabe, eu sempre vivi com um único objetivo. Certo, dois — ele conta,
mansamente e num tom baixo. — Um: viver a vida adoidado, já que eu teria
muito tempo para gastar. E dois: achar o último descendente do Drácula e
matá-lo, me tornando o Primus. Mas então eu te encontrei. Te encontrei,
senti o Nödi pulsar e me apaixonei. — Zaph começa a passar a ponta do
nariz pela minha têmpora, minha bochecha, atrás da minha orelha… — Eu
nunca me senti tão feliz e tão completo em toda a minha existência.
— Você está querendo me fazer chorar de novo? — questiono, fungando.
Zaph libera uma risada fraca e logo depois o sinto levantar a cabeça para me
mirar diretamente. Seus olhos já não estão mais rubros, mas sim laranjas e
calorosos.
— Nu. Só quero deixar claro que ter você na minha cama é a melhor coisa
que já me aconteceu. Eu quero ter você aqui o tanto que eu puder. É duro
admitir — ele faz uma expressão teatral de sofrimento —, mas eu não quero
deixar esse sentimento acabar, não vou deixar você ir tão facilmente. Eu
tenho um puta medo de te perder, e por isso eu posso acabar sendo um puta
babaca às vezes. Eu não estou dizendo isso para te emocionar, mas para que
você saiba que você não é a única que tem inseguranças.
— Se você não parar de ser fofo, eu vou terminar com você.
— Vai nada. — Zaph abaixa um pouco a cabeça e eu fecho os olhos
quando ele despeja um beijo delicado em meus lábios. Um mísero toque que
faz cada poro do meu corpo gritar por mais. Ele reergue a cabeça, mantendo
o rosto próximo ao meu. — Te iubesc, Alice. Você tem trabalhado para
melhorar, e eu quero te acompanhar nesse progresso. Também vou trabalhar
para me tornar um homem melhor.
— Você não precisa fazer isso por mim. — Acaricio seu maxilar com a
ponta dos dedos, perscrutando suas particularidades com afeição.
— Estou fazendo isso por mim mesmo — ele responde, e eu hasteio meus
olhos para os seus, agora âmbar.
Um sorriso orgulhoso se estica em meus lábios. Seguro seu queixo de
forma mais firme e forço o pescoço para frente, colocando um beijo rápido
nos lábios macios do meu namorado. Bem, era para ser rápido. Enlaço seu
pescoço, puxando-o para mais perto, saboreando cada mínimo detalhe seu,
da textura sutilmente áspera de sua pele ao perfume doce que desnorteia
meus sentidos.
Meu ventre se comprime quando Zaph retorna com os movimentos de vai e
vem dentro de mim. Deixo um gemido escapar, sentindo o meio das minhas
pernas se contrair quando ele intensifica as estocadas.
Às vezes usamos camisinha, às vezes não. Essa é uma dessas vezes,
quando eu posso sentir toda a extensão grossa e cheia de veias de Zaph
esfregando minhas paredes internas devagar. Meus seios sacodem a cada
empurrão vigoroso, levando minha mente ao completo limbo. Eu descolo
meus lábios do dele para respirar melhor e deixo os ruídos de prazer
irromperem pela minha garganta. Sem demora, os dedos de Zaph brincam
com um mamilo intumescido meu enquanto chupa avidamente o outro. Ele o
belisca, o puxa entre dois dedos e mordisca.
Eu o sinto deslizar para fora de mim... Espera, por que ele se afastou? Um
frio nada agradável avança sobre meu corpo e eu abro os olhos. Zaph, de pé
diante da cama, tira a cueca com rapidez pelas coxas parrudas e me puxa
pelos calcanhares, me arrastando pelo lençol.
— Vira essa bunda para mim, draga. — Num instante eu já estou de quatro
com as canelas para fora do colchão.
Graças a um beijo no ombro, um sopro ameno e carinhos vagarosos, que
descem em direção ao meu quadril, eu deixo um baixo ganido sair.
Rapidamente sinto suas mãos nas minhas nádegas, alisando-as ao seu bel
prazer. Deixo que ele aproveite, que se delicie com meu corpo. Então um de
seus dedos escorrega pelo vale da minha bunda, passando pelo meu ânus, até
atingirem minha vulva, que já está dolorosamente molhada, ansiando por seu
toque. Mordo meus lábios à medida que sinto seus dedos longos e espessos
entrarem devagar entre minha carne macia, apertada e viscosa.
Zaph massageia meu interior numa velocidade agoniante e deliciosamente
lenta, o que me faz soltar gemidos guturais com a boca aberta e agarrar o
lençol até meus dedos doerem.
— Zaph... — eu suplico, e ouço sua risada rouca. Milésimos depois eu
sinto suas mãos envolverem meu cabelo e puxá-lo, não de forma dolorosa,
só o suficiente para me forçar a levantar o queixo e arquear a coluna, me
mantendo imóvel.
Reteso o maxilar quando sinto a cabeça de seu membro finalmente se
esfregar contra minha abertura. Involuntariamente rebolo contra sua glande e,
com um grunhido preso na garganta, me regozijo com a sensação de seu pau
entrando em mim, me abrindo e me aquecendo.
— Quer que eu vá devagar, fată ciudată mea? — Zaph empurra, entra e sai
de maneira vagarosa, e eu gemo em reprovação. Ou prazer. Não sei. Mas
então ele soca violentamente e me penetra com força. — Ou rápido?
Zaph espanca minha bunda e acaba com a minha indecisão. Mal a ardência
do tapa passa e Zaph bate de novo, do outro lado dessa vez. Os dois lados
do meu traseiro pulsam. O meu vampiro percebe a resposta do meu corpo
quando as paredes da minha boceta apertam seu pau, e solta outra risada
fraca, rebolando devagar o membro dentro de mim.
— Parece que sua boceta ama quando faço isso. — Eu não tenho
capacidade para replicar, apenas cerro meus punhos no lençol branco e
emito mais um gemido, sentindo os nós dos meus dedos latejarem. Quero
mais daqueles tapas, mais daquelas carícias dentro da minha vagina. — Vou
fazer você cansar de gozar no meu pau.
Zaph recomeça com estocadas profundas e certeiras que me tiram o ar. Ele
me lança outra palmada na bunda e finca seus dedos em minha carne. A
sensação de ardência me encobre. Esqueço o mundo e tudo o que eu quero é
ser fodida pelo seu pênis até enlouquecer. Zaph aperta meu quadril, metendo
com precisão, o que me obriga a liberar murmúrios descontrolados. Ele
repuxa um dos lados da minha bunda e usa o seu dedão para massagear o
meu ânus.
— Argh, isso, brinca com o meu cuzinho.
— Alice — seu rugido soa totalmente cavernoso — eu vou comer o seu
cuzinho. — Quando Zaph enfia o dedão dentro do meu orifício, minha mente
já não me pertence e solto um longo gemido. Ele move o dedo dentro do meu
ânus e... — Mas antes... eu vou fazer sua boceta transbordar de porra. Ela é
só minha. Toda minha.
Ai, minha Vênus! Zaph solta meu cabelo e pega minha coxa pelo interior,
levantando uma das minhas pernas. Ele aumenta a frequência de seus golpes,
rebolando de modo a me atingir de baixo para cima enquanto me mantém
aberta.
Me equilibro em uma mão e um joelho para levar meus dedos até onde o
pênis grosso de Zaph entra e sai da minha carne glutinosa, e sinto o quão
duro está, suas veias raspando entre os meus dois dedos afastados, melados
pelos nossos fluidos.
— Tanto quanto você é meu. Só meu. — É quando começo a sentir aquelas
ondas de prazer entorpecente aumentarem em meu interior.
As oscilações vão crescendo, crescendo. Minha mente nubla e me faz
perder o controle sobre minha voz.
Quase gozo novamente ao ter seus jorros quentes acertando meu âmago.
Há momentos como esse, em que ficamos os dois na cama, somente
degustando da presença um do outro, estudando as peculiaridades um do
outro. Na maioria das vezes eu durmo. Mas durmo com um sorriso no rosto.
E diferente de outras noites, não há pesadelos.
Eu comentei que gostaria de uma bela barra de chocolate para a sobremesa
da janta que nós preparamos juntos entre fodas rápidas, já que eu me recusei
a comer peixe cru – acho que realmente estou pegando gosto por cozinhar, é
relaxante, fora que é divertido descobrir o resultado no final, quando eu
deixo meu sexto sentido me guiar —, e Zaph falou que faria um brigadeiro
enquanto eu cochilava. Porém, no entanto, todavia, quando ele veio me
buscar e me acordou com um beijo na têmpora, eu não fazia ideia de que a
sobremesa seria eu.
— Feche os olhos — ele disse, me guiando pela mão até a porta do quarto.
Suprimi um sorriso ao me sentir ser puxada para frente. Quando paramos,
pressenti Zaph se colocar atrás de mim. — Lembra quando eu falei que te
banharia em chocolate? — Um arrepio correu pelas minhas costas e apartei
os cílios devagar, me deparando com a cozinha aberta e ampla de Zaph à
meia-luz.
A mesa central de vidro está limpa, sem nada em cima, sem cadeiras ao
redor. O hálito de Zaph se aproxima do meu lóbulo da orelha e tento não me
encolher.
— Suba. — Obedeço quase automaticamente. O vampiro me ampara pela
mão, como se estivesse me ajudando a entrar numa carruagem. Meu interior
se contorce de ansiedade, mas também há um maldito pensamento que não
sai da minha cabeça: essa merda vai quebrar, essa merda vai quebrar...
Eu sento de joelhos separados, o vidro gélido contra minha abertura úmida
provocando um frenesi no meu âmago. Uno os pulsos, à espera, mas...
— Onde estão as cordas? — Eu hasteio meu olhar dúbio para Zaph, parado
diante de mim com os orbes de citrinos sob a luz parca de um tom parecido,
o ínfimo sorriso inclinado ressaltado pelas sombras. — Você não falou que
ia me amarrar?
Zaph se aproxima da lateral da mesa e pega meu queixo, agora quase da
sua altura.
— E vou. Mas não hoje. Você pediu para irmos devagar, então vamos
devagar. — Zaph despeja um beijo terno em meus lábios. — Deite de
bruços, fată ciudată. Eu vou te lamber inteira.
Inspiro fundo, e faço como ordenou. Aos poucos e com cuidado, vou me
ajeitando até ficar deitada de costas, os seios desnudos espremidos contra o
vidro gélido e os braços dobrados sob a cabeça. Meu coração bate tão forte
que parece reverberar pela superfície lisa da mesa.
Se antes eu inspirei fundo, agora eu prendo completamente a respiração
quando sinto as pontas dos dedos de Zaph retirarem meu cabelo da nuca e
seu sopro guinar outra vez no meu ouvido.
— Hoje será você. — O vampiro beija a ponta da minha orelha, e acho
que não existe uma parte minha que não esteja arrepiada. — Mas, da
próxima, será sua vez de me ter como refeição. Então já vai pensando em
como irá me preparar, dragostea mea.
Minhas costas arqueiam com o contato da cobertura viscosa sendo vertida
bem entre minhas escápulas nuas. Não está quente, apenas morna, e por isso
minha intimidade se lubrifica ainda mais. Meu resfôlego, quando libero o ar
pela boca, embaça o vidro. Posso discernir o lábio inferior de Zaph tocar
minha pele onde havia derramado a calda e, sem pressa, sua língua passeia
pelo brigadeiro que escorre.
O dia de vestir a beca mais incômoda do mundo, quase cair do salto
enquanto se desloca até o palco, receber um canudo inútil e jogar o
capelo para o alto – arrancando junto alguns fios de cabelo – chegou.
Ju, Mel e eu cochichávamos animadamente em um canto, nossos parentes já
em seus respectivos lugares numa das fileiras de poltronas do auditório,
quando a coordenadora veio nos chamar para realizarmos a grande entrada
ao som de alguma música brega que eles escolheram. Eu achei que Melissa
não viria, afinal, ela sairia numa foto de formatura e daqui a cem anos ainda
estaria lá: viva, jovem e inalterada. Brincamos com isso e ela não se
importou muito, disse que ao longo dos anos já teve muitas identidades e
profissões. Julia chorava como um bebê e, ao mesmo tempo, tremia de raiva
e fome. Só podíamos deduzir uma coisa: TPM.
Duas, na verdade. Gravidez também era uma opção.
No meio da correria para arrumar as fileiras e pares, ajeitando as faixas na
cintura e o capelo fedido, Danilo vem nos cumprimentar um tanto cabisbaixo
e perguntamos se ele tinha notícias de Elis. Nada. Ele e Julia trocaram
algumas palavras, então a coordenadora o expulsou para seu devido lugar na
fila masculina.
Eu não conseguia não pensar em Elis. Ela poderia estar a apenas nove
lugares atrás de mim. Parte de mim ficou nervosa e feliz por estar me
formando, e a outra está triste por aqueles que não puderam, ou não podem,
desfrutar desse momento. Quem a teria levado de nós? Criaturas ou
humanos?
Além disso, não sei qual foi o guia espiritual, mas não curti o seu senso de
humor por ter feito meu salto agarrar no tapete vermelho fajuto enquanto eu
subia as escadas do palco.
Sentada na cadeira, na medida em que ouvia os paraninfos e os oradores
discursarem, eu troquei alguns olhares nada breves com o vampiro
estrangeiro sentado de modo desleixado algumas fileiras depois, ao lado dos
meus pais. Ele ostentava um sorriso reprimido que me contagiava. Os olhos
marejados de minha mãe também contagiaram os meus quando fui receber
meu canudo da mão do professor. A salva de palmas orgulhosa do meu pai
também repercutiu no meu corpo e me fez erguer o canudo bem no alto.
No final, depois de lançarmos os capelos pelos ares – e gravarmos cada
momento no Instagram, claro –, eu beijei Zaph bem apertado. Abracei minha
mãe e quase chorei quando ela falou o quão orgulhosa estava de mim –
palavras que nunca acreditei ouvir dela. Meu pai me rodou no colo quando
enlacei seu pescoço e despejou um beijo carinhoso em meus cabelos. E por
fim, mas não menos importante, minhas amigas.
— Prometam que esse não será o fim — Julia diz soluçando em lágrimas, o
topo das nossas cabeças unidas, formando uma sombra nos nossos rostos em
um abraço triplo.
— Természetesen nem, ostoba — Melissa comenta. Bem, eu acho que isso
foi um comentário.
— Fala em português, porra — Julia reclama, e nós três rimos.
— Pensa que vamos curtir pra caraaalho juntas. — Sorrio abertamente,
embora meu braço entrelaçado ao das garotas nas costas esteja doendo um
pouco. Meu Pai, preciso fazer uns alongamentos.
— Pra caraaalho — Julia reforça.
— Bastante — Mel fala.
— Ô, sem graça, é pra repetir, cacete! — Melissa suspira com um
sorrisinho.
— Pra caraaalho.

Assim que terminei de passar o batom vermelho, parei para apreciar o


conjunto da obra diante do espelho da cômoda. Meus olhos verdes
destacados pelo rímel e pelo delineado, minhas bochechas rosadas e
bronzeadas, meus lábios acentuados combinando com meus cabelos
escorridos pelos ombros e contrastando com o preto do top tomara que caia,
que uso junto com uma calça jogger. Se meses atrás alguém me dissesse que
eu me olharia no espelho outra vez e me sentiria bem comigo mesma, eu teria
rido. Alto.
Pelo reflexo, avisto o quadro magnético soterrado com fotos diversas
bagunçadas, que para qualquer um que olhasse não teria sentido algum. E do
outro lado estava Zaph, sentado na cama, metido em uma blusa social cor de
vinho que se ajusta ao seu tronco e entretido com o jogo no celular.
General Heloise mal esperou eu pôr o pé no último degrau e me entregou
os talheres e pratos, a fim de colocá-los sobre a mesa da sala de estar. Os
primeiros a chegar foram meu irmão e Fernanda, com Clarisse no colo. Sim,
a criança de Igor e Fernanda é menina. ISSO!
Logo a casa está cheia de vida e agitação com ainda mais familiares.
Quando apresento Zaph como meu namorado e parceiro ligado pelo Nödi,
meu tio, pai de Lívia, começa a interrogar o menino. E, sabe, interrogar um
vampiro sincero até demais, que detesta muitas perguntas, não é uma boa
ideia. Tive que fazer umas intervenções para que ele não desencadeasse uma
guerra civil sem querer.
A aceitação não veio fácil, óbvio. Ouvi Zaph discursar sobre o quanto ele
sentia pelo sofrimento que os afligiu, embora deixasse claro que não se
arrependia e que não falava pelos outros da raça dele. Deu sua palavra de
que, unicamente em meu nome, ele os protegeria. Eles não pareceram muito
convencidos, mas ao menos não sacaram suas estacas.
Falar isso de um modo literal é tão esquisito.
— O que houve? — Zaph se aproxima, pegando de modo delicado em
minha cintura, e abaixa a boca até minha orelha. — Parece preocupada.
Embora eu veja todos sorrindo e conversando ao redor da mesa farta em
pratos fumegantes, o sentimento de alegria se esvai um pouco quando meu
olhar se fixa em Clarisse brincando com seus chocalhos dentro do bercinho
móvel. Há um mês, a família se reuniu em euforia e ansiedade para o
nascimento da mais nova Beiruth, que calhou de cair bem no dia do
aniversário da minha mãe. Tem presente melhor para uma futura vovó?
A pequena descendente do Drácula nasceu saudável e é a perfeita mescla
entre Igor e Fernanda. Olhando a pequena Clarisse no berçário, as conversas
que tive com Zaph voltaram à minha mente e uma certeza aqueceu o meu
estômago. Não, não somente meu estômago. Ela cresceu ali, mas
rapidamente se espalhou por todo meu corpo e eu queimei. Observar
Clarisse era como vislumbrar o que o futuro poderia ser. Eu vou fazer de
tudo para protegê-la.
— E estou. — Me viro para ele. As nuanças de seu belo rosto, do modo
como me observa à linha reta de sua boca, são tomadas por uma mistura
suave de zelo e inquietude. Embora relativamente feliz, minhas juntas
estiveram rígidas durante toda a noite. — Aqui todos são descendentes do
Drácula, menos minhas tias casadas com meus tios e meu primo, que é filho
de outro casamento, mas isso não deixa de ser um belo self-service para os
vampiros.
— Isso não vai acontecer.
— Como você sabe?
Um ruído característico de vidro se estilhaçando captura nossa atenção.
— Ai, merda! — minha prima Lia grita da cozinha. — Desculpa, gente.
— O que foi? — Meu tio praticamente corre até ela.
— O copo escorregou e, desculpa, tia — se refere a minha mãe que a ajuda
na pia com a louça — cortei minha mão.
Sinto a musculatura de Zaph enrijecer e não preciso virar para saber que
seus olhos devem estar laranja, ou no mínimo um girassol. Salto de susto e
torno meu foco para a porta ao ouvir um estrondo do lado de fora.
— O que foi isso? — Minha tia Lana se encolhe perto de mim, olhando
para a porta fechada. Seu olhar reflete puro terror e eu tento não ser
contagiada por ele, mantendo minha respiração a mais controlada possível.
Eu definitivamente odeio Murphy e sua lei estúpida. Nada é tão ruim que
não possa piorar, não é mesmo?
— Vou ver o que é — Zaph diz, já com a mão na maçaneta. Entretanto,
antes de abri-la, lança um olhar irredutível para mim. “Fuja, corra, se
esconda, se proteja”, é o que o vejo dizer em silêncio. Engulo o nó formado
na laringe. Tome cuidado, eu tento transmitir a ele.
Meu coração acelera, tornando minha respiração ofegante pelo nariz, e
passo o braço ao redor dos ombros da minha tia. Zaph sai, fechando a porta
logo em seguida, e não sei o que fazer. Minha família permanece petrificada
nos mesmos lugares, um silêncio dolente.
Espero uns instantes, ouço uma risada, mas não tiro o olhar vidrado da
porta branca e larga. Está tudo bem, vai ficar tudo bem. Minha tia treme em
meus braços e eu afago seus ombros.
O barulho de algo quebrando advém do lado de fora e minha tia estremece.
Meu tio Augusto passa por mim com toda a sua careca e postura de militar
aposentado em direção perto à porta.
— Vou lá…
— NÃO! — eu, e provavelmente metade dos espécimes fêmeas no recinto,
gritamos em uníssono.
— Eu vou — digo, então os olhos se voltam para mim.
Chame de burrice ou de abnegação, mas eu preciso saber se Zaph está
bem, se preciso avisar aos meus parentes para se prepararem, e prefiro mil
vezes que seja eu a eles. Antes que possam me impedir, solto minha tia e dou
passadas rápidas até a porta.
Não há nada. Nada além de um vaso de planta quebrado na varanda sob a
noite de um lazuli escuro, luzes coloridas dos pisca-piscas nas casas dos
vizinhos, o… Ah, agora eu sei o que foi aquele estampido anterior.
— Meu carro! — Meu tio passa por mim como um furacão em direção ao
Uno prata estacionado rente ao meio-fio. O teto do carro está completamente
amassado e a estrutura metálica retorcida, como se algo extremamente
pesado tivesse caído sobre ele. A imagem do capelobo invade minhas
lembranças.
— Tio, volta pra… — Sugo o ar rapidamente. Um homem surge da lateral
e se lança em cima do meu tio, derrubando-o num único movimento como um
maldito jogador de Rugby! Meu coração para e um grito fica preso na minha
garganta quando vejo o cara enorme montado em meu tio, os orbes escarlates
vibrantes no breu noturno, pronto para descer sua bocarra de dentes afiados
sobre ele.
Zaph aparece da mesma direção e pega no braço do homem, que emite um
grito de dor quando seus ossos despontam através da epiderme num ângulo
anormal. Zaph, sem transmitir um pingo de emoção, continua torcendo o
braço do provável vampiro até que os ossos quebrados rompem a superfície
e rasgam a pele. Zaph pega na blusa do agressor e o arremessa para o outro
lado.
Meu coração está na boca, meus pés tiritam no umbral da porta... Vejo meu
tio ainda no chão e parece que o mundo gira mais devagar. Meu namorado
tenta ajudar o pai de Lívia a se levantar, mas é forçado a parar para bloquear
a mão do oponente que ressurge. Zaph prende-o em uma chave de braço,
enforcando-o de frente para mim e miro diretamente os olhos rubros do
vampiro inimigo. Ele abre um sorriso enorme, recheado pelas presas iguais
às de uma piranha, e tenta se soltar do aperto de Zaph com mais
determinação.
— ALICE! — Zaph grita para mim enquanto tenta segurar o vampiro. Sua
feição transtornada me apavora. — Entra! Agora!
Eu entraria, mas estou congelada. E a ideia de abandonar meu tio ali…
Meu coração está perdido entre retumbadas lentas e fortes. Me tranco em
casa com o resto da minha família e deixo meu tio do lado de fora jogado à
sua sorte, ou corro para ajudá-lo e poupo Zaph do trabalho?
— ALICE! — Zaph grita novamente e eu saio do transe.
Preciso agir. Há duas possibilidades nessa história: aquele em que eu
consigo ajudar Zaph e minha família e sobreviver, ou aquele em que o
vampiro consegue me capturar, beber meu sangue, ganhar uma força que
todos desconhecem e acabar de vez com a minha família.
Ameaço dar meia volta e entrar na casa, escolhendo confiar em Zaph para
lidar com a situação, mas vejo o pai de Lívia se mexer no chão de dor e sujo
do sangue que espirrou do Vacor. Não penso duas vezes.
— ALI...! — Dessa vez Zaph brada me repreendendo, mas não o olho,
focada em agir rápido. Sei que foi interrompido porque o outro vampiro
deve estar fazendo mais força para se livrar dele comigo por perto.
Me abaixo ao lado do meu tio e puxo seu braço.
— Vamos tio, vamos voltar lá pra dentro! — Eu tento ignorar os rugidos
ecoando atrás de mim, embora calafrios percorram minha espinha de cinco
em cinco segundos. Observo meu tio tentar se pôr de pé, se apoiando na
minha mão e em seu joelho. — Consegue andar?
— Acho que torci alguma coisa, mas consigo. — Sua voz sai embargada
pelo esforço.
Com um pouco de dificuldade… ok, muita dificuldade, eu sou capaz de
ajudar meu tio a se erguer o mais e levá-lo em direção à porta, servindo de
bengala. Um grito animalesco ecoa atrás de nós pouco antes de um ruído de
ossos se quebrando. Me encolho, lutando contra as lágrimas, mas não me
viro, continuo andando. Meu tio cambaleia, ainda atordoado, e isso complica
o trajet...
— Vão a algum lugar?
A centímetros, pequenos e míseros centímetros da porta, uma mulher alta,
morena e curvilínea brota na nossa frente. O sorriso é de uma malícia
absurda, olhos granadas intensos e unhas afiadas tingidas de preto
descansadas na cintura.
Antes que eu possa sequer pensar em gritar, a mulher se arremessa em cima
de nós com a boca arreganhada, os dois dentes perfurocortantes brilhando
contra a ligeira luz da lua e do poste. Minhas pernas vacilam e eu caio,
levando meu tio junto. Zaph pega a garganta da vampira com uma das mãos
sobre nossas cabeças e aperta até que seus dedos entrem no músculo.
Ela se afasta com um silvo parecido com o de uma serpente, mostrando as
presas enquanto sufoca no próprio sangue e segura a garganta, o líquido
escuro escorrendo por entre suas mãos. Vejo a passagem liberada para a
porta e agarro o braço gorducho do meu tio outra vez, trazendo-o comigo aos
trancos e barrancos.
Quando abro a porta, sou recebida por um vento frio e familiares
desesperados.
— O que houve?!
— Pai!
— Meu Deus! Tio, tá tudo bem?!
— O que aconteceu, afinal de contas?
— Tá tudo bem, só o deixem sentar e beber água — digo, ignorando todas
as perguntas e acomodando-o na cadeira mais próxima.
Sinto um puxão no meu braço que me faz cambalear para o lado. Minha
mãe nos afasta do pessoal e me para de frente para ela.
— Você é louca? — pergunta, os olhos esbugalhados me vasculhando e as
mãos ossudas apertando fortemente meus bíceps. — O que aconteceu?
— Vampiros. Aquele barulho provavelmente foi quando um deles
aterrissou em cima do teto do carro do tio Daniel. Está todo amassado.
— Cadê o Zaph?
— Tá lá fora dando um jeito neles.
— Tranquei todas as portas e janelas. — Meu pai aparece atrás de Heloise
e ela ergue o olhar para ele.
O tique taque do relógio parece competir com o rimbombar do meu
coração. Sons de vidros se quebrando soam no andar superior. Me
sobressalto e olho para cima por reflexo quando ouço passos pesados lá em
cima.
O andejar para e a casa cai em outro silêncio.
Quando dei por mim – não sei o que falou mais alto: a curiosidade, a
esperança ou o surto de coragem –, eu já tinha me desvencilhado das mãos
da minha mãe, percorrido a distância entre os sofás e a escada, e subido os
degraus correndo.
Vejo a luz amarelada do meu quarto acesa e minhas pernas tremeleiam,
finalmente me dando conta da estupidez que foi ir até ali. Ave Maria cheia
de graça, o Senhor é convosco… Eu nem peguei nada para me defender, nem
posso mais criticar as pessoas nos filmes de terror.
Me aproximo cada vez mais, aos poucos tendo uma visão mais ampla do
interior do meu quarto à meia-luz. Minha cama está inalterada, mas há
pegadas de sangue no piso indo em direção ao... Paro quando vejo um
movimento rápido perto da porta do banheiro. Ouço o barulho de água
jorrando.
— La naiba.
O nó envolta do meu peito se desfaz e volto a respirar.
— Zaph! — Corro para dentro do banheiro bem na hora em que ele se
torna para mim com o rosto lanhado perto da têmpora, o supercílio vertendo
sangue diluído em água, o lábio cortado e o tecido marsala da camisa social
torna-se ainda mais escuro onde há manchas densas. Eu me aproximo dele,
as mãos erguidas querendo tocá-lo, mas sem saber se posso ou se devo. —
Você…
— Eu estou bem. — Ele pega minhas mãos titubeantes em cada uma das
suas e as abaixa. Eu fito seus orbes alaranjados.
— Conseguiu dar um jeito nos dois? — Zaph anui, entrelaçando nossos
dedos.
— Quatro.
— Quatro?!
— Um atrai o outro, principalmente se tiver um humano com sangue
especial no meio. Afinal, se dois vampiros estão lutando por um único
humano, alguma coisa tem.
— Quer que eu cuide das feridas? — Ele responde positivamente com um
sorriso mínimo, os olhos agora já amarelos.
Puxo-o pela mão até fazê-lo se sentar na cama.
— Não queria aparecer lá embaixo desse jeito — ele diz.
— Tudo bem. — Vou até o armário debaixo da pia, me abaixo procurando
pelo algodão, esparadrapo, gaze e álcool iodado. Me coloco de pé, com
pressa, girando para voltar... AI! Bati meu ombro no batente de porta!
— Sua mãe estancou o sangue da Lia? Não sinto mais o cheiro.
— Uhum. — Retorno, concentrada em limpar os machucados dele, então
me sento ao seu lado na cama e preparo o algodão, molhando-o um pouco no
álcool.
— Todos estão bem?
— Um pouco assustados, mas bem. — Eu levo o algodão ao seu corte na
sobrancelha. — E você? Quer dizer, como você...
— Estou bem, não se preocupe. Minha reserva de sangue estava baixa, mas
eu os sequei, então agora estou novinho em folha. Isso quer dizer, hora do
sexo.
— Zaph! — Abaixo o algodão agora vermelho e encaro meu namorado de
modo severo. — Já viu o seu estado?
— Não sei se notou, mas eu estava na frente do espelho, então, sim.
— Se viu mesmo, deve ter percebido que, do jeito que você está, não há
possibilidades de rolar uma foda hoje.
Ouço uma tossida forçada. Era o que faltava. Engulo o embaraço e viro a
cabeça. Meu pai está parado na soleira da porta. Por que sempre ele, minha
Danu?
— Desculpe incomodar — Gabriel diz, a expressão impassível, como se
não se importasse mais. — Ouvimos um barulho e Alice veio correndo
impulsivamente. Sua mãe está louca lá embaixo, mocinha.
— Eu imagino. — Encolho meus ombros. — Desculpa.
— Zaph, está tudo bem? — Meu pai troca olhares intensos com o vampiro
arrebentado ao meu lado e creio que há muito mais nesse “está tudo bem” do
que parece.
— Sim, mulțumesc.
— Que bom. Qualquer coisa, é só chamar.
— Pode deixar. Cuidem do irmão da Heloise. Ele deve estar traumatizado.
E se ele estiver machucado, não o levem ao hospital. É muito arriscado
vocês saírem agora. — Meu pai aquiesce.
— Vou voltar lá pra baixo e falar que é você. E não deixe que a Alice te
boline.
— PAI! — Arregalo os olhos.
— Tsc, tsc, tsc, que feio, Alice. — Me torno para Zaph. — Querendo fazer
safadezas com alguém incapacitado, um doente, um paciente.
— Não se faça de vítima. Você estava oferecendo sexo agora há pouco.
— E ainda estou. — Zaph movimenta as sobrancelhas.
— Quer saber? Que se lamba. — Ele franze o cenho e reprime um sorriso
jocoso quando me vê juntar as coisas e levantar.
— Não quer dizer “que se foda”?
— Não. — Me viro para meu namorado, imitando uma expressão cínica
enquanto gesticulo. — Estou mandando você se banhar na própria baba
porque não vou mais ficar gastando o pouco material de primeiros socorros
que tenho para ajudar um vampiro que possui propriedades regenerativas na
saliva. Sendo assim, que se lamba.
Zaph gargalha e meu coração se perde outra vez. A risada dele se atenua
conforme ando até o banheiro e guardo os utensílios. Eu paro de frente para
o espelho, analisando meu reflexo, lendo entre cada aspecto palavras
diferentes de antes.
— Talvez, se você tivesse me transformado em vampira, teria sido mais
fácil — digo, séria, e, infelizmente, parece que a atmosfera no quarto pesa.
— Poderia, realmente.
Oi? Ele admitiu? Foi isso mesmo que aconteceu?
— Poderia ter acabado com eles mais rápido do que come lasanha. —
Ouço sua risada desdenhosa e giro para encará-lo, ainda com uma mão na
borda da pia. Zaph está com os cotovelos repousados nos joelhos, a coluna
longa curvada, e os olhos perdidos no chão. — Mas, me desculpe, ainda
assim eu não posso arriscar te transformar. Se eu fizesse isso, estaria te
amaldiçoando. Eu estaria tirando de você o que eu nunca tive, uma escolha.
A escolha de continuar sendo humana e vivendo sua vida do jeito que você
quiser.
— Eu quero viver de uma maneira em que eu possa proteger aqueles que
amo, o que inclui você e outros que precisam de ajuda. — Eu saio do
banheiro, sem desviar os olhos de Zaph, e paro a alguns centímetros dele.
— Ser vampiro não é o mesmo que ser super-herói, Alice.
— Estou cansada de me sentir impotente e inútil. Se eu não puder fazer
isso…
Eu não sei se sou capaz de completar minha fala, mas creio que Zaph
entende bem o que eu quero dizer.
Mirando seus olhos, percebo uma luz diferente, um momento de incerteza.
Talvez ele realmente esteja cogitando a ideia e isso faz meu coração
tropeçar. Mas eu posso dizer o exato momento em que sua expressão toma
um aspecto penoso, quase fúnebre, se não fosse pela altivez brilhando no
fundo.
— Me perdoe, inimioara mea, pode me taxar de egoísta, mas eu não
posso.
Tivemos grilhões diferentes, mas não deixam de ser grilhões. Isso que o
mundo às vezes não parece entender. Apesar de sermos únicos e sentirmos
de forma única cada aspecto que nos atravessa ao longo da vida, somos
apenas espelhos da dor um do outro. Só porque a ferida é diferente, não quer
dizer que não seja tão profunda quanto. Zaph me dá sempre o direito de
escolha, o mínimo que posso fazer é respeitar as escolhas dele também.
N
ada melhor do que uma viagem de férias de verão na companhia das
melhores amigas e do namorado para espairecer as ideias.
Isto é, quando não se está presa numa das praias de Ilha Grande. É
lindo? É, mas, para quem tem medo do mar, não é lá a melhor opção. Eu
poderia ter pedido a Zaph para me levar aos Alpes Suíços se eu quisesse,
mas a vontade de estar com as minhas amigas na virada do ano foi maior. E
eu tenho certeza de que Melissa não aceitaria ser bancada por ele.
Na pousada, glória ao Santo Signo de Peixes, tem piscina, então eu não
preciso ficar naquele forno, vulgarmente chamado de praia, o tempo todo.
Mas admito que não foi tão ruim quando fizemos um passeio de escuna e
Zaph lentamente me ajudou a descer as escadas. Eu não soltei de sua mão em
momento algum enquanto boiava nos espaguetes em meio às águas
translúcidas, e adorei quando os peixinhos vieram comer o biscoito perto de
mim. Um passo de cada vez.
Agora mesmo, permanecemos de mãos dadas até que vemos a grande
embarcação atracar no porto de madeira que adentra na praia e algumas
pessoas descerem. A temperatura elevada da noite estrelada aquece meus
ombros, se envolvendo na brisa marítima ao aroma salubre dos temperos.
Espero um pouco, ficando na ponta dos pés para conseguir visualizar meu
alvo entre a cambada de gente que sai pela rampa de metal. Ah, achei! Abro
um sorriso e saio correndo em direção à Ju e Melissa que andam até nós.
— Por um momento pensei que não viessem — digo, abraçando as duas ao
mesmo tempo. Elas vão ficar na mesma pousada que nós, cortesia de
Melissa que decidiu pagar a hospedagem.
— Ótimo, ótimo, também estamos muito felizes. — Julia dá tapinhas no
meu braço em volta de seu pescoço. — Mas pode nos largar um pouquinho,
só para eu pôr essa coisa no chão? Obrigada.
Julia empurra meu braço, esbaforida, e pousa sua mala no píer.
— O que você trouxe aí dentro? Seu armário? — pergunto.
— Tá mais pra minha casa mesmo.
— São só quatro dias.
— Muita coisa pode acontecer em quatro dias. Tenho de estar precavid...
AAAH!
Meu Jesus, o que…? Julia dá um berro e sai em disparada, e agora
percebo o porquê: ela está frente a frente com Zaph outra vez.
— Quanto tempo, seu garoto lindo! — Ela se joga em Zaph que é
praticamente obrigado a abraçá-la. Ele me encara meio em dúvida, mas eu
apenas sorrio.
Levamos as bagagens das meninas para a pousada e voltamos para a orla.
Fomos a uma sorveteria, Ju me fez rir e o sorvete saiu pelo meu nariz, quase
manchando o colo de Zaph, onde eu estava sentada. Melissa e ele trocaram
poucas palavras, mas elas não foram grosseiras. Progresso! A noite caiu e
retornamos à pousada, a fim de nos arrumar para a grande festa e queima de
fogos.
A praia está cheia, estamos logo na frente, perto do mar, preparados para
pular sete ondas e fazer o que mais pudermos para dar sorte.
— CINCO! — a multidão entoa ao redor. — QUATRO!
— Vai ter que me suportar mais um ano — digo, um sorriso brincando em
meus lábios.
— TRÊS!
— Vou ter que te suportar até um de nós morrer. — Zaph me olha com
ternura e aperta minha mão. Em sua sobrancelha direita agora há uma cicatriz
a atravessando. — E farei isso com prazer.
— DOIS!
— Ah, se beijem logo vocês dois! — Ju grita entre os outros.
— UM! FELIZ ANO NOVOOO!
Meia-noite. 1° de janeiro. O barulho dos fogos desponta junto com o das
rolhas voando das garrafas, das taças brindando, das pessoas gritando em
euforia...
Nesse mesmo dia, mesmo horário, três anos atrás, eu vivenciava meu
principal gatilho para a depressão profunda.
Fico na ponta dos pés, cinjo o pescoço de Zaph e o sinto me grudar em si
com seus braços em volta da minha cintura. Não se pode dizer qual dos dois
beijou o outro, mas não importa, porque foi como se tivesse sido uma pessoa
só.
Apesar de estar de olhos fechados, percebo quando um flash é acionado na
nossa direção e luto contra a impulsão de sorrir.
— Ei! — Ouço e, por reflexo, viro o rosto na direção da voz. Vejo minha
mãe parada com as mãos na cintura e a face carrancuda. — Não vai vir falar
com os pais, não? Só tem esse namoradinho aí, agora?
Sorrio e corro até ela, abraçando-a forte.
— Obrigada, mãe. — Tudo que ela fez por mim me volta à mente num rio
de memórias e meus olhos lacrimejam. — Obrigada, por tudo.
Em seguida, abraço meu pai.
— Eu te adoro, papai.
— Não me ama mais, não? Agora só adora? — Rio, ainda com o rosto
descansado em seus ombros.
— Você me entendeu.
Eu e as meninas damos um abraço triplo, sorrindo de ponta a ponta.
Quando nos separamos… AI! Ju me bateu!
— Por que fez isso? — questiono, passando a mão no braço que ela
estapeou.
— Porque nos deixou por último.
Não consigo impedir e liberto uma risada de cabeça baixa, me dando por
vencida. Bem na hora em que levanto a cabeça, enxergo Melissa caminhar
em direção a Zaph, os dois taciturnos. Pelo amor de Jeová e meu Orixá, é
um novo ano pessoal, se acertem.
— Vem. — Suspendo a minha saia longa e pego a mão de Julia, puxando-a
comigo.
— Pra onde?
— Pro mar.
Arrumei uma desculpa para Melissa e Zaph não se sentirem
pressionados… quer dizer, Zaph não se sentiria pressionado nem se tivesse
câmeras no corpo todo, mas Melissa eu sei que sim, e também sei que eles
precisam se resolver com urgência. Corro com um sorriso no rosto quando
os vejo conversando. Tudo está se encaixando.
— Ai, menina, vou cair! — Julia se livra da minha mão.
— Jesus, essa água tá friiiia! — reclamo quando meus pés descalços
entram em contanto com a pequena onda que molha a areia. Solto sua mão a
fim de amarrar uma faixa do cabelo em um nó para evitar que caia no meu
olho.
— Uma... — pulamos e calculamos juntas — duas… três… quatro…
cinco… — Rimos porque ela se desequilibra e busca suporte em mim, me
desequilibrando também.
— Ai, não se apoia em mim que vamos cair as duas! Rápido: seis!
— Sete! — Nos abraçamos rindo e resisto à enorme vontade de começar
uma guerra de água, já que a barra dos nossos trajes está ensopada. Ju com
um macacão soltinho branco e eu com um conjunto de cropped e saia longa
de renda, colada nos quadris.
Voltamos para junto da minha família, mas onde estão Zaph e Melissa?
Achei que Zaph estaria virando a garrafa de champanhe a uma hora dessa.
— Aonde você vai? — Julia pergunta às minhas costas conforme caminho
para fora da praia.
— Procurar esses dois!
Atravesso a rua, sentindo a saia grudar nos meus tornozelos.
— ... coisas que eu nunca pensei que faria por alguém. — Opa, eu conheço
essa voz deliciosa. Parece vir do beco. Mas por que Zaph estaria ali? Quer
dizer, sem ser para cravar seus dentinhos num pescoço desprotegido. — Mas
por mais que eu tente negar... eu preciso de você.
Silêncio.
— Você não está mentindo, está?
Melissa? Me aproximo devagar da viela escura onde há algumas lojinhas
de artesanato fechadas. Eu paro rente à parede da esquina. Eu me sinto mal
por estar espiando, mas um aperto na boca do estômago me obriga a isso.
— Você sabe que não.
O tom cético de Mel muda, se torna complacente, mas quase triste. Triste?
— Honestamente, eu não esperava por isso. Pensei que seria o babaca que
conheci para sempre.
Ouço uma risada nasal. Definitivamente são Zaph e Melissa conversando.
Mordo o lábio. Eu não deveria estar escutando, melhor eu ir...
— Ainda sou um babaca. Só não mais aquele babaca. Agradeça a Alice.
Melissa solta uma risada curta e meus pés paralisam no lugar.
— De certa forma, isso meio que me machuca, sabe? Ela ter conseguido te
mudar... e eu não. Sinto que falhei comigo mesma.
Ah, Mel. Eu remexo as mãos, querendo confortar minha amiga.
— Você não falhou, Melissa — Zaph responde e reconheço o tom sério,
porém leve, que usa. — Nós éramos muito diferentes. Ainda somos. Creio
que podemos viver anos infinitos, mas a cada um deles aprenderemos algo
novo.
Mais um instante de silêncio e meu batimento cardíaco se torna errático,
me fazendo querer sair do meu esconderijo.
— Você está realmente falando sério — Mel afirma. — Por quê? Por que
eu?
— Nós temos uma... conexão. — Conexão? Meu coração perde uma
batida. — Existem poucos vampiros da nossa idade. E nós fazíamos uma
bela dupla. Gostaria que voltássemos a ser. Só... só você me entende no
momento. — Zaph suspira e me sinto perdendo o fôlego. O que ele quis
dizer com isso? As vozes na minha cabeça começam a falar mais alto. —
Olha, é complicado...
— Sentimentos são complicados — Melissa afirma, categórica.
— Pensei que eu tivesse me livrado deles há anos.
— Ainda assim decidiu reatar comigo.
Meu coração desconhece a palavra calma. Meus lábios tremem, tento
controlar a respiração arquejante pelo nariz. Pequenos flashes de memória
despontam no fundo da minha mente e eu começo a me perder de mim mesma
ao tentar afastá-los.
— É a única em quem confio — Zaph volta a dizer, seu timbre baixo. —
Você... Eu não acredito que vou falar isso, mas me perdoa pelo que eu fiz?
Eu realmente não quero viver nessa merda de vida sem ter alguém em quem
confiar.
— Você tem a Alice.
— Ela não é o suficiente — diz ele.
Meu peito fica quieto. O mundo fica quieto. Uma pesada e lancinante
quietude, pior do que qualquer barulheira ou confusão interna, se instaura em
mim. Eu preferiria mil vezes um ataque de ansiedade a me sentir assim,
dolorosamente quieta.
“Ela não é o suficiente.”
P
oucas coisas no mundo podem machucar tanto o ser humano quanto dar
uma parte de si de bom grado, ceder sua total confiança a alguém, e
essa pessoa jogá-la fora com míseras palavras.
Imagens do passado borbulham na minha mente, mesclando-se com cenas
reais e fictícias, me deixando instável e com falta de ar. Meus olhos marejam
sem que eu perceba.
Melissa não responde e sinto uma lágrima quente deslizar pelo meu rosto,
o batimento no meu tórax irregular. Eu tenho que estar errada, minha mente
e meus ouvidos só podem estar pregando peças em mim. Zaph não é
Rafael, Rafael está morto, Zaph é diferente...
— Espera — diz Raf... não, Zaph. — Alice?
Ele sabe que estou aqui.
As risadas estão na minha imaginação ou na vida real? A quem pertencem?
Estou tonta, estou enjoada. Isso não é real, não é, não é, não é... Quero
fugir, correr, mas minhas pernas fraquejam e meus pés se movem, não na
direção oposta, mas na direção da viela.
Eu uso a parede para me apoiar conforme apareço na quina da ruela, de
frente para Melissa e Zaph. Eu os observo, um diante do outro, mas
distantes.
— Você estava ouvindo? — ela pergunta, sua bela fisionomia transtornada.
— Eu não queria, mas... O que está acontecendo? — Sinto aquela
comichão vibrar pelos meus ossos, o pânico rugindo e tentando se libertar
em meu âmago. Mal respiro. A face de Rafael me vem à mente
acompanhando a voz que diz coisas maldosas, rindo da minha ingenuidade.
“Ela não é o suficiente”.
Tento chacoalhá-la para longe.
— Alice, não é o que você está pensando. — Melissa, atrás de Zaph,
gesticula um tanto exasperada e eu acabo soltando um riso de escárnio.
— Nem mesmo eu sei o que eu estou pensando. — Minha atenção se volta
para Zaph, que tem os olhos fixados em mim, sua respiração tão pesada
quanto a minha. Engulo as lágrimas e cerro os punhos, ao tentar me manter
firme. — Por que fizeram isso? Por que pelas minhas costas? Depois de tudo
que contei a vocês...
Ambos abrem bem as pálpebras, Melissa mais do que Zaph.
— Alice, você entendeu errado. — Ele avança alguns passos comedidos.
Em réplica, eu recuo.
Seu foco não desvia de mim, e notar a forma cautelosa e severa com que
ele me encara só torce mais meu estômago e constringe meus músculos.
Travo a mandíbula fazendo o possível para controlar as batidas opressoras
do meu coração. Embora as lágrimas tenham sido impossíveis de reter.
— Eu realmente espero que sim, mas... — Uno os cílios e libero um
suspiro, deixando meus ombros murcharem, esgotada. Meu nariz arde e as
lágrimas que uma vez tentei reprimir escorrem quentes. O problema de
fechar os olhos é encontrar os de Rafael por detrás das pálpebras. Quando
volto a encarar os dois, sinto cada parte minha ter a energia, a vivacidade,
sugada. — Eu realmente não quero discutir. Minha cabeça está uma bagunça.
Então eu não vou conversar agora do jeito que estou, correndo o risco de ser
injusta com vocês e comigo mesma. Eu preciso de um tempo para pensar.
Por isso, preciso que você se afaste, Zaph.
— Como assim? — pergunta ele, criando uma ruga profunda entre as
sobrancelhas, evidenciando a cicatriz nova.
— Se você estiver por perto, eu não vou conseguir pensar direito.
Haveria silêncio se não fossem pelos risos e música na rua atrás de mim,
que parecem estar do outro lado de uma barreira invisível.
— Por quanto tempo? — O tom de Zaph se encaixa com sua postura e
feição estoica.
— Um tempo, Zaph. Eu não sei — reforço, passiva.
— Quanto? — ele insiste.
— Eu não sei! — Exaspero, meneando as mãos. — Pode ser uma hora ou
vinte dias! Eu. Não. Sei! — Espero um segundo para tomar fôlego, sem me
deixar levar pelo temperamento alterado. Então recomeço. — Eu preciso pôr
minha cabeça no lugar. Eu não deveria ter ouvido escondida, mas me
pergunto como seria se eu não tivesse escutado agora. Vocês têm noção de
como ouvir essa conversa me deixou quebrada? Até montar e colar todos os
minúsculos cacos vai demorar. Eu me sinto oca. Completamente oca. E
quando eu paro para pensar sobre, minha mente simplesmente explode em
milhões de cores, vozes e imagens desorganizadas. Só de considerar a
possibilidade de tentar organizar isso tudo agora já me tira o ar. Como
envolve você, eu preciso, preciso, que se afaste para eu poder pensar com
clareza.
Zaph ergue o queixo devagar ao inspirar fundo. Não deixo de notar seus
punhos com veias saltadas fechados ao lado do corpo. Ele está tentando
manter o controle e isso me enche de orgulho. Orgulho, dor e uma sensação
de perda.
— Tudo bem — ele diz, e eu vejo aquele mesmo semblante, aquela mesma
expressão dura de quando revelaram minha ascendência. Uma
impassibilidade mais dolorosa do que qualquer facada. — Se é o que você
quer.
— É o que eu preciso — digo. Zaph olha para baixo e umedece os lábios.
Um “me desculpe” coça na ponta da minha língua. — Por favor, entenda...
— Eu entendo — diz ele, inflexível, porém apresentando, lá no fundo,
certo teor de carinho, o que termina de me estilhaçar. — Só quero que você
saiba — o vampiro desabotoa os dois primeiros fechos da camiseta branca
de mangas dobradas e arregaça um dos lados, me olhando diretamente —
que eu não quebrei a promessa.
No lado direito, um pouco abaixo da clavícula, está o “A” que ele marcou
na própria pele. E a letra estava clara como uma cicatriz fresca.
Mel dá um passo à frente, sua face retorcida em consternação.
— Alice, eu...
— Você também, Melissa. — Eu a encaro, segurando as lágrimas e o
monstro feito da mais pura escuridão que está louco para sair e me engolir.
Dou um passo para trás, me afastando devagar sem desencaminhar o foco de
ambos, como se pudesse vê-los uma última vez.

Andei sozinha até a pousada, abandonando Ju e meus pais na praia, quase


tropeçando nos meus próprios pés. E quando cheguei ao quarto que eu
dividia com Zaph, nem mesmo me dei ao trabalho de acender as luzes ou
trocar de roupa. Apenas retirei as sandálias e me lancei na cama.
No hospital, quando fui internada, eu não sabia em que acreditar. Eu sentia
como se meu interior estivesse flutuando sem rumo no meio do nada, mas
meu corpo estava acorrentado ao chão. E, conversando com Bianca,
admirando sua segurança, percebi que todos nós precisamos de algo em que
confiar. Pode ser uma coisinha minúscula, mas sem ela perderíamos nossa
âncora, nossa vontade. E sem vontade, não somos nada. Fiquei tão certa e
segura de que a “verdade” era tudo que eu precisava, essa era minha
âncora... mas quando a verdade se transforma em mentira, o que resta?
Não sei por quanto tempo eu fiquei deitada, apenas revivendo a cena na
minha cabeça, ecos se propagando na escuridão.
“Ela não é o suficiente”.
Essa voz é do Zaph ou do Rafael? Por que eu não consigo diferenciar?
Porque ambas são a mesma.
Não!
Os dois são mentirosos, querida. Todos são. Veja sua “melhor amiga”. E
você é sempre a burra inocente que acredita. Coitada, achou mesmo que
alguém seria verdadeiro de coração com ela. Que a amaria do mesmo
modo que ela faz. Ninguém no mundo é tão imbecil de amar todos como
você.
Cala a boca!
Quantas vezes eles já esconderam coisas de você? Quantas mais
esconderão?
“Sua verdade aqui não vale nada!”
A imagem de Rafael sorrindo maliciosamente invade minhas lembranças,
como se estivesse vivo diante dos meus olhos. Ou esse sorriso torto seria o
de Zaph? Felipe? Minhas têmporas pulsam e aperto meus pulsos nelas para
tentar controlar meus pensamentos, e meu peito já não suporta prender o
choro.
Eu ouço um bater suave na porta do quarto. Nem sequer a tranquei, então
uma fresta é aberta e a silhueta de Zaph entra no cômodo.
Ele também não acende a luz do quarto e escuto seus passos vagarosos na
direção da cama. Sinto o colchão atrás de mim afundar e ranger. Em
resposta, todo o meu corpo reclama. Reclama porque quer se aninhar a ele e
ao mesmo tempo correr para bem longe.
Odeio como Zaph parece saber o que eu preciso e, por isso, deixo mais
lágrimas saírem quando o sinto me abraçar por trás, me abrigando em seus
braços. Quero gritar com ele, espernear e socá-lo, mas o monstro feito de
escuridão foi há muito liberto e agora ele me cobre inteira, me mantendo
refém em seus tentáculos pegajosos que envenenam minha pele e me
impedem de me mover.
Não quero admitir, mas o calor que o aconchego de Zaph traz é muito bem-
vindo.
— Scuze — ele diz, não mais que um sussurro. — Eu prometo que vou
ficar longe, só preciso sentir você por um momento.
Ouço seu inspirar fundo ao pé do meu ouvido enquanto o silêncio
sobrepesa todas as quinas do quarto. Nesse entremeio, eu sou capaz de sentir
cada movimento do peito de Zaph subindo e descendo às minhas costas e o
conforto do braço dele cingindo minha cintura.
— O nosso Nödi... é uma mentira? — minha voz ecoa fantasmagórica pelo
quarto.
— Não.
— Então por que você fez aquilo? Por que... — O que eu quero perguntar
mesmo é porque eu não sou o suficiente para ele, mas parte de mim não tem
coragem e a outra parte acha que já sabe a resposta — vocês iam esconder
de mim?
— Eu pretendia te contar. Na hora certa. — Franzo o cenho, encarando o
nada.
— Na hora certa? E quando seria isso? — Minha voz sai um pouco mais
forte, entre a raiva e a mágoa.
— Eu não sei, eu... Iartă-mă. Eu ainda estou aprendendo. — Ele expira
pelo nariz, derrotado e, por mais que não devesse, sua respiração me
acalma.
Fecho os olhos até minhas têmporas pararem de pulsar e me deixo imergir
nesse casulo que criei para mim, tão acromático quanto o quarto.
— Não que isso vá mudar alguma coisa — Zaph recomeça, ainda em seu
tom rouco e baixo —, mas eu estarei te esperando. Eu sempre te esperei,
mesmo sem saber, fată ciudată.

Voltamos das férias há doze dias. Oito dias deitada na cama, apenas
encarando a parede, remoendo lembranças. Não sentia fome ou sede, apenas
frio e dor de cabeça. Oito dias de choro contínuo no mais denso silêncio. Eu
me perguntava: por que as pessoas querem tanto que as outras vivam? Seria
tão errado assim desistir, finalmente descansar? Recusava as ligações de
Carol, minha psicóloga, e Julia.
Foi no nono dia que me levantei da cama como se algo me impulsionasse
suavemente. A abóboda celeste estava cinzenta, a chuva de verão ameaçando
a cair. Tomei um banho de água quente e nenhuma lágrima foi derramada.
Trancei meu cabelo sujo e seboso na lateral, como se a cada passada de
mecha eu visualizasse as tramas da minha vida; minhas escolhas. Meus olhos
dispararam para o quadro acima da escrivaninha, para a colagem de fotos,
para a coleção de recordações que adquiri ao longo do ano. Os sorrisos que
vi apedrejaram meu coração ao me fazerem perceber que não é preciso
esperar algo extraordinário acontecer para fazer da vida extraordinária.
Coloquei um casaco por sobre o short de moletom e caminhei pela calçada
imersa em pensamentos, apreciando o vento fresco da noite e olhando para a
escuridão entre as estrelas, embora meus punhos estivessem cerrados dentro
do bolso do moletom. Foi no nono dia que, ao retornar para casa, sentindo
meu corpo pesado, eu pluguei meu fone de ouvido no celular, coloquei Halo
de Little Dume para tocar e, assim que os primeiros acordes soaram em
meus tímpanos, deixei a cadência penetrar em mim. Foi ela que me
movimentou diante do espelho. De olhos fechados, meus pés descalços
deslizavam pelo piso gelado como se flutuassem, meus braços eram cabos
condutores de energia que seguia o fluxo do meu corpo. Minhas mãos sempre
em busca de algo, moldando algo.
Do meio para o final da música, eu já estava entalada. Assim como a chuva
que decidiu cair lá fora, curvei-me, apoiando as mãos nos joelhos, e
finalmente deixei as lágrimas quentes saírem. Eu queria quebrar alguma
coisa, bramir de raiva, e a ciência de que seria errado, ou no mínimo
ridículo fazer isso, além de perturbar meus pais no andar de baixo, só me fez
me encolher no chão com as costas apoiadas no espelho e a cabeça enterrada
entre os braços que circundavam meus joelhos.
No décimo dia, eu só notei que havia alguém comigo no quarto ao
pressentir uma mudança de peso no colchão às minhas costas.
— Eu consegui encontrar uma brecha na minha agenda lotadíssima e decidi
vir até aqui, só para te ver. — Seu tom era jocoso. Não havia interferência
ou estática, mas eu reconheceria essa voz em qualquer lugar e de qualquer
forma. Quando escutei o timbre moderado de Carol, apertei bem os olhos,
retendo a ardência no nariz e sentindo meu corpo todo tensionar. — E você
sabe por quê? Porque eu me importo com você. Você não é apenas uma
paciente para mim, Alice. Gosto de você, gosto muito, e quero ver você bem.
Você é tão forte, bebê. — Meus cílios encharcaram no momento em que senti
a carícia suave de sua mão em meus cabelos. Meu peito doía numa mistura
de alívio com raiva. — Mas você não precisa ser forte o tempo todo.
Permita-se enfraquecer de vez em quando, permita-se quebrar para que você
possa se reconstruir de forma ainda mais bela. Por fora e por dentro. Você
acha que pode fazer isso? — aquiesci — Bom. E você acha que pode falar?
— Posso ficar assim? — minha voz ecoou esganiçada
— Pode.
— E com música de fundo?
Carol riu.
— Claro.
Agora, no fim do décimo segundo dia, é a primeira vez que cogito mandar
uma mensagem a Zaph. Eu olho para a tela do celular, aberta na aba da nossa
conversa, lutando contra o intento de rolar para cima e relembrar todos os
assuntos sem sentido dos quais conversamos por horas a fio. Peço
desculpas? Não, isso é sempre minha primeira alternativa, mesmo quando
não é minha culpa. Mas será mesmo que não foi minha culpa? O que
exatamente foi minha culpa? O que aconteceu naquela noite? Eu nem sei
descrever apropriadamente. Eu o ouvi dizer que eu não era suficiente. Mas
ele não quebrou a Promessa de Sangue, o que significa que, o que quer que
eles estivessem fazendo, ele não teve a intensão de me fazer sofrer... De
boas intenções o inferno está cheio, não é?
Suspiro. Bloqueio a tela e abaixo o celular, repousando-o sobre minha
barriga, e encaro o teto com a marca de mão no gesso branco. Você está aí,
demônio? Pode me ouvir? Quer conversar um pouco?
Respiro fundo e tomo coragem para pôr as pernas para fora da cama.
Um canto agudo de pássaro me chama atenção e torno meu olhar langue
para a janela. O dia está lindo lá fora, ensolarado, a cara do verão carioca, e
sem nenhuma nuvem da minha amada chuva à vista. Meu quarto, que havia se
tornado meu casulo, me pareceu de repente muito abafado e sufocante. Acho
que preciso de um pouco de ar.
Mal termino de fechar a porta e a quentura disfarçada por entre um vento
me atinge. Inspiro fundo, absorvendo a sensação de familiaridade que os
vasos de plantas e canteiros ao redor da varanda me trazem, e dou o
primeiro passo adiante.
Não espero os fios do meu cabelo me engasgarem para separar duas
mechas e enrolá-las uma na outra. Quando levanto a cabeça, desviando dos
buracos na calçada, noto que meus pés me trouxeram até a praça do bairro.
Solto um longo suspiro enquanto me dirijo para o banco de madeira
posicionado de frente para a quadra.
Assim que me sento, meus olhos percorrem a vizinhança, percebendo as
cores e os tons mais intangíveis da vivacidade no bairro. Enxergo em seus
portões de ferro gastos, alumínio, madeira úmida, nos tijolos de barro, telhas
de zinco, paredes cimentadas com desenhos infantis aqui e líquens ali, toda
tristeza e força desse povo. Fecho os olhos tentando organizar meus
pensamentos, aproveitando a quietude rara e a brisa.
— Hã, com licença?
Uma voz masculina com um sotaque gringo forte, no melhor estilo
estadunidense ou britânico, soa perto de mim. Separo as pálpebras sem
pressa e vejo um rapaz de cabelos loiros curtos espetados num topete e
olhos azuis radiantes de pé à minha direita. Ele porta um sorriso torto sem
graça.
— Ah. Oi, Jake — cumprimento, desanimada.
— Está tudo bem? — Ele inclina a cabeça, as mãos inseridas nos bolsos
da bermuda jeans.
Eu o miro de forma um tanto quanto arrogante.
— É, acho que foi uma pergunta idiota. — Libero uma risada nasal débil.
Jake sai da inércia, se aproximando, e logo está sentado ao meu lado. Ele
arca a coluna, apoiando os cotovelos nos joelhos e encara a quadra à frente.
Eu abaixo o olhar para minhas mãos, abatida demais para me sentir
desconfortável. — Foi mal.
— Tudo bem.
— Se quiser, eu sou um ótimo ouvinte.
— Eu que não sou uma boa falante. — Movimento os ombros. — Não sei
me expressar muito bem em palavras. E quando acho que consigo, ninguém
entende.
O que me faz lembrar das aulas de dança que cheguei a pegar informações
no clube, mas nunca nem tentei frequentar.
— Às vezes, só quem entende é quem sente, mas você pode tentar fazer o
outro compreender. — Levo meu olhar enviesado para o garoto e descubro
que Jake já me encarava de soslaio. — Eu faço psicologia — explica ele,
com descaso, e mais uma risada fraca me escapa.
Deixo a cabeça pender para frente, em negação. Eu gostaria de pedir a
Jake que fosse embora, para eu sofrer e tentar vencer meus demônios
sozinha, mas não tenho coragem. E além do mais, por que, pela consciência
do Santo da Vareta Torta, eu exporia meus mais profundos tormentos para
um cara que eu mal conheço? Se isso for um novo tipo de cantada...
— Devo estar incomodando, não é? — ele persiste. — Sor... perdão. De
qualquer forma, gostaria de ajudar se me permitir. Mesmo se só precisar de
alguém com quem conversar.
Acho que estou sendo injusta.
Levanto meu rosto para encontrar seu olhar de celestina.
— Por que está fazendo isso?
Jake parece ruminar algum pensamento enquanto me analisa, e um pequeno
sorriso aparece em seu rosto. Eu não espero que ele seja completamente
since...
— Acho que eu tenho um fraco por meninas indefesas.
Não gostei disso e acabo franzindo a testa antes que pudesse ser evitado.
Jake segura minha mão suavemente com as pontas dos dedos e prendo a
respiração. O observo abaixar a cabeça para despejar um beijo singelo em
meu dorso.
— Você tem um ótimo cheiro — O garoto comenta num tom baixo, de um
modo que o fez soar... educado e sensual. Meu estômago se obstringe. Jake
endireita a postura, trazendo seu olhar de volta ao meu, junto a um sorriso
gentil. — Espero que fique bem. Podemos ir ao cinema, agora nas férias eu
estou mais livre. Você tem o meu número, então não hesite em me ligar, por
favor. Até mais.
Então ele se põe de pé e marcha para longe, com tranquilidade.
Eu poderia ter pensado “Nossa, que cavalheiro! Estou encantada!”, no
entanto, a primeira coisa que me veio à mente foi “VAMPIRO, CORRA!”.
Mas ele não prolongou o momento, não lambeu os lábios e suas íris também
não mostraram nem um microscópico vestígio de coloração amarelada. E
pelo modo como ele me segurou de leve, não foi possível sentir sua
temperatura. Porém, ele também pode ser uma outra criatura. Ou, talvez, no
fundo, Jake seja apenas mais um garoto solitário. Como eu.

No momento em que empurro a porta atrás de mim, mergulhando na sombra


acolhedora de casa e ainda submersa em considerações, a voz da repórter na
TV captura minha atenção.
— Aonde é que você foi? — Minha mãe vem até onde estou, os olhos
alarmados. Eu respondo com um dar de ombros.
— Só dei uma volta.
Heloise comprime os lábios. Detesto ver seu olhar de nojo quando acha
que estou fazendo algo de errado, ou quando eu estou certa e ela não. Porém,
o que mais detesto é ver o olhar de sofrimento que seu amor por mim
implica. Desde a conversa com Carol me sinto mais leve, mais lúcida, mas
nem isso faz o sentimento de merda sumir.
— Alice, eu não quero te prender, mas...
— Eu sei. Tudo bem. Mas eu não vou deixar de fazer o que gosto por
medo, mãe.
Eu cansei de me render a ele.
Novamente o tom de voz da jornalista toma a atenção de nós duas, e ambas
viramos para mirar a televisão:
“O corpo de um homem foi encontrado esquartejado e com suas partes
empaladas em volta do prédio do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A
Polícia Federal agora investiga a procedência do crime bárbaro e garante
que essa foi uma afronta direta ao poder judiciário do estado. A vítima foi
identificada como sendo o médico psiquiatra Felipe Castro Mendes da
Silva, e na frente de cada parte sua o autor do crime deixou uma mensagem
escrita com os pedaços das... vísceras da vítima, na calçada. Unidas elas
dizem: A vocês que se fazem de cegos, surdos e mudos para com aqueles
que precisam e não agem quando a justiça pede. Além desta mensagem,
fotos incriminadoras do psiquiatra foram encontradas junto às evidências.
Acredita-se que Felipe tenha abusado sexualmente de mais de cinco
pacientes suas ao longo dos anos.”
De imediato as lembranças dele e de Bianca invadem minha mente e minha
musculatura retesa.
— Meu Deus... — Escuto minha mãe falar entre o zunido que se inicia no
fundo dos meus tímpanos e aperto as mãos em punho ao lado das coxas, sem
tirar os olhos da televisão. Meu coração rimbomba com vigor dentro do
peito, minha respiração acelera.
“Sua verdade aqui não vale de nada!”
“A polícia averiguará a consistência das imagens e contará com uma
equipe especial para apurar esse crime horrendo. O major, que não quis se
identificar, disse que descobrir o ‘aspirante a anti-herói’ será uma das
prioridades. Enquanto isso, a internet borbulha com…”
Os assobios e lamúrias sedadas de Bianca do outro lado da parede,
enquanto Felipe investia contra ela rindo impregnam meu canal auditivo e
ricocheteiam em minha cóclea, dando a impressão de que eles estão bem
atrás de mim e se aglomeram com a imagem das olheiras que eu percebia em
seus olhos desfocados e da magreza em seus sorrisos apáticos.
Assim que os braços de minha mãe começam a rodear meus ombros, eu
corro em direção às escadas, me sentindo fremente por dentro dos meus
músculos. Chego ao segundo andar sem ar e quase arranco a gaveta ao abri-
la com força. Estou trêmula, o que dificulta a tarefa de encontrar os
comprimidos.

Horas depois, deitada na cama, eu sinto os efeitos dos antidepressivos que


tomei, em uma quantidade na qual provavelmente minha médica teria me
estrangulado. Primeiro vem a secura na boca. Então os tremores, e logo
depois noto a descoordenação motora quando tento me levantar para ir ao
banheiro. O enjoo revira meu estômago e uma névoa espessa roda em minha
mente.
Carol estaria decepcionada ao ver meu estado agora: sentada no chão perto
do vaso sanitário, escorada na porta e suja de vômito. Minha visão está
embaçada e meu rosto manchado pelas lágrimas, mas não tenho ânimo o
suficiente para me importar com isso. Não tenho nada. Minha boca está
ressecada, espasmos percorrem meus músculos e nervos e a falta de ar
esmaga meu pulmão. Eu olho para o chuveiro, para o piso frio do box e
arranho minha coxa, relembrando que um dia eu já estive ali.
Não quero encarar minhas amigas e minha família e dizer que estou bem
quando nitidamente não estou; não quero mais me sentir tão sozinha; não
quero mais me sentir oca, apagada; não quero mais ter dores de cabeça
provenientes dos pensamentos incessantes; não quero mais olhar para algo
que eu costumava amar e não sentir vontade de fazer nada; não quero mais
me sentir a única que tenta, tenta, tenta e não sai do lugar; não quero ver o
desamor do mundo, tanta gente sofrendo e eu sem poder fazer nada; não
quero, não quero!
Eu sei, eu sei que é egoísmo, mas estou tão cansada, tão cansada, de me
sentir como uma vela acesa, cujo calor é drenado por um vácuo gigante e
agressivo!
“Ela não é o suficiente.” Jamais serei o suficiente. Para ninguém. Muito
menos para mim mesma.
Meu olhar nebuloso mira o chuveiro outra vez. A ideia me vence pelo
cansaço, então, me apoiando na porta, consigo me erguer devagar. No
entanto, a tontura me abate e eu despenco. Antes que eu atinja o chão, sou
aparada por braços finos e de temperaturas oscilantes.
Iço o rosto, os pensamentos embaralhados, e, por entre o borrão da minha
vista, sou capaz de distinguir uma figura de cabeleira negra longa e pele
clara.

Momentos indefiníveis depois, acordo esparramada na cama, esbaforida


por um pesadelo do qual não me recordo.
— Calma, calma.
A face lívida e angelical de Melissa, emoldurada pelos seus cachos de
obsidianas, paira próximo à minha.
— O que você está fazendo aqui? — Minha voz sai esganiçada, então eu
limpo a garganta.
— Não é óbvio? Eu vim te salvar de você mesma.
— Por quê?
— Porque sou sua amiga.
Um riso rápido de escárnio me escapa e viro o rosto para o outro lado,
tendo um traço de sorriso viperino despontando. O sorriso logo se retorce e
se transforma em uma carranca de choro iminente. O resultado não poderia
ser outro.
Tanto as lágrimas quanto o riso possuem os mesmos motivos. Uma mistura
de sentimentos, como alívio e culpa. “Porque sou sua amiga.” Ver como
Melissa ainda cuida de mim com zelo imprensa meu peito.
— Falei com Zaph. — A doçura de sua voz me enerva e abranda, ao
mesmo tempo. Sinto suas mãos delicadas afagarem o topo da minha cabeça,
então me permito descontrair. — Depois do que aconteceu. Ter sido na noite
do Ano Novo... — As lágrimas param, mas eu não ouso encará-la. — Você
ficou confusa, abalada pelas memórias e pelas palavras, eu entendo.
Até agora. Eu torno meu rosto em sua direção e fito seus olhos próximos
dos meus. Melissa está ajoelhada ao lado da minha cama.
— Palavras que disseram que eu não era o suficiente para ele — cuspo.
Mel inspira fundo, ainda acariciando meus cabelos. A sensação é
reconfortante, mas dolorosa. Não sei o motivo ao certo, porém sinto no meu
interior uma força inflamar. Uma chama ainda fraca, mas estável e
consistente.
— Naquele dia, um pouco antes de você chegar, Zaph me chamou para
conversar em particular. Ele queria me fazer um pedido. Ele me pediu ajuda
para te proteger. — Minha respiração se torna errática. — Ele optou por
abrir mão do orgulho e pedir que eu me juntasse a ele como antigamente,
para te manter segura. Poder não significa onipresença. Não para nós. Ele
disse aquilo porque sabia ao que eu me referia. Você pode ser a herdeira do
Drácula, mas não é uma vampira, não teria como... — Ela suspira, sem
completar. — Você viu a cicatriz dele, ela continua da mesma cor. Ele não te
traiu. Eu não te traí. — Meu coração se contrai mais por reconhecer a
verdade nas palavras dela. — E... você deve ter ficado sabendo do Felipe.
A reportagem corta minha mente e eu engulo em seco:
— Foi ele, não foi?
Melissa acede. Respiro fundo, percebendo a claridade escassa no quarto
quando olho para o teto. Também não preciso me analisar para saber que,
embora úmida de suor, eu estou de roupa trocada.
— Eu desmaiei?
— Eu estaria surpresa se não tivesse. — Ela hasteia o frasco laranja pela
metade e eu gemo em reprovação.
Esfrego as mãos no rosto, limpando os olhos e despertando. Despertando
completamente dessa vez, quem sabe. Suspiro, reunindo coragem.
De acordo com o dicionário, “coragem” é um substantivo feminino, denota
senso de moral intenso diante dos riscos ou do perigo, uma força espiritual
para ultrapassar uma circunstância difícil. Para mim, coragem é reconhecer o
medo, respeitá-lo, mas enfrentá-lo.

Melissa sugeriu que fôssemos tomar um sorvete como costumávamos fazer


para refrescar os ânimos, e a lanchonete mais decente para isso perto de
casa é a do clube. Enquanto estávamos sentadas nos bancos giratórios,
debruçadas no balcão aguardando nossos pedidos, ficamos atentas à
recepcionista às nossas costas que não desgrudava seus olhos de nós. Mel
falou que a garota talvez seja vampira ou alguma outra criatura.
— Meu Nödi... — Melissa começou, encarando algo além de seu
milkshake enquanto o remexia com o canudo — ele me ligou a ela. — Então
apontou de forma sutil com a cabeça para a mulher.
Quase engasguei com o açaí. Tossi um pouco e me virei para Mel. Ela
olhou para mim com um sorrisinho um tanto quanto petulante.
— Um dos motivos de eu ter me aproximado de você foi porque eu meio
que tinha uma quedinha. — Melissa desviou o olhar para seu copo outra vez
e enrubesceu. — Quando nos encontramos na rua aquele dia em que nos
conhecemos e depois no primeiro dia de aula, eu me senti... intensamente
atraída por você. Pelos seus olhos. Achei que pudesse ser meu Nödi, mas
estava enganada. A sensação é completamente diferente.
A surpresa se atenuou e um sorriso sem dentes se encrustou no meu rosto.
— Por que você não vai lá falar com ela? — perguntei. Melissa tornou a
me encarar e, aos poucos, também esticou um mais sem graça. Ela inspirou
fundo e, quando desceu do banco indo em direção ao balcão, meu sorriso se
ampliou.
Observei Mel iniciar uma conversa tímida com a recepcionista que a
admirava como se minha amiga fosse a maior lasanha do mundo.
Talvez soe estranho o que eu vou dizer, mas acho que os vampiros e
algumas outras criaturas têm muita sorte por conseguirem sentir quando
encontram a pessoa a quem estão ligados pelo Nödi. Nós, humanos, temos
que viver com a eterna dúvida ou então sermos muito perceptíveis aos
sinais.
— Você acha que ele vai me ouvir? — recomeço depois de termos saído
da lanchonete e retornado para o calor infernal da rua sob o entardecer. Não
me surpreende não ter ninguém por perto. Andamos lado a lado, mas ela olha
para baixo, contemplativa.
— Ele deve estar um pouco louco — ela responde, sem me olhar ainda. —
Porque ficar longe de você, para ele, que bebeu do seu sangue e ainda a tem
como Nödi, é tão torturante quanto ficar longe de uma droga. E acho que
você pode imaginar como é.
Um calafrio leve me perpassa.
Antes que eu possa articular uma resposta, prevejo uma sombra sobre mim,
mas meu único reflexo é o de olhar para cima. E quando eu o faço, há uma
mão enorme a centímetros do meu rosto.
Não há tempo de gritar. Em questão de microssegundos, Melissa está na
minha frente e sou lançada para trás. Caio sentada na rua e, embora os ossos
da minha bunda estejam doendo, logo volto a focar na cena com o coração a
mil.
Melissa firma seus pés no chão, rachando o asfalto à medida que um
homem asiático de estatura e porte medianos a empurra com força, tentando
fazê-la sucumbir. Vejo o esforço estampado no rosto dela para não deixar
que isso aconteça, enquanto, para ele, a única expressão em sua fisionomia é
a de uma besta fera esfomeada e ansiosa por devorar sua presa. O modo
como seus olhos vermelhos injetados estão fixados nela, seu sorriso
exibindo os dentes superiores e inferiores acuminados pingando saliva,
mostram que ele é um Vacor.
O vampiro subitamente pega um dos braços erguidos de Mel e a gira por
cima de si, até que ela tomba deitada no solo, do outro lado.
Vacor e Strigoi.
Ele fica sobre ela, prendendo-a no chão com as pernas em seus quadris e o
antebraço no pescoço. Melissa se contorce debaixo do vampiro, seu rosto
tomando uma coloração vermelha, até que dá impulso com as pernas para
cima e se livra dele. Desta vez é ela quem está por cima, despejando uma
saraivada de socos no rosto dele. O homem ri e se esquiva sem dificuldade.
Ele a para, pegando o punho dela, e o quebra. Melissa solta um grito que faz
minhas entranhas vibrarem.
O Vacor a joga para o lado e mostra as presas. Melissa range os dentes e
põe seu outro antebraço livre acima de seu rosto, bem a tempo de impedir
que os caninos dele afundem em seu pescoço. Agora eles estão cravados na
carne de seu braço, e posso ver as veias por debaixo da pele pulsando
conforme o vampiro suga seu sangue. Ela ruge, tentando empurrá-lo, e de
repente o Vacor retira seus dentes afiados, arrancando um pedaço de sua
pele. O brado de Melissa ecoa pelo entardecer e a via deserta. O vampiro
lunático usa a mão em forma de uma lança e, ao abaixá-la veloz e
certeiramente, Melissa desvia do ataque, mas não há tempo de evitar que seu
olho direito seja atingido.
Sentada e encolhida no asfalto quente, eu observo os dois se engalfinhando
no chão, paralisada. Melissa agarra o pulso do homem, tentando tirar os
dedos dele de seu olho, porém o vampiro somente gargalha e saliva
conforme os torce devagar como uma chave na fechadura. Lágrimas
escorrem silenciosas pelas minhas bochechas assistindo, impotente, ao
empenho dela através de seus dentes trincados. O sangue espirra, manchando
as mãos e rosto de Melissa em jorros grossos. Acho que vou vomitar.
Arrumando forças não sei de onde, Mel rola para o lado e se levanta
trôpega, com uma mão sobre o olho direito. Assim que o Vacor se ergue, ela
tenta arranhar o rosto dele mais uma vez com o punho quebrado, mas ele a
pega pela garganta e suspende, para então jogá-la longe.
O vampiro passa a mão na boca inundada de sangue, lambendo o fluido de
Melissa em seus dedos, e ri.
Sinto minhas pernas e braços apoiados no chão tremerem como nunca
tremeram antes. Não consigo me mover, só focar na imagem de um Vacor
Strigoi virando os pés na minha direção. Seus olhos escarlates se fixam em
mim e ele passa a língua pelos lábios.
— Agora, o prato principal.
Sua voz emana uma corrente elétrica para o meu corpo e é isso que me faz
sair da inércia. A noradrenalina obriga meu braço a se mover para trás,
querendo se afastar o mais rápido possível. Logo minhas pernas também
recebem esse impulso e tentam recuar, mas minha coordenação motora não
ajuda.
Consigo me levantar e corr... Argh! Arfo de dor e susto quando sou jogada
para baixo, atingindo o chão de forma violenta. Os ossos do meu rosto
latejam pressionados contra o asfalto sujo, a lateral é premida por uma mão
grande no solo.
Emito um ganido quando o Vacor emaranha sua mão no meu cabelo,
puxando-o para cima junto com a minha cabeça. Choro ao sentir o hálito
morno e fétido de sangue roçar próximo ao meu ouvido.
— Última herdeira do Drácula, você é minha.
Eu soluço no momento em que ele passa sua língua nojenta em minha
bochecha, meu coração pulsando em meus ouvidos.
— Lágrimas de medo sempre são minhas favoritas.
Então ele libera uma gargalhada e já me preparo para a mordida, para o
fim.
Mas ele não vem. A pressão na minha cabeça some, meus cabelos caem
para frente e abro os olhos molhados. O Vacor não está mais sobre mim. Me
viro para trás, ainda deitada na rua, e me deparo com Melissa entre nós dois
outra vez.
— Alice! Corre! — Melissa grita, ao passo que arrasta o vampiro para
longe por debaixo dos braços. Entretanto, sem demora, ele joga o cotovelo
para trás e acerta o nariz dela. Isso a desnorteia e ela o liberta.
Melissa avança sobre o homem outra vez, que se esquiva com uma
facilidade invejável, até que suspira cansado e contra-ataca bem quando Mel
desfere um soco com a mão não quebrada. O Vacor segura um ombro dela e
com a outra mão a atinge repetidamente no abdome. Melissa se curva cada
vez mais, ainda apertando um olho sangrento e cuspindo sangue a cada
golpe. O vampiro a solta para dar um gancho. Ela cambaleia para trás e ele
acerta os dois lados da cabeça dela com os nós dos dedos. Melissa cai de
joelhos. Ele chuta o braço dela quando ela está prestes a se levantar, o que
acaba derrubando-a de bruços no chão.
Melissa está fraca demais, mal consegue se manter de pé e consciente. Ele
vai matá-la. Eu tenho que fazer alguma coisa.
O Vacor levanta o joelho, com o pé em bem acima da cabeça de Mel. Com
uma risada esganiçada e a feição jubilosa ensanguentada, ele abaixa a perna
com força...
— NÃO! — o grito rompe minha garganta quando reconheço sua intenção.
Um tiro ecoa pela rua e o Vacor urra de dor, uma mancha rubra se
espalhando pelo tecido da sua blusa. Atônita, eu viro o rosto para a mesma
direção que o vampiro. Vejo meu pai, mais distante na rua, com um revólver
apontado para o homem perto de Melissa.
O Vacor rosna e dispara na direção dele. Meu coração capota dentro do
meu peito e outro grito de desespero irrompe minha traqueia.
Meu pai não vacila, mesmo com o vampiro ensandecido correndo em sua
direção. Ele permanece com a arma em riste, os olhos focados, e uma
sequência de tiros vibra pelo ar. A cada eco, o Vacor é atingido sempre no
mesmo lugar, ampliando a mancha de sangue na blusa e o buraco em seu
peito. Até que Gabriel finalmente aloja uma bala bem no meio da testa do
vampiro e ele tomba no chão, a centímetros dos sapatos lustrosos do meu
pai.
O silêncio se propaga até preencher meus ouvidos e fazê-los zunirem.
Percebo minha respiração ofegante, o calor volta a tocar minha pele. Eu
quero correr em direção ao meu pai, agarrá-lo e chorar em seus braços. Mas
quando meu olhar se volta para Melissa, jazida no chão mais à minha frente,
minha primeira reação é engatinhar até ela.
— Mel, Mel! — chamo-a. Minhas mãos pairam acima de seus ferimentos
sem saber o que fazer. Ela tem um olho aberto, embora semicerrado, e o
outro fechado e inchado. Metade de seu rosto é puro sangue e hematomas
púrpuros. Sua roupa é uma mescla de terra e sangue, enquanto seu peito sobe
e desce devagar.
Meu pai se junta a mim, ajoelhando-se próximo à cabeça de Melissa.
— Devo chamar uma ambulância? — ele pergunta.
— Não. — Ela tosse, sua doce voz esganiçada, e contorce o rosto. — Só
me ajudem a chegar em casa. Eu tenho um kit médico lá.
Um “kit médico”? Minha filha, você precisa de um hospital inteiro!
Ainda oscilante, me obriguei a ser forte. Meu pai pegou Melissa nos
braços e a carregou até em casa. Chegando ao portão, nós a colocamos
deitada no Corolla preto e branco da Polícia Civil e pus o seu endereço no
GPS.
Mel precisava de sangue, eu e meu pai sabíamos disso. Eu havia contado
para eles sobre a verdadeira natureza dela, mas, mesmo se eu não tivesse,
Gabriel presenciou o bastante para descobrir. No entanto, isso não significa
que ele permitiria que eu desse o meu sangue.
Pouco tempo depois, nós a ajudamos a sair do carro e reparei no prédio à
nossa frente. É um condomínio de apartamentos com quatro blocos simples
em tons pastéis, depois de portões altos de alumínio branco. Passamos pela
portaria, ainda com Mel encaixada em nosso ombro, onde o porteiro quase
calvo perguntou espantado o que tinha acontecido e se queríamos chamar a
polícia ou uma ambulância. Meu pai mostrou seu distintivo e o homem não
fez mais perguntas.
O apartamento de Melissa é modesto, mas confortável. Entramos pela sala,
onde há um sofá de apenas dois assentos debaixo de uma janela de correr e
uma televisão num raque marrom escuro ao lado da porta. O cheiro é
engraçado. Lembra um pouco cachorro. Mas um cachorro perfumado.
Não fico analisando muito os detalhes, pois tratamos de levá-la ao
banheiro para tomar um banho. Embora o quarto de Melissa combine
perfeitamente com sua personalidade, eu não esperava que ele fosse cor-de-
rosa bebê. Há alguns bichos de pelúcia contra a cabeceira da cama de casal,
forrada com uma colcha florida, artesanato de outros países enfeitando uma
estante de livros ao lado da janela, porta-retratos sobre uma escrivaninha
milimetricamente arrumada. Meu Cai Shen, sinto até vergonha do meu
quarto.
Depois que ajudei Melissa a se lavar e se vestir, eu a levei para a cama e
meu pai me ajudou a fazer os curativos. Pelo visto, estou pegando prática. E
isso não me deixa nada contente.
Ela agora está deitada ao meu lado, afundada nos travesseiros, com a
respiração leve enquanto cochila. Há uma tala em seu pulso, faixas em seu
ombro e uma gaze sobre seu olho.
Levanto da cama sem fazer barulho e caminho a esmo pelo quarto, sem
conseguir pregar o olho na noite abafada. Paro na frente da escrivaninha, de
costas para a cama, e pego uma das fotografias. A imagem está em sépia,
mostra um casal imponente com roupas antigas e um sorriso em seus rostos,
e, no centro, uma garotinha banguela segurando com orgulho um tufo de
cabelo. Um tufo de cabelo? Santo Popeye, o que é isso que a mini Melissa
está segurando? O hamster mais cabeludo do mundo? Melissa nunca falou
muito de sua família, mas deduzo que sejam seus pais. Ponho este retrato no
lugar e suspendo outro. É uma foto nossa, com Julia de um lado, Mel de
outro e eu no meio. Um sorriso surge em meus lábios.
Controlo um suspiro para não acordar Melissa, olhando-a deitada na cama.
Minha culpa. Rinjo os dentes e continuo andando de pés descalços no piso
frio até a sala. Nem parece que é verão nesse apartamento. Está frio, lúrido,
arrumado e quieto. Sento com as pernas encolhidas num canto do sofá, e
pego o celular. Aviso a Ju o que aconteceu e que eu vou dormir ali...
Também mando mensagens para Zaph.
Mais cedo, eu agradeci ao meu pai e o abracei demoradamente antes de ele
partir. Admito que chorei um pouco em seus braços enquanto ele alisava meu
cabelo.
Bloqueio o celular, pondo-o no assento, abraço os joelhos e apoio a lateral
da cabeça no encosto do sofá, bem onde um raio de lua me atinge e fico a
observando até minhas pálpebras pesarem.
D
e manhã, Melissa não está nem na cama, nem na cozinha. Encontrei-a
no banheiro espremido de seu quarto, retirando o esparadrapo do
olho diante do espelho minúsculo. Infelizmente, suas pálpebras estão
inchadas e esverdeadas, e seu globo ocular está praticamente todo branco. A
quantidade de sangue que ela ingeriu e os genes mágicos dos vampiros
ajudaram na recuperação rápida, mas não fizeram muito para restaurar sua
visão. Acho que até mesmo a magia tem limites. Trocamos olhares pelo
reflexo e ela transmite um sorriso pequeno.
Há alguns recados no meu celular, mas nenhum de Zaph.
Segundos depois de eu ter lido a mensagem da Ju – que dizia para nós nos
prepararmos para engordar mais cinco quilos –, a campainha tocou e
Melissa abriu a porta. Julia irrompeu sala adentro, trazendo consigo mais de
mil sacolas de plástico. Ela pôs tudo sobre a mesa de centro de madeira,
tagarelando como sempre, e começou a tirar bebidas, pacotes e mais pacotes
de salgadinhos, cabos longos e microfones. Nossa amiga mandou Mel
colocar uma música animada, mas levou um susto quando viu seu rosto e
braço feridos.
Julia improvisou um karaokê e nos forçou a cantar enquanto elas bebiam
cerveja e eu um refri. É como dizem, “quem canta, seus males espanta”.
Depois de bagunçar a perfeita simetria do apartamento de Melissa,
espalhando farelos, almofadas, garrafas de cerveja e latinhas de guaraná,
chorar meio São Francisco e uma Cataratas do Iguaçu, achei melhor ir para
casa. Minha mãe devia estar uma pilha de nervos.
Chego em casa um pouco depois do almoço. Ela está na cozinha junto a
Fernanda com Clarisse no colo, enquanto meu irmão ajuda meu pai no
computador, sentado à mesa. Todos viram os olhos para mim quando entro
pela porta da sala. Um alívio imenso toma meus músculos ao vê-los.
— Como ela está? — meu pai pergunta.
— Bem, na medida do possível. — Fecho a porta com cuidado.
— Que bom. Mas e você?
Eu inspiro profundamente, tirando uns segundos para analisar meu interior.
E sorrio.
— Bem. Me sinto bem.
Todos sorriem comigo. Inclusive Clarisse, que faz seus sons
incompreensíveis de bebê e que nós cismamos em tentar decifrar e repetir
que nem idiotas.
— Já sabe o que vai fazer no seu aniversário? — Igor pergunta, ficando
ereto e apoiando uma das mãos na cintura delgada.
Deuses, se não fosse pela conversa que eu e as meninas tivemos na casa de
Melissa, eu teria esquecido completamente que estou para fazer dezenove
anos daqui a menos de três dias.
Dou de ombros.
— Eu e as garotas pensamos em fazer algo íntimo. Quer dizer — fico um
pouco tímida com eles de repente, mas ergo um dos ombros e escondo um
sorriso, sentindo meus zigomáticos alfinetarem —, dei a ideia de eu preparar
um jantar.
Os olhos de todos se arregalam, mas os da minha mãe quase pulam para
fora da órbita do planeta.
— Você vai preparar uma janta? Cozinhar? Você? No fogão?
— É, mãe. Eu mesma. — Movo o mesmo ombro que estava encolhido
junto com a cabeça, não mais encabulada, porém ainda com um sorriso
inibido no canto dos lábios. — Eu meio que estou gostando de cozinhar.
Quando estou diante de inúmeros ingredientes e os misturo, é como se
tivesse aroma de memórias e sabor de sentimentos. E sentir qualquer que
seja a sensação que o tempero evoca é melhor do que o vazio.
Minha mãe pisca os olhos algumas vezes, atônita. Igor a imita enquanto
meu pai e Fernanda ostentam os dentes.
Antes de Julia e eu seguirmos cada uma o seu rumo, combinamos o que
faríamos para o meu aniversário. Julia sugeriu uma boate, claro, mas eu
fiquei um tanto incerta pelo estado frágil de Mel, e eu não queria comemorar
sem ela. Então eu juntei as duas ideias e decidi fazer um jantar temático aqui
em casa. Os olhos de Ju cintilaram. Julia especulou sobre ir de Sailor Moon
ou então de Korra, mas também queria algo elegante e pensou em retratar um
de seus livros favoritos. Já Mel foi assertiva ao dizer que iria de pirata só
para usar um tapa-olho.
— Bem — minha mãe sai do transe, respirando fundo e exibindo uma
expressão despreocupada —, ao menos não vou precisar me preocupar com
a comida. Mas eu não vou lavar a louça!
— Antes de conhecer seu irmão — Fernanda inicia, ninando Clarisse —,
eu comemorava todos os meus aniversários em baladas. Conhecia cada
boate em cada esquina, do duto de ar ao bueiro.
Igor se vira para a esposa com a testa franzida.
— Você nunca me disse isso.
— Ah, querido, você não iria querer ouvir as minhas aventuras de
piriguete.
Meu irmão faz uma careta que me tira um riso sincero.

— Psiiiu! Acordaaa! — Ouço a voz do meu pai cantarolar bem baixinho ao


pé do meu ouvido.
— Só mais cinco minutos — murmuro, cansada pela emoção dos últimos
dias com Melissa. Já haviam se passado dois dias desde toda aquela
confusão, mas eu sentia que precisava dormir mais ainda.
— Fiz lasanha — minha mãe diz, e me levanto de supetão.
— Cadê? — Esfrego os olhos para desembaçar a visão, sentando na cam...
ai, está tudo rodando.
— Sua interesseira.
Quando separo as pálpebras pesadas em definitivo, pisco algumas vezes,
ainda para me acostumar com a… escuridão? Ainda está um breu lá fora.
Que horas são?
Minha mãe, meu pai, Igor e Fernanda estão ao lado do meu humilde leito,
sorrindo de ponta a ponta.
— Feliz aniversário! — eles sussurram, provavelmente para não
acordarem Clarisse.
Abro um amplo sorriso e estico os braços para me espreguiçar, mas acabo
recebendo um abraço de minha mãe.
— Parabéns, filha — ela diz no meu ouvido. Heloise se solta do enlace,
endireitando a postura e dando abertura para eu me pôr de pé. Logo meu pai
refaz o gesto, seguido de Igor e Fernanda.
Nesse ínterim, minha mãe se afasta e ouço um ruído de embrulho. Heloise
se reencaminha para mim, com um sorriso entre o gentil e o esnobe no rosto,
e um pacote dourado retangular grosso em mãos.
— Tome — ela diz. Quando seguro o objeto, percebo que ele é mais
pesado do que aparenta. Sacudo-o perto da orelha e algo lá dentro se rebate.
Dou de ombros, abrindo o saco laminado. Uma caixa de metal vermelha,
laminada na tampa, se encontra ali, com um logo redondo de uma boca e
presas longas à mostra. De cenho franzido, aciono sua tranca que emite um
“click” e... Não acredito.
— Isso é sério?
— Seríssimo — minha mãe responde, cruzando os braços. — Agora que
seus genes vampirescos estão mais ativos, vai ter mais atividade vampírica
ao seu redor, como pode ter percebido. Precisará se proteger.
Meus pais me deram um kit vampiro. Nele tem os compartimentos todos
certinhos, bonitinhos, contendo uma cabeça de alho, uma estaca... Nossa, que
estaca bonita. Ela é de prata, com entalhes intrincados na superfície cônica.
Isso é prata de verdade? Há mais um vidrinho com água benta, uma cruz
numa corrente, um soco inglês e um spray de pimenta. Quê? Nunca ouvi
falar em spray de pimenta contra vampiros. Onde foi que minha mãe
comprou isso? Huuum, adoro cheiro de plástico novo.
— Pelo menos ande com o spray — meu pai diz. — Pode usá-lo também
nos humanos abusados.
— Aqui. — Fernanda me oferece uma caixa mais modesta, embrulhada em
papel celofane roxo. — Não sabíamos o que você queria, então compramos
isso. Chegou ontem, então desculpa pelo embrulho malfeito.
— Tudo bem. — Ponho o kit sobre o colchão e pego a caixinha em mãos,
rezando para não serem brincos ou maquiagem, mas quando retiro o laço
meus olhos se esbugalham ao ver uma gargantilha. Ela é feita de uma tira
preta e um pingente com o símbolo do cetro de Atena dos Cavaleiros do
Zodíaco.
— É linda! Obrigada, obrigada, obrigada! — Abraço tanto Fê quanto Igor
ao mesmo tempo. Quando eu dei a ideia do meu jantar ser temático, eu
mesma não fazia ideia do que eu vestiria. Mas ao ver esse símbolo eu tenho
a ideia perfeita. — Eu amei!
— Ah, e o nosso presente você esnoba, né? — Nós três rimos com o
comentário emburrado de minha mãe. — Não era pra vocês rirem, não.

— Obrigada!
Agradeço à atendente, me afastando do caixa às pressas. Caminho em
direção à saída do supermercado, carregando duas sacolas de plástico, uma
em cada braço. O céu já não está tão limpo, apresentando nuvens escuras e
longas que bloqueiam o sol do fim da tarde. Espero ansiosa pela chuva com
um sorriso retido ao morder meu lábio inferior. Porém, estou mais ansiosa
para terminar o jantar que comecei. Planejei fazer um arroz à piamontese, um
escondidinho de carne moída a lá Alice e bruschettas de entrada. Eu nem
acredito que deu tudo certo! As meninas estão para chegar a qualquer
momento, e a minha casa inteira enfeitada com velas, vasos de flores e a
mesa arrumada como se fosse uma ceia digna de faraós me deixa ainda mais
empolgada!
Por volta da hora do almoço, logo após tomar meus remédios, cansar de
pular ao som de Mambo N° 5 e Smash Mouth, rir de mim mesma e mandar
mais mensagens para Zaph – tentando não ficar preocupada –, minha mãe me
chamou do térreo. Ao descer, indo em direção à sala, fui recepcionada com
uma salva de palmas dos meus pais, Igor e Fernanda – e Clarisse –, que
estavam posicionados ao lado de um bolo de chocolate no centro da mesa.
Me juntei a eles, cantando “Parabéns para você” sem esconder um sorriso
mediano. Segurei o cabelo ao me dobrar sobre o bolo e assoprar a vela
simples. Eu não costumo acreditar nesse negócio de fazer pedidos, mas
dessa vez eu decidi arriscar. Vai que funciona.
Realizei uma videochamada com Carol, atualizando-a, e assistimos a um
filme pelo resto da tarde, todos reunidos na sala. Não muito depois, chamei
minha mãe para ir ao mercado comigo me ajudar a comprar os ingredientes
para a refeição. Mas a tapada que vos fala se esqueceu de comprar os pães
para as bruschettas!
Então aqui estou eu, ignorando os olhares dúbios em minha direção por
estar trajando uma saia longa de tule piche com duas fendas laterais, um
cropped de decote profundo da mesma cor, a gargantilha que Igor e Fê me
deram e chinelos na medida em que cruzo o estacionamento vazio. Mas
talvez o que mais chame atenção seja a maquiagem forte e o arco de estrelas
na minha cabeça.
Quando avistei o pingente da gargantilha, uma luz se acendeu em minha
mente: Érebo, o Deus grego da escuridão, de todo o vasto negrume que se
expande e acolhe as estrelas de Bianca. Ela nunca parou de sorrir. Não
escondia sua apatia, sua aparência desalinhada, mas não deixava de
acreditar toda vez que admirava o céu noturno. Ou talvez ela estivesse
apenas esperando paciente e esperançosamente a sua vez de se tornar parte
dele.
— Vai lá — ela disse e assobiou em seguida, me abraçando na minha
última noite no hospital, pouco antes de entrarmos de volta no prédio
principal. Porque sabíamos que ali seria a última vez que nos veríamos. —
Vá e encontre razões para acreditar. E quando você achar — Bianca silvou
outra vez e piscou — conte a todos.
Um arrepio percorre minha coluna e eriça os cabelos da minha nuca.
Olho para trás, por precaução, correndo em meus chinelos. AU! Ao
retornar para frente, meu nariz tromba com algo duro, forte o suficiente para
fazer meu arco cair. Ai, acho que vou espirrar.
— Descul...
Sinto meu pulso ser agarrado por uma mão forte, minha barriga ser
circundada por um braço grosso e, por fim, mas não menos importante, tenho
minha boca e nariz tapados por um pano.
Prendo a respiração, me debatendo para não respirar o provável
clorofórmio e me libertar, mas meu esforço faz com que eu perca o ar mais
rápido. Meu coração bate forte contra a minha caixa torácica conforme
enxergo a noite descendo, e minhas sacolas jazem na calçada, cada vez mais
distantes. Minhas pernas se atrapalham tentando resistir de alguma forma e
isso… Droga! Tive que buscar ar! Tudo roda...

Urgh! Me sinto enjoada. Por que está tudo girando? Onde diabos eu
estou?
Há luzes piscando... não, um encadeamento de luzes amareladas passa por
cima de mim de maneira fugaz cada vez que um poste de luz enquadra na
janela do carro. Carro?
Devagar, ganho a perfeita noção de que estou deitada de lado, no banco
traseiro de um carro. E carro chique, viu. Acho que os sequestradores se
acharam tão espertos e fodões que não se deram ao trabalho de me amarrar.
Argh. Minha cabeça dói. Há dois homens, grandalhões como ursos, nos
bancos da frente e eles conversam entre si.
Eu não sou capaz de discernir o que estão falando, parece outra língua.
Gente, eu sei que o Rio de Janeiro atrai bastante turistas, mas, por Jeová,
meu bairro não é o Leblon para ter tanto gringo assim.
Preciso pensar e agir rápido. Em que faixa será que o carro está? Se
Acintya gostar de mim, estará na do canto. E a passagem dos postes no meu
lado direito e a dos carros pelo lado esquerdo confirmam isso. Valeu,
Acintya.
Levanto o braço discretamente, até meus dedos chegarem à trava da
maçaneta, sem criar alarde. Calma, Alice, calma. Meus sentidos ainda estão
um pouco distorcidos, o efeito da dopagem ainda não passou totalmente, mas
a adrenalina correndo em mim me diz para ser rápida.
Meus dedos agarram a pequena alavanca na parte de cima da porta.
Respiro fundo e olho mais uma vez para os caras conversando. Se a
maçaneta estiver trancada, estarei fodida. Bem mais do que já estou. Uma
oração fugaz para não ser atropelada ou acertada na cabeça de um jeito fatal
depois que eu saltar, e estou pronta. Ok, vamos lá: 1, 2... 3!
Puxo a alavanca com dois dedos, isso faz um barulho que alerta os homens.
Mas, quase simultaneamente e antes que eles possam reagir, eu já empurrei a
porta, sentindo o vento forte agitar meu cabelo. Flexiono as pernas, me
atirando para fora no exato momento em que sinto dedos relarem na minha
panturrilha...
Rolo no asfalto até bater no meio-fio e parar de bruços. Jogada no chão de
novo em menos de uma semana, que maravilha. Meu peito sobe e desce,
arfante. Sinto ardência em vários pontos da minha pele e um pulsar nos meus
ossos que atingiram o solo com força. Ok, agora levanta e corre, Alice!
Levanta e corre!
Apoio a mão no chão áspero e arquejo pela dor despontando na costela. Os
arranhões nos meus braços e rosto queimam, mas não me impedem de ficar
de pé o mais rápido possível. Cambaleio ao subir na calçada e disparar na
direção contrária. Maldito clorofórmio. Meus sentidos estão um tanto
distorcidos, meus joelhos estão que nem os de uma velha travada.
Ouço um rosnado logo atrás de mim, mas nem por isso paro de correr.
Minha respiração sai pesada pela boca enquanto... Dedos enormes ao redor
do meu pescoço me interrompem num solavanco e tiram meus pés do chão. O
ar fica preso na minha garganta de imediato. Agarro o pulso grosso com as
duas mãos, numa tentativa desesperada de achar estabilidade.
A luz do poste acima de nós cria sombras tenebrosas no rosto bronco do
homenzarrão, retorcido num sorriso que revela suas presas afiadas e realça
os olhos rúbeos. O vampiro solta uma risada gutural enquanto sufoco. Minha
visão começa a turvar e fecho os olhos, esperando pela morte nas presas de
um vampiro fisiculturista.
Porém, ao invés delas, sinto um empurrão na barriga potente o bastante
para me fazer chocar de costas numa parede. AU! Que porra...?!
Despenco num amontoado de saco de lixo, ouvindo o tilintar de vidro e o
farfalhar de papelão. Tusso repetidas vezes, com dificuldade de respirar. As
omoplatas, onde recebi o maior impacto, latejam, e cada vez que meu
pulmão se expande, minha caixa torácica alfineta. Tusso, ainda deitada no
meio dos sacos desconfortáveis, e não quero nem pensar na nojeira.
E onde caralhos eu estou?
Escuto urros irados, gritos e, quando abro os olhos, depois de esfregá-los
para enxergar melhor com a respiração mais regulada, vejo um corpo
masculino enorme imóvel no chão onde eu estava segundos antes. A cabeça e
os membros estão torcidos em ângulos impossíveis, algumas partes estão
ligadas ao tronco por fios rasgados de pele e também há dois caras brigando
na frente do poste.
Observo atentamente o homem mais esguio desviar de um soco do maior e
aproveitar essa abertura para perfurar a barriga do oponente com a mão. Ele
a enterra até o pulso e o vampiro mais alto e parrudo crava as presas no
pescoço do menor. No entanto, este último começa a arrastar a mão para
cima devagar enquanto força o ombro do outro para baixo, cortando seu
abdome de baixo para cima e fazendo as tripas caírem no chão aos poucos.
O bolor acre me invade imediatamente, misturado com o odor nauseante de
chorume.
Em pouco tempo, o homenzarrão retira os caninos afiados do menor para
dar seu último suspiro e o outro aproveita a abertura para finalizar o
trabalho. O grande vampiro desaba aos seus pés, no meio da poça enorme e
grotesca de sangue e vísceras. Eu realmente vou vomitar.
Meu Rá! O vampiro restante vira o rosto para mim, olhos rubros sob a luz
do poste. Ele caminha em minha direção, adentrando na sombra do beco.
Meu corpo espasma com a possibilidade aterradora de ser o tal do Secund...
— Não posso tirar os olhos de você que já se mete em confusão.
Minha respiração fica pesada, entrecortada, ao reconhecer a voz. Mais que
isso. Minha estrutura inteira se liquidifica ao som dessa voz.
Zaph ostenta uma postura despreocupada e olhos flamejantes.
— Fată ciu...
Mal ele para na minha frente e eu me lanço com os braços ao redor de seu
pescoço. As lágrimas rompem dos meus olhos quando seus braços
circundam minhas costas. Zaph tira meus pés descalços do chão sujo, me
apertando mais em si, e eu retribuo em cada medida, enterrando meu rosto
em sua nuca. Ele segura minha cabeça e minhas costas como se eu pudesse
me desfazer em névoa por entre seus dedos.
Não sei por quanto tempo ficamos abraçados, absorvendo a textura, o
aroma e o calor um do outro, mas também pouco me importa.
Zaph força uma separação e afrouxa minha cintura, colocando sua testa na
minha. Eu não quero fechar os olhos, com medo bobo dele desaparecer,
então também seguro sua blusa, como se isso pudesse sustê-lo aqui comigo.
O tecido escuro está empapado de sangue e mancha minhas mãos de
vermelho.
— Obrigada, obrigada. Obrigada por entender que eu precisava de um
tempo para pensar. E por me salvar. De novo. — Tanto eu quanto ele
liberamos uma risada rápida.
— Não vou dizer que foi fácil. Eu sinto que preciso de você, Alice. E
estou começando a achar que não é de um modo saudável. Eu nunca fui muito
possessivo, mas com você… Eu esqueço como é respirar da forma certa sem
você comigo. Eu quase me transformei num Vacor só pelo tempo em que
estive longe. Porque não conseguia parar de pensar no que poderia estar
acontecendo com você. Eu tinha que estar perto, eu tinha que sentir seu
cheiro. Eu não conseguia parar de imaginar você tentando se matar e eu não
podendo fazer nada, ou algum vampiro vindo até você e havia a porra do
Nödi puxando...
— Zaph, você me deu a escolha de recusar o Nödi se eu quisesse. Agora
eu estou te oferecendo essa chance.
Ele recua, suas sobrancelhas um tanto enrugadas e os olhos arregalados.
— Por que eu...
— Isso vai acontecer outras vezes. — Eu fungo, sem deixar de encará-lo.
— Vou ter ataques de pânico, crises depressivas em que não vou querer sair
da cama, vou ficar confusa e furiosa...
Meu monólogo é interrompido quando Zaph une nossos lábios, segurando
ambos os lados do meu rosto, e rapidamente se afasta. Seus orbes claros na
penumbra me estudam sem cessar.
— Eu disse que queria conhecer todos os seus cantos e nuances, não disse?
Agora que conheci, eu quero estar em todos eles. Além do mais, fizemos uma
promessa. Pela lua e as estrelas.
Uma risada entremeada a um soluço me escapa.
— E as infinitas possibilidades entre elas.
Dessa vez, sou eu quem o trago em minha direção. Fico na ponta dos pés,
envolvo meus braços ao redor de seu pescoço, e ele desce uma mão pelas
minhas costas até minha bunda, me puxando para si como se já não
estivéssemos quase fundidos um ao outro.
— Mas, tecnicamente, foi você quem prometeu. — Ai! Sinto um beliscão
na minha traseira. — Por que não respondeu nenhuma das minhas
mensagens? — pergunto, voltando a encará-lo com os calcanhares no chão,
mas sem tirar os braços de seu redor.
— Ah. Eu esqueci.
— Esqueceu?! — Crio um vinco profundo nas sobrancelhas.
— Esqueci. Não estou totalmente acostumado a ter um celular. — Uma
gargalhada me irrompe a ponto de eu jogar a cabeça para trás. E, quando eu
volto à posição normal, fico em meia ponta e grudo meus lábios com os de
Zaph ainda sorrindo. — Feliz aniversário — diz ele, baixo.
Espera… aniversário? JULIA, MELISSA! Ai meu Krishna, elas devem
estar loucas atrás de mim.
Eu saio de seu abraço e caminho para fora do beco imundo, que serve
como depósito de lixo dos apartamentos, nossos dedos ainda encaixados.
Trago meu foco para frente e no meio-fio há uma Sreet Bob preta fosca.
Pff. Tinha que ser. Miro Zaph com certo tédio e divertimento enquanto ele
sobe no banco com maestria.
— Quê? — ele pergunta, segurando o capacete da mesma cor. — Achou
que ia ser rosa?
— O que aconteceu com o carro?
— Vendi. Precisava me livrar dele antes que o rastreassem, por causa
daquele episódio no shopping. O Conselho não ia encobrir dessa vez — ele
diz, então pende a cabeça de modo presunçoso. — E uma moto é mais
econômica.
— Ué. — Dou alguns passos à frente, assistindo-o colocar o capacete. —
Pensei que o senhor fosse o todo poderoso mafioso.
— Eu sou rico, não burro.
A
ssim que viramos a esquina, avisto duas figuras que parecem ter
saído de um programa de TV, ou diretamente de um filme, bem em
frente ao portão de casa. Melissa está vestindo um espartilho preto
em arabescos, que realça seus seios medianos escondidos sob uma blusa
branca larga de mangas bufantes, na cintura usa um cinto de couro carregado
de uma escopeta, calças pretas justas, uma bota cano médio, para fechar com
chave de ouro: um chapéu triangular e um tapa-olho de couro marrom. Ao
seu lado, mexendo distraída no celular, há Julia vestida de… honestamente,
eu não faço a mínima ideia do que é aquilo. Seus cabelos trançados um de
cada lado descem até o busto, o batom em seus lábios cheios é de um violeta
vibrante, ela usa um vestido preto rodado de gola Peter Pan branca e mangas
curtas, meia-calça branca e um salto que lembra sapatilhas. Meu Deus, por
que ela está de salto? É só um jantar. Tudo bem que é o jantar mais
importante da minha vida.
Haverá a comida, que eu mesma preparei com tanto carinho e orgulho,
dança, minhas amigas, uma foto de Elis, minha família, Zaph… Será a
reunião de tudo o que amo, de todas as minhas razões para acreditar. Eu
peguei as fotos dos nossos momentos, que havia revelado para fazer a
colagem no meu quarto, e as espalhei em potinhos junto a flores ornamentais
e luzinhas pela sala. Não é porque temos momentos ruins que devemos
sacrificar os bons. Quero viver para sentir as emoções que tive em cada uma
daquelas fotografias.
Ambas parecem exasperadas, preocupadas e, assim que Ju ergue a cabeça
para falar com Mel, seus olhos me encontram. Zaph lentamente encosta a
moto rente ao meio-fio e eu retiro o capacete, sentindo o motor ser
desligado. Julia deixa o celular de lado e marcha em nossa direção como se
tivesse visto um fantasma.
— Onde você estava?! — pergunta ela próxima da moto, suas íris mogno
percorrendo cada peculiaridade entre mim, Zaph e a Harley. Ela olha para o
vampiro, num misto de raiva e dúvida. — Você foi transar ou foi
sequestrada?
Eu apoio uma mão no ombro de Zaph e levanto para passar uma perna
sobre o assento.
— A segunda opção.
Tanto Melissa quanto Julia trazem seus olhares para mim com espanto. Eu
descanso o capacete encaixado na lateral do meu corpo e abaixo do meu
braço.
— Quando que isso aconteceu? — Mel indaga, ainda me fitando de forma
intensa com seu único olho azul visível.
— Eu estava saindo do mercado. Dois homens… não, dois vampiros
metidos a lutadores de UFC apareceram e me levaram.
— Isso é estranho — ela diz, estável, franzindo o cenho e então elevando o
olhar para Zaph agora de pé ao meu lado na calçada. — Vampiros não
costumam sequestrar. Eles simplesmente matam.
— Eu disse isso a ela. — Então ele se vira para mim. — Você ouviu
alguma coisa?
Eu nego com a cabeça.
— Não. Eles falavam outra língua. Algo tipo russo.
— Russo? — Julia repete, enquanto Melissa e Zaph se entreolham.
— Eles não faziam parte da máfia — Zaph responde. — Não do grupo que
eu comandava.
— Podem ser novos integrantes.
— Ainda assim não explica por que a máfia vampira sequestraria Alice.
— Dã, ela não é a última herdeira do Drácula? — Julia troca o peso da
perna e balança o celular que segura.
— Não é assim que os vampiros agem, Ju — explico.
— A não ser que quem esteja no comando da máfia tenha ordenado que a
capturassem — Zaph conclui, mas eu constrinjo a testa.
— Mas isso não daria certo, daria? Eles me dividiriam em pedaços antes
que eu sequer pudesse chegar até o poderoso chefão.
— Talvez eles estivessem agindo por conta própria — Melissa palpita.
— Ou talvez eles estivessem trabalhando para mim.
Uma quinta voz surge no meio da noite nublada, cortando o vento fresco.
Eu a reconheço e, mesmo se não reconhecesse, a cadência das palavras ditas
com tanta tranquilidade chamou minha atenção. Viro estarrecida para trás.
No centro da rua mal iluminada pelos postes, há um garoto esguio e loiro,
com a postura relaxada enquanto analisa as unhas.
— Jake?
— Jake? — Zaph, às minhas costas, repete, porém num tom diferente que
eu não consigo decif… — Esse é o Adam, Alice.
Gradativamente, tal qual o sol que se põe no seu próprio tempo, as quinas
da rua parecem escurecer ainda mais sob a noite sem estrelas. Jak… Adam
esquece as unhas e seus olhos azuis me atingem como adagas feitas de gelo.
Porém o pior é notar seu sorriso sem dentes. Não ouso olhar para o alto e
ver se alguma nuvem encobriu a lua, mas rezo para que seja isso e não Adam
controlando as sombras que dançam em sua fisionomia. O ar parece
estagnado, rarefeito e o silêncio é esmagador.
Pela visão periférica, vejo Julia se inclinar devagar para Melissa.
— Quem caralhos é Adam? Ou Jake?
Eu reteso a mandíbula. Jake é Adam, o Secundus dos Cinco Grandes.
Tento não engolir em seco, mas minhas mãos começam a suar.
— Não precisam ficar tão tensos, eu só quero conversar — diz ele.
— Conversar o cacete — Zaph cospe. O Secundus iça as sobrancelhas
num assombro fingido junto às mãos, mostrando as palmas. No entanto, são
seus passos cada vez mais próximos que fazem meu coração rimbombar de
maneira vigorosa e lenta.
Meu peito sobe e desce, almejando controlar a respiração. Minha família
está dentro de casa. Eu não posso deixá-lo chegar mais perto. Pondero se
seria muita idiotice minha acreditar no 0,0001% de chance de ele realmente
querer só conversar.
— Fique bem aí. — Melissa dá um passo para frente e Adam para a
poucos metros da moto.
Ele suspira e abaixa as mãos, unindo os cílios.
— Vocês realmente não vão deixar eu me aproximar, não é? — Então seu
foco retorna a mim, animado como daquela vez em que nos encontramos na
lanchonete e na praça. Meu coração se comprime. — Nós somos amigos, não
é mesmo, Alice?
“Amigos”? Eu diria no máximo do máximo “conhecidos”.
De repente, o mundo parece estar numa enorme redoma de vidro, abafando
todo e qualquer som, até mesmo o de minha respiração acelerada. Eu aperto
minhas mãos em punhos.
— Você mentiu — digo, minha voz soando firme.
— E quem não mente, darling?
Travo a mandíbula, sentindo um uma brasa queimar em mim de súbito. Vejo
Adam inspirar fundo, ainda ostentando aquele sorriso tão simplório e
mordaz.
— Bem, acho que isso significa que não haverá conversa, estou certo?
— Certíssimo — Zaph rosna.
— Uma pena. — O sorriso se torna cabisbaixo. — Não queria que tivesse
de ser assim.
Sem mais, Adam se lança em nossa direção e me retraio com os braços
cobrindo os olhos bem apertados.
Entretanto, no instante em que noto o martelar no meu tórax, percebo que
ainda estou na mesma posição. Aparto as pestanas e abaixo os braços
devagar, voltando a olhar para frente. Minha respiração fica presa nos
pulmões quando me deparo com Zaph nariz a nariz, presas a presas com
Adam. O rosto retorcido em fúria ao forçar os deltoides e os músculos dos
braços, que impedem o Secundus de avançar. Eles entrelaçam seus dedos,
um tentando empurrar o outro. Em contraste à ira e esforço de Zaph,
irradiando em suas íris escarlates, o sorriso de Adam toma um teor lunático.
— Parece que você andou bebendo o sangue do Drácula — Adam cicia,
seus orbes carmim faiscando em contentamento. O pé de Zaph derrapa no
concreto, quebrando um pouco com o calcanhar. Lá se vai a calçada.
— Alice, entra em casa! — Melissa grita, me despertando do torpor, então
viro para a direção de sua voz. Mel está parada na soleira do pequeno
portão e apontando para o interior, seu único olho azul arregalado.
Talvez Zaph não seja o suficiente para enfrentar Adam, por estar uma
posição abaixo, mas agora ele tem um pouco do meu sangue, um pouco do
mesmo poder que corre pelas minhas veias, e Melissa. Então acho que eles
têm uma boa…
— Mas sinto lhe dizer — Adam fala outra vez, sorrindo mais próximo à
carranca de Zaph — que você ainda é inferior.
Ao mesmo tempo em que dou um passo adiante, para me juntar à Julia na
varanda, assisto Adam puxar Zaph para si e desgrudar uma de suas mãos
para fazer seu punho acertar em cheio a lateral do rosto do Tertius. Com a
força do golpe, Zaph é mandado para cima da moto, que desaba no asfalto.
Meus pés automaticamente dão meia-volta e um grito implora para eclodir,
mas não tenho tempo. Melissa se joga em Adam antes mesmo que ele possa
dar um passo à frente. Porém, se nem mesmo Zaph conseguiu segurá-lo por
muito tempo, Melissa é facilmente pega pelo pescoço e arremessada para
dentro da varanda de minha casa, quebrando alguns vasos de planta com a
aterrissagem. Então os olhos carmesins de Adam e seu sorriso maníaco se
voltam para mim.
— Sua vez.
Uma descarga de adrenalina percorre minha coluna e me obriga a disparar
para longe. Porém, duas ou três piscadas e Adam está acima de mim. Seus
caninos reluzem em saliva, a luz fraca do poste e a escuridão da noite lhe
conferindo um contraste bestial.
Eu fui atacada por Maicon no cinema, por uma guia no museu, por um
Vacor no estacionamento, na porta de casa em pleno Natal e no meio da
rua… Mas em nenhuma dessas vezes eu me senti tão próxima da morte
quanto nesta. E, pela primeira vez, a sensação me terrifica.
Adam estica sua mão em garra na minha direção conforme tropeço nos
meus pés, o ar me faltando, meus músculos vibrando, e seus dedos cada vez
mais próximos de mim. Contudo, não sou eu quem sua mão alcança.
Um corpo invade minha visão e dele irrompe o antebraço de Adam,
segurando um coração ainda pulsante nos dedos embebidos de sangue.
O universo testemunha quieto enquanto eu ouço apenas o retumbar dos
meus batimentos cardíacos nos meus tímpanos, minhas pálpebras
esbugalhadas mirando acima. Demoro a assimilar todo o enquadro.
Julia está parada diante de mim, de pé, com os olhos escuros tão abertos
quanto os meus, tão amedrontados quanto os meus. Porém de seu peito sai a
mão do Secundus, que ostenta o órgão que lateja cada vez mais errático
enquanto espirra e goteja o líquido viscoso rufo e denso, como se oferecesse
a mim um prêmio.
Eu encaro, boquiaberta, o rosto espantado de Julia e é seu engasgue, o som
esganiçado que sai de sua garganta em meio ao sangue que escapa de sua
boca, que quebra meu choque.
Adam repuxa o braço, deixando o rombo na caixa torácica de Julia bem à
vista. Mais sangue verte de sua boca, e tudo que eu consigo fazer é gritar.
Julia cai de joelhos à minha frente, bem no meio dos meus pés. Imóvel.
Rapidamente eu me ajeito de modo a amparar a queda de seu corpo,
segurando-a por debaixo dos braços. Minhas mãos se banham em seu sangue,
sentindo o quão morno ele é quando sua cabeça pende em meu ombro e
abraço suas costas. O odor acídulo e férreo invade minhas narinas.
— Julia, Julia, por favor! — Lágrimas borram minha visão e escorrem
incessantemente pelas minhas bochechas. São lágrimas grossas, salgadas e
quentes. — Julia! Por favor…
Minhas mãos tremem conforme a viro com o tronco para cima no meu colo,
e um soluço me escapa quando visualizo o buraco profundo no meio de seu
peito, o fluido rubro manchando e empapando seu vestido.
Os olhos da minha amiga permanecem vítreos, o brilho de suas íris escuras
cada vez mais fraco, sua boca entreaberta pintada de roxo e vermelho
caliginoso do sangue. Com dedos titubeantes, retiro uma mecha de cabelo de
sua testa.
— Não, por favor… — Minhas lágrimas caem em sua testa, sua bochecha
e escorrem até se misturar ao seu sangue.
Mal tenho tempo de agonizar, e mãos grandes agarram meus bíceps por
trás. O pânico me assola. Não por eu não saber quem está me levando, mas
por me afastarem de Julia, agora jazida de olhos abertos no chão da calçada.
Berro e esperneio, sem tirar os olhos molhados dos sem vida da minha
amiga. Mas as mãos não me soltam, elas só se tornam mais firmes ao redor
da minha cintura, tirando meus pés do chão. Sinto minha garganta
enrouquecer de tanto bradar, minha cabeça latejar de tanto chorar, meus
olhos inchados e meu nariz escorrer.
Finalmente paro de me contorcer quando me vejo sendo posta na garupa da
moto, o motor rugindo pela noite. Com o repentino acelerar, meu corpo é
lançado para trás e me agarro à primeira coisa que minhas mãos tateiam: o
corpo do homem à minha frente. O perfume de pinho e concreto invade meu
nariz quando meu rosto gruda na camiseta de tecido grosso em suas costas
largas, e o reconhecimento me abate.
Revivo a cena incontáveis vezes, sem piscar. Aos poucos, a conformação
vai me preenchendo. O vento frio que bagunça meus cabelos e sacoleja de
forma violenta minha saia à medida em que a motocicleta corta a noite em
alta velocidade, aquietando meu peito sôfrego.
Fecho os olhos, deixando escapar soluços rendidos.

— Alice, chegamos.
Hã? Ouço a voz de Zaph soar calmamente, como se tivesse pena de me
acordar. Eu nem percebi que havia caído no sono. Sinto minhas pálpebras
dolentes do choro.
Pisco algumas vezes, espantando o fantasma do sono, enquanto massageio
meus braços doloridos por terem ficado dobrados tão tensos. O aroma é
diferente, mais suave, e tem cheiro de terra molhada.
Devagar, as lembranças me acometem junto com a enorme sensação
entorpecente de perda.
— Ela está morta. — Minha voz não é mais do que uma lamúria. Sem
desviar os olhos do banco de couro carvão da Street Bob entre mim e Zaph,
ainda enxergo o rosto moreno petrificado e ensanguentado de Julia no meu
colo. — Adam a matou.
Ouço o movimento de Zaph girando no assento da moto ao mesmo tempo
que minha visão turva, porém permaneço em transe, sem piscar, remoendo as
cenas anteriores.
— Ela se colocou na frente. Era para ter sido eu.
— Eu sinto muito, inimioara mea. — O tom de Zaph mescla pesar com
carinho, e posso sentir tudo isso entrando pelos meus poros quando suas
mãos pegam, minhas bochechas. Meus lábios tremem conforme tento
reprender o choro, o aperto no meu coração desejando ser liberto para gritar
com Deus e o mundo. Mas um reconhecimento me atinge e abro os olhos.
— Adam vai matar todos. — Ergo o olhar para Zaph. — Minha família,
ele…
— Ele não vai atacar sua família — afirma Zaph. — Embora pudesse
facilmente entrar na sua casa e secar sua mãe, ele não vai querer arriscar
perder a última descendente do Drácula de vista. Ele ainda não sabe de
Clarisse. Ninguém sabe. Adam e eu trabalhamos de formas diferentes, não
vai demorar até ele reunir os aliados dele e vir te procurar.
— Melissa…
— Ela está bem. — O vampiro tira as mãos do meu rosto e segura uma das
minhas. — Ela conseguiu segurá-lo para que pudéssemos escapar. Ela está
com eles.
Zaph passa uma perna por cima do banco e fica de pé ao lado da moto
estacionada.
— Onde estamos? — indago, desmontando da Harley e sem tirar os olhos
da estrutura levemente assustadora logo adiante.
Há uma simplória cabana de madeira, quase completamente coberta de
musgo e outros fungos, no meio de uma clareira úmida. Uma escada de
poucos degraus leva à pequena varanda ante a porta estreita.
— Num lugar seguro. — Zaph me puxa pelo capim e cascalho até o chalé
minúsculo. Torço a boca quando escuto um estalar e uma parte do telhado se
partir e cair na varanda.
— Não me parece muito seguro.
— Mas é. Mais do que a sua casa ou a minha nesse momento. — Ele, que
já estava no primeiro degrau da cabana maltratada pelo tempo, vira meio
corpo para mim. — Vamos conversar lá dentro.
A porta rilha ao ser empurrada para dentro e... despenca. Nossa,
realmente, me sinto muito mais segura. O ambiente, sem surpresas, está
mergulhado na penumbra com alguns raios de luz pálida entrando pelas
frestas do teto quebrado. Não há nada na cabana. Nem uma fogueira, uma
caminha, armários... nada.
— Charmoso.
Zaph dá um passo para dentro e eu o acompanho. A madeira úmida reclama
abaixo dos meus pés.
— Onde estamos exatamente, Zaph? — questiono, observando com atenção
cada detalhe das paredes apodrecidas e quinas mofadas, com folhas de
trepadeiras aparecendo pelas fendas.
— Na parte mais esquecida da Floresta da Tijuca.
— Existe algo assim na Floresta da Tijuca? Não, melhor: por que tem um
lugar assim no meio da... Quer saber, deixa pra lá, não quero saber. — Zaph
se dirige para o final da cabana e se senta de pernas cruzadas no chão, com
as costas apoiadas na parede.
Caminho até onde ele se estabeleceu e me abaixo ao seu lado para fazer o
mesmo. Zaph encolhe uma das pernas, repousando o braço sobre o joelho.
— Você já o tinha encontrado? — ele inquire, o topo da cabeça na madeira
e mirando o teto esburacado.
— Poucas vezes. Mas não sabia que ele era o tal Adam. — Assim que
sento, puxo meu tornozelo e massageio a sola do meu pé imundo. Minhas
mãos ainda estão sujas com o sangue seco de Julia, e isso envia uma corrente
elétrica pela minha coluna.
— Nem ao menos suspeitou?
— Eu suspeitei que ele fosse um vampiro, não o Secundus!
Zaph fecha os olhos e solta um suspiro.
Ver Zaph, sempre tão inabalável, rendido dessa forma é como ver minha
própria ruína.
“Você ainda é inferior”, Adam dissera a ele.
— Precisamos de ajuda — lanço.
— Quem vai nos ajudar se podem tirar um pedaço de você também? — Ele
abre os olhos e abaixa a cabeça, mordiscando a unha do dedão, pensativo.
Por fim suspira, abaixando a mão e o ombro. — Terei de enfrentá-lo.
O desespero de repente ocupa todo o espaço do buraco em meu peito. E,
movida por ele, eu tomo uma decisão.
— Não precisa fazer isso sozinho.
Zaph fica em silêncio, me estudando enquanto eu também o estudo. Todas
as conversas sobre o assunto voltam à minha mente, contrapondo-se à
situação atual como se fossem cartas de um baralho sobre uma mesa.
— Precisamos disso, Zaph, você sabe — recomeço, tentando contornar
minha insegurança. — É o único jeito de termos certeza que vamos ganhar e
todos sairão ilesos. — Eu guino a cabeça. — Todos menos o Adam, claro.
— Minhas sobrancelhas se curvam. — Eu estou cansada de ver todos se
machucando no meu lugar, Zaph. Eu me recuso a assistir você morrer. Não
quando temos a carta coringa bem aqui.
O vampiro continua quieto, me esquadrinhando de cima a baixo.
— O que está fazendo? — Um sorriso um tanto desdenhoso ameaça em
meus lábios.
— Dando uma última olhada. — Seu timbre é tão sóbrio que me assusta.
— Eu não vou morrer, seu bobo. — Espero.
— Uma parte de você vai.
Então todo e qualquer vestígio de sorriso, de brincadeira, desaparece.
A partir do dia em que presenciei Zaph destroçar a cabeça daquele
vampiro com as próprias mãos, eu me perguntei se não haveria outro jeito.
Se teria como ser vampiro sem ter que manchar as mãos de sangue. Mas,
infelizmente, entre vampiros é matar ou morrer.
— Você um dia me disse que vampiros não deixam de ser muito diferentes
do que eram quando humanos. Eu darei uma parte de mim de bom grado se
isso mantiver aqueles que eu amo a salvo. Todos eles sacrificaram algo por
mim para me manter segura. Minha mãe perdeu os irmãos, meus tios
perderam seus filhos, Melissa perdeu um olho, Julia perdeu a vida. — Minha
vista começa a turvar quando a enxurrada de emoções que tenta invadir meu
peito provoca lágrimas em meus olhos. Mas eu as detenho. — Vencer requer
sacrifício, mas proteger requer determinação.
Ele me estuda mais uma vez e eu o encaro, mostrando a força que eu
prometo ter. Eu vou cair. Mas eu vou me levantar. Por aqueles que prezo,
pela vida, pelo que acredito. Não vou acertar todas as vezes, mas ao menos
vou tentar.
Zaph enche os pulmões de ar, sem piscar e sem tirar os olhos de mim.
— Vai doer. — O aviso em seu tom barítono repercute pelo meu corpo
como um jorro de água gélida.
— Ok — respondo, resiliente.
— Muito.
— Tudo bem.
— Alice, você nunca lutou nem com um ursinho de pelúcia, como vai
enfrentar o Adam?
— Eu não sei. Estou contando com as habilidades de Primus e umas dicas
suas. — Subo e desço um dos ombros, mostrando um sorriso um tanto quanto
jocoso. — Mas, isso não afetaria a Promessa que vocês fez, de alguma
forma?
Zaph libera o fôlego pelo nariz
— Não sei. Teremos que arriscar. Mas não tem problema, se você pode
perder a humanidade eu posso sentir um pouquinho de dor. — Um vestígio
de sorriso paira em seus lábios e isso desafoga meu peito.
Zaph desencaminha o foco de mim para examinar cada lado da cabana
fedida a mofo. Dando um impulso com a mão na parede, ele se coloca de pé
e vai até a porta quebrada. Seus passos ecoam na madeira e, quando ele
atinge a abertura, se apoia no batente para verificar ambos os arredores.
— Quando você acordar, você vai querer sangue. Muito sangue. — Tento
não torcer o nariz. — Mas não tem nenhum animal à vista e não posso deixar
você sozinha, talvez seja esse o momento em que Adam esteja esperando
para atacar. — Ele volta seus olhos para mim. — Terá que ser o meu.
Observo-o atônita, ainda sentada, enquanto ele atravessa o chalé na minha
direção. O vampiro se abaixa de cócoras diante de mim, olhando no fundo
dos meus olhos.
— Você terá que beber o meu sangue.
Eu deixo que o peso de suas palavras entre em mim e, depois de inspirar
fundo, anuo com a cabeça.
Meu coração está fazendo bungee jump dentro do meu peito, quase sem
acreditar no que está prestes a acontecer. Zaph apoia a mão no chão
empoeirado e se posiciona sentado atrás de mim.
Controlo um arrepio quando as pontas dos dedos de Zaph retiram lenta e
delicadamente as mechas de cabelo do meu pescoço, deixando à mostra
minha jugular. Suas mãos acariciam meus braços de baixo para cima até
chegarem aos meus ombros. Zaph me segura ali, com propriedade,
impedindo que eu fuja. Prendo a respiração, embora sinta meus batimentos
cardíacos ressoarem em meus ouvidos. Seu hálito morno sopra na minha
pele exposta. Segundos depois, Zaph crava seus caninos em mim. E dessa
vez não é para sugar meu sangue. Ué, mas cad... AAAH!
Trinco os dentes, tensionando a mandíbula para lutar contra o ímpeto de me
encolher, girar e rolar no chão apertando meu pescoço. A ardência... não,
isso não arde, queima. De dentro para fora. Sinto um rio de lava correr pelas
minhas veias e meus órgãos todos borbulharem.
— Urgh! — Não aguento segurar o gemido de dor que escapa por entre
meus dentes.
Meu interior todo se incendeia com um calor insuportável e começo a suar.
Dá vontade de me arranhar, tirar minha pele fora, qualquer coisa para parar
de sentir esse fervor!
Zaph segura uma de minhas mãos. Retribuo o gesto entrelaçando nossos
dedos com força, conforme a dor excruciante obriga um novo rugido a sair
do fundo da minha garganta.
Então eu sinto o ar se extinguir. Por mais que eu tente puxá-lo, abrindo a
boca como um peixe, nada entra e nada sai. Involuntariamente minhas pernas
começam a se debater, e logo é a vez dos braços, que tocam minha garganta
em busca de oxigênio. Zaph permanece com as presas em mim e, conforme
me debato, ele me circunda com um braço para evitar que eu me machuque.
Não sai uma palavra da minha boca, apenas ruídos roucos de uma pessoa
desesperada para respirar. Então tudo roda, minha visão embaça…

Abro os olhos de supetão, sugando ar pela boca, mas não estou mais
sufocada.
Percebo o rosto de Zaph acima do meu, seus olhos me analisando
veemente. Não sinto mais o calor, apenas um frescor que vai e volta. Há uma
ansiedade crescente em mim, que me mantém em frenesi.
E há algo mais, algo intenso que esmaga meu coração e que está me
compelindo, me empurrando, de uma forma brutal em direção a Zaph, como
se fôssemos duas partes de um todo, mas ao mesmo tempo duas forças
opostas, girando ao redor do mesmo núcleo. Isso... isso é o Nödi?
Começo a me apoiar nos cotovelos para erguer o tronco e Zaph me ajuda
pelas costas.
— Por um momento pensei que não fosse acordar — ele segreda.
Não falo nada. Tenho medo de abrir a boca e avançar sobre a primeira
pobre coisa viva que eu encontrar. Meu corpo inteiro vibra, minha boca
parece ressecada, minha garganta arranha.
— Aqui. — Zaph estende o pulso.
Meu olhar vidra no pulso lívido de Zaph e percebo todas as veias e
artérias ali. O perfume dele de repente parece muito mais dulcificado, muito
mais tentador. Minha boca saliva.
Eu não sei como fazer, mas, por instinto, agarro a mão de Zaph e escancaro
a boca, mal esperando os caninos se prolongarem por completo para
perfurar sua carne. A dor lancinante nas gengivas é aliviada no exato
momento em que... Argh! Deuses, como isso é bom.
É incrível, eu sou capaz de sentir tudo. Meus dentes são como agulhas
hipersensíveis que conseguem monitorar o fluxo de sangue do corpo inteiro
de Zaph. É a sensação mais deliciosamente estranha que já provei. Agora
entendo por que Zaph gostou tanto quando eu acariciei suas presas. E, Nossa
Senhora, parece uma torrente de água molhando uma cachoeira seca… Meus
lábios atocham no pulso de Zaph absorvendo, além de seu sangue, o gosto
suave e um tanto salgado de sua pele na minha língua. Sou incapaz de reter
um gemido de prazer.
— Alice — a voz de Zaph sai entrecortada — chega.
Eu não quero parar, está tão quentinho. Tem um sabor único, fascinante e
agridoce.
— Alice! La dracu!
Os dedos livres de Zaph, de repente, se pressionam contra a base da minha
garganta, e rapidamente retiro as presas do músculo dele para respirar.
Quando elevo meu olhar para Zaph, ele parece exausto. Era assim que eu
parecia quando ele sugava meu sangue?
— Melhor? — ele pergunta depois de passar a língua pelos lábios,
escondendo um sorriso torto.
— Um pouco. Quero mais. — Minha voz sai como o meu interior, fremente
devido a um desejo reprimido. Ele deixa o meio sorriso transparecer
enquanto recupera o fôlego.
— Sei que quer.
Um barulho entre as folhas lá fora ressoa, como se um animal estivesse
espreitando nos arbustos.
— Sorte a sua. — Minha atenção retorna a Zaph, que também fita, austero,
a porta. Ele se põe de pé, mantendo os punhos cerrados ao lado do corpo e o
olhar duro. — Seu banquete chegou.
Quando Zaph dá o primeiro passo adiante, uso uma mão de suporte no chão
e me levanto.
— Então era verdade. — Adam. A voz dele percorre a distância e entra
por onde Zaph está parado, de costas para mim. — Zaph Petrescu, o Tertius,
apaixonado por uma humana. E não uma humana qualquer: a última
descendente do Drácula! — A gargalhada de Adam propaga-se pela clareira.
Um ódio que nunca senti na vida me instiga e faz as presas pulsarem nas
minhas gengivas.
Eu abro e fecho minhas mãos. Eu não queria ter de fazer isso, mas Adam
não facilitou a escolha quando tirou de mim alguém tão precioso. E ainda
pretende tirar muitas mais. Se vai ser assim, eu serei tão obstinada quanto
ele. Inspiro fundo e caminho para a porta.
— Como a vida é irônica, não é? — Ele volta a falar, o veneno escorrendo
por suas palavras. — Zaph, Zaph, você não era de fugir. Andar com humanos
te deixou tão covarde assim? Cadê a garota?
— Estou aqui.
Se ele ou qualquer outra criatura quiser machucar alguém valioso para
mim, terá que passar por cima do meu cadáver.
Passo pelo portal estreito e me junto a Zaph na pequena varanda. Agora os
aromas de madeira molhada e ervas parecem ainda mais evidentes, porém
leves, o vento é agradável em contato com a nova condição oscilante da
minha temperatura.
Observo a horda de vampiros com Adam no centro e mais próximo. Ver
seu sorriso petulante me enerva e entristece, o que me confere um semblante
impassível. Os outros lacaios, ou sei lá o que eles são de Adam, seguem
atrás, sob as sombras das árvores ao redor da clareira. Olhos vermelhos e
laranjas cintilando naquele entremeio entre o amanhecer e a noite.
Ao ver tantas carnes macias para eu fincar meus dentes, meu corpo
estremece e a base dos meus dentes pulsa. Umedeço os lábios.
— Well we... — O sorriso cínico de Adam se desfaz num piscar de olhos
ao trazer sua atenção para mim. — Você a transformou.
Ele disse isso quase num sussurro, mas eu e os demais ouvimos
perfeitamente. A cambada de vampiros e vampiras que Adam trouxe consigo
teve a mesma reação que ele, suas expressões variando de espantadas a
atemorizadas. Será que são todos vampiros ou Adam convocou reforços de
outras raças?
Em resposta, Adam faz uma carranca e suas íris passam de safiras para
rubis. Notar o jeito furioso com que ele me encara faz as terminações
nervosas das minhas presas implorarem para serem fincadas em alguma
coisa.
— Bem — Zaph abre um sorriso afetado e torna o corpo de lado para mim,
imitando uma reverência — o jantar está servido.
Sorrio em resposta, gostando da sensação incomum dos meus caninos
pesando. Escuto o urro irado de Adam e viro o rosto em sua direção. Ele
avança com os dentes à mostra e os outros atrás dele fazem o mesmo. Agora
não tem mais volta. Se pelo sangue eu cairia, então pelo sangue eu
ascenderei.
Pulo os degraus da varanda, pousando na grama bem a tempo de encarar
Adam. Desvio de um soco seu, aproveitando para virá-lo de costas e chutá-
lo para longe. Sempre foi fácil assim? Sem dar brecha, outro vampiro
avança por cima, mas Zaph se choca no ar na direção dele e o derruba,
desferindo uma série de golpes, os quais eu não tive tempo de ver, pois lá
vinha uma vampira pela minha lateral.
Quando consigo me livrar dela, me esquivando para trás e perfurando sua
barriga com a mão – não, não foi minha intenção –, Adam me pega
desprevenida, me derrubando de bruços na terra. Rosno, me debatendo
contra suas mãos que me arranham e me pressionam contra o chão. O
reverberar da sua gargalhada sobre mim envia a flama que eu preciso e, com
um movimento do cotovelo para cima somado aos quadris, eu me liberto,
rolando e jogando-o para o lado. Antes que ele possa se afastar, agarro seu
braço e o puxo. Subo em cima do Secundus e o soco entre as costelas para
tirar seu ar. Mas acho que acabei fraturando algumas delas, pois pude sentir
os ossos rachando sob os nós dos meus dedos. Obrigada, filmes de ação.
Aproveito a abertura e não perco mais tempo: foco nas veias em seu
pescoço, desço a cabeça e cravo meus caninos afiados nelas.
Adam solta um brado de dor e, desta vez, eu não me retenho. Minha língua
tateia a posição de cada artéria sua, tateia o fluxo de seu fluido vital vindo
em direção aos meus dentes. No momento em que sinto seu sangue encher
minha boca, deixo que a sede e a raiva tomem conta de mim. Resta nada do
que fui além de pura necessidade e fúria. Adam ainda tenta se livrar, me
sacudindo e me empurrando, mas eu pressiono mais meus dedos em seus
ombros, enterrando as pontas deles em seu músculo, para mantê-lo deitado.
A premência de saciar a fome e o gosto do sangue vindo em goles grossos
me dão forças. É tão quente, tão saboroso, extasiante, viciante...
— Alice!
Escuto a voz de Zaph e saio do torpor, retirando os dentes do pescoço de
Adam para procurar meu namorado. Encontro-o próximo a mim, dilacerando
com as mãos o pescoço de um vampiro que teve a ousadia de me atacar
pelas costas.
Quando Zaph sai da frente para interceptar outro, mais dois vampiros se
jogam em minha direção por ambos os lados. Assim que me abaixo e rolo
para longe, agarro o pulso do mais próximo e o puxo até que seu pescoço
esteja numa distância acessível. Cravo minhas presas em sua jugular e
seguro a lateral de sua cabeça, engolindo a goles grandes o seu sangue
salubre, e o sinto encrustar seus dedos nas minhas costas. Uma ardência
acende na minha escápula, mas por pouco tempo, pois o vampiro que o
acompanha aproveita minha ocupação para atacar com sua mandíbula
escancarada. Em vez de soltar o pescoço do primeiro, eu empurro sua
cabeça e fecho a mandíbula, retirando um pedaço seu. Contudo, como seus
dedos ainda estavam grudados em mim, ele rapidamente volta com os
caninos à mostra. Eu uso isso para mover os pés e colocá-lo no caminho do
segundo. Pego sua cabeça com a outra mão livre e a giro. Conforme seu
corpo míngua, seus dedos saem da minha pele e o outro se aproxima bem
quando Zaph o agarra pelo pescoço com uma única mão e o leva ao chão.
Zaph ergue o olhar vermelho para mim, esbaforido.
Vindo de dentro, não do meu estômago, não do âmago, mas de algum lugar
além do meu corpo, além da minha alma, uma energia me irrompe. Me
preenche por completa, escorregando por entre as rachaduras que havia em
mim e soldando meus pedaços quebrados. Não resta nada de mim. Não da
Alice que me habitava. Meu ego e superego desapareceram. Não há
escuridão em mim, apenas um fogo que arde, mas não queima. Ele ilumina e
guia. Sou fogo e neve ao mesmo tempo. Eles correm pelas minhas veias,
inibem minhas dores. Suas labaredas instigam minha fome, me dando forças,
mas seus flocos me transmitem calma.
Vejo uma vampira de cabelos rosa vir correndo em minha direção e
rapidamente eu... Espera. Eu conheço essa mulher. A recepcionista do
clube.
A imagem de Melissa vem à minha mente. Essa vampira é o par da minha
amiga. Não posso matá-la.
Quero que todos possam encontrar seus parceiros ligados ao Nödi e que se
sintam como Zaph faz eu me sentir. Até aqueles que são meus inimigos agora,
de íris escarlates reluzentes em sede, mas parecendo tão perdidos quanto eu
estava.
Eu espanto suas mãos com facilidade e seguro seus ombros, derrubando-a
no chão. Eu a prendo com as pernas ao lado do seu quadril enquanto ela
trava a mandíbula, mostrando os dentes. Quero dizer a ela para parar,
contudo, minha garganta trava de sede. A vampira tenta me arranhar, porém,
nesse momento, seu dedo passa perigosamente perto da minha boca e eu o
arranco com um puxão.
A mulher grita em agonia e eleva a outra mão, espalmando-a no meu rosto.
Finco meus dentes afiados em seu pulso e minha língua adeja na sua pele
suave, trazendo para mim a localização exata das veias. Sugo um pouco do
sangue fino e ralo dela antes que puxe a mão de volta – grande erro –, e eu,
na minha enorme vontade de continuar a beber sangue, cada vez adquirindo
mais energia, puxo para cima, fazendo com que “sem querer” eu arrancasse a
mão dela.
Acabo de drenar a mão decepada que ficou na minha boca enquanto escuto
seu lamúrio.
— Alice! Alice! — Sinto uma mão em meu ombro. Quando vejo, é Zaph
com os lábios sujos de sangue e uma expressão de extrema preocupação em
sua face lanhada. — Chega, dragostea mea — Zaph diz, brando, e aos
poucos a realidade dos eventos retorna a mim quando o silêncio invade meus
ouvidos. Eu solto a mão, agora cadavérica, deixando-a cair na barriga da
recepcionista abaixo de mim, que ainda murmura e chora de dor.
Levanto, com a ajuda da mão estendida de Zaph, e abaixo o olhar para a
garota no chão. Seus olhos estão comprimidos, molhados pelas lágrimas, o
cabelo rosa bagunçado e com folhas. Ela não tem mais o dedo do meio, só
um coto escorrendo sangue pelos braços até a grama e manchando a roupa,
mesclando-se com o fluido vermelho que verte e esguicha do pulso direito.
A vampira choraminga enquanto se arrasta para trás, para longe de mim,
criando uma faixa de sangue na grama. O que me leva a olhar para os outros
vampiros que restaram, mais afastados, acuados, receosos... e os corpos
mutilados no chão. Dirijo meu foco para Zaph ao meu lado, seus olhos
escarlates refletindo um misto de emoções.
Miro minhas mãos embebidas de sangue, a pele dos meus seios exposta
pelo decote do cropped salpicada de gotas e minha saia melada. O que eu
fiz?
Sou agora feita de fogo, neve e algo mais sombrio. Algo antigo. Quase
como se o sangue de Viorel ativado em minhas veias tivesse trazido algo
mais. Eu sinto isso correndo pela e sob a minha pele pálida, tramada à frieza
e quentura. Magia.
Escuto um urro alto e selvagem de pura fúria soar às minhas costas. Giro,
surpresa, a tempo de ver Adam de pé, mesmo que bambo, usando suas
últimas forças para correr em minha direção. Quando se aproxima de mim,
ele escancara a boca e se prepara para atacar, mas no momento em que a
unha dele arranha minha testa e sua mão agarra meu pescoço, um relance do
modo como ele matou minha melhor amiga cruza minha mente e o imito.
Posiciono minha mão de forma reta e ela atravessa o peito de Adam como
uma lança.
Estagnamos nas respectivas posições. Um silêncio mórbido é cortado
apenas pelos sons do vento batendo nas folhagens, conforme os primeiros
raios solares começam a despontar. Meu braço continua envolto por órgãos
ainda mornos, uma mão de Adam agarrando meu pescoço e a outra
segurando minha cabeça. Quando ele as abaixa, fraco, o Secundus abre um
sorriso trêmulo.
— You... Bitch. — Ele cospe sangue no meu rosto quando fala.
Automaticamente eu passo a língua pelos lábios e o sorvo.
Puxo meu braço de volta devagar, até reconhecer o coração dele
bombeando fracamente. Então o agarro e retiro minha mão com força.
Imediatamente Adam vai ao chão e seu coração bate em minha palma.
Estudo o órgão pulsando descompassadamente e vertendo sangue em minha
mão. Ele diminui a velocidade aos poucos. Um impulso faminto e curioso me
faz o levar até a boca. Primeiro passo a língua pela superfície escorregadia e
me delicio com o gosto do sangue poderoso de Adam. Cravo os dentes e
sugo o restante que há ali, até fazê-lo colapsar e parar por completo.
Assim que não há mais nada, deixo o coração murcho de Adam cair na
grama. Volto minha atenção para os poucos vampiros que restam na clareira.
Ninguém se move ou fala.
Fecho os olhos, me sentindo saciada, menos descontrolada. Ainda há um
monstro em mim, mas ele parece diferente agora. Respiro fundo e encaro
com seriedade as Criaturas da Noite da qual agora faço parte.
— Não vou caçar vocês — digo em voz alta. — Não tenho interesse
nenhum em matá-los. Fiquem à vontade para irem embora e viverem suas
vidas como quiserem. Mas saibam que se chegarem a um quilômetro e meio
perto da minha família, eu os esfolarei membro por membro.
Alguns poucos deram passos para trás, outros se embrenharam e sumiram
por dentre as árvores. Os que ficaram, pouco a pouco, foram se dispersando
até permanecer somente eu, Zaph e os cadáveres espalhados pela clareira.
— Mas eles vão caçar você — ele diz, sem me olhar.
— Eu sei.
Inspiro fundo, tentando conceber que agora essa é minha vida. Abaixo a
cabeça para minhas mãos e braços ensopados de sangue, o miasma pungente
invadindo minhas narinas.
— Zaph — eu o chamo, sem desviar a atenção dos meus dedos puníceos.
— Hum?
— Nunca mais me deixe fazer isso.
Meses atrás, se eu visse uma cena assim, teria feito xixi nas calças – como
realmente aconteceu – e vomitado – como também aconteceu. Mas agora eu
analiso cada um dos corpos retorcidos e faltando partes, com carne expostas
e olhos revirados pelo gramado empoçado de fluidos vermelhos escuros...
Afinal, acho que vou precisar me acostumar com isso.
— O que a gente faz com eles? — pergunto. — Eles não vão virar cinzas,
vão?
— Não, mas eles se decompõem rápido. Quando o sol nascer totalmente,
já não vai ter nada além dos ossos.
— Tá, e o que a gente faz com os ossos?
— Podemos vender na Deep Web. — Eu o olho de rabo de olho. Zaph, tão
enlameado e ensanguentado quanto eu, apenas dá de ombros com uma
expressão inocente. — Quê?

Não seguimos direto para casa. Nem para a dele nem para a minha. Não
por não querer chegar nesse estado, toda suja de sangue e terra, mas porque
eu ainda estou muito abalada com o que acabou de ocorrer. Aquilo tudo,
todos aqueles vampiros, todo aquele sangue jorrado... Eu fiz coisas que
jamais pensei que faria e sem sentir remorso. Não estou nem um pouco
orgulhosa, mas também não estou triste. Não sinto que vinguei Julia, mas me
tira um meio sorriso saber que com certeza ela teria dito um sonoro: “Se
fodeu, otário!”.
Muitos correlacionam a morte ao tenebroso, à cor preta, porém, muitas
vezes ela vem vestida de branco. O que não significa que seja bom ou ruim.
O ceifador que pode vir te buscar, talvez seja mais gentil do que o anjo de
asas douradas. Pensar na morte como algo obscuro é se atormentar sem
necessidade. É o mesmo que pensar na vida como apenas uma passagem de
tempo limitado, onde precisamos correr porque pode acabar a qualquer
momento. Estar vivo é determinar seu próprio tempo, aprender a manejá-lo.
A morte nada mais é do que o sinal de que você já absorveu tudo o que tinha
de absorver. Não é questão de ter um propósito, mas sim de ser o propósito.
É algo natural, não é o fim nem o começo, e virá quando tiver de vir. E é por
isso que eu sei que a Julia, meus primos, tios e milhares de outras pessoas
estão bem. É por isso que meu coração está leve.
Vou sentir saudades deles, claro, no entanto, de algum modo, eu os tenho
comigo. Correndo em minhas veias.
Mas talvez eu esteja sendo um pouco dura. Ninguém é obrigado a se
conformar com a morte. Nisso, Zaph e eu somos parecidos. Em trezentos
anos, ele matou mais do que gostaria, eu, em dezenove, vi mais gente morrer
do que gostaria.
Paramos na Vista Chinesa, porque eu nunca tinha ido até lá e por que eu
precisava de um tempo para pensar, pegar ar puro, longe de casa e daquela
cabana. O sol começa a nascer no horizonte além do corrimão e do vento que
sopra por entre as árvores.
Respiro fundo, admirando a paisagem que é a zona sul do Rio sob o véu da
aurora. O céu de nuvens passageiras em tons pastéis de rosa e amarelo, e a
neblina que navega por entre os morros verdes aos poucos revela cada vez
mais os contornos. O Cristo Redentor com seus braços esticados à minha
esquerda, as águas azuis acinzentadas dos lagos e lagoas cortando os
prédios, a imponente curva do Pão de Açúcar mais adiante, as ondas ferozes
dos mares como sodalitas que recebem a luz branda do sol, por trás dos
edifícios à direita...
— Como se sente? — Zaph questiona, e respondo com um sorriso sincero
ao virar para encará-lo.
— Mais forte. — Debruçado com os dois antebraços no corrimão de
bambu grosso, o vampiro arqueia uma sobrancelha acompanhada de um
pequeno sorriso torto. — Quer dizer, não só porque agora sou de fato a
Primus, mas… — observo novamente a visão além da floresta — eu me
sinto assim, em paz. Eu não sei como explicar, porém… eu consigo sentir.
Entende?
Me torno para Zaph e o flagro me olhando.
— Entendo perfeitamente.
Acho que finalmente descobri por que os olhos de Zaph me fascinam tanto.
Tirando o fato óbvio de serem cinza. Por vezes eles emitem um fulgor prata,
invocam um vigor que me encoraja, em outras eles são tão rochosos e duros
quanto os meus medos. É um campo neutro. Frio e caloroso. Forte e suave.
Uma cor onde eu encontro a mim mesma. Não, mais que isso. Neles eu
encontro tudo o que sou e o que eu poderia ser.
Remoo os lábios, tentando impedir um sorriso de aparecer.
— Você está sendo fofo.
— Scuze.
Deixo uma risada fraca, mas sincera sair.
— Tudo bem. — Retorno minha atenção ao horizonte carioca. — O que
faremos agora?
— Não tenho certeza. Mas tenho uma ideia. Por que não casamos?
Oi?
Torno a cabeça outra vez para ele. Na minha quietude, o vampiro continua:
— Bem, algum dia acontecerá. Por que adiar o inevitável?
O desespero, a raiva, a confusão são substituídos por outra coisa: euforia.
Suprimo um sorriso, porque agora as mini Alices dentro de mim estão numa
rave. E meu coração acompanha a batida da música.
Mas espera aí... Me desfaço do resquício de sorriso e franzo o cenho.
— Isso foi seu pedido?
— Não foi um pedido. Foi a constatação de um fato e a sugestão de uma
atitude a ser tomada.
— Então pede direito.
— Pra quê? Vai dar no mesmo. — Ele dá de ombros, e eu balanço a
cabeça em negação.
— Como às vezes você consegue ser tão romântico e tapado ao mesmo
tempo? — Aponto o dedo indicador para ele. — A minha infância toda eu
sonhei com meu príncipe encantado pedindo minha mão em casamento, então
quer fazer o favor de se ajoelhar e fazer um pedido de casamento decente?
— Desculpe desapontá-la, não sou um príncipe encantado.
— Mas é o vampiro estrangeiro que eu amo, então serve. Anda, de joelhos.
— Indico o meio entre nós com o dedo e uma expressão arrogante.
Zaph apenas permanece me encarando como se eu fosse o animal mais sem
graça do zoológico. Até que suspira, abaixa a cabeça e... Oh, meu Deus, isso
é sério?! Zaph se põe sobre uma perna dobrada e a outra encolhida embaixo
de si.
Ele enfia a mão num dos bolsos e fuça-o. Ele trouxe um anel? Meu
coração perde algumas batidas pelo caminho quando observo com
expectativa meu vampiro retirando do bolso “algo” dentro de suas mãos,
formando uma concha. Zaph abre suas mãos e... Desgraçado!
— Seu puto! — Empurro o seu ombro direito com o pé e ele cai para trás
rindo. Esse filhote de sanguessuga desalmado teve a audácia de me mostrar o
dedo do meio!
Zaph se apoia no chão com uma mão e se põe de pé ainda portando o
sorriso.
— Babaca! — Bato no peito dele uma vez, mas logo descarrego uma
saraivada de tapas não tão fortes. — Inútil! Desgraçado! Idiota! Miserável!
Você é desprezível, Zaph, desprezí...!
Meu ataque furioso é interrompido quando Zaph segura meus pulsos e de
repente tenho seus lábios grudados e encaixados aos meus. Merda!
Começamos um beijo suave, então ele solta minhas munhecas devagar e
pousa as mãos na minha cintura. Me aparto dele, empurrando de leve seu
peito, e o encaro.
— Isso foi golpe baixo.
— Você sabe que não jogo limpo. — Zaph entorta a cabeça ainda sorrindo.
— Te odeio.
— Não odeia, não.
Zaph toma meus lábios outra vez, sugando-os gentilmente. No entanto, ele
não se demora neles. O vampiro se afasta, só o suficiente para encostar sua
testa na minha.
— Alice de Souza Beiruth, Primus dos Cinco Grandes, quer casar comigo?
— Quero, seu encosto, quero sim.
Zaph alarga o sorriso e nos beijamos outra vez, com sorrisos rompendo as
laterais nos nossos lábios. Humm, beijo e sangue, que delícia.
F
oi uma manhã triste.
Até mesmo para mim, que já presenciei mais funerais do que consigo
contar. No entanto, esse era diferente, pois o corpo que estava sendo
velado sob as lamúrias mórbidas de parentes e amigos e enterrado a sete
palmos abaixo da terra úmida, era o da melhor amiga de minha parteneră.
Alice não entrou na capela. Ela não disse uma palavra, mas eu podia ler
em sua face pálida que a razão era para manter a imagem alegre de Julia
vívida em sua memória. Minha parceira ficou o tempo todo ao meu lado,
entre Melissa e eu, com seus pais logo atrás, olhando para o caixão lustroso
cor de marfim enquanto o padre proferia algumas palavras enfadonhas de pé
no gramado. Ela não segurou minha mão, mas talvez porque se agarrava a
algo entre as suas próprias. O dia não era o mais claro, tampouco mais
nebuloso. As sombras sob as árvores frondosas que ladeavam as trilhas
feitas de paralelepípedos eram frescas, enternecendo tanto quanto a luz
cálida na grama. O cemitério era de um verde plano e a cova de Julia seria
só mais uma entre tantos túmulos simplórios, com flores amarelas e laranjas
para enfeitar. Mas não para Alice ou Melissa.
Naquele dia, me compadeci de Melissa. Tirar a amizade de um vampiro...
é tirar uma parte de si próprio. Dava para ver o exemplo disso em seus olhos
injetados, seu semblante apático, mesmo com um olho cego, parcialmente
escondido pelas madeixas negras.
Já Alice não derramou uma lágrima sequer, e sua fisionomia estava branda.
Por fora, quem a vê com os cabelos ruivos como labaredas ardentes
lambendo as costas delgadas nuas devido ao corte do vestido branco solto
pensa que ela é apenas mais uma flor dentre tantas outras. Ela é de fato uma
flor, tão bela e perfumada quanto venenosa. Ela é vampira agora, a herdeira
do verdadeiro Drácula, a Primus líder dos vampiros e logo Boiarda por
direito, detentora de todos os bens, propriedades e deveres de Viorel, por
mais que não saiba disso ainda. As consequências que isso trará para o seu
psicológico eu não sei. Porque, com a mudança na genética dela, os
remédios que tomava muito provavelmente não funcionarão mais. Mas eu
estarei ao seu lado para o que precisar, em suas pétalas mais venenosas.
O que eu menos queria era que ela fizesse parte desse mundo, mas eu
estava enganado, porque ela pertence a ele. Eu tentei evitar, mas até mesmo
o Nödi me traiu quando fui ferido após a briga com Michel. Minha reserva
de sangue estava baixa e eu apenas segui a impulsão, precisava saber que ela
estava bem, que estava segura.
É possível sentir que minha companheira emana uma aura mais tenaz. Sua
presença é mais imponente, por mais que ela mesma não perceba. Ver a
garota… não, a mulher que amo ter segurança em si mesma e adquirir um
pouco mais de maturidade e autoconfiança me deixa muito orgulhoso.
Ao observá-la colocar uma foto das três sorridentes sobre o caixão
enquanto porta um sorriso tristonho no rosto, ela continua sendo a garota
estranha por quem me apaixonei e a quem o Nödi me ligou.
No fim, quando o caixão já tinha sido abaixado e os familiares e amigos
haviam se retirado pesarosos, Alice, a única trajando branco, decidiu ficar
um pouco mais de tempo diante da sepultura. E eu decidi dar espaço às duas.
Apenas observei de longe, sob a copa das árvores, a Primus se sentar na
grama e mover a boca, conversando com o vento. Só então, quando todos já
haviam feito a curva para retornarem à área das capelas, foi que Alice
deixou os ombros caírem e chorou.
Eu conheci Julia por pouco tempo, mas assumo que aquela menina tinha um
sol dentro de si. E, como o sol, tinha seus momentos explosivos, radiantes,
intensos. Enquanto isso, Melissa era a lua, serena. E Alice, o entremeio que
sempre admirou, a mistura de tudo e nada. Alice era a ponte. E quando uma
ponte perde um dos lados de apoio, ela cede.
Por sorte, ela ainda tinha o outro lado. Melissa chegou de mansinho,
pisando na grama com suas sapatilhas da mesma cor que o longo vestido
preto esvoaçante, e se sentou ao lado de Alice. Observo ela encostar sua
cabeça na de minha parteneră e segurar sua mão.
Nesse ínterim meu celular vibra na calça e eu descruzo os braços para
pegá-lo no bolso da frente. Ao desbloquear a tela, vejo a mensagem de
Conry: “Os Palatinus já sabem”. E se eles já sabem, o Conselho também
sabe. Logo, logo chamariam Alice para receber sua tatuagem de Primus e a
documentação para o trâmite dos bens. Me aflige pensar na enorme
responsabilidade que ela adquiriu, além da gama de vampiros alucinados
que farão de tudo para tirar seu sangue. Eu não vou perturbá-la com isso
agora. Bloqueio o celular e o recoloco no bolso, elevando o queixo a tempo
de ver Melissa caminhar em minha direção de cabeça baixa. Quando desce
do gramado para a via de lajotas, seu olhar encontra o meu. Ela me envia um
sorriso cabisbaixo, reforçado pelo seu olho direito alvo, e eu o retribuo.
Meu foco retorna à Alice, uma donzela, uma aparição angelical ajoelhada no
meio do gramado jade, rodeada por flores e lápides.
Não sou muito bom em leitura labial, admito, mas uma das palavras que
consegui decifrar foi “obrigada”. Ela limpa o nariz com o antebraço e se
ergue apoiando na terra. Alice leva uma mão à boca e manda um beijo para
Julia, flutuando pelo ar, levado pela brisa. Ela inspira fundo, mirando
adiante, pouco antes de sorrir de forma ampla outra vez e olhar em minha
direção. Esse sorriso acaba comigo.
Não, minto, ele me revive. Nele eu encontro a minha paz. Uma paz quase
perigosamente viciante para alguém que viveu mais de trezentos anos em
meio a cadáveres e sombras. Mas eu farei de tudo para deixar esse sorriso
fixado em seu rosto o máximo possível.
A princípio, quando senti a propulsão do Nödi dominar meu corpo ao me
aproximar dela, eu entrei em negação. Algo devia estar errado, talvez eu
tivesse me confundido, como uma criatura tão adorável como aquela poderia
estar ligado a uma pessoa como eu? Era quase cruel. Porém, com o tempo,
percebi que o Nödi não errara. Alice nunca fora minha vítima, eu quem fui a
sua.
Não é à toa que eu jurei, pelo meu espírito e carne, mente e coração,
jamais fazer Alice sofrer e sempre a proteger. O desejo que sinto por essa
mulher me consome de uma forma que nunca imaginei sentir. E eu amo o
modo como ela se entrega. Sinto que essa curiosidade dela será algo muito
prazeroso...
Minha escuridão além das estrelas caminha até onde estou, vindo como um
fantasma, porém mais solene do que qualquer majestade jamais será.
— Pronta? — pergunto, abaixando a cabeça para olhá-la assim que seus
olhos verdes radiantes param abaixo dos meus. Posso ver o fulgor neles.
— Mais do que nunca.
Este é apenas o começo...
D
izem que é impossível colocar em papel, bem, aqui, nesta parte do
livro, todos aqueles que contribuíram de alguma forma. Mas eu sei
muito bem a quem quero agradecer.
Primeiramente, ao cosmos. Não sou ateia, evangélica, budista, católica,
espírita... sou um pouco de tudo. Não sei quem é o Pai ou a Mãe suprema, se
tem nome ou consciência, mas acredito que há sim uma força que rege todo o
universo, seja ela “sobrenatural” ou científica. E, sinto que é graças a ela
que percorri todo esse caminho até aqui. Passando por alegrias e tristezas,
percebendo o que deveria ser aprendido e o que deveria ser esquecido. Nem
de longe acho que este livro esteja perfeito – eu tenho esse problema com o
perfeccionismo – ou que é maravilhoso, mas eu pus nele todo meu coração e
lágrimas, e por isso estou mais que satisfeita com o resultado. Posso, enfim,
afirmar que estou orgulhosa de mim mesma.
Em segundo lugar, minha prima Victória Braz e a amiga Sara Orofino. Elas
foram perturbadas muitas vezes, em horários diferentes, ajudando-me na
coerência e coesão de texto, de ideias, caçando palavras que me fugiam da
mente, revisando, dando palpite... Vocês não têm noção do quão grata sou a
vocês, do fundo do meu coração.
E, Vic, espero um livro seu.
Seu também, Helolis.
Em terceiro lugar, mas não menos importante, claro e obviamente, Janaína
de Fátima Barbosa de Souza – mais conhecida como Mantinha – , Mayara
Souza dos Reis Silva e Camila Matias por terem sido as leitoras betas dessa
aventura tragicômica. Amo vocês, e obrigada de coração pela força honesta
e sincera que me deram!
Em quarto lugar, mas também não significa que são menos relevantes, a
todos os meus leitores das plataformas de fanfics. Lembro-me perfeitamente
do primeiro depoimento que recebi da Karoline Lullyanny dizendo o quanto
“Convivendo com um Vampiro Estrangeiro” a tinha ajudado a sair da bolha.
Depois vieram muitas outras e também algumas com quem fiz uma boa
amizade como a Pâmela Bortolato, a Layza Costa, a Letícia – que esqueci o
sobrenome #sorry – , a Isabela Santos e a Ana Oliveira lá de Portugal!
Força, meninas! Eu quero que saibam que adoro cada um de vocês, que sem
vocês essa história possivelmente não existiria, acreditem. Cada centímetro
desse livro foi feito pensando em vocês.
Em quinto... Marilice Silva e João Mozart, meus pais. Obrigada, por tudo.
Temos nossas discussões, que às vezes parecem terrivelmente frequentes,
mas nunca, em momento algum, falaram para eu desistir. Obrigada por
terem acreditado em mim e me aguentado. Não só quanto à escrita, mas
quanto aos meus sonhos, por mais que eles não batessem com os de vocês.
Espero que eu tenha finalmente dado orgulho a vocês.
Muitíssimo obrigada, Natália Ávila e seu curso “Magia do Verbo”, que
vieram na hora certa e encheram meu coração de esperança quando eu mais
precisei. E também, sem essa fada, eu não teria conhecido a Amplifik e seus
agentes que ouviram e suportaram minhas ideias esquisitas!
À Klayane que topou e ilustrou lindamente os capítulos!
E, obviamente, a você que chegou até aqui. Que riu, urrou de raiva e
chorou comigo. Que decidiu, por algum motivo, ler até a última palavra. Que
se gostou dessa fantasia dramática nem um pouco depravada, ou até mesmo a
odiou, irá avaliar e compartilhá-la com os demais, para que alcance mais
corações ou então para não passar raiva sozinho. Alice e Zaph ainda têm
muito o que contar. Acredite, a aventura está só começando.
E, emendando nessas palavras, devo a você, Naruto Uzumaki (Masashi
Kishimoto), mesmo que nunca saiba disso, por me ensinar, desde pequena, a
sempre seguir em frente, a não voltar com a minha palavra. Ensinar que a
vida é muito mais do que aquilo que enxergamos em primeiro plano, que os
humanos são anjos e demônios ao mesmo tempo.

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