Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Braur
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.02.1998. É proibida a reprodução total
ou parcial sem a expressa anuência da editora. Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa.
CRÉDITO S
BRAUR, Debora M.
Vermelho intenso / Debora M. Braur. — São Paulo (Crônicas de sangue e
magia; v. 1) 2021.
ePub
978-65-00-32763-2
Após três noites insones sem nenhum sinal de furo no dedo ou no pescoço,
eu já estou mais do que conformada de que tudo não passou de uma
alucinação.
E, como não adianta nada ficar só remoendo a frustração, está mais do que
na hora de pôr as coisas nos seus devidos lugares. Afinal, esse era o meu
objetivo inicial, e não vou deixar uma desilusão barata me atrapalhar.
— Ei — sussurro ao cutucar o lombo de Ju com a ponta da caneta. Ela
torna o perfil para mim pela direita. — Tá um calor do cacete, que tal irmos
à piscina?
Julia exibe seus dentes brilhantes. Menina, me indique seu dentista.
— Você leu minha mente. — Nós duas viramos ao mesmo tempo para
Melissa à nossa esquerda, que estava de cabeça baixa escrevendo no
caderno. — Ei, Mel.
Nossa amiga ergue o rosto na mesma hora. Ela pisca algumas vezes,
esperando.
— Partiu piscina? — Ju pergunta, sorrindo.
— Depois da escola — complemento.
Mel olha de mim para Julia, de Julia para mim... Então estreita os olhos.
— Vocês duas parecem estar armando algo.
Prendo um riso e Julia suga o ar, pondo a mão no peito.
— Você está duvidando de nossas boas intenções? — ela indaga.
— Oh! — Faço uma expressão de lamento exagerado e olho para o alto.
Levo um dedo ao olho, como se estivesse enxugando uma lágrima. — Sinto-
me ultrajada.
— Vocês deveriam fazer artes cênicas — Mel diz, com cara de tédio.
— Que nada, eu vou virar stripper — Ju brinca, já em seu tom usual. Ao
menos acho que é brincadeira.
— E eu vou vender minhas artes na praia.
Julia se vira para mim com os supercílios enrugados e uma expressão
cínica.
— Como, se você detesta praia?
Olho para o chão, contemplativa.
— Ah é, tinha esquecido. — Só a imagem da areia e do mar manda um
arrepio pela minha coluna. Urgh! Ouço a risada suave das duas e levanto o
rosto para fitar Melissa. — Vamos, Mel, vai ser divertido! — Exibo uma
face de dor e sofrimento, como se eu estivesse tentando fazer o cocô sair.
Julia semicerra os olhos e verga-se para o lado com um sorriso maldoso.
— E vai ter caras gatos sem camisa. — Ela movimenta as sobrancelhas.
— É o nosso último ano juntas antes da faculdade. — Faço biquinho.
Só de pensar nisso meu estômago rodopia. Eu não faço a mínima ideia de
que área seguir. Mel alterna seu foco de mim para Ju e para mim outra vez.
Por fim, suspira e abaixa a cabeça.
— Ok, eu vou.
Melissa iça o queixo rapidamente e eu logo ajeito a postura, animada.
— Mas não é pelos garotos — ela se corrige.
— Aham. Sei. — Ju olha as unhas com desdém.
— A tarada aqui é você, Julia — Mel provoca, sorrindo enquanto se
recosta na cadeira.
— Que calúnia! — Ju estufa o peito e empina o nariz, atando as longas
pestanas. — Sou apenas uma grande admiradora de homo sapiens machos.
— Claro — ironizo, guinando o rosto para olhá-la de esguelha. — E se um
deles, tão voluntariosamente, quiser trocar fluidos corporais com você...
— Pelo bem da ciência, eu faço esse sacrifício!
Marcamos de nos encontrar em frente ao clube próximo da minha casa. É
um espaço enorme, e os sócios podem usufruir de benefícios como aulas de
dança, artes marciais, natação... Mas algumas áreas, como as piscinas,
quadras e academia, são abertas para a comunidade desfrutar. Acho que vou
aproveitar para seguir a sugestão da Carol e me inscrever em algumas dessas
atividades.
Atravesso a sala de estar de casa, com meus passos mal ecoando nas
paredes de tom palha, em meio à quietude sepulcral. Tento não deixar que a
apatia me invada de imediato, que meus ombros não murchem e minhas
penas não fraquejem, mas posso sentir seus dedos cadavéricos e espectrais
tentando me alcançar. Eu realmente detesto ficar sozinha.
O silêncio me incomoda, faz eu me sentir melancólica demais. Faz meus
pensamentos ficarem mais altos. Ao mesmo tempo, o silêncio também me
conforta de um jeito quase cruel.
Eu sou uma contradição ambulante. Não sei se prefiro ficar num canto
quieto e pequeno e me isolar do mundo, ou ouvir o barulho da cidade,
conviver e conhecer pessoas novas. A calmaria me lembra da solidão e que
eu não quero ficar sozinha. No entanto, a agitação urbana me lembra da
barbaridade do mundo e que talvez seja melhor ficar sozinha.
Esse ciclo infinito de antíteses na minha mente me exaure. Principalmente
se somado ao trabalho que dá fingir que está tudo bem.
Acabou que os garotos não eram de todo mal e descobrimos que cursavam
Direito. Talvez uns ali dariam um ótimo partido. Principalmente um loirinho.
Reaw! No entanto, ele avisou que tinha namorada e estava prestes a pedi-la
em casamento. Own, que fofura!
Fundo musical, por favor:
Vou choraaar,
Desculpe, mas eu vou choraaar.
Queria tanto te pegaaar,
Mas você é compromissado e não vai daaar.
Tudo bem, eu me contentei em beijar os lábios do amigo dele.
Retorno sozinha para casa, com o pensamento longe, relembrando a
sensação esquisita que senti quando a recepcionista nos encarou e quando
beijei o menino. Não foi ruim, só... senti como se tivesse faltando alguma
coisa. Tem sempre algo faltando em você. Suspiro, exausta.
— Um passo de cada vez.
M
eu corpo implora por um banho.
Levo meu celular para o banheiro e o deixo na bancada da pia.
Eu não olho para o espelho. Ligo o reprodutor de faixas musicais e
entro no box. O som de Dancing With Your Ghost começa a penetrar nos
meus ossos bem na hora em que abro o chuveiro. Fecho os olhos, degustando
o jorro de água escaldante.
Eu deixo a sensação da música, misturada ao ruído do líquido caindo,
tomar conta de mim. Absorvo a letra, a cadência entra pelos meus poros e
começo a me encolher, meus lábios se contorcendo. Apoio as mãos na
parede, abaixo a cabeça e deixo as lágrimas rolarem.
Meu choro se mescla com a água fervente, meus suspiros se embaralham
com a melodia da canção. Permito que meus sentimentos lúgubres se
exteriorizem, nublando minha mente, fazendo meus ossos doerem, meus
músculos se contraírem, minhas juntas se retesarem, e concedendo que eles
me dominem só por aquele momento.
— O que você quis dizer naquela hora com “ceder à loucura e ao vício”?
— pergunto a Zaph, conforme andamos lado a lado na calçada irregular.
— Há diversos tipos de vampiros — ele diz, depois de pegar fôlego. —
No geral, existem três categorias. Os que têm a natureza humana mais
apurada são chamados de Remissum. Ou só Remi, entre nós. Os que já são
mais, digamos, travessos e menos sensíveis à natureza humana que tinham,
são os Modicus. Mas os Vacors são os insanos. Perderam totalmente a
humanidade e sucumbiram à obsessão por sangue. Felizmente, eles são
minoria. Se há uma coisa que quase todos os vampiros concordam é: não
bebam sangue de virgens. Não sei explicar exatamente o porquê, mas há algo
diferente nele que o torna ainda mais viciante.
— Você já provou?
Zaph inspira fundo.
— Infelizmente. — O jeito rígido com que fala é diferente de antes. — A
categoria predominante é a Modicus. Só que um Remi pode virar um
Modicus e um Modicus pode facilmente virar um Vacor. Isso é o que
preocupa os poderosos.
— Poderosos? — Olho-o genuinamente curiosa e tentando acompanhar
suas passadas largas.
— Uma raça tão ampla como a nossa tem que ter um grupo que tome as
devidas decisões. Sem líderes para nos guiar, seríamos o terror na terra.
Eles se chamam Palatinus. — Pulo um desnível e tropeço ao tentar alcançá-
lo outra vez. Zaph permanece imperturbável, andando sossegadamente com
as mãos nos bolsos e o olhar adiante. — Os Palatinus são os maiorais e o
atual poder legislativo dos vampiros. Mas o Conselho está acima deles,
porque são sete representantes das principais raças, incluindo um humano, e
o dever deles é manter a ordem das coisas entre todo mundo.
O céu sobre nossas cabeças enfeita-se com inúmeras estrelas, revelando
que fará um calor infernal no dia seguinte. Pouco depois de me recuperar,
ainda de pé diante da janela, quando estávamos no quarto, Zaph perguntou se
eu gostaria de comer algo.
— Achei que não te satisfazia — eu disse, olhando-o de forma dúbia.
— E não satisfaz — o vampiro respondeu, colocando as mãos nos bolsos
ao enviar uma piscadela. — Mas não quer dizer que eu não possa aproveitar
os prazeres da vida.
Olha, alguém acendeu as velas certas, porque eu sair duas vezes num dia
só é um milagre.
— Isso é... incrível! — falo com um sorriso grande, ficando ao seu lado
outra vez.
— É, incrível — Zaph diz, sem humor. — Dentro dessas categorias tem as
classes. Moroi são os vampiros... fáceis de matar. Os Fără Strigoi são os
mais difíceis, vamos pôr desse modo. Os Strigoi são mais associados aos
Vacors por terem mais quantidade de sangue…
— E assim tem mais poder. Mas tem como um Vacor ser um Moroi? —
interrompo, ansiosa. Zaph retorna sua atenção para mim, não tão irritado
quanto eu pensei que ele estaria por tê-lo cortado.
— Claro, uma coisa não está necessariamente associada à outra. Eu mesmo
posso ser um Remi e ser Strigoi.
Comprimo a testa.
— Mas se é por quantidade de sangue...
— Não disse que se media pelo sangue. — Zaph inclina a cabeça de leve
em minha direção, um sorrisinho despontando na expressão esnobe e gaiata.
— Há várias outras qualidades que definem a classe de um vampiro. O jeito
que você era quando humano, ou quando foi transformado, são grandes
fatores. Uma pessoa que era fraca física, mental e espiritualmente, quando
transformada é muito provável que se torne um vampiro Vacor, louco
sanguinário, mas Moroi, fácil de matar.
— Aaah.
— Depois dessas classes tem mais uma cambada de gêneros que dependem
da subespécie — Zaph continua. — Subespécie Asanbosam, Adze… Cara,
os Rokurokubis são bizarros.
— Então, qual seria sua classificação?
— Tecnicamente falando — ele volta a olhar para frente — subespécie
Mullo, classe Strigoi, categoria… atualmente Modicus.
“Atualmente”.
Isso me preocupa um pouco.
— Eu pensava que era tudo só vampiro. Claro — movo os ombros —
tendo uma diferença aqui e ali por causa da origem, mas eu não esperava
uma taxonomia inteira.
Zaph emite uma risada nasal, no entanto estica os lábios num sorriso.
— “Toda Jacuzzi é uma banheira, mas nem toda banheira é uma Jacuzzi”.
Estreito os olhos em sua direção.
— Você está citando The Big Bang Theory?
— Você citou Bratz. — Ele arqueia uma sobrancelha de soslaio.
— Touché.
Caminhamos até parar no centro do bairro. Mesmo em plena segunda-feira
à noite há milhares de hamburguerias, bares, carrocinhas e botequins
abertos. O meu bairro é sempre assim. Não importa o dia ou a ocasião,
sempre há motivo para festejar. Um som de pagode vem dali, outro de
sertanejo ao vivo de acolá. A essência picante de especiarias invade nossas
narinas.
Sentamos um de frente para o outro numa das mesas de cimento e azulejos
da praça – até que bem cuidada para a situação atual desse município
ligeiramente largado por Deus onde resido.
— O que você quer comer? — Zaph pergunta. Apenas sacudo os ombros.
— Tanto faz. Como funciona isso, dos sentidos dos vampiros? — Cruzo os
braços sobre a mesa. — Tipo, a audição de vocês, o olfato...
Zaph expira pelo nariz de forma audível e escora a maçã do rosto
esculpido no punho.
— Essas habilidades são acentuadas de acordo com a qualidade do sangue
que absorvemos. Na verdade, não há registros de um “limite” — ele encena
as aspas com os dedos — para nossas habilidades ou poderes, como vocês
dizem, mas também nunca foi notado algo tão surreal. Vocês são
irritantemente criativos às vezes.
O odor de gordura seduziu meu estômago e pedi uma porção de batata frita
na carrocinha ali perto. Só porque Zaph está pagando. Ele espeta a ponta do
meu dedo com seu canino, espreme-a e passa o sangue numa fatia de batata.
Eu apenas observo de modo desdenhoso enquanto o vampiro estrangeiro usa
meu sangue como ketchup.
Aos poucos a conversa segue por outro rumo, adentrando em fatos
históricos e princesas da Disney.
— Você tá zoando — digo, incrédula, instantes antes de mastigar uma lasca
e instantes depois de Zaph contar que havia ido aos aniversários de
Anastásia Nikolaevna Romanov.
— Nu — rebate ele, jogando uma batata na boca. — Fumávamos ópio
escondidos juntos.
— Mas ela era uma... — Arregalo os olhos e vergo por sobre a mesa,
soltando um arquejo, quando algo perpassa minha mente. — Dragões
existem?!
Zaph apenas franze a testa.
— Não. Morreram junto com os dinossauros.
Pisco os cílios.
— É brincadeira, não é? — indago.
— Por que seria? — O vampiro pega mais uma batata e a lança na boca.
Ah, um cachorro-vampiro é totalmente impossível, mas dragões não?
Minha musculatura desaba e jogo as mãos para o ar.
— Desisto. Não sei quando você está brincando e quando não está.
A única resposta que obtenho é o sorriso largo de Zaph, oferecendo uma
malícia furtiva.
E assim os dias passaram. Zaph aparecia umas três vezes na semana para se
divertir às minhas custas, ver se os impulsos elétricos do meu coração
estavam em dia cada vez que surgia do nada e coletava um pouco do meu
sangue. Pelo menos desse jeito eu tenho dormido que é uma beleza, adeus
olheiras.
— Olá, adorada vítima — o vampiro saudou assim que “pousou” na janela
do meu quarto no crepúsculo de mais um dia.
— Olá, inconveniente vampiro — eu disse ao me aproximar. Ele pegou
uma das minhas mãos e levou meus dedos à sua boca sem tirar os orbes
cinzentos dos meus. Eu espremi os lábios, a fim de reter um sorriso.
— O que está fazendo? — Zaph apoiou a maçã do rosto no punho da mão
que, por sua vez, escorava-se em seu joelho dobrado. Dei de ombros.
— O de sempre. Admirando as paredes e tentando não surtar de vez.
— Quer dar uma volta?
Repuxei um dos lados do nariz e meneei negativamente com a cabeça.
— Ótimo. Então trarei sabres de luz e você será o General Kenobi.
Eu não aguentei quando ele esganiçou a voz e imitou Grievous no final e
soltei uma sonora gargalhada.
Assistimos anime juntos – quer dizer, eu assistia, ele criticava –,
arremessando pipoca na boca um do outro enquanto ficávamos deitados na
cama estreita, com o notebook entre nós.
— Dumnezeul meu. E eu pensava que já tinha visto de tudo — comentou
Zaph lançando uma pipoca para o alto.
— Espere até ver Devilman Crybaby.
Embora no hospital eu tenha descoberto a magia dos filmes mudos e tenha
aprendido a ler livros sem virar noites, fazia um bom tempo que eu não
mergulhava na dimensão dos animes. A presença cética de Zaph me deu um
ótimo motivo para voltar a assisti-los. Um passo de cada vez.
Ele me contava suas aventuras pelo mundo, através das épocas, encenando
duelos e... outras coisas que me fizeram sentir nojo, para ser sincera.
Contudo, não posso ignorar a angústia me corroendo por dentro. Afinal, eu
não o conheço o suficiente, ele é um potencial – e que potencial – perigo, e
eu não só o deixei entrar em casa, mas também na minha vida.
Como se não bastassem os perigos que enfrentamos normalmente. Um dia
desses meu pai chegou em casa tenso e aliviado ao mesmo tempo. Eu e
minha mãe já sabíamos o que isso significava: mais um crime atroz
resolvido.
Ele apareceu na hora do jantar, bem quando Heloise havia desligado a
panela de pressão. Gabriel se jogou ao meu lado no sofá, onde eu estava
toda largada, buscando algo para ver na TV. Ele fechou os olhos e deitou a
cabeça ruiva e calva no encosto. Eu me aconcheguei a ele e meu pai beijou o
topo da minha cabeça.
— Me promete que não vai forjar um assalto para matar seu próprio irmão
e ficar com o dinheiro dele? — perguntou ele para mim. Seu tom estava tão
estranho que eu não sabia se ria e brincava, ou se ficava compadecida.
Apenas prometi que sim, e minha mãe surgiu perguntando o que havia
acontecido.
Enquanto meu pai contava o desfecho da investigação em que estava
trabalhando, meu pensamento começou a vagar para um lugar ermo e ausente
de luz. Um lugar onde só há dor e tristeza. Um lugar onde eu tenho a perfeita
concepção da minha inutilidade. Do meu fracasso. Da minha decepção. Um
lugar apagado onde quase sempre eu me escondo.
— Alice? — uma voz soa brumal aos meus ouvidos.
Sinto meu coração se desfazer aos poucos, deixando um eco doloroso no
meu peito cada vez que visualizo homens espancando mulheres; negros
sendo discriminados e mortos devido à sua cor; pessoas LGBTQIA+ sendo
agredidas apenas por serem quem são; animais sendo maltratados;
contrabando de crianças; pessoas sendo torturadas e estupradas; políticos
corruptos; intolerância religiosa; patrões abusivos; relacionamentos
obsessivos...
— ALICE?!
Desperto da minha abstração bem a tempo de recuar antes que eu entrasse
naquele redemoinho obscuro.
Julia, Melissa e metade da turma estão olhando para mim. O que eu fiz?
Será que eu peidei?
— A chamada — Julia sussurra.
— Ah! — Endireito a coluna, tentando captar a atenção da professora por
cima das cabeças à minha frente. — Presente!
Assim que todos voltam a tomar conta de suas respectivas vidas,
conversando entre si, eu afundo na carteira. Sete horas da matina e eu
pensando nessas coisas. Realmente, eu estou indo muito bem...
Esfrego o rosto com as duas mãos, tentando me livrar tanto do sono de uma
noite em claro quanto de ideias soturnas e repletas de sombras. Sombras do
passado e sombras do presente. Sombras que me atormentam todas as horas
de todos os dias. Sombras, sombras e mais sombras.
— Tudo bem? — Ju pergunta.
Retiro as mãos do rosto lentamente. Miro minha amiga debruçada no
encosto fino da cadeira dela.
— Na medida do possível. Só me perdi pensando numas coisas.
— Hum. — Julia emite um som que sei ser uma falsa conformação. Vejo
em seu rosto o semblante de alguém quase tenuamente preocupada. Dou um
sorriso torto.
— Ei, tá tudo bem, sério.
— Que bom. Se não estiver, vai ficar agora. Escuta: — Ju chama Melissa
do outro lado e a nossa amiga a encara, piscando os olhos azuis aquamarine
— uma amiga minha tem uns convites para uma choppada da faculdade dela,
bora?
— Quando? — Mel questiona.
— Sexta.
— Essa sexta? — Descanso os pés no suporte abaixo da carteira de Julia e
remexo a caneta entre dois dedos, fazendo-a batucar na mesa. Ela se vira
para mim com a euforia reluzindo em seus olhos escuros um tanto puxados.
— Isso. E aí? O que me dizem? — Eu e Melissa trocamos olhares
desconfiados. — Ah, vai gente. — Julia choraminga. — Faz um tempão que
não saímos pra dançar juntas. Vai ser mega divertido!
Suspiro, me dando por vencida.
— Por mim, ok.
— Que horas? — Ao escutar a pergunta da Mel, Ju joga o peso do corpo
para trás com uma cara espantada de boca aberta.
— Você, senhora Melissa, está concordando em ir numa festa conosco? O
que é isso? Que feitiçaria Deus tá fazendo?
— Palhaça! Não saio muito por conta do estágio, — Mel cruza os braços
por sobre a mesa. — Mas curtir de vez em quando é bom.
— “Bom” não. É ótimo!
— Mas as provas já são mês que vem, precisamos estudar — Melissa diz,
receosa, e eu e Julia ficamos em silêncio a encarando. Como se fosse
combinado, explodimos numa gargalhada.
— Estudar? Na sexta? — Julia tira as palavras da minha boca.
— Ai, ai, Mel, você vem com cada uma. — Escorrego na cadeira, ainda
batucando a caneta e com um sorriso estampado no rosto.
Melissa faz uma careta emburrada.
— Depois não venham me pedir socorro.
— Claro que vamos pedir socorro — Julia diz cruzando os braços,
levantando os seios fartos. — Você é a nerd do trio. É sua obrigação ajudar
os membros menos favorecidos intelectualmente.
Eu pendo a cabeça de lado, com um sorrisinho angelical para Mel.
— E você gosta de ajudar a gente. Fala a verdade.
— A sorte de vocês — Mel aponta para Julia e para mim — é que eu amo
vocês. Senão eu ia mandar...
Eu e Julia levantamos as duas sobrancelhas ao mesmo tempo.
— Mandar...? — instigo, retendo um sorriso. Mel sempre foi adepta ao
palavreado politicamente correto, enquanto eu e Julia competimos para ver
quem fala mais palavrão.
— Vamos lá. — Julia estreita as pestanas e se dobra ao meio. — Você sabe
que quer mandar a gente pra puta que pariu.
— Ou tomar no cu — complemento com a opção.
— Se foder.
— Chupar uma rola...
— Parem, pelo amor de Deus! — Melissa se debruça na mesa com os
olhos esbugalhados e mais enrubescida do que um hortifrúti de frutas
vermelhas. Julia e eu rimos.
— Você pode me mandar ir chupar uma rola que eu não ligaria — diz Ju.
— Eu iria com prazer.
— Depende da rola. — Eu aponto para ela em alerta. Julia concorda com a
cabeça.
— Verdade.
Melissa abaixa a cabeça e tampa o rosto, escorregando na cadeira.
— Vocês querem parar?
— Não — eu e Julia respondemos ao mesmo tempo.
Toda a minha musculatura desaba quando agarro a maçaneta e empurro a
porta de casa. Ísis! Como é bom estar em...
— Você não lavou a louça de ontem. — Senhoras e senhores, conheçam
Heloise, minha mãe. Ela não levanta o olhar para mim, está muito ocupada
realocando os papéis sobre a mesa de vidro para o outro lado. Meus pais
sempre trazem trabalho para casa. E conceber o quanto eles ralam para
pagar nossa mordomia faz eu me sentir um peso morto, um desperdício de
espaço.
— Olá para a senhora também. — Fecho a porta atrás de mim, segurando
uma das alças da mochila no ombro. — O que faz aqui a essa hora?
— Eles me deram a tarde de folga já que troquei com uma professora que
faltou. Eu estava precisando. Aquelas crianças vão me deixar maluca.
Ela, coordenadora de uma escola pública. Ele, investigador da Polícia
Civil. Não me pergunte como isso dá certo.
Heloise ergue o olhar castanho para mim.
— Não tem só você nessa casa. Você podia fazer o mínimo para ajudar.
Meu pai é o retrato da estabilidade, mesmo embrenhado em casos
horrendos e ficando diante de criminosos doentios. Já com minha mãe
sempre foi: “Ajeite a postura!”, “Seja educada!”, “Não fale alto!”, “Sorria
para as visitas!”, “Passe uma cor nesse rosto!”, “Não me venha para casa
sem pelo menos um oito na prova!”, “Vista algo apropriado!”, “Seja
prestativa!”.
Inspiro fundo. Lá vamos nós de novo.
— Eu planejava lavar assim que eu chegasse — explico, mansa.
— Você diz agora? Agora é tarde. A idiota aqui já fez. — Brama Heloise,
me dá as costas, caminhando em direção ao corredor e logo adentrando a
cozinha. — Você nunca faz nada do que digo! Você nunca faz nada e ponto!
Eu passo as roupas, limpo a casa, faço a comida, que inclusive você também
não tem comido direito. Nem isso você é capaz de fazer! — Ouço-a rezingar,
à medida que se serve do almoço disposto sobre o fogão. — Você não faz
nada o dia inteiro. O dia in-tei-ro! Eu não sou sua empregada. Um dia eu não
estarei mais aqui, e aí? Se você não ficar do meu lado me ajudando quando
eu peço, você nunca vai aprender.
Meu cérebro exclui automaticamente a dúvida da partícula “se” e deixa
somente a certeza do “você nunca vai aprender”. Por vezes, mais do que
apenas palavras ou vírgulas, o tom de fala causa uma ferida ainda mais
profunda.
Aperto a alça da mochila, observando-a colocar a comida em seu prato por
cima da bancada, que forma uma ampla janela entre a sala e a cozinha, mas
sem a observar realmente. Meus pensamentos estão longe de novo, descendo
lentamente aquele redemoinho lúgubre, enviando uma onda gradual de
desânimo para o meu corpo. Eu já perdi a conta de quantas vezes eu escutei
essas mesmas palavras, mas eu não a culpo por repeti-las. É uma das poucas
coisas que minha mãe pode tentar fazer para me “consertar”.
Às vezes, eu me pergunto se sequer vale a pena tentar consertar algo tão
quebrado.
— O mínimo que você pode fazer é se alimentar direito. O mínimo! — ela
continua ao se afastar para pegar os talheres na gaveta mais ao lado. — Eu
estou cansada de falar isso, cansada!
Perceber que ela está certa e que, ainda assim, não consigo tomar a porra
da vergonha na cara para mudar de atitude, só reforça o quão fraca e inútil
sou.
Eu não a culpo, porque sei que não entende, mas ao mesmo tempo a culpo
por não tentar entender.
Não é que eu não queira fazer todas essas coisas, não é que eu não queira
colaborar, não é que eu não queira comer, muitas vezes eu simplesmente não
consigo. Nunca é apenas um fato ou um momento, mas sempre o somatório
de tudo o que passou. E quando digo que esqueci, é porque minha mente se
encontra tão abarrotada de dados que não servem para nada, a não ser me
causar dor, que não sou capaz de absorver muito mais. Talvez eu tenha que
apresentar um artigo inteiro à minha mãe sobre como as sinapses que passam
entre a amígdala cerebelosa e o hipocampo, em frequências entre treze e
trinta Hertz, fecham a boca do meu estômago. Ou como os
neurotransmissores falhos fazem minha carne parecer uma fronha velha e
meus ossos, penas em decomposição.
— Eu sei que é difícil, filha — ela diz, mais calma. — Mas você tem que
fazer um esforço.
Minha vontade é de rir. Ela não sabe quanto esforço eu faço todo santo dia
para encontrar razões de viver.
Por fim, chegou a sexta-feira da tão sonhada choppada da qual Julia não
parava de falar. Eu não estou preocupada com isso, nem um pouco... Ok, eu
estou pirando. Faz tempo que não saio assim. Meu interno se divide em:
SIMBORA, PORRA! PARTIU FESTA! e Pai nosso que estais no céu,
santificado seja o vosso nome...
Depois de alguns minutos ao som de Imagine Dragons, cantando bem
baixinho, enquanto eu estava deitada na cama com o notebook sobre a
barriga, escuto um ruído de geladeira se abrindo. Meu pai? Um ladrão?
Meu coração dá um salto. Zaph?
Desço as escadas, não querendo criar expectativas, mas...
— E aí? — Igor morde um pedaço de uma maçã, parado próximo à
geladeira, ainda com uma mão mantendo a porta aberta. Ai, a energia sendo
gasta à toa.
Memorizo cada traço seu, reconhecendo cada detalhe, até meu cérebro
assimilar a realidade. Os cabelos castanhos escuros cortados quase rente à
cabeça, o queixo quadrado exibindo uma mancha de barba, o bigode ralo ao
redor da boca fina, os olhos como os de nossa mãe contornados por olheiras
sutis – provavelmente das noites diante do computador –, a estatura alta de
silhueta esguia e a palidez.
Por um momento, eu poderia pensar que era um sonho ou uma alucinação,
mas meus sentidos estão muito bem despertos.
Sem querer, libero uma risada fraca ao abrir um sorriso. Perco o ar ao
sentir meu coração se retorcer de saudade e corro em direção ao meu irmão.
O baque do abraço o desequilibra, mas não o solto. Continuo agarrada à
blusa grossa dele, sentindo seu suor molhar a parte de trás da roupa – eca – e
meu rosto grudar em sua barriga magra, a fragrância típica misturada à
transpiração.
A sensação é de que uma parte de mim voltou. Ela nunca tinha ido embora,
apenas sido perdida entre tantas outras bagunçadas e opressoras.
Igor retribui o abraço apertado e me sinto acolhida. Lágrimas molham
meus cílios, mas antes que elas possam crescer, me afasto, fungando.
— Fala, criança, papai e mamãe estão trabalhando? — Igor segura a maçã
com a boca para fechar a porta da geladeira, em seguida pega a mochila
jogada perto dos pés.
— Nossa mãe está dormindo. — Inclino a cabeça e cruzo os braços,
trocando o peso da perna. — Sabe, existe um aparelho tecnológico chamado
celular que serve para se comunicar com outras pessoas. Você podia ter
avisado que viria.
— Queria fazer surpresa. — Igor encolhe os ombros a princípio, depois
ajeita a alça da mochila enquanto mastiga. Ele sai da cozinha e anda em
direção ao sofá comigo em seu encalço.
— A surpresa pra eles vai ser saber que você está vivo. — Sigo meu
irmão até observá-lo jogar seu peso na almofada, enquanto permaneço de pé,
em sua diagonal. — Poxa, Igor, você tem família além da namorada, podia
aparecer mais, mandar notícias de vez em quando, pelo menos. — Havia
tanto que eu queria falar para ele. Tantas perguntas do gênero “por que você
me abandonou?”. Mas não posso verbalizá-las. Não por não ser capaz, eu
simplesmente não quero. Porque sei que seriam apenas perguntas de alguém
medíocre. Minha irritação diminui um pouco e relaxo a musculatura. —
Depois que você se mudou, as coisas aqui também mudaram, Igor.
Meu irmão mais velho não desvia o olhar do meu rosto enquanto mastiga, e
bate no assento do sofá ao lado dele assim que engole.
— Eu sei. — A quietude fica pesada por algum tempo, as lembranças
penosas soterrando nós dois. Imagens alegres da nossa infância se misturam
às mais coercivas e recentes. — Vem cá, não faz esse biquinho.
Me deixo cair onde ele bateu.
— Não tô fazendo biquinho.
— Tá sim, bicuda.
— Para. — Parto para um soco, mesmo que fraco. No entanto, Igor pega
meu pulso e me imobiliza, me mantendo envolta em um abraço.
— Desculpa, mana. — Ele beija o topo da minha cabeça. — Prometo
voltar mais vezes. Vamos a eventos de anime como antigamente, até planejar
alguns cosplays e assistir alguns filmes bizarros da SyFy. O que acha?
— Acho bom.
Percebo então que o milagre verdadeiro não é Igor estar aqui, e sim ele
estar aqui sem a namorada. Transtornada com isso, eu ergo o tronco saindo
do abraço e o encaro.
— Aconteceu algo com a Fernanda?
— Não, por quê?
Franzo o cenho.
— Você hesitou.
— Não hesitei.
— Hesitou, sim.
Depois de resfolegar, meu irmão levanta o rosto.
— Quer saber, como eu sei que você não vai sossegar até arrancar alguma
coisa de mim, eu não ia vir pra cá, por isso não avisei, porque não estava
nos planos. Assim como ela engravidar também não. Aí eu quis escapar, sei
lá, sair de perto, tomar um ar, e esse foi o primeiro lugar que me veio à
cabeça.
Ele solta um longo, longo suspiro.
Meu. Santo. Mashima.
— A Fernanda está... grávida? — pergunto, assimilando a ideia.
Fernanda e ele passaram a morar juntos logo que ele se mudou. Nunca
foram o casal mais ortodoxo, mas quem liga? Me lembro de quando ela veio
nos visitar pela primeira vez, sua pele parda era repleta de tatuagens
desconexas e os cabelos loiros lisos tinham mechas coloridas. Minha mãe
ficou horrorizada, eu fiquei admirada.
— Está — Igor responde, estável. — Eu... queria um tempo longe pra
pensar.
— O filho é seu?
Igor se vira raivoso para mim.
— É claro que é meu, porra!
— Desculpa, desculpa. — Levanto as mãos em defesa. — Não custa nada
perguntar, hoje em dia, né... Você fez um teste de DNA?
— Alice!
— Tá, ok, desculpa! — Peso minhas palavras com o maior cuidado
possível, ao tempo em que abaixo minhas mãos. — Ela não avisou que não
estava tomando anticoncepcional? Ou...
— Ela avisou, fui eu quem não quis usar camisinha. Qual foi, estamos
juntos há... há quanto tempo? Quatro anos? Só que não achei que iria
acontecer assim, tão... — ele arfa.
— Eu sei. — Ninguém nunca espera que vá acontecer com eles. Eu já acho
que qualquer coisa pode acontecer com qualquer um. Obrigada, querida
distorção cognitiva.
Igor ergue o olhar para mim, fazendo um sorriso tímido surgir.
Santo Damiani! Vou ser tia! Eu vou ter uma sobrinha! Sim, estou
torcendo para ser menina.
— O que vocês farão agora? — Pisco, revelando uma faísca de animação.
Igor passa a mão pelo rosto.
— Não sei, não conversamos sobre isso, mas eu já tenho uma ideia do que
fazer.
Comprimo a testa.
— Opa, pera aí. Você fugiu antes que pudessem conversar?
— Eu não fugi. Eu só me afastei, tirei licença maternidade. — Meu irmão
empina o nariz e apresento uma expressão cética.
— Você avisou que ia sair?
— Não.
— Então fugiu.
— Nada a ver. — Ele abana a mão. — Muitas fugas são avisadas.
— Então tá, vou reformular a pergunta. — Entrelaço os dedos. — Vós
deixastes a senhora vossa amada previamente avisada sobre tua abrupta
partida?
Ele para por uns instantes.
— Não.
— Então fugistes.
Igor bufa.
— Vou pedi-la em casamento.
— Você vai fazer que nem nas novelas e esconder a gravidez dos nossos
pais até o último momento, surpreendendo o público com a revelação? —
pergunto com um sorriso, enquanto Igor apenas me fita, neutro.
— Você precisa parar de ver tantos filmes.
–A
paga isso, pelo amor de Deus! — Julia grita na minha orelha,
tentando fazer sua voz sair mais alta que a batida da música que
reverbera e retine pelas paredes. O ambiente é uma mescla de
bar rústico e boate, com um mezanino de balaústres em madeira nas laterais
e luzes coloridas iluminando de relance as mesas redondas altas, com as
pessoas espalhadas ao redor delas. Através da vidraçaria translúcida no
segundo andar, é possível observar a tintura descascada dos Arcos da Lapa
adquirir um tom forte de esfalerita devido às luzes da praça contra a noite.
— Ah, por quê? Está tão linda! — Sorrio, pois definitivamente ela não está
linda na foto.
— Você está louca ou com problema de visão?!
Solto uma gargalhada.
Eu apenas continuo analisando a nossa foto que rutila na tela do celular.
Depois que fomos ao quarto de Igor para julgarmos animes toscos, houve
uma pequena briga quando tentei ver a hora em seu telefone e ele o manteve
fora de alcance, mas triunfei em meu objetivo. Consegui me encaixar numa
calça de cintura alta, num body preto de fivelas e em meus saltos, e fiz a
tragédia que vulgarmente chamo de maquiagem no meu rosto em tempo
recorde.
Quando a buzina do carro soou fora de casa, dona Heloise passou aquele
protocolo que toda mãe passa antes do filho sair e eu despejei um beijo em
sua bochecha.
Ao entrar no carro, as meninas se espremeram e trocamos sorrisos alegres.
Meu coração palpitava fortemente, mas eu estava contente. Havia passado
um bom tempo com o meu irmão e agora eu estava saindo com as minhas
melhores amigas.
— Não vou apagar não, vou deixar de recordação. — Estendo o celular
para sua dona por cima da mesa alta e circular, onde tem uma confusão de
bebidas e bolsas. — Mel, não apaga e me passa depois.
— Se você postar isso...
— Relaxa — digo, abrindo uma garrafa de água. Odin me livre, sete reais
uma água. Da próxima, eu trago a minha própria.
— Quem topa mais um shot? — Ju sai em direção ao bar e arrasta Melissa
junto antes que eu pudesse argumentar por estar engolindo o líquido fresco.
Eu estou suor puro, a vontade é de jogar essa água na cara. Já que não bebo,
fico como a sóbria guardiã das bolsas enquanto elas vão se encher de
tequila.
Estar no meio de um ambiente caótico e abarrotado de gente faz minha pele
pinicar, mas tento não pensar nisso. Abro a minha bolsa a fim de pegar o
celular, desbloqueio a tela e... Nossa Senhora, são quatro da manhã! Deveria
ir para casa, mas Dancin começa a tocar e, poucos segundos depois,
enquanto me balanço segurando na mesa, avisto Julia atravessar a multidão
com uma mão erguida e a outra rebocando Melissa. Ambas chegam perto da
mesa e posso descontrair sabendo que elas estão ali. Fecho os olhos e deixo
a música penetrar em meus poros.
Sinto a vibração da batida, da harmonia, da melodia em mim, deixando o
ritmo me guiar. Não sei quando começou, mas sempre amei a forma como me
sinto livre para expressar meus sentimentos, extravasar minha essência
confusa, reprimida quando danço. Permitir que meu corpo traduza em
movimentos tudo aquilo que guardo.
Minhas mãos acompanham os movimentos como se pudessem tatear a
energia, o suor escorre pela minha nuca, grudando meus cabelos, e também
pelas minhas axilas, mas nesse momento eu estou pouco me fodendo! Deixo
que minha mente mergulhe num outro universo atrás das minhas retinas só
por alguns instantes. Meu universo. Um local onde me sinto plena.
Abro os olhos, voltando à realidade devagar, e, sob as luzes multicores da
festa, além do mar de corpos agitados, avisto Zaph.
Minha respiração parece ficar ainda mais pesada enquanto o observo
parado ali no meio. Jovens cruzam a minha frente, bambos e risonhos,
interrompendo minha visão do vampiro. Mesmo com a movimentação, eu
vejo claramente Zaph me fitando, seus orbes âmbar refletindo os flashes de
luzes.
Eu não paro de dançar e um sorriso se abre em mim ao saber exatamente o
que as carícias de minhas mãos em meu próprio corpo fazem ao vampiro.
Eu não deveria provocá-lo. Devo ir até ele?
Procuro as meninas ao redor da mesa. Melissa se balança na batida da
música, um pouco menos intensa do que eu, já que ela está de olho nas
bolsas e garrafas. Ju está atracada com um cara, beijando-o libertinamente.
Quando volto a olhar na direção de Zaph, ele já não está mais lá.
Será que eu o imaginei? Inspiro fundo e viro para trás.
— São quatro da manhã! — grito para Mel por cima do som, fazendo um
coque com o cabelo úmido. Ela me olha atentamente, sem parar de oscilar.
Como Melissa ainda parece meiga depois de tanta Catuaba, eu não sei. —
Acho que já podemos ir para casa!
— Também acho! — Mel coloca uma mecha do cabelo carvão cacheado
atrás da orelha e se inclina. — Até a gente chegar lá, já vai ser umas seis
horas!
Anuo e giro a tempo de ver Julia nos alcançar, cambaleante. Os olhos
parecem sonolentos, e começo a ficar preocupada. Seguro seu braço, dando
estabilidade, então a encaro. Julia mostra um sorriso embriagado, fraco.
— Vamos embora!
— Não! — ela resmunga.
— Sim! Você já está mais pra lá do que pra cá!
— Mentiiira! — Abro a boca para replicar, mas a batida se transforma em
funk e os olhos de Julia se arregalam. — Aaaah! — Ela segura meus pulsos.
— Vamos dançar só mais essa, por favooor!
Comprimo os lábios.
— Tá. Só mais essa.
A primeira coisa que percebo é que estou estirada em minha cama e que
molhei o travesseiro de suor. Ainda assim, prefiro continuar deitada, sem
forças. Na verdade, queria que ela me engolisse e que eu nunca mais
precisasse ver a luz do dia. Me agoniza conceber que o colchão nunca me
absorverá, e isso por si só já é o suficiente para fazer umidade brotar em
meus olhos. O desejo de desaparecer é malditamente palpável. Eu quero
abrir os olhos e ver a vida, só não essa vida.
Eu encaro as sombras vespertinas que a janela lança nas paredes de um
flavo suave. Entra um vento fresco e, aos poucos, eu posso discernir o
barulho da chuva de verão. Finalmente. Fecho os olhos, inspirando fundo, e
me imagino ensopada pela água, o rosto virado para o céu. Gostaria de ir
para debaixo dela, contudo, mal tenho forças para mover um nervo. Tento me
recuperar e concentro no movimento respiratório, assim como aprendi na
terapia.
Quando desuno as pálpebras outra vez, depois de alguns segundos, estou
me sentindo mais serena. Minha mente menos atordoada e agitada. Me
levanto devagar, apoiando as mãos na cama até sentar com as pernas para
fora. Minha boca está seca, meus lábios rachados, implorando por algo para
beber. Induzida por uma sensação distante, mas opressora como um titereiro
sádico, abaixo meu olhar para a parte superior das minhas coxas. Ainda sob
o mesmo efeito, minhas mãos vibram querendo tocá-las, mas eu rompo as
cordas e as impeço.
Respiro fundo e me ponho de pé, indo em direção à porta. A casa está
submersa numa quietude erma que quase chia nos meus ouvidos.
Desço as escadas sem pressa, perdida em pensamentos, e, ao olhar para a
direita, encontro meu irmão sentado no sofá, curvado para frente. Seu perfil
angular e seu olhar focado no tapete felpudo cor lama. Assim que nota minha
presença, eu envio-lhe um sorriso penoso, porém Igor enruga a testa e se
levanta rapidamente. Ele percorre a distância entre nós a passos velozes, e
em instantes está abraçado a mim. Primeiro, fico um tanto pasma, mas logo
fecho os olhos e me deixo repousar nos braços do meu irmão.
É incrível como um abraço é capaz de recarregar nossas energias.
Principalmente se elas vêm de alguém que amamos. Eu sinto que estou tanto
as absorvendo quanto transmitindo, e por isso concentro as poucas cargas
boas que tenho para compartilhá-las.
— Eu preciso ir — ele diz, manso. Sua voz baixa apazígua meu interior
fremente e agita meus pensamentos mais conflitantes. — Mas, se quiser é só
ligar. Quando quiser.
Ao mesmo tempo que quero contar a Igor que não é questão de se
disponibilizar, mas sim de tomar a iniciativa, quero sentir o orgulho de
quando ele descobrir por si próprio.
— Tudo bem — digo num tom parecido com o que usara comigo. Há
carinho e tristeza entremeados nas palavras. Quando ele me afasta
gentilmente, posso ver a dor da impotência em seus olhos enquanto analisa
os meus.
— Claro que você não está bem — Igor diz, segurando em meus ombros.
— Quando foi que você virou uma mentirosa?
Algo além do meu coração é atingido e tenho certeza de que isso pode ser
visto através da minha face.
— Desculpe, Alice, mas é óbvio que não está bem. Não precisa tentar
disfarçar para mim, você sabe.
— Eu que peço desculpas, mano. — olho para meus pés — Eu só não
quero que você se preocupe comigo quando tem uma criança a caminho.
— Alice, olha para mim. — Ergo o queixo para estudar a feição estoica,
mas serena, de Igor. — Eu sou seu irmão mais velho. Eu posso estar na
China, sempre vou me preocupar com você.
Uma risada nasal e fraca me escapa. Igor me puxa para um abraço e eu o
devolvo, rodeando sua cintura fina.
— Obrigada — sussurro de olhos fechados e com a cabeça encostada em
seu peito, absorvendo sua textura e aroma como se fosse a última vez.
— Você sempre, sempre será minha irmãzinha. E eu sempre, sempre vou te
amar.
Meu nariz arde e lágrimas molham minhas pestanas. Respiro fundo antes
que o choro venha e nos aparto, levantando a cabeça para fitá-lo.
— Onde estão nossos pais? — pergunto.
— Papai recebeu um chamado, nossa mãe foi à farmácia. — Igor não
precisa dizer mais nada. Eu sei que logo, logo meu estoque de medicamentos
será renovado. Talvez eu não devesse ter dado o número da minha
psiquiatra para minha mãe.
— Você... soube, então — Meu irmão confirma meneando com a cabeça.
Ele inspira fundo.
— Não se martirize tanto, ok? — Ele esfrega o topo da minha cabeleira e
eu me encolho. — Você não sabia e, mesmo se soubesse, não teria o que
fazer. Afinal, ele é um vampiro.
Franzo o cenho. Algo na estabilidade em sua voz me incomodou.
— Mas então você sabia. — deduzo, mas não era para ter soado como uma
pergunta. A resposta de Igor é apenas um comprimir de lábios. Inalo o ar
como se estivesse rarefeito, controlando os bramidos de mágoa e fúria em
minha mente. — Você sabia, não só da existência de vampiros, mas também
da relação da nossa mãe com um deles, enquanto me via cada vez mais
deslumbrada por seres sobrenaturais. — Outra vez, uma alegação que ecoou
como um questionamento, talvez porque no fundo eu esperava que ele
negasse. O que não acontece. Os gritos se calam, resta apenas a sensação
fria e um tanto quanto maleável, tal qual um lençol fino de ressentimento.
Por que não estou surpresa?
— Alice, me desculpe — ele recomeça, seu tom dolente refletido na matiz
terrosa de suas íris. — Eu prometi à mamãe que não iria contar.
Lealdade filha da puta. O pior é que admiro isso.
Eu me sinto como uma chaminé, o fogo queimando em meu peito, a fumaça
espessa subindo e tingindo de preto as paredes de tijolos sem ter por onde
sair, o que a acumula dentro de mim enquanto o incêndio agrava.
— A Fernanda sabe? — Minha voz sai dura.
Eu não sei se quero ouvir a resposta, mas preciso. Cerro os punhos ao lado
das pernas, Igor solta um suspiro audível ao tempo em que seus ombros
minguam.
— Ainda não. Pretendo contar assim que eu voltar, antes de pedi-la em
casamento. Ela precisa saber onde está se metendo.
Observo meu irmão trocar o peso da perna e liberar mais um pouco de ar.
Ele fecha os olhos, esfrega a nuca e o fogo em mim esmaece.
— Nossa mãe sempre foi assim, tão... tão...
— É, mamãe sempre foi meio superprotetora.
Meio?
— Ela te tratava assim também?
— Mais ou menos. — Meu irmão arrasta um pé. — Depois que você
nasceu, as coisas ficaram um pouco... um pouco complicadas.
Movo os supercílios de forma rápida e um sorriso satírico se implanta no
canto da minha boca.
— A caçula. Sempre a bebê da mamãe.
— Você tinha que ver quando ela foi me visitar no apartamento pela
primeira vez. Parecia que estava num programa de reforma de interiores. Se
papai não tivesse a obrigado a ficar sentada e a beber uns dez copos d’água,
aposto que ela teria transformado minha casa em um escritório. — Eu teria
os acompanhado se eu não estivesse tão ocupada presa numa clínica de
reabilitação. — Ela tentou te visitar também, sabia? Nós tentamos. — O tom
que Igor usa é mais suave, então hasteio os olhos para ele. E não, eu não
sabia. — Eles não nos deixaram entrar. Eu meio que entendo, poderia
atrapalhar na recuperação, mas ainda assim... — Igor haure o ar
profundamente mais uma vez. Parece que o oxigênio aqui em casa está
estagnado e não é o suficiente para nenhum dos dois.
Me lembro da expressão de Zaph quando ele saltou para fora da janela. De
como ele não tentou esconder o fato de que matou os pais da minha mãe, a
perseguiu e a usou emocionalmente. E de como dissera conhecer Melissa,
que também seria uma vampira.
Mentiras e mais mentiras. Uma em cima da outra.
— Bem, vou indo. — Igor ajeita a alça da mochila nas costas e dá um
sorrisinho sem graça de lado. — Por favor, se cuida. Sabe que pode me
contar tudo. Sou seu psicólogo particular e nem cobro. — Um sorriso
também brinca em meus lábios. Meu irmão mais velho iça uma mão e
encosta dois dedos na minha testa. — Até uma próxima.
Quando chego em casa, meu pai aproveita uma taça de sorvete de flocos,
num inédito dia de folga. Minha mãe está ao seu lado, deitada no sofá com os
pés sobre suas coxas. Eu remexo meu próprio sorvete com a colher, as
pernas por cima do apoio da poltrona adjacente, enquanto alguma cena
melodramática passa na televisão às minhas costas. Observo o creme branco
derreter, tirando do frescor que o vidro oferece aos meus dedos a coragem
para falar.
— Encontrei com Zaph ontem.
No mesmo instante em que termino de pronunciar tais palavras, a atmosfera
de todo o andar do térreo se adensa.
— Ele me contou que vocês conversaram — continuo.
Meus pais dão um exemplo de sincronia quando inspiram fundo ao
mesmíssimo tempo.
— De fato, conversamos — Gabriel responde, estoico, os olhos verdes
fincados na TV, embora saibamos que ele não está assistindo. — Ele cortou
a própria pele para fazer uma promessa — ele continua, como se enxergasse
o desenrolar da cena ali no programa de televisão.
— E quando ele falou, o sangue dele… — Heloise, diferente do meu pai,
olha para suas mãos segurando a taça por sobre a barriga com um certo
pavor — ficou dourado.
Ela hasteia o olhar para mim, e eu posso enxergar em cada íris o assombro
de não saber o que aquilo implicaria no futuro.
Ou talvez seja só por ter visto algo mágico, não sei.
— “Eu juro pelo meu espírito e carne, mente e coração” — meu pai recita,
ainda daquela forma hipnotizada — “jamais fazer Alice de Souza Beiruth,
filha de Gabriel de Souza e Heloise Beiruth Souza, sofrer e sempre a
proteger.” — Então, ele pisca, despertando do torpor e expandindo o pulmão
ao respirar fundo, mas permanecendo com a postura hirta. Em sua feição, tão
clara e sarapintada de sardas quanto a minha, seus ombros largos de
musculatura entre a flácida e a definida, vejo a postura do investigador
sagaz, marcada pelo tempo e pelos horrores que já teve o desprazer de
acompanhar de perto.
— Ele não subornou vocês para me dizerem isso, subornou? — pergunto.
Enfim, meu pai se vira para mim e há um sorriso despontando em sua boca.
— Acredite — ele começa —, queria eu que tivesse.
Sua resposta não me fez rir ou sorrir. Porque sei que, entremeado ao tom
amável, há uma tristeza que esconde algo. E Gabriel sabe que percebo, pois
não completa com outra piada para aliviar minha tensão. Essa é a dinâmica
entre mim e meu pai. Sempre foi assim. Poucas palavras, um mundo inteiro
de significados.
Bem, mais uma estrelinha para o vampiro.
— Então, não vamos nos mudar?
— Pelo jeito...
Despejei tudo que eu sabia. Mostrei fotos minhas e de Zaph como prova.
Mesmo com Mel reforçando tudo o que eu disse, Julia continuava afirmando
que estávamos malucas ou que havíamos posto algo no copo dela. Troquei
olhares com Mel, ambas com a mesma expressão de ceticismo, então ela
abriu a boca e fez as presas crescerem.
Ju, que falava incessantemente em descrença, para no meio de uma palavra
e mira os caninos alongados de Mel. Meu coração perde uma batida. Acho
que traumatizei minha amiga, porque Julia está há mais de dois segundos sem
falar alguma coisa, e isso é um recorde.
Mel pega a mão de Julia e a leva até seus dentes. Ao espetar a ponta do
dedo indicador de Ju em sua presa, nossa amiga se sobressalta e puxa a mão
de volta.
— Não vou te machucar, Ju — diz Mel. — Eu jamais faria uma coisa
dessas.
— Certo. — Julia limpa a garganta, encara as mãos que agarram o copo
com força e se levanta. — Eu preciso de algo mais forte.
Eu e Mel a observamos andar apressada até o corredor. Nos entreolhamos
com certa preocupação e vejo suas presas retrocederem. Melissa dá um
sorriso cabisbaixo.
— Vai ficar tudo bem. Ela vai entender.
Eu retribuo o sorriso tenso e estico a mão para pegar uma coxinha da caixa
de papelão. Eu preciso comer para aplacar um pouco do nervosismo. Escuto
os passos pesados de Julia retornando e levanto a cabeça a tempo de vê-la
se jogar e sentar em frente a nós outra vez.
— Faz de novo. — Ela tem os olhos vidrados em Melissa, que está
mastigando uma bolinha de queijo.
Melissa engole o salgado à força e mostra novamente o crescimento
acelerado dos caninos. Dessa vez, Julia chega mais perto, inclinando o
corpo até seu nariz um tanto arredondado ficar a centímetros do rosto de
Melissa. Então, de supetão, ela estica o pulso.
— Suga meu sangue.
— Quê? — Melissa recua, parecendo ofendida. — Não!
— Eu quero ver como é. E Alice me disse que aquele vizinho dela curou
as feridas com a baba dele. — Eu não disse exatamente isso. — Quero ver
com meus próprios olhos.
Julia está tão séria que chega a nos assustar.
Com relutância e contra vontade, Mel bufa e pega carinhosamente o
antebraço de Julia. Ju se retrai de dor, fazendo careta, quando Melissa finca
suas presas ali, mas, com certo fascínio e medo, não tira o foco do próprio
pulso. Logo, Mel volta a ficar sentada, e passa a língua pelos lábios
sutilmente avermelhados.
— Nunca mais me peça uma coisa dessas — diz ela, severa, para Ju, que
está concentrada demais admirando seu pulso, enquanto os furos se fecham
gradativamente. — Ju, você tem que prometer que não vai contar isso a
ninguém.
A morena ergue a cabeça com um olhar espantado.
— Por quê?
— Zaph não faz muita questão de esconder — digo. — Mas eu e Melissa
não achamos seguro sair espalhando que há vampiros à solta.
— Alguns podem não acreditar, mas não são apenas os vampiros que são
perigosos. Então, por favor, não conte a ninguém. Por precaução — Melissa
completa. O olhar de Julia vai de mim para Melissa, de Melissa para mim.
Meu coração se acelera um pouco ao ver que ela está assustada.
— Tudo bem. Prometo — diz, apontando raivosa para nós duas. Mesmo
assim, o alívio faz meus ombros distenderem. Eu solto um ar que nem mesmo
percebi estar prendendo. — Mas vocês também me prometam nunca mais me
esconderem uma coisa dessas!
Eu e Melissa trocamos olhares e sorrisos de canto, amainadas. Nem dá
tempo de responder e a garota logo dispara:
— Eu sabia que tinha alguma coisa errada com aquele seu curso de
Húngaro — diz Julia balançando a cabeça negativamente, os olhos
semicerrados.
— Não tem nada de errado com o curso. — Mel cruza os braços e volta a
se recostar no sofá. — Ele existe.
— Seu trabalho é real, né? — questiono. Quer dizer, como mais ela arcaria
com uma moradia e a escola? Por favor, mais um mafioso não.
Contudo, antes que ela pudesse replicar, Julia bate palmas.
— Opa, opa, opa. Pausa. Vamos recapitular: — Ela encara o meio de suas
pernas sem piscar e as mãos afastadas como se estivesse se equilibrando.
Então ergue seu olhar para mim. — Isso quer dizer que você esteve, esse
tempo todo, recebendo a visita de um vampiro gostoso no seu quarto?
— Hã... sim. — Reluto contra a vontade de encolher os ombros.
— À noite. E vocês ficam sozinhos — Ju reitera.
— Sim.
— E vocês ainda não fizeram nada? — Ela ergue as sobrancelhas e eu
curvo as minhas, remoendo as mãos.
— Bem, naaada naaada, depende do ponto de vista. Ele sugou meu sangue
algumas vezes.
— Zaph tem sugado seu sangue? — É Mel quem pergunta e, quando me
torno para ela, me surpreendo pelo seu semblante duro. Enfim retraio os
ombros e mostro um sorrisinho.
— Não é sempre.
— Alice, ele... ele te explicou o que o seu sangue faz conosco?
Contraio a fronte.
— Você diz sangue no geral ou o meu sangue? — O silêncio dela é tudo
que preciso. Travo o maxilar. — Melissa, desembucha.
— Alice, não sei se eu...
— Ah, não. — Ju se arrasta para mais perto. — Eu tô com a Alice, nessa.
Tu começou agora tu termina.
Mel comprime os lábios e libera o ar pelo nariz. Em contrapartida, eu
prendo o meu.
M
inhas têmporas latejam e minha coluna alfineta de tantas horas
diante da escrivaninha, debruçada sobre os livros e cadernos. Eu
havia mergulhado nos resumos que eu e as meninas fizemos quando
na casa da Julia. Mas tudo tem um limite. Eu já não consigo me concentrar
em mais nada. Uma mosca me distrai e carrega minha mente para uma
aventura de pequenos guerreiros montados em insetos.
Além disso, o que Melissa me contou no sábado não sai da minha cabeça.
Aquilo não pode ser verdade. Meus país teriam me falado. Não teriam?
Grunho de frustração ao jogar a cabeça para trás e esfregar as mãos no
rosto. A maldita cadeira faz seu maldito ganido metálico.
— Me diz que você consegue consertar essa coisa — peço, ainda com as
mãos escondendo os olhos.
— Conseguir eu consigo. A questão é — Zaph responde — o que eu vou
ganhar em troca?
Eu abaixo as mãos junto ao queixo e torço a cabeça para mandar-lhe uma
feição entediada. O vampiro está sentado de lado na cama, de frente para
onde estou, com as pernas cruzadas sob uma calça moletom cinza escura
mesclando com o tom de seus olhos, e o cotovelo que sustenta o queixo
apoiado num dos joelhos.
— É sério? — pergunto, cética. — Já não basta aquela merda de acordo?
Se eu ficar com anemia, vai ser culpa sua.
— Eu não estava me referindo ao sangue. — Zaph move as sobrancelhas
acompanhando o gesto com um sorriso sacana. Eu apenas libero uma risada
rápida pelo nariz e balanço a cabeça, incrédula. Resfolego, fechando o livro
de História e o caderno.
Meu celular vibra no tampo de vidro, emitindo um ruído agudo trépido ao
lado do meu material. Eu não sei se enrugo a testa ou arregalo os olhos ao
ver a notificação da mensagem de Igor. Os anjos já prepararam as
trombetas? Porque ou é um milagre ou é o fim do mundo.
Ela disse sim! IGOR
Em seguida vem uma foto dele e de Fernanda exibindo seus dentes brancos
num sorriso cegante e o anel de noivado no dedo. Meu peito se enche de um
sentimento morno.
UHUL! EU
Ela quer que você entregue as alianças. IGOR
— Tive uma ideia. — Zaph atrai novamente minha atenção, então bloqueio
o celular e o recoloco no lugar.
— Tenho medo das suas ideias — brinco sem me alterar, continuando a
guardar meu material. Zaph até que foi de grande ajuda na hora de estudar,
descobri que ouvi-lo relatar os acontecimentos de uma maneira quase
satírica é muito mais divertido e fácil de memorizar do que vendo vídeos na
internet.
Ah, e também que vampiros romenos de cabelos negros e olhos claros
ficam deliciosos em calças de moletom.
— Você vai gostar, confie em mim — ele diz, se pondo de pé enquanto
ajeita a camiseta preta justa e eu giro para encará-lo com um sorriso sutil.
Pensar que ele talvez saiba do que Mel disse me magoa, mas não posso
culpá-lo por não contar, posso? Posso?
— Eu confio. — Zaph retribui o gesto, entendendo que há muito mais
nessas duas palavras do que parece. — Qual o plano?
— Fazer você relaxar antes das provas. Vem, você está muito tempo em
casa.
— Eu gosto daqui. — projeto o lábio inferior e Zaph apenas iça as
sobrancelhas enquanto também as enruga.
Zaph estende a mão na minha direção e, com um suspiro, tomo impulso,
encaixando a minha na dele.
Percorremos o lugar como se o tempo não existisse por aqui. E talvez não
exista mesmo. Zaph me contou que o mercado é um lugar neutro, onde
criaturas do Dia e da Noite podem andar livremente e vendem de tudo. Eu
abaixava um pouco o gorro cada vez que um ou mais olhos felídeos ou
anfíbios cruzavam com os meus. O vampiro apontava e comentava um pouco
de cada criatura que ele reconhecia e que eu nunca tinha ouvido falar na
vida. Ele me mostrou uma bela elfa de orelhas pontiagudas, pele escura e
traços geométricos pintados em dourado nos braços e no rosto conversando
com uma harpia, que exibia um cabelo trançado e penas exuberantes como as
de uma arara-vermelha no lugar dos braços. Havia um centauro analisando
uma garrafa de hidromel em uma tenda alaranjada onde o vendedor era um
leprechaun; um pequeno akaname de pele rubra e cabelos cor de capim
saltitando como um sapo com sua língua enorme a balançar; franzinas pixies
emitindo ruídos de guizos, enquanto tremiam velozmente suas asas que
pareciam de cigarras...
Eu queria parar em cada estande, das que dispõem ingredientes bizarros às
de armaria, e o puxava cada vez que algo chamava minha atenção, mas é
preciso saber jogar aqui. Como a variedade de produtos é quase infinita, os
preços também são. Alguns pedem moedas em troca, outros uma parte do
corpo, um segredo, uma memória… Zaph me levou até uma minúscula
barraca esverdeada onde a vendedora era uma ninfa de cabelos que
pareciam oscilar em tons de azul como o próprio mar, suas íris eram puras
tanzanitas. Ele quis comprar um doce em formato hexagonal e colorido. A
ninfa cobrou um canino dele, mas o vampiro desconversou e ela acabou
aceitando um beijo na bochecha. Mal deu tempo de me sentir incomodada.
— Nunca dê nada seu para nenhuma criatura — Zaph sussurra em meu
ouvido assim que saímos da tenda. Eu seguro a guloseima num guardanapo
com uma mão enquanto a outra está ocupada se unindo com a de Zaph
conforme vamos nos desviando dos transeuntes. — Um dia você pode
acordar num lugar sujo e com uma coleira de aço ao redor do seu pescoço.
Tiro uma mordida do bolinho e observo seu perfil.
— Isso já aconteceu com você? — Xandra Candra de Israel, que bolinho
bom! O bolo tem gosto de tutti-frutti e a massa derrete na boca.
Zaph apenas retesa a mandíbula. A iluminação invoca contrastes calorosos
aos traços do seu rosto, às madeixas negras que se rebelam contra a brisa
fraca e aos olhos de silício.
Zaph sempre me divertiu com suas aventuras, porém nunca me contou de
suas dores. Não sei se esse é o melhor momento para perguntar, rodeado de
criaturas que podem ser tão bondosas quanto perigosas.
— Por isso você se tornou um Vacor? — Observo-o de esguelha. Ele
libera uma risada nasal rápida e o sorriso que surge no vértice de seus
lábios tem uma ardileza que me ouriça.
— Nu.
— Foi antes de entrar para a máfia?
— Foi bem an... — Zaph franze o cenho de repente. — Como você sabe
disso?
Sacudo os ombros.
— Minha mãe me contou. Vocês, por um acaso, não chegaram a...
— Urgh, nu. — Zaph estremece e faz uma careta. — Prefiro falar do que
estávamos conversando antes. Onde paramos? Ah, sim. A razão para eu ter
perdido a cabeça não tem nada a ver com a máfia... — Zaph não me encara
quando fala. Ele mira adiante, como se as imagens de sua memória
estivessem bem à sua frente. Esquivo de uma... bananeira? Minha visão se
prende no ser revestido de folhas verdes vistosas, somente com os braços
delgados de cor marrom escura, como galhos longos, a aparecer. Ele anda
um tanto corcunda, pulando com um pé de cada vez, o que faz os colares de
dentes e sementes ao redor de seu pescoço e seus pulsos finos soarem como
chocalhos. Uma máscara de madeira encoberta sua face, onde os olhos
grandes e redondos foram desenhados em branco, da boca saem dentes tais
quais os de javalis. Eu giro no meu próprio eixo, assistindo a criatura passar
por mim e sumir dentre tantas outras. — Você está ouvindo? — Torno-me
para Zaph outra vez.
— Não, desculpa. Repete? — Encolho os ombros, esticando meus lábios
de uma maneira sem graça, e tiro mais uma mordida do bolo.
O vampiro suspira.
— Resumindo: Eu não vi porque continuar tendo compaixão de pessoas
que não sabem o significado dessas palavras. Se eles queriam um demônio a
quem culpar, ótimo, eu seria esse demônio. Daria uma razão para os
hipócritas rezarem. Vocês humanos são mais monstruosos do que um dia os
vampiros jamais serão.
Ok, eu não esperava essa raiva no tom de voz dele.
Retorno a olhar para meus pés, perdida em pensamentos sobre o passado
de Zaph, mas algo mais à frente me chama atenção. Além de tanta
movimentação, no que parece ser o fim do corredor, há uma grande porta
dupla de madeira escura, com duas aldravas redondas.
— O que tem ali? — Eu sinto a massa esfarelar na minha língua e sumir
conforme a masco, deixando uma sensação viscosa na boca. Moça, prepara
seu forno, porque eu vou encomendar uns cem desses.
— Nada que valha a pena ver agora. — Zaph me reencaminha para a
esquerda, entrando em outro corredor.
Aplausos, assobios e urros de contentamento chamam minha atenção.
Por cima das cabeças, penas e galhadas do grupo parado de costas, vejo
fitas violetas e pretas dançando no ar. Um jorro de fogo é lançado e a
multidão ao redor vibra.
— Acho que você deu sorte — Zaph diz ao meu lado, ainda me
acompanhando de mãos dadas. — Deve ser dia do Festival Outoveril. Isso
explica a movimentação.
— Festival Outoveril? — repito, confusa e maravilhada ao mesmo tempo.
— Você já ouviu falar do Efeito Mandela? Dizem que ocorre quando duas
realidades se chocam — Zaph diz, com um sorrisinho no canto da boca e
inclinado para mim, mas sem tirar os olhos da multidão próxima. — Bem,
aqui acontece algo parecido.
Desculpe, eu ouvi certo? Ele disse “DUAS REALIDADES SE
CHOCAM”?
— O Festival marca a sincronização do equinócio de primavera e de
outono nos dois hemisférios, exatamente na mesma data e na mesma hora.
Mas não é apenas isso.
Quando nos aproximamos da massa, Zaph vai na frente, utilizando de sua
altura e imponência para cortar caminho por entre o público, que abre
passagem de pronto assim que batem seus olhos nele.
Minha pele pinica de agonia por estar rodeada de seres fantásticos tão
grandes e diminutos, que cheiram a lixo e a flores. Eu peço desculpas por
onde passo, me espremendo entre roupas feitas de limo e outras feitas de
seda. Zaph de repente para e me puxa para perto de si, me colocando na sua
fren… Meu. Santo. Rodrigo Hilbert.
Estagno, boquiaberta, ao me deparar com um ambiente circular amplo,
feito em pedras de calcário, de onde um enorme salgueiro chorão brota no
centro. Ante a ele, quatro mulheres dançam movimentando panos escuros
com uma quinta no meio, que segura o véu cor violeta que eu avistara. Deles,
a cada rodopio, exalam pequenos pontos reluzentes como pérolas a voar, que
se espalham pela ágora. Embora descalças, todas vestem a cor preta como
odaliscas sensuais e sombrias, os tecidos ao redor da cintura parecem fazê-
las flutuar em nebulosas arroxeadas como galáxias. Seus cabelos loiros,
pretos, castanhos, lisos, cacheados, ondulados, longos, medianos e curtos
acompanham suas curvas mesclando à atmosfera etérea que criam.
— Elas são bruxas — Zaph comenta sóbrio ao pé do meu ouvido. Seu tom
baixo envia um breve arrepio à minha nuca, mas tento não pensar muito
nisso. — São conhecidas como Irmãs de Unhas de Ferrão Púrpuro. Fazem
parte das Bruxas Ferrão Púrpuro que, por sua vez, fazem parte do círculo
mágico da Sociedade Oculta. Que não é tão oculta assim, mas vamos rezar
para que elas não a vejam aqui, senão estamos fodidos. Os bruxos são
cruéis, mas as bruxas…
Zaph não precisa nem mesmo concluir sua frase. Quando os orbes
heterocromáticos da dançarina no centro recaem nos meus – um dourado e o
outro prata, não cinzas como os de Zaph, prata –, num único relance, eu
posso ver toda a maldade de que ela é capaz, mas que seu sorriso esconde.
Um som de flauta irrompe na roda e meu foco dispara para o fauno que
saltita pelo espaço no ritmo da melodia que entoa. De repente, a dança muda
de rumo e recomeça quando bodhráns, violinos e gaitas se juntam à
harmonia, trazidos por um kappa, uma korrigan de longos chifres, e um
anão. As criaturas ao nosso redor bradam em alegria, e um coro de palmas
começa a soar como se fosse mais um instrumento musical.
O cimento sob meus pés vibra suavemente e tudo ao meu redor, todos os
contornos, parecem oscilar aqui e ali em finos nuances de vermelho e azul.
Eita! Estava tão hipnotizada que quase pulei de susto ao sentir Zaph se
inclinar para grudar a boca à minha orelha outa vez.
— Como eu estava dizendo, além da união dos equinócios, ocorre outro
fenômeno que caracteriza o Festival. O Mercado das Criaturas fica no que
chamamos de Ponto de Fusão, um lugar onde, de tempos em tempos, os
mundos e as realidades colidem. Funciona quase como uma rosa dos ventos.
— Eu não consigo tirar meus olhos das dançarinas e de suas silhuetas que
variam em azul, ametista, carvão, vermelho e verde devido à árvore atrás
delas, como um redemoinho de cores ou um zootropo tão tangível quanto
surreal. O que será que tinha naquele bolinho? — Acho que você pode
imaginar o que está prestes a acontecer...
Eu estou sem palavras. Simplesmente sem palavras.
As bruxas param de dançar, as cinco formando uma lua crescente de frente
para o salgueiro chorão, no exato momento em que as pessoas param de
aplaudir e o instrumentos se silenciam, como se todos já soubessem o que
fazer ou como se um trovão estivesse ressoando por todo Mercado.
Pressiono ainda mais os dedos de Zaph entrelaçados aos meus, procurando
controlar meus batimentos cardíacos, e recebo seu aperto em retorno.
O teto, antes acinzentado e atulhado de canos, aos poucos desvanece na
névoa, dando lugar a duas imagens espelhadas, saídas das diagonais, ainda
mais incorpóreas. Elas refletem as barracas coloridas, a praça de pedras e o
salgueiro. As duas árvores no alto despontam como mastros de navios que
irrompem o nevoeiro e ficam de ponta cabeça, quase se encostando à que
está à nossa frente. Tudo acontece lentamente. Então, me surpreendo ao ver
uma singela borboleta sair dentre as folhas caídas de um dos salgueiros
chorões invertidos. E mais uma no lado oposto. E mais outra. E outra. Logo,
uma nuvem de borboletas desce em espiral... Não, espera, não são
borboletas. Mariposas. São mariposas grandes, amarelas e marrons. Elas
circundam as três árvores como se as ligassem, as prendessem, uma na outra,
até que, a passos vagarosos, as três tenham se tornado uma. A praça inteira
se tornou um mandala de um imenso caleidoscópio.
— Neste mundo, os humanos deram o nome a esse pequeno ser alado de
Acherontia — Zaph continua sussurrando em meu ouvido, sua voz rouca
fazendo parte de todo aquele cenário. Tão inebriante quanto todas as outras
sensações. — Para nós, seu nome é Viayña. Essa criatura é a única que
consegue atravessar mundos, realidades e planos. Não é à toa que ela é o
símbolo de todas as criaturas mágicas.
Os contornos deixam de tremeluzir entre magenta e turquesa, mas o
espetáculo não acabou. As mariposas rodeiam a árvore, seguindo o ritmo da
música, então se espalham pelo lugar, voando em milhares de direções.
É tudo tão lindo que parece irreal. Meu coração é um bosque de emoções
ininteligíveis. Sinto em meu peito um desejo de pôr tudo isso para fora em
forma de lágrimas, pois em palavras seria impossível.
Acho que é assim que as pessoas se sentem quando vão à Disney pela
primeira vez.
— É como sempre sonhou?
Tal qual uma tesoura corta um fio, a viveza que eu enxergava some quando
as palavras suaves de Zaph me trazem uma revelação.
— Eu… eu me habituei tanto aos pesadelos que esqueci como era sonhar.
Então as lágrimas vêm, silenciosas.
Tantas criaturas diferentes, criadas de maneiras diferentes, para propósitos
diferentes, unidas num único lugar e se divertindo como se fossem um só
povo… Meu peito almeja por ver isso no meu mundo mais que tudo. Uma
centelha se acende naquele poço fundo dentro de mim. Eu pude sentir, juro.
Porque eu percebi que se isso daqui podia existir, então a união que eu
sempre quis também pode. Demoraria, doeria, não seria perfeita, mas
aconteceria. E eu batalharia cada dia por ela. Fazendo a minha parte, de
pouquinho em pouquinho. Um passo de cada vez.
Duas crianças cornudas, um menino e uma menina, trajando roupas que
parecem ser feitas de folhas secas, invadem a roda e começam a dançar de
mãos dadas, rindo uma para outra, enquanto giram rapidamente por entre as
bruxas, as mariposas e os pontos luminosos.
Não muito depois, a melodia animada retorna e a multidão começa a
dançar junto. É como o Carnaval. Só um pouco mais bizarro.
Fungo, e uma risada fraca me escapa.
Opa! Do nada, sinto a mão de Zaph me puxar para cima, me obrigando a
girar na ponta dos pés até me colocar de frente para si e não restar um
mísero espaço entre nós. Meu coração ribomba no peito, e eu não sei dizer
se é pelo simples susto ou pela aproximação entorpecente de seu rosto e sua
mão pesando em minha cintura. Seguro nos antebraços de Zaph, já rendida
sem nem mesmo tentar.
— O que foi isso? — pergunto, variando meu foco de sua boca para os
olhos e vice-versa. Zaph apenas dá de ombros, sobrelevando o lábio inferior
de modo fugaz, e exibe um sorriso no limiar do imperceptível.
— Só achei que devia. E tenta não pisar no meu pé dessa vez.
Solto uma risada que começa nasal, mas finaliza verbalizada, dando uma
sensação gostosa à minha garganta.
Nos integramos à balada agitada e às criaturas que dançam em pares. Meu
sorriso, enquanto o vampiro me rodopia para lá e para cá, quase rasga minha
pele de tão largo. E ver que Zaph também ri comigo faz meu peito se encher
de uma emoção morna, confortável. Principalmente quando ele me puxa de
volta para si.
Todas as memórias e sensações parecem correr por onde nossos dedos
tocam nossa pele, como um rio de energia que encontra seu início e fim em
nós mesmos.
Mesmo nossos narizes estando perto demais, ainda assim o dedão áspero
que ele usa para limpar uma das minhas lágrimas logo abaixo dos meus
olhos me eletrifica. Meu coração soca meu tórax e aperto mais o antebraço
de Zaph, para me manter firme e não fugir, ou para tentar me despertar da
loucura. Zaph encaixa essa mesma mão em meu rosto, aproximan... SANTO
PAI!
Num momento eu estava prestes a colar meus lábios nos de Zaph, e no
outro uma jovem aparece agarrando a gola de sua blusa. Ela tira o calor dele
de mim ao puxá-lo, até seu nariz estar a átimos do dele. Seu rosto está
transfigurado em raiva, enquanto o perfil do vampiro expressa surpresa. A
mulher é apenas um pouco menor do que Zaph, mas, aparentemente, emana
uma aura tão ameaçadora quanto.
Para falar a verdade, eles poderiam ser irmãos gêmeos. Os cabelos
escuros da mulher caem em ondas até seu seio mediano, coberto por uma
regata preta de alça larga e com rasgos, a pele tão lívida quanto a de Zaph,
os olhos de um azul seco.
Com um movimento abrupto, sou empurrada para trás com os olhos
arregalados e o gorro escorrega de minha cabeça. Eu consigo segurá-lo por
pouco, mas a agitação faz as criaturas ao nosso redor olharem curiosas.
— Você é maluco ou o quê? — ela rosna. — Por acaso não sabe que vão
esfolá-la viva e arrancar cada parte dela caso saibam que é humana? Se não
sabia, o que eu duvido muito, Tertius, está avisado agora.
A jovem solta a camiseta de Zaph com violência e o vampiro se recompõe
sem demora. Pela expressão dura dos dois, não haveria argumentação.
Com o coração comprimido dentro do peito, eu seguro o punho cerrado de
Zaph e seu cotovelo. Ele abaixa o queixo para mim, suas íris ainda cinzas e
sua boca numa linha reta.
— Zaph, tudo bem, eu já vi o suficiente. — Envio-lhe um sorriso terno e,
após alguns segundos me estudando, o vampiro volta a encarar a garota, mais
calmo. Ele apenas aquiesce para ela.
— Ah. Já entendi — diz a jovem e volto a encará-la. A mulher troca o
peso da perna, ostentando um sorriso íngreme em minha direção. Se os orbes
de Melissa são grutas de geleiras, os dessa garota são a própria geleira.
Logo ela retorna a Zaph. — Tire-a daqui agora se quiser continuar tendo sua
parceira — ordena ela, branda.
Seu olhar gelado desvia para mim ao mesmo tempo em que Zaph toma
minha mão na dele outra vez e cruza nossos dedos. Somente esse gesto é o
suficiente para me apaziguar. A jovem estica um sorriso torto e troca o peso
da perna.
— Algo me diz que essa não será a última vez em que nos veremos. Então,
até mais. — Ela mostra um punho na minha direção e eu olho para ele, um
pouco atordoada. Um riso interno de alívio me percorre inteira. Eu abro um
sorriso sem jeito e bato meu punho com o dela. — Se cuida.
Zaph me puxa para longe do centro da praça, para longe da música e da
dança, entremeando-nos à multidão de seres e voltando para os corredores
menos abarrotados agora.
— Antes que você me pergunte — Zaph começa, os olhos focados à frente
—, aquela era Aurora, Guardiã da Noite.
— E o que, exatamente, uma Guardiã da Noite faz? — pergunto,
observando seu perfil. Me tranquiliza notar que ele não parece mais tão
tenso, embora permaneça atento aos arredores. Provavelmente, o aviso de
Aurora está ecoando em sua mente assim como ecoa na minha.
— O mundo oculto tem algumas repartições para facilitar a organização e
a... regularização, vamos dizer assim — ele introduz, diminuindo a
velocidade. — Há os escolhidos que trabalham arduamente, todos os dias
para manter a paz entre os humanos e os “seres sobrenaturais”. Os Guardiões
mantêm o limiar entre criaturas e humanos; os Vigilantes contribuem para a
calmaria entre humanos e divindades; e os Exorcistas… bem, só pelo nome
já dá pra saber o que eles fazem. Cada uma dessas repartições tem dois
escolhidos: um homem e uma mulher. Eles possuem tatuagens que ajudam a
identificá-los. Esse foi um dos motivos que influenciou a decisão de tatuar
os Cinco Grandes.
Franzo o cenho.
— Chico o quê?
Zaph finalmente abaixa o queixo para me encarar, um sorriso tremulando
na quina de seus lábios.
— Chico não, cinco. É como os que aparecem no topo da classificação
vampírica se denominam. Lembra que eu falei sobre ser o terceiro?
— Vocês se denominam Chico Grande? — Inclino a cabeça.
— Cinco! Cinco Grandes. Primus, Secundus, Tertius, Quartus e Quintum.
Esses são nossos nomes oficiais. E é através da tatuagem que nos
identificam. Uma flor de cerejeira com losangos sobre cada pétala. Na minha
têm três deles pintados porque sou o Tertius. — Eu deveria ter ficado
animada por saber que Zaph tem uma tatuagem? De flor? — Enfim, essas
tatuagens mágicas dão poderes aos escolhidos. Cada um é diferente. Aurora,
por mais irônico que seja, é a Guardiã da Noite. E tem o Guardião do Dia,
que vigia as Criaturas do Dia. Se eu fizer merda, por exemplo, é a Aurora
que vai me comer na porrada. Porque, tecnicamente, vampiros são criaturas
noturnas.
— Deve ser difícil — comento, voltando a olhar para frente e desviando
de um ogro marrom de dois metros de altura que passa ao meu lado direito.
— Deve.
— Imagina ter que tomar conta de vários Zaphs.
Ele abaixa a cabeça para mim com a testa vincada.
— Ei.
Rio de sua expressão e ergo o olhar para o vampiro.
— Obrigada — agradeço.
O vinco entre suas sobrancelhas some e dá lugar a um ínfimo sorriso
inclinado.
Viramos uma esquina, de volta ao... AU! Uma criatura enorme esbarra no
meu ombro direito, seus pelos espessos roçando na minha pele de forma
agressiva, a ponto de me fazer cambalear e o gorro escorregar para trás da
minha cabeça.
Solto da mão de Zaph somente para girar e pegar o gorro que cai no chão
cimentado. Assim que iço a cabeça, me deparo com o fuço colossal de um
tamanduá a poucos centímetros de mim.
A criatura me estuda com seus globos de um piche infinito e fareja o ar
entre nós. Ao falar, sua voz é um esganiçar grave.
— Humana.
Essa não.
A criatura fica ereta sobre seus dois cascos fendidos e meu corpo todo
estremece ao ver o corpanzil peludo, metade tamanduá e metade homem, me
esconder em sua sombra. A coisa lança sua língua como uma flecha em
minha direção, mas sinto dedos segurarem ao redor dos meus bíceps, me
tirando da reta da língua longa e endurecida bem a tempo.
De repente, me vejo suspensa no ar e encaixada no colo de Zaph. O
vampiro me carrega com um braço por baixo das minhas pernas e o outro ao
redor das costas e ombros, disparando pelo corredor apinhado de criaturas
mágicas.
Um rugido estridente ecoa por todo mercado.
— O que é isso?! — pergunto, sacolejando no colo de Zaph e apertando o
gorro de tal forma contra meus seios que meus dedos doem. Mais um rugido
corta as tendas coloridas das barracas e fecho os olhos, o pavor enrijecendo
meus músculos.
— Um maldito capelobo!
Eu não faço a mínima ideia do que isso seja, mas também não estou a fim
de descobrir.
Zaph trinca os dentes, correndo na mesma velocidade em que meu coração
ribomba no peito. Os seres fantásticos ao redor abrem caminho aos gritos.
Uma sombra nos cobre. Olho para ci... O capelobo salta por cima de
nossas cabeças e aterrissa a alguns metros, obrigando Zaph a frear de forma
brusca. Zaph não pode matá-lo, eles estão num território neutro, eu sou a
intrusa.
A criatura se lança em nossa direção com as unhas alongadas e arcadas,
prontas para nos dilacerar, a língua rija na boca pronta para nos atravessar,
seus dois botões pretos refletindo minha imagem... Então ela recua. Não, não
recua. Um laço prateado imobiliza seus braços junto ao tronco parrudo e o
puxa na direção contrária.
O capelobo despenca deitado no chão, distante de nós, e Aurora está atrás
dele. É ela, portando uma fisionomia dura, quem segura o fio de luz prata em
punhos cerrados que prende a criatura. Seu olhar severo nos atinge de
imediato.
Zaph apenas anui e volta a correr pelo corredor adjacente, em direção à
porta vermelha por onde viemos.
— Alice!
— Alice!
— Oi, oi! — Minhas primas Luiza, uma morena alta e talvez magra demais,
com olhos cor de mel, e Lia, tão alta quanto, porém loira dos olhos verdes,
vêm sorridentes até mim, com seus pratos descartáveis na mão, enquanto eu
estou diante da churrasqueira esperando pelas carnes.
Por que tem tanto nome com “L” na minha família?
Eu não tenho muito papo com elas, são mais do tipo modelos que estudam
engenharia civil e acompanham How To Get Away With Murder.
— Tudo bem, meninas? — pergunto, mais para demonstrar que também sei
ser educada.
— Tudo sim! — Luiza responde, animada.
— Tirando a faculdade, que está matando a gente — Lia complementa,
olhando para a prima.
— Argh! Nem me fale. — Luiza gira os olhos. Elas não são irmãs, mas têm
quase a mesma idade e conseguiram passar para UFRJ no mesmo período.
— Já quero férias!
— Mas, uma coisa que eu quero perguntar é: — Lia inclina-se para mim,
com os olhos verdes esbugalhados e um sorriso travesso no rosto. — Quem
é o cara que você trouxe?
Uma leve brasa se acende no meu âmago.
Espero que eu não tenha deixado isso claro no meu rosto. Minha vontade é
responder: “um vampiro que vai tirar suas tripas na primeira oportunidade”.
Mas não digo isso. Eu poderia, até deveria, mas não digo. Pelo visto elas
não sabem que ele matou nossos avós. Em vez disso, eu falo:
— Um amigo meu. Ele não tinha com quem passar o Dia das Mães, então
eu...
— Quantos anos ele tem? — Lia insiste, os olhos brilhando. O suficiente
para ser a reencarnação do nosso bisavô.
— Vinte e dois — respondo, tentando não trincar a mandíbula e ser muito
rude.
— Olha, ain, não aguento mais, vou ser bem honesta...
Antes que Luiza continue, eu libero um suspiro cansado e interrompo:
— Não, não estamos juntos. Sim, somos apenas amigos. E sim, ele ficaria
com vocês. Com as duas se quiserem. Ao mesmo tempo. — Como ambas
permanecem me encarando, eu esclareço: — Ele é muito safado. E abusado.
Aproveitem.
Elas me fitam com as sobrancelhas levemente erguidas e com seus pratos
próximos ao peito. Será que eu deixei transparecer minha irritação?
— Que faculdade ele cursa? — Luiza pergunta e Lia se vira para ela.
— Talvez ele possa ajudar a gente em...
— Anatomia? — Ambas soltam gritinhos e dão um pulo de susto quando
Zaph, um palmo e meio maior que elas, põe seu rosto bem no meio das duas.
— Disso eu entendo bastante.
E lá está o sorriso libertino de Zaph, em total contraste com a minha face
retraída. Se controla, Alice.
Minhas primas estão vermelhas e não desviam a atenção dele, apenas se
afastam um pouco, mexendo nos cabelos e escondendo os pratos. Ok, já
posso deixar que a suruba aconteça e ir pegar minhas carninhas malpassadas.
Por que esse sentimento de... Urgh! A quem eu estou tentando enganar?
Estou me remoendo de ciúmes.
Não me lembro de algum dia ter sentido tanto ciúme assim. Entretanto,
estou mais enfurecida ainda com Zaph por ser tão descarado! Mas por que
ele não seria descarado, não é? Ele é solteiro, tarado por natureza e não sabe
o que eu sinto.
Como assim “o que eu sinto”?
Ai meu Deus, o que eu sinto?
Eu não estou apaixonada pelo Zaph, estou?
Um arrepio interno, daqueles que não se exteriorizam, mas nos faz tremer
do mesmo jeito, percorre toda a minha coluna.
Será que eu tenho um pé na psicopatia? Porque para estar fodidamente
apaixonada por um vampiro-estrangeiro-matador-de-velhinhos, eu realmente
devo ter.
Eu estou fodidamente apaixonada pelo Zaph?! Tem certeza de que não é só
um tesão da porra? Um tesão por um amigo? Não, não. Paixão é uma coisa,
amor é outra, eu não acho... eu nunca me senti assim. Isso é amor ou paixão?
Meu Santo Advil, saber na teoria é tão mais fácil do que na prática. Tá,
pensa, Alice. Não, não pensa: sinta. Isso, pensa no que você sente. Isso tá
certo?
— Alice? — Seu chamado me desperta e pisco algumas vezes, voltando à
realidade. Vejo Zaph, Lia e Luiza me observando com expressões dúbias.
Ele movimenta o queixo, indicando algo atrás de mim. — As carnes.
Ah, ah é. Churrasco. Isso. Carne. Comer Zaph. Não! Carne, comer carne!
Ai, Tupã do céu, que nó na cabeça.
D
epois de pegar uma quantidade de carne malpassada que dava para
alimentar três pratos para tigres tristes por três trimestres, fui me
sentar em uma das cadeiras enfileiradas bem quando Igor chegou.
Assim que termina de falar com a cambada de tios – já ligeiramente
bêbados –, ele vem até mim, despeja um beijo no topo da minha cabeça e se
senta ao meu lado.
— E aí, mana? — Meu irmão estica a mão para o prato em minhas mãos.
— Nem pense! — bato em seu dorso e ele recua com um sorriso. — Como
anda os preparativos pro casamento?
Sua réplica é apenas um bufar de olhos arregalados e eu rio.
Aviso que vou pegar um pouco de refrigerante para nós e o deixo
encarregado de vigiar a comida pouco antes de flagrá-lo tentando surrupiar
uma carne. Haja sal, cruz credo.
Eu gostaria de ser vegana, juro, mas eu não saberia viver sem uma bela
alcatra.
Eu me curvo para retirar a garrafa da prateleira...
— Você está chateada? — AI CACETE! Dou um pulo de susto, quase
batendo a cabeça na geladeira, mas evito que o refrigerante caia.
Solto um suspiro de olhos fechados e me viro sem olhar para o vampiro
atrás de mim. Eu não estava, mas agora que ele pergunta, eu me lembro do
porquê e o ligeiro mau humor retorna.
— Estou. — Resolvo não omitir. Enquanto isso, eu passo por Zaph em
direção à mesa no centro, onde deixei os copos. Começo a fazer força com
os braços para abrir a tampa. Urgh! Que coisa dura! Quem fechou isso? O
Shrek?
Zaph a toma da minha mão e a abre em dois segundos, provocando o ruído
de gás sendo liberto.
— Por quê? Por ciúmes? — diz ele, um tom zombeteiro em sua voz.
Pensar que Zaph, nos seus trezentos e quatorze anos, deve ter comido
mulheres em mais de trezentas e quatorze posições e locais diferentes, faz
meu interior rugir.
— É. É ciúme, ok? Mas do que isso adianta, Zaph? — Continuo
carrancuda, com raiva de mim mesma, enquanto foco no líquido sendo
derramado no copo. — Nós não temos direito algum sobre o outro, eu não
sou sua dona. Faça o que quiser.
— O que eu quiser? — Ai, Jesus! A raiva some no instante em que um
calafrio me percorre. As mãos ásperas de Zaph pesam em cada lado da
minha cintura pequena, e sua estrutura enorme se assoma às minhas costas.
Meu coração perde uma batida e tento me concentrar no refrigerante para
não o derramar. Eu estava prestes a censurá-lo, mas minha respiração fica
presa, sinto borboletas no estômago quando Zaph guina-se por cima do meu
ombro direito. Sua boca pareia-se ao meu ouvido. — E se eu disser que
você é a única que eu quero?
Calma, útero, se acalme.
Engulo o coágulo imaginário na minha garganta, depositando a garrafa na
mesa antes que uma catástrofe aconteça. Não treme, Alice, não treme. O
Zaph só está acariciando a parte posterior da sua orelha com o nariz, é só
o hálito dele tocando seu pescoço, as mãos dele só estão segurando sua
cintura... Ah, merda. Minhas pernas bambeiam um pouco e me apoio na
mesa, fechando os olhos para recuperar a compostura.
— Zaph... — Eu pretendia alertá-lo, mas minha voz sai como um gemido
ao sentir o maldito vampiro mordiscar meu lóbulo e toda a minha intimidade
se contrai.
— Eu quero você. Aqui, agora, em qualquer lugar, a qualquer hora. —
Zaph passa uma das mãos vagarosamente pela minha barriga e inspiro fundo,
tentando não sucumbir, porém cometo o erro de segurá-la. Quando nossos
dedos se tocam, um curto-circuito acontece. — E eu não me refiro apenas ao
sexo, Alice.
Zaph continua depositando beijos lentos e úmidos em minha orelha, minha
jugular, e meu corpo filho da puta se rende a cada segundo. Meus seios
incham, desejando seu toque. Zaph entrelaça seus dedos nos meus e eu
permito, devorando cada detalhe.
— Eu quero poder segurar sua mão na minha e me sentir completo, sem
remorso. Ficar ao seu lado sem ter que reprimir minha vontade de te mimar,
de te fazer rir, de limpar suas lágrimas. Eu não me importo de esperar, tenho
bastante tempo. — Ambos soltamos uma risada, mesmo com a voz rouca
dele nublando um pouco meus pensamentos. — Mas a cada dia que passa eu
fico mais ansioso. Eu sei que você quer isso tanto quanto eu. Vă rog.
Outra vez, decido tomar a atitude mais estúpida, graças aos meus
hormônios traíras, e giro nos calcanhares, parando de frente para Zaph. Seu
corpo prensa o meu contra a mesa e eu seguro seu queixo fragilmente,
degustando da sensação dos pelos de barba crescendo nas pontas dos meus
dedos.
— Pedir em romeno é golpe sujo — digo baixinho. Mal há espaço para
respirar, e quando eu o faço, o ar vem quente.
Ele libera uma risada curta, quase esfregando o nariz no meu, e sua franja
resvala na minha testa.
— Se você me quer tanto assim, por que deu bola pra elas? — pergunto.
— Eu fui brincar com você, mas você deu as costas e elas começaram a
falar... Eu não vi nenhum mal em conversar um pouco.
Zaph me encasula com seus braços longos, me estabilizando com suas
mãos largas, firmadas na minha cintura. Que mal teria se eu desse um beijo
nele, não é? Só um beijinho.
— Eu não quero estragar nossa amizade — confidencio, minha boca
próxima da sua, nossas testas a milímetros uma da outra. O que eu disse é
uma meia verdade. Não é o único motivo, mas não consigo pronunciar o
outro.
O ar parece cada vez mais quente no ínfimo espaço entre nós, e eu só
consigo focar nos lábios de Zaph, tão perto e alcançáveis.
— Não vai — ele responde, no mesmo tom de sussurro carinhoso e lascivo
que eu. Seu timbre grave reverbera pelo meu corpo e quase solto um gemido.
Seu hálito mexe com meus nervos. A sensação que tenho é que meu peito
poderia explodir em luz e cor, e eu nem me importaria. — E além do mais, o
que é um relacionamento senão uma amizade com sexo?
Eu acabo rindo perto de sua boca.
— Acho que não é bem por aí.
Eu não quero alimentar falsas esperanças, pois, no fundo, sei que somente
eu serei a responsável caso me machuque.
— Eu sei. — Sua voz roça como veludo em minha pele e arrepia meu
interior. — Minha mãe um dia me disse que estar junto é entregar tanto
quanto receber, mas sem esperar receber e confiar ao entregar.
Odeio como ele fala as coisas certas nas horas erradas.
Zaph não é Rafael, eles são completamente diferentes... E já faz tanto
tempo. Mesmo fora da clínica há quase seis meses, será que eu saberia
lidar? A vida não é a mesma de três, dois ou um ano atrás, eu não sou a
mesma de dois anos atrás. Acho que, talvez, esteja na hora de arriscar,
isso faz parte de crescer mentalmente também, não é?
Meio hesitante, mas determinada, puxo devagar seu rosto para o meu e
nossos lábios inferiores se tocam.
— Vamos cantar parabéns, então!
AI, MEU RÁ! A voz estridente e alegre de minha tia se aproxima e eu pulo
de susto. Aparto Zaph com um empurrão bem na hora em que tia Lana
aparece no batente da porta.
Ela sorri para alguém, então volta seu olhar para nós e estagna. Nós dois,
sozinhos na cozinha, a centímetros um do outro, arfantes. Minha tia olha de
mim para Zaph, que esfrega a nuca, e de Zaph para mim, e eu abaixo o olhar.
Dou as costas para ele, limpando a garganta e sentindo minhas bochechas
inflamarem à medida que pego os copos na mesa. Parem de tremer, mãos!
— Vou fingir que não vi nada — ela diz. — Só vim pegar o bolo.
Eu mordo o lábio inferior, coloco uma mecha do meu cabelo atrás da
orelha e faço menção de ir embora. No entanto, sou travada pela mão de
Zaph em meu bíceps esquerdo, e quase derramo o refrigerante.
Levanto o rosto bem a tempo de ver minha tia passar com a travessa do
bolo pela porta, deixando-nos a sós outra vez. Direciono minha atenção
ansiosa para o vampiro e admiro sua feição bem mais austera.
— Eu vou viajar. Por uma semana, mais ou menos. — Mesmo sem querer,
meu coração se contrai. — Posso ao menos te dar um beijo de despedida?
Fico quieta, tentando não vacilar de nervosismo, mas aquiesço de forma
rápida.
A mão de Zaph sai do meu bíceps devagar, passeando pelo meu braço, até
se encaixar na minha nuca. Meu coração perde todas as batidas possíveis,
não escuto nada, a não ser o seu retumbar nos meus ouvidos.
Quer dizer, ouço minha pulsação e duas vozes histéricas na minha cabeça.
Elas gritam insanamente, cada uma dizendo os prós e os contras daquele
beijo. Zaph aproxima o rosto do meu, envergando-se, e eu fecho os olhos,
tentando mandar as vozes calarem a porra da boca para que eu me concentre
naquele momento.
Sou pega de surpresa quando ele escolhe despejar um beijo leve na ponta
do meu nariz.
Abro os olhos e Zaph se afasta, me deixando sem entender sua ação. Mas a
verdade é que não me importo muito. Sinto meu peito aquecido da mesma
forma.
— Até mais, fată ciudată.
Uma coisa é fato: eu nunca tive uma semana tão parada como a que passou.
Foi bom tirar um momento só para mim. Eu chegava da escola, sob a
quietude solitária usual da casa, fazia meus deveres preguiçosamente, lavava
a louça ouvindo ABBA no fone de ouvido e fazendo meu próprio show,
assistia a alguns animes que havia começado com meu irmão… Mas a
sensação de vazio não sumia. A acromasia ficava sempre à espreita nas
quinas, as vozes sussurrando, só esperando um momento de fraqueza meu,
me consumindo aos poucos sem que eu percebesse.
Assim que meus pais chegaram na quinta-feira, mais tarde do que o
habitual, eu perguntei como havia sido o dia de trabalho, mas notei o quão
cabisbaixos estavam seus semblantes. Com os olhos marejados e sem me
encarar, minha mãe me disse que Luiza havia morrido.
Meu coração entendeu, pois senti uma dor imensa nele, mas meu cérebro
não foi capaz de conceber a ideia. Luiza morreu. Parecia irreal para mim.
Minhas memórias vagaram para o Dia das Mães poucos dias atrás, onde ela
estava saudável e sorrindo junto à Lia. Deus, Lia deve estar devastada.
Meu pai contou que Luiza desapareceu assim que saiu da faculdade. A
polícia disse que ela foi encontrada num beco, horas depois. Os exames
apontaram sinais de estupro.
Eu fiquei tonta. Mas não havia terminado. Gabriel revelou que o agressor
não tinha somente a estuprado, mas a esfaqueado antes, cometendo um ato de
necrofilia. Meu estômago deu voltas.
Eu queria apenas dormir até despertar e tudo não ter passado de um
pesadelo. Mas não era. Era real e eu precisava lidar com isso.
Eu devo ter acordado umas três vezes no meio da noite, suando, arfando,
com a boca seca e o coração rimbombando sem cessar. Na última vez em
que despertei, eu já estava exausta. As malditas cenas do meu passado na
clínica, observando e ouvindo Bianca e Felipe, confundiam-se com as
imagens que criei de Luiza no beco, então abracei meus joelhos e chorei o
mais baixo possível, para não acordar meus pais. Havia uma tempestade
dentro de mim e eu não sabia como pará-la.
Na bela e ensolarada sexta-feira, enquanto meus parentes se reuniam de
novo, mas dessa vez para mais um funeral, eu estava apenas um caco na
escola. Eu chego em casa só o bagaço do bagaço. Sem forças, eu apenas
quero tomar um banho para tentar sair um pouco do estado de letargia. No
entanto, assim que fecho a porta de casa, meus pais já estão na sala.
Gabriel está sentado no sofá mais largo, o corpo torcido para trás a fim de
me fitar com os olhos verdes, sérios, mas amáveis. Já Heloise está sentada
na poltrona adjacente, a cabeça baixa, os lábios contraídos e remexendo as
mãos.
— Sente-se, Alice. Gostaríamos de contar algo a você.
Por que eu estou com essa sensação ruim?
Deixo a alça da mochila escorregar pelo braço até que ela atinja o chão
perto do pé do sofá, mas não me sento.
— Por favor, antes de tudo, — Gabriel começa, sua expressão de
investigador estampada no rosto. Detesto quando ele a usa em mim —
pedimos que ouça o que temos a dizer. Sua mãe e eu, tudo o que fizemos até
agora, as verdades que não revelamos, foi pela sua segurança, filha.
Podemos ter errado em algumas coisas, mas tudo o que fizemos foi pensando
no seu bem. — Vejo sua mandíbula se tensionar, e meu estômago embrulha.
Está vindo. Sinto como se eu estivesse no mar, meus pés fincados na areia,
vendo uma onda enorme se aproximar, mas incapaz de me mover. — Nós
viemos de uma linhagem antiga, quer dizer, sua mãe vem de uma linhagem
sanguínea antiga...
— A linhagem do Drácula — minha mãe cospe, como se não conseguisse
reter mais. Eu redireciono meu olhar para ela e vejo seu rosto me encarando
fixamente, uma fisionomia sofrida.
Meu coração martela, parecendo assimilar tudo mais rapidamente. Melissa
estava certa. Quando me revelou sua suspeita, ela disse que só poderia
comprovar caso provasse do meu sangue, mas se recusou a fazer isso e eu
não a forcei. Do mesmo jeito que decidi não forçar a confissão dos meus
pais, esperando pela iniciativa deles.
— Não pretendíamos manter segredo por tanto tempo — minha mãe volta a
falar. Meu peito parece bater lentamente, e estou um pouco zonza. — Só que
o medo foi crescendo, conforme seus primos e tios foram morrendo...
— Preciso admitir que, até certo ponto, eu concordava, mas chegamos em
um nível onde as coisas estão difíceis de ficarem sob controle. Você vai
fazer dezenove anos, é preciso que a verdade seja revelada logo, antes que a
situação piore.
— Você é a última descendente do Drácula.
Quem fala não é minha mãe ou meu pai, mas Zaph, que aparece no meio do
corredor, atrás de Gabriel. Seus braços estão cruzados e sua expressão é a
mais sombria que eu já o vi usar. O carniceiro está de volta, a diferença é
que parece ainda mais corpóreo.
— Zaph! — minha mãe ralha, encarando o vampiro parado no arco de
entrada da sala. — Não era para contar assim!
As palavras voam pela minha cabeça, se repetindo incessantemente, até
que não pareça maluquice. Última descendente do Drácula. Meu pulso
acelera, fazendo minha respiração se entrecortar.
Eu? Descendente de Drácula? Essa Alice brasileira, toda esquisita? Só
pode ser zoeira.
— Íamos falar devagar. — Meu pai também se vira com as sobrancelhas
vincadas para Zaph. Quero avisá-los de que Mel já havia me introduzido à
ideia, mas não consigo abrir a boca.
— Foram devagar demais — ele diz, cortante. — Tiveram dezoito anos
para contar, eu ainda deixei que tivessem mais tempo.
— “Deixou”?! — Heloise repete e se põe de pé.
Meu pai também se levanta, e eu me perco. Enquanto os três discutem, as
duas vozes que sempre deixam meus pensamentos acelerados estão quietas
dessa vez. Um calafrio me percorre. Isso é um pesadelo. É um pesadelo.
Então, eu me lembro de algo que me destrói. “A família era extensa, é
impossível que todos os descendentes tenham acabado”, Zaph havia dito isso
uma vez. E quando eu perguntei como os vampiros encontravam os
herdeiros, ele disse: “Quando sangram, o aroma é bem único.” Foi no dia em
que machuquei meu dedo e ele apareceu no meu quarto...
— Você sabia. Desde o início — digo, fraca e trêmula, olhando
diretamente para Zaph através da sala. Sua estrutura hirta e sem emoção dá a
resposta que preciso. — Esse tempo todo... — A perseguição à minha mãe…
O desespero por descobrir a verdade irrompe pelo meu peito, fazendo-o
doer e tirar mais uma parcela do meu ar. — Por que não me disse?
— Não cabia a mim, Alice — ele fala, sem nenhum tom amável ou
mudança de postura. Ele evoca uma calma tão letal que me assusta, as
sombras mais uma vez parecem ser meras criadas, prontas para agradar ao
mestre. — Eu sabia que você se sentiria muito pior se soubesse por terceiros
algo que sua própria família deveria ter contado.
Finalmente pisco algumas vezes, desviando o olhar sob um silêncio
fúnebre. Me dói admitir, mas ele tem razão. Se Zaph ou Melissa tivessem me
contado, e não meus próprios pais… É minha culpa. Eu sabia, sabia que
havia algo de errado, que escondiam algo de mim, mas eu não falei nada. Eu
não os pressionei ou insisti. Minha culpa. As vozes começam a voltar na
minha cabeça, sussurrando para que eu fuja. As paredes rodam devagar e o
ar fica escasso nos meus pulmões.
— Então realmente todos, inclusive meu irmão, sabiam, menos eu? —
Vinco as sobrancelhas para ela.
— Você é a mais nova, e também a única que esteve internada.
— E não achou que seria uma boa falar nesse meio tempo? — Eu posso
sentir a hulha acendendo no meu âmago abafada pela dormência. — Eu
estava internada exatamente para aprender a lidar com essas coisas.
— E-eu não sabia como falar — minha mãe revela, a voz falhada. — E no
momento em que eu falasse, vampiros apareceriam para te tirar de mim, eu
não estava preparada para isso, e também estava com medo de piorar sua
situação, eu...
— Drácula… Viorel... — Franzo o cenho, ligando os pontos devagar. De
repente, sinto meus membros pesados e meu interno agitado. — Então, se eu
sou a última descendente do Drácula, também sou…
— A Primus — diz meu pai, assertivo.
A tontura me desequilibra e me amparo no encosto do sofá. Meus dedos
apertam o estofado.
— A primeira... dos Cinco Grandes — digo, mais para mim mesma, para
tentar me convencer. A Primeira dos vampiros, a líder, a...
— Não exatamente — Zaph me corrige. Levanto o olhar incerto para ele,
ainda sério. — Você não é uma vampira.
— Seus genes vampíricos ainda não despertaram — minha mãe responde,
com a mesma expressão consternada no rosto. Ela também é uma
descendente do Drácula. Todos os meus tios e primos que morreram também
são e foram. Minha Sang Hyang. Minha visão falha, turva, meu corpo
amolece.
— Isso só ocorre quando há a maturação — meu pai complementa. — As
pessoas têm idades de maturação diferentes, mas a maioria é por volta dos
dezoito ou vinte anos. Depende do organismo de cada um.
— Os vampiros vão começar a sentir sua presença. — Zaph descruza os
braços, colocando suas mãos nos bolsos. — Assim como eu senti a da sua
mãe.
— E os outros sentiram as dos seus primos — Gabriel conclui.
Suas vozes soam misturadas e abafadas em meus ouvidos. Minha cabeça
roda, meu coração bate irregular e me sinto dormente. Eles não foram mortos
em simples acidentes de carro, ou assaltos ou... Meu Deus, Luiza! Disseram
que ela foi esfaqueada e depois estuprada.
— E-eu... — Minha própria voz trava na garganta, sem ar para continuar.
Mas eu me forço a tentar. — Eu tenho que ir descansar, hoje foi um dia —
inspiro fundo e deixo o ar sair pela boca — pesado.
Solto, com certo esforço, o encosto do sofá, meus dedos doendo pela
rigidez. Vacilante, passo por eles em direção à escada no corredor sem
enxergá-los direito. Tenho a sensação de que tudo está passando em câmera
lenta, mas ao mesmo tempo rápido demais, como se as cenas estivessem
pulando.
Quando começo a subir os degraus, sinto minhas pernas bambearem e meu
coração marreta contra meu tórax. Nos últimos níveis elas fraquejam e eu
quase caio, mas me amparo na parede e continuo a andar, meio trôpega e
tonta.
Minha boca fica seca e os tremores vêm mais fortes, implorando pelos
remédios.
Sinto um vazio cada vez maior dentro do meu peito. Em contraste, minha
mente está cada vez mais ruidosa.
Me jogo na cama e deito em posição fetal, para controlar os tremores e
buscar serenidade. Mas a única coisa que encontro é a dor no meu peito e a
barulheira na minha mente. Meus músculos se contraem e eu me abraço,
fechando os olhos bem apertados.
Vai passar, vai passar, vai passar...
Eu achava que estaria preparada depois do que Melissa dissera, mas
estava errada. Porque, no fundo, eu esperava que ela estivesse enganada.
— Dragostea...
A voz rouca e baixa de Zaph soa num tom preenchido por esmero perto de
mim, então reabro os olhos e o vejo abaixado ao pé da cama. Sua feição
enruga-se enquanto me estuda, seus dedos afagam de leve minha cabeça. Tão
diferente de antes, como pode?
Passo a língua nos lábios e tomo fôlego para falar.
— Zaph... na minha gaveta de cima — minha voz fraqueja — pega uma
caixa de remédio. A verde. Por favor.
Ele prontamente se levanta e vai até a cômoda. Observo suas costas largas
vasculharem a gaveta, mas os mínimos sons me fazem retrair ainda mais.
Aperto os olhos, tentando bloquear a sobrecarga sensorial que parece
alfinetar minha mente e meus ossos. Mais lágrimas escorrem dos meus olhos,
meu maxilar dói de tanto que o travo e começo a tremer de forma compulsiva
e involuntária.
— Alice…
— Só me dê, por favor — suplico em tom baixo, sem querer falar nada. Só
desaparecer.
Como quero desaparecer. Esquecer que tudo isso existe. Esquecer esse
espaço nulo que me corrói por dentro, esquecer cada coisa que me agoniza,
que faz meu coração se constringir. Estou tão cansada de me sentir mal, tão
cansada de representar um fardo para aqueles que amo, tão cansada de
pessoas mentindo para mim, tão cansada desse mundo egocêntrico, tão
cansada de ser uma imprestável, tão cansada de não poder fazer nada para
ajudar aqueles que mais precisam, tão cansada de tentar me convencer de
que eu não tenho a merda de um único motivo para me sentir triste porque
tenho a porra de uma vida perfeita, tão cansada...
Afasto as pálpebras molhadas e observo Zaph, um pouco relutante, abrir a
tampa da caixa, puxar uma cartela e destacar uma parte dela, até cair um
comprimido em sua palma. Ele o examina por alguns segundos e sinto as
lágrimas silenciosas e quentes escorrerem pela minha face nesse meio
tempo. O vampiro desloca-se até onde estou, se agacha e estende o
comprimido. Abro a boca e ele o coloca no final da minha língua.
— Alice... Clonazepam? — Sua voz é aveludada, carinhosa e preocupada.
O que só piora a situação e me encolho outra vez, tremendo rigidamente.
Engulo a cápsula a seco e gemo com a menção do nome.
Zaph se levanta abruptamente, vai até à cômoda e, sabendo o que ele vai
encontrar lá, premo os olhos e mais lágrimas grossas escorrem. Posso ver o
buraco negro dentro de mim com clareza, alargando meu peito à força. Zaph
remexe mais um pouco no fundo da gaveta até encontrar o que procura e
levanta outras embalagens.
— Alice — Zaph se vira para mim com a face transtornada e com uma
caixa de comprimidos na mão —, você tem depressão?
Tento sorrir, mas meus lábios tremulam.
— Tcharam — brinco, a voz embargada.
— Por que não me disse? — Zaph volta e se senta na ponta da cama. Uno
as pestanas quando sinto sua mão acariciar minha cabeça. Sou incapaz de
respondê-lo, há uma pedra áspera bem no meio da minha traqueia.
E agradeço imensamente por ele não dizer mais nada.
Eu rezo, rezo e rezo para o remédio fazer efeito. Tento buscar conforto e
tranquilidade e repito meu mantra de que tudo vai ficar bem. Sinto um peso
ser adicionado na cama e depois um movimento no colchão atrás de mim.
Um braço forte envolve minha cintura e me encaixa em seu tronco, enquanto
a outra mão acaricia minha cabeça.
Aos poucos os tremores passam, minha mente entorpece e abranda.
É A GLÓRIA! JULIA
Pior que isso não me parece uma ideia tão ruim. Mordo o lábio. Tentar
conhecer outros caras poderia me ajudar a descobrir se o que eu sinto pelo
vampiro é uma “paixonite”, uma “paixãozinha”, uma “paixão” ou uma
“paixããão”.
Ótimo, como se não bastasse descobrir que minha linhagem sanguínea
advém de vampiros, eu talvez esteja amando um. Maravilha.
O patamar de cima, além das salas, dispõe-se como se fosse uma ampla
sala de espera, e há o enorme balcão da pipoca. Assim que entramos na fila,
pedimos nossos aperitivos, já que resta algum tempo antes da sessão
começar. Sentamos num dos bancos de madeira no centro do espaço, entre
dois vasos de planta.
— E então, Ju — brinco com uma das pipocas entre os dedos —, cadê os
gatinhos que você falou? — Jogo a pipoca na boca e Julia passa o copo de
Coca-Cola para mim. Relembro rapidamente a breve humilhação que passei
com Jake na frente da amiga dele.
— Abre pra mim? Não sei que merda fizeram, mas canudo nenhum passa
nisso aí com essa finura!
Eu solto uma risada anasalada enquanto mastigo e pego o copo de sua mão,
dando o saco de pipoca em troc... Au! Jesus, que lacre filho da puta é esse?
Ponho o dedo na boca para amenizar a ardência e limpar a gotícula se
sangue. Se minha saliva fosse que nem a de Zaph, já teria dado um jeito no
corte. O que me lembra de comentar com as meninas minha recente
descoberta.
Espera, eu posso pedir para Mel lamber meu dedo?
— E eu não disse que teria garotos. Eu só propus que tentássemos capturar
alguns — Julia comenta, pegando um punhado de pipoca.
— Trouxe sua pokébola?
Ela me envia um olhar afiado e ladino.
— Ela está bem aqui. — Vejo-a dar batidinhas em sua virilha e rio.
— Então vá à caça, minha amiga — digo, repousando o copo gelado no
colo.
— Não precisa. A presa já veio até vocês. — Um rapaz de cabelos loiros
arrepiados num topete e vestindo jaqueta marrom se senta relaxadamente ao
lado de Melissa e ela o encara tão surpresa quanto o resto de nós.
— Suas preces foram atendidas. — Outro indivíduo se aproxima,
marchando em nossa direção e segurando um copo de refrigerante, com uma
mão no bolso da bermuda capri. Este também tem os cabelos em tom
trigueiro, porém lisos, quase caídos nos olhos castanhos, que estão
direcionados à Ju.
— Que tipo de Deus idiota não atenderia às preces dessas lindezas? —
Levo um susto ao perceber um terceiro jovem parar na minha frente.
Uma sensação estranha e nada agradável roda no meu estômago. Dou um
sorrisinho sem graça.
— Bem, princesas, eu sou Michel, e esses são meus primos Maicon — que
está sentado ao lado de uma Melissa meio nervosa — e Matheus. — Ele
aponta para o outro jovem em pé à nossa frente.
— E o de vocês é…? — Michel incita, retornando a encarar uma Ju de
olhos cintilantes.
— Melissa, Julia e Alice. — Ela indica com o dedo, respectivamente.
— Qual filme vocês vão assistir? — Mat pergunta, trocando o peso da
perna e captando minha atenção. Desculpa, querido, mas não vou ceder meu
lugar para você. E sim, vou chamá-lo de Mat por simples e pura preguiça.
— O Deus — respondo por elas. Eu tenho que aprender a calar porra da
boca. Maicon se inclina para frente, os cotovelos apoiados nos joelhos, os
olhos arregalados direcionados para mim.
— Não brinca. — diz ele, animado. — Vamos ver esse também.
Ah, que beleza.
Prestes a passar por uma das portas duplas prateadas da sala que Michel
segura aberta para nós, percebo que falta alguém no grupo. Olho para os
lados e vejo Melissa mais atrás, perto da parede com os cartazes, de punhos
cerrados ao lado das coxas e com uma expressão de quem tenta ativar os
raios lasers dos olhos ou liberar um peido sem fazer barulho.
Vampiros peidam? Que cheiro teria? Não sei se quero descobrir.
— Esperem um segundo — peço, já me afastando.
— E perder o começo do filme? Nem pensar. — Ju se vira para nós, entre
os três jovens, e lança uma pipoca na boca. — Vocês vão fazer o quê?
— Hã, banheiro. Não quer vir junto? — Eu tento fazer um olhar discreto
que diga “vem aqui, caralho”, entretanto Julia parece ignorar e dá de
ombros.
— Meh. Tô bem. Não demorem. — Então Ju nos dá as costas. Cacete,
Julia! Você também, hein! Ela e os meninos entram gargalhando, sumindo de
vista.
Vai ficar tudo bem. É só impressão, é só impressão.
Corro até Melissa e sussurro:
— O que houve?
— Não sei. Mas estou com uma sensação ruim.
— Eu também sinto algo estranho — respondo e ponho a mão sobre o
estômago. — Por que estamos sussurrando?
— Alice, tô falando sério!
— Acha que me refiro à dor de barriga ou aos gazes?! — Olho para cima,
pondero e movimento os ombros. — Bem, talvez possa ser, mas de qualquer
jeito, eu quis dizer que cada vez que olho nos olhos do Matheus, eu me sinto
desconfortável. Como se meus órgãos recuassem e quisessem correr sem ter
pra onde ir.
— Ah, desculpe. Pois é, sinto algo parecido. A diferença é que mexe com
os meus instintos não humanos.
— O que isso quer dizer?
— Isso que me preocupa. Eu não sei. — Ela aperta os próprios braços.
— Eles podem ser outras criaturas?
Ela balança a cabeça em negação.
— Não tenho como saber assim só observando. Algumas criaturas a gente
até aprende a reconhecer, mas não são muitas que tomam formas humanas
que são fáceis de diferenciar.
— Você não consegue reconhecer pelo cheiro?
— Eles estão com perfume demais para o meu olfato sensível. Pode ser
uma tentativa de disfarçar o cheiro da raça.
— Ou são só garotos comuns e estamos com medo por nada. — Comprimo
os lábios e observo minha amiga à frente fazer o mesmo. — O que fazemos
agora? A Ju está sozinha com eles.
— Não exatamente sozinha.
— Ao menos acho que não são Vacors.
— Verdade, eles estão muito racionais para isso. — Ela se empertiga,
ajeita os cachos negros atrás da orelha e me fita profundamente com seus
olhos azuis gelo. — Eu entro na sala e vejo como estão as coisas, se meu
instinto apitar, eu a tiro de lá.
— Tá. Tudo bem. — Eu acho. — Eu espero sua resposta aqui. — Ela
meneia a cabeça e se dirige para a porta atrás de mim. Se há alguém que
pode nos livrar de uma enrascada sobrenatural agora, essa pessoa é a Mel.
Expiro, me dando ao luxo de relaxar um pouco. Não percebi que tinha
prendido a respiração. Alá, que seja só paranoia nossa. Eu não sei se
prefiro que eles sejam vampiros ou simples babacas.
Vai dar tudo certo, vai dar tudo cert…
— Ei.
— Puta que... — Escancaro os olhos ao me virar e me deparar com Zaph
misturando-se às pessoas que transitam pela área das salas banhada em luzes
neons, em meu encalço. — O que está fazendo aqui? — Franzo o cenho e
guino sutilmente para trás. — Ou melhor, como soube que eu estava aqui?
— Sua mãe me falou — ele responde, meio sério, meio tranquilo. — Ela
disse para eu ficar de olho em você.
Não posso deixar de reparar como a camiseta Raglan branca de mangas
pretas se molda ao seu físico. Meu Krishna, eu estou parecendo uma puritana
do século XVIII que não pode ver um pedaço de pele exposta que já
hiperventila.
— A Melissa não te viu. — Era para ser uma pergunta, mas acabou sendo
uma constatação.
Talvez a presença que ela sentiu antes era a dele, mas como não sabia de
onde vinha, achou que era dos meninos. É uma opção.
— Não, não viu. Mas eu a vi. — Um luzir passa por seus olhos e não
consigo identificar que teor ele tem.
Mordo o lábio de apreensão.
— Zaph, eu e Melissa estamos com uma sensação estranha. Talvez seja só
neurose, mas pensamos que, talvez, uns garotos que se juntaram a nós
possam ser vampiros ou alguma outra criatura. Você consegue farejar algo?
Ele vinca as sobrancelhas.
— Eu sou um vampiro, não um lobisomem. Se eles não sangrarem, eu não
tenho como “farejar” nada.
— Não quer tentar falar com Melissa? — proponho, abraçando meus
próprios braços. A mandíbula de Zaph se tensiona e descontrai em questão
de segundos, mas eu consigo perceber.
— Nu. — Sua voz é quase uma trovoada. — Não acho que seja o
momento.
— Vocês não conseguem deixar suas diferenças de lado agora pelo bem
maior? — pergunto um tanto chateada.
Zaph não responde, apenas inspira fundo e iça o queixo, estudando o local.
Logo abaixa o foco para mim outra vez.
— Eu vou vigiar de longe, não se preocupe. — Ele passa pelo meu ombro,
se dirigindo a algum lugar sem nem me dar tempo de rebater. Observo-o ir,
sentindo um desconforto no cora...
— Alice? — A voz doce de Melissa vem de trás de mim e me viro em sua
direção. Ela me chama da porta, com um sorrisinho na boca fina. Ou eu acho
que aquilo é uma tentativa de sorriso.
— Tudo limpo. — Ela franze a testa enquanto caminho em sua direção,
ainda esfregando meus braços. — Ao menos por enquanto.
Mel empurra mais a porta para me deixar passar. A escuridão da rampa de
acesso me cerca conforme avanço pela subida coberta por carpete e a porta
pesada se fecha atrás de mim. Fico parada, esperando Melissa, e minha
visão se acostuma ao ambiente para eu não sair caindo por aí. Até esqueci o
número dos assentos.
Olho para as poltronas procurando Ju e vejo-a acenar sorridente. Os
rapazes estão sentados próximos, de maneira a alternar “casais”, pulando
carteiras entre mim e minhas amigas. Droga.
À medida que chegamos perto, me dobro para não atrapalhar a visão dos
outros e Ju ri de algo que Maicon diz. Melissa, à minha frente, tenta retribuir
o sorriso de Michel quando passa e se senta, e Matheus suspende as pernas
para que eu passe e me sente ao seu lado.
Um frio na barriga me toma. Zaph está lá fora e eu estou aqui dentro,
escapando dos flertes de um cara. Afundo no couro da poltrona.
— Você demorou lá fora — Matheus sussurra, quase inocentemente, em
meu ouvido. Espero que Zaph não veja. Mas, ao mesmo tempo, quero que
sinta ciúmes de mim.
— Encontrei um conhecido.
Zaph, Melissa e eu tínhamos razão. Não sei os outros dois, mas Matheus
definitivamente é um vampiro.
Como eu sei? Percebi isso no momento em que ele se ofereceu para me
acompanhar até o banheiro na metade do filme e, apesar de um tanto
desgostosa, aceitei. E foi quando encaixei minha mão da sua, conforme
descíamos a escada lateral, que notei sua temperatura oscilante.
Um frio súbito me percorre. Eu estou sendo levada para baixo, pela rampa
de acesso, mergulhada em um negrume, de mãos dadas a um vampiro
desconhecido.
P
reciso arranjar uma desculpa, não quero morrer aqui. Deuses, não
sei nem se ele vai me matar, talvez ele seja apenas um inocente
Remi. Um Remi Moroi, de preferência. Engulo em seco. Meu
Amaterasu, por favor.
Não consigo enxergar nada aqui, será que já estamos próximos da port…
De repente, sua mão se solta da minha e ouço um urro doloroso ali perto, nas
sombras. Jesus, e se não for um vampiro e ele está se transformando em
outra coisa bem aqui? Instintivamente dou um passo atrás, meu coração
agora socando meu tórax. Escuto o barulho de algo consistente e oco se
quebrar, como vários estalos graves nos nós dos dedos. Será que foi um
osso? Será que é a coluna dele?!
Tomo um fôlego longo e audível quando vejo o corpo de Matheus cair
inerte na minha frente, sob a curta faixa de luz que a tela deixa chegar até ali.
Jogado de bruços no carpete, sua cabeça dobra-se num ângulo totalmente não
natural, a centímetros dos meus pés. Antes que eu possa gritar, uma mão
cobre minha boca.
Minhas pernas tremem, e eu quero chorar. Não tiro os olhos de Matheus, há
uma parte de carne exposta em seu pescoço, de onde verte um rio veloz de
sangue, como se uma besta raivosa o tivesse mordido. Ele… morreu ali,
logo à minha frente? Por essa mesma mão que me silencia?! Dizer que
minhas pernas tremem é eufemismo, elas estão vibrando que nem corda de
violão. Acho que vou fazer xixi nas calças.
O que está acontecendo? Já sinto as lágrimas quentes escorrendo
lentamente pela minha bochecha.
— Fica quieta! — Uma voz ríspida sussurra em meu ouvido. Espera, essa
voz... — Bem, pelo menos os gritos do filme abafam seu choro. Alice,
pentru numele lui Dumnezeu, fica quieta!
Zaph afrouxa a mão quando eu paro de soluçar e eu a pego com a minha,
abaixando-a para girar e encarar as íris escarlates na escuridão.
— O que você pe-ensa que está faze-endo? — falo, fungando, um pouco
irada e me recuperando aos poucos. Meus ouvidos ainda zunem e me sinto
cambaleante pela pressão baixa. Ele inclina a cabeça e sua mão livre, a que
eu não estou apertando loucamente, limpa meu rosto das lágrimas.
— Melissa estava certa. Eles são vampiros.
— O-os três?
— É. Os três. — Eu quero perguntar como ele sabe, mas apenas consigo
soluçar, tentando recuperar o fôlego, enquanto olho assustada na direção da
rampa de acesso. — Ei, ei, — Zaph pega minha outra mão trêmula e a
aperta, atraindo minha atenção — escuta...
— Precisamos tirar elas de lá. A Melissa é uma vampira, mas a Ju não. Eu
vou até lá. — Dou um passo para correr em direção a… Zaph me impede de
me mover, mantendo minhas mãos nas suas. Me viro para ele, apressada e
transtornada. Vejo sua feição aflita clareada pela luz parca da tela.
— Você não pode ir.
— Zaph, eles não sabem que eu sei. — sussurro, meu coração batendo
depressa.
— Isso não vai impedi-los de tentarem te atacar. — O grito que a moça no
filme dá atrai minha atenção por alguns instantes.
— Têm milhares de pessoas ao redor, eles não parecem ser do tipo que
fariam algo assim em público — digo.
— Talvez não sejam Vacors, mas podem ser Strigois.
— O que sugere? Que você vá até lá? — Zaph olha para o lado por um
momento, ponderando.
— Não. Eu não vou conseguir disfarçar meus olhos vermelhos. — Esses
mesmos olhos voltam-se para mim, sua mandíbula tensa, claramente
detestando a ideia.
— Eles não sabem o que aconteceu com Matheus. Isso vai me dar tempo
para tirá-las de lá e você poder acabar com a raça deles se quiser.
Não espero sua resposta e dou as costas, sabendo que se Zaph realmente
quisesse, ele poderia me impedir com facilidade.
Subo as escadas laterais até as poltronas e paro na nossa fileira, tentando
não mostrar meu nervosismo.
Tento atrair a atenção da Mel como se eu chamasse por um gatinho,
acenando com os braços e fazendo “psiiiiu”. Só que, para o meu azar, meus
gestos discretos não funcionam. Assim, parto para a agressão e faço um
miniescândalo, falando alto o suficiente para que minha voz pareça um berro
na sala silenciosa. Todos do grupo olham para mim, e até mesmo outras
pessoas. Sorrio, sem graça.
— Er, posso falar com vocês duas um minutinho?
— Cadê o Matheus? — Maicon, ao lado direito de Ju, pergunta de
ultimato. Cruzamos o olhar e… merda. Merda, merda, merda! O que eu
falo?! Zaph não deveria ter confiado em mim para fazer isso.
— Vou procurá-lo — ele diz, com o olhar um tanto sisudo fixo no meu, e
caminha sem se importar se sua altura atrapalha a visão alheia.
Empurro o nó na minha garganta para baixo e dou um passo atrás. Uou!
Droga, esqueci que estou na escada, pisei em falso. Aproveito esse erro dos
meus pés e corro em direção à porta. Mais precisamente em direção ao…
cadê o Zaph?!
Olho para os lados e busco por ele nas sombras. Até o corpo de Matheus
desapareceu – ao menos não está onde eu possa enxergar –, porém, ao olhar
para trás, só encontro o olhar faminto de Maicon, que se aproxima sério e de
punhos fechados. Ai, cacete! Fodeu! Na penumbra, suas íris castanhas ficam
ocres e laranjas.
Um tremor trespassa meu corpo, me obrigando a dar passos para trás,
tateando o ar em busca da porta. Maicon tropeça em algo e desvia o olhar
para baixo, vendo o corpo do amigo no chão. Maicon ergue a cabeça para
mim com os olhos rubros.
Milésimos antes de eu puxar a porta atrás de mim e correr para fora da
sala, vejo mais um olhar escarlate aparecer no canto do corredor largo e ir
para cima de Maicon, levando-o para o outro lado escuro da rampa e o
encurralando com um baque contra a parede. A acústica da sala abafa a
pancada na parede de feltro carvão. Quando a figura aparece na luz da tela,
noto ser Zaph. Ele pressiona a garganta de Maicon com o antebraço, a fúria
retorcendo sua face, e mostra suas presas como um animal selvagem.
Sentimentos conflitantes fazem meu coração bater forte: a preocupação por
Zaph e a animação por presenciar tal embate. O rosto de Maicon se contorce
de dor e raiva, e ele também mostra os caninos afiados e tenta,
desesperadamente, tirar o braço de Zaph que o enforca. O terceiro dentre os
Cinco Grandes agarra Maicon pela blusa, o arremessa sem esforço para o
outro lado da rampa e desaparece nas sombras.
Acho que posso aproveitar essa brecha para passar por eles e ver se está
tudo bem com Ju e Melissa, que ainda estão com Michel.
Me esgueiro pela parede oposta à de onde eles estão se engalfinhando,
apenas escutando sons de socos, grunhidos e mais alguma coisa que não
consigo identificar. Eles parecem se movimentar entre os flashes de luz da
tela do cinema, até que… Os olhos vermelhos e os caninos afiadíssimos de
Maicon surgem na minha frente. Ele se inclina sobre mim, como se quisesse
me alcançar. Não há tempo sequer de gritar. Logo Maicon é puxado
novamente para a escuridão, mas é o suficiente para travar minha mente
naquela imagem. Eu perco o equilíbrio e tropeço nos meus pés.
Não consigo escutar nada além do meu próprio batimento cardíaco e mal
sinto minhas pernas de tanto que elas tiritam. Um líquido quente escorre
pelas minhas coxas, por debaixo do vestido.
A imagem daqueles orbes carmesim se soma à figura do capelobo diante
dos meus olhos. A trilha sonora do filme soa baixa em meus ouvidos e
aumenta a tensão em meus músculos. Miro as sombras na rampa da porta
com expectativa, para ver qual deles sobreviveu. Nenhum barulho vem de lá.
Mas como se soubesse sua deixa, finalmente há um ruído.
Lentamente, a cabeça Maicon aparece rolando no carpete plúmbeo sob a
luz da tela. Ela para quando bate de leve na ponta do meu tênis, manchando a
borda branca de sangue. Jeová... ele… ele… O miasma acre de sangue
invade minhas narinas de imediato. Meu estômago se contrai, minhas
têmporas latejam, meu coração bate devagar. Não consigo desviar os olhos
da cabeça decepada de Maicon aos meus pés. Minha calcinha está ensopada
e minhas coxas úmidas de urina.
O pescoço dele está completamente rasgado, e posso ver nitidamente os
fiapos de carne e pele. Os olhos vermelhos revirados para cima, a boca
escancarada, mostrando as presas afiadas e o sangue que escorre delas e
desliza pela bochecha. O líquido gosmento que espirra dali forma uma poça
cada vez maior.
Seguro a náusea com a mão por cima da boca.
Todo o frio do ar-condicionado me invade repentinamente, enrijecendo
minhas juntas. Sinto uma mão quente e grande envolver meu bíceps, me
içando e me obrigando a ficar de pé, mesmo assim não desvio o olhar da
cabeça decapitada.
— Alice — a voz de Zaph sussurra perto do meu ouvido e me chama a
atenção. Eu viro o rosto, ainda sem piscar, e encaro seus olhos rúbeos na
penumbra. Sangue escorre de sua boca, há arranhões em seu rosto e manchas
em sua blusa branca. Noto, ainda um pouco débil, que ele esfrega meus
braços. — Fique aqui.
— A-a-aqui? — digo, apesar do meu coração estar batendo absurdamente
mais rápido, sem eu sequer ter notado. — Pe-pe-perto desses cadáveres?
— Só um pouco. Vai ser rápido. Prometo.
— Por favor, não me deixe aqui sozinha. — Olho para Zaph, mostrando em
meus olhos e em minhas mãos, que simplesmente não se sentem confiantes o
suficiente para soltar a blusa de Zaph, a súplica desesperada. Campos
Elísios, estou apertando tanto sua roupa que meus dedos doem.
Zaph me olha sério, a luz do filme fazendo as sombras marcarem seu rosto
de um jeito sombrio, mas há algo tenro no fundo de seu olhar escarlate.
— Não se preocupe, Melissa já vem.
— Como você sabe? — Eu mal consigo raciocinar no momento. Eu quero
ir para casa. Eu quero me encolher e ficar num canto repetindo que isso
nunca aconteceu até eu esquecer o que vi.
— Ela vai sentir o cheiro de sangue e virá te procurar. Ao menos é o que
eu espero que ela faça.
Zaph desvia a atenção para algo à esquerda, na direção da abertura onde a
rampa termina e a luminosidade da tela começa. Meu tórax começa a doer,
minha respiração falha e estou tendo outra crise. Que ótimo.
— Eu vou esperar lá fora — digo quase num sussurro introvertido, ao
passo que me distancio aos poucos de Zaph. Sinto que meu peito pode
estourar a qualquer minuto pela falta de ar, e prevejo a tonteira que se
seguirá. Solto sua blusa, ainda com as mãos bambas, e faço menção de
correr trôpega até a saída. Ó, Céus, eu vou ter que passar pelos corpos de
Maicon e Matheus para sair da sala. De repente, tudo ao meu redor se torna
vívido e barulhento demais: os gritos do filme, o odor pungente de sangue e
a viscosidade dele sob meus pés... Uma ânsia de vômito rebuliça meu
estômago e minha visão turva.
Uma mão grande me ampara antes que eu possa despencar. Não preciso me
virar para saber que é Zaph quem me segura e me puxa para si, até eu me
encostar em seu peito.
— Não posso deixar que você saia. — O tom de Zaph não dá margem para
dúvidas. Por favor, me deixe ir embora. Eu preciso sair daqui, eu preciso ir
embora... Mais lágrimas rolam ao sentir a noradrenalina crescer por não
poder escapar. Elas nublam minha visão na penumbra, me fazendo enxergar
menos do que eu já enxergava. — Não posso arriscar perder você de vista,
pode haver outros lá fora. Peça à Melissa para te levar para casa. Ela não é
uma das Cinco Grandes, mas pode te proteger enquanto eu estiver fora. —
“Estiver fora”?
Me torno rapidamente para ele, me livrando do torpor aos poucos.
— Aonde você vai? — Meu coração dá mais um pulo doloroso e fecho os
olhos por reflexo quando Zaph pega meu rosto nas mãos e beija meu nariz.
Isso não ajuda meu coração a desacelerar ou o ar a voltar para meus
pulmões.
— Alice, você tá...? — As mãos de Zaph saem e, quando separo as
pálpebras, olho para o lado e vejo uma Melissa petrificada. Ela segura o
pulso de Julia, que tropeça e olha primeiro para o chão. Seus olhos se
arregalam e então ela os levanta em minha direção, depois para Zaph ao meu
lado.
Ele e Melissa se encaram, os olhos da minha amiga, cravados no vampiro,
se tornando cada vez mais rubros.
— Mel, vamos embora, por favor — rogo, minha voz embargada pelo
choro descomunal prestes a irromper e o ar me faltando cada vez mais. Me
abraço até minhas unhas se fincarem em minha pele fria, e a dor me distrai
um pouco da realidade à minha volta.
— O que está acontecendo? O que é isso escorrendo no chão?! Que cheiro
de sangue é esse?! — Julia ostenta uma expressão confusa, abismal,
enquanto Mel puxa-a num solavanco em minha direção. — Esse é o Zaph?
— Depois eu te explico. Precisamos sair daqui. — Melissa para perto de
nós, sisuda e com os olhos escarlates fixos em Zaph. A mandíbula dele se
retesa. — Zaph…
— Tire-a daqui — ele ordena, tão estável quanto ela.
Ambos se encaram em silêncio até Mel pegar firmemente um dos meus
pulsos cruzados sobre o peito e me arrastar na direção contrária, me fazendo
girar e quase escorregar no sangue do carpete. A claridade do lado de fora
me cega por alguns instantes, então me deixo ser puxada por Melissa.
Quando chegou o dia do passeio escolar, pelo qual eu estava tão excitada,
o universo também decidiu que era hora de mandar os primeiros sinais da
maturação vampírica. Eu me senti um telescópio lunar quando, de repente,
me tornei capaz de enxergar os mínimos detalhes. Só tinha um “problema”.
— Todo sintoma tem um “efeito colateral”, vamos dizer assim — impôs
Melissa enquanto lanchávamos sentadas num banco do pátio externo e
arbóreo do palácio de veraneio de Dom Pedro II. Eu mastigava um joelho,
olhando-a atentamente do outro lado do banco, com Julia entre nós. — Na
mesma medida em que você absorve alguma coisa, você expõe alguma outra.
O efeito colateral de você enxergar super bem é a pigmentação em suas íris.
— Elas estão estranhas. Parecem manchadas — Julia pontuou depois de
comer um pedaço de seu sanduíche. — Em alguns pontos estão mais escuras,
tipo verde musgo.
— Relaxa, — Mel continua — dura só uma semana. Geralmente. Bem,
pelo menos é o que diz no Livro.
E esse foi o primeiro. O segundo que noto é minha audição aguçada. Eu
ouvia até mesmo as fofocas mais distantes. Porém, o efeito colateral é ter as
orelhas ardendo que nem o inferno. Pelo menos elas não ficaram gigantes.
Admiro os utensílios antigos em prata, bronze e ouro expostos na vitrine
translúcida e imaculada de uma das mil suntuosas salas em estilo rococó.
Minha ultra visão não poderia ter vindo em uma hora melhor. Eu estou
simplesmente apaixonada pelo palácio. Julia está ao meu lado direito,
conversando com uma guia de aparência elegante, que traja um terninho e
saia azul marinho. Era para ela estar escoltando o comboio de estudantes
com hormônios à flor da pele da nossa escola, mas como minha querida
amiga nada afoita monopolizou sua atenção, quem seguiu com o grupo foi o
outro guia.
— O modo como explicam está totalmente errado! — ela diz e eu tento
prender o riso, fingindo não prestar atenção. — Os indígenas que estavam
aqui não quiseram trocar o pau-brasil por espelhos, não dá pra generalizar
assim. O Brasil é enorme, em cada canto havia uma tribo diferente. Minha vó
vem de uma delas e as tradições passam para nós, sabe. Ela me contou que
nem todas as tribos quiseram fazer escambo, então…
Então eu vejo minha amiga ser jogada longe. É tão rápido que não dá
tempo de me surpreender. Ela bate numa parede logo abaixo de uma das
janelas guilhotina e cai sentada no chão, o rosto contorcido em dor.
— Ju! — Um segundo depois, a noradrenalina faz meu coração acelerar e
meu corpo se mov… Dedos longos e finos agarram meu pulso, me
impedindo de seguir até minha amiga, e olho para trás, estarrecida. A guia
loira me segura, seus orbes vermelhos vibrantes. Ah não, cara, até aqui?!
Ela abre a boca e mostra os caninos afiados. Fecho os olhos bem
apertados, encolhendo os ombros. Mas cambaleio ao sentir o aperto ao redor
dos meus pulsos soltar de maneira abrupta.
— Alice! — Separo as pálpebras e vejo Melissa imobilizando-a no chão,
um pé sobre a lateral do rosto contorcido em fúria bestial e as mãos
prendendo um de seus pulsos no alto. Seus olhos azuis e seu rosto denotam
uma autoridade que nunca vi antes. — Pega a Julia e saiam daqui!
Mesmo trêmula, eu corro até onde minha amiga está sentada, com os olhos
arregalados e as costas na parede.
— Vamos, Ju, levanta! — digo, meu coração martelando no peito e
ressoando nos meus ouvidos. Não quero deixar Melissa, mas se eu ficar em
seu caminho só vou atrapalhar.
Agarro a mão de Ju, ainda em choque, e a puxo para cima. Disparamos em
direção à porta dupla de madeira maciça, entretanto, antes de sairmos, eu
dou uma última verificada em Melissa e a vejo ser lançada contra o vidro da
vitrine numa chuva de estilhaços. Preciso ajudá-la… Então a vampira
metida a guia se vira para mim como uma fera raivosa e meu instinto me faz
correr.
Com as pantufas ridículas que nos obrigam a usar, deslizamos pelos
corredores de madeira lustrosa sem muito equilíbrio, nosso coração
rimbombando com força.
— Ei, mocinhas! Sem correr! — grita um guarda. Trombamos com os
visitantes, os guias e os seguranças, que ordenaram que parássemos. No
entanto, o terror de ter uma vampira sanguinária atrás de nós era maior do
que o de ser expulsa do museu.
Os corredores são longos e labirínticos demais, todos malditamente iguais.
Adoro arquitetura clássica, mas eu estou pouco me fodendo para o quão
ostensivo eles são nesse momento! Minhas pernas tiritam de fadiga, o
impulso de adrenalina diminuindo pela carência de nutrientes e ar.
Sou obrigada a parar numa trifurcação, ofegante. Ju ainda tem sua mão
colada à minha, então a encaro. Ela está tão esbaforida quanto eu. Olho para
trás, na esperança de ver Melissa nos acompanhando. Meu coração dá uma
cambalhota ao avistar a Modicus, uma classe intermediária, no entanto
provavelmente Strigoi, avançando em nossa direção com ira em seus olhos
escarlates. Merda!
Julia me tira do transe e da inércia quando me puxa.
— Por aqui!
Acho que eu teria preferido as orelhas gigantes. Viver uma perseguição é
muito menos divertido do que os filmes fazem parecer.
Subimos uma escada que estava interditada por uma corda dourada. Eu
arfo sem parar, sentindo dor na lateral do abdome. Ah, a falta de exercícios.
No meio da virada da escada…
— Ah! — grito quando sinto meu rabo de cavalo ser puxado para trás,
alfinetando meu crânio.
Por reflexo, solto a mão de Julia, que gira apavorada para me olhar,
enquanto as unhas afiadas da vampira agarram meus braços e me arrastam
para baixo com ela.
— Te peguei. — Sua voz rouca devido à fome se esfrega em minha pele e
faz lágrimas brotarem em minha vista.
O terror nos olhos arregalados de Julia me atinge, meus batimentos
cardíacos como sinos de catedrais, contando os segundos da minha morte
iminente. Estranhamente, o que mais temo é a tristeza que causarei a ela se
eu morrer na sua frente. Eis que sinto as mãos da mulher soltarem meus
ombros, o que me desequilibra e me faz rolar escada abaixo.
— Urgh! — gemo com os dentes trincados, toda dolorida da queda e
deitada de costas no chão. Minha cabeça lateja e roda, me deixando
desnorteada. Já morri? Não, ainda não, estou sentindo uma puta dor na…
Abro os olhos num rompante, preocupada em baixar a guarda, e me ergo nos
cotovelos, a costela ferroando. Logo à frente, pouco depois das minhas
pernas abertas, visualizo o corpo inerte da vampira no meio do carpete cor
de romã que cobre os degraus da escada e Melissa de pé ao lado. Ela ofega,
o peito desce e sobe, a boca e os dedos sujos de sangue. Julia também arfa,
segurando-se no corrimão. Nós três nos entreolhamos e ouvimos ao longe as
vozes exasperadas dos seguranças e professores se aproximando.
Zaph corre pela via expressa na velocidade em que meu coração retumba
no peito. Os vidros estão fechados para evitar que o cheiro de sangue e o
cheiro que eu libero exalem livremente. No entanto, isso só faz Zaph ficar
mais tenso, enclausurado de maneira torturante. As mãos embebidas de
sangue estão travadas no volante, seus olhos rubros estão cravados na
estrada, mas toda a sua postura não mostra ira, é... outra coisa.
— Para o carro — comando.
— Não posso, virão atrás de nós. — Seu timbre é baixo, certeiro.
— Pare o carro, Zaph. — Aumento meu tom de voz.
— Não posso!
— PARA ESSA MERDA DE CARRO!
Num movimento súbito, Zaph gira o volante para o lado, me obrigando a
fechar os olhos bem apertados e segurar na porta. Reconheço o som de
buzinas enquanto o automóvel desliza. Após meu corpo ricochetear no
assento quando o Audi estabiliza, eu abro as pestanas e nos vejo no
acostamento. O único som provém dos carros voando pela estrada ao nosso
lado.
Embora sua respiração esteja audível, seu peito sobe e desce devagar. Eu
observo com atenção por um minuto a fisionomia pétrea dele. Eu reconheço
esse olhar abstraído, essa reação. Tiro meu cinto rapidamente e Zaph enfim
ousa olhar para mim.
— O que está fazendo? — Não respondo, apenas me certifico de sair das
amarras do cinto de segurança. — Alice, o que você está...
— Cala a boca. — Me encolho ao passar a perna por cima do freio de mão
e sento em seu colo, de frente para Zaph. Eu beijo seu queixo, seu pescoço, e
Zaph enterra seu rosto no meu ombro, contornando minhas costas com seus
braços. Ele me mantém espremida em si, me abraçando forte por um tempo.
— Eu estive tão perto de te perder…
Sua voz sai abafada pelo tecido do meu casaco.
Eu me obrigo a me afastar, alargando o abraço. Embora minhas pernas
dobradas estejam mega desconfortáveis, eu ignoro a pontada de dor na
canela para fitar Zaph.
— Mas não perdeu. Eu estou aqui. — Ele me estuda. Eu nunca vi tanta
emoção no rosto de Zaph e isso põe meu coração num torno.
Eu o amo demais, mas preciso admitir que vê-lo matar alguém a socos me
assustou. Muito. Eu o assisti matar dois vampiros no cinema, mas naquela
hora a escuridão censurava a maior parte da brutalidade. Ali não. Ali eu
enxerguei ao seu redor aquela mesma aura carniceira.
— Se eu tivesse chegado um pouco depois...
E Zaph não fizera aquilo para se alimentar, mas para me proteger. Suas
mãos agarram minha bunda. O sutil tremor na ponta de seus dedos denota um
desespero para se segurar em algo que o mantenha são. E eu sou sua âncora.
— Mas chegou na hora certa — digo, de forma mansa, acariciando seus
cabelos. — Como o Capitão América.
Ele libera uma risada nasal, mostrando um vestígio de sorriso.
— Prefiro o Batman. — Reviro os olhos. Tinha que ser.
— Tudo bem. Como o Batman — consinto, desdenhosa, mas sorrio para
tranquilizá-lo. Aliso seus cabelos e circundo seu pescoço outra vez. Zaph
inspira fundo, cingindo minhas costas. Adoro ficar abraçada a ele, seu corpo
imenso me acolhendo confortavelmente, mas agora o foco é ele. Em fazê-lo
se sentir confortável.
— Agora sai do meu colo porque estou ficando com tesão e não posso te
comer aqui.
Eu rio, ainda escondida em seu ombro.
— Nem pensar! — minha mãe brame.
Zaph cruza os braços e troca o peso da perna, encarando meus pais de
forma severa enquanto todos nos reunimos na sala.
— Se eu ficar aqui — começo, tão séria quanto o vampiro ao meu lado
direito, de costas para o corredor, e capto a atenção aflita de minha mãe e a
serena de meu pai, ambos de pé no centro — meu cheiro pode e vai atrair os
vampiros. Se levarmos em consideração que nós duas temos o sangue do
Drácula, eu estaria entregando de bandeja mais poder a eles.
— Eu até poderia ficar para proteger vocês — Zaph complementa,
inclinando a cabeça. — Mas duvido que vocês queiram minha presença aqui
vinte e quatro horas por dia durante uma ou duas semanas.
— Deus me livre — Heloise acua.
— Só temos essas duas opções — digo.
Minha mãe comprime os lábios finos, me fitando intensamente com seus
orbes castanhos. Permito que ela tome seu tempo para analisar as
alternativas, na esperança de que ela compreenda a situação.
Ao entrarmos em minha casa, Zaph lavou apenas as mãos, porque as
roupas já estavam em petição de miséria. Não tinham salvação, coitadas.
Mas, momentos antes, ainda no carro, viemos conversando sobre o que
poderia ser feito a respeito desse meu “feromônio”, e essa foi uma das
possíveis soluções: Isolamento.
Por fim, Heloise libera o ar pela boca e move a perna, lançando a mão no
ar. Ela desvia o olhar, o orgulho ferido. Me dói vê-la assim, contudo,
também me sinto feliz em ver que está começando a abrir um pouco mais a
mão do controle absoluto.
— Fazer o quê? — ela resmunga.
Bloqueio um sorriso pressionando os lábios um no outro. Eu finalmente
conheceria a batcaverna!
No entanto, para o meu desapontamento, não foi nada como eu esperava.
Começando pelo lugar que ele vulgarmente chama de apartamento. Por que
vulgarmente? Ora, porque aquilo não é um apartamento, mas sim uma porra
de cobertura de frente para a praia do Recreio! Eu não sei onde fui amarrar
meu burro, mas estou muito satisfeita com o lugar onde ele está.
Quando o vampiro abre a porta do elevador eu quase deixo a mochila cair
junto com o meu queixo. A entrada pela sala de estar exibe uma limpeza e
organização impecáveis nas cores monocromáticas que, depois percebi, se
estendem por todo o ambiente. Há um sofá retangular preto encostado na
parede logo em frente, um abajur alto ao lado exibindo um brilho metalizado
e uma mesa de centro de vidro sobre o piso de porcelanato. Do lado
esquerdo, prateleiras e mais prateleiras de livros, CDs, DVDs, discos de
vinil margeiam o lugar. Um gramofone fica na quina do corredor ao lado das
estantes.
— Essa coisa ainda funciona? — pergunto, analisando o fonógrafo tão de
perto que meu nariz quase encosta a buzina de bronze.
— Sim, essa coisa ainda funciona perfeitamente — o Tertius responde às
minhas costas.
Esculturas de cerâmica enfeitam os móveis lustrosos perto da televisão de
plasma.
— São lindas — digo, esquadrinhando os detalhes em relevo tal quais
relâmpagos dourados cortando a argila do vaso.
— Talvez um dia eu possa lhe ensinar.
Viro meu pescoço para Zaph.
— Foi você quem fez?
Sua réplica é apenas um dar de ombros, detendo de um sorriso ínfimo.
Ai, meu Guaraci, aquilo tudo são videogames?! Alguns pôsteres do Elvis
Presley são iluminados por pontos de luz amarelados ao longo do corredor,
que se liga às suítes, à academia e a mais um lavabo. A cozinha à direita é
dividida da sala apenas por uma bancada de vidro como uma obsidiana lisa
com bancos giratórios e uma parede translúcida que ilumina o local, dando
acesso à área exterior, onde há uma piscina com vista para o mar.
— Eu vou só tomar um banho e vou deixar você aqui — diz ele, os olhos
sempre variando de cinza para amarelados. — Não abra a porta. Para
ninguém. Se mantenha longe das janelas. Por favor. — Noto sua mandíbula
se retesar antes de continuar. — Fique à vontade, tem comida na geladeira e
nos armários, mas não muita. Eu vou repor depois. Aproveite a estadia, mas
não faça bagunça, por favor. E não quebre meu gramofone.
Zaph não me tocou uma única vez. Nem mesmo durante o trajeto de carro.
E, quando paramos de pé no meio da sala enorme e bem iluminada pela luz
natural, ele se manteve a um bom um metro e meio de distância.
Um sorriso quase forçado aparece no canto de seus lábios e eu retribuo
com outro fraco, cabisbaixo. Não há nada que eu possa fazer. Ficar em minha
presença é um suplício para Zaph, então ele vai se manter perto o suficiente
apenas para me vigiar. É só uma semana. Nós conseguimos fazer isso.
— Tudo bem. Vou tentar não incendiar sua casa.
Assim que tudo voltou ao normal, dois alunos novos ingressaram na nossa
turma. Eles se apresentaram como Danilo e Elis, irmãos gêmeos, que de
gêmeos não têm nada. Para não dizer “nada”, ambos apresentam cabelos
castanhos ondulados, pele oliva e olhos castanhos, mas as semelhanças
acabam aí.
Elis é baixa como eu – não sou mais a única! –, mas o garoto é bem alto.
Ela é gorda, mas somente o bastante para atiçar a odaxelagnia nos outros,
enquanto ele é fino como a fatia de cenoura que minha mãe rala para pôr no
arroz. Danilo mantém uma postura parecida com a de Zaph, ou seja, lá vem
problema. Mas a menina assume uma aparência extremamente meiga e
acanhada.
Os irmãos se sentam no final da última fileira à direita, na minha diagonal
e a uns dois renques além de mim. Ficam em cadeiras subsequentes e
cochicham algo entre si, antes que a atenção de Danilo seja roubada pelo
grupo de garotos mais próximo. Elis abaixa a cabeça e se afunda na cadeira,
mexendo no celular. Nenhuma garota vai falar com ela? Olho para as
meninas sentadas na frente dela e nada. Nenhum movimento. Bando de vacas
necessitadas de vibradores.
Meu olhar cruza com o de Elis. Eu lhe envio um sorriso e ela retribui, um
tanto enrubescida. Assim que ela desvia o foco para a tela do celular, eu me
torno para Julia, pousando uma mão em seu ombro e chegando perto. Espero
ela interromper a sua escrita para virar a cabeça de lado e prestar atenção no
que eu vou dizer.
— Devíamos falar com a garota nova.
— Pensei nisso também — implementa Ju. — Nenhuma das garotas foi
falar com ela.
— Ela parece ser legal.
— Vamos pegá-la e criá-la como se fosse nossa! — Ju ergue seus braços e
dá dois tapas em cada bíceps nada musculosos. — E essas duas montanhas
vão protegê-la daquelas vacas que não sabem nem mugir direito.
— Desculpa, mas a menina nem pôs os pés direito na sala e você já quer
adotá-la? — Melissa se intromete na conversa, sussurrando da outra fileira à
esquerda.
— Claro, olha que coisinha mais fofinha, môdesu — Ju responde, como se
estivesse falando de um bebê.
— Achei que só eu tinha notado — Melissa retruca.
— Ih, minha filha, nada escapa desses olhos de águia aqui, ó.
— Hoje você tá muito animalesca — diz Mel, sorrindo.
— Reaw. — Julia imita as garras de uma tigresa com uma piscadela.
D
urante o intervalo entre as aulas, eu tomo coragem para ir falar com
Elis. Facilita o fato de ela estar lendo um livro que havia me
interessado há alguns dias. Ela está sentada no banco de cimento do
pátio, afastada da aglomeração. O livro está aberto em seu colo e ela parece
tão absorta na leitura que nem se incomoda com os cachos fulvos que caem
sobre seu rosto. Eu me sento ao seu lado, inclinada para frente, a fim de ver
seu rosto por trás das mechas rebeldes.
— Oi.
Elis se vira para mim com espanto e recua um tanto encolhida. Será que eu
pareço ameaçadora, ou estou tão mal arrumada assim? Já sei. Meu cabelo
deve estar parecendo um abacaxi em chamas como sempre, já que não sei
fazer um coque decente. Como ela não fala nada, decido continuar:
— Eu estava paquerando esse livro há maior tempão, mas sempre fico em
dúvida. Ele tem triângulo amoroso? Odeio triângulo amoroso. Ah, desculpe,
meu nome é Alice. Você é Elis, né?
Ela vira o rosto com um sorrisinho tímido e põe o cabelo atrás da orelha
pequena.
— Isso. Prazer, Alice. — Sua voz é bem forte para a menina miúda que é.
Notar esse contraste alarga meu sorriso.
— Essas são Julia e Melissa, minhas escudeiras. — Aponto para as
meninas de pé em nossa frente.
— Ei — Julia repreende.
— Desculpa chegar assim. — Eu retorno a encarar Elis com um semblante
mais encolhido, dessa vez. — Sou péssima para puxar assunto, mas eu
realmente estou interessada nesse livro. É bom?
— Bem — ela põe o marcador entre as páginas e fecha o livro,
repousando-o nas pernas — é meio lento no começo, muita introdução, mas
achei importante pra explicar a trajetória da personagem. — Ela me encara
diretamente e não vejo mais receio em seu olhar. — Acho que se você gosta
de fantasia, uma personagem forte e engraçada, com intrigas políticas e... —
Suas bochechas ficam um tanto vermelhas. — Er…
— Sexo? — Julia complementa.
— É. Se você gosta dessas coisas, então acho que deveria ler.
— E você gosta? — pergunto.
— Dessas coisas? Eu gosto de fantasia, não fantasias sexuais, eu nunca
tive, quer dizer — Elis enrubesce novamente, suas mãos se agitando e seus
olhos sem focar em nada por mais de quinze milésimos de segundo —, eu
acho, não sei, hã, mas também não quer dizer que eu não goste de sexo, quer
dizer, eu, er, acho que todo mundo gosta de sexo, mas…
Uma gargalhada irrompe minha garganta e isso desencadeia risos nas
meninas também. Depois de recuperar o fôlego, eu ponho a mão nas costas
de Elis para tranquilizá-la e, de certo modo, agradecê-la por me fazer rir.
— Tá tudo bem, relaxa. Eu me expressei mal. Eu estava falando do livro,
se você gosta do livro. — Rio mais um pouco.
— Ah, bem, é, eu tô gostando — ela diz, embaraçada.
— Desculpa, mas é que foi tão fofo. — Agora eu entendo por que Zaph me
faz corar de propósito.
— Você veio de outro país, não é? — Julia se abaixa de cócoras para ficar
mais próxima à altura dos olhos de Elis, que passa a mirá-la. — Ouvi seu
irmão se gabando das garotas que ele pegava lá.
Elis retorce a boca e a testa ao ouvir isso.
— Desculpa por isso — ela diz.
— Ih, fia, a gente tá acostumada. — Julia abana a mão.
— São apenas homens sendo homens. — Melissa move os ombros de
braços cruzados.
— Como é lá? — pergunto, de fato querendo saber a diferença de cultura
entre Brasil e Inglaterra.
— Você não era assim antes — Zaph diz à medida que ajeita meu cabelo
logo depois de me vestir e recolocar o seu moletom em mim.
— Antes, eu estabelecia barreiras para não ceder à tentação. — Um
sorriso brinca em meus lábios, observando-o cuidar de mim. Para de se
derreter, coração! Que coisa chata!
— Ah, aí agora você se revela uma safada depravada?
— Você ainda não me conhece direito, Senhor Tertius. — Agora Zaph
abaixa seu olhar, que voltou a ser uma pirita talhada com uma centelha de
divertimento, e um sorriso torto ameaça brotar.
— Mas quero conhecer — Sua mão passa lentamente por uma mecha do
meu cabelo e o contato de nossos olhos não se rompe. — Cada canto e
nuance seu.
— Eu também, Zaph. — Me seguro em sua blusa, aproximando nossos
corpos, ainda que eu tenha que levantar mais o queixo. — Mesmo o seu lado
mais sombrio. — O sorriso dele lentamente desaparece. — Eu sei que você
não gosta, mas acho que precisamos disso.
Um silêncio um tanto incômodo se estabelece. Eu o vi matar vampiros a
sangue frio, assim como Melissa e minha mãe relataram, mas isso não
diminuiu o sentimento que sinto por ele. Me assusta, sim, imaginar o que o
futuro nos reserva, mas agora eu só quero viver o presente. Segundos depois,
o sorriso lateral de Zaph está de volta e meu coração se alivia.
— Mas aí qual é a graça? Tem que deixar uns misteriozinhos. — Ele beija
a ponta do meu nariz. — Te iubesc.
Me aconchego mais em seu abraço, pressionando meu rosto contra seu
peito. Deixo seu perfume doce, a maciez de sua blusa e o calor de seus
braços me preencherem.
É gostoso sim, me sinto completa toda vez que me aninho no corpanzil de
Zaph, mas é péssimo saber que lá no fundo, no fundo do meu abisso, mesmo
que escondido por camadas e mais camadas de sensações como essa, tão
finas quanto lençóis baratos, ainda resida a insegurança e a tristeza, o que
torna tudo uma simples ilusão. Como se os remédios e o amor que eu recebo
fossem miragens num deserto, apenas abafados por uma tempestade de areia.
E
nfim chega o final de semana do show do Veeran, e Zaph me manda
uma mensagem criptografada por emojis que, após ler e reler por duas
horas, bolar uma análise de vínculos com fios vermelhos, entendi que
ele estava me chamando para sair. Depois que o vampiro de 314 anos
aprendeu a usar o Whatsapp, ele tem me perturbado mais que nunca com
figurinhas e gifs. Shiva amado, por que eu fiz isso comigo mesma?
Os ingressos do show do Veeran se esgotaram em menos de 48 horas e uma
parte de mim agradece por isso. Menos uma desculpa para não ir ao evento.
Em compensação, Zaph me levou a uma encosta no meio da estrada que
liga Mangaratiba a Angra. O céu ostenta um azul profundo que enegrece os
cantos mais escondidos por entre as folhagens. Mesmo com o coração quase
saindo pela boca, eu segui o vampiro por dentro de um paredão de árvores e
arbustos, que cismavam em agarrar minha blusa e cabelo com seus galhos
finos. Depois de engolir meia fauna atlântica, me deparei com uma das cenas
mais exuberantes que eu já vi.
A lua cheia resplandece no alto, as incontáveis estrelas contra o véu da
noite a acompanhando, luzindo nas ondas do mar que se estende ao infinito,
sem qualquer interferência humana à vista… Como se nós nunca
houvéssemos estado aqui. Natureza completa, pura, intimidadora e
estonteante.
— Como você encontrou esse lugar? — perguntei, sem tirar os olhos de
todo o enquadro.
— Em cada estado ou província de país que visito, eu elejo um lugar
favorito. No Rio, esse é o meu — Zaph disse enquanto me puxava pela mão
até próximo do desfiladeiro.
O show do Veeran no Maracanã devia estar começando, Elis e Julia
gritando que nem loucas com certeza, mas, ao mesmo tempo, outro show
acontecia nos céus.
A claridade diminui consideravelmente quando a luz da lua vai sendo
comida pela sombra, até que reste um fino contorno prata.
— Há algo poético sobre um céu com nuvens, não acha? — digo. A grama
às minhas costas refresca não somente a minha pele através do cropped preto
de meia manga e da saia plissada de cintura alta, mas também... não diria
minha alma, mas algo próximo a ela.
— Não há nuvens esta noite — Zaph, deitado na relva ao meu lado direito,
responde num tom entre o brincalhão e o desdenhoso.
— Eu sei — respondo com um sorriso pequeno, sem tirar os olhos do
eclipse. — Ainda bem que eu não gosto de poesia.
— Disse a garota que escuta sonatas. — Ele libera uma risada rápida e
nasal. — Você é um mistério, fată ciudată.
— Assim como o preto piche entre a lua e as estrelas. — Memórias
invadem minha mente de forma gentil. — Às vezes, eu e Bianca fazíamos
isso. Ela me contava sobre os mitos que deram nomes às constelações. E
algumas nós mesmas inventávamos. — Um sorriso surge involuntariamente
em meus lábios, só para sumir em seguida. Mas a ternura que havia neles
permanece. — Eu me pergunto se ela está lá, olhando pra mim.
Ternura e algo como melancolia. É a primeira vez que penso na época da
clínica de uma forma não… dolorosa.
— Ela morreu? — Zaph questiona.
— Eu não sei. Nunca mais a vi.
— Você gostaria?
Eu já me fiz essa mesma pergunta mais vezes do que eu consigo contar. A
resposta nunca veio fácil. Não sabia se eu preferiria saber que ela se
suicidou, que foi morta ou encontrá-la viva e olhar em seus olhos, tendo
sobre meus ombros o peso da culpa.
— Gostaria. Ela falava com tanta paixão das estrelas, e eu especulava o
que haveria no vão entre elas. — Me viro para Zaph, sentindo a grama fresca
fazer cosquinhas na minha bochecha. O vampiro já me aguardava. Seu perfil
parcialmente escondido em sombras, tão semelhante à própria lua envolta
pela escuridão. — Sabe por que a cor preta é a minha favorita? Todos a
veem como algo obscuro, mas esquecem de que ela é a junção de todas as
outras.
— Então você acha que tem um arco-íris lá em cima? — ele pergunta,
jocoso.
— Talvez. O universo que vemos é composto por partículas de hidrogênio,
hélio, oxigênio, silício, campos magnéticos, elétricos e radiação em
constante choque, o que acabada gerando luz, que por sua vez são ondas
eletromagnéticas. E quando elas encontram elementos distintos, emitem o
que entendemos por cor. O a cor branca é a união de todos os espectros
visíveis a olho nu, ela emana luz. Já o preto é a união de todas as radiações,
inclusive as não visíveis, ele absorve a luz. Por isso não enxergamos as
cores que estão anos luz da Terra. — Há apenas a brisa marítima agitando as
folhas verdes e secas das árvores, os sons dos grilos, cigarras e das ondas
quebrando ao pé do desfiladeiro. Zaph quase sempre tem uma resposta na
ponta da língua, por isso eu torno a olhá-lo e o flagro já me observando, um
sorriso torto no canto dos lábios. — O quê?
— Eu amo a sua curiosidade.
Volto a esquadrinhar a cúpula celeste com seus inúmeros pontos
iridescentes contra o manto azul, quase negro, tentando não enrubescer.
— As pessoas geralmente só enxergam as estrelas e a lua, tão abismados
pelo seu brilho, que não veem quantas coisas maravilhosas estão escondidas
além delas, só esperando para serem descobertas.
— Tipo aliens — ele arrisca.
— É, tipo aliens.
— Quando eu era mais novo, minha mãe me chamava de “Copilul Lunii”,
que significa “Criança da Lua”. — Zaph ri mais uma vez, e eu volto a
admirar seu perfil enquanto ele próprio escrutina o céu. — Ela dizia que
meus olhos foram feitos para iluminar meu caminho assim como a lua faz
com a noite. — Então ele retorna a me encarar, taciturno. — Eu não posso
prometer um mundo melhor. Mas posso lhe assegurar que a acompanharei
por qualquer que seja o caminho que escolher trilhar.
— Eu não quero mudar o mundo, Zaph. Você mesmo disse que tudo é um
ciclo. Tudo que vai, volta. Uma hora ou outra. — Meu olhar é atraído para o
alto, me sinto bem ao expor esses pensamentos sem ser julgada.
É o mesmo princípio. “Gentileza gera gentileza. Então seja a gentileza
que você quer ver nos outros.” Era isso que Bianca costumava afirmar e
seguia à risca, apesar de tudo. Ela era apenas alguns anos mais velha do que
eu na época, entretanto, era a pessoa mais gentil que eu conheci. E é preciso
coragem para ser gentil.
— Mas, para um ciclo acontecer, ele precisa se mover — Zaph diz. — E
todo movimento precisa de um primeiro passo. E então, o que me diz?
Deito a lateral da minha cabeça e sorrio, sem mostrar os dentes, quando
meu olhar bate nos de Zaph.
— Darei o primeiro passo.
Devagar, os lábios de Zaph se esticam num sorriso e toda a sua feição se
ilumina.
— E eu estarei bem atrás de você.
— Eu não quero você atrás de mim, seu perseguidor — zombo, mas volto a
ficar um pouco mais estoica. — Eu quero você ao meu lado.
— Então é onde ficaremos. — Ele move o braço, trazendo sua mão para
perto do meu rosto no espaço entre nós, com o dedo mindinho levantado. —
Pela lua e as estrelas.
Detenho um sorriso no canto de minha boca e dobro meu braço para
encaixar meu mindinho ao seu.
— E as infinitas possibilidades entre elas.
Permanecemos alguns segundos analisando, absorvendo não cada mínimo
detalhe um do outro, mas tudo que nos cerca também. Material e imaterial.
Até que o sorriso acanhado de Zaph desaparece.
— Você sabe que não foi sua culpa, não é?
Abaixo nossas mãos, ainda unidas sobre as gramíneas úmidas, porém
também não sorrio mais. Vasculho as estrelas, viajando de uma constelação a
outra, navegando pelas nebulosas arroxeadas, quase imperceptíveis a olho
nu, à procura de uma resposta, como se a profusão do universo fosse um
reflexo do que habita em mim.
— Alice. Esteja ela do jeito que estiver — Zaph entrelaça seus dedos nos
meus — foi o caminho que ela escolheu seguir para aliviar sua dor. Não
você.
— Eu podia ter ajudado.
— Você fez o possível. Você fez o que estava ao seu alcance. — Meu nariz
começa a arder, mas eu retenho a urgência de chorar. Me lembro do sorriso
largo de Bianca, de seus olhos de turmalinas, iguais ao seu cabelo
encaracolado volumoso e a sua pele. De como ela era destemida, e de como
ficou abatida por causa de Felipe. “Monstro” foi o que minha mãe dissera de
Zaph, “monstruosos” foi como Zaph se referiu aos humanos. O que torna
alguém um monstro? O que torna alguém um ser humano? Talvez tudo seja
apenas questão de perspectiva.
Assim como a culpa.
— Se eu tivesse sido mais forte, mais incisiva… — As lágrimas não se
importam se eu quero deixá-las transparecer ou não, elas vêm de qualquer
jeito e borram minha visão. Chorona. Fracote.
— Você estava debilitada, Alice. Estava lá exatamente para se recuperar.
— Os dedos de Zaph apertam os meus. — Existem pessoas… Existem
pessoas que entram na nossa vida para mudá-la de forma rápida ou devagar,
por muito ou pouco tempo, mas não são elas que decidem por nós.
Eu acreditava que, entre Rafael e eu, eu era a mais culpada por ter entrado
em depressão profunda. Ele teria sido um mero instrumento, um desafio, que
qualquer que seja a força maior que rege esse universo pôs no meu caminho
para me testar, e eu falhei. Não fui forte o bastante. Mas agora repenso,
rebobino tudo o que passou, e, olhando por outro ângulo… Milhares de
fatores encaminham nossas ações, e alguns deles estão muito além do nosso
poder.
Acho que o mínimo que podemos fazer é tentar. O “não” a gente já tem, nos
resta perseguir o “sim”. 1% de chance... Relembro o que Zaph me dissera, e
um sorriso íngreme enrola-se no canto dos meus lábios.
O terceiro dos Cinco Grandes começa a compartilhar do meu gesto, porém
algo além de minha cabeça atrai sua atenção. E o sorriso dele aumenta.
— Parece que temos espectadores. Não faça movimentos bruscos. —
Devagar, viro minha cabeça no gramado. Pontos luminosos esverdeados, um
tanto vaporosos, vagam por entre o breu dos arbustos e árvores à margem do
desfiladeiro. São muito grandes para serem vagalumes, talvez sejam do
tamanho de libélulas, e deixam um rastro cintilante por onde voam.
Embrenhado ao som do mar nas rochas e do vento nas folhas, há suaves
guizos.
— São pixies? — pergunto sem tirar os olhos admirados dos seres mais ao
longe.
— Pixies são criaturas curiosas. Assim como um certo alguém que eu
conheço. — Ouço o farfalhar leve de Zaph se movimentando na grama ao
meu lado. — Elas devem ter vindo xeretar.
— Bando de fofoqueiras.
— Sabe do que elas mais gostam? Ouro.
— Ouro? — Retorno a cabeça para frente com o cenho franzido para Zaph,
que agora tem o rosto a centímetros acima do meu. Ele usa sua mão para
escorar a lateral da cabeça, o cotovelo apoiado no solo fofo. O vampiro
continua portando aquele sorriso pintado em travessura ao mirar as fad...
quer dizer, os “feériquinhos”. Ele remexe no bolso da calça e tira de lá uma
moeda de ouro, em um modelo que nunca vi na vida. Ele a gira nos dedos e
posso ver que há uma mariposa gravada de um lado e, do outro, um olho em
que os três únicos cílios parecem pontas de lanças. — Onde você conseguiu
isso?
— Ganhei de um duende num jogo de cartas. Traz sorte. — Zaph dá de
ombros, com o lábio inferior ressaltado, porém sua expressão contradiz todo
o descaso. Ele fita a moeda, virando-a em seus dois dedos. — Foi essa
belezinha que me livrou da Arachn’y. Assim como a prata fere os feéricos e
licantropos, o ouro fere as bruxas e os bruxos. As asas das pixies são muito
usadas como matéria para produzir Vílačka. E bruxas adoram mascar
Vílačka.
— Então elas usam o ouro para se proteger.
— Da.
Entre os nuances claros e escuros em seus orbes, promovidos pela parca
iluminação, consigo distinguir um pouco de angústia e pesar mesclados à
fúria, enquanto visualiza o passado preso à moeda. Eu quero que ele confie
em mim para se abrir e falar de suas mágoas, que se sinta à vontade para
compartilhar o peso delas, mas sei bem como dói colocar em palavras
aquilo que mais nos machucou e como cada um tem o seu próprio tempo de
cicatrização.
Ai minha Persefone! De repente, uma das pixies aparece bem diante dos
meus olhos e eu tento não saltar para não a espantar. A criaturinha bate
velozmente suas asas membranosas como de besouros, contornadas por uma
luminescência neon em suas articulações. Ela vai diretamente para a moeda
de Zaph, tal qual um inseto atraído pela luz. Através do seu brilho hialino,
posso discernir seus membros, tão finos quanto gravetos, e seu corpo
humanoide minúsculo completamente nu. Noto a ausência de dois dedos,
como também a de uma genitália, porém um rabo de agulha desponta na parte
de trás. Logo depois outra aparece e, instintivamente, eu levanto um dedo.
Ela o olha com curiosidade, seus olhos redondos anfíbios e a cabeça careca
de orelhas pontudas se movendo, até que por fim ela o morde. Os seus
dentinhos afiados na ponta do meu dedo fazem cosquinha, por isso libero
uma risada.
— Mas tem mais uma coisa que as pixies adoram. — Meu foco retorna a
Zaph enquanto a diminuta criatura se diverte com o meu dedo. Admito que eu
não esperava ver em sua feição, um pouco mais acima da minha, as sombras
da volúpia em cada aresta. — Tire a roupa, draga.
Seu tom era uma ordem velada de pedido. Subitamente, me vejo sem ar.
Abaixo o dedo, agora brilhante de purpurina branca. A pixie que estava
sentada nele levanta voo, mas se mantém por perto, observando. Sem tirar os
olhos dos cor de rutilo de Zaph, eu me movimento na grama a fim de arquear
a coluna e cruzar os braços para tirar o top. Ao mínimo toque da maresia
fresca em meus seios expostos, meus mamilos enrijecem.
Eu não sei o que ele pretende, mas aprendi a gostar muito das surpresas
que esse vampiro me reserva.
Zaph guarda a moeda de volta no bolso e encaixa sua mão em meu rosto,
abaixando o seu próprio até unir nossos lábios num beijo tenro. Porém, a
delicadeza começa a ser deixada de lado quando Zaph passeia essa mesma
mão pelo meu seio, apertando-o devagar com o dedão – o que me arranca um
gemido baixo. Contorço as pernas, na ânsia por sentir seu toque em meu
meio.
Seguro seu queixo com a mão livre, degustando do sabor de sua saliva
misturada à minha enquanto nossas línguas ávidas dançam.
Um gemido mais alto e gutural ecoa de mim quando seus dedos longos
finalmente chegam ao meu clitóris por cima da calcinha de renda.
Adendo: dessa vez, foi ele mesmo quem comprou a peça.
Eita! O que... Abro os olhos espantada e descolo nossas bocas num estalo
ao flexionar o pescoço para mirar meus peitos. Eu sinto uma leve sucção e
uma alfinetada no mamilo, como se um peixe o tivesse mordiscado, então
abaixo o olhar. Uma das pixies está deitada na carne macia do meu seio,
saboreando meu bico hirto, e, merda, preciso admitir que é bom. Logo outra
se acomoda, próxima ao meu umbigo, e ambas me sujam com o pó opalino
que exala de suas asas.
Acabo perdendo a concentração quando Zaph volta a me acariciar entre as
pernas. Mal fecho os olhos e o vampiro ataca minha boca. Grunho outra vez,
segurando seu cabelo mais forte do que antes e devorando sua língua. Nunca
vou me cansar disso. Nunca. Passo a ponta da minha língua por um canino
seu e o rosnado que Zaph prende na garganta reverbera por todo meu ser.
Seus dedos agarram a lateral da minha calci... Ai! Filho da mãe, rasgou a
lingerie novinha! Logo sinto outro mordiscar leve no meu mamilo esquerdo.
Ao mesmo tempo em que Zaph insere dois de seus dedos entre minha
abertura molhada, apertada e quente, sinto outra pequena sucção branda em
meu clitóris exposto ao frescor noturno.
Zaph separa nossas bocas, mas roça seu lábio inferior na maça do meu
rosto.
— Isso, inimioara mea, goze no meu dedo.
Sua voz grave entra pelo meus ossículos e percorre demoradamente cada
terminação nervosa minha, me arrepiando de dentro pra fora, da cabeça aos
pés. Zaph movimenta os dedos dentro de mim para cima e para baixo e, antes
que meu cérebro pudesse sequer registrar a informação, meu corpo obedece.
Libero um gemido extenso ao arquear a coluna. A boca de Zaph desce para o
meu pescoço, onde passa sua língua pela minha jugular e amplifica o efeito
intoxicante do clímax.
Ouço sons de guizos e não preciso abrir os olhos para saber que mais
pixies vieram se juntar a nós.
— Eu disse a roupa, não disse? — Zaph relembra ao passo que se ergue e
fica de joelhos. As pequenas criaturas voam ao nosso redor com o
movimento ligeiro, emitindo o cintilar prata de suas asas em contraste com o
breu do eclipse que começa a se desfazer, a lua saindo das sombras de forma
lenta, e as íris carmesins de Zaph encarando-me de cima.
— Tem certeza? — reluto. — Vou ficar toda suja. E você já rasgou minha
calcinha.
Zaph apenas desafivela sua braguilha e revela o membro projetado contra
a cueca boxer preta. Minha boca saliva. Tiro a saia remexendo as ancas ao
passo que Zaph se desfaz do restante da calça e a camiseta, em movimentos
rápidos.
Meus olhos cravam-se desejosos no lento massagear de sua mão em seu
pau coroado pelos cabelos escuros que começam a crescer. Capturo meus
seios com as mãos e os junto.
— Você quer colocá-lo aqui?
Zaph abre um sorriso e se locomove a fim de ficar com os dois joelhos um
de cada lado da minha costela, seu pênis ereto a centímetros acima do meu
rosto.
O Tertius solta um grunhido cavernoso ao remexer os quadris, forçando-se
para dentro e fora dos meus peitos. Sinto um beliscar em meu clitóris e sei
que uma pixie voltou a se aventurar pela minha boceta. Não tarda, sinto outro
formigamento mais abaixo, em minha abertura glutinosa e gelada por conta
do vento. Abaixo o queixo e coloco a língua para fora, e a glande macia de
Zaph a acerta toda vez que se aproxima. Zaph joga a cabeça para trás em um
urro que repercute pelo meu corpo e faz vibrar meus óvulos. Minha
intimidade se constringe ao sentir esse som e mesclar com as sucções leves
dos diminutos feéricos.
Uma delas paira sobre a cabeça de Zaph e ele exibe a língua. Ela se coloca
na boca dele, mas ele não a fecha, apenas degusta da pele lúrida da fada
como se fosse uma bala, sujando a boca de pó furta-cor. Eis, então, que o
vampiro decide abaixar seus orbes escarlates para mim. Eu escancaro a
boca e ele capta a mensagem. Meus lábios cingem sua espessura quente,
porém mal chegam até a metade. Minha língua tateia as veias salientes que o
rodeiam conforme se esfrega nela e sua cabeçorra polposa soca minha goela.
Eu o sugo, permitindo que dite o ritmo das estocadas, permitindo que use
minha boca como usa minha boceta.
Seus olhos faiscantes e sua boca entreaberta ostenta a ponta de seus
caninos crescidos. O vampiro que amo parece absorto, dopado pela volúpia.
Ondas se propagam a partir do meu ventre enquanto as pixies me chupam e
eu chupo Zaph. Uno os cílios, pressentindo o frenesi que me correrá. O
membro de Zaph incha simultaneamente em minha boca com o clímax que
nubla minha mente. O sêmen de Zaph atinge minha garganta em jatos mornos
e eu os engulo.
— É tudo seu, dragostea.
Zaph retira seu pênis de forma demorada, meus lábios não o soltam,
fazendo com que eu limpe sua extensão antes de deixá-lo sair.
Uma pixie sobrevoa meu rosto e flutua próxima ao meu nariz. Abro a boca
como Zaph havia feito e ela pousa em minha língua, estimulando-se como se
para atingir seu próprio ápice. O arrebatamento é imediato.
Rudá do céu, agora entendo porque as bruxas gostam de Vílačka. Além
da textura escorregadia, o pó que o feérico libera é doce, mas há um amargor
no final que aparece no exato momento em que meu corpo adormece em
estática e a mente vira um caldeirão de cores. É nesse contexto que sinto a
mão de Zaph passear pelas minhas panturrilhas e suspender minhas pernas
unidas, de modo a colocá-las sobre um de seus ombros.
Seguro suas mãos onde estão, prendendo sua atenção.
— Você me tocou em todos os lugares, menos nelas. — A princípio Zaph
cria rugas entre as sobrancelhas, mas uma fração depois elas somem ao
compreender minhas palavras. — Está tudo bem.
Tem um tempo que venho percebendo que, em todas as vezes que Zaph me
tocou, das mais gentis às mais brutas, ele nunca encostou na parte externa das
minhas coxas. No início isso me enterneceu, mas agora meio que me irrita.
— Toque-as — falo.
— De que jeito? — Ele pergunta, enquanto suas mãos acariciam minha
perna erguida.
— Do jeito que quiser.
Zaph dedilha minha pele de trás do joelho com esmero e prendo a
respiração. Ao passo que o toque leve de seus dedos se aproxima da área
superior da minha coxa, minha frequência cardíaca acelera. Vejo-o abaixar a
cabeça para levar sua boca ao local onde estão minhas minúsculas
cicatrizes, e quando seus lábios a encostam, as lágrimas invadem meus
olhos. Um sentimento de libert... no entanto, quando sua língua aveludada e
molhada rasteja por elas, as lágrimas desaparecem. E quando ele as morde,
cravando seus caninos na minha carne anestesiada pelo pó de fada e
arrancando um pouco do meu sangue, que sinto escorrer pela minha virilha,
minha boceta se encolhe. São muitas sensações para pouco tempo.
Estico os braços e trago seus cabelos em minha direção, obrigando-o a
retirar suas presas de mim. Agora tenho seu rosto sobre o meu, seus orbes
carmesins consomem os meus.
Forço minha língua a separar seus lábios e começo a mimosear um de seus
caninos. Chupo seu dente afiado e sensível como faço com seu pau. O
gemido que o Tertius emite é profundo e se apodera de mim.
Ele circunda minhas pernas no alto com um braço enquanto a outra mão
está ocupada segurando meu quadril, puxando-o para si. Seu pau desliza
para dentro de mim, abrindo meus lábios vaginais melados e calorosos,
prontos para recebê-lo.
Zaph me traz em direção à sua pelve, conforme investe em minha boceta e
minha boca. Meu vampiro finca os dedos em minha bunda quando aumenta a
frequência do vai-e-vem e seu pau me acerta no fundo. Afrouxo meu agarre
em seu cabelo e separo nossas línguas ávidas para inclinar a cabeça, com os
olhos fechados, e liberar um gemido longo. Ele despeja uma mordida
demorada em meu lábio inferior antes de reerguer o tronco e arremete cada
vez mais forte e veloz.
Uma pixie pousa em meu ventre e seus dentes prendem-se ao meu clitóris
como ventanas. Mais duas se posicionam em meus seios e eu os massageio
pela base enquanto elas me chupam com seus dentinhos afiados. Minha
boceta se comprime em deleite
— Arh, assim, continua. Me fode, me fode toda. — rogo.
Zaph estoca, esfregando minhas costas na grama e afundando os joelhos na
terra. Ele afasta minhas coxas dobradas para cima, deixando-me arreganhada
e move os quadris em voltas ritmadas. Uma corrente pujante espalha-se pela
minha estrutura a partir da minha intimidade, travando meu corpo em êxtase.
Sinto o pênis de Zaph endurecer dentro de mim e seu rosnado é o sinal que
preciso para saber que está a ponto de gozar. O vampiro escorrega para fora
de mim e abaixa minhas pernas, lânguidas, segurando a base de seu membro.
Ele ostenta um semblante torpecido pela visão de seu pau ejaculando sobre
mim. Os jorros mornos de Zaph aterrissam em meu abdome, misturando a
viscosidade leitosa com o brilho iridescente deixado pelas minúsculas
criaturas feéricas. Eu arquejo, observando meu namorado em todo o seu
porte se masturbar ajoelhado diante de mim, ainda expelindo suas últimas
gotas. Sua porra acaba esfriando em minha barriga ao contato com o clima
fresco. Como isso pode ser tão sensual, tão gostoso e tão nojento ao mesmo
tempo?
Zaph hasteia suas íris rúbeas para mim, emolduradas pela lua cheia que
voltou a rutilar no céu em todo seu esplendor alvo. Um arrepio me percorre,
meus ovários se revolvem.
— Quero mais — arfo, o sorriso de Zaph aparece tão rápido quanto some
quando seus olhos recaem sobre os dois feéricos em meus mamilos. O
vampiro, então, se move de modo a ficar por cima e avança diretamente em
meu seio esquerdo, fazendo as pixies alçarem voo. Vejo um círculo de
ínfimos pontos vermelhos em minha auréola pouco antes da boca de Zaph se
atarraxar ao meu bico. Ele o morde entre-presas e chupa com força. Um
sorriso irrompe em meio a um gemido meu. — Estava com ciúme, meu
amor?
A única resposta que obtenho é o baque de seus orbes granada sob as
sobrancelhas grossas. Isso e seu gesto bruto de pegar minha cintura com
ambas as mãos grandes e puxá-la para cima, posicionando-me sentada sobre
suas coxas ajoelhadas no solo úmido. O bafejo frio acomete minhas costas
expostas de imediato, criando um arrepio suave na envergadura da minha
lombar. Zaph provoca minha boceta encharcada com a cabeça melada do seu
pau, controlando os movimentos com uma mão, enquanto a outra espalma-se
no meio da minha coluna e seus dentes não desocupam meu bico. O vampiro
entra devagar, somente o suficiente para sua glande roçar dentro, seguindo
seus movimentos leves. Um ganido meu escapa e reviro os olhos, jogando
minha cabeça para trá... OHR, e é nesse momento que Zaph decide trazer
meus flancos para baixo e se enterrar inteiro em mim. Sua grossura quente e
longa me preenche totalmente. Pensar que ele está fazendo isso para se
vingar da minha alfinetada me tira uma risada. Mas ela tão logo é
interrompida quando Zaph mete forte uma, duas, três, quatro... e um grunhido
alto corta minhas cordas vocais para a noite.
— Isso — diz ele, ao retirar a boca do meu peito inchado com um estalo.
— Deixe as estrelas saberem quem te faz gozar assim.
Zaph cola sua boca na minha, conforme divaga suas mãos pelas minhas
curvas desnudas ao passo que também as usa para me manter firme no
movimento de sobe e desce. Embrenho meus dedos em suas madeixas
sedosas, não deixando de notar o roçar de meu peito nos pelos a brotar do
seu. Sua língua rodeia a minha fora da boca, seus lábios sugam o meu e seus
dentes o mordiscam com a mesma potência que seus quadris investem em
mim e seu pênis empurra meu núcleo. O sutil resvalar do meu clitóris em sua
pelve embebida pelos nossos fluidos libidinosos e os das fadas evoca uma
corrente elétrica suave até meu ventre e corre até o meu cérebro.
Quase não sinto o momento em que Zaph esgueira seus dedos longos pelas
mechas da minha nuca e se apossa delas num punho, levando minha cabeça
para trás. Gemo no mesmo compasso em que rebolo para cima e para baixo,
para frente e para trás, no pau do terceiro dos Cinco Grandes. Seus lábios
deambulam pelo meu pescoço, minha clavícula, meu colo, o vale dos meus
seios que sacolejam, tingidos de pó bismuto das pixies que pairam à nossa
volta. Zaph afrouxa o aperto em minha cerviz e me lanço em sua boca outra
vez, abraçando-o.
Em algum momento, talvez no instante em que eu o senti enrijecer, nosso
beijo deixou de ser apenas faminto. Eu tomo seu rosto em mãos e os dedos
de Zaph fincam-se no meu quadril, espasmando ao ejacular dentro de mim.
Zaph desune nossas bocas, mas permanece perto, me escondendo em sua
sombra agora que a lua cheia resplandece em sua totalidade, e me acolhendo
com seu calor.
— Scuze, não consegui impedir — ele diz, sua voz rouca e afável aquece o
mínimo espaço entre nossas faces.
— Tudo bem. — Despejo um beijo suave em seus lábios. — Nada que uma
pílula do dia seguinte não resolva. — Espera. Afasto seu rosto para poder
encará-lo. — Pílula do dia seguinte adianta contra porra de vampiro?
A gargalhada de Zaph preenche o desfiladeiro.
Voltamos das férias há doze dias. Oito dias deitada na cama, apenas
encarando a parede, remoendo lembranças. Não sentia fome ou sede, apenas
frio e dor de cabeça. Oito dias de choro contínuo no mais denso silêncio. Eu
me perguntava: por que as pessoas querem tanto que as outras vivam? Seria
tão errado assim desistir, finalmente descansar? Recusava as ligações de
Carol, minha psicóloga, e Julia.
Foi no nono dia que me levantei da cama como se algo me impulsionasse
suavemente. A abóboda celeste estava cinzenta, a chuva de verão ameaçando
a cair. Tomei um banho de água quente e nenhuma lágrima foi derramada.
Trancei meu cabelo sujo e seboso na lateral, como se a cada passada de
mecha eu visualizasse as tramas da minha vida; minhas escolhas. Meus olhos
dispararam para o quadro acima da escrivaninha, para a colagem de fotos,
para a coleção de recordações que adquiri ao longo do ano. Os sorrisos que
vi apedrejaram meu coração ao me fazerem perceber que não é preciso
esperar algo extraordinário acontecer para fazer da vida extraordinária.
Coloquei um casaco por sobre o short de moletom e caminhei pela calçada
imersa em pensamentos, apreciando o vento fresco da noite e olhando para a
escuridão entre as estrelas, embora meus punhos estivessem cerrados dentro
do bolso do moletom. Foi no nono dia que, ao retornar para casa, sentindo
meu corpo pesado, eu pluguei meu fone de ouvido no celular, coloquei Halo
de Little Dume para tocar e, assim que os primeiros acordes soaram em
meus tímpanos, deixei a cadência penetrar em mim. Foi ela que me
movimentou diante do espelho. De olhos fechados, meus pés descalços
deslizavam pelo piso gelado como se flutuassem, meus braços eram cabos
condutores de energia que seguia o fluxo do meu corpo. Minhas mãos sempre
em busca de algo, moldando algo.
Do meio para o final da música, eu já estava entalada. Assim como a chuva
que decidiu cair lá fora, curvei-me, apoiando as mãos nos joelhos, e
finalmente deixei as lágrimas quentes saírem. Eu queria quebrar alguma
coisa, bramir de raiva, e a ciência de que seria errado, ou no mínimo
ridículo fazer isso, além de perturbar meus pais no andar de baixo, só me fez
me encolher no chão com as costas apoiadas no espelho e a cabeça enterrada
entre os braços que circundavam meus joelhos.
No décimo dia, eu só notei que havia alguém comigo no quarto ao
pressentir uma mudança de peso no colchão às minhas costas.
— Eu consegui encontrar uma brecha na minha agenda lotadíssima e decidi
vir até aqui, só para te ver. — Seu tom era jocoso. Não havia interferência
ou estática, mas eu reconheceria essa voz em qualquer lugar e de qualquer
forma. Quando escutei o timbre moderado de Carol, apertei bem os olhos,
retendo a ardência no nariz e sentindo meu corpo todo tensionar. — E você
sabe por quê? Porque eu me importo com você. Você não é apenas uma
paciente para mim, Alice. Gosto de você, gosto muito, e quero ver você bem.
Você é tão forte, bebê. — Meus cílios encharcaram no momento em que senti
a carícia suave de sua mão em meus cabelos. Meu peito doía numa mistura
de alívio com raiva. — Mas você não precisa ser forte o tempo todo.
Permita-se enfraquecer de vez em quando, permita-se quebrar para que você
possa se reconstruir de forma ainda mais bela. Por fora e por dentro. Você
acha que pode fazer isso? — aquiesci — Bom. E você acha que pode falar?
— Posso ficar assim? — minha voz ecoou esganiçada
— Pode.
— E com música de fundo?
Carol riu.
— Claro.
Agora, no fim do décimo segundo dia, é a primeira vez que cogito mandar
uma mensagem a Zaph. Eu olho para a tela do celular, aberta na aba da nossa
conversa, lutando contra o intento de rolar para cima e relembrar todos os
assuntos sem sentido dos quais conversamos por horas a fio. Peço
desculpas? Não, isso é sempre minha primeira alternativa, mesmo quando
não é minha culpa. Mas será mesmo que não foi minha culpa? O que
exatamente foi minha culpa? O que aconteceu naquela noite? Eu nem sei
descrever apropriadamente. Eu o ouvi dizer que eu não era suficiente. Mas
ele não quebrou a Promessa de Sangue, o que significa que, o que quer que
eles estivessem fazendo, ele não teve a intensão de me fazer sofrer... De
boas intenções o inferno está cheio, não é?
Suspiro. Bloqueio a tela e abaixo o celular, repousando-o sobre minha
barriga, e encaro o teto com a marca de mão no gesso branco. Você está aí,
demônio? Pode me ouvir? Quer conversar um pouco?
Respiro fundo e tomo coragem para pôr as pernas para fora da cama.
Um canto agudo de pássaro me chama atenção e torno meu olhar langue
para a janela. O dia está lindo lá fora, ensolarado, a cara do verão carioca, e
sem nenhuma nuvem da minha amada chuva à vista. Meu quarto, que havia se
tornado meu casulo, me pareceu de repente muito abafado e sufocante. Acho
que preciso de um pouco de ar.
Mal termino de fechar a porta e a quentura disfarçada por entre um vento
me atinge. Inspiro fundo, absorvendo a sensação de familiaridade que os
vasos de plantas e canteiros ao redor da varanda me trazem, e dou o
primeiro passo adiante.
Não espero os fios do meu cabelo me engasgarem para separar duas
mechas e enrolá-las uma na outra. Quando levanto a cabeça, desviando dos
buracos na calçada, noto que meus pés me trouxeram até a praça do bairro.
Solto um longo suspiro enquanto me dirijo para o banco de madeira
posicionado de frente para a quadra.
Assim que me sento, meus olhos percorrem a vizinhança, percebendo as
cores e os tons mais intangíveis da vivacidade no bairro. Enxergo em seus
portões de ferro gastos, alumínio, madeira úmida, nos tijolos de barro, telhas
de zinco, paredes cimentadas com desenhos infantis aqui e líquens ali, toda
tristeza e força desse povo. Fecho os olhos tentando organizar meus
pensamentos, aproveitando a quietude rara e a brisa.
— Hã, com licença?
Uma voz masculina com um sotaque gringo forte, no melhor estilo
estadunidense ou britânico, soa perto de mim. Separo as pálpebras sem
pressa e vejo um rapaz de cabelos loiros curtos espetados num topete e
olhos azuis radiantes de pé à minha direita. Ele porta um sorriso torto sem
graça.
— Ah. Oi, Jake — cumprimento, desanimada.
— Está tudo bem? — Ele inclina a cabeça, as mãos inseridas nos bolsos
da bermuda jeans.
Eu o miro de forma um tanto quanto arrogante.
— É, acho que foi uma pergunta idiota. — Libero uma risada nasal débil.
Jake sai da inércia, se aproximando, e logo está sentado ao meu lado. Ele
arca a coluna, apoiando os cotovelos nos joelhos e encara a quadra à frente.
Eu abaixo o olhar para minhas mãos, abatida demais para me sentir
desconfortável. — Foi mal.
— Tudo bem.
— Se quiser, eu sou um ótimo ouvinte.
— Eu que não sou uma boa falante. — Movimento os ombros. — Não sei
me expressar muito bem em palavras. E quando acho que consigo, ninguém
entende.
O que me faz lembrar das aulas de dança que cheguei a pegar informações
no clube, mas nunca nem tentei frequentar.
— Às vezes, só quem entende é quem sente, mas você pode tentar fazer o
outro compreender. — Levo meu olhar enviesado para o garoto e descubro
que Jake já me encarava de soslaio. — Eu faço psicologia — explica ele,
com descaso, e mais uma risada fraca me escapa.
Deixo a cabeça pender para frente, em negação. Eu gostaria de pedir a
Jake que fosse embora, para eu sofrer e tentar vencer meus demônios
sozinha, mas não tenho coragem. E além do mais, por que, pela consciência
do Santo da Vareta Torta, eu exporia meus mais profundos tormentos para
um cara que eu mal conheço? Se isso for um novo tipo de cantada...
— Devo estar incomodando, não é? — ele persiste. — Sor... perdão. De
qualquer forma, gostaria de ajudar se me permitir. Mesmo se só precisar de
alguém com quem conversar.
Acho que estou sendo injusta.
Levanto meu rosto para encontrar seu olhar de celestina.
— Por que está fazendo isso?
Jake parece ruminar algum pensamento enquanto me analisa, e um pequeno
sorriso aparece em seu rosto. Eu não espero que ele seja completamente
since...
— Acho que eu tenho um fraco por meninas indefesas.
Não gostei disso e acabo franzindo a testa antes que pudesse ser evitado.
Jake segura minha mão suavemente com as pontas dos dedos e prendo a
respiração. O observo abaixar a cabeça para despejar um beijo singelo em
meu dorso.
— Você tem um ótimo cheiro — O garoto comenta num tom baixo, de um
modo que o fez soar... educado e sensual. Meu estômago se obstringe. Jake
endireita a postura, trazendo seu olhar de volta ao meu, junto a um sorriso
gentil. — Espero que fique bem. Podemos ir ao cinema, agora nas férias eu
estou mais livre. Você tem o meu número, então não hesite em me ligar, por
favor. Até mais.
Então ele se põe de pé e marcha para longe, com tranquilidade.
Eu poderia ter pensado “Nossa, que cavalheiro! Estou encantada!”, no
entanto, a primeira coisa que me veio à mente foi “VAMPIRO, CORRA!”.
Mas ele não prolongou o momento, não lambeu os lábios e suas íris também
não mostraram nem um microscópico vestígio de coloração amarelada. E
pelo modo como ele me segurou de leve, não foi possível sentir sua
temperatura. Porém, ele também pode ser uma outra criatura. Ou, talvez, no
fundo, Jake seja apenas mais um garoto solitário. Como eu.
— Obrigada!
Agradeço à atendente, me afastando do caixa às pressas. Caminho em
direção à saída do supermercado, carregando duas sacolas de plástico, uma
em cada braço. O céu já não está tão limpo, apresentando nuvens escuras e
longas que bloqueiam o sol do fim da tarde. Espero ansiosa pela chuva com
um sorriso retido ao morder meu lábio inferior. Porém, estou mais ansiosa
para terminar o jantar que comecei. Planejei fazer um arroz à piamontese, um
escondidinho de carne moída a lá Alice e bruschettas de entrada. Eu nem
acredito que deu tudo certo! As meninas estão para chegar a qualquer
momento, e a minha casa inteira enfeitada com velas, vasos de flores e a
mesa arrumada como se fosse uma ceia digna de faraós me deixa ainda mais
empolgada!
Por volta da hora do almoço, logo após tomar meus remédios, cansar de
pular ao som de Mambo N° 5 e Smash Mouth, rir de mim mesma e mandar
mais mensagens para Zaph – tentando não ficar preocupada –, minha mãe me
chamou do térreo. Ao descer, indo em direção à sala, fui recepcionada com
uma salva de palmas dos meus pais, Igor e Fernanda – e Clarisse –, que
estavam posicionados ao lado de um bolo de chocolate no centro da mesa.
Me juntei a eles, cantando “Parabéns para você” sem esconder um sorriso
mediano. Segurei o cabelo ao me dobrar sobre o bolo e assoprar a vela
simples. Eu não costumo acreditar nesse negócio de fazer pedidos, mas
dessa vez eu decidi arriscar. Vai que funciona.
Realizei uma videochamada com Carol, atualizando-a, e assistimos a um
filme pelo resto da tarde, todos reunidos na sala. Não muito depois, chamei
minha mãe para ir ao mercado comigo me ajudar a comprar os ingredientes
para a refeição. Mas a tapada que vos fala se esqueceu de comprar os pães
para as bruschettas!
Então aqui estou eu, ignorando os olhares dúbios em minha direção por
estar trajando uma saia longa de tule piche com duas fendas laterais, um
cropped de decote profundo da mesma cor, a gargantilha que Igor e Fê me
deram e chinelos na medida em que cruzo o estacionamento vazio. Mas
talvez o que mais chame atenção seja a maquiagem forte e o arco de estrelas
na minha cabeça.
Quando avistei o pingente da gargantilha, uma luz se acendeu em minha
mente: Érebo, o Deus grego da escuridão, de todo o vasto negrume que se
expande e acolhe as estrelas de Bianca. Ela nunca parou de sorrir. Não
escondia sua apatia, sua aparência desalinhada, mas não deixava de
acreditar toda vez que admirava o céu noturno. Ou talvez ela estivesse
apenas esperando paciente e esperançosamente a sua vez de se tornar parte
dele.
— Vai lá — ela disse e assobiou em seguida, me abraçando na minha
última noite no hospital, pouco antes de entrarmos de volta no prédio
principal. Porque sabíamos que ali seria a última vez que nos veríamos. —
Vá e encontre razões para acreditar. E quando você achar — Bianca silvou
outra vez e piscou — conte a todos.
Um arrepio percorre minha coluna e eriça os cabelos da minha nuca.
Olho para trás, por precaução, correndo em meus chinelos. AU! Ao
retornar para frente, meu nariz tromba com algo duro, forte o suficiente para
fazer meu arco cair. Ai, acho que vou espirrar.
— Descul...
Sinto meu pulso ser agarrado por uma mão forte, minha barriga ser
circundada por um braço grosso e, por fim, mas não menos importante, tenho
minha boca e nariz tapados por um pano.
Prendo a respiração, me debatendo para não respirar o provável
clorofórmio e me libertar, mas meu esforço faz com que eu perca o ar mais
rápido. Meu coração bate forte contra a minha caixa torácica conforme
enxergo a noite descendo, e minhas sacolas jazem na calçada, cada vez mais
distantes. Minhas pernas se atrapalham tentando resistir de alguma forma e
isso… Droga! Tive que buscar ar! Tudo roda...
Urgh! Me sinto enjoada. Por que está tudo girando? Onde diabos eu
estou?
Há luzes piscando... não, um encadeamento de luzes amareladas passa por
cima de mim de maneira fugaz cada vez que um poste de luz enquadra na
janela do carro. Carro?
Devagar, ganho a perfeita noção de que estou deitada de lado, no banco
traseiro de um carro. E carro chique, viu. Acho que os sequestradores se
acharam tão espertos e fodões que não se deram ao trabalho de me amarrar.
Argh. Minha cabeça dói. Há dois homens, grandalhões como ursos, nos
bancos da frente e eles conversam entre si.
Eu não sou capaz de discernir o que estão falando, parece outra língua.
Gente, eu sei que o Rio de Janeiro atrai bastante turistas, mas, por Jeová,
meu bairro não é o Leblon para ter tanto gringo assim.
Preciso pensar e agir rápido. Em que faixa será que o carro está? Se
Acintya gostar de mim, estará na do canto. E a passagem dos postes no meu
lado direito e a dos carros pelo lado esquerdo confirmam isso. Valeu,
Acintya.
Levanto o braço discretamente, até meus dedos chegarem à trava da
maçaneta, sem criar alarde. Calma, Alice, calma. Meus sentidos ainda estão
um pouco distorcidos, o efeito da dopagem ainda não passou totalmente, mas
a adrenalina correndo em mim me diz para ser rápida.
Meus dedos agarram a pequena alavanca na parte de cima da porta.
Respiro fundo e olho mais uma vez para os caras conversando. Se a
maçaneta estiver trancada, estarei fodida. Bem mais do que já estou. Uma
oração fugaz para não ser atropelada ou acertada na cabeça de um jeito fatal
depois que eu saltar, e estou pronta. Ok, vamos lá: 1, 2... 3!
Puxo a alavanca com dois dedos, isso faz um barulho que alerta os homens.
Mas, quase simultaneamente e antes que eles possam reagir, eu já empurrei a
porta, sentindo o vento forte agitar meu cabelo. Flexiono as pernas, me
atirando para fora no exato momento em que sinto dedos relarem na minha
panturrilha...
Rolo no asfalto até bater no meio-fio e parar de bruços. Jogada no chão de
novo em menos de uma semana, que maravilha. Meu peito sobe e desce,
arfante. Sinto ardência em vários pontos da minha pele e um pulsar nos meus
ossos que atingiram o solo com força. Ok, agora levanta e corre, Alice!
Levanta e corre!
Apoio a mão no chão áspero e arquejo pela dor despontando na costela. Os
arranhões nos meus braços e rosto queimam, mas não me impedem de ficar
de pé o mais rápido possível. Cambaleio ao subir na calçada e disparar na
direção contrária. Maldito clorofórmio. Meus sentidos estão um tanto
distorcidos, meus joelhos estão que nem os de uma velha travada.
Ouço um rosnado logo atrás de mim, mas nem por isso paro de correr.
Minha respiração sai pesada pela boca enquanto... Dedos enormes ao redor
do meu pescoço me interrompem num solavanco e tiram meus pés do chão. O
ar fica preso na minha garganta de imediato. Agarro o pulso grosso com as
duas mãos, numa tentativa desesperada de achar estabilidade.
A luz do poste acima de nós cria sombras tenebrosas no rosto bronco do
homenzarrão, retorcido num sorriso que revela suas presas afiadas e realça
os olhos rúbeos. O vampiro solta uma risada gutural enquanto sufoco. Minha
visão começa a turvar e fecho os olhos, esperando pela morte nas presas de
um vampiro fisiculturista.
Porém, ao invés delas, sinto um empurrão na barriga potente o bastante
para me fazer chocar de costas numa parede. AU! Que porra...?!
Despenco num amontoado de saco de lixo, ouvindo o tilintar de vidro e o
farfalhar de papelão. Tusso repetidas vezes, com dificuldade de respirar. As
omoplatas, onde recebi o maior impacto, latejam, e cada vez que meu
pulmão se expande, minha caixa torácica alfineta. Tusso, ainda deitada no
meio dos sacos desconfortáveis, e não quero nem pensar na nojeira.
E onde caralhos eu estou?
Escuto urros irados, gritos e, quando abro os olhos, depois de esfregá-los
para enxergar melhor com a respiração mais regulada, vejo um corpo
masculino enorme imóvel no chão onde eu estava segundos antes. A cabeça e
os membros estão torcidos em ângulos impossíveis, algumas partes estão
ligadas ao tronco por fios rasgados de pele e também há dois caras brigando
na frente do poste.
Observo atentamente o homem mais esguio desviar de um soco do maior e
aproveitar essa abertura para perfurar a barriga do oponente com a mão. Ele
a enterra até o pulso e o vampiro mais alto e parrudo crava as presas no
pescoço do menor. No entanto, este último começa a arrastar a mão para
cima devagar enquanto força o ombro do outro para baixo, cortando seu
abdome de baixo para cima e fazendo as tripas caírem no chão aos poucos.
O bolor acre me invade imediatamente, misturado com o odor nauseante de
chorume.
Em pouco tempo, o homenzarrão retira os caninos afiados do menor para
dar seu último suspiro e o outro aproveita a abertura para finalizar o
trabalho. O grande vampiro desaba aos seus pés, no meio da poça enorme e
grotesca de sangue e vísceras. Eu realmente vou vomitar.
Meu Rá! O vampiro restante vira o rosto para mim, olhos rubros sob a luz
do poste. Ele caminha em minha direção, adentrando na sombra do beco.
Meu corpo espasma com a possibilidade aterradora de ser o tal do Secund...
— Não posso tirar os olhos de você que já se mete em confusão.
Minha respiração fica pesada, entrecortada, ao reconhecer a voz. Mais que
isso. Minha estrutura inteira se liquidifica ao som dessa voz.
Zaph ostenta uma postura despreocupada e olhos flamejantes.
— Fată ciu...
Mal ele para na minha frente e eu me lanço com os braços ao redor de seu
pescoço. As lágrimas rompem dos meus olhos quando seus braços
circundam minhas costas. Zaph tira meus pés descalços do chão sujo, me
apertando mais em si, e eu retribuo em cada medida, enterrando meu rosto
em sua nuca. Ele segura minha cabeça e minhas costas como se eu pudesse
me desfazer em névoa por entre seus dedos.
Não sei por quanto tempo ficamos abraçados, absorvendo a textura, o
aroma e o calor um do outro, mas também pouco me importa.
Zaph força uma separação e afrouxa minha cintura, colocando sua testa na
minha. Eu não quero fechar os olhos, com medo bobo dele desaparecer,
então também seguro sua blusa, como se isso pudesse sustê-lo aqui comigo.
O tecido escuro está empapado de sangue e mancha minhas mãos de
vermelho.
— Obrigada, obrigada. Obrigada por entender que eu precisava de um
tempo para pensar. E por me salvar. De novo. — Tanto eu quanto ele
liberamos uma risada rápida.
— Não vou dizer que foi fácil. Eu sinto que preciso de você, Alice. E
estou começando a achar que não é de um modo saudável. Eu nunca fui muito
possessivo, mas com você… Eu esqueço como é respirar da forma certa sem
você comigo. Eu quase me transformei num Vacor só pelo tempo em que
estive longe. Porque não conseguia parar de pensar no que poderia estar
acontecendo com você. Eu tinha que estar perto, eu tinha que sentir seu
cheiro. Eu não conseguia parar de imaginar você tentando se matar e eu não
podendo fazer nada, ou algum vampiro vindo até você e havia a porra do
Nödi puxando...
— Zaph, você me deu a escolha de recusar o Nödi se eu quisesse. Agora
eu estou te oferecendo essa chance.
Ele recua, suas sobrancelhas um tanto enrugadas e os olhos arregalados.
— Por que eu...
— Isso vai acontecer outras vezes. — Eu fungo, sem deixar de encará-lo.
— Vou ter ataques de pânico, crises depressivas em que não vou querer sair
da cama, vou ficar confusa e furiosa...
Meu monólogo é interrompido quando Zaph une nossos lábios, segurando
ambos os lados do meu rosto, e rapidamente se afasta. Seus orbes claros na
penumbra me estudam sem cessar.
— Eu disse que queria conhecer todos os seus cantos e nuances, não disse?
Agora que conheci, eu quero estar em todos eles. Além do mais, fizemos uma
promessa. Pela lua e as estrelas.
Uma risada entremeada a um soluço me escapa.
— E as infinitas possibilidades entre elas.
Dessa vez, sou eu quem o trago em minha direção. Fico na ponta dos pés,
envolvo meus braços ao redor de seu pescoço, e ele desce uma mão pelas
minhas costas até minha bunda, me puxando para si como se já não
estivéssemos quase fundidos um ao outro.
— Mas, tecnicamente, foi você quem prometeu. — Ai! Sinto um beliscão
na minha traseira. — Por que não respondeu nenhuma das minhas
mensagens? — pergunto, voltando a encará-lo com os calcanhares no chão,
mas sem tirar os braços de seu redor.
— Ah. Eu esqueci.
— Esqueceu?! — Crio um vinco profundo nas sobrancelhas.
— Esqueci. Não estou totalmente acostumado a ter um celular. — Uma
gargalhada me irrompe a ponto de eu jogar a cabeça para trás. E, quando eu
volto à posição normal, fico em meia ponta e grudo meus lábios com os de
Zaph ainda sorrindo. — Feliz aniversário — diz ele, baixo.
Espera… aniversário? JULIA, MELISSA! Ai meu Krishna, elas devem
estar loucas atrás de mim.
Eu saio de seu abraço e caminho para fora do beco imundo, que serve
como depósito de lixo dos apartamentos, nossos dedos ainda encaixados.
Trago meu foco para frente e no meio-fio há uma Sreet Bob preta fosca.
Pff. Tinha que ser. Miro Zaph com certo tédio e divertimento enquanto ele
sobe no banco com maestria.
— Quê? — ele pergunta, segurando o capacete da mesma cor. — Achou
que ia ser rosa?
— O que aconteceu com o carro?
— Vendi. Precisava me livrar dele antes que o rastreassem, por causa
daquele episódio no shopping. O Conselho não ia encobrir dessa vez — ele
diz, então pende a cabeça de modo presunçoso. — E uma moto é mais
econômica.
— Ué. — Dou alguns passos à frente, assistindo-o colocar o capacete. —
Pensei que o senhor fosse o todo poderoso mafioso.
— Eu sou rico, não burro.
A
ssim que viramos a esquina, avisto duas figuras que parecem ter
saído de um programa de TV, ou diretamente de um filme, bem em
frente ao portão de casa. Melissa está vestindo um espartilho preto
em arabescos, que realça seus seios medianos escondidos sob uma blusa
branca larga de mangas bufantes, na cintura usa um cinto de couro carregado
de uma escopeta, calças pretas justas, uma bota cano médio, para fechar com
chave de ouro: um chapéu triangular e um tapa-olho de couro marrom. Ao
seu lado, mexendo distraída no celular, há Julia vestida de… honestamente,
eu não faço a mínima ideia do que é aquilo. Seus cabelos trançados um de
cada lado descem até o busto, o batom em seus lábios cheios é de um violeta
vibrante, ela usa um vestido preto rodado de gola Peter Pan branca e mangas
curtas, meia-calça branca e um salto que lembra sapatilhas. Meu Deus, por
que ela está de salto? É só um jantar. Tudo bem que é o jantar mais
importante da minha vida.
Haverá a comida, que eu mesma preparei com tanto carinho e orgulho,
dança, minhas amigas, uma foto de Elis, minha família, Zaph… Será a
reunião de tudo o que amo, de todas as minhas razões para acreditar. Eu
peguei as fotos dos nossos momentos, que havia revelado para fazer a
colagem no meu quarto, e as espalhei em potinhos junto a flores ornamentais
e luzinhas pela sala. Não é porque temos momentos ruins que devemos
sacrificar os bons. Quero viver para sentir as emoções que tive em cada uma
daquelas fotografias.
Ambas parecem exasperadas, preocupadas e, assim que Ju ergue a cabeça
para falar com Mel, seus olhos me encontram. Zaph lentamente encosta a
moto rente ao meio-fio e eu retiro o capacete, sentindo o motor ser
desligado. Julia deixa o celular de lado e marcha em nossa direção como se
tivesse visto um fantasma.
— Onde você estava?! — pergunta ela próxima da moto, suas íris mogno
percorrendo cada peculiaridade entre mim, Zaph e a Harley. Ela olha para o
vampiro, num misto de raiva e dúvida. — Você foi transar ou foi
sequestrada?
Eu apoio uma mão no ombro de Zaph e levanto para passar uma perna
sobre o assento.
— A segunda opção.
Tanto Melissa quanto Julia trazem seus olhares para mim com espanto. Eu
descanso o capacete encaixado na lateral do meu corpo e abaixo do meu
braço.
— Quando que isso aconteceu? — Mel indaga, ainda me fitando de forma
intensa com seu único olho azul visível.
— Eu estava saindo do mercado. Dois homens… não, dois vampiros
metidos a lutadores de UFC apareceram e me levaram.
— Isso é estranho — ela diz, estável, franzindo o cenho e então elevando o
olhar para Zaph agora de pé ao meu lado na calçada. — Vampiros não
costumam sequestrar. Eles simplesmente matam.
— Eu disse isso a ela. — Então ele se vira para mim. — Você ouviu
alguma coisa?
Eu nego com a cabeça.
— Não. Eles falavam outra língua. Algo tipo russo.
— Russo? — Julia repete, enquanto Melissa e Zaph se entreolham.
— Eles não faziam parte da máfia — Zaph responde. — Não do grupo que
eu comandava.
— Podem ser novos integrantes.
— Ainda assim não explica por que a máfia vampira sequestraria Alice.
— Dã, ela não é a última herdeira do Drácula? — Julia troca o peso da
perna e balança o celular que segura.
— Não é assim que os vampiros agem, Ju — explico.
— A não ser que quem esteja no comando da máfia tenha ordenado que a
capturassem — Zaph conclui, mas eu constrinjo a testa.
— Mas isso não daria certo, daria? Eles me dividiriam em pedaços antes
que eu sequer pudesse chegar até o poderoso chefão.
— Talvez eles estivessem agindo por conta própria — Melissa palpita.
— Ou talvez eles estivessem trabalhando para mim.
Uma quinta voz surge no meio da noite nublada, cortando o vento fresco.
Eu a reconheço e, mesmo se não reconhecesse, a cadência das palavras ditas
com tanta tranquilidade chamou minha atenção. Viro estarrecida para trás.
No centro da rua mal iluminada pelos postes, há um garoto esguio e loiro,
com a postura relaxada enquanto analisa as unhas.
— Jake?
— Jake? — Zaph, às minhas costas, repete, porém num tom diferente que
eu não consigo decif… — Esse é o Adam, Alice.
Gradativamente, tal qual o sol que se põe no seu próprio tempo, as quinas
da rua parecem escurecer ainda mais sob a noite sem estrelas. Jak… Adam
esquece as unhas e seus olhos azuis me atingem como adagas feitas de gelo.
Porém o pior é notar seu sorriso sem dentes. Não ouso olhar para o alto e
ver se alguma nuvem encobriu a lua, mas rezo para que seja isso e não Adam
controlando as sombras que dançam em sua fisionomia. O ar parece
estagnado, rarefeito e o silêncio é esmagador.
Pela visão periférica, vejo Julia se inclinar devagar para Melissa.
— Quem caralhos é Adam? Ou Jake?
Eu reteso a mandíbula. Jake é Adam, o Secundus dos Cinco Grandes.
Tento não engolir em seco, mas minhas mãos começam a suar.
— Não precisam ficar tão tensos, eu só quero conversar — diz ele.
— Conversar o cacete — Zaph cospe. O Secundus iça as sobrancelhas
num assombro fingido junto às mãos, mostrando as palmas. No entanto, são
seus passos cada vez mais próximos que fazem meu coração rimbombar de
maneira vigorosa e lenta.
Meu peito sobe e desce, almejando controlar a respiração. Minha família
está dentro de casa. Eu não posso deixá-lo chegar mais perto. Pondero se
seria muita idiotice minha acreditar no 0,0001% de chance de ele realmente
querer só conversar.
— Fique bem aí. — Melissa dá um passo para frente e Adam para a
poucos metros da moto.
Ele suspira e abaixa as mãos, unindo os cílios.
— Vocês realmente não vão deixar eu me aproximar, não é? — Então seu
foco retorna a mim, animado como daquela vez em que nos encontramos na
lanchonete e na praça. Meu coração se comprime. — Nós somos amigos, não
é mesmo, Alice?
“Amigos”? Eu diria no máximo do máximo “conhecidos”.
De repente, o mundo parece estar numa enorme redoma de vidro, abafando
todo e qualquer som, até mesmo o de minha respiração acelerada. Eu aperto
minhas mãos em punhos.
— Você mentiu — digo, minha voz soando firme.
— E quem não mente, darling?
Travo a mandíbula, sentindo um uma brasa queimar em mim de súbito. Vejo
Adam inspirar fundo, ainda ostentando aquele sorriso tão simplório e
mordaz.
— Bem, acho que isso significa que não haverá conversa, estou certo?
— Certíssimo — Zaph rosna.
— Uma pena. — O sorriso se torna cabisbaixo. — Não queria que tivesse
de ser assim.
Sem mais, Adam se lança em nossa direção e me retraio com os braços
cobrindo os olhos bem apertados.
Entretanto, no instante em que noto o martelar no meu tórax, percebo que
ainda estou na mesma posição. Aparto as pestanas e abaixo os braços
devagar, voltando a olhar para frente. Minha respiração fica presa nos
pulmões quando me deparo com Zaph nariz a nariz, presas a presas com
Adam. O rosto retorcido em fúria ao forçar os deltoides e os músculos dos
braços, que impedem o Secundus de avançar. Eles entrelaçam seus dedos,
um tentando empurrar o outro. Em contraste à ira e esforço de Zaph,
irradiando em suas íris escarlates, o sorriso de Adam toma um teor lunático.
— Parece que você andou bebendo o sangue do Drácula — Adam cicia,
seus orbes carmim faiscando em contentamento. O pé de Zaph derrapa no
concreto, quebrando um pouco com o calcanhar. Lá se vai a calçada.
— Alice, entra em casa! — Melissa grita, me despertando do torpor, então
viro para a direção de sua voz. Mel está parada na soleira do pequeno
portão e apontando para o interior, seu único olho azul arregalado.
Talvez Zaph não seja o suficiente para enfrentar Adam, por estar uma
posição abaixo, mas agora ele tem um pouco do meu sangue, um pouco do
mesmo poder que corre pelas minhas veias, e Melissa. Então acho que eles
têm uma boa…
— Mas sinto lhe dizer — Adam fala outra vez, sorrindo mais próximo à
carranca de Zaph — que você ainda é inferior.
Ao mesmo tempo em que dou um passo adiante, para me juntar à Julia na
varanda, assisto Adam puxar Zaph para si e desgrudar uma de suas mãos
para fazer seu punho acertar em cheio a lateral do rosto do Tertius. Com a
força do golpe, Zaph é mandado para cima da moto, que desaba no asfalto.
Meus pés automaticamente dão meia-volta e um grito implora para eclodir,
mas não tenho tempo. Melissa se joga em Adam antes mesmo que ele possa
dar um passo à frente. Porém, se nem mesmo Zaph conseguiu segurá-lo por
muito tempo, Melissa é facilmente pega pelo pescoço e arremessada para
dentro da varanda de minha casa, quebrando alguns vasos de planta com a
aterrissagem. Então os olhos carmesins de Adam e seu sorriso maníaco se
voltam para mim.
— Sua vez.
Uma descarga de adrenalina percorre minha coluna e me obriga a disparar
para longe. Porém, duas ou três piscadas e Adam está acima de mim. Seus
caninos reluzem em saliva, a luz fraca do poste e a escuridão da noite lhe
conferindo um contraste bestial.
Eu fui atacada por Maicon no cinema, por uma guia no museu, por um
Vacor no estacionamento, na porta de casa em pleno Natal e no meio da
rua… Mas em nenhuma dessas vezes eu me senti tão próxima da morte
quanto nesta. E, pela primeira vez, a sensação me terrifica.
Adam estica sua mão em garra na minha direção conforme tropeço nos
meus pés, o ar me faltando, meus músculos vibrando, e seus dedos cada vez
mais próximos de mim. Contudo, não sou eu quem sua mão alcança.
Um corpo invade minha visão e dele irrompe o antebraço de Adam,
segurando um coração ainda pulsante nos dedos embebidos de sangue.
O universo testemunha quieto enquanto eu ouço apenas o retumbar dos
meus batimentos cardíacos nos meus tímpanos, minhas pálpebras
esbugalhadas mirando acima. Demoro a assimilar todo o enquadro.
Julia está parada diante de mim, de pé, com os olhos escuros tão abertos
quanto os meus, tão amedrontados quanto os meus. Porém de seu peito sai a
mão do Secundus, que ostenta o órgão que lateja cada vez mais errático
enquanto espirra e goteja o líquido viscoso rufo e denso, como se oferecesse
a mim um prêmio.
Eu encaro, boquiaberta, o rosto espantado de Julia e é seu engasgue, o som
esganiçado que sai de sua garganta em meio ao sangue que escapa de sua
boca, que quebra meu choque.
Adam repuxa o braço, deixando o rombo na caixa torácica de Julia bem à
vista. Mais sangue verte de sua boca, e tudo que eu consigo fazer é gritar.
Julia cai de joelhos à minha frente, bem no meio dos meus pés. Imóvel.
Rapidamente eu me ajeito de modo a amparar a queda de seu corpo,
segurando-a por debaixo dos braços. Minhas mãos se banham em seu sangue,
sentindo o quão morno ele é quando sua cabeça pende em meu ombro e
abraço suas costas. O odor acídulo e férreo invade minhas narinas.
— Julia, Julia, por favor! — Lágrimas borram minha visão e escorrem
incessantemente pelas minhas bochechas. São lágrimas grossas, salgadas e
quentes. — Julia! Por favor…
Minhas mãos tremem conforme a viro com o tronco para cima no meu colo,
e um soluço me escapa quando visualizo o buraco profundo no meio de seu
peito, o fluido rubro manchando e empapando seu vestido.
Os olhos da minha amiga permanecem vítreos, o brilho de suas íris escuras
cada vez mais fraco, sua boca entreaberta pintada de roxo e vermelho
caliginoso do sangue. Com dedos titubeantes, retiro uma mecha de cabelo de
sua testa.
— Não, por favor… — Minhas lágrimas caem em sua testa, sua bochecha
e escorrem até se misturar ao seu sangue.
Mal tenho tempo de agonizar, e mãos grandes agarram meus bíceps por
trás. O pânico me assola. Não por eu não saber quem está me levando, mas
por me afastarem de Julia, agora jazida de olhos abertos no chão da calçada.
Berro e esperneio, sem tirar os olhos molhados dos sem vida da minha
amiga. Mas as mãos não me soltam, elas só se tornam mais firmes ao redor
da minha cintura, tirando meus pés do chão. Sinto minha garganta
enrouquecer de tanto bradar, minha cabeça latejar de tanto chorar, meus
olhos inchados e meu nariz escorrer.
Finalmente paro de me contorcer quando me vejo sendo posta na garupa da
moto, o motor rugindo pela noite. Com o repentino acelerar, meu corpo é
lançado para trás e me agarro à primeira coisa que minhas mãos tateiam: o
corpo do homem à minha frente. O perfume de pinho e concreto invade meu
nariz quando meu rosto gruda na camiseta de tecido grosso em suas costas
largas, e o reconhecimento me abate.
Revivo a cena incontáveis vezes, sem piscar. Aos poucos, a conformação
vai me preenchendo. O vento frio que bagunça meus cabelos e sacoleja de
forma violenta minha saia à medida em que a motocicleta corta a noite em
alta velocidade, aquietando meu peito sôfrego.
Fecho os olhos, deixando escapar soluços rendidos.
— Alice, chegamos.
Hã? Ouço a voz de Zaph soar calmamente, como se tivesse pena de me
acordar. Eu nem percebi que havia caído no sono. Sinto minhas pálpebras
dolentes do choro.
Pisco algumas vezes, espantando o fantasma do sono, enquanto massageio
meus braços doloridos por terem ficado dobrados tão tensos. O aroma é
diferente, mais suave, e tem cheiro de terra molhada.
Devagar, as lembranças me acometem junto com a enorme sensação
entorpecente de perda.
— Ela está morta. — Minha voz não é mais do que uma lamúria. Sem
desviar os olhos do banco de couro carvão da Street Bob entre mim e Zaph,
ainda enxergo o rosto moreno petrificado e ensanguentado de Julia no meu
colo. — Adam a matou.
Ouço o movimento de Zaph girando no assento da moto ao mesmo tempo
que minha visão turva, porém permaneço em transe, sem piscar, remoendo as
cenas anteriores.
— Ela se colocou na frente. Era para ter sido eu.
— Eu sinto muito, inimioara mea. — O tom de Zaph mescla pesar com
carinho, e posso sentir tudo isso entrando pelos meus poros quando suas
mãos pegam, minhas bochechas. Meus lábios tremem conforme tento
reprender o choro, o aperto no meu coração desejando ser liberto para gritar
com Deus e o mundo. Mas um reconhecimento me atinge e abro os olhos.
— Adam vai matar todos. — Ergo o olhar para Zaph. — Minha família,
ele…
— Ele não vai atacar sua família — afirma Zaph. — Embora pudesse
facilmente entrar na sua casa e secar sua mãe, ele não vai querer arriscar
perder a última descendente do Drácula de vista. Ele ainda não sabe de
Clarisse. Ninguém sabe. Adam e eu trabalhamos de formas diferentes, não
vai demorar até ele reunir os aliados dele e vir te procurar.
— Melissa…
— Ela está bem. — O vampiro tira as mãos do meu rosto e segura uma das
minhas. — Ela conseguiu segurá-lo para que pudéssemos escapar. Ela está
com eles.
Zaph passa uma perna por cima do banco e fica de pé ao lado da moto
estacionada.
— Onde estamos? — indago, desmontando da Harley e sem tirar os olhos
da estrutura levemente assustadora logo adiante.
Há uma simplória cabana de madeira, quase completamente coberta de
musgo e outros fungos, no meio de uma clareira úmida. Uma escada de
poucos degraus leva à pequena varanda ante a porta estreita.
— Num lugar seguro. — Zaph me puxa pelo capim e cascalho até o chalé
minúsculo. Torço a boca quando escuto um estalar e uma parte do telhado se
partir e cair na varanda.
— Não me parece muito seguro.
— Mas é. Mais do que a sua casa ou a minha nesse momento. — Ele, que
já estava no primeiro degrau da cabana maltratada pelo tempo, vira meio
corpo para mim. — Vamos conversar lá dentro.
A porta rilha ao ser empurrada para dentro e... despenca. Nossa,
realmente, me sinto muito mais segura. O ambiente, sem surpresas, está
mergulhado na penumbra com alguns raios de luz pálida entrando pelas
frestas do teto quebrado. Não há nada na cabana. Nem uma fogueira, uma
caminha, armários... nada.
— Charmoso.
Zaph dá um passo para dentro e eu o acompanho. A madeira úmida reclama
abaixo dos meus pés.
— Onde estamos exatamente, Zaph? — questiono, observando com atenção
cada detalhe das paredes apodrecidas e quinas mofadas, com folhas de
trepadeiras aparecendo pelas fendas.
— Na parte mais esquecida da Floresta da Tijuca.
— Existe algo assim na Floresta da Tijuca? Não, melhor: por que tem um
lugar assim no meio da... Quer saber, deixa pra lá, não quero saber. — Zaph
se dirige para o final da cabana e se senta de pernas cruzadas no chão, com
as costas apoiadas na parede.
Caminho até onde ele se estabeleceu e me abaixo ao seu lado para fazer o
mesmo. Zaph encolhe uma das pernas, repousando o braço sobre o joelho.
— Você já o tinha encontrado? — ele inquire, o topo da cabeça na madeira
e mirando o teto esburacado.
— Poucas vezes. Mas não sabia que ele era o tal Adam. — Assim que
sento, puxo meu tornozelo e massageio a sola do meu pé imundo. Minhas
mãos ainda estão sujas com o sangue seco de Julia, e isso envia uma corrente
elétrica pela minha coluna.
— Nem ao menos suspeitou?
— Eu suspeitei que ele fosse um vampiro, não o Secundus!
Zaph fecha os olhos e solta um suspiro.
Ver Zaph, sempre tão inabalável, rendido dessa forma é como ver minha
própria ruína.
“Você ainda é inferior”, Adam dissera a ele.
— Precisamos de ajuda — lanço.
— Quem vai nos ajudar se podem tirar um pedaço de você também? — Ele
abre os olhos e abaixa a cabeça, mordiscando a unha do dedão, pensativo.
Por fim suspira, abaixando a mão e o ombro. — Terei de enfrentá-lo.
O desespero de repente ocupa todo o espaço do buraco em meu peito. E,
movida por ele, eu tomo uma decisão.
— Não precisa fazer isso sozinho.
Zaph fica em silêncio, me estudando enquanto eu também o estudo. Todas
as conversas sobre o assunto voltam à minha mente, contrapondo-se à
situação atual como se fossem cartas de um baralho sobre uma mesa.
— Precisamos disso, Zaph, você sabe — recomeço, tentando contornar
minha insegurança. — É o único jeito de termos certeza que vamos ganhar e
todos sairão ilesos. — Eu guino a cabeça. — Todos menos o Adam, claro.
— Minhas sobrancelhas se curvam. — Eu estou cansada de ver todos se
machucando no meu lugar, Zaph. Eu me recuso a assistir você morrer. Não
quando temos a carta coringa bem aqui.
O vampiro continua quieto, me esquadrinhando de cima a baixo.
— O que está fazendo? — Um sorriso um tanto desdenhoso ameaça em
meus lábios.
— Dando uma última olhada. — Seu timbre é tão sóbrio que me assusta.
— Eu não vou morrer, seu bobo. — Espero.
— Uma parte de você vai.
Então todo e qualquer vestígio de sorriso, de brincadeira, desaparece.
A partir do dia em que presenciei Zaph destroçar a cabeça daquele
vampiro com as próprias mãos, eu me perguntei se não haveria outro jeito.
Se teria como ser vampiro sem ter que manchar as mãos de sangue. Mas,
infelizmente, entre vampiros é matar ou morrer.
— Você um dia me disse que vampiros não deixam de ser muito diferentes
do que eram quando humanos. Eu darei uma parte de mim de bom grado se
isso mantiver aqueles que eu amo a salvo. Todos eles sacrificaram algo por
mim para me manter segura. Minha mãe perdeu os irmãos, meus tios
perderam seus filhos, Melissa perdeu um olho, Julia perdeu a vida. — Minha
vista começa a turvar quando a enxurrada de emoções que tenta invadir meu
peito provoca lágrimas em meus olhos. Mas eu as detenho. — Vencer requer
sacrifício, mas proteger requer determinação.
Ele me estuda mais uma vez e eu o encaro, mostrando a força que eu
prometo ter. Eu vou cair. Mas eu vou me levantar. Por aqueles que prezo,
pela vida, pelo que acredito. Não vou acertar todas as vezes, mas ao menos
vou tentar.
Zaph enche os pulmões de ar, sem piscar e sem tirar os olhos de mim.
— Vai doer. — O aviso em seu tom barítono repercute pelo meu corpo
como um jorro de água gélida.
— Ok — respondo, resiliente.
— Muito.
— Tudo bem.
— Alice, você nunca lutou nem com um ursinho de pelúcia, como vai
enfrentar o Adam?
— Eu não sei. Estou contando com as habilidades de Primus e umas dicas
suas. — Subo e desço um dos ombros, mostrando um sorriso um tanto quanto
jocoso. — Mas, isso não afetaria a Promessa que vocês fez, de alguma
forma?
Zaph libera o fôlego pelo nariz
— Não sei. Teremos que arriscar. Mas não tem problema, se você pode
perder a humanidade eu posso sentir um pouquinho de dor. — Um vestígio
de sorriso paira em seus lábios e isso desafoga meu peito.
Zaph desencaminha o foco de mim para examinar cada lado da cabana
fedida a mofo. Dando um impulso com a mão na parede, ele se coloca de pé
e vai até a porta quebrada. Seus passos ecoam na madeira e, quando ele
atinge a abertura, se apoia no batente para verificar ambos os arredores.
— Quando você acordar, você vai querer sangue. Muito sangue. — Tento
não torcer o nariz. — Mas não tem nenhum animal à vista e não posso deixar
você sozinha, talvez seja esse o momento em que Adam esteja esperando
para atacar. — Ele volta seus olhos para mim. — Terá que ser o meu.
Observo-o atônita, ainda sentada, enquanto ele atravessa o chalé na minha
direção. O vampiro se abaixa de cócoras diante de mim, olhando no fundo
dos meus olhos.
— Você terá que beber o meu sangue.
Eu deixo que o peso de suas palavras entre em mim e, depois de inspirar
fundo, anuo com a cabeça.
Meu coração está fazendo bungee jump dentro do meu peito, quase sem
acreditar no que está prestes a acontecer. Zaph apoia a mão no chão
empoeirado e se posiciona sentado atrás de mim.
Controlo um arrepio quando as pontas dos dedos de Zaph retiram lenta e
delicadamente as mechas de cabelo do meu pescoço, deixando à mostra
minha jugular. Suas mãos acariciam meus braços de baixo para cima até
chegarem aos meus ombros. Zaph me segura ali, com propriedade,
impedindo que eu fuja. Prendo a respiração, embora sinta meus batimentos
cardíacos ressoarem em meus ouvidos. Seu hálito morno sopra na minha
pele exposta. Segundos depois, Zaph crava seus caninos em mim. E dessa
vez não é para sugar meu sangue. Ué, mas cad... AAAH!
Trinco os dentes, tensionando a mandíbula para lutar contra o ímpeto de me
encolher, girar e rolar no chão apertando meu pescoço. A ardência... não,
isso não arde, queima. De dentro para fora. Sinto um rio de lava correr pelas
minhas veias e meus órgãos todos borbulharem.
— Urgh! — Não aguento segurar o gemido de dor que escapa por entre
meus dentes.
Meu interior todo se incendeia com um calor insuportável e começo a suar.
Dá vontade de me arranhar, tirar minha pele fora, qualquer coisa para parar
de sentir esse fervor!
Zaph segura uma de minhas mãos. Retribuo o gesto entrelaçando nossos
dedos com força, conforme a dor excruciante obriga um novo rugido a sair
do fundo da minha garganta.
Então eu sinto o ar se extinguir. Por mais que eu tente puxá-lo, abrindo a
boca como um peixe, nada entra e nada sai. Involuntariamente minhas pernas
começam a se debater, e logo é a vez dos braços, que tocam minha garganta
em busca de oxigênio. Zaph permanece com as presas em mim e, conforme
me debato, ele me circunda com um braço para evitar que eu me machuque.
Não sai uma palavra da minha boca, apenas ruídos roucos de uma pessoa
desesperada para respirar. Então tudo roda, minha visão embaça…
Abro os olhos de supetão, sugando ar pela boca, mas não estou mais
sufocada.
Percebo o rosto de Zaph acima do meu, seus olhos me analisando
veemente. Não sinto mais o calor, apenas um frescor que vai e volta. Há uma
ansiedade crescente em mim, que me mantém em frenesi.
E há algo mais, algo intenso que esmaga meu coração e que está me
compelindo, me empurrando, de uma forma brutal em direção a Zaph, como
se fôssemos duas partes de um todo, mas ao mesmo tempo duas forças
opostas, girando ao redor do mesmo núcleo. Isso... isso é o Nödi?
Começo a me apoiar nos cotovelos para erguer o tronco e Zaph me ajuda
pelas costas.
— Por um momento pensei que não fosse acordar — ele segreda.
Não falo nada. Tenho medo de abrir a boca e avançar sobre a primeira
pobre coisa viva que eu encontrar. Meu corpo inteiro vibra, minha boca
parece ressecada, minha garganta arranha.
— Aqui. — Zaph estende o pulso.
Meu olhar vidra no pulso lívido de Zaph e percebo todas as veias e
artérias ali. O perfume dele de repente parece muito mais dulcificado, muito
mais tentador. Minha boca saliva.
Eu não sei como fazer, mas, por instinto, agarro a mão de Zaph e escancaro
a boca, mal esperando os caninos se prolongarem por completo para
perfurar sua carne. A dor lancinante nas gengivas é aliviada no exato
momento em que... Argh! Deuses, como isso é bom.
É incrível, eu sou capaz de sentir tudo. Meus dentes são como agulhas
hipersensíveis que conseguem monitorar o fluxo de sangue do corpo inteiro
de Zaph. É a sensação mais deliciosamente estranha que já provei. Agora
entendo por que Zaph gostou tanto quando eu acariciei suas presas. E, Nossa
Senhora, parece uma torrente de água molhando uma cachoeira seca… Meus
lábios atocham no pulso de Zaph absorvendo, além de seu sangue, o gosto
suave e um tanto salgado de sua pele na minha língua. Sou incapaz de reter
um gemido de prazer.
— Alice — a voz de Zaph sai entrecortada — chega.
Eu não quero parar, está tão quentinho. Tem um sabor único, fascinante e
agridoce.
— Alice! La dracu!
Os dedos livres de Zaph, de repente, se pressionam contra a base da minha
garganta, e rapidamente retiro as presas do músculo dele para respirar.
Quando elevo meu olhar para Zaph, ele parece exausto. Era assim que eu
parecia quando ele sugava meu sangue?
— Melhor? — ele pergunta depois de passar a língua pelos lábios,
escondendo um sorriso torto.
— Um pouco. Quero mais. — Minha voz sai como o meu interior, fremente
devido a um desejo reprimido. Ele deixa o meio sorriso transparecer
enquanto recupera o fôlego.
— Sei que quer.
Um barulho entre as folhas lá fora ressoa, como se um animal estivesse
espreitando nos arbustos.
— Sorte a sua. — Minha atenção retorna a Zaph, que também fita, austero,
a porta. Ele se põe de pé, mantendo os punhos cerrados ao lado do corpo e o
olhar duro. — Seu banquete chegou.
Quando Zaph dá o primeiro passo adiante, uso uma mão de suporte no chão
e me levanto.
— Então era verdade. — Adam. A voz dele percorre a distância e entra
por onde Zaph está parado, de costas para mim. — Zaph Petrescu, o Tertius,
apaixonado por uma humana. E não uma humana qualquer: a última
descendente do Drácula! — A gargalhada de Adam propaga-se pela clareira.
Um ódio que nunca senti na vida me instiga e faz as presas pulsarem nas
minhas gengivas.
Eu abro e fecho minhas mãos. Eu não queria ter de fazer isso, mas Adam
não facilitou a escolha quando tirou de mim alguém tão precioso. E ainda
pretende tirar muitas mais. Se vai ser assim, eu serei tão obstinada quanto
ele. Inspiro fundo e caminho para a porta.
— Como a vida é irônica, não é? — Ele volta a falar, o veneno escorrendo
por suas palavras. — Zaph, Zaph, você não era de fugir. Andar com humanos
te deixou tão covarde assim? Cadê a garota?
— Estou aqui.
Se ele ou qualquer outra criatura quiser machucar alguém valioso para
mim, terá que passar por cima do meu cadáver.
Passo pelo portal estreito e me junto a Zaph na pequena varanda. Agora os
aromas de madeira molhada e ervas parecem ainda mais evidentes, porém
leves, o vento é agradável em contato com a nova condição oscilante da
minha temperatura.
Observo a horda de vampiros com Adam no centro e mais próximo. Ver
seu sorriso petulante me enerva e entristece, o que me confere um semblante
impassível. Os outros lacaios, ou sei lá o que eles são de Adam, seguem
atrás, sob as sombras das árvores ao redor da clareira. Olhos vermelhos e
laranjas cintilando naquele entremeio entre o amanhecer e a noite.
Ao ver tantas carnes macias para eu fincar meus dentes, meu corpo
estremece e a base dos meus dentes pulsa. Umedeço os lábios.
— Well we... — O sorriso cínico de Adam se desfaz num piscar de olhos
ao trazer sua atenção para mim. — Você a transformou.
Ele disse isso quase num sussurro, mas eu e os demais ouvimos
perfeitamente. A cambada de vampiros e vampiras que Adam trouxe consigo
teve a mesma reação que ele, suas expressões variando de espantadas a
atemorizadas. Será que são todos vampiros ou Adam convocou reforços de
outras raças?
Em resposta, Adam faz uma carranca e suas íris passam de safiras para
rubis. Notar o jeito furioso com que ele me encara faz as terminações
nervosas das minhas presas implorarem para serem fincadas em alguma
coisa.
— Bem — Zaph abre um sorriso afetado e torna o corpo de lado para mim,
imitando uma reverência — o jantar está servido.
Sorrio em resposta, gostando da sensação incomum dos meus caninos
pesando. Escuto o urro irado de Adam e viro o rosto em sua direção. Ele
avança com os dentes à mostra e os outros atrás dele fazem o mesmo. Agora
não tem mais volta. Se pelo sangue eu cairia, então pelo sangue eu
ascenderei.
Pulo os degraus da varanda, pousando na grama bem a tempo de encarar
Adam. Desvio de um soco seu, aproveitando para virá-lo de costas e chutá-
lo para longe. Sempre foi fácil assim? Sem dar brecha, outro vampiro
avança por cima, mas Zaph se choca no ar na direção dele e o derruba,
desferindo uma série de golpes, os quais eu não tive tempo de ver, pois lá
vinha uma vampira pela minha lateral.
Quando consigo me livrar dela, me esquivando para trás e perfurando sua
barriga com a mão – não, não foi minha intenção –, Adam me pega
desprevenida, me derrubando de bruços na terra. Rosno, me debatendo
contra suas mãos que me arranham e me pressionam contra o chão. O
reverberar da sua gargalhada sobre mim envia a flama que eu preciso e, com
um movimento do cotovelo para cima somado aos quadris, eu me liberto,
rolando e jogando-o para o lado. Antes que ele possa se afastar, agarro seu
braço e o puxo. Subo em cima do Secundus e o soco entre as costelas para
tirar seu ar. Mas acho que acabei fraturando algumas delas, pois pude sentir
os ossos rachando sob os nós dos meus dedos. Obrigada, filmes de ação.
Aproveito a abertura e não perco mais tempo: foco nas veias em seu
pescoço, desço a cabeça e cravo meus caninos afiados nelas.
Adam solta um brado de dor e, desta vez, eu não me retenho. Minha língua
tateia a posição de cada artéria sua, tateia o fluxo de seu fluido vital vindo
em direção aos meus dentes. No momento em que sinto seu sangue encher
minha boca, deixo que a sede e a raiva tomem conta de mim. Resta nada do
que fui além de pura necessidade e fúria. Adam ainda tenta se livrar, me
sacudindo e me empurrando, mas eu pressiono mais meus dedos em seus
ombros, enterrando as pontas deles em seu músculo, para mantê-lo deitado.
A premência de saciar a fome e o gosto do sangue vindo em goles grossos
me dão forças. É tão quente, tão saboroso, extasiante, viciante...
— Alice!
Escuto a voz de Zaph e saio do torpor, retirando os dentes do pescoço de
Adam para procurar meu namorado. Encontro-o próximo a mim, dilacerando
com as mãos o pescoço de um vampiro que teve a ousadia de me atacar
pelas costas.
Quando Zaph sai da frente para interceptar outro, mais dois vampiros se
jogam em minha direção por ambos os lados. Assim que me abaixo e rolo
para longe, agarro o pulso do mais próximo e o puxo até que seu pescoço
esteja numa distância acessível. Cravo minhas presas em sua jugular e
seguro a lateral de sua cabeça, engolindo a goles grandes o seu sangue
salubre, e o sinto encrustar seus dedos nas minhas costas. Uma ardência
acende na minha escápula, mas por pouco tempo, pois o vampiro que o
acompanha aproveita minha ocupação para atacar com sua mandíbula
escancarada. Em vez de soltar o pescoço do primeiro, eu empurro sua
cabeça e fecho a mandíbula, retirando um pedaço seu. Contudo, como seus
dedos ainda estavam grudados em mim, ele rapidamente volta com os
caninos à mostra. Eu uso isso para mover os pés e colocá-lo no caminho do
segundo. Pego sua cabeça com a outra mão livre e a giro. Conforme seu
corpo míngua, seus dedos saem da minha pele e o outro se aproxima bem
quando Zaph o agarra pelo pescoço com uma única mão e o leva ao chão.
Zaph ergue o olhar vermelho para mim, esbaforido.
Vindo de dentro, não do meu estômago, não do âmago, mas de algum lugar
além do meu corpo, além da minha alma, uma energia me irrompe. Me
preenche por completa, escorregando por entre as rachaduras que havia em
mim e soldando meus pedaços quebrados. Não resta nada de mim. Não da
Alice que me habitava. Meu ego e superego desapareceram. Não há
escuridão em mim, apenas um fogo que arde, mas não queima. Ele ilumina e
guia. Sou fogo e neve ao mesmo tempo. Eles correm pelas minhas veias,
inibem minhas dores. Suas labaredas instigam minha fome, me dando forças,
mas seus flocos me transmitem calma.
Vejo uma vampira de cabelos rosa vir correndo em minha direção e
rapidamente eu... Espera. Eu conheço essa mulher. A recepcionista do
clube.
A imagem de Melissa vem à minha mente. Essa vampira é o par da minha
amiga. Não posso matá-la.
Quero que todos possam encontrar seus parceiros ligados ao Nödi e que se
sintam como Zaph faz eu me sentir. Até aqueles que são meus inimigos agora,
de íris escarlates reluzentes em sede, mas parecendo tão perdidos quanto eu
estava.
Eu espanto suas mãos com facilidade e seguro seus ombros, derrubando-a
no chão. Eu a prendo com as pernas ao lado do seu quadril enquanto ela
trava a mandíbula, mostrando os dentes. Quero dizer a ela para parar,
contudo, minha garganta trava de sede. A vampira tenta me arranhar, porém,
nesse momento, seu dedo passa perigosamente perto da minha boca e eu o
arranco com um puxão.
A mulher grita em agonia e eleva a outra mão, espalmando-a no meu rosto.
Finco meus dentes afiados em seu pulso e minha língua adeja na sua pele
suave, trazendo para mim a localização exata das veias. Sugo um pouco do
sangue fino e ralo dela antes que puxe a mão de volta – grande erro –, e eu,
na minha enorme vontade de continuar a beber sangue, cada vez adquirindo
mais energia, puxo para cima, fazendo com que “sem querer” eu arrancasse a
mão dela.
Acabo de drenar a mão decepada que ficou na minha boca enquanto escuto
seu lamúrio.
— Alice! Alice! — Sinto uma mão em meu ombro. Quando vejo, é Zaph
com os lábios sujos de sangue e uma expressão de extrema preocupação em
sua face lanhada. — Chega, dragostea mea — Zaph diz, brando, e aos
poucos a realidade dos eventos retorna a mim quando o silêncio invade meus
ouvidos. Eu solto a mão, agora cadavérica, deixando-a cair na barriga da
recepcionista abaixo de mim, que ainda murmura e chora de dor.
Levanto, com a ajuda da mão estendida de Zaph, e abaixo o olhar para a
garota no chão. Seus olhos estão comprimidos, molhados pelas lágrimas, o
cabelo rosa bagunçado e com folhas. Ela não tem mais o dedo do meio, só
um coto escorrendo sangue pelos braços até a grama e manchando a roupa,
mesclando-se com o fluido vermelho que verte e esguicha do pulso direito.
A vampira choraminga enquanto se arrasta para trás, para longe de mim,
criando uma faixa de sangue na grama. O que me leva a olhar para os outros
vampiros que restaram, mais afastados, acuados, receosos... e os corpos
mutilados no chão. Dirijo meu foco para Zaph ao meu lado, seus olhos
escarlates refletindo um misto de emoções.
Miro minhas mãos embebidas de sangue, a pele dos meus seios exposta
pelo decote do cropped salpicada de gotas e minha saia melada. O que eu
fiz?
Sou agora feita de fogo, neve e algo mais sombrio. Algo antigo. Quase
como se o sangue de Viorel ativado em minhas veias tivesse trazido algo
mais. Eu sinto isso correndo pela e sob a minha pele pálida, tramada à frieza
e quentura. Magia.
Escuto um urro alto e selvagem de pura fúria soar às minhas costas. Giro,
surpresa, a tempo de ver Adam de pé, mesmo que bambo, usando suas
últimas forças para correr em minha direção. Quando se aproxima de mim,
ele escancara a boca e se prepara para atacar, mas no momento em que a
unha dele arranha minha testa e sua mão agarra meu pescoço, um relance do
modo como ele matou minha melhor amiga cruza minha mente e o imito.
Posiciono minha mão de forma reta e ela atravessa o peito de Adam como
uma lança.
Estagnamos nas respectivas posições. Um silêncio mórbido é cortado
apenas pelos sons do vento batendo nas folhagens, conforme os primeiros
raios solares começam a despontar. Meu braço continua envolto por órgãos
ainda mornos, uma mão de Adam agarrando meu pescoço e a outra
segurando minha cabeça. Quando ele as abaixa, fraco, o Secundus abre um
sorriso trêmulo.
— You... Bitch. — Ele cospe sangue no meu rosto quando fala.
Automaticamente eu passo a língua pelos lábios e o sorvo.
Puxo meu braço de volta devagar, até reconhecer o coração dele
bombeando fracamente. Então o agarro e retiro minha mão com força.
Imediatamente Adam vai ao chão e seu coração bate em minha palma.
Estudo o órgão pulsando descompassadamente e vertendo sangue em minha
mão. Ele diminui a velocidade aos poucos. Um impulso faminto e curioso me
faz o levar até a boca. Primeiro passo a língua pela superfície escorregadia e
me delicio com o gosto do sangue poderoso de Adam. Cravo os dentes e
sugo o restante que há ali, até fazê-lo colapsar e parar por completo.
Assim que não há mais nada, deixo o coração murcho de Adam cair na
grama. Volto minha atenção para os poucos vampiros que restam na clareira.
Ninguém se move ou fala.
Fecho os olhos, me sentindo saciada, menos descontrolada. Ainda há um
monstro em mim, mas ele parece diferente agora. Respiro fundo e encaro
com seriedade as Criaturas da Noite da qual agora faço parte.
— Não vou caçar vocês — digo em voz alta. — Não tenho interesse
nenhum em matá-los. Fiquem à vontade para irem embora e viverem suas
vidas como quiserem. Mas saibam que se chegarem a um quilômetro e meio
perto da minha família, eu os esfolarei membro por membro.
Alguns poucos deram passos para trás, outros se embrenharam e sumiram
por dentre as árvores. Os que ficaram, pouco a pouco, foram se dispersando
até permanecer somente eu, Zaph e os cadáveres espalhados pela clareira.
— Mas eles vão caçar você — ele diz, sem me olhar.
— Eu sei.
Inspiro fundo, tentando conceber que agora essa é minha vida. Abaixo a
cabeça para minhas mãos e braços ensopados de sangue, o miasma pungente
invadindo minhas narinas.
— Zaph — eu o chamo, sem desviar a atenção dos meus dedos puníceos.
— Hum?
— Nunca mais me deixe fazer isso.
Meses atrás, se eu visse uma cena assim, teria feito xixi nas calças – como
realmente aconteceu – e vomitado – como também aconteceu. Mas agora eu
analiso cada um dos corpos retorcidos e faltando partes, com carne expostas
e olhos revirados pelo gramado empoçado de fluidos vermelhos escuros...
Afinal, acho que vou precisar me acostumar com isso.
— O que a gente faz com eles? — pergunto. — Eles não vão virar cinzas,
vão?
— Não, mas eles se decompõem rápido. Quando o sol nascer totalmente,
já não vai ter nada além dos ossos.
— Tá, e o que a gente faz com os ossos?
— Podemos vender na Deep Web. — Eu o olho de rabo de olho. Zaph, tão
enlameado e ensanguentado quanto eu, apenas dá de ombros com uma
expressão inocente. — Quê?
Não seguimos direto para casa. Nem para a dele nem para a minha. Não
por não querer chegar nesse estado, toda suja de sangue e terra, mas porque
eu ainda estou muito abalada com o que acabou de ocorrer. Aquilo tudo,
todos aqueles vampiros, todo aquele sangue jorrado... Eu fiz coisas que
jamais pensei que faria e sem sentir remorso. Não estou nem um pouco
orgulhosa, mas também não estou triste. Não sinto que vinguei Julia, mas me
tira um meio sorriso saber que com certeza ela teria dito um sonoro: “Se
fodeu, otário!”.
Muitos correlacionam a morte ao tenebroso, à cor preta, porém, muitas
vezes ela vem vestida de branco. O que não significa que seja bom ou ruim.
O ceifador que pode vir te buscar, talvez seja mais gentil do que o anjo de
asas douradas. Pensar na morte como algo obscuro é se atormentar sem
necessidade. É o mesmo que pensar na vida como apenas uma passagem de
tempo limitado, onde precisamos correr porque pode acabar a qualquer
momento. Estar vivo é determinar seu próprio tempo, aprender a manejá-lo.
A morte nada mais é do que o sinal de que você já absorveu tudo o que tinha
de absorver. Não é questão de ter um propósito, mas sim de ser o propósito.
É algo natural, não é o fim nem o começo, e virá quando tiver de vir. E é por
isso que eu sei que a Julia, meus primos, tios e milhares de outras pessoas
estão bem. É por isso que meu coração está leve.
Vou sentir saudades deles, claro, no entanto, de algum modo, eu os tenho
comigo. Correndo em minhas veias.
Mas talvez eu esteja sendo um pouco dura. Ninguém é obrigado a se
conformar com a morte. Nisso, Zaph e eu somos parecidos. Em trezentos
anos, ele matou mais do que gostaria, eu, em dezenove, vi mais gente morrer
do que gostaria.
Paramos na Vista Chinesa, porque eu nunca tinha ido até lá e por que eu
precisava de um tempo para pensar, pegar ar puro, longe de casa e daquela
cabana. O sol começa a nascer no horizonte além do corrimão e do vento que
sopra por entre as árvores.
Respiro fundo, admirando a paisagem que é a zona sul do Rio sob o véu da
aurora. O céu de nuvens passageiras em tons pastéis de rosa e amarelo, e a
neblina que navega por entre os morros verdes aos poucos revela cada vez
mais os contornos. O Cristo Redentor com seus braços esticados à minha
esquerda, as águas azuis acinzentadas dos lagos e lagoas cortando os
prédios, a imponente curva do Pão de Açúcar mais adiante, as ondas ferozes
dos mares como sodalitas que recebem a luz branda do sol, por trás dos
edifícios à direita...
— Como se sente? — Zaph questiona, e respondo com um sorriso sincero
ao virar para encará-lo.
— Mais forte. — Debruçado com os dois antebraços no corrimão de
bambu grosso, o vampiro arqueia uma sobrancelha acompanhada de um
pequeno sorriso torto. — Quer dizer, não só porque agora sou de fato a
Primus, mas… — observo novamente a visão além da floresta — eu me
sinto assim, em paz. Eu não sei como explicar, porém… eu consigo sentir.
Entende?
Me torno para Zaph e o flagro me olhando.
— Entendo perfeitamente.
Acho que finalmente descobri por que os olhos de Zaph me fascinam tanto.
Tirando o fato óbvio de serem cinza. Por vezes eles emitem um fulgor prata,
invocam um vigor que me encoraja, em outras eles são tão rochosos e duros
quanto os meus medos. É um campo neutro. Frio e caloroso. Forte e suave.
Uma cor onde eu encontro a mim mesma. Não, mais que isso. Neles eu
encontro tudo o que sou e o que eu poderia ser.
Remoo os lábios, tentando impedir um sorriso de aparecer.
— Você está sendo fofo.
— Scuze.
Deixo uma risada fraca, mas sincera sair.
— Tudo bem. — Retorno minha atenção ao horizonte carioca. — O que
faremos agora?
— Não tenho certeza. Mas tenho uma ideia. Por que não casamos?
Oi?
Torno a cabeça outra vez para ele. Na minha quietude, o vampiro continua:
— Bem, algum dia acontecerá. Por que adiar o inevitável?
O desespero, a raiva, a confusão são substituídos por outra coisa: euforia.
Suprimo um sorriso, porque agora as mini Alices dentro de mim estão numa
rave. E meu coração acompanha a batida da música.
Mas espera aí... Me desfaço do resquício de sorriso e franzo o cenho.
— Isso foi seu pedido?
— Não foi um pedido. Foi a constatação de um fato e a sugestão de uma
atitude a ser tomada.
— Então pede direito.
— Pra quê? Vai dar no mesmo. — Ele dá de ombros, e eu balanço a
cabeça em negação.
— Como às vezes você consegue ser tão romântico e tapado ao mesmo
tempo? — Aponto o dedo indicador para ele. — A minha infância toda eu
sonhei com meu príncipe encantado pedindo minha mão em casamento, então
quer fazer o favor de se ajoelhar e fazer um pedido de casamento decente?
— Desculpe desapontá-la, não sou um príncipe encantado.
— Mas é o vampiro estrangeiro que eu amo, então serve. Anda, de joelhos.
— Indico o meio entre nós com o dedo e uma expressão arrogante.
Zaph apenas permanece me encarando como se eu fosse o animal mais sem
graça do zoológico. Até que suspira, abaixa a cabeça e... Oh, meu Deus, isso
é sério?! Zaph se põe sobre uma perna dobrada e a outra encolhida embaixo
de si.
Ele enfia a mão num dos bolsos e fuça-o. Ele trouxe um anel? Meu
coração perde algumas batidas pelo caminho quando observo com
expectativa meu vampiro retirando do bolso “algo” dentro de suas mãos,
formando uma concha. Zaph abre suas mãos e... Desgraçado!
— Seu puto! — Empurro o seu ombro direito com o pé e ele cai para trás
rindo. Esse filhote de sanguessuga desalmado teve a audácia de me mostrar o
dedo do meio!
Zaph se apoia no chão com uma mão e se põe de pé ainda portando o
sorriso.
— Babaca! — Bato no peito dele uma vez, mas logo descarrego uma
saraivada de tapas não tão fortes. — Inútil! Desgraçado! Idiota! Miserável!
Você é desprezível, Zaph, desprezí...!
Meu ataque furioso é interrompido quando Zaph segura meus pulsos e de
repente tenho seus lábios grudados e encaixados aos meus. Merda!
Começamos um beijo suave, então ele solta minhas munhecas devagar e
pousa as mãos na minha cintura. Me aparto dele, empurrando de leve seu
peito, e o encaro.
— Isso foi golpe baixo.
— Você sabe que não jogo limpo. — Zaph entorta a cabeça ainda sorrindo.
— Te odeio.
— Não odeia, não.
Zaph toma meus lábios outra vez, sugando-os gentilmente. No entanto, ele
não se demora neles. O vampiro se afasta, só o suficiente para encostar sua
testa na minha.
— Alice de Souza Beiruth, Primus dos Cinco Grandes, quer casar comigo?
— Quero, seu encosto, quero sim.
Zaph alarga o sorriso e nos beijamos outra vez, com sorrisos rompendo as
laterais nos nossos lábios. Humm, beijo e sangue, que delícia.
F
oi uma manhã triste.
Até mesmo para mim, que já presenciei mais funerais do que consigo
contar. No entanto, esse era diferente, pois o corpo que estava sendo
velado sob as lamúrias mórbidas de parentes e amigos e enterrado a sete
palmos abaixo da terra úmida, era o da melhor amiga de minha parteneră.
Alice não entrou na capela. Ela não disse uma palavra, mas eu podia ler
em sua face pálida que a razão era para manter a imagem alegre de Julia
vívida em sua memória. Minha parceira ficou o tempo todo ao meu lado,
entre Melissa e eu, com seus pais logo atrás, olhando para o caixão lustroso
cor de marfim enquanto o padre proferia algumas palavras enfadonhas de pé
no gramado. Ela não segurou minha mão, mas talvez porque se agarrava a
algo entre as suas próprias. O dia não era o mais claro, tampouco mais
nebuloso. As sombras sob as árvores frondosas que ladeavam as trilhas
feitas de paralelepípedos eram frescas, enternecendo tanto quanto a luz
cálida na grama. O cemitério era de um verde plano e a cova de Julia seria
só mais uma entre tantos túmulos simplórios, com flores amarelas e laranjas
para enfeitar. Mas não para Alice ou Melissa.
Naquele dia, me compadeci de Melissa. Tirar a amizade de um vampiro...
é tirar uma parte de si próprio. Dava para ver o exemplo disso em seus olhos
injetados, seu semblante apático, mesmo com um olho cego, parcialmente
escondido pelas madeixas negras.
Já Alice não derramou uma lágrima sequer, e sua fisionomia estava branda.
Por fora, quem a vê com os cabelos ruivos como labaredas ardentes
lambendo as costas delgadas nuas devido ao corte do vestido branco solto
pensa que ela é apenas mais uma flor dentre tantas outras. Ela é de fato uma
flor, tão bela e perfumada quanto venenosa. Ela é vampira agora, a herdeira
do verdadeiro Drácula, a Primus líder dos vampiros e logo Boiarda por
direito, detentora de todos os bens, propriedades e deveres de Viorel, por
mais que não saiba disso ainda. As consequências que isso trará para o seu
psicológico eu não sei. Porque, com a mudança na genética dela, os
remédios que tomava muito provavelmente não funcionarão mais. Mas eu
estarei ao seu lado para o que precisar, em suas pétalas mais venenosas.
O que eu menos queria era que ela fizesse parte desse mundo, mas eu
estava enganado, porque ela pertence a ele. Eu tentei evitar, mas até mesmo
o Nödi me traiu quando fui ferido após a briga com Michel. Minha reserva
de sangue estava baixa e eu apenas segui a impulsão, precisava saber que ela
estava bem, que estava segura.
É possível sentir que minha companheira emana uma aura mais tenaz. Sua
presença é mais imponente, por mais que ela mesma não perceba. Ver a
garota… não, a mulher que amo ter segurança em si mesma e adquirir um
pouco mais de maturidade e autoconfiança me deixa muito orgulhoso.
Ao observá-la colocar uma foto das três sorridentes sobre o caixão
enquanto porta um sorriso tristonho no rosto, ela continua sendo a garota
estranha por quem me apaixonei e a quem o Nödi me ligou.
No fim, quando o caixão já tinha sido abaixado e os familiares e amigos
haviam se retirado pesarosos, Alice, a única trajando branco, decidiu ficar
um pouco mais de tempo diante da sepultura. E eu decidi dar espaço às duas.
Apenas observei de longe, sob a copa das árvores, a Primus se sentar na
grama e mover a boca, conversando com o vento. Só então, quando todos já
haviam feito a curva para retornarem à área das capelas, foi que Alice
deixou os ombros caírem e chorou.
Eu conheci Julia por pouco tempo, mas assumo que aquela menina tinha um
sol dentro de si. E, como o sol, tinha seus momentos explosivos, radiantes,
intensos. Enquanto isso, Melissa era a lua, serena. E Alice, o entremeio que
sempre admirou, a mistura de tudo e nada. Alice era a ponte. E quando uma
ponte perde um dos lados de apoio, ela cede.
Por sorte, ela ainda tinha o outro lado. Melissa chegou de mansinho,
pisando na grama com suas sapatilhas da mesma cor que o longo vestido
preto esvoaçante, e se sentou ao lado de Alice. Observo ela encostar sua
cabeça na de minha parteneră e segurar sua mão.
Nesse ínterim meu celular vibra na calça e eu descruzo os braços para
pegá-lo no bolso da frente. Ao desbloquear a tela, vejo a mensagem de
Conry: “Os Palatinus já sabem”. E se eles já sabem, o Conselho também
sabe. Logo, logo chamariam Alice para receber sua tatuagem de Primus e a
documentação para o trâmite dos bens. Me aflige pensar na enorme
responsabilidade que ela adquiriu, além da gama de vampiros alucinados
que farão de tudo para tirar seu sangue. Eu não vou perturbá-la com isso
agora. Bloqueio o celular e o recoloco no bolso, elevando o queixo a tempo
de ver Melissa caminhar em minha direção de cabeça baixa. Quando desce
do gramado para a via de lajotas, seu olhar encontra o meu. Ela me envia um
sorriso cabisbaixo, reforçado pelo seu olho direito alvo, e eu o retribuo.
Meu foco retorna à Alice, uma donzela, uma aparição angelical ajoelhada no
meio do gramado jade, rodeada por flores e lápides.
Não sou muito bom em leitura labial, admito, mas uma das palavras que
consegui decifrar foi “obrigada”. Ela limpa o nariz com o antebraço e se
ergue apoiando na terra. Alice leva uma mão à boca e manda um beijo para
Julia, flutuando pelo ar, levado pela brisa. Ela inspira fundo, mirando
adiante, pouco antes de sorrir de forma ampla outra vez e olhar em minha
direção. Esse sorriso acaba comigo.
Não, minto, ele me revive. Nele eu encontro a minha paz. Uma paz quase
perigosamente viciante para alguém que viveu mais de trezentos anos em
meio a cadáveres e sombras. Mas eu farei de tudo para deixar esse sorriso
fixado em seu rosto o máximo possível.
A princípio, quando senti a propulsão do Nödi dominar meu corpo ao me
aproximar dela, eu entrei em negação. Algo devia estar errado, talvez eu
tivesse me confundido, como uma criatura tão adorável como aquela poderia
estar ligado a uma pessoa como eu? Era quase cruel. Porém, com o tempo,
percebi que o Nödi não errara. Alice nunca fora minha vítima, eu quem fui a
sua.
Não é à toa que eu jurei, pelo meu espírito e carne, mente e coração,
jamais fazer Alice sofrer e sempre a proteger. O desejo que sinto por essa
mulher me consome de uma forma que nunca imaginei sentir. E eu amo o
modo como ela se entrega. Sinto que essa curiosidade dela será algo muito
prazeroso...
Minha escuridão além das estrelas caminha até onde estou, vindo como um
fantasma, porém mais solene do que qualquer majestade jamais será.
— Pronta? — pergunto, abaixando a cabeça para olhá-la assim que seus
olhos verdes radiantes param abaixo dos meus. Posso ver o fulgor neles.
— Mais do que nunca.
Este é apenas o começo...
D
izem que é impossível colocar em papel, bem, aqui, nesta parte do
livro, todos aqueles que contribuíram de alguma forma. Mas eu sei
muito bem a quem quero agradecer.
Primeiramente, ao cosmos. Não sou ateia, evangélica, budista, católica,
espírita... sou um pouco de tudo. Não sei quem é o Pai ou a Mãe suprema, se
tem nome ou consciência, mas acredito que há sim uma força que rege todo o
universo, seja ela “sobrenatural” ou científica. E, sinto que é graças a ela
que percorri todo esse caminho até aqui. Passando por alegrias e tristezas,
percebendo o que deveria ser aprendido e o que deveria ser esquecido. Nem
de longe acho que este livro esteja perfeito – eu tenho esse problema com o
perfeccionismo – ou que é maravilhoso, mas eu pus nele todo meu coração e
lágrimas, e por isso estou mais que satisfeita com o resultado. Posso, enfim,
afirmar que estou orgulhosa de mim mesma.
Em segundo lugar, minha prima Victória Braz e a amiga Sara Orofino. Elas
foram perturbadas muitas vezes, em horários diferentes, ajudando-me na
coerência e coesão de texto, de ideias, caçando palavras que me fugiam da
mente, revisando, dando palpite... Vocês não têm noção do quão grata sou a
vocês, do fundo do meu coração.
E, Vic, espero um livro seu.
Seu também, Helolis.
Em terceiro lugar, mas não menos importante, claro e obviamente, Janaína
de Fátima Barbosa de Souza – mais conhecida como Mantinha – , Mayara
Souza dos Reis Silva e Camila Matias por terem sido as leitoras betas dessa
aventura tragicômica. Amo vocês, e obrigada de coração pela força honesta
e sincera que me deram!
Em quarto lugar, mas também não significa que são menos relevantes, a
todos os meus leitores das plataformas de fanfics. Lembro-me perfeitamente
do primeiro depoimento que recebi da Karoline Lullyanny dizendo o quanto
“Convivendo com um Vampiro Estrangeiro” a tinha ajudado a sair da bolha.
Depois vieram muitas outras e também algumas com quem fiz uma boa
amizade como a Pâmela Bortolato, a Layza Costa, a Letícia – que esqueci o
sobrenome #sorry – , a Isabela Santos e a Ana Oliveira lá de Portugal!
Força, meninas! Eu quero que saibam que adoro cada um de vocês, que sem
vocês essa história possivelmente não existiria, acreditem. Cada centímetro
desse livro foi feito pensando em vocês.
Em quinto... Marilice Silva e João Mozart, meus pais. Obrigada, por tudo.
Temos nossas discussões, que às vezes parecem terrivelmente frequentes,
mas nunca, em momento algum, falaram para eu desistir. Obrigada por
terem acreditado em mim e me aguentado. Não só quanto à escrita, mas
quanto aos meus sonhos, por mais que eles não batessem com os de vocês.
Espero que eu tenha finalmente dado orgulho a vocês.
Muitíssimo obrigada, Natália Ávila e seu curso “Magia do Verbo”, que
vieram na hora certa e encheram meu coração de esperança quando eu mais
precisei. E também, sem essa fada, eu não teria conhecido a Amplifik e seus
agentes que ouviram e suportaram minhas ideias esquisitas!
À Klayane que topou e ilustrou lindamente os capítulos!
E, obviamente, a você que chegou até aqui. Que riu, urrou de raiva e
chorou comigo. Que decidiu, por algum motivo, ler até a última palavra. Que
se gostou dessa fantasia dramática nem um pouco depravada, ou até mesmo a
odiou, irá avaliar e compartilhá-la com os demais, para que alcance mais
corações ou então para não passar raiva sozinho. Alice e Zaph ainda têm
muito o que contar. Acredite, a aventura está só começando.
E, emendando nessas palavras, devo a você, Naruto Uzumaki (Masashi
Kishimoto), mesmo que nunca saiba disso, por me ensinar, desde pequena, a
sempre seguir em frente, a não voltar com a minha palavra. Ensinar que a
vida é muito mais do que aquilo que enxergamos em primeiro plano, que os
humanos são anjos e demônios ao mesmo tempo.