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COPYRIGHT © 2023 EDITORA CABANA VERMELHA


TÍTULO ORIGINAL: SAVAGE BONDS
Vínculos que nos unem 2
Todos os direitos reservados.

Tradução: Naiara Chiquetto


Preparação: Elaine Lima
Leitura Final: Gisele Oliveira
Ilustração Capa: Emilie Snaith
Tipografia: Bellaluna Designer
Diagramação digital: Elaine Cardoso & Grazi Fontes

Nenhum trecho deste livro pode ser reproduzido em qualquer forma,


eletrônica ou mecânica, incluindo armazenamento de informações e
sistemas de recuperação, sem a permissão por escrito da autora, exceto para
o uso de breves citações em uma crítica do livro.

Aviso de gatilho: bullying, abuso sexual, tortura, violência e morte.


SUMÁRIO
Sinopse
PRÓLOGO
1
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SOBRE A AUTORA
SINOPSE
Agora que meu dom está correndo pelas minhas veias, as coisas
mudaram no Campus Draven.
Não sou mais a rejeitada Desfavorecida, não sou mais a garota que
os outros alunos podem perseguir por ter ousado fugir de seus Vínculos.
Mas tenho problemas maiores a caminho.
Com o destino me empurrando cada vez mais para perto dos meus
Vínculos, estou lutando com unhas e dentes contra a natureza para mantê-
los à distância.
Mas eles estão lutando mais ainda para me segurar em suas garras.
Quando fica claro que a Resistência está mais perto do que
pensávamos, não sei em quem posso confiar
Será que finalmente vou poder controlar meu dom, ou será ele que
vai me controlar?

* Savage Bonds é um romance sobrenatural com harém reverso e


seu conteúdo que pode ser pesado para alguns leitores. Esse livro termina
em um gancho para o próximo. É recomendado para maiores de 18 anos
devido a sua linguagem e cenas sexuais.
PRÓLOGO
North

Espirais pretas de fumaça se retorcem em volta do corpo de Bassinger


conforme ele luta contra meus pesadelos, os membros incorpóreos enfiando
as garras em sua pele enquanto eu as impeço de consumi-lo por completo.
Ele é um pé no meu saco e eu não tenho tempo para tranquilizá-lo
agora, porque nem mesmo o sobrinho de Athena Bassinger vai conseguir
me distrair do show de incompetência e desordem que ocorreu no campus
da faculdade esta manhã.
Depois que fizemos a limpa nos prédios da frente, estávamos
trabalhando no pátio quando Gryphon recebeu o telefonema de Black
avisando que Oleander tinha sido levada. Foi só quando nos encontramos
com Gabe e Bassinger que descobrimos que ela os havia abandonado no
instante em que eles deram as costas.
Uma vez fugitiva, sempre fugitiva.
— Ela é meu Vínculo, porra, não pode me impedir de ir atrás dela
— rosna Bassinger, e preciso obrigar meus olhos a não rolarem. É a mesma
besteira que ele tem cuspido para mim desde que precisei incapacitá-lo
quando os outros partiram.
Cheguei tarde demais para impedir Gabe e, se aquele merdinha
acabar se machucando, vou deixá-lo gritando de pavor pelo resto da vida
por ter corrido atrás dela. Se ela fosse um Vínculo normal, alguém que de
fato desse a mínima para qualquer um de nós, então me sentiria mais
propenso a perdoá-lo, mas ela já provou há muito tempo o quanto suas
opiniões sobre todos nós são péssimas. Já fui chamado de muitos nomes
nessa vida, mas tolo cego não é um deles.
Puxo a gravata para longe do pescoço e deixo a seda se soltar
devagar.
— Nunca te ensinaram a repartir, não é? Está deixando sua
“síndrome do filho único” aparecer. Ela é nosso Vínculo e fugiu ao primeiro
sinal de caos, exatamente como todos nós sabíamos que ela faria. Você já
conseguiu enxergar algo além do teatrinho dela? Ou ainda está tão
apaixonadinho pela sensação do vínculo dela que só consegue pensar com
seu pau?
As tatuagens em seu pescoço sobressaem quando ele força a fumaça
de novo em uma tentativa de se soltar e, sem dúvida, quebrar meus dentes.
Estamos trancados no meu escritório, esperando Gryphon e Nox darem o
sinal para uma evacuação e, sem testemunhas por perto, sinto-me à vontade
o suficiente para sorrir, exibindo meus dentes de forma animalesca. Neste
momento, nenhuma parte minha é do conselheiro sofisticado. Não, agora
não sou nada além do monstro.
Mais um Draven em uma linhagem de homens amaldiçoados que
nunca conhecerão paz ou alívio.
Observo Bassinger retorcer os lábios para mim sem nenhum medo,
o que significa que, ou ele não faz ideia do que sou capaz, ou acha que
consegue me enfrentar. De qualquer forma, é idiota e descuidado, só mais
uma vulnerabilidade em nosso grupo de Vínculos.
Só Oleander já é ruim o suficiente.
Somos interrompidos por uma batida na porta, um som hesitante,
fácil de ser identificado como minha assistente em um estado de pânico
absoluto por causa de tudo que aconteceu nas últimas quatro horas. Deixo
que a máscara de calma e segurança se instale de novo em meu rosto, uma
medida que sou obrigado a tomar para habitar este planeta sem que me
cacem na escuridão da noite.
Mal sabem eles que é na escuridão que fico mais à vontade.
— Entre.
Penelope parece aterrorizada quando entra, respirando fundo ao se
aproximar de mim. Cada centímetro de seu corpo está tremendo enquanto
ela pigarreia duas vezes para conseguir falar:
— A Equipe Tática Delta conseguiu avaliar todos os alunos que
estavam no campus durante o ataque. Temos quarenta e dois feridos, mas
felizmente nenhuma morte foi informada ainda.
Os olhos dela disparam para onde Atlas está sendo restringido e o
pouco de cor que seu rosto estava se esforçando para manter desbota até ela
ficar da cor de neve fresca. Dou um passo curto na frente dele e ofereço a
Penelope um sorriso tranquilizador:
— O sr. Bassinger não está sendo racional. Fui obrigado a tomar
medidas extremas para mantê-lo aqui, mas pode ficar tranquila, ele está em
segurança e ileso.
Ela engole em seco, voltando a olhar em meus olhos enquanto seu
queixo treme só um pouco. Ela é nova por aqui, filha de uma das famílias
mais influentes, e esteve arrastando asa para mim, como se dormir com o
chefe fosse o melhor jeito de conseguir um cargo confortável e um salário
alto.
Já tive dúzias de assistentes com a mesma atitude, mas nenhuma
delas passou deste momento, o instante em que as cortinas são abertas e não
resta mais dúvidas sobre o que de fato sou.
Ela pigarreia mais uma vez e me oferece uma folha de papel com a
mão um pouco trêmula.
— Também há relatos de que a srta. Fallows tenha ido atrás de sua
amiga, Sage Benson. Ela não tentou fugir, apesar das... especulações
iniciais. Conversamos com Gracie Davenport e ela afirmou com toda
certeza de que a srta. Fallows foi atrás da amiga. Achei que o senhor
gostaria de ter essa informação.
Acho muito difícil acreditar nisso.
Meu peito ainda está apertado, minha mandíbula está doendo pela
força com a qual estou rangendo os dentes e, quando ela visivelmente
engole em seco de medo, não consigo reunir energia suficiente para
tranquilizá-la. Ela pede licença, sai quase correndo do cômodo e tropeça na
porta.
Bassinger espera até ela ter saído e fechado a porta antes de retrucar:
— Viu? A odeie o quanto quiser, mas você está errado. Ela não está
fugindo dos seus Vínculos. Ela não está fugindo de mim.
Meu celular começa a vibrar no bolso e, ao pegá-lo, vejo o nome de
Gryphon, coordenadas de GPS e uma única linha me avisando que ele
resgatou Oleander e Gabe.
— Continue pensando assim, Bassinger, e ela vai te levar direto para
o inferno.
1

O único ponto positivo dessa situação toda na qual me encontro, é que não
vou enfrentar a fúria de North Draven sozinha.
Todos assistimos o avião tocar a pista de terra, o barulho
ensurdecedor do motor ao entrar em reverso para reduzir a velocidade e, por
fim, parar a menos de cem metros de onde estamos todos reunidos. Assim
que minhas mãos pararam de tremer pelo uso do meu dom, Sage se
aproximou e seguramos Gabe entre nós duas. Ela se moveu devagar no
começo, mas não por algum medo de que a Equipe Tática de Gryphon
estivesse disparando na minha direção. Não, ela estava sendo
compreensiva, sabendo como vínculos podem ser voláteis quando seus
Vínculos são ameaçados.
Ela estava respeitando a insanidade dessa situação toda porque ela é
a melhor droga de amiga que uma garota poderia desejar.
Gabe ainda não parece muito bem, seu rosto está verde e ele está um
pouco bambo, mas com a mesma expressão teimosa de sempre na cara.
Olho para Sage do outro lado dele, e o olhar que ela me devolve é de quem
está rezando para eu sobreviver a sei lá que inferno que vai resultar dessa
trapalhada toda.
Meu dom vibra no meu peito, ansioso para enfim ser apresentado de
modo formal ao restante dos meus Vínculos. Ainda estou sentindo minhas
pernas meio fracas e minha cabeça está latejando. Preciso de uma soneca
para recarregar depois de ter usado meu dom e estou torcendo para o avião
ser tão luxuoso quanto o resto das posses de North.
Há um burburinho atrás de nós e uma discussão entre dois caras da
Equipe Tática, mas minha cabeça está doendo demais para prestar atenção
de verdade no que estão dizendo. Quando o braço de Gabe se aperta sobre
meu ombro e Gryphon dá um passo em minha direção, tenho o palpite de
que minha honra está sendo destruída.
Como se eu desse a mínima.
— Você precisa de uma bosta de equipe nova — Gabe rosna e
Gryphon encolhe os ombros, olhando atento para a porta dos fundos do
avião, que enfim começa a se abrir.
— Estou descobrindo quem é leal e quem não é, ajustes serão feitos.
Meu Jesus, ele tampouco parece estar irritado, e começo a me
perguntar há quanto tempo ele trabalha com esse grupo. Tanto Kieran como
Nox estão parados perto de Gryphon, e quando a palavra monstro penetra
no meu cérebro outra vez, Kieran xinga baixinho de modo enfático, dá
meia-volta e vai separar os dois colegas que estão brigando.
Gryphon me olha de soslaio, como se estivesse esperando eu reagir,
mas eu não poderia me preocupar menos com as opiniões deles.
O que me preocupa mesmo é em qual inferno North vai me meter
por causa disso. Ou a forma como Nox alcançou meu dom com o dele,
como se quisesse saber exatamente do que sou capaz.
Fico preocupada é com Gabe, que ainda está cambaleando no lugar
por causa da droga que deram para ele.
— Já tem uma explicação para nós, Fallows? Algo a dizer sobre ter
mentido durante meses sobre o que pode fazer? — diz, e Gabe se vira para
olhar feio para ele em minha defesa.
O gostosão do tanquinho está mesmo começando a me cativar, que
droga.
Quando Gabe abre a boca, eu o interrompo, de jeito nenhum vou
ficar quieta enquanto ele luta minhas batalhas por mim, porque isso não é
nem um pouco do meu feitio.
— Nem. Não devo bosta nenhuma a vocês só porque são meus
Vínculos. Sinto muito mesmo que você tenha descoberto desse jeito que
está preso a um monstro.
Meu tom está transbordando sarcasmo e estou esperando que ele
reaja, mas não, seus olhos só continuam me encarando com frieza. Pela
minha visão periférica, vejo a careta no rosto de Nox apontada bem na
minha direção, mas ele e o humor de merda dele que se fodam.
Gabe também muda de posição para me encarar, em vez de fitar
Gryphon, e retruca:
— Para de falar essa merda. Você acabou de salvar todo mundo. Um
monstro não faria isso, e todas essas pessoas que estão dizendo essa bosta
são umas cuzonas ingratas e covardes que queimariam seus heróis na
fogueira só porque são mais fortes do que eles. Bando de cuzões covardes e
invejosos.
Eita.
Tem uma fibra aí que eu nem sabia que existia e, quando olho para o
resto dos meus Vínculos por um momento, vejo isso claro em seus rostos
também. Eles também estão irritados por algo que foi dito a meu respeito, e
tenho certeza de que não é por minha causa, já que Nox está com uma
expressão bem sanguinária e ele me odeia com todas as forças.
Gryphon está encarando sua equipe ao nosso redor com olhos
gélidos, examinando o que está acontecendo em nosso entorno. Kieran
ainda está fazendo picadinho dos homens atrás de nós com suas palavras e
alguns outros estão assistindo com repulsa, mas, quando meus olhos
chegam nos outros alunos que estão me encarando horrorizados, meu
sangue gela um pouquinho.
Aí me lembro que eles estão todos aqui agora, respirando e livres de
tortura, graças a mim e, ao invés de me sentir uma merda por causa de
quem sou e do que posso fazer, dou um sorrisinho torto e balanço minhas
sobrancelhas um pouquinho para eles em provocação.
Uma das garotas quase desmaia, juro.
Ela jamais teria sobrevivido à Resistência e aos seus campos.
A traseira do avião enfim termina de se abrir e outro grupo de
membros de Equipe Tática, todos vestidos de preto, desce a rampa correndo
em nossa direção, enquanto ordens são gritadas em códigos que não
significam absolutamente nada para mim. O braço de Gabe me aperta de
novo e ele contrai a mandíbula, olhando para os recém-chegados como se
esperasse outro ataque. Mas eu meio que estou torcendo para isso ter ficado
para trás, tão para trás quando for possível, até ver outras duas pessoas
descendo do avião que me fazem engolir um pouco em seco.
Eu não tenho mesmo mais energia para brigar, e o jeitinho especial
de North de provocar minha raiva já não é muito bom, nem quando estou
com força total. Neste momento, depois de tudo que tive que fazer? Droga,
talvez a gente precise recolher as entranhas dele da lateral do avião se ele
sequer olhar meio esquisito para mim, porque meu vínculo não está mais de
bobeira nessa merda.
Meu dom voltou e está ansioso para brincar.
Fecho os olhos com força por um instante, só para respirar fundo e
clarear minha mente, para encontrar algum tipo de calma ou paz, ou
qualquer coisa que me ajude a aguentar isso sem destruir todos ao meu
redor.
— Porra, parece que ele tá puto. Nós dois estamos ferrados, Vínculo
— Gabe murmura baixinho para mim, e meus olhos abrem de novo e
encontram Sage se encolhendo, morrendo de medo do inferno que está
vindo em nossa direção.
North vem depressa até nós, mas seus passos desaceleram quando
ele percebe os danos espalhados por todo o campo ao nosso redor, todas as
minhas noventa e duas vítimas se contorcendo e tremendo no chão, com
sangue escorrendo de seus olhos e ouvidos conforme os cérebros começam
a falhar dentro dos crânios.
Atlas nem hesita, impulsionando os pés até mim sem dirigir um
único olhar a nenhuma outra direção. Só no último segundo ele parece notar
Gabe e o jeito como estamos abraçados, mas não faz nenhum comentário
enquanto se joga em mim com força o suficiente para arrancar meu fôlego e
me soltar de Gabe, erguendo-me em seus braços e me segurando contra seu
peito.
— Que porra foi essa, Oli? Por que foi sem mim? Eu teria ido
encontrar Sage com você — murmura no meu cabelo, e sinto que meus
braços pesam uma tonelada quando os ergo para devolver o abraço.
Solto um suspiro trêmulo quando me permito relaxar em seus
braços, exausta demais por ter usado meu dom de forma tão grandiosa
depois de anos escondendo-o. Deixo meu rosto se aninhar no pescoço dele e
murmuro de volta:
— Não dava tempo. Eles já estavam com ela e eu não podia deixá-la
ir sem apoio, eu não sou assim, Atlas.
Os braços dele se fecham mais ainda em volta de mim, apertando-
me até eu não conseguir mais respirar, mas tem algo de tão reconfortante
nisso que prefiro morrer aqui a pedir para ele me soltar. Sua mão aninha a
parte de trás da minha cabeça enquanto ele responde em um sussurro:
— Não tive dúvidas disso ou de você nem por um minuto, Doçura.
Foda-se o resto deles, já te disse que somos nós dois contra o mundo.
Aceito que vou morrer aqui envolvida pelo corpo dele e que não vou
me arrepender, nem depois que estiver enterrada, apodrecendo a dois
metros da superfície e queimando no fogo do inferno por todos meus
pecados.
— Bassinger, sai de cima dela, precisamos tirá-la do campo aberto
antes que a briga comece — North repreende, mas o que ele diz não faz
sentido.
Briga?
E por que é que haveria briga e quem exatamente daria início a ela?
Mas Atlas me solta devagar, o que é ótimo, porque minhas pernas param de
funcionar.
Ele me segura e volta a me erguer em seus braços, retrucando para
North:
— Ela precisa de um curandeiro, você lembrou de trazer um?
Ardern que se foda, ele pode esperar. Só por cima do meu cadáver que
qualquer um de vocês vai ser atendido antes do meu Vínculo.
Então ele sai andando, comigo ainda segura de modo firme contra
seu corpo, até alcançar Sage, oferecendo um braço para o caso de ela
precisar de ajuda. Quando ela faz que não com a cabeça, Atlas gesticula
para ela acompanhá-lo de volta ao avião, colocando minha amiga em
segurança sem eu ter precisado dizer nada, porque mesmo me conhecendo
há pouco tempo, já descobriu como alcançar o meu coração de gelo.
Permito que meus olhos se fechem, murmurando um obrigada
baixinho enquanto perco a consciência.

Volto a um estado de semiconsciência quando Atlas se senta e me


ajeita no seu colo, reposicionando-me até eu estar segura em seus braços.
Sinto a mão de Sage deslizar sobre minha testa enquanto murmura
com Atlas sobre encontrar um curandeiro para mim, mas consigo soltar um
rouco:
— Estou bem. Me levem até Felix quando chegarmos em casa, não
quero que mais ninguém encoste em mim enquanto estiver apagada.
Os braços de Atlas me apertam de novo por um instante e, por um
segundo, acho que está irritado comigo, mas então meu vínculo sente Gabe
se sentar na poltrona ao nosso lado, sacudindo-me um pouco enquanto se
joga ali. Quando Atlas rosna para ele, Gabe retruca:
— Dá um tempo, acabei de ser drogado e tomei uma surra.
Meu vínculo não gosta nem um pouquinho disso e meu dom dispara
para fora de mim antes que eu possa impedir.
Gabe dá um gritinho quando é atingido e se levanta de uma vez,
pelo visto achando que estou prestes a destroçar sua mente. Mas não tenho
energia para me sentir mal por isso. Quer dizer, eles não sabem sobre as
outras coisas que posso fazer.
Eles não sabem de nada.
É Gabe quem entende primeiro.
— Minha dor de cabeça e tontura passaram.
Ouço passos e meu vínculo reconhece Gryphon quando ele se
aproxima de nós, falando com uma voz irritada, baixa e rouca:
— Que porra foi essa? O que acabou de acontecer?
Sinto os irmãos Draven se aproximarem e, mesmo em meu estado
paralisado, fico um pouco tensa, mas Gabe fala de novo, no tom mais
ríspido que já o ouvi usar:
— Não dê nem mais uma porra de passo na direção do meu Vínculo
ou vou rasgar sua garganta com meus dentes.
Eu me pergunto quem da equipe foi burro o suficiente de tentar
chegar perto de nós, porque ele não pode estar falando desse jeito com um
dos Draven, mas então Nox fala, a maldade pingando de suas palavras:
— Ela é meu Vínculo também.
— Não, ela é seu saco de pancadas, sua vítima preferida — Atlas
debocha. — Ela é a vilã da história de cada um de vocês. Se chegar mais
perto um centímetro que seja vou derrubar a porra do avião todo para te
impedir. Não vou avisar de novo.
Com dificuldade, abro meus olhos para me preparar para a guerra
que vai eclodir, já que Nox Draven nunca recua, mas estou cansada pra
caralho.
Talvez seja melhor eu morrer logo na confusão que está prestes a
acontecer.
Há um barulho de movimento de novo, então Nox retruca:
— Leve-a para o quarto. Precisamos conversar. Agora.
Quarto?
É claro que o avião de North tem uma bosta de quarto. É claro.
Conforme Atlas me ergue nos braços com toda gentileza, como se
eu não pesasse nada, embalando-me em seu peito como se eu fosse
preciosa, ouço o barulho do avião enchendo de gente e de ordens sendo
gritadas por todos os lados em preparação à decolagem.
Não sei o motivo de ele achar que sou valiosa, agora há pouco
acabei com dezenas de pessoas, mas, mesmo assim, ele está agindo como se
eu fosse ainda mais importante para ele agora do que antes.
Ele caminha com firmeza, mesmo com todas aquelas pessoas ao
nosso redor, e me leva em direção a outro cômodo, então me coloca com
cuidado em uma cama, puxa as cobertas e as ajeita sobre mim enquanto
roça minha testa com os lábios.
Fico até irritada de não conseguir retribuir ou pedir por mais.
Ouço mais passos entrarem no quarto e uma porta deslizando para
fechar.
— Seja rápido, Draven. Quero você fora desse quarto e o mais longe
de Oli que puder chegar nessa porra de avião — Atlas retruca e, mais uma
vez, tento abrir os olhos. Nada. Nadinha.
Nox rosna baixinho e passos se aproximam da cama.
— Ela acabou de curar todos nós. Você não acha que precisamos
conversar sobre isso? Você não quer saber exatamente o que o nosso
Vinculozinho mentiroso fez lá fora?
Gabe zomba.
— Vínculos podem curar uns aos outros em situações extremas,
você sabe disso. Vê se supera, porra. Você só quer discutir por causa de
qualquer coisinha porque não quer admitir que se enganou sobre ela. Deus
me livre você admitir que estava errado. Eu vi a Resistência dar uma boa
olhada nela, Nox. Eles a conhecem. Ela esteve fugindo esse tempo todo e
agora a gente sabe o porquê. Eles a querem porque ela consegue fazer uma
coisa que nenhum outro Favorecido consegue...
— Ela é mais do que só uma droga de Favorecida, é isso que estou
tentando dizer — Nox interrompe. — Ela não apenas nos curou o suficiente
para sobreviver, ela consertou tudo. Tudo! Meus dedos estão retos de novo,
Gabe. Ela curou um ferimento que ocorreu há mais de vinte anos.
Oops.
Sinto que minha vida está prestes a ficar ainda mais complicada, se
é que é possível, mas seja lá quais são as respostas deles para essa
afirmação, não escuto. Minha mente enfim chega ao mesmo estado que meu
corpo e eu desapareço na escuridão.
2

Acordo em uma cama que não reconheço, em um quarto que, sem dúvida,
não fica no avião, sentindo-me, ao mesmo tempo, bem descansada e com o
estômago embrulhado.
É luxuoso demais para ser um dos dormitórios, não há como
confundir a riqueza por trás de cada móvel, até mesmo a maciez dos
travesseiros embaixo da minha cabeça.
Surto no mesmo instante.
— Está segura, Oleander. Atlas e Gabe saíram para tomar banho e
buscar comida. Eu disse a eles que cuidaria de você.
Puta-que-pariu-porra, sei exatamente na mansão de quem estou.
Viro o rosto e encontro North sentado em uma poltrona luxuosa do
outro lado da cama, sem paletó e com alguns botões da camisa abertos
sobre o peito. As mangas estão dobradas para exibir seus antebraços, mas
não posso pensar nisso sem babar um pouquinho.
Seus olhos estão tão intensos como sempre.
Não acredito que ele convenceu Atlas a sair desse quarto e fico um
pouco irritada por ter sido trazida aqui, para começo de conversa. Para que
me dar um quarto se vou ser enfiada em camas aleatórias toda vez que as
coisas derem merda?
North continua me observando, seus olhos ficam mais penetrantes
quanto mais tempo passo em silêncio.
— Precisa de alguma coisa? De água ou usar o banheiro? Está
dormindo há quarenta e oito horas, estávamos começando a nos preocupar.
Sim para as duas coisas, mas acho estranho falar sobre mijar com
este homem. Arg. Sacudo as mãos para fazê-las pararem de tremer antes de
jogar a coberta de lado. Ele observa todos meus movimentos e, quando paro
por um segundo para me recompor e, minha cabeça parar de girar, ele se
levanta para dar a volta na cama e me ajudar.
Não consigo lidar com as mãos dele em mim em momento nenhum,
muito menos quando estou me sentindo tão mal assim, então gesticulo para
ele se afastar.
— Só aponta a direção certa que vou ficar bem.
Ele fecha a cara, franzindo as sobrancelhas com força, então acena
com a mão para a porta mais distante.
— Precisamos conversar depois que sair. Vou pegar água para você.
Engulo um gemido e começo a me mexer. O banheiro é lindíssimo,
todo de mármore e com acabamentos de luxo, e me sinto numa droga de
palácio. Quando vou lavar as mãos depois do xixi mais longo da minha
vida, noto que o sabonete tem um leve perfume e inspiro fundo, fechando
os olhos. Algo se tranquiliza no meu peito, como se meu vínculo estivesse
feliz por esse cheiro estar em mim, mas aí percebo que é o sabonete de
North, com o cheiro de North.
Que desgraça.
É claro que ele ia me trazer para a porcaria do quarto dele e é claro
que ele vive neste nível de luxo. É-claro-porra que isso tudo é dele. Tento
não me encolher enquanto aumento a temperatura da água para tentar tirar
um pouco do cheiro. Não importa que meu vínculo anseia por aquele
aroma. Não importa que eu sinta que eu estar com o cheiro dele seja a coisa
certa.
Ele me odeia até meu âmago, eu também não sou muito fã dele.
Preciso me manter distante para meu coração não ser despedaçado
mais ainda do que já foi.
Tento arrumar um pouco meu cabelo e, quando isso não dá certo,
passo a mão pelo meu pijama de seda.
Hum.
Espera, quê?
Pijama. De. Porcaria. De. Seda.
Estou vestindo um pijama de aparência luxuosa com riscas de giz,
mangas longas e em um tom forte de azul-marinho que deixa minha pele
com uma aparência maravilhosa. Que inferno, até os tons prateados do meu
cabelo ficam lindos contra essa cor, mas essa bosta não é o que importa
aqui. Quem diabos trocou minhas roupas? Confiro e, nada, minha lingerie
desapareceu também. Alguém me deixou nua enquanto eu dormia, esses
cretinos pervertidos de merda.
Disparo para fora do quarto, pronta para gritar com North, por mais
aterrorizante que isso seja, só para descobrir que todos meus Vínculos estão
aqui agora.
Atlas e Gabe estão na cama, Gryphon se sentou no lugar de North
do outro lado, e Nox puxou outra poltrona para se sentar ao lado do melhor
amigo, fazendo bico para mim como faz a droga do tempo todo. North está
ao lado da mesinha perto da porta, servindo um café que faz meu coração
bater meio descompassado no peito.
Café.
— Sente-se, Oleander. Acredito que nós dois concordamos que
temos muito a conversar.
Ledo engano, não tenho absolutamente nada a dizer a ele neste
momento... nem em momento algum no futuro próximo. Mesmo que eu
confiasse nele, não poderia contar nada sobre mim mesma, e, depois de toda
a merda que ele fez comigo, sem chances de eu dizer qualquer coisa a ele.
Minha pele formiga com os cinco pares de olhos que me observam
com graus diferentes de interesse e um pouquinho de nojo, mas não fico
nada surpresa por Nox estar jogando essa merda na minha direção.
Dou um gemidinho enquanto ando de volta para a cama, cruzando
os braços sobre o peito em uma tentativa de disfarçar o fato de que estou
sem sutiã.
Atlas sorri para mim, ignorando a presença dos outros como se
fossem todos inferiores, então ergue o cobertor e me aconchega de volta na
cama ao seu lado. Seus braços passam em volta de mim como se eu tivesse
sido feita para ser moldada contra seu corpo. Dou uma olhada pelo quarto
de novo e, de repente, fico feliz por ele estar grudado em mim como uma
praga. Os olhos ao meu redor estão intensos demais. Todos muito focados
em mim.
Odeio isso.
North me entrega um copo de água e eu fecho a cara para ele.
— Prefiro um café.
— Você passou dois dias inconsciente. Pode tomar café depois da
água.
Acho que se eu assassinasse este homem neste exato momento,
poderia alegar para o júri que foi justificável e eles concordariam. Preciso
forçar minha mandíbula a relaxar para me obrigar a engolir a água, mas
bebo tudo de um gole só. Quando devolvo o copo para ele, seus olhos se
estreitam para mim e o braço de Atlas aperta meus ombros enquanto ele me
puxa para mais perto.
Por fim, North se afasta e pega outra poltrona no enorme closet para
se sentar em um lugar onde possa analisar meu rosto. Sempre sou a droga
de uma subordinada para este homem. Se eu pudesse sair correndo e
gritando desse quarto e achar algum meio de fugir, eu faria. Em um piscar
de olhos, eu faria essa merda.
Também percebo que, neste momento, mesmo que dois dos meus
Vínculos estejam sentados na cama comigo, estou em desvantagem, porque
tenho certeza de que Gabe e Atlas querem algumas respostas também.
Os olhos de North vão até Gryphon e, quando ele acena, North
começa:
— Certo. Temos uma lista inteira de perguntas para você,
Oleander...
— Que tal não? — interrompo. — Prefiro que a gente volte para
como as coisas eram antes de me levarem. Você me ignora e vou para as
aulas como uma serva boazinha. Foi mal pelo susto que causei ao ir atrás de
Sage, farei o que puder para isso não acontecer nunca mais. Estamos
resolvidos?
Seus olhos cintilam para mim, o primeiro sinal de que está irritado.
Ótimo, estou furiosa pra cacete com ele também.
— Não, não estamos resolvidos. Você mentiu para nós. De novo.
Sabia que era Favorecida e mentiu para cada um dos seus Vínculos. Isso vai
parar. Agora mesmo. O que mais está escondendo da gente?
Gabe muda de posição, um pouco constrangido ao meu lado, e não
consigo olhar em seu rosto. Não preciso ver a mágoa ali, considerando que
nunca lhe devi a verdade sobre mim mesma.
Isso aqui não se trata dele.
Afasto-me de Atlas para sair com cuidado da cama e gesticulo para
o pijama.
— Quem fez isso? Qual de vocês me deixou pelada enquanto eu
estava desacordada?
Atlas escorrega para fora também e pega uma mala guardada
embaixo do outro lado da cama. Eu nem tinha percebido que estava lá.
Ele segura minha mão e diz:
— Foi North. Chegamos aqui e ele apenas saiu andando com você,
se recusou a te colocar na sua própria cama e fez Felix te curar aqui.
Quando questionei sobre a mudança de roupa, ele disse que não era nada
demais.
North nem pisca sob o olhar selvagem que disparo para ele.
— Bom saber que meu corpo nu e incapaz de consentir não é nada
demais.
North contrai a mandíbula.
— Fallows...
Ótimo, voltamos para o Fallows.
— Não. Você não tem direito de ficar sentado aí me dizendo o
quanto sou malvada por ter escondido isso de vocês, quando tudo que fiz
foi manter todos nós a salvo. E é isso, isso é tudo que vou dizer sobre esse
assunto. Se você quer mais informações, sinto dizer que vai ficar querendo.
Ando na direção da porta, esquecendo por um segundo que Atlas
está segurando minha mão, até puxá-lo junto sem querer. Mas ele não
hesita, apenas avança comigo para sair deste quarto perfeito até demais.
— Fallows, você não pode só sair andando sem nos contar nada.
Qual exatamente é seu dom e o que mais consegue fazer? Por que o
escondeu de nós? Como a Resistência sabe sobre ele? — North estoura, sua
voz fica mais grave quanto mais furioso ele fica, e eu quase esbarro na
parede que Atlas forma atrás de mim quando me viro de novo.
Aponto um dedo para ele, pronta para acabar com a raça dele, mas
Nox me interrompe:
— Esquece, irmão. Ela é só uma criancinha patética que foge no
segundo que as coisas ficam difíceis.
Odeio ele.
Odeio ele pra caralho e o ódio só fica mais forte quando seus olhos
disparam de volta para mim e ele diz com a voz arrastada:
— Então vai, sai rastejando para encontrar um buraco escuro onde
se esconder. Você é a mesma Vínculo inútil que era na semana passada, só
que agora sabemos que teve a opção de não ser. Você de fato poderia ter
sido algo especial e preferiu escolher não ser nada.
Eu poderia matá-lo.
Até meu vínculo considera bani-lo da face da Terra, sem nem se
importar com a ligação que há entre nós, mas, ao invés disso, dou meia-
volta e me retiro.

Arrependo-me no mesmo instante de fugir do quarto ao me deparar


com um corredor que nunca vi antes, sem ter ideia de como encontrar o
quarto que North atribuiu a mim.
Quando paro, Atlas bufa e toma a dianteira, balançando a cabeça
enquanto sorri.
— Você não tem mesmo senso de direção nenhum, não é?
Dou de ombros e me concentro em manter minhas pernas firmes
porque meu estômago ainda está revirando um pouco, embora eu também
me sinta faminta e rabugenta e... é isso, estou sentindo um monte de coisas
conflitantes agora.
Assim que viramos uma esquina no fim do corredor e me vejo
olhando para minha própria porta, porque é claro que North me colocou
para dormir a um segundo de distância do seu próprio quarto como o
absoluto controlador maníaco que ele é, ouço a porta do quarto dele abrir e
bater atrás de nós.
Não quero ter que lidar com quem quer que esteja vindo atrás da
gente agora.
Não quero mais uma rodada contra North, nem aguentar seu
charmoso irmão fazendo mais alguns comentários maldosos sobre mim, e
se Gryphon aparecer aqui para me olhar feio até eu desmoronar e começar a
chorar, talvez eu me jogue da janela só para escapar de tudo.
Atlas coloca uma chave na palma da minha mão enquanto protege
minhas costas, olhando para atrás de nós enquanto descubro que é, na
verdade, a minha cópia e abro a porta.
Ele zomba.
— Não queremos você aqui, Ardern. Vai procurar um pouco de
catnip para se distrair.
Solto um suspiro aliviado por ser Gabe e não um dos outros
enquanto abro a porta e entro no quarto. Não parece ser meu, não de
verdade, mas tem fechadura na porta e só um dos meus Vínculos tem uma
cópia da chave para entrar sem minha permissão. Prefiro só um aos cinco
deles a qualquer momento, mesmo que seja North.
Atlas se desloca para preencher a soleira toda da porta, bloqueando
Gabe da minha vista bem quando ele diz:
— Acho que vou ouvir da boca do meu Vínculo se ela me quer aqui
ou não. Você não tem o direito de falar por ela, e definitivamente não vai
me dizer o que fazer.
Que ótimo, eles ainda não estão nem perto de se darem bem, mesmo
depois de terem unido forças contra os outros no avião.
Mas não quero que discutam e, mesmo me lembrando de ter curado
Gabe no voo, ainda quero dar uma boa olhada nele para ver se está bem.
— Pode deixá-lo entrar, Atlas. Contanto que nenhum dos dois encha
meu saco perguntando do meu dom, vocês podem ficar aqui.
Atlas não discute, apenas se vira e entra no quarto. Ele já esteve aqui
antes e dormiu comigo na cama, então só se aproxima, coloca a mala na
cama e começa a vasculhar dentro dela.
Gabe fecha a porta depois de entrar e a tranca, forçando um pouco a
maçaneta para ter certeza de que está segura, depois começa a dar uma
olhada no quarto. Não fiz absolutamente nada com o cômodo e minha
malinha de roupas está enfiada no closet, então apenas se parece como um
quarto de hóspedes muito bem decorado.
Respiro fundo e, com isso, o farfalhar no meu peito me lembra de
que ainda estou usando a droga do pijama sem sutiã, então disparo para o
banheiro.
— Preciso de um banho. A gente pode... fazer algo juntos ou sei lá
depois que eu estiver limpa. Tentem não quebrar a cara um do outro ou os
móveis enquanto isso.
Os dois fazem um barulho qualquer de concordância, aquele jeito
bem moleque de concordar sem na verdade prometer nada, e os deixo para
ir me lavar.
Fico feliz ao ver que North não chegou a me limpar, só trocou
minhas roupas imundas de academia, porque parece muito mais invasivo
pensar nele dando banho em meu corpo nu enquanto eu dormia.
Também estou um pouquinho irritada com meu vínculo, já que ficou
em total acordo com o que ele estava fazendo e não entrou em ação para me
acordar ou empurrá-lo para longe. Vou fingir que isso significa que ele foi
respeitoso, porque se eu descobrir que não foi... homicídio. Dor. Caos e
desordem até o mundo ser reduzido a cinzas ao nosso redor.
Fico feliz ao descobrir que este sabonete é diferente do de North,
então muito embora isso deixe meu vínculo cabisbaixo, consigo tirar o
cheiro dele do meu corpo. Lavo o cabelo também, ainda estava com um
pouco de cheiro de fumaça, e, quando enfim saio do box, meu corpo está
rosado e quase brilhando de tão limpa que estou.
É uma sensação maravilhosa pra caramba.
Escovo os dentes duas vezes e bebo mais um copão de água que
tenho a impressão de que salva minha vida. Ainda estou morta de fome, só
que, neste momento, a ideia de sair desse quarto me parece horrorosa, então
acho que vou continuar passando fome até amanhã.
Quando volto para o quarto, enrolada na toalha porque esqueci de
pegar roupas antes de ir para o chuveiro, Atlas e Gabe erguem os olhos para
mim no instante em que apareço pela porta.
Tem coisa demais acontecendo nos olhares dos dois e, de repente,
fico presa neles, congelada no lugar até Gabe engolir em seco e quebrar o
feitiço.
— Foi mal... esqueci, me dá só um segundo! — Balbucio enquanto
corro para o closet e começo a vasculhar minha mala, procurando algo para
me cobrir. Tem uma porta no closet, mas estou escondida bem o suficiente
num canto para conseguir vestir um dos moletons de Gryphon e uma
legging sem mostrar a bunda para os dois homens de sangue muitíssimo
quente que estão à toa no meu quarto.
Desejando-me como se eu fosse sua próxima refeição.
Olha, eu entendo. Tipo, eu mesma tenho olhado para todos eles há
meses como se fossem minha última refeição no corredor da morte, mas era
mais fácil ignorar o sentimento quando eu odiava todos e eles achavam que
eu fosse uma defeituosa inútil e sem dom.
Agora as coisas estão diferentes.
Esses dois aí, com certeza, não me odeiam, e não estou disposta a
admitir o quanto eu também os quero.
Gabe veio atrás de mim.
Atlas tentou fazer isso também.
Os dois me defenderam contra os outros, Gabe enfrentou a
Resistência para me encontrar e me trazer para casa, e os dois protegeram
Sage quando as coisas ficaram feias.
Não significa que eu possa completar o Vínculo com eles ou lhes
dar alguma resposta, mas significa alguma coisa.
Saio do closet e encontro Gabe olhando pela janela de costas para
mim e Atlas deitado com o celular na mão. Sinto-me constrangida pra
caramba enquanto caminho em direção à cama, tentando não me sentir
envergonhada das roupas largas e do meu cabelo ainda pingando pelas
costas, ao mesmo tempo que os dois mais parecem modelos que acabaram
de sair de uma revista de esportes.
É que os dois são mesmo gostosos pra caramba, tá?
— Vem se deitar aqui, você está branca como um fantasma, Doçura
— Atlas murmura enquanto abre espaço e puxa a coberta para mim. Acho
que, depois de passar dois dias dormindo, eu deveria estar farta de ficar na
cama, mas é bem tentador me enfiar entre os lençóis e ficar ali até morrer.
Gabe nos observa com um tipo de ciúme fervente, mas não diz nada
e arrasta uma das enormes poltronas decorativas para se sentar ao meu lado.
Nenhum dos dois diz mais nada, e começo a achar que estou
enlouquecendo um pouco.
— Vou ficar bem aqui, gente. Vocês não precisam ser minhas babás.
Não vou fugir, juro.
Gabe bufa e me preparo para ouvi-lo dizer algo bem doloroso, mas
ele só retruca:
— A gente não acha que você vai fugir, Oli. Nox é um cuzão e está
externando isso agora. Se ele falar daquele jeito de novo com você, vou
matá-lo.
— É mesmo, é? — Atlas debocha. — Como é mesmo que um
metamorfo vai enfrentar um Draven e seus pesadelos? Se um de nós dois
vai matá-lo, serei eu.
Eu não quero que outra competiçãozinha comece, mas se eu deixar
os dois tagarelarem, talvez consiga descobrir o que Atlas pode fazer sem
precisar perguntar.
Não sei bem por que ainda sou tão contra a conversar com eles
sobre seus dons, talvez porque se eles me perguntarem qualquer coisa sobre
o meu próprio, vou me sentir uma vaca absoluta por me recusar a dizer
qualquer coisa que seja.
Mas acontece que eu não preciso esperar muito:
— Ser forte também não vai te ajudar com os pesadelos. Você não
pode lutar fisicamente contra eles, eles vão te consumir — Gabe retruca, e
Atlas ri da cara dele.
— Sou indestrutível. Eles podem consumir o que quiserem, não vai
me machucar nem fazer bosta nenhuma comigo. Sou à prova de bombas.
Nossa.
Que útil.
E eu, sem dúvida, sou uma péssima pessoa e tenho sérios
problemas, porque no mesmo instante meu dom quer testar a teoria, ver se
eu consigo ou não o derrotar.
Preciso enterrar meu dom bem fundo e lembrá-lo de que nós não
machucamos nossos Vínculos e nós definitivamente não machucamos os
dois Vínculos que estão aqui comigo.
Antes que Gabe possa responder com alguma outra tirada enquanto
os dois decidem quem é o macho alfa por aqui, há uma batida na porta e
todos olhamos para ela ao mesmo tempo.
Não é um dos meus Vínculos, não os sinto ali, mas tampouco quero
enfrentar os funcionários também. E se North tiver mandado alguém vir me
buscar para outra rodada de interrogatório?
Não, valeu.
— Não abra — murmuro, mas Gabe se levanta e apoia o ombro na
madeira como se estivesse planejando proteger o forte com o próprio corpo.
Mais pontos para o Gabe.
— Quem é? — ele questiona.
Uma vozinha frágil responde:
— Cozinha. O sr. Draven nos mandou trazer comida para a srta.
Fallows.
Graças a Deus.
Não quero dar um ponto para ele também, mas a mera menção de
comida faz meu estômago roncar e Atlas acena com a cabeça para Gabe
deixá-los entrar.
Bandejas e mais bandejas de frutos do mar e peixes são trazidas para
o quarto e, juro por Deus, quase tenho um orgasmo só de sentir o cheiro.
Como o suficiente para três pessoas.
Atlas e Gabe não tocam em nada até eu estar satisfeita.
3

Passo a noite toda com Atlas e Gabe, tentando manter a paz entre os dois e
fracassando miseravelmente. Fica muito claro para mim que eles só
concordam um com o outro quando estou em perigo ou estão lidando com
os outros Vínculos.
Quando ficamos sozinhos assim, eles se provocam e se cutucam até
eu querer assassinar os dois.
Por fim, quando decido ir dormir, nenhum dos dois sai do quarto e,
por mais que eu não queira admitir isso, quero mesmo que fiquem. Atlas
toma banho e vem se deitar na cama comigo só de cueca.
Gabe tira a camiseta e faz um ninho de travesseiros e cobertores no
chão do meu lado da cama sem dizer nada. Ele teve uma quantidade
absurda de reclamações para fazer a Atlas a noite toda, mas nenhuma para
mim. Não sei se é culpa ou se só está esperando para conversar comigo em
particular, mas isso me deixa agitada e ansiosa.
Atlas tem a consideração de ficar longe de mim na cama, mas sua
mão encontra a minha por baixo do lençol antes de eu apagar as luzes.
Quando acordamos na manhã seguinte, sinto-me como se tivesse
sido atropelada por um trem, mas guardo essa informaçãozinha para mim
mesma, pois de jeito nenhum vou passar o dia inteiro nessa droga de
mansão hoje. Vou às aulas e vou tirar vantagem da pouca liberdade que
ainda tenho. Preciso ver Sage e saber como ela está depois do sequestro.
Preciso agradecer a Felix por ter me curado só porque pedi, já que ele não
precisava ter feito isso. Preciso até procurar Gracie para agradecer por ter
gritado avisando que levaram Sage e me permitido encontrar minha melhor
amiga quando ela precisava de mim. Vou almoçar com todos meus amigos,
droga!
— Não gosto disso — diz Atlas na porta do closet, mantendo as
costas para mim enquanto me troco, mas ainda por perto. Digo a mim
mesma que é um lance de Vínculos e não porque devo estar tão horrível
quanto me sinto.
Gabe desapareceu para tomar banho e se vestir em seu próprio
quarto, e foi aí que eu descobri que ele também tem um quarto aqui.
Tecnicamente, ele não mora aqui, mas parece que quando North descobriu
quem eu era e de quem mais eu seria o Vínculo Central, designou quartos
para todos nós.
Cuzão controlador.
Visto uma das camisetas de Atlas e depois coloco um dos moletons
de Gryphon, o último que ainda tem o cheiro dele. Preciso descobrir um
jeito de conseguir mais com ele... ou devolver os outros para ele colocar seu
cheiro neles de novo.
Será que seria muito patético pedir para Gabe me ajudar com isso?
Será que ele tem algumas camisetas que eu possa roubar também?
Jesus, se concentra, Oli!
Pigarreio enquanto visto uma calça jeans que já teve dias melhores,
mas que ainda me serve bem.
— Preciso disso. Eu preciso muito voltar para a minha vida e deixar
as coisas se ajeitarem.
Quando termino de me vestir, coloco a mão nas costas dele para
chamar sua atenção, ele se vira e sorri para mim, os olhos brilhando.
— Você fica perfeita nas minhas roupas, Doçura.
Fico corada, o que é ridículo, e retruco:
— Do que você está falando, nem dá pra ver! Vai ser assim sempre
que eu roubar uma roupa sua? Porque meu vínculo é bizarro pra caralho
com cheiros e... acho que isso vai acontecer o tempo todo.
Ele encolhe os ombros e passa um braço em volta dos meus. Nesse
momento, Gabe abre a porta com minha chave, que ele pegou, e volta para
o quarto.
— Pode pegar a droga que quiser de mim, pegue tudo. Quer meu
carro também? Isso pode me doer um pouquinho, mas só se você for uma
péssima motorista.
Faço uma careta e, quando olho para Gabe, ele está encarando Atlas
como se quisesse rasgar a garganta dele, e isso torna difícil falar, mas
consigo:
— Na verdade, não tenho carteira de motorista, então pode ficar
com o carro. A Equipe Tática tirou minha identidade falsa e, graças a
North, todo mundo no campus sabe quem sou, então não tenho como
resolver isso.
O sorriso no rosto de Atlas vacila um pouco, mas ele se abaixa e
beija minha bochecha de um modo gentil, apenas roçando a pele de leve na
minha, mas meu vínculo implora por ele como uma piranha amuada dentro
do meu peito.
— Vou acrescentar isso à lista de coisas que temos que resolver para
você, vai ficar bem no topo com tirar o rastreador GPS e arrumar um
emprego, se ainda quiser um.
Solto o ar pela boca e coloco um sorriso no rosto.
— Então...só coisinhas bem fáceis de conseguir, nada que vá deixar
North tão puto ao ponto de me acorrentar na droga do porão dele.
Atlas semicerra os olhos, mas não quero descascar esse abacaxi
agora, então dou a volta nele, caminho até a cama e enfio na mochila os
últimos cadernos que faltam. Preciso encontrar meus sapatos, porque só
tenho dois pares e um está lá no centro de treinamento.
O outro par North tirou de mim.
Porra, não quero mais pensar nesse homem hoje.
Gabe se aproxima hesitante, mas não sei por que até ele me oferecer
uma sacola.
— Gryphon me entregou isso agora de manhã. Ele disse... droga,
não importa. São seus.
Seu constrangimento me faz franzir o cenho, mas quando pego a
sacola e olho dentro, encontro minhas botas de couro. Encontro o filho da
puta do meu par de botas lindo e perfeito de brechó que achei ter sido
deixado para trás quando a Equipe Tática me pegou e pelo qual chorei
durante dias, mas aqui estão elas, nesta sacolinha.
Eu me debulho em lágrimas.
É tão ridículo e Gabe me olha com aquele tipo de horror que deixa
claro que está morrendo de vontade de fugir de mim agora e apagar esse
momento de sua memória para todo o sempre. Só que então ele segura meu
braço, puxa-me contra seu peito e me abraça, daquele jeito meio contido,
mas seguro, que os caras fazem quando estão com medo de esmagar você.
Choro de soluçar em cima dele.
Mantenho o rosto grudado na superfície dura que nem pedra de seu
peitoral perfeito e murmuro:
— São os melhores sapatos que já tive e achei que tinha perdido.
Porra, que vergonha! Vocês precisam sair daqui e esquecer que isso
aconteceu. Prometam que nunca mais vamos falar sobre isso.
Gabe faz um som com a garganta, esfregando minhas costas com a
mão, ainda com medo de eu fazer cérebro mexido com ele se fizer algo
errado.
— Você podia ter perguntado a ele. Gryphon não é um Draven,
consegue ser razoável, sabe.
Dou uma bufada, o que sem dúvida é um erro considerando meu
estado, e me solto de Gabe para pegar as botas e calçá-las. No mesmo
instante, eu me sinto arrumada e adorável, ao invés de desleixada e vestida
de qualquer jeito que estava me sentindo até três minutos atrás.
Gryphon não faz a menor ideia, mas esse homem acabou de me dar
o paraíso.
— Certo, então sapatos são a chave para o seu coração, entendi —
Atlas reflete e lhe dou um sorriso choroso.
Todos pegamos nossas mochilas e saímos, trancando a porta depois.
— Vai dizer que não estou uma gracinha agora, eu te desafio! Eu
podia matar um homem hoje. Com essas botas eu podia até chegar na aula
de Nox e esfolar aquele babaca vivo.
Gabe balança a cabeça para mim.
— Então talvez seja melhor não as usar, agora que todos sabemos
que você pode sustentar essas ameaças com atitudes.
É primeira vez que algum deles menciona meu dom, mas ele não diz
mais nada a respeito, não me pressiona nem me olha estranho, então acabo
não saindo correndo para as colinas.
Acompanho os caras pelo corredor e até dentro do elevador,
confiando que vão me tirar desse labirinto de casa porque eu, mais uma vez,
não faço a menor droga de ideia de onde estou. Sério mesmo, alguém
precisa me arranjar um mapa.
Quando as portas do elevador se fecham, Gabe hesita por um
segundo para escolher o andar, então me dá uma olhada.
— Vamos descer pra tomar café da manhã, ou vamos para a
garagem e comemos no refeitório?
Torço o nariz.
— Não tem uma terceira opção?
Atlas se debruça e escolhe o subsolo.
— Tem, a cafeteria na rua do campus faz um café gostoso e burritos
de café da manhã.
Abro a boca, mas ele me interrompe:
— Se você der um pio sobre dinheiro neste momento, Oleander, vou
dar uma surra em North por fazer você se sentir mal por causa disso. Sei
muito bem quem você é e de onde está vindo, não tenho problema nenhum
em cobrir qualquer despesa que precisar até conseguir se estabilizar.
Ainda não quero que ele pague as coisas para mim, mas não quero
mesmo ver North agora, então só abaixo a cabeça e faço que sim, olhando
para minhas botas perfeitas mais uma vez. Trabalhei duro para juntar o
dinheiro para comprá-las. Vasculhei muitos brechós com várias notas de
dólares no bolso até encontrá-las.
Digo a mim mesma que vou manter controle de tudo que ele está
pagando e o ressarcir assim que puder. Se esses dois não têm problema
comigo arrumando um emprego e Gryphon já disse que vai me apoiar,
então North precisa ceder, certo?
Ele não é chefe de todos nós... certo? Jesus, por que isso tudo tem
que ser uma confusão tão grande?
Quando as portas do elevador voltam a se abrir na garagem,
andamos até o Hellcat de Atlas e Gabe abre a porta do passageiro para mim,
então espera eu me ajeitar e colocar o cinto antes de entrar no banco de trás.
Atlas ergue uma sobrancelha, mas ele só dá de ombros.
— Não vou sair de perto de Oli. Suspeito que você esteja se
sentindo do mesmo jeito e não cabemos todos na minha moto, então tem
que ser o seu carro.

O burrito de café da manhã é a coisa mais gostosa que já coloquei


na minha boca e, quando dou a primeira mordida e solto um gemido, Atlas
gargalha alto.
Gabe está concentrado na comida dele como se estivesse em uma
missão, engole o café em dois goles e, em seguida, acaba com o resto em
cerca de três mordidas. Sei que ele é do tamanho de uma montanha, mas
ainda acho impressionante o quanto ele come, mesmo quando é a comida de
coelho pela qual ele costuma optar.
— Se continuar assim, não vamos chegar a tempo para a aula —
Atlas diz, entrando com o carro no campus na hora do rush.
Debocho em resposta:
— Não vamos chegar a tempo porque ninguém aqui sabe estacionar
em um tempo decente.
Nunca tinha percebido que é tão ruim assim, porque sempre vim
andando com Gabe e minha atenção estava no quanto eu não queria ficar
perto dele, mas já estamos há mais tempo na fila do estacionamento do que
ficamos na da cafeteria.
É ridículo.
Mando uma mensagem para Sage para avisá-la que estamos aqui e
ela responde rápido, informando que está vindo nos encontrar com Sawyer
e Felix. Nem questiono que o curandeiro esteja junto, depois de ela ter
escapado por um triz, tenho certeza de que ele tem ficado em cima dela.
Minha péssima opinião sobre Riley bateu um novo recorde por ele
não se sentir do mesmo jeito.
Passa pela minha cabeça que, se Gabe e eu somos amigos mesmo,
agora tenho outro aliado no time Riley-tem-que-morrer e viro na poltrona
para olhá-lo.
— O que você acha de Riley? Quero saber sua opinião antes de
derreter o cérebro daquele imbecil e assisti-lo convulsionar até morrer.
Há um momento de silêncio no qual estou certa de que os dois
sentem muito por serem meus Vínculos, mas Gabe responde:
— Ele é um cuzão de merda. Quando a gente era criança ele vivia
rastejando por Sage e eu sabia que eles iam acabar sendo Vínculos. Às
vezes dá pra saber, e ele parecia um escudo em cima dela o tempo todo... aí
Giovanna aparece e ele descarta Sage como se ela não fosse nada, não sinto
nada além de ódio por ele.
Quero lembrar que ele costumava defender o cara para mim toda
hora, mas neste momento parece desnecessário fazer isso. Não faz
diferença, Gabe percebe que está sendo hipócrita e faz uma careta.
— Eu sei. Sei o que eu disse. Fiquei furioso pra caralho por você
virar amiga de Sage no segundo em que chegou aqui. Você ainda olha pra
mim como se eu fosse a pior coisa que já viu, mas por ela você se
apaixonou logo de cara.
Ai meu Deus.
Uma onda de culpa me atinge e preciso me obrigar a não olhar para
Atlas, porque ele sem dúvida está sentado ali todo convencido, já que eu
também o aceitei com muita facilidade quando chegou.
Eu realmente sou a vaca que Gabe acha que eu sou.
Quando Atlas estaciona, peço a ele para nos dar um segundo e ele
sai sem dizer nada, dando uma apertadinha na minha mão e caminhando
para se encontrar com Sage porque ele é muito perfeito, caramba.
Respira fundo, Oli, não é hora de ser covarde.
— Me desculpa. Eu precisava de distância porque não posso
completar meu Vínculo com nenhum de vocês. Nem com você, nem com
Atlas, nenhum de vocês. Meu dom... não posso permitir que fique mais
forte. É só isso que posso dizer. É aterrorizante, Gabe. Sinto que já está
mais forte agora, e se eu deixar meu dom aumentar só porque quero todos
vocês, bem, não sou egoísta assim. Não posso me colocar acima de todas as
outras pessoas desse jeito.
Ele me encara por um segundo, então seus olhos disparam para
minhas mãos. Agora estão firmes como uma rocha, com meu dom
repousando de modo inofensivo dentro de mim e meu vínculo contente de
ter os cheiros de todos eles ao meu redor.
Sua voz é baixa e firme ao perguntar:
— É só isso, esse é o único motivo pelo qual você não quer o
Vínculo? Tem medo do que vai acontecer se o tiver?
Concordo com a cabeça e dou uma olhada breve para fora, vendo
Sage sorrir de algo que Sawyer disse. Os quatro estão agindo como se
fossem amigos há milhões de anos e não tivéssemos acabado de ser
sequestrados por um bando de milicianos Favorecidos surtados.
— Não vou arrancar repostas de você à força. Quero essas respostas
pra caralho, mas... mas talvez nossos problemas tenham sido causados
porque eu estava decidindo como as coisas deveriam ser ao invés de
permitir que a gente descobrisse juntos — diz naquele mesmo tom baixo,
também observando os outros. Ele soa bem infeliz e ainda me sinto a pior
pessoa do mundo por fazer isso com ele.
Preciso me lembrar de que ele também foi um babaca, que isso tudo
não é só minha culpa. Ele mudou e está seguindo em frente, mas isso não
apaga o fato de que foi um cuzão gigante comigo.
Pigarreio e pego minha mochila.
— Chega de falar de dons e Vínculos, vamos só ser amigos e nos
esforçar para... passar em todas as matérias sem matar ninguém. É claro que
a gente consegue fazer isso, né?
Ele dá um riso de escárnio e sai, movendo-se tão depressa que abre
a minha porta antes que eu tenha a chance de pegar na maçaneta. Seguro
sua mão para sair do carro, mas solto assim que consigo ficar de pé com
firmeza.
Não faz sentido provocar o destino.
Sage me observa dar dois passos em sua direção antes de correr e se
jogar em cima de mim. Minhas pernas falham sob o nosso peso, quase
jogando nós duas no chão. Quase, porque Gabe nos segura e nos mantém de
pé.
Sage me aperta com tanta força que minhas costelas estalam
enquanto ela diz:
— Não acredito que você dormiu por dois dias inteiros e agora está
vindo para a aula! Eu ficaria pelo menos uma semana trancada em casa se
fosse você.
Dou risada e me afasto um pouco para dar uma boa olhada nela. Ela
está bem, sem nem um arranhão, e tenho certeza de que é graças a Felix.
— Sem chances de eu ficar presa com esses dois babando em cima
de mim. Dá pra imaginar? Eu ia acabar matando alguém... ou bebendo até
cair morta.
Ela ri e dá um sorriso tenso para Gabe.
— Esqueci de dizer obrigada por ter ligado para os meus pais do
avião. Estou de castigo pelo resto da minha vida, ou estaria se eu não fosse
uma mulher adulta com meu próprio carro, trabalho e dinheiro. Meu pai
tentou vir junto para o campus hoje, ele ia ficar sentado nos fundos das
nossas aulas o dia todo como um esquisitão. Sawyer teve que convencê-lo a
mudar de ideia.
Sawyer sorri para nós duas e dá tapinhas gentis no meu ombro.
— Agora nós temos uma escala de “Seguranças de Sage e Oli”.
Acostumem-se a estes rostos, garotas. Nunca mais vamos deixar nenhuma
de vocês sozinha de novo. Até Gryphon tem uma cópia, ele também vai
fazer alguns horários.
Ai meu Deus.
Olho para Gabe e ele dá de ombros.
— Fiz ele concordar em não contar para os Draven.
Dou uma bufada para ele e tento ignorar os olhares que estamos
recebendo dos outros alunos que passam por nós. O jeito como todos estão
sussurrando e apontando para o nosso grupo é mais do que bizarro, mas
tenho certeza de que, mais cedo ou mais tarde, a fofoca vai perder a graça.
— E você acreditou? Aqueles três vivem grudados, de jeito nenhum
ele vai esconder esse seu projetinho deles.
Gabe só dá de ombros de novo e olha feio para um grupo de garotas
que está passando, falando um pouquinho alto demais sobre os novos
boatos que estão circulando a meu respeito. São verdadeiros, dessa vez,
então não tem nada que eu possa dizer.
Sage olha de Gabe para mim de novo, então entrelaça o braço com o
meu, puxando-me.
— Preciso parar no prédio da administração. Preciso assinar uma
papelada sobre as mudanças que fiz nas minhas aulas, agora que me
matriculei em TT.
Demoro dois passos inteiros para processar o que ela disse e
entender, depois o gritinho escapa do meu corpo.
— Você vai entrar no TT?! Eu te amo, Sage, mas tem certeza?
Ela dá uma risadinha e nós duas ignoramos o jeito como os caras
estão todos entrando em uma formação esquisita ao nosso redor enquanto
nos dirigimos ao campus.
— Eu já te disse que meus pais queriam que eu fizesse essa aula,
mas eu morria de medo dela... bom, agora morro de medo de não fazer.
Ela olha de relance para Atlas, que está do meu lado, mas ele não
tenta se intrometer, só acena com a cabeça como se concordasse com a
decisão.
Eu sabia que havia um motivo para ele ser um dos meus preferidos.
— Oli, se você não tivesse... se não tivesse vindo atrás de mim, sei
que eu estaria morta. Você sabe que não vou perguntar como você sabia o
que fazer, ou como conseguiu ficar de cabeça fria, mas preciso aprender
isso eu mesma. Além disso, Felix e eu estamos certos de que Vivian tem um
certo carinho por você. Vou usar nossa amizade a meu favor e fazer você
pedir pra gente ser colocada juntas em todas as simulações e cenários.
Vamos ser imbatíveis, você mexendo com o cérebro das pessoas e eu
tacando fogo nelas.
Minha risada sai um pouco estridente demais, mas ela está mais do
que certa.
Somos basicamente supervilãs em formação e quase fico irritada
porque Zoey não vai estar lá para a gente acabar com a raça dela.
Sawyer começa a contar a Gabe alguma história sobre o novo cara
do time de futebol americano, os dois seguem juntos atrás de nós, vigiando
nosso entorno com uma certa obsessão. Sinto-me melhor em ter os dois ali,
sabendo que nossa retaguarda está protegida.
A expressão sanguinária no meu rosto faz Atlas sorrir e passar um
braço sobre meus ombros, curvando-se para murmurar:
— Trata de me colocar na sua equipe também. Não posso ser
deixado sem supervisão perto daquela gente ou vou tocar o terror.
Dou um riso de deboche dele, embora o rubor esteja subindo pelas
minhas bochechas por ele estar tão perto de mim na frente de todo mundo.
Ele tem um jeitinho casual de interagir comigo que mostra um completo
descaso quanto a ser ou não apropriado me tocar, o que é, ao mesmo tempo,
revigorante e aterrador.
Meu vínculo gosta muito.
Já o meu cérebro está, mais uma vez, gritando “perigo!”, porque não
posso me esquecer de que me vincular a eles ainda está, com toda certeza,
fora de cogitação.
Não importa o quanto eu os queira.
4

Monstro.
A palavra me acompanha em todas as minhas aulas e no refeitório
na hora do almoço. Atlas, Sage, Sawyer e Felix seguem minha deixa e
ignoram o que dizem. Não estou nem aí para nenhuma dessas pessoas.
Nenhuma delas tentou ser minimamente tolerante comigo, nem quando
achavam que eu era uma rejeitada sem dons, então por que eu deveria me
importar que todos me odeiem agora?
Mantenho minha raiva sob controle e sigo com meu dia.
Gabe não.
Assim que pisamos no prédio e os murmurinhos começam, ele cola
do meu lado, tirando Sage de modo gentil do caminho porque nessa altura
já sabe que não adianta tentar brigar com Atlas. Ele está tenso, observando
todo mundo nos corredores e em todas as salas de aulas como se estivesse
esperando alguém nos atacar.
Quero acreditar que ele está exagerando, mas já vivi coisa demais
até aqui para descartar a hipótese. Então fico de olho em todo mundo com
ele. Observo todos seus amigos hesitarem antes de cumprimentá-lo,
mantendo uma distância saudável de nós. Observo as garotas que babavam
nele e o paparicavam durante meses evitarem olhar em seus olhos, falando
merda de mim ao passar por nós. Observo todos que o tratavam como o
menino de ouro do campus desde que cheguei aqui lhe darem as costas,
graças a mim.
Isso deixa o vínculo dentro de mim e meu dom muito incomodados,
porque eu estou cagando para o que esses idiotas pensam de mim, mas
tratar meu Vínculo assim só porque ele está preso comigo? Ah não. Não
gostamos disso, nem um pouquinho.
Quando saímos da aula de História e nos dirigimos ao refeitório para
almoçar, Gabe murmura alguma coisa com Sawyer e deixam Sage segura
do outro lado de Atlas, para ela ficar entre ele e o irmão. Dou um olhar
estranho para Gabe e ele se abaixa para murmurar:
— Bassinger é indestrutível. Quem melhor para proteger vocês duas
do que o cara que pode ser um escudo humano sem morrer?
Certo, então quando eu conseguir tirar o GPS que está embaixo da
minha pele sem explodir meu cérebro, vou ter que levar toda essa gente
comigo. Não tenho nenhuma dúvida de que vou precisar arranjar um ônibus
para caber todos nós, porque talvez essas amizades não tenham começado
tão bem, mas agora posso sentir que estamos firmes e juntos até o fim dessa
merda toda.
Quando chegamos ao refeitório, está lotado e a única opção decente
no menu está em alta demanda, então ficamos presos na fila. Atlas brinca
com Sawyer sobre coisas de esporte com as quais eu não poderia me
importar menos, e Sage repassa nossas opções para o próximo trabalho de
história que teremos. Ela é muito mais inteligente do que eu e vou
aproveitar toda a ajuda que ela puder me dar nesse trabalho, porque não sei
nada sobre os motins dos Favorecidos nos anos 1970. A fila anda com tanta
lentidão que, quando conseguimos chegar na pizza, só sobraram duas fatias.
Atlas as pega, coloca no prato e questiona a funcionária sobre o
tempo de espera por mais. Quando ela responde que estão quase prontas,
ele me oferece o prato e me manda sentar.
Fico olhando que nem uma idiota para ele, que sorri.
— Como se eu fosse comer antes do meu Vínculo, vá se sentar com
Ardern e eu encontro com vocês lá.
Olho para trás e vejo que Gabe já está sentado, olhando feio para
todos como fez o dia todo. Suspirando, sigo através da multidão até ele,
embora fique mais fácil com a quantidade de pessoas que pulam para fora
do caminho com medo de encostar em mim.
Gosto disso.
O pratinho de tristeza de Gabe está em sua frente como de costume,
salada e proteína como um bom garotinho em fase de crescimento, então
aproveito a oportunidade para questioná-lo, agora que tem menos gente ao
nosso redor para ouvir.
— Por que você se importa tanto com o que estão dizendo sobre
mim? Por que eu deveria ligar se eles acham que sou um monstro?
Ele faz uma careta e olha por cima do ombro, para onde Atlas está
parado junto aos outros, conversando de modo alegre. Meu olhar encontra o
de Atlas conferindo como estou e ele sorri. Abro um enorme sorriso de
volta para que ele não se apresse e interrompa a conversa.
Preciso de algumas respostas.
— North e Nox têm o mesmo pai, mas mães diferentes, sabia disso?
O pai deles era o Vínculo Central e possuía também as criaturas de
pesadelos. O pai deles... bom, nenhum de nós sabe o que aconteceu de
verdade, mas o pai deles matou a mãe de North com seu poder. Ele foi
condenado à morte por isso. William Draven, tio deles, assumiu o assento
da família no conselho até North ter idade suficiente.
Jesus. Essa pergunta simples abriu uma caixa de Pandora todinha
que eu não estava esperando. Embora meu estômago revire só de pensar em
comida agora, enfio a pizza na boca só para ter algo mais em que pensar.
Gabe faz uma cara feia, mas pigarreia e continua:
— Outras merdas aconteceram também, mas não sou eu... não é...
droga, não sou eu que tenho que te contar e, de qualquer forma,
provavelmente metade dos detalhes que eu tenho estão errados. O que
importa é que quando todo mundo descobriu que tanto North como Nox
têm o mesmo dom do pai deles, isso gerou muita conversa na época. Mais
do que conversa, o Conselho precisou interferir. E aí... bom, o dom de
Gryphon deixa as pessoas receosas. O meu é tão ruim quanto. Quando
descobrimos que estávamos todos no mesmo grupo de Vínculos, muita
gente ficou preocupada.
Um curandeiro e um metamorfo deixaram as pessoas preocupadas?
Esses dons dão que nem banana, não faz nenhum sentido para mim. Então
eu me lembro o que Hanna me disse semanas atrás, quando o dom dela me
jogou para longe durante o TT.
Gryphon Shore não é alguém que você decide irritar por simples
capricho.
Quer dizer, se isso não é um aviso de que eu não o julguei direito,
não sei o que é.
Gabe olha para trás, os outros enfim estão sendo servidos e o aroma
de pizza recém-assada flutua até nós.
Ele volta a se virar para mim e fala baixo para os outros não
ouvirem enquanto se aproximam:
— Nox mal passava de uma criança quando a mãe dele morreu e o
trouxeram de volta para North. Houve manifestações na comunidade contra
ele poder estudar aqui. Não importa que o nome deles esteja na frente do
prédio, as pessoas os odeiam por causa do que podem fazer. Elas odeiam
todos nós, Oli. Por que você acha que a gente tinha tanta certeza de que
você tinha sido sequestrada quando desapareceu? Por que acha que North
monitora cada passo que você dá? Não é só porque tem chances de você
fugir.
Jesus.
Será que eu errei tanto assim na minha avaliação dessa comunidade
toda?
Atlas se senta na cadeira ao meu lado, ainda rindo com seu novo
melhor amigo Sawyer, e abaixo a voz para que só Gabe escute:
— Achei que todo mundo amasse você. Estava me sentindo um lixo
por todos terem te dado as costas por minha causa.
Sage escuta e me olha com seus olhos tristes, mas que andam
diferentes esses dias. Ainda mais porque sei que tem uma baita valentona
dura na queda por baixo de toda essa empatia maravilhosa e sabedoria
silenciosa.
Ela dá uma olhada ao redor e murmura para nossa mesa:
— Está dizendo que você não sabia que todos aqui são alpinistas
sociais traíras e covardes que lamberiam Gabe de bom grado se achassem
que isso os ajudaria a ter notas melhores e empreendimentos futuros com
seus Vínculos, mas que agora que foram lembrados de que todos vocês são,
tipo, os mais fortes dentre os Favorecidos de Nível Superior, voltaram a
falar baboseira como os merdinhas covardes que todos eles são?
Até o Sawyer para de falar e encara a irmã pelo veneno que pinga
das palavras dela, porque não tem como negar que ela está farta pra caralho
desse lugar. Sinto o mesmo e pensar nessas pessoas usando Gabe por causa
dos outros desperta uma crueldade extra em mim.
Talvez usar esses sapatos tenha sido uma péssima ideia, no fim das
contas.
Eu me reclino na cadeira e sorrio para Sage.
— Você acha que a gente deveria atear fogo em todos ou derrubar o
teto pra esmagar todo mundo sob ele? Não sei bem se já tenho autocontrole
suficiente para ferrar esse povo sem atingir um de vocês, gente, desculpa.
Sou praticamente inútil.
Falo alto o suficiente para que as pessoas na mesa atrás da nossa
comecem a juntar suas coisas e saiam apressadas, sem querer correr o risco
das minhas ameaças porque, pelo visto, eles têm cérebros dentro dos
crânios.
Gabe olha para mim:
— Você não pode sair ameaçando as pessoas, Oli. Não agora que
todo mundo sabe o que você pode fazer.
Olho para Zoey enquanto ela passa por nossa mesa, seus olhos
encontram os meus e me certifico de que ela escute minha resposta:
— Eles não sabem nem da metade do que posso fazer, Vínculo. Se
soubessem, não se atreveriam a chamar a mim e aos meus de monstro.
O burburinho morre no mesmo instante.
Imbecis covardes de merda.

Sage se oferece para ficar na biblioteca depois de nossas aulas para


começarmos nossos trabalhos de história. Estou nervosa quanto a esse, pois
é a primeira vez que de fato me senti abaixo do nível, então aceito a oferta
dela com um alívio tão evidente que ela começa a fazer uma lista de leituras
adicionais para eu me adiantar quando voltar à Mansão Draven.
Gabe, Sawyer e Felix vão para o treino de futebol americano, mas
só após se certificarem de que Atlas não vê problemas em cuidar de nós
duas sozinho. Felix é bem veemente a respeito de não deixarmos Sage
sozinha quando acabarmos e Sawyer precisa lembrá-lo de que fui correndo
para os braços da Resistência atrás dela assim que ouvi que a tinham
pegado.
Ele sorri um pouco envergonhado para mim, mas rio e gesticulo
para deixar para lá.
Quando eles voltam e nos separamos para ir embora, Gabe e eu
entramos no carro de Atlas e permanecemos com uma atmosfera tranquila e
suave ao nosso redor. É um milhão de vezes melhor do que a vida era há um
mês e descubro que estou feliz, embora cada fibra do meu ser esteja
doendo.
Forcei muito hoje e estou sentindo as consequências.
Quando chegamos na mansão, estou pronta para comer e desmaiar
e, com sorte, evitar encontrar qualquer outro Vínculo meu no labirinto dos
corredores. Esse lugar ser tão colossal tem que ter alguma vantagem, droga!
Quando digo isso a Gabe, ele faz uma careta e coça a parte de trás
da cabeça.
— Então, North mandou uma mensagem mais cedo e ele transferiu
os jantares do nosso grupo de Vínculos para as segundas, porque ele vai ter
alguma merda do conselho nas sextas a partir de agora.
Só olho e pisco para ele por um instante antes de lembrar como
falar.
— Então você está me dizendo que não posso só me entupir de
macarrão ou pão e correr para o meu quarto só porque North decretou que
preciso ver todo mundo hoje à noite? Odeio esse homem.
Atlas passa o braço sobre meus ombros e me conduz para o
elevador.
— Então vamos pular o jantar. Podemos pedir alguma coisa para
entregar e passar a noite fazendo algo que a gente queira.
Estou desesperada para fazer isso.
Mas também sei que North chegou ao ponto de me arrancar da cama
de Atlas e me arrastar até aqui no meio da noite por ter ousado desobedecê-
lo, então nunca daria certo.
— Não tem problema, melhor acabar logo com isso agora e
recuperar as noites de sexta. Atlas, espero que você esteja pronto para a
refeição mais constrangedora da sua vida, porque isso aqui está prestes a
ficar tenso.
Atlas bufa e me puxa para mais perto, enfiando o nariz no meu
cabelo como se precisasse do meu cheiro tanto quanto meu vínculo anseia
pelo dele. Eu me pergunto com qual força eles sentem os puxões da nossa
ligação, será que anseiam por mim tanto quanto anseio por eles? Duvido,
porque todos eles parecem achar muito mais fácil do que eu manter a
distância entre nós.
Eles que se danem.
Somos os primeiros a chegar à sala de jantar, uma pequena
misericórdia, e nos sentamos em nossos lugares de costume, exceto que
agora Atlas está do meu outro lado. Estou esmagada entre os dois e isso não
é fabuloso pra caramba?
— Sinto que estamos no nosso funeral, só que é só a nossa vontade
de viver que morreu — Atlas murmura quando as portas da cozinha se
abrem e os funcionários da casa começam a servir nosso jantar.
Eles normalmente esperam North chegar e convocá-los. Sinto-me
bem desconfortável com eles andando ao redor da mesa, carregando uma
dúzia de comidas diferentes para nós, mas os outros dois apenas começam a
encher os pratos.
Gabe hesita por um instante, antes de pegar meu prato e encher para
mim, escolhendo todas as comidas que já percebeu serem as minhas
favoritas e acrescentando um pouco da coisa saudável que é seu sustento.
Os empregados olham em todas as direções, menos para nós, o que se
parece um pouquinho demais com a maneira que os estudantes se
comportaram para meu gosto.
Sinto que, enquanto Gabe está distraído, é uma boa hora para
conseguir informações, então me inclino na cadeira até conseguir sussurrar
sem que os empregados escutem:
— Por que eles têm tanto medo de um metamorfo? O que está
escondendo de mim?
Ele fica tenso na cadeira e seu garfo paira a meio caminho da boca
ao congelar, então ele pigarreia e responde:
— Por que devo te contar alguma coisa sobre meu dom se o seu é
proibido? Fico feliz em não forçar a barra, mas está pedindo demais,
Vínculo.
Caramba.
Esse era o exato motivo pelo qual eu não tinha perguntado ainda,
mas ele me deu tantas pequenas pistas de que todos eles são tão
aterrorizantes que fiquei muito curiosa.
Faço um beicinho.
Agora que chegamos a essa paz esquisita entre nós, uma amizade
que também vai além disso, mas que não chega a ser um relacionamento,
sinto-me à vontade o suficiente para fazer beicinho, sabendo que ele não vai
me chamar de garota mimada ou criança emburrada como alguns dos meus
outros Vínculos definitivamente fariam.
Em vez disso, ele ri da minha cara e murmura:
— Se me contar uma coisa sobre seu dom, uma que mais ninguém
saiba, vou responder todas as suas perguntas. Tá vendo? Também posso ser
generoso.
Ah, então aquela alfinetadinha de Atlas sobre cobrir as minhas
despesas o deixou mesmo mordido. Tudo bem, não posso impedir que eles
briguem, nem os forçar a ser amigos, mas parece que estou assistindo todos
os problemas que teremos mais para frente começarem a se formar.
Talvez isso faça de mim a maior vaca do mundo, mas eu com toda
certeza vou aproveitar e usar isso a meu favor. Tenho tão pouco poder nesse
vínculo com esses homens, com um dom que poderia exterminar todos nós
e a Resistência procurando por mim em todos os lugares, que preciso usar o
que eu puder e deixar as peças caírem em seus devidos lugares.
— Fechado. Não exatamente agora, mas... posso fazer isso mais
tarde.
Ele sorri para mim bem quando Gryphon entra coberto de lama,
com um hematoma aparecendo na bochecha. Meu vínculo se ofende de
imediato ao ver a marca e meu dom dispara para fora de mim tão rápido que
não consigo impedir. Gabe se sobressalta, mas não grita nem se joga para
longe de mim, o que vou considerar um progresso.
Atlas me observa e arrasta sua mão com cautela sobre a mesa para
ficar mais perto da minha, de modo que não estamos nos tocando, mas ele
está me mostrando que está aqui se eu precisar dele.
Não digo nada e, no instante em que meu dom volta a repousar
dentro de mim, ergo meu garfo com a mão tremula e ignoro o quanto devo
estar ridícula tentando comer desse jeito.
— Não precisava ter feito isso — diz Gryphon, sentando-se em seu
lugar de costume na outra extremidade da mesa.
Encolho os ombros e tento não parecer tão abalada quanto me sinto.
— Não posso evitar. Meu vínculo não gosta de ver vocês
machucados, mesmo que seja só um hematoma.
Sinto que todos os três pares de olhos estão fixos em mim, mas
começo a comer, ignorando-os o melhor que posso.
North chega menos de um minuto depois, examinando todos nós
com uma expressão feroz no rosto, mas é no prato em minha frente que seus
olhos se fixam. Abaixo os olhos para ele, mas não tem nada de errado com
a comida ali, não há nenhum contrabando que poderia irritá-lo misturado no
milho e na ervilha, então mantenho meus olhos baixos e continuo minha
refeição.
— O que houve? Por que Oleander está usando o dom dela? —
pergunta, enquanto puxa a cadeira e se senta. Ele parece tão agitado, não sei
como pretende conseguir comer nesse estado.
Encho a boca de comida para não ter que responder, mas Gryphon
se apressa em dizer:
— Ela me curou sem querer. Todos precisamos nos certificar de não
aparecer aqui com ferimentos ou irritados até ela conseguir controlar
melhor o dom dela, agora que o tem outra vez.
Ele diz isso tudo em um tom tão objetivo que North nem questiona,
apenas vira para me olhar como se eu tivesse duas cabeças ou tivesse
começado a falar uma língua morta do nada.
— Anotado. Falarei sobre isso com Nox depois também, ele
está...indisponível.
Indisponível.
Tem um montão de “nãos” por trás dessa palavra e não quero saber
nada a respeito. É só quando estamos todos comendo de novo e North e
Gryphon estão conversando sobre negócios do conselho em um tom
amigável, que a porta volta a se abrir, porque é claro que não vou conseguir
terminar esse jantar sem encontrar todos eles.
É claro.
Nox entra desfilando com uma de suas garotas regulares, Lana,
enfiada debaixo do braço e, mais uma vez, meu vínculo ignora. Ele
conseguiu mesmo irritar o vínculo em mim, e isso é útil porque ele não está
passando nem um pouco de pano para esse comportamento babaca.
Quando Lana tenta segurar a cadeira ao lado de Gryphon, ele a
impede e diz de forma ríspida:
— Fora. Você não é bem-vinda.
O cômodo cai em silêncio e os olhos de Nox disparam de Gryphon
para mim. Tento não parecer culpada, e deveria ser fácil, já que não fiz nada
de errado, mas falho por completo.
Lana dá uma risadinha, mas é um som constrangedor.
— Mas Nox me convidou, quer mesmo que eu vá embora?
Gryphon ergue as sobrancelhas para ela e nunca estive tão
desconfortável na vida.
— Não estou pedindo, estou mandando você sair desta casa
imediatamente. Ou você sai sozinha, ou vou te forçar.
Ela dá um passo lento para trás, como se estivesse com medo de ele
estar prestes a atacá-la com... sei lá que droga ele pode fazer.
Por acaso sou a única pessoa que não sabe do que os meus Vínculos
são capazes?
Ninguém diz uma única palavra para interferir, North chega a erguer
seus talheres de novo e volta a comer, na mais clara rejeição à essa bagunça
toda que já presenciei. Nox assiste Lana sair com os ombros curvados, de
um jeito que deveria me fazer sentir pena da garota, mas ela que se foda
também, ela sabe que ele tem um Vínculo. Ela sabe e veio aqui em uma
tentativa de esfregar a vida sexual deles na minha cara.
Merda.
Não pense nas vidas sexuais deles sem você, Oli. Seu vínculo já está
se sentindo sensível e volátil!
E claro, meus dedos estão tremendo com o poder do meu dom
correndo pelas minhas veias, pronto para atacar qualquer um deles que se
atrever a desejar outra mulher além de mim. Ajeito-me na cadeira,
encolhendo-me para longe de Atlas e Gabe, para meu vínculo ciumento não
destruir um deles por acidente.
Fecho os olhos bem apertados e inspiro fundo, minha cabeça está
girando com todas as emoções que não me permito sentir, mas com as quais
o vínculo em mim está se contorcendo. Ciúmes, ódio, fúria, sangue, dor,
destrua todo mundo.
Nossa, minhas TPMs vão ser de um nível superior agora que meu
dom voltou. Caramba, já posso até prever.
— É por isso que você precisa parar de provocá-la até sabermos o
que ela pode fazer. Chega de trazer mulheres. Chega, Nox.
Meus olhos abrem de uma só vez ao ouvir o som da voz de Gryphon
e o encontro apontando para mim enquanto encara Nox de modo furioso.
Estou tão concentrada nos dois que dou um pulo quando os dedos de Atlas
deslizam nos meus, entrelaçando-os até ele estar me segurando. Olho para
nossas mãos e então para seu rosto, mostrando todo o meu choque e medo
por ele estar me tocando de propósito.
Ele dá um sorrisinho, então se debruça para murmurar no meu
ouvido:
— Indestrutível, lembra?
Nossa, espero que ele seja mesmo.
Espero que ele sobreviva à mim.
5

O restante do jantar passa sem novos incidentes, mas é constrangedor pra


caramba, graças à presença antagônica de Nox. Nunca tinha visto Gryphon
ou North o enfrentarem antes, nem mesmo uma tentativa de leve de fazê-lo
baixar a bola, então é quase engraçado assisti-los dando uma cortada nele
cada vez que Nox sequer olha na minha direção.
A mera ideia de que eles poderiam estar fazendo isso durante esse
tempo todo, mas optaram por não fazer, é uma coceira inalcançável,
incomodando-me e impossível de ignorar.
Não quero sobremesa, mas quando North coloca um prato de
cheesecake na minha frente, logo antes de sair para mais uma de suas
reuniões, todos os meus planos de correr de volta para o quarto
desaparecem, porque meu Deus, esse chef dele sabe fazer uma sobremesa
gostosa.
Até Atlas repete.
Quando acabamos, Atlas e Gabe vão para o quarto comigo, e ambos
fazem um escarcéu quando eu tropeço um pouco ao entrar no elevador.
Sinto que meus pés pesam mil quilos cada e é difícil fazê-los funcionar
direito. Gabe se oferece para me carregar, sorrindo e em tom de brincadeira,
mas também tenho certeza de que ele faria isso se eu dissesse que sim.
Quando chegamos no meu quarto, North aparece pelo corredor, e o
fato de que o dele fica a poucos metros do meu volta à minha memória.
Meu Jesus, nem pense nisso, Oli.
Estou pronta para me enfiar no quarto e fingir que não nos vimos
aqui, mas, assim que coloco a chave na fechadura, ele para na nossa frente e
diz:
— Oleander, uma palavrinha.
Não, por favor, sem explicações, sem tentativas de me dizer o que é
que ele quer, que vai ser só mais uma ordem que terei que obedecer.
Viro para enfrentá-lo, mas Atlas já está respondendo:
— Acho difícil, Draven. Não vou passar o resto da noite lidando
com a merda que você vai jogar na cara dela desta vez.
Os olhos de North disparam frios para ele quando retruca:
— Vou conversar com meu Vínculo em particular por um minuto e
depois ela vai estar livre para passar o resto da noite com vocês dois. Não
tenho segundas intenções aqui.
Atlas se aproxima mais do meu lado, mudando de posição de forma
a me cobrir só um pouquinho, a meio passo de me ocultar por completo. É
um gesto protetor tão casual, uma coisa que ele faz por puro instinto, mas
que faz eu me sentir tão segura e... amada.
Fazia muito tempo que eu não me sentia amada.
— Sei muito bem o que aconteceu da última vez que a confiei aos
seus cuidados, então não, acho que não vou acreditar na sua palavra,
Draven.
Os olhos de Gabe deslizam para os meus, mas desvio o olhar no
mesmo instante. Não quero lidar com isso hoje. Não quero as opiniões deles
acerca do que aconteceu e os julgamentos que fazem de mim. Sei que Atlas
acredita que sou só uma vítima, o que não é verdade, mas também sei que
North acha que o irmão não fez nada de errado, o que também não é
verdade.
Uma bagunça.
Tudo está uma porra de bagunça.
North contrai a mandíbula, então volta a olhar para mim. Posso ver
muito bem o quanto ele está furioso por baixo de toda essa sua calma
fingida, toda a raiva fortemente controlada que sente por ser questionado e
repreendido por Atlas.
Não quero que as coisas piorem. Seguro a mão de Atlas e aperto.
— Tudo bem, só um minuto. Toma um banho, a gente pode estudar
depois.
Gabe abre a porta e a segura para Atlas, em um sinal claro de que
ele está satisfeito em acreditar na minha palavra, mas Atlas demora mais
um segundo antes de se afastar, cada centímetro de seu corpo quase
vibrando de fúria e frustração.
Ele se abaixa para deixar um beijo gentil na minha bochecha, um
pequeno sinal para mostrar que nada em sua atitude tem alguma coisa a ver
comigo, depois entra no quarto e fecha a porta com firmeza.
Enfio as mãos nos bolsos para não gesticular ansiosa e deixar
transparecer o quanto fico nervosa de estar parada aqui com ele. Não estou
com medo, nada em North me dá medo, mas também sei que ele poderia
me destruir com algumas poucas palavras cuidadosamente escolhidas e
estou tão cansada, uma exaustão que atinge até os ossos, graças ao longo
dia no campus.
Estou louca para apagar logo.
— Você parece exausta.
Isso de forma alguma é o que eu estava esperando dele, e as
palavras vazam de mim sem pensar e com mais severidade do que era
minha intenção.
— É porque estou, mas não tenho opção senão passar de ano, não é?
Essa aparência é o resultado de seguir as suas ordens. Esta conversa tem
algum motivo real, ou você só veio aqui apontar meus defeitos? Se não
gostou da roupa, vai ter que reclamar com Gryphon. É ele que se recusa a
usar uma corzinha.
Os olhos dele descem pelo moletom preto que estou usando, mas ele
não morde a isca. Alguma coisa em seu olhar faz eu me sentir defensiva,
algo que me informa de que ele não está feliz por eu estar usando as roupas
do meu Vínculo, e preciso me lembrar de que Gryphon nunca veio até meu
quarto sem deixar algo para mim ao sair. Ele me vê usando as roupas dele e
nunca disse uma palavra a respeito, não é como se eu tivesse roubado.
Nossa.
North provavelmente acha que eu roubei mesmo e vai encher meu
saco por isso também. Por que ele não está dizendo nada? Por que está me
deixando entrar nessa espiral de possibilidades tentando adivinhar do que
isso aqui se trata?
— Se precisar de um tutor ou de ajuda nas matérias, vou
providenciar um para você. O que quer que precise para ter sucesso, você
terá.
Tento impedir a carranca de se formar no meu rosto.
— Estou dando um jeito. Eu consigo, não sou burra. É só... isso? Só
veio ver como estou ou precisa de alguma coisa?
Ele fecha a cara para mim por mais um momento e depois balança a
cabeça.
— Bassinger está tomando suas dores, quer que você tenha acesso a
um trabalho e a seu próprio dinheiro. Ainda não acredito que seja uma boa
ideia, mas você convenceu um número suficiente dos seus Vínculos de que
suas intenções são boas, então não vou mais te impedir. Precisa comparecer
ao jantar nas segundas-feiras e suas notas precisam se manter boas, mas
desde que respeite seu toque de recolher e fique no perímetro, pode passar
suas tardes e finais de semana como bem entender.
Meu queixo cai e tenho certeza de que pareço uma idiota completa,
mas ele só dá meia-volta e anda na direção em que veio sem dizer mais
nada.
Um trabalho.
Dinheiro.
Liberdade, roupas novas, pagar a droga do meu próprio café da
manhã quando quisermos evitar comer com meus Vínculos. Esse é o
melhor presente que alguém já me deu.
Viro na direção da minha porta, a chave ainda está na fechadura,
graças a Gabe ter tomado a precaução, e quando entro no quarto, encontro
Atlas de pé ali, esperando por mim com uma expressão agitada no rosto.
Eu me jogo em seus braços.
Seus reflexos são ótimos e ele me pega, erguendo-me e me
aninhando em seu peito para ficarmos colados um no outro de um jeito que
meu vínculo gosta um pouquinho demais.
— O que aconteceu? O que ele fez? Vou matá-lo — murmura,
enquanto suas mãos me agarram de um jeito respeitoso, mas desesperado.
Como se estivesse me apalpando, mas não nos lugares que tornariam o
gesto algo sexual, e isso é terrível e ótimo ao mesmo tempo.
— Nada. Ele... posso arrumar um emprego, Atlas! Posso trabalhar e
ganhar dinheiro e comprar uma calça jeans que deixe minha bunda bonita
— desabafo com ele, quase chorando, mas segurando firme.
Ele ri de mim e desliza a mão para apertar minha bunda rapidinho,
estendendo só um pouquinho os limites que ele tem respeitado tão bem.
— Sei não, acho que já está perfeita pra caralho assim. Vou ter que
passar o tempo todo tomando banhos gelados se melhorar.
Zombo dele, mas o abraço mais apertado, porque foi ele quem me
deu isso. Ele veio aqui, depois de eu ter fugido dele, com nada além de
aceitação e vontade de lutar por mim quando eu não tinha nada a oferecer.
Se eu pudesse fazer isso sem arriscar tudo, completaria meu Vínculo
com ele neste exato instante, caramba. Faria isso sem hesitar, pronta para
me comprometer com ele pelo resto de nossas vidas, porque este é um
homem bom e, porra, como eu preciso de um desses.
— Vocês querem privacidade? — diz Gabe, com a voz cheia de
sarcasmo, mas também com uma hesitação que deixa claro que ele acha que
vai ser chutado daqui.
Afasto-me de Atlas, com as bochechas corando, e murmuro:
— Preciso de um banho, foi um dia cansativo.
Ouço o barulho de alguém tomando um soco e Gabe grunhindo, mas
não olho para trás para ver esses dois se atazanando de novo.
*

Acordo com a primeira batida na porta do quarto e sei no mesmo


instante que um dos meus Vínculos está lá fora, esperando com impaciência
para entrar enquanto bate mais uma vez. Gabe geme dormindo e muda de
posição, mas não chega a acordar em seu ninho no chão, enquanto Atlas
rola na minha direção como se estivesse preparando para me proteger
fisicamente de novo.
Não posso me esconder deles para sempre, por mais que eu queira.
— Espera aqui, vou ver quem é e que droga ele quer a essa hora da
manhã — resmungo. Ele deve estar cansado, porque resmunga concordando
e volta a afundar nos travesseiros.
Fui direto para a cama depois do banho a noite passada, mas como
ainda estava cedo, Gabe colocou um filme e se deitou na cama comigo e
com Atlas, aconchegando-me no meio dos dois. Adormeci e acordei
algumas vezes durante horas, confortável e em completa paz por estar
deitada com os dois.
Não me lembro de vê-los se preparando para dormir ou de Gabe
indo para o chão, e, enquanto passo com cuidado por cima dele, decido que
precisamos dar um jeito nisso, porque ele não pode continuar dormindo aí
embaixo.
Quando abro uma fresta na porta, a luz do corredor quase me cega e
tenho certeza de que fico horrorosa piscando e forçando os olhos para
enxergar Gryphon. Ele parece perfeitamente acordado e arrumado, exceto
que, pela primeira vez, não está vestindo seus trajes habituais de calça
jeans, jaqueta e coturno. Não, ali está ele de short, tênis e moletom.
Ele está delicioso.
— Qu-que horas são? É o fim do mundo? Por que você está aqui no
cantar do galo vestido assim? — digo rouca e ele abaixa os olhos para si
mesmo, mas não faz comentários sobre isso.
— Estou assumindo seu treinamento. Vá vestir suas roupas de
exercício, nós vamos correr.
Eu gemo, pois, por quê... por quê?! Mas faço o que ele mandou,
tentando me mover pelo quarto sem fazer barulho. Ele segura a porta aberta
e assiste enquanto desapareço dentro do closet e depois, quando saio e
murmuro para Atlas, informando aonde estou indo.
Não quero que ele tire conclusão nenhuma nem fale merda para
Gabe por estar no chão, então me agacho perto dele também. Tento acordá-
lo, mas quando ele continua roncando, dou um beijo em seu rosto e ando
até Gryphon.
Em minha opinião, os olhos dele estão intensos demais para essa
hora da manhã, mas, como sempre, ele não diz nada, só me conduz até o
elevador e para fora da mansão.
Ainda está escuro aqui fora e fico um pouquinho preocupada de
acabar com a cara no asfalto, mas Gryphon não parece nem ligar para isso.
— Tente acompanhar, não quero que se perca.
Dou uma bufada e reviro os olhos.
— Bem, é só você não esquecer que suas pernas têm o dobro do
tamanho da minha e tenho certeza de que vai dar tudo certo.
Ele dispara num ritmo brutal, com certeza uma punição pelo meu
comentário atrevido, mas não existe jeito melhor de garantir que eu vá
seguir ordens do que sugerir que sou incapaz de fazer algo.
Vou acompanhar nem que essa porra me mate.
Talvez mate mesmo, a respiração dele mal chega a se alterar, e
quando finalmente nos aproximamos de uma academia e reduzimos, estou
ofegando e arfando como um peixe fora da água. Acho que estou sentindo
gosto de sangue. Isso é ruim, certo? Porra, tenho certeza de que meus
pulmões explodiram no meu tórax e estou prestes a cair morta aqui.
Gryphon só fica parado lá e me assiste puxar o ar pela boca por um
instante antes de dizer:
— É aqui que vamos treinar. De agora em diante, me encontre aqui
às cinco todas as manhãs.
Cinco da manhã.
Ele me acordou e me botou para correr até aqui só para começar às
cinco da manhã? Vou assassinar este homem. Fodam-se as consequências,
vou fazer mexido com o cérebro dele. Exceto que meu dom também ficou
exausto com a corrida, ou talvez esteja um pouquinho apaixonado pela
aparência da bunda de Gryphon nesse short, porque, por estranho que
pareça, o meu vínculo está ausente, embora eu esteja me sentindo muito
violenta.
Talvez ele tenha favoritos.
Gryphon me leva para a porta da academia e usa um cartão
magnético para entrar. Ele acende as luzes e dou uma olhada no espaço
enquanto ele anda ao redor, abrindo tudo e ligando o ar-condicionado. Não
é muito grande, mas todos os equipamentos são novinhos em folha e estão
em ótimo estado, tudo é de ponta e estão meticulosamente dispostos.
É bem o tipo de lugar em que eu imaginava que Gryphon treinasse.
— Vá se alongar nos tatames, vamos trabalhar em suas posições e
sua dificuldade de controle hoje. Quando eu tiver certeza de que você não
vai perder o controle e me fritar, passamos a um treinamento mais
avançado.
Alongar soa muito agradável e eu quase me jogo no tatame. No
entanto, faço meus alongamentos de forma minuciosa, aprendi essa merda
do jeito mais difícil depois da minha primeira aula de TT, quando fui
embora sem fazê-los e passei três dias nos quais não conseguia andar sem
chorar.
Ele me observa, criticando-me e fazendo ajustes nos meus
movimentos com uma expressão impassível. É tão difícil decifrá-lo,
impossível, na verdade, porque ele é calmo e calculista demais. Ele apenas
assiste cada um dos meus movimentos e tira suas conclusões.
— Certo, já chega. Levanta e me mostra o que se lembra das
posturas Seu posicionamento de pés está precisando de treino.
Continuo de boca fechada. Para que discutir com alguém que de fato
sabe do que está falando? Além disso, ele não está sendo cruel de
propósito... só não faz ideia de que ouvir um dos meus Vínculos dizer que
sou inadequada é literalmente tortura e prefiro morrer a continuar com isso.
Começo a repassar as posições que Gabe me ensinou enquanto
Gryphon tira a roupa até ficar só de short, seu peito já está brilhando com o
suor da corrida até aqui, e no mesmo instante meu vínculo enche meu
cérebro com todo tipo de ideias proibidas. Proibidas, porque não posso de
jeito nenhum jogá-lo no tatame e passar a língua pelo peitoral dele, puxar
seu cabelo e enfiar a cabeça dele entre minhas pernas e...
— No que você está pensando aí? Seu vínculo está zumbindo.
A cor some do meu rosto e dou as costas para ele, grunhindo e
cobrindo o rosto com a mão.
— É culpa é sua! Meu vínculo é uma vadiazinha chorona com tesão
e você está balançando uma droga de pano vermelho pra ela agora. Bota
uma camiseta!
Eu me encolho e me xingo por ser linguaruda e soltar isso, mas ele
cai na gargalhada e minha vontade é de morrer agora mesmo, por favor e
muito obrigada. Nada como dizer ao seu Vínculo que você está imaginando
trepar com ele e ele rir da sua cara.
Foda-se essa merda.
Tenho certeza de que posso achar o caminho de casa.
Só consigo dar um passo antes que ele feche a mão no meu cotovelo
e me arraste para trás.
— Você não vai se livrar só porque seu vínculo está causando
problemas. Faça a próxima postura.
Quero chutar o saco dele e correr para as colinas, mas só contraio a
mandíbula e faço o que ele disse, murmurando baixinho:
— Não, tá tudo bem. Amo quando riem da minha cara. Tá tudo
bem.
Ele olha feio e corrige minha posição, andando ao redor do tatame e
ladrando mais ordens, então alcança uma sacola sobre um aparelho de
musculação e se curva para tirar uma camiseta dali.
Não sei se fico aliviada ou furiosa por ele estar se cobrindo, mas
sem dúvida me ajuda a me concentrar.
Ele não me deixa ir embora antes de uma hora inteira exercitando
essas posturas idiotas e, quando acabamos, não temos escolha a não ser
correr juntos de volta para a mansão.
O sol já raiou e me esforço prestar atenção no caminho para eu ter
alguma chance de conseguir voltar aqui amanhã. Gryphon não diz mais
nada para mim e, ao chegarmos na mansão, ele vai para o lado oposto da
casa de onde meu quarto fica.
Preciso de três tentativas para voltar ao meu quarto, e começo a
achar que talvez as paredes daqui também se movam, porque como pode
isso ser tão difícil, cacete?!
Tenho que bater em minha própria porta porque esqueci de levar a
chave, mas Gabe abre para mim com um sorriso, que desaparece assim que
me vê.
— O que aconteceu com você? Merda, esbarrou com Nox no
corredor?
Escarneço e passo por ele em direção ao chuveiro, evitando o olhar
de Atlas, que está vestindo uma jaqueta ao lado da cama.
— Nem, graças a Deus. Só fui humilhada por um homem que está
cagando para os meus sentimentos. Eu me comportei bem, não merecia
aquela droga. Me dá licença enquanto me afogo no chuveiro.
Água quente melhora a maioria das coisas e, quando saio do
chuveiro para escovar os dentes em frente ao espelho, obrigo-me a prestar
atenção no meu reflexo e analisar tudo. Os fios prateados do meu cabelo
descendo em mechas encharcadas pelos meus ombros, agora que o
tonalizante lavanda desbotou. As olheiras sob meus olhos, porque meu
corpo tem sido forçado demais nos últimos dias e preciso tentar dormir
melhor. A palidez da minha pele, que está pior do que de costume.
Não é à toa que todos eles acham tão fácil ficar bem longe de mim.
Sou um desastre.
Eu me dou o tempo que leva para secar meu cabelo com o secador
para sentir pena de mim mesma, depois me obrigo a fingir que estou bem
para sair e me vestir. Tudo de que preciso agora é que Atlas corra lá
embaixo para dar uma surra em Gryphon em nome da minha honra para
deixar este dia especial de verdade.
Não, valeu.
Saio do banheiro enrolada na toalha de novo, mas, dessa vez,
nenhum dos dois reage enquanto me enfio no closet para me vestir. Coloco
uma calcinha, calça jeans e um sutiã com facilidade, mas quando vou
procurar um moletom, descubro que desapareceram.
Todos eles.
Surto um pouquinho, meu vínculo está causando o caos dentro do
meu peito, e quando abro as gavetas, os encontro ali. Todos os quatro
suéteres e moletons de Gryphon, perfeitamente dobrados porque as
empregadas os lavaram.
Eu me desfaço em lágrimas de novo.
Essa merda já está ficando ridícula, por que foi que meu vínculo me
transformou nesse chororô desastroso?
— Doçura, se não estiver vestida, precisa colocar alguma coisa
rápido, porque estou entrando — Atlas avisa e eu mal tenho tempo de
erguer a toalha de volta no peito antes que ele se junte a mim no closet,
franzindo as sobrancelhas. — O que foi? Qual o problema?
Ergo o moletom, mas não me sobraram palavras. Nenhuma.
Gabe aparece, mais hesitante do que Atlas, mas tão preocupado
quanto com o meu estado mental. Jesus, eles estão presos com um Vínculo
chorão, assassino e monstruoso.
Atlas olha para ele e diz:
— Dá sua camiseta para ela.
Gabe faz uma cara feia para ele por um instante, depois olha na
direção em que estou sentada, ainda olhando infeliz para os moletons
lavados e dobrados de Gryphon. Fico surpresa por Atlas ter entendido tão
rápido, mas ele tem sido atencioso desde o início.
Gabe engole em seco, então obedece e tira a camisa, entrega-a para
mim e assiste meio deslumbrado enquanto a visto por cima da toalha, antes
de deixá-la cair. Inspiro fundo e deixo meu vínculo se acalmar dentro do
meu peito.
— Sinto muito — começo, mas Atlas me interrompe.
— É o vínculo. Não é você, Oli. É o vínculo em você querendo que
a gente fique perto, já que ainda não estamos Vinculados. Não chore, a
gente vai cuidar disso.
Os olhos de Gabe se arregalam e ele suspira forte, passando a mão
pelo cabelo e dando uma puxadinha nas pontas. Ele parece tão confuso
quanto me sinto, mas pelo menos Atlas está pensando com clareza.
— Certo. Você sabe onde ficam os quartos de todos, certo, Ardern?
Precisamos de coisas limpas, mas que foram usadas, de todos. Para
Gryphon a gente pode pedir, mas pegue camisetas dos outros dois, coisas
que ela consiga esconder de modo fácil por baixo de suéteres e moletons do
resto de nós — Atlas diz, entrando de repente no modo alfa protetor e, pela
primeira vez, Ardern ouve sem dizer nada, faz que sim e tira a jaqueta dele
do time de futebol americano da mochila para vestir.
Dou uma olhadinha, porque essa aí parece bem aconchegante
também, mas iria alcançar nos meus joelhos, então não é lá muito prática.
Gabe acena com a cabeça e depois volta a olhar para mim.
— Vou pegar. Tenho outra ideia também, mas vou ver como fazer,
Vínculo.
Porra, espero que sim, porque essa sensação no meu peito é
insuportável.
Preciso sair dessa droga de casa agora mesmo.
6

Há duas cafeterias perto do campus que não são de propriedade da irmã do


Gryphon e, quando peço a Atlas para parar nas duas para eu entregar meu
currículo, Gabe insiste em entrar comigo. É difícil achar lugar para
estacionar, então embora eu saiba que Atlas quer estar comigo, observando
todos os meus passos e me dando apoio em cada pequeno momento de
minha vida, ele precisa nos deixar lá e dar a volta no quarteirão.
Tento argumentar contra Gabe entrar comigo, só vou levar uns
minutinhos, mas os dois se recusam.
— Será que preciso lembrá-los do que posso fazer? Destruir o
cérebro das pessoas é só a pontinha do iceberg, acho que consigo entrar
numa cafeteria sozinha — retruco para ambos, mas não adianta, o único
momento em que os dois param de discutir um com o outro é quando se
trata da minha segurança e bem-estar de forma geral.
Gabe me ignora e abre minha porta, mostrando o dedo do meio para
o carro atrás de nós quando o motorista buzina por termos parado. Todo
mundo nesse campus é estúpido, odeio esse lugar mais e mais a cada dia
que passa.
Desviamos de carros e pessoas enquanto andamos, as ruas ficam
agitadas nesse horário, e tento ignorar o jeito como as pessoas saem do meu
caminho como se eu estivesse aqui para matar todos e beber o sangue como
café da manhã.
— Gloria é dona desse lugar, posso falar com ela se quiser — Gabe
diz, enquanto abre a porta e a segura, gesticulando para eu entrar antes.
Tento não ficar corada nem embaraçada por ele estar sendo um
cavalheiro mais uma vez.
— Não, eu mesma quero fazer isso. Preciso fazer.
Ele concorda com a cabeça e entra na fila atrás de mim, olhando
para a vitrine de muffins como se ele fosse mesmo comer um. Ele é tão
imprevisível quando se trata de comida que talvez coma mesmo, mas
também não vou ficar surpresa se ele pedir uma salada para viagem.
Sinto um frio na barriga quando enfim chega minha vez e peço a
garota para falar com a gerente a respeito de vagas. Ela me olha de cima a
baixo, bufa e chama Gloria. Dou um passo para o lado e me obrigo a manter
um rosto neutro quando ela começa a flertar com meu gostosão do
tanquinho.
Aham, eu disse isso mesmo. Ele é meu, meu vínculo está muito
apegado, e mesmo que eu não possa fazer nada com ele, não quero uma
atendente gostosa de cafeteria dando risadinhas e piscando os cílios de
forma sedutora para ele.
Ele a rejeita com educação, mas com firmeza, e pede café para todos
nós, além de alguns muffins. Quando ele pede o de três chocolates, começo
a planejar como vou arrancar uma mordida sem usar meu dom para estragar
o cérebro dele. Preciso da energia do açúcar.
Meu vínculo está zoando tanto com a minha cabeça agora que
pareço estar em uma TPM permanente.
Ainda estou tendo fantasias com aquele muffin quando a porta da
cozinha se abre e uma mulher mais velha e corpulenta sai, com o avental
coberto de farinha e açúcar de confeiteiro. Ela tem cheiro de bolo, da
melhor forma possível.
— Está procurando por emprego? Trouxe um currículo?
Direta ao ponto, ela só ergue uma sobrancelha e estende a mão para
eu entregar o currículo recém atualizado que Atlas imprimiu hoje de manhã
para mim. Ele está morando na mansão Draven de modo oficial agora,
desistiu de seu apartamento e se mudou para o quarto ao lado do de Gabe.
Ele discutiu com North para ficar mais perto de mim, mas só tem três
quartos no terceiro andar e North não cedeu.
Atlas gostou muito de ressaltar que, de qualquer jeito, isso não
importa, já que ele dorme na minha cama todas as noites.
— Oleander Fallows... você se mudou bastante, está planejando
ficar por aqui ou vou te perder daqui um mês?
Ai meu Deus.
— Não, senhora, estou frequentando a faculdade aqui em Draven.
Não vou à lugar nenhum tão cedo.
Ela faz que sim, mas seu rosto ainda está bem severo, como se ela
não estivesse nem um pouco impressionada comigo. Tento não levar para o
lado pessoal nem desanimar. Existem outras opções por aí.
— Administro um negócio rigoroso, é uma loja movimentada. Se
está querendo um trabalho fácil, precisa ir à cafeteria de Fleur descendo a
rua.
Limpo a garganta e escolho minhas palavras com cuidado:
— Sou esforçada, não estou procurando moleza. Se me aceitar aqui,
farei com que não se arrependa.
Ela só fica olhando para mim por um minuto com a sobrancelha
arqueada, e começo a suar um pouquinho. Quero provar quem sou a ela,
provar que não sou molenga ou só uma universitária preguiçosa querendo
tirar vantagem dela.
— Tenho um tempinho à tarde para te treinar, esteja aqui às duas,
pronta para me impressionar — diz, por fim, dando as costas e voltando
para a cozinha sem falar mais nada.
Solto o ar pela boca e vou até Gabe, que está tomando seu café e faz
uma careta quando queima a língua. Ele dá um sorriso tenso para a garota
atrás do balcão quando ela grita tchau para ele, então me apressa para sair.
— Aquela mulher é apavorante — murmuro.
— Kitty? Ela é um pesadelo, fica tentando me tocar como se eu não
soubesse qual o poder dela. Vai acabar sendo presa por agressão qualquer
dia.
Paramos no ponto de ônibus e esperamos Atlas dar a volta na para
nos pegar.
— Estava falando de Gloria, ela não queria me dar o emprego, não.
Espera, o que Kitty faz? É a garota no caixa?
Ele faz uma careta e me entrega meu café.
— Isso, ela é uma Neuro. Não é muito forte, precisa tocar em você,
mas já a vi dando amassos em caras na frente das namoradas deles só pra se
vingar delas por qualquer merda. Esses caras não faziam ideia do que ela
estava fazendo ou do que tinha acontecido até as namoradas contarem.
Olho para a cafeteria atrás de mim como se pudesse acabar com ela
só por tentar tocar nele. Bem... eu posso. Talvez essa possa ser a verdade
que vou oferecer a ele em troca de saber tudo sobre seu dom.
— Ela ficava tentando encostar na minha mão e está tentando
conseguir meu número já faz um tempinho. Nunca passei pra ela, nem para
as amigas dela, é óbvio.
Pigarreio e olho para nossos pés.
— Vou dizer uma coisa e juro que não é o vínculo em mim quem
está falando, Gabe. Se ela tocar em você, manipular você desse jeito, eu a
mato. Com certeza meu dom faria isso sem que eu tivesse controle, mas,
mesmo que eu consiga contê-lo de novo, boto ela pra sangrar pelas orelhas
em um instantinho.
Ele vira para me encarar, ainda cético a meu respeito:
— Já me gabei de garotas antes e você assistiu uma dúzia delas
virem jantar com Nox. Não achei que você fosse ciumenta.
Dou de ombros e aceno para Atlas quando ele se aproxima, para me
certificar de que ele nos veja no meio da multidão.
— Eu sou. Só não tenho moral para falar nada, na maior parte do
tempo. Será que tenho direito de dizer para vocês que se eu vir alguém
sorrindo para vocês, arranco os olhos dela? Que ficar sentada naquele jantar
idiota do conselho com North não estava tão ruim até eu perceber que ele
tinha trepado com a moça do meu lado? Sou uma hipócrita, não posso me
vincular...
O carro para, mas Gabe segura meu braço para me impedir de
entrar.
— Oli, completar o Vínculo é a menor das minhas preocupações
aqui. Achei que você não quisesse a gente... achei que você não me
quisesse.
Abro a boca, mas o carro atrás de Atlas buzina e precisamos entrar.
Todo mundo nessa desgraça de campus é impaciente demais. Gabe abre
minha porta, embora isso vá fazer com que a gente demore mais, já que ele
está cagando se vai fazê-los esperar. Quando Atlas acelera e dirige devagar
até demais só para irritá-los mais um pouco, reviro os olhos e tomo um gole
do meu café. Gabe entrega um para Atlas e então me dá o pacote de
muffins.
Fico olhando para ele por um instante e ele zomba de mim.
— Como se eu não soubesse que você queria o muffin “infarto-em-
progresso” de chocolate, Vínculo. Tenho certeza de que ficar chapadinha de
açúcar vai te ajudar a aguentar as aulas de hoje sem arrancar os olhos de
ninguém.
Talvez ajude mesmo.

Quando visto o avental que Gloria me entrega, ela bate o pé com


impaciência, embora meus movimentos sejam rápidos e confiantes. Já
trabalhei em uma dúzia de cafeterias diferentes nos últimos cinco anos, isso
vai ser moleza para mim. Espero que seja tão agitado quanto ela diz que vai
ser, porque não tem nada que eu goste mais do que um desafio e de ficar tão
ocupada que cinco horas passem como se não fossem nada.
Assim que contei a eles sobre meu treinamento, proibi Atlas e Gabe
de ficarem aqui, e levei a manhã toda para conseguir fazê-los concordar.
Para minha surpresa, foi Atlas quem concordou primeiro, ainda mais após
lembrar a ambos, mais uma vez, de que posso matar qualquer um que me
olhe meio estranho e que eu mataria mesmo. Com certeza mataria. Gabe
literalmente assistiu eu destruir uma centena de membros da Resistência
para salvar nossas bundas, até parece que eu não faria isso com alguém
burro o suficiente para me atacar na cafeteria.
Então vou poder trabalhar sem o escudo que os dois se tornaram,
mas também sem a pressão de tê-los me observando. É fácil entrar no papel
de Oli a trabalhadora de novo, a garota que economizava, guardava
dinheiro e pagava as próprias contas, embora fosse tão difícil que às vezes
eu dormia no meu carro porque não conseguia pagar o aluguel de nenhuma
das pensões que encontrava.
Levo só uma hora para entender como esse lugar funciona e
começar a servir os clientes com confiança, cuidar do balcão e levar
comidas e bebidas às mesas sem dificuldade. Um pouco depois das 4h, um
grupo de professores da Draven entra e se senta em uma mesa. Suspiro
aliviada por Nox não estar com eles, mas suspirei cedo demais.
Ele chega um minuto depois e fecha a cara só de me ver.
Kitty anota os pedidos do grupo, sorrindo e flertando, mas parece
que todos sabem qual é a dela e evitam seu toque. Acho nojento que esteja
solta na comunidade, sendo um perigo para todos, embora todo mundo
saiba o que ela faz.
Uma reclamação que farei ao North e seu conselho inútil depois.
Não estou com vontade de servi-los quando seus pedidos ficam
prontos, mas quero muito esse emprego, então coloco um sorriso no rosto e
levo os cafés, a própria imagem do profissionalismo, mesmo quando Nox
continua fazendo careta na minha direção.
Odeio ele.
Seus colegas não fazem comentários a respeito, nem me tratam mal.
Nenhum deles é meu professor, mas já os vi várias vezes no campus e com
certeza ensinam lá.
Volto a me concentrar no movimento e quase me esqueço de que
eles estão ali. Bem, exceto todas as vezes que meus olhos vagam sem
querer para aquele lado e vejo Nox espumando em minha direção, nessas
horas não tem como não me lembrar de que ele está aqui e está odiando
cada segundo da minha presença.
Quase passo meu turno todo sem nenhum incidente, quase. Meia
hora antes do encerramento, um grupo de jogadores de futebol americano e
caras de fraternidade entra e pede doses triplas suficientes para causar um
infarto em alguém. Kitty está no paraíso com toda essa testosterona no ar,
mas faço o melhor que posso para não chamar a atenção. Todos eles
percebem que estou trabalhando aqui e ouço alguns comentários, mas
ignoro como uma profissional.
Quando me dirijo para limpar uma mesa que acabou de ser
desocupada, um dos garotos de fraternidade se levanta e entra na minha
frente com tanta velocidade que quase esbarro nele, mas, como eu disse, já
estou acostumada e dou a volta nele sem titubear.
— Aonde você vai? Estou tentando te chamar pra sair. Não te vimos
em nenhuma festa universitária ainda, só porque faz parte do Vínculo
Monstro acha que é boa demais para nós, “níveis inferiores”?
Coloco a bandeja no balcão de serviço e encontro os olhos de Gloria
me observando pela janela. Mantenho o sorriso no rosto porque já aguentei
jantares suficientes com Nox e North fazendo picadinhos de mim... e agora
esse cara acha mesmo que tenho medo da palavra “monstro”?
Eu sei muito bem o que sou.
— Não sou muito de festa, mas valeu por chamar. Tenho certeza de
que Kitty iria adorar, vou passar o convite para ela — digo em um tom
alegre, seguindo para limpar a próxima mesa desocupada, mas ele ergue a
mão e segura meu braço.
Ah, então ele quer morrer? Perfeito, meu dom está faminto.
Não, preciso parar com isso. Não posso nem brincar com isso agora,
porque estou sensível demais neste exato momento e meu dom está só
procurando um motivo para descontar em alguém.
Tento puxar meu braço, mas ele não solta.
— Você realmente deveria me soltar...
Ele se curva sobre mim, o vínculo dele tenta alcançar o meu, ao que
parece me testando, e droga, como meu vinculo odeia a sensação.
— Por quê? O que vai fazer com a gente, monstro?
Ouço alguém arfar atrás de nós, mas não posso desviar os olhos do
cara porque não sei qual é o dom dele, pode ser alguma coisa física.
Eu não quero nem um pouco ser socada ou mordida agora, valeu.
Então vejo a névoa preta rodopiar ao redor do braço dele, deslizando
em direção ao seu pescoço, onde se enrosca até ele me soltar e agarrá-la
como se isso fosse mesmo conseguir impedir o dom de Nox de fechar suas
vias aéreas.
Quando ele cai de joelhos, dou um passo para trás e acabo colada no
corpo do meu Vínculo.
Isso não é nada bom.
O cômodo todo cai em silêncio, só a música baixa saindo pelas
caixas de som pode ser ouvida, então Nox me contorna e agacha em cima
do cara, com seus olhos de vácuo tão semelhantes aos meus.
Ele usa sua voz de professor com o menino, aquele tom calmo e
profissional que grita “disciplina”.
— Branson, que isto seja uma lição de que você nunca deve
provocar monstros. A srta. Fallows só está tentando trabalhar. Não há
motivo nenhum para você assediá-la e, se eu descobrir que você veio aqui
de novo, vou fazer mais do que te sufocar.
Branson faz que sim, um aceno curto de cabeça à medida em que
seu rosto fica roxo, então a névoa desaparece por completo e os olhos de
Nox voltam ao tom azul escuro de sempre.
Saio de perto deles, apoio minha bandeja na mesa abarrotada de
coisas e começo a limpá-la. Vou me obrigar a fingir que isso aqui não foi
nada e torcer para o resto das pessoas na cafeteria fazer o mesmo.
Quando começo a passar pano na mesa, ouço o sino sobre a porta
anunciando a saída de Branson, em seguida, aos poucos, as pessoas voltam
a tomar seus cafés, murmurando umas com as outras sobre Nox Draven e
seu Vínculo.
Inspiro fundo antes de voltar para a cozinha, já me preparando para
Gloria me demitir imediatamente por causar esse drama todo em seu
estabelecimento.
Nox já está lá dentro tendo a melhor conversa de sua vida, tenho
certeza.
— ... e entre todas as possibilidades para resolver a situação,
escolheu usar seu dom? Sério mesmo que essa era sua única opção? Já vi
você dando socos, deveria ter nocauteado aquele merdinha logo.
Certo, Gloria sabe qual é a real. Gosto um pouco mais dela agora.
Coloco a bandeja na pia e começo a encher a lavadora de louças
industrial, tirando os restos de comida dos pratos enquanto isso. Ela se vira
para mim e diz:
— Você lidou bem com aquilo. Está fazendo um ótimo trabalho,
seja discreta que em breve todos por aqui vão esquecer quem você é.
Engulo em seco e concordo, abaixando a cabeça e dando
continuidade à minha tarefa.
— Obrigada, farei isso.
Termino o meu turno fazendo os preparativos para o fechamento,
esfrego todas as superfícies com as quais me deparo e deixo o piso
brilhante. Estou me sentindo muito bem ao sair com avental e contrato nas
mãos, porque consegui o emprego.
Já é tarde o suficiente para o sol estar se pondo, as cores do
entardecer estão lindas e sombrias espalhadas pelo céu, e me distraio por
um instante para tirar uma foto com meu celular, então não vejo Nox entrar
na minha frente até já ser tarde demais e eu esbarrar com tudo nele.
— Opa, Jesus, foi mal... ah. O que você está fazendo aqui? —
resmungo, abaixando-me para pegar meu celular, que deixei cair.
Ele rosna para mim e estende o braço para a rua quase vazia.
— Me certificando de que você não tome um susto e perca o
controle do seu dom de novo, é óbvio.
Olho para a rua, mas não vejo sinal do Hellcat ou da moto de Gabe
em lugar nenhum, então acho que não estou prestes a ser resgatada. Melhor
fazer a coisa certa para isso não ser jogado na minha cara mais tarde,
embora ser uma pessoa superior seja uma merda.
— Obrigada por me ajudar. Não precisava ter feito aquilo, mas
obrigada.
Ele solta uma risada cruel.
— Eu não estava te ajudando, estava evitando que North tivesse que
fechar o campus depois dos motins que você teria causado quando perdesse
o controle, Venenosa.
Venenosa, monstro, estou colecionando muitos apelidos novos desde
que cheguei em Draven.
Reviro os olhos para ele.
— Como se suas criaturas de pesadelo não fossem causar um
motim, não vem jogar a culpa disso em mim.
Ele se curva para perto e diz:
— Todo mundo aqui sabe exatamente o que eu posso fazer. Não
tinha um único homem, mulher ou criança naquela cafeteria que não sabia
quem eu sou. Você que é o mistério, a anomalia, o boato de ser a
personificação da loucura. Se você tivesse confirmado todos os receios
daquelas pessoas, teria sido preciso mais do que uma Equipe Tática para
limpar a sujeira.
Eu não estou mesmo com vontade de ficar aqui ouvindo essa
besteira. Com o vínculo dele tentando alcançar o meu, sinto que tudo isso é
uma tentativa de tirar alguma informação de mim, de me fazer deixar algo
escapar e lhe contar algo de suma importância.
A pior parte é que... eu quero. Quero contar a ele sobre todas as
pessoas contra quem já usei meu poder, só para provar a ele quem sou,
provar que fiz a coisa certa quando fugi e fiquei bem longe desse lugar.
— Nunca conheci ninguém cujos olhos ficassem pretos, pelo menos
não fora da nossa família. Era nossa maldição. Me pergunto qual é a sua,
Venenosa?
Maldição? Isso soa um pouquinho místico e mágico demais para
mim. Por mais que eu consiga, literalmente, manipular as almas dentro de
seres vivos, não acredito em maldições.
São só asneiras infantis que as pessoas inventam para ostracizar os
outros e transformá-los em vilões.
— Bom.... valeu por se intrometer e me salvar, mesmo que tenha
sido só por North. Preciso desse trabalho e teria sido uma merda perdê-lo
antes de ter chance de começar.
Ele me ignora, marcha até o Bentley estacionado no meio-fio e abre
a porta do motorista.
— Entra. Já avisei para Ardern que estamos a caminho de casa.
Nossa, vai ser ótimo. Talvez não tenhamos mais uma mansão a qual
retornar se Atlas ficar sabendo disso, mas entro no carro com ele e fico de
boca fechada, mesmo quando seu vínculo desliza pela minha pele como
uma carícia afiada.
Não entrego nada.
Meu celular vibra e, quando confiro, encontro uma mensagem de
Atlas esperando por mim.
Se encostar em você, ele morre.
Suspiro e deixo minha cabeça cair contra o banco com um baque
surdo. Percebo um movimento no ar em volta de minhas mãos e quando
olho encontro uma criaturinha de névoa sentada no meu colo. Não era para
ser tão fofinha assim, mas sempre tive uma quedinha por Dobermans e o
filhotinho que está sentado ali é adorável pra caramba.
É muito ruim que eu o ache adorável?
— Essa coisinha vai me comer, me morder ou algo do tipo?
Nox me ignora e diz com a voz arrastada:
— Diga para Bassinger que ele pode parar de bancar o herói. Você
não me disse não e não usou seu dom para me afastar. Ele não pode mais
dizer porra nenhuma a respeito daquilo porque você não era um
Vinculozinho sem poderes, era, Venenosa?
Ai meu Deus, prefiro abrir a porta e me jogar na frente dos carros no
tráfego do que ficar sentada aqui tendo esta conversa com ele.
Espera.
— Suas criaturinhas são espiãs? Sai de cima de mim então, seu
cretininho! — Tento dar um peteleco na criatura de névoa para ela sair do
meu colo, mas meu dedo a atravessa, a névoa se abre e depois volta a se
juntar como se nada tivesse acontecido.
Nox me ignora, mas, quando troca a marcha, a criatura flutua pelo
carro e se enfia por baixo da orelha dele até estar escurecida pelo seu
cabelo. Ela é um pouquinho adorável demais de aceitar. O homem que me
odeia e me tortura sempre que pode tem um amiguinho de névoa escondido
no cabelo.
Sinto vontade de rir.
Não posso, ele vai cuspir mais fogo em mim e estragar a merda do
meu dia todo.
Quando paramos na frente da mansão e a porta da garagem se abre,
encontramos o resto dos meus Vínculos parados ali em uma discussão
muito acalorada, que só pausa quando todos se viram ao mesmo tempo para
olhar o carro.
7

Assim que o motor é desligado, Atlas começa a vir na direção do carro e só


para quando Gryphon se planta na frente dele. Consigo ver seus lábios se
mexendo, mas o som não me alcança dentro do carro.
— Causa mais dor de cabeça do que você vale, Venenosa — Nox
murmura.
Nem tento responder, não faz sentido porque ele não é conhecido
por ser razoável, mas quando meus olhos param em North me olhando pela
janela escurecida, engulo em seco. Ele parece furioso e não faço ideia do
que posso ter feito para ele estar me encarando assim.
Não fritei o cara que me segurou, foi Nox quem fez tudo.
Gabe abre minha porta e me puxa para fora do carro no tempo que
levo para soltar o cinto de segurança. A expressão de Nox se transforma do
desprazer ardendo em silêncio no qual estava enquanto dirigia, para o
semblante cruel que estou acostumada a ver à mesa de jantar.
— Fica atrás de mim e não surta — murmura Gabe, e me sinto
ofendida por um segundo, depois me lembro de que ele me viu chorar duas
vezes sem motivo na última semana e que este é o jeito dele de me lembrar
de ficar calma nessa merda.
Certo.
Não fique emotiva por causa dessa merda, Oli. Não dê atenção aos
seus Vínculos batendo de frente por sua causa, porque dois deles te odeiam,
dois gostam de você e o quinto é uma mudança constante de opinião de
foder com a cabeça de qualquer um.
Não pense nisso.
Gabe balança um pouco no lugar, como se estivesse se preparando
para se jogar no meio de uma briga e, é claro, Atlas e Nox já começam a se
atacar.
— Bassinger, ou você aprende a dividir ou...
— Não fala comigo, porra, senão vou...
— Me matar? Estou tremendo medo, te acho tão aterrorizante —
Nox retruca e, pois é, talvez eu não devesse estar presente.
Dou um passo para longe de Gabe e pigarreio.
— Preciso sair daqui. Não posso estar no meio disso. Se eles
brigarem de verdade, vou perder o controle.
Não estou falando com ninguém em específico, mas North escuta
com clareza, chega perto de mim e, segurando meu braço com dedos
firmes, mas gentis, ele me puxa contra a lateral de seu corpo.
— Feche os olhos.
Ele não me dá tempo para discutir nem para obedecer a ordem antes
que sua mão solte meu braço e a névoa se espalhe ao nosso redor,
consumindo tudo até eu não conseguir ver mais nada, apesar de estar com
os olhos abertos. Não percebo que estou tentando segurar alguma coisa até
uma mão pegar a minha no ar, nossos dedos se entrelaçam e se apertam com
firmeza.
Não faço ideia de quem seja.
— Draven desgraçados! Você tem que parar de usar seu dom toda
vez que seu irmão fizer merda, senão vou começar a usar o meu — Atlas
rosna, e não sei nem dizer de qual direção o som está vindo porque a névoa
distorce tudo.
Foda-se isso.
Convoco meu poder, só o suficiente para meus olhos brilharem e o
breu da escuridão se dissipar da minha visão.
North prendeu todos eles com longas espirais sencientes pretas,
mais escuras e mais sólidas do que tudo mais ao nosso redor. Gryphon não
está resistindo e nem parece preocupado, mas Atlas está lutando contra elas,
furioso e determinado a se libertar.
Os olhos de Nox estão pretos e ele parece estar tão irritado quanto
Atlas, mas não está lutando. Não, seus olhos estão voltados para mim
enquanto ele me xinga de novo.
Já está ficando repetitivo.
— Vocês todos já têm idade o suficiente para se conterem perto de
Oleander até ela ter seu dom sob controle. Se você não gosta do meu,
aprenda a se controlar.
Alguém puxa minha mão e, quando abaixo os olhos, vejo que é
North a segurando, levando-me pela névoa porque acha que ainda não
consigo enxergar através dela. Olho para trás e vejo que Gabe também está
preso e, embora não pareça confortável, não está resistindo, nem parece
sentir nada além de um pouco de incômodo por estar confinado.
Deixo North me levar pela garagem, passando por cada um dos
meus Vínculos sem dizer nada para nenhum deles. Quando passamos por
Nox, o que está mais perto da porta, vejo a criatura em formato de
filhotinho tirar a cabeça de trás de sua orelha. Ela fareja o ar e já sei que ela
não gosta das criaturas de North pelo jeito como se move, mas desce pelo
braço de Nox e vem atrás de nós mesmo assim, aumentando até ficar do
tamanho de um filhotinho normal, ao invés do cachorrinho minúsculo que
Nox esconde em seu cabelo.
North nos leva pela porta e seguimos pelo corredor, mas ele não
solta minha mão quando caminha em direção ao elevador. Tento não dar
uma risadinha do quanto ele fica ridículo com o filhotinho se metendo entre
suas pernas a cada passo. Ele é brincalhão e alegre, assim como um
filhotinho de verdade seria, tentando morder o cadarços que balançam
conforme North anda.
Quando paramos na frente do elevador e o esperamos, ele enfim
nota o filhotinho e franze o cenho.
Solto sua mão e fico um pouco inquieta, distribuindo o peso entre as
pernas, ansiosa de estar aqui com ele enquanto meu vínculo está tão volátil,
e ele interpreta minha atitude da forma errada.
— Ele não é meu e não costuma sair do lado do Nox.
Dou de ombros e me abaixo para deixar o filhote cheirar minha
mão.
— Ele não me preocupa. É um espião, mas não tem nada que possa
descobrir sobre mim que Nox possa usar de justificativa para me matar,
então se quiser vir junto, ele pode.
North faz uma carranca e me encara como se eu tivesse acabado de
anunciar que estou trabalhando como palhaço em segredo, mas só acaricio
as costas do cachorrinho. É estranho, porque a sensação sob minha mão é
sólida quando sou carinhosa, mas quando tentei dar um peteleco nele no
carro, era uma névoa.
Curioso.
— Ele tem nome? Você é ridiculamente fofinho. Se Nox tiver te
dado um nome idiota vou ficar irritada em solidariedade. Ai meu Deus, é
Brutus ou Octavius, não é? Ele escolheu algo idiota, sei que escolheu.
As portas do elevador se abrem e, quando me levanto para entrar, o
cachorrinho pula para escalar meu braço e se enfiar embaixo do meu
cabelo, assim como fez com Nox antes. Ele não pesa nada, mas posso senti-
lo mesmo assim.
North aperta o botão do terceiro andar e depois volta a enfiar as
mãos nos bolsos, ainda olhando de cara feia para os próprios sapatos. Isso
me deixa preocupada, como se eu tivesse feito algo de errado, embora saiba
que não fiz, e me obrigo a ficar de boca fechada.
Minha tagarelice ansiosa só vai deixar as coisas um milhão de vezes
pior e não preciso disso.
— Ele não tem nome... pelo menos, Nox nunca mencionou um para
mim. Ele não tem o costume de sair de perto de Nox.
Não sei qual de nós dois ele está tentando convencer repetindo isso.
— Quer saber? Brutus até que é um nome fofo. Será que ele vai
crescer e se tornar um pesadelo adulto?
North sacode a cabeça como quem tenta limpá-la.
— Elas não envelhecem, elas só... existem. Por que você não está
com medo dele? Gryphon me disse que você viu o que as criaturas fizeram
com a Resistência, você sabe que ele não é um filhotinho de verdade.
Bom, isso deveria ser óbvio. Não importa do que ele é capaz, é um
filhote pedindo atenção e carinho. Por que raios eu deveria ter medo disso?
É oficialmente a única parte tolerável que encontrei em Nox.
As portas do elevador se abrem e começo a percorrer o corredor,
porque estou muito orgulhosa em anunciar que descobri como chegar ao
meu quarto... mas só a partir desse elevador aí. Se eu usar o outro, estou
ferrada.
North diz, ainda ao meu lado:
— Vou soltá-los quando você estiver no seu quarto, não precisa
deixar Bassinger entrar se ele ainda estiver sendo um idiota.
Suspiro e concordo com a cabeça porque é mais fácil do que
explicar que Atlas nunca é um idiota e que tem sido muito respeitoso com
os limites que imponho, mais do que todos os outros juntos.
Quando coloco minha chave na fechadura, volto a olhar para ele,
pronta para dar tchau e acabar logo com isso, mas North está parado ali
parecendo hesitante e isso está me fazendo surtar, caramba.
— Você está bem?
Ele fecha a cara de novo, mas então diz devagar:
— Se Nox fez alguma coisa, preciso que você saiba que eu cuidaria
disso. Se ele foi... se ele tiver te machucado...
Mas Jesus, por que todo mundo está insistindo em ter essa conversa
comigo hoje?
— Ele não me machucou. Estou bem e poderia ter impedido se ele
tentasse.
Estou falando das duas vezes, mas North ainda está me olhando
como se estivesse esperando que eu começasse a chorar. Mal sabe ele que
nos últimos dias estou um desastre e choro por qualquer idiotice, então ele
não está tão errado.
Eu me enfio no quarto antes que seja forçada a falar mais sobre o
assunto. Talvez um dia eu consiga ter uma conversa séria com Nox sobre o
que aconteceu, sobre quais partes daquilo foram erradas e sobre quais eu de
fato tinha um pouco de controle, mas a mera ideia de todos eles
questionarem e analisarem a situação quando nem estavam lá só... me irrita.
Por que é que sinto tanta vontade de proteger aquele momento,
assim como a esse cachorrinho no meu cabelo?
Vínculos são doidos pra caralho.
Quando Gabe e Atlas chegam no quarto, estou de banho tomado e
de pijamas, escrevendo para Sage sobre o incidente na cafeteria. Ela já
ouviu os boatos e alguém está brincando de relações públicas, porque está
todo mundo falando sobre como Nox foi heroico ao se intrometer para
proteger seu amado Vínculo.
Eu poderia morrer de tanto rir disso, Sage só ficou incrédula.
Atlas pede comida chinesa e nos espalhamos no chão para comer
enquanto estudamos. Quer dizer, eu estudo. Atlas está espumando de raiva
em silêncio e Gabe está assistindo vídeos no celular com os fones de ouvido
para não me incomodar, enquanto enfio tantas datas e eventos históricos
quanto é possível no meu cérebro.
Um pouquinho antes da meia-noite, enfim me dou por satisfeita e
vou escovar os dentes, olhando curiosa para Gabe quando ele me dá um
sorrisinho. Atlas me faz companhia no banheiro, ainda de bico, mas é só
quando tenho um vislumbre de Brutus tirando uma soneca no meu ombro,
com o corpinho oculto pelo meu cabelo, que entendo o motivo pelo qual ele
está irritado.
— Ele não está me machucando, nem me incomodando. Ele é...
fofinho até. — Digo depois que enxáguo a boca.
Atlas me dá um aceno breve, mas não diz mais nada, então deixo
para lá, isso não é culpa minha nem problema meu. Meus Vínculos
precisam resolver os próprios problemas uns com os outros.
Quando subo na cama, descubro rapidinho o que estava deixando
Gabe tão convencido.
Meus travesseiros foram todos trocados e os novos têm os cheiros
dos meus Vínculos.
Ele pegou travesseiros de cada um deles e agora minha cama é tipo
um delicioso pot-pourri de todos eles. Meu vínculo está rolando de um lado
para o outro de felicidade no meu peito, minha pele está formigando e cada
um dos aromas deles está se mesclando em uma perfeição orgástica. Para
mim, é como se todos estivessem deitados nus na minha cama e eu
estivesse prestes a me jogar no meio, meu vínculo está quase gozando de
alegria.
Atlas enfim sorri para mim ao erguer as cobertas do outro lado,
prestes a deitar comigo.
— Oras, não é que Ardern mandou bem. Você está praticamente
brilhando.
Surto um pouquinho e ergo uma mão para impedi-lo.
— Você não pode se deitar aí, e se estragar os cheiros?
Gabe cai na gargalhada e ganha um olhar feio de Atlas antes de ele
se voltar para mim.
— E se eu só encostar no meu travesseiro, assim posso me deitar?
Do ponto de vista racional, quero dizer que sim, porque gosto de tê-
lo perto de mim, mas meu vínculo está uma desgraça completa neste
momento, sendo possessivo e um completo sem noção.
Encolho-me um pouquinho.
— Não posso evitar.
Ele dá a volta na cama para se aproximar e ergue as mãos.
— Doçura, não estou bravo. Não deixe seu vínculo fazer você
pensar isso, só preciso saber do que você precisa.
Jesus, estou mesmo prestes à chorar de novo?
— O que eu preciso é consertar isso, porque não costumo ser uma
pessoa emotiva e isso é estúpido pra caralho! Por que é que me sinto assim?
Será que estou ficando louca? Preciso sair dessa merda de casa antes que
ela acabe comigo!
Eu me abraço e Atlas fica por perto, mas não me puxa para seus
braços, o que é bom, porque acho que estou prestes a ter um ataque de
pânico e perder controle do meu dom. Gabe sai devagar do banheiro, onde
estava se ajeitando para dormir, mas não diz nada e está com os olhos
arregalados um pouquinho demais para eu acreditar que está tão calmo
quanto aparenta.
Atlas ergue as mãos de novo.
— Vou dormir no chão.
Gabe olha de mim para Atlas, então esfrega o rosto com a mão.
— Precisamos contar isso para os outros. Está ficando pior e, por
mais que eu não queira causar um fuzuê aqui, não podemos deixar ir longe
demais. E se Oli perder o controle e machucar um de nós?
Um calafrio percorre minha espinha porque isso aí pegou bem na
minha ferida, mas Atlas dá uma olhada feia para ele.
— Você quer a porra de Nox Draven perto dela? Porque eu com
toda certeza não quero. Podemos lidar com isso. Vai funcionar.

Os travesseiros funcionam.
Finalmente acordo me sentindo descansada. E com uma das camisas
de North por baixo de um moletom de Gryphon e o filhotinho ainda
escondido no meu cabelo, passo uma semana tranquila.
Os treinos das 5h com Gryphon ficam mais fáceis, ainda mais
quando aprendo a ficar de boca fechada e a me concentrar no que estamos
fazendo. Logo progredimos para o combate corpo a corpo e até que é fácil,
pois ele começa com posturas e a aprender a cair. Sei que vou sofrer um
pouco mais quando for obrigada a lutar com ele e tocá-lo, mas por enquanto
estou indo bem.
Chego à primeira aula de TT que farei com Sage e Atlas toda
saltitante e com um sorrisão no meu rosto. Sage também sorri para mim,
mas está um pouquinho pálida e os fios castanhos de seu cabelo, que em
geral emolduram seu rosto de um modo perfeito, estão puxados em um rabo
de cavalo firme que completa sua aparência de estressada de hoje.
Brinco de modo carinhoso com ela enquanto nos trocamos e, pela
primeira vez, não dou a mínima para meu uniforme com caimento ruim ou
para os olhares das outras garotas.
— Vou ser paga hoje à noite depois do meu turno, a gente deveria ir
fazer compras esse fim de semana.
Sage sorri para mim enquanto veste um top que a faz parecer uma
atleta. Ela sem dúvida vai ser uma dessas garotas atléticas que passa com
facilidade nesta matéria, e eu me sinto com inveja e aliviada por ela ao
mesmo tempo.
Espero que ela acabe com a raça de todo mundo.
— O melhor shopping daqui fica fora do seu perímetro, acha que
North deixaria se Atlas e Gabe viessem juntos? A gente podia assistir um
filme também, passar o dia todo lá.
Faço uma leve careta e encolho os ombros.
— Vai saber, ele tem sido menos... mala nos últimos tempos,
suponho. Acho que ele ainda me odeia e com certeza não confia em mim,
mas ele também me deixou arrumar um emprego então... talvez? Nossa, a
gente devia fazer Gabe pedir a ele. Talvez ele possa dizer que é um
encontro ou sei lá o quê.
Sage dá uma risadinha e bate com o ombro no meu quando
começamos a andar juntas.
— Talvez devesse ser um encontro mesmo, ele nem está tentando
mais disfarçar que é obcecado por você. Já era bem óbvio antes, mas agora?
Meu Deus, ele tá mesmo vivendo a névoa do Vínculo.
Névoa do Vínculo. Porra, tinha até esquecido que isso existia e aqui
estou eu, bem no meio de uma. É esquisito até considerar os caras se
sentindo do mesmo jeito, mas acredito em Sage. Ela não mentiria sobre
algo desse tipo e deve ser mais fácil de enxergar olhando de fora.
A única coisa que vejo é minha necessidade obsessiva de cheirá-los
o tempo todo.
Quero me esfregar em Atlas e Gabe todinhos no segundo em que
nos reunimos, só para ter seus cheiros de volta em mim, porque minhas
roupas de treino só têm cheiro de sabão em pó. Eu me controlo, mas fico
perto o bastante de Gabe para nossos braços se encostarem.
Vivian sai marchando da sala dos fundos e grita com sua voz
retumbante:
— Certo, temos alguns rostos novos hoje, então vamos atravessar a
pista de obstáculos depois que todos estiverem aquecidos. Podem ir para
seus exercícios. Fallows, você está no seu circuito habitual. Bassinger e
Benson, venham falar comigo e vamos botar os dois para suar.
Meu circuito habitual começa na esteira e depois segue para os
pesos, então começo logo de cara. Dentro de poucos minutos, Sage é
enviada a se juntar a mim e mantemos um bom ritmo juntas.
Graças às minhas corridas matinais até a academia, não sofro muito
no meu tempo na esteira e, ao seguir para os pesos, posso assistir Atlas
arrasar nos desafios que Vivian lhe dá.
É absurdamente hilário.
E logo chama a atenção de todos. Um de cada vez, ele passa com
facilidade por todos os equipamentos de aquecimento, e depois, quando
Vivian fica de saco cheio e o manda para o tatame, podemos assisti-lo dar
uma surra nos metamorfos e nos outros alunos com dons físicos da turma.
Gabe se recusa a enfrentá-lo.
Quando um dos seus colegas do time de futebol americano tenta
repreendê-lo por isso, ele só dá um sorriso e encolhe os ombros para o
garoto.
— Meu Vínculo vai detonar a turma toda se a gente lutar. Estou
salvando sua vida aqui, Matt.
Até mesmo Vivian faz uma pausa para me olhar sentada no aparelho
de simulação de remo, e quando sorrio para ele e incluo uma piscadinha, só
para garantir, Gabe joga a cabeça para trás e gargalha da preocupação nos
rostos de todos. Se querem falar merda sobre eu ser um monstro, então
podem lidar com meus dentes quando eu rasgar suas gargantas.
Metaforicamente, é claro.
Vou deixar as mortes animalescas para Gabe.
— Está bem, cansei de tentar esgotar Bassinger, coloquem suas
bundas na pista de obstáculo. Vocês sabem como funciona: duas equipes, a
primeira em que todos atravessarem ganha. Uma hora de corrida depois da
aula pra quem perder.
Ai meu Deus.
Sage se vira para mim e murmura:
— Chegou a hora, Oli. Você precisa garantir que todos nós
estejamos no mesmo grupo.
Dou uma bufada para ela, porque não tem como eu conseguir
convencer Vivian a fazer nada, mas acho que não custa tentar. Espero até
estarmos todos na sala com as imagens das câmeras de segurança. Alguns
caras de Equipe Táticas já estão ali, bebendo café e conversando. Gryphon
não está aqui, mas Kieran está, e ele de fato me cumprimenta com um
aceno de queixo respeitoso quando me vê.
Fico tão chocada que tropeço.
Mantenho os olhos longe dele e me dirijo para onde Vivian está
olhando de cara feia para a lista de chamada, fazendo ajustes nos grupos em
que está colocando as pessoas.
— Fallows, bom ver que você ainda está viva depois daquele seu
passeiozinho.
Por um instante, até me esqueço de que fomos levados pela
Resistência, então balbucio as palavras:
— Que passei... ah. Certo, ficou tudo bem. É óbvio.
Ele ergue uma sobrancelha para mim e bate a caneta na prancheta:
— Veio aqui para eu te colocar em um grupo específico, não é? O
que te faz pensar que vou te colocar onde você quiser fácil assim? Não
tenho favoritos.
Sorrio para ele com total descaramento.
— Nós dois sabemos que você tem sim, só um pouquinho. Na
verdade, é mais um aviso. Gabe não estava inventando mais cedo, tenho
tido algumas... falhas de controle. Talvez eu precise ficar de fora dessa se eu
não estiver com meus Vínculos e com Benson.
Ele vira por completo para me encarar e posso ver muito bem as
palavras que-droga-de-baboseira-tá-rolando-aqui escritas em sua testa.
— E o que Benson tem a ver com seu Vínculo, Fallows? Por que
preciso colocá-la no seu time para salvar vidas?
Olho para trás, onde Sage sem dúvidas está surtando, mas Gabe está
mordendo a bochecha por dentro por causa de minhas artimanhas.
Volto a olhar para Vivian e sussurro para o velhote:
— Você não ficou sabendo? Fui atrás de Sage. Sou protetora até
demais ao se tratar dela, e meu vínculo está muito apegado a ela também.
O filhotinho, que ainda está brincando no meu cabelo, aproveita esta
oportunidade para colocar a cabeça para fora e, embora Vivian se
sobressalte, continua firme ao vê-lo.
Os caras da Equipe Tática, não.
Três deles se levantam de um pulo e Kieran pragueja de modo
veemente, coloca o café na mesa e pega o celular. Com certeza vai me
dedurar para North ou Gryphon, mas não é como se eu tivesse feito algo de
errado.
O pesadelo é de Nox, não meu.
Vivian ralha comigo enquanto tira o celular do bolso.
— Que droga um pesadelo de Draven está fazendo aqui? Quando foi
que Nox te deu essa merdinha? Já me lembro muito bem dele de quando dei
aula para aquele cretino.
Sorrio de novo e empurro Brutus de volta para baixo do meu cabelo.
— Eu te disse que meu vínculo está todo descontrolado. Mas não
tenho problemas em ficar de fora hoje.
Ele balança a cabeça para mim e retruca:
— Nem ferrando, criança. Pode ficar com a sua turminha reunida
hoje, mas é bom aprender a controlar seu dom logo.
Aceito a vitória.
8

Odeio esta droga de pista.


E Gabe sabe disso. Assim que a porta se abre e todos saem
correndo, ele fica para trás comigo sem dizer nada e estabeleço o ritmo em
uma corrida lenta. Sage fica perto de mim, os olhos um pouco arregalados
demais fitando a mata artificial pelas quais estamos sendo afunilados, e
Atlas caminha de seu outro lado, parecendo tranquilo, mas atento.
— Se isso é uma corrida, a gente não devia estar tentando ficar na
frente dos outros? — Sage murmura para mim, mas nego com a cabeça.
Gabe dá uma olhada para trás ao responder:
— Primeiro você precisa sobreviver à mata. Se for rápido demais,
acaba deixando passar os sinais de alerta.
Sage me olha de soslaio, mas quando só lhe dou um sorrisinho torto,
ela murmura:
— Por que é que isso parece a cena de abertura de um filme de
terror? Acho que o ponto positivo aqui é que nós duas não somos loiras
siliconadas, então não somos uma isca de qualidade.
Ela me faz rir, mas minha resposta é engolida pelos gritos e berros
que começam no caminho mais adiante de nós.
O primeiro grupo de estudantes a cair.
— Olha, preciso saber exatamente no que estou prestes a me meter
porque estou me sentindo um tiquinho em pânico e meu dom quer atear
fogo na mata agora mesmo pra escapar daqui. — Sage está ofegante e
reduzo nossa velocidade um pouco mais.
— Certo, o objetivo é atravessar antes de todos, mas esse lugar todo
é uma armadilha gigante. Ele muda também, então Gabe e eu não podemos
guiar o caminho pra vocês. Resumindo, as árvores todas têm olhos e
ouvidos, então não confie nelas...
— Olhos e ouvidos?! Oli, como assim, porra?! — Sage guincha, e é
assim que aprendo que ela tem um pouquinho de medo desse tipo de coisa.
Não a julgo, é uma ideia bem perturbadora.
— Não nesse sentido, quero dizer que elas são... tipo, o circuito sabe
o que estamos falando e fazendo, então vai mudar pra ferrar com a gente
dos piores jeitos.
Os olhos de Atlas ficam ainda mais sagazes para examinar tudo, e
Gabe pigarreia de forma brusca.
— Na primeira vez que fiz o circuito, quebrei meu braço em três
lugares. Fui derrubado por uma das toras rolantes mais perto do final e
perdi três semanas de treino de futebol americano por isso. Pra Oli foi
moleza.
O vínculo no meu peito se empertiga pelo elogio, mas também sinto
uma ânsia incontrolável de procurar por cicatrizes ou qualquer outro sinal
desses ferimentos, como se houvesse alguma chance de ele ainda sentir
dores que eu poderia curar para ele.
Atlas tira Sage do caminho e repreende Gabe:
— Pare de falar sobre estar machucado, Ardern. Respira, Doçura.
Droga.
Estou brilhando.
Gabe xinga baixinho, em seguida murmura:
— Sem pressão, Oli, mas Gryphon assiste as gravações do TT
procurando candidatos para as Equipes Táticas, então se você não quiser
que todos os outros saibam sobre as... dificuldades que está tendo com a
névoa do Vínculo, vai precisar se recompor.
Ranjo os dentes.
— Foi você quem tocou no assunto de machucado. Já ficou claro
que não encaro bem ouvir sobre esse tipo de coisa. Vou precisar que vocês
sejam cautelosos ao extremo por um tempinho, tá?
Ele sorri para mim, um filho da mãe convencido, mas o sorriso
escapa de uma vez do seu rosto quando chegamos à clareira.
Tem corpos por todos os lados.
— Jesus Cristo, porra — Atlas sussurra, desacelerando até uma
caminhada rápida. Concordo com a cabeça, porque parece uma carnificina.
Certo, todos estão respirando ainda e só duas pessoas estão
desacordadas, mas com certeza temos alguns ferimentos sérios aqui.
— Como deixam uma coisa dessas acontecer? Isso aqui é uma aula
universitária valendo créditos de educação física, caralho! — Sage xinga.
Ela está um pouquinho boca suja hoje, estou amando.
Gabe caminha até um de seus colegas do time de futebol americano,
o mesmo que tentou encher o saco dele mais cedo, e agacha para dar uma
boa olhada nele.
— Quantas vezes você tem que ser destruído aqui pra aprender que
correr não é melhor tática?
O cara, Matt, tosse e balbucia:
— Olha quem fala, você só está indo devagar por causa do seu
Vínculo. Hanna tá bem? Ela estava comigo quando a tora oscilante caiu.
Meu Deus, as toras oscilantes. São a pior coisa desse circuito, e
quando começo a procurar Hanna na lama, tomo o cuidado de ficar atenta
pela próxima rodada. Elas são difíceis de ver, mas os estalos da madeira e o
assovio de quando disparam pelo ar é inconfundível.
Só precisamos conseguir ouvi-las sobre os gritos e gemidos dos
feridos.
— Achei! Hanna, está me ouvindo? — Sage diz de onde estava
procurando, do outro lado. Corro até ela, ajoelho-me de uma vez na lama e
ajudo a trazer a garota de volta à consciência.
Eu a reconheço assim que a vejo, a garota que me jogou sem querer
para longe com seu dom enquanto lutávamos. Ela é mais alta que Sage e eu,
mais larga, e, com seu porte atlético, sem dúvida é o tipo de garota que
pertence a uma Equipe Tática.
Ela também está sangrando pela têmpora.
A braçadeira dela é da mesma cor que a nossa, estamos na mesma
equipe, então não faz sentido continuarmos sem ela. Vamos perder se todos
não cruzarmos a linha de chegada.
Atlas caminha entre os grupos de estudantes que estão grunhindo,
em seguida verifica os silenciosos e grita:
— São todos do outro time! Tem um sinalizador para alertar Vivian
ou a gente só os deixa aqui?
Parece horrível, mas é o exato objetivo desta pista de obstáculos.
— Deixamos aqui. Vivian vai interferir se eles precisarem, o
circuito todo é monitorado.
Ele faz que sim e continua andando pela clareira, procurando por
sinais do que aconteceu aqui. Há marcas profundas na terra e galhos
quebrados espalhados por todos os lados. É chocante, mas essa é apenas a
primeira parada, ainda teremos que enfrentar muito mais.
— Hanna? Matt, você pode curá-la um pouquinho? Só o suficiente
para ela acordar, aí eu e Oli podemos ajudar no resto do caminho — Sage
diz, e fico orgulhosa por ela ter tomado a iniciativa sem nem pensar duas
vezes.
Matt concorda com a cabeça e grunhe enquanto se força a ficar de
quatro e engatinhar até nós, embora sua perna esteja arrastando um
pouquinho.
— Curandeiro? — resmungo, e Sage nega com a cabeça.
— É o Central dela. Acho que vai conseguir acordá-la. São
Vinculados.
Nossa, melhor ainda. Gabe segura minha mão e me ajuda a levantar,
puxando-me por instinto contra seu corpo. Grudo nele sem hesitação,
aproveitando seu cheiro mesmo com toda a lama e suor que nos cobre.
Matt se debruça sobre ela e o vejo começar a brilhar, seus olhos
ficam brancos por completo enquanto o vínculo dele flui por seu corpo e
entra no de Hanna. É legal assistir, ver o processo que continuo realizando
sem querer pelos menores motivos.
Os olhos de Hanna abrem pestanejando bem quando ouço o barulho.
O som de assobio e o rangido que anuncia nossa perdição.
Não sei se me jogo no chão para desviar ou se corro, mas Gabe no
mesmo instante me segura pela cintura e me puxa para trás. Quero resistir,
mas ele é mais forte do que eu. Além disso, está arrastando Sage pelo braço
também, então, pelo menos, estamos indo juntos.
Exceto Atlas. Procuro desesperada por ele enquanto o mundo fica
em câmera lenta ao nosso redor. O vejo parado na frente de Matt e Hanna,
assistindo o tronco balançar em correntes em sua direção, do tamanho de
um caminhão e pesando mais que a droga de um elefante. Ele vai morrer se
não sair da frente. Ele precisa sair da frente, por que ele não está...
Atlas segura o tronco com uma mão só.
A madeira grunhe e se desfaz em lascas, e cascas caem ao redor dele
quando a tora para de vez. Ele não solta nem um gemido ao absorver o
impacto, seus pés se deslocam um pouquinho para trás, mas ele não exibe
sinais de esforço ou dor pela coisa insana de tão difícil que acabou de fazer.
Nunca senti tanto tesão na vida.
— Indestrutível e forte. Dá pra entender o apelo — Gabe murmura
no meu ouvido, e fico arrepiada com o som de sua voz e a sensação de seu
hálito no meu pescoço num momento em que já estou excitada.
Atlas olha para nós e sorri.
— Melhor a gente se mexer, antes que eu tenha que salvar a fuça de
vocês de novo.
Bufo, mas minhas pernas ainda estão parecendo ser de gelatina por
causa da adrenalina que restou, então Gabe me mantém apoiada contra si
enquanto caminhamos de volta até Matt e Hanna.
Os dois estão admirando Atlas como se ele fosse um deus.
Meu vínculo não é muito fã disso, mas ajudo Hanna a se levantar e
me enfio embaixo de seu braço enquanto Sage faz o mesmo do outro lado.
Gabe ajuda Matt a andar e recomeçamos o caminho para sair desse lugar
idiota.
Até atravessarmos a linha de chegada, Atlas está com um colega
pendurado em cada ombro, andando como se o peso deles não fosse nada,
enquanto Sage e eu sofremos para segurar Hanna entre nós. Gabe e Matt
estavam indo um pouco melhor, até encontrarmos Martinez apagado, então
eles literalmente tiveram que carregar o cara nos últimos dois quilômetros.
Mas conseguimos chegar e, pela primeira vez desde que comecei a
fazer esta matéria, minha equipe vence.

*
Tenho sorte de não ter me machucado durante o TT, porque tenho
turno na cafeteria logo depois da aula, e entre uma coisa e outra só tenho
tempo suficiente para tomar o banho mais rápido e mais gelado da minha
vida nos vestiários.
Segundo Gloria, as tardes são o período mais movimentado e não
tenho dúvidas de que se ela acrescentasse jantar no cardápio, ficaria lotado
a noite toda também. Os lanches que ela prepara são de comer rezando e o
café é o melhor do campus, só compete com o café da irmã de Gryphon.
Tento não pensar muito nisso.
Atlas me leva de carro para o trabalho enquanto Gabe vai para o
treino de futebol americano, gemendo o caminho todo. Eu achava que Atlas
ia só me deixar aqui, mas ele entra comigo, pede uma montanha de torta e
café, então ocupa uma mesa com seu notebook e todos os trabalhos que
precisa pôr em dia.
Fico esperando ser constrangedor ele ficar sentado aqui enquanto
estou ocupada servindo as pessoas, mas ele só me ignora o tempo todo e eu
faço meu trabalho. Cada vez que a xícara dele fica vazia, ele pede um novo
café, e quando Gloria ergue uma sobrancelha inquisidora, fico um pouco
envergonhada.
— Posso pedir para ele ir embora — digo, enquanto limpo os pratos
e os coloco na lava-louças.
Ela balança a cabeça para mim.
— Fico surpresa não estarem todos aqui tomando espaço depois do
que aconteceu da última vez. Não tem problema, ele está consumindo e
ficando no canto dele, não me importo de perder uma mesa durante seu
turno se ele fizer isso de forma respeitosa.
Suspiro aliviada e lhe dou um sorriso de gratidão, então me forço a
trabalhar com mais afinco ainda para agradecer por sua compreensão. Kitty
continua sendo um pesadelo enquanto anota os pedidos, mas já estou
ficando melhor em evitá-la e conseguir encontrar maneiras de trabalhar com
ela.
Quando pressinto a chegada de um dos meus Vínculos, segundos
antes do sino sobre a porta soar, fico uma pilha de nervos porque talvez Nox
tenha voltado e vai fazer outro escândalo porque Atlas está aqui.
Suspiro aliviada quando Gabe entra com Sage, Sawyer e Felix.
Todos parecem exaustos, mas estão rindo e fazendo piada. Eles me
cumprimentam e pedem suas bebidas, então se sentam na mesa com Atlas e
dominam seu espaço de estudos sem discussão.
Gabe pede dois dos muffins de três chocolates, um para agora e um
para viagem, e sorrio para ele quando os deixo na mesa.
— Se esse aí não for pra mim, talvez você precise repensar algumas
decisões de vida bem rapidinho, Ardern.
Ele sorri de volta pelo meu atrevimento e Sawyer finge que está
vomitando de forma dramática.
— Eu sabia que vocês dois iam estar trepando rapidinho, acabem
logo com isso para o resto de nós não precisar nos engasgar com essa
tensão sexual toda.
Sage pisa no pé dele por baixo da mesa e o encara furiosa.
— Para de ser fofoqueiro e de fazer drama só porque está chateado
com o lance de Gray. As pessoas têm direito de existirem e de serem felizes,
Sawyer.
Espera aí.
— O que aconteceu com Gray? Que merda, ele está bem?
A fachada petulante de Sawyer desaparece e de repente ele parece
devastado.
— Ele está bem, só que os pais dele que o tiraram da faculdade e o
trancaram em casa. Estão assustados com os sequestros e ameaçando tirar o
fundo fiduciário dele para mantê-lo isolado por um tempo.
Minha nossa.
— As coisas estão feias assim mesmo? Achei que tinham se
acalmado um pouco desde... a última vez.
Sawyer escarnece e me olha feio.
— Está se referindo à quando minha irmã foi levada e você andou
até um acampamento e a trouxe para casa como se não fosse nada demais?
Nem todo mundo tem uma melhor amiga com poder de derreter cérebros
pra protegê-los. Os pais dele já perderam dois filhos, então não estão de
brincadeira quando se trata dele e de Briony.
Só fico olhando para ele por um tempinho, porque é muita
informação para processar de uma vez. Ainda estou tentando aceitar o fato
de que ele não está bravo comigo, porque seu tom faz parecer que está.
Gabe também pensa assim.
— Não fala assim com ela, cara. Entendo que esteja irritado, mas
você mesmo acabou de dizer que ela salvou Sage. Eu estava lá e vi o que
ela fez pela sua irmã. Também a vi ameaçando Black quando ele tentou usar
Sage contra ela. Oli não é o problema aqui.
Dou uma olhada rápida ao redor, verificando o espaço para ter
certeza de que não temos clientes novos ou mesas que eu precise limpar,
depois pigarreio.
— Estou nessa com vocês até o fim. Não preciso conhecer Gray pra
saber que iria atrás dele também. Eu... nunca tive chance de ter amigos
antes. Não vou estragar minhas chances com vocês agora. Estou
comprometida, Sawyer, até com o seu jogador gatinho de hockey.
Ele pisca algumas vezes para mim e depois clareia a garganta,
erguendo seu café para esconder o rosto por trás da xícara enquanto toma
um gole.

Por algum tipo de milagre, Gabe consegue permissão de North para


eu ir ao shopping com nossos amigos.
Tudo bem, a gente precisa ser escoltado por uma Equipe Tática e
preciso estar ao alcance de Gabe o tempo todo, mas temos permissão para
ir. Atlas está irritado porque North disse com todas as letras que não confia
que ele não vá me pegar e fugir, mas eu não fiquei nem um pouco surpresa.
Mas eu só me importo com calças jeans novas e talvez algumas
camisetas bonitinhas, e talvez um outro par de sandálias ou de tênis, se eu
conseguir fazer meu primeiro pagamento render tanto assim.
Precisamos de três carros, já que todos estão vindo, incluindo
Gracie, porque Felix não conseguiu pensar rápido o suficiente numa
desculpa para deixá-la para trás. Ele é um bom irmão, mas também está
bem ciente de que a irmã dele está tentando sentar em pelo menos um dos
meus Vínculos.
O jeito como ela olha para Gabe também é um pouquinho afetuoso
demais para o meu gosto.
No instante em que chegamos, Sage a puxa de lado para informá-la
de que ficar babando em Atlas e Gabe não é apenas uma atitude repugnante
como também, e mais importante, uma atitude que a coloca em risco de
morte e que ela precisa tomar logo vergonha na cara. Ela aceita isso melhor
do que eu esperava e, embora não faça nenhuma tentativa de me pedir
desculpas por ficar babando pelos meus Vínculos, pelo menos abaixa a
cabeça.
Primeiro nós compramos chá bubble para bebermos enquanto
fazemos compras, e fico surpresa que os caras estejam todos tão à vontade
com a ideia de passar horas entrando em todas as lojas de roupa deste lugar
só para eu poder renovar meu guarda-roupa.
Defino que comprar até cair de exaustão vai ser minha missão, e,
com o braço de Atlas sobre meus ombros, e tanto ele como Gabe dispostos
a carregarem todas as minhas sacolas, tenho sucesso.
Sage me ajuda a avaliar tudo que provo, opondo-se quando os caras
dizem sim para tudo só porque sou eu que estou vestindo, e quando
paramos para sorvete barra almoço, dou uma olhada na minha conta
bancária e descubro que já estou quase sem fundos.
Eu nunca tinha me sentido tentada a usar o cartão de Gryphon antes,
mas meu Deus, seria legal poder continuar gastando agora. É óbvio que não
vou fazer isso, mas pode ser que todos meus salários no futuro próximo
sejam destinados à roupas.
Todos os outros pegam comida de verdade, zombando de mim e de
Sage por nos mimarmos com nossos docinhos, e até mesmo Kieran compra
um café e se senta conosco. Ele não disse uma única palavra para nós o dia
todo, exceto para mandar Gracie dar um tempo, mas está tentando ser mais
civilizado comigo. É uma vitória.
Sawyer recebe uma ligação por vídeo de Gray e no mesmo instante
vira a tela para nos apresentar, ignorando o fato de que estou com a boca
cheia de delícias chocolatosas.
— Gray, esta é a Oli. Ela é foda e se nós formos sequestrados na rua
um dia, aposto que ela vai nos resgatar.
O cara na tela ri, com os olhos brilhando para Sawyer, e fico furiosa
com a Resistência por mantê-los longe um do outro. Aceno para ele como
uma criança, com um sorriso idiota no rosto que tenho certeza de que estou
inspirando muita confiança em minha habilidade de ser meu próprio
exército Favorecido de uma pessoa só.
Gray acena de volta e revira os olhos de leve.
— Ninguém vai ser sequestrado com esse tanto de caras da Equipe
Tática ao redor de vocês. Minha família está sendo idiota nessa merda,
posso cuidar de mim mesmo.
Sage enfia uma colherada de sorvete na boca e fala de boca cheia:
— Que nem eu podia quando fui levada? É, talvez você devesse dar
um tempo pra sua mãe. Talvez a gente devesse apresentar Oli a ela, talvez
ela relaxe um pouco se vir o Brutus... sabendo que você é amigo do grupo
de Vínculos dos Draven e tal.
Atlas bufa baixinho e seguro sua mão. Já sei que ele está irritado
porque a comunidade está nos chamando assim, usando o nome mais
influente do nosso vínculo, mas se for para ajudar meus amigos a serem
felizes juntos, tudo bem por mim.
— Que porra é um Brutus? Oli, se esse for seu apelido, vou ficar
preocupado com Gabe — Gray zomba, e eu e Kieran trocamos um olhar.
Ele não parece satisfeito. Dane-se, qual a pior coisa que pode acontecer?
Se a Equipe Tática dele tem medo de um cachorrinho de névoa, o
problema é deles.
Ergo a mão e Brutus desce correndo pelo meu braço para se sentar
na palma, equilibrando-se ali de uma forma nada natural e fazendo com que
eu pareça muito mais impressionante do que sou. Sage dá uma risadinha do
jeito como todos me olham, mas estou orgulhosa em dizer que nossos
amigos reagem muito melhor do que as pessoas armadas e treinadas com
que Gryphon trabalha.
Mas não sei dizer se isso é uma coisa boa.
— Você tá querendo dizer que estive passeando o dia todo com um
pesadelo dos Draven e não fazia a menor bosta de ideia? A gente precisa
encontrar um bar, preciso de umas doses — Sawyer diz com a voz um
pouco rouca.
Tinha me esquecido de toda a história que essas criaturas têm, e no
mesmo instante quero proteger Brutus, protegê-lo das pessoas que falam
coisas ruins sobre ele. Ele é fofinho e eu o amo.
Eu o amo.
Coloco-o de volta no meu ombro e ele se esconde no meu cabelo,
desaparecendo nas mechas prateadas.
— Não chame ele de pesadelo. Ele é adorável e eu mataria por ele.
Até Gabe me olha como se eu fosse estúpida e isso é um pouquinho
ofensivo.
— Isso aí é uma criatura de pesadelo, Oli. É literalmente o nome
delas. Não importa que pareça um filhotinho de cachorro, ele vai te comer
se receber o comando.
Olho feio para ele.
— Brutus jamais faria isso. Talvez comeria você, mas ele me ama.
Sei que ama.
Atlas aperta meus dedos e não discute, abençoado seja, mas Gabe
não deixa para lá.
— Ele é literalmente parte de Nox, você confia mesmo tanto assim
em Nox? Porque eu tinha a impressão de que odiava o cara. Você se
encolhe quando ele entra no cômodo, se esconde atrás de Atlas e de mim
quando passamos por ele na Draven, nunca se incomodou com ele trazendo
garotas pro jantar. Estou interpretando tudo isso do jeito errado?
Aff.
— Ele não é... meu preferido.
Não quero dizer que o odeio, não para todos que estão aqui, e com
toda certeza não com Gracie e Kieran presentes.
Atlas dá um sorrisinho e diz com total confiança:
— Eu que sou. Diga a eles que sou seu favorito.
Sorrio para ele também e aponto para meu cabelo.
— Boa tentativa, mas o Brutus é meu favorito, seguido de perto por
Sage.
Ela ri de mim e coloca a mão no peito.
— Fui substituída por um cachorrinho de névoa? Acho que é justo,
ele é bem fofinho.
Sawyer esfrega o rosto com a mão.
— Nem começa, é a porra de uma criatura. Chega de dizer que ele é
fofinho!
Ele faz questão de não o chamar de pesadelo, mas a palavra paira no
ar entre nós. Não sei bem por qual motivo isso me incomoda tanto, mas
essas palavras: monstro, pesadelo, maldição... não gosto delas. Não quero
que sejam ditas de forma alguma para meu Vínculo, nem mesmo para as
nuvenzinhas de névoa que já sei muito bem serem letais. Se Brutus mantém
Nox vivo, e mantém todos nós vivos sob o comando de Nox, então merece
respeito.
E se ele não receber, todos vão se ver comigo.
9

Eu deveria ter previsto com antecedência, mas nós entramos na calmaria


antes da tempestade e eu, como uma imbecil, apenas me permiti desfrutar
dela. Gabe e Atlas começam a revezar dormir comigo no meu quarto, em
um colchão no chão. Fico de molho nos cheiros dos meus Vínculos nos
travesseiros, depois passo o dia todo envolta nesses cheiros vestindo
qualquer camiseta que Gabe conseguir afanar para mim sem ser óbvio
demais. Isso deixa o vínculo em mim calmo... mas não exatamente feliz,
acho que nunca vou conseguir ser feliz de verdade estando tão perto deles
sem estar Vinculada, mas estou estável e consigo manter meu dom sob
controle.
Os estudantes todos se acalmam a respeito de eu ser um monstro, e
os boatos sobre uma criatura de pesadelo se esconder no meu cabelo em
algum momento morrem. Começo a vencer todas as semanas no TT, graças
ao apoio dos meus amigos e Vínculos. Gryphon ainda não fala comigo
durante nossos treinos, mas também não posso dizer que me dou ao
trabalho de tentar. Passamos para o combate corpo a corpo e ele acaba
comigo a sessão inteira, porque não sei socar uma pessoa de forma correta.
Estou mais para uma amadora habilidosa que consegue as coisas por
pura força de vontade. Isso funciona.
North fica silencioso demais perto de mim, seus olhos estão um
pouquinho atentos demais, e percebo que estou me sentindo cada vez mais
ansiosa perto dele à medida em que os dias passam.
Nox simplesmente para de vir aos jantares do Vínculo.
Não o vejo mais nos corredores e na cafeteria, se não fosse pelo seu
perfume nos travesseiros e a hora por semana que passo em sua aula, iria
achar que ele tinha desaparecido do nada.
Sei que isso deveria ser fabuloso e uma vitória completa para mim,
mas meu vínculo não está feliz com a ausência dele. Mesmo tendo a pilha
de camisas macias usadas dele que Gabe arranjou, é como uma ferida
aberta.
Começo a receber a correção de mais trabalhos e vejo que estou
passando com tranquilidade em todas minhas matérias. De forma nenhuma
estou entre as cinco melhores alunas, mas também não estou entre os
piores, então perco um pouco de medo das minhas notas e paro de estudar
até tarde da noite.
Após algumas semanas com Gabe escapulindo para ir aos jogos de
futebol americano sozinho, enfim peço a North permissão para ir em todos
os jogos que forem na cidade para torcer por ele. Ele dorme no meu chão
em noites intercaladas, roubou roupas e travesseiros por mim, passa horas
em uma mesa de cafeteria me protegendo e foi comigo sem reclamar todas
as vezes que exigi sair para fazer compras para resolver a situação do meu
guarda-roupa. Ele tem sido mais do que um bom amigo desde que demos
uma trégua.
Ele tem sido um Vínculo perfeito.
O mínimo que posso fazer é comparecer aos jogos de futebol
americano dele vestindo a camisa da Draven e com o rosto pintado, para
berrar para um esporte com regras das quais mal entendendo. Custa uma
fortuna, mas também compro um ingresso de temporada e ofereço comprar
um para Atlas também. Atlas recusa e paga pelo dele, mas eu não queria
forçá-lo a fazer nada, embora esteja muito ciente de que ele nunca me
deixaria ir sozinha.
Sage está empolgadíssima.
Nós dois a buscamos no Hellcat, porque de jeito nenhum vou
encontrá-la só lá, por mais que a vida esteja calma e tediosa desde o
sequestro. Ela se senta no banco de trás vestindo sua própria camisa e ri da
pintura de guerra no meu rosto, mas tenho coisas muito mais importantes a
esclarecer aqui.
— Hum, Sage Benson, tenho quase certeza de que o número do seu
irmão é sessenta e nove. Na verdade, tenho plena certeza porque ouvi todas
as piadas sujas possíveis a respeito, então por que você está usando esse
quatro grandão aí?
Ela fica corada e abaixa a cabeça, depois pigarreia.
— Felix me pediu em namoro e decidi tentar de uma vez. Estou
ansiosa pra caramba e sinto que vou morrer se ligarem a respeito dos
exames de sangue dele logo, mas... é isso. Estou usando o número dele
hoje.
Dou um gritinho agudo tão alto que Atlas se encolhe um pouco, mas
ele está sorrindo tanto quanto eu, o que gera mais alguns pontos a seu favor.
Com muita habilidade, ele se afasta do meio-fio e acelera pela rua em
direção ao estádio.
Só de pensar em Felix recebendo a ligação informando sobre uma
correspondência em seus exames de sangue me faz passar mal. A maioria
das famílias na comunidade Favorecida coleta sangue de seus filhos e os
insere no diretório genético assim que nascem, aguardando o dia em que
serão pareados com seus Vínculos, mas ainda há milhares de pessoas que só
são inseridas lá bem mais tarde.
Incluindo eu.
Nunca tive chance de perguntar aos meus pais o motivo de terem
decidido esperar, e fico um pouco triste ao lembrar que nunca terei resposta
a essa pergunta, além de milhões de outras coisas que nunca vou ter
oportunidade de saber.
Atlas nota o silêncio em que caí e entrelaça seus dedos com os meus
enquanto dirige, um consolo silencioso do qual estou certa de que se tornou
essencial para minha sobrevivência a essa altura.
Quando chegamos ao estádio, vamos logo nos sentar nos lugares
preferidos de Sage, e Atlas ri do quanto ela está animada e saltitante ao
subirmos. Os pais dela estão sentados bem na nossa frente e, dessa vez, eles
me tratam com gentileza de verdade.
O pai dela fica com os olhos marejados ao me agradecer por salvar a
filha, segura minha mão e a aperta com tanto desespero que Atlas precisa
intervir de modo discreto para me salvar de suas garras cheias de gratidão e
força.
Isso faz eu e Sage trocarmos um olhar, e ela está constrangida pra
caramba, mas se isso deixa seus pais de acordo com a nossa amizade, posso
lidar com essa gratidão um pouquinho doida.
Quando os jogadores entram correndo no campo, Sage e eu gritamos
tão alto que as pessoas ao nosso redor nos encaram e sussurram, mas não
estamos nem aí para isso. Atlas compra cachorros-quentes e bebida para
todos nós, então os segura para podermos torcer quando o jogo fica
animado. Sage fala sem parar, contando-me cada estatística possível do
time, mas isso só faz com que assistir seja mais divertido.
Até não ser mais.
Sinto a hostilidade no ar antes dos primeiros sinais de que algo está
errado.
No intervalo, estamos seis pontos na frente e há um breve momento
de silêncio que parece que mais ninguém percebe, mas meu dom está
zumbindo em minhas veias, vindo para a superfície como se estivesse
prestes à tomar o controle do meu corpo para nos proteger. Os times correm
de volta para o campo e se preparam para o segundo tempo, mas sinto
vontade de vomitar.
Olho de soslaio para Atlas, mas ele ainda está rindo com Sage por
cima da minha cabeça, completamente alheio a coisa errada na atmosfera.
Ninguém está sentindo, ninguém além de mim, sentada aqui no meio da
multidão tentando não perder a droga do juízo. Começo a tremer de forma
descontrolada.
— Oli? O que foi, Doçura? — Diz Atlas, e Sage logo segura minha
mão.
Então a música é interrompida e os times voltam para os vestiários,
esvaziando o campo depressa conforme o público cai em silêncio.
Há um barulho de estalo e uma oscilação no ar ao nosso lado, em
seguida Kieran aparece do nada, erguendo-se sobre Atlas no corredor.
Ele não desperdiça tempo com gentilezas ou explicações.
— Fallows, precisamos ir. Benson, vá com seus pais para a saída
norte. Vão direto para o carro, liguem para Atlas no segundo em que
estiverem seguros em casa.
Os pais da Sage nem hesitam em segurá-la e entrar em ação, dou um
abraço breve nela e logo depois estou sendo levada na posição contrária. As
pessoas ao nosso redor na arquibancada chamam Kieran, seu uniforme de
Equipe Tática é um alvo para a confusão e medo delas, mas ele apenas nos
conduz em direção aos túneis que dão nos vestiários.
Não tenho ideia do que está acontecendo, mas estou preocupada.
Quando chegamos no segundo andar, já há uma quantidade enorme
de pessoas aglomeradas tentando sair, gritando e berrando a respeito de uma
bomba, então começo a surtar de verdade. Atlas me puxa contra seus braços
e cobre minhas costas por completo, e sei que ele está se preparando para
uma explosão, para o caso de ter que ser meu escudo. Isso não ajuda com o
meu surto. Na verdade, acho que piora.
Brutus começa a rosnar no meu ouvido, não é um som, é uma
sensação, como um retumbar profundo em seu tórax.
É difícil atravessar o último lance de escadas até os túneis, mas
quando enfim chegamos no subterrâneo, alcançamos o ponto mais baixo do
estádio e o espaço mais apertado até então. Tem gente por todos os lados,
corpos esmagando o meu conforme nos deslocamos e tudo isso é
insuportável, mesmo com os braços de Atlas me envolvendo com firmeza e
Kieran andando na minha frente em uma tentativa de abrir caminho e me
tirar dessa porra de lugar.
Alguém esbarra em Atlas e, porque ele não está usando seu dom,
acaba me balançando um pouco, pede desculpas no meu ouvido e rosna
para todos em volta de nós. O problema não é eu me importar com as
pessoas esbarrando em mim, até consigo me tranquilizar com a ideia de ser
esmagada, mas não consigo aceitar meu Vínculo sendo empurrado.
Sinto meu vínculo assumindo o controle, embora eu tente controlá-
lo com todas as forças. É inútil, em momentos de risco não somos nada
além de instinto e de uma necessidade muito primitiva de lutar.
Kieran xinga baixinho ao dar uma olhada em mim, então esfrega o
centro de seu peitoral de modo ansioso. Quando ele ergue o celular ao
ouvido, já sei quem vai estar do outro lado da linha.
— Onde você está? Fallows está prestes a destruir todo mundo nos
túneis, preciso tirá-la... entendido, estamos indo.
Ele estende uma mão para segurar meu pulso, seus olhos brilham
brancos enquanto ele convoca seu poder de teletransporte. Ele não segura
Atlas. Não sei por que não segura, e ouço o rosnado do meu Vínculo
quando sou arrancada dele e transportada para longe, mas não posso fazer
nada a respeito.
A sensação faz meu estômago se contrair e revirar, e quando meus
pés por fim pousam no chão firme de novo, eu me solto dele com suor
brotando pela testa.
Vomito pelo tapete todo, tremendo como uma vara, e ouço as
queixas estridentes de alguém se irritando, mas assim que ergo o rosto,
todos veem a cor dos meus olhos e calam a porcaria da boca.
Estou em um escritório com North, Nox e uma mulher de saia,
terninho e salto alto. Ela está cobrindo a boca com a mão e seus olhos estão
arregalados, mas não é isso que deixa meu vínculo puto. Ah não.
Ela está segurando o bíceps de North.
— Jesus cristo, porra, cadê o Shore? Ele me disse para encontrar
com ele aqui, ele tem que...
A porta abre com tanta força que bate na parede e volta na direção
de Gryphon quando ele entra no cômodo em seu uniforme tático completo,
com um capacete nas mãos e uma pescoceira de tecido cobrindo boca e
nariz. Ele a puxa para baixo e repreende:
— Tira a mão dele se não quiser que seu cérebro vire sopa, Pen.
A mulher se sobressalta e tira a mão de North, afastando-se dele e
cambaleando um pouquinho. Isso não me faz sentir nem um pouco melhor.
Quem é ela e por que acha que pode tocar no que é meu?
Kieran grunhe atrás de mim.
— Porra, estou sentindo no meu peito de novo, Shore. Se você não
fizer isso logo, ela vai disparar.
Então tudo se torna escuridão.
Meu vínculo está possesso.

Volto à consciência em minha própria cama dessa vez, graças a


Deus, mas já sei antes de abrir os olhos que todos os meus Vínculos estão
aqui comigo. Os formigamentos e pequenas descargas de eletricidade
correndo pelo meu corpo são ridículos, porque tem um monte de coisa neste
quarto que não quero que vejam.
Tipo a minha cama cheia de travesseiros deles, ou meu closet
transbordando com suas camisas roubadas.
Não quero abrir meus olhos e enfrentá-los. Não quero perder esse
pequeno reduto de aromas que Atlas e Gabe montaram para mim, e não
quero mesmo lidar com o que vai acontecer agora que estarão encrencados
por terem me ajudado.
Uma mão segura a minha e aperta um pouquinho, depois Atlas
murmura:
— Sei que está acordada, Doçura. Como está se sentindo? Diz que
está bem.
Dou um gemido e pisco algumas vezes enquanto olho rápido para
cada um deles ao meu redor, só para registrar onde todos estão e o tamanho
de sua fúria. Atlas está ao meu lado, na poltrona que arrastou até a cama,
segurando minha mão. Gabe e Gryphon estão juntos na frente do closet,
observando-me com tanta atenção que minha pele formiga com a
intensidade do olhar deles, e Nox está sentado na outra poltrona perto da
porta com um semblante de desprezo.
Sendo assim, só resta North, que está parado aos pés da cama
parecendo furioso.
Nenhuma novidade, mas ele também costuma estar frio e mordaz
quando está furioso. Isso aqui é mais assustador, esta é a raiva do tipo
fervente que estou acostumada a esperar de seu irmão caçula, não do
conselheiro frio, calmo e equilibrado.
— Ela tem estado assim... desde que retomou os poderes. Vocês
estão mentindo para nós há meses sobre ela e sobre o que ela precisa.
Gabe faz uma careta, mas Atlas se debruça para frente na poltrona
para passar a mão em meu cabelo, afastando-o do meu rosto com gentileza.
— Oli não confia em nenhum de vocês. Por que ela conversaria com
você...
— Isso aqui não é uma banalidade, ela quase usou o dom dela em
dezenas de pessoas hoje! — North o interrompe com um rosnado, e meu
coração pula na garganta.
Viro e enfio o rosto no travesseiro, mas não importa quantas vezes
eu inspire fundo pela boca, não interrompe a onda de poder que o pânico
causa dentro de mim.
Ouço Atlas se levantar e se aproximar de mim de novo, retrucando
para North:
— Como se eu estivesse ligando para qualquer uma delas.
Ouço passos ao redor da cama, então Gryphon entra no meu campo
de visão, murmurando baixinho:
— Falou como um verdadeiro Bassinger. Estive me perguntando se
havia muitas semelhanças entre você e sua tia, acho que agora todos nós
sabemos a resposta.
Tampouco sei o que isso quer dizer, mas meu vínculo fixa sua
atenção num pedacinho de pele aparecendo no pescoço de Gryphon e sinto
meus olhos mudarem, deixando minha visão mais aguçada e mais focada.
Eu quero isso aí.
Eu preciso.
— Que merda ela está fazendo? — Nox murmura, mas só consegue
chamar minha atenção e sim, quero isso aí também. Quero mais do que as
migalhas das quais estive sobrevivendo. Eu quero mais, quero tudo, dê tudo
para mim.
Vou até ele em uma velocidade sobre-humana, tendo apenas uma
vaga noção da reação de todos a esta minha atitude e de Atlas correndo
atrás de mim, mas só o que me interessa é o cheiro dele.
Quando me sento no colo de Nox, sinto Brutus sair do meu cabelo e
parar ao nosso lado, como se estivesse me monitorando, aguardando pelo
momento em que vai precisar atacar, mas quando começo a enfiar os dedos
na camisa de Nox para erguê-la pelo seu corpo, Brutus se aconchega aos
pés de Nox como se eu não estivesse arrancando as roupas de seu criador.
Nox fica paralisado e não é como se estivesse me dando permissão
para tocá-lo, mas também não me impede. Ele fica só me encarando com
uma expressão assustada, horrorizada, enquanto eu me abaixo para me
enrolar ao redor do corpo dele e me grudar na pele recém-exposta.
— Tira. Ela. De. Cima. De. Mim — Nox diz entredentes, e as
batidas de seu coração estão tão altas por baixo da minha têmpora que
parece até que seu coração está tentando fugir de seu peito.
Ele está entrando em pânico.
Ele não me quer, ele não quer esse Vínculo, ele realmente não quer...
— Qual é a porra do seu problema...
— Cala a boca e pega ela!
— Porra, tira ela de cima dele antes que os pesadelos dele apareçam.
Oli, solta ele.
— Oleander, solte-o.
Mas não quero soltar, quero mais. Quero que ele cubra meu corpo
todo até estar penetrando minha pele, encharcando até meu âmago e assim
não haver chances de ninguém nunca mais se interpor entre nós. Quero
vesti-lo como um aviso, um escudo, para que todos saibam. Todos precisam
saber.
O rosto de North aparece e ele bloqueia todo o resto.
— Eles sabem, todo mundo sabe, Vínculo. Solte-o. Vou dar o que
você precisa.
Mas ele não vai, está coberto por roupas e não quero mais camisas e
suéteres e travesseiros, eu quero...
Pele.
Mais pele, pele que cheira a aconchego e a homem e a meu. Ele não
fica tenso nem resiste quando vou até ele, seus braços seguram meu peso
quando envolvo seu corpo com o meu e me enterro nele. Não consigo
chegar tão perto dele quanto eu gostaria, mas com meu rosto enfiado em
seu pescoço e braços passados ao seu redor, é uma segunda opção bem
aceitável.
A porta abre e fecha, mas mal noto porque há tanta pele nas pontas
de meus dedos e quando me mexo para enfiar o nariz no peito dele e o
inspiro fundo, cada centímetro do meu corpo ganha vida com o vínculo. Ele
é perfeito e ele é meu. Ele não me impede, não se encolhe perante a loucura
de minhas mãos enquanto o agarro para trazê-lo mais perto de mim.
Preciso de mais.
North me carrega de volta para a cama e se senta lá comigo em seu
colo e meu vínculo gosta disto. Gosto dele cuidando de mim e me levando
para onde preciso estar. Preciso ficar nua, e ele precisa se livrar desta calça
porque preciso completar o Vínculo agora, preciso...
— Se você levar isso adiante, vai ser tão ruim quanto seu irmão. Ela
não faz a menor porra de ideia do que está acontecendo neste momento. Ela
nem está nesse corpo agora.
Não gosto disso.
Meus olhos disparam para onde Atlas e Gryphon estão pairando
sobre nós, olhando para mim como se estivessem vendo um animal raivoso,
também não gosto disso. Nox se foi, mas Gabe está sentado na poltrona
perto da porta me olhando como se estivesse de coração partido, e isso não
faz sentido nenhum para mim, porque é disso aqui que eu preciso.
— Nocauteie ela de novo. Faça isso direito desta vez, para ela
dormir até o frenesi passar — Atlas diz, mas Gryphon nega com a cabeça.
— Não posso.
North segura minhas mãos que estão deslizando para baixo devagar,
tentando encontrar toda a pele da qual posso precisar.
— Você precisa. Ela não está se acalmando.
Gryphon cerra os dentes.
— Não estou dizendo que não vou fazer, estou dizendo que não
posso. Gastei toda minha força para desacordá-la da primeira vez. Estou
esgotado.
North fica tenso e eu choramingo sem querer. Não quero que ele me
detenha, não quero que se afaste de mim. Se mais um deles me odiar eu não
vou suportar...
— Eu não odeio você, Oleander. Respira fundo. Nós vamos deitar e
você vai descansar. Você precisa dormir.
Não quero dormir, mas suas mãos estão me ajeitando com
movimentos precisos, movendo-me e deslizando sobre mim até ele estar
embaixo das cobertas comigo, com minha cabeça sobre seu coração,
ouvindo suas batidas confiáveis e fortes.
Tudo fica em silêncio por um minuto, enquanto todos encontram
lugares para sentar e nos observar. Meu vínculo não está superfeliz a
respeito do fato de que North não vai completar o Vínculo comigo, mas
seus braços estão me abraçando apertado. Ele é tão sólido e não está se
afastando de mim, então é o suficiente para apaziguar meu vínculo.
Não sinto o momento em que meu vínculo me liberta, mas o alívio
no quarto é palpável. Gryphon até suspira, como se estivesse prendendo a
respiração esse tempo todo. O som faz meus olhos fecharem.
— O que quis dizer com estar esgotado? Ela sugou seu poder?
Desacordar as pessoas é uma habilidade de nível baixo, você faz isso desde
os 3 anos — North murmura baixinho, mas o tom de incredulidade é óbvio.
Mal consigo ouvir a resposta de Gryphon.
— Ela não sugou, mas... ela é mais forte do que parece. Seja lá em
qual nível que você acha que ela está... multiplique por dois. Por três,
talvez. Foi mais fácil entrar na sua cabeça do que foi desacordá-la. É poder
pra caralho, North.
10

Acordo me lembrando de tudo que aconteceu antes, e a onda de vergonha


que cai sobre mim é... bom, estou considerando cortar os pulsos na banheira
para não ter que olhar para ninguém hoje. Tudo bem, sei que é um
pouquinho dramático, mas porra, não quero nenhuma conversa agora. Não
quero olhar nos olhos de ninguém. Só quero me misturar na multidão e me
dissipar até não restar nada.
Estou quase disposta a arriscar explodir meu cérebro para tirar esse
chip do meu pescoço.
Meu quarto ainda está escuro, mas meus olhos se ajustaram e sei
que Nox continua sendo o único que não está aqui. Brutus está esparramado
na cama ao meu lado, mas seu corpinho de névoa mal ocupa espaço. North
ainda está na cama, sem camisa e franzindo o cenho enquanto dorme, com
um braço ainda passado sobre minha cintura. Recuso-me a pensar no
quanto o pau dele está duro enquanto se esfrega na minha bunda, porque
isso tem tudo a ver com uma ereção matinal e nada a ver com quem está em
seus braços.
Não acredito que ele fingiu dar a mínima para mim para me acalmar.
Gryphon está dormindo na poltrona ao lado da cama e consigo
discernir Gabe no colchão ao lado dela.
Não estou vendo Atlas, mas estou desesperada para mijar, então me
arrasto para longe de North, com cuidado para não o acordar, e começo a
andar de forma sorrateira ao redor dos corpos para chegar ao banheiro.
Atlas já está ali, sentado sem camisa no balcão da pia com seu
celular. Ele parece exausto e me sinto culpada no mesmo instante.
Quando fecho a porta com delicadeza depois de entrar, ele desce do
balcão e me puxa em seus braços, pressionando a bochecha no alto da
minha cabeça enquanto me permite absorver seu cheiro.
— Como está se sentindo? Do que precisa? — murmura, e engasgo
uma risada que mais parece um choro.
— Está dizendo tipo outra coisa que não seja fazer xixi? Preciso
nunca mais olhar no rosto de ninguém. Preciso sair daqui antes que isso
fique pior ainda e preciso nunca ter que enfrentar um dos Draven de novo.
Ele não ri, nem tenta me apaziguar, sua mão faz carinhos gentis nas
minhas costas e ficamos parados ali em silêncio, abraçados um no outro, até
minha bexiga não aguentar mais.
Ele não quer sair para eu usar o sanitário, mas não tem a menor
chance que seja de eu conseguir fazer xixi com ele aqui, mesmo que ele vire
de costas. O mais longe que ele vai é ao outro lado da porta, mantendo-a
destrancada porque, embora o frenesi do meu vínculo tenha passado, o
estrago que causou ainda está aqui, esperando para lidarmos com ele.
Assim que abro a torneira para lavar as mãos, ele entra de novo,
observando cada movimento em minha rotina matinal de lavar o rosto e
escovar os dentes.
— Tinha uma bomba embaixo do estádio. Um dos técnicos a sentiu
com tempo de sobra para desarmá-la e evacuar o lugar. Quando North ficou
sabendo, mandou Black nos tirar de lá.
Esfrego meu rosto com o demaquilante novo que comprei em nossa
maratona de compras e que tem um cheiro incrível.
— Por que ele não pegou você também, então? Por que ele me tirou
sozinha? — murmuro.
Ele suspira e volta a se sentar na pia, seus músculos se expandem e
contraem de um jeito muito delicioso.
— Ele estava tentando buscar Ardern e tirar nós três de lá de uma
vez. Quando seu vínculo reagiu ao espaço limitado e ao pânico, ele mudou
de planos. Fui atrás de Ardern e vim com ele de volta pra cá de carro, e os
outros nos encontraram aqui com você.
Faço que sim devagar, enxaguando o rosto e depois secando. Minha
pele está macia e fresca, mas quase me sinto uma egoísta por estar fazendo
isso enquanto meu Vínculo está sentado ali parecendo pronto para morrer.
Pigarreio e me debruço sobre ele.
— Mais alguma... coisa aconteceu? Fiz algo de errado? Mais errado
do que apalpar vocês todos que nem uma droga de...
Ele segura minha nuca com uma mão e me puxa para perto,
apoiando nossas testas uma na outra e fechando os olhos com força.
— Você não fez nada de errado, Doçura. Você só... estou tentando
aceitar o que está prestes a acontecer. Pois, este pequeno santuário que
construímos aqui? Não vai mais funcionar, e não só porque North e os
outros sabem que você está tendo dificuldades. Seu vínculo veio à tona
porque ela quer mais. É isso que você ficava dizendo ontem à noite, sem
parar.
Choramingo, e dessa vez não é por causa do meu vínculo idiota,
mas pelo alívio que inunda minhas veias ao pensar neste terrível anseio com
que tenho vivido por fim ser resolvido.
Exceto que, não pode ser.
— E se eu ficar mais forte, Atlas? E se... eu mal consigo manter isso
contido agora, não posso ficar mais forte!
Ele segura meu rosto entre suas mãos e me mantém parada, ainda
com os olhos bem fechados.
— Se você queimar, eu queimo com você. Você não está sozinha,
Oli, nem por um segundo. Já disse isso antes, não estou com medo.
Mas eu estou, estou apavorada, e assim que meu coração começa a
disparar no peito, escuto os outros começarem a despertar. Brutus entra
atravessando a porta fechada, a névoa se desloca através da madeira como
se ele fosse um fantasma ou algo do tipo, então ele escala pela parte de trás
da minha perna e se esconde em meu cabelo outra vez.
Prendo a respiração quando batem na porta e Gryphon chama:
— O que está acontecendo aí dentro? Por que Oli está chateada?
Atlas solta o ar pela boca e fecha a cara para Brutus quando o
focinho dele aparece e se esfrega na minha bochecha, o único jeitinho que
ele tem de ver como estou. Na maioria das vezes ele fica quietinho, mas
meu coração ainda está martelando dentro do meu tórax como se estivesse
determinado a quebrar uns ossos e não me surpreende que todos estejam
preocupados.
— Bassinger? Que droga está acontecendo?
Atlas segura meu quadril para me empurrar um pouco para trás, só o
suficiente para descer do balcão, e abre a porta para ralhar com Gryphon.
— O que está acontecendo não é da porra da sua conta. Oli tem o
direito de escovar a porra dos dentes sem dar satisfações pra vocês, imbecis,
e se você não recuar agora mesmo, vou colocar vocês para fora. Todos
vocês. Agora dá um tempo e a deixe sair quando estiver pronta, cacete.
Ele faz menção de fechar a porta, mas Gryphon enfia o corpo pela
soleira, pegando Atlas de surpresa enquanto entra à força no banheiro.
— Ela não tem que me dar satisfações, mas você também não tem
direito de falar por ela. Ela está apavorada e acho que nenhum de nós quer
reviver a noite passada. Qual é o problema, para podermos resolver antes
que outro frenesi aconteça?
Meu Jesus.
É claro que ele não quer isso, nenhum deles quer, mas ele também é
o cara que riu da última vez que meu vínculo se interessou de verdade por
ele, e ai meu Deus será que o chão pode abrir e me engolir de uma vez
agora, por favor? Eu praticamente abusei de dois dos meus Vínculos ontem
à noite só para sentir a pele deles na minha.
Por que Atlas ou Gabe não me ajudaram? Por que North teve que
deitar comigo e permitir que meu vínculo se apegasse mais ainda a ele? É
fácil para eles, que só querem aumentar seus poderes comigo e não vão
precisar viver com as consequências de estarem Vinculados.
Eles não terão que se tornar o monstro que todo mundo sabe que eu
serei.
Respiro fundo, então mais uma vez, porque só por cima do meu
cadáver vou me permitir entrar em outro frenesi e deixar esses homens com
a responsabilidade de me acalmar. Não posso permitir que me tratem como
se eles se importassem comigo.
Não posso permitir que finjam que me desejam para qualquer coisa
além de um Vínculo completo.
— Estou bem. Está sob controle — digo, minha voz está mais
áspera agora que estou tentando conter tudo dentro de mim.
Atlas me olha por cima do ombro e a determinação que vê em meus
olhos faz com que ele acene para mim, mas seus ombros ainda estão tensos
de raiva pela insistência de Gryphon em entrar aqui. Olho para mim mesma,
mas ainda estou usando a camisa com o número de Gabe e a calça jeans de
ontem.
— Vou tomar um banho e me arrumar. Vou faltar ao nosso treino
hoje, Gryphon. Treinar não é uma ideia muito boa para mim agora. Vou
passar o dia estudando e me recompondo e todos nós podemos fazer todo o
possível para esquecer que a noite de ontem aconteceu. Aquilo não vai se
repetir nunca mais.
Fico orgulhosa por soar tão calma e segura de mim mesma, e
nenhum dos dois tenta discutir comigo ao saírem do banheiro. Esfrego-me
para lavar toda a vergonha e a humilhação do que aconteceu, e quando me
seco e me enrolo na toalha, hesito por um instante antes de sair do banheiro.
Dois dos meus Vínculos estão no quarto, então meu palpite é que
North e Gryphon tenham saído e somente Gabe e Atlas ficaram, graças a
Deus. Enfrentar Atlas não foi tão difícil e sei que posso voltar a ficar
confortável na presença de Gabe, contanto que eu não pense no jeito como
ele olhou para mim na noite passada.
Abro a porta e descubro que, na verdade, Atlas e North ainda estão
aqui, discutindo em voz baixa, sibilando um para o outro como se tentassem
não me incomodar, e paro de forma abrupta segurando minha toalha. Os
dois se viram juntos para me olhar.
Atlas se recupera antes, aproximando-se de mim e me apressando
em direção ao closet, como se estivesse me ocultando dos olhos de North. É
adorável, mas então o imbecil do meu cérebro me lembra de que ele já viu
tudo e, é claro, não achou grande coisa.
Jesus.
Seguro meu vínculo com um controle de ferro e o forço a se
submeter, do mesmo jeito que fiz ao fugir da Resistência, e, mesmo com a
força extra que ele tem agora que estamos cercados pelos meus Vínculos,
consigo fazê-lo recuar.
— Está tudo bem, Doçura. Se vista para a gente ir buscar algo para
comer. Liguei pra Gloria e disse que você não estava se sentindo bem, ela
disse que não tinha problema em cobrir para você — Atlas diz, dando-me
as costas e parando na soleira da porta enquanto me visto.
Pego o que estiver mais perto de mim e for mais confortável, uma
camisa de Nox, um moletom de Gabe e uma legging. Coloco umas
rasteirinhas nos pés e tento não me sentir constrangida por estar parecendo
uma sem-teto.
Atlas nunca pareceu ligar para isso.
Quando volto na direção de Atlas, ele passa um braço ao meu redor
e me vira para enfrentar North outra vez. Ele está de terno de novo, um
pouquinho amarrotado graças à noite que passou comigo enrolada em volta
dele, mas tento não surtar de vergonha a respeito.
Obrigo meu vínculo a não reagir a ele.
— Jantar hoje à noite. Todos estarão presentes e vamos conversar
sobre o que houve. Se algum de vocês estiver escondendo mais algum
segredo de nós, agora é hora de contar. Se optarem por não contar, não serei
mais tão compreensível.

*
Passo o dia tentando fingir que tudo está bem e de volta ao normal,
que definitivamente não sinto como se as paredes estivessem desmoronando
ao meu redor.
Atlas compra café da manhã para mim, em seguida me leva até um
parque bem no limite do perímetro do qual North me mandou ficar dentro,
em uma clara provocação porque, seja lá o que eles conversaram enquanto
eu tomava banho mais cedo, deixou-o irritado. Ficamos sentados juntos e
comemos em um silêncio que não é desconfortável, mas é, sem dúvida,
carregado, porque tem coisas demais no ar entre nós.
Quando voltamos à mansão, fico de cabeça baixa o caminho todo
até meu quarto e me concentro em ficar calma. Atlas coloca um filme, mas
passa a maior parte do tempo no celular com seus pais, já que as notícias do
susto com a bomba chegaram até a Costa Leste. Tenho certeza de que eles
me odeiam mais ainda agora por levar seu filho para longe e o colocar em
tanto perigo.
Eu me jogo nos estudos, já que é uma excelente distração.
Gabe só volta ao meu quarto depois do almoço, com os livros
didáticos nos braços e os olhos no chão enquanto anda. Sinto muita culpa,
mas coloco um sorriso no rosto e o acolho na pequena bolha de estudos que
montei no chão. Ele está um pouquinho tenso e formal, sem nem sinal
daquela amizade tranquila que trabalhamos tanto para desenvolver, mas
depois de mais ou menos uma hora, ele relaxa e voltamos ao nosso normal.
Consigo sentir as horas passando, a tensão crescendo aos poucos
conforme nos aproximamos da hora do jantar, e quando Atlas enfim coloca
o celular de lado e olha para mim, sei que não posso continuar enrolando.
— Oli, não é nada demais — Gabe murmura, enquanto começo a
empilhar os livros e arrumar a bagunça que fiz estudando.
Dou uma bufada para ele.
— Você não estava nem olhando para mim quando entrou aqui.
Desculpe se não estou muito ansiosa para enfrentar Nox depois de ter
praticamente me atirado num homem que detesta até me ver na frente dele.
Os olhos de Gabe disparam para meu cabelo, como se estivesse
procurando por Brutus, mas o cãozinho de névoa ainda está bem escondido
atrás da minha orelha. É difícil explicar como sei que ele está aqui, é uma
sensação... mas, ao mesmo tempo, não é. Eu apenas sei, assim como sei que
meu coração está batendo ou que meu cabelo é prateado. É só como as
coisas são.
— Acho que não foi muito bem isso que aconteceu, mas desculpa se
fiz você se sentir mal por isso. É que foi... difícil te ver daquele jeito. Tenho
certeza de que também foi difícil estar naquele estado.
Naquele estado.
Que jeito adorável de colocar as coisas. Obrigo meu rosto a
continuar inexpressível, mas Gabe percebe e xinga baixinho de novo,
enquanto passa uma mão no rosto.
— Porra, tô falando tudo errado de novo. Quis dizer que eu sabia o
quanto você não queria que eles soubessem o que está acontecendo. Eu
sabia que você não confia neles. Eu sabia que você estava apavorada com o
que estava acontecendo e que não tinha controle nenhum. Eu não sabia o
que fazer porque não sei direito do que seu dom é capaz. Fiquei
completamente impotente, porque se eu tentasse intervir, talvez fosse pior
para você. Mas eu teria interferido, se alguém tentasse completar o Vínculo
com você, eu teria impedido, mas... agora sinto que eu devia ter feito isso
antes. Sinto que falhei de novo com você.
Nós dois estamos ficando craques em magoar um ao outro, não
estamos?
Pigarreio e me levanto para abraçá-lo, dando um breve aperto em
seu corpo com os braços enquanto passo mais um minutinho encarando o
chão.
— Estou bem. Morrendo de vergonha e com medo do que vai
acontecer agora, mas não é culpa sua. Não é culpa de ninguém além de mim
mesma.
Ele me abraça mais forte e me mantém grudada ao seu corpo,
embora eu já esteja querendo me soltar. Parece que está louco para
encontrar o nosso normal de novo, ansioso para retornarmos ao curto
momento de paz que encontramos juntos, mas já sei que não vai dar.
Esse jantar vai estragar tudo.
Atlas passa o braço sobre meu ombro e me segura firme enquanto
andamos, e Gabe segura minha mão. Mais uma vez, sinto uma irritação
irracional com meu vínculo por ter feito uma cena daquele jeito. Por que
isso não pode ser o suficiente? Por que eu ficar pertinho desses dois não faz
com que tudo continue igual?
Somos os últimos a chegar à sala de jantar e North está sentado ao
lado de sua assistente, assinando uma papelada. Nox está em seu lugar de
costume, já com um copo de uísque na sua frente e uma careta no seu rosto
que me dá um pouco mais de vontade de morrer do que de costume.
Gryphon faz uma cara feia quando eu entro e meu peito fica
apertado, até ele dizer de modo brusco.
— Pen, você já terminou. Qualquer outra coisa pode esperar até
amanhã de manhã.
Ah.
Ele tem medo de eu perder o controle só de ver esta mulher
trabalhando perto de North, já que a desgraça do meu vínculo cheio de
tesão me transformou em uma pirralhinha sensível. Nem posso achar ruim,
meio que é verdade.
A assistente olha para mim e se assusta, como se não tivesse notado
quando entramos juntos. Não sorrio e finjo que nem a vi, vou direto para
minha cadeira e evito os olhares de todos enquanto observo a seleção de
pratos da noite.
Temos salmão e lagosta. Tem alguém realmente cuidando de mim
aqui, não existe nada neste planeta melhor do que salmão e lagosta. Talvez
exista uma possibilidade pequenininha de que eu consiga aguentar a
conversa deste jantar, se estarei ingerindo essa comida enquanto ela se
desdobra.
North recolhe os papeis e os entrega para a assistente, e concorda
com a cabeça quando ela confere uma última vez se ele está satisfeito antes
de sair. Gryphon a encara com um olhar mortal do outro lado da mesa, pelo
visto insultado por seu mero comando não ter sido suficiente para ela sair
correndo e gritando daqui.
É um pouquinho engraçado.
Só um pouquinho.
North pega um prato na pilha perto dele e nem me incomodo de
questionar quando ele começa a enchê-lo de comida. Já sei que é para mim.
Todos nós sabemos. Ninguém começa a se servir, estão todos o aguardando
terminar de decidir o que e o quanto vou comer hoje.
A sorte dele é estar montando esse prato do jeitinho que eu faria.
Atlas contrai a mandíbula com força, mas não discute ainda. Digo
“ainda” porque sei bem o que está se formando dentro dele. Sei que em
algum momento da noite North vai dizer alguma coisa e isso vai ativar
alguma armadilha dentro de Atlas, que vai rosnar algo cruel e cheio de ódio
aos Draven como um todo.
A única pessoa que está segura de sua língua ácida agora, sou eu.
North espera até eu estar comendo e todos os outros encherem os
pratos de comida antes de começar, mas, como sempre, ele vai direto na
minha jugular.
— Não podemos apenas ficar esperando você crescer e superar essa
sua fase rebelde. Mudanças serão feitas a partir de hoje à noite para garantir
que seu vínculo não ataque de novo, Oleander.
Fase rebelde.
Atlas muito lenta e cautelosamente coloca os talheres de volta na
mesa, mas coloco minha mão na dele para impedir seja lá o que ele está
planejando fazer aqui.
Engulo os deliciosos frutos do mar.
— Não acho que um pouco de respeito seja pedir demais antes de
eu... abrir as pernas pra vocês. É esse seu plano, não é? Eu deitadinha,
deixando vocês todos me usarem em troca de poder? Por que é difícil para
você entender que eu possa ter alguma objeção a isso?
Gabe fica rígido na cadeira ao lado, mas tenta disfarçar erguendo o
copo e bebendo água. Tenho certeza de que vou precisar ter outra conversa
com ele depois disso, mas o que estou dizendo não é mentira.
É isso que eles querem.
Fica evidente a forma como North precisa descontrair a mandíbula
para responder.
— O que eu quero é conseguir passar uma semana sem ter medo de
que você esteja prestes a causar morte cerebral em toda nossa comunidade
porque está dando um chilique. Eu gostaria de ter certeza de que você vai
ser responsável e adulta o suficiente para dizer aos seus Vínculos quando
tem algum problema e precisa de algo, mesmo quando a culpa é toda sua,
como é o caso.
Ah, aí está. Constrangendo-me por ousar ser biologicamente
obrigada a completar o Vínculo com eles.
Olho para cada um deles, muito embora eu prefira morrer, e a droga
do Nox está sorrindo de modo irônico para nossa discussão. Sorrindo,
porque isso tudo é tão engraçado.
Quero matar...
Não.
Nem pense nisso, Oli. Ainda estamos em território perigoso aqui.
Abaixo os olhos para meu prato de comida que quase não toquei.
— Diga o que está sugerindo, porque perdi a fome. Vou dormir
cedo, tenho aula amanhã.
North abaixa os olhos também.
— Você precisa de maior proximidade com todos os seus Vínculos.
Não reagiu a Gabe ou ao Bassinger ontem porque já está tendo o que
precisa deles. Nós vamos organizar uma agenda e você vai dormir com um
de nós todas as noites. Se isso não funcionar, vai ter que começar a
considerar as logísticas de completar o Vínculo conosco, caso contrário
você será um risco a todos nós.
Porra nenhuma, absolutamente não.
De jeito nenhum.
Ele não pode estar falando sério?!
Mas quando olho ao redor da mesa, descubro que não apenas ele
está falando sério, como já convenceu todos sentados aqui de que essa é
uma boa ideia... ou melhor, a única solução que temos a nosso dispor.
Caralho.
11

— Por que não posso dormir na minha cama e vocês se revezarem


para dormir lá também? Por que tenho que ir até vocês?
Essa não é minha maior preocupação, mas é a única que consigo
verbalizar agora, com todos eles me encarando com diferentes níveis de
desdém e desprezo.
Certo, isso aí é mais da parte de Nox do que de qualquer outro,
mesmo assim, dificulta falar.
North volta a comer o jantar como se não estivesse arruinando
minha vida toda, e fala em seu tom cortante de costume:
— Gabe disse que você tem precisado de muitos cheiros, de
preferência roupas que já foram usadas muitas vezes, então dormir em
nossa cama faz mais sentido. Talvez, quando seu vínculo estiver saciado,
podemos revisitar essa ideia, mas por enquanto é isso que vamos fazer.
Certo.
North Draven, o conselheiro, deu a ordem, então é claro que é assim
que vai ser. Controlei meu vínculo tão bem o dia todo e agora o sinto
lutando contra mim por causa da petulância deste homem. Mas não posso
deixá-lo sair, não importa o quanto North mereça.
Também não confio que meu vínculo não vá tentar puni-lo com uma
mão boba por toda a pele deliciosa dele, então isso está, realmente, fora de
cogitação.
O silêncio domina a sala outra vez, enquanto todos eles comem e eu
me lamento por não poder fazer droga nenhuma quanto a essa situação
idiota. Esfrego a pequena cicatriz em relevo na minha nuca, um gesto
inconsciente que faço sempre que quero fugir.
Nox é o primeiro a quebrar o silêncio, e eu não estava esperando o
tom tão controlado de sua voz, muito menos o assunto.
— Alguma pista sobre a bomba?
North olha feio para o próprio prato e faz que não com a cabeça.
— A Resistência enviou os batedores deles de novo. A bomba foi
uma distração, não uma tentativa real de nos matar.
Um calafrio desce pela minha espinha e a mão de Atlas encontra a
minha por baixo da mesa. Não consigo comer de jeito nenhum agora, não
consigo engolir aquela lagosta preparada com perfeição, por mais deliciosa
que esteja.
Gryphon encolhe os ombros para os dois.
— Mas eles não achariam ruim se tivessem matado metade da
comunidade. A bomba era poderosa o suficiente para destruir o estádio, eles
não estavam de brincadeira.
Eu me recosto na cadeira e pego meu celular para mandar uma
mensagem para Sage, qualquer coisa para ignorar todos eles e me distanciar
um pouco desta conversa. A mão de Atlas se desloca para meu joelho e ele
aperta minha perna de leve enquanto come, mas não tenta me perguntar por
que, de repente, parece que quero vomitar.
É gentil da parte dele.
Gryphon deixa a mesa assim que termina de comer, com o celular
grudado na orelha, soltando ordens bruscas para sua equipe a respeito de
rondas de vigilância. Nox demora um pouco mais para terminar, bebendo
durante todo o jantar e, quando sai, o choramingo de Brutus retumba sob
meu ouvido.
Gabe se debruça para beijar minha bochecha, só um roçar muito
suave de seus lábios em minha pele, antes de sair. Ele me avisou que iria
para casa ver como a mãe dele está. Sinto-me mal, pois ainda não conheci a
mulher, na verdade, nem sei nada sobre ela, mas parece que ele não quer
que a gente se conheça ainda.
Tento não pensar muito a respeito.
Atlas termina de comer e empurra o prato para longe de si, mas não
faz nenhuma menção de se levantar. Ele está esperando que eu converse
com North e, embora eu saiba que é o que ele está fazendo, forçar as
palavras a saírem de mim não fica mais fácil.
Respira fundo, Oli.
— Então, onde é que vou dormir hoje? Quem ganhou no zerinho ou
um? — Não consigo nem tentar ocultar o sarcasmo que pinga de minhas
palavras, e North me dá uma olhada que faz minhas entranhas se
contorcerem.
— Gryphon. É o único com quem você não teve contato ontem à
noite, então achamos que você podia começar com ele. Gabe sabe onde fica
o quarto dele, pode ir estudar no seu próprio quarto até estar pronta para
dormir.
Que gentil da parte dele me dar permissão. Que vontade de dar um
chute naquela boca! Dou meia-volta e retorno ao meu quarto batendo os pés
para, muito a contragosto, fazer exatamente o que ele disse. Acho ridículo
não podermos fazer isso na minha própria cama, e suspeito que isso tenha
mais a ver com convencer Nox a participar do que com qualquer outra
coisa.
Atlas me ajuda com meu dever de história e depois repassa o nosso
plano para o labirinto do TT. Nós sabemos que vamos ser jogados lá de
novo em breve e estamos planejando chegar ao centro primeiro há semanas.
Gabe se junta a nós quando volta da casa da mãe dele, sério e um
pouquinho irritado.
Ele está tão ansioso para vencer o labirinto quanto nós.
Às 22h, preciso aceitar a derrota e pedir a Gabe para me levar ao
quarto de Gryphon, já que preciso acordar às 4h amanhã para nosso treino.
Tudo bem faltar hoje, porque meu vínculo precisava disso, mas de jeito
nenhum Gryphon vai aceitar eu furar de novo.
Ainda mais considerando que o motivo é porque estou planejando
me tornar insone para evitar dormir na cama de qualquer um deles.
— Pelo menos, será Gryphon primeiro, você já dormiu com eles
antes, não? — murmura Gabe, enquanto entramos no elevador.
Sua escolha de palavras faz minhas bochechas queimarem, assim
como lembrar que meu dormitório todo o viu praticamente pelado e
presumiu que passamos a noite trepando como coelhos.
Quem dera.
— É que, na verdade, nenhum deles me quer em suas camas e estou
invadindo o espaço deles só porque meu vínculo não consegue me dar um
tempo e ficar de boa perto de vocês nem por um segundo — resmungo, e
ele escarnece, sorrindo e balançando a cabeça.
Ele me leva ao térreo e atravessamos a casa até os fundos, acho que
o mais longe possível do meu quarto. Há uma enorme parede de vidro com
vista para o jardim que eu nem sabia que existia e passo um instante
admirando a paisagem.
É muito bonita.
Gabe me observa por um segundo, então diz baixinho:
— Acho que você não precisa se preocupar com algum de nós não
te querer em nossas camas, Oli, e não estou falando de sexo. Só... relaxa e
durma um pouco. Gryphon não vai te morder.
Ele não me dá oportunidade de responder, apenas bate à porta e
dispara de volta pelo corredor. Faço um barulhinho irritado para ele, que
olha para trás e sorri para mim.
Cuzão.
A porta se abre e sou confrontada com a imagem de Gryphon
vestindo nada além de cueca boxer mais uma vez. Já vi tudo isso antes, mas
meu Deus, mesmo assim é de tirar o fôlego. Ele é musculoso da cabeça aos
pés, todo seu corpo bronzeado e sólido é absolutamente glorioso de se ver, e
meu vínculo fica todo animadinho dentro de mim.
Calma, garota.
A gente só vai dormir, caramba!
Estou o secando, mas ele só me olha de volta com uma sobrancelha
erguida.
— Está planejando usar essa roupa toda na cama?
Olho para a calça e blusa de moletom que estou vestindo e dou de
ombros.
— Faz diferença? São só seis horas, tenho certeza de que vou
sobreviver.
Ele balança a cabeça e abre caminho para eu entrar. Fica claro que
ele já estava na cama, um lado está bagunçado e só um abajur está acesso.
O quarto é menos luxuoso do que o meu, mas mais aconchegante que o
quarto minimalista de North. Tem uma colcha feita à mão na cama, antiga e
gasta, mas bem-cuidada, e uma fileira de botas alinhadas contra a parede do
armário. Sobre uma das cadeiras está a jaqueta dele e uma variedade de
armas jogadas, também há uma pistola e uma faca embainhada na mesa de
cabeceira.
Também tem um retrato de família em cima da cômoda, e tento não
ficar encarando a versão mais jovem e feliz de Gryphon sorrindo e sendo
abraçado pelo pai na foto. A irmã dele também está ali, ambos adolescentes,
e ela é uma cópia dele. Levo um instante para perceber que ele não tem
cicatrizes na imagem, seu cabelo está mais curto e seus olhos menos...
cautelosos.
Ele está feliz de verdade nela.
— A gente vai dormir ou bisbilhotar? — resmunga, e dou um pulo
para longe da foto. Ando até o outro lado da cama, aquele em que as
cobertas estão intocadas, e entro debaixo do cobertor.
Depois que Gryphon se deita do outro lado, ele apaga a luz e se
mantém no lugar. Bem que eu disse para Gabe, eu sabia que seria assim!
Passo mais uma hora revirando de um lado para o outro antes de,
por fim, apagar.

*
Acordo antes do despertador tocar, porque agora meu corpo já está
sincronizado com a programação dos nossos treinos. O corpo de Gryphon
está quente e rígido colado no meu na cama, sua perna enfiada entre as
minhas e o rosto enterrado no meu pescoço, como se ele precisasse tanto do
meu cheiro quanto eu preciso do dele.
Dói.
Meu peito dói com a crueldade desta situação, porque na noite
passada ele dormiu o mais longe de mim que o colchão permitiu, mesmo
assim, enquanto dormíamos, graças aos vínculos dentro de nós, terminamos
enrolados um no outro mais uma vez.
Sinto vontade de gritar e quebrar alguma coisa e, pela primeira vez
em semanas, não tem nada a ver com a névoa do vínculo.
Com cuidado, eu me solto dele e ando sem fazer barulho até o
banheiro para fazer xixi e me preparar para a árdua manhã de treinos que
me espera. Brutus está atencioso até demais, sai do meu cabelo e caminha
pelo banheiro, observando todos meus movimentos. Fico mais calma por
ele estar aqui, seus grandes olhos de vácuo vendo tudo e nada ao mesmo
tempo e, quando termino de me vestir e estou pronta para ir, consigo pensar
com clareza de novo.
Não me importo se todos eles me odeiam.
Gryphon está acordado e vestido, sentado na beira da cama quando
saio do banheiro. Ele mal dá sinais de notar minha presença quando é a sua
vez de cuidar das necessidades, e eu preparo minha música no celular para a
corrida matinal. Atlas me emprestou os fones de ouvido dele para que eu
pudesse usar para correr, e isso deixou a experiência suportável.
Quando Gryphon sai do banheiro, não espera por mim ou fala
comigo, só se dirige para a porta como se esperasse que o seguisse, e
porque não tenho outra opção, eu sigo.
Já que seu quarto fica no térreo, é um pouco mais fácil para eu
memorizar o caminho até a porta da frente. O ar da manhã está mais frio do
que há semanas, faz meus pulmões queimarem e meus dedos adormecerem
quase que de modo instantâneo, mas não adianta reclamar, então abaixo a
cabeça e aguento.
Gryphon define a velocidade e é brutal.
Não sei bem o que posso ter feito dessa vez para irritá-lo, estou aqui,
não estou? Mas quando chegamos na academia, mal estou conseguindo
conter o vômito. Não me sinto tão mal assim há meses, é como se todo meu
esforço para melhorar meu condicionamento físico tivesse sido inútil,
porque ele acabou comigo em uma corrida.
E ele mal está ofegando.
Odeio ele.
— Alongue por cinco minutos, depois vamos lutar — diz sem nem
olhar para mim, abrindo a academia e acendendo todas as luzes enquanto eu
viro uma poça no tatame.
Tiro o suéter que estou vestindo, então fico só com uma das regatas
de Gabe e short de corrida, depois começo a alongar meus músculos, como
se isso fosse me ajudar a sobreviver. Já sei que não vai e que meu ego, que
já estava frágil e ferido, está prestes a ser detonado com as críticas.
Mesmo assim, fico de boca fechada.
Ele também fica só de regata e short e me entrega uma garrafa de
água. Gryphon nunca fez isso antes e a aceito com um aceno breve de
agradecimento.
Meio que me dói admitir o quanto tudo isso é uma merda para mim.
— Sempre achei que North estivesse sendo muito severo te
chamando de pirralha, mas você está agindo como uma de verdade agora.
Engasgo com a água, cuspindo-a em cima de mim como uma
imbecil.
— Co-como é? Por que estou agindo como uma pirralha? Não
reclamei nem uma vez!
Ele inclina a cabeça, concordando que nesse ponto eu tenho razão,
mas insiste:
— Você precisava de algo e nós providenciamos. Ao invés de ser
grata por North estar se virando do avesso para te ajudar a evitar se
Vincular, você está fazendo bico.
Eu literalmente não tenho palavras para responder.
Não sobrou nenhuma.
Então, ao invés de responder, coloco a tampa de volta na garrafa e
me levanto, sacudindo as pernas e repassando as posturas que ele me
ensinou para que aprove. Ele continua onde está, agachado no tatame na
minha frente, e só passo para a próxima posição quando ele fica satisfeito
com a última.
Uso muito controle de respiração e técnicas de meditação para
clarear minha mente. Sem a névoa do vínculo ou o frenesi turvando minha
cabeça é mais fácil, graças a Deus, e, até ele se levantar e tomar posição
para praticar comigo, já estou calma de novo.
Ele passa a hora seguinte me jogando de um lado para o outro no
tatame.
Aprendi a cair como uma lutadora, como fazer para absorver os
impactos e rolar para retomar vantagem. Aprendi a distribuir meu peso de
maneira adequada e como usar o embalo do meu oponente. Aprendi a lutar
mesmo nas vezes em que fui superada, a continuar lutando mesmo quando
um homem três vezes o meu tamanho me prende no chão.
Então, quando estou exausta e já tomei uma surra, Gryphon decide
provar alguma droga qualquer, porque ele não consegue mesmo deixar de
me chutar quando já estou caída.
O corpo dele se joga no meu e me leva para o tatame, com meus
braços presos acima da cabeça e suas pernas prendendo as minhas, então
não tenho como me mexer ou recuperar controle da situação de forma
alguma.
Dou um grunhido e tento me mexer, mas não adianta, ele me deixou
à sua completa mercê.
Não gosto nem um pouquinho disso.
— Vou te contar tudo a respeito do meu dom, tudo a respeito de
todos os nossos dons, se responder uma pergunta minha antes.
Luto contra ele de novo, mas é como se uma parede de tijolos
tivesse caído sobre mim, impossível de mover ou de convencê-la a sair.
— Já sei o que vai perguntar, a resposta é não.
Ele bufa e balança a cabeça.
— Duvido, Vínculo. Me diga por que ser chamada de pirralha te
magoa tanto? O que não estou enxergando aí que te deixa tão chateada
assim?
Suas palavras me dá um frio na barriga e minhas bochechas coram,
mas talvez seja bom, talvez eu consiga pôr para fora um pouco da
frustração e da fúria que sinto pela forma como todos eles escolhem me ver.
Inspiro fundo, então deixo tudo sair:
— Talvez seja porque estou tentando o melhor que posso aqui.
Talvez seja porque fiz tudo, tudo, que North exigiu de mim e nenhum de
vocês reconheceu isso nem uma vez. Que inferno, ele não parou nem pra
me deixar comprar um caralho de Buscofem! Estou aqui todas as manhãs
sem reclamar. Vou para o TT sem reclamar. Vou aos jantares de Vínculo,
aulas e jantares do conselho e para as aulas idiotas de Nox sem nunca ter
tido escolha. Sei que todos vocês me odeiam pelo que fiz, sei disso, então
quando tive problemas com meu vínculo, não quis incomodar vocês com
isso...
— Mentira. Isso é mentira — ele me interrompe e há um contorno
branco em seus olhos, não forte o suficiente para eu ter certeza de que está
usando seu dom, mas sem dúvida quer dizer alguma coisa.
Que droga, espero que ele me nocauteie aqui para eu não precisar
mais ouvir isso.
Encolho os ombros.
— Não quis incomodar vocês, também não quis lidar com a
vergonha completa e com as manipulações de vocês me mandando
superar... Afinal, por que vocês me ajudariam? As únicas coisas com as
quais vocês me ajudaram até agora foram por controle, por que vocês
encontrariam uma solução para o meu problema que não envolvesse
Vincular?
— Mas foi o que fizemos, não foi? North passou o dia todo
interrogando Gabe e Bassinger sobre todos os sintomas da sua névoa do
vínculo e as coisas que vocês já tinham tentado até encontrar uma solução.
Você está agindo como se nós fossemos uns estupradores egoístas de
merda, e isso está muito longe da verdade, Vínculo.
Ele estica os braços para pairar sobre mim, e embora eu ainda esteja
presa no tatame da cintura para baixo, consigo fingir indiferença.
— Bom, isso também não é verdade, né? Já que estamos sendo
honestos aqui, Nox já me mostrou exatamente o quanto meus limites são
importantes para ele, por que eu deveria acreditar que você e North são
diferentes?
Ele fecha os olhos e quase me arrependo de tocar nesse assunto, mas
foda-se, é verdade. Só porque tive um pouco de escolha naquela situação,
mais do que Atlas acredita, inclusive, não quer dizer que Nox não tem culpa
com o que aconteceu.
Não posso confiar em nenhum deles.
— Se eu quisesse forçar o Vínculo com você, eu já poderia ter feito
isso uma centena de vezes nessa altura. Passei semanas dormindo na sua
cama no dormitório. Treino você todas as manhãs há meses, não tem
ninguém aqui para me impedir. Por mais que tenha sido difícil te deixar
inconsciente, eu consegui. Eu poderia te deixar desacordada em um instante
agora mesmo, o que é que está me impedindo? Talvez seja o fato de que eu
não sou a porra de um monstro.
Ele cospe a palavra em mim e Brutus decide que não está gostando
do tom dessa conversa, e coloca a cabeça para fora para rosnar sem fazer
barulho para Gryphon.
Gryphon não se apavora ao vê-lo, seus olhos apenas se deslocam e
registram o fato de que a criatura de Nox ainda não saiu de perto de mim.
Olho para ele, ficando um pouquinho vesga para conseguir enxergá-lo, e
aceno com a cabeça para trás para ele se esconder de novo. Estamos nos
conhecendo devagar e bem o suficiente para eu não precisar falar para que
ele entenda o que preciso.
Se Nox tirá-lo de mim, talvez eu fique louca.
Amo Brutus mais do que deveria.
Gryphon sai de cima de mim e fica de pé em um movimento ágil e
fluido que me dá uma inveja do caramba porque ele faz parecer fácil
demais. Preciso me levantar cambaleando como uma idiota sem
coordenação, ofegante e de cara vermelha.
Espero ele falar de novo, mas Gryphon só pega uma garrafa de
água, dá um grande gole e então a entrega para mim. A minha já acabou há
muito tempo, eu a drenei nos primeiros dez minutos, então aceito
murmurando obrigada e bebo tudo.
— Não sou um curandeiro. Gabe me disse que é isso que você acha.
Eu não estava curando você, nem ele, estava impedindo que vocês
sentissem dor. Não tem muito no seu cérebro que eu não possa manipular.
Posso te desacordar, tomar o controle dos seus pensamentos, parar suas
funções motoras... apagar suas memórias. A maioria dos Neuros tem uma
especialidade, mas nunca encontrei uma parte do cérebro em que eu não
consiga fazer estrago.
Nossa.
— Vivian disse que você é um ótimo líder de Equipe Tática, apesar
de não ter um dom físico, mas acho que você não está tão em desvantagem
assim.
Ele dá de ombros, apoia as mãos nos quadris e olha pela sala ao
nosso redor.
— Esse é meu dom primário. Meu incidental é outro.
Nossos olhos se encontram e, quando ele não desembucha logo,
gesticulo com uma mão para ele só desembuchar logo.
Ele bufa de escárnio, mas em seguida me olha nos olhos.
— Sei quando você mente. Sei quando qualquer um está mentindo
ou omitindo a verdade de mim.
Minha reação imediata é descrença e chego a torcer o rosto, já
pronta para repreendê-lo por essa baboseira, mas depois paro e penso a
respeito.
North sempre olha para ele em busca de confirmação.
Nox não o questiona.
Gabe já me disse “só uma profissional conseguiria enganar Gryphon
assim”.
Filho. Da. Puta.
Jogo as mãos para o céu e balbucio como uma idiota:
— Porra. Que perfeito, então você pode simplesmente manipular
todas as conversas que temos, pois você pode me fazer as perguntas certas e
descobrir tudo que quiser? Ótimo. Perfeito. Vou voltar pra mansão dos
Draven agora, para o quarto que me foi designado, para frequentar a
faculdade que me obrigaram e assistir as aulas que escolheram para mim.
Vou logo e aí vou viver a exata vida que vocês querem que eu viva até o dia
que todos nós vamos morrer por causa disso.
Seus olhos se estreitam para mim enquanto disparo em direção à
porta, e ele me segue.
— Vejo que você acredita nisso, mas não faz sentido nenhum.
Consigo sentir quanto poder você tem, mensurá-lo um pouco, pelo menos,
mas por que isso significa que estamos todos mortos? Por que a Resistência
te conhecia? Estive procurando nos dados da inteligência dos últimos cinco
anos, mas não tem nenhum sinal deles te levando, então quando foi que
você esbarrou neles?
Jesus.
Eles têm feito mesmo pesquisas sobre mim, não têm? Isso me causa
um pouco de pânico, mas se ainda não encontraram nada, duvido que haja
alguma prova do que aconteceu. Não me surpreende que a Resistência
tenha sido diligente em esconder todas as evidências a meu respeito.
— Se você acha que vou contar mais alguma droga pra você agora
que sei do que é capaz, é óbvio que está doido. Estou indo. Vou atrás de
uma banheira pra me afogar.
Ele agarra meu pulso para me impedir de sair enquanto tranca a
academia, então pega seu celular e digita uma mensagem antes de voltar a
guardá-lo no bolso.
Permaneço de forma obediente perto dele, olhando para a
vizinhança e para o sol das primeiras horas da manhã, que ainda está se
erguendo no céu. Gryphon inspira fundo e entrega meu suéter. Até esqueci
que tinha tirado.
— Nox não teria... levado as coisas mais adiante do que levou. Não
estou dando desculpas, vocês dois precisam resolver essa merda sozinhos,
mas não quero que fique apavorada por ter que estar perto dele.
Escarneço e respondo desanimada:
— Está se referindo a compartilhar a cama com ele em horários
previamente agendados? Mas nem posso falar nada. Acho que agora
estamos quites, certo?
Gryphon faz uma carranca.
— Nem um pouco, você mal deu um abraço nele.
Dou as costas para vestir o suéter de qualquer jeito, tentando ignorar
minhas mãos trêmulas.
— Bem, ele reagiu como se eu o estivesse atacando do pior jeito
possível, então perdão se interpretei errado.
— Ele tem... os problemas dele. Não é desculpa, só significa que
North e eu sabíamos que precisávamos tirar você de cima dele antes que o
vínculo dele interferisse. Um de vocês naquele estado já era difícil o
bastante, não conseguiríamos lidar com os dois.
Acho que ele confirmar que Nox tem problemas é tipo confirmar
que o céu é azul ou que o sol vai nascer de manhã. É óbvio e chega a ser
meio estúpido sequer dizer isso. Escolho minha música enquanto Gryphon
termina de trancar a academia, mas quando coloco os fones de ouvido,
Gryphon os tira e guarda no bolso dele para eu não poder apenas enfiá-los
de novo na orelha e ignorá-lo.
Quando abro a boca para discutir, ele me interrompe:
— O pai de North e Nox tinha as criaturas de pesadelo. Ele era
forte, Nível Superior, mas só tinha esse dom. Era o suficiente para ele ser o
Favorecido mais poderoso de sua época.
Ele começa o caminho de volta em um ritmo muito mais lento do
que antes e consigo acompanhar suas passadas longas com facilidade.
Aceno, mas apenas continuo escutando o que ele tem a dizer.
— A mãe de North era uma Elemental. Ninguém esperava que a
combinação entre eles resultaria no que North é... é por isso que ele tem
tanta influência na comunidade, porque um homem com três habilidades,
todas de Nível Superior, é aterrorizante para todos. Ele tem as criaturas de
pesadelo, assim como Nox, só que um pouco mais... violentas. Então tem o
toque mortífero. O que é autoexplicativo. Se ele quiser, pode matar
qualquer um em quem tocar.
Uma gota gelada de pavor escorre pela minha coluna. Isso me
parece um pouquinho familiar demais, um pouquinho semelhante demais a
mim para o meu gosto, mas Gryphon não olha na minha direção ao
continuar:
— Não sei qual dos dois dons é primário e secundário, porque um é
tão forte quanto o outro. O incidental é que ele consegue descobrir a causa
da morte de alguém. Assim como o outro, através do toque. É útil e até esse
tem mais poder do que a maioria recebe com o dom primário.
Ele passa os olho pela rua silenciosa e acena para um vizinho que
está entrando no carro, longe demais para ouvir nossa conversa. Dou uma
olhada, mas tem coisa demais acontecendo agora para eu prestar atenção
nos detalhes.
— A mãe de Nox era uma Neuro, como eu. Ela conseguia
manipular o sistema límbico, basicamente ela conseguia forçar emoções nas
pessoas. Uma arma poderosa, se usada da forma correta. Nox tem os
pesadelos, o pavor, e ainda está tentando entender os mecanismos do seu
dom incidental. Da última vez que falamos a respeito, sei que ele estava
perto de desvendá-lo, mas então te encontramos e ele mal falou com
qualquer um de nós desde então.
Pigarreio.
— O que exatamente é “o pavor”?
Gryphon estala os dedos de forma distraída.
— Você já se sentiu tão mal que alucinou? Viu coisas no escuro que
na verdade não estavam lá, só porque seu cérebro estava trabalhando contra
você? É mais ou menos assim.
Jesus Cristo, caralho. O apelido de monstro está fazendo um pouco
mais de sentido agora. Não que eu pense isso de qualquer um deles, mas
Favorecidos poderosos já são o suficiente para deixar as pessoas nervosas,
mas com esse toque diferente de poder que eles têm?
Aterrorizante.
— Gabe vai te mostrar o dom dele. Ele já conseguiu autorização
para você sair à noite e ver. É provável que você já sabe tudo sobre os
Bassinger e seus poderes, já vimos o que Atlas pode fazer durante o TT. Há
muitos... motivos pelos quais nosso grupo de Vínculos deixa as pessoas
ansiosas. Um Favorecido poderoso é uma coisa, mas seis? Seis que vão se
desenvolver e compartilhar poder, trabalhar juntos e formar uma família? O
conselho está pressionando muito North por isso. Tentando dar um jeito de
nos neutralizar sem dizer descaradamente que é isso que estão fazendo.
Meu coração acelera descontrolado só de pensar.
Quando chegamos na entrada de carros da casa, Gryphon para e
olha para a mansão. Ele coça o queixo por um instante, seu rosto está mais
sério do que nunca, e isso não é pouca coisa, porque ele, em geral, é do tipo
silencioso e rabugento.
— E aí tem você. Com tanto poder que a Resistência disse que
estava “vazando de você” mesmo enquanto você estava o ocultando. Foi o
que os estudantes levados com você disseram. Se nós não conseguirmos
descobrir como nos dar bem e fazer as pazes, então as coisas vão ficar
muito piores para todos nós.
12

Atlas está esperando por mim em minha cama quando volto ao meu quarto
para me arrumar.
Ele já está vestido e pronto, e felizmente parece estar muito melhor
do que ontem. Sorrio para ele a caminho do banheiro e ele segura minha
mão para me puxar contra seu corpo.
— Está com cara de quem dormiu bem — murmura no meu cabelo,
eu encosto o nariz em seu peito para inspirar seu cheiro.
— Esse é seu jeito gentil de dizer que nos últimos tempos tenho
parecido uma pilha de cocô? Valeu. Não, falando sério, me sinto melhor,
sim. Foi bom mesmo ter começado com Gryphon, já dormi com ele antes, e
ele é ameaçador de um jeito silencioso, ao contrário dos outros dois que são
uns cuzões.
Atlas ergue uma sobrancelha para mim e se afasta para me olhar
com um sorrisinho torto no rosto:
— Você já tinha dormido com ele? Como foi que perdi isso?
Fico corada, mas só porque está falando como se tivesse sido algo
mais do que foi.
— Ele me ajudou com uma dor e depois meio que... nunca mais
deixou meu quarto depois daquilo. Eu acordava e ele estava lá, todas as
manhãs. Nunca combinamos isso nem nada, ele apenas continuou
aparecendo e eu não queria falar sobre isso. Ele é... ele é um cara legal.
Legal de verdade, só que gosta de brincar de advogado do diabo, então acho
difícil não ter reservas com ele.
Atlas concorda com a cabeça, então me solta para eu poder me
arrumar e não atrasar nós dois para as aulas. É bom conseguir me vestir em
uma roupinha bonita sem precisar colocar tantas camadas quanto for
possível dos cheiros deles. Quando saio do meu closet de vestido e minhas
botinhas, com ondas no cabelo e um pouco de maquiagem, Atlas sorri para
mim e aperta o peito em um gesto dramático.
— Você não pode fazer isso comigo, Doçura. Não posso passar o dia
todo com você gostosa pra caralho desse jeito só para te perder para outro à
noite.
Ele diz isso sorrindo, então sei que só está flertando, mas sinto um
friozinho no estômago ao pensar em com quem vou dormir hoje à noite.
Preciso conseguir esse cronograma... para ontem.
Ele tranca a porta do meu quarto por mim ao sairmos, guarda a
chave na minha bolsa e segura minha mão enquanto andamos juntos até a
garagem. Gabe nos encontra lá embaixo e, quando ergue os olhos do celular
para me olhar, seu sorriso oscila um pouco antes de voltar maior ainda.
— Finalmente, um vestido em que posso te admirar sem me sentir
um merda.
Sorrio para ele e dou uma voltinha, fazendo a saia rodar, e me sinto
gata pra caralho nesse vestido com os olhos dos meus dois Vínculos me
secando. Meu ego precisa disso hoje e, quando Gabe abre a porta do carro
para mim, ele se curva e me dá um beijo no rosto enquanto deslizo para o
banco.
Atlas só espera o suficiente para ter certeza de que estamos todos
com os cintos afivelados, depois sai da garagem para a rua com o motor do
carro roncando alto, já que ele não está nem aí para a vizinhança ou por
manter a paz com a associação de moradores.
É bem provável que North vai subir nas tamancas por causa disso
mais tarde, e tenho certeza de que Atlas está contando com isso.
— Quando vou ver esse tal vestido que usou antes? Você não me
mandou foto. Sou um Vínculo muito ciumento, Doçura.
Reviro os olhos para ele.
— Nunca, não tirei fotos e depois sangrei nele todo. Joguei no lixo
no instante em que voltei para o dormitório.
Gabe faz uma careta, mas sei que não tem nada a ver com a menção
da minha menstruação e tudo a ver com North se recusando a parar o carro
por mim.
É possível que eu tenha reclamado disso por muito, muito tempo.
Sem dúvida ele está revivendo o trauma de quando descrevi cada sensação
e imagem daquela noite.
Gabe pigarreia quando o celular de Atlas vibra no porta-copos.
— North tirou algumas. Posso parar de me sentir culpado de tê-las
no meu celular agora, ou ainda estamos furiosos a respeito?
Atlas arqueia uma sobrancelha e confere a foto, de olho no
semáforo, e quando dou uma bufada, ele me entrega o celular para eu ver.
Não vi North tirar a foto.
Ele deve ter mandado algum funcionário seu fazer isso, mas foi no
restaurante logo que chegamos, minha cabeça está inclinada um pouco para
baixo e parece que estou fazendo pose, tipo uma modelo profissional ou sei
lá o quê, quando na realidade eu estava tentando conferir a barra de forma
discreta. Eu estava certa de que tinha pisado nela e rasgado o vestido, e
naquele momento da noite eu ainda estava me esforçando para ser
cuidadosa. Eu estava ciente do quanto um vestido como aquele custava e
não queria que North me acusasse de ser uma interesseira de novo.
Estou muito bonita na foto.
De alguma forma, ela faz eu parecer mais velha, mais refinada, uma
versão de quem eu poderia ter sido se minha vida não tivesse ido para o
bueiro na adolescência. Pareço a versão de mim de quem o conselheiro de
fato teria gostado.
— Merda. A gente vai ter que apagar essas fotos, né? — Gabe
murmura no banco de trás, e lhe dou uma olhada por cima do ombro. Ele
está me observando com tanta atenção que tento tirar sei lá que expressão
está vendo no meu rosto.
— Não. Não tem problema. É só que não estou acostumada a ter
essa aparência. Eu realmente não sou o tipo de garota que alguém leva em
“jantares do conselho”. Não gosto de conversa fiada e manobras políticas
acompanhados de comida cara pra caralho. Acho que North deu azar.
Atlas zomba e muda de marcha, costurando pelo tráfico como se
fosse a coisa mais simples do mundo.
— North Draven que se foda, ele é um babaca pretensioso e precisa
te dar um tempo, senão nós vamos embora. Estou confiante que a gente
consiga escapar dele por uma ou duas décadas inteiras se nos unirmos para
isso. Sawyer tem algumas boas ideias quanto a isso.
Gabe olha feio para ele, mas dou risada, porque é claro que Atlas
tem trabalhado na surdina para nos tirar daqui. Como se eu tivesse duvidado
disso em algum momento.
Estacionamos e encontramos nossos amigos já esperando por nós,
com copos de café nas mãos que fazem eu querer matar alguém antes de ver
a bandeja na mão de Felix.
Quando acho que não consigo gostar mais desse homem... ele é a
porra de um docinho.
Sage sorri e acena para mim pela janela, e tudo que vejo é o fato de
que ela está segurando a outra mão de Felix e que está em júbilo neste
momento.
Fico aliviada pra caramba de ver que ela parece feliz, para variar,
que a garota triste e solitária com quem fiz amizade lá no início
desapareceu. Saio do carro antes que Gabe consiga abrir minha porta,
ignorando o rosnado dele, e a puxo para um abraço rápido. Felix me
cumprimenta com um sorriso pretensioso e Sawyer revira os olhos para
todos nós, o que eu presumo ser por ele ainda estar chateado com o ano
sabático que Gray está tirando graças aos pais.
— Então o... é... parece que dividir a cama está funcionando? —
Sage murmura no meu ouvido, tentando não ser ouvida por nenhum dos
rapazes barulhentos que nos cercam, porque nenhum deles faz a menor
ideia de como ser discreto.
Faço que sim e entrelaço nossos braços conforme andamos,
deixando os rapazes em questão entrarem em sua posição ao nosso redor
como uma pequena bolha de proteção.
— Estou me sentindo um ser humano de novo, graças a Deus. Não
dá pra acreditar no quanto meu vínculo está sendo uma vagabundinha. O
seu também é assim? Ou isso é um lance de Central pelo qual preciso brigar
com o universo?
Ela ri do meu drama, aceitando o beijo de Felix em sua bochecha
com um leve rubor enquanto ele sai em direção às suas próprias aulas. Ele
está em todas as disciplinas introdutórias de Medicina dos Favorecidos e
não sinto inveja dele, nem um pouquinho.
Já vi a lista de trabalhos dele.
Credo, os meus já são bem ruins.
— O meu não é tão... insistente, mas também reclama bastante.
Menos, agora que estou passando tempo com Felix. Acho que ele enfim
entendeu que uma vida com Riley está fora de cogitação e está me dando
um tempo.
Arg.
Não quero pensar naquele cuzão agora, então mudo de assunto.
— E seus pais vão te banir dos jogos de futebol agora? Eu estava
super esperando você estar em prisão domiciliar. Estava pronta para juntar
forças com Felix pra te resgatar.
Ela dá uma risada quando chegamos na sala de aula e dá uma olhada
ao redor, ainda cautelosa, assim como estamos todos agora que o mundo
provou que é tão perigoso quanto pode ser, com a Resistência solta por aí.
— Como você sabe, meu pai está um pouquinho perdido de amores
por você. Tem brigado muito com Maria por sua causa, ela ainda está
irritadinha por causa de North e... aquilo tudo. Ele sabe que nós sermos
amigas está me mantendo mais segura do que eu estaria sozinha, então
começou a manifestar a opinião dele de forma mais aberta. Mamãe está
tentando impedi-lo de se vingar de Riley. Ele também está mais irritado
com aquela situação. A vida está ficando mais complicada.
Nunca concordei tanto com algo na minha vida, porque, aham, está
tudo complicado pra caralho aqui e não acho que vá melhorar tão cedo.
*

Depois que minhas aulas acabam, vou para o café grata por ter mais
um turno vespertino mais curto.
Visto meu uniforme nos fundos antes de assumir meu papel com
naturalidade. Gloria comenta que meu humor está ótimo e Kitty revira os
olhos para mim quando sou um pouco gentil demais com todos que entram,
mas estou tão aliviada por enfim estar me sentindo normal de novo que só
ignoro.
Gabe e Atlas entram uma hora antes de fechar, pedem cafés e depois
fazem seus trabalhos juntos em uma das mesas. Eles estão rindo e
conversando, sendo legais um com o outro de verdade, e isso faz meu
vínculo zumbir com contentamento.
Agora sei que vou vibrar de felicidade por aí se algum dia conseguir
fazer todos os cinco viverem em harmonia e me tolerarem.
Depois que fechamos e já limpei tudo, troco de roupa de novo e dou
tchau para Gloria e Kitty nas portas dos fundos, em seguida dou a volta até
a frente para me encontrar com Atlas e Gabe. O Hellcat está estacionado na
ponta, com multas de estacionamento enfiadas no limpador de para-brisa,
mas sei que Atlas não dá a mínima para esse tipo de coisa.
Ele está conversando baixinho com Gabe, que está, para minha
surpresa, apoiado em sua moto e com a jaqueta de couro jogada sobre os
ombros. Ele não pilota desde que Atlas chegou, prefere que a gente ande no
mesmo veículo, e suspiro decepcionada. Ele deve estar indo visitar a mãe
de novo, ou talvez fazer algo para North. De qualquer forma, não vou
passar a noite com ele.
Meu vínculo grunhe de desgosto, mas o controlo mais uma vez,
forçando-o à submissão porque, para mim, já deu de chilique.
Gabe vira o rosto ao ouvir meus passos e me oferece o capacete
extra.
— Vai ficar comigo hoje. Vou te levar para sair.
Ah.
Pego o capacete e lhe dou um olhar questionador, mas ele só me dá
um sorrisinho, entrelaça os dedos com os meus e olha para Atlas de um
jeito muito ameaçador. A essa altura, eu já devia estar acostumada, eles
passam metade do tempo que ficam juntos atirando pequenos insultos e
tiradas um para o outro. Mas se uniram tão bem durante meu colapso, que
achei talvez tivéssemos superado essa fase.
Parece que não.
— Vai me levar a um encontro? Graças a Deus usei o vestido.
Ele ri e encolhe os ombros.
— Acho que podemos chamar de encontro, mas calça jeans teria
sido uma escolha mais segura. Mas tudo bem, a gente dá um jeito. Além
disso, sem dúvidas vai me ajudar a vencer.
Vencer?
Eu o acompanho até a moto e olho de novo para meu vestido,
consternada. Bem, na verdade, dá para fazer isso se eu erguer a saia um
pouquinho. É comprida o suficiente para me cobrir se eu ficar pertinho de
Gabe e acho que não vou mostrar a bunda para ninguém.
Atlas balança a cabeça para Gabe e ralha:
— Deixe-a ir para casa comigo se trocar.
Dou risada dos dois e seguro o braço de Atlas.
— Eu consigo, será que dá pra você só... só ficar parado aí e me
cobrir quando eu subir? Não quero que ninguém veja minha calcinha.
Gabe geme baixinho e monta na moto, enfiando o capacete na
cabeça para não ter que lidar com meu atrevimento, então Atlas oferece o
braço para me ajudar a subir atrás dele. É estranho e um pouquinho
constrangedor, pois ele nem tenta desviar o olhar, seus olhos queimam
minha pele como se ele estivesse me provocando.
Exibo um monte de pele até me acomodar com o corpo colado em
Gabe por trás. Quando coloco meu próprio capacete, Gabe dá a partida e
acena para Atlas o tchauzinho mais sarcástico da história.
Esse é o clássico Gabe convencido, que bom tê-lo de volta.
O vento está frio em minhas pernas e me aconchego mais juntinho
de Gabe. Quando paramos no semáforo, ele esfrega minhas panturrilhas
com as mãos, segurando a moto em pé apenas com as pernas, e fico todinha
arrepiada por ter sua pele deslizando na minha. Estremeço e quase imploro
por mais ali mesmo, no meio da rua com todos os carros ao nosso redor.
Meu Jesus.
Saímos do meu perímetro e meu cérebro se recorda do que Gryphon
disse hoje de manhã. Gabe conseguiu permissão com North para me
mostrar seu dom, então seja lá aonde estamos indo, ele vai mudar de forma.
Não sei bem o que mais posso ver do seu lobo, já dei uma boa
olhada nele quando a Resistência invadiu o campus, mas a ideia de termos
uma noite tranquila juntos soa perfeita pra caramba.
Vamos até os limites da cidade e entramos no pequeno bosque, com
árvores alinhadas de cada lado da estrada. Tem menos carros vindo nessa
direção e, enquanto seguimos na estrada, assistimos o sol se pôr. Quando
Gabe sai da rodovia e entra em uma pequena estrada lateral, não estou
esperando grande coisa.
Mas quando chegamos a um pequeno distrito industrial, fico
chocada com a quantidade de carros aqui. Eu estava esperando algo mais
tranquilo e isolado, e quando Gabe para bem no limite mais distante do
estacionamento e desliga o motor, desço da moto devagar.
Tiro meu capacete, então observo Gabe passar uma perna por cima
da moto em um único movimento suave e tirar a jaqueta para colocá-la em
mim. É grande demais no meu corpo, mas é quentinha e tem o cheirinho
dele, então me aconchego dentro dela e gosto do riso rouco que ele solta ao
olhar para mim.
Ele estende a mão em um gesto inseguro para pegar a minha,
entrelaçando nossos dedos, e solta o ar aos poucos pela boca.
— Eu deveria ter perguntado mais cedo... como seu vínculo está
hoje? Porque isso que vamos fazer é seguro, mas se não estiver se sentindo
disposta, podemos voltar da próxima vez.
Franzo o cenho, ainda sem entender o que diabos está acontecendo
aqui, mas dou de ombros.
— Estou bem. Entre a noite passada e todo o bullying que venho
fazendo com meu vínculo, estou sob controle.
Seus olhos deslizam para meu peito, como se ele pudesse ver meu
vínculo dentro da minúscula caixinha metafórica em que o enfiei, e faz uma
careta.
— Sinto muito que esteja assim. Achei que fosse difícil para todos
nós, mas, pelo menos, o meu vínculo não é homicida.
Chego a roncar pelo nariz ao debochar dele, sou uma dama tão
refinada, mas não consigo evitar cutucá-lo.
— Como exatamente é difícil para vocês? Vocês estão todos indo
muito bem, obrigada.
Seus olhos fervem enquanto aquele mesmo olhar felino retorna, e
quando se inclina para mim, sua voz parece um ronronado:
— Bom, neste momento, tudo em que consigo pensar é em rasgar
esse vestido todo, te empurrar contra essa parede com tanta força que você
mal consiga respirar e depois assistir você se contorcer no meu pau.
Enquanto você estava trabalhando, eu queria te jogar em cima do balcão e
te chupar toda, só pra todo mundo lá saber que você é minha. Passo o tempo
todo discutindo com Atlas porque meu vínculo quer te provar que sou
melhor para você do que ele. Não é tão ruim com os outros porque cresci
com eles, mas com Atlas? Porra, meu vínculo quer rasgar a garganta dele só
pra vê-lo sangrar aos seus pés e se certificar de que você goste mais de
mim.
Eita.
O quê?!
Balbucio por um instante, as palavras me escapam e não voltam até
ele estar me conduzindo para dentro do prédio.
— Desde quando? Desde quando você pensa sacanagem comigo?
Porra, não fala assim mais, agora o meu vínculo está pensando a mesma
coisa!
Ele nem responde, só me dá um sorrisinho sem vergonha e me
conduz pela construção que, para minha surpresa, está bem movimentada.
O armazém com certeza é abandonado, tem maquinários sujos e
velhos largados por todos os lados, mas deve ter umas cem pessoas
espremidas aqui dentro. Há um enorme círculo improvisado pintado no
chão, o amarelo se destacando no concreto, e Gabe aperta minha mão de um
modo gentil ao me levar ao redor dele. Quando chegamos do outro lado,
dois caras entram no círculo vestindo apenas shorts.
A multidão está gritando insultos e zombarias para eles, e os todos
os sons ecoam pelo espaço fechado até o barulho ser ensurdecedor.
Aperto os dedos de Gabe para chamar sua atenção e ele desliza a
mão livre pelo meu braço em um gesto tranquilizador. Mas seus olhos
continuam fixos no ringue e nós assistimos os caras começarem a lutar.
Começa como qualquer uma de nossas sessões de TT. Corpo a
corpo, nada de especial, mas basta um único gancho de esquerda no rosto
para os primeiros sinais de que eles não são caras normais começarem a
aparecer.
São Favorecidos e ambos são metamorfos.
Fico um pouco tensa quando os dois rosnam, sons confusos que
parecem de dor, a princípio humanos, mas que terminam naquele tipo
selvagem produzido por lobos caçando sua presa conforme se transformam.
Pelo brota através das peles e ouço seus ossos quebrando à medida
em que mudam de forma, seus olhos brilham e, de repente, a transformação
está completa.
É incrível de se ver mesmo já tendo assistido Gabe se transformar e,
quando eles disparam um sobre o outro, rosnando e batendo suas
mandíbulas cheias de dentes afiados, preciso controlar minha respiração em
uma tentativa de impedir o meu vínculo de entrar em ação. É tudo tão
violento e brutal, muito pior do que qualquer coisa que já assisti antes, e
quase suspiro aliviada quando uma sirene ecoa pelo espaço sinalizando que
a luta acabou.
Os caras se transformam de volta, completamente pelados nessa
droga, cobertos de ferimentos e sangue.
Estou pronta para dar meia-volta e sair de fininho pela porta, já vi o
suficiente por uma noite, mas então Gabe abre um sorriso para o cara dentro
do ringue e acena com a cabeça em desafio.
Eu devia ter imaginado.
É bizarro, mas meu vínculo não está surtando ao imaginar Gabe lá.
Não, ele fica excitado. Percebo que não confiava que esses caras fossem
manter a luta dentro do ringue e me deixar de fora dela, mas o meu
Vínculo? Sei que ele vai limpar a porcaria do chão com quem for imbecil o
suficiente de entrar ali com ele. Não tenho a menor dúvida, ele é meu, então
vai ser magnífico pra caralho no ringue.
Tento tirar o sorrisinho do meu rosto, mas tenho certeza de que falho
porque todos os caras ao nosso redor ficam incomodados e, com toda
certeza, eles me reconheceram. Sei muito bem que todos na comunidade de
Favorecidos sabem quem sou e conhecem o mistério sobre o que sou capaz
de fazer.
Assisto Gabe se despir, entregando suas peças de roupa para mim
até estar pelado. Faço questão de não olhar para baixo, meu vínculo já tem
muita imaginação sem ajuda, e assim que pisa dentro do ringue, ele muda
de forma.
No mesmo instante, sei qual é a diferença do poder dele para o do
restante desses caras, e não é o fato de ele ser maior. Ele é, mas não é isso.
Ah não.
Quando a Resistência apareceu, ele se transformou em um lobo
cinzento. Um belo, enorme e cruel lobo.
O animal para o qual estou olhando agora é um elegante leopardo
preto.
13

Gabe não apenas derrota o lobo no ringue.


Ele enfrenta cinco metamorfos diferentes, um pior que o outro, e sai
de lá sem um único arranhão. O público está gritando e clamando por
sangue e, quando ele derruba o último cara, fico com um pouquinho de
medo de eles invadirem o ringue e atacá-lo.
Bem, fico com medo até encontrar os olhos de Kieran do outro lado
do armazém e perceber que este não é um ringue de luta clandestino
qualquer. Tem membros da Equipe Tática à paisana por todos os lados e
fica óbvio que eles não estão aqui só para cuidar de nós. Ninguém na
multidão se incomoda com Kieran ou com seus homens, então é claro que
estão sempre por aqui.
Gabe anda até mim em sua forma de pantera, seu corpo felino é
elegante e poderoso ao abrir espaço entre as pessoas sem esforço.
Não esperava que ele mudasse de forma bem ali.
Também não estava esperando ficar de cara com ele completamente
nu, caramba. Sem nada da cabeça aos pés, com o peito ofegante enquanto
recupera o fôlego, e os traíras dos meus olhos começam a descer pelo corpo
muito esculpido. Será que quero me provocar dando uma olhada no pinto
dele? Porra, não sei se vou conseguir me controlar. Brutus bufa por baixo da
minha orelha ao perceber meu coração disparado, soprando um pouco o
meu cabelo, e inspiro fundo pela boca para me pôr sob controle mais uma
vez.
Gabe ri de mim enquanto tira a cueca de minhas mãos e a veste
antes que eu possa tomar a decisão de olhar ou não.
— Meu pinto não morde, Vínculo. Eu também não, só se você pedir.
Quero retrucar, só para baixar a bola dessa energia presunçosa dele,
mas não consigo. Não me sobrou nada a dizer, e tudo que consigo soltar é
um:
— Olha, você precisa vestir uma calça. Essa cueca não é suficiente.
Ele ri da minha cara, claramente ainda chapado com a adrenalina da
luta, porque ele se abaixa até nossos olhos estarem na mesma altura:
— Está pronta para implorar, Vínculo? Acho que estou pronto para
ouvir.
Odeio ele.
Não odeio de verdade, mas meus olhos perdem o foco e sinto um
pulsar constante entre minhas pernas que está sendo difícil ignorar.
— Você é um babaca. Que parte de “a gente não pode completar o
Vínculo” você tá achando difícil de entender?
Ele se endireita com um sorrisinho e veste a camiseta, enfiando os
braços nas mangas em um movimento muito elaborado que sinto que é para
me provocar, porque posso jurar que estou vendo cada maldito músculo do
seu corpo contrair. O sorriso lupino que ele joga na minha direção só prova
que ele sabe muito bem o que está fazendo. Atiro a calça jeans nele, que a
pega com uma risada parecida com um uivo, e me recuso a olhá-lo de novo
até estar vestido.
Gabe me leva para fora do armazém, ambos ignorando todos os
olhos da multidão em nós enquanto as pessoas saem do nosso caminho.
Kieran acena para Gabe quando passamos por ele, mas não nos segue,
provando minha teoria de que eles estão sempre aqui e não vieram só nos
vigiar.
Começo a tirar a jaqueta dele, mas Gabe segura as lapelas e a fecha
mais em meu corpo, subindo o zíper contra o frio da noite. Ele entrelaça
nossos dedos e me conduz até sua moto, tirando as chaves do bolso com um
sorrisinho.
— Não consigo evitar. Agora que sei que você me quer tanto quanto
eu te quero, ver suas reações é viciante demais. Elas são boas pra caralho,
Oli. Sinto o cheiro do quanto você me quer. Acha que consegue controlar o
Vínculo se eu te chupar em cima da minha moto?
Ele monta enquanto fala, em um movimento fácil e costumeiro, e
nem consigo pensar numa resposta ao montar atrás dele. Que bom que não
tem mais ninguém por perto, porque nem tento me cobrir ou ser recatada,
apenas puxo o vestido para cima e acabo logo com isso.
Colo meu corpo no dele e meus mamilos rígidos se esfregam no
couro grosso da sua jaqueta. Porra, acabo me esfregando um pouquinho
atrás dele, ofegando de leve enquanto tento convencer meu vínculo a se
controlar e me deixar ter esse momentinho inofensivo com ele.
Gabe geme, suas pernas ficam tensas quando me esfrego nele.
— Caralho, a gente devia arriscar. Preciso saber que gosto você
tem...
Não, não aguento mais.
Cubro sua boca com a mão, puxando a cabeça dele um pouco para
trás com a força do gesto, e consigo sentir o sorrisinho presunçoso dele na
minha palma. Ele vira a cabeça ainda mais para trás, e depois de assisti-lo
lutar tantas vezes, fica tão óbvio para mim que ele não tem nenhuma
preocupação, sentado aqui nesta moto flertando e deixando sua garganta
exposta para mim.
É a coisa mais inebriante que um homem já fez para mim e acho que
ele nem está ciente disso.
Pigarreio e afasto a mão de sua boca, deslizando os dedos distraída
por seu pescoço porque ainda não quero perder o contato com ele, e uso a
primeira coisa me vem à mente para desviar o foco do quanto estou louca
para sentir seus lábios em mim.
— E aí, em quantos predadores você pode se transformar, Vínculo?
Quantas criaturas com presas enormes você está escondendo aí embaixo
dessa pele toda?
Ele solta o ar pela boca e coloca o capacete, afivelando-o.
— Todas. Se a criatura existe, consigo me transformar nela.
— Então você pode se transformar em qualquer coisa? Qualquer
coisa?! Porra, que demais! Me mostra algum outro! Nossa, isso é tão
massa!
Ele ri de novo e dá a partida, ergue o apoio e dispara pela pequena
estrada cheia de curvas que nos leva de volta para a rodovia. O clima está
muito mais agradável com a jaqueta dele, e deixo o vento frio atingindo
minhas pernas acalmar um pouco da minha libido. Por mais que eu goste
dos nossos joguinhos, não consigo aguentar muito. Ainda mais porque
temos uma noite toda a nossa frente para suportar e não quero acordar por
baixo dele com o vínculo cheio de tesão dentro de mim passando as unhas
nele.
Ou quero?
Porra, não, Oli. Não queremos isso, não importa o quanto ele
pareça saber usar muito bem aquela boca.
Eu me pergunto se consigo me tocar no chuveiro antes de ir para a
cama sem ele perceber, só para me acalmar um pouco.
Não tentei isso desde que comecei a morar na mansão. Parecia
estranho gozar na casa de North com todos os meus Vínculos dormindo sob
o mesmo teto, e desde que a Resistência me levou, Gabe e Atlas passam o
tempo todo comigo.
Talvez eu só precise aliviar um pouquinho da tensão sozinha para
melhorar um pouco.
Quando paramos na garagem, já sei que isso não daria certo, eu iria
me deitar com ele na cama depois e meu vínculo ficaria todo serelepe para a
segunda rodada.
Gabe desliga o motor e tira o capacete.
— No que está pensando? Você se esfregou em mim no caminho
todo pra casa.
Droga.
— Estava pensando que faz tempo que não gozo e que talvez
precise pegar seu chuveiro emprestado. Ou me trancar no banheiro por uma
hora antes de irmos pra cama.
Pelo visto, essa não era a coisa certa a dizer.
Às vezes me esqueço de que todos eles são o dobro do meu
tamanho, porra, ou talvez o triplo, e Gabe simplesmente enfia as mãos por
baixo da minha bunda para me erguer e me tirar da moto ao desmontar, e
minhas pernas envolvem sua cintura enquanto ele me segura contra suas
costas.
Dou um gritinho de indignação, mas ele só dá risada e me joga para
cima até eu estar de cavalinho nas costas dele, e suas artimanhas me fazem
cair na gargalhada.
— Não vou dividir você pelo resto da noite, então você vem para o
meu quarto. Bassinger vai ficar com você amanhã e nós dois sabemos que
ele não vai me deixar chegar a menos de três metros de distância de você na
noite dele, então se quer gozar no chuveiro, vai ter que ser no meu.
Passo os braços em volta de seus ombros e aproveito o passeio,
rezando por tudo que é bom e sagrado para a gente não encontrar ninguém
no caminho para o quarto dele. Também não faço ideia de onde o cômodo
fica, então não posso abaixar o rosto e me esconder de todos.
Pegamos o mesmo elevador que, em geral, usamos para ir ao meu
quarto, mas ele aperta o botão do segundo andar. Enterro o rosto em seu
pescoço e inspiro fundo seu cheiro, o ar frio da noite e só um pouquinho das
lutas ainda estão se prendendo a ele, e quando meus olhos voltam a se abrir,
encontro os olhos de Nox no fim do corredor, bem no momento em que as
portas se fecham.
Eu gostaria de poder ver sua cara sem uma careta destinada a mim
uma única vez, porque isso acaba com meu bom humor de um jeito rápido
pra caramba.
— Ignora, Vínculo. Ele vai... superar essa merda em algum
momento. Talvez.
Escarneço e me sacudo para tentar descer, mas seus braços seguram
minhas pernas mais apertado.
— Não vai, não. Acho que a única parte de Nox que vai me aceitar é
Brutus e, com toda sinceridade, por mim tudo bem.
Gabe grunhe quando as portas voltam a se abrir, em seguida dispara
pelo corredor em uma velocidade absurda e, por nunca ter estado nesse
andar antes, ao menos acho que não, quando ele vira duas vezes, sei que de
jeito nenhum vou conseguir sair daqui se houver alguma emergência esta
noite.
Eu preciso mesmo pedir um mapa para North.
Quando paramos em uma porta, Gabe pega sua chave, destranca,
abre a porta com um empurrão e estende o braço em sinal para eu entrar
antes. Muito cavalheiresco e meigo da parte dele, considerando a sem-
vergonhice que saiu de sua boca a noite toda.
O quarto é exatamente o que eu esperava do quarto de Gabe. Um
monte de porcarias de futebol e de esportes por todos os lados, a cama
muito bem-arrumada, o que deixa óbvio que alguma das empregadas passou
por aqui, e suas roupas estão transbordando do armário. Há uma televisão
enorme na parede com um videogame embaixo, sapatos espalhados por
todos os lados, e fica claro que ele joga as coisas de qualquer jeito por aqui.
— Acho que eu deveria ter feito uma faxina antes de você vir —
diz, coçando a nuca. Encolho os ombros em indiferença.
Eu me jogo na cama dele sem pensar duas vezes.
— E por acaso me importo com quartos arrumadinhos? O meu está
uma baderna com travesseiros, garotos e lixo há semanas.
Ele ri e se joga em cima de mim, apoiando-se nos braços para beijar
minhas bochechas antes de voltar a se levantar e ir tomar banho.
Assim que ouço o chuveiro ligar, só consigo pensar que ele está lá
dentro nu e ensaboado. Será que ele vai bater uma punheta? Será que está
tão excitado quanto eu? Será que está pensando no meu vestido ou na
calcinha minúscula da qual teve vários vislumbres? Meu Deus, quero ele
pra caralho.
Começo a pensar no dever de casa.
Penso a respeito dos sussurros de monstros e de bombas em estádios
e em pessoas sequestradas. Penso na Resistência e no que fazem com as
pessoas e, só para garantir, penso nos meus pais.
Minha libido, por fim, sossega nessa merda.
Ele sai vestindo apenas uma calça de moletom e regata, sobe na
cama ao meu lado e me envolve em seus braços sem hesitar. Suspiro
enquanto me derreto em seu abraço, feliz por ele estar tão mais relaxado do
que Gryphon estava e de fato me querer aqui.
Ficamos em silêncio por um minuto, curtindo um ao outro, então
Gabe diz com a voz arrastada:
— Você está me devendo uma coisa, Vínculo.
Deixo um suspiro sair, estava esperando por isso. Estou surpresa por
ele não ter perguntado assim que chegamos ao Armazém e cobrado o
pagamento adiantado, e isso deixa meu peito quentinho porque ele confia
que eu vá honrar nosso acordo.
Permito que meus olhos se fechem e presto atenção no som das
batidas fortes de seu coração enquanto reúno as palavras. Refleti muito
sobre o que iria contar para ele, se iria optar por algo fácil ou pela pior coisa
possível, e decidi que lhe daria algo ruim.
Algo que sirva de aviso.
— Meus pais se mudavam muito por minha causa. Eu não sabia
disso na época, mas agora acho que faz muito sentido. Eu tinha 6 anos
quando meu dom surgiu e... um dos meninos do nosso bairro era um
bostinha comigo. Estava sempre enchendo meu saco, puxando meu cabelo e
arrancando minha mochila no caminho da escola. Meu pai disse para eu me
defender e contar a eles se precisasse de ajuda, mas sempre fui uma criança
muito cabeça-dura.
As mãos de Gabe acariciam minhas costas para cima e para baixo,
em um movimento tranquilizador, ele não tenta murmurar algo ou me
interromper, graças a Deus. Não sei se conseguiria contar a história se ele
fizesse isso. Continuei:
— Ele me empurrou no parquinho da escola. Tinha uma pedra
pontiaguda no chão e eu cortei a mão. Meu dom disparou e o atingiu com
força total. Eu não desenvolvi aos poucos o que consigo fazer. Eu recebi
todos os três dons de uma vez e o menino estava no chão, com morte
cerebral, mas ainda se contorcendo, antes de eu sequer ter tempo de me
levantar. Ele era só um menininho, só um idiota que não sabia lidar com
suas emoções porque... bom, porque tinha 6 anos de idade. E agora está
morto. Meu dom consumiu o cérebro dele aos poucos, até que quando ele
tinha 12 anos, seus pais desligaram os aparelhos que o mantinham vivo.
Vocês podem não ser monstros, mas... bem, eu sou.
Não gosto de falar sobre isso. Não gosto de falar sobre nenhuma das
vezes em que usei meu dom, mesmo quando a pessoa mereceu, mas falar
sobre Lucas está no meu top três assuntos rotulados como “não”.
Bem juntinho com o acidente dos meus pais.
— Quase matei Gryphon da primeira vez que mudei de forma.
Meu coração falha no meu peito e ergo o rosto para olhá-lo. Gabe
engole em seco ao me olhar nos olhos, hesitante, e levo um segundo para
perceber que ele tem medo de que eu fique brava com ele.
Acabei de contar que causei uma morte lenta e dolorosa a uma
criança de 6 anos e ele está preocupado com não me irritar.
— Meu dom demorou pra despertar, em grande parte porque tive
uma excelente infância e meus pais eram superprotetores. Minha mãe era a
Central do meu pai e do outro Vinculado dela, mas John morreu nos Motins
antes de eu nascer, então meus pais sempre me protegeram demais. Só tive
minha primeira transformação quando você desapareceu.
Ai meu Deus. Volto a repousar a cabeça sobre o peito dele e acaricio
seu braço com movimentos circulares, só um carinho tranquilizante para
mostrar que estou aqui, que estou ouvindo e não estou o julgando por nada
disso.
Como eu poderia?
— Meu pai já estava tão nervoso por eu fazer parte do Vínculo
Draven, a gente recebeu a notícia bem no dia anterior, e aí quando Gryphon
veio contar que você tinha sumido, eu... perdi o controle. Mudei de forma e
não fazia ideia do que estava acontecendo. Eu não entendia como o cérebro
funcionava durante a transformação, então eu... porra, nem sabia o que
estava fazendo. Quando enfim voltei para forma humana, Gryphon estava
estraçalhado. Meu pai o curou o melhor que pôde, mas ele ficou com
cicatrizes disso. Porra, meus pais ficaram furiosos comigo. Furiosos porque
o filho deles era um metamorfo e estava no Vínculo mais ameaçador. Fui
um péssimo filho para eles e aí... meu pai morreu. Não consigo me lembrar
da última vez que eu disse que o amava porque eu era um baita idiota com
ele.
Sinto vontade de chorar por Gabe.
Se alguém entende o tipo de dor e luto que ter arrependimentos com
seus pais causa, esse alguém sou eu. Por isso, sei que não tem nada que eu
possa dizer a ele para fazer com que se sinta melhor, nada que cure esse tipo
de ferida, então enfio o rosto em seu pescoço e o abraço ao invés de falar.
Ficamos deitados ali, abraçados um no outro sem julgamentos, afinal, quem
entenderia melhor as partes mais feias de você do que seu Vínculo? É a
pessoa destinada a amar você incondicionalmente e, pela primeira vez...
acho que talvez eu acredite nisso. Acredito que ele possa amar todas as
partes feridas, monstruosas e apavorantes de mim.
Caímos no sono com a TV ligada, emaranhados um no outro, com o
rosto dele tão perto do meu que posso senti-lo como uma dor no meu peito.
Durmo pesado, com meu vínculo satisfeito porque Gabe é meu.

Sabe qual é a única coisa mais torturante do que acordar com um


homem que você tem certeza de que mal o tolera agarrado em você?
É acordar em cima de um homem por quem você está se
apaixonando, com uma das mãos dele em seu quadril enquanto a outra está
em sua bunda para te segurar mais perto. Seu rosto enfiado no peitoral dele,
a coxa dele pressionando entre as suas, e o pau dele duro encostado em sua
barriga.
Não quero sair daqui nunca.
— Você vai se atrasar — Gabe murmura no meu cabelo quando meu
alarme dispara pela terceira vez, mas eu não estou mesmo nem aí.
Quando digo isso a Gabe, ele ri e beija o topo da minha cabeça.
— Você diz isso agora, mas Gryphon é a porra de um pesadelo
quando acha que você está com preguiça.
Dou um gemido quando me afasto dele, meu vínculo já está
choramingando pela perda de todo seu calor.
— Não sei se tem como ele ser pior comigo. Jesus, acho que vou
morrer se ele piorar.
Gabe sorri e se espreguiça, mas não se levanta dos travesseiros.
— Então melhor botar essa sua bundinha linda em ação, Vínculo.
Odeio ele.
Bom, não odeio, mas sério mesmo, eu arriscaria morrer só para ficar
nessa cama com ele, mas não é para ser. No tempo que leva para eu sair do
quarto, Gabe já está em um sono profundo de novo. Por sorte, encontro uma
empregada limpando janelas que me leva até o elevador, então consigo ir
sozinha em segurança até a academia a partir dali. Preciso me forçar para
chegar lá a tempo, e alcanço as portas ao mesmo tempo que Gryphon.
Entretanto, ele está vindo da direção oposta, e graças a Deus meu
vínculo está dócil e contente dentro do meu peito, pois um pedacinho muito
pequeno e silencioso do meu cérebro se pergunta onde ele passou a noite, já
que são cinco da manhã e ele está vindo do outro lado do bairro.
Ele olha para mim e seus olhos passeiam pelo meu corpo todo de
uma só vez, depois ele desvia o olhar e pragueja baixinho. Olho para baixo,
mas estou usando só short e uma das regatas de Gabe, assim como ontem.
Sinto um frio na barriga de novo. Odeio me sentir assim, droga.
— Como está se sentindo hoje? Seu vínculo está sob controle? —
Gryphon pergunta, enquanto destranca a porta e começa a abrir a academia.
Eu o sigo, jogo minhas chaves e meu celular no chão ao lado do
tatame e me sento para começar a me alongar logo.
— Estou bem. O plano de North está fazendo milagres, meu vínculo
está controlado. Preciso agradecer a ele.
Recuso-me a parecer uma pirralha. Vou me engasgar com aquele
“obrigada”, mas vou colocá-lo para fora, mesmo que isso me mate.
Ele faz que sim devagar, de cabeça baixa, e pega duas garrafas de
água na geladeira para nós dois.
— Repasse as posições para mim mais uma vez, vamos fazer a
mesma coisa que ontem.
Ele está agindo estranho, mas estou com um nó no estômago, então
finjo que está tudo bem e mando ver no treino. Fingir que está tudo bem até
estar é uma estratégia antiga que sei que teria funcionado aqui se ele fizesse
o mesmo.
Ele não faz.
Partimos para o combate corporal e já estou melhorando, estou
aprendendo rápido essas coisas, agora que estou focada em fazer direito.
Incrível como as coisas funcionam quando você está desesperada para seu
treinador não achar que você é incompetente ou preguiçosa.
Quando ele me atira no tatame pela centésima vez e me deixa sem
ar, penso em morrer aqui, em desistir de uma vez e permitir que minha vida
chegue a seu termo. Ele está de pé sobre mim e oferece a mão para me
ajudar a levantar minha bunda do chão, mas ainda está agindo de forma
esquiva e estranha. Isso faz com que me sinta desconcertada.
Como não tenho realmente a opção de morrer, obrigo-me a enfrentá-
lo e pergunto:
— Se alguma coisa tiver acontecido, será que você pode... me contar
logo? Prefiro não lidar com esse seu comportamento estranho.
Isso o faz me olhar no rosto. A cicatriz sobre seu olho está mais
chamativa hoje, em especial porque agora conheço a história por trás dela.
Ele tem sorte de não ter perdido um olho, e envio um agradecimento
silencioso para o pai de Gabe no além por isso.
Mesmo que ele achasse que meus Vínculos eram monstros.
— Nada não — diz, e finge indiferença quando reviro os olhos. —
Você está melhor. Só fiquei chocado com o quanto você parece melhor.
Nossa, uau. Uau.
Ele é bom demais em encontrar o lugar perfeito para enfiar a faca
nas minhas entranhas e torcer. Solto os braços e concordo com a cabeça,
fazendo uma carranca, mas não consigo conter a resposta sarcástica:
— Cruzes, valeu! Será que já estou chegando perto dos seus
parâmetros ou devo esperar ser tratada como cidadã de segunda classe até o
fim do treino? Quer saber, você devia rir da minha cara de novo, é bem
disso que essa situação precisa!
Dou uma olhada para o relógio. Ainda temos mais dez minutos, mas
sem chances de ficar aqui aguentando essa merda. Eu me abaixo, pego
minha garrafa para beber o resto da água e recolho minhas coisas para dar o
fora daqui. A corrida de volta deve acalmar minha cabeça o suficiente para
não acabar com a raça de todo mundo que eu encontrar hoje.
Vínculos desgraçados!
Gryphon segura meu cotovelo e me vira para ele, então me puxa
contra seu peito de cara fechada.
— De que porra você está falando? Estou dizendo que você pareceu
esgotada, cansada e completamente sem energia durante semanas.
Estávamos preocupados que você fosse ou cair morta ou disparar que nem
Unser.
Certo, sério mesmo, quem é esse merda de Unser?
Droga, se concentra, Oli!
— Vou pra casa. Posso estar pronta e disposta a aprender tudo de
defesa pessoal, mas não vou ficar aqui só pra aguentar essa merda de você.
Já acabei por hoje.
Tento soltar meu cotovelo, mas ele não me solta. Quando dou um
passo para trás, ele tira meus pés do chão e me derruba no tatame, colando o
corpo dele em cima do meu. Já fizemos isso vezes o suficiente para eu
conseguir cair e pousar de forma correta, então não dói nada, mas estou
espumando de raiva.
Não que isso importe, porque, mais uma vez, estou presa embaixo
dele e não consigo me mexer.
— Eu gostaria de conseguir conversar com você sem precisar ter
que fazer isso só uma vez — ele me repreende e até meu vínculo fica bravo.
— Sinto muito mesmo por você ter que ficar perto de mim!
Ele se mexe, de forma que está usando apenas uma mão para
prender as minhas por cima da minha cabeça, e segura meu queixo com a
outra.
— Será que dá para se decidir, porque não sei se o que incomoda
você é eu querer te comer ou eu não querer! Não consigo acompanhar.
Odeio ele.
Estou perto demais dele, seus olhos brilham olhando nos meus
conforme seu dom entra em ação, e quero gritar com ele por se atrever a
usar seu poder agora.
Escolho minhas palavras com cuidado.
— Querer aumentar seu poder comigo e me querer são duas coisas
muito diferentes. Já sei qual dos dois você quer, então me poupe desse seu
joguinho mental.
Ele se inclina e sussurra contra meus lábios:
— Você não sabe de nada, Vínculo. Você não fica por perto tempo
suficiente para saber porcaria nenhuma. No instante em que as coisas ficam
sérias aqui, você sai correndo, e isso não tem nada a ver com o que eu
quero. Você poderia apenas me perguntar.
Agradeço ao universo por um instante por me permitir não estar
mais alterada pelo vínculo durante esta conversa, porque se fosse há uma
semana, eu teria me debulhado em lágrimas. Perguntar a ele? Por que eu
perguntaria algo do tipo quando ele já deixou bem claro o que acha do
assunto?
Ele balança a cabeça para mim.
— Essa aí não é a garota que correu direto para os braços da
Resistência para salvar a amiga. Onde foi parar sua coragem?
Com essa bandeira vermelha acenando para mim, relaxo a
mandíbula o suficiente para cuspir:
— Por que você riu da minha cara? Por que foi tão engraçado eu
querer você enquanto meu vínculo estava fora de controle? Por que...
Ele me interrompe com seus lábios.
Nos meus.
E meu vínculo explode no meu peito na direção dele, envolvendo-
nos um no outro. O impacto o faz grunhir, mas ele não para de me beijar,
seus lábios insistentes nos meus. A sensação de estarmos entrelaçados um
no outro me faz arfar e ele aproveita a oportunidade para intensificar o
beijo, acariciando minha língua com a sua enquanto sua mão aperta mais o
meu pulso.
Quando interrompe o beijo, ele murmura:
— Estou pouco me fodendo para ter mais poder. Estou pouco me
fodendo para o que as outras pessoas querem ou pensam sobre nosso grupo
de Vínculos. Eu ri porque passei semanas na sua cama, tentando me
convencer de que eu podia ser paciente e esperar até você estar pronta, e foi
bom saber que você talvez também estivesse tendo dificuldades com isso.
Eu ri porque você chegou aqui e agiu como se fosse melhor do que nós
todos, e mesmo assim mal estava conseguindo se controlar perto de mim.
Eu não sabia que você estava sofrendo tanto. Eu nunca teria tratado aquela
situação de forma leviana.
Engulo em seco com força, mas quando meus olhos descem até seus
lábios, ele se levanta e se afasta de mim.
— Eu tenho limites também, sabe. Se não quer acabar Vinculada,
precisa sair daqui.
14

É quase impossível sobreviver ao resto do dia.


Eu me sinto focada demais e distraída ao mesmo tempo. É como se
eu estivesse completamente envolvida com as atividades de aula e em fazer
todas as anotações que preciso para atingir minha média, mas sem
conseguir manter uma conversa com nenhum dos meus amigos.
Sage me olha curiosa, mas não faz comentários nem tenta me forçar
a me recompor. Sawyer tenta me provocar, mas nem percebo. Felix só fica
com a gente durante o almoço, então ele segue a deixa de Sage, sendo
educado e me deixando em paz nesse inferno.
Gabe está sendo mais afetuoso do que o normal e discute com Atlas
sobre qualquer o dia inteiro para poder ficar perto de mim. Fico grata,
porque depois da manhã com Gryphon, sinto-me à deriva.
Como se tudo que eu tivesse aprendido estivesse errado.
Eu tinha aceitado o fato de que todos eles me odiavam. Era útil para
mantê-los à distância. Convenci a mim mesma de que era apenas o meu
vínculo que estava desesperado pela aprovação deles, mas, bem, não posso
continuar mentindo para mim mesma. Mesmo que isso traga à tona ainda
mais coisas que terei que resolver.
Tipo, e se North se sentir assim também?
Ele é rígido comigo porque na verdade quer esse Vínculo ou porque
ele me quer? Eu achava que ele tinha deixado seu desgosto por estar preso
comigo muito claro, mas e se eu só estiver vendo o que quero ver nesta
situação, será que entendi tudo direito?
Nox é uma caixa de Pandora, um amontoado de “não, obrigada”,
porque se eu começar a refletir sobre ele, talvez não acabe nunca. O que
tem em todo seu comportamento e atitudes, que são todas terríveis pra
caralho, que tornam impossível para mim apenas deixá-lo para lá?
Preciso me obrigar com todas as forças a não pensar nos batimentos
cardíacos dele em pânico sob meu ouvido, na forma como seu corpo ficou
tenso ao sentir meu peso em seu colo. Brutus até saiu para vigiar, acho que
é o mais perto que ele já chegou de me ver como um risco.
— Achei que dividir a cama estivesse ajudando? Preciso matar
Ardern por ter feito até isso errado? — Atlas murmura no meu ouvido e
volto ao presente assustada. A mesa se esvaziou ao nosso redor, só sobrou
Gabe, mas ele está ocupado no celular e não está ouvindo.
Nem lembro de Sage e dos outros terem saído.
Pigarreio.
— Não, é só que... eu tive uma conversa com Gryphon hoje de
manhã que está me fazendo repensar minha vida toda agora.
Ele acena devagar, seus olhos estão iluminados e um sorriso está se
abrindo em seus lábios.
— É mesmo? Em que ponto da sua vida você está? Já chegou em
mim?
Inclino-me para frente e, por instinto, passo meus lábios nos dele de
leve, só um contato breve que acaba em um instante, mas ele fica tenso e
vem atrás de mim quando me afasto. Dou uma risadinha e o impeço com a
mão em seu peito.
— Eu não devia ter feito isso. Não sei o que deu em mim hoje.
Ele ergue uma sobrancelha e abaixa o olhar para meus lábios.
— O que quer que seja, gostei. Pode me beijar sempre que quiser,
Doçura.
O som de sua voz faz meu vínculo ronronar dentro do meu peito,
chamando o vínculo de Atlas para vir se esfregar em minha pele.
— Vocês dois sabem que estamos em público, né? Jesus, parem com
essa merda antes que North fique sabendo disso e macete a gente no jantar
de novo — Gabe reclama.
Cubro meu rosto com as duas mãos e me enterro no peito de Atlas.
— Não vem me falar de macetar agora — murmuro e, embora
minhas mãos abafem as palavras, os dois me ouvem com clareza.
Atlas dá uma gargalhada chocada e Gabe revira os olhos, mas os
dois compartilham um olhar que faz meu vínculo zumbir no peito, louco
pelos dois.
Dou um gemido e fico de pé, pendurando a mochila no ombro e
olhando furiosa para os dois.
— Que parte de “vínculo piranha com tesão” vocês não estão
entendendo?
Atlas dá de ombros e segura minha mão.
— Foi você quem começou, mas já aviso que não vou dividir você
hoje à noite. Se quer fazer um montinho com seus Vínculos vai ter que
escolher a noite de outro, porque te quero todinha pra mim.
Gabe balança a cabeça e assume meu outro lado, segurando minha
outra mão. Deveria ser fofo, mas definitivamente sinto que eles estão
prestes a brincar de cabo de guerra comigo em uma batalha por domínio.
— Ninguém vai abrir mão da própria noite... exceto Nox, talvez.
Porra, a gente vai ter que ver como vai ser a primeira noite dele e então
reavaliar.
Estive pensando muito sobre isso também, porque depois da vez de
Atlas, amanhã vai ser a dele e, por dentro, estou me cagando de medo dela.
Será que confio em Nox? Não, não confio. Confio na opinião de
North sobre o irmão? Também não, embora me sinta um pouco mal por
isso. Ele tem sido muito sincero em me assegurar de que teria interferido,
mas também tenho a impressão de que ele tem um ponto cego gigante
quando se trata do irmão caçula.
Será que confio em Gryphon? Essa é mais difícil. Tenho certeza de
que ele acredita em North. Isso passa mais credibilidade, porque ele sabe
quando Nox está mentindo, então talvez eu possa usar esse raciocínio para
dar um jeito de ir até o fim com isso.
Gabe se despede para ir ao treino de futebol com um beijinho no
meu rosto, em seguida, Atlas me leva de carro para meu turno no café.
Achei que ele fosse me deixar lá, como de costume agora que está mais
calmo a respeito do meu vínculo, ciente de que consigo me controlar tanto
com meu dom, quanto fisicamente, graças aos treinos. Mas ele estaciona e
entra comigo. Reviro os olhos para o sorriso que ele dá a Gloria enquanto
pede café e comida suficiente para durar as quatro horas do meu turno,
então se instala na mesa que ele proclamou como sua.
As pessoas entram em grupos durante a tarde toda, estudantes e
garotos de fraternidades e professores na mesma medida, mas pelo visto
perdi alguma coisa na confusão mental em que passei o dia todo, porque
estão todos falando sobre a mesma coisa.
O conselho expulsou um de seus membros.
De início, não registro a importância disso, porque eu já saberia se
tivesse sido North e não ligo nem um pouco para o Conselho, com exceção
do fato de que continuam deixando North fazer a droga que quiser comigo
sem sofrer nenhuma consequência. Mas então eu escuto o nome.
Conselheiro Sharpe.
Ele foi um dos dois homens contra quem Gabe me alertou antes da
festa de Sage, meses atrás. Ele disse algo sobre Sharpe revirar meu cérebro
para descobrir todos meus segredos... fico curiosa para saber o que faria um
homem ser expulso do conselho, considerando que seus assentos estão
reservados desde que nascem.
Literalmente.
North herdou o assento do pai, porque, ao que parece, até mesmo
matar um de seus Vínculos não é o suficiente para perder a cadeira da
família. Gabe disse que o tio de North assumiu de forma temporária e North
tomou o posto quando tinha idade suficiente.
Estou curiosa pra caramba para descobrir, mas ninguém por aqui
sabe de nada, ou pelo menos não estão falando às claras sobre o assunto.
Troco um olhar com Atlas quando vou até uma mesa perto da sua, mas ele
encolhe os ombros para mim.
— Posso perguntar aos meus pais, mas só vão saber a declaração
oficial.
Concordo com a cabeça e já sei que nós dois temos acesso a um
conselheiro que sabe com certeza qual é o motivo, mas tenho certeza
absoluta de que North não vai nos contar bosta nenhuma.
E isso só me faz pensar nos problemas do meu vínculo mais uma
vez.
Espero até a cafeteria estar mais tranquila, depois que o último
grupo de universitários se retira, e aviso Gloria que vou usar o banheiro.
Apanho meu celular no caminho e tranco a porta depois de entrar. Fico um
pouco atrapalhada enquanto digito uma mensagem para Gryphon.

Preciso te pedir um favor e fazer isso é muito difícil pra mim, então,
por favor, não seja um babaca a respeito.

Não sei se estou mesmo esperando uma resposta, ele jamais me


mandou mensagem nenhuma, mas meu celular vibra quase que no mesmo
instante.

Me diga do que precisa.

Nossa. Acho que lavar a roupa suja com ele hoje de manhã fez
maravilhas por nós dois e nos ajudou a descobrir o que estamos fazendo
aqui.

Por favor, você pode conversar com Nox sobre eu dormir na cama
dele amanhã à noite e se certificar de que ele está mesmo de acordo com
isso? Não quero que ele faça picadinho de mim quando eu chegar lá.

Ele não responde de imediato e o tempo que posso passar no


banheiro sem Gloria achar que estou com diarreia ou algo do tipo é
limitado, então mando uma última mensagem, guardo o celular e volto ao
trabalho.

Por favor? Confio em você para garantir que eu fique bem.

*
Quando meu turno acaba, Atlas não me leva direto de volta à
mansão. Em vez disso, ele me leva para comprar tacos em um food truck do
qual Gabe está falando há semanas. Eu não sabia que Atlas estava prestando
tanta atenção assim em mim para ver o quanto eu queria experimentar.
Tacos de peixe estão entre minhas dez comidas preferidas, então quando
chegamos lá, dou um sorriso tão grande para ele que sinto que meus dentes
vão escapar da minha cara.
— É tão fácil agradar você, Vínculo. Sapatos, comida e blusas que
usei... os outros são idiotas pra caralho se não estão conseguindo acertar.
Reviro meus olhos.
— Acho que é um pouquinho mais difícil que isso, mas você
escolheu bons lugares pra começar.
Ele faz uma cara feia quando coloco a mão na maçaneta da porta,
então dá a volta correndo no carro para abrir para mim e me ajudar a descer.
Em geral, Gabe está no banco traseiro e faz isso por mim, então eu não
sabia que Atlas tinha esse jeito antiquado para essas coisas também. Mas é
uma graça. Quando fazemos nossos pedidos, tento pagar nossa comida. Eu
ainda não consegui devolver por todos os cafés que ele comprou para mim,
mas ele reage como se eu estivesse tentando causar um ferimento mortal
nele.
— Você disse que pagaria até eu poder. Bem, estou trabalhando
agora. Posso pagar pelo nosso jantar — digo, gesticulando com a mão para
ele, mas ele me dá um olhar mortífero de brincadeira.
— Só por cima da porra do meu cadáver que meu Vínculo vai pagar
a conta do jantar. Como você acha que me criaram? Guarda isso aí antes
que me mate de vergonha.
Ele diz isso em tom de brincadeira, mas há uma seriedade em seus
olhos que faz qualquer um dar ouvidos. Observo quando ele tira o próprio
cartão de crédito da carteira e paga, sorrindo para a garota que está
recebendo nosso pedido de um jeito muito educado, mas frio.
Ele sempre toma o cuidado de ser simpático, mas muito indisponível
com as pessoas no campus, e quando os olhos da garota descem pelo corpo
dele e se fixam na altura em que os dedos dele estão entrelaçados com os
meus, ele me segura mais perto de seu corpo para que não haja dúvidas de
que ele está comprometido.
Meu vínculo gosta bastante disso.
Esperamos juntos na brisa noturna, abraçados um no outro enquanto
assistimos os outros clientes irem e virem. Todos os alunos que
encontramos nos olham de esguelha e sussurram sobre nós, mas estou
contente demais nos braços do meu Vínculo para me incomodar com isso.
Depois que pegamos nossa comida, Atlas me leva de volta ao carro,
mas em vez de entrarmos, ele me surpreende ao me erguer com toda
gentileza para comermos sentados juntos no capô.
Arrasto-me para trás com cuidado para não riscar a pintura ou
amassar. Mas Atlas nem parece ligar quanto a isso e apenas sobe depois de
mim, ele me entrega minha bebida e coloca a comida entre nós. É um jeito
perfeito de estarmos juntos sozinhos, sem o peso esmagador da mansão
Draven em nossos ombros.
Mando ver nos tacos e posso confirmar que são os melhores que já
comi. Gemo um pouquinho de boca cheia e Atlas sorri enquanto muda de
posição e se ajeita de um jeito tão óbvio que eu rio da cara dele.
— Sacana! E depois de tudo que fiz por você, Doçura — diz
devagar, semicerrando os olhos, e eu o saúdo com minha comida.
— Eu disse, vai precisar de um pouquinho mais do que jantar e
cineminha se quiser me impressionar, meu bem. — Jogo o apelido de
brincadeira no final, mas os olhos dele queimam e acho que vou chamá-lo
assim mais vezes no futuro.
Porra.
Não posso esquecer da realidade aqui.
Engulo a comida e desvio o olhar, observando a noite agitada ao
redor. Não tem ninguém perto da gente, ninguém que possa ouvir nossa
conversa, mas muitas coisas acontecem no início da noite nesta pacata
cidadezinha universitária.
Os food trucks são populares e todos têm filas com dezenas de
pessoas. Alguns estudantes estão bebendo com todo descaramento do
mundo no estacionamento, rindo e fazendo piada em voz alta, e é como se
estivéssemos dentro de nossa própria bolha por um minuto.
— Você não precisa se preocupar, Doçura. Não estou te levando
para jantar esperando algo em troca. Só queria passar a noite toda sem ter
que dividir você com ninguém — Atlas murmura, inclinando-se para trás e
se apoiando nos cotovelos enquanto me observa com atenção.
Não entendo como ele pode ser tão... perfeito para mim. Ele nunca
me pediu nada. Nem para completarmos o Vínculo ou ficarmos, nadinha.
Ele é quase bom demais para ser verdade.
Meu cérebro começa a imaginar o pior, porque, de repente, preciso
forçar a barra com ele, testá-lo, descobrir o que está rolando com ele de
verdade, porque caso ele se volte contra mim mais tarde, vou desmoronar.
— O que seus pais acham de você ter mudado pra cá? O que acham
de você ter um monstro como Vínculo?
O olhar apaixonado desaparece de seu rosto, mas ele não parece
irritado com a minha pergunta, só não deve ser seu assunto favorito.
— Nenhum deles ficou feliz com a mudança. Mas já nasci com
fundo fiduciário e não tinha muito que eles pudessem fazer a respeito. E
quer saber? Chega dessa baboseira de monstro, Oli. Conheço você. Sei
muito bem quem você é e sei reconhecer um monstro quando vejo um. Você
não é um.
Pego o segundo taco na bandeja, comido pela metade e ainda
parecendo delicioso, embora meu apetite esteja começando a passar porque
decidi bisbilhotar.
— Mas como? Como você saberia tudo sobre mim se só sabe a
respeito de um dos meus dons? Atlas, é que... o dom que você conhece é o
meu secundário. Não é nem o maior.
Ele concorda devagar com a cabeça e coça a nuca.
— Não quero mentir para você, Oli. Não sabemos muita coisa um
sobre o outro, tem muita coisa que você está escolhendo não me contar, e
muita coisa que também não estou te dizendo. Somos duas pessoas
cautelosas que estão tentando manter o outro em suas vidas embora
tenhamos muita bagagem.
Bom, da minha parte é verdade. Sei disso, e embora eu saiba que ele
tenha tido uma vida toda antes de me conhecer, meu vínculo coça ao ouvi-
lo dizer que ele também tem segredos.
Quer dizer... Dãã, Oli. É claro que ele tem, assim como todos os
meus Vínculos. Mesmo assim, não sei o que é, mas ouvi-lo dizer isso me
incomoda muito.
Ele olha para mim de novo e coloca sua bandeja vazia de lado no
capô do carro.
— Seus olhos, o vácuo, é isso que está deixando o North em dúvida.
Ele acha que seu poder é Neuro, mas o vácuo diz que não é isso.
Porra. Me forço a sussurrar.
— Não é Neuro.
Ele concorda.
— Não, não é. Sei que não é. Sei exatamente o que é, Oli, e ainda
estou aqui. Sei muito bem o que seu dom faz com as pessoas, e não estou
correndo de medo. Você continua sendo o mesmo Vínculo com o qual tenho
sonhado acordado desde que eu era um moleque, a garota linda por quem
eu daria minha vida... só que sou indestrutível, então não preciso me
preocupar com isso. Tá vendo? Fomos feitos um para o outro.
Sem dúvida deveríamos estar falando sobre isso, e não só fazendo
alusões, pois, como ele sabe disso?
— Você já... viu olhos como os meus antes? Um dom como o meu?
Ele pigarreia.
— Não existe ninguém vivo hoje com seu dom além de você.
Porém, sei a respeito de pessoas que tinham dons mais fracos parecidos
com o seu. Você quebrou o molde em que foi feita, Doçura.
Droga.
Certo, de qualquer forma é provável que ele entendeu tudo errado.
Ele deve achar que já me decifrou, mas está bem longe da verdade.
— A pergunta que eu quero mesmo te fazer, Oli, é por que não
destruiu Nox quando ele tocou em você? Por que não matar ele de uma vez
por ter se atrevido a tocar em você?
Porra.
Será que ele sabe? Não é possível. Destruiu... ele só pode estar
falando sobre o destruidor de almas, derretedor de cérebros que posso
causar. Com certeza não é... sobre mais nada.
Quero fugir dele. Quero sair correndo pelas ruas quando suor frio
escorre pelas minhas costas. Ele está me observando com atenção, com os
braços tensos como se estivesse se preparando para correr atrás de mim.
— Ele é meu. Sei que é idiotice. Sei que ele passou dos limites, mas
ele é meu. Eu o protegeria assim como protegeria você. Não significa que
eu o perdoe ou queira ele por perto... só não quero ter culpa da morte dele.
Ele concorda com a cabeça e começa a recolher o lixo do nosso
jantar, como se não tivesse acabado de me dizer que sabe o que posso fazer
e tirado meu mundo todo do eixo ao mesmo tempo que tento decifrar se ele
está sendo sincero ou não.
Não tem como ele saber.
Certo?
Atlas sorri para mim enquanto desce do capô para jogar o lixo fora.
— O espiãozinho de Draven ainda está pendurado no seu cabelo.
Não vou falar mais nada perto dele.
Ah.
Ah, merda, esqueci que Brutus estava aqui. Jesus, e se eu tivesse
soltado alguma coisa e acabasse no radar dos Draven por causa do quanto
meu dom é de fato ruim?
Sinto vontade de gritar.
Atlas me ajuda a descer e depois me puxa em seus braços,
descansando a bochecha no alto da minha cabeça.
— Para com isso, Doçura. Não me importo que isso leve o resto da
minha vida, vou provar que você é tudo para mim, independente de dom.
Eu mataria por você sem pensar duas vezes, e sei que você se sente assim
também. Vou provar isso para você, leve o tempo que levar.
Quero tanto acreditar nele.
Ele me leva de volta para dentro do carro, então voltamos juntos
para a mansão. Todos os carros que meus Vínculos costumam usar estão
ausentes da garagem e ergo uma sobrancelha enquanto Atlas me ajuda a sair
depois de estacionar.
— Eles chegaram a dizer se iam fazer alguma coisa? Aonde todos
iriam ao mesmo tempo sem convidar a gente?
Ele dá uma gargalhada, balançando as sobrancelhas para mim.
— Quem se importa? A casa é toda nossa! A gente deveria ferrar
com as coisas deles. Qual a pior coisa que poderíamos deixar na cama de
North? Vamos lá, Doçura. Qual a sua pior ideia?
Dou risada, estou gostando desse humor brincalhão dele, e deixo
que me conduza pela casa. Ele tem um excelente senso de direção e fico um
pouquinho irritada por ele ter decifrado esse labirinto tão rápido.
Nasci com fundo fiduciário.
Dou um grunhido para ele.
— Minha ficha acabou de cair. Você cresceu numa casa dessas, né?
Cacete, você cresceu em uma mega mansão também.
Ele pendura o braço em cima dos meus ombros e me puxa contra
seu corpo, aproximando seus lábios para sussurrar:
— É maior ainda que essa. Tem aposentos para os empregados e
escadarias de serviço. Meus pais são podres de ricos. Os Bassinger são os
Draven da Costa Leste.
Balanço a cabeça para ele com um sorriso irônico.
— Como fui ter tanta sorte de acabar com todos esses Vínculos
ricos e arrogantes, hein? Que benção.
Ele ri do sarcasmo nas minhas palavras, mas não estou brincando.
Meus pais eram bem de vida, e sei que tem uma herança esperando por mim
em algum lugar, mas os anos que passei em fuga me ensinaram a apreciar
de verdade o trabalho duro e cuidar das minhas próprias coisas. A mera
ideia de viver às custas do dinheiro dos outros, do trabalho duro deles, isso
me dá agonia.
E aí me recordo do aviso de North sobre eu ser uma interesseira e
fico irritada com aquilo mais uma vez.
Pigarreio e mudo de assunto antes que meu vínculo acorde pronto
pra tretar.
— Então, onde foi que North te colocou? Se está ficando no porão,
podemos dormir no meu quarto hoje.
Ele resmunga baixinho, então me leva pelo segundo andar. Quando
ele para, reconheço o corredor e dou risada.
— Ele te colocou ao lado de Gabe? E como é que isso tá sendo?
Ele me dá um olhar de aviso enquanto destranca e abre a porta,
acendendo as luzes logo depois.
É um quarto vazio.
Certo, isso foi um pouquinho dramático, mas no meu quarto tem
tanto da personalidade dele quanto tem da minha. Este tem a mesma
disposição e paleta de cores do quarto de Gabe, mas a única coisa de Atlas
aqui são suas malas, que estão abertas, mas ainda perfeitamente
organizadas, e seu notebook em cima da cama.
— A única coisa que faço aqui é dormir, na verdade. Se vamos ficar
por aqui, acho que vou me livrar do meu apartamento e mudar direito para
cá, mas estou esperando até você ter certeza.
Concordo com a cabeça e dou a volta nele para me jogar na cama,
afundando-me no colchão luxuoso. É igual a todos os colchões da mansão e
acho que meu gosto ficou caro de repente, porque me recuso a dormir em
qualquer coisa inferior a isso outra vez.
— Tem... certeza? Ou estamos ludibriando todos a terem uma falsa
sensação de segurança aqui? Me dá um sinal, Doçura — diz, enquanto
descalça os sapatos e se deita ao meu lado.
Meu vínculo está feliz com os eventos desta noite e por tê-lo tão
perto. Ele nem tenta tomar o controle quando me aconchego ao lado de
Atlas e enterro o rosto em seu peito.
— Eu preciso mesmo descobrir como tirar o chip. Quando isso for
resolvido... vou ter que ir embora.
Ele faz que sim e me traz ainda mais perto.
— Nós. Nós teremos que ir embora. Você não vai se livrar de mim,
Doçura. Nunca mais.
15

Em algum momento depois da meia-noite, acordo com a sensação de um


dos meus Vínculos se deitando na cama atrás de mim. Desperto só o
suficiente para erguer minha cabeça do peito de Atlas e ver Gabe
aconchegado atrás de mim e Gryphon se jogando em uma das poltronas que
ele arrastou até a porta, os contornos de seu corpo estão tensos enquanto ele
tenta ficar confortável ali, montando guarda para nós.
Meu cérebro não registra por completo o que está acontecendo, o
quanto as coisas não devem estar boas se ambos estão aqui agora, então
volto a me deitar e permito cair de novo em um sono profundo, com meu
vínculo satisfeito por mais dos meus Vínculos estarem por perto.
Acordo horas depois com o sussurro furioso de Atlas:
— É minha noite, que caralho vocês dois estão fazendo aqui?
Dou um gemidinho e esfrego o rosto com a mão, o braço de Atlas
me aperta de forma mais protetora. Está cedo, meu despertador nem tocou
ainda, e estou tendo dificuldades de me recompor o suficiente para
descobrir o que está acontecendo aqui.
A TV ainda está ligada, já que dormimos com um filme passando
nela, e a luz ilumina o quarto só o bastante para eu ver que Gryphon ainda
está acordado na poltrona. Ele parece exausto, está usando o uniforme tático
e tem sangue em sua camiseta.
— Está machucado? — digo rouca, e meu vínculo começa a zumbir
no meu peito só de pensar nele com dor.
Os olhos de Gryphon vêm na minha direção e depois abaixam para
seu próprio corpo como se não tivesse lhe ocorrido que, o que quer que
estivesse fazendo ontem à noite, pudesse ter deixado alguma evidência.
— Estou bem. Não é meu, mas você precisa evitar North ou fazer as
pazes com a ideia de curá-lo.
Sento-me com dificuldade, afastando-me de Atlas e desvencilhando
de seu abraço apertado.
— Onde ele está? Vou curá-lo, só me diz onde ele está.
Gabe grunhe às minhas costas e só então me lembro de que ele está
aqui na cama também, deitado de lado em uma camiseta rasgada e short
sujo. Ele nunca vem me encontrar sujo. Gryphon também não, aconteceu
alguma coisa ruim.
Atlas chega à mesma conclusão ao mesmo tempo e fecha a cara para
Gryphon.
— Que porra aconteceu agora?
Gryphon termina de mandar uma mensagem, então volta a enfiar o
celular no bolso e cruza os braços, mas seus olhos ficam mais suaves
quando param em mim em meu estado desgrenhado ao extremo na cama. Já
sei que minha aparência está um caos, essa noite bosta de sono não fez nada
de bom pelo meu cabelo.
Por acaso cheguei a tirar a maquiagem ontem à noite, ou estou
parecendo um panda agora?
Droga, por que estou pensando nisso neste momento? Um dos meus
Vínculos está ferido, ninguém dá a mínima para a minha aparência.
— North está vindo aqui. Disse que já viu um curandeiro.
Ah.
Não gosto disso.
Não sei como dizer a qualquer um deles que não gosto disso, mas
Atlas olha no meu rosto e sua mandíbula se contrai, seus instintos protetores
estão aguçados como sempre. Não tenho certeza se algum dia vou descobrir
como esconder minhas emoções e sentimentos dele, porque ele me lê como
se eu fosse a droga de um livro.
Há uma batida suave na porta e Gryphon se debruça para abri-la
para North, que compartilha um olhar com ele ao entrar. O rosto de North
está repleto de sombras e há marcas na frente de seu terno amarrotado. Ele
deve ter acabado de chegar após ver os curandeiros e veio aqui em vez de ir
tomar banho ou se trocar.
Meu peito se enche de pânico pelo que quer que tenha acontecido.
Gryphon solta uma bufada.
— Você está um lixo. Precisa cancelar sua agenda de amanhã para
não perder a cabeça com Pen e soltar seus pesadelos nela quando ela encher
o saco.
Pen.
Odeio aquela mulher e nunca nem fui formalmente apresentada a
ela, mas a familiaridade que todos eles demonstram ter com ela me dá nos
nervos.
North esfrega os olhos com a mão, rosnando.
— Não tenho tempo para deixar nada de lado essa semana, muito
menos tirar uma folga.
Atlas não está gostando dessa conversa tanto quanto eu e retruca:
— Mas teve tempo de ir atrás de um curandeiro ao invés de procurar
Oli? Bom saber.
North franze o cenho e desvia os olhos de Atlas para mim,
respondendo-me diretamente ao invés de Atlas.
— Eu não queria engatilhar nada em você agora. Precisamos que
esteja com toda sua força, só por precaução.
Atlas olha de um para o outro, então seu temperamento explode.
— Por precaução contra o quê? Que porra aconteceu? Se isso tem a
ver com a segurança de Oli, nós precisamos saber.
North o encara por um instante, então suspira.
— Meu tio foi assassinado hoje. Parece que a Resistência tinha uma
célula adormecida próxima dele, um funcionário da casa que eu conhecia há
mais de uma década cortou a garganta dele enquanto dormia.
Meu estômago revira.
Porra. Porra, eles estão chegando perto de novo. Será que
conseguem sentir onde estou agora? É claro que conseguem, eles têm
Favorecidos cujo único trabalho é encontrar Favorecidos como eu. Que
inferno, depois que escapei de lá, com certeza a tarefa deles se tornou
procurar apenas por mim. Agora que estou de novo com todo meu poder e
chamando atenção como uma droga de farol, é só questão de tempo até me
encontrarem.
Atlas se senta devagar na cama, colocando-se ligeiramente na minha
frente naquele jeito dele de sempre me proteger, não importa quem
estejamos enfrentando. Olho para Gabe, mas ele ainda está dormindo, seu
peito subindo e descendo em um ritmo constante com um braço jogado
sobre os olhos. O vínculo dele deve confiar muito em nós para mantê-lo em
um sono tão profundo enquanto tudo isso se desdobra.
Minha voz sai fraca quando tento oferecer minhas condolências.
— Sinto muito... por sua perda.
North me encara, mas seus olhos estão frios e distantes, como se
estivesse erguendo um muro gigante entre nós para que eu nunca consiga
tocá-lo. Eu entendo, não o culpo, mas preciso me lembrar de que ele tem
tanta responsabilidade quanto eu nisso. Gryphon escolheu deixar para lá
minha suposta fuga. Gabe também, assim como Atlas. Os Draven são os
únicos que não fazem isso.
— Como sabe que foi a Resistência? Quem está reivindicando
créditos pelo ataque? —Atlas pergunta, enquanto desce e pega a camiseta
aos pés da cama, passando-a sobre a cabeça. Dobro meus joelhos e os
abraço contra o peito, apoiando o rosto sobre eles e assistindo os três se
testarem.
Os olhos de Gryphon se estreitam para ele.
— A empregada que fez isso deixou uma mensagem com o sangue
dele, não há dúvidas de quem fez isso. Tem tido muita conversa por aí sobre
a troca de poder nas famílias antigas. A morte de William não será a última.
Olho para North, mas ele está encarando a janela do outro lado do
quarto. Não sei bem se ele era muito próximo ao tio, mas com certeza há
uma nuvem ao redor dele de novo.
O quarto fica em silêncio por mais um instante enquanto todos nos
permitimos processar essa informação, então North volta a se virar para
Gryphon e aponta um dedo para mim.
— Cuida dela. Estão invadindo os grupos Vinculados das famílias
do conselho, virão atrás de nós assim que acharem uma brecha. Um
Vínculo precisa estar com ela o tempo todo fora desta casa, dobre a
presença de Equipes Táticas no campus, certifique-se de que todos saibam
que nesta situação nós vamos atacar primeiro e fazer perguntas depois.
Não acho que isso faça muito sentindo, mas todos os três estão
concordando um com o outro e, embora eu saiba que me sentirei
claustrofóbica até o fim do dia, também sei que prefiro morrer a ser levada
pela Resistência de novo.
Atlas se ajeita outra vez, entrando um pouco mais na minha frente,
mas Gryphon acena com a cabeça e se levanta:
— Nós vamos transferir os treinos para a academia da casa. Oli,
comece pela esteira. Vá se vestir, a gente pode começar agora, não faz
sentindo tentar voltar a dormir. Bassinger, você devia vir também. Ser forte
não serve de nada sem conhecer a técnica.
Ai caramba.
Atlas tem a exata reação que espero que tenha com essa afirmação e
vira uma estátua na cama ao meu lado.
Hora de fugir.
Arrasto-me da cama e dou um beijinho em sua bochecha ao pegar
um suéter dele para vestir por cima do pijama. Quando vesti essa camiseta
minúscula e calcinha para dormir ontem, não estava esperando um quarto
cheio deles, e preciso me cobrir um pouco para voltar ao meu quarto.
North me acompanha para fora do quarto e me segue para dentro do
elevador. Ele está completamente distraído com o celular e finge que nem
está me vendo enquanto aperto o botão do terceiro andar. Não julgo. Em
geral, eu ficaria muito feliz por ele estar me ignorando, mas tem algo de
muito destruidor neste tipo de silêncio.
O tipo em que ele perdeu alguém e eu não faço ideia de como dizer
algo a ele sem parecer que estou sendo falsa ou petulante.
As portas voltam a se abrir e saímos juntos, caminhando lado a lado
no corredor até chegarmos ao meu quarto. Hesito quando paro na porta,
prendendo o lábio inferior entre meus dentes como se pudesse ficar em
segurança, ou alguma merda do tipo, se mordesse o suficiente. North não
ergue os olhos do celular quando para por instinto perto de mim, sei que o
que ele está vendo ali é importante e o está deixando puto pela posição de
seus ombros agora.
Não quero piorar as coisas, mas... também não posso deixar para lá.
— O que quer que precise dizer, diga logo e continue com seus
afazeres. Gryphon e Bassinger estão esperando por você.
Limpo a garganta e murmuro:
— Não procure um curandeiro da próxima vez. Curar não esgota
meu dom e meu vínculo não... gosta quando outras pessoas curam vocês. É
que... droga, quer dizer, você pode fazer o que quiser, é óbvio, mas não vá
atrás de outra pessoa por mim. Porra, me ignora, vou mandar meu vínculo
calar a boca.
Seus olhos disparam de uma vez para os meus, mas já estou
correndo para dentro do quarto e fechando a porta sem fazer barulho. Não
quero ouvir o sermão ríspido que ele está prestes a me dar por exigir coisas
dele enquanto está de luto e lidando com as consequências de perder o tio.
Eu me pergunto se restou alguma família para ele e Nox a essa
altura, já que seus pais morreram e eu só tinha ouvido falar do tio. Tinha me
esquecido de que não sei quase nada sobre todos eles, em especial sobre os
homens Draven, com todas aquelas suas criaturas de pesadelo e sombras
nas quais se escondem.

Gryphon não pega leve comigo só porque Atlas está aqui. Ah não,
ele deixa nós dois atropelados no chão. Atlas pode até ter entrado na
enorme academia supercompleta e ridiculamente cara que North tem no
porão da casa com uma atitude presunçosa, mas Gryphon acaba com a
gente.
— Prefiro morrer a vir aqui todas as manhãs. Não é à toa que
Ardern estava sendo um merdinha convencido quando saí — Atlas
resmunga, jogado no tatame ao meu lado, mas estou sem condições de
conversar agora.
— Sem... falar... droga, difícil respirar — digo ofegante e Gryphon
zomba de mim, segurando minha mão e me puxando para me sentar, e me
entrega uma garrafa de água.
Mal sabe ele que meus dedos não estão mais funcionando, não tenho
capacidade de erguer a garrafa até meus lábios sem tomar um banho. Atlas
geme e se força a se sentar ao meu lado, tira a garrafa de minhas mãos, abre
e tenta devolvê-la para mim.
Não tenho intenção de passar mais vergonha na frente deles hoje,
então só recuso com a cabeça.
— Acho melhor você exercitar sua resistência, Bassinger. Odiaria
ser a única decepção neste Vínculo — Gryphon debocha com um
sorrisinho, embora seja obrigado a se abaixar para evitar a garrafa que Atlas
joga na sua cara.
— Sem insinuações. Isso é sacanagem e não tenho energia pra lidar
com meu vínculo — resmungo, e quando ergo a barra da camiseta para
secar meu rosto, os dois param tudo para olhar toda a pele que estou
exibindo.
Nenhum deles tenta esconder as reações que desperto, e isso
definitivamente me dá uma injeção de ego, porque não duvido nem um
pouquinho da resistência de Atlas. Ele foi rapidinho de morto-vivo à
recarregado e pronto para o segundo round no tatame, só que dessa vez com
menos roupas e...
— Oli, sossega o facho. Você está brilhando — Gryphon diz e eu
volto a me jogar no tatame.
— Vocês que começaram! Droga, preciso de um banho frio.
Atlas bufa e me segura para me colocar em pé.
— Nem me fale em banho frio. Vamos, temos que ir para a aula.
Diga tchauzinho para Shore e avise que nunca mais vamos voltar aqui
porque ele é um sádico.
Não tenho tempo de me sentir constrangida quando Atlas me dá um
empurrãozinho na direção de Gryphon. Sou abertamente carinhosa com
Gabe e acho que ele está presumindo o mesmo quanto a Gryphon, mas...
não faço ideia de como fazer isso. Não faço ideia de como relaxar perto
dele, embora a gente tenha negociado um certo tipo de trégua.
Gryphon ergue as sobrancelhas para mim e eu coro um pouquinho,
mas Atlas sai andando em direção à porta, o que ajuda. Sem ele de olho em
mim, acho que consigo fingir que está tudo bem, agir como se não estivesse
apavorada.
Ainda estou esperando que ele me rejeite de alguma forma.
Gryphon percebe isso, segura meu braço e me puxa contra seu
corpo, murmurando baixinho:
— Falei com Nox. É só você ir ao quarto dele quando estiver pronta
para dormir hoje à noite, depois das 22h, e vou te buscar de manhã. Vai ser
tranquilo, prometo.
Solto um suspiro e concordo com a cabeça, o alívio inunda minhas
veias quando um peso que eu não sabia que estava carregando sai dos meus
ombros. Antes que eu tenha a chance de sentir vergonha ou
constrangimento, ele solta meu cotovelo, segura meu rosto e me puxa para
um beijo.
Ele é bom nisso de um jeito pecaminoso.
Em geral, tento me ater a beijinhos no rosto, e o motivo é
exatamente este, porque meu vínculo pega fogo dentro do meu peito,
tentando com todo desespero destruir as restrições que coloquei sobre ele.
O vínculo de Gryphon toca minha pele, fazendo um carinho em meus
ombros e descendo pelo meu corpo, embora pare de modo respeitoso em
minha cintura.
Se descesse mais, acho que eu me deitaria de pernas abertas aqui
mesmo no tatame e imploraria para ele se Vincular a mim.
Ele se afasta dos meus lábios e murmura:
— Se continuar pensando assim, eu faço mesmo, Vínculo.
Minhas bochechas queimam e dou um empurrão nele para me
afastar.
— Fica de fora da droga da minha cabeça, Shore! Isso também é
sacanagem, você está por um fio aqui.
Ele ri e me dá as costas para começar a arrumar a bagunça que
fizemos aqui.
— Não deu para evitar, você estava quase gritando. Meu dom só
esbarrou no que você estava jogando nele.
Puta merda, Jesus.
Fujo dele e esbarro com tudo em Atlas, então seguro a mão dele
para arrastá-lo daqui comigo.
Inferno de Vínculos idiotas com suas línguas perversas.
*

North não estava para brincadeira quando disse que a segurança


tinha que ser triplicada no campus.
Quando chegamos a Draven, Kieran em pessoa nos escolta até o
prédio e nenhum dos nossos amigos tem permissão de nos encontrar se não
for na parte de dentro. Quando encontramos Sage e Sawyer esperando do
lado de fora da sala de aula discutindo com outro cara de Equipe Tática,
Kieran o dispensa e assume ele mesmo a proteção de Sage.
Eu achava que ele ia nos acompanhar até a porta e depois sair para
fazer suas rondas, mas ele nos obriga a sentar bem no fundo da sala para
poder nos vigiar da parede o tempo inteiro.
Gabe aceita tudo isso com muita facilidade, feliz de ter outro par de
olhos cuidando de mim, mas Atlas ainda está ressentido de ter sido deixado
para trás no estádio quando Kieran me transportou de lá, então discute o
tempo todo.
O que não me surpreende nem um pouco e deixo que eles se
entendam.
Não questiono nada até estarmos todos almoçando, forçando o pior
sanduíche de almôndegas do mundo goela abaixo, então aproveito o
momento para cutucá-lo.
— Achei que você odiasse ser guarda-costas de Vínculo, por que
não designou outra pessoa pra ser meu stalker? Ou foi Gryphon que disse
que tinha que ser você? Fez alguma coisa pra deixá-lo bravo?
Ele arqueia uma sobrancelha muito arrogante e irritadinha para
mim, mas respondo com um sorrisinho enquanto dou outra mordida no
sanduíche nojento.
Kieran não está comendo, mas se sentou com a gente na mesa do
canto, de onde pode ficar de olho em tudo que está acontecendo no
refeitório, também já notei que ele ficou a um braço de distância de mim o
dia todo.
Atlas também percebeu isso.
— Foi decisão de Shore, ele é o chefe, mas concordo. Não tem mais
ninguém na nossa equipe em que a gente confie de olhos fechados que
possa fazer o que eu posso. É uma última medida, mas levar você a um
lugar seguro é sempre uma opção comigo por perto.
Isso faz sentido e aceno em concordância enquanto dou outra
mordida, então Atlas se volta para ele e diz:
— Achei que você odiasse Oli, está sendo um pouquinho amigável
demais para o meu gosto agora.
Sage e eu olhamos uma para outra de cada lado da mesa, porque
isso é um comportamento tão típico de garoto e ultimamente a gente deu
para comparar os nossos garotos. Felix pode até parecer muito mais
cavalheiro que Gabe e Atlas, mas ele faz a mesma baboseira de macho alfa
com ela que os dois fazem comigo.
Gosto muito dele e estou superfeliz que Sage lhe deu uma chance.
Kieran força os olhos em direção a algo que está rolando no canto
do refeitório enquanto responde a Atlas em um tom de voz entediado.
— Eu não a odiava. Eu não tinha respeito nenhum por uma
garotinha que fugiu de um grupo de Vínculo cheio de homens bons que
estavam prontos para protegê-la e tomar conta dela. Eu não respeitava uma
garota que causou um enorme desperdício de recursos pra dar um passeio
de cinco anos pelo país a troco de nada.
Todo o ar escapa dos meus pulmões ao ouvir isso, e coloco devagar
o sanduíche na mesa. Atlas não tem a chance de arrancar o braço de Kieran
e usar o membro para espancá-lo até a morte, embora eu tenha certeza de
que é isso que planeja fazer, porque uma briga estoura a três mesas de
distância de nós. Sage é empurrada contra mim de repente quando Gabe e
Atlas formam uma parede entre nós e a violência.
Eu a empurro para trás de mim também, só para acrescentar uma
camada extra de proteção, e encontro o olhar de Kieran atrás de todos nós,
observando tudo que está acontecendo com olhos atentos e o celular na
orelha.
— Que droga está acontecendo? — murmuro e Sage segura minha
mão, erguendo um pouco a cabeça para conseguir ver melhor por cima de
Gabe.
— Ah, merda. É Jacobs e Martinez partindo um pra cima do outro
de novo. Eles vão acabar sendo expulsos se não pararem!
Então é só uma briga típica entre universitários Favorecidos, nada
com o que se preocupar, exceto que os dois vão desejar ter deixado isso
para outra hora, porque cinco membros de Equipe Tática aparecem do nada
e prendem os dois no chão sem hesitação. Ouço vários barulhos de estalos e
sei que tem alguns ossos quebrados nessa pilha.
Ai.
— Eles estão brigando por causa dos sequestros — Kieran murmura
para nós. — O irmão de Jacobs ainda está desaparecido e Martinez fala
demais porque o papai dele está no conselho. Ele tem sido linguarudo
demais graças à você ter agentes fazendo sua segurança, além de gostar de
dar a opinião dele sobre o favoritismo do conselho.
Merda.
Reviro os olhos para Sage.
— Ele sempre foi um escrotinho. A gente tem que jogá-lo na água
com a vaca do lago, só pra ele ver o que é bom pra tosse.
Kieran balança a cabeça para mim enquanto seus homens arrastam
os dois moleques para fora do refeitório, com as mãos algemadas às costas.
— E é por isso que mudei de opinião sobre você, Fallows.
Fico tensa e ele não desenvolve a ideia até estarmos todos sentados
mais uma vez, tentando terminar nossa refeição em paz. Bem, não existe
paz aqui mais, já que todos estão fofocando e olhando em direção à nossa
mesa, como se fosse minha culpa os alunos estarem perdendo o juízo.
Não posso fazer nada se sou uma mercadoria preciosa, perigosa e
volátil.
— Equipes Táticas não são escolhidas com base em poder. Isso
ajuda, claro, mas existem qualidades melhores pelas quais procuramos
durante as simulações e pistas de obstáculo. Você nunca desistiu, por mais
que estivesse em desvantagem. Você continua insistindo e dando seu
melhor, mesmo quando sabe que vai perder.
Atlas empurra a bandeja para longe e cruza os braços para ouvir,
contraindo a mandíbula como se estivesse furioso, mas agora sei que isso é
um sinal de que ele está refletindo.
Kieran acena com a cabeça para Sage.
— Você foi atrás da sua amiga. Ouviu que ela tinha sido levada e foi
atrás dela, sem se importar com as consequências. Esse tipo de coragem
você não pode treinar alguém a ter. Ou você tem, ou não tem.
Ele esquadrinha o refeitório com os olhos uma última vez, então se
vira para me dar mais um dos sorrisinhos que são sua marca registrada.
— E aí temos o detalhezinho de que a Resistência te conhecia. Você
não fugiu dos seus Vínculos. Aposto cada centavo que tenho nisso. Você
fugiu de outra coisa e, quando foi arrastada de volta para cá, estava
aterrorizada por ter sido localizada. Você disse de modo insistente, vez após
outra, que as coisas vão dar errado se for obrigada a ficar aqui. Bem, agora
nós estamos ouvindo, Fallows. Vamos ver o que vem atrás de você.
16

Gabe estava louco para comer pizza, então depois que meu turno no café
acaba, entramos no carro de Atlas e vamos comprar na pequena pizzaria
local, que fica a duas ruas de distância do campus da Draven.
Já tem uma pequena multidão de alunos lá. Gabe está agitado por
causa dos cinco cafés que tomou enquanto eu trabalhava, então está quase
pulando nas paredes conforme cumprimenta e conversa com as pessoas.
Todos estão sendo mais simpáticos do que têm sido há um tempinho e meu
estômago revira de ódio quando percebo o porquê.
Eles querem informações e possíveis pistas sobre a morte de
William.
São todos cordeirinhos assustados quando se trata da Resistência e,
em vez de tomarem uma atitude, por exemplo, fazer umas aulas de defesa
pessoal ou exercitar seus próprios poderes para dominá-los, escolhem puxar
o saco dos meus Vínculos em troca de proteção.
Os mesmos homens que têm chamado de monstros há anos.
Estou com uma vontade extra de arrancar sangue deles, então
quando Gabe gesticula para eu me aproximar e conhecer alguém, coloco
uma expressão entediada e desagradável no rosto para encarar a pessoa.
Gabe pode estar disposto a brincar de menino de ouro do campus, mas eu só
farei isso por cima da droga do meu cadáver.
Atlas ri baixinho ao ver minha cara, mas vem comigo para ser
apresentado ao cara parado com meu Vínculo.
Gabe arqueia uma sobrancelha, mas o sorriso não deixa seu rosto ao
dizer:
— Oli, esse é o colega de quarto de Gray, Shay.
Isso diminui minha raiva, só um pouquinho.
— Gray já voltou pra faculdade? Merda, desculpa, prazer em te
conhecer.
Shay sorri para mim, simpático apesar da minha atitude de merda, e
encolhe os ombros.
— Sawyer está fazendo o melhor que pode para contornar os pais de
Gray, mas eles são cautelosos até demais. Ele é Telecinético, deviam confiar
um pouco mais nele.
Nossa.
— Olha só, o gatinho do hockey mandou bem, é um bom dom.
Talvez a gente devesse ir lá fazer uma visita para os pais dele, inspirar um
pouco de confiança de que a gente tem tudo sob controle.
Atlas me faz virar para me dar uma olhada feia por causa do apelido
que dei a Grey e eu sorrio para ele, nem um pouquinho arrependida. Minhas
travessuras fazem Gabe revirar os olhos, porque já me ouviu chamá-lo
assim um milhão de vezes, mas também acho que é porque ele sabe que é
só meu jeito de apoiar meus amigos.
Gray é gostoso, mas nem se compara a nenhum dos meus
Vínculos... mesmo aqueles que ainda tenho as minhas dúvidas. Este é o
poder do vínculo, eles são os únicos em quem consigo pensar ou desejar.
Acho uma grosseria do caralho que eu tenha que me sentir assim por ser a
Central, mas que Nox consiga trazer uma garota diferente para jantar a cada
semana sem hesitação.
Eca.
Não posso pensar nisso agora, porque vou dormir na cama dele hoje
à noite e não posso ir até lá furiosa com ele por se atrever tocar em outras
mulheres quando sei muito bem que ele me despreza. Droga. A sensação é
que fico limpando a bagunça que é meu grupo de Vínculos, só para virar de
costas e encontrar o dobro de sujeira atrás de mim.
— Os pais dele não estão no conselho, mas a família está. Eles
sabem tudo o que aconteceu com William Draven, não tem porra de chance
alguma de deixarem Gray sair da torre dele tão cedo, nem mesmo com o
apoio de vocês. Caramba, me contaram o que você fez com aquele
acampamento da Resistência ontem à noite, Gabe. Tenho certeza de que
metade do país já deve ter ouvido. Você é uma fera.
Hã?
É o quê?
Olho para Gabe, mas ele está mantendo um rosto inexpressivo de
propósito e isso faz eu me sentir um pouquinho violenta. Não gosto de ser a
última a saber de tudo, e agora que estamos dando um jeito de ter essa
espécie de relacionamento, sinto vontade de arrancar sangue de Shay por
saber algo que eu não sei.
Atlas segura minha mão e me leva para longe dos dois, em direção
ao balcão para pegarmos nossas pizzas que ficaram prontas. Ele nem olha
para trás para ver se Gabe está nos seguindo ao me conduzir de volta ao
carro e me instalar no banco do passageiro, sem dizer nada e sem me julgar
por essa mágoa furiosa borbulhando no meu peito.
Gabe entra no banco de trás um minuto depois, rindo baixinho
enquanto acena outra vez para alguém lá fora, alheio à tempestade se
formando na minha barriga no banco da frente.
Há um minuto de silêncio em que só minha respiração controlada
pode ser ouvida dentro do carro silencioso. Pelo espelho retrovisor, vejo
Gabe franzindo o cenho para Atlas quando ele não dá partida de imediato e
vai para a pista.
Em vez disso, Atlas afasta as mechas do meu rosto, roçando minha
bochecha com seus dedos gentis, mas nada dessa gentileza está presente
quando ele repreende Gabe.
— Por acaso você se esqueceu que Oli é volátil a um nível violento?
Não deveria esconder dela merdas que já viraram assunto de fofoca desse
lugar.
Gabe olha para mim e suspira, passando uma mão pelo cabelo e
puxando as pontas de leve.
— Eu não sabia como jogar de modo casual na conversa que eu
matei dezoito pessoas na noite passada. Como que eu digo isso sem
parecer...
— Sem parecer que você fez o que era preciso para mantê-la a
salvo? — Atlas interrompe. — É só dizer. Oli não vai quebrar, você sabe do
que ela é capaz.
Mas será que sabe mesmo? Bom, acho que sabe. Já contei tanto para
ele, que deve saber.
— Já matei gente também, Gabe. Você fazer isso não vai mudar
minha opinião sobre você.
— Sim, mas você não estraçalhou dezoito homens com as próprias...
bom, certo, patas, acho. Você sabe o que quero dizer, matei essas pessoas
corpo a corpo, de perto, e isso é bem violento.
Dou de ombros, essa distinção não me perturba, e coloco o cinto de
segurança quando Atlas, por fim, coloca o carro em movimento. Nenhum
de nós fala até Atlas parar no sinal vermelho na última esquina antes de
chegar ao condomínio fechado no qual a mansão Draven fica.
— North e Nox foram à caça depois que encontraram William.
Gryphon e eu descobrimos depois que eles já estavam até o pescoço no
acampamento da Resistência, tarde demais para parar, então tivemos que
esperar até passar a fúria assassina deles e nos certificar de que mais
ninguém chegasse perto — Gabe diz em voz baixa, e tenho a sensação de
que ele acha que está traindo sua família ao nos contar isso agora.
Estando por perto deles quase vinte e quatro horas por dia, comecei
a entender a dinâmica que já estava em vigor antes de eu chegar. North não
é só o mais velho, ele também é quem assumiu responsabilidade por todos.
Ele e Gryphon tomam as decisões, já que ambos são líderes naturais. Nox é
o mais imprevisível, é leal aos outros, mas é do tipo que trilha seu próprio
caminho. Ainda não o entendo direito, ainda mais porque o jeito como o
tratam e se recusam a repreendê-lo quando faz merda me deixa confusa,
mas estou dando um jeito.
Gabe com certeza é o “irmãozinho caçula” do grupo.
Eles não o tratam como inferior, embora seja o mais novo e ainda
esteja na faculdade, mas é possível ver que têm com ele aquele mesmo tipo
de relacionamento protetor e cuidadoso que um irmão mais velho teria.
Ele conversar sobre isso com a gente agora é uma oferta, um ato de
fé de que estamos todos fazendo o possível para construir uma ponte sobre
o abismo que todos nós enxergamos no meio do nosso Vínculo.
O sinal fica verde e Atlas acelera de novo enquanto pergunto:
— Como North se machucou? Nox ficou bem?
Gabe esfrega os olhos com uma mão.
— As criaturas de North não são como as de Nox. Elas são raivosas
pra caralho. Ele estava com tanta fúria pelo que aconteceu com William que
se forçou demais, então quando tudo acabou, ele mal tinha energia
suficiente para... guardá-las. Uma delas abocanhou um pedaço do braço
dele antes de ele colocá-la sob controle.
Puta merda.
Viro para trás no banco e olho para Gabe, seus olhos abaixam até
onde Brutus está aconchegado atrás da minha orelha. Ele é tão quietinho e
calmo que às vezes me esqueço de que está ali, as vibrações suaves de seus
roncos são o único sinal de que está sempre comigo.
— Nox estava bem. Exausto, porque ele também se forçou além dos
limites, mas o Gryphon o levou pra casa e o limpou. As criaturas dele nunca
permitiram que ele se machucasse em todo esse tempo em que o vejo lutar.
As de North matam de forma indiscriminada, mas as de Nox são muito bem
treinadas para manterem seu mestre em segurança.
Engulo em seco e faço que sim, virando o rosto por instinto em
direção a Brutus quando ele pressiona o focinho em minha pele de um jeito
carinhoso.
— Como sabiam onde encontrar o acampamento? Acho difícil de
acreditar que estavam putos da vida e tropeçaram em um por acidente no
meio da noite — Atlas diz, trocando a marcha e depois pousando a mão em
meu joelho, em seu próprio jeito de me apoiar e me mostrar que nada disso
vai afastá-lo de mim.
Gabe encolhe os ombros.
— North e Gryphon têm localizado e mapeado os campos de
triagem da Resistência há anos. Eles estimam que têm cerca de trinta por
cento sob monitoramento, mas estão com dificuldades de alcançar os
números que precisam nas Equipes Táticas pra acabar com eles. É um
dilema, porque as famílias mais proeminentes da sociedade se recusam a
entrar nas equipes e lutar, mas elas também se tornaram pilares da
comunidade por serem favorecidos de Nível Superior. As famílias mais
humildes estão dispostas, mas não necessariamente possuem os dons de que
precisamos na luta.
Meu Deus.
Solto o ar pela boca e observo a noite passar pela janela do carro.
Sinto a culpa crescer dentro de mim por ter sido tão teimosa a respeito das
aulas de TT, porque é lá que Gryphon precisa encontrar mais recrutas.
Porra, até Zoey seria útil com seu poder de nocautear as pessoas.
Vou precisar falar com ele sobre colocá-la de volta na aula.
Não é como se ela fosse capaz de me atingir agora, de qualquer
jeito, e tenho certeza de que posso fazê-la ter uma compreensão melhor do
que é trabalhar em equipe, nem que seja na marra.
Atlas grunhe e me olha de soslaio:
— Você vai me obrigar a continuar treinando com aquele sádico,
não vai?
Ofereço um meio sorriso e finjo indiferença.
— Pense nisso como um jeito de provar a ele que aguenta. Não
duvido de você, mas vocês todos têm um lance esquisito de querer provar
quem é o mandachuva por aqui.
Atlas espera até o carro estar estacionado e estarmos a caminho do
meu quarto para comer a pizza antes de me colar ao lado do seu corpo e
sussurrar ao meu ouvido:
— A única pessoa a quem tenho interesse em provar do que sou
capaz é você, e sei de formas muito melhores de conseguir isso, Doçura.

Ergo a mão para bater à porta, mas me acovardo.


Pela terceira vez.
Isso está começando a ficar patético. Sério mesmo, qual a pior coisa
que Nox pode fazer comigo por vir até seu quarto na noite agendada,
quando ele já concordou em me receber aqui? O problema é que não estou
me sentindo muito racional a respeito disso tudo, mesmo repassando as
instruções de Gryphon na cabeça, e estou cagando de medo.
Meu vínculo está silencioso dentro do peito e acho que é isso que
me assusta mais, o jeito como já decidiu que ele nunca vai mudar o que
pensa a meu respeito e preciso reduzir minhas expectativas a... bem, nada.
Será que é tarde demais para argumentar contra esse arranjo com
North?
Olho para a porta dele, porque é claro que neste andar da casa só
tem três quartos e é claro que esses quartos pertencem a North e Nox, e que
me colocaram no outro.
Certo.
É só bater na porta, Oli. Vira homem. Vira mulher? Porra, qual é o
jeito melhor e mais progressista de dizer: “se recomponha nessa merda e
pare de ser um bebezinho chorão, mulher”? Não sei, mas isso também deve
ser só outro método de procrastinar o que tenho que fazer.
Obrigo-me a bater à maldita porta imaginando a carranca que
Gryphon estaria fazendo para mim agora se soubesse que eu estava
surtando por causa disso. Ele estaria ofendido por eu ter duvidado dele e do
quanto ele estava confiante de que tudo daria certo.
Espero por três minutos inteiros antes de bater o pé no chão e bufar
como uma criancinha petulante, é claro que ele não vai atender à porta e de
fato me deixar entrar. Ele deve ter instalado uma câmera espiã para me
assistir esperando aqui como uma patética...
Certo, pode parar de sentir pena de si mesma, Oleander.
Tento a maçaneta e não está trancada, então respiro fundo e enfio a
cabeça por uma fresta para chamar:
— Nox? Isso não tem graça, posso entrar ou não?
Nada.
Que homem desgraçado, quero matá-lo e me banhar em suas
entranhas.
Termino de abrir a porta e entro no quarto, depois fecho a porta com
o pé enquanto meus braços envolvem meu próprio corpo de tanta ansiedade
conforme olho pelo quarto escuro.
Estou bem.
Está tudo bem.
Que se foda, convoco meu poder para ajustar meus olhos à
escuridão e vejo que estou parada no meio de uma biblioteca.
Certo, não é bem uma biblioteca, porque tem o mesmo tamanho e
disposição dos outros quartos neste andar, mas não há cama e todas as
paredes estão cobertas com estantes de livros. Dou um passo à frente e, sim,
o banheiro fica no mesmo lugar que o meu, assim como o closet, com a
diferença de que o de Nox está cheio de livros, e quero dizer cheio de
livros. Não há uma única superfície aqui que não esteja transbordando com
volumes antigos de capa de couro.
Este é um lado diferente do professor, um que não deveria me
surpreender tanto... não sei o que eu estava esperando, mas não era isto.
Ando pelas estantes e só quando chego do outro lado do quarto que
encontro a escada em espiral pequena e estreita, escondida atrás de um
canto que com certeza não existe no meu quarto.
— Nox? Você está aí em cima? — chamo com a voz um pouco
menos esganiçada do que antes, mas ele ainda não responde.
Dou uma última olhada pelo quarto, mas não há sequer um sofá ou
uma poltrona onde eu possa me deitar aqui embaixo, então preciso pelo
menos dar uma olhada lá em cima.
De início, sigo devagar e com hesitação, mas quando vejo o quarto
no segundo andar, meus pés se movem muito mais rápido.
Nox dorme em um sonho.
Certo, isso foi um pouquinho dramático, o quarto é menor do que o
do andar de baixo e, como o outro, está coberto por livros, mas não de
forma tão organizada. Não, é claro que ele está lendo os que estão aqui em
cima, há pilhas deles em todas as superfícies. Há uma cômoda em um canto
e mesas de cabeceira de cada lado da cama king size.
É limpo de um modo metódico, mas desordenado, daquele tipo de
desordem que vem com uma mente muito ativa, e acho que é o mais
próximo que já cheguei de saber algo pessoal sobre Nox.
Sento-me com cuidado na cama e envio uma mensagem para
Gryphon perguntando o que diabos faço, mas a resposta dele não me enche
muito de confiança.

É só dormir. Estarei aí às 4h para treinarmos.


Vamos começar às 4h, o que me dá seis horas de sono, então, quer
Nox esteja aqui e goste disso, quer não, preciso dormir.
Já estou vestida em uma calça de moletom e uma camiseta velha de
Gabe, então só entro debaixo da coberta. Não sei qual lado da cama é o de
Nox, então subo no lado mais distante e me deito em posição fetal. Estou
tão cansada que, mesmo estando uma pilha por estar aqui, caio no sono com
facilidade.
Acordo horas depois com o brilho fraco das criaturas de pesadelo de
Nox.
Elas estão por todos os lados.
Brutus está maior do que de costume, aconchegado ao meu lado na
cama. Quando olho ao redor dele, deve haver pelo menos uma centena de
criaturas deitadas pelo quarto, cobrindo cada superfície. A maioria delas
mal passa de contornos de névoa, mas consigo discernir outros filhotes de
diferentes tamanhos. Estão todas adormecidas e empilhadas uma sobre a
outra, e minha respiração fica presa no peito olhando para todas.
São lindas, feitas de uma névoa assassina, mas com um brilho
estranho, como se mesmo na mais escura das noites ainda houvesse a luz de
milhões de estrelas para guiar seu caminho. São assombrosas e belas e estou
obcecada por todas. Quero conhecer cada uma delas assim como conheço
Brutus, e há uma dor profunda dentro de mim porque sei que é bem
provável que nunca vou poder, porque Nox não permitiria.
É sentindo essa dor no peito que o encontro no sofá, com a cabeça
jogada para trás, o cabelo uma confusão de ondas escuras enquanto ele solta
um longo suspiro. Fico congelada, mas tento manter minha respiração
estável e lenta para que ele não perceba que estou acordada. Ele está
vestindo calça de alfaiataria e camisa com os três primeiros botões abertos.
Seus pés estão descalços e ele parece mais cansado do que já o vi antes,
cheio de marcas que indicam que teve alguns dias brutais.
Não posso confortá-lo, mas isso não impede essa vontade que sinto
em meu peito de poder fazer isso.
Fico deitada lá e observo Nox de cara fechada no sofá, olhando para
cada uma das criaturas espalhadas com algo semelhante a carinho em seus
olhos um pouco vidrados. Elas com certeza não são as criaturas raivosas
sob o domínio de seu irmão, são todas dóceis e suspiram enquanto dormem
em volta de nós.
É sereno.
Se eu ao menos conseguisse esquecer o quanto ele me detesta, seria
o momento mais perfeito que tivemos. Bem, na verdade não, porque ele não
faz ideia de que estou acordada e o observando agora mesmo. Eu deveria
abrir a boca e escolher algumas palavras para ele, oferecer meus pêsames e
dizer a ele o quanto quero limpar a Resistência da face da Terra, mas tudo
fica preso na minha garganta.
Ouço o barulho baixinho da porta lá embaixo abrir e fechar devagar,
meu vínculo me dá um puxão no peito para me avisar que um dos meus está
aqui, então North surge na escada, aproximando-se com passos silenciosos
enquanto caminha pelo carpete para dar uma olhada pelo quarto.
Ele fica bem menos calmo e satisfeito do que eu ao ver as criaturas
pelo cômodo todo.
Nox nem olha para ele, mas reclama em um tom de voz irritadiço:
— Veio me vigiar também? Gryph já foi bem firme a respeito do
que tem permissão de acontecer aqui.
North se senta no sofá ao lado do irmão, mas está tão escuro que
nenhum dos dois percebe meus olhos abertos.
— Vim aqui ver como você está. Sei que não queria isso, e não
quero encontrá-lo bebendo durante as aulas de novo... ou correndo para
encontrar alguém idiota o bastante para brigar com você como da última
vez.
Nox bufa para ele e esfrega o peito com uma mão. Ele para e olha
para seus dedos, depois os ergue e os observa no breu do quarto. Ele deve
estar usando seu dom.
— Acho que nunca vou me acostumar com eles retos. Estou bravo
com ela por ter interferido com algo que não tinha direito nenhum.
North dá de ombros.
— Ela não sabia. Não tinha nenhum controle sobre o que fez, você
sabe disso. Tenho tantas reservas a respeito de tudo isso quanto você, mas
você tem que ser razoável, Nox.
Ele movimenta os dedos como se estivesse testando-os.
— Não tenho que fazer nada. Foi o que você disse quando me
trouxe de volta. Não tenho que fazer nada que eu não queira.
North pressiona seus lábios fechados e quase consigo ver Nox
dando um pontinho para si mesmo por esta pequena vitória. Brutus suspira
dormindo e se vira na minha direção, então fecho os olhos de novo, para o
caso de o movimento atrair a atenção deles para cá.
Quando North volta a falar, sua voz está mais baixa, mais gentil no
silêncio do quarto.
— As criaturas gostam dela. Achei que tivesse mandado um espião,
mas olhe só para todas elas.
— Ou só a estão cercando para se certificar de ela não saia da cama
sem que elas notem.
North faz um barulho de irritação no fundo da garganta.
— Ela mal passa de uma criança, Nox. Não vai fazer nada. Ela não
é...
— Não começa. Não vou conversar sobre isso. Se tentar, vou te
atirar pela escada. Ela está aqui porque é seu Vínculo, e do Gryphon e do
Gabe. Já que vocês insistem em me manter vivo e aqui, vou fazer minha
parte, mas ela não é minha. Nunca será.
Pela primeira vez em muito tempo, meu vínculo fica triste ao pensar
em não ter Nox e, enquanto engulo a bile que subiu pela minha garganta ao
ouvir as palavras dele, forço meu vínculo a ficar quieto.
Ele tomou a decisão dele, e eu também.
Eu não me Vincularia a ele, mesmo que o mundo não dependesse de
isso não acontecer.
North sai em silêncio do quarto e Nox se deita no sofá, puxando um
cobertor sobre si e se ajeitando para dormir um pouco. Um metro e meio
nunca me pareceu uma distância muito grande antes, mas agora?
Agora acho que nunca vou conseguir superar essa lacuna.
17

— Caralho, eu te odeio. Odeio cada pedacinho seu, e se você não


estivesse nesse Vínculo, eu ia quebrar seu pescoço e esconder a porcaria do
seu cadáver no lixo que é seu lugar.
Gabe chega a roncar ao rir do veneno que pinga das palavras de
Atlas, mas o olhar que Gryphon lhe dá o faz se calar rapidinho. Não tenho
energia nem oxigênio à minha disposição para xingar nenhum dos dois,
então só me concentro em recuperar o fôlego.
Passei uma hora na esteira, depois Gryphon me colocou para erguer
peso com Gabe enquanto ele treinava combate corporal com Atlas. Ficou
muito claro para mim que, quem quer que tenha se encarregado do
treinamento de Atlas na Costa Leste, permitiu que ele relaxasse em sua
forma, graças ao seu dom.
Gryphon não é esse tipo de treinador.
Nunca o vi usar a habilidade dele antes, a não ser seu detector de
mentiras e o de anestesiar, e é um pouco estranho e uma lição de humildade
assisti-lo invadir o cérebro de Atlas e anular seu poder a cada avanço. Sério
mesmo, sempre que Atlas pensa em usar seu dom para vencer a luta,
Gryphon apenas o bloqueia.
É por isso que agora estamos vendo um Atlas furioso.
— Se você não consegue me vencer sem trapacear, então te
considero um inútil. Se eu te considero um inútil, não posso confiar a
segurança de Oli a você e os dois vão ter um acompanhante sempre que
estiverem fora dessa mansão, então vá em frente, fique bravinho. Não vou
arriscar meu Vínculo com um amador. Tenho certeza de que Gabe ficaria
feliz em assumir o seu tempo com ela — Gryphon diz, enquanto ajeita a fita
nas mãos.
Gabe está quase brilhando de orgulho pelo que ele disse. Com
certeza suas bochechas vão ficar doloridas daqui a pouco, considerando o
tamanho do seu sorriso, mas Gryphon também nunca foi de distribuir
elogios para mim, então sei que a sensação de saber que ele tem tanta
estima pelas habilidades de Gabe deve ser ótima.
Nunca tive dúvidas. Já o vi lutar vezes o suficiente para saber que
ninguém se compara a ele em nossa turma de TT. Foram anos de treino
árduo para chegar até onde ele está, não apenas com sua técnica, mas com o
controle que ele tem sobre seu dom.
Ele é bem valioso, não apenas para nosso Vínculo, mas para a
comunidade como um todo.
Atlas range os dentes, mas Gryphon apenas dá de ombros, sem dó.
— Oli só está treinando há alguns meses, e o posicionamento de pés
dela é melhor que o seu. Sei lá que treinador vagabundo e careiro seus pais
arrumaram para você, mas deveriam exigir um reembolso.
Atlas me dá uma olhada, mantenho meu rosto inexpressivo e volto a
erguer meus pesos, com Gabe pairando atrás de mim para me ajudar. Não
gosto nadinha disso aqui, mas estou fazendo tanto progresso nos exercícios
que Gryphon passou, que já estou com medo dele mudar tudo e me matar
de novo.
Gryphon nos observa com atenção, e quando Atlas inspira fundo
mais uma vez, ele ergue suas sobrancelhas de forma questionadora.
— Você fez com um ótimo trabalho com Oli. Vou me esforçar mais.
Eita.
Não é a resposta que eu estava esperando, mas fico satisfeita por
dentro porque Atlas... tudo bem, não é como se ele tivesse recuado, mas
está disposto a admitir que Gryphon é o melhor nisso.
Isso diz muito sobre uma pessoa.
Gryphon não fala mais nada, mas quando Atlas vira para começar a
praticar as posições outra vez, de forma mais lenta e focada agora, posso
ver que meu Vínculo rabugento e com cicatrizes também está
impressionado de verdade com ele.
Gryphon nos mantém lá pelo dobro do tempo habitual, mas é sábado
e não temos aulas hoje, então não temos uma desculpa para pedir que nos
libere.
Atlas também se torna focado ao extremo em aprender o que está
sendo ensinado, e quando Gryphon enfim nos manda alongar e sumir por
hoje, ele já está contendo seu poder de modo consistente. Gryphon continua
murmurando críticas o tempo todo enquanto repassa as posições, mas, pelo
menos, não está mais fuçando no cérebro de Atlas.
O alongamento é minha parte preferida dessas sessões de tortura,
porque é algo que posso fazer com a bunda no tatame e requer zero
resistência e esforço, então não tenho pressa. Gabe mal faz os alongamentos
básicos e começa a me encher para me levantar, mas estou com uma dor
aguda nas costas que quero aliviar, então ignoro seus olhares de súplica.
Quando Gryphon termina de limpar os aparelhos, ele guarda suas
coisas na mochila e sai sem nos oferecer mais do que um breve aceno de
cabeça. Ele está de cabeça cheia, soube assim que veio me buscar no quarto
de Nox, então nem fico ofendida por ele não vir me dar um tchau decente.
Tudo bem, talvez meu vínculo esteja um pouquinho irritado, mas o
meu lado racional está de boa.
Assim que ele fecha a porta, Atlas se debruça para beijar minha
bochecha e murmura:
— Como foi sua noite, Doçura? Você parece bem, mas preciso
conferir.
Eu sabia que ele faria isso, então só encolho os ombros.
— Foi boa.
Ele semicerra os olhos para mim.
— E o que “boa” quer dizer? Sinto que preciso entrar no chuveiro
com você e ver se tem hematomas ou algum dispositivo de rastreio novo
que ele tenha enfiado enquanto você dormia.
Nego com a cabeça e me deito de novo no tatame, porque não tem
motivo para ter pressa. Tenho que trabalhar mais tarde e preciso terminar
um trabalho da faculdade, mas tenho o dia todo para organizar essas coisas.
Gabe se aproxima de nós com mais água, entrega-me uma garrafa e
agacha para afastar meu cabelo do rosto, exibindo o esconderijo de Brutus.
— Ele continua aí, então sei que você ficou bem e Bassinger só
precisa tirar esse graveto enfiado na bunda dele.
Abro a boca para tentar impedir o dois de começarem outra
discussão, mas sou interrompida por um bang estrondoso e a casa tremendo
um pouco nos alicerces.
Atlas está em cima de mim em um instante.
Gabe se levanta de um pulo e entra na minha frente, tirando o
celular do bolso, mas já tem uma mensagem ali que o faz xingar com
veemência.
— O que foi? Desembucha! — Atlas estoura enquanto se levanta e
me puxa junto.
Os dois estão tão perto de mim, formando um escudo ao meu redor
com o corpo deles, embora ainda não haja perigo algum neste cômodo, e
preciso me contorcer entre ambos para conseguir beber a água que Gabe me
entregou.
Se vamos lutar com alguém daqui a pouco, preciso estar hidratada.
— Sharpe está aqui. Ele acabou de atacar abertamente outro
membro do conselho e agora veio atrás de North.
Começo a atravessar a academia antes que Gabe termine de falar e
Atlas pragueja correndo atrás de mim.
— Você não pode apenas ir lá sem uma estratégia, Oli. North pode
cuidar de si mesmo.
Gabe corre atrás de nós dois.
— North disse para ficarmos aqui. Sharpe acordou Nox também,
então está tendo que lidar com dois Draven cansados e bravos.
Tento parar, mas meu vínculo não está a fim. Nem um pouquinho.
Se tem alguém aqui atrás dos nossos Vínculos, esse alguém vai pagar.
Todos vão ter que aprender do que somos capazes. Sinto meus olhos se
transformarem e é o fim de qualquer chance que eu tivesse de pensar de
modo racional.
— Droga, liga para Shore e diga que estamos indo com tudo —
Atlas retruca, mas estou andando rápido demais para conseguirem avisar
meus outros Vínculos.
Posso não saber me locomover por esta casa, mas meu vínculo nem
hesita ao me conduzir através dos labirintos dos corredores e, quando
percebo, já estamos na porta da entrada.
O gramado da frente desapareceu.
Há um buraco gigante na entrada de carros que vai ser uma merda
consertar. Levo um segundo para entender por que Atlas está apertando
meu cotovelo, mas com as névoas pretas de North por todos os lados, eles
não conseguem ver nada.
Graças a Deus tenho minha visão de vácuo, porque meus passos
nem vacilam.
Deve ter pelo menos uma dúzia de pessoas aqui, espalhadas na
frente da casa em várias formas Favorecidas diferentes. Os olhos de todos
eles estão brancos e brilhantes enquanto convocam seus vínculos à luta, e
sou atingida pela necessidade de destruir cada um. Como se atrevem a vir
aqui atrás dos meus vínculos?
Sharpe está bem na frente e no meio, um homem de aparência cruel
exibindo os dentes, e três de suas Vinculadas estão com ele. Porra, certo,
reconheço uma como a Telecinética que estava mexendo o drinque com o
dedo naquele maldito jantar do conselho ao qual North me arrastou, então
sei que tenho que ter cuidado com ela. As outras estão brilhando, mas não
vejo nada que indique suas habilidades.
Não sei do que elas são capazes, mas Gryphon está observando
todas com muita atenção, vestido em seu uniforme Tático e óculos que lhe
dão visibilidade. Ele deve ter sido chamado no segundo em que nos deixou
e se vestido no caminho.
Nox ainda está usando as mesmas roupas nas quais dormiu no sofá
na noite passada, e está rosnando para o grupinho de Favorecidos atrás de
Sharpe. Não tenho ideia de quem são essas pessoas, não que meu vínculo de
fato se importe.
Estão todos daquele lado, então são uma ameaça.
Ameaças não serão toleradas.
Preciso muito argumentar com meu vínculo, mas ele não está para
brincadeira hoje. Acho que ele já aguentou muitos ferimentos e conversas
sobre meus Vínculos terem se machucado nos últimos tempos e decidiu que
já deu.
Mate todos.
Sharpe grita com sua voz arrogante e mordaz:
— Aí está ela! O Vinculozinho fugitivo que você está destruindo
nossa comunidade para proteger. Você se atreve a vir atrás de mim e da
minha família só para proteger uma menininha qualquer? Um Vínculo
insignificante de família ruim que não se submete? Ela devia ter continuado
longe.
Os olhos de North deslocam na minha direção e a Vinculada
Telecinética de Sharpe aproveita a distração para atirar uma rocha enorme
nele. Duas coisas acontecem ao mesmo tempo: uma criatura de pesadelo,
mais névoa do que forma, eclode para fora seu peito e joga a pedra para
longe como se não fosse nada.
E meu vínculo derruba a mulher no chão.
O grito dela é breve, mas alto o suficiente para que todas as pessoas
presentes parem e olhem boquiabertos para a mulher, horrorizados quando
seus olhos reviram para trás. Não sinto nada, nem uma única emoção
quando ela cai no chão e se contorce.
Brutus decide que não gosta do barulho daquele grito e pula para o
chão, multiplicando de tamanho de forma a estar batendo na minha cintura
quando começa a rosnar em todas as direções.
A mão de Sharpe está tremendo ao se estender para sua Vinculada.
O sangue já começando a sair dos olhos dela, e se o tempo que passou no
conselho lhe ensinou alguma coisa sobre mim, sabe que ela não pode ser
salva.
Ele olha para mim, e a voz que sai de mim pertence apenas ao meu
vínculo frio e impiedoso:
— Você não deveria ter sido ingênuo de tocar nos meus. Isso não é
nada comparado ao que eu poderia fazer com ela.
Seus lábios se curvam e os olhos dele voltam a ficar brancos, mas já
sei que sou mais forte que ele. Meu vínculo fica satisfeito no meu peito
quando o dom dele tenta me penetrar e não consegue nada. Porém, perder
seus Vinculados e vê-los feridos sem dúvida acaba com a racionalidade de
alguém, e ele se levanta de uma vez, pronto para me atacar, mas só
consegue dar um passo antes que a criatura de North o alcance.
Mas aí estão aqueles meus problemas mentais de novo, porque não
fico assustada nem enojada quando ele é literalmente despedaçado, um
membro de cada vez, bem na minha frente. Brutus assiste tudo isso
acontecer sem se juntar ao confronto, analisando a cena com seus olhos
penetrantes, e eu agacho para abraçar seu pescoço e lhe dar um cheiro.
Meu vinculo gosta muito dele.
— Oli, por favor, venha para dentro. Deixe os outros cuidarem disso
— Atlas murmura às minhas costas, a dois passos de mim, no lugar em que
parou quando meu vínculo apareceu. Fico feliz por ele ter parado, ainda
mais quando North grita para nós dois.
Quando viro, vejo sua criatura vindo em nossa direção.
Ele assume uma aparência mais sólida a cada passo que dá, até que
estou olhando para uma criatura com aparência de Doberman, com vácuos
nos olhos e um conjunto cruel de dentes afiados, que estão expostos, já que
ele parece ofegar como um cachorro de verdade. A descrição de Gabe de
que as criaturas de North eram todas raivosas perpassa em minha mente e
Gryphon começa a correr na minha direção, mas eu só estendo o braço para
ele.
Como eu sabia que a criatura só queria uma coçadinha na orelha,
como a que Brutus está ganhando? Não faço ideia, mas ele choraminga e
vibra de puro prazer quando lhe dou uma, botando a língua para fora e
fechando seus olhos de vácuo de prazer por toda atenção que estou dando a
ele.
Converso baixinho com ele enquanto ouvimos os barulhos de uma
luta atrás de nós, mas meu vínculo está focado demais na bela e assustadora
criatura em minha frente.
— Você é tão lindo, obrigada por ajudar. Não morda seu
irmãozinho, ele é meu preferido, mas você pode ser preferido também,
quer? Ah, carinho na barriga também? Tá bom, você pode ganhar carinho
na barriga também.
Brutus empurra meu ombro com o focinho porque não gosta de
dividir minha atenção, e preciso fazer trabalho extra para dar o mesmo tanto
de carinho aos dois.
— Mas o que, e não consigo enfatizar isso o suficiente, caralhos
está acontecendo aqui? — Gabe murmura em absoluto pavor. Ergo os olhos
e encontro todos meus Vínculos parados ali, assistindo eu dar amor aos
cãezinhos.
Certo, os dois estão em forma de Dobermans adultos agora, mas
continuam sendo só filhotinhos fofos.
Gryphon, muito devagar, agacha até ficar da minha altura, de olho
na criatura de North o tempo todo como se soubesse que ela está sonhando
em enfiar os dentes em sua garganta, então fala comigo em um tom muito
baixo:
— Oli, preciso que você pare de fazer carinho na criatura e se afaste
um pouquinho para North conseguir guardá-la.
A criatura não gosta do som da voz de Gryphon e vira a cabeça para
rosnar para ele.
Brutus rosna de volta, desequilibrando-me um pouco para se colocar
entre nós, e preciso entrar no meio de novo para impedir que eles briguem.
Ouço vários palavrões ao meu redor, mas ignoro todos enquanto seguro a
criatura de Nox pelo focinho e viro seu rosto para mim.
— Nada de rosnar para os meus Vínculos. Que malcriado, nada
disso, se fizer isso de novo, não vou te dar carinho.
Ele joga a bunda no chão para sentar-se, e seu rabo balança daquele
jeito que informa que ele sabe que não estou muito feliz com ele agora.
Olho para North, que está suando um pouco, e digo:
— Qual é o nome dele? Como você já sabe, vou te julgar se for
bobo.
Ele inspira fundo, ergue a mão na direção da criatura e sua palma
fica preta quando ele o convoca de volta. Antes que eu possa dizer alguma
coisa, a criatura se foi.
Jogo as mãos para cima e brigo:
— Não disse para pegá-lo de volta! Agora ele foi pra casa achando
que estou brava com ele! Não seja um babaca, traga ele de volta!
Ele fecha a mão em um punho e rosna para mim enquanto range os
dentes:
— Se acalma. Seus olhos ainda estão pretos e estamos prestes a ter
mais Equipes Táticas aqui para limpar tudo.
Brutus esbarra nas minhas pernas, insatisfeito por eu estar brigando,
mas estou irritada porque North levou a criatura embora.
— Devolve ele pra mim. Se consigo lidar com Brutus, consigo lidar
com o... qual é a porcaria do nome dele?
North só me dá as costas e sai andando.
Quero assassinar esse homem.
Assim que começo a ir atrás dele, pronta para acabar com a sua raça
por ter me dado as costas durante uma briga como se eu fosse sua
subordinada, Gryphon entra na minha frente e ergue as mãos para mim. É
um gesto para me apaziguar e é tão incomum da parte dele que eu paro de
verdade.
— Seus olhos, Oli. Respira fundo e se acalma, se não conseguir, vai
ter que ir lá para dentro, porque não posso permitir que você perca o
controle e destrua minha equipe só porque está brava com North.
Paro e olho em volta outra vez, analisando um pouco melhor meu
entorno agora que não estou tão focada nas criaturas, e é verdade, a Equipe
Tática de Gryphon está parada ao nosso redor, olhando para mim como se
eu fosse o monstro mais apavorante e aterrorizante que já existiu.
O que não faz sentido nenhum para mim.
Tudo que fiz foi proteger North de uma mulher que deveria ter tido
mais juízo. Todos eles são treinados para matar membros da Resistência e
proteger a comunidade Favorecida, e vão ficar aí me julgando porque
protegi as drogas dos meus próprios Vínculos?
Gryphon, esse cuzão, lê minha mente de novo.
— Não, eles estão te encarando porque você abraçou uma criatura
de pesadelo que todos foram treinados a nunca chegarem perto ou entrarem
no caminho. Todos eles aprenderam um milhão de vezes a nunca, em
hipótese alguma, tocar em uma criatura dos Draven, e agora mesmo você
estava fazendo carinho no desgraçado mais assustador de North. É isso que
os deixou cagando nas calças.
Sinto meus olhos enfim voltarem ao normal enquanto olho feio para
ele.
— Saia da minha cabeça. Além disso, ele era fofinho. Acho que
você precisa de uma Equipe Tática nova se eles se assustam tão fácil assim.
Kieran, que está se aproximando com só um tiquinho de hesitação,
para na frente de Gryphon e ergue uma sobrancelha para mim.
— Você acabou de ver aquela criatura despedaçar um homem, não
pode fingir que são dóceis agora.
Aceno com uma mão de maneira desdenhosa para ele.
— Claro, porque Sharpe ameaçou North! Isso não é matar alguém, é
pôr o lixo para fora.
Ele balança a cabeça devagar e, enquanto me afasto deles,
chamando Brutus de volta para perto, ouço Kieran falar em voz baixa para
Gryphon:
— Vocês não fazem ideia de com quem estão lidando, ela vai botar
vocês todos no chinelo e eu vou gostar de assistir.
Decido que talvez eu goste do braço direito de Gryphon, mesmo que
ele seja um pouquinho cuzão.
18

Preciso pedir para faltar no trabalho de novo e, embora Gloria esteja de


total acordo, isso me deixa irritada pra caramba. Gabe logo me lembra de
que a comunidade Favorecida toda já sabe o que aconteceu no gramado da
frente da mansão Draven e que Gloria de jeito nenhum iria querer eu
trabalhando enquanto ainda estou tão enfurecida a respeito, mas isso só me
faz recordar de todos os fracotes covardes da alta sociedade Favorecida que
se atrevem a julgar meus Vínculos.
Escrevo a dissertação mais furiosa da história do mundo para meu
trabalho de Introdução aos Favorecidos e me preparo para North me
reprovar por causa disso.
Também não consigo me importar, já que ele foi tão imbecil comigo
a respeito de sua criatura. Não sei o motivo de isso me incomodar tanto,
mas a forma como todos falam de suas criaturas me deixa triste.
Por que ele permite que todos falem assim? Por que ele permite que
suas criaturas sejam ferais? Por que elas lutam contra ele, considerando que
Nox treinou as dele à perfeição?
Nada disso faz sentido para mim, então meu humor está terrível.
Gabe vai visitar a mãe dele depois do almoço e hesita antes de beijar
minha bochecha, pois acho que está com um pouco de medo do meu
temperamento. Atlas passa a manhã comigo, mas depois volta a se enfiar no
quarto para fazer uma chamada de vídeo com sua irmã. Mais uma vez, eu
não fazia nem ideia de que ele tinha uma irmã mais velha, e quando faço
bico para ele, Atlas só dá risada.
— Não é como se eu estivesse fazendo segredo sobre ela! Eu só
esqueço de que você não está informada sobre as famílias Favorecidas de
Nível Superior. Aurelia é cinco anos mais velha do que eu e nós temos o
mesmo pai, só que mães diferentes. Ela é o Vínculo Central de quatro
Vinculados, e só para você ter a informação completa, odeio três deles.
Ergo uma sobrancelha e ele me dá uma bufada.
— Jericho é decente, mas os outros três são todos uns babacas
pomposos e arrogantes que seriam mais úteis pra minha irmã se
desaparecessem para sempre. Isso é tudo que vou dizer, senão você pode
me julgar por odiá-los tanto.
— Até parece que eu te julgaria por isso. Caramba, posso te ajudar a
matá-los se é isso que você quer mesmo — digo, mas meio de brincadeira.
Bom, não estava brincando nem um pouco sobre a parte de ajudá-lo.
O que é meio brincadeira é ter sugerido a ideia para nós dois
considerarmos.
Quando fico sozinha, tomo o banho de banheira mais demorado da
história. Uso espumas de banho e dou risada como uma criança, e quando
Brutus sai de trás da minha orelha para se sentar no meio da espuma
comigo, eu me apaixono um pouquinho mais por ele. Brutus começa em
sua menor forma e desliza na superfície da água, mas depois de um minuto,
cresce até estar ocupando mais espaço na banheira que eu.
Ele fareja as bolhas e tenta mordê-las, embora só as atravesse como
um fantasma, absolutamente adorável e perfeito. Começo a me questionar
como vim parar aqui.
Não na banheira, mas aqui, nesta casa, com Vínculos aos quais,
apesar dos meus esforços, estou me apegando. Eu sabia que assim que eu
deixasse meu dom voltar, meu vínculo iria se fortalecer cada vez mais, mas
eu não estava preparada para a rapidez com que eles iriam achar o caminho
para o meu coração e se instalar lá, tornando-se essenciais para minha
sobrevivência em todos os sentidos.
Estou ferrada.
Não importa o que Kieran disse sobre terem mudado de tática e
estarem esperando para ver o que virá atrás de mim, se... se aquele homem
vier aqui atrás de nós, estaremos todos mortos.
Droga.
Não me permito pensar nele há anos e tenho um bom motivo para
isso, meu dom começa a reagir no meu peito só de lembrar que ele existe.
Brutus percebe e começa a bater o focinho no meu rosto, um carinho
para tentar me tirar do pesadelo que está passando pela minha cabeça.
Aprendi muitos truques para lidar com meu trauma no tempo que estive em
fuga, mas o mais efetivo sempre foi afastar os pensamentos. Esmagar as
memórias até estarem todas enfiadas dentro de uma caixinha no fundo da
minha mente, fechadas com fita adesiva até que não haja dúvida de que esta
é minha própria caixinha de Pandora.
Meu celular vibra no chão ao lado da banheira e seco minha mão
trêmula na toalha para pegá-lo.
— O que está acontecendo? Vou derrubar essa porta se você não
controlar logo isso — diz Gryphon sem nenhuma formalidade ou gentileza.
Minha voz está um pouco esganiçada ao responder:
— O que está fazendo do lado de fora da minha porta quando tem
uma bagunça precisando ser resolvida na frente da casa? Ou vocês já
limparam tudo? Isso não parece muito “líder de Equipe Tática” da sua
parte.
Há um burburinho ao fundo, mas seja lá quem for, ele ignora.
— Estou resolvendo a bagunça. O que aconteceu hoje de manhã te
deixou abalada e já fizemos muito para colocar seu vínculo sob controle.
Do que você precisa para se acalmar? O banho não está funcionando.
Olho para Brutus e ergo minha mão desocupada para coçar atrás de
suas orelhas, tentando não suspirar alto demais ao telefone.
— Foi o banho que provocou alguns gatilhos, vou sair. Não posso
ficar sozinha com meus pensamentos hoje.
Ele fica em silêncio por um momento, depois diz:
— Se conseguir controlar seu vínculo, pode vir acompanhar North e
eu enquanto processamos os Vínculos de Sharpe. Vai te tirar da casa por
algumas horas.
Nossa.
Isso parece interessante mesmo e eu definitivamente gostaria de
aprender um pouco mais sobre o que está acontecendo no Conselho sem ter
que perguntar a North.
Fico de pé e pego uma toalha.
— Me dê cinco minutos para me vestir, já estou saindo.
— Você tem dois minutos antes que eu vá embora, mexa essa bunda.
Vínculos chatos.

Saio do banheiro e encontro meu quarto vazio, mas com roupas


dispostas sobre minha cama, esperando por mim. Um pouco presunçoso da
parte dele, mas se isso não dá uma boa ideia de quem Gryphon é, nada mais
dará.
Visto o jeans preto, camiseta branca e a jaqueta de couro, em
seguida coloco os pés no meu par de botas de couro perfeitas, sem me dar
ao trabalho de ver como estou. É um traje bem no estilo das Equipes Táticas
e tenho certeza de que esse era o objetivo. Vou estar perto de soldados
muito bem treinados enquanto eles trabalham, um vestido não seria prático.
Envio uma mensagem curta para Atlas e estalo os dedos para Brutus
me acompanhar. Ele não está com vontade de se esconder no meu cabelo de
novo, com tanta gente desconhecida na mansão, e continua em seu tamanho
gigante enquanto descemos juntos até o saguão de entrada.
As empregadas e membros da Equipe Tática por toda parte abrem
caminho para me evitar, grudando nas paredes quando passamos por eles,
mas Brutus é o cãozinho mais gentil possível. Ele não rosna nem fareja
ninguém, só continua do meu lado.
North, Gryphon e Kieran estão esperando por mim no saguão,
conversando em murmúrios, e só erguem os olhos quando escutam meus
passos no piso de mármore.
Gryphon me olha feio.
— Eu disse dois minutos, e o pesadelo não pode vir assim. Ou ele
fica no seu cabelo, ou fica aqui com Nox.
Semicerro meus olhos para ele.
— Eu estava ensopada quando você me convidou, e toda essa gente
deixou Brutus inquieto. Se quiser que ele se esconda, vai ter que esperar até
estarmos sozinhos de novo, ele está ansioso.
North balança a cabeça e Brutus não gosta disso também. Preciso
entrar na frente quando ele começa a rosnar para meu Vínculo. Isso meio
que me provoca um pouco, porque todos eles voltam a me encarar como se
eu não tivesse ideia do que estou fazendo, quando nunca estive tão certa de
nada em minha vida como estou dessas criaturas.
— Sério mesmo, não entendo como você consegue fazer as criaturas
não gostarem de você quando você está, literalmente, a cargo delas! Isso
sim que é dom, Draven — resmungo, estendendo a mão para Brutus,
tentando convencê-lo a voltar para meu cabelo.
Ele não quer, mas mantenho o olhar fixo no dele e não cedo
nadinha, e, depois de um tempo, ele se encolhe choramingando um pouco,
sobe de volta no meu braço e se esconde atrás da minha orelha como bom
garotinho obediente que ele é.
Ouço todos suspirarem aliviados no instante em que ele não está
mais visível, e mais uma vez questiono a força de todos esses membros de
Equipes Táticas se têm tanto medo assim do meu amado Brutus.
— Já perdemos tempo demais. Oleander, você vai comigo para o
escritório do conselho. Gryphon e Black vão nos encontrar lá com os
prisioneiros — North diz, abrindo a porta da garagem e estendendo o braço,
pelo visto me convidando a passar.
Ergo uma sobrancelha para Gryphon, porque isso, com certeza, não
tinha sido o combinado, mas ele só coloca uma mãozona na minha lombar e
me empurra com gentileza na direção de North.
Cretino.
Rafe, o motorista de North, abre a porta de um dos Roll Royces para
mim e eu agradeço enquanto entro no banco de trás. Preciso deslizar para o
lado e abrir espaço para North, mas é muito menos constrangedor do que
foi da última vez em que fiquei presa aqui com ele.
As maravilhas que os últimos meses fizeram por nós dois.
Ele está vestido em outro terno, limpo e passado com perfeição, e
mesmo que ele pareça mais preocupado do que o normal, parece muito
melhor do que estava pela manhã.
Rafe tira o carro da garagem sem atingir nenhum dos buracos
gigantes na saída, o que, na minha opinião, faz dele um especialista, e tento
não surtar com a quantidade de vizinhos dos Draven que está do lado de
fora, assistindo, sem sequer disfarçar, enquanto passamos por eles.
Era de se esperar que, depois do ataque que ocorreu bem nesta rua,
estariam enfiados em suas mansões ridículas de tão imensas que são,
agarrando-se a seus colares de pérolas e temendo por suas vidas.
— Você não pode apenas se jogar no meio do conflito como fez hoje
de manhã. Você não fazia ideia do que tínhamos planejado ou se as pessoas
que estávamos enfrentando eram um perigo real a você — North diz,
observando-me com atenção enquanto tento evitar seus olhos.
Ótimo.
Eis o sermão que eu não precisava.
Fico de boca fechada e só faço que sim com a cabeça, torcendo para
meu silêncio ser o suficiente para ele deixar essa merda para lá, mas é claro
que não é. Este é North Draven, conselheiro e especialista em ser maníaco
por controle.
Ele não deixaria nada de lado só para me dar um tempo.
— Já que você se recusa a nos contar qualquer coisa sobre seu dom,
então precisa ficar de lado e nos deixar fazer tudo por você. Sem
conhecermos os riscos, você é uma vulnerabilidade.
Preciso mudar de assunto bem rápido.
— Por que não me deixou fazer amizade com sua criatura? Você me
odeia tanto assim que se alegra em fazê-lo pensar que estou brava com ele?
Os olhos dele brilham e sua mandíbula se contrai quando ele rosna
entredentes.
— Eu não te odeio e ele não pensa nada quando não está aqui. Ele é
um pesadelo sem mentalidade própria, não um filhotinho que você pode
batizar e domesticar. Nem você é tão ingênua assim, Fallows.
Ah, então voltamos a usar meu sobrenome? Ele que se foda.
— Augustine. Apelido: August.
Ele balança a cabeça, mas continuo:
— Se você não vai dar um nome a ele, então é assim que vou
chamá-lo. August e Brutus combinam, você devia me deixar ficar com ele.
A gente pode dividir a guarda. Eu fico com ele semana sim, semana não.
Talvez ele se torne menos rabugento se não ficar preso o tempo todo. Brutus
ama se aconchegar comigo na cama, correr na esteira, caramba, a banheira é
a coisa preferida dele, contanto que eu use uma tonelada de sais de banho.
Se eu tivesse alguma possibilidade de escapar da punição, eu tiraria
uma foto da cara de North neste momento, porque nunca vi nada tão
perfeito quanto a descrença horrorizada que está no rosto deste homem.
Viro em direção à janela e observo o condomínio fechado
desaparecer e se transformar na rua movimentada. Não temos sorte e
pegamos todos os semáforos fechados a caminho da sede do conselho.
Gryphon e Kieran estão dirigindo uma van com vidros escurecidos atrás de
nós, e quando dou uma olhada para trás, tento não me enfurecer de inveja.
Gryphon está sorrindo e dando risada com Kieran.
Eu só o vi rir uma vez e foi da minha cara. Ele pode até ter explicado
e agora isso me magoa um pouco menos, mas ele parece tão mais jovem e
mais gostoso quando está exalando alegria com seu amigo. Não há nada
daquela tensão vigilante e rabugenta nele, e quero me banhar no sangue de
Kieran por ter essa versão dele quando eu não tenho.
— Pare de pensar no que está pensando e se acalme. Passei muito
tempo dizendo aos membros e funcionários do conselho que você não é
uma ameaça à nossa comunidade. Não preciso que você apareça lá com
vácuo nos olhos e prove que estou errado — North murmura, e volto a virar
para a frente.
Certo.
Coloque a fachada da garotinha obediente, plácida e tediosa. Preciso
dar um sorriso bonito e fingir, porque a informação que posso obter hoje
vale a pena.
Se eu não quero ser encontrada por aquele homem, preciso me
recompor e bancar a personagem.
— Vou manter meu vínculo sob controle — murmuro, e os olhos de
North estão concentrados no prédio em frente enquanto Rafe nos conduz
para uma garagem subterrânea. Tem luzes espalhadas, então não é bem um
lugar escuro, mas os carros de luxo estacionados fazem minhas entranhas
parecerem pesar uma tonelada.
North se debruça na minha direção e murmura de novo:
— Sempre apresentamos uma frente unida neste prédio. Mesmo
quando discordo de um dos outros Vínculos, nunca discuto na frente dos
demais. Seria melhor se você guardasse seus comentários para si até
voltarmos à mansão.
Minha mandíbula contrai, mas dou um breve aceno de concordância
com a cabeça.
Na verdade, é uma boa política, porque exibir fraqueza nunca é uma
boa ideia, só que parece que ele está usando isso como uma arma contra
mim agora.
Rafe estaciona o carro e sai de imediato para abrir a porta para mim
e North. Respiro fundo uma última vez sentada no carro, para me certificar
de que estou calma e, mais importante, inexpressiva.
Quando saio do carro, um vinco aparece na testa de Gryphon, que
está esperando na van escura estacionada a duas vagas de distância com
Kieran, mas ele não comenta nem faz nada a respeito. Ele continua com
uma aparência severa ao abrirem a traseira da van e tirarem as duas
mulheres que eram as Vinculadas de Sharpe.
Até o momento em que meu querido August o comeu vivo.
— Vamos levá-las direto para baixo. Oli, você vem com a gente, ou
vai fazer o caminho mais longo com North?
Quero sair correndo atrás de Gryphon, mas olho para North. Posso
bancar a boazinha por enquanto.
Posso fazer isso, mesmo que me sufoque.
— Vá com Gryphon. Preciso falar com Pen e parece que você tem
problemas com ela.
Aff, ele que se foda.
Penso em coisas tranquilizantes enquanto ando até Gryphon sem
dizer nada, e minhas botas fazem barulho no concreto porque bato um
pouquinho os pés. Não faça nada que pareça pirralha demais, Oli. Estou
tentando ser superior aqui, para ter certeza de que não tenham nada para
jogar na minha cara mais tarde.
Entramos no elevador de serviço e Gryphon aperta o botão do nível
mais baixo. Inspiro fundo por estar mais uma vez fechada no subsolo e acho
que os dois interpretam errado.
Kieran parece ter decidido que somos amigos agora e se inclina para
me perguntar:
— Qual o problema com Penelope? Ela é meio mala, mas até que é
boa gente.
Isso é ainda mais insultante, já que ele me odiou à primeira vista.
Gryphon olha de um jeito estranho para ele e seus olhos brilham.
— O vínculo de Oli não vai com a cara dela. Pen não fez nada
errado, é um lance de névoa do Vínculo.
— Quantas secretárias North comeu? Sabemos o número exato ou
devo continuar chutando com base em quantas apalpam ele? — digo em um
tom muito meigo.
Kieran dá um pulo para longe de mim, murmurando baixinho:
— Foda-se, não vou me meter nessa briga. Draven que se vire.
Ergo uma sobrancelha para Gryphon, mas ele só dá de ombros.
— Você não pode falar nada, Vínculo.
Ah, ele não faz ideia. Não faz ideia nenhuma do quanto eu posso
falar sim, e, mesmo assim, nenhum deles... não. Para de pensar nisso, Oli.
Respiro fundo e lembro ao meu vínculo de que os homens não
valem bosta nenhuma.
As portas do elevador se abrem e Gryphon toma a dianteira,
acenando com a cabeça para eu acompanhá-lo através do pesadelo de
concreto e aço à nossa frente.
Celas de prisão.
A sede do conselho foi construída no alto de uma prisão, todas as
celas ocupadas por Favorecidos que espero que sejam da Resistência, e não
pessoas simples que não conseguiram pagar seus impostos ou que jogaram
lixo na rua.
Tento não olhar dentro das celas. Não quero correr o risco de
reconhecer ninguém aqui. Todos reagem quando passamos, gritando,
urrando, socando o vidro. Quero dar meia-volta e sair correndo dessa
merda.
Obrigo minhas pernas a seguirem em frente.
— Ignore todos, essas são as sobras dos acampamentos que North e
Nox invadiram — Gryphon diz, mantendo a voz baixa para mim, e olho em
seu rosto. Ele parece preocupado, ainda mais quando chegamos no final e
eu me sobressalto com uma das prisioneiras socando o vidro com os
punhos.
Eu não devia olhar.
Sei que não devia, mas o barulho chama meus olhos e fico cara a
cara com Carlin.
Ela está com uma aparência muito pior do que da última vez que a
vi. Seu cabelo cresceu um pouco e ela tem bolsas sob os olhos, mas a coisa
mais apavorante na examinadora mais forte da Resistência, é que desta vez
ela me reconhece de imediato.
— Alienadora — ela rosna para mim e eu dou a volta Gryphon,
forçando minha entrada na sala de observação de interrogatórios antes de
todos só para me afastar dela.
Kieran entra depois de mim, abrindo a porta para ir direto à sala de
interrogatórios como se não tivesse ouvido nada, mas Gryphon só empurra
sua prisioneira pela porta e a fecha, depois vira para mim.
— Do que foi que ela te chamou?
Eu pisco rápido para ele.
— Não me force a mentir para você.
Ele inspira fundo e passa uma mão no cabelo.
— Ela te chamou de...
— Por favor, não repita. Por favor, não conte para North, ou Nox, ou
qualquer outra pessoa. Por favor, por favor não conte.
Gryphon puxa o próprio cabelo e volta a prender os fios que se
soltaram. Olho pelo vidro enquanto Kieran prende as duas mulheres aos
assentos. Elas ainda não disseram nem uma palavra, nem fizeram qualquer
tentativa de escapar, mas o brilho nos olhos de Gryphon explica muito bem
o motivo disso.
Ele desligou o cérebro delas por enquanto, todas as partes delas que
pudessem tentar fugir ou resistir, e deixou para trás zumbis dóceis.
Um silêncio muito tenso transcorre entre nós, estou tentando engolir
o pânico e o medo atravessando o meu corpo, em uma tentativa de manter
meu vínculo afastado. Está tudo bem. Se eles souberem quais são meus
dons, ou vão me deixar ir embora ou me prender em uma daquelas celinhas.
Posso me impedir de machucar outras pessoas em qualquer uma
dessas hipóteses, essa não é a pior das possibilidades. Vou ter que ser
racional a respeito dessa situação até North entrar aqui e perder a cabeça
com tudo que aconteceu.
Quando a porta se abre outra vez e Kieran volta à sala de
observação, seu olhar salta entre nós dois.
— Por acaso nós vamos ignorar o fato de que ela chamou seu
Vínculo de...
— De nada. Ela não chamou meu Vínculo de absolutamente nada
— Gryphon diz com um olhar severo e Kieran dá um breve aceno com a
cabeça, deixando o comentário de lado como o bom homem de confiança
que é.
Quase desmaio de alívio, mas duvido que essa vá ser a última vez
que tocamos no assunto.
19

Passamos uma hora em um silêncio quase insuportável até que North


chegou na sala de interrogatório.
Nada em sua aparência deixa óbvio que ele está furioso, mas já
conheço todos seus sinais sutis. Não é como se suas mãos estivessem
fechadas em punhos, mas só faltava uma contração muito leve para ele estar
pronto para quebrar os dentes de alguém, e há um pontinho preto minúsculo
em seu polegar, um deslize muito pequeno de seu dom. Poderia ser
confundido fácil com uma pinta, mas já passei tempo demais observando
este homem durante jantares desconfortáveis com meus Vínculos para não
reconhecer o que está acontecendo de verdade.
Ele está à beira de um ataque de nervos.
Assim que Gryphon contar a ele sobre meu dom, North vai despejar
toda essa raiva em mim e já estou me encolhendo só de imaginar.
Kieran, que ficou perto de Gryphon conversando sobre porcarias
que não entendi o tempo todo em que aguardamos, dá uma breve olhada em
North e dispara no mesmo segundo para a sala de interrogatório. Faço um
lembrete mental de encher o saco dele depois, porque ele não é o cara
malvado de Equipe Tática que ele tenta parecer se sai correndo de medo ao
ver um Draven mal-humorado.
— Problemas? — Gryphon questiona, e North bufa baixinho.
— Está se referindo a algo tipo o conselho que já estava dividido
entre quais decisões tomar antes de Sharpe enlouquecer, e agora estarem
todos ou fugindo assustados ou querendo minha jugular? Pode-se dizer que
sim.
Jesus Cristo, não há dinheiro suficiente no mundo para me
convencer a fazer parte do conselho. Quer dizer, estou ciente de que minha
falta de pedigree significa que eu nunca vá precisar me preocupar com isso,
mas só de pensar em ter que lidar com essa gente me dá urticária.
Não sirvo para diplomacia.
North mal dá sinais de notar minha existência, e por mim tudo bem,
mas quando ele se aproxima para ficar ao meu lado, Gryphon o interrompe.
— É você quem vai interrogar, não vou sair de perto de Oli.
North vira e olha feio para ele, mas Gryphon só nega com a cabeça.
— Não vou sair de perto dela aqui. Você disse que confiava em mim
para saber do que ela precisa, bom, é disso que Oli precisa. Kieran vai
conduzir lá dentro e você pode intervir.
Engulo em seco com força, mas não olho para nenhum deles. Sinto
o calor do olhar de North enquanto encara minha nuca, mas ele vai para a
sala de interrogatório sem dizer mais nada.
Eu me aproximo de Gryphon na frente do vidro, agora que o
silêncio entre nós está um pouco mais confortável. Assistimos North se
sentar ao lado de Kieran e abrir os botões do paletó para ficar mais à
vontade.
Kieran ergue uma mão, então os olhos de Gryphon brilham com
mais intensidade e em seguida retornam ao normal. As duas mulheres
piscam várias vezes, como se a luz do ambiente as cegasse, e puxam as
correntes em seus pulsos como se não fizessem ideia de que estão presas às
cadeiras.
O silêncio e a calma evapora da sala quando as mulheres olham uma
para outra, e depois para os homens à sua frente com desprezo.
Gryphon se inclina na minha direção e murmura:
— Contanto que a gente não grite, não vão nos ouvir aqui. Se tiver
perguntas, agora é a hora de fazê-las.
Olho para ele, mas Gryphon continua olhando para o vidro. Ele está
mais perto de mim agora, os dois passos de distância de mim que costuma
manter foram reduzidos a meio.
Sei que está se referindo ao interrogatório ou à situação com Sharpe,
mas meu cérebro está concentrado em meus próprios problemas.
— Por que não contou pra ele?
Gryphon ergue uma sobrancelha.
— Porque você pediu. Ele também acabou de perder alguém que era
muito importante para ele e não está pensando de modo muito racional. Não
vou contar até você estar pronta e ele estar... pensando com clareza de novo.
Faço que sim e ele chega um pouco mais perto de mim, agora está
só um milímetro de me tocar.
— Por que não mentiu? Mesmo sabendo que sei quando é mentira,
existem formas de contornar isso. Gabe me disse que você já descobriu.
Gabe desgraçado, esse garoto é, ao mesmo tempo, maravilhoso e um
baita de um fofoqueiro.
— Você me disse que não suporta mentirosos. Estou fazendo o
melhor que posso para respeitar isso, embora isso estrague a porra toda. Por
que Sharpe foi expulso do conselho? Por que agora?
Estou ciente de que estamos apenas nos revezando para interrogar
um ao outro, uma resposta em troca da outra, mas esta é a primeira
oportunidade que tenho de fato para conseguir algumas com ele sem ter a
verdade sobre meu dom se metendo no caminho.
Os olhos de Gryphon se estreitam para North enquanto ele lê a lista
de infrações pelas quais as mulheres foram presas. Inclui: traição,
assassinato e conspiração para separar grupos Vinculados, mas as duas
mulheres parecem... satisfeitas. Como se estivessem recebendo elogios por
um trabalho bem-feito.
É repulsivo.
— Há anos sabemos da associação de Sharpe com a Resistência.
Bella, a Telecinética em quem você deu um jeito, vem de uma família
conhecida por ser da Resistência. Sharpe passou anos cultivando uma
reputação de tê-la “salvado”, como se tivesse a encontrado e apagado de sua
mente todas as besteiras que a Resistência faz para doutrinar seus
seguidores, mas era tudo história furada. Sabemos disso há anos. Ele foi
responsável por mortes na comunidade, mas também foi o rato que
seguimos para encontrar os campos.
Concordo devagar com a cabeça e ele segura minha mão, o primeiro
pequeno toque casual que ele já me deu. Sinto-me patética quando o contato
faz minhas bochechas corarem, só estamos de mãos dadas, pelo amor de
Jesus Cristo, mas o polegar dele acaricia o meu de um modo gentil e eu
quase derreto numa pocinha.
Ele sabe o que sou e mesmo assim está me tocando.
Isso tem que valer de alguma coisa, certo?
Ele me puxa pela mão, trazendo meu corpo bem perto do dele, com
a parte de trás do seu braço apoiada por cima do meu peito como se
estivesse preparado para me proteger por inteira se alguma coisa acontecer
na outra sala.
Tento não me apaixonar de vez por ele por causa deste momento de
carinho que está dividindo comigo.
— Na semana passada, Sharpe fez um ataque político a North. Era
sobre você e sobre nosso Vínculo não estar completo. Sharpe era um bosta
e achou que podia forçar a barra com North nesse assunto. North estava
lidando com a questão de forma diplomática, mas aí William foi
assassinado e a diplomacia foi pro lixo. As coisas vão piorar por aqui antes
de melhorarem.
Aceno devagar e tento não parecer mórbida ou obcecada enquanto
observo North no interrogatório. As mulheres se recusam a falar e trocam
olhares entre elas que as fazem parecer duas descontroladas. Eu me
pergunto como elas estão se sentindo agora que Sharpe não está mais aqui.
Se já caiu a ficha delas de que perderam seu Vínculo Central, ou se ainda
estão em alguma espécie de negação.
Também me pergunto se eram apoiadoras da Resistência, ou se
Sharpe escondeu isso delas. Será que merecem ficar presas para sempre ou
serem executadas como cúmplices dos crimes dele?
Gryphon fala outra vez, com a voz mais baixa do que antes, pelo
visto preocupado que o som possa encontrar uma maneira de passar pelo
vidro.
— A Resistência te pegou. Não sei como ou quando, mas eles
ficaram com você. É por isso que Carlin Meadows te conhece e sabe qual é
o seu dom, é a única resposta que faz sentido.
Dou a ele o mais ligeiro aceno de cabeça, mas as palavras
continuam presas na minha garganta. Mesmo que ele saiba, não consigo lhe
dizer mais nada. Não todos os detalhes sangrentos do porquê sou a merda
de um monstro.
— Por quanto tempo?
Engulo.
— Não quero...
Ele me interrompe:
— Me conta só isso. Me conta por quanto tempo ficou lá e vou parar
de fazer perguntas a respeito... por enquanto.
Bem, não posso deixar essa conversa continuar, senão ele vai acabar
arrancando tudo de mim, cada detalhe da minha vida, então sussurro:
— Dois anos.
Ele contrai e relaxa a mandíbula várias vezes enquanto range os
dentes.
— Então por que não consigo te encontrar? Repassamos cada
pedaço de informação secreta que conseguimos obter e tem muita coisa lá,
Oli. Por que não tem você?
Nego com a cabeça, em parte porque não tenho certeza, mas
também porque meus melhores palpites entregam coisas demais. Não quero
mais fazer isso. Não quero saber mais nada sobre essa situação fodida. Não
quero ele vasculhando a minha cabeça. Não quero pensar no quanto preciso
me afastar de todos eles.
Estou tão cansada de lutar e fugir.
Ele xinga baixinho de novo e aperta minha mão.
— Tá bom. Chega de perguntas por enquanto, mas vou perguntar de
novo, Oli. Vou descobrir tudo e consertar nosso grupo de Vínculos. De jeito
nenhum vou deixar as coisas continuarem assim.
Voltamos a nos concentrar na sala de interrogatório, com a mão de
Gryphon firme na minha, e tento não pensar demais no que ele disse.
Preciso dar respostas a ele. Só que não posso dizer nada. Posso? Será que
posso confiar nele?
Talvez.
No entanto, não posso confiar que ele vá me deixar ir embora se a
Resistência, ou aquele homem, descobrir onde estou, então não posso dizer
nada. E se ele tentar me manter aqui e acabar morrendo por isso?
Eu não conseguiria me perdoar se isso acontecesse.
Uma hora depois, estou morta de cansaço e o interrogatório ainda
está andando em círculos. Gryphon sugere que eu tire uma folga e me leva
até o canto da sala. Aconchego-me no banco que está ali e permito que
meus olhos se fechem.
Sinto Gryphon me cobrir com seu longo casaco da Equipe Tática e o
puxo por cima da cabeça para descansar um pouco.

Acordo deitada no banco traseiro do Rolls Royce com a cabeça no


colo de Gryphon, sentindo cheiro de comida mexicana. Minha vontade é
nunca mais acordar ou ser um humano funcional de novo, mas meu
estômago ronca e não posso mais negar que eu cometeria homicídio para
poder comer agora mesmo.
Sendo assim, forço-me a sentar, bocejando, espreguiçando meus
braços o máximo que consigo no espaço limitado, bem quando a porta do
carro abre e North entra com os braços carregados de caixas de comida do
food truck de tacos.
Quase quero derrubá-lo no chão só para garantir que vou comer o
equivalente ao meu peso dessas caixas.
Gryphon pega duas caixas e as entrega para mim, ignorando o olhar
glacial que North dispara em sua direção, e diz:
— Gabe falou que você gosta dos tacos de peixe daqui, o chef da
casa tirou uma licença por saúde mental pelo restante da semana, então
vamos pedir um monte de comida fora até ele voltar.
Aceito as caixas feliz da vida, tentando conter a dancinha de
felicidade que está tomando conta de mim. É difícil, ainda mais
considerando que a droga do meu vínculo está tendo essa reação porque os
dois cuidaram de mim, saindo para comprar minha comida preferida para o
jantar, e porque vamos comer juntos nesse banco traseiro apertado que, sem
dúvida, não foi feito para caber meus dois maiores Vínculos.
Tanto em tamanho como em personalidade.
— Desculpa ter dormido. Dormir tarde e acordar cedo está
começando a ter seus efeitos em mim — murmuro de boca cheia, e
Gryphon encolhe os ombros.
Ele alcança o cinto do meu outro lado para passá-lo sobre meu peito
e afivelar, bem quando Rafe liga o carro e nos conduz pela rua, de volta à
mansão.
Estou mastigando feliz o meu jantar e acabo com três tacos no
tempo que leva para cada um dos meus Vínculos comer um, e depois de
limpar minhas mãos e boca, olho desejosa para os nachos de Gryphon.
Ele revira os olhos para mim e os entrega sem dizer nada, e decido
que vou ficar com ele para sempre. Ele guarda meus segredos, não me odeia
pelo meu dom e ainda divide sua comida comigo embora eu já tenha
comido o suficiente para não ser necessário?
Acho que Gryphon foi feito para mim.
— Para de fazer esses barulhos de felicidade, está forçando a barra
— resmunga, e tento não debochar de sua atitude rabugenta.
Estou gemendo baixinho a cada mordida que dou, isso deve fazer de
mim uma babaca mesmo.
North ignora nós dois e mal come a própria porção antes de colocá-
la de lado e voltar a trabalhar em seu celular. Posso jurar que ele é viciado
nisso, em ficar ocupado e concentrado em qualquer coisa que não seja estar
satisfeito ou feliz.
Ou estar comigo.
Já escureceu quando chegamos na mansão, mas consigo ver o
trabalho que um paisagista fez para consertar a bagunça de hoje de manhã.
A entrada de carros ainda está um desastre, mas o gramado chamuscado já
foi removido e substituído, e um aspersor foi instalado e está borrifando
água por todos os lados para que as raízes cresçam e se fixem.
Parece que, tendo dinheiro suficiente, nada é permanente.
Gostaria de fazer um comentário a respeito, mas isso só
desencadearia uma briga, então espero até Rafe estacionar na garagem e
sair do carro para falar baixinho:
— Obrigada pelo jantar, North.
Ele olha para mim, mas não reage às minhas palavras, apenas sai do
carro no instante em que Rafe abre sua porta. Bufo e saio depois dele,
esfregando meus braços com as mãos só para não esganar esse cuzão
arrogante.
Tento me lembrar de que ele acabou de perder alguém. Ele não
confia em mim e está de luto, mas isso só faz com que meu cérebro se
concentre no fato de que, sendo sincera, ele já me tratava mais ou menos
assim.
Na verdade, houve um instante em que achei que talvez ele estivesse
amolecendo um pouco, mas bastou um piscar de olhos para passar. Puff,
sumiu, o homem que me disse de maneira discreta que teria me protegido
de seu irmão se fosse necessário apenas desapareceu.
Gryphon segura meu cotovelo com um toque gentil e me traz para
perto de novo.
— Vou te acompanhar até seu quarto, ainda tem muitos funcionários
do conselho e Equipe Tática por aqui. Gabe e Bassinger já estão lá e você
pode ficar até estar pronta para ir para a cama.
Merda.
Hoje é a noite de North.
Nem pensei nisso em todo o tempo que ficamos fora, e esta é a
primeira vez nessa semana que considero pedir para sair desse arranjo de
dividir a cama. Até com Nox foi melhor, ainda mais porque Gryphon me
tranquilizou, mas também porque Nox me deixou sozinha. Ele nem se
deitou na cama, suas criaturas dormiram ao meu redor, mas estar imersa no
espaço de Nox foi suficiente para apaziguar meu vínculo e lhe dar o
suficiente dele para que minha cabeça voltasse para o lugar.
— Será que é uma boa ideia eu dormir na cama de North hoje se ele
está tão... no limite? — murmuro, tendo cuidado para não espalhar assuntos
privados do nosso Vínculo para uma casa cheia de gente estranha.
Gryphon não responde até estarmos juntos no elevador e, até neste
momento, escolhe suas palavras com cuidado.
— Agora que tenho uma visão melhor desta situação toda, não acho
que haja prioridade maior além de manter seu vínculo calmo e saciado.
Eu... entendo seu receio um pouco melhor, mas você também precisa
entender que temos que te manter tranquila. Custe o que custar, esta é
minha única prioridade, além de manter todos nós vivos. Entende o que
estou dizendo, Oli?
Entendo.
Compreendo isso melhor que ele. Pois sou quem está lidando com
um dom e um vínculo guerreando contra minha mente e meus princípios
todos os dias para me impedir de simplesmente... acabar com tudo.
Tudo.
Faço que sim para ele, pressionando meus lábios em uma linha
firme em uma tentativa de não o deixar ver o quanto isso está me
despedaçando, o quanto preciso de todos eles de modo desesperado e em
um nível que me apavora.
Ele segura minha mão de novo, entrelaçando nossos dedos enquanto
murmura:
— Não vou deixar nada acontecer, Oli. Sei que não foi escolha sua
me contar, mas não vou decepcionar você. Nós vamos dar um jeito, juntos.
Você, eu e o resto do nosso Vínculo, nós vamos descobrir um jeito de fazer
isso dar certo.
Meu Deus.
Pisco rápido várias vezes e faço que sim de novo, lutando contra
essas lágrimas idiotas e inúteis, mas sinto culpa porque ele não sabe a real
extensão desse meu dom.
Não sabe o que fiz.
Assassina.
Ele para na frente da minha porta com uma mão em minha
bochecha, trazendo meus lábios até os seus para um beijo rápido. Mal passa
de um selinho, não tem língua, mas seus dentes se arrastam no meu lábio
inferior.
Gryphon se afasta, olhando-me com seus olhos claros hipnotizantes,
e fico piscando para ele como uma idiota com paixonite aguda.
— Venho te buscar de manhã, mas pode dormir até mais tarde.
Estarei aqui às 7h, vou dormir tarde já que a limpeza ainda vai estar em
andamento.
Pigarreio e concordo com a cabeça, afastando-me mais e me
apalpando em busca da chave. Enquanto abro a porta, Gabe e Atlas chegam,
silenciosos e sérios hoje, graças a esse dia dos infernos. Gryphon repassa
para os dois a nova lei contra perturbação da ordem pública da casa, graças
ao pessoal extra que está aqui. Já sei o que é esperado de mim, então os
deixo.
Troco minha roupa por uma cueca boxer de Atlas e uma regata de
Gabe, determinada a ficar confortável pelo restante da noite em que eu
estiver aqui, em seguida coloco um filme, um que já vi um milhão de vezes
e assisto quando preciso de conforto, então não vou ficar chateada se os
garotos conversarem o filme todo.
Gryphon abre a porta de novo e vem até a cama me dar um último
beijo rápido antes de ir, marchando para fora do quarto com aquela mesma
expressão severa no rosto, e Gabe arqueia uma sobrancelha para mim.
Ele começa a se despir até ficar só de cueca para se deitar comigo,
então diz:
— O que foi que rolou hoje? Ele evoluiu de um vigilante irritado
para guarda-costas enfurecido.
Atlas não questiona enquanto também tira a roupa, dobra as peças e
se deita do meu lado da cama comigo, puxando-me contra seu peito antes
que Gabe tenha a chance de reivindicar a posição.
Eles brigam bastante por ela, mas não me importo.
Respiro fundo e tento não fazer careta para a meia verdade que sai
de mim.
— Vimos uma pessoa na sede do conselho que eu já conhecia da
Resistência. Fiquei um pouco abalada e acho que ele juntou os pontos... isso
fez com que ele ficasse superprotetor.
Gabe acena como se isso fosse muito compreensível e se deita do
outro lado da cama, nada incomodado com o fato de que ambos estão quase
pelados aqui comigo. Todas as fantasias pervertidas que eu adoraria ter com
os dois são arruinadas pelo fato de que não posso deixar meu vínculo ficar
excitado demais agora, maldição! Vou ter que guardá-las para quando
estiver tomando banho ou algo assim.
Atlas espera Gabe estar ocupado reorganizando os travesseiros até
ficarem de seu gosto para fazer carinho no meu cabelo, grudando os lábios
na minha orelha para murmurar:
— Ele sabe?
Dou de ombros porque não quero falar sobre isso com nenhum dos
dois. Continuo achando que Atlas não sabe mesmo de nada e, se souber,
não quero excluir Gabe da conversa desse jeito. Não sou de fato a vaca que
eles já acharam que eu fosse.
Que os Draven ainda acham que sou.
— Podemos não falar sobre dons ou vínculos pelo resto da noite?
Não estou me sentindo muito bem e ainda tenho que ir dormir no quarto de
North hoje. Ele também está num humor de merda, vou acabar passando a
noite tentando não respirar do jeito errado e irritá-lo mais ainda.
Atlas faz uma carranca, mas concorda e esfrega suas mãos quentes
para cima e para baixo nas minhas costas.
Adormeço em menos de um minuto.
Já está escuro quando acordo de novo, só uma pequena fresta de luz
está vindo do corredor. Consigo discernir a silhueta de North ali e me xingo
mentalmente por ter caído no sono.
Preciso me soltar dos braços de Atlas em um movimento lento e
cuidadoso, e passar por cima dele para sair da cama, pegando meu celular e
minha chave da mesa de cabeceira no caminho.
North ainda parece estar puto da vida e quando esbarro na moldura
da porta, esfregando os olhos contra a claridade brutal do corredor, ele só
bufa irritado e segura meu cotovelo para me conduzir até seu quarto no final
do corredor.
Ele não me diz uma palavra.
Isso me deixa mais do que aliviada, fico feliz de ser conduzida do
modo mais arrogante possível até sua cama minimalista e perfeitamente
organizada por sua mão firme e implacável. Ele ergue a coberta e me põe na
cama, fazendo cara feia o tempo todo, e por mais que eu gostaria de me
sentir ofendida por ele ter vindo me buscar e me colocado na cama como a
bonequinha que sou para ele, estou cansada demais para brigar.
O estresse dessa bendita semana toda acabou com a minha raça.
Meu cérebro registra que ele vai ao banheiro e deixa a porta aberta
enquanto toma banho, mas logo depois os meus olhos pestanejam, fecham,
e apago como uma lâmpada, com o rosto enfiado nos travesseiros que têm o
cheirinho dele e meu vínculo ronronando de alegria dentro do peito.
20

Acordo com o barulho de uma chave deslizando na porta do quarto de


North e os braços dele se apertando em volta de mim. Seu peito está quente
colado em minhas costas e uma de suas mãos está aninhada em minha coxa,
tão perto de estar segurando meu centro que chego a sentir os tremores da
excitação antes que meu cérebro compreenda o que de fato está
acontecendo aqui.
Fico paralisada, com tesão e pronta para deixar meu vínculo
conseguir o que ele quer, dane-se as consequências, mas nesse momento a
porta se abre e a secretária dele entra no quarto.
A secretária dele.
Tem uma chave.
Do quarto dele.
Ela não se incomoda de parecer chocada ou arrependida ao me
encontrar na cama dele, envolvida em seus braços e pernas, ela apenas
começa a abrir as cortinas e acender as porcarias das lâmpadas enquanto
tagarela:
— Bom dia, senhor. Seu compromisso chegou mais cedo, eu a
acomodei em seu escritório no térreo com uma bebida e a deixei revisando
a proposta uma última vez antes de apresentá-la ao senhor.
North me aperta mais contra seu corpo por um segundo, esmagando-
me com força, e por um instante traiçoeiro, acho que ele vai dizer a ela para
dar o fora da porra do quarto dele antes que nós dois a matemos.
Então ele se solta de mim sem cerimônia e sai da cama sem dizer
nada, caminha em direção ao banheiro enquanto diz em um tom muito
gentil:
— Levarei cinco minutos, Pen.
Ele nunca usou esse tom comigo.
Fico deitada em sua cama obscenamente confortável, cercada por
todos seus aromas intoxicantes, e fico furiosa uma última vez com este
homem. Uma última vez, porque eu nunca mais vou me deitar nesta cama.
Prefiro passar o resto da minha vida dormindo entre os pesadelos de Nox,
em sua pequena toca de livros, travesseiros e ódio, a pisar aqui outra vez.
A secretária, que não faz ideia do agente catalítico que se tornou o
meu Vínculo, entra no closet e começa a selecionar roupas para ele. Fica
claro que ela ainda não causou danos o suficiente e precisa esfregar um
pouquinho mais de sal nesta ferida.
Empolgada, ela escolhe um terno para ele e uma camisa que
combine e, enfiando o último prego na droga do meu caixão, abre uma das
gavetas e tira uma cueca boxer.
Se isso não estivesse ultrapassando cada porcaria de limite que eu
nem sabia que tinha a respeito dele, seria hilário pensar que alguém escolhe
as roupas deste homem adulto como se ele fosse uma criança.
Há uma batida na porta, a secretária vai abrir e seu corpo oculta o
quarto da vista de Gryphon. Posso sentir que é meu Vínculo que está lá fora
e já estou espumando de raiva nessa porra por ela estar aqui, então o
jeitinho como ela joga o quadril de lado e dá uma risadinha para ele é a gota
d’água.
Meus olhos ficam pretos.
Droga.
Volto a deitar na cama e inspiro fundo uma vez, então mais três até
conseguir controlar minha cabeça de novo.
Ouço Gryphon xingar e então a porta do banheiro se abre e, por um
segundo, presumo que North tenha acabado lá dentro, mas em seguida ouço
Gryphon acabar com a raça dele, então fica claro que ele entrou lá atrás de
North.
Não tenho condições de ver um North Draven pelado neste
momento.
Além disso, com toda certeza, tampouco tenho condições de ficar
neste quarto enquanto a porra da secretária dele o vê pelado, então me
levanto da cama, jogo as cobertas para longe e saio do quarto sem olhar
para nada além da porta.
Encontro Kieran do lado de fora e, só de me ver, ele xinga baixinho.
— Nunca passamos tédio perto de você, não é?
Dou uma bufada e jogo as mãos para o alto.
— Eu não fiz nada de errado. Nada, nem mesmo quando eu queria
muito fazer, droga. Então se aquele cuzão sair dali de mal humor, pode
dizer que ele sabe muito bem onde enfiar esse humor dele até se engasgar!
É neste momento que a porta do meu quarto abre e Gabe coloca a
cabeça despenteada pelo sono para fora, de cara feia até olhar para mim.
— Merda, o que aconteceu?
— Nada! Absolutamente nada, vocês vêm treinar ou não?! — grito
como uma psicótica, esgueirando-me para passar por ele e batendo os pés
em direção ao closet, só para encontrar Atlas se trocando lá dentro.
Recebo uma vista completa da bunda pelada dele e quase desmaio
como uma donzela de merda ao ver o músculo bronzeado, sobrecarregada
até o limite com todos os sentimentos enfurecidos, pervertidos e
arrebatadores disparando pelo meu corpo.
O homem tem uma bundona e quero enfiar meus dentes nela.
Jesus Cristo, porra.
Cubro os olhos com as mãos e resmungo:
— Que ódio dessa porra de dia. Prefiro me jogar da janela a lidar
com... qualquer uma dessas coisas de novo.
Atlas ri e afasta minhas mãos dos olhos, mas o riso se transforma
em uma gargalhada rouca quando mantenho meus olhos bem fechados.
— Já estou de short agora, Doçura. Não imaginei que minha bunda
seria a culpada por te fazer perder a cabeça.
Escarneço e abro os olhos devagar, conferindo se ele, de fato, está
de short. Mas a peça é tão curta que é quase obscena e odeio ele de novo.
Mas, ao invés de dizer isso, ou algo um pouco mais normal, solto um:
— Podemos matar a secretária de North? Me deixa matá-la e
esconder o corpo, por favor? Tem certeza de que nós somos os mocinhos?
Será que podemos ser vilões por, tipo, cinco minutos? Eu nem preciso de
cinco minutos inteiros, posso acabar com essa vagabunda em um
segundinho.
Gabe se inclina pela parede para nos olhar, vestindo calça jeans e
segurando uma camiseta nas mãos.
— Sério mesmo, Vínculo, o que aconteceu?
Nego com a cabeça.
— Não quero falar sobre isso. Cheguei bem perto de fritar aquela
mulher, então vou correr na esteira até eu não conseguir andar mais nessa
droga.
Eles se olham por cima da minha cabeça e depois saem para eu me
arrumar.
Quando descemos até a academia no porão, não há sinal de Gryphon
em lugar nenhum, mas faço o que eu disse que faria. Ajusto a esteira a uma
velocidade de plena corrida, enfio os fones nos ouvidos com a playlist de
metal mais barulhenta que consigo encontrar, e depois corro até achar que
vou morrer.
Aperto o botão para parar quando minhas pernas já estão tremendo
tanto que estou me tornando um perigo a mim mesma, e quando tiro um dos
fones escuto a discussão furiosa que está se desdobrando atrás de mim.
— ...as merdas das regras dele, se ele próprio não tem que seguir,
então por que caralhos a gente precisa? — rosna Atlas. Ouço o som dos
golpes enquanto treinam combate corporal, mas ainda não me viro para
olhar.
Meu vínculo está tranquilo no meu peito, exausto da corrida
induzida por fúria, e não quero despertá-lo de novo com a mera imagem
deles no tatame, então me dou mais um instante para me recompor.
— Já cuidei disso. Temos que ir ao velório hoje à tarde, ele não está
pensando bem no momento. Sei que é difícil para você, Bassinger, mas
imagine como você lidaria com a perda de uma figura paterna. William foi
o único parente estável que eles já tiveram, e os dois mal estão conseguindo
manter o equilíbrio. Para ser franco, eles só estão conseguindo por causa de
Oli. A segurança dela e o bem-estar do nosso grupo de Vínculos é a única
coisa impedindo ambos de chafurdarem em seus dons e se tornarem os
monstros que a comunidade toda acha que são.
Caralho.
Engulo em seco e desço da esteira, meus joelhos falham sob meu
peso quando me jogo no chão. Eu deveria alongar ou algo do tipo, mas não
me restou forças para fazer as coisas que eu deveria estar fazendo agora.
Então fico deitada, jogada que nem uma estrela do mar suada e
esquisita encarando o teto, perdida em meus próprios pensamentos.
Nunca tive oportunidade de vivenciar o luto pelos meus pais.
Não houve velório ou funeral, nenhum enterro ao qual comparecer.
Nada, porque a Resistência já tinha me pegado. Não sei nem onde os corpos
deles foram parar. Será que minha mãe foi enterrada com seus Vinculados
ou cremada sozinha? Meu peito fica apertado ao pensar nas cinzas deles em
pequenas urnas separadas em algum lugar por aí, esperando o monstro da
filha deles aparecer para reivindicá-las.
Minha mãe odiaria tanto isso.
As lágrimas silenciosas escorrem pelas laterais do meu rosto, mas
deixo que caiam, ignorando-as porque são daquele mesmo velho tipo inútil
que não serve para nada.
Não perdoo as atitudes de North de hoje, nem de nenhum outro dia,
mas a distância fria entre nós dois só vai continuar piorando se eu não fizer
alguma coisa. Sim, ainda preciso sair daqui. Sim, ainda preciso mentir e
omitir deles todos os detalhes importantes o máximo que puder, agora que
Gryphon sabe o que sou.
Mas posso optar por ser uma pessoa decente com o meu Vínculo.
Inspiro fundo e começo a considerar me levantar, mas sinto meu
corpo pesar uma tonelada. Ouço passos e então o rosto de Gabe aparece em
meu campo de visão quando ele paira sobre mim, dando uma boa olhada na
poça que estou formando no chão.
— Queria muito que você não estivesse chorando por causa dos seus
Vínculos outra vez — murmura, gemendo um pouquinho enquanto se senta
no chão ao meu lado.
Engulo as lágrimas alojadas na minha garganta.
— Não estou. Estou chorando pelos meus pais. Não consigo treinar
mais nada hoje. Já acabei comigo mesma.
Gabe concorda com a cabeça e estende a mão com cautela para tirar
o cabelo do meu rosto, depois se deita de costas ao meu lado.
— Não precisamos fazer mais nada o resto do dia, se quiser.
Podemos só voltar pro seu quarto e... lamentar.
Rio de deboche, virando a cabeça de um jeito molenga para olhar
para ele.
— Nem, nós vamos ao velório. Nós vamos e depois de hoje
ninguém mais vai ter dúvida alguma de que nós estamos unidos nessa. Não
importa como eu me sinta agora, o que importa é que nenhum imbecil
apareça aqui e estrague o paisagismo novinho mais uma vez.
Gabe me encara por um instante, seus olhos ficam mais suaves e se
derretem para mim de um jeito que me atrai até ele.
Gabe fala baixinho para mim:
— Sinto orgulho de ser seu Vínculo. Mesmo quando você nos odeia,
sua coragem, força e integridade são inigualáveis.
Quero chorar de novo, mas prefiro beijá-lo, um leve encostar de
nossos lábios que incentiva meu vínculo a querer brincar, embora o toque
acabe antes de sequer começar.

Escolho um dos vestidos pretos que comprei na minha maratona de


compras que, à esta altura, parece ter acontecido anos atrás. Minha intenção
era usá-lo em alguma festa com meus Vínculos ou outra coisa divertida,
mas com uma jaqueta preta por cima e um par de sapatilhas que Sage me
emprestou há semanas, pareço respeitosa e equilibrada.
Faço ondas no meu cabelo e passo só um pouquinho de maquiagem,
só o suficiente para parecer que me esforcei, sem ser exagerado para um
evento tão triste.
Tanto Gabe quanto Atlas estão vestindo calça de alfaiataria preta,
camisa social e sapatos de couro engraxados. Os dois estão o sonho de
qualquer garota. Os ombros de Gabe são tão largos que o tecido justo se
estica quando ele se mexe, e as tatuagens de Atlas lhe dão uma aparência
irreverente.
Sou um Vínculo muito contente por estar acompanhada pelos dois
até o saguão de entrada.
Encontramos Nox e Gryphon já esperando lá, ambos vestidos no
mesmo estilo que os demais, exceto que Nox também está usando um colete
que deveria fazê-lo parecer arrumado demais em comparação, mas que só
acentua sua cintura esbelta e braços musculosos. Recuso-me a babar por
este homem, então opto por me concentrar em Gryphon.
Não há nada como ver um homem vestindo roupas formais com
armas presas por todo seu corpo. O cabelo dele ainda está molhado do
banho e penteado para trás, e seus olhos queimam meu corpo à medida em
que ele analisa minha escolha de traje, demorando-se em minhas pernas
expostas por tempo demais para fingir que ele não está gostando do que vê.
Então North aparece por uma das portas do corredor pelas quais
nunca entrei, e quebra o clima com sua raiva furiosa e cara fechada. Grudo
um pouco mais na lateral de Atlas, um movimento sutil que todos
percebem, já que todos estão focados ao extremo em mim agora.
Abro a boca para tentar desviar a atenção do quanto isso deixou
Atlas convencido, mas Gryphon interfere e salva o dia, coisa que sempre
posso confiar que ele vá fazer.
— Vamos todos em um carro só para termos uma escolta completa.
Esta é uma situação de alta importância e alto risco então vou dirigir com
Gabe ao meu lado. Vamos com a BMW blindada para não nos
preocuparmos com balas, somente dons. Oli precisa estar com dois de nós o
tempo todo, sem exceções.
Concordo e o acompanho até a garagem sem questionar. Já decidi
como o dia de hoje vai transcorrer, pelo menos as coisas que posso
controlar. Tudo que fiz nos últimos cinco anos foi para manter estes homens
a salvo e vivos. Posso bancar o Vínculo subserviente e plácido por hoje, se
isso for ajudar a mantê-los em segurança.
Tenho certeza de que algum dia todos eles irão agradecer.
Só não vai ser hoje.
Gryphon e Gabe se sentam nos bancos da frente e, quando North
abre a porta de trás, vejo que é um de seus veículos modificados, com dois
bancos virados um para o outro. Ele oferece uma mão para me ajudar a
entrar e eu aceito, deslizando no banco e arrumando minha roupa para não
mostrar a calcinha para todos.
North entra depois de mim, senta-se ao meu lado, e vejo Atlas
franzir o cenho para ele.
— Eu deveria me sentar com ela, meu dom é a melhor proteção que
ela tem.
Nox dá uma bufada de escárnio e se senta em frente ao irmão. Ele
nem sequer olha na minha direção.
— O carro é blindado, você é inútil aqui comparado ao resto de nós.
Atlas contorce os lábios para ele e eu pressiono meu pé no seu,
sorrindo para ele como se estivesse tudo muito bem e nada estivesse me
incomodando nem um pouco.
O trajeto de carro até o cemitério é silencioso.
Tento não olhar para nenhum dos Draven, mas meus olhos são
atraídos para eles o tempo todo. As mãos de Nox estão fechadas em punhos,
e uma faixa preta estreita de névoa pode ser vista ao redor de seu pulso
quando ele se mexe. É estranho vê-lo usando seu dom bem agora, no espaço
limitado do carro, mas seus olhos estão focados na janela.
North mal está conseguindo se controlar.
Cada centímetro de seu corpo está tenso, seus músculos estão todos
tremendo de leve com o esforço que está fazendo apenas para não explodir
contra todos nós agora. Atlas está de olho nele como um falcão, em posição
e pronto para me segurar no momento em que North de fato perder o
controle, mas tenho mais confiança em North que isso.
O luto é uma droga de sentimento imprevisível e está exigindo
muito dele.
Quando Gryphon entra no estacionamento repleto de carros de luxo,
somos flanqueados por dois veículos da Equipe Tática. Esperamos até todos
eles saírem para descermos da BMW. É estranho tê-los nos vigiando de
modo tão atento, como se fossemos celebridades ou a realeza, ou sei lá o
quê, e isso me causa uma sensação bem incômoda.
North me oferece o braço e eu o aceito sem hesitar, embora eu dê
uma olhada ao redor para me certificar de que Atlas está vindo comigo
também. Posso ter decidido fazer minha parte hoje, mas ainda quero um dos
meus Vínculos de confiança por perto enquanto isso.
North me guia entre a multidão esperando pela nossa chegada,
dezenas de membros da alta sociedade Favorecida estão ao nosso redor, e
eu localizo meus amigos no mesmo instante.
Sage acena para mim com um sorriso tenso de onde está esmagada
entre Sawyer e seu pai. Fico chocada ao ver Gray ali com eles também, com
um grupo de Vinculados mais velhos em pé ao redor deles que presumo
serem sua família.
Riley e Giovanna também estão ali.
É mais difícil para mim disfarçar minha reação ao vê-los de cara
feia perto de Sage do que foi me manter calma perto dos meus próprios
Vínculos furiosos, nesse instante, o braço de North fica tenso embaixo do
meu. Dou um apertão leve nele, torcendo para ele entender que estou
comunicando que estou bem, mas ele só continua me levando em frente.
Caminhamos até a igreja e North cumprimenta o padre que está na
entrada, dizendo um agradecimento breve por ele estar presente e
conduzindo a cerimônia, então entramos juntos.
Uma Equipe Tática já está posicionada e ofereço a Kieran o mesmo
aceno em cumprimento que dei a Sage, reagindo à sua presença sem fazer
um estardalhaço. Seus olhos atentos observam as pessoas que entram depois
de nós, tenho certeza de que ele está checando e filtrando cada pessoa em
sua mente.
Estou fazendo o mesmo.
Não conheci muitas pessoas nos campos, mas as que conheci eram
da pior espécie, e se eu reconhecer qualquer uma delas aqui hoje, vou
acabar com elas sem pensar duas vezes.
Todos nós nos sentamos juntos na primeira fileira, North em uma
ponta do banco e Gryphon na outra. North coloca Nox de forma cuidadosa
entre nós dois, e eu tenho a cautela de não o tocar demais sem deixar óbvio
que estou o evitando.
Não consigo tirar da cabeça a reação que ele teve ao delírio do meu
Vínculo. Se ele achou meu toque tão repulsivo, preciso fazer o possível
para respeitar esse limite... embora eu saiba muito bem que ele não dá tanta
importância assim aos meus próprios limites.
A cerimônia é longa e detalhada.
Aprendo mais sobre a família Draven naquela hora do que em todos
os meses morando com eles, como o fato de que William teve a guarda dos
dois quando todos os outros parentes deles faleceram. Ou o fato de que
William nunca encontrou seus Vínculos, mas, mesmo assim, conseguiu
manter sua sanidade e saúde.
Ele fundou diversas instituições para ajudar vítimas de violência
doméstica e crianças carentes. Ele doava de forma igual a não-Favorecidos
e Favorecidos. Ele foi um pilar desta comunidade, e foi assassinado por
fanáticos loucos e elitistas porque se atreveu a querer coisas boas para o
mundo.
Estou chorando em silêncio ao final do sermão de louvor e, quando
North se levanta para fazer seu próprio discurso, ele me olha de soslaio e
congela ao me ver secando os olhos com o lenço que Gabe enfiou em
minha mão, após Gryphon passá-lo de mão em mão do outro lado do banco.
Enquanto North se afasta de nós em direção ao púlpito, seus passos
estão mais confiantes e firmes. Quando ele encara todo mundo, não parece
mais estar cheio de raiva.
— Obrigado por estarem hoje honrando meu tio, William Draven,
uma última vez. Sua vida será lembrada por ter sido cheia de proezas, mas
as que me são mais queridas não são suas façanhas mais conhecidas.
Ele repousa suas notas e dá uma olhada para a tela atrás de si, onde
está uma foto de William sorrindo. Ele foi um homem muito bonito, assim
como seus sobrinhos, e ao assistir North engolir e voltar a se virar para
discursar, preciso secar meus olhos com o lenço mais uma vez.
— Ele não precisava ter acolhido a mim e ao meu irmão. Sequer era
para ele ser nosso guardião, mas lutou contra o conselho pela nossa guarda.
Ele assumiu a cadeira dos Draven, muito embora não gostasse muito de
política, porque quis se certificar de que ela ainda estaria lá para mim
quando eu tivesse idade suficiente. Ele nos deu segurança e amor e, nos
meus piores momentos, sempre esteve presente para me ouvir. Nunca nos
julgou ou fez com que nos sentíssemos monstros. Ele nos colocou no
caminho certo nesta vida, e nós dois planejamos honrar a chance que ele
nos deu, assegurando que continuemos seu legado na comunidade, para que
este se torne um lugar melhor, mais seguro e mais inclusivo para todos,
sejam eles Favorecidos ou não-Favorecidos.
É um risco, um risco enorme, mas estendo a mão bem devagar para
segurar a de Nox. Estou esperando que ele puxe o braço ou afaste a minha
mão, de uma forma muito sutil que não atrapalhe a intenção de North de
sermos vistos como um grupo unido, mas, ainda assim, de uma forma
ríspida.
Contudo, seus dedos quentes envolvem os meus com firmeza.
Não sou burra de achar que isso significa alguma coisa, que, de
repente, ele vai mudar a opinião que tem de mim, mas parece uma pequena
vitória mesmo assim.
21

Ocorre uma mudança nítida na comunidade após o velório de William.


Não tenho dúvidas de que muita gente ainda nos odeia e acha que
somos monstros, mas também há bem menos fofoca sendo sussurrada sobre
nós, de forma geral. Meus turnos na cafeteria são tranquilos e sem
acontecimentos, embora um de meus Vínculos esteja sempre por perto.
Meu treino com Gryphon melhora muito. Da primeira vez que
consigo levá-lo ao chão, decido que sou basicamente a Mulher Maravilha
agora e não preciso mais que meus Vínculos fiquem me seguindo por aí, já
que é óbvio que sou foda pra caramba e posso cuidar de mim mesma.
Nenhum deles concorda comigo.
O mais surpreendente é que dividir a cama com eles se torna algo
normal, embora minha recusa de dormir no quarto de North dê mais certo
do que eu imaginava.
Gryphon ter ficado do meu lado foi uma surpresa agradável.
Eu esperava mais discussão, mas quando acordo em minha própria
cama com North grudado em mim, Atlas roncando no chão depois de ter
sido chutado da cama no meio da noite e Gryphon esperando na porta para
que eu me aprontasse para irmos treinar, percebo que talvez eu tenha
conseguido vencer essa batalha.
Viver minha vida com pelo menos dois pares de olhos em mim o
tempo todo se torna normal. Chato para caralho e bem sufocante, mas
normal.
Kieran ou algum dos outros membros de confiança da Equipe Tática
de Gryphon recebe o dever de ficar comigo e com meus amigos ao
frequentarmos as aulas durante o dia. Fico surpresa que Kieran, o vice-líder
da equipe, apenas abaixo de Gryphon, receba a tarefa de babá de Vínculo,
mas quando menciono isso, Gabe me olha como se eu fosse uma idiota.
— Gryphon faria isso pessoalmente se não fosse colocar muitos de
nós no mesmo espaço público ao mesmo tempo. Já é ruim o bastante que
haja quatro Vínculos dos Draven nas aulas do Nox toda semana. Eles têm
considerado a possibilidade de você cursá-las à distância.
Fecho a cara para ele do outro lado da mesa de refeitório. Seu
pratinho de tristeza já está vazio, mas minha montanha de espaguete
continua resistindo com bravura na minha frente.
— Por que a gente precisa se preocupar com essa merda? Grupos
trazem segurança, não deveríamos ficar felizes de quatro de nós estarem
juntos se der alguma merda por aqui?
Sawyer ri da minha cara, debruçando-se sobre sua irmã para pegar
um dos meus pãezinhos abandonados e enfiá-lo na boca. Gabe e Atlas
olham feio para ele, mas gesticulo para deixarem para lá.
Quero carboidrato de macarrão agora, não carboidrato de pão.
— É porque o conselho acha que vocês ainda são um risco, lembra?
North e Gryphon estão tentando manter todos vocês juntos, mas sem reunir
todos em público, onde as pessoas se lembram do quanto vocês são
apavorantes. Sério mesmo, não vou assumir a cadeira do meu pai no
conselho, Sage pode ficar com ela, ou podemos apenas desistir da posição
porque essas manipulações são uma droga.
Eu nem sabia que o pai deles era do conselho. Eu me viro e dou a
Sage um olhar questionador, mas ela encolhe os ombros.
— Papai não está no conselho, o irmão dele que está, mas ele não
tem Vínculo e ninguém acha que ele vai ter herdeiros, então vai ficar entre
Sawyer e eu. Somos os últimos da linhagem dos Benson, então se nós dois
recusarmos... vai para alguém diferente.
Atlas responde com um aceno, mas Gabe geme e esfrega os olhos
com a mão.
— Vai acabar indo pra algum merda, então acho bom um de vocês
ter culhão de aceitar.
Sage joga uma bolinha de saco de papel nele, torcendo o nariz.
— “Ter culhão”? Você é encantador, Ardern, não é à toa que Oli me
ama mais.
Atlas olha para ela com olhos semicerrados, mas brincalhões:
— Quer dizer depois da criatura, né? Não se esqueça de que todos
nós estamos mais abaixo no pódio que a bola de névoa assassina escondida
no cabelo dela.
Brutus não gosta de ser o assunto da vez e expõe o focinho para
bufar sem fazer barulho na direção de Atlas, soprando meu cabelo com o
gesto. Ergo a mão para dar uma coçadinha atrás de sua orelha e ele volta a
se aconchegar, lambendo os farelos dos meus dedos como se sentisse o
gosto.
Sawyer revira os olhos para todos nós e se intromete:
— Chega de falar das alegrias do grupo de Vínculos de Oli. Me
digam que vocês todos vão à festa no final de semana pra eu passar em
Gray no caminho de casa hoje e suplicar para os pais dele. Oli, você aceita
suborno? Preciso que você convença North ou Gryphon a me apoiarem
nessa. Chupa um dos dois pra mim, por favor.
Eu só reviro os olhos para ele por ser dramático e estúpido, mas
Atlas passa um braço nas costas da minha cadeira e o encara com um olhar
raivoso.
— Vou cortar a porra da sua língua fora se falar com ela assim de
novo, Benson. E só estou te dando um aviso porque gosto da Sage.
É mentira, todo mundo sabe que ele também gosta de Sawyer.
Sawyer finge estar chocado e humilhado, mas cada movimento está cheio
de sarcasmo.
A mão de Gabe aparece sobre meu joelho por baixo da mesa e me
dá uma apertadinha, uma garantia da qual não preciso, mas que fico grata
mesmo assim, e retruco a Sawyer:
— Eu não conseguiria permissão nem para eu mesma ir a uma festa
agora com esses dois vigiando tudo que faço. O que te faz pensar que posso
fazer alguma coisa por Gray se ele está confinado?
— Mas é a festa de fim de ano! Meus pais passaram semanas
trabalhando com North e os outros membros do conselho para que não
fosse cancelada, ninguém vai te impedir de comparecer! Nós temos que ir
— Sage diz e enfia um pãozinho mergulhado em molho na boca. Não faço
ideia como ela mantém esse corpinho, ela come mais do que eu e Sawyer
juntos.
Há um certo burburinho atrás de nós, e quando viramos vemos
Kieran pairando como uma mamãe coruja sobre todos nós. Ele abaixou sua
pescoceira e tirou o capacete pela primeira vez em semanas. O uniforme
tático completo que todos eles estão usando é um pouquinho extremo e
aterrorizante demais para os corredores da faculdade.
Sage ergue uma sobrancelha para ele, a cada dia ela fica mais
linguaruda com meu guarda-costas rabugento.
— Estou errada? Todos nós fomos informados de que vai acontecer.
Acho que você vai ter que parar de encher o saco.
Esse atrevimento me faz arregalar os olhos e ergo a mão para ela
bater. Essa nova e melhorada Sage, a que namora alguém que não é o cuzão
do seu Vínculo e que vive a vida em seus próprios malditos termos, é a
melhor versão possível da minha melhor amiga.
Estou orgulhosa pra caralho dela.
Kieran encara nós duas, depois se senta ao lado de Sage e nos olha
de um jeito arrogante.
— A festa vai acontecer, mas com grande presença da Equipe
Tática. Podem beber e agirem como idiotas, vamos estar lá para cuidar de
vocês.
Gabe bebe sua água e ri dele:
— Quando nós agimos como idiotas? Sempre me comporto muito
bem nessas coisas.
Kieran aponta para ele com o rádio na mão:
— Na última festa em que você foi, você socou a cara do filho de
David.
— Ele ofendeu meu Vínculo, ficou secando Oli de biquini e depois
insinuou que queria colocar as mãos nela. Ele tem sorte de ainda estar
respirando.
Atlas se reclina bem devagar na cadeira e passa os olhos pelo
refeitório.
— E qual desses cuzões é o filho de David? Só por curiosidade.
Balanço a cabeça, mas Sage dá um sorrisinho para os dois:
— O Martinez. Ele também tentou pegar Oli no labirinto e dar ela
de comer pra vaca do lago, então sinta-se à vontade pra acabar com a raça
daquele babaca.
As sobrancelhas de Atlas sobem tanto que quase chegam no couro
cabeludo.
— Ele tentou dar meu Vínculo de comer pra vaca do lago? Ardern,
daqui a pouco nós vamos ter uma conversa a respeito de por que caralhos
ele ainda está respirando, mas Sage, querida, aponte esse cuzão para mim
agora mesmo nessa merda, por gentileza.
Sage dá uma risadinha e começa a olhar ao redor, mas Kieran olha
feio para ela e retruca:
— A família dele tem assento no conselho, você não pode...
— Ah, você ficaria muito surpreso com o que posso e vou fazer,
Black. Talvez você devesse correr e avisar esse merdinha que ele está na
minha lista e que, porra, ele não quer estar lá. Sou bonzinho aqui porque
não quero deixar Oli mais estressada, mas não vou deixar uma merda dessas
passar.
A mão de Gabe aperta meu joelho de novo e eu sorrio para ele
enquanto me apoio no corpo de Atlas.
— Provável que também me estressaria se você fosse atrás daquele
imbecil agora, então talvez seja melhor colocarmos ele na nossa listinha da
vingança do TT.
Ele não quer concordar nem um pouco com isso, mas meu olhar
encantador o faz recuar.
Sage ri disso tudo e diz:
— Mas então, roupas? Vamos usar mais do que biquinis dessa vez,
já que sabemos que Atlas vai declarar guerra em seu nome.

Minha roupa é absolutamente linda.


Meses treinando com meus Vínculos deixaram minhas pernas
perfeitas pra caramba, esbeltas e tonificadas, então escolho um macacão
que destaca minha bunda um pouquinho e meus seios mais do que só um
pouquinho. Experimento três pares de saltos novos e escolho o scarpin
preto simples, sensual sem ser chamativo demais.
Convenço Sage e o resto dos nossos amigos a passarem a noite na
mansão, então podemos nos arrumar juntos e vir embora juntos. Gryphon
gosta bastante desse plano, porque assim é mais fácil sermos todos
protegidos por sua Equipe Tática. Embora ele não vá à festa, conhece cada
detalhe de todos os planos para a noite, do número de alunos que irão à
quantidade de álcool que vão contrabandear para dentro.
Sage e eu nos trancamos no meu banheiro para nos arrumar sem
todos os caras fungando no nosso cangote, o que é um ótimo plano, porque
entre meus Vínculos, o irmão dela e os namorados dos dois, tem
testosterona demais na casa.
É difícil até de respirar.
O vestidinho curto que Sage escolheu para hoje me faz gargalhar só
de imaginar a cara de Felix quando ele a vir, e depois que ela termina de
fazer ondas no cabelo e passar maquiagem, decido que talvez ela transe
hoje.
Ela quase morre quando digo isso.
— A gente não... eu não... ai merda, não fiz isso ainda. Estou feliz
com esse namoro e Felix é perfeito, mas... ainda tenho merda demais na
cabeça por causa de como meus Vínculos deveriam ser e meu coração ainda
está sofrendo por Riley, não importa o quanto eu tente tirá-lo da minha
cabeça. Eu... não sei como superar aquela vida de uma vez por todas ainda.
Sento a bunda no balcão do banheiro para assistir enquanto ela
coloca suas joias, vários colares com pingentes lindos, e encolho os ombros.
— E daí? Você não precisa de um motivo para querer ir devagar, se
não quer é só... não fazer.
Ela ri e empurra minha perna com o quadril.
— Você fala como se fosse fácil, como se você não tivesse passado
meses tentando mudar as expectativas dos seus Vínculos porque todos eles
querem se Vincular. É que eu... me sinto culpada por precisar desse tempo,
porque Felix é perfeito. Uma perfeição completa e devastadora.
Faço que sim e penso nos meus próprios Vínculos perfeitos do lado
de fora dessa porta, os que consigo ouvir falando besteira e rindo com
nossos amigos.
— O homem perfeito vai esperar. O homem perfeito não vai fazer
nada que te magoe, não importa o quanto queira. Felix se arriscou por você
várias e várias vezes. Não acho que ele vá desaparecer só porque você
precisa de tempo para assimilar as coisas. Droga, melhor Riley e Giovanna
não aparecerem hoje, senão vou destruir os dois, porra.
Sage zomba e ri de mim.
— Você e Sawyer. Giovanna ligou pra pedir ajuda aos meus pais
semana passada. Meu pai enfim decidiu ficar do meu lado nessa história, e
quando ele mandou ela catar coquinho, ela disse que ele estava
“desrespeitando” o Vínculo da filha dele e precisava ajudá-la. Dá pra
imaginar? Meu pai está muito furioso com isso, ele próprio está pronto pra
derramar sangue.
Ainda não sou a maior fã dos Benson, uma pessoa não precisava ter
a filha sequestrada pela Resistência para começar a tratá-la bem, mas eu
com certeza vou encarar isso como a vitória que é.
Até onde sei, quanto mais gente querendo derrubar Riley e
Giovanna, melhor.
Desço do balcão e me dou uma última olhada no espelho,
certificando-me de que a fita adesiva está mantendo tudo no lugar certinho,
e murmuro:
— Que droga aquela vaca queria com seus pais? Porra, já imaginou
ter cara de pau de dar uma dessas? Preciso de uma bebida. Preciso gastar
essa raiva de algum jeito pra não acabar soltando Brutus nela.
Sage ri enquanto fecha a bolsinha de maquiagem, então posamos
para uma última foto de nós duas. Nosso plano é beber o suficiente para
testar a força dessa fita que está mantendo meus peitos no lugar, então é
muito crucial tirarmos uma foto do antes.
Ela guarda o celular enquanto responde:
— Ela quer um estágio de verão na empresa dele. Ela mal está
passando nas matérias dela, tipo... está de raspão mesmo, e quer uma
posição muito cobiçada no laboratório de genética dele. Até Sawyer teve
que dar os pulos dele pra conseguir uma vaga, de jeito nenhum meu pai
entregaria assim pra ela, mesmo que nosso Vínculo não fosse... tão
disfuncional.
Que vagabunda miserável.
Já estou abrindo a boca para xingar um pouco mais quando há uma
batida barulhenta na porta e Sawyer grita:
— Acabou nosso álcool pré-festa e Gabe teme demais a fúria
Draven para buscar mais, então precisamos ir ou meu barato vai passar. Se
vocês querem que eu me comporte bem essa noite, venham já aqui.
Sage revira os olhos e abre a porta, olhando feio para ele.
— Você passou duas horas se depilando antes de virmos pra cá,
Sawyer. Não enche o saco! Oli precisou usar meio rolo de fita adesiva pra
garantir que as joias dela não vão aparecer e causar destruição em massa na
festa por meio dos chiliques de Atlas e Gabe.
Ele não recua, ele nunca recua.
— Mas fiz isso por causa de pau, Sage! O único motivo possível pra
passar uma hora no banheiro é aparar os pelos pubianos. Não era melhor
Oli colocar um sutiã... puta merda, Fallows. Não. Você não pode usar isso.
Vai fazer o saco de Gabe explodir.
Dou uma voltinha para ele ver as costas do meu modelito também, e
ele balança a cabeça de um lado para o outro de modo enfático.
— Nem. Nada de usar isso aí. Oli, eu sou bi, não gay, posso te
informar agora mesmo que é um “não” pra esse macacão. Atlas! Vem aqui e
fala pra ela!
Dou risada, pegando minha bolsinha para conferir se já coloquei
tudo que preciso nela, então escuto um gemido vindo da porta.
— Ah não. Sem chance, caralho. Troca de roupa, Vínculo.
Eu me viro e encontro Gabe olhando fixo para minha bunda, ou
melhor dizendo, olhando feio como se ela fosse a melhor e a pior coisa que
já aconteceu na vida dele, e a injeção de adrenalina que isso me dá me faz
rir como uma doida.
— Homem nenhum, Vínculo ou não, vai me dizer o que vestir,
Gabriel Ardern. Então sugiro que você mude de atitude bem rapidinho —
digo, balançando um dedo zombeteiro para ele, mas o olhar que ele me dá
faz meu coração acelerar no peito.
Quase me esqueço de que todos nossos amigos estão ao redor
assistindo esta interação. Quase ando até ele e escalo aquele seu corpo
impressionante até conseguir colocar seus lábios nos meus, minhas mãos
em seu cabelo, puxando os fios até eu conseguir direcionar sua cabeça pelo
meu corpo e colocar aqueles lábios em outro lugar porque ele precisa...
Ele geme de novo e esfrega os olhos com as mãos.
— Para. Isso é jogo sujo, e Sawyer já vai encher meu saco o
suficiente hoje sem eu ter a porra de uma barraca montada na calça porque
seu Vínculo está zumbindo desse jeito com sei lá o quê.
Ele parece estar sofrendo e isso faz eu me sentir um pouco mal de
verdade. Não é minha culpa ele ser maravilhoso, musculoso e bonito pra
caralho, e parado ali nesse jeans e camiseta branca justa nos bíceps,
caramba, ele é muito...
— Desisto. Atlas, você precisa acompanhá-la. Encontro vocês na
porta — Gabe murmura e dá meia-volta, ignorando o jeito como Sawyer e
Gray começam a provocá-lo.
Para eles é fácil, ainda não encontraram seu Vínculos e ficam felizes
de aproveitar a companhia um do outro até acharem as pessoas com quem
devem ficar. O resto de nós está agonizando aqui.
Atlas, por fim, sai de dentro do meu closet e se vira para ver qual o
motivo do estardalhaço. Dou um sorriso tímido em sua direção e ele passa
os olhos por mim devagar, demorando-se em cada centímetro do meu
corpo.
— Você está perfeita, Doçura, mas vou matar qualquer homem que
te olhar por mais que meio segundo — diz com um sorrisinho torto nos
lábios, que aumenta até ser um sorriso predatório e perfeito.
Saltito até ele, para testar um pouco a fita, e tenho uma surpresa
agradável quando nada sai do lugar.
— Fechado. Só quero me sentir bem e ficar bonita hoje. Espero que
não tenha exagerado.
Ele me segura em seus braços e me dá um selinho muito leve nos
lábios, mal encostando para não manchar meu batom.
— Você poderia ir nua e eu ainda te idolatraria... são todas as outras
pessoas que teriam que morrer. Mas é um sacrifício que estou disposto a
fazer.
Estremeço e meu vínculo ronrona no meu peito mais uma vez,
sempre feliz ao ouvi-los desejando a morte de outros em minha honra, o
derramamento de sangue como uma oferenda ao Vínculo que
compartilhamos.
Quero mais.
Ele volta a se inclinar para baixo, com os olhos fixos nos meus, e o
sorriso em seu rosto aumenta mais ainda.
— Minha garota gosta disso, é? Quer que eu mate todos que se
atreverem a olhar para você? Eu mato. Não sou um homem bom como o
resto dos seus Vínculos. Sou bom para você e o resto que se foda. Se é
sangue que você quer, Doçura, eu vou te dar. Vou te dar qualquer coisa que
você queira.
Engulo em seco e tento encontrar minha voz de novo, mas sai como
um grunhido.
— Você não pode falar assim com meu vínculo. Ele é sanguinário e
egoísta, vai aceitar. Ele aceitaria tudo.
Atlas me gruda contra seu peito de novo e o mundo passa a se
limitar a nós dois.
— Que bom, porque vou te dar tudo e mais um pouco. Assim que
você estiver pronta... tudo, e isso é uma promessa, Doçura.
Engulo de novo e tento acalmar meu coração disparado, que está
tentando abrir um buraco no meu peito. Quando Atlas me dá um beijo no
rosto e se afasta, só para voltar a me aconchegar contra a lateral de seu
corpo, vejo que o quarto se esvaziou enquanto conversávamos. Eu nem ouvi
a porta abrir e fechar, e isso é um pouquinho vergonhoso, mas coloco um
sorriso no rosto.
— Então vamos logo pra essa festa idiota, né?
Atlas ri com o tom irônico que estou usando e nos conduz até a
porta, abre e faz sinal para eu passar, mas encontramos Gryphon esperando
ali por mim, com os braços cruzados, parecendo puto da vida quando seus
olhos encontram os meus.
— O que foi agora? Nossa noite já acabou? — pergunto, enquanto
me encolho.
Ele nem olha na direção de Atlas ao falar de modo grosseiro com
ele:
— Preciso conversar com meu Vínculo. Eu a acompanho até lá
embaixo quando acabarmos.
É a dispensa mais ríspida que ouvi sair dele em meses, mas embora
o tom deixe Atlas tenso, ele me dá um beijo no alto da cabeça e depois nos
deixa.
Estou com um pouquinho de medo do que vai acontecer aqui, mas
também sei que não fiz nada de errado... a não ser que ele enfim tenha
conseguido informações clandestinas sobre mim e esteja prestes a dizer que
me odeia. Talvez ele saiba sobre toda a morte e destruição.
Talvez...
— Que porra você acha que está fazendo, saindo vestida assim? Só
por cima da merda do meu cadáver...
O alívio que me preenche tem vida curta.
— É uma droga de macacão, e um bando de homem não vai me
dizer o que eu posso ou não vestir...
O corpo dele atinge o meu como um trem de carga. Em um segundo,
ele está do outro lado do corredor, no seguinte está me empurrando contra a
porta, agarrando minhas coxas nuas em suas mãos como se ainda não
acreditasse no que está vendo.
— Você acha que é a única lutando contra seu vínculo? Isso aqui é
tudinho meu. Saiba disso antes de sair dessa casa, porque Vinculada ou não,
você é minha.
Tento respirar, mas ele está tão colado em mim que não consigo.
— Eu sei. É só uma roupa bonitinha, não estou tentando... não estou
insatisfeita com meus Vínculos. Posso me trocar, se é um problema tão
grande.
Ele se acalma um pouco, então se afasta.
— Não. Vai dormir na minha cama hoje, pode vir me encontrar
exatamente assim.
22

Estou bêbada e me perdi de todos os meus amigos.


Certo, Gabe e Atlas ficam colados em mim o tempo todo e consigo
ver que Kieran está olhando feio para todo mundo perto de nós, mas Sage
desapareceu dentro de um armário com Felix há meia hora e não vejo mais
os dois desde então. Sawyer e Gray já deram uns amassos em cada cômodo
desta casa, por causa de uma aposta que eu estava bêbada demais para ouvir
direito, e tenho certeza de que agora encontraram uma superfície para foder
em cima. Eu, ao mesmo, tempo amo que estejam fazendo isso e os odeio
com todo fervor por isso.
A casa pertence a uma das famílias menos importantes do conselho,
o que significa que é uma mega mansão com piscina e um bufê ridículo,
mas os membros do conselho não sentem necessidade de comparecer e
ninguém está preocupado com o código de vestimenta, já que tem uma
porrada de oficiais da Equipe Tática vigiando todo mundo.
Estou toda risonha e gostando demais do ar quente da noite para o
gosto de Kieran, mas meus dois Vínculos estão me admirando dançar ao
lado da piscina com uma atenção inebriada que me faz sentir um friozinho
na barriga, em uma confusão de arrepios e tremores.
A música está mesmo muito boa aqui.
— Certo, já chega pra você. Se beber mais, vai estar com raiva do
mundo amanhã — Gabe diz quando termino minha taça de champanhe e
pisco de forma sedutora para ele enchê-la de novo.
Ele ri do beicinho que faço quando ele nega com a cabeça.
Atlas não está gostando muito de nada, mas não deixa isso
transparecer. Ele sorri e conversa com as pessoas que se aproximam de nós,
mas há uma frieza nele que já notei na Draven também, como se estivesse
desdenhando de todos por conta dos muitos pecados que cometem contra
nós.
Não posso evitar me apoiar nele, aconchegando-me o mais grudada
em seu corpo que consigo, porque esse tipo de lealdade absoluta sempre vai
ser tudo para mim.
Sinto essa lealdade por eles desde que ouvi seus nomes naquele
quarto idiota de hospital, quando meu mundo todo estava despencando, mas
eu ainda tinha um longo caminho para baixo. Porra, se ao menos eu
soubesse o quanto ainda estava longe do fundo do poço.
Uma mão acaricia minha coluna em um gesto reconfortante, e Atlas
se inclina para murmurar no meu ouvido:
— Está tudo bem, Doçura. O que quer que esteja pensando, nada
disso importa agora. Estou aqui.
Gabe entrelaça os dedos com os meus quando olho para ele, mas ele
ainda está conversando com um dos seus amiguinhos do futebol americano,
reclamando de alguma coisa sobre a próxima temporada. Ele notou minha
mudança de humor sem nem precisar olhar para mim, outro sinal de que
estou perdendo a batalha de evitar que se apeguem a mim.
Compartilhar a cama pode estar tranquilizando meu vínculo, mas
está deixando tudo um milhão de vezes mais complicado.
— Vamos para casa, Doçura. Não tem mais nada para a gente nessa
festa — Atlas diz baixinho, mas ergo os ombros.
— Todos os outros estão se divertindo, não podemos ir embora sem
eles. Por que você não pega outra bebida e relaxa um pouco?
Ele sorri e faz que não.
— Se eu beber, vou acabar arrumando briga com alguém... e muito
provável que vai ser com Gabe, porque continua conversando desse jeito aí
com esses cuzões covardes. Nunca vi uma pessoa se humilhar tanto.
Dou risada da cara feia que o amigo de Gabe faz para nós porque
não estamos tentando falar baixo, mas Gabe só sorri para nós dois, leva
minha mão aos lábios e beija o dorso, como se eu fosse seu tesouro perfeito.
Estou prestes a arrastar Atlas para a pista de dança perto da mesa do
bufê quando Sage sai cambaleando da casa, com os olhos arregalados e
vidrados, e meu estômago revira.
Empurro meus Vínculos para correr até ela, meu vínculo está meio
lerdo por causa do álcool, mas fica animado com a mera de ideia de destruir
quem quer que seja que chateou minha melhor amiga.
Kieran chega lá antes.
— O que houve? Achei que você estava com Felix, por que ele te
deixou sozinha?
Ela só pisca para ele, seus lábios tremem um pouco e estou pronta
para rasgar a garganta dele por ser grosso, mas ela responde:
— Ele me mandou vir buscar Oli. A Gracie está... Gracie bebeu
demais e está falando merda. Não é nada demais, mas talvez o Felix precise
de ajuda pra fazer ela se acalmar.
Acalmar?
Kieran a empurra de modo gentil Sage na minha direção e marcha
até a casa, ordenando aos gritos que outros caras da Equipe Tática, que
estão por aqui, fiquem próximos de nós. Envolvo Sage em um abraço e ela
logo relaxa contra mim.
— É por isso que eu não saio, Oli — murmura no meu cabelo. Ela
parece tão infeliz que sinto vontade de dar um murro na cara de Gracie.
Escuto gritos e discussão vindo da casa, e Gabe chega mais perto de
nós duas, mas, nesse momento, Felix sai de lá com uma expressão furiosa
no rosto, arrastando sua irmã atrás de si.
Gracie está de porre.
Tão de porre que vomita no vaso de plantas ao lado da porta e
choraminga quando Felix a repreende:
— Você não aprende nunca, porra! Eu só queria uma noite e você
não podia se controlar por uma noite!
Kieran está vindo a passos largos atrás deles, torcendo o nariz para o
cheiro repulsivo do vômito de Gracie, acenando para mim no gesto
universal de “será que dá pra gente ir embora dessa droga de baderna
agora” e faço que sim.
Já deu para nós.
Atlas perde no “pedra, papel, tesoura” contra Gabe e é obrigado a ir
atrás de Sawyer e Gray para arrastá-los para casa com a gente. Felix prende
Gracie em um dos veículos Táticos e depois a deixa lá para vir abraçar
Sage, beijando sua cabeça e murmurando palavras de consolo enquanto ela
balança um pouquinho no lugar.
Quando eu descobrir o que aquela vaca disse a ela, seja Gracie irmã
do Felix ou não, ela vai sentir toda a droga da minha ira, e vou garantir que
ela nunca mais possa fazer algo assim de novo.
Todo mundo precisa parar de tratar minha garota como merda.
Basta uma única olhada em sua irmã para que todo o bom humor de
Sawyer evaporar no mesmo instante. Ele e Gray desceram as escadas
abraçados, com os cabelos despenteados e as roupas de uma forma que
estava óbvio que foram vestidas apressadas e de qualquer jeito. Eu estava
tão feliz por eles terem esse dia juntos.
Mais um ponto contra Gracie.
— Tenta não ser dura demais com ela, ela não é bem a imagem da
estabilidade e saúde mental — Gabe sussurra para mim, enquanto me ajuda
a entrar no carro de Atlas. Fico chocada ao descobrir que Atlas não bebeu
nada, seu bom humor não tinha nada a ver com álcool, era só por estar lá
comigo.
Fecho a cara para Gabe, e ele responde fechando a cara também.
— Gracie perdeu o Vínculo Central dela anos atrás. Ele morreu
ainda criança. Desde então, ela nunca mais foi muito estável. Não é
desculpa, mas... tenha isso em mente.
Droga.
Ainda odeio essa garota, mas, pelo menos dessa vez, vou deixar
Felix lidar com ela. Ele ainda está de carranca e muito irritado quando se
senta no banco de trás, ocupando o lugar do meio para que Sage possa se
aconchegar ao seu lado sem encostar em Gabe.
Sei que ele não fez isso por mim, mas é só mais um dos motivos
pelos quais estou do lado de Felix, mesmo quando sua irmã é um pesadelo
nervosinho no qual quero dar um jeito da forma mais aterrorizante e
sanguinária possível.
— Respira — Atlas murmura, repousando a mão na minha coxa
enquanto manobra o carro em direção ao trânsito para nos levar de volta à
mansão.
Olho para baixo e vejo que Brutus está no meu colo, farejando
minhas roupas como se estivesse tentando entender o que me irritou tanto.
Ele é sempre fofinho demais quando está em sua forma de filhote e seguro
seu corpinho para aconchegá-lo direito no meu colo. Ele aceita e lambe
meus dedos, é uma sensação esquisita, porque posso sentir as lambidas, mas
não há evidências físicas de que ele esteja fazendo isso, nenhuma baba de
filhote deixada por sua linguona.
— Porra, Jesus, por um segundo me esqueci que você tinha isso aí,
Fallows — Felix diz do banco de trás, soando um pouquinho enjoado, e
Sage se debruça para ver Brutus, que agora está rolando para ganhar
carinho na barriga.
— Ele é uma gracinha! Tipo, eu nunca tocaria nele, mas reconheço
que é um bom garoto — ela diz, e Felix balança a cabeça para ela.
— Vocês dois não acham estranho saber que ela carrega uma
extensão de um dos Draven o tempo todo? Vocês o fazem dormir no
corredor à noite, ou já estão à vontade com ele? — Felix pergunta, e fico
tensa por um instante, achando que ele ficou sabendo do incidente no
corredor, mas depois lembro que todo mundo no campus sabe que o Nox
não é meu fã, então é claro que ele tem suas dúvidas.
Gabe parece muito indiferente ao responder:
— Quanto mais olhos cuidando de Oli, melhor. Quanto mais olhos
cuidando de todos nossos amigos e familiares, melhor, para ser sincero. A
mansão pode até ser uma pequena bolha de felicidade para todos nós, mas
com certeza não é segura.
Sage bufa para os dois, arrastando um pouco as palavras graças a
todo o champanhe que ela bebeu esta noite:
— Oli não precisa de ninguém de olho nela, ela acabaria com a
nossa raça antes da gente ter chance de piscar na direção dela. Ela é a maior
fodona que já conheci. Nox só fica espionando porque quer controlar ela.
Todos vocês querem, pelo menos um tiquinho. Isso faz parte de estar em
um Vínculo. Nenhum de vocês quer que ela tenha liberdade de ser sua
própria pessoa, a não ser que envolva vocês. É isso, essa é a vida toda dela
agora, e mesmo que Riley e Giovanna me desprezem pra caralho, é a minha
vida também. Gracie tem razão. Sou uma aberração da natureza e se meu
Vínculo não me quer, então não passo de uma rejeitada. E agora vou
estragar a vida de Felix também porque em algum lugar tem alguém
esperando por ele e estou complicando tudo. Merda, Atlas, vou vomitar.
Ele tira o carro da pista com segurança, mas os veículos táticos nos
escoltando saem da pista já prontos para entrar em guerra com quem estiver
nos ameaçando.
Eu vou assassinar Gracie, caralho.
Kieran pula para fora do veículo e dispara na nossa direção, parando
de forma abrupta ao ter uma bela visão de Felix e eu segurando Sage entre
nós dois enquanto ela vomita. Gabe segura o cabelo dela longe do rosto e
faz uma careta quando as náuseas enfim passam e ela chora encostada no
peito de Felix.
— Ela está bem? Posso trazer um curandeiro aqui em um instante
— Kieran diz, com os olhos fixos na figura de Sage em lágrimas, e nego
com a cabeça enquanto aponto para as mãos brilhantes de Felix.
— Ele cuida disso. Foi rápido demais para ele ajudar antes de...
chegar a esse ponto. Desculpa a parada.
Ele, por fim, desvia o olhar dos dois, mas vejo uma certa hesitação
ali.
— Sem problemas. Bassinger dirige como um profissional, então
tivemos tempo de proteger vocês. Vão precisar ficar por aqui muito mais
tempo? Vou demarcar o perímetro.
Felix nega com a cabeça, fazendo Sage voltar na direção do carro, e
eu coloco os dois juntos no banco do passageiro. Atlas ajuda a passar o
cinto por cima de ambos, mas é fácil com Sage sentada no colo de Felix.
Ouço a respiração ofegante de Sage durante todo o caminho para
casa, xingando cada pessoa nessa cidade idiota por machucá-la assim. Gabe
segura minha mão, de cara fechada e balançando a perna, cheio de uma
energia ansiosa.
Não tenho palavras tranquilizantes para ele agora, só tenho raiva e
vingança bombeando em minhas veias.
Todos ficam em silêncio, e quando Atlas estaciona na garagem da
mansão Draven, ficamos todos sentados ali por um segundo para avaliar a
merda em que essa noite acabou se transformando.
— Bem... estamos todos vivos, certo? O plano era todo mundo
respirando e inteiro — Felix diz, ainda furioso com a irmã, mas tentando
amenizar os ânimos.
Dou de ombros para ele e retruco:
— A noite é uma criança. Com certeza ainda dá tempo de rasgar
alguém no meio se me provocarem.
Não falei só de brincadeira.
Que bom que não bebi muito na festa e todo o álcool já se esvaiu do
meu organismo quando saio do Hellcat, porque hoje é a noite de Gryphon
me receber em sua cama. Minhas pernas tremem quando penso nisso,
depois de ele ter feito aquela sua exigência sexy pra caramba para eu
aparecer lá vestida assim.
Não posso completar meu Vínculo com ele.
Porra, mas quero fazer alguma coisa com ele hoje, qualquer coisa.
Talvez valha a pena aguentar a dor de conter o Vínculo só para ficar com
ele. Só de pensar, fico toda arrepiada. Atlas passa um braço pelos meus
ombros, confundindo esse arrepio com frio, e permito que ele me guie pela
mansão em busca de algo para beber.
Gabe começa a direcionar todos para os quartos de visitas, já que,
pelo visto, ele conhece todos os cômodos da casa, e eu deixo Atlas me levar
para tomar meu copo de água no meu próprio quarto antes de descer para o
de Gryphon.
Pego uma muda de roupas dos meus Vínculos para me trocar no
quarto de Gryphon, ignorando a sobrancelha que Atlas ergue de forma
questionadora ao ver que não estou me trocando antes de descer. Existe a
possibilidade de que eu exploda se tiver que falar sobre a forma que
Gryphon demandou aquilo de mim.
Foi sexy pra caralho, e preciso de muito mais desse lado dele na
minha vida.
Tomo um último copo de água antes de dar um beijo na bochecha de
Atlas e descer sozinha para o primeiro andar, caminhando sem fazer
barulho com meus pés descalços no carpete macio. A casa está tranquila e
silenciosa e, quando pego o celular para conferir as horas, encontro uma
mensagem de Gabe, avisando que deixou todos em seus quartos e me
desejando boa noite. A mensagem tem um tom sério e sei que nós vamos ter
que conversar depois sobre o que Sage disse.
Ela não estava errada.
Não estou dizendo que me incomodo. Se eu não estivesse sendo
caçada e não fosse um risco a todos meus Vínculos, não tem nada que eu
amaria mais do que coexistir com eles daquele jeito muito codependente de
todos os grupos Vinculados.
Mas essa vida não é para mim.
Quando chego na porta de Gryphon, preciso bater duas vezes, mas
ele não responde em nenhuma.
Já passa da meia-noite e seu carro estava na garagem, então sei que
ele está em casa, mas não gosto de entrar nos quartos dos meus Vínculos
sem permissão. Nox é o único que, literalmente, nunca me recebe, mas isso
já faz parte da nossa rotina. Eu subo lá, apago e sei que em algum
momento, horas depois, ele chega e dorme no sofá, com suas criaturas
espalhadas pelo cômodo.
Gryphon sempre me recebe.
Solto o ar pela boca e viro a maçaneta, entro sozinha e fecho a porta
devagar depois. Suspiro quando escuto o barulho do chuveiro, aliviada de
saber que não tem nada fora do comum acontecendo aqui, meu Vínculo só
está se preparando para dormir.
Isso até eu erguer as cobertas de sua cama e o cheiro de perfume me
atingir.
Congelo, mas meu vínculo toma controle total do meu corpo antes
que eu tenha chance de processar que porra é essa que acabei de encontrar.

Tem perfume pela cama toda.


Está nos travesseiros e nos lençóis dele, cobrindo o edredom que
estava lavado e passado, e meu vínculo enlouquece aos poucos.
Quem se atreveu a tocar no meu Vínculo?
Como ele pôde deixar outra mulher entrar em seu quarto, deitar-se
em sua cama? Isso é tudo meu. Meu. Ele é meu, seu quarto, sua cama, tudo
isso pertence a mim. Vou encontrar essa mulher e fazê-la sangrar até a
morte, depois oferecer seu cadáver a meu Vínculo e mostrar a ele o que
acontece com qualquer um que ousar pôr as mãos no que é meu.
Brutus choraminga no meu ouvido, é uma sensação, não um som, e
ergo a mão para retirá-lo do meu cabelo, então o coloco no chão e exijo
com firmeza que volte para Nox.
Não preciso de testemunhas para o que vou fazer.
A porta do banheiro se abre e Gryphon sai nu, a toalha enrolada em
sua cintura o cobre um pouco, mas procuro marcas em seu corpo mesmo
assim. Ele hesita e para, erguendo uma mão para afastar o cabelo para trás.
Quando o movimento contrai seu corpo muito musculoso, meus olhos se
estreitam.
Será que ela o viu assim também?
Será que ela viu cada centímetro dele contrair e se mover enquanto
ele a comia na minha cama? Será que ela assistiu enquanto meu Vínculo
metia no corpo dela?
— Oli? O que foi, por que seu vínculo...
Assim que olho para ele, sei que não quero conversar. Quero seu
vínculo, quero resolver isso de modo direto, porque o homem pode até ter
feito algo abominável pra caralho, mas seu vínculo pertence a mim.
Meu.
Deixarei isso claro na parte mais íntima dele, em sua verdade mais
fundamental e animalística, porque não posso confiar no homem neste
momento. O homem me traiu e a tudo que construímos juntos.
Um rosnado sai arfante de sua garganta à medida em que seus olhos
ficam brancos, suas pernas cambaleiam quando exijo que seu vínculo tome
o controle e, quando ele olha para mim de novo, não resta nada do homem
rude e carrancudo.
Só do vínculo.
Ele inspira fundo e dá uma olhada pelo quarto, como se não
soubesse mais onde está, e começo a ficar frustrada bem rápido, enfurecida
por ele ainda não estar me dominando e me reivindicando agora mesmo.
— Meu.
Minhas palavras quebram sua inatividade, sua mão derruba a toalha
e ele dispara até mim de uma vez, derrubando-me na cama e me prendendo
nela com seu corpo.
Eu mal consegui olhar para ele, mas não importa, nada disso
importa, só que ele precisa completar o Vínculo comigo agora mesmo.
Fecho a mão em seu cabelo e dou um puxão para trazer seus lábios
até os meus, nossas línguas disputam o controle e ele mordisca meus lábios
como se quisesse me punir. Sinto gosto de sangue e não sei dizer se é dele
ou meu, suas mãos seguram minha roupa de qualquer jeito, rasgando o
macacão até estar em farrapos no chão.
Ele rosna para a fita que cobre metade do meu peito, e não tem
gentileza nenhuma ao arrancá-la também, deixando marcas vermelhas e
pele irritada para trás ao me expor por completo, aliviando o ardor da pele
com sua língua em seguida.
Não quero gentileza.
Quero que ele me coma e se Vincule a mim para que nunca mais
haja dúvidas de a quem ele pertence. Não sou um Vínculo Central delicado
que precisa andar de mãos dadas por aí. Preciso da porra dele escorrendo
pelas minhas pernas e que meu cheiro substitua essa merda de perfume em
seus lençóis, e preciso disso agora.
Agarro seu cabelo de novo e o empurro para baixo no meu corpo,
erguendo os quadris para arrancar a calcinha. Ele segura minhas pernas e as
joga por cima de seus ombros até que minhas coxas estejam em volta de sua
cabeça. Ele me prova com sua língua quente, experimenta a umidade entre
minhas pernas e descobre o quanto estou pronta para seu pau. Eu estava
pronta para ele no instante em que pisou nesse quarto, estava pronta para
ele, pronta para tomar o que é meu, e não importa o quanto seus lábios e sua
língua estejam deliciosos na minha boceta, preciso de mais.
Quando minhas pernas começam a tremer, dou outro puxão nele,
exigente e temperamental porque preciso que ele esteja dentro de mim
quando eu gozar, preciso que ele goze junto para completar nosso Vínculo
com perfeição.
— Me come. Complete o Vínculo comigo agora — ralho, minha
voz sai sombria e tóxica, e o comando faz seus olhos brilharem com mais
intensidade ainda.
Se acreditei por um segundo que eu estava controlando o que
acontece aqui, Gryphon me faz mudar de ideia bem rápido ao colocar um
travesseiro embaixo do meu quadril, fechar uma mão no meu pescoço e me
segurar parada enquanto alinha seu pau e empurra com uma única estocada,
gemendo como se fosse morrer.
Em algum lugar minha mente registra que está doendo, que ele é
muito grande e que isso tudo é demais, mas meu vínculo dispara para fora
do meu corpo e cobre o corpo dele, nos amarrando juntos até eu não
conseguir mais respirar.
Seus quadris avançam para ele me penetrar, o atrito aumenta até ele
estar colidindo contra mim, só tem uma coisa na cabeça do meu Vínculo:
me reivindicar, atar-me a ele, tornar-me sua e ficar comigo para sempre,
porque não existo sem ele mais. Fomos feitos da poeira da mesma estrela,
colocados neste planeta para buscarmos um ao outro e nos unirmos para
toda a eternidade.
Os sons dos nossos corpos colidindo ecoam pelo quarto, obscenos e
perfeitos pra caralho e, quando dou um gemido em seu ouvido, suas mãos
apertam minha pele com mais força e ele intensifica suas estocadas até cada
uma delas esfregar meu clitóris.
Estou tão perto de gozar, tão perto de fazê-lo meu, e quando ele se
abaixa para me beijar mais uma vez, viro o rosto na direção do seu pescoço
e mordo, marcando sua pele em um lugar que todo mundo vai ver e saber o
que significa.
Gozamos juntos e quando meu vínculo dispara para dentro dele e
aceita o seu dentro de mim, sei que nunca experimentei nada parecido com
isso. Orgasmos são incríveis, mas isso? Isso é tudo e um pouco mais, isso é
todo meu mundo se limitando a uma única coisa e depois explodindo em
milhares de pedacinhos. É uma confusão de coisas que fazem muito sentido
e, ao mesmo tempo, nenhum, e nunca na minha vida me senti tão completa
antes.
Ele ruge quando suas estocadas saem de ritmo e sua mão aperta em
volta da minha garganta, e quando ele joga a cabeça para trás em êxtase,
vejo a luz forte de seu vínculo brilhando através de sua pele, agora que
somos Vinculados. Dou a ele um pedaço do meu poder e ele retribui essa
dádiva multiplicada por dez.
Meu.
Quando ele colapsa na cama ao meu lado, meu vínculo me deixa de
uma só vez.
O horror pelo que acabou de acontecer penetra no meu ser.
Não tenho tempo de dizer uma única palavra a ele, porque a porta
abre de forma tão abrupta que ricocheteia da parede, e North dispara para
dentro do quarto com uma expressão possessa no rosto. Dou o gritinho mais
esquisito e constrangedor do mundo enquanto me enrolo em um casulo de
edredom.
Ouço mais passos, mas os olhos de Gryphon brilham e eles param à
porta. São dois de meus Vínculos, que devem ser Gabe e Atlas, e quero
morrer.
Morrer.
Um silêncio horrorizado se passa, então North rosna:
— Que porra foi que você fez?
Como é que vou responder isso? Não sei o que fiz. Não tive controle
sobre meu vínculo e agora estou um caos, só que olho para Gryphon, na
intenção de avaliar como ele está reagindo a tudo isso, e vejo que North está
focado nele. Para meu horror, Gryphon olha para as próprias mãos: as
manchas de sangue sobre elas e, ai Jesus, sobre suas coxas parecem uma
droga de sinal vermelho.
Isso é muito, muito ruim.
Então os dois olham para mim e eu gostaria de morrer agora mesmo.
O vínculo abandonou minha mente por completo e fui deixada com as
consequências daquele transe, com as consequências de completar o
Vínculo e de tornar Gryphon meu Vinculado.
Alguma coisa nessa situação abriu as comportas das emoções dentro
de mim e me sinto uma pilha de nervos. Sinto-me enjoada, eufórica, triste,
jubilosa e mais um milhão de outras emoções conflitantes, todas de uma
vez. Sinto minha pele sensível e dolorida, como se estivesse prestes a
explodir, e o poder adicional crescendo nas minhas entranhas me aterroriza.
Quero me debulhar em lágrimas muito sufocantes, porque acabei de
estragar tudo. Ou é óbvio que estou à beira de um colapso, ou os dois
decidem acabar com meu sofrimento logo, porque Gryphon me dá as costas
e entra na minha frente, chegando o mais perto de me dar um pouco de
privacidade quanto é possível nesse inferno em que me encontro.
— Oli, você precisa ir dormir em outro lugar hoje? — North
pergunta em voz baixa, ainda encarando Gryphon com olhos penetrantes.
Preciso de três tentativas para falar, mas obrigo as palavras a saírem.
— Preciso ficar aqui. Não posso sair.
Sem dizer mais nada, North dá meia-volta e sai do quarto, ao
mesmo tempo que me esconde da vista de Atlas e Gabe, ambos ainda
parados na porta graças a... sei lá o que Gryphon fez com eles.
Estraguei tudo.
23

Assim que a porta se fecha atrás de North, saio depressa da cama, ainda
bem enrolada no edredom, disparo para o banheiro e tranco a porta como
uma absoluta e completa covarde.
Então passo um minutinho entrando em pânico.
Por que meu vínculo mandou Brutus embora? Preciso do meu
amiguinho de névoa agora mesmo me fazendo companhia enquanto perco a
droga da minha cabeça. Não me orgulho disso, mas considero encher a
banheira e me afogar nela.
Opto por entrar embaixo do chuveiro.
Ainda está com o cheiro de Gryphon aqui, as bolhas de seu sabonete
e de seu xampu ainda estão paradas na água que sobrou no piso de azulejo,
e embora meu vínculo fique puto pra caralho com isso, lavo o cheiro dele
da minha pele.
E do espaço entre minhas pernas.
Estou possessa com meu vínculo. Não acredito que ele fez essa
merda comigo. Não acredito que, depois tudo que fiz para mantê-los a uma
distância segura, meu vínculo estragou tudo em um ataque de birra por
ciúmes!
Não quero nem pensar no fato de que trepei com meu Vínculo logo
após ele ter rolado com outra mulher na porcaria da cama.
Além disso, eu não estava ciente de que transar me faria querer
morrer no instante em que o orgasmo acabasse. Droga, nem consegui
aproveitar o pós orgasmo direito graças aos outros aparecendo aqui. Pelo
menos foi uma excelente introdução ao sexo, a porcaria do clímax foi tão
intensa que tem muito mais dos meus próprios líquidos entre minhas pernas
do que só sangue e porra. Tudo bem, doeu um pouquinho e teria sido
melhor se meu vínculo não estivesse no controle, mas se eu fechar os olhos
e me obrigar a esquecer do restante das merdas que estão rolando, ainda
consigo sentir sua boca no meu clitóris, deixando-me louca, caramba.
Você está se masturbando no meu chuveiro, Vinculada?
O barulho que sai de mim com toda certeza não é humano e derrubo
a embalagem de xampu que estava em minhas mãos. Isso faz o barulho
mais alto que já ecoou em um espaço fechado na história, meus ouvidos
zumbem e a dor dispara pela minha cabeça.
Então, porque a noite de hoje não poderia apenas parar de foder
comigo, a porta do banheiro abre de uma vez quando Gryphon a arromba.
Ele. Arromba. A. Porta.
— O que acha que está fazendo?! — grito com a voz esganiçada, e
ele faz uma carranca para mim como se fosse eu que tivesse acabado de
arrancar um pedaço da porta com a droga do meu ombro e a troco de nada.
Ele me encara, descendo os olhos ao lugar em que meus braços
estão cruzados por cima dos meus seios como se ele não tivesse lambido e
chupado meus peitos há tipo uma hora, e depois avança para abrir a porta
do box.
— Ouvi um barulho, achei que você tinha caído e se machucado.
Chega pra lá.
Eu o encaro de boquiaberta, sem querer recuar, mas ele apenas entra
e força o meu corpo para trás ao fazer isso, então não tenho escolha. Não
quero assisti-lo limpando meu sangue de seu corpo, e retruco quando ele
abre a boca:
— Não. Não use seu dom comigo agora. Estou muito puta da vida e
vim aqui tentar me afogar.
Ele bufa com deboche, estende o braço ao redor de mim para pegar
o sabonete e ensaboa as mãos, mas em seguida, em vez de se limpar, ele
começa a ensaboar minhas pernas. Suas mãos se mantêm em lugares muito
castos, mas agora que sei qual é a sensação de tê-lo dentro de mim, esse
momento é muito sensual.
— O que te engatilhou? O relatório de Black dizia que você chegou
em casa em segurança, ele estava satisfeito o suficiente, o que engatilhou
seu vínculo? Vou matar quem tiver feito isso com você.
Dou um riso de escárnio para ele e empurro seu peito, mas ele é três
vezes maior do que eu e quase um muro de tijolos, então o único resultado é
que ele segura minhas mãos e as mantém presas em seu peito.
— Me solta! Meu vínculo pode não ver problema com forçar a
gente a estar Vinculado, já que reivindicou seu vínculo e foi descansar no
meu peito, mas não vou superar tão rápido você ter tido outra garota na
porra da sua cama! Você falou toda aquela baboseira por causa da minha
roupa antes de eu sair e aí ficou aqui com outra garota qualquer? Não.
Mudei de ideia, vou dormir em outro lugar — disparo, mas quanto mais as
palavras escapam de mim em minha tagarelice furiosa, mais confuso e
irritado ele parece.
Ele se abaixa para olhar bem nos meus olhos, obrigando-me a
manter o contato visual.
— Mas do que diabos você está falando? Não toquei em outra
mulher desde o momento em que te arrastamos de volta para cá e te
deixamos na sede do conselho. Oli, olha para mim, juro pelo nosso Vínculo,
não toquei em ninguém além de você desde que nos conhecemos.
Essas palavras causam palpitações em todo tipo de lugar que não
deveriam. Eu me forço a continuar com raiva porque o cheiro que senti não
foi imaginação minha.
— Então por que tinha perfume na sua cama toda? Aquilo não
apareceu nos seus lençóis em um passe de mágica, não é? Cheguei aqui
vestida no meu macacão, assim como você mandou, e encontrei sua cama
fedendo a outra mulher. Nem tive chance de ficar irritada ou chateada, meu
vínculo tomou o controle no mesmo instante e aí... foi tudo tão rápido.
Ele só me encara.
Então, xingando baixinho, abre a porta do box com um empurrão e
pega uma toalha. Estou esperando ele sair furioso do cômodo porque já
conseguiu o que queria, o Vínculo entre nós está completo e seu poder vai
aumentar, se é que não já aumentou, mas ele se vira para fechar o chuveiro
e me enrola no luxuoso tecido felpudo.
Seu rosto está assustador, com um tipo de fúria que estou
acostumada a ver em North, mas nunca nele, mas suas mãos são gentis
enquanto me seca e me cobre. Depois, com todo cuidado, ele me leva de
volta ao quarto com uma mão firme e zero preocupações pelo fato de que
ainda está pelado e pingando água.
Tem sangue por toda parte.
Não é, tipo, uma quantidade que apresenta risco de morte, mas
manchas por todo o lençol e na toalha jogada no chão, que ele usou para se
limpar um pouco. É estranho pra caralho não falar sobre isso, mas acho que
talvez ele presuma que estou menstruada.
Se eu tiver sorte, nunca vou precisar ter essa conversa com ele.
Ele me deixa ao lado da porta despedaçada do banheiro e avança até
a cama, depois se inclina e franze o cenho quando, obviamente, sente o
cheiro do perfume por baixo dos aromas do nosso sexo. Fico muito corada,
é constrangedor pra caralho pensar nisso, mas quando ele se levanta e pega
o celular, quero morrer mais uma vez.
— Está fazendo o quê?! — dou um gritinho, e ele fala com quem
quer que esteja do outro lado da linha me olhando direto nos olhos, sem
esconder ou tentar disfarçar o que está acontecendo.
— Preciso que você reúna em seu escritório todas as mulheres que
estão nesta casa, todas que estiveram aqui nas últimas duas horas. Alguém
esteve no meu quarto e aprontou com a minha cama. Isso engatilhou o
vínculo de Oli, meu vínculo respondeu, e quem fez isso queria magoá-la...
ela está bem agora, só está furiosa, e eu também estou... estarei aí em cinco
minutos... Oli vai ficar aqui, ela não vai ficar perambulando pela mansão
enquanto essa merda está acontecendo.
Quando ele desliga o celular e o joga na mesa de cabeceira, cruzo
meus braços e o repreendo:
— Você espera mesmo que eu acredite que você não fez nada? Não
tenho um detector de mentiras embutido, mas não nasci ontem!
Ele nem reage, apenas começa a tirar os lençóis da cama e enrolá-
los com uma ligeira expressão de repulsa por estar mexendo com isso. Fico
inquieta no lugar, meu corpo está doendo em vários lugares novos, e avanço
devagar para tentar encontrar o pijama que trouxe comigo. Está em uma
pilha perto da porta, pois, óbvio, derrubei tudo no chão quando meu vínculo
tomou as rédeas.
Assim que ergo as roupas, meu vínculo fica irritadinho por serem
dos outros Vínculos, já que agora ele só quer meu Vinculado, quer se afogar
no cheiro dele e se esfregar no espaço dele até que o Vínculo que
compartilhamos esteja consolidado por completo. Fecho a cara para o
pijama e, depois que Gryphon termina de fazer a cama, volta até onde
estou.
— Pegue o que quiser no meu armário, você está em... porra, modo
ninho. Sei que não quer, mas é disso que precisa agora. Pegue o que você
achar confortável para dormir e eu vou consertar isso.
Solto as outras roupas como se estivessem pegando fogo,
demonstrando uma completa falta de consideração pelo espaço do meu
Vinculado, mas ele não se incomoda. Apenas recolhe tudo e me acompanha
até o closet, permanecendo perto de mim até eu estar vestida em uma de
suas cuecas boxer e em um suéter preto aconchegante.
Depois que me afasto, deixando claro que não vou pegar mais nada,
ele começa a escolher roupas para si mesmo e eu dou as costas. Não quero
que ele se cubra e me deixe, eu o quero em uma cama que tenha só o nosso
cheiro, envolvendo meu corpo com o seu.
Meu coração fica apertado quando ele sai vestindo jeans e camiseta,
sinto um frio na barriga e não consigo me impedir de choramingar.
Seus braços me envolvem e me apertam contra seu peito.
— Qual o problema? Sei que não acredita em mim, mas vou
descobrir quem foi e resolver isso. Vou te dar qualquer prova que você
queira.
Faço que não com a cabeça, esfregando o rosto em seu peito e,
mesmo começando a acreditar nele, ainda não consigo falar nada. Minha
voz ficou presa em algum lugar do meu corpo, junto ao meu vínculo
bárbaro e meu dom assassino que só aumenta.
Alguém bate à porta.
A mão de Gryphon desliza para meu cabelo, segurando a parte de
trás da minha cabeça enquanto ele convida meu Vínculo a entrar. Já sei que
é North, é óbvio que foi para ele que Gryphon ligou e pediu ajuda para
encontrar a mulher, mas não consigo me afastar de seus braços para me
esconder, porque se ele parar de me tocar agora, existe uma chance de que
eu rache no meio e meus órgãos se esparramem por todos os lados.
Essa noite, com certeza, foi amaldiçoada.
— Conferi as câmeras de segurança e Gracie Davenport esteve aqui
dez minutos antes de Oleander entrar. Ela estava com uma mochila. Fui
falar com ela, mas Felix já a mandou embora por ter atacado Sage de novo.
Parece que ela se ofendeu com alguma coisa que Gabe disse a ela quando a
levou ao quarto e saiu perambulando.
Merda. De. Gracie.
As mãos de Gryphon ainda estão cálidas e gentis enquanto acaricia
minhas costas, mas o tom com que ele responde a North é tudo menos isso.
— Vou lidar com ela amanhã. Você precisa expulsá-la da Draven
também, ela não tem permissão de chegar perto de Oli, ou de qualquer um
de nós, nunca mais. Se ela ou a família dela tiverem algum problema com
isso, vou me livrar dela.
Fico tensa em seus braços, mas ele não interrompe seu carinho
tranquilizador. North não responde e fico curiosa para saber o que os dois
estão conversando através de suas expressões, então inspiro fundo e me viro
nos braços de Gryphon para enfrentar North.
Ele está olhando para a pilha de lençóis que Gryphon socou na cesta
de roupa suja do canto. O edredom com o qual me cobri ainda está no
banheiro, mas Gryphon encontrou um sobressalente e refez a cama.
— O que ela fez? — North pergunta e Gryphon se afasta de mim
para buscar o resto das evidências da burrice de Gracie no banheiro.
Engulo a bile e respondo:
— Perfume. Ela passou perfume na cama dele toda e meu vínculo
assumiu o controle antes que eu tivesse a oportunidade de sequer falar com
ele. Estava fora do nosso controle, porque meu vínculo é uma vadia
ciumenta e chiliquenta e apenas assumiu o controle.
Gryphon recolhe a pilha de roupa de cama suja e sai do quarto para
se livrar dela, deixando-me sozinha com North por um instante, e eu
imediatamente quero correr atrás dele. É idiotice, sei que é, mas meu
vínculo se entristece no meu peito como se ele estivesse me abandonando.
Em vez de permitir que eu me torne um pesadelo de Vinculada
patética e chorona, concentro-me na ligação entre nós, nos pequenos fios
que mal se instalaram, mas que sei que crescerão com o tempo. Sinto
gotículas de suor brotarem na minha testa ao enviar duas palavras para ele,
e me xingo porque ele fez parecer tão fácil ao me mandar uma droga de
frase inteira antes.
Queime tudo.
Há um breve momento de silêncio em minha cabeça, depois sua
reposta chega.
Vou queimar a mansão inteira se você quiser. Podemos ir passar a
noite no seu quarto e troco de quarto amanhã cedo.
Porra.
Meu coração dá um mortal dentro do meu peito, e embora isso me
dê calafrios, forço uma resposta para ele.
Não vou sair desse quarto, se apresse e volte pra mim.
Não quero me deitar na cama sem ele, mas North está parado a
poucos metros de distância, olhando feio para tudo dentro do quarto como
se estivesse planejando a punição por esses acontecimentos. Meu Deus,
provável que está mesmo, e fico feliz por me encontrar nesta situação com
Gryphon, porque, pelo menos, North acredita nele e confia cem por cento
em sua palavra. Espero em silêncio por um segundo, esfregando os braços
com as mãos, porque mesmo de suéter estou com um pouquinho de frio,
com o ar-condicionado tão forte, mas North não tem nenhuma reação.
North se aproxima de mim, seus passos são hesitantes, mas sua voz
está firme quando diz:
— Se você precisar... de qualquer coisa depois do que aconteceu
hoje, providenciarei para você. É só dizer o quê e você terá.
Franzo o cenho para ele, mas, ainda sem me olhar, sopra o ar pela
boca e continua:
— Eu não sabia que você era virgem. Suponho que vocês não
tenham usado camisinha, já que seu vínculo estava no controle. Se quiser,
vou comprar um contraceptivo de emergência... a não ser que você se
oponha e esteja de acordo com as consequências?
Cacete, Jesus.
— Sim, por favor. Eu tomava o anticoncepcional injetável enquanto
estava longe, por causa das minhas cólicas, mas já faz muito tempo desde o
último. Ai meu Deus, será que essa merda consegue piorar mais?
Agora estou mesmo entrando em pânico, mas ele não percebe e nem
olha para mim, fica só parado ali, mais uma vez em silêncio, até Gryphon
voltar.
Ele nem olha na direção de North, vem para mim e me segura em
seus braços, depois me leva até sua cama e dá uma última farejada para se
certificar de que o perfume foi todo retirado e não foi absorvido pelo
colchão nem nada.
— Estamos bem, North. Não tem mais nada que possa ser feito essa
noite — Gryphon diz, dispensando-o de forma óbvia. Acho bem ousado da
parte dele, porque, por mais que eu tenha tentado antes, North nunca
permitiu que eu o mandasse sair.
Ele vai sem dizer mais nada.
Acho meio apavorante.
— Oli, está tudo bem com a cama ou precisamos sair daqui? Não
sinto cheiro de mais nada.
Volto ao presente e dou uma farejada cautelosa, ainda com dor
suficiente para não estar pronta para mais uma rodada. Não há nada ali além
do cheiro limpo e fresco do sabão que as empregadas usam, então subo na
cama em silêncio. Gryphon sobe em seguida, aconchegando-se atrás de
mim, embora ele costume dormir do outro lado da cama, e, quando ele
apaga a luz e mergulha o quarto em escuridão, deixo minha cabeça cair no
travesseiro com um baque surdo.
É desesperador o quanto preciso que esta noite acabe.
Aconchego-me nos braços de Gryphon e deixo que ele me ajeite até
estarmos os dois confortáveis. Depois de um minuto, sua mão desliza pela
minha barriga e esquenta, então sinto seu dom fluindo para dentro de mim,
aliviando a dor entre minhas pernas, e ruborizo como uma doida.
Pigarreio e sussurro para ele:
— Você não precisa fazer isso.
Ele enfia o rosto atrás da minha orelha, onde Brutus costuma dormir,
e murmura:
— Vou rasgar aquela garota em pedaços com minhas próprias mãos
por ter feito isso com você, mas sou um cuzão egoísta. Estou feliz que fui
eu e não um dos outros.
Viro o rosto para o travesseiro e tento não chorar como uma
garotinha patética, aliviada porque talvez ele não esteja mentindo, talvez ele
me queira mesmo e estou atada a alguém que sabe de verdade do que sou
capaz.
— Não chora, Vinculada. Estamos juntos nessa, não importa o que
aconteça.
Solto uma risada desolada para ele:
— Você está Vinculado a um monstro. Um monstro de verdade, uma
assassina. Você ouviu Carlin, você sabe. E se ficar mais forte? Já estou
sentindo crescer dentro de mim, sabia? Estou sentindo, todos nós vamos
morrer.
Ele grunhe e me mexe, movendo meu corpo mole até eu ficar de
frente para ele como se eu fosse uma boneca de pano que não pesa nada, e
me esforço para não achar isso sexy. Está escuro demais para de fato olhar
em seus olhos, mas pisco para ele como se isso fosse afastar a escuridão.
Suas mãos sobem para segurar meu rosto.
— Se você se chamar de monstro de novo, vou te deitar no meu colo
e arrancar essa atitude de você no tapa. Você é perfeita. Ter um dom de
Nível Superior, não importa o quanto seja raro, não faz de você um
monstro. Já conheci muitos monstros, você não é um deles.
Eu, com toda certeza, não sou perfeita, mas ele diz isso com tanta
convicção que fico louca para acreditar. Sua mão começa a fazer carinho na
pele macia da minha barriga e fico feliz por todo nosso treino ter diminuído
a barriguinha que tenho ali. Ainda tenho, bem provável porque é o lar do
meu útero, afinal, tipo assim, sou uma garota, mas não é mais algo que me
deixe desconfortável.
— Durma, Oli. Podemos resolver tudo amanhã de manhã.
24

Acordo ainda sendo abraçada por Gryphon, mas é muito diferente de todas
as outras vezes em que acordei em sua cama.
Ainda mais porque sua mão está no meio das minhas pernas, seu
polegar acariciando meu clitóris por cima do tecido da cueca que peguei
emprestada ontem à noite, seu pau está duro e esfregando na minha bunda
enquanto ele geme. Não consigo evitar mexer minha bunda, esfregando-me
nele por instinto, e fico feliz que a dor entre minhas pernas tenha
desaparecido.
Já que o pior aconteceu e estou Vinculada a ele, então é melhor eu
aproveitar o caminho para o inferno.
Os dentes afiados de Gryphon mordem meu ombro, arrancando um
suspiro de mim antes que ele alivie a mordida e beije a marca.
— Se alguém aqui vai para o inferno, sou eu por estar me achando
pra caralho por ter você, mas eu não pensava que você fosse tão pessimista
assim.
Dou uma cotovelada nele de novo, mas não tem efeito nenhum.
— Sai da minha cabeça, tenho direito de ser uma chorona dramática
em uma crise se eu quiser!
Ele segura meu cotovelo e o puxa mais para trás, prendendo meu
braço por trás das minhas costas enquanto sopra por cima da pele que
deixou molhada no meu pescoço, disparando arrepios por todo meu corpo e
me fazendo arquear as costas e esfregar a bunda no pau dele um pouquinho
mais.
Ele volta a trazer a boca para meu ouvido e murmura:
— Para de se contorcer e resistir para eu poder te mostrar como sexo
tem que ser, como sempre vai ser com a gente daqui em diante.
Vinculado arrogante.
— Já assisti bastante pornô, sei bem onde cada coisa se encaixa, e
não tenho certeza se você vai conseguir revelar um fetiche que me choque.
Ele bufa de deboche e desliza uma mão pelo meu corpo,
escorregando os dedos por baixo do cós da boxer e direto pelos lábios da
minha boceta, descobrindo que estou molhada e pronta para tudo que sua
língua está prometendo.
Resisto contra seu corpo só porque a perseguição é metade da
diversão e se ele quiser me mostrar um pouco de sua destreza na cama, vai
ter que se esforçar.
O pau dele fica ainda mais duro encostado na minha bunda enquanto
tento me soltar, e quando ele libera meu cotovelo para segurar minha
garganta e me curvar para trás contra seu corpo, um gemido baixo escapa
dos meus lábios. Seus dedos contraem, mas a outra mão só está brincando,
ele não está de fato tentando me fazer gozar com aqueles movimentos, e eu
me sacudo mais uma vez para tentar forçá-lo a tocar o que é importante.
Ele cansa de esperar eu ficar deitada quietinha e colaborar, então,
mais uma vez, acaba me colocando na posição em que me quer, com um
travesseiro por baixo do meu quadril e seu suéter empurrado para cima,
para que ele tenha acesso a todas as partes do meu corpo nas quais está tão
concentrado agora.
Abro a boca para reclamar de novo, mas ele a cobre com sua e
morde meu lábio como se estivesse me punindo por ser difícil. Se é assim
que ele planeja me manter na linha, pode ter certeza de que vou arruinar a
vida deste homem, porque nunca vou abrir mão disso.
Seu dedo calejado está áspero no meu mamilo, a fricção que causa é
um tipo delicioso de dor e, quando me belisca, arfo em seus lábios, e ele
responde com uma risadinha convencida. Quero ficar brava, mas seus
lábios são habilidosos e confiantes demais enquanto ele me idolatra com
sua língua, descendo pelo meu pescoço e usando os dentes mais uma vez. Já
sei que ele está deixando um rastro de pele vermelha, certificando-se de que
ninguém questione o que ele tem feito, mas ele aperfeiçoou o equilíbrio
entre “demais” e “suficiente” e me deixa pendurada na beira do desespero.
É tudo muito mais intenso sem meu vínculo dominando minha
mente.
Sinto tudo que ele está fazendo com mais intensidade e suas mãos
exploram cada centímetro do meu corpo até que eu não saiba mais onde
meu corpo termina e o dele começa. Ele encontra todos os pontos sensíveis
que eu nem sabia que existiam, lambendo e chupando minha pele até eu
estar me contorcendo embaixo dele em uma confusão de quase prazer
prolongado.
Quando ele enfim desce para tirar a boxer de mim, estou pronta para
canalizar um pouquinho do meu vínculo de novo e forçá-lo a enfiar a cara
na minha boceta, mas ele se move com tanta determinação que não preciso.
A grande janela com vista para o jardim está iluminada pelo sol da manhã e
sinto que o momento é exposto demais, claro demais e íntimo demais.
Quero tampar meus olhos com uma mão para esconder o pouco que der,
mas Gryphon segura meus dois pulsos nas mãos e os prende na cama para
que eu não tenha escolha além de o assistir me chupar.
E como esse homem sabe chupar.
Suas mãos apertam mais meus pulsos enquanto ele desliza a língua
pela minha boceta, certificando-se de lamber e chupar meus lábios inteiros,
e a sensação é maravilhosa, mas não chega nem perto de ser suficiente para
me fazer gozar. Quando eu solto um grunhido como o de uma moribunda
que quer que acabem logo com seu sofrimento, ele enfim vai ao ponto,
atacando meu clitóris como um profissional, e chego a tirar as costas da
cama quando gozo.
Se ele está tentando me provar alguma coisa, caramba, está fazendo
um excelente trabalho. Os sons depravados da minha boceta molhada se
espalham pelo quarto quando ele, por fim, solta meus pulsos para apertar
minhas coxas e colocá-las por cima de seus ombros. Estou percebendo que
ele é obcecado pelas minhas pernas, mas também estou ocupada demais
esfregando minha boceta em sua cara para comentar a respeito.
Estou sensível ao extremo e choramingando depois do meu terceiro
orgasmo. Ele grunhe insatisfeito quando imploro para ele dar um tempo,
descansar, deixar minha boceta se recuperar do prazer brutal que sua língua
me deu e, finalmente, ele ergue a cabeça para olhar o caos em que me
transformou, um sorrisinho muito cheio de si se abre em seus lábios.
Não tenho energia para retrucar ou dar um chute nos dentes dele por
ser tão convencido, mas ele se ajoelha e alinha seu pau na minha entrada,
não sinto dor nenhuma quando ele se força para dentro, minha boceta está
encharcada, pingando com meu gozo, e ele geme quando o sugo para
dentro.
Então ele começa a soltar a língua e decido que só pode estar
tentando me matar, que seus planos para se livrar de sua Vinculada perigosa
são uma coisinha perversa e cruel:
— Que bocetinha mais gananciosa, aguentando meu pau todo como
uma boa garota. Diz que vai ser boazinha para mim de agora em diante, me
dar essa bocetinha Vinculada linda sempre que eu quiser. Vai deixar eu te
comer sem camisinha sempre que precisar ser lembrada de a quem você
pertence, porque isso aqui é meu. Seu vínculo me disse que sou seu. Bom,
linda, essa boceta aqui é minha e vou usar e meter nela sempre que eu
quiser também. Se você me quer, é isso que vai ter.
Ele desliza para fora e me vira de barriga para baixo, dando um tapa
na minha bunda ao mesmo tempo em que volta a se enterrar em mim, eu
gemo e estremeço deixando mais um orgasmo no travesseiro. Minha voz
está rouca e falhando por causa de todos os gritos que ele está arrancando
de mim.
Seus dedos se afundam nos meus quadris quando ele goza, gemendo
e batendo seus quadris em mim até eu me apoiar na cabeceira para ele não
me fazer atravessar a parede enquanto me come. Sinto a umidade do gozo
dele quando me viro e percebo que transamos sem caminha mais uma vez,
mas acho que a pílula que North está providenciando vai cuidar disso.
— Minha nossa, porra — resmungo, minhas pernas ainda estão
formigando e parecem ser feitas de gelatina quando ele se joga de costas ao
meu lado, e caramba, o peito dele parece bem gostoso de dar uma mordida
enquanto ele recupera o fôlego.
— Melhor que pornô?
Jogo o travesseiro que estava embaixo da minha bunda em sua cara,
fazendo um barulho alto e, quando suas gargalhadas se espalham pelo
quarto, ofereço um sorriso muito relutante.
— Foi melhor, sim, mas vê se não perde o jeito. Não sou uma garota
fácil de manter satisfeita.
*

Chego no saguão de entrada muito hesitante, o que é idiota pra


caralho.
Depois de passar uma hora me recuperando dos resultados de
Gryphon me reivindicando sem meu vínculo presente, eu me enfiei no
chuveiro para postergar o inevitável e constrangedor encontro pós-sexo. Sei
que vai acontecer, que não importa o que Gryphon e, bem provável que
North, tenham dito a Gabe e Atlas, vou ter que conversar com os dois e
explicar o que aconteceu.
Gryphon ficou de guarda, observando cada um de meus movimentos
como se temesse que eu me enforcaria no chuveiro se ele me desse as
costas. E, quando uma das empregadas bateu à porta com uma sacolinha da
farmácia, ele atendeu vestido da cabeça aos pés e apontando uma arma para
ela.
Um pouquinho exagerado.
Quer dizer, bom saber que não sou a única que o Vínculo deixou
louca pra caralho, mas também acho estranho ver o meu Vínculo mais
equilibrado perdendo a cabeça de vez agora que completamos o Vínculo.
Vinculados.
Caralho. Meu. Jesus.
Ele esperou até eu ter tomado a pílula, bebido água e estar vestida
em suas roupas e me acompanhou de volta ao meu quarto para me vigiar
enquanto eu me vestia e me arrumava para ir trabalhar no café. Só quando
eu estava pronta que ele me deixou sozinha e desceu para fazer o controle
dos danos.
Sentei-me na minha cama e mandei uma mensagem para Sage,
como uma covarde.
Ela sabia que alguma coisa tinha acontecido, porque quando North
contou a Atlas e Gabe o que Gracie fez, parece que Atlas entrou em pé de
guerra. Houve uma briga que acabou com as névoas de North separando
todos os envolvidos, e se isso não for a droga de coisa mais vergonhosa que
já ouvi na minha vida, não sei qual é.
Então, agora estou andando de fininho como uma meliante à
espreita, morrendo de medo de encontrar qualquer pessoa, mas também
preparada para enfrentar a raiva e descrença de todos.
Talvez o universo tenha decidido que já sofri demais, porque quando
chego ao saguão, encontro um filhotinho nanico feito de névoa, com vácuos
nos olhos, esperando por mim.
Abaixo-me para pegá-lo e ele vem pulando na minha direção,
dobrando de tamanho para que, ao se jogar de costas aos meus pés, eu tenha
um monte de barriguinha para coçar.
— Brutus! Aí está você! Estava preocupada, achei que teria que
brigar com Nox por você. Eu teria feito isso se não te encontrasse logo.
Ouço passos, mas estou com medo demais de olhar, então me
concentro em dar os melhores carinhos na barriga que Brutus já teve.
— Você não devia tê-lo mandado de volta para mim. Ele teria
ajudado mais se ficasse lá — Nox diz com uma voz arrastada, e quando
ergo os olhos, vejo que ele parece estar... bêbado.
Encolho um ombro.
— Não fui eu. Foi meu vínculo, ele tomou o controle e o mandou
embora. Acho que ele sabia que Brutus ia... que inferno, nem sei o que ele
teria feito.
Nox se aproxima de onde nós estamos e agacha também, passando
uma mão na barriga de Brutus enquanto faço o mesmo.
— Ele teria me avisado do que estava acontecendo e eu teria que
decidir o que fazer. Você não parece estar muito chateada com o Vínculo,
talvez tenha feito a coisa certa ao mandá-lo embora para conseguir
emboscar Gryphon da exata maneira que você queria.
Juro por Deus que esse homem nunca faz sentindo nenhum.
— E quando você me prendeu na parede do corredor, aquilo fui eu
te emboscando também?
Ele contorce os lábios, e a expressão alcoolizada, mas calma, em seu
rosto se transforma naquela máscara Draven furiosa que estou mais
acostumada a ver.
— Não sou ingênuo de cair nos truques de um vínculo. Não vou me
permitir ficar acorrentado a um veneno só porque quero meus poderes.
Dou uma boa e demorada olhada no rosto dele, e meu vínculo fica
em silêncio no meu peito ao ver seu estado desgrenhado. Ele parece uma
baderna caótica muito bem recomposta e controlada. Lembro a mim mesma
de que ele também está de luto por alguém que foi importante em sua vida,
que há poucas semanas segurei sua mão durante o velório.
E que ele também me deixou fazer isso.
Tiro a mão da barriga de Brutus e me sento sobre meus calcanhares,
então dou coçadinhas na orelha do filhote quando ele vem atrás da minha
mão, carente por mais amor, mas mantenho meus olhos no rosto de Nox
sem vacilar.
— Se o que você quer agora é acreditar que sou essa pessoa, Nox,
não vou tentar fazer com que mude de ideia. Se precisa que eu seja a vilã da
sua história para suportar mais um dia, eu aceito. Mas você não vai ser o
vilão da minha, por mais que você se esforce. Estou te enxergando muito
melhor agora e não vou te dar a satisfação de ser o lobo mau no meu
mundo.
Ele reage como se eu o tivesse ameaçado.
Joga o peso sobre seus calcanhares, olhando-me de um jeito
defensivo e agressivo, e abaixa os olhos para ver Brutus o encarando. Não
sei bem como ele acha que isso vai se desenrolar, mas nunca tive tanta
certeza de nada nessa vida quanto tenho de que Brutus não vai me
machucar.
Não sei se é porque meu vínculo sabe que o dom dele jamais me
machucaria, que Brutus talvez seja a única parte de Nox que não me deseja
mal, ou se sou só muito arrogante quando se trata dos níveis do meu próprio
poder, mas não estou preocupada.
É uma pena que Atlas, Gabe e Gryphon não se sintam da mesma
forma.
— Sai de perto dela!
— Droga, Oli, se afasta logo dele.
— Não encoste na minha Vinculada, Nox. Sai daqui. — As mãos de
Gryphon se fecham nos meus braços e me puxam de pé, arrastando-me para
trás antes que ele se coloque na minha frente.
Brutus vem junto, passando por baixo de Gryphon para se manter
aos meus pés, e Gabe precisa segurar Atlas para ele não chutar meu
precioso cãozinho.
Olho feio para ele, e quando ele enfim para de xingar e se solta de
Gabe, me repreende:
— Isso é a porra do espião de Draven, não um bichinho de
estimação! Você não está a salvo daquele cuzão com essa coisa te seguindo
por aí.
Ofereço a mão e deixo Brutus subir e se esconder atrás da minha
orelha, onde é o seu lugar, fora de vista, mas perto de mim e me dando
quantidades ilimitadas de conforto. Pela primeira vez nesta manhã, sinto
que posso lidar com a merda na qual me meti.
No entanto, Nox não concorda e ao se ver como o alvo de um dos
olhares perigosos e cruéis de Gryphon, fica furioso.
— Vai mesmo fingir que isso aí é um Vinculozinho precioso e
inocente agora que trepou com ela? Deve ter sido...
— Chega.
Nox ri da cara dele, de seu melhor amigo, e por um instante acho
que Gryphon vai lhe dar um soco, mas ele inspira fundo e diz:
— Vai dormir até isso passar. Foi uma noite estressante e você está
com uma aparência de merda.

Fazemos o trajeto até o café em silêncio.


Gryphon me deu um beijo muito comportado no cabelo quando me
deixou com Gabe e Atlas, seu celular estava tocando com os problemas que
ele e sua Equipe Tática precisavam resolver, e ele saiu antes que eu
conseguisse dizer tchau.
Gabe ficou em silêncio por um momento, depois segurou minha
mão, puxou-me para um abraço de lado e fomos juntos até a garagem. Atlas
nos acompanhou sem dizer nada. Ele não tentou encostar em mim até
estarmos dentro do Hellcat e disparando pela rua. Só consegui respirar de
novo quando sua mão cobriu meu joelho e seus dedos me acariciaram pelo
tecido do meu jeans como sempre.
Pelo menos ele não está bravo comigo.
Quando entro apressada no café, Sage, Sawyer, Gray e Felix estão
esperando por mim.
Eles estão na mesa dos meus Vínculos, com cafés e sanduíches em
sua frente. Quando entro, acompanhada de perto por Atlas e Gabe, Sawyer
abre a boca em um sorriso indecente, o que faz Sage dar um soco no braço
dele.
Adoro essa menina.
Gabe e Atlas arrastam mais cadeiras para a mesa e se juntam aos
nossos amigos enquanto vou guardar minha bolsa nos fundos. Gloria me
cumprimenta de forma educada, mas um pouco fria. Isso faz meu estômago
revirar, mas, em vez de ficar obcecada pensando no motivo para ela estar
brava comigo, eu me jogo no trabalho nessa hora movimentada.
Kitty é um pesadelo desgraçado.
Ela se recusa a sair do caixa para ajudar, mesmo depois que a fila
acaba, então passo meu turno inteiro correndo de um lado para o outro
como uma doida.
Meus amigos vão embora depois de uma hora já que não conseguem
falar comigo, mas meus Vínculos continuam onde estão para esperar o fim
do meu turno. Atlas muda para o chá gelado depois de seu terceiro café,
mas Gabe continua virando lattes como se planejasse passar a noite
acordado.
Preciso limpar um bom pedaço do chão depois que o filho de um
dos clientes derruba um milkshake todinho no piso. Ninguém faz menção
de pedir desculpas pela bagunça, o que me magoa, mas só coloco aquele
meu sorriso anestesiado no rosto como se esse não fosse a pior droga de dia
que já tive desde que comecei aqui.
A tarde se arrasta pelo que parecem dias.
Quando enfim fechamos, Atlas e Gabe fazem cara feia porque eu os
mando saírem para poder limpar, e Kitty desaparece nos fundos para mexer
no celular e evitar fazer qualquer parte da limpeza que é necessária. Gloria
não diz nada a ela sobre isso, então, mais uma vez, fico calada e apenas
limpo.
Acho que estou tendo um bom desempenho em provar que sou uma
boa funcionária, uma boa adição aos negócios de Gloria, e que tenho
consideração pelo tempo que fui obrigada a passar de licença.
Puxa vida, como estou enganada.
Depois que já deixei tudo bem limpo, fechei o caixa e separei o
dinheiro que Gloria precisa depositar por hoje, Kitty enfim sai do banheiro,
vestida em suas roupas normais, já com a mochila pendurada no ombro. Ela
me dá um sorrisinho irônico e joga o cabelo pelo ombro em um movimento
petulante que me faz ranger os dentes.
— Pode ir, Kitty — Gloria diz, gesticulando para a garota sair logo
pela porta dos fundos e ignorando o jeito como ela xinga baixinho por causa
disso. Ninguém nunca repreende a atitude dessa garota ou sua falta de ética
de trabalho, e isso me irrita um pouco.
Mas o pagamento aqui é bom, então não vou falar nada.
Quando ela fecha a porta após sair e Gloria se vira para mim, digo:
— Desculpa por todo o tempo que tirei, prometo que não...
Ela me interrompe:
— Aqueles seus Vínculos estão te esperando lá fora, então não vou
te segurar aqui por muito tempo. Precisa deixar seu avental, você não
trabalha mais aqui. O pagamento que te devo por hoje está separado, assim
não preciso te ver de novo.
Meu queixo cai na porcaria do chão.
— Perdão, você está me demitindo? O que fiz de errado?
Estou esperando ela dizer que são os dias que faltei, talvez eu até
entendesse se fosse isso, mas suas palavras despertam a ira do meu vínculo.
— Você nunca me perguntou qual é o meu Dom. Sou uma
Empática, consigo ver qual é o Dom das pessoas. Também consigo ver qual
é a intenção delas. Posso não ser uma das Favorecidas mais fortes, com
certeza não sou uma Favorecida de Nível Superior, mas reconheço alguém
maligna quando a vejo. Você não é bem-vinda na minha cafeteria. Não quis
fazer um escândalo quando você chegou, mas não te quero mais aqui.
Maligna.
Monstro.
Venenosa.
Meu temperamento pega fogo. Eu me contenho para não gritar com
ela, mas minhas palavras são cortantes mesmo assim:
— Você permite que Nox coma aqui! Ele veio aqui nos fundos e
vocês dois conversaram, nem vem jogar essa merda de “Vínculo de
Monstros” para cima de mim!
Ela faz que não com a cabeça e estala a língua para mim, como se
fosse muito ofensivo eu ter usado um palavrão contra ela.
— Independentemente do que as pessoas digam sobre os garotos
Draven, já vi como eles são por dentro. Eles são bons até os ossos. Um
Dom não faz de ninguém um monstro. Também vejo como você é por
dentro, e não gosto do que tem aí. Eu não tinha muita certeza sobre você
antes, mas agora que você está Vinculada e ficou mais claro de ver? Não
quero você na minha loja. Não volte aqui, nem me ligue pedindo nada.
25

Não tem nada que eu queira fazer menos do que aguentar um jantar de
Vínculo depois de Gloria ter me demitido por ser maligna, mas para escapar
dele eu teria que contar a North o que Gloria disse, e eu não quero mesmo
fazer isso. Seria mais munição para ele usar, mais pistas que poderia
explorar e mais chances de ele descobrir o que sou. Não quero arriscar.
Contudo, conto para Atlas e Gabe.
Atlas me encara, sentado no banco do motorista e depois, sem dizer
uma palavra, coloca o câmbio no neutro e desliga o motor. Quando ele sai
do carro e marcha de volta ao café, quero chamá-lo e dizer para parar, mas
as palavras ficam presas na minha garganta.
Não me sobrou energia.
— Não dê ouvidos àquela vaca velha, Vínculo. Ela não passa de
uma Empática estúpida que não sabe de bosta nenhuma — Gabe diz no
banco traseiro, mas só fico assistindo Atlas arrancar a porta dos fundos da
cafeteria como se não fosse nada.
Talvez a gente deveria estar impedindo ele.
— Tentei avisar a vocês. Eu disse que se Vincular comigo era a pior
droga de opção! Gracie sendo uma vadia do caralho estragou...
Gabe se inclina para frente no banco para me olhar nos olhos e me
interrompe dizendo:
— Nada. Ela não estragou nada, Oli. Para de surtar de medo por um
segundo e olha em volta. Não aconteceu nada quando você e Gryphon
completaram o Vínculo. Certo, foi ruim porque seus vínculos estavam
engatilhados e nenhum de vocês podia impedir ou... porra, consentir. Tudo
isso soa uma merda mesmo, mas o que estou tentando dizer é que o Sol
nasceu hoje de manhã de novo. Vocês dois ainda estão inteiros e respirando
e o apocalipse não começou.
Ele está furioso e, quando o barulho retumbante de algo quebrando
vem da cafeteria, ele xinga baixinho, sai do carro, fecha a porta com força e
corre em direção ao ataque de fúria de Atlas.
Por que você está apavorada? Mande Gabe atender o celular.
As palavras de Gryphon surgindo na minha cabeça me sobressaltam,
não sei se algum dia vou me acostumar a ele aparecendo ali do nada sempre
que quiser trocar uma ideia. Ele foi de ignorar minhas ligações e mensagens
para ter acesso total ao meu cérebro sempre que ele quiser.
Que grosseria.
Ainda preciso de uma concentração ridícula para responder, mas
está ficando mais fácil.
Fui demitida porque, pelo visto, fedo à maldade. Atlas foi atrás de
Gloria e Gabe está ocupado demais tentando impedir o homicídio que
muito provável está acontecendo na cafeteria neste exato momento para
atender o celular.
Ele não responde de imediato, mas, pela primeira vez, posso senti-lo
do mesmo jeito que ele parece sempre conseguir me sentir.
Ele está furioso. Colérico pra caralho. A sensação é tão forte que faz
minha garganta fechar e pressiono uma mão no peito, tentando arrancar
seus sentimentos de mim antes que meu vínculo decida participar da briga.
Escuto um estalo fora do carro e, quando olho para cima, encontro
Gryphon e Kieran parados ali, vestindo uniformes táticos completos, depois
de aparecerem do nada graças ao dom de Kieran. Gryphon aponta para o
carro e depois sai correndo em direção à cafeteria.
Kieran se aproxima de mim, gesticulando para eu abaixar o vidro da
janela. Em vez disso, abro a porta de uma vez e saio para me juntar a ele.
Ele não diz nada enquanto lança o olhar mais rápido e menos sutil sobre
mim para ver se estou ferida.
— Fui muito boa em não permitir que a maldade saísse de mim para
pegar aquela mulher. Já Atlas? Nem tanto — desdenho.
Ele revira os olhos e dá de ombros.
— Ele é um Bassinger, o que esperava? Você não tirou mesmo nem
um pedacinho dela? Não deu nem um golpezinho de nada naquela vaca
preconceituosa?
Ah não, não, não posso ser amiga desse homem. Não posso trocar
comentários sarcásticos e descrições reconfortantes da violência que eu
gostaria de executar com ele. Não tenho vagas para amigos agora, meu
pequeno círculo já tem gente suficiente para encher um ônibus.
Ainda assim, suas palavras fazem eu me sentir melhor, mesmo que
eu responda de maneira sarcástica:
— Ah, não tem como ela ser preconceituosa, ela tem uma excelente
opinião dos meus Vínculos muito calminhos e nem um pouco monstruosos
Draven. Nox não faria mal a uma mosca, de acordo com aquela mulher. A
maligna sou eu.
Não me pergunte por que estou me apegando tanto a essa palavra,
mas eu de fato não consigo esquecê-la.
Outro barulho alto de alguma coisa quebrando vem de dentro da
cafeteria, e Kieran dá uma risadinha, parecendo contente demais com a
destruição dolosa de propriedade que está acontecendo aqui.
Reviro os olhos para ele.
— Você não deveria estar lá dentro ajudando?
— Não, estou em serviço de babá de Vínculo. Além disso,
Bassinger é mais rico que Deus, ele pode pagar aquela vaca pra calar a boca
depois que terminar de destruir a loja dela.
Os homens são inúteis.
Estou com frio e com fome, podemos acabar logo com isso, por
favor? Já passei muita vergonha pública por um dia.
Está cada vez mais fácil conversar assim com Gryphon. A resposta
dele é instantânea e mais fluida que a minha: diga para Black te levar de
volta pra mansão e voltar aqui depois.
Dou um grunhindo enquanto repasso as ordens para Kieran, porque
odeio me locomover com um Transportador. Como esperado, quando
Kieran solta meu braço e eu abro os olhos para ver North parado na minha
frente na sala de jantar, preciso cobrir a boca com a mão em uma tentativa
de me impedir de vomitar nos sapatos Hermes de couro preto lustroso do
meu Vínculo.
Ele me senta em uma cadeira e me força a abaixar a cabeça entre as
pernas para que o mundo pare de girar.
— Um dia. Eu gostaria de passar um cacete de dia sem ter que
controlar danos. Diga aos três para pararem de dificultar mais a minha vida
e voltarem aqui antes que eu vá atrás deles — North rosna, e o som faz eu
me encolher.
Escuto outro estalo quando Kieran vai embora. Espero até estar
confiante de que não vou vomitar para me erguer e recostar no assento.
North me colocou em sua cadeira e, quando me sento, vejo que ele
está na cadeira ao lado com documentos espalhados à sua frente. Mantenho
meus olhos afastados da papelada, não quero que ele me dê uma bronca por
bisbilhotar, mas isso só faz com que eu faça contato visual com Nox
sentado na outra ponta da mesa.
Tem um copo de uísque na frente dele.
— Bassinger está defendendo sua honra por aí de novo? Que
patético. Ele precisa mesmo encontrar uma causa nova — diz de modo
arrastado, enquanto ergue o copo aos lábios. North suspira e ergue os olhos
semicerrados para Nox, mas seu irmão o ignora e continua me encarando.
Eu quero muito sair daqui.
Ou, pelo menos, mudar de lugar, não quero ficar sentada na ponta da
mesa e ser obrigada a lidar com o humor de merda induzido por álcool de
Nox.
Esfrego meus braços com as mãos e ergo as sobrancelhas para ele.
— Quer dizer que agora você vai ser alcoólatra? Não tem aulas a
ministrar? Jovens mentes a moldar e aquela coisa toda?
Ele zomba:
— Poderia ministrá-las até enquanto durmo, mas estou de licença
administrativa para cumprir minhas outras obrigações. Gryphon não te
contou ainda? Partimos amanhã para reforçar a Equipe Tática dele.
Meu vínculo não gosta nem um pouco disso.
Olho para North para ver se Nox está só sendo um cuzão e tentando
me magoar, mas ele diz sem erguer os olhos dos papeis:
— Gabe e Bassinger vão ficar aqui com você. Tem ocorrido muitos
sequestros mais ao sul e precisamos investigar. Gryphon, Nox e eu
ficaremos fora por uma semana, duas no máximo.
Nem pensar.
Não gosto nem um pouquinho disso.
Fecho as mãos em punhos mais uma vez e depois, com as bochechas
queimando, volto a abaixar a cabeça entre as pernas. Quando é que essa
baboseira de vínculo melodramático vai acabar?
— Problemas no paraíso de Vinculados? Achei que Gryphon teria te
contado...
— Para, Nox. Se não consegue ficar calado, saia daqui — North
retruca. É o tom mais ríspido que já o vi usar com o irmão. A delicadeza
que costuma usar com Nox desapareceu.
Eu o ouço sair do cômodo, mas fico de cabeça baixa até minha
mente não estar mais encharcada de medo e pânico. Quando volto a me
sentar, as portas que dão para a cozinha se abrem e os funcionários saem
com as travessas habituais de comida, mas não quero comer nada.
Eu só quero ir me deitar.
North pega um prato e começa a enchê-lo com alimentos saudáveis
e tediosos enquanto diz:
— Gryphon estava em reunião com nós dois quando você falou com
ele a respeito de Bassinger. Ele não estava escondendo nada de você. Nox
está... gostando de criar discórdia, no presente momento. Vai passar.
Quando ele coloca o prato na minha frente e volta à sua papelada,
meu apetite considera voltar e a comida sem graça parece tentadora o
suficiente para eu erguer meu garfo, murmurando um “obrigada”.
Ele não responde, só reúne todos os papeis em uma pilha e
murmura:
— Você vai dormir comigo hoje... a não ser que ainda esteja em
estado de fazer ninho e queira dormir com Gryphon. Nox vai deixar a
criatura dele com você e está Vinculada a Gryphon agora, então faz sentido
você ficar comigo antes de partirmos.
Será que ainda estou no modo ninho? Dedico um instante a verificar
meu vínculo e ver como estamos nos adaptando, e North me observa com
um rosto estranhamente inexpressivo. Pela primeira vez, ele não está bravo
nem frustrado comigo, só está observando o que estou fazendo.
Tento não corar sob seu escrutínio.
— Meu vínculo está bem, acho que a parte do ninho já acabou. Já
que insiste em levar August junto, então acho que eu...vou precisar de você.
Ter que colocar essas palavras para fora quase me mata, mas ele não
se vangloria, nem as joga na minha cara, só coloca a papelada de lado e
monta um prato para si.
Quando os outros, por fim, voltam para casa, Atlas não vem jantar, e
tanto Gabe quanto Gryphon não fazem comentários sobre minha troca de
cadeira.

Acordo em minha cama pouco depois das 2h com meu celular


tocando.
O braço de North parece um peso de chumbo sobre minha cintura,
mil quilos de apêndice masculino impossível de mover, e preciso me esticar
que nem uma doida pra alcançar a droga do celular. Duvido que seja trote e
meus Vínculos teriam vindo me encontrar se algo tivesse acontecido.
Então só podem ser meus amigos.
Nem me incomodo de olhar a identificação de chamada. Aperto
logo para atender e rosno um:
— O que houve?
O sussurro apavorado de Sage me faz sentar de um pulo.
— Ai meu Deus. Oli, preciso de ajuda! Não acredito que isso
aconteceu. Eu ‘tô amaldiçoada, porra, amaldiçoada! Não consigo... Oli, é
péssimo...
North geme enquanto vira para o outro lado, e aproveito a
oportunidade para me arrastar para fora da cama e entrar no closet.
— Onde você tá? Está segura? O que foi que aconteceu? Vou fazer
picadinho de alguém, Sage!
Ela chora, sua voz falha e escuto batidas, como se alguém estivesse
tentando arrombar a porta dela. Visto uma legging e agarro um suéter de
caxemira antigo de Nox, de uma pilha que tenho escondida.
— Na Residência dos estudantes de Medicina, onde Felix mora. A
gente saiu e aí...
Ela é interrompida por mais batidas e aproveito a chance para
rosnar:
— Ele te machucou? Vou esfolar esse merda vivo!
— Não! A gente... Oli, a gente transou e eu taquei fogo na droga do
prédio! Tipo, sério, eu estava super no controle do meu dom, mas meu
vínculo só... Oli, a sensação foi de que eu tinha me Vinculado com ele. Não
tem como eu ter feito isso, é insano só de pensar, mas foi como... merda, os
bombeiros estão aqui, estou muito fodida, Oli!
Não faz sentido nenhum, mas também não importa. Ela é a minha
melhor amiga. Se ela precisa de mim, vou arrastar minha bunda até lá para
resgatá-la, seja lá que porra aconteceu.
— Estou indo, fique onde está e fica com seu celular. Estou com
você, Sage. Não se preocupe com nada.
Ela choraminga em concordância e eu desligo, dando meia-volta
com o plano de acordar Gryphon ou Altas para me ajudar a escapar.
Dou cara com o peito nu e estonteante pra caralho de um North
Draven cansado e desgrenhado.
— Para onde caralhos você acha que está fugindo? — resmunga, e
eu mostro meu celular.
— Deveres de melhor amiga chamam. Vou levar um Vínculo
comigo e volto logo, volta a dormir. — Minha intenção é parecer
convincente e tranquila, mas é óbvio que fracasso por completo, porque ele
continua me encarando e entra mais no closet comigo.
— Sério mesmo, se eu estivesse tentando fugir, não ia escolher uma
noite em que você estava na minha cama. Seria burrice demais. Eu iria na
noite de Atlas ou Nox, porque ele nunca vai pra droga da cama. Volta logo
pra... que porra você tá fazendo?
Ele me ignora enquanto veste um dos moletons de Gryphon, e eu
nunca vi esse homem tão casual e gostoso. Ele enfia os pés em um par de
tênis de Gabe que estão no canto, então se vira para me olhar feio.
— E aí? Já que esse resgate é tão urgente, melhor a gente ir logo,
certo?
Ai porra.
Chego a ficar pálida, mas ele só sai andando do closet, apanha seu
celular na mesa de cabeceira e segura a porta do quarto aberta para que eu
não tenha opção senão acompanhá-lo.
Quando chegamos no elevador, ele digita por um instante no celular
e eu tento não ficar inquieta demais para não mostrar o quanto isso está me
deixando desconfortável.
Sage morre de medo dos Draven.
Sempre morreu e nunca tentou esconder isso, então eu devia muito
mandar uma mensagem de alerta... mas isso também poderia ser a gota d
´água no estado delicado em que ela está.
Droga.
Que ideia péssima.
— Diga a Gryphon que vamos sair. Ele não está respondendo
minhas mensagens, mas alguém precisa saber que estamos saindo — North
murmura, enquanto a porta do elevador se abre, e faço que sim enquanto
mordo meu lábio.
Isso está ficando cada vez pior.
É, oi. Desculpa te acordar, mas eu e North estamos indo em uma
missão de resgate a Sage. Ele me disse para te avisar, mas nós voltamos
logo, então volte a dormir.
Eu me xingo porque falei que nem uma idiota. Estou tão distraída
que não percebo North me fazendo dar a volta em um dos Bentley e me
ajudando a sentar no banco do passageiro. Eu me sobressalto quando ele se
senta na frente do volante.
Ele sempre leva seu motorista.
Meu olhar de surpresa o faz revirar os olhos e resmungar:
— Eu sei dirigir e Rafe precisa de horas de folga para dormir.
Aonde vamos? Coloque o cinto.
Faço o que ele diz, grata por ele saber onde diabos fica a Residência
de Medicina, porque eu não faço a menor ideia. Acho que ele deve ser o
dono do prédio, já que é parte da Draven.
Merda.
Escolho o melhor momento com sabedoria, esperando até o carro
parar em um sinal vermelho para dizer:
— Então, só para você saber, Sage tacou fogo no prédio por
acidente.
North vira o rosto para me encarar e retruca:
— Espero que esteja brincando. Aquele prédio tem duzentos anos e
mais de seiscentos Curandeiros Favorecidos moram lá!
Faço que sim com a cabeça e digo:
— Sim, e está pegando fogo.
O semáforo fica verde e me salva do olhar furioso dele, não que eu
tenha feito algo de errado aqui, mas se é para salvar Sage da ira de North,
eu aguento. Aguento tudo por aquela garota.
Estou orgulhosa dela por ter superado seus próprios obstáculos e ido
para a cama com Felix. Se ela ateou fogo no prédio, deve ter sido bom,
certo? Vou precisar de todos os detalhes suculentos assim que eu a resgatar.
De todos.
— O que houve? Vou ligar para o zelador e tomar as providências.
Olho de soslaio para North e o rosto dele ainda está bem irritado,
mas, pelo menos, está sendo obrigado a olhar para a rua, não para mim.
— Ela e Felix tiveram um encontro e depois ela veio para o quarto
dele na Residência de Medicina... e aí ela ateou fogo no prédio por acidente.
Foi só isso.
Não consigo nem falar com North sobre eu ter transado com o meu
Vinculado, de jeito nenhum vou conversar com ele sobre a vida sexual de
Sage.
— Ela foi agredida? O vínculo dela foi ameaçado? Me conte os
detalhes aqui para eu saber o que preciso fazer para resolver a situação. Ela
é filha do grupo Vinculado de Maria, não posso deixar a garota se virar
sozinha.
Cruzo meus braços e encolho os ombros para ele.
— Ela não foi agredida. Ela só... teve um pequeno incidente. Além
disso, ela é minha melhor amiga, foi a primeira pessoa a ser gentil comigo
nesse lugar. Se você estava pensando em puxar o tapete dela, vou acabar
com você. Posso não estar disposta a fazer isso por mim mesma, mas pode
apostar sua fuça que eu faria por ela.
A sensação é de que o trajeto leva horas, e sei de imediato quando
viramos na rua correta, porque tem caminhões dos bombeiros e faixas da
polícia por todos os lados.
O carro desacelera até estar quase parando.
Envio uma mensagem rápida para Sage avisando que estamos
chegando e para ela não entrar em pânico. Ela responde com uma série de
mensagens de pânico e surto. Não posso culpá-la nem um pouco.
North interrompe minhas tentativas de acalmá-la com as piores
perguntas possíveis:
— Como Bassinger está encarando seu estado de Vinculada com
Gryphon? Você vai completar o Vínculo com ele e Gabe agora que deu
início ao Vínculo?
Finjo indiferença, mas meu coração acelera um pouquinho no peito
por ele estar tocando nesse assunto agora.
— Nada mudou. Quer dizer, não, é óbvio que mudou. Gryphon
agora está na minha cabeça e meu dom está suplicando para eu fazer um
teste agora que está superpotente, mas meus planos não mudaram. Eu não
quero... não posso ficar mais forte. Não posso ter mais poder do que tenho
agora.
North concorda com a cabeça e batuca com os dedos no volante em
uma leve demonstração de frustração por estarmos indo tão devagar. Vejo
todas as pessoas ao nosso redor em movimento, em um caos que não está
nos alcançando neste espaço seguro e tranquilo.
Ele me assusta quando começa a falar de novo:
— Precisa me contar alguma coisa. Quero acreditar quando você diz
que fez o que fez porque precisava... sei que Gryphon acredita em você,
então está dizendo a verdade em alguma medida, mas não sei dizer se você
está mentindo quando ele não está por perto e ele já deixou os limites que
tem a seu respeito bem claros para mim. Eu estava muito comprometido
antes de você fugir. Estava pronto para te dar o mundo e destruir qualquer
um que tentasse machucar você ou, que droga, até respirar meio errado na
sua direção. Você rompeu isso. Me dê um motivo para acreditar que você
fez isso porque não tinha outra opção... ou que não estava ciente de que nós
daríamos essas opções a você.
Abro a boca, mas não sai nada.
O que eu poderia contar para ele acreditar? Que evidência eu
poderia dar que não o levaria direto para a Resistência?
Ele continua, murmurando tão baixo que preciso me concentrar para
ouvir:
— Você pelo menos quer estar Vinculada com todos nós? Se não
estivesse enfrentando esse vilão de quem não nos conta nada a respeito, iria
nos querer?
Essa é mais fácil de responder.
— Eu queria sim meus Vínculos. Eu quero sim todos vocês. Só
que... não posso. Não sei como dar o que você precisa, mas vou dar um
jeito. Só Deus sabe como, mas vou.
Ele se vira para me encarar, com o rosto encoberto por sombras
causadas pelos postes da rua e luzes dos caminhões dos bombeiros, e,
quando ele me dá um aceno breve, sinto que este é o maior progresso que já
fizemos.
Quando enfim estacionamos, nós dois passamos um segundo
embasbacados e olhando fixo para as gigantescas labaredas escalando o
prédio de oito andares.
— Você disse “pequeno incidente”. Oleander, isso aí não é
incidente, é uma emergência.
Limpo a garganta e dou uma risadinha meio histérica:
— Um detalhezinho de nada, certo?
26

North encontra o zelador no meio da multidão e me manda continuar no


carro enquanto tenta pensar em como tirar Sage de lá de dentro sem ferir
nenhum de nós. Aproveito a oportunidade para ligar para Sage de novo e
ver se ela não está, literalmente, no caminho do fogo agora.
Ela parece muito infeliz quando atende:
— Esperei o andar ser todo evacuado e aí me escondi no banheiro
de Felix. Estou mantendo o fogo longe daqui, mas não consigo me livrar do
resto, é fogo demais!
— Certo, tudo bem, não entra em pânico! North é dono do prédio,
ele não vai se importar com você ter causado um pouquinho de danos. Cadê
Felix? Se você me disser que ele ficou com medo e fugiu, vou matá-lo.
Ela bufa, mas é mais de choro do que escárnio.
— Estou tão assustada e constrangida, Oli! Ele tentou me tirar
daqui, mas quando o bombeiro chegou ele foi obrigado a sair. Eu disse que
ia te ligar. Oli... consigo ouvi-lo na minha mente. Ele esteve conversando
comigo esse tempo todo, dizendo que tudo vai ficar bem. Ele disse que só
não ia entrar aqui de novo atrás de mim porque sabe que você está vindo.
Os dedos gélidos do pavor apertam minha barriga.
North mesmo já me disse que a Resistência iria tentar separar os
grupos Vinculados e famílias mais fortes. Os Benson estão logo ali com os
Draven. Assim como os Davenport.
Como foi que eles se meteram com o pareamento dos Vínculos?
Será que isso sequer é possível ou estou ficando louca? Sinto que
estamos prestes a descobrir algo importante, que vai fazer toda a diferença,
e o ar fica preso nos pulmões quando minhas costelas se comprimem de
medo.
Pigarreio.
— Sage, me escuta. Estou indo te buscar. Diga a Felix para fazer
tudo que os bombeiros pedirem e depois ir para a casa de North, o mais
rápido o possível. Precisamos conversar sobre um monte de coisas, mas
vamos te tirar daí antes, certo? Não vou deixar nada acontecer com você.
Saio do carro e caminho até North, tentando não cair em uma risada
muito inapropriada sobre o quanto ele está esquisito parado ali nas roupas
casuais dos outros Vínculos que encontrou no meu armário. O rosto dele
ainda está repleto de sua rigidez autoritária e preciso arrancar o sorrisinho
do meu rosto ao me aproximar.
O zelador se afasta sem nem olhar direito na minha direção e fico de
olho na multidão enquanto digo baixinho:
— Vou entrar e tentar pegar Sage, então se você puder manter as
pessoas distraídas, ajudaria muito.
Sua resposta é imediata e cortante:
— De jeito nenhum vou deixar você entrar em um prédio em
chamas sozinha, Oleander. Pense em um novo plano agora mesmo.
Rio e aponto para os grupos de estudantes e bombeiros por todos os
lados.
— Você não vai conseguir entrar e sair de lá discretamente.
Precisamos de discrição aqui, North, não de um conselheiro perambulado
por aí procurando uma garota pelada no banheiro. Dá pra imaginar as
fofocas? Não, obrigada!
Ele me encara por um instante, depois olha ao redor, para as pessoas
mais perto de nós, ainda distantes o suficiente para não ouvir nossa
conversa. A única vantagem desta universidade estar cheia de Favorecidos
riquinhos é que ninguém nem repara no Bentley, e North chama muito
menos atenção sem o terno, mas isso não vai durar para sempre.
Alguém além do zelador vai perceber que ele está aqui.
Suspiro irritada e então sussurro depressa:
— Então me dê August. Deixe ele vir comigo, aí você vai saber se
estou segura e, sabe como é, sem fugir, se é isso que te preocupa tanto.
Ele retruca:
— Ficou louca? Não posso apenas te entregar uma das minhas
criaturas de pesadelo, não é assim que funciona.
Aponto para onde Brutus está escondido no meu cabelo:
— Não me vem com essa merda agora, me dá logo o cãozinho e me
deixa ir atrás da minha garota antes que o prédio desabe com ela dentro e a
gente precise explicar para os pais dela porque ela estava enfiada pelada lá
dentro tendo um surto.
Ele me encara e eu decido que já deu, cansei dessa conversa inútil.
Disparo em direção ao prédio e ignoro seus sussurros furiosos me
mandando voltar agora mesmo. Não sei bem o que ele estava esperando, fui
direto para os braços da Resistência por essa garota, um prédio em chamas
não é nada.
Preciso ser cuidadosa, atravessando a multidão e desviando de todos
os oficiais espalhados pela área. Sage me explicou o melhor caminho até ela
de forma detalhada, então abaixo a cabeça e saio correndo, torcendo para
North ter topado o plano e estar criando uma distração para me ajudar.
O fogo está no lado leste do prédio e, embora Sage também esteja
lá, ela me disse para pegar o caminho mais longo pela ala oeste para eu não
inspirar fumaça o caminho todo. Cubro o nariz com o suéter, só para
garantir, e agradeço Gryphon mentalmente por toda aquela merda de
exercícios aeróbicos que ele me fez treinar, já que quase nem estou
ofegando ao chegar no terceiro andar.
Escuto os barulhos de outros passos às minhas costas e quase dou
gritinho de alegria ao ver August se apressando atrás de mim. Ele está só
um pouquinho menor do que da última vez que o vi, nada discreto, mas ele
me cumprimenta batendo sua cabeçona na minha coxa e me farejando,
como se estivesse tentando entender o que mudou em mim.
— Que saudade de você, bebezinho lindo! Vou te encher de
amorzinho e coçadinhas na barriga assim que encontrarmos Sage e sairmos
daqui. Você vigia minha retaguarda. Pode fazer isso? Claro que sim, garoto
lindo.
Espero que isso signifique que North está do meu lado agora, ou
que, pelo menos, não esteja mais querendo me matar porque saí correndo, e
disparo o restante do caminho até o infame banheiro do pânico.
Nem tenho tempo de bater duas vezes antes de Sage abrir a porta
com força e se jogar em mim, enrolada num lençol de um jeito que me dá
déjà-vu, porque parece que ela também gosta de fugir das situações
enrolada que nem um burrito.
— Acho que estou ficando louca, Oli! Não paro de chorar e meu
vínculo está enlouquecendo porque Felix não está aqui e eu... estou
enlouquecendo de vez!
Certo, acho que agora não é o momento de comparar as técnicas de
enrolar burrito.
— Vai dar tudo certo, Sage. A gente vai te vestir e tirar você daqui,
tipo, agora mesmo. Depois a gente conversa sobre seu ninho.
Ela se solta de mim, o lençol escorrega um pouquinho e me exibe
todas as mordidas de amor que estão em seu ombro, o que me faz sentir um
orgulho bizarro.
Pelo visto, também estou ficando louca.
— Ninho? Oli, não sou Vínculo de Felix, não posso estar em fase de
ninho! Eu devo ter entrado tão no fundo do poço que agora vim parar no
inferno! É tudo culpa minha por ter sido idiota de tentar ficar com alguém
que não era meu Central.
Começo a procurar roupas para enfiar nela, mas não tem nada neste
banheiro além de um kit completo, até demais, de primeiros socorros.
— A gente pode falar sobre isso quando estivermos na mansão,
alguma coisa, com certeza, está rolando aqui. Vamos só encontrar umas
roupas limpas pra você e sair desse banheirinho nanico por enquanto.
August considera este um bom momento para começar a farejar os
azulejos, ao que parece, com medo de haver algum perigo à espreita no
reboco. Preciso manobrar ao redor dele para continuar procurando alguma
coisa, qualquer coisa, para Sage vestir.
— Que porra é essa? — Sage pergunta, e o tom estridente dela me
faz grunhir baixinho.
Por que todos o odeiam tanto assim?
— O nome dele é August. Ele está aqui para nos proteger enquanto
North distrai os bombeiros e o zelador para a gente te tirar daqui. Felix
mentiu tanto por você que ninguém nunca vai saber que uma Flama esteve
nesse prédio. Merda, por que Felix tem que ser tão organizado? Precisamos
de uma camiseta.
Sage me olha piscando bem quando encontro uma regata atrás do
cesto de roupa, que Felix não deve ter visto ali enquanto limpava, em
seguida, ela cai no choro de novo.
— North?! Você trouxe seu Vínculo que é o chefe da minha mãe
aqui? É isso, vou me jogar da janela. Não vou fazer isso.
Agarro o seu braço e empurro a regata para ela.
— Ele vai ficar de boa. Eu contei pra ele... nada, mas também o
suficiente pra ele estar do nosso lado. Vai ficar tudo bem.
Preciso ajudá-la a vestir a blusa e tento me lembrar de como estive
sensível na noite passada, quando também estava na fase de ninho. Com
palavras gentis e tranquilizadoras, movimentos lentos e mãos carinhosas,
consigo a deixar calma de novo e coberta da cintura para cima.
Já sei que North vai ficar puto de vez com isso, mas dou minha
legging para Sage se cobrir um pouco mais. Estou de lingerie e o suéter de
Nox é comprido o bastante para chegar no meio das minhas coxas, então
não vou sair daqui pelada. Embora eu saiba que vá ser constrangedor para
ele ter seu Vínculo andando por aí sem calça.
Inclino-me sobre August e coço atrás de suas orelhas, murmurando:
— Acha que pode dar um aviso pra ele não ficar bravo demais?
Você consegue fazer isso, ou é mais tipo, um cãozinho de guarda do que
espião?
Os olhos de vácuo dele me encaram sem piscar, e Sage sussurra:
— Ele vai te morder? Ele parece estar... com fome.
Rio e dou um beijinho na cabeça dele.
— August jamais faria isso. Está pronta? Vamos sair daqui antes que
as coisas fiquem agitadas.
Ela inspira fundo, suas mão estão tremendo de forma violenta, e faz
que sim. Ofereço meu braço, mais como consolo do que de apoio, e ela
aceita, olhando desconfiada para August enquanto o seguimos para fora.
A fumaça está mais espessa agora.
Sage tosse uma vez e ergue uma mão, então seus olhos brilham
quando ela afasta a fumaça do nosso caminho com um movimento leve de
seus dedos.
Que habilidade mais útil para se ter em uma emergência.
Há bombeiros por todos os lados e demoramos o dobro do tempo
para sair daqui do que levei para correr até lá em cima, já que estamos
evitando-os o melhor que podemos. August parece determinado a comer
alguém hoje e passo metade do tempo mandando ele sair de perto das
pessoas. Quando enfim saímos pela mesma entrada lateral pela qual entrei,
a névoa preta espessa está se espalhando por tudo. Sage arfa e aperta minha
mão. A névoa leva diretamente até o Bentley e, depois que convoco meu
dom para ver melhor, eu a faço andar até nós duas estarmos sãs e salvas no
carro.

— Me explique de novo e, dessa vez, não deixe de fora todas as


partes que você não considera importantes.
Dou um gemido e Sage me olha de soslaio, com as bochechas
vermelhas. A fila do drive thru para comprar café e sorvete está ridícula,
considerando o horário tão cedo na manhã, mas, pelo visto, pegamos a hora
do rush pós-festas. North está aproveitando a oportunidade para interrogar
Sage de um jeito nada tranquilo.
Ela está com cara de quem está planejando seu suicídio, e não a
culpo nem um pouco.
— A gente transou e meu dom apenas... ficou mais forte do nada.
Achei que era imaginação minha. Tinha que ser, mas aí Felix foi chamado a
um dos laboratórios porque ele acabou de começar a fazer plantão de
Curandeiro lá, e meu dom... surtou porque ele estava me deixando, e aí, de
repente, o prédio estava pegando fogo. Não tive controle nenhum e não
perco meu controle desse jeito há mais uma década.
North assente e bate os dedos no volante de novo, com as
sobrancelhas muito franzidas, perdido em seus próprios pensamentos,
processando tudo isso. Tento não o observar obsessivamente, mas nunca o
vi ser tão humano assim, fora os breves momentos em que ele se deita e
levanta da minha cama.
Não sei se é porque ele me disse que quer superar de verdade o fato
de eu ter ido embora, mas parece que talvez mais alguma coisa tenha
mudado entre nós.
Pigarreio e tento concentrar meus pensamentos de volta na crise do
momento.
— Ela também está conseguindo ouvir Felix na mente dela agora.
Isso é coisa de Vinculados, certo? É por isso que consigo ouvir Gryphon.
North fecha a cara e olha mais uma vez para Sage.
— Essa é uma ocorrência muito rara em grupos de Vínculos, só uma
porcentagem muito baixa de Vinculados de Nível Superior compartilha
desse tipo de conexão.
Sage concorda com a cabeça e murmura:
— Foi aí que decidi ligar e pedir ajuda a Oli. Meu Deus, meu pai vai
me matar quando descobrir.
Olho séria para North, mas ele nem olha na minha direção antes de
responder:
— Ele não vai descobrir. Vou resolver tudo isso e fazer com que
registrem como uma falha elétrica. Vou me certificar de manter Maria fora
disso. Temos coisas mais importantes em que nos concentrar, como, por
exemplo... por que caralhos você Vinculou com alguém que não é o seu
Central?
Nesse momento, eu quase o perdoo por guardar August. No
momento em que ele se sentou no carro, estendeu a mão, com a palma preta
para cima, e convocou meu precioso cãozinho de volta para si. Fiquei de
bico e me recusei a falar com ele por dez minutos inteiros, até segurei o
comentário que quis jogar em sua cara pelo tanto que seus olhos se
demoraram em minhas pernas nuas.
Não entendo o fascínio que eles têm por elas, Gryphon também é
assim.
Pare de pensar no seu Vínculo lindo de morrer e cuzão controlador,
Oleander!
Pigarreio de novo, sutil pra caralho, e tento não corar quando North
ergue uma garrafa de água do console para mim.
— Vínculos não nidificam, só Centrais fazem isso. Sage com
certeza estava tendo uma reação muito forte a essa confusão toda. Ela
estava agindo do mesmo jeito que eu agi. Não tem como um Vínculo se...
transformar em Central, tem?
North franze o cenho e avança com o carro, abaixando o vidro para
fazer nosso pedido. O fato de que ele perguntou a Sage o que ela queria,
mas já sabia o que eu pediria, foi mandão, controlador e, que droga, um
pouquinho sexy.
Ele está tentando me convencer nessa merda, mas não vou ceder
sem lutar.
North também é bem sorrateiro, porque nunca tomei café perto dele,
então como é que ele conhece com exatidão o meu pedido de café
exagerado pra caramba e cheio de firula? Ele compra para mim a exata
bebida que tenho vergonha demais de pedir a Atlas ou Gabe quando são
eles que compram meu café.
Até as sobrancelhas de Sage disparam para cima quando ele dita a
lista de ingredientes e doses adicionais.
Ela se debruça para frente e murmura:
— Mas que café esquisito é esse?
Dou uma olhadela para ele e rio:
— North está muito seguro de sua masculinidade e não se importa
que nós duas saibamos que ele prefere uma batida com quatro doses de
expresso, cinco de xarope de açúcar mascavo, duas de xarope de morango,
um pouco de creme, caramelo salpicado e cobertura extra de chantili,
tamanho venti.
Ele não diz nada enquanto nós duas rimos como crianças, gostando
muito da companhia uma da outra em uma noite tão bosta.
É óbvio que Sage fica mais relaxada a respeito de North estar
ouvindo nossas conversas e volta se reclinar no banco de trás, gemendo:
— Sawyer vai ficar irritadíssimo por eu ter ligado antes pra você,
em vez de para ele. Porra, ele vai ficar insuportável. Me mandou mensagem
o dia todo querendo que bisbilhotasse com você, aquele puto fofoqueiro.
Eu rio e esfrego minhas pernas expostas, e vejo North começar a
mexer no aquecimento do carro por minha causa.
— Não tenho dúvidas de que ele vá ser insuportável com nós duas.
Mas Atlas, com certeza, vai assassiná-lo se me perguntar qualquer coisa na
frente dele.
Sinto-me mal ao pensar em Atlas, o jeito como ele desapareceu do
jantar de ontem ainda é a principal coisa em minha mente. Não sei se estou
chateada por ele também estar, ou irritada por ele estar dando esse chilique
todo por algo sobre o qual eu não tinha controle algum.
Aí me sinto culpada, porque ele, literalmente, destruiu a cafeteria de
Gloria porque ela se atreveu a fazer comentários sobre minha índole, então
ele não é um sujeito ruim, nem um pouco.
Que confusão.
Sage murmura e suspira irritada porque a fila está lenta demais.
— Felix já está na casa de North. Estão todos acordados por lá,
aliás. Ele ligou para Sawyer e disse que estamos seguras, e agora ele está
indo pra lá também. Acho que esse negócio de comunicação mental é útil.
— É, até você estar presa na frente do seu ex-local de trabalho
enquanto seus Vínculos estão loucos lá dentro defendendo a sua honra, e
quando você pede ajuda, acaba que seu Vinculado se junta à confusão —
resmungo.
North leva o carro para frente, então estamos a só um carro de
distância de cafeína e açúcar, e a combinação de movimento e choque faz
Sage balançar no banco.
— O que quer dizer com ex-local de trabalho? Pediu demissão?
Meu Jesus, por acaso Atlas enfim matou alguns dos caras de fraternidade
que ficam atrás de você?
A cabeça do North ergue de uma vez para me olhar e eu gesticulo
para ele se acalmar.
— Eles não estão atrás de mim. Só criaram o costume de sussurrar a
meu respeito, graças a Nox por ter feito aquele Branson idiota se cagar em
público. Acho que estão todos tentando criar coragem de tentar mais uma
vez, mas são molengas demais.
Depois me viro na poltrona e olho muito séria para Sage.
— Então, sabe Gloria? Ela é uma Empática. Ninguém me disse, e
quando fui trabalhar parece que ela viu quem realmente sou, agora que
estou Vinculada a Gryphon e meu poder aumentou um pouquinho. Acho
melhor te avisar que sua melhor amiga é maligna. Palavras dela, pelo visto,
sou feita de maldade. Mas os Draven não são, então, pelos menos, uma
notícia boa. A gente devia espalhar isso pelo campus: eles têm o selo de
aprovação de Gloria, então parem com essa baboseira de monstros. Mas é,
talvez você devesse reavaliar nossa amizade.
Sage pisca e depois se vira para North.
— E o que vocês, Vínculos, vão fazer a respeito? Espero que ela
esteja morta. Espero que vocês tenham matado essa vaca preconceituosa,
porque Oli é má, também sou. Porra, acabei de queimar um prédio de
milhões de dólares. Com certeza estou em níveis demoníacos de maldade.
Dou uma risada de deboche, mas North está olhando fixo para mim,
com olhos escuros demais dentro do carro para eu decifrar o que ele está
pensando. Que merda.
— Estava faltando alguns detalhes mais minuciosos no relato de
Gryphon, mas vou cuidar disso. Ela não está morta, mas está prestes a
descobrir que as coisas vão ficar bem mais difíceis para ela por aqui.
Sage não parece satisfeita, mas quando ele recebe nossas bebidas e a
entrega um copo extragrande, ela murmura um “obrigada” e se acalma um
pouco.
É só quando ele me entrega a maior bebida de menininha do mundo
que ela cai na gargalhada da minha cara, dobrando-se no meio e não para
até estar com os olhos cheios de lágrimas.
O resto do trajeto de volta para a mansão é silencioso, com todos
nós engolindo a cafeína como se nossas vidas dependessem disso, e quando
North entra na garagem, estou pronta para me deitar e morrer por algumas
horas.
Sage leva um instante para se recompor, olha bem nos olhos de
North pelo retrovisor e diz:
— Obrigada por me buscar, pelo café e por... resolver tudo. Te devo
uma.
Só por cima do meu cadáver.
Vou responder, mas North me interrompe antes que eu possa dizer
qualquer coisa:
— Não deve nada. Eu que devia a você por ter cuidado de Oleander
quando nós não cuidamos. Gryphon, Nox e eu passaremos uma semana
fora. Quando voltarmos, vamos analisar bem o seu Vínculo. Por baixo dos
panos. Sério, nem vocês, nem Felix devem contar o que aconteceu para
ninguém até podermos lidar com isso.
Sage concorda com a cabeça e depois nós o acompanhamos para
dentro da casa, prontas para enfrentar o caos que espera por nós lá dentro.
27

Uma das empregadas nos encontra na porta e me entrega uma legging, com
os olhos no chão como se olhar para minhas pernas fosse um castigo pior
do que a morte. Fico ofendida por uma fração de segundo, mas só até olhar
no rosto de North.
Ele a está encarando como se ela estivesse me ameaçando.
Lembro-me de que o tio dele foi assassinado na cama por um de
seus funcionários e uma mensagem foi deixada com seu sangue e, certo,
sim, consigo entender o motivo de ele ser um pouquinho exagerado aqui.
Também me sinto mal pela pobrezinha, ela parece tentar com todas
as forças não ter um infarto neste exato momento.
— Obrigada! Eu tenho mesmo que aprender a levar uma extra
comigo quando vou passar a noite fora com North. Ele foi tão bruto com a
última calça, não se engane com a elegância daqueles ternos dele — digo
com um sorrisinho, e Sage cobre a boca com a mão em uma tentativa
desesperada de impedir a risada que quer sair ao ver o olhar fulminante que
North direciona a mim.
— Eu não estava preparado para como seria ter amizade com você.
Não tenho certeza se a quero.
Sorrio para ele, essa merda é tipo combustível para o fogo da minha
insolência.
— Mentiroso, você ama. Se não amasse já teria me deixado
“acorrentada no porão” à essa altura. E, bem, se ela tiver sido plantada aqui
pela Resistência, eles vão receber umas informações ótimas sobre o quanto
estamos “próximos” e “unidos”.
Ele faz uma careta ao ser lembrado de como me ameaçava e eu me
divirto pra caramba com isso, finalmente, um ponto para mim. Vou usar
este homem de pano de chão quando terminar de me provar a ele e ao resto
dos meus Vínculos.
Eu acho... acho que talvez queira ficar com todos eles, e essa é coisa
mais apavorante que já admiti a mim mesma em muito tempo.
Ter esperança de descobrir um jeito de ter todos eles sem que meu
dom detone como a porcaria de uma bomba e destrua tudo e todos no meu
caminho parece um pouquinho demais, mesmo assim... estou mesmo
pensando a respeito.
Porra, não consigo pensar em mais nada agora.
Não sei nem se é possível, mas, droga, preciso tentar.
Assim que visto a legging, North nos conduz pela mansão em uma
direção que nunca segui antes. Acho que vamos chegar ao seu escritório, ou
a uma sala de reuniões, algo muito formal e respeitoso para o relatório que
ele vai nos passar e aos outros antes de partir em sua missão, e fico chocada
quando, em vez disso, chegamos a um enorme cinema.
Tem tipo uma porcaria de cinema completo nessa casa.
As luzes ainda estão acesas e não está passando nada na tela de
projeção imensa que reveste uma parede inteira, mas todos os meus outros
Vínculos, Sawyer e Felix estão sentados por aqui, com graus variados de
preocupação nos rostos. É meio bonitinho imaginar todos eles sentados
nessa sala esperando por nós e, quando entramos, todas os rostos disparam
em nossa direção.
No segundo em que Sage põe os olhos em Felix, que parece exausto
até os ossos, ela se debulha em lágrimas e se joga nele.
De imediato, sinto-me melhor a respeito de todas as reações caóticas
que tive a, bom, tudo relacionado aos meus Vínculos nos últimos meses. É
bom ver que os hormônios doidos e que chorar por causa de absolutamente
nada era, na verdade, era culpa do meu vínculo e não porque eu estava
ficando louca. Droga, estou feliz de estar normal de novo... ou quase.
Sawyer dá uma olhada nela e depois vira para encarar North:
— Que porra você andou dizendo pra ela estar chorando? Estou
pouco me fodendo para as suas criaturas de pesadelo, vou matar você.
Entro na frente de North e miro meu próprio olhar gélido em
Sawyer:
— Ele se levantou no meio da noite pra ser o motorista de resgate
dela, não a delatou e ainda comprou café pra ela no caminho de volta. Então
fica de boa aí, Benson, antes que eu decida arrancar um pedaço de você, e
nenhum filhotinho precioso será necessário.
As sobrancelhas de Gabe sobem até o couro cabeludo dele e o
espectro de um sorriso aparece em seu rosto antes que ele o esconda, vindo
até mim e jogando um braço sobre meus ombros para encarar Sawyer
comigo. North bufa para nós dois, parecendo bem ofendido por estar sendo
protegido desse jeito, mas o ignoramos.
Sawyer olha de um para o outro e, em seguida, joga as mãos para o
alto.
— Bom, então alguém me conta que porra está acontecendo aqui!
Felix me disse que houve uma emergência e agora Sage está chorando. Eu
tô ficando de saco cheio pra caralho de ver as pessoas a fazendo chorar.
Jesus.
Como eu conto alguma coisa a ele sem dizer demais e na presença
de tanta gente cheia de opiniões?
Gryphon inclina a cabeça na minha direção, então suas palavras
penetram na minha: não conte nada a ele, Vinculada. Espere até voltarmos
e nós vamos resolver isso juntos.
O quê? É para eu ficar parada aqui nesse silêncio constrangedor?
Isso me parece tortura, e quando Sawyer dá meia-volta para olhar feio para
Sage, não consigo me controlar.
Gryphon deveria saber que não tem como me impedir de me jogar
na frente de Sage quando ela é ameaçada.
Minha intenção é falar em um tom tranquilizador, mas acho que
fracasso por completo.
— Houve um pequeno incidente. Sage me ligou porque sabia eu ia
salvá-la sem encher o saco dela como você faria, e North foi comigo para
usar seu nome pra abafar as coisas.
North bufa de escárnio quando uso a palavra “incidente” de novo,
mas não interrompe, e Sawyer não me repreende.
Por sorte, Gryphon vem ao resgate:
— Temos duas horas até sairmos. Podemos fazer um balanço
decente disso quando voltarmos.
North confere o relógio e suspira, passando perto de mim e
permitindo que sua mão raspe na minha. É um gesto tão pequeno, apenas
um roçar muito leve de nossas peles, mas sinto que é uma promessa.
Uma promessa feita um ao outro e que se tornaria real se eu
conseguir encontrar qualquer coisa que prove que ele estava errado sobre
mim.
Gryphon bate com o ombro no de Nox ao seguirem North para fora
do cômodo, murmurando baixinho um com o outro, e tento não olhar com
nostalgia para eles. Ainda mais pela perda do meu Vinculado, mas também
pela óbvia proximidade entre eles e pela facilidade com que Nox interage
com Gryphon.
Nunca terei isso.
Do outro lado da sala, Atlas enfim olha para mim, e sinto que não
estou prestes a ter um colapso porque ele me olha com a mesma expressão
receptiva de sempre.
Sorrio e ele se aproxima, segura minha mão e murmura:
— Venha dormir entre Ardern e eu enquanto os outros se preparam
para partir. Você precisa descansar um pouco antes de termos que enfrentar
o mundo real de novo.
Faço que sim e me inclino para grudar o rosto no peito dele,
respirando com facilidade pela primeira vez em dias.
Sawyer grunhe infeliz e se espreguiça em uma das poltronas, de
olho em Felix, que se ajeita na poltrona ao lado segurando Sage com
firmeza em seu peito.
Sei que ele já está juntando as peças.
Não vamos conseguir esconder isso de todos os nossos amigos.
Atlas me leva até os assentos de paletes no fundo, que ficam em
cima de uma plataforma com uma vista perfeita da tela, onde Gabe já está
me esperando com cobertores. Abaixo-me para dar um beijo nele, um
selinho nos lábios, e ele tem o cuidado de me cobrir bem e me aconchegar
em seu peito. Atlas se deita atrás de mim, joga um dos cobertores sobre si
também e depois puxa meus quadris para esfregar minha bunda nele de um
jeito muito sugestivo.
Suspiro contente de estar esmagada entre os dois e meus olhos se
fecham.
Sou acordada pela mão de Gryphon fazendo carinho na minha
bochecha e com seu rosto perto do meu enquanto fala baixinho:
— Acorde e me dê um beijo de despedida, minha Vinculada.
Estou grogue e desorientada, como se meu cérebro estivesse
boiando dentro do meu crânio, balançando um pouquinho demais lá dentro,
e quando me obrigo a sentar, Atlas grunhe insatisfeito.
Gryphon olha feio para ele, agachado perto de mim, mas quando
seus olhos voltam a olhar nos meus, ele está todo calmo de novo.
— Falei com a minha irmã. Ela está procurando uma ajudante no
café e disse que vai fazer um teste com você lá. Esqueça Gloria. Temos um
plano para aquela vaca velha, não precisa mais ficar chateada com isso.
Concordo e me inclino para beijá-lo, movendo minha língua contra
a dele em uma demonstração muito pública de afeto, mas meu vínculo
exige isso. Ele também não parece se importar, ergue a mão para segurar
meu pescoço de lado e aperta só um pouquinho.
“Vinculado possessivo” está se tornando meu tipo preferido
rapidinho.
Sinto-me um pouco tonta quando ele se afasta e agarro sua camisa
com a mão como se fosse minha salvação. Ele observa meus olhos
entorpecidos com um ar muito convencido, um que estou começando a me
acostumar a ver nele.
Desvio os olhos, porque o calor vindo dos seus é demais para eu
conseguir lidar neste momento, e encontro North e Nox esperando na porta,
vestidos e prontos para partir. Nenhum dos dois percebe que estou olhando,
graças à conversa baixa, mas intensa, que estão tendo, pela qual fico grata,
já que estou de queixo caído.
Bendito seja.
Gryphon já me fez uma lavagem cerebral de achar o uniforme tático
sexy, mas ver os garotos Draven vestidos nos trajes de proteção é algo
muito diferente.
Caralho.
Homens.
Porque não tem nada de “garoto” em nenhum dos dois. Se North
fica sexy de terno, com um colete à prova de balas e pescoceira ele é
irresistível pra caralho. Meu Deus, essas luvas meio que combinam com a
personalidade dele.
Isso foi pervertido demais?
Provável que sim.
Eu, sem sombra de dúvidas, estou objetificando ambos na minha
cabeça neste momento, e se Gryphon conseguir ler isso na minha mente,
nunca vai me deixar esquecer.
Se você se comportar bem, não conto a eles, suas palavras surgem
na minha cabeça quando ele me beija uma última vez antes de se levantar.
Então, observo meus Vínculos se afastarem e rezo para que todos
eles voltem para mim, por mais delicado que nosso relacionamento possa
ser agora.

Atlas é atencioso até demais na manhã seguinte.


Estou espremida entre ele e Gabe na sala de jantar, com Sage, Felix
e Sawyer do outro lado da mesa à nossa frente, enquanto conversamos por
cima da comida extravagante que o chef preparou para nosso café da manhã
tardio.
Levo um tempão para decidir o que quero comer, e quando
resmungo baixinho sobre meus Vínculos não estarem aqui, Gabe dá risada
do meu mau humor.
Ele diz bem devagar:
— Quer dizer que está com saudade de North te servindo? Não
acredito que você não percebeu o que ele estava fazendo quando usava
esses truques das antigas pra você gostar dele.
Olho feio para ele e Atlas chega mais perto de mim, e sua mão
quente dá uma apertadinha no meu joelho, em uma pequena demonstração
de apoio e carinho que apazigua meu vínculo. Ele não se irrita com a
provocação de Gabe e isso me tranquiliza ainda mais.
Estamos descobrindo como viver juntos, como um Vínculo
completo. Só preciso resolver umas merdas antes.
Espera aí.
— Que porra quer dizer com “truques das antigas”? Por que não
disse nada sobre isso antes?
Gabe só ri mais ainda de mim e balança a cabeça como se eu fosse
burra, coisa de que não gosto. Atlas murmura:
— Você pode até odiar, mas seu vínculo? Só o que ele vê é que seu
Vínculo está cuidando das suas necessidades. Eu teria te avisado, mas achei
que você soubesse. É um sinal de respeito... foi um dos motivos pelos quais
parei de brigar tanto com os outros.
Nossa.
Que cuzão do caramba.
O fato de que ele encontra maneiras sorrateiras e manipuladoras de
mostrar respeito ao meu vínculo sem mostrar para mim? Quero dar um
cutucão no meu vínculo e mandar ele parar de ser tão bobo, mas meu
vínculo também é quem faz meus melhores julgamentos. Foi ele que me
tirou de cada situação de merda na qual já me meti, então uma parte de mim
fica encantada ao saber que North tem feito isso.
Droga.
Malditos Vínculos sorrateiros e manipuladores.
Volto à minha comida e a mesa cai em silêncio. Sage come como se
estivesse morrendo de inanição, enfiando níveis assustadores de proteína e
carboidratos na boca.
Atear fogo em prédios gasta uma grande quantidade de energia.
Gabe e Atlas têm dificuldades de não me tocar enquanto estão
comendo, cada um está com uma mão em uma das minhas coxas e seus
corpos se debruçam sobre o meu até eles quase estarem fazendo um
sanduíche de mim. Não sei bem o que causou a mudança, mas estou
curtindo.
Os olhos de Sawyer examinam a cena, disparando de mim e dos
meus Vínculos para onde Sage e Felix estão grudados um no outro, e a
desconfiança deixa seu olhar mais sombrio.
Já aceitei que não vamos conseguir manter a noite passada em
segredo dos nossos amigos. De jeito nenhum Sawyer vai deixar essa
história para lá, e já sei que Atlas vai me atazanar em busca de respostas
assim que ficarmos sozinhos.
Só não sei como contar sem puxar o tapete de Sage ou fofocar sobre
seus assuntos pessoais, coisa que eu nunca faria.
Como sempre, Sawyer força a barra, esperando até seu prato estar
vazio para reclamar:
— Vocês vão me contar que porra aconteceu ontem à noite, ou vou
ter que levar Sage pra casa e analisar tudo e todos que conseguir até ela
ceder e me contar? Porque nós todos sabemos que ela vai contar, em algum
momento.
Felix vira o rosto e olha de um jeito para Atlas que me lembra de
que ele, na verdade, também é um jogador de futebol americano que gosta
de jogar as pessoas no chão. Ele é forte como o restante deles, um pouco
menor que Gabe, mas é mais largo que Sawyer, mas seu dom de curandeiro
sempre me fez achar que ele estava... acima desse negócio de resolver as
coisas na porrada.
É óbvio que eu estava errada sobre isso.
Sage nota que o atrevimento de seu irmão está prestes a fazer Felix
estourar, então conta tudo de uma vez:
— Felix e eu transamos e nos Vinculamos. Ateei fogo na Residência
de Medicina. North está cobrindo por mim porque Oli entrou lá como se
fosse responsabilidade dela e me resgatou. Felix teve que mentir e esconder
cerca de um milhão de coisas por mim para eu poder ter uma crise de
pânico no banheiro sem o bombeiro arrombar a porta. Oli entrou em um
prédio em chamas com dois pesadelos para me acalmar e me tirar de lá. Ela
também me deu a calça dela e saiu de lá praticamente nua da cintura para
baixo, aí discutiu com North sobre o melhor jeito de resolver isso tudo sem
mamãe, papai e o Vínculo parental descobrirem, então, se você por
gentileza puder dar um tempo, seria ótimo pra caralho. Estamos todos sem
dormir e consumidos por ansiedade agora... pelo menos, eu estou.
Gabe e Atlas se transformam em estátua ao meu lado, e presumo
que tenham entendido o que Sage não está dizendo.
O rosto de Sawyer se transforma em um milhão de expressões para
mostrar todas as emoções e pensamentos passando pela sua cabeça neste
momento. Ele finalmente se decide pela sua asneira atrevida de sempre:
— Está querendo dizer que Davenport tinha um pinto tão bom que
você quase matou o dormitório todo dele? Meio que estou com vontade de
dar um tapinha nas costas dele, mas parece... inadequado.
Sage geme com as bochechas corando, e eu reviro meu olhos e
gesticulo como se ele fosse o maior idiota do mundo, já que está se
comportando como se fosse.
— Acho que você não está entendendo, Sawyer. Por que North e
Gryphon nos mandariam fazer silêncio sobre uma perda de controle
normal? Não seja estúpido, não combina com você.
Ele fecha a cara para mim, depois, hesitante, volta a olhar para Sage.
— Um salto de poder só pode acontecer com Vínculos... é
impossível.
Ela fica ainda mais corada e abaixa a cabeça.
— Não entendo como isso pôde acontecer, já que não sou o Vínculo
Central. Mas aconteceu. Não sou burra. Sei que Riley é meu Central, que
ele é meu Vínculo e da Giovanna. Os hemogramas mostraram isso, mas...
não consigo pensar em outra explicação.
Só que enquanto ela fala, eu consigo, pois... o hemograma.
No laboratório.
No qual Giovanna está louca para conseguir um estágio.
Porra, eu sabia que essa vagabunda nojenta era ardilosa! Quando
olho para Sage do outro lado da mesa, consigo ver as peças se juntando na
cabeça dela também. Todas as peças que não são nem de longe suficientes
para montarmos o quebra-cabeça inteiro, mas caralho, é um começo.
Pigarreio.
— O dom da Giovanna é Telecinesia, certo? E se ela estiver
bagunçando seu Vínculo? E se você for a Central e ela estiver fodendo com
Riley para esconder o fato de que ele não é?
Felix xinga baixinho e aperta Sage um pouquinho mais.
— Oli... a mãe de Riley me ligou semana passada. Ela disse que ele
tem tido enxaquecas e sangramentos nasais, estava preocupada que fosse
porque a gente não completou o Vínculo. E se... o uso prolongado de
controle de mentes possa deteriorar a massa encefálica? — Sage desabafa, e
eu respondo com um grunhido.
— Não quero pensar em salvar aquele cuzão — Sawyer retruca.
Felix o corta:
— Mas se ela estiver mexendo na cabeça dele, então ele não é um
cuzão. É uma vítima. Odeio pra caralho dizer isso, mas... Gabe, você se
lembra, me ajuda aqui. Ele era obcecado por Sage, do mesmo jeito que
sempre fui. Ele a protegia e fazia tudo com ela. Todo mundo sabia que eles
acabariam juntos... assim como eu sempre achei que acabaria também. Ele
mudou por completo no segundo em que Giovanna apareceu.
Sage cai em lágrimas.
Felix a traz para seu peito e pressiona o rosto dela em seu pescoço, e
fico com inveja por um segundo, por ela estar toda coberta pelos cheiros do
Vinculado dela enquanto Gryphon está por aí, cuidando dos campos da
Resistência.
Gabe solta um gemido e esfrega o rosto de frustração.
— Porra, e como eles estão nos vigiando tão de perto? Como estão
conseguindo se infiltrar nas nossas famílias e ferrar com nossos Vínculos?
Vamos lutar uma porra de batalha perdida até a gente descobrir isso.
Atlas contrai a mandíbula, então a relaxa enquanto range os dentes e
diz de modo cauteloso:
— Precisamos descobrir até onde isso vai. Giovanna tem uma irmã
no conselho, certo? O que mais não faz sentido? Quem mais é suspeito lá?
O que parece estranho? É por aí que a gente começa.
Passamos um momento em silêncio, então Sawyer acrescenta:
— Está se referindo a algo tipo, o sinal do chip GPS de Oli indo pra
Costa Leste?
Silêncio.
Uma porra de silêncio total por uma fração de segundo antes do
inferno explodir.
Atlas se vira furioso para Gabe:
— De que porra ele tá falando?
Gabe faz uma careta e retruca:
— E até agora não tinha passado pela sua cabeça dizer alguma
coisa? Qual é a porra do seu problema?!
Eu me intrometo antes que continuem gritando com ele do outro
lado da mesa:
— Do que você está falando? Como sabe disso?
Sawyer ergue uma mão e uma fagulha de eletricidade se forma entre
seus dedos.
— Sou Tecnocinético. Quando a gente se conheceu, consegui sentir
o chip na sua espinha dorsal, e pra mim ele pareceu errado. Eu odiava que
Sage estivesse perto de você porque esse tipo de tecnologia não devia estar
dentro de ninguém... então, depois que te conheci melhor, percebi que não
era culpa sua e superei. Achei... achei que todos vocês soubessem.
— Essa informação é vital pra caralho, Benson. Não era muito
difícil mencionar isso para algum de nós! — Atlas rosna e eu me jogo em
sua direção para impedir o banho de sangue que acho que vai acontecer.
Também percebo o quanto Sage está frágil agora, porque nem seu
irmão ser ameaçado de agressão a faz se soltar de Felix, mas seu rosto fica
um pouco mais devastado. Mais um motivo para eu parar de surtar nessa
droga ao pensar no quanto alguém tem me ferrado.
Sawyer joga as mãos para o alto.
— Você estava na Costa Leste, presumi que você estivesse de olho
nela também! Aí eu... esqueci disso. Se tornou só uma aura esquisita em
volta de Oli. Desculpa! Porra, se soubesse, teria dito algo!
Isso é tudo irrelevante.
— Se você é um Tecno, consegue manipular o chip, certo?
Consegue impedir ele de explodir meu cérebro se for removido... certo?
— Explodir seu cérebro?! Do que você tá falando?! — grita Gabe, e
quando olho para ele, vejo que está muito verde.
— Foi o que eles disseram quando o colocaram. Disseram que isso
desencadearia uma pequena explosão, só o suficiente pra me matar, se eu
tentasse tirar.
— Vou vomitar, cacete — diz Gabe, afastando-se da mesa e
pegando o celular, sem dúvida para ligar para o North e queimar a orelha
dele.
Exceto que...
Atlas fala antes de mim:
— Não pode ligar para ele. Você não pode contar isso para ninguém.
Precisamos tirar esse chip sem matar Oli, depois precisamos de uma lista de
todo mundo envolvido em colocar isso nela em primeiro lugar. Precisamos
de um plano para limpar a casa. Existe um motivo para North estar
perdendo a guerra contra a Resistência e é porque o veneno já criou raízes
aqui.
— Vocês têm um kit médico em algum lugar dessa casa, certo?
Vamos tirar agora mesmo — Felix diz, levantando-se e indo até a cozinha
sem hesitação, ao mesmo tempo em que Gabe se levanta de um pulo e vai
procurar o que ele está pedindo.
Fico encarando a direção na qual Felix foi em estado de choque e,
enquanto a porta se fecha, vejo que ele está ensaboando as mãos como se
fosse uma droga de cirurgião prestes a me abrir e dar uma olhadinha lá
dentro e... bom, será que quero mesmo tirar esse chip?
Quero muito, muito mesmo.
Inspiro fundo.
— Que se foda, vamos fazer isso.
28

O que eu não daria para ter Gryphon e sua feitiçaria cerebral manipuladora
de dor aqui enquanto Felix me corta, sem usar nada além de um tiquinho de
uma pomada anestesiante inútil em minha pele.
A ironia é que ele sente a pontada de dor pelo nosso Vínculo, e de
imediato me inunda com seu próprio vínculo para entender que droga está
acontecendo. Preciso fazer um trabalho extra para conseguir acobertar, e
uso coisas que são bem verdadeiras.
Estou bem! Não se apavore, sou desastrada demais às vezes.
Ele responde logo em seguida: o que está acontecendo? Estamos há
poucas horas de distância, posso pedir para Kieran me levar de volta.
Tento não vomitar com o intenso olhar de concentração no rosto de
Sawyer, enquanto seus olhos brilham brancos, destinando todo seu foco em
impedir o chip assassino de, sabe como é, me assassinar.
Engulo em seco e me esforço para manter minha resposta firme e
confiante.
Não precisa. Felix vai me remendar, então não preciso de mais
ninguém fazendo um estardalhaço por aqui. Esqueça de mim, se concentre
no seu trabalho.
Seu vínculo continua comigo, e a dor diminui mais a cada segundo,
mesmo com as pinças procurando dentro de minha carne. Quando, por fim,
o chip é retirado do meu pescoço, Felix remove uma de suas luvas e
pressiona a palma da mão na lateral do meu pescoço até que a ferida esteja
curada.
Todos no cômodo suspiram.
Chega de se machucar, senão volto aí e alguém vai se ver comigo,
Vinculada. Só fique estudando dentro da mansão até ir se encontrar com
Kyrie. Ela vai te esperar em algum momento antes do almoço. Prometa que
vai voltar direto para casa depois.
Preciso ser muito cuidadosa com a minha resposta para ele não
perceber que algo está acontecendo aqui, essa habilidade dele de saber
quando estou mentindo é de lascar.
Prometo que só vou sair daqui com meus Vínculos e com os
seguranças da sua Equipe Tática.
O vínculo dele me deixa, deslizando aos poucos como uma carícia, e
eu inspiro fundo. Mentir para ele, mesmo que seja por omissão desse jeito,
faz eu me sentir a pior droga de Vinculada que já existiu, mas tenho certeza
de que se tivéssemos contado, ele voltaria para cá em um instante.
Vamos fazer tudo que pudermos para nos livrarmos da Resistência.
Quando Felix enfim se afasta de mim, tirando a outra luva e
reunindo os suprimentos que usou, viro o rosto e vejo Sawyer segurando a
pinça com o chip GPS em uma das mãos, estreitando seus olhos brancos
brilhantes para ele.
— Consegue dizer algo sobre ele? Como seu dom funciona? Me
conte alguma coisa, Benson — digo, e ele encolhe os ombros.
— Ainda está transmitindo. Não dá para dizer se esteve fazendo
alguma coisa além de mostrar sua localização, mas vou correr lá em casa e
pegar meu notebook para localizar o sinal. Quando soubermos para onde
está indo... vemos o que fazer.
Concordo e olho o relógio, notando que ainda está cedo o bastante
para tomar um banho e ficar um pouco decente antes de conhecer a irmã do
meu Vinculado.
A ideia está fazendo meu estômago revirar.
Gabe ainda está quieto demais, um pouco abalado, graças à
descoberta do chip mortífero, mas entrelaço nossos dedos enquanto
caminhamos para meu quarto. Atlas atende uma ligação de sua mãe e
concorda em nos encontrar lá em cima, então dá um beijo no meu rosto e
anda a passos largos à nossa frente, em direção ao seu próprio quarto.
Gabe espera até estarmos sozinhos no elevador para falar:
— Me sinto um merda completo. Não é à toa que você odiava a
gente. Não acredito que colocaram isso em você.
Finjo indiferença, então me apoio em seu corpo robusto, deixando
meu rosto se enterrar no peito dele enquanto inspiro seu cheiro.
— Sendo sincera? Achei que fosse coisa de North. Nem achei que o
resto de vocês estivesse envolvido. O cara que fez isso ficava só falando
que North era maravilhoso e que a situação tinha sido muito constrangedora
pra ele. Foi ele que... ele me disse para apenas deitar e me submeter. Ele era
muito a favor do Vínculo forçado.
Uma veia salta na mandíbula dele, e quando olho em seu rosto, ele
balança a cabeça.
— Estou me esforçando muito para não perder a porra do controle
nesse elevador minúsculo, mas está difícil. North vai... droga, North vai
estraçalhar o conselho por causa disso. Descobrir que a maior parte da sua
raiva e receio da gente foi por causa de uma merda que Noakes fez? Porra,
North vai botar os pesadelos dele para jantarem aquele merdinha nojento.
Estou desesperada para acreditar nisso, mas...
— North uma vez me disse que ia me acorrentar pela garganta no
porão se eu tentasse fugir, então, por mais que eu queira acreditar em você,
ainda tenho algumas reservas quanto a isso.
Gabe xinga baixinho quando as portas do elevador se abrem,
esfregando o rosto com uma das mãos como se tivesse esperanças de fazer
essa conversa desaparecer se aplicasse força suficiente.
Entendo.
— Não merecemos você. Nenhum de nós merece. A gente tá
fodendo com esse Vínculo todo e você merece coisa muito melhor, porra —
murmura, e eu engulo o caroço na minha garganta.
— Não pense assim, Gabe. Você não sabe de todas as coisas
terríveis que fiz.

*
Não importa que eu esteja vestida à perfeição e que Sage tenha feito
meu cabelo e maquiagem antes de sairmos, minha mão treme quando
seguro a maçaneta da porta do Hellcat para sair e encontrar a irmã de
Gryphon para ela me dar um emprego.
E se ela me odiar?
Encontre com ela logo, ela não morde.
Suspiro de deboche e cruzo os braços, fazendo beicinho como uma
criança.
Bem, se ela não é tão assustadora assim, então por que não a
conheci ainda? Ela deve me odiar! Droga, não vou fazer isso. Vou deixar
você me sustentar.
O poder dele é inacreditável, porque ele me envia uma risada em um
tom perfeito, cujo som deixa minha pele toda arrepiada.
Nós dois sabemos que não vai. Tenho certeza de que você tem um
registro mental de tudo que deve a North até agora. Se não quer um
emprego, ligo para Kyrie e cancelo. Pode conhecê-la quando eu voltar
para casa, ela tem perguntado sobre você. Eu só não queria que você a
conhecesse antes de eu ter certeza sobre nós.
A insinuação de que agora ele está certo a meu respeito me faz
engolir em seco, de que há algo a mais além do nosso Vínculo que o fez
pensar que sou digna de conhecer sua irmã.
Certo. Mas se ela me odiar, nunca vou te perdoar por me fazer vir
sozinha.
— Para de flertar com ele e vamos logo comprar um café decente —
Gabe resmunga, ainda tenso por conta da nossa conversa de hoje. Entendo.
Não vou reclamar de seu temperamento, porque é claro que ele está assim
em minha defesa.
Mas Atlas olha feio para ele, nada feliz com o tom que ele está
usando comigo, e coloco a mão no pulso dele para acalmá-lo. Os ânimos
estão exaltados e precisamos mais que nunca uns dos outros.
Quando todos saímos juntos do carro, Atlas confere os bolsos para
se certificar de que o chip ainda está lá, guardado em uma embalagem
especial feita por Sawyer para ninguém perceber que o tiramos. Eu me
ofereci para carregá-lo, já que não estamos indo a nenhum lugar que eu já
não tenha ido antes, mas Atlas e Gabe refutaram essa ideia bem depressa.
Nenhum deles quer que eu toque nessa coisa.
Gabe dá mais uma olhada na minha roupa, uma calça jeans preta e a
jaqueta de couro que Gryphon me deu por cima de uma camiseta preta justa
e minhas um-dia-perdidas-porém-amadas botas, depois joga o braço por
cima dos meus ombros e murmura no meu cabelo:
— Kyrie é massa, para de surtar. Ela só vai reclamar de você não ter
vindo trabalhar com ela antes.
Dou uma bufada e arrasto meus pés um pouquinho.
— Eu tentei! A moça pra quem tentei entregar meu currículo disse
que eu não tinha permissão de trabalhar aqui.
A gargalhada retumbante de Gabe faz Atlas balançar a cabeça e me
roubar dele, depois me arrastar pela soleira do café.
Já estou achando esse lugar um bilhão de vezes melhor do que o de
Gloria.
Certo, já estive aqui antes e minha opinião é bem suspeita, já que ela
me demitiu, mas toda a atmosfera desse lugar é imaculada, aconchegante e
convidativa.
Também está muito movimentado com a correria do horário de
almoço, cheio de gente comprando sanduíches e cafés, todas as mesas estão
ocupadas e a fila de retirada está imensa. Quase me sinto mal de atrapalhar
vindo aqui em um horário agitado.
— E aí, Vicki! Val está aqui? Gryph nos mandou — Gabe diz, com
um sorriso amigável no rosto ao se aproximar da mulher mais velha que me
dispensou da última vez.
Tento não guardar ressentimento, sei que foram ordens de North,
mas meu vínculo ainda está chateado com aquilo.
Vicki faz que sim com a cabeça e aponta para os fundos, abrindo
uma parte do balcão para passarmos por ele.
— Quem é Val? — murmuro e Gabe me dá um sorrisinho.
— Valkyrie. Gryphon diz que os pais deles foram sádicos ao nomear
os dois, mas Kyrie não liga muito. O público em geral a conhece como Val,
mas é Kyrie para a família.
Minha nossa.
Certo, esses nomes são legais pra caralho. Pelo menos eles não
foram nomeados em homenagem a flores venenosas, um presságio do que
estava por vir. Minha mãe me contou uma vez que sonhou comigo por anos
antes de eu nascer e que meu berço estava sempre decorado com oleandros.
Sempre me questionei se ela era um pouquinho vidente.
Gabe nos guia e caminha até o cômodo dos fundos, onde
encontramos Kyrie carregando sacas gigantescas de café para moer. Atlas
vai de imediato até ela, pega as sacas e leva para onde ela direciona.
Ela o observa enquanto recupera o fôlego, uma caderneta de pedidos
está quase caindo do bolso do avental ao redor de sua cintura, e ela está
quase igual a como era na foto do quarto de Gryphon, só um pouco mais
velha.
Ela seca a testa com a mão.
— Chegou na hora certa, estou prestes ficar atolada em pedidos.
Odeio pra caralho aquela megera velha da Gloria, mas, pelo menos, com
outra opção por perto eu não precisava lidar com o lixo que aqueles
moleques de fraternidade são. Agora estou enterrada até o pescoço no fedor
da misoginia.
Ela me dá uma olhada, passando rápido os olhos pelo meu corpo
todo como se estivesse me avaliando, depois se abaixa e pega um avental.
— Pode começar agora, né? Gryph jurou que você era boa com
aquela vaca, então sei que vai se dar bem aqui também. Falei para ele que
tinha que ter te mandado aqui antes, mas ele é um merdinha misterioso.
Chego a roncar pelo nariz rindo e cubro a boca com a mão,
enquanto estendendo a outra para pegar o avental.
— Isso resume bem a situação toda. Sou Oli, aliás. Que bom
finalmente te conhecer.
Ela me olha de modo avaliativo, então seus olhos ficam só um
pouquinho mais gentis.
— Kyrie, não me pergunte de onde meus pais tiraram esse nome
porque tem um monte de trauma aí que não quero analisar. Gabe, será que
você e o sr. Fortão aqui podem descarregar as caixas para mim, por favor,
nos lugares de sempre. Oli, se puder me acompanhar e começar a atender os
pedidos, seria ótimo.
Atlas ergue as sobrancelhas com todas as ordens diretas que ela dá,
mas isso não me surpreende nem um pouco. Acho que ela parece muito
com Gryphon e preciso muito desse trabalho, então, euzinha que não vou
reclamar mesmo.
O café funciona como um relógio.
Kyrie tem outros cinco funcionários, todos me acolhem sem
problemas e me ajudam sempre que tenho dúvidas, ainda me elogiam,
dizendo que estou pegando o ritmo das coisas com facilidade. Há
plaquinhas por toda a cozinha para mostrar o lugar e o jeito certo de fazer
cada coisa, e me sinto muito grata por elas.
Depois de descarregar as caixas, Kyrie coloca Gabe e Atlas para
montar móveis no escritório dela e depois para ajudar a reabastecer as
geladeiras da cozinha a partir do freezer nos fundos, e os dois fazem tudo
sem reclamar.
Esqueço-me de todos os problemas que encontramos no café da
manhã e apenas fico feliz em poder trabalhar duro em um lugar onde meus
esforços não são apenas notados, mas valorizados. Não tem nenhuma Kitty
tentando se meter com os meus Vínculos, nenhum cara de fraternidade
falando besteira e, em vez dos meus Vínculos me vigiarem de uma mesa,
temos seguranças da Equipe Tática esperando à paisana do lado de fora,
conferindo as pessoas que entram.
Eu me divirto.
Mas eu já deveria ser mais esperta a esta altura.
Estou até os cotovelos na lava-louças quando acaba a energia, e não
me preocupo. A cozinheira, Marigold, também não parece perturbada ao
desligar todas as bocas do fogão por segurança e colocar as comidas que
estavam cozinhando de lado até a energia voltar.
Gabe entra na cozinha, suado de todo o trabalho manual, e Atlas
aparece atrás dele tão arrumado e limpo quanto estava quando saímos da
mansão hoje cedo. Suponho que a superforça tenha suas vantagens.
— Sabem o que está acontecendo? — pergunto, e Gabe nega com a
cabeça.
— Vamos procurar Kyrie, ver se ela precisa de ajuda para acalmar
os fregueses e evitar que vão embora bravos.
Concordo e seco as mãos, indo atrás deles no exato momento em
que as vitrines da loja explodem e gritos e balas passam voando por todos
os lados perto de nós.
Minhas costas colidem com o chão quando Atlas me cobre, seu
braço atenua um pouco o impacto, e Gabe se deita de bruços ao nosso lado.
Olho nos olhos de Atlas, perplexa com o que quer que esteja acontecendo,
então os gritos ficam mais altos ao nosso redor.
A Resistência está aqui.
Há um som de estalo e Kieran aparece agachado perto de nós,
estendendo o braço para segurarmos, e, quando tento me afastar, ele agarra
meu pulso para me arrastar junto.
Deixamos Kyrie para trás.
Assim que reaparecemos no beco dos fundos, estou pronta para
acabar com a raça dele, mas ele ergue as mãos para mim:
— Vou atrás dela agora, Fallows, calma...
— Tarde demais — Atlas diz, e viro a cabeça para ver Kyrie lutando
com dois soldados da Resistência.
Meu poder explode para fora de mim e os dois caem mortos no chão
em um instante, um deles derrubando Kyrie. Solto o ar pela boca e começo
a correr em direção a ela quando ocorrem outros dois estalos, tão próximos
um do outro que não tenho nem chance de ver.
Um Transportador a levou.
Ela sumiu.
Kieran xinga e começa a falar no rádio, ladrando ordens e
orientações mas foda-se essa merda, vou atrás dela.
Os braços de Atlas me envolvem como barras de ferro, impossíveis
de mover, e ele estoura:
— Nem pense nisso, Oli. Não vou aguentar aquele seu complexo de
heroína mais uma vez. Deixa isso para os profissionais capacitados.
Permito que minha fúria saia, só o suficiente para aliviar um pouco
meu vínculo sem que ele se junte a esta festinha.
— Eles não podem me matar! Você sabe disso, eu sei disso. Porra,
se eles já tiverem me visto direito, metade da droga da Resistência já sabe
disso também! Mas eles estão levando gente de novo, não posso ficar
sentada aqui e deixar isso acontecer.
Seus braços não abrandam nem um pouco.
— Tem Equipe Tática suficiente aqui para cuidar disso, não vou
deixar você ir.
Quero matá-lo e preciso me forçar a obrigar meu vínculo a não
reagir contra ele enquanto rosno:
— Não tem Equipe Tática suficiente e nós dois sabemos disso!
Porra, me solta agora mesmo, Vínculo! Eu queria ser o Vínculo que permite
que vocês me protejam, mas não sou assim. Vou continuar me comunicando
com Gryphon, mas estamos perdendo essa guerra porque não estamos
usando a melhor arma que temos. Que se dane, vou ser a droga da arma!
Gabe olha de um para o outro, depois para os homens vindo pela rua
em nossa direção, com as armas apontadas e rostos cobertos por máscaras.
Ele relaxa as mãos fechadas em punho, preparando-se para se transformar e
se lançar neles, mas eu não estou para brincadeira.
Já aceitei que não vou mais viver com medo.
Vou enfrentar meu dom e deixar que proteja todos nós, posso
encarar as consequências e minha moralidade mais tarde, porque já
sabemos que estamos lutando uma guerra perdida agora e não permitirei
que isso aconteça. Nem com meus Vínculos, nem com nossos amigos ou
família, se eu puder evitar.
Meus olhos se transformam em vácuos, tudo fica mais nítido, e mato
todos eles. Chega de incapacitar, chega dos horrores de derreter cérebros,
mato todos de uma vez. Deixo meu dom tocar todas as suas almas,
agarrando-as com força e sentindo a agonia que todos eles experimentam
quando as arranco.
Kieran não reage, aquela única palavra de aviso de Carlin foi o
suficiente para ele continuar firme no lugar sem fazer nada além de engolir
em seco com força.
Gabe? Nem tanto.
— Que porra é essa?! Oli, que porra...
Atlas explode com ele:
— Ela é uma Alienadora de Almas, idiota. O derretimento de
cérebro? É um truquezinho barato para ela, o menor de seus poderes. É o
jeito dela de deixar as pessoas chafurdando nas piores partes de suas almas.
O lance verdadeiro dela? Arrancar a porra da alma. Morte instantânea, um
bilhão de vezes mais poderosa do que North Draven, porque ele é limitado
ao toque. Oli não tem limite. Nenhum. A arma infinita.
Essas três palavras me dão agonia, mas Kieran pragueja antes que
minha mente consiga processar de verdade o que está sendo dito.
— Cegos. Nós somos todos cegos, porra, é claro que você estava
nos documentos. Codinome: AI. Não se esgote, vamos guardar esse dom
para os poderosos por enquanto, nenhum dom é infinito de verdade.
Os poderosos que se fodam.
Disparo meu dom até eu conseguir sentir cada pessoa que está no
quarteirão. Todos seus pensamentos e emoções são complexos demais para
eu decifrar, mas sei dizer se deveriam estar aqui. Sei se estão aqui para
matar e pilhar.
E mato todos eles.
Os olhos de Gabe disparam para mim depois de encarar todos os
corpos desabando no chão, com seus olhos vidrados, caídos no lugar em
que arranquei suas almas.
Se quisesse, eu poderia dizer o número exato de vidas que acabei de
tirar, mas embora meu dom esteja vibrando de alegria dentro do meu peito,
não quero pensar nisso.
Ou no pequeno detalhe de que nem dá para notar que usei meu dom.
Nenhuma exaustão, nenhum tremor nas mãos, nenhuma lentidão causada
pela enorme quantidade de poder que alienar almas requer.
Isso não foi nem a pontinha da minha capacidade.
— Vem ficar atrás de mim, Fallows, e para com esses olhos de
vácuo.
Bufo de escárnio e gesticulo com as mãos ao meu redor, para tudo
que acabei de fazer.
— Acho que não preciso ficar atrás de você Kieran. Acho que é
você quem deveria ficar atrás de mim.
Ele abaixa a pescoceira em um movimento brusco e rosna para mim:
— Só por cima da porra do meu cadáver, agora se mexe. Vamos
levar você para a mansão, é mais fácil te defender lá do que ficando em
espaço aberto.
Atlas concorda com a cabeça e diz:
— Transporte todos nós. Ardern, traz essa bunda para cá, vamos sair
logo daqui.
Gabe só dá dois passos antes que as explosões recomecem e Atlas se
joga em mim, esmagando-me sob seu enorme peso ao me pressionar contra
o prédio atrás de nós até eu não conseguir respirar.
Tem mais gente da Resistência aqui, estão chegando em levas em
uma tentativa de tomar o campus. Há gritos por toda parte ao nosso redor e
os sons estão esquisitos nos meus ouvidos, que estão zumbindo graças à
explosão.
— Droga, estão levando mais Favorecidos das ruas. Eles sabiam que
os Draven estavam fora, estamos sendo abatidos de dentro para fora —
Gabe diz. Os olhos dele se transformam em seus olhos de lobo e os de Atlas
ficam brancos e brilhantes ao mesmo tempo.
Estamos prestes a perder o controle. Uma decisão importante
precisa ser tomada aqui e eu já tomei a minha.
Ninguém vai gostar dela.
Preciso controlar depressa meus pensamentos e emoções para que
Gryphon não perceba o que estou planejando, mas meu dom vibrando
dentro de mim me ajuda. Sinto o arrependimento por estar deixando todos
eles mais uma vez, mesmo que por pouco tempo, mas não posso deixar essa
passar.
Não posso ficar sentada aqui sem fazer nada.
Espero até meus Vínculos estarem ocupados procurando mais
ameaças iminentes na rua, então me inclino para perto de Kieran e falo
baixinho:
— Você está mesmo com vontade de contar para Gryphon que
assistiu a irmã dele ser levada sem fazer nada? Porque eu não estou.
Ele xinga baixinho, seus olhos ainda estão observando todos os
cantos que consegue ver de onde estamos escondidos.
— Não, mas eu tirei você de lá. Minhas instruções eram de te
proteger a qualquer custo e fiz meu trabalho.
— Errado. Você sabe o que posso fazer, me leva ao acampamento de
seleção. Nem tente mentir porque já sei que vocês encontraram o novo. É só
me deixar lá que eu a trago de volta — murmuro, e ele me encara como se
eu tivesse sofrido um dano cerebral.
Só que ele também parece aliviado, então já sei que venci.
Ele volta a cobrir a boca com a pescoceira, olha pelo nosso entorno
e murmura:
— Fallows, não tem porra de chance nenhuma de eu te levar a
qualquer lugar e deixar você lá. Mesmo que você não fosse Vinculada de
Shore, jamais faria isso... mas nós vamos buscar Kyrie, e depois vamos
voltar. Você só está vindo junto porque seu dom é útil numa briga, e jurei
que te manteria sempre ao meu alcance o tempo todo do lado de fora da
mansão. Vamos entrar e sair bem rápido e é isso. Mate qualquer pessoa que
chegar a menos de dois metros de nós.
Por mais baixo que ele tenha falado, Atlas consegue escutar e se vira
para me segurar, mas é tarde demais. A mão de Kieran já está segurando
meu pulso e então o mundo inteiro gira quando ele nos transporta. Os gritos
dos meus Vínculos vindo atrás de nós ecoam em meus ouvidos.
Sinto uma dor no peito por um instante, mas a afasto,
arrependimento não vai me servir de nada agora, posso me sentir uma
merda por isso mais tarde, quando Kyrie estiver em segurança.
Kieran é um membro bem treinado da Equipe Tática, um vice-líder,
então ele nos leva até o limite do acampamento sem entregar que estamos
aqui, mas quando espalho meu dom como uma rede para encontrar Kyrie,
percebo que estamos fodidos por um milhão de motivos diferentes. Eu não
estava preparada para as mudanças que, é claro, foram feitas desde a última
vez que fui prisioneira da Resistência.
Olivia está aqui e no mesmo instante soa o alarme.
Isso não é um problema muito grande, eu conseguiria acabar com
essa vagabunda sem esforço, mas ela está acompanhada do Escudo mais
forte que já conheci e não estou muito certa de eu conseguiria matar
Franklin, mesmo com a injeção extra de poder dada por completar o
Vínculo com Gryphon. Eu não estava esperando encontrá-lo em um desses
campos, em geral, ele é importante demais para esse tipo de trabalho, e o
medo comprime meu coração.
Mas, em vez de correr e gritar como se minha vida dependesse
disso, aguardo.
Estou disposta a arriscar ser capturada, torturada e morta para tirar a
irmã do meu Vinculado deste campo. A foto em sua cômoda diz muito
sobre ele e sobre o relacionamento que tem com sua família, porque é o
único item pessoal em seu quarto.
Ele não vai perdê-la.
— Saia daqui. Vá embora agora antes de chegarem aqui. Vai logo,
vou encontrar Kyrie e levá-la para casa em segurança — murmuro, mas
Kieran só nega com a cabeça, empurrando a pescoceira de novo enquanto
pega meu pulso.
Só que ele não consegue nos transportar de volta.
Franklin já nos localizou e está nos impedindo de sair, o veículo de
boas-vindas está vindo até nós. Sinto minhas pernas ficarem pesadas, meu
dom recua com a sensação do dom de outra pessoa tomando o controle do
meu corpo e me encho de pânico ao pensar em quem está chegando.
Respira fundo, Oli. Não permita que Gryphon descubra cedo
demais, senão você perderá todos eles.
Sinto-me mal pra cacete de ter feito isso com Kieran e, sabendo que
essas serão as últimas palavras que direi a ele por um bom tempo, digo:
— Me desculpa. Seja forte. Não conte nada a eles e não se preocupe
comigo. Já sobrevivi a isso antes, vou conseguir de novo. Encontre Kyrie e
dê o fora com ela assim que tiver chance.
Ele só me olha e pisca, mas eles já estão aqui, pisoteando a grama
como se guiados até nós por um farol. Suponho que meu dom seja
exatamente isso, um farol que homens corruptos seguem e tentam possuir.
Achei que ver Silas Davies de novo, o homem responsável por toda
a tortura e humilhação que passei nas mãos da Resistência, seria o maior
soco na cara possível... e é ruim mesmo.
Mas ver o pai de Atlas parado ao lado dele é pior.
SOBRE A AUTORA

J Bree é uma sonhadora, escritora, mãe, agricultora e criadora de gatos.

A ordem das prioridades muda diariamente.

Ela mora em uma pequena fazenda em uma pequena cidade rural na


Austrália, da qual ninguém nunca ouviu falar. Ela passa os dias sonhando
com todos os seus namorados das histórias de livros.

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