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O único ponto positivo dessa situação toda na qual me encontro, é que não
vou enfrentar a fúria de North Draven sozinha.
Todos assistimos o avião tocar a pista de terra, o barulho
ensurdecedor do motor ao entrar em reverso para reduzir a velocidade e, por
fim, parar a menos de cem metros de onde estamos todos reunidos. Assim
que minhas mãos pararam de tremer pelo uso do meu dom, Sage se
aproximou e seguramos Gabe entre nós duas. Ela se moveu devagar no
começo, mas não por algum medo de que a Equipe Tática de Gryphon
estivesse disparando na minha direção. Não, ela estava sendo
compreensiva, sabendo como vínculos podem ser voláteis quando seus
Vínculos são ameaçados.
Ela estava respeitando a insanidade dessa situação toda porque ela é
a melhor droga de amiga que uma garota poderia desejar.
Gabe ainda não parece muito bem, seu rosto está verde e ele está um
pouco bambo, mas com a mesma expressão teimosa de sempre na cara.
Olho para Sage do outro lado dele, e o olhar que ela me devolve é de quem
está rezando para eu sobreviver a sei lá que inferno que vai resultar dessa
trapalhada toda.
Meu dom vibra no meu peito, ansioso para enfim ser apresentado de
modo formal ao restante dos meus Vínculos. Ainda estou sentindo minhas
pernas meio fracas e minha cabeça está latejando. Preciso de uma soneca
para recarregar depois de ter usado meu dom e estou torcendo para o avião
ser tão luxuoso quanto o resto das posses de North.
Há um burburinho atrás de nós e uma discussão entre dois caras da
Equipe Tática, mas minha cabeça está doendo demais para prestar atenção
de verdade no que estão dizendo. Quando o braço de Gabe se aperta sobre
meu ombro e Gryphon dá um passo em minha direção, tenho o palpite de
que minha honra está sendo destruída.
Como se eu desse a mínima.
— Você precisa de uma bosta de equipe nova — Gabe rosna e
Gryphon encolhe os ombros, olhando atento para a porta dos fundos do
avião, que enfim começa a se abrir.
— Estou descobrindo quem é leal e quem não é, ajustes serão feitos.
Meu Jesus, ele tampouco parece estar irritado, e começo a me
perguntar há quanto tempo ele trabalha com esse grupo. Tanto Kieran como
Nox estão parados perto de Gryphon, e quando a palavra monstro penetra
no meu cérebro outra vez, Kieran xinga baixinho de modo enfático, dá
meia-volta e vai separar os dois colegas que estão brigando.
Gryphon me olha de soslaio, como se estivesse esperando eu reagir,
mas eu não poderia me preocupar menos com as opiniões deles.
O que me preocupa mesmo é em qual inferno North vai me meter
por causa disso. Ou a forma como Nox alcançou meu dom com o dele,
como se quisesse saber exatamente do que sou capaz.
Fico preocupada é com Gabe, que ainda está cambaleando no lugar
por causa da droga que deram para ele.
— Já tem uma explicação para nós, Fallows? Algo a dizer sobre ter
mentido durante meses sobre o que pode fazer? — diz, e Gabe se vira para
olhar feio para ele em minha defesa.
O gostosão do tanquinho está mesmo começando a me cativar, que
droga.
Quando Gabe abre a boca, eu o interrompo, de jeito nenhum vou
ficar quieta enquanto ele luta minhas batalhas por mim, porque isso não é
nem um pouco do meu feitio.
— Nem. Não devo bosta nenhuma a vocês só porque são meus
Vínculos. Sinto muito mesmo que você tenha descoberto desse jeito que
está preso a um monstro.
Meu tom está transbordando sarcasmo e estou esperando que ele
reaja, mas não, seus olhos só continuam me encarando com frieza. Pela
minha visão periférica, vejo a careta no rosto de Nox apontada bem na
minha direção, mas ele e o humor de merda dele que se fodam.
Gabe também muda de posição para me encarar, em vez de fitar
Gryphon, e retruca:
— Para de falar essa merda. Você acabou de salvar todo mundo. Um
monstro não faria isso, e todas essas pessoas que estão dizendo essa bosta
são umas cuzonas ingratas e covardes que queimariam seus heróis na
fogueira só porque são mais fortes do que eles. Bando de cuzões covardes e
invejosos.
Eita.
Tem uma fibra aí que eu nem sabia que existia e, quando olho para o
resto dos meus Vínculos por um momento, vejo isso claro em seus rostos
também. Eles também estão irritados por algo que foi dito a meu respeito, e
tenho certeza de que não é por minha causa, já que Nox está com uma
expressão bem sanguinária e ele me odeia com todas as forças.
Gryphon está encarando sua equipe ao nosso redor com olhos
gélidos, examinando o que está acontecendo em nosso entorno. Kieran
ainda está fazendo picadinho dos homens atrás de nós com suas palavras e
alguns outros estão assistindo com repulsa, mas, quando meus olhos
chegam nos outros alunos que estão me encarando horrorizados, meu
sangue gela um pouquinho.
Aí me lembro que eles estão todos aqui agora, respirando e livres de
tortura, graças a mim e, ao invés de me sentir uma merda por causa de
quem sou e do que posso fazer, dou um sorrisinho torto e balanço minhas
sobrancelhas um pouquinho para eles em provocação.
Uma das garotas quase desmaia, juro.
Ela jamais teria sobrevivido à Resistência e aos seus campos.
A traseira do avião enfim termina de se abrir e outro grupo de
membros de Equipe Tática, todos vestidos de preto, desce a rampa correndo
em nossa direção, enquanto ordens são gritadas em códigos que não
significam absolutamente nada para mim. O braço de Gabe me aperta de
novo e ele contrai a mandíbula, olhando para os recém-chegados como se
esperasse outro ataque. Mas eu meio que estou torcendo para isso ter ficado
para trás, tão para trás quando for possível, até ver outras duas pessoas
descendo do avião que me fazem engolir um pouco em seco.
Eu não tenho mesmo mais energia para brigar, e o jeitinho especial
de North de provocar minha raiva já não é muito bom, nem quando estou
com força total. Neste momento, depois de tudo que tive que fazer? Droga,
talvez a gente precise recolher as entranhas dele da lateral do avião se ele
sequer olhar meio esquisito para mim, porque meu vínculo não está mais de
bobeira nessa merda.
Meu dom voltou e está ansioso para brincar.
Fecho os olhos com força por um instante, só para respirar fundo e
clarear minha mente, para encontrar algum tipo de calma ou paz, ou
qualquer coisa que me ajude a aguentar isso sem destruir todos ao meu
redor.
— Porra, parece que ele tá puto. Nós dois estamos ferrados, Vínculo
— Gabe murmura baixinho para mim, e meus olhos abrem de novo e
encontram Sage se encolhendo, morrendo de medo do inferno que está
vindo em nossa direção.
North vem depressa até nós, mas seus passos desaceleram quando
ele percebe os danos espalhados por todo o campo ao nosso redor, todas as
minhas noventa e duas vítimas se contorcendo e tremendo no chão, com
sangue escorrendo de seus olhos e ouvidos conforme os cérebros começam
a falhar dentro dos crânios.
Atlas nem hesita, impulsionando os pés até mim sem dirigir um
único olhar a nenhuma outra direção. Só no último segundo ele parece notar
Gabe e o jeito como estamos abraçados, mas não faz nenhum comentário
enquanto se joga em mim com força o suficiente para arrancar meu fôlego e
me soltar de Gabe, erguendo-me em seus braços e me segurando contra seu
peito.
— Que porra foi essa, Oli? Por que foi sem mim? Eu teria ido
encontrar Sage com você — murmura no meu cabelo, e sinto que meus
braços pesam uma tonelada quando os ergo para devolver o abraço.
Solto um suspiro trêmulo quando me permito relaxar em seus
braços, exausta demais por ter usado meu dom de forma tão grandiosa
depois de anos escondendo-o. Deixo meu rosto se aninhar no pescoço dele e
murmuro de volta:
— Não dava tempo. Eles já estavam com ela e eu não podia deixá-la
ir sem apoio, eu não sou assim, Atlas.
Os braços dele se fecham mais ainda em volta de mim, apertando-
me até eu não conseguir mais respirar, mas tem algo de tão reconfortante
nisso que prefiro morrer aqui a pedir para ele me soltar. Sua mão aninha a
parte de trás da minha cabeça enquanto ele responde em um sussurro:
— Não tive dúvidas disso ou de você nem por um minuto, Doçura.
Foda-se o resto deles, já te disse que somos nós dois contra o mundo.
Aceito que vou morrer aqui envolvida pelo corpo dele e que não vou
me arrepender, nem depois que estiver enterrada, apodrecendo a dois
metros da superfície e queimando no fogo do inferno por todos meus
pecados.
— Bassinger, sai de cima dela, precisamos tirá-la do campo aberto
antes que a briga comece — North repreende, mas o que ele diz não faz
sentido.
Briga?
E por que é que haveria briga e quem exatamente daria início a ela?
Mas Atlas me solta devagar, o que é ótimo, porque minhas pernas param de
funcionar.
Ele me segura e volta a me erguer em seus braços, retrucando para
North:
— Ela precisa de um curandeiro, você lembrou de trazer um?
Ardern que se foda, ele pode esperar. Só por cima do meu cadáver que
qualquer um de vocês vai ser atendido antes do meu Vínculo.
Então ele sai andando, comigo ainda segura de modo firme contra
seu corpo, até alcançar Sage, oferecendo um braço para o caso de ela
precisar de ajuda. Quando ela faz que não com a cabeça, Atlas gesticula
para ela acompanhá-lo de volta ao avião, colocando minha amiga em
segurança sem eu ter precisado dizer nada, porque mesmo me conhecendo
há pouco tempo, já descobriu como alcançar o meu coração de gelo.
Permito que meus olhos se fechem, murmurando um obrigada
baixinho enquanto perco a consciência.
Acordo em uma cama que não reconheço, em um quarto que, sem dúvida,
não fica no avião, sentindo-me, ao mesmo tempo, bem descansada e com o
estômago embrulhado.
É luxuoso demais para ser um dos dormitórios, não há como
confundir a riqueza por trás de cada móvel, até mesmo a maciez dos
travesseiros embaixo da minha cabeça.
Surto no mesmo instante.
— Está segura, Oleander. Atlas e Gabe saíram para tomar banho e
buscar comida. Eu disse a eles que cuidaria de você.
Puta-que-pariu-porra, sei exatamente na mansão de quem estou.
Viro o rosto e encontro North sentado em uma poltrona luxuosa do
outro lado da cama, sem paletó e com alguns botões da camisa abertos
sobre o peito. As mangas estão dobradas para exibir seus antebraços, mas
não posso pensar nisso sem babar um pouquinho.
Seus olhos estão tão intensos como sempre.
Não acredito que ele convenceu Atlas a sair desse quarto e fico um
pouco irritada por ter sido trazida aqui, para começo de conversa. Para que
me dar um quarto se vou ser enfiada em camas aleatórias toda vez que as
coisas derem merda?
North continua me observando, seus olhos ficam mais penetrantes
quanto mais tempo passo em silêncio.
— Precisa de alguma coisa? De água ou usar o banheiro? Está
dormindo há quarenta e oito horas, estávamos começando a nos preocupar.
Sim para as duas coisas, mas acho estranho falar sobre mijar com
este homem. Arg. Sacudo as mãos para fazê-las pararem de tremer antes de
jogar a coberta de lado. Ele observa todos meus movimentos e, quando paro
por um segundo para me recompor e, minha cabeça parar de girar, ele se
levanta para dar a volta na cama e me ajudar.
Não consigo lidar com as mãos dele em mim em momento nenhum,
muito menos quando estou me sentindo tão mal assim, então gesticulo para
ele se afastar.
— Só aponta a direção certa que vou ficar bem.
Ele fecha a cara, franzindo as sobrancelhas com força, então acena
com a mão para a porta mais distante.
— Precisamos conversar depois que sair. Vou pegar água para você.
Engulo um gemido e começo a me mexer. O banheiro é lindíssimo,
todo de mármore e com acabamentos de luxo, e me sinto numa droga de
palácio. Quando vou lavar as mãos depois do xixi mais longo da minha
vida, noto que o sabonete tem um leve perfume e inspiro fundo, fechando
os olhos. Algo se tranquiliza no meu peito, como se meu vínculo estivesse
feliz por esse cheiro estar em mim, mas aí percebo que é o sabonete de
North, com o cheiro de North.
Que desgraça.
É claro que ele ia me trazer para a porcaria do quarto dele e é claro
que ele vive neste nível de luxo. É-claro-porra que isso tudo é dele. Tento
não me encolher enquanto aumento a temperatura da água para tentar tirar
um pouco do cheiro. Não importa que meu vínculo anseia por aquele
aroma. Não importa que eu sinta que eu estar com o cheiro dele seja a coisa
certa.
Ele me odeia até meu âmago, eu também não sou muito fã dele.
Preciso me manter distante para meu coração não ser despedaçado
mais ainda do que já foi.
Tento arrumar um pouco meu cabelo e, quando isso não dá certo,
passo a mão pelo meu pijama de seda.
Hum.
Espera, quê?
Pijama. De. Porcaria. De. Seda.
Estou vestindo um pijama de aparência luxuosa com riscas de giz,
mangas longas e em um tom forte de azul-marinho que deixa minha pele
com uma aparência maravilhosa. Que inferno, até os tons prateados do meu
cabelo ficam lindos contra essa cor, mas essa bosta não é o que importa
aqui. Quem diabos trocou minhas roupas? Confiro e, nada, minha lingerie
desapareceu também. Alguém me deixou nua enquanto eu dormia, esses
cretinos pervertidos de merda.
Disparo para fora do quarto, pronta para gritar com North, por mais
aterrorizante que isso seja, só para descobrir que todos meus Vínculos estão
aqui agora.
Atlas e Gabe estão na cama, Gryphon se sentou no lugar de North
do outro lado, e Nox puxou outra poltrona para se sentar ao lado do melhor
amigo, fazendo bico para mim como faz a droga do tempo todo. North está
ao lado da mesinha perto da porta, servindo um café que faz meu coração
bater meio descompassado no peito.
Café.
— Sente-se, Oleander. Acredito que nós dois concordamos que
temos muito a conversar.
Ledo engano, não tenho absolutamente nada a dizer a ele neste
momento... nem em momento algum no futuro próximo. Mesmo que eu
confiasse nele, não poderia contar nada sobre mim mesma, e, depois de toda
a merda que ele fez comigo, sem chances de eu dizer qualquer coisa a ele.
Minha pele formiga com os cinco pares de olhos que me observam
com graus diferentes de interesse e um pouquinho de nojo, mas não fico
nada surpresa por Nox estar jogando essa merda na minha direção.
Dou um gemidinho enquanto ando de volta para a cama, cruzando
os braços sobre o peito em uma tentativa de disfarçar o fato de que estou
sem sutiã.
Atlas sorri para mim, ignorando a presença dos outros como se
fossem todos inferiores, então ergue o cobertor e me aconchega de volta na
cama ao seu lado. Seus braços passam em volta de mim como se eu tivesse
sido feita para ser moldada contra seu corpo. Dou uma olhada pelo quarto
de novo e, de repente, fico feliz por ele estar grudado em mim como uma
praga. Os olhos ao meu redor estão intensos demais. Todos muito focados
em mim.
Odeio isso.
North me entrega um copo de água e eu fecho a cara para ele.
— Prefiro um café.
— Você passou dois dias inconsciente. Pode tomar café depois da
água.
Acho que se eu assassinasse este homem neste exato momento,
poderia alegar para o júri que foi justificável e eles concordariam. Preciso
forçar minha mandíbula a relaxar para me obrigar a engolir a água, mas
bebo tudo de um gole só. Quando devolvo o copo para ele, seus olhos se
estreitam para mim e o braço de Atlas aperta meus ombros enquanto ele me
puxa para mais perto.
Por fim, North se afasta e pega outra poltrona no enorme closet para
se sentar em um lugar onde possa analisar meu rosto. Sempre sou a droga
de uma subordinada para este homem. Se eu pudesse sair correndo e
gritando desse quarto e achar algum meio de fugir, eu faria. Em um piscar
de olhos, eu faria essa merda.
Também percebo que, neste momento, mesmo que dois dos meus
Vínculos estejam sentados na cama comigo, estou em desvantagem, porque
tenho certeza de que Gabe e Atlas querem algumas respostas também.
Os olhos de North vão até Gryphon e, quando ele acena, North
começa:
— Certo. Temos uma lista inteira de perguntas para você,
Oleander...
— Que tal não? — interrompo. — Prefiro que a gente volte para
como as coisas eram antes de me levarem. Você me ignora e vou para as
aulas como uma serva boazinha. Foi mal pelo susto que causei ao ir atrás de
Sage, farei o que puder para isso não acontecer nunca mais. Estamos
resolvidos?
Seus olhos cintilam para mim, o primeiro sinal de que está irritado.
Ótimo, estou furiosa pra cacete com ele também.
— Não, não estamos resolvidos. Você mentiu para nós. De novo.
Sabia que era Favorecida e mentiu para cada um dos seus Vínculos. Isso vai
parar. Agora mesmo. O que mais está escondendo da gente?
Gabe muda de posição, um pouco constrangido ao meu lado, e não
consigo olhar em seu rosto. Não preciso ver a mágoa ali, considerando que
nunca lhe devi a verdade sobre mim mesma.
Isso aqui não se trata dele.
Afasto-me de Atlas para sair com cuidado da cama e gesticulo para
o pijama.
— Quem fez isso? Qual de vocês me deixou pelada enquanto eu
estava desacordada?
Atlas escorrega para fora também e pega uma mala guardada
embaixo do outro lado da cama. Eu nem tinha percebido que estava lá.
Ele segura minha mão e diz:
— Foi North. Chegamos aqui e ele apenas saiu andando com você,
se recusou a te colocar na sua própria cama e fez Felix te curar aqui.
Quando questionei sobre a mudança de roupa, ele disse que não era nada
demais.
North nem pisca sob o olhar selvagem que disparo para ele.
— Bom saber que meu corpo nu e incapaz de consentir não é nada
demais.
North contrai a mandíbula.
— Fallows...
Ótimo, voltamos para o Fallows.
— Não. Você não tem direito de ficar sentado aí me dizendo o
quanto sou malvada por ter escondido isso de vocês, quando tudo que fiz
foi manter todos nós a salvo. E é isso, isso é tudo que vou dizer sobre esse
assunto. Se você quer mais informações, sinto dizer que vai ficar querendo.
Ando na direção da porta, esquecendo por um segundo que Atlas
está segurando minha mão, até puxá-lo junto sem querer. Mas ele não
hesita, apenas avança comigo para sair deste quarto perfeito até demais.
— Fallows, você não pode só sair andando sem nos contar nada.
Qual exatamente é seu dom e o que mais consegue fazer? Por que o
escondeu de nós? Como a Resistência sabe sobre ele? — North estoura, sua
voz fica mais grave quanto mais furioso ele fica, e eu quase esbarro na
parede que Atlas forma atrás de mim quando me viro de novo.
Aponto um dedo para ele, pronta para acabar com a raça dele, mas
Nox me interrompe:
— Esquece, irmão. Ela é só uma criancinha patética que foge no
segundo que as coisas ficam difíceis.
Odeio ele.
Odeio ele pra caralho e o ódio só fica mais forte quando seus olhos
disparam de volta para mim e ele diz com a voz arrastada:
— Então vai, sai rastejando para encontrar um buraco escuro onde
se esconder. Você é a mesma Vínculo inútil que era na semana passada, só
que agora sabemos que teve a opção de não ser. Você de fato poderia ter
sido algo especial e preferiu escolher não ser nada.
Eu poderia matá-lo.
Até meu vínculo considera bani-lo da face da Terra, sem nem se
importar com a ligação que há entre nós, mas, ao invés disso, dou meia-
volta e me retiro.
Passo a noite toda com Atlas e Gabe, tentando manter a paz entre os dois e
fracassando miseravelmente. Fica muito claro para mim que eles só
concordam um com o outro quando estou em perigo ou estão lidando com
os outros Vínculos.
Quando ficamos sozinhos assim, eles se provocam e se cutucam até
eu querer assassinar os dois.
Por fim, quando decido ir dormir, nenhum dos dois sai do quarto e,
por mais que eu não queira admitir isso, quero mesmo que fiquem. Atlas
toma banho e vem se deitar na cama comigo só de cueca.
Gabe tira a camiseta e faz um ninho de travesseiros e cobertores no
chão do meu lado da cama sem dizer nada. Ele teve uma quantidade
absurda de reclamações para fazer a Atlas a noite toda, mas nenhuma para
mim. Não sei se é culpa ou se só está esperando para conversar comigo em
particular, mas isso me deixa agitada e ansiosa.
Atlas tem a consideração de ficar longe de mim na cama, mas sua
mão encontra a minha por baixo do lençol antes de eu apagar as luzes.
Quando acordamos na manhã seguinte, sinto-me como se tivesse
sido atropelada por um trem, mas guardo essa informaçãozinha para mim
mesma, pois de jeito nenhum vou passar o dia inteiro nessa droga de
mansão hoje. Vou às aulas e vou tirar vantagem da pouca liberdade que
ainda tenho. Preciso ver Sage e saber como ela está depois do sequestro.
Preciso agradecer a Felix por ter me curado só porque pedi, já que ele não
precisava ter feito isso. Preciso até procurar Gracie para agradecer por ter
gritado avisando que levaram Sage e me permitido encontrar minha melhor
amiga quando ela precisava de mim. Vou almoçar com todos meus amigos,
droga!
— Não gosto disso — diz Atlas na porta do closet, mantendo as
costas para mim enquanto me troco, mas ainda por perto. Digo a mim
mesma que é um lance de Vínculos e não porque devo estar tão horrível
quanto me sinto.
Gabe desapareceu para tomar banho e se vestir em seu próprio
quarto, e foi aí que eu descobri que ele também tem um quarto aqui.
Tecnicamente, ele não mora aqui, mas parece que quando North descobriu
quem eu era e de quem mais eu seria o Vínculo Central, designou quartos
para todos nós.
Cuzão controlador.
Visto uma das camisetas de Atlas e depois coloco um dos moletons
de Gryphon, o último que ainda tem o cheiro dele. Preciso descobrir um
jeito de conseguir mais com ele... ou devolver os outros para ele colocar seu
cheiro neles de novo.
Será que seria muito patético pedir para Gabe me ajudar com isso?
Será que ele tem algumas camisetas que eu possa roubar também?
Jesus, se concentra, Oli!
Pigarreio enquanto visto uma calça jeans que já teve dias melhores,
mas que ainda me serve bem.
— Preciso disso. Eu preciso muito voltar para a minha vida e deixar
as coisas se ajeitarem.
Quando termino de me vestir, coloco a mão nas costas dele para
chamar sua atenção, ele se vira e sorri para mim, os olhos brilhando.
— Você fica perfeita nas minhas roupas, Doçura.
Fico corada, o que é ridículo, e retruco:
— Do que você está falando, nem dá pra ver! Vai ser assim sempre
que eu roubar uma roupa sua? Porque meu vínculo é bizarro pra caralho
com cheiros e... acho que isso vai acontecer o tempo todo.
Ele encolhe os ombros e passa um braço em volta dos meus. Nesse
momento, Gabe abre a porta com minha chave, que ele pegou, e volta para
o quarto.
— Pode pegar a droga que quiser de mim, pegue tudo. Quer meu
carro também? Isso pode me doer um pouquinho, mas só se você for uma
péssima motorista.
Faço uma careta e, quando olho para Gabe, ele está encarando Atlas
como se quisesse rasgar a garganta dele, e isso torna difícil falar, mas
consigo:
— Na verdade, não tenho carteira de motorista, então pode ficar
com o carro. A Equipe Tática tirou minha identidade falsa e, graças a
North, todo mundo no campus sabe quem sou, então não tenho como
resolver isso.
O sorriso no rosto de Atlas vacila um pouco, mas ele se abaixa e
beija minha bochecha de um modo gentil, apenas roçando a pele de leve na
minha, mas meu vínculo implora por ele como uma piranha amuada dentro
do meu peito.
— Vou acrescentar isso à lista de coisas que temos que resolver para
você, vai ficar bem no topo com tirar o rastreador GPS e arrumar um
emprego, se ainda quiser um.
Solto o ar pela boca e coloco um sorriso no rosto.
— Então...só coisinhas bem fáceis de conseguir, nada que vá deixar
North tão puto ao ponto de me acorrentar na droga do porão dele.
Atlas semicerra os olhos, mas não quero descascar esse abacaxi
agora, então dou a volta nele, caminho até a cama e enfio na mochila os
últimos cadernos que faltam. Preciso encontrar meus sapatos, porque só
tenho dois pares e um está lá no centro de treinamento.
O outro par North tirou de mim.
Porra, não quero mais pensar nesse homem hoje.
Gabe se aproxima hesitante, mas não sei por que até ele me oferecer
uma sacola.
— Gryphon me entregou isso agora de manhã. Ele disse... droga,
não importa. São seus.
Seu constrangimento me faz franzir o cenho, mas quando pego a
sacola e olho dentro, encontro minhas botas de couro. Encontro o filho da
puta do meu par de botas lindo e perfeito de brechó que achei ter sido
deixado para trás quando a Equipe Tática me pegou e pelo qual chorei
durante dias, mas aqui estão elas, nesta sacolinha.
Eu me debulho em lágrimas.
É tão ridículo e Gabe me olha com aquele tipo de horror que deixa
claro que está morrendo de vontade de fugir de mim agora e apagar esse
momento de sua memória para todo o sempre. Só que então ele segura meu
braço, puxa-me contra seu peito e me abraça, daquele jeito meio contido,
mas seguro, que os caras fazem quando estão com medo de esmagar você.
Choro de soluçar em cima dele.
Mantenho o rosto grudado na superfície dura que nem pedra de seu
peitoral perfeito e murmuro:
— São os melhores sapatos que já tive e achei que tinha perdido.
Porra, que vergonha! Vocês precisam sair daqui e esquecer que isso
aconteceu. Prometam que nunca mais vamos falar sobre isso.
Gabe faz um som com a garganta, esfregando minhas costas com a
mão, ainda com medo de eu fazer cérebro mexido com ele se fizer algo
errado.
— Você podia ter perguntado a ele. Gryphon não é um Draven,
consegue ser razoável, sabe.
Dou uma bufada, o que sem dúvida é um erro considerando meu
estado, e me solto de Gabe para pegar as botas e calçá-las. No mesmo
instante, eu me sinto arrumada e adorável, ao invés de desleixada e vestida
de qualquer jeito que estava me sentindo até três minutos atrás.
Gryphon não faz a menor ideia, mas esse homem acabou de me dar
o paraíso.
— Certo, então sapatos são a chave para o seu coração, entendi —
Atlas reflete e lhe dou um sorriso choroso.
Todos pegamos nossas mochilas e saímos, trancando a porta depois.
— Vai dizer que não estou uma gracinha agora, eu te desafio! Eu
podia matar um homem hoje. Com essas botas eu podia até chegar na aula
de Nox e esfolar aquele babaca vivo.
Gabe balança a cabeça para mim.
— Então talvez seja melhor não as usar, agora que todos sabemos
que você pode sustentar essas ameaças com atitudes.
É primeira vez que algum deles menciona meu dom, mas ele não diz
mais nada a respeito, não me pressiona nem me olha estranho, então acabo
não saindo correndo para as colinas.
Acompanho os caras pelo corredor e até dentro do elevador,
confiando que vão me tirar desse labirinto de casa porque eu, mais uma vez,
não faço a menor droga de ideia de onde estou. Sério mesmo, alguém
precisa me arranjar um mapa.
Quando as portas do elevador se fecham, Gabe hesita por um
segundo para escolher o andar, então me dá uma olhada.
— Vamos descer pra tomar café da manhã, ou vamos para a
garagem e comemos no refeitório?
Torço o nariz.
— Não tem uma terceira opção?
Atlas se debruça e escolhe o subsolo.
— Tem, a cafeteria na rua do campus faz um café gostoso e burritos
de café da manhã.
Abro a boca, mas ele me interrompe:
— Se você der um pio sobre dinheiro neste momento, Oleander, vou
dar uma surra em North por fazer você se sentir mal por causa disso. Sei
muito bem quem você é e de onde está vindo, não tenho problema nenhum
em cobrir qualquer despesa que precisar até conseguir se estabilizar.
Ainda não quero que ele pague as coisas para mim, mas não quero
mesmo ver North agora, então só abaixo a cabeça e faço que sim, olhando
para minhas botas perfeitas mais uma vez. Trabalhei duro para juntar o
dinheiro para comprá-las. Vasculhei muitos brechós com várias notas de
dólares no bolso até encontrá-las.
Digo a mim mesma que vou manter controle de tudo que ele está
pagando e o ressarcir assim que puder. Se esses dois não têm problema
comigo arrumando um emprego e Gryphon já disse que vai me apoiar,
então North precisa ceder, certo?
Ele não é chefe de todos nós... certo? Jesus, por que isso tudo tem
que ser uma confusão tão grande?
Quando as portas do elevador voltam a se abrir na garagem,
andamos até o Hellcat de Atlas e Gabe abre a porta do passageiro para mim,
então espera eu me ajeitar e colocar o cinto antes de entrar no banco de trás.
Atlas ergue uma sobrancelha, mas ele só dá de ombros.
— Não vou sair de perto de Oli. Suspeito que você esteja se
sentindo do mesmo jeito e não cabemos todos na minha moto, então tem
que ser o seu carro.
Monstro.
A palavra me acompanha em todas as minhas aulas e no refeitório
na hora do almoço. Atlas, Sage, Sawyer e Felix seguem minha deixa e
ignoram o que dizem. Não estou nem aí para nenhuma dessas pessoas.
Nenhuma delas tentou ser minimamente tolerante comigo, nem quando
achavam que eu era uma rejeitada sem dons, então por que eu deveria me
importar que todos me odeiem agora?
Mantenho minha raiva sob controle e sigo com meu dia.
Gabe não.
Assim que pisamos no prédio e os murmurinhos começam, ele cola
do meu lado, tirando Sage de modo gentil do caminho porque nessa altura
já sabe que não adianta tentar brigar com Atlas. Ele está tenso, observando
todo mundo nos corredores e em todas as salas de aulas como se estivesse
esperando alguém nos atacar.
Quero acreditar que ele está exagerando, mas já vivi coisa demais
até aqui para descartar a hipótese. Então fico de olho em todo mundo com
ele. Observo todos seus amigos hesitarem antes de cumprimentá-lo,
mantendo uma distância saudável de nós. Observo as garotas que babavam
nele e o paparicavam durante meses evitarem olhar em seus olhos, falando
merda de mim ao passar por nós. Observo todos que o tratavam como o
menino de ouro do campus desde que cheguei aqui lhe darem as costas,
graças a mim.
Isso deixa o vínculo dentro de mim e meu dom muito incomodados,
porque eu estou cagando para o que esses idiotas pensam de mim, mas
tratar meu Vínculo assim só porque ele está preso comigo? Ah não. Não
gostamos disso, nem um pouquinho.
Quando saímos da aula de História e nos dirigimos ao refeitório para
almoçar, Gabe murmura alguma coisa com Sawyer e deixam Sage segura
do outro lado de Atlas, para ela ficar entre ele e o irmão. Dou um olhar
estranho para Gabe e ele se abaixa para murmurar:
— Bassinger é indestrutível. Quem melhor para proteger vocês duas
do que o cara que pode ser um escudo humano sem morrer?
Certo, então quando eu conseguir tirar o GPS que está embaixo da
minha pele sem explodir meu cérebro, vou ter que levar toda essa gente
comigo. Não tenho nenhuma dúvida de que vou precisar arranjar um ônibus
para caber todos nós, porque talvez essas amizades não tenham começado
tão bem, mas agora posso sentir que estamos firmes e juntos até o fim dessa
merda toda.
Quando chegamos ao refeitório, está lotado e a única opção decente
no menu está em alta demanda, então ficamos presos na fila. Atlas brinca
com Sawyer sobre coisas de esporte com as quais eu não poderia me
importar menos, e Sage repassa nossas opções para o próximo trabalho de
história que teremos. Ela é muito mais inteligente do que eu e vou
aproveitar toda a ajuda que ela puder me dar nesse trabalho, porque não sei
nada sobre os motins dos Favorecidos nos anos 1970. A fila anda com tanta
lentidão que, quando conseguimos chegar na pizza, só sobraram duas fatias.
Atlas as pega, coloca no prato e questiona a funcionária sobre o
tempo de espera por mais. Quando ela responde que estão quase prontas,
ele me oferece o prato e me manda sentar.
Fico olhando que nem uma idiota para ele, que sorri.
— Como se eu fosse comer antes do meu Vínculo, vá se sentar com
Ardern e eu encontro com vocês lá.
Olho para trás e vejo que Gabe já está sentado, olhando feio para
todos como fez o dia todo. Suspirando, sigo através da multidão até ele,
embora fique mais fácil com a quantidade de pessoas que pulam para fora
do caminho com medo de encostar em mim.
Gosto disso.
O pratinho de tristeza de Gabe está em sua frente como de costume,
salada e proteína como um bom garotinho em fase de crescimento, então
aproveito a oportunidade para questioná-lo, agora que tem menos gente ao
nosso redor para ouvir.
— Por que você se importa tanto com o que estão dizendo sobre
mim? Por que eu deveria ligar se eles acham que sou um monstro?
Ele faz uma careta e olha por cima do ombro, para onde Atlas está
parado junto aos outros, conversando de modo alegre. Meu olhar encontra o
de Atlas conferindo como estou e ele sorri. Abro um enorme sorriso de
volta para que ele não se apresse e interrompa a conversa.
Preciso de algumas respostas.
— North e Nox têm o mesmo pai, mas mães diferentes, sabia disso?
O pai deles era o Vínculo Central e possuía também as criaturas de
pesadelos. O pai deles... bom, nenhum de nós sabe o que aconteceu de
verdade, mas o pai deles matou a mãe de North com seu poder. Ele foi
condenado à morte por isso. William Draven, tio deles, assumiu o assento
da família no conselho até North ter idade suficiente.
Jesus. Essa pergunta simples abriu uma caixa de Pandora todinha
que eu não estava esperando. Embora meu estômago revire só de pensar em
comida agora, enfio a pizza na boca só para ter algo mais em que pensar.
Gabe faz uma cara feia, mas pigarreia e continua:
— Outras merdas aconteceram também, mas não sou eu... não é...
droga, não sou eu que tenho que te contar e, de qualquer forma,
provavelmente metade dos detalhes que eu tenho estão errados. O que
importa é que quando todo mundo descobriu que tanto North como Nox
têm o mesmo dom do pai deles, isso gerou muita conversa na época. Mais
do que conversa, o Conselho precisou interferir. E aí... bom, o dom de
Gryphon deixa as pessoas receosas. O meu é tão ruim quanto. Quando
descobrimos que estávamos todos no mesmo grupo de Vínculos, muita
gente ficou preocupada.
Um curandeiro e um metamorfo deixaram as pessoas preocupadas?
Esses dons dão que nem banana, não faz nenhum sentido para mim. Então
eu me lembro o que Hanna me disse semanas atrás, quando o dom dela me
jogou para longe durante o TT.
Gryphon Shore não é alguém que você decide irritar por simples
capricho.
Quer dizer, se isso não é um aviso de que eu não o julguei direito,
não sei o que é.
Gabe olha para trás, os outros enfim estão sendo servidos e o aroma
de pizza recém-assada flutua até nós.
Ele volta a se virar para mim e fala baixo para os outros não
ouvirem enquanto se aproximam:
— Nox mal passava de uma criança quando a mãe dele morreu e o
trouxeram de volta para North. Houve manifestações na comunidade contra
ele poder estudar aqui. Não importa que o nome deles esteja na frente do
prédio, as pessoas os odeiam por causa do que podem fazer. Elas odeiam
todos nós, Oli. Por que você acha que a gente tinha tanta certeza de que
você tinha sido sequestrada quando desapareceu? Por que acha que North
monitora cada passo que você dá? Não é só porque tem chances de você
fugir.
Jesus.
Será que eu errei tanto assim na minha avaliação dessa comunidade
toda?
Atlas se senta na cadeira ao meu lado, ainda rindo com seu novo
melhor amigo Sawyer, e abaixo a voz para que só Gabe escute:
— Achei que todo mundo amasse você. Estava me sentindo um lixo
por todos terem te dado as costas por minha causa.
Sage escuta e me olha com seus olhos tristes, mas que andam
diferentes esses dias. Ainda mais porque sei que tem uma baita valentona
dura na queda por baixo de toda essa empatia maravilhosa e sabedoria
silenciosa.
Ela dá uma olhada ao redor e murmura para nossa mesa:
— Está dizendo que você não sabia que todos aqui são alpinistas
sociais traíras e covardes que lamberiam Gabe de bom grado se achassem
que isso os ajudaria a ter notas melhores e empreendimentos futuros com
seus Vínculos, mas que agora que foram lembrados de que todos vocês são,
tipo, os mais fortes dentre os Favorecidos de Nível Superior, voltaram a
falar baboseira como os merdinhas covardes que todos eles são?
Até o Sawyer para de falar e encara a irmã pelo veneno que pinga
das palavras dela, porque não tem como negar que ela está farta pra caralho
desse lugar. Sinto o mesmo e pensar nessas pessoas usando Gabe por causa
dos outros desperta uma crueldade extra em mim.
Talvez usar esses sapatos tenha sido uma péssima ideia, no fim das
contas.
Eu me reclino na cadeira e sorrio para Sage.
— Você acha que a gente deveria atear fogo em todos ou derrubar o
teto pra esmagar todo mundo sob ele? Não sei bem se já tenho autocontrole
suficiente para ferrar esse povo sem atingir um de vocês, gente, desculpa.
Sou praticamente inútil.
Falo alto o suficiente para que as pessoas na mesa atrás da nossa
comecem a juntar suas coisas e saiam apressadas, sem querer correr o risco
das minhas ameaças porque, pelo visto, eles têm cérebros dentro dos
crânios.
Gabe olha para mim:
— Você não pode sair ameaçando as pessoas, Oli. Não agora que
todo mundo sabe o que você pode fazer.
Olho para Zoey enquanto ela passa por nossa mesa, seus olhos
encontram os meus e me certifico de que ela escute minha resposta:
— Eles não sabem nem da metade do que posso fazer, Vínculo. Se
soubessem, não se atreveriam a chamar a mim e aos meus de monstro.
O burburinho morre no mesmo instante.
Imbecis covardes de merda.
Os travesseiros funcionam.
Finalmente acordo me sentindo descansada. E com uma das camisas
de North por baixo de um moletom de Gryphon e o filhotinho ainda
escondido no meu cabelo, passo uma semana tranquila.
Os treinos das 5h com Gryphon ficam mais fáceis, ainda mais
quando aprendo a ficar de boca fechada e a me concentrar no que estamos
fazendo. Logo progredimos para o combate corpo a corpo e até que é fácil,
pois ele começa com posturas e a aprender a cair. Sei que vou sofrer um
pouco mais quando for obrigada a lutar com ele e tocá-lo, mas por enquanto
estou indo bem.
Chego à primeira aula de TT que farei com Sage e Atlas toda
saltitante e com um sorrisão no meu rosto. Sage também sorri para mim,
mas está um pouquinho pálida e os fios castanhos de seu cabelo, que em
geral emolduram seu rosto de um modo perfeito, estão puxados em um rabo
de cavalo firme que completa sua aparência de estressada de hoje.
Brinco de modo carinhoso com ela enquanto nos trocamos e, pela
primeira vez, não dou a mínima para meu uniforme com caimento ruim ou
para os olhares das outras garotas.
— Vou ser paga hoje à noite depois do meu turno, a gente deveria ir
fazer compras esse fim de semana.
Sage sorri para mim enquanto veste um top que a faz parecer uma
atleta. Ela sem dúvida vai ser uma dessas garotas atléticas que passa com
facilidade nesta matéria, e eu me sinto com inveja e aliviada por ela ao
mesmo tempo.
Espero que ela acabe com a raça de todo mundo.
— O melhor shopping daqui fica fora do seu perímetro, acha que
North deixaria se Atlas e Gabe viessem juntos? A gente podia assistir um
filme também, passar o dia todo lá.
Faço uma leve careta e encolho os ombros.
— Vai saber, ele tem sido menos... mala nos últimos tempos,
suponho. Acho que ele ainda me odeia e com certeza não confia em mim,
mas ele também me deixou arrumar um emprego então... talvez? Nossa, a
gente devia fazer Gabe pedir a ele. Talvez ele possa dizer que é um
encontro ou sei lá o quê.
Sage dá uma risadinha e bate com o ombro no meu quando
começamos a andar juntas.
— Talvez devesse ser um encontro mesmo, ele nem está tentando
mais disfarçar que é obcecado por você. Já era bem óbvio antes, mas agora?
Meu Deus, ele tá mesmo vivendo a névoa do Vínculo.
Névoa do Vínculo. Porra, tinha até esquecido que isso existia e aqui
estou eu, bem no meio de uma. É esquisito até considerar os caras se
sentindo do mesmo jeito, mas acredito em Sage. Ela não mentiria sobre
algo desse tipo e deve ser mais fácil de enxergar olhando de fora.
A única coisa que vejo é minha necessidade obsessiva de cheirá-los
o tempo todo.
Quero me esfregar em Atlas e Gabe todinhos no segundo em que
nos reunimos, só para ter seus cheiros de volta em mim, porque minhas
roupas de treino só têm cheiro de sabão em pó. Eu me controlo, mas fico
perto o bastante de Gabe para nossos braços se encostarem.
Vivian sai marchando da sala dos fundos e grita com sua voz
retumbante:
— Certo, temos alguns rostos novos hoje, então vamos atravessar a
pista de obstáculos depois que todos estiverem aquecidos. Podem ir para
seus exercícios. Fallows, você está no seu circuito habitual. Bassinger e
Benson, venham falar comigo e vamos botar os dois para suar.
Meu circuito habitual começa na esteira e depois segue para os
pesos, então começo logo de cara. Dentro de poucos minutos, Sage é
enviada a se juntar a mim e mantemos um bom ritmo juntas.
Graças às minhas corridas matinais até a academia, não sofro muito
no meu tempo na esteira e, ao seguir para os pesos, posso assistir Atlas
arrasar nos desafios que Vivian lhe dá.
É absurdamente hilário.
E logo chama a atenção de todos. Um de cada vez, ele passa com
facilidade por todos os equipamentos de aquecimento, e depois, quando
Vivian fica de saco cheio e o manda para o tatame, podemos assisti-lo dar
uma surra nos metamorfos e nos outros alunos com dons físicos da turma.
Gabe se recusa a enfrentá-lo.
Quando um dos seus colegas do time de futebol americano tenta
repreendê-lo por isso, ele só dá um sorriso e encolhe os ombros para o
garoto.
— Meu Vínculo vai detonar a turma toda se a gente lutar. Estou
salvando sua vida aqui, Matt.
Até mesmo Vivian faz uma pausa para me olhar sentada no aparelho
de simulação de remo, e quando sorrio para ele e incluo uma piscadinha, só
para garantir, Gabe joga a cabeça para trás e gargalha da preocupação nos
rostos de todos. Se querem falar merda sobre eu ser um monstro, então
podem lidar com meus dentes quando eu rasgar suas gargantas.
Metaforicamente, é claro.
Vou deixar as mortes animalescas para Gabe.
— Está bem, cansei de tentar esgotar Bassinger, coloquem suas
bundas na pista de obstáculo. Vocês sabem como funciona: duas equipes, a
primeira em que todos atravessarem ganha. Uma hora de corrida depois da
aula pra quem perder.
Ai meu Deus.
Sage se vira para mim e murmura:
— Chegou a hora, Oli. Você precisa garantir que todos nós
estejamos no mesmo grupo.
Dou uma bufada para ela, porque não tem como eu conseguir
convencer Vivian a fazer nada, mas acho que não custa tentar. Espero até
estarmos todos na sala com as imagens das câmeras de segurança. Alguns
caras de Equipe Táticas já estão ali, bebendo café e conversando. Gryphon
não está aqui, mas Kieran está, e ele de fato me cumprimenta com um
aceno de queixo respeitoso quando me vê.
Fico tão chocada que tropeço.
Mantenho os olhos longe dele e me dirijo para onde Vivian está
olhando de cara feia para a lista de chamada, fazendo ajustes nos grupos em
que está colocando as pessoas.
— Fallows, bom ver que você ainda está viva depois daquele seu
passeiozinho.
Por um instante, até me esqueço de que fomos levados pela
Resistência, então balbucio as palavras:
— Que passei... ah. Certo, ficou tudo bem. É óbvio.
Ele ergue uma sobrancelha para mim e bate a caneta na prancheta:
— Veio aqui para eu te colocar em um grupo específico, não é? O
que te faz pensar que vou te colocar onde você quiser fácil assim? Não
tenho favoritos.
Sorrio para ele com total descaramento.
— Nós dois sabemos que você tem sim, só um pouquinho. Na
verdade, é mais um aviso. Gabe não estava inventando mais cedo, tenho
tido algumas... falhas de controle. Talvez eu precise ficar de fora dessa se eu
não estiver com meus Vínculos e com Benson.
Ele vira por completo para me encarar e posso ver muito bem as
palavras que-droga-de-baboseira-tá-rolando-aqui escritas em sua testa.
— E o que Benson tem a ver com seu Vínculo, Fallows? Por que
preciso colocá-la no seu time para salvar vidas?
Olho para trás, onde Sage sem dúvidas está surtando, mas Gabe está
mordendo a bochecha por dentro por causa de minhas artimanhas.
Volto a olhar para Vivian e sussurro para o velhote:
— Você não ficou sabendo? Fui atrás de Sage. Sou protetora até
demais ao se tratar dela, e meu vínculo está muito apegado a ela também.
O filhotinho, que ainda está brincando no meu cabelo, aproveita esta
oportunidade para colocar a cabeça para fora e, embora Vivian se
sobressalte, continua firme ao vê-lo.
Os caras da Equipe Tática, não.
Três deles se levantam de um pulo e Kieran pragueja de modo
veemente, coloca o café na mesa e pega o celular. Com certeza vai me
dedurar para North ou Gryphon, mas não é como se eu tivesse feito algo de
errado.
O pesadelo é de Nox, não meu.
Vivian ralha comigo enquanto tira o celular do bolso.
— Que droga um pesadelo de Draven está fazendo aqui? Quando foi
que Nox te deu essa merdinha? Já me lembro muito bem dele de quando dei
aula para aquele cretino.
Sorrio de novo e empurro Brutus de volta para baixo do meu cabelo.
— Eu te disse que meu vínculo está todo descontrolado. Mas não
tenho problemas em ficar de fora hoje.
Ele balança a cabeça para mim e retruca:
— Nem ferrando, criança. Pode ficar com a sua turminha reunida
hoje, mas é bom aprender a controlar seu dom logo.
Aceito a vitória.
8
*
Tenho sorte de não ter me machucado durante o TT, porque tenho
turno na cafeteria logo depois da aula, e entre uma coisa e outra só tenho
tempo suficiente para tomar o banho mais rápido e mais gelado da minha
vida nos vestiários.
Segundo Gloria, as tardes são o período mais movimentado e não
tenho dúvidas de que se ela acrescentasse jantar no cardápio, ficaria lotado
a noite toda também. Os lanches que ela prepara são de comer rezando e o
café é o melhor do campus, só compete com o café da irmã de Gryphon.
Tento não pensar muito nisso.
Atlas me leva de carro para o trabalho enquanto Gabe vai para o
treino de futebol americano, gemendo o caminho todo. Eu achava que Atlas
ia só me deixar aqui, mas ele entra comigo, pede uma montanha de torta e
café, então ocupa uma mesa com seu notebook e todos os trabalhos que
precisa pôr em dia.
Fico esperando ser constrangedor ele ficar sentado aqui enquanto
estou ocupada servindo as pessoas, mas ele só me ignora o tempo todo e eu
faço meu trabalho. Cada vez que a xícara dele fica vazia, ele pede um novo
café, e quando Gloria ergue uma sobrancelha inquisidora, fico um pouco
envergonhada.
— Posso pedir para ele ir embora — digo, enquanto limpo os pratos
e os coloco na lava-louças.
Ela balança a cabeça para mim.
— Fico surpresa não estarem todos aqui tomando espaço depois do
que aconteceu da última vez. Não tem problema, ele está consumindo e
ficando no canto dele, não me importo de perder uma mesa durante seu
turno se ele fizer isso de forma respeitosa.
Suspiro aliviada e lhe dou um sorriso de gratidão, então me forço a
trabalhar com mais afinco ainda para agradecer por sua compreensão. Kitty
continua sendo um pesadelo enquanto anota os pedidos, mas já estou
ficando melhor em evitá-la e conseguir encontrar maneiras de trabalhar com
ela.
Quando pressinto a chegada de um dos meus Vínculos, segundos
antes do sino sobre a porta soar, fico uma pilha de nervos porque talvez Nox
tenha voltado e vai fazer outro escândalo porque Atlas está aqui.
Suspiro aliviada quando Gabe entra com Sage, Sawyer e Felix.
Todos parecem exaustos, mas estão rindo e fazendo piada. Eles me
cumprimentam e pedem suas bebidas, então se sentam na mesa com Atlas e
dominam seu espaço de estudos sem discussão.
Gabe pede dois dos muffins de três chocolates, um para agora e um
para viagem, e sorrio para ele quando os deixo na mesa.
— Se esse aí não for pra mim, talvez você precise repensar algumas
decisões de vida bem rapidinho, Ardern.
Ele sorri de volta pelo meu atrevimento e Sawyer finge que está
vomitando de forma dramática.
— Eu sabia que vocês dois iam estar trepando rapidinho, acabem
logo com isso para o resto de nós não precisar nos engasgar com essa
tensão sexual toda.
Sage pisa no pé dele por baixo da mesa e o encara furiosa.
— Para de ser fofoqueiro e de fazer drama só porque está chateado
com o lance de Gray. As pessoas têm direito de existirem e de serem felizes,
Sawyer.
Espera aí.
— O que aconteceu com Gray? Que merda, ele está bem?
A fachada petulante de Sawyer desaparece e de repente ele parece
devastado.
— Ele está bem, só que os pais dele que o tiraram da faculdade e o
trancaram em casa. Estão assustados com os sequestros e ameaçando tirar o
fundo fiduciário dele para mantê-lo isolado por um tempo.
Minha nossa.
— As coisas estão feias assim mesmo? Achei que tinham se
acalmado um pouco desde... a última vez.
Sawyer escarnece e me olha feio.
— Está se referindo à quando minha irmã foi levada e você andou
até um acampamento e a trouxe para casa como se não fosse nada demais?
Nem todo mundo tem uma melhor amiga com poder de derreter cérebros
pra protegê-los. Os pais dele já perderam dois filhos, então não estão de
brincadeira quando se trata dele e de Briony.
Só fico olhando para ele por um tempinho, porque é muita
informação para processar de uma vez. Ainda estou tentando aceitar o fato
de que ele não está bravo comigo, porque seu tom faz parecer que está.
Gabe também pensa assim.
— Não fala assim com ela, cara. Entendo que esteja irritado, mas
você mesmo acabou de dizer que ela salvou Sage. Eu estava lá e vi o que
ela fez pela sua irmã. Também a vi ameaçando Black quando ele tentou usar
Sage contra ela. Oli não é o problema aqui.
Dou uma olhada rápida ao redor, verificando o espaço para ter
certeza de que não temos clientes novos ou mesas que eu precise limpar,
depois pigarreio.
— Estou nessa com vocês até o fim. Não preciso conhecer Gray pra
saber que iria atrás dele também. Eu... nunca tive chance de ter amigos
antes. Não vou estragar minhas chances com vocês agora. Estou
comprometida, Sawyer, até com o seu jogador gatinho de hockey.
Ele pisca algumas vezes para mim e depois clareia a garganta,
erguendo seu café para esconder o rosto por trás da xícara enquanto toma
um gole.
*
Passo o dia tentando fingir que tudo está bem e de volta ao normal,
que definitivamente não sinto como se as paredes estivessem desmoronando
ao meu redor.
Atlas compra café da manhã para mim, em seguida me leva até um
parque bem no limite do perímetro do qual North me mandou ficar dentro,
em uma clara provocação porque, seja lá o que eles conversaram enquanto
eu tomava banho mais cedo, deixou-o irritado. Ficamos sentados juntos e
comemos em um silêncio que não é desconfortável, mas é, sem dúvida,
carregado, porque tem coisas demais no ar entre nós.
Quando voltamos à mansão, fico de cabeça baixa o caminho todo
até meu quarto e me concentro em ficar calma. Atlas coloca um filme, mas
passa a maior parte do tempo no celular com seus pais, já que as notícias do
susto com a bomba chegaram até a Costa Leste. Tenho certeza de que eles
me odeiam mais ainda agora por levar seu filho para longe e o colocar em
tanto perigo.
Eu me jogo nos estudos, já que é uma excelente distração.
Gabe só volta ao meu quarto depois do almoço, com os livros
didáticos nos braços e os olhos no chão enquanto anda. Sinto muita culpa,
mas coloco um sorriso no rosto e o acolho na pequena bolha de estudos que
montei no chão. Ele está um pouquinho tenso e formal, sem nem sinal
daquela amizade tranquila que trabalhamos tanto para desenvolver, mas
depois de mais ou menos uma hora, ele relaxa e voltamos ao nosso normal.
Consigo sentir as horas passando, a tensão crescendo aos poucos
conforme nos aproximamos da hora do jantar, e quando Atlas enfim coloca
o celular de lado e olha para mim, sei que não posso continuar enrolando.
— Oli, não é nada demais — Gabe murmura, enquanto começo a
empilhar os livros e arrumar a bagunça que fiz estudando.
Dou uma bufada para ele.
— Você não estava nem olhando para mim quando entrou aqui.
Desculpe se não estou muito ansiosa para enfrentar Nox depois de ter
praticamente me atirado num homem que detesta até me ver na frente dele.
Os olhos de Gabe disparam para meu cabelo, como se estivesse
procurando por Brutus, mas o cãozinho de névoa ainda está bem escondido
atrás da minha orelha. É difícil explicar como sei que ele está aqui, é uma
sensação... mas, ao mesmo tempo, não é. Eu apenas sei, assim como sei que
meu coração está batendo ou que meu cabelo é prateado. É só como as
coisas são.
— Acho que não foi muito bem isso que aconteceu, mas desculpa se
fiz você se sentir mal por isso. É que foi... difícil te ver daquele jeito. Tenho
certeza de que também foi difícil estar naquele estado.
Naquele estado.
Que jeito adorável de colocar as coisas. Obrigo meu rosto a
continuar inexpressível, mas Gabe percebe e xinga baixinho de novo,
enquanto passa uma mão no rosto.
— Porra, tô falando tudo errado de novo. Quis dizer que eu sabia o
quanto você não queria que eles soubessem o que está acontecendo. Eu
sabia que você não confia neles. Eu sabia que você estava apavorada com o
que estava acontecendo e que não tinha controle nenhum. Eu não sabia o
que fazer porque não sei direito do que seu dom é capaz. Fiquei
completamente impotente, porque se eu tentasse intervir, talvez fosse pior
para você. Mas eu teria interferido, se alguém tentasse completar o Vínculo
com você, eu teria impedido, mas... agora sinto que eu devia ter feito isso
antes. Sinto que falhei de novo com você.
Nós dois estamos ficando craques em magoar um ao outro, não
estamos?
Pigarreio e me levanto para abraçá-lo, dando um breve aperto em
seu corpo com os braços enquanto passo mais um minutinho encarando o
chão.
— Estou bem. Morrendo de vergonha e com medo do que vai
acontecer agora, mas não é culpa sua. Não é culpa de ninguém além de mim
mesma.
Ele me abraça mais forte e me mantém grudada ao seu corpo,
embora eu já esteja querendo me soltar. Parece que está louco para
encontrar o nosso normal de novo, ansioso para retornarmos ao curto
momento de paz que encontramos juntos, mas já sei que não vai dar.
Esse jantar vai estragar tudo.
Atlas passa o braço sobre meu ombro e me segura firme enquanto
andamos, e Gabe segura minha mão. Mais uma vez, sinto uma irritação
irracional com meu vínculo por ter feito uma cena daquele jeito. Por que
isso não pode ser o suficiente? Por que eu ficar pertinho desses dois não faz
com que tudo continue igual?
Somos os últimos a chegar à sala de jantar e North está sentado ao
lado de sua assistente, assinando uma papelada. Nox está em seu lugar de
costume, já com um copo de uísque na sua frente e uma careta no seu rosto
que me dá um pouco mais de vontade de morrer do que de costume.
Gryphon faz uma cara feia quando eu entro e meu peito fica
apertado, até ele dizer de modo brusco.
— Pen, você já terminou. Qualquer outra coisa pode esperar até
amanhã de manhã.
Ah.
Ele tem medo de eu perder o controle só de ver esta mulher
trabalhando perto de North, já que a desgraça do meu vínculo cheio de
tesão me transformou em uma pirralhinha sensível. Nem posso achar ruim,
meio que é verdade.
A assistente olha para mim e se assusta, como se não tivesse notado
quando entramos juntos. Não sorrio e finjo que nem a vi, vou direto para
minha cadeira e evito os olhares de todos enquanto observo a seleção de
pratos da noite.
Temos salmão e lagosta. Tem alguém realmente cuidando de mim
aqui, não existe nada neste planeta melhor do que salmão e lagosta. Talvez
exista uma possibilidade pequenininha de que eu consiga aguentar a
conversa deste jantar, se estarei ingerindo essa comida enquanto ela se
desdobra.
North recolhe os papeis e os entrega para a assistente, e concorda
com a cabeça quando ela confere uma última vez se ele está satisfeito antes
de sair. Gryphon a encara com um olhar mortal do outro lado da mesa, pelo
visto insultado por seu mero comando não ter sido suficiente para ela sair
correndo e gritando daqui.
É um pouquinho engraçado.
Só um pouquinho.
North pega um prato na pilha perto dele e nem me incomodo de
questionar quando ele começa a enchê-lo de comida. Já sei que é para mim.
Todos nós sabemos. Ninguém começa a se servir, estão todos o aguardando
terminar de decidir o que e o quanto vou comer hoje.
A sorte dele é estar montando esse prato do jeitinho que eu faria.
Atlas contrai a mandíbula com força, mas não discute ainda. Digo
“ainda” porque sei bem o que está se formando dentro dele. Sei que em
algum momento da noite North vai dizer alguma coisa e isso vai ativar
alguma armadilha dentro de Atlas, que vai rosnar algo cruel e cheio de ódio
aos Draven como um todo.
A única pessoa que está segura de sua língua ácida agora, sou eu.
North espera até eu estar comendo e todos os outros encherem os
pratos de comida antes de começar, mas, como sempre, ele vai direto na
minha jugular.
— Não podemos apenas ficar esperando você crescer e superar essa
sua fase rebelde. Mudanças serão feitas a partir de hoje à noite para garantir
que seu vínculo não ataque de novo, Oleander.
Fase rebelde.
Atlas muito lenta e cautelosamente coloca os talheres de volta na
mesa, mas coloco minha mão na dele para impedir seja lá o que ele está
planejando fazer aqui.
Engulo os deliciosos frutos do mar.
— Não acho que um pouco de respeito seja pedir demais antes de
eu... abrir as pernas pra vocês. É esse seu plano, não é? Eu deitadinha,
deixando vocês todos me usarem em troca de poder? Por que é difícil para
você entender que eu possa ter alguma objeção a isso?
Gabe fica rígido na cadeira ao lado, mas tenta disfarçar erguendo o
copo e bebendo água. Tenho certeza de que vou precisar ter outra conversa
com ele depois disso, mas o que estou dizendo não é mentira.
É isso que eles querem.
Fica evidente a forma como North precisa descontrair a mandíbula
para responder.
— O que eu quero é conseguir passar uma semana sem ter medo de
que você esteja prestes a causar morte cerebral em toda nossa comunidade
porque está dando um chilique. Eu gostaria de ter certeza de que você vai
ser responsável e adulta o suficiente para dizer aos seus Vínculos quando
tem algum problema e precisa de algo, mesmo quando a culpa é toda sua,
como é o caso.
Ah, aí está. Constrangendo-me por ousar ser biologicamente
obrigada a completar o Vínculo com eles.
Olho para cada um deles, muito embora eu prefira morrer, e a droga
do Nox está sorrindo de modo irônico para nossa discussão. Sorrindo,
porque isso tudo é tão engraçado.
Quero matar...
Não.
Nem pense nisso, Oli. Ainda estamos em território perigoso aqui.
Abaixo os olhos para meu prato de comida que quase não toquei.
— Diga o que está sugerindo, porque perdi a fome. Vou dormir
cedo, tenho aula amanhã.
North abaixa os olhos também.
— Você precisa de maior proximidade com todos os seus Vínculos.
Não reagiu a Gabe ou ao Bassinger ontem porque já está tendo o que
precisa deles. Nós vamos organizar uma agenda e você vai dormir com um
de nós todas as noites. Se isso não funcionar, vai ter que começar a
considerar as logísticas de completar o Vínculo conosco, caso contrário
você será um risco a todos nós.
Porra nenhuma, absolutamente não.
De jeito nenhum.
Ele não pode estar falando sério?!
Mas quando olho ao redor da mesa, descubro que não apenas ele
está falando sério, como já convenceu todos sentados aqui de que essa é
uma boa ideia... ou melhor, a única solução que temos a nosso dispor.
Caralho.
11
*
Acordo antes do despertador tocar, porque agora meu corpo já está
sincronizado com a programação dos nossos treinos. O corpo de Gryphon
está quente e rígido colado no meu na cama, sua perna enfiada entre as
minhas e o rosto enterrado no meu pescoço, como se ele precisasse tanto do
meu cheiro quanto eu preciso do dele.
Dói.
Meu peito dói com a crueldade desta situação, porque na noite
passada ele dormiu o mais longe de mim que o colchão permitiu, mesmo
assim, enquanto dormíamos, graças aos vínculos dentro de nós, terminamos
enrolados um no outro mais uma vez.
Sinto vontade de gritar e quebrar alguma coisa e, pela primeira vez
em semanas, não tem nada a ver com a névoa do vínculo.
Com cuidado, eu me solto dele e ando sem fazer barulho até o
banheiro para fazer xixi e me preparar para a árdua manhã de treinos que
me espera. Brutus está atencioso até demais, sai do meu cabelo e caminha
pelo banheiro, observando todos meus movimentos. Fico mais calma por
ele estar aqui, seus grandes olhos de vácuo vendo tudo e nada ao mesmo
tempo e, quando termino de me vestir e estou pronta para ir, consigo pensar
com clareza de novo.
Não me importo se todos eles me odeiam.
Gryphon está acordado e vestido, sentado na beira da cama quando
saio do banheiro. Ele mal dá sinais de notar minha presença quando é a sua
vez de cuidar das necessidades, e eu preparo minha música no celular para a
corrida matinal. Atlas me emprestou os fones de ouvido dele para que eu
pudesse usar para correr, e isso deixou a experiência suportável.
Quando Gryphon sai do banheiro, não espera por mim ou fala
comigo, só se dirige para a porta como se esperasse que o seguisse, e
porque não tenho outra opção, eu sigo.
Já que seu quarto fica no térreo, é um pouco mais fácil para eu
memorizar o caminho até a porta da frente. O ar da manhã está mais frio do
que há semanas, faz meus pulmões queimarem e meus dedos adormecerem
quase que de modo instantâneo, mas não adianta reclamar, então abaixo a
cabeça e aguento.
Gryphon define a velocidade e é brutal.
Não sei bem o que posso ter feito dessa vez para irritá-lo, estou aqui,
não estou? Mas quando chegamos na academia, mal estou conseguindo
conter o vômito. Não me sinto tão mal assim há meses, é como se todo meu
esforço para melhorar meu condicionamento físico tivesse sido inútil,
porque ele acabou comigo em uma corrida.
E ele mal está ofegando.
Odeio ele.
— Alongue por cinco minutos, depois vamos lutar — diz sem nem
olhar para mim, abrindo a academia e acendendo todas as luzes enquanto eu
viro uma poça no tatame.
Tiro o suéter que estou vestindo, então fico só com uma das regatas
de Gabe e short de corrida, depois começo a alongar meus músculos, como
se isso fosse me ajudar a sobreviver. Já sei que não vai e que meu ego, que
já estava frágil e ferido, está prestes a ser detonado com as críticas.
Mesmo assim, fico de boca fechada.
Ele também fica só de regata e short e me entrega uma garrafa de
água. Gryphon nunca fez isso antes e a aceito com um aceno breve de
agradecimento.
Meio que me dói admitir o quanto tudo isso é uma merda para mim.
— Sempre achei que North estivesse sendo muito severo te
chamando de pirralha, mas você está agindo como uma de verdade agora.
Engasgo com a água, cuspindo-a em cima de mim como uma
imbecil.
— Co-como é? Por que estou agindo como uma pirralha? Não
reclamei nem uma vez!
Ele inclina a cabeça, concordando que nesse ponto eu tenho razão,
mas insiste:
— Você precisava de algo e nós providenciamos. Ao invés de ser
grata por North estar se virando do avesso para te ajudar a evitar se
Vincular, você está fazendo bico.
Eu literalmente não tenho palavras para responder.
Não sobrou nenhuma.
Então, ao invés de responder, coloco a tampa de volta na garrafa e
me levanto, sacudindo as pernas e repassando as posturas que ele me
ensinou para que aprove. Ele continua onde está, agachado no tatame na
minha frente, e só passo para a próxima posição quando ele fica satisfeito
com a última.
Uso muito controle de respiração e técnicas de meditação para
clarear minha mente. Sem a névoa do vínculo ou o frenesi turvando minha
cabeça é mais fácil, graças a Deus, e, até ele se levantar e tomar posição
para praticar comigo, já estou calma de novo.
Ele passa a hora seguinte me jogando de um lado para o outro no
tatame.
Aprendi a cair como uma lutadora, como fazer para absorver os
impactos e rolar para retomar vantagem. Aprendi a distribuir meu peso de
maneira adequada e como usar o embalo do meu oponente. Aprendi a lutar
mesmo nas vezes em que fui superada, a continuar lutando mesmo quando
um homem três vezes o meu tamanho me prende no chão.
Então, quando estou exausta e já tomei uma surra, Gryphon decide
provar alguma droga qualquer, porque ele não consegue mesmo deixar de
me chutar quando já estou caída.
O corpo dele se joga no meu e me leva para o tatame, com meus
braços presos acima da cabeça e suas pernas prendendo as minhas, então
não tenho como me mexer ou recuperar controle da situação de forma
alguma.
Dou um grunhido e tento me mexer, mas não adianta, ele me deixou
à sua completa mercê.
Não gosto nem um pouquinho disso.
— Vou te contar tudo a respeito do meu dom, tudo a respeito de
todos os nossos dons, se responder uma pergunta minha antes.
Luto contra ele de novo, mas é como se uma parede de tijolos
tivesse caído sobre mim, impossível de mover ou de convencê-la a sair.
— Já sei o que vai perguntar, a resposta é não.
Ele bufa e balança a cabeça.
— Duvido, Vínculo. Me diga por que ser chamada de pirralha te
magoa tanto? O que não estou enxergando aí que te deixa tão chateada
assim?
Suas palavras me dá um frio na barriga e minhas bochechas coram,
mas talvez seja bom, talvez eu consiga pôr para fora um pouco da
frustração e da fúria que sinto pela forma como todos eles escolhem me ver.
Inspiro fundo, então deixo tudo sair:
— Talvez seja porque estou tentando o melhor que posso aqui.
Talvez seja porque fiz tudo, tudo, que North exigiu de mim e nenhum de
vocês reconheceu isso nem uma vez. Que inferno, ele não parou nem pra
me deixar comprar um caralho de Buscofem! Estou aqui todas as manhãs
sem reclamar. Vou para o TT sem reclamar. Vou aos jantares de Vínculo,
aulas e jantares do conselho e para as aulas idiotas de Nox sem nunca ter
tido escolha. Sei que todos vocês me odeiam pelo que fiz, sei disso, então
quando tive problemas com meu vínculo, não quis incomodar vocês com
isso...
— Mentira. Isso é mentira — ele me interrompe e há um contorno
branco em seus olhos, não forte o suficiente para eu ter certeza de que está
usando seu dom, mas sem dúvida quer dizer alguma coisa.
Que droga, espero que ele me nocauteie aqui para eu não precisar
mais ouvir isso.
Encolho os ombros.
— Não quis incomodar vocês, também não quis lidar com a
vergonha completa e com as manipulações de vocês me mandando
superar... Afinal, por que vocês me ajudariam? As únicas coisas com as
quais vocês me ajudaram até agora foram por controle, por que vocês
encontrariam uma solução para o meu problema que não envolvesse
Vincular?
— Mas foi o que fizemos, não foi? North passou o dia todo
interrogando Gabe e Bassinger sobre todos os sintomas da sua névoa do
vínculo e as coisas que vocês já tinham tentado até encontrar uma solução.
Você está agindo como se nós fossemos uns estupradores egoístas de
merda, e isso está muito longe da verdade, Vínculo.
Ele estica os braços para pairar sobre mim, e embora eu ainda esteja
presa no tatame da cintura para baixo, consigo fingir indiferença.
— Bom, isso também não é verdade, né? Já que estamos sendo
honestos aqui, Nox já me mostrou exatamente o quanto meus limites são
importantes para ele, por que eu deveria acreditar que você e North são
diferentes?
Ele fecha os olhos e quase me arrependo de tocar nesse assunto, mas
foda-se, é verdade. Só porque tive um pouco de escolha naquela situação,
mais do que Atlas acredita, inclusive, não quer dizer que Nox não tem culpa
com o que aconteceu.
Não posso confiar em nenhum deles.
— Se eu quisesse forçar o Vínculo com você, eu já poderia ter feito
isso uma centena de vezes nessa altura. Passei semanas dormindo na sua
cama no dormitório. Treino você todas as manhãs há meses, não tem
ninguém aqui para me impedir. Por mais que tenha sido difícil te deixar
inconsciente, eu consegui. Eu poderia te deixar desacordada em um instante
agora mesmo, o que é que está me impedindo? Talvez seja o fato de que eu
não sou a porra de um monstro.
Ele cospe a palavra em mim e Brutus decide que não está gostando
do tom dessa conversa, e coloca a cabeça para fora para rosnar sem fazer
barulho para Gryphon.
Gryphon não se apavora ao vê-lo, seus olhos apenas se deslocam e
registram o fato de que a criatura de Nox ainda não saiu de perto de mim.
Olho para ele, ficando um pouquinho vesga para conseguir enxergá-lo, e
aceno com a cabeça para trás para ele se esconder de novo. Estamos nos
conhecendo devagar e bem o suficiente para eu não precisar falar para que
ele entenda o que preciso.
Se Nox tirá-lo de mim, talvez eu fique louca.
Amo Brutus mais do que deveria.
Gryphon sai de cima de mim e fica de pé em um movimento ágil e
fluido que me dá uma inveja do caramba porque ele faz parecer fácil
demais. Preciso me levantar cambaleando como uma idiota sem
coordenação, ofegante e de cara vermelha.
Espero ele falar de novo, mas Gryphon só pega uma garrafa de
água, dá um grande gole e então a entrega para mim. A minha já acabou há
muito tempo, eu a drenei nos primeiros dez minutos, então aceito
murmurando obrigada e bebo tudo.
— Não sou um curandeiro. Gabe me disse que é isso que você acha.
Eu não estava curando você, nem ele, estava impedindo que vocês
sentissem dor. Não tem muito no seu cérebro que eu não possa manipular.
Posso te desacordar, tomar o controle dos seus pensamentos, parar suas
funções motoras... apagar suas memórias. A maioria dos Neuros tem uma
especialidade, mas nunca encontrei uma parte do cérebro em que eu não
consiga fazer estrago.
Nossa.
— Vivian disse que você é um ótimo líder de Equipe Tática, apesar
de não ter um dom físico, mas acho que você não está tão em desvantagem
assim.
Ele dá de ombros, apoia as mãos nos quadris e olha pela sala ao
nosso redor.
— Esse é meu dom primário. Meu incidental é outro.
Nossos olhos se encontram e, quando ele não desembucha logo,
gesticulo com uma mão para ele só desembuchar logo.
Ele bufa de escárnio, mas em seguida me olha nos olhos.
— Sei quando você mente. Sei quando qualquer um está mentindo
ou omitindo a verdade de mim.
Minha reação imediata é descrença e chego a torcer o rosto, já
pronta para repreendê-lo por essa baboseira, mas depois paro e penso a
respeito.
North sempre olha para ele em busca de confirmação.
Nox não o questiona.
Gabe já me disse “só uma profissional conseguiria enganar Gryphon
assim”.
Filho. Da. Puta.
Jogo as mãos para o céu e balbucio como uma idiota:
— Porra. Que perfeito, então você pode simplesmente manipular
todas as conversas que temos, pois você pode me fazer as perguntas certas e
descobrir tudo que quiser? Ótimo. Perfeito. Vou voltar pra mansão dos
Draven agora, para o quarto que me foi designado, para frequentar a
faculdade que me obrigaram e assistir as aulas que escolheram para mim.
Vou logo e aí vou viver a exata vida que vocês querem que eu viva até o dia
que todos nós vamos morrer por causa disso.
Seus olhos se estreitam para mim enquanto disparo em direção à
porta, e ele me segue.
— Vejo que você acredita nisso, mas não faz sentido nenhum.
Consigo sentir quanto poder você tem, mensurá-lo um pouco, pelo menos,
mas por que isso significa que estamos todos mortos? Por que a Resistência
te conhecia? Estive procurando nos dados da inteligência dos últimos cinco
anos, mas não tem nenhum sinal deles te levando, então quando foi que
você esbarrou neles?
Jesus.
Eles têm feito mesmo pesquisas sobre mim, não têm? Isso me causa
um pouco de pânico, mas se ainda não encontraram nada, duvido que haja
alguma prova do que aconteceu. Não me surpreende que a Resistência
tenha sido diligente em esconder todas as evidências a meu respeito.
— Se você acha que vou contar mais alguma droga pra você agora
que sei do que é capaz, é óbvio que está doido. Estou indo. Vou atrás de
uma banheira pra me afogar.
Ele agarra meu pulso para me impedir de sair enquanto tranca a
academia, então pega seu celular e digita uma mensagem antes de voltar a
guardá-lo no bolso.
Permaneço de forma obediente perto dele, olhando para a
vizinhança e para o sol das primeiras horas da manhã, que ainda está se
erguendo no céu. Gryphon inspira fundo e entrega meu suéter. Até esqueci
que tinha tirado.
— Nox não teria... levado as coisas mais adiante do que levou. Não
estou dando desculpas, vocês dois precisam resolver essa merda sozinhos,
mas não quero que fique apavorada por ter que estar perto dele.
Escarneço e respondo desanimada:
— Está se referindo a compartilhar a cama com ele em horários
previamente agendados? Mas nem posso falar nada. Acho que agora
estamos quites, certo?
Gryphon faz uma carranca.
— Nem um pouco, você mal deu um abraço nele.
Dou as costas para vestir o suéter de qualquer jeito, tentando ignorar
minhas mãos trêmulas.
— Bem, ele reagiu como se eu o estivesse atacando do pior jeito
possível, então perdão se interpretei errado.
— Ele tem... os problemas dele. Não é desculpa, só significa que
North e eu sabíamos que precisávamos tirar você de cima dele antes que o
vínculo dele interferisse. Um de vocês naquele estado já era difícil o
bastante, não conseguiríamos lidar com os dois.
Acho que ele confirmar que Nox tem problemas é tipo confirmar
que o céu é azul ou que o sol vai nascer de manhã. É óbvio e chega a ser
meio estúpido sequer dizer isso. Escolho minha música enquanto Gryphon
termina de trancar a academia, mas quando coloco os fones de ouvido,
Gryphon os tira e guarda no bolso dele para eu não poder apenas enfiá-los
de novo na orelha e ignorá-lo.
Quando abro a boca para discutir, ele me interrompe:
— O pai de North e Nox tinha as criaturas de pesadelo. Ele era
forte, Nível Superior, mas só tinha esse dom. Era o suficiente para ele ser o
Favorecido mais poderoso de sua época.
Ele começa o caminho de volta em um ritmo muito mais lento do
que antes e consigo acompanhar suas passadas longas com facilidade.
Aceno, mas apenas continuo escutando o que ele tem a dizer.
— A mãe de North era uma Elemental. Ninguém esperava que a
combinação entre eles resultaria no que North é... é por isso que ele tem
tanta influência na comunidade, porque um homem com três habilidades,
todas de Nível Superior, é aterrorizante para todos. Ele tem as criaturas de
pesadelo, assim como Nox, só que um pouco mais... violentas. Então tem o
toque mortífero. O que é autoexplicativo. Se ele quiser, pode matar
qualquer um em quem tocar.
Uma gota gelada de pavor escorre pela minha coluna. Isso me
parece um pouquinho familiar demais, um pouquinho semelhante demais a
mim para o meu gosto, mas Gryphon não olha na minha direção ao
continuar:
— Não sei qual dos dois dons é primário e secundário, porque um é
tão forte quanto o outro. O incidental é que ele consegue descobrir a causa
da morte de alguém. Assim como o outro, através do toque. É útil e até esse
tem mais poder do que a maioria recebe com o dom primário.
Ele passa os olho pela rua silenciosa e acena para um vizinho que
está entrando no carro, longe demais para ouvir nossa conversa. Dou uma
olhada, mas tem coisa demais acontecendo agora para eu prestar atenção
nos detalhes.
— A mãe de Nox era uma Neuro, como eu. Ela conseguia
manipular o sistema límbico, basicamente ela conseguia forçar emoções nas
pessoas. Uma arma poderosa, se usada da forma correta. Nox tem os
pesadelos, o pavor, e ainda está tentando entender os mecanismos do seu
dom incidental. Da última vez que falamos a respeito, sei que ele estava
perto de desvendá-lo, mas então te encontramos e ele mal falou com
qualquer um de nós desde então.
Pigarreio.
— O que exatamente é “o pavor”?
Gryphon estala os dedos de forma distraída.
— Você já se sentiu tão mal que alucinou? Viu coisas no escuro que
na verdade não estavam lá, só porque seu cérebro estava trabalhando contra
você? É mais ou menos assim.
Jesus Cristo, caralho. O apelido de monstro está fazendo um pouco
mais de sentido agora. Não que eu pense isso de qualquer um deles, mas
Favorecidos poderosos já são o suficiente para deixar as pessoas nervosas,
mas com esse toque diferente de poder que eles têm?
Aterrorizante.
— Gabe vai te mostrar o dom dele. Ele já conseguiu autorização
para você sair à noite e ver. É provável que você já sabe tudo sobre os
Bassinger e seus poderes, já vimos o que Atlas pode fazer durante o TT. Há
muitos... motivos pelos quais nosso grupo de Vínculos deixa as pessoas
ansiosas. Um Favorecido poderoso é uma coisa, mas seis? Seis que vão se
desenvolver e compartilhar poder, trabalhar juntos e formar uma família? O
conselho está pressionando muito North por isso. Tentando dar um jeito de
nos neutralizar sem dizer descaradamente que é isso que estão fazendo.
Meu coração acelera descontrolado só de pensar.
Quando chegamos na entrada de carros da casa, Gryphon para e
olha para a mansão. Ele coça o queixo por um instante, seu rosto está mais
sério do que nunca, e isso não é pouca coisa, porque ele, em geral, é do tipo
silencioso e rabugento.
— E aí tem você. Com tanto poder que a Resistência disse que
estava “vazando de você” mesmo enquanto você estava o ocultando. Foi o
que os estudantes levados com você disseram. Se nós não conseguirmos
descobrir como nos dar bem e fazer as pazes, então as coisas vão ficar
muito piores para todos nós.
12
Atlas está esperando por mim em minha cama quando volto ao meu quarto
para me arrumar.
Ele já está vestido e pronto, e felizmente parece estar muito melhor
do que ontem. Sorrio para ele a caminho do banheiro e ele segura minha
mão para me puxar contra seu corpo.
— Está com cara de quem dormiu bem — murmura no meu cabelo,
eu encosto o nariz em seu peito para inspirar seu cheiro.
— Esse é seu jeito gentil de dizer que nos últimos tempos tenho
parecido uma pilha de cocô? Valeu. Não, falando sério, me sinto melhor,
sim. Foi bom mesmo ter começado com Gryphon, já dormi com ele antes, e
ele é ameaçador de um jeito silencioso, ao contrário dos outros dois que são
uns cuzões.
Atlas ergue uma sobrancelha para mim e se afasta para me olhar
com um sorrisinho torto no rosto:
— Você já tinha dormido com ele? Como foi que perdi isso?
Fico corada, mas só porque está falando como se tivesse sido algo
mais do que foi.
— Ele me ajudou com uma dor e depois meio que... nunca mais
deixou meu quarto depois daquilo. Eu acordava e ele estava lá, todas as
manhãs. Nunca combinamos isso nem nada, ele apenas continuou
aparecendo e eu não queria falar sobre isso. Ele é... ele é um cara legal.
Legal de verdade, só que gosta de brincar de advogado do diabo, então acho
difícil não ter reservas com ele.
Atlas concorda com a cabeça, então me solta para eu poder me
arrumar e não atrasar nós dois para as aulas. É bom conseguir me vestir em
uma roupinha bonita sem precisar colocar tantas camadas quanto for
possível dos cheiros deles. Quando saio do meu closet de vestido e minhas
botinhas, com ondas no cabelo e um pouco de maquiagem, Atlas sorri para
mim e aperta o peito em um gesto dramático.
— Você não pode fazer isso comigo, Doçura. Não posso passar o dia
todo com você gostosa pra caralho desse jeito só para te perder para outro à
noite.
Ele diz isso sorrindo, então sei que só está flertando, mas sinto um
friozinho no estômago ao pensar em com quem vou dormir hoje à noite.
Preciso conseguir esse cronograma... para ontem.
Ele tranca a porta do meu quarto por mim ao sairmos, guarda a
chave na minha bolsa e segura minha mão enquanto andamos juntos até a
garagem. Gabe nos encontra lá embaixo e, quando ergue os olhos do celular
para me olhar, seu sorriso oscila um pouco antes de voltar maior ainda.
— Finalmente, um vestido em que posso te admirar sem me sentir
um merda.
Sorrio para ele e dou uma voltinha, fazendo a saia rodar, e me sinto
gata pra caralho nesse vestido com os olhos dos meus dois Vínculos me
secando. Meu ego precisa disso hoje e, quando Gabe abre a porta do carro
para mim, ele se curva e me dá um beijo no rosto enquanto deslizo para o
banco.
Atlas só espera o suficiente para ter certeza de que estamos todos
com os cintos afivelados, depois sai da garagem para a rua com o motor do
carro roncando alto, já que ele não está nem aí para a vizinhança ou por
manter a paz com a associação de moradores.
É bem provável que North vai subir nas tamancas por causa disso
mais tarde, e tenho certeza de que Atlas está contando com isso.
— Quando vou ver esse tal vestido que usou antes? Você não me
mandou foto. Sou um Vínculo muito ciumento, Doçura.
Reviro os olhos para ele.
— Nunca, não tirei fotos e depois sangrei nele todo. Joguei no lixo
no instante em que voltei para o dormitório.
Gabe faz uma careta, mas sei que não tem nada a ver com a menção
da minha menstruação e tudo a ver com North se recusando a parar o carro
por mim.
É possível que eu tenha reclamado disso por muito, muito tempo.
Sem dúvida ele está revivendo o trauma de quando descrevi cada sensação
e imagem daquela noite.
Gabe pigarreia quando o celular de Atlas vibra no porta-copos.
— North tirou algumas. Posso parar de me sentir culpado de tê-las
no meu celular agora, ou ainda estamos furiosos a respeito?
Atlas arqueia uma sobrancelha e confere a foto, de olho no
semáforo, e quando dou uma bufada, ele me entrega o celular para eu ver.
Não vi North tirar a foto.
Ele deve ter mandado algum funcionário seu fazer isso, mas foi no
restaurante logo que chegamos, minha cabeça está inclinada um pouco para
baixo e parece que estou fazendo pose, tipo uma modelo profissional ou sei
lá o quê, quando na realidade eu estava tentando conferir a barra de forma
discreta. Eu estava certa de que tinha pisado nela e rasgado o vestido, e
naquele momento da noite eu ainda estava me esforçando para ser
cuidadosa. Eu estava ciente do quanto um vestido como aquele custava e
não queria que North me acusasse de ser uma interesseira de novo.
Estou muito bonita na foto.
De alguma forma, ela faz eu parecer mais velha, mais refinada, uma
versão de quem eu poderia ter sido se minha vida não tivesse ido para o
bueiro na adolescência. Pareço a versão de mim de quem o conselheiro de
fato teria gostado.
— Merda. A gente vai ter que apagar essas fotos, né? — Gabe
murmura no banco de trás, e lhe dou uma olhada por cima do ombro. Ele
está me observando com tanta atenção que tento tirar sei lá que expressão
está vendo no meu rosto.
— Não. Não tem problema. É só que não estou acostumada a ter
essa aparência. Eu realmente não sou o tipo de garota que alguém leva em
“jantares do conselho”. Não gosto de conversa fiada e manobras políticas
acompanhados de comida cara pra caralho. Acho que North deu azar.
Atlas zomba e muda de marcha, costurando pelo tráfico como se
fosse a coisa mais simples do mundo.
— North Draven que se foda, ele é um babaca pretensioso e precisa
te dar um tempo, senão nós vamos embora. Estou confiante que a gente
consiga escapar dele por uma ou duas décadas inteiras se nos unirmos para
isso. Sawyer tem algumas boas ideias quanto a isso.
Gabe olha feio para ele, mas dou risada, porque é claro que Atlas
tem trabalhado na surdina para nos tirar daqui. Como se eu tivesse duvidado
disso em algum momento.
Estacionamos e encontramos nossos amigos já esperando por nós,
com copos de café nas mãos que fazem eu querer matar alguém antes de ver
a bandeja na mão de Felix.
Quando acho que não consigo gostar mais desse homem... ele é a
porra de um docinho.
Sage sorri e acena para mim pela janela, e tudo que vejo é o fato de
que ela está segurando a outra mão de Felix e que está em júbilo neste
momento.
Fico aliviada pra caramba de ver que ela parece feliz, para variar,
que a garota triste e solitária com quem fiz amizade lá no início
desapareceu. Saio do carro antes que Gabe consiga abrir minha porta,
ignorando o rosnado dele, e a puxo para um abraço rápido. Felix me
cumprimenta com um sorriso pretensioso e Sawyer revira os olhos para
todos nós, o que eu presumo ser por ele ainda estar chateado com o ano
sabático que Gray está tirando graças aos pais.
— Então o... é... parece que dividir a cama está funcionando? —
Sage murmura no meu ouvido, tentando não ser ouvida por nenhum dos
rapazes barulhentos que nos cercam, porque nenhum deles faz a menor
ideia de como ser discreto.
Faço que sim e entrelaço nossos braços conforme andamos,
deixando os rapazes em questão entrarem em sua posição ao nosso redor
como uma pequena bolha de proteção.
— Estou me sentindo um ser humano de novo, graças a Deus. Não
dá pra acreditar no quanto meu vínculo está sendo uma vagabundinha. O
seu também é assim? Ou isso é um lance de Central pelo qual preciso brigar
com o universo?
Ela ri do meu drama, aceitando o beijo de Felix em sua bochecha
com um leve rubor enquanto ele sai em direção às suas próprias aulas. Ele
está em todas as disciplinas introdutórias de Medicina dos Favorecidos e
não sinto inveja dele, nem um pouquinho.
Já vi a lista de trabalhos dele.
Credo, os meus já são bem ruins.
— O meu não é tão... insistente, mas também reclama bastante.
Menos, agora que estou passando tempo com Felix. Acho que ele enfim
entendeu que uma vida com Riley está fora de cogitação e está me dando
um tempo.
Arg.
Não quero pensar naquele cuzão agora, então mudo de assunto.
— E seus pais vão te banir dos jogos de futebol agora? Eu estava
super esperando você estar em prisão domiciliar. Estava pronta para juntar
forças com Felix pra te resgatar.
Ela dá uma risada quando chegamos na sala de aula e dá uma olhada
ao redor, ainda cautelosa, assim como estamos todos agora que o mundo
provou que é tão perigoso quanto pode ser, com a Resistência solta por aí.
— Como você sabe, meu pai está um pouquinho perdido de amores
por você. Tem brigado muito com Maria por sua causa, ela ainda está
irritadinha por causa de North e... aquilo tudo. Ele sabe que nós sermos
amigas está me mantendo mais segura do que eu estaria sozinha, então
começou a manifestar a opinião dele de forma mais aberta. Mamãe está
tentando impedi-lo de se vingar de Riley. Ele também está mais irritado
com aquela situação. A vida está ficando mais complicada.
Nunca concordei tanto com algo na minha vida, porque, aham, está
tudo complicado pra caralho aqui e não acho que vá melhorar tão cedo.
*
Depois que minhas aulas acabam, vou para o café grata por ter mais
um turno vespertino mais curto.
Visto meu uniforme nos fundos antes de assumir meu papel com
naturalidade. Gloria comenta que meu humor está ótimo e Kitty revira os
olhos para mim quando sou um pouco gentil demais com todos que entram,
mas estou tão aliviada por enfim estar me sentindo normal de novo que só
ignoro.
Gabe e Atlas entram uma hora antes de fechar, pedem cafés e depois
fazem seus trabalhos juntos em uma das mesas. Eles estão rindo e
conversando, sendo legais um com o outro de verdade, e isso faz meu
vínculo zumbir com contentamento.
Agora sei que vou vibrar de felicidade por aí se algum dia conseguir
fazer todos os cinco viverem em harmonia e me tolerarem.
Depois que fechamos e já limpei tudo, troco de roupa de novo e dou
tchau para Gloria e Kitty nas portas dos fundos, em seguida dou a volta até
a frente para me encontrar com Atlas e Gabe. O Hellcat está estacionado na
ponta, com multas de estacionamento enfiadas no limpador de para-brisa,
mas sei que Atlas não dá a mínima para esse tipo de coisa.
Ele está conversando baixinho com Gabe, que está, para minha
surpresa, apoiado em sua moto e com a jaqueta de couro jogada sobre os
ombros. Ele não pilota desde que Atlas chegou, prefere que a gente ande no
mesmo veículo, e suspiro decepcionada. Ele deve estar indo visitar a mãe
de novo, ou talvez fazer algo para North. De qualquer forma, não vou
passar a noite com ele.
Meu vínculo grunhe de desgosto, mas o controlo mais uma vez,
forçando-o à submissão porque, para mim, já deu de chilique.
Gabe vira o rosto ao ouvir meus passos e me oferece o capacete
extra.
— Vai ficar comigo hoje. Vou te levar para sair.
Ah.
Pego o capacete e lhe dou um olhar questionador, mas ele só me dá
um sorrisinho, entrelaça os dedos com os meus e olha para Atlas de um
jeito muito ameaçador. A essa altura, eu já devia estar acostumada, eles
passam metade do tempo que ficam juntos atirando pequenos insultos e
tiradas um para o outro. Mas se uniram tão bem durante meu colapso, que
achei talvez tivéssemos superado essa fase.
Parece que não.
— Vai me levar a um encontro? Graças a Deus usei o vestido.
Ele ri e encolhe os ombros.
— Acho que podemos chamar de encontro, mas calça jeans teria
sido uma escolha mais segura. Mas tudo bem, a gente dá um jeito. Além
disso, sem dúvidas vai me ajudar a vencer.
Vencer?
Eu o acompanho até a moto e olho de novo para meu vestido,
consternada. Bem, na verdade, dá para fazer isso se eu erguer a saia um
pouquinho. É comprida o suficiente para me cobrir se eu ficar pertinho de
Gabe e acho que não vou mostrar a bunda para ninguém.
Atlas balança a cabeça para Gabe e ralha:
— Deixe-a ir para casa comigo se trocar.
Dou risada dos dois e seguro o braço de Atlas.
— Eu consigo, será que dá pra você só... só ficar parado aí e me
cobrir quando eu subir? Não quero que ninguém veja minha calcinha.
Gabe geme baixinho e monta na moto, enfiando o capacete na
cabeça para não ter que lidar com meu atrevimento, então Atlas oferece o
braço para me ajudar a subir atrás dele. É estranho e um pouquinho
constrangedor, pois ele nem tenta desviar o olhar, seus olhos queimam
minha pele como se ele estivesse me provocando.
Exibo um monte de pele até me acomodar com o corpo colado em
Gabe por trás. Quando coloco meu próprio capacete, Gabe dá a partida e
acena para Atlas o tchauzinho mais sarcástico da história.
Esse é o clássico Gabe convencido, que bom tê-lo de volta.
O vento está frio em minhas pernas e me aconchego mais juntinho
de Gabe. Quando paramos no semáforo, ele esfrega minhas panturrilhas
com as mãos, segurando a moto em pé apenas com as pernas, e fico todinha
arrepiada por ter sua pele deslizando na minha. Estremeço e quase imploro
por mais ali mesmo, no meio da rua com todos os carros ao nosso redor.
Meu Jesus.
Saímos do meu perímetro e meu cérebro se recorda do que Gryphon
disse hoje de manhã. Gabe conseguiu permissão com North para me
mostrar seu dom, então seja lá aonde estamos indo, ele vai mudar de forma.
Não sei bem o que mais posso ver do seu lobo, já dei uma boa
olhada nele quando a Resistência invadiu o campus, mas a ideia de termos
uma noite tranquila juntos soa perfeita pra caramba.
Vamos até os limites da cidade e entramos no pequeno bosque, com
árvores alinhadas de cada lado da estrada. Tem menos carros vindo nessa
direção e, enquanto seguimos na estrada, assistimos o sol se pôr. Quando
Gabe sai da rodovia e entra em uma pequena estrada lateral, não estou
esperando grande coisa.
Mas quando chegamos a um pequeno distrito industrial, fico
chocada com a quantidade de carros aqui. Eu estava esperando algo mais
tranquilo e isolado, e quando Gabe para bem no limite mais distante do
estacionamento e desliga o motor, desço da moto devagar.
Tiro meu capacete, então observo Gabe passar uma perna por cima
da moto em um único movimento suave e tirar a jaqueta para colocá-la em
mim. É grande demais no meu corpo, mas é quentinha e tem o cheirinho
dele, então me aconchego dentro dela e gosto do riso rouco que ele solta ao
olhar para mim.
Ele estende a mão em um gesto inseguro para pegar a minha,
entrelaçando nossos dedos, e solta o ar aos poucos pela boca.
— Eu deveria ter perguntado mais cedo... como seu vínculo está
hoje? Porque isso que vamos fazer é seguro, mas se não estiver se sentindo
disposta, podemos voltar da próxima vez.
Franzo o cenho, ainda sem entender o que diabos está acontecendo
aqui, mas dou de ombros.
— Estou bem. Entre a noite passada e todo o bullying que venho
fazendo com meu vínculo, estou sob controle.
Seus olhos deslizam para meu peito, como se ele pudesse ver meu
vínculo dentro da minúscula caixinha metafórica em que o enfiei, e faz uma
careta.
— Sinto muito que esteja assim. Achei que fosse difícil para todos
nós, mas, pelo menos, o meu vínculo não é homicida.
Chego a roncar pelo nariz ao debochar dele, sou uma dama tão
refinada, mas não consigo evitar cutucá-lo.
— Como exatamente é difícil para vocês? Vocês estão todos indo
muito bem, obrigada.
Seus olhos fervem enquanto aquele mesmo olhar felino retorna, e
quando se inclina para mim, sua voz parece um ronronado:
— Bom, neste momento, tudo em que consigo pensar é em rasgar
esse vestido todo, te empurrar contra essa parede com tanta força que você
mal consiga respirar e depois assistir você se contorcer no meu pau.
Enquanto você estava trabalhando, eu queria te jogar em cima do balcão e
te chupar toda, só pra todo mundo lá saber que você é minha. Passo o tempo
todo discutindo com Atlas porque meu vínculo quer te provar que sou
melhor para você do que ele. Não é tão ruim com os outros porque cresci
com eles, mas com Atlas? Porra, meu vínculo quer rasgar a garganta dele só
pra vê-lo sangrar aos seus pés e se certificar de que você goste mais de
mim.
Eita.
O quê?!
Balbucio por um instante, as palavras me escapam e não voltam até
ele estar me conduzindo para dentro do prédio.
— Desde quando? Desde quando você pensa sacanagem comigo?
Porra, não fala assim mais, agora o meu vínculo está pensando a mesma
coisa!
Ele nem responde, só me dá um sorrisinho sem vergonha e me
conduz pela construção que, para minha surpresa, está bem movimentada.
O armazém com certeza é abandonado, tem maquinários sujos e
velhos largados por todos os lados, mas deve ter umas cem pessoas
espremidas aqui dentro. Há um enorme círculo improvisado pintado no
chão, o amarelo se destacando no concreto, e Gabe aperta minha mão de um
modo gentil ao me levar ao redor dele. Quando chegamos do outro lado,
dois caras entram no círculo vestindo apenas shorts.
A multidão está gritando insultos e zombarias para eles, e os todos
os sons ecoam pelo espaço fechado até o barulho ser ensurdecedor.
Aperto os dedos de Gabe para chamar sua atenção e ele desliza a
mão livre pelo meu braço em um gesto tranquilizador. Mas seus olhos
continuam fixos no ringue e nós assistimos os caras começarem a lutar.
Começa como qualquer uma de nossas sessões de TT. Corpo a
corpo, nada de especial, mas basta um único gancho de esquerda no rosto
para os primeiros sinais de que eles não são caras normais começarem a
aparecer.
São Favorecidos e ambos são metamorfos.
Fico um pouco tensa quando os dois rosnam, sons confusos que
parecem de dor, a princípio humanos, mas que terminam naquele tipo
selvagem produzido por lobos caçando sua presa conforme se transformam.
Pelo brota através das peles e ouço seus ossos quebrando à medida
em que mudam de forma, seus olhos brilham e, de repente, a transformação
está completa.
É incrível de se ver mesmo já tendo assistido Gabe se transformar e,
quando eles disparam um sobre o outro, rosnando e batendo suas
mandíbulas cheias de dentes afiados, preciso controlar minha respiração em
uma tentativa de impedir o meu vínculo de entrar em ação. É tudo tão
violento e brutal, muito pior do que qualquer coisa que já assisti antes, e
quase suspiro aliviada quando uma sirene ecoa pelo espaço sinalizando que
a luta acabou.
Os caras se transformam de volta, completamente pelados nessa
droga, cobertos de ferimentos e sangue.
Estou pronta para dar meia-volta e sair de fininho pela porta, já vi o
suficiente por uma noite, mas então Gabe abre um sorriso para o cara dentro
do ringue e acena com a cabeça em desafio.
Eu devia ter imaginado.
É bizarro, mas meu vínculo não está surtando ao imaginar Gabe lá.
Não, ele fica excitado. Percebo que não confiava que esses caras fossem
manter a luta dentro do ringue e me deixar de fora dela, mas o meu
Vínculo? Sei que ele vai limpar a porcaria do chão com quem for imbecil o
suficiente de entrar ali com ele. Não tenho a menor dúvida, ele é meu, então
vai ser magnífico pra caralho no ringue.
Tento tirar o sorrisinho do meu rosto, mas tenho certeza de que falho
porque todos os caras ao nosso redor ficam incomodados e, com toda
certeza, eles me reconheceram. Sei muito bem que todos na comunidade de
Favorecidos sabem quem sou e conhecem o mistério sobre o que sou capaz
de fazer.
Assisto Gabe se despir, entregando suas peças de roupa para mim
até estar pelado. Faço questão de não olhar para baixo, meu vínculo já tem
muita imaginação sem ajuda, e assim que pisa dentro do ringue, ele muda
de forma.
No mesmo instante, sei qual é a diferença do poder dele para o do
restante desses caras, e não é o fato de ele ser maior. Ele é, mas não é isso.
Ah não.
Quando a Resistência apareceu, ele se transformou em um lobo
cinzento. Um belo, enorme e cruel lobo.
O animal para o qual estou olhando agora é um elegante leopardo
preto.
13
Preciso te pedir um favor e fazer isso é muito difícil pra mim, então,
por favor, não seja um babaca a respeito.
Nossa. Acho que lavar a roupa suja com ele hoje de manhã fez
maravilhas por nós dois e nos ajudou a descobrir o que estamos fazendo
aqui.
Por favor, você pode conversar com Nox sobre eu dormir na cama
dele amanhã à noite e se certificar de que ele está mesmo de acordo com
isso? Não quero que ele faça picadinho de mim quando eu chegar lá.
*
Quando meu turno acaba, Atlas não me leva direto de volta à
mansão. Em vez disso, ele me leva para comprar tacos em um food truck do
qual Gabe está falando há semanas. Eu não sabia que Atlas estava prestando
tanta atenção assim em mim para ver o quanto eu queria experimentar.
Tacos de peixe estão entre minhas dez comidas preferidas, então quando
chegamos lá, dou um sorriso tão grande para ele que sinto que meus dentes
vão escapar da minha cara.
— É tão fácil agradar você, Vínculo. Sapatos, comida e blusas que
usei... os outros são idiotas pra caralho se não estão conseguindo acertar.
Reviro meus olhos.
— Acho que é um pouquinho mais difícil que isso, mas você
escolheu bons lugares pra começar.
Ele faz uma cara feia quando coloco a mão na maçaneta da porta,
então dá a volta correndo no carro para abrir para mim e me ajudar a descer.
Em geral, Gabe está no banco traseiro e faz isso por mim, então eu não
sabia que Atlas tinha esse jeito antiquado para essas coisas também. Mas é
uma graça. Quando fazemos nossos pedidos, tento pagar nossa comida. Eu
ainda não consegui devolver por todos os cafés que ele comprou para mim,
mas ele reage como se eu estivesse tentando causar um ferimento mortal
nele.
— Você disse que pagaria até eu poder. Bem, estou trabalhando
agora. Posso pagar pelo nosso jantar — digo, gesticulando com a mão para
ele, mas ele me dá um olhar mortífero de brincadeira.
— Só por cima da porra do meu cadáver que meu Vínculo vai pagar
a conta do jantar. Como você acha que me criaram? Guarda isso aí antes
que me mate de vergonha.
Ele diz isso em tom de brincadeira, mas há uma seriedade em seus
olhos que faz qualquer um dar ouvidos. Observo quando ele tira o próprio
cartão de crédito da carteira e paga, sorrindo para a garota que está
recebendo nosso pedido de um jeito muito educado, mas frio.
Ele sempre toma o cuidado de ser simpático, mas muito indisponível
com as pessoas no campus, e quando os olhos da garota descem pelo corpo
dele e se fixam na altura em que os dedos dele estão entrelaçados com os
meus, ele me segura mais perto de seu corpo para que não haja dúvidas de
que ele está comprometido.
Meu vínculo gosta bastante disso.
Esperamos juntos na brisa noturna, abraçados um no outro enquanto
assistimos os outros clientes irem e virem. Todos os alunos que
encontramos nos olham de esguelha e sussurram sobre nós, mas estou
contente demais nos braços do meu Vínculo para me incomodar com isso.
Depois que pegamos nossa comida, Atlas me leva de volta ao carro,
mas em vez de entrarmos, ele me surpreende ao me erguer com toda
gentileza para comermos sentados juntos no capô.
Arrasto-me para trás com cuidado para não riscar a pintura ou
amassar. Mas Atlas nem parece ligar quanto a isso e apenas sobe depois de
mim, ele me entrega minha bebida e coloca a comida entre nós. É um jeito
perfeito de estarmos juntos sozinhos, sem o peso esmagador da mansão
Draven em nossos ombros.
Mando ver nos tacos e posso confirmar que são os melhores que já
comi. Gemo um pouquinho de boca cheia e Atlas sorri enquanto muda de
posição e se ajeita de um jeito tão óbvio que eu rio da cara dele.
— Sacana! E depois de tudo que fiz por você, Doçura — diz
devagar, semicerrando os olhos, e eu o saúdo com minha comida.
— Eu disse, vai precisar de um pouquinho mais do que jantar e
cineminha se quiser me impressionar, meu bem. — Jogo o apelido de
brincadeira no final, mas os olhos dele queimam e acho que vou chamá-lo
assim mais vezes no futuro.
Porra.
Não posso esquecer da realidade aqui.
Engulo a comida e desvio o olhar, observando a noite agitada ao
redor. Não tem ninguém perto da gente, ninguém que possa ouvir nossa
conversa, mas muitas coisas acontecem no início da noite nesta pacata
cidadezinha universitária.
Os food trucks são populares e todos têm filas com dezenas de
pessoas. Alguns estudantes estão bebendo com todo descaramento do
mundo no estacionamento, rindo e fazendo piada em voz alta, e é como se
estivéssemos dentro de nossa própria bolha por um minuto.
— Você não precisa se preocupar, Doçura. Não estou te levando
para jantar esperando algo em troca. Só queria passar a noite toda sem ter
que dividir você com ninguém — Atlas murmura, inclinando-se para trás e
se apoiando nos cotovelos enquanto me observa com atenção.
Não entendo como ele pode ser tão... perfeito para mim. Ele nunca
me pediu nada. Nem para completarmos o Vínculo ou ficarmos, nadinha.
Ele é quase bom demais para ser verdade.
Meu cérebro começa a imaginar o pior, porque, de repente, preciso
forçar a barra com ele, testá-lo, descobrir o que está rolando com ele de
verdade, porque caso ele se volte contra mim mais tarde, vou desmoronar.
— O que seus pais acham de você ter mudado pra cá? O que acham
de você ter um monstro como Vínculo?
O olhar apaixonado desaparece de seu rosto, mas ele não parece
irritado com a minha pergunta, só não deve ser seu assunto favorito.
— Nenhum deles ficou feliz com a mudança. Mas já nasci com
fundo fiduciário e não tinha muito que eles pudessem fazer a respeito. E
quer saber? Chega dessa baboseira de monstro, Oli. Conheço você. Sei
muito bem quem você é e sei reconhecer um monstro quando vejo um. Você
não é um.
Pego o segundo taco na bandeja, comido pela metade e ainda
parecendo delicioso, embora meu apetite esteja começando a passar porque
decidi bisbilhotar.
— Mas como? Como você saberia tudo sobre mim se só sabe a
respeito de um dos meus dons? Atlas, é que... o dom que você conhece é o
meu secundário. Não é nem o maior.
Ele concorda devagar com a cabeça e coça a nuca.
— Não quero mentir para você, Oli. Não sabemos muita coisa um
sobre o outro, tem muita coisa que você está escolhendo não me contar, e
muita coisa que também não estou te dizendo. Somos duas pessoas
cautelosas que estão tentando manter o outro em suas vidas embora
tenhamos muita bagagem.
Bom, da minha parte é verdade. Sei disso, e embora eu saiba que ele
tenha tido uma vida toda antes de me conhecer, meu vínculo coça ao ouvi-
lo dizer que ele também tem segredos.
Quer dizer... Dãã, Oli. É claro que ele tem, assim como todos os
meus Vínculos. Mesmo assim, não sei o que é, mas ouvi-lo dizer isso me
incomoda muito.
Ele olha para mim de novo e coloca sua bandeja vazia de lado no
capô do carro.
— Seus olhos, o vácuo, é isso que está deixando o North em dúvida.
Ele acha que seu poder é Neuro, mas o vácuo diz que não é isso.
Porra. Me forço a sussurrar.
— Não é Neuro.
Ele concorda.
— Não, não é. Sei que não é. Sei exatamente o que é, Oli, e ainda
estou aqui. Sei muito bem o que seu dom faz com as pessoas, e não estou
correndo de medo. Você continua sendo o mesmo Vínculo com o qual tenho
sonhado acordado desde que eu era um moleque, a garota linda por quem
eu daria minha vida... só que sou indestrutível, então não preciso me
preocupar com isso. Tá vendo? Fomos feitos um para o outro.
Sem dúvida deveríamos estar falando sobre isso, e não só fazendo
alusões, pois, como ele sabe disso?
— Você já... viu olhos como os meus antes? Um dom como o meu?
Ele pigarreia.
— Não existe ninguém vivo hoje com seu dom além de você.
Porém, sei a respeito de pessoas que tinham dons mais fracos parecidos
com o seu. Você quebrou o molde em que foi feita, Doçura.
Droga.
Certo, de qualquer forma é provável que ele entendeu tudo errado.
Ele deve achar que já me decifrou, mas está bem longe da verdade.
— A pergunta que eu quero mesmo te fazer, Oli, é por que não
destruiu Nox quando ele tocou em você? Por que não matar ele de uma vez
por ter se atrevido a tocar em você?
Porra.
Será que ele sabe? Não é possível. Destruiu... ele só pode estar
falando sobre o destruidor de almas, derretedor de cérebros que posso
causar. Com certeza não é... sobre mais nada.
Quero fugir dele. Quero sair correndo pelas ruas quando suor frio
escorre pelas minhas costas. Ele está me observando com atenção, com os
braços tensos como se estivesse se preparando para correr atrás de mim.
— Ele é meu. Sei que é idiotice. Sei que ele passou dos limites, mas
ele é meu. Eu o protegeria assim como protegeria você. Não significa que
eu o perdoe ou queira ele por perto... só não quero ter culpa da morte dele.
Ele concorda com a cabeça e começa a recolher o lixo do nosso
jantar, como se não tivesse acabado de me dizer que sabe o que posso fazer
e tirado meu mundo todo do eixo ao mesmo tempo que tento decifrar se ele
está sendo sincero ou não.
Não tem como ele saber.
Certo?
Atlas sorri para mim enquanto desce do capô para jogar o lixo fora.
— O espiãozinho de Draven ainda está pendurado no seu cabelo.
Não vou falar mais nada perto dele.
Ah.
Ah, merda, esqueci que Brutus estava aqui. Jesus, e se eu tivesse
soltado alguma coisa e acabasse no radar dos Draven por causa do quanto
meu dom é de fato ruim?
Sinto vontade de gritar.
Atlas me ajuda a descer e depois me puxa em seus braços,
descansando a bochecha no alto da minha cabeça.
— Para com isso, Doçura. Não me importo que isso leve o resto da
minha vida, vou provar que você é tudo para mim, independente de dom.
Eu mataria por você sem pensar duas vezes, e sei que você se sente assim
também. Vou provar isso para você, leve o tempo que levar.
Quero tanto acreditar nele.
Ele me leva de volta para dentro do carro, então voltamos juntos
para a mansão. Todos os carros que meus Vínculos costumam usar estão
ausentes da garagem e ergo uma sobrancelha enquanto Atlas me ajuda a sair
depois de estacionar.
— Eles chegaram a dizer se iam fazer alguma coisa? Aonde todos
iriam ao mesmo tempo sem convidar a gente?
Ele dá uma gargalhada, balançando as sobrancelhas para mim.
— Quem se importa? A casa é toda nossa! A gente deveria ferrar
com as coisas deles. Qual a pior coisa que poderíamos deixar na cama de
North? Vamos lá, Doçura. Qual a sua pior ideia?
Dou risada, estou gostando desse humor brincalhão dele, e deixo
que me conduza pela casa. Ele tem um excelente senso de direção e fico um
pouquinho irritada por ele ter decifrado esse labirinto tão rápido.
Nasci com fundo fiduciário.
Dou um grunhido para ele.
— Minha ficha acabou de cair. Você cresceu numa casa dessas, né?
Cacete, você cresceu em uma mega mansão também.
Ele pendura o braço em cima dos meus ombros e me puxa contra
seu corpo, aproximando seus lábios para sussurrar:
— É maior ainda que essa. Tem aposentos para os empregados e
escadarias de serviço. Meus pais são podres de ricos. Os Bassinger são os
Draven da Costa Leste.
Balanço a cabeça para ele com um sorriso irônico.
— Como fui ter tanta sorte de acabar com todos esses Vínculos
ricos e arrogantes, hein? Que benção.
Ele ri do sarcasmo nas minhas palavras, mas não estou brincando.
Meus pais eram bem de vida, e sei que tem uma herança esperando por mim
em algum lugar, mas os anos que passei em fuga me ensinaram a apreciar
de verdade o trabalho duro e cuidar das minhas próprias coisas. A mera
ideia de viver às custas do dinheiro dos outros, do trabalho duro deles, isso
me dá agonia.
E aí me recordo do aviso de North sobre eu ser uma interesseira e
fico irritada com aquilo mais uma vez.
Pigarreio e mudo de assunto antes que meu vínculo acorde pronto
pra tretar.
— Então, onde foi que North te colocou? Se está ficando no porão,
podemos dormir no meu quarto hoje.
Ele resmunga baixinho, então me leva pelo segundo andar. Quando
ele para, reconheço o corredor e dou risada.
— Ele te colocou ao lado de Gabe? E como é que isso tá sendo?
Ele me dá um olhar de aviso enquanto destranca e abre a porta,
acendendo as luzes logo depois.
É um quarto vazio.
Certo, isso foi um pouquinho dramático, mas no meu quarto tem
tanto da personalidade dele quanto tem da minha. Este tem a mesma
disposição e paleta de cores do quarto de Gabe, mas a única coisa de Atlas
aqui são suas malas, que estão abertas, mas ainda perfeitamente
organizadas, e seu notebook em cima da cama.
— A única coisa que faço aqui é dormir, na verdade. Se vamos ficar
por aqui, acho que vou me livrar do meu apartamento e mudar direito para
cá, mas estou esperando até você ter certeza.
Concordo com a cabeça e dou a volta nele para me jogar na cama,
afundando-me no colchão luxuoso. É igual a todos os colchões da mansão e
acho que meu gosto ficou caro de repente, porque me recuso a dormir em
qualquer coisa inferior a isso outra vez.
— Tem... certeza? Ou estamos ludibriando todos a terem uma falsa
sensação de segurança aqui? Me dá um sinal, Doçura — diz, enquanto
descalça os sapatos e se deita ao meu lado.
Meu vínculo está feliz com os eventos desta noite e por tê-lo tão
perto. Ele nem tenta tomar o controle quando me aconchego ao lado de
Atlas e enterro o rosto em seu peito.
— Eu preciso mesmo descobrir como tirar o chip. Quando isso for
resolvido... vou ter que ir embora.
Ele faz que sim e me traz ainda mais perto.
— Nós. Nós teremos que ir embora. Você não vai se livrar de mim,
Doçura. Nunca mais.
15
Gryphon não pega leve comigo só porque Atlas está aqui. Ah não,
ele deixa nós dois atropelados no chão. Atlas pode até ter entrado na
enorme academia supercompleta e ridiculamente cara que North tem no
porão da casa com uma atitude presunçosa, mas Gryphon acaba com a
gente.
— Prefiro morrer a vir aqui todas as manhãs. Não é à toa que
Ardern estava sendo um merdinha convencido quando saí — Atlas
resmunga, jogado no tatame ao meu lado, mas estou sem condições de
conversar agora.
— Sem... falar... droga, difícil respirar — digo ofegante e Gryphon
zomba de mim, segurando minha mão e me puxando para me sentar, e me
entrega uma garrafa de água.
Mal sabe ele que meus dedos não estão mais funcionando, não tenho
capacidade de erguer a garrafa até meus lábios sem tomar um banho. Atlas
geme e se força a se sentar ao meu lado, tira a garrafa de minhas mãos, abre
e tenta devolvê-la para mim.
Não tenho intenção de passar mais vergonha na frente deles hoje,
então só recuso com a cabeça.
— Acho melhor você exercitar sua resistência, Bassinger. Odiaria
ser a única decepção neste Vínculo — Gryphon debocha com um
sorrisinho, embora seja obrigado a se abaixar para evitar a garrafa que Atlas
joga na sua cara.
— Sem insinuações. Isso é sacanagem e não tenho energia pra lidar
com meu vínculo — resmungo, e quando ergo a barra da camiseta para
secar meu rosto, os dois param tudo para olhar toda a pele que estou
exibindo.
Nenhum deles tenta esconder as reações que desperto, e isso
definitivamente me dá uma injeção de ego, porque não duvido nem um
pouquinho da resistência de Atlas. Ele foi rapidinho de morto-vivo à
recarregado e pronto para o segundo round no tatame, só que dessa vez com
menos roupas e...
— Oli, sossega o facho. Você está brilhando — Gryphon diz e eu
volto a me jogar no tatame.
— Vocês que começaram! Droga, preciso de um banho frio.
Atlas bufa e me segura para me colocar em pé.
— Nem me fale em banho frio. Vamos, temos que ir para a aula.
Diga tchauzinho para Shore e avise que nunca mais vamos voltar aqui
porque ele é um sádico.
Não tenho tempo de me sentir constrangida quando Atlas me dá um
empurrãozinho na direção de Gryphon. Sou abertamente carinhosa com
Gabe e acho que ele está presumindo o mesmo quanto a Gryphon, mas...
não faço ideia de como fazer isso. Não faço ideia de como relaxar perto
dele, embora a gente tenha negociado um certo tipo de trégua.
Gryphon ergue as sobrancelhas para mim e eu coro um pouquinho,
mas Atlas sai andando em direção à porta, o que ajuda. Sem ele de olho em
mim, acho que consigo fingir que está tudo bem, agir como se não estivesse
apavorada.
Ainda estou esperando que ele me rejeite de alguma forma.
Gryphon percebe isso, segura meu braço e me puxa contra seu
corpo, murmurando baixinho:
— Falei com Nox. É só você ir ao quarto dele quando estiver pronta
para dormir hoje à noite, depois das 22h, e vou te buscar de manhã. Vai ser
tranquilo, prometo.
Solto um suspiro e concordo com a cabeça, o alívio inunda minhas
veias quando um peso que eu não sabia que estava carregando sai dos meus
ombros. Antes que eu tenha a chance de sentir vergonha ou
constrangimento, ele solta meu cotovelo, segura meu rosto e me puxa para
um beijo.
Ele é bom nisso de um jeito pecaminoso.
Em geral, tento me ater a beijinhos no rosto, e o motivo é
exatamente este, porque meu vínculo pega fogo dentro do meu peito,
tentando com todo desespero destruir as restrições que coloquei sobre ele.
O vínculo de Gryphon toca minha pele, fazendo um carinho em meus
ombros e descendo pelo meu corpo, embora pare de modo respeitoso em
minha cintura.
Se descesse mais, acho que eu me deitaria de pernas abertas aqui
mesmo no tatame e imploraria para ele se Vincular a mim.
Ele se afasta dos meus lábios e murmura:
— Se continuar pensando assim, eu faço mesmo, Vínculo.
Minhas bochechas queimam e dou um empurrão nele para me
afastar.
— Fica de fora da droga da minha cabeça, Shore! Isso também é
sacanagem, você está por um fio aqui.
Ele ri e me dá as costas para começar a arrumar a bagunça que
fizemos aqui.
— Não deu para evitar, você estava quase gritando. Meu dom só
esbarrou no que você estava jogando nele.
Puta merda, Jesus.
Fujo dele e esbarro com tudo em Atlas, então seguro a mão dele
para arrastá-lo daqui comigo.
Inferno de Vínculos idiotas com suas línguas perversas.
*
Gabe estava louco para comer pizza, então depois que meu turno no café
acaba, entramos no carro de Atlas e vamos comprar na pequena pizzaria
local, que fica a duas ruas de distância do campus da Draven.
Já tem uma pequena multidão de alunos lá. Gabe está agitado por
causa dos cinco cafés que tomou enquanto eu trabalhava, então está quase
pulando nas paredes conforme cumprimenta e conversa com as pessoas.
Todos estão sendo mais simpáticos do que têm sido há um tempinho e meu
estômago revira de ódio quando percebo o porquê.
Eles querem informações e possíveis pistas sobre a morte de
William.
São todos cordeirinhos assustados quando se trata da Resistência e,
em vez de tomarem uma atitude, por exemplo, fazer umas aulas de defesa
pessoal ou exercitar seus próprios poderes para dominá-los, escolhem puxar
o saco dos meus Vínculos em troca de proteção.
Os mesmos homens que têm chamado de monstros há anos.
Estou com uma vontade extra de arrancar sangue deles, então
quando Gabe gesticula para eu me aproximar e conhecer alguém, coloco
uma expressão entediada e desagradável no rosto para encarar a pessoa.
Gabe pode estar disposto a brincar de menino de ouro do campus, mas eu só
farei isso por cima da droga do meu cadáver.
Atlas ri baixinho ao ver minha cara, mas vem comigo para ser
apresentado ao cara parado com meu Vínculo.
Gabe arqueia uma sobrancelha, mas o sorriso não deixa seu rosto ao
dizer:
— Oli, esse é o colega de quarto de Gray, Shay.
Isso diminui minha raiva, só um pouquinho.
— Gray já voltou pra faculdade? Merda, desculpa, prazer em te
conhecer.
Shay sorri para mim, simpático apesar da minha atitude de merda, e
encolhe os ombros.
— Sawyer está fazendo o melhor que pode para contornar os pais de
Gray, mas eles são cautelosos até demais. Ele é Telecinético, deviam confiar
um pouco mais nele.
Nossa.
— Olha só, o gatinho do hockey mandou bem, é um bom dom.
Talvez a gente devesse ir lá fazer uma visita para os pais dele, inspirar um
pouco de confiança de que a gente tem tudo sob controle.
Atlas me faz virar para me dar uma olhada feia por causa do apelido
que dei a Grey e eu sorrio para ele, nem um pouquinho arrependida. Minhas
travessuras fazem Gabe revirar os olhos, porque já me ouviu chamá-lo
assim um milhão de vezes, mas também acho que é porque ele sabe que é
só meu jeito de apoiar meus amigos.
Gray é gostoso, mas nem se compara a nenhum dos meus
Vínculos... mesmo aqueles que ainda tenho as minhas dúvidas. Este é o
poder do vínculo, eles são os únicos em quem consigo pensar ou desejar.
Acho uma grosseria do caralho que eu tenha que me sentir assim por ser a
Central, mas que Nox consiga trazer uma garota diferente para jantar a cada
semana sem hesitação.
Eca.
Não posso pensar nisso agora, porque vou dormir na cama dele hoje
à noite e não posso ir até lá furiosa com ele por se atrever tocar em outras
mulheres quando sei muito bem que ele me despreza. Droga. A sensação é
que fico limpando a bagunça que é meu grupo de Vínculos, só para virar de
costas e encontrar o dobro de sujeira atrás de mim.
— Os pais dele não estão no conselho, mas a família está. Eles
sabem tudo o que aconteceu com William Draven, não tem porra de chance
alguma de deixarem Gray sair da torre dele tão cedo, nem mesmo com o
apoio de vocês. Caramba, me contaram o que você fez com aquele
acampamento da Resistência ontem à noite, Gabe. Tenho certeza de que
metade do país já deve ter ouvido. Você é uma fera.
Hã?
É o quê?
Olho para Gabe, mas ele está mantendo um rosto inexpressivo de
propósito e isso faz eu me sentir um pouquinho violenta. Não gosto de ser a
última a saber de tudo, e agora que estamos dando um jeito de ter essa
espécie de relacionamento, sinto vontade de arrancar sangue de Shay por
saber algo que eu não sei.
Atlas segura minha mão e me leva para longe dos dois, em direção
ao balcão para pegarmos nossas pizzas que ficaram prontas. Ele nem olha
para trás para ver se Gabe está nos seguindo ao me conduzir de volta ao
carro e me instalar no banco do passageiro, sem dizer nada e sem me julgar
por essa mágoa furiosa borbulhando no meu peito.
Gabe entra no banco de trás um minuto depois, rindo baixinho
enquanto acena outra vez para alguém lá fora, alheio à tempestade se
formando na minha barriga no banco da frente.
Há um minuto de silêncio em que só minha respiração controlada
pode ser ouvida dentro do carro silencioso. Pelo espelho retrovisor, vejo
Gabe franzindo o cenho para Atlas quando ele não dá partida de imediato e
vai para a pista.
Em vez disso, Atlas afasta as mechas do meu rosto, roçando minha
bochecha com seus dedos gentis, mas nada dessa gentileza está presente
quando ele repreende Gabe.
— Por acaso você se esqueceu que Oli é volátil a um nível violento?
Não deveria esconder dela merdas que já viraram assunto de fofoca desse
lugar.
Gabe olha para mim e suspira, passando uma mão pelo cabelo e
puxando as pontas de leve.
— Eu não sabia como jogar de modo casual na conversa que eu
matei dezoito pessoas na noite passada. Como que eu digo isso sem
parecer...
— Sem parecer que você fez o que era preciso para mantê-la a
salvo? — Atlas interrompe. — É só dizer. Oli não vai quebrar, você sabe do
que ela é capaz.
Mas será que sabe mesmo? Bom, acho que sabe. Já contei tanto para
ele, que deve saber.
— Já matei gente também, Gabe. Você fazer isso não vai mudar
minha opinião sobre você.
— Sim, mas você não estraçalhou dezoito homens com as próprias...
bom, certo, patas, acho. Você sabe o que quero dizer, matei essas pessoas
corpo a corpo, de perto, e isso é bem violento.
Dou de ombros, essa distinção não me perturba, e coloco o cinto de
segurança quando Atlas, por fim, coloca o carro em movimento. Nenhum
de nós fala até Atlas parar no sinal vermelho na última esquina antes de
chegar ao condomínio fechado no qual a mansão Draven fica.
— North e Nox foram à caça depois que encontraram William.
Gryphon e eu descobrimos depois que eles já estavam até o pescoço no
acampamento da Resistência, tarde demais para parar, então tivemos que
esperar até passar a fúria assassina deles e nos certificar de que mais
ninguém chegasse perto — Gabe diz em voz baixa, e tenho a sensação de
que ele acha que está traindo sua família ao nos contar isso agora.
Estando por perto deles quase vinte e quatro horas por dia, comecei
a entender a dinâmica que já estava em vigor antes de eu chegar. North não
é só o mais velho, ele também é quem assumiu responsabilidade por todos.
Ele e Gryphon tomam as decisões, já que ambos são líderes naturais. Nox é
o mais imprevisível, é leal aos outros, mas é do tipo que trilha seu próprio
caminho. Ainda não o entendo direito, ainda mais porque o jeito como o
tratam e se recusam a repreendê-lo quando faz merda me deixa confusa,
mas estou dando um jeito.
Gabe com certeza é o “irmãozinho caçula” do grupo.
Eles não o tratam como inferior, embora seja o mais novo e ainda
esteja na faculdade, mas é possível ver que têm com ele aquele mesmo tipo
de relacionamento protetor e cuidadoso que um irmão mais velho teria.
Ele conversar sobre isso com a gente agora é uma oferta, um ato de
fé de que estamos todos fazendo o possível para construir uma ponte sobre
o abismo que todos nós enxergamos no meio do nosso Vínculo.
O sinal fica verde e Atlas acelera de novo enquanto pergunto:
— Como North se machucou? Nox ficou bem?
Gabe esfrega os olhos com uma mão.
— As criaturas de North não são como as de Nox. Elas são raivosas
pra caralho. Ele estava com tanta fúria pelo que aconteceu com William que
se forçou demais, então quando tudo acabou, ele mal tinha energia
suficiente para... guardá-las. Uma delas abocanhou um pedaço do braço
dele antes de ele colocá-la sob controle.
Puta merda.
Viro para trás no banco e olho para Gabe, seus olhos abaixam até
onde Brutus está aconchegado atrás da minha orelha. Ele é tão quietinho e
calmo que às vezes me esqueço de que está ali, as vibrações suaves de seus
roncos são o único sinal de que está sempre comigo.
— Nox estava bem. Exausto, porque ele também se forçou além dos
limites, mas o Gryphon o levou pra casa e o limpou. As criaturas dele nunca
permitiram que ele se machucasse em todo esse tempo em que o vejo lutar.
As de North matam de forma indiscriminada, mas as de Nox são muito bem
treinadas para manterem seu mestre em segurança.
Engulo em seco e faço que sim, virando o rosto por instinto em
direção a Brutus quando ele pressiona o focinho em minha pele de um jeito
carinhoso.
— Como sabiam onde encontrar o acampamento? Acho difícil de
acreditar que estavam putos da vida e tropeçaram em um por acidente no
meio da noite — Atlas diz, trocando a marcha e depois pousando a mão em
meu joelho, em seu próprio jeito de me apoiar e me mostrar que nada disso
vai afastá-lo de mim.
Gabe encolhe os ombros.
— North e Gryphon têm localizado e mapeado os campos de
triagem da Resistência há anos. Eles estimam que têm cerca de trinta por
cento sob monitoramento, mas estão com dificuldades de alcançar os
números que precisam nas Equipes Táticas pra acabar com eles. É um
dilema, porque as famílias mais proeminentes da sociedade se recusam a
entrar nas equipes e lutar, mas elas também se tornaram pilares da
comunidade por serem favorecidos de Nível Superior. As famílias mais
humildes estão dispostas, mas não necessariamente possuem os dons de que
precisamos na luta.
Meu Deus.
Solto o ar pela boca e observo a noite passar pela janela do carro.
Sinto a culpa crescer dentro de mim por ter sido tão teimosa a respeito das
aulas de TT, porque é lá que Gryphon precisa encontrar mais recrutas.
Porra, até Zoey seria útil com seu poder de nocautear as pessoas.
Vou precisar falar com ele sobre colocá-la de volta na aula.
Não é como se ela fosse capaz de me atingir agora, de qualquer
jeito, e tenho certeza de que posso fazê-la ter uma compreensão melhor do
que é trabalhar em equipe, nem que seja na marra.
Atlas grunhe e me olha de soslaio:
— Você vai me obrigar a continuar treinando com aquele sádico,
não vai?
Ofereço um meio sorriso e finjo indiferença.
— Pense nisso como um jeito de provar a ele que aguenta. Não
duvido de você, mas vocês todos têm um lance esquisito de querer provar
quem é o mandachuva por aqui.
Atlas espera até o carro estar estacionado e estarmos a caminho do
meu quarto para comer a pizza antes de me colar ao lado do seu corpo e
sussurrar ao meu ouvido:
— A única pessoa a quem tenho interesse em provar do que sou
capaz é você, e sei de formas muito melhores de conseguir isso, Doçura.
Assim que a porta se fecha atrás de North, saio depressa da cama, ainda
bem enrolada no edredom, disparo para o banheiro e tranco a porta como
uma absoluta e completa covarde.
Então passo um minutinho entrando em pânico.
Por que meu vínculo mandou Brutus embora? Preciso do meu
amiguinho de névoa agora mesmo me fazendo companhia enquanto perco a
droga da minha cabeça. Não me orgulho disso, mas considero encher a
banheira e me afogar nela.
Opto por entrar embaixo do chuveiro.
Ainda está com o cheiro de Gryphon aqui, as bolhas de seu sabonete
e de seu xampu ainda estão paradas na água que sobrou no piso de azulejo,
e embora meu vínculo fique puto pra caralho com isso, lavo o cheiro dele
da minha pele.
E do espaço entre minhas pernas.
Estou possessa com meu vínculo. Não acredito que ele fez essa
merda comigo. Não acredito que, depois tudo que fiz para mantê-los a uma
distância segura, meu vínculo estragou tudo em um ataque de birra por
ciúmes!
Não quero nem pensar no fato de que trepei com meu Vínculo logo
após ele ter rolado com outra mulher na porcaria da cama.
Além disso, eu não estava ciente de que transar me faria querer
morrer no instante em que o orgasmo acabasse. Droga, nem consegui
aproveitar o pós orgasmo direito graças aos outros aparecendo aqui. Pelo
menos foi uma excelente introdução ao sexo, a porcaria do clímax foi tão
intensa que tem muito mais dos meus próprios líquidos entre minhas pernas
do que só sangue e porra. Tudo bem, doeu um pouquinho e teria sido
melhor se meu vínculo não estivesse no controle, mas se eu fechar os olhos
e me obrigar a esquecer do restante das merdas que estão rolando, ainda
consigo sentir sua boca no meu clitóris, deixando-me louca, caramba.
Você está se masturbando no meu chuveiro, Vinculada?
O barulho que sai de mim com toda certeza não é humano e derrubo
a embalagem de xampu que estava em minhas mãos. Isso faz o barulho
mais alto que já ecoou em um espaço fechado na história, meus ouvidos
zumbem e a dor dispara pela minha cabeça.
Então, porque a noite de hoje não poderia apenas parar de foder
comigo, a porta do banheiro abre de uma vez quando Gryphon a arromba.
Ele. Arromba. A. Porta.
— O que acha que está fazendo?! — grito com a voz esganiçada, e
ele faz uma carranca para mim como se fosse eu que tivesse acabado de
arrancar um pedaço da porta com a droga do meu ombro e a troco de nada.
Ele me encara, descendo os olhos ao lugar em que meus braços
estão cruzados por cima dos meus seios como se ele não tivesse lambido e
chupado meus peitos há tipo uma hora, e depois avança para abrir a porta
do box.
— Ouvi um barulho, achei que você tinha caído e se machucado.
Chega pra lá.
Eu o encaro de boquiaberta, sem querer recuar, mas ele apenas entra
e força o meu corpo para trás ao fazer isso, então não tenho escolha. Não
quero assisti-lo limpando meu sangue de seu corpo, e retruco quando ele
abre a boca:
— Não. Não use seu dom comigo agora. Estou muito puta da vida e
vim aqui tentar me afogar.
Ele bufa com deboche, estende o braço ao redor de mim para pegar
o sabonete e ensaboa as mãos, mas em seguida, em vez de se limpar, ele
começa a ensaboar minhas pernas. Suas mãos se mantêm em lugares muito
castos, mas agora que sei qual é a sensação de tê-lo dentro de mim, esse
momento é muito sensual.
— O que te engatilhou? O relatório de Black dizia que você chegou
em casa em segurança, ele estava satisfeito o suficiente, o que engatilhou
seu vínculo? Vou matar quem tiver feito isso com você.
Dou um riso de escárnio para ele e empurro seu peito, mas ele é três
vezes maior do que eu e quase um muro de tijolos, então o único resultado é
que ele segura minhas mãos e as mantém presas em seu peito.
— Me solta! Meu vínculo pode não ver problema com forçar a
gente a estar Vinculado, já que reivindicou seu vínculo e foi descansar no
meu peito, mas não vou superar tão rápido você ter tido outra garota na
porra da sua cama! Você falou toda aquela baboseira por causa da minha
roupa antes de eu sair e aí ficou aqui com outra garota qualquer? Não.
Mudei de ideia, vou dormir em outro lugar — disparo, mas quanto mais as
palavras escapam de mim em minha tagarelice furiosa, mais confuso e
irritado ele parece.
Ele se abaixa para olhar bem nos meus olhos, obrigando-me a
manter o contato visual.
— Mas do que diabos você está falando? Não toquei em outra
mulher desde o momento em que te arrastamos de volta para cá e te
deixamos na sede do conselho. Oli, olha para mim, juro pelo nosso Vínculo,
não toquei em ninguém além de você desde que nos conhecemos.
Essas palavras causam palpitações em todo tipo de lugar que não
deveriam. Eu me forço a continuar com raiva porque o cheiro que senti não
foi imaginação minha.
— Então por que tinha perfume na sua cama toda? Aquilo não
apareceu nos seus lençóis em um passe de mágica, não é? Cheguei aqui
vestida no meu macacão, assim como você mandou, e encontrei sua cama
fedendo a outra mulher. Nem tive chance de ficar irritada ou chateada, meu
vínculo tomou o controle no mesmo instante e aí... foi tudo tão rápido.
Ele só me encara.
Então, xingando baixinho, abre a porta do box com um empurrão e
pega uma toalha. Estou esperando ele sair furioso do cômodo porque já
conseguiu o que queria, o Vínculo entre nós está completo e seu poder vai
aumentar, se é que não já aumentou, mas ele se vira para fechar o chuveiro
e me enrola no luxuoso tecido felpudo.
Seu rosto está assustador, com um tipo de fúria que estou
acostumada a ver em North, mas nunca nele, mas suas mãos são gentis
enquanto me seca e me cobre. Depois, com todo cuidado, ele me leva de
volta ao quarto com uma mão firme e zero preocupações pelo fato de que
ainda está pelado e pingando água.
Tem sangue por toda parte.
Não é, tipo, uma quantidade que apresenta risco de morte, mas
manchas por todo o lençol e na toalha jogada no chão, que ele usou para se
limpar um pouco. É estranho pra caralho não falar sobre isso, mas acho que
talvez ele presuma que estou menstruada.
Se eu tiver sorte, nunca vou precisar ter essa conversa com ele.
Ele me deixa ao lado da porta despedaçada do banheiro e avança até
a cama, depois se inclina e franze o cenho quando, obviamente, sente o
cheiro do perfume por baixo dos aromas do nosso sexo. Fico muito corada,
é constrangedor pra caralho pensar nisso, mas quando ele se levanta e pega
o celular, quero morrer mais uma vez.
— Está fazendo o quê?! — dou um gritinho, e ele fala com quem
quer que esteja do outro lado da linha me olhando direto nos olhos, sem
esconder ou tentar disfarçar o que está acontecendo.
— Preciso que você reúna em seu escritório todas as mulheres que
estão nesta casa, todas que estiveram aqui nas últimas duas horas. Alguém
esteve no meu quarto e aprontou com a minha cama. Isso engatilhou o
vínculo de Oli, meu vínculo respondeu, e quem fez isso queria magoá-la...
ela está bem agora, só está furiosa, e eu também estou... estarei aí em cinco
minutos... Oli vai ficar aqui, ela não vai ficar perambulando pela mansão
enquanto essa merda está acontecendo.
Quando ele desliga o celular e o joga na mesa de cabeceira, cruzo
meus braços e o repreendo:
— Você espera mesmo que eu acredite que você não fez nada? Não
tenho um detector de mentiras embutido, mas não nasci ontem!
Ele nem reage, apenas começa a tirar os lençóis da cama e enrolá-
los com uma ligeira expressão de repulsa por estar mexendo com isso. Fico
inquieta no lugar, meu corpo está doendo em vários lugares novos, e avanço
devagar para tentar encontrar o pijama que trouxe comigo. Está em uma
pilha perto da porta, pois, óbvio, derrubei tudo no chão quando meu vínculo
tomou as rédeas.
Assim que ergo as roupas, meu vínculo fica irritadinho por serem
dos outros Vínculos, já que agora ele só quer meu Vinculado, quer se afogar
no cheiro dele e se esfregar no espaço dele até que o Vínculo que
compartilhamos esteja consolidado por completo. Fecho a cara para o
pijama e, depois que Gryphon termina de fazer a cama, volta até onde
estou.
— Pegue o que quiser no meu armário, você está em... porra, modo
ninho. Sei que não quer, mas é disso que precisa agora. Pegue o que você
achar confortável para dormir e eu vou consertar isso.
Solto as outras roupas como se estivessem pegando fogo,
demonstrando uma completa falta de consideração pelo espaço do meu
Vinculado, mas ele não se incomoda. Apenas recolhe tudo e me acompanha
até o closet, permanecendo perto de mim até eu estar vestida em uma de
suas cuecas boxer e em um suéter preto aconchegante.
Depois que me afasto, deixando claro que não vou pegar mais nada,
ele começa a escolher roupas para si mesmo e eu dou as costas. Não quero
que ele se cubra e me deixe, eu o quero em uma cama que tenha só o nosso
cheiro, envolvendo meu corpo com o seu.
Meu coração fica apertado quando ele sai vestindo jeans e camiseta,
sinto um frio na barriga e não consigo me impedir de choramingar.
Seus braços me envolvem e me apertam contra seu peito.
— Qual o problema? Sei que não acredita em mim, mas vou
descobrir quem foi e resolver isso. Vou te dar qualquer prova que você
queira.
Faço que não com a cabeça, esfregando o rosto em seu peito e,
mesmo começando a acreditar nele, ainda não consigo falar nada. Minha
voz ficou presa em algum lugar do meu corpo, junto ao meu vínculo
bárbaro e meu dom assassino que só aumenta.
Alguém bate à porta.
A mão de Gryphon desliza para meu cabelo, segurando a parte de
trás da minha cabeça enquanto ele convida meu Vínculo a entrar. Já sei que
é North, é óbvio que foi para ele que Gryphon ligou e pediu ajuda para
encontrar a mulher, mas não consigo me afastar de seus braços para me
esconder, porque se ele parar de me tocar agora, existe uma chance de que
eu rache no meio e meus órgãos se esparramem por todos os lados.
Essa noite, com certeza, foi amaldiçoada.
— Conferi as câmeras de segurança e Gracie Davenport esteve aqui
dez minutos antes de Oleander entrar. Ela estava com uma mochila. Fui
falar com ela, mas Felix já a mandou embora por ter atacado Sage de novo.
Parece que ela se ofendeu com alguma coisa que Gabe disse a ela quando a
levou ao quarto e saiu perambulando.
Merda. De. Gracie.
As mãos de Gryphon ainda estão cálidas e gentis enquanto acaricia
minhas costas, mas o tom com que ele responde a North é tudo menos isso.
— Vou lidar com ela amanhã. Você precisa expulsá-la da Draven
também, ela não tem permissão de chegar perto de Oli, ou de qualquer um
de nós, nunca mais. Se ela ou a família dela tiverem algum problema com
isso, vou me livrar dela.
Fico tensa em seus braços, mas ele não interrompe seu carinho
tranquilizador. North não responde e fico curiosa para saber o que os dois
estão conversando através de suas expressões, então inspiro fundo e me viro
nos braços de Gryphon para enfrentar North.
Ele está olhando para a pilha de lençóis que Gryphon socou na cesta
de roupa suja do canto. O edredom com o qual me cobri ainda está no
banheiro, mas Gryphon encontrou um sobressalente e refez a cama.
— O que ela fez? — North pergunta e Gryphon se afasta de mim
para buscar o resto das evidências da burrice de Gracie no banheiro.
Engulo a bile e respondo:
— Perfume. Ela passou perfume na cama dele toda e meu vínculo
assumiu o controle antes que eu tivesse a oportunidade de sequer falar com
ele. Estava fora do nosso controle, porque meu vínculo é uma vadia
ciumenta e chiliquenta e apenas assumiu o controle.
Gryphon recolhe a pilha de roupa de cama suja e sai do quarto para
se livrar dela, deixando-me sozinha com North por um instante, e eu
imediatamente quero correr atrás dele. É idiotice, sei que é, mas meu
vínculo se entristece no meu peito como se ele estivesse me abandonando.
Em vez de permitir que eu me torne um pesadelo de Vinculada
patética e chorona, concentro-me na ligação entre nós, nos pequenos fios
que mal se instalaram, mas que sei que crescerão com o tempo. Sinto
gotículas de suor brotarem na minha testa ao enviar duas palavras para ele,
e me xingo porque ele fez parecer tão fácil ao me mandar uma droga de
frase inteira antes.
Queime tudo.
Há um breve momento de silêncio em minha cabeça, depois sua
reposta chega.
Vou queimar a mansão inteira se você quiser. Podemos ir passar a
noite no seu quarto e troco de quarto amanhã cedo.
Porra.
Meu coração dá um mortal dentro do meu peito, e embora isso me
dê calafrios, forço uma resposta para ele.
Não vou sair desse quarto, se apresse e volte pra mim.
Não quero me deitar na cama sem ele, mas North está parado a
poucos metros de distância, olhando feio para tudo dentro do quarto como
se estivesse planejando a punição por esses acontecimentos. Meu Deus,
provável que está mesmo, e fico feliz por me encontrar nesta situação com
Gryphon, porque, pelo menos, North acredita nele e confia cem por cento
em sua palavra. Espero em silêncio por um segundo, esfregando os braços
com as mãos, porque mesmo de suéter estou com um pouquinho de frio,
com o ar-condicionado tão forte, mas North não tem nenhuma reação.
North se aproxima de mim, seus passos são hesitantes, mas sua voz
está firme quando diz:
— Se você precisar... de qualquer coisa depois do que aconteceu
hoje, providenciarei para você. É só dizer o quê e você terá.
Franzo o cenho para ele, mas, ainda sem me olhar, sopra o ar pela
boca e continua:
— Eu não sabia que você era virgem. Suponho que vocês não
tenham usado camisinha, já que seu vínculo estava no controle. Se quiser,
vou comprar um contraceptivo de emergência... a não ser que você se
oponha e esteja de acordo com as consequências?
Cacete, Jesus.
— Sim, por favor. Eu tomava o anticoncepcional injetável enquanto
estava longe, por causa das minhas cólicas, mas já faz muito tempo desde o
último. Ai meu Deus, será que essa merda consegue piorar mais?
Agora estou mesmo entrando em pânico, mas ele não percebe e nem
olha para mim, fica só parado ali, mais uma vez em silêncio, até Gryphon
voltar.
Ele nem olha na direção de North, vem para mim e me segura em
seus braços, depois me leva até sua cama e dá uma última farejada para se
certificar de que o perfume foi todo retirado e não foi absorvido pelo
colchão nem nada.
— Estamos bem, North. Não tem mais nada que possa ser feito essa
noite — Gryphon diz, dispensando-o de forma óbvia. Acho bem ousado da
parte dele, porque, por mais que eu tenha tentado antes, North nunca
permitiu que eu o mandasse sair.
Ele vai sem dizer mais nada.
Acho meio apavorante.
— Oli, está tudo bem com a cama ou precisamos sair daqui? Não
sinto cheiro de mais nada.
Volto ao presente e dou uma farejada cautelosa, ainda com dor
suficiente para não estar pronta para mais uma rodada. Não há nada ali além
do cheiro limpo e fresco do sabão que as empregadas usam, então subo na
cama em silêncio. Gryphon sobe em seguida, aconchegando-se atrás de
mim, embora ele costume dormir do outro lado da cama, e, quando ele
apaga a luz e mergulha o quarto em escuridão, deixo minha cabeça cair no
travesseiro com um baque surdo.
É desesperador o quanto preciso que esta noite acabe.
Aconchego-me nos braços de Gryphon e deixo que ele me ajeite até
estarmos os dois confortáveis. Depois de um minuto, sua mão desliza pela
minha barriga e esquenta, então sinto seu dom fluindo para dentro de mim,
aliviando a dor entre minhas pernas, e ruborizo como uma doida.
Pigarreio e sussurro para ele:
— Você não precisa fazer isso.
Ele enfia o rosto atrás da minha orelha, onde Brutus costuma dormir,
e murmura:
— Vou rasgar aquela garota em pedaços com minhas próprias mãos
por ter feito isso com você, mas sou um cuzão egoísta. Estou feliz que fui
eu e não um dos outros.
Viro o rosto para o travesseiro e tento não chorar como uma
garotinha patética, aliviada porque talvez ele não esteja mentindo, talvez ele
me queira mesmo e estou atada a alguém que sabe de verdade do que sou
capaz.
— Não chora, Vinculada. Estamos juntos nessa, não importa o que
aconteça.
Solto uma risada desolada para ele:
— Você está Vinculado a um monstro. Um monstro de verdade, uma
assassina. Você ouviu Carlin, você sabe. E se ficar mais forte? Já estou
sentindo crescer dentro de mim, sabia? Estou sentindo, todos nós vamos
morrer.
Ele grunhe e me mexe, movendo meu corpo mole até eu ficar de
frente para ele como se eu fosse uma boneca de pano que não pesa nada, e
me esforço para não achar isso sexy. Está escuro demais para de fato olhar
em seus olhos, mas pisco para ele como se isso fosse afastar a escuridão.
Suas mãos sobem para segurar meu rosto.
— Se você se chamar de monstro de novo, vou te deitar no meu colo
e arrancar essa atitude de você no tapa. Você é perfeita. Ter um dom de
Nível Superior, não importa o quanto seja raro, não faz de você um
monstro. Já conheci muitos monstros, você não é um deles.
Eu, com toda certeza, não sou perfeita, mas ele diz isso com tanta
convicção que fico louca para acreditar. Sua mão começa a fazer carinho na
pele macia da minha barriga e fico feliz por todo nosso treino ter diminuído
a barriguinha que tenho ali. Ainda tenho, bem provável porque é o lar do
meu útero, afinal, tipo assim, sou uma garota, mas não é mais algo que me
deixe desconfortável.
— Durma, Oli. Podemos resolver tudo amanhã de manhã.
24
Acordo ainda sendo abraçada por Gryphon, mas é muito diferente de todas
as outras vezes em que acordei em sua cama.
Ainda mais porque sua mão está no meio das minhas pernas, seu
polegar acariciando meu clitóris por cima do tecido da cueca que peguei
emprestada ontem à noite, seu pau está duro e esfregando na minha bunda
enquanto ele geme. Não consigo evitar mexer minha bunda, esfregando-me
nele por instinto, e fico feliz que a dor entre minhas pernas tenha
desaparecido.
Já que o pior aconteceu e estou Vinculada a ele, então é melhor eu
aproveitar o caminho para o inferno.
Os dentes afiados de Gryphon mordem meu ombro, arrancando um
suspiro de mim antes que ele alivie a mordida e beije a marca.
— Se alguém aqui vai para o inferno, sou eu por estar me achando
pra caralho por ter você, mas eu não pensava que você fosse tão pessimista
assim.
Dou uma cotovelada nele de novo, mas não tem efeito nenhum.
— Sai da minha cabeça, tenho direito de ser uma chorona dramática
em uma crise se eu quiser!
Ele segura meu cotovelo e o puxa mais para trás, prendendo meu
braço por trás das minhas costas enquanto sopra por cima da pele que
deixou molhada no meu pescoço, disparando arrepios por todo meu corpo e
me fazendo arquear as costas e esfregar a bunda no pau dele um pouquinho
mais.
Ele volta a trazer a boca para meu ouvido e murmura:
— Para de se contorcer e resistir para eu poder te mostrar como sexo
tem que ser, como sempre vai ser com a gente daqui em diante.
Vinculado arrogante.
— Já assisti bastante pornô, sei bem onde cada coisa se encaixa, e
não tenho certeza se você vai conseguir revelar um fetiche que me choque.
Ele bufa de deboche e desliza uma mão pelo meu corpo,
escorregando os dedos por baixo do cós da boxer e direto pelos lábios da
minha boceta, descobrindo que estou molhada e pronta para tudo que sua
língua está prometendo.
Resisto contra seu corpo só porque a perseguição é metade da
diversão e se ele quiser me mostrar um pouco de sua destreza na cama, vai
ter que se esforçar.
O pau dele fica ainda mais duro encostado na minha bunda enquanto
tento me soltar, e quando ele libera meu cotovelo para segurar minha
garganta e me curvar para trás contra seu corpo, um gemido baixo escapa
dos meus lábios. Seus dedos contraem, mas a outra mão só está brincando,
ele não está de fato tentando me fazer gozar com aqueles movimentos, e eu
me sacudo mais uma vez para tentar forçá-lo a tocar o que é importante.
Ele cansa de esperar eu ficar deitada quietinha e colaborar, então,
mais uma vez, acaba me colocando na posição em que me quer, com um
travesseiro por baixo do meu quadril e seu suéter empurrado para cima,
para que ele tenha acesso a todas as partes do meu corpo nas quais está tão
concentrado agora.
Abro a boca para reclamar de novo, mas ele a cobre com sua e
morde meu lábio como se estivesse me punindo por ser difícil. Se é assim
que ele planeja me manter na linha, pode ter certeza de que vou arruinar a
vida deste homem, porque nunca vou abrir mão disso.
Seu dedo calejado está áspero no meu mamilo, a fricção que causa é
um tipo delicioso de dor e, quando me belisca, arfo em seus lábios, e ele
responde com uma risadinha convencida. Quero ficar brava, mas seus
lábios são habilidosos e confiantes demais enquanto ele me idolatra com
sua língua, descendo pelo meu pescoço e usando os dentes mais uma vez. Já
sei que ele está deixando um rastro de pele vermelha, certificando-se de que
ninguém questione o que ele tem feito, mas ele aperfeiçoou o equilíbrio
entre “demais” e “suficiente” e me deixa pendurada na beira do desespero.
É tudo muito mais intenso sem meu vínculo dominando minha
mente.
Sinto tudo que ele está fazendo com mais intensidade e suas mãos
exploram cada centímetro do meu corpo até que eu não saiba mais onde
meu corpo termina e o dele começa. Ele encontra todos os pontos sensíveis
que eu nem sabia que existiam, lambendo e chupando minha pele até eu
estar me contorcendo embaixo dele em uma confusão de quase prazer
prolongado.
Quando ele enfim desce para tirar a boxer de mim, estou pronta para
canalizar um pouquinho do meu vínculo de novo e forçá-lo a enfiar a cara
na minha boceta, mas ele se move com tanta determinação que não preciso.
A grande janela com vista para o jardim está iluminada pelo sol da manhã e
sinto que o momento é exposto demais, claro demais e íntimo demais.
Quero tampar meus olhos com uma mão para esconder o pouco que der,
mas Gryphon segura meus dois pulsos nas mãos e os prende na cama para
que eu não tenha escolha além de o assistir me chupar.
E como esse homem sabe chupar.
Suas mãos apertam mais meus pulsos enquanto ele desliza a língua
pela minha boceta, certificando-se de lamber e chupar meus lábios inteiros,
e a sensação é maravilhosa, mas não chega nem perto de ser suficiente para
me fazer gozar. Quando eu solto um grunhido como o de uma moribunda
que quer que acabem logo com seu sofrimento, ele enfim vai ao ponto,
atacando meu clitóris como um profissional, e chego a tirar as costas da
cama quando gozo.
Se ele está tentando me provar alguma coisa, caramba, está fazendo
um excelente trabalho. Os sons depravados da minha boceta molhada se
espalham pelo quarto quando ele, por fim, solta meus pulsos para apertar
minhas coxas e colocá-las por cima de seus ombros. Estou percebendo que
ele é obcecado pelas minhas pernas, mas também estou ocupada demais
esfregando minha boceta em sua cara para comentar a respeito.
Estou sensível ao extremo e choramingando depois do meu terceiro
orgasmo. Ele grunhe insatisfeito quando imploro para ele dar um tempo,
descansar, deixar minha boceta se recuperar do prazer brutal que sua língua
me deu e, finalmente, ele ergue a cabeça para olhar o caos em que me
transformou, um sorrisinho muito cheio de si se abre em seus lábios.
Não tenho energia para retrucar ou dar um chute nos dentes dele por
ser tão convencido, mas ele se ajoelha e alinha seu pau na minha entrada,
não sinto dor nenhuma quando ele se força para dentro, minha boceta está
encharcada, pingando com meu gozo, e ele geme quando o sugo para
dentro.
Então ele começa a soltar a língua e decido que só pode estar
tentando me matar, que seus planos para se livrar de sua Vinculada perigosa
são uma coisinha perversa e cruel:
— Que bocetinha mais gananciosa, aguentando meu pau todo como
uma boa garota. Diz que vai ser boazinha para mim de agora em diante, me
dar essa bocetinha Vinculada linda sempre que eu quiser. Vai deixar eu te
comer sem camisinha sempre que precisar ser lembrada de a quem você
pertence, porque isso aqui é meu. Seu vínculo me disse que sou seu. Bom,
linda, essa boceta aqui é minha e vou usar e meter nela sempre que eu
quiser também. Se você me quer, é isso que vai ter.
Ele desliza para fora e me vira de barriga para baixo, dando um tapa
na minha bunda ao mesmo tempo em que volta a se enterrar em mim, eu
gemo e estremeço deixando mais um orgasmo no travesseiro. Minha voz
está rouca e falhando por causa de todos os gritos que ele está arrancando
de mim.
Seus dedos se afundam nos meus quadris quando ele goza, gemendo
e batendo seus quadris em mim até eu me apoiar na cabeceira para ele não
me fazer atravessar a parede enquanto me come. Sinto a umidade do gozo
dele quando me viro e percebo que transamos sem caminha mais uma vez,
mas acho que a pílula que North está providenciando vai cuidar disso.
— Minha nossa, porra — resmungo, minhas pernas ainda estão
formigando e parecem ser feitas de gelatina quando ele se joga de costas ao
meu lado, e caramba, o peito dele parece bem gostoso de dar uma mordida
enquanto ele recupera o fôlego.
— Melhor que pornô?
Jogo o travesseiro que estava embaixo da minha bunda em sua cara,
fazendo um barulho alto e, quando suas gargalhadas se espalham pelo
quarto, ofereço um sorriso muito relutante.
— Foi melhor, sim, mas vê se não perde o jeito. Não sou uma garota
fácil de manter satisfeita.
*
Não tem nada que eu queira fazer menos do que aguentar um jantar de
Vínculo depois de Gloria ter me demitido por ser maligna, mas para escapar
dele eu teria que contar a North o que Gloria disse, e eu não quero mesmo
fazer isso. Seria mais munição para ele usar, mais pistas que poderia
explorar e mais chances de ele descobrir o que sou. Não quero arriscar.
Contudo, conto para Atlas e Gabe.
Atlas me encara, sentado no banco do motorista e depois, sem dizer
uma palavra, coloca o câmbio no neutro e desliga o motor. Quando ele sai
do carro e marcha de volta ao café, quero chamá-lo e dizer para parar, mas
as palavras ficam presas na minha garganta.
Não me sobrou energia.
— Não dê ouvidos àquela vaca velha, Vínculo. Ela não passa de
uma Empática estúpida que não sabe de bosta nenhuma — Gabe diz no
banco traseiro, mas só fico assistindo Atlas arrancar a porta dos fundos da
cafeteria como se não fosse nada.
Talvez a gente deveria estar impedindo ele.
— Tentei avisar a vocês. Eu disse que se Vincular comigo era a pior
droga de opção! Gracie sendo uma vadia do caralho estragou...
Gabe se inclina para frente no banco para me olhar nos olhos e me
interrompe dizendo:
— Nada. Ela não estragou nada, Oli. Para de surtar de medo por um
segundo e olha em volta. Não aconteceu nada quando você e Gryphon
completaram o Vínculo. Certo, foi ruim porque seus vínculos estavam
engatilhados e nenhum de vocês podia impedir ou... porra, consentir. Tudo
isso soa uma merda mesmo, mas o que estou tentando dizer é que o Sol
nasceu hoje de manhã de novo. Vocês dois ainda estão inteiros e respirando
e o apocalipse não começou.
Ele está furioso e, quando o barulho retumbante de algo quebrando
vem da cafeteria, ele xinga baixinho, sai do carro, fecha a porta com força e
corre em direção ao ataque de fúria de Atlas.
Por que você está apavorada? Mande Gabe atender o celular.
As palavras de Gryphon surgindo na minha cabeça me sobressaltam,
não sei se algum dia vou me acostumar a ele aparecendo ali do nada sempre
que quiser trocar uma ideia. Ele foi de ignorar minhas ligações e mensagens
para ter acesso total ao meu cérebro sempre que ele quiser.
Que grosseria.
Ainda preciso de uma concentração ridícula para responder, mas
está ficando mais fácil.
Fui demitida porque, pelo visto, fedo à maldade. Atlas foi atrás de
Gloria e Gabe está ocupado demais tentando impedir o homicídio que
muito provável está acontecendo na cafeteria neste exato momento para
atender o celular.
Ele não responde de imediato, mas, pela primeira vez, posso senti-lo
do mesmo jeito que ele parece sempre conseguir me sentir.
Ele está furioso. Colérico pra caralho. A sensação é tão forte que faz
minha garganta fechar e pressiono uma mão no peito, tentando arrancar
seus sentimentos de mim antes que meu vínculo decida participar da briga.
Escuto um estalo fora do carro e, quando olho para cima, encontro
Gryphon e Kieran parados ali, vestindo uniformes táticos completos, depois
de aparecerem do nada graças ao dom de Kieran. Gryphon aponta para o
carro e depois sai correndo em direção à cafeteria.
Kieran se aproxima de mim, gesticulando para eu abaixar o vidro da
janela. Em vez disso, abro a porta de uma vez e saio para me juntar a ele.
Ele não diz nada enquanto lança o olhar mais rápido e menos sutil sobre
mim para ver se estou ferida.
— Fui muito boa em não permitir que a maldade saísse de mim para
pegar aquela mulher. Já Atlas? Nem tanto — desdenho.
Ele revira os olhos e dá de ombros.
— Ele é um Bassinger, o que esperava? Você não tirou mesmo nem
um pedacinho dela? Não deu nem um golpezinho de nada naquela vaca
preconceituosa?
Ah não, não, não posso ser amiga desse homem. Não posso trocar
comentários sarcásticos e descrições reconfortantes da violência que eu
gostaria de executar com ele. Não tenho vagas para amigos agora, meu
pequeno círculo já tem gente suficiente para encher um ônibus.
Ainda assim, suas palavras fazem eu me sentir melhor, mesmo que
eu responda de maneira sarcástica:
— Ah, não tem como ela ser preconceituosa, ela tem uma excelente
opinião dos meus Vínculos muito calminhos e nem um pouco monstruosos
Draven. Nox não faria mal a uma mosca, de acordo com aquela mulher. A
maligna sou eu.
Não me pergunte por que estou me apegando tanto a essa palavra,
mas eu de fato não consigo esquecê-la.
Outro barulho alto de alguma coisa quebrando vem de dentro da
cafeteria, e Kieran dá uma risadinha, parecendo contente demais com a
destruição dolosa de propriedade que está acontecendo aqui.
Reviro os olhos para ele.
— Você não deveria estar lá dentro ajudando?
— Não, estou em serviço de babá de Vínculo. Além disso,
Bassinger é mais rico que Deus, ele pode pagar aquela vaca pra calar a boca
depois que terminar de destruir a loja dela.
Os homens são inúteis.
Estou com frio e com fome, podemos acabar logo com isso, por
favor? Já passei muita vergonha pública por um dia.
Está cada vez mais fácil conversar assim com Gryphon. A resposta
dele é instantânea e mais fluida que a minha: diga para Black te levar de
volta pra mansão e voltar aqui depois.
Dou um grunhindo enquanto repasso as ordens para Kieran, porque
odeio me locomover com um Transportador. Como esperado, quando
Kieran solta meu braço e eu abro os olhos para ver North parado na minha
frente na sala de jantar, preciso cobrir a boca com a mão em uma tentativa
de me impedir de vomitar nos sapatos Hermes de couro preto lustroso do
meu Vínculo.
Ele me senta em uma cadeira e me força a abaixar a cabeça entre as
pernas para que o mundo pare de girar.
— Um dia. Eu gostaria de passar um cacete de dia sem ter que
controlar danos. Diga aos três para pararem de dificultar mais a minha vida
e voltarem aqui antes que eu vá atrás deles — North rosna, e o som faz eu
me encolher.
Escuto outro estalo quando Kieran vai embora. Espero até estar
confiante de que não vou vomitar para me erguer e recostar no assento.
North me colocou em sua cadeira e, quando me sento, vejo que ele
está na cadeira ao lado com documentos espalhados à sua frente. Mantenho
meus olhos afastados da papelada, não quero que ele me dê uma bronca por
bisbilhotar, mas isso só faz com que eu faça contato visual com Nox
sentado na outra ponta da mesa.
Tem um copo de uísque na frente dele.
— Bassinger está defendendo sua honra por aí de novo? Que
patético. Ele precisa mesmo encontrar uma causa nova — diz de modo
arrastado, enquanto ergue o copo aos lábios. North suspira e ergue os olhos
semicerrados para Nox, mas seu irmão o ignora e continua me encarando.
Eu quero muito sair daqui.
Ou, pelo menos, mudar de lugar, não quero ficar sentada na ponta da
mesa e ser obrigada a lidar com o humor de merda induzido por álcool de
Nox.
Esfrego meus braços com as mãos e ergo as sobrancelhas para ele.
— Quer dizer que agora você vai ser alcoólatra? Não tem aulas a
ministrar? Jovens mentes a moldar e aquela coisa toda?
Ele zomba:
— Poderia ministrá-las até enquanto durmo, mas estou de licença
administrativa para cumprir minhas outras obrigações. Gryphon não te
contou ainda? Partimos amanhã para reforçar a Equipe Tática dele.
Meu vínculo não gosta nem um pouco disso.
Olho para North para ver se Nox está só sendo um cuzão e tentando
me magoar, mas ele diz sem erguer os olhos dos papeis:
— Gabe e Bassinger vão ficar aqui com você. Tem ocorrido muitos
sequestros mais ao sul e precisamos investigar. Gryphon, Nox e eu
ficaremos fora por uma semana, duas no máximo.
Nem pensar.
Não gosto nem um pouquinho disso.
Fecho as mãos em punhos mais uma vez e depois, com as bochechas
queimando, volto a abaixar a cabeça entre as pernas. Quando é que essa
baboseira de vínculo melodramático vai acabar?
— Problemas no paraíso de Vinculados? Achei que Gryphon teria te
contado...
— Para, Nox. Se não consegue ficar calado, saia daqui — North
retruca. É o tom mais ríspido que já o vi usar com o irmão. A delicadeza
que costuma usar com Nox desapareceu.
Eu o ouço sair do cômodo, mas fico de cabeça baixa até minha
mente não estar mais encharcada de medo e pânico. Quando volto a me
sentar, as portas que dão para a cozinha se abrem e os funcionários saem
com as travessas habituais de comida, mas não quero comer nada.
Eu só quero ir me deitar.
North pega um prato e começa a enchê-lo com alimentos saudáveis
e tediosos enquanto diz:
— Gryphon estava em reunião com nós dois quando você falou com
ele a respeito de Bassinger. Ele não estava escondendo nada de você. Nox
está... gostando de criar discórdia, no presente momento. Vai passar.
Quando ele coloca o prato na minha frente e volta à sua papelada,
meu apetite considera voltar e a comida sem graça parece tentadora o
suficiente para eu erguer meu garfo, murmurando um “obrigada”.
Ele não responde, só reúne todos os papeis em uma pilha e
murmura:
— Você vai dormir comigo hoje... a não ser que ainda esteja em
estado de fazer ninho e queira dormir com Gryphon. Nox vai deixar a
criatura dele com você e está Vinculada a Gryphon agora, então faz sentido
você ficar comigo antes de partirmos.
Será que ainda estou no modo ninho? Dedico um instante a verificar
meu vínculo e ver como estamos nos adaptando, e North me observa com
um rosto estranhamente inexpressivo. Pela primeira vez, ele não está bravo
nem frustrado comigo, só está observando o que estou fazendo.
Tento não corar sob seu escrutínio.
— Meu vínculo está bem, acho que a parte do ninho já acabou. Já
que insiste em levar August junto, então acho que eu...vou precisar de você.
Ter que colocar essas palavras para fora quase me mata, mas ele não
se vangloria, nem as joga na minha cara, só coloca a papelada de lado e
monta um prato para si.
Quando os outros, por fim, voltam para casa, Atlas não vem jantar, e
tanto Gabe quanto Gryphon não fazem comentários sobre minha troca de
cadeira.
Uma das empregadas nos encontra na porta e me entrega uma legging, com
os olhos no chão como se olhar para minhas pernas fosse um castigo pior
do que a morte. Fico ofendida por uma fração de segundo, mas só até olhar
no rosto de North.
Ele a está encarando como se ela estivesse me ameaçando.
Lembro-me de que o tio dele foi assassinado na cama por um de
seus funcionários e uma mensagem foi deixada com seu sangue e, certo,
sim, consigo entender o motivo de ele ser um pouquinho exagerado aqui.
Também me sinto mal pela pobrezinha, ela parece tentar com todas
as forças não ter um infarto neste exato momento.
— Obrigada! Eu tenho mesmo que aprender a levar uma extra
comigo quando vou passar a noite fora com North. Ele foi tão bruto com a
última calça, não se engane com a elegância daqueles ternos dele — digo
com um sorrisinho, e Sage cobre a boca com a mão em uma tentativa
desesperada de impedir a risada que quer sair ao ver o olhar fulminante que
North direciona a mim.
— Eu não estava preparado para como seria ter amizade com você.
Não tenho certeza se a quero.
Sorrio para ele, essa merda é tipo combustível para o fogo da minha
insolência.
— Mentiroso, você ama. Se não amasse já teria me deixado
“acorrentada no porão” à essa altura. E, bem, se ela tiver sido plantada aqui
pela Resistência, eles vão receber umas informações ótimas sobre o quanto
estamos “próximos” e “unidos”.
Ele faz uma careta ao ser lembrado de como me ameaçava e eu me
divirto pra caramba com isso, finalmente, um ponto para mim. Vou usar
este homem de pano de chão quando terminar de me provar a ele e ao resto
dos meus Vínculos.
Eu acho... acho que talvez queira ficar com todos eles, e essa é coisa
mais apavorante que já admiti a mim mesma em muito tempo.
Ter esperança de descobrir um jeito de ter todos eles sem que meu
dom detone como a porcaria de uma bomba e destrua tudo e todos no meu
caminho parece um pouquinho demais, mesmo assim... estou mesmo
pensando a respeito.
Porra, não consigo pensar em mais nada agora.
Não sei nem se é possível, mas, droga, preciso tentar.
Assim que visto a legging, North nos conduz pela mansão em uma
direção que nunca segui antes. Acho que vamos chegar ao seu escritório, ou
a uma sala de reuniões, algo muito formal e respeitoso para o relatório que
ele vai nos passar e aos outros antes de partir em sua missão, e fico chocada
quando, em vez disso, chegamos a um enorme cinema.
Tem tipo uma porcaria de cinema completo nessa casa.
As luzes ainda estão acesas e não está passando nada na tela de
projeção imensa que reveste uma parede inteira, mas todos os meus outros
Vínculos, Sawyer e Felix estão sentados por aqui, com graus variados de
preocupação nos rostos. É meio bonitinho imaginar todos eles sentados
nessa sala esperando por nós e, quando entramos, todas os rostos disparam
em nossa direção.
No segundo em que Sage põe os olhos em Felix, que parece exausto
até os ossos, ela se debulha em lágrimas e se joga nele.
De imediato, sinto-me melhor a respeito de todas as reações caóticas
que tive a, bom, tudo relacionado aos meus Vínculos nos últimos meses. É
bom ver que os hormônios doidos e que chorar por causa de absolutamente
nada era, na verdade, era culpa do meu vínculo e não porque eu estava
ficando louca. Droga, estou feliz de estar normal de novo... ou quase.
Sawyer dá uma olhada nela e depois vira para encarar North:
— Que porra você andou dizendo pra ela estar chorando? Estou
pouco me fodendo para as suas criaturas de pesadelo, vou matar você.
Entro na frente de North e miro meu próprio olhar gélido em
Sawyer:
— Ele se levantou no meio da noite pra ser o motorista de resgate
dela, não a delatou e ainda comprou café pra ela no caminho de volta. Então
fica de boa aí, Benson, antes que eu decida arrancar um pedaço de você, e
nenhum filhotinho precioso será necessário.
As sobrancelhas de Gabe sobem até o couro cabeludo dele e o
espectro de um sorriso aparece em seu rosto antes que ele o esconda, vindo
até mim e jogando um braço sobre meus ombros para encarar Sawyer
comigo. North bufa para nós dois, parecendo bem ofendido por estar sendo
protegido desse jeito, mas o ignoramos.
Sawyer olha de um para o outro e, em seguida, joga as mãos para o
alto.
— Bom, então alguém me conta que porra está acontecendo aqui!
Felix me disse que houve uma emergência e agora Sage está chorando. Eu
tô ficando de saco cheio pra caralho de ver as pessoas a fazendo chorar.
Jesus.
Como eu conto alguma coisa a ele sem dizer demais e na presença
de tanta gente cheia de opiniões?
Gryphon inclina a cabeça na minha direção, então suas palavras
penetram na minha: não conte nada a ele, Vinculada. Espere até voltarmos
e nós vamos resolver isso juntos.
O quê? É para eu ficar parada aqui nesse silêncio constrangedor?
Isso me parece tortura, e quando Sawyer dá meia-volta para olhar feio para
Sage, não consigo me controlar.
Gryphon deveria saber que não tem como me impedir de me jogar
na frente de Sage quando ela é ameaçada.
Minha intenção é falar em um tom tranquilizador, mas acho que
fracasso por completo.
— Houve um pequeno incidente. Sage me ligou porque sabia eu ia
salvá-la sem encher o saco dela como você faria, e North foi comigo para
usar seu nome pra abafar as coisas.
North bufa de escárnio quando uso a palavra “incidente” de novo,
mas não interrompe, e Sawyer não me repreende.
Por sorte, Gryphon vem ao resgate:
— Temos duas horas até sairmos. Podemos fazer um balanço
decente disso quando voltarmos.
North confere o relógio e suspira, passando perto de mim e
permitindo que sua mão raspe na minha. É um gesto tão pequeno, apenas
um roçar muito leve de nossas peles, mas sinto que é uma promessa.
Uma promessa feita um ao outro e que se tornaria real se eu
conseguir encontrar qualquer coisa que prove que ele estava errado sobre
mim.
Gryphon bate com o ombro no de Nox ao seguirem North para fora
do cômodo, murmurando baixinho um com o outro, e tento não olhar com
nostalgia para eles. Ainda mais pela perda do meu Vinculado, mas também
pela óbvia proximidade entre eles e pela facilidade com que Nox interage
com Gryphon.
Nunca terei isso.
Do outro lado da sala, Atlas enfim olha para mim, e sinto que não
estou prestes a ter um colapso porque ele me olha com a mesma expressão
receptiva de sempre.
Sorrio e ele se aproxima, segura minha mão e murmura:
— Venha dormir entre Ardern e eu enquanto os outros se preparam
para partir. Você precisa descansar um pouco antes de termos que enfrentar
o mundo real de novo.
Faço que sim e me inclino para grudar o rosto no peito dele,
respirando com facilidade pela primeira vez em dias.
Sawyer grunhe infeliz e se espreguiça em uma das poltronas, de
olho em Felix, que se ajeita na poltrona ao lado segurando Sage com
firmeza em seu peito.
Sei que ele já está juntando as peças.
Não vamos conseguir esconder isso de todos os nossos amigos.
Atlas me leva até os assentos de paletes no fundo, que ficam em
cima de uma plataforma com uma vista perfeita da tela, onde Gabe já está
me esperando com cobertores. Abaixo-me para dar um beijo nele, um
selinho nos lábios, e ele tem o cuidado de me cobrir bem e me aconchegar
em seu peito. Atlas se deita atrás de mim, joga um dos cobertores sobre si
também e depois puxa meus quadris para esfregar minha bunda nele de um
jeito muito sugestivo.
Suspiro contente de estar esmagada entre os dois e meus olhos se
fecham.
Sou acordada pela mão de Gryphon fazendo carinho na minha
bochecha e com seu rosto perto do meu enquanto fala baixinho:
— Acorde e me dê um beijo de despedida, minha Vinculada.
Estou grogue e desorientada, como se meu cérebro estivesse
boiando dentro do meu crânio, balançando um pouquinho demais lá dentro,
e quando me obrigo a sentar, Atlas grunhe insatisfeito.
Gryphon olha feio para ele, agachado perto de mim, mas quando
seus olhos voltam a olhar nos meus, ele está todo calmo de novo.
— Falei com a minha irmã. Ela está procurando uma ajudante no
café e disse que vai fazer um teste com você lá. Esqueça Gloria. Temos um
plano para aquela vaca velha, não precisa mais ficar chateada com isso.
Concordo e me inclino para beijá-lo, movendo minha língua contra
a dele em uma demonstração muito pública de afeto, mas meu vínculo
exige isso. Ele também não parece se importar, ergue a mão para segurar
meu pescoço de lado e aperta só um pouquinho.
“Vinculado possessivo” está se tornando meu tipo preferido
rapidinho.
Sinto-me um pouco tonta quando ele se afasta e agarro sua camisa
com a mão como se fosse minha salvação. Ele observa meus olhos
entorpecidos com um ar muito convencido, um que estou começando a me
acostumar a ver nele.
Desvio os olhos, porque o calor vindo dos seus é demais para eu
conseguir lidar neste momento, e encontro North e Nox esperando na porta,
vestidos e prontos para partir. Nenhum dos dois percebe que estou olhando,
graças à conversa baixa, mas intensa, que estão tendo, pela qual fico grata,
já que estou de queixo caído.
Bendito seja.
Gryphon já me fez uma lavagem cerebral de achar o uniforme tático
sexy, mas ver os garotos Draven vestidos nos trajes de proteção é algo
muito diferente.
Caralho.
Homens.
Porque não tem nada de “garoto” em nenhum dos dois. Se North
fica sexy de terno, com um colete à prova de balas e pescoceira ele é
irresistível pra caralho. Meu Deus, essas luvas meio que combinam com a
personalidade dele.
Isso foi pervertido demais?
Provável que sim.
Eu, sem sombra de dúvidas, estou objetificando ambos na minha
cabeça neste momento, e se Gryphon conseguir ler isso na minha mente,
nunca vai me deixar esquecer.
Se você se comportar bem, não conto a eles, suas palavras surgem
na minha cabeça quando ele me beija uma última vez antes de se levantar.
Então, observo meus Vínculos se afastarem e rezo para que todos
eles voltem para mim, por mais delicado que nosso relacionamento possa
ser agora.
O que eu não daria para ter Gryphon e sua feitiçaria cerebral manipuladora
de dor aqui enquanto Felix me corta, sem usar nada além de um tiquinho de
uma pomada anestesiante inútil em minha pele.
A ironia é que ele sente a pontada de dor pelo nosso Vínculo, e de
imediato me inunda com seu próprio vínculo para entender que droga está
acontecendo. Preciso fazer um trabalho extra para conseguir acobertar, e
uso coisas que são bem verdadeiras.
Estou bem! Não se apavore, sou desastrada demais às vezes.
Ele responde logo em seguida: o que está acontecendo? Estamos há
poucas horas de distância, posso pedir para Kieran me levar de volta.
Tento não vomitar com o intenso olhar de concentração no rosto de
Sawyer, enquanto seus olhos brilham brancos, destinando todo seu foco em
impedir o chip assassino de, sabe como é, me assassinar.
Engulo em seco e me esforço para manter minha resposta firme e
confiante.
Não precisa. Felix vai me remendar, então não preciso de mais
ninguém fazendo um estardalhaço por aqui. Esqueça de mim, se concentre
no seu trabalho.
Seu vínculo continua comigo, e a dor diminui mais a cada segundo,
mesmo com as pinças procurando dentro de minha carne. Quando, por fim,
o chip é retirado do meu pescoço, Felix remove uma de suas luvas e
pressiona a palma da mão na lateral do meu pescoço até que a ferida esteja
curada.
Todos no cômodo suspiram.
Chega de se machucar, senão volto aí e alguém vai se ver comigo,
Vinculada. Só fique estudando dentro da mansão até ir se encontrar com
Kyrie. Ela vai te esperar em algum momento antes do almoço. Prometa que
vai voltar direto para casa depois.
Preciso ser muito cuidadosa com a minha resposta para ele não
perceber que algo está acontecendo aqui, essa habilidade dele de saber
quando estou mentindo é de lascar.
Prometo que só vou sair daqui com meus Vínculos e com os
seguranças da sua Equipe Tática.
O vínculo dele me deixa, deslizando aos poucos como uma carícia, e
eu inspiro fundo. Mentir para ele, mesmo que seja por omissão desse jeito,
faz eu me sentir a pior droga de Vinculada que já existiu, mas tenho certeza
de que se tivéssemos contado, ele voltaria para cá em um instante.
Vamos fazer tudo que pudermos para nos livrarmos da Resistência.
Quando Felix enfim se afasta de mim, tirando a outra luva e
reunindo os suprimentos que usou, viro o rosto e vejo Sawyer segurando a
pinça com o chip GPS em uma das mãos, estreitando seus olhos brancos
brilhantes para ele.
— Consegue dizer algo sobre ele? Como seu dom funciona? Me
conte alguma coisa, Benson — digo, e ele encolhe os ombros.
— Ainda está transmitindo. Não dá para dizer se esteve fazendo
alguma coisa além de mostrar sua localização, mas vou correr lá em casa e
pegar meu notebook para localizar o sinal. Quando soubermos para onde
está indo... vemos o que fazer.
Concordo e olho o relógio, notando que ainda está cedo o bastante
para tomar um banho e ficar um pouco decente antes de conhecer a irmã do
meu Vinculado.
A ideia está fazendo meu estômago revirar.
Gabe ainda está quieto demais, um pouco abalado, graças à
descoberta do chip mortífero, mas entrelaço nossos dedos enquanto
caminhamos para meu quarto. Atlas atende uma ligação de sua mãe e
concorda em nos encontrar lá em cima, então dá um beijo no meu rosto e
anda a passos largos à nossa frente, em direção ao seu próprio quarto.
Gabe espera até estarmos sozinhos no elevador para falar:
— Me sinto um merda completo. Não é à toa que você odiava a
gente. Não acredito que colocaram isso em você.
Finjo indiferença, então me apoio em seu corpo robusto, deixando
meu rosto se enterrar no peito dele enquanto inspiro seu cheiro.
— Sendo sincera? Achei que fosse coisa de North. Nem achei que o
resto de vocês estivesse envolvido. O cara que fez isso ficava só falando
que North era maravilhoso e que a situação tinha sido muito constrangedora
pra ele. Foi ele que... ele me disse para apenas deitar e me submeter. Ele era
muito a favor do Vínculo forçado.
Uma veia salta na mandíbula dele, e quando olho em seu rosto, ele
balança a cabeça.
— Estou me esforçando muito para não perder a porra do controle
nesse elevador minúsculo, mas está difícil. North vai... droga, North vai
estraçalhar o conselho por causa disso. Descobrir que a maior parte da sua
raiva e receio da gente foi por causa de uma merda que Noakes fez? Porra,
North vai botar os pesadelos dele para jantarem aquele merdinha nojento.
Estou desesperada para acreditar nisso, mas...
— North uma vez me disse que ia me acorrentar pela garganta no
porão se eu tentasse fugir, então, por mais que eu queira acreditar em você,
ainda tenho algumas reservas quanto a isso.
Gabe xinga baixinho quando as portas do elevador se abrem,
esfregando o rosto com uma das mãos como se tivesse esperanças de fazer
essa conversa desaparecer se aplicasse força suficiente.
Entendo.
— Não merecemos você. Nenhum de nós merece. A gente tá
fodendo com esse Vínculo todo e você merece coisa muito melhor, porra —
murmura, e eu engulo o caroço na minha garganta.
— Não pense assim, Gabe. Você não sabe de todas as coisas
terríveis que fiz.
*
Não importa que eu esteja vestida à perfeição e que Sage tenha feito
meu cabelo e maquiagem antes de sairmos, minha mão treme quando
seguro a maçaneta da porta do Hellcat para sair e encontrar a irmã de
Gryphon para ela me dar um emprego.
E se ela me odiar?
Encontre com ela logo, ela não morde.
Suspiro de deboche e cruzo os braços, fazendo beicinho como uma
criança.
Bem, se ela não é tão assustadora assim, então por que não a
conheci ainda? Ela deve me odiar! Droga, não vou fazer isso. Vou deixar
você me sustentar.
O poder dele é inacreditável, porque ele me envia uma risada em um
tom perfeito, cujo som deixa minha pele toda arrepiada.
Nós dois sabemos que não vai. Tenho certeza de que você tem um
registro mental de tudo que deve a North até agora. Se não quer um
emprego, ligo para Kyrie e cancelo. Pode conhecê-la quando eu voltar
para casa, ela tem perguntado sobre você. Eu só não queria que você a
conhecesse antes de eu ter certeza sobre nós.
A insinuação de que agora ele está certo a meu respeito me faz
engolir em seco, de que há algo a mais além do nosso Vínculo que o fez
pensar que sou digna de conhecer sua irmã.
Certo. Mas se ela me odiar, nunca vou te perdoar por me fazer vir
sozinha.
— Para de flertar com ele e vamos logo comprar um café decente —
Gabe resmunga, ainda tenso por conta da nossa conversa de hoje. Entendo.
Não vou reclamar de seu temperamento, porque é claro que ele está assim
em minha defesa.
Mas Atlas olha feio para ele, nada feliz com o tom que ele está
usando comigo, e coloco a mão no pulso dele para acalmá-lo. Os ânimos
estão exaltados e precisamos mais que nunca uns dos outros.
Quando todos saímos juntos do carro, Atlas confere os bolsos para
se certificar de que o chip ainda está lá, guardado em uma embalagem
especial feita por Sawyer para ninguém perceber que o tiramos. Eu me
ofereci para carregá-lo, já que não estamos indo a nenhum lugar que eu já
não tenha ido antes, mas Atlas e Gabe refutaram essa ideia bem depressa.
Nenhum deles quer que eu toque nessa coisa.
Gabe dá mais uma olhada na minha roupa, uma calça jeans preta e a
jaqueta de couro que Gryphon me deu por cima de uma camiseta preta justa
e minhas um-dia-perdidas-porém-amadas botas, depois joga o braço por
cima dos meus ombros e murmura no meu cabelo:
— Kyrie é massa, para de surtar. Ela só vai reclamar de você não ter
vindo trabalhar com ela antes.
Dou uma bufada e arrasto meus pés um pouquinho.
— Eu tentei! A moça pra quem tentei entregar meu currículo disse
que eu não tinha permissão de trabalhar aqui.
A gargalhada retumbante de Gabe faz Atlas balançar a cabeça e me
roubar dele, depois me arrastar pela soleira do café.
Já estou achando esse lugar um bilhão de vezes melhor do que o de
Gloria.
Certo, já estive aqui antes e minha opinião é bem suspeita, já que ela
me demitiu, mas toda a atmosfera desse lugar é imaculada, aconchegante e
convidativa.
Também está muito movimentado com a correria do horário de
almoço, cheio de gente comprando sanduíches e cafés, todas as mesas estão
ocupadas e a fila de retirada está imensa. Quase me sinto mal de atrapalhar
vindo aqui em um horário agitado.
— E aí, Vicki! Val está aqui? Gryph nos mandou — Gabe diz, com
um sorriso amigável no rosto ao se aproximar da mulher mais velha que me
dispensou da última vez.
Tento não guardar ressentimento, sei que foram ordens de North,
mas meu vínculo ainda está chateado com aquilo.
Vicki faz que sim com a cabeça e aponta para os fundos, abrindo
uma parte do balcão para passarmos por ele.
— Quem é Val? — murmuro e Gabe me dá um sorrisinho.
— Valkyrie. Gryphon diz que os pais deles foram sádicos ao nomear
os dois, mas Kyrie não liga muito. O público em geral a conhece como Val,
mas é Kyrie para a família.
Minha nossa.
Certo, esses nomes são legais pra caralho. Pelo menos eles não
foram nomeados em homenagem a flores venenosas, um presságio do que
estava por vir. Minha mãe me contou uma vez que sonhou comigo por anos
antes de eu nascer e que meu berço estava sempre decorado com oleandros.
Sempre me questionei se ela era um pouquinho vidente.
Gabe nos guia e caminha até o cômodo dos fundos, onde
encontramos Kyrie carregando sacas gigantescas de café para moer. Atlas
vai de imediato até ela, pega as sacas e leva para onde ela direciona.
Ela o observa enquanto recupera o fôlego, uma caderneta de pedidos
está quase caindo do bolso do avental ao redor de sua cintura, e ela está
quase igual a como era na foto do quarto de Gryphon, só um pouco mais
velha.
Ela seca a testa com a mão.
— Chegou na hora certa, estou prestes ficar atolada em pedidos.
Odeio pra caralho aquela megera velha da Gloria, mas, pelo menos, com
outra opção por perto eu não precisava lidar com o lixo que aqueles
moleques de fraternidade são. Agora estou enterrada até o pescoço no fedor
da misoginia.
Ela me dá uma olhada, passando rápido os olhos pelo meu corpo
todo como se estivesse me avaliando, depois se abaixa e pega um avental.
— Pode começar agora, né? Gryph jurou que você era boa com
aquela vaca, então sei que vai se dar bem aqui também. Falei para ele que
tinha que ter te mandado aqui antes, mas ele é um merdinha misterioso.
Chego a roncar pelo nariz rindo e cubro a boca com a mão,
enquanto estendendo a outra para pegar o avental.
— Isso resume bem a situação toda. Sou Oli, aliás. Que bom
finalmente te conhecer.
Ela me olha de modo avaliativo, então seus olhos ficam só um
pouquinho mais gentis.
— Kyrie, não me pergunte de onde meus pais tiraram esse nome
porque tem um monte de trauma aí que não quero analisar. Gabe, será que
você e o sr. Fortão aqui podem descarregar as caixas para mim, por favor,
nos lugares de sempre. Oli, se puder me acompanhar e começar a atender os
pedidos, seria ótimo.
Atlas ergue as sobrancelhas com todas as ordens diretas que ela dá,
mas isso não me surpreende nem um pouco. Acho que ela parece muito
com Gryphon e preciso muito desse trabalho, então, euzinha que não vou
reclamar mesmo.
O café funciona como um relógio.
Kyrie tem outros cinco funcionários, todos me acolhem sem
problemas e me ajudam sempre que tenho dúvidas, ainda me elogiam,
dizendo que estou pegando o ritmo das coisas com facilidade. Há
plaquinhas por toda a cozinha para mostrar o lugar e o jeito certo de fazer
cada coisa, e me sinto muito grata por elas.
Depois de descarregar as caixas, Kyrie coloca Gabe e Atlas para
montar móveis no escritório dela e depois para ajudar a reabastecer as
geladeiras da cozinha a partir do freezer nos fundos, e os dois fazem tudo
sem reclamar.
Esqueço-me de todos os problemas que encontramos no café da
manhã e apenas fico feliz em poder trabalhar duro em um lugar onde meus
esforços não são apenas notados, mas valorizados. Não tem nenhuma Kitty
tentando se meter com os meus Vínculos, nenhum cara de fraternidade
falando besteira e, em vez dos meus Vínculos me vigiarem de uma mesa,
temos seguranças da Equipe Tática esperando à paisana do lado de fora,
conferindo as pessoas que entram.
Eu me divirto.
Mas eu já deveria ser mais esperta a esta altura.
Estou até os cotovelos na lava-louças quando acaba a energia, e não
me preocupo. A cozinheira, Marigold, também não parece perturbada ao
desligar todas as bocas do fogão por segurança e colocar as comidas que
estavam cozinhando de lado até a energia voltar.
Gabe entra na cozinha, suado de todo o trabalho manual, e Atlas
aparece atrás dele tão arrumado e limpo quanto estava quando saímos da
mansão hoje cedo. Suponho que a superforça tenha suas vantagens.
— Sabem o que está acontecendo? — pergunto, e Gabe nega com a
cabeça.
— Vamos procurar Kyrie, ver se ela precisa de ajuda para acalmar
os fregueses e evitar que vão embora bravos.
Concordo e seco as mãos, indo atrás deles no exato momento em
que as vitrines da loja explodem e gritos e balas passam voando por todos
os lados perto de nós.
Minhas costas colidem com o chão quando Atlas me cobre, seu
braço atenua um pouco o impacto, e Gabe se deita de bruços ao nosso lado.
Olho nos olhos de Atlas, perplexa com o que quer que esteja acontecendo,
então os gritos ficam mais altos ao nosso redor.
A Resistência está aqui.
Há um som de estalo e Kieran aparece agachado perto de nós,
estendendo o braço para segurarmos, e, quando tento me afastar, ele agarra
meu pulso para me arrastar junto.
Deixamos Kyrie para trás.
Assim que reaparecemos no beco dos fundos, estou pronta para
acabar com a raça dele, mas ele ergue as mãos para mim:
— Vou atrás dela agora, Fallows, calma...
— Tarde demais — Atlas diz, e viro a cabeça para ver Kyrie lutando
com dois soldados da Resistência.
Meu poder explode para fora de mim e os dois caem mortos no chão
em um instante, um deles derrubando Kyrie. Solto o ar pela boca e começo
a correr em direção a ela quando ocorrem outros dois estalos, tão próximos
um do outro que não tenho nem chance de ver.
Um Transportador a levou.
Ela sumiu.
Kieran xinga e começa a falar no rádio, ladrando ordens e
orientações mas foda-se essa merda, vou atrás dela.
Os braços de Atlas me envolvem como barras de ferro, impossíveis
de mover, e ele estoura:
— Nem pense nisso, Oli. Não vou aguentar aquele seu complexo de
heroína mais uma vez. Deixa isso para os profissionais capacitados.
Permito que minha fúria saia, só o suficiente para aliviar um pouco
meu vínculo sem que ele se junte a esta festinha.
— Eles não podem me matar! Você sabe disso, eu sei disso. Porra,
se eles já tiverem me visto direito, metade da droga da Resistência já sabe
disso também! Mas eles estão levando gente de novo, não posso ficar
sentada aqui e deixar isso acontecer.
Seus braços não abrandam nem um pouco.
— Tem Equipe Tática suficiente aqui para cuidar disso, não vou
deixar você ir.
Quero matá-lo e preciso me forçar a obrigar meu vínculo a não
reagir contra ele enquanto rosno:
— Não tem Equipe Tática suficiente e nós dois sabemos disso!
Porra, me solta agora mesmo, Vínculo! Eu queria ser o Vínculo que permite
que vocês me protejam, mas não sou assim. Vou continuar me comunicando
com Gryphon, mas estamos perdendo essa guerra porque não estamos
usando a melhor arma que temos. Que se dane, vou ser a droga da arma!
Gabe olha de um para o outro, depois para os homens vindo pela rua
em nossa direção, com as armas apontadas e rostos cobertos por máscaras.
Ele relaxa as mãos fechadas em punho, preparando-se para se transformar e
se lançar neles, mas eu não estou para brincadeira.
Já aceitei que não vou mais viver com medo.
Vou enfrentar meu dom e deixar que proteja todos nós, posso
encarar as consequências e minha moralidade mais tarde, porque já
sabemos que estamos lutando uma guerra perdida agora e não permitirei
que isso aconteça. Nem com meus Vínculos, nem com nossos amigos ou
família, se eu puder evitar.
Meus olhos se transformam em vácuos, tudo fica mais nítido, e mato
todos eles. Chega de incapacitar, chega dos horrores de derreter cérebros,
mato todos de uma vez. Deixo meu dom tocar todas as suas almas,
agarrando-as com força e sentindo a agonia que todos eles experimentam
quando as arranco.
Kieran não reage, aquela única palavra de aviso de Carlin foi o
suficiente para ele continuar firme no lugar sem fazer nada além de engolir
em seco com força.
Gabe? Nem tanto.
— Que porra é essa?! Oli, que porra...
Atlas explode com ele:
— Ela é uma Alienadora de Almas, idiota. O derretimento de
cérebro? É um truquezinho barato para ela, o menor de seus poderes. É o
jeito dela de deixar as pessoas chafurdando nas piores partes de suas almas.
O lance verdadeiro dela? Arrancar a porra da alma. Morte instantânea, um
bilhão de vezes mais poderosa do que North Draven, porque ele é limitado
ao toque. Oli não tem limite. Nenhum. A arma infinita.
Essas três palavras me dão agonia, mas Kieran pragueja antes que
minha mente consiga processar de verdade o que está sendo dito.
— Cegos. Nós somos todos cegos, porra, é claro que você estava
nos documentos. Codinome: AI. Não se esgote, vamos guardar esse dom
para os poderosos por enquanto, nenhum dom é infinito de verdade.
Os poderosos que se fodam.
Disparo meu dom até eu conseguir sentir cada pessoa que está no
quarteirão. Todos seus pensamentos e emoções são complexos demais para
eu decifrar, mas sei dizer se deveriam estar aqui. Sei se estão aqui para
matar e pilhar.
E mato todos eles.
Os olhos de Gabe disparam para mim depois de encarar todos os
corpos desabando no chão, com seus olhos vidrados, caídos no lugar em
que arranquei suas almas.
Se quisesse, eu poderia dizer o número exato de vidas que acabei de
tirar, mas embora meu dom esteja vibrando de alegria dentro do meu peito,
não quero pensar nisso.
Ou no pequeno detalhe de que nem dá para notar que usei meu dom.
Nenhuma exaustão, nenhum tremor nas mãos, nenhuma lentidão causada
pela enorme quantidade de poder que alienar almas requer.
Isso não foi nem a pontinha da minha capacidade.
— Vem ficar atrás de mim, Fallows, e para com esses olhos de
vácuo.
Bufo de escárnio e gesticulo com as mãos ao meu redor, para tudo
que acabei de fazer.
— Acho que não preciso ficar atrás de você Kieran. Acho que é
você quem deveria ficar atrás de mim.
Ele abaixa a pescoceira em um movimento brusco e rosna para mim:
— Só por cima da porra do meu cadáver, agora se mexe. Vamos
levar você para a mansão, é mais fácil te defender lá do que ficando em
espaço aberto.
Atlas concorda com a cabeça e diz:
— Transporte todos nós. Ardern, traz essa bunda para cá, vamos sair
logo daqui.
Gabe só dá dois passos antes que as explosões recomecem e Atlas se
joga em mim, esmagando-me sob seu enorme peso ao me pressionar contra
o prédio atrás de nós até eu não conseguir respirar.
Tem mais gente da Resistência aqui, estão chegando em levas em
uma tentativa de tomar o campus. Há gritos por toda parte ao nosso redor e
os sons estão esquisitos nos meus ouvidos, que estão zumbindo graças à
explosão.
— Droga, estão levando mais Favorecidos das ruas. Eles sabiam que
os Draven estavam fora, estamos sendo abatidos de dentro para fora —
Gabe diz. Os olhos dele se transformam em seus olhos de lobo e os de Atlas
ficam brancos e brilhantes ao mesmo tempo.
Estamos prestes a perder o controle. Uma decisão importante
precisa ser tomada aqui e eu já tomei a minha.
Ninguém vai gostar dela.
Preciso controlar depressa meus pensamentos e emoções para que
Gryphon não perceba o que estou planejando, mas meu dom vibrando
dentro de mim me ajuda. Sinto o arrependimento por estar deixando todos
eles mais uma vez, mesmo que por pouco tempo, mas não posso deixar essa
passar.
Não posso ficar sentada aqui sem fazer nada.
Espero até meus Vínculos estarem ocupados procurando mais
ameaças iminentes na rua, então me inclino para perto de Kieran e falo
baixinho:
— Você está mesmo com vontade de contar para Gryphon que
assistiu a irmã dele ser levada sem fazer nada? Porque eu não estou.
Ele xinga baixinho, seus olhos ainda estão observando todos os
cantos que consegue ver de onde estamos escondidos.
— Não, mas eu tirei você de lá. Minhas instruções eram de te
proteger a qualquer custo e fiz meu trabalho.
— Errado. Você sabe o que posso fazer, me leva ao acampamento de
seleção. Nem tente mentir porque já sei que vocês encontraram o novo. É só
me deixar lá que eu a trago de volta — murmuro, e ele me encara como se
eu tivesse sofrido um dano cerebral.
Só que ele também parece aliviado, então já sei que venci.
Ele volta a cobrir a boca com a pescoceira, olha pelo nosso entorno
e murmura:
— Fallows, não tem porra de chance nenhuma de eu te levar a
qualquer lugar e deixar você lá. Mesmo que você não fosse Vinculada de
Shore, jamais faria isso... mas nós vamos buscar Kyrie, e depois vamos
voltar. Você só está vindo junto porque seu dom é útil numa briga, e jurei
que te manteria sempre ao meu alcance o tempo todo do lado de fora da
mansão. Vamos entrar e sair bem rápido e é isso. Mate qualquer pessoa que
chegar a menos de dois metros de nós.
Por mais baixo que ele tenha falado, Atlas consegue escutar e se vira
para me segurar, mas é tarde demais. A mão de Kieran já está segurando
meu pulso e então o mundo inteiro gira quando ele nos transporta. Os gritos
dos meus Vínculos vindo atrás de nós ecoam em meus ouvidos.
Sinto uma dor no peito por um instante, mas a afasto,
arrependimento não vai me servir de nada agora, posso me sentir uma
merda por isso mais tarde, quando Kyrie estiver em segurança.
Kieran é um membro bem treinado da Equipe Tática, um vice-líder,
então ele nos leva até o limite do acampamento sem entregar que estamos
aqui, mas quando espalho meu dom como uma rede para encontrar Kyrie,
percebo que estamos fodidos por um milhão de motivos diferentes. Eu não
estava preparada para as mudanças que, é claro, foram feitas desde a última
vez que fui prisioneira da Resistência.
Olivia está aqui e no mesmo instante soa o alarme.
Isso não é um problema muito grande, eu conseguiria acabar com
essa vagabunda sem esforço, mas ela está acompanhada do Escudo mais
forte que já conheci e não estou muito certa de eu conseguiria matar
Franklin, mesmo com a injeção extra de poder dada por completar o
Vínculo com Gryphon. Eu não estava esperando encontrá-lo em um desses
campos, em geral, ele é importante demais para esse tipo de trabalho, e o
medo comprime meu coração.
Mas, em vez de correr e gritar como se minha vida dependesse
disso, aguardo.
Estou disposta a arriscar ser capturada, torturada e morta para tirar a
irmã do meu Vinculado deste campo. A foto em sua cômoda diz muito
sobre ele e sobre o relacionamento que tem com sua família, porque é o
único item pessoal em seu quarto.
Ele não vai perdê-la.
— Saia daqui. Vá embora agora antes de chegarem aqui. Vai logo,
vou encontrar Kyrie e levá-la para casa em segurança — murmuro, mas
Kieran só nega com a cabeça, empurrando a pescoceira de novo enquanto
pega meu pulso.
Só que ele não consegue nos transportar de volta.
Franklin já nos localizou e está nos impedindo de sair, o veículo de
boas-vindas está vindo até nós. Sinto minhas pernas ficarem pesadas, meu
dom recua com a sensação do dom de outra pessoa tomando o controle do
meu corpo e me encho de pânico ao pensar em quem está chegando.
Respira fundo, Oli. Não permita que Gryphon descubra cedo
demais, senão você perderá todos eles.
Sinto-me mal pra cacete de ter feito isso com Kieran e, sabendo que
essas serão as últimas palavras que direi a ele por um bom tempo, digo:
— Me desculpa. Seja forte. Não conte nada a eles e não se preocupe
comigo. Já sobrevivi a isso antes, vou conseguir de novo. Encontre Kyrie e
dê o fora com ela assim que tiver chance.
Ele só me olha e pisca, mas eles já estão aqui, pisoteando a grama
como se guiados até nós por um farol. Suponho que meu dom seja
exatamente isso, um farol que homens corruptos seguem e tentam possuir.
Achei que ver Silas Davies de novo, o homem responsável por toda
a tortura e humilhação que passei nas mãos da Resistência, seria o maior
soco na cara possível... e é ruim mesmo.
Mas ver o pai de Atlas parado ao lado dele é pior.
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