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Table of Contents

O Reino Dos Amaldiçoados


Ficha Técnica
Dedicatória
Os Sete Círculos1
Os Sete Círculos2
O Céu
Algures Antes
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Agradecimentos
Algures Antes

Outrora, num alvorecer amaldiçoado, um rei passeava pelo seu castelo, os


seus passos trovejando pelo corredor, fazendo com que até as sombras se
afastassem para não serem notadas. Estava de mau humor e quanto mais se
aproximava dela, mais escuro ficava. Pressentiu a vingança dela muito antes de
ter entrado nesta ala do castelo. Crescia como uma multidão furiosa à porta da
sala do trono, mas pouco se importava com isso. A bruxa era uma praga sobre
estas terras.
Uma que ele erradicaria de imediato.
Asas de chamas brancas com pontas prateadas irromperam de entre as suas
omoplatas enquanto abria as portas duplas, que bateram contra a parede, por
pouco não partindo a madeira ao meio. Mas a intrusa não se moveu da sua
indolente posição, esparramada pelo trono. O seu trono.
Recusando-se a fitar diretamente o rei, acariciou a perna como uma amante
prestativa poderia tentar com um parceiro ávido. A sua túnica continha uma
abertura lateral, revelando uma pele suave do tornozelo até à anca. Ela desenhou
círculos preguiçosos na barriga da perna, arqueando-se para trás à medida que
os dedos iam subindo. A presença do rei nada fez para a dissuadir de percorrer o
corpo com as mãos, ao longo da parte de fora das coxas.
— Sai.
A atenção da bruxa desviou-se para ele.
— Falar contigo não funcionou. A lógica e o raciocínio tampouco. Agora
tenho uma nova oferta bastante tentadora para ti.
Sobre o material fino da sua túnica, roçou lentamente as extremidades dos
seios, o seu olhar tornando-se cada vez mais pesado enquanto o fitava com
ousadia.
— Despe as calças.
Ele cruzou os braços, a expressão proibitiva. Nem mesmo o seu criador
conseguia vergá-lo aos seus caprichos. E ela estava longe de ser a sua criadora.
— Sai — repetiu ele. — Sai antes que eu te obrigue.
— Tenta. — Num movimento desumanamente gracioso, ela balançou-se
para uma posição de pé, o seu longo vestido prateado reluzindo como uma
espada a esculpir os céus. Qualquer posterior tentativa de sedução desfizera-se.
— Tocai-me e destruirei tudo o que vos é querido. Vossa Majestade.
O seu tom tornara-se de escárnio, como se ele não fosse digno do título ou
de respeito.
Ele riu-se, o som tão ameaçador como a adaga agora pressionada contra a
sua esguia garganta. Ela não era a única abençoada por uma velocidade imortal.
— Pareces equivocada — ele quase rosnou. — Não há nada que me seja
querido. Quero-te fora deste reino antes do anoitecer. Se até lá não tiveres
partido, soltarei os meus cães infernais. Quando terminarem, o que sobrar será
atirado para o Lago de Fogo. — Ele esperou para sentir o seu medo. Em vez
disso, ela inclinou-se para a frente e cortou a própria garganta na lâmina com
um movimento brutal O sangue caiu sobre o seu vestido reluzente, espalhou-se
pelo liso chão de mármore, conspurcando-lhe as algemas. Com o maxilar cer‐
rado, ele limpou a adaga.
Inalterada pelo seu novo colar violento, ela afastou-se dele, o seu sorriso
mais perverso do que o pior dos seus irmãos. O ferimento coseu-se sozinho.
— Tens a certeza? Não há nada que desejes? — Como ele não respondeu, o
seu aborrecimento incendiou-se. — Afinal, talvez os rumores sejam
verdadeiros. Não tens coração nesse teu peito blindado. — Ela circundou-o, as
suas saias espalhando um rasto de sangue pelo chão outrora imaculado. —
Talvez devêssemos abri-lo para confirmar.
Ela olhou para as invulgares asas de chamas brancas e prateadas nas suas
costas, o seu sorriso tornando-se feroz. As asas eram as armas prediletas do rei,
que saudava o calor feroz e ardente que fazia os seus inimigos recuar de terror
ou cair de joelhos, derramando lágrimas de sangue.
Com um rápido estalar dos dedos, as asas adquiriram a cor das cinzas e
depois desapareceram.
O pânico apoderou-se dele enquanto ele tentava — e falhava — convocá-
las.
— Eis um truque tão perverso como o próprio diabo.
A sua voz era simultaneamente jovial e anciã enquanto recitava o feitiço.
Ele praguejou. Claro. Fora por isso que ela derramara sangue — uma oferenda a
uma das suas deusas impiedosas.
— De hoje em diante, uma maldição irá varrer esta terra. Esquecer-te-ás de
tudo menos do teu ódio. Amor, bondade, todas as coisas boas do teu mundo
cessarão. Um dia isso irá mudar. Quando encontrares a verdadeira felicidade,
prometo levar também o que quer que ames.
Ele mal ouvia uma palavra do que a bruxa de cabelos escuros dizia enquanto
se esforçava, em vão, por invocar as suas asas. O que quer que ela lhes tivesse
feito, as suas queridas armas haviam realmente desaparecido.
A sua visão quase se inundara de vermelho com o desejo de sangue, mas
refreou o temperamento com pura força de vontade. De nada lhe serviria a
bruxa se estivesse morta, sobretudo se esperasse alguma vez recuperar o que lhe
fora roubado.
Ela estalou a língua uma vez, como que desapontada por ele não ter libertado
o seu monstro interior para ripostar, e começou a virar-se. Ele não se deu ao
trabalho de a perseguir. Quando falou, a sua voz era tão sombria e silenciosa
como a noite.
— Estás enganada.
Ela parou, lançando um olhar sobre um ombro delicado.
— Oh?
— O diabo pode ser perverso, mas ele não recorre a truques. — O seu sorriso
era a tentação encarnada. — Ele negoceia.
Pela primeira vez, a bruxa parecia indecisa. Julgara-se a mais astuta, letal.
Esquecera-se de a quem pertencia a sala do trono onde se encontrava e de como
ele se agarrava àquela coisa maldita e miserável. E ele teria todo o prazer em
fazê-la recordar.
Aquele era o reino dos Malditos, e ele governava-os a todos.
— O que me dizes a fazermos um acordo?
Capítulo 1

O Inferno não era o que eu esperava.


Ignorando o Príncipe Ira traidor ao meu lado, respirei silenciosamente,
estremecendo enquanto o fumo se alastrava à nossa volta, resultante da magia
demoníaca que ele usara para nos transportar até aqui. Para os Sete Círculos.
No breve instante de viagem desde a gruta em Palermo até este reino,
concebera diversas visões da nossa chegada, cada uma mais terrível do que a
anterior. Em cada pesadelo, imaginara uma cascata de fogo e enxofre a chover
sobre nós. Chamas escaldantes que me queimavam a alma ou derretiam a carne
dos ossos. Em vez disso, lutei contra um tremor repentino.
Através do fumo e da névoa persistentes, consegui distinguir apenas paredes
talhadas de uma estranha e opaca pedra preciosa que se estendiam além do
alcance da minha visão. Ou eram azuis profundas ou eram pretas, como se a
parte mais escura do mar se tivesse expandido até uma altura impossível e
congelado no lugar.
Os calafrios percorreram-me a espinha. Resisti ao impulso de soprar ar
quente nas mãos ou de me virar para o Ira em busca de conforto. Ele não era
meu amigo, muito menos meu protetor. Era exatamente o que o seu irmão
Inveja afirmara: o pior dos sete príncipes-demónios.
Um monstro entre feras.
Nunca me poderia permitir esquecer do que ele era. Um dos Malditos. Os
seres imortais que roubavam almas para o diabo, uma das egoístas criaturas da
meia-noite de que a minha avó me advertira e a minha irmã gémea para que nos
escondêssemos a vida inteira. Agora, prometera de bom grado casar-me com o
seu rei, o Príncipe Orgulho, para pôr fim a uma maldição. Ou, pelo menos, fora
nisso que os levara a acreditar.
O espartilho de metal que o meu futuro marido me oferecera no início da
noite tornou-se insuportavelmente frio no ar gelado. As camadas das minhas
saias escuras e brilhantes eram demasiado leves para proporcionar qualquer tipo
de proteção ou calor e os meus sapatos eram pouco mais do que restos de seda
preta com finas solas de couro.
O gelo atravessou-me as veias. Não pude deixar de pensar que este era mais
um esquema perverso concebido pelo meu inimigo para me desestabilizar.
Sopros de ar flutuavam como fantasmas diante do meu rosto. Assombrosos,
etéreos. Perturbadores. Santa deusa. Estava mesmo no Inferno. Se os príncipes-
demónios não me apanhassem primeiro, a Nonna Maria iria certamente matar-
me. Especialmente quando descobrisse que eu renunciara à minha alma pelo
Orgulho. Sangue e ossos. O diabo.
Uma imagem do pergaminho que me ligava à Casa Orgulho atravessou-me
o pensamento. Não conseguia acreditar que assinara o contrato com sangue.
Apesar da minha anterior confiança no meu plano para me infiltrar neste mundo
e vingar o assassínio da minha irmã, senti-me profundamente incapaz, agora
que estava aqui.
Onde quer que «aqui» fosse. Não parecia que tivéssemos conseguido entrar
em qualquer uma das sete Casas reais demoníacas. Nem sei porque achara que o
Ira me iria facilitar esta viagem.
— Estamos à espera da chegada do meu prometido?
Silêncio.
Alternei o peso nos pés, desconfortável.
O fumo ainda me toldava a visão, e como a minha escolta demoníaca se
recusava a falar, a minha mente começou a atormentar-me com uma vasta gama
de medos criativos. Tanto quanto sabia, o Orgulho encontrava-se diante de nós,
à espera para reivindicar a sua noiva.
Ouvi com atenção, esforçando-me por discernir o som de alguém a
aproximar-se através do fumo. De qualquer coisa. Não havia nada além do
martelar frenético do meu coração.
Nada de gritos dos eternamente torturados e amaldiçoados. O silêncio
absoluto e inquietante cercava-nos. A sensação era pesada — como se toda a
esperança tivesse acabado havia um milénio e tudo o que restara fosse o silêncio
esmagador do desespero. Seria tão fácil desistir, deitar-me e deixar entrar a
escuridão. Este reino era o inverno em toda a sua cruel e impiedosa glória.
E ainda nem sequer tínhamos atravessado os portões...
O pânico apoderou-se de mim. Queria regressar à minha cidade — com o
seu ar de maresia e gente estival — de tal forma que me doía o peito. Mas fizera
a minha escolha e iria com ela até ao fim, acontecesse o que acontecesse. O
verdadeiro assassino da Vittoria ainda andava por aí. E eu atravessaria os
Portões do Inferno mil vezes para o encontrar. A minha localização mudara,
mas o meu derradeiro objetivo não.
Respirei fundo, e o gesto acalmou as minhas emoções.
O fumo dissipou-se, por fim, permitindo o meu primeiro vislumbre
desimpedido do submundo.
Estávamos sozinhos numa caverna, semelhante à que tínhamos deixado bem
acima do nível do mar em Palermo, o mesmo local onde eu montara o meu
círculo de ossos e invocara o Ira, quase dois meses antes, mas, ao mesmo
tempo, tão diferente que o meu estômago se contorceu perante a paisagem
estranha.
Algures acima de nós, infiltraram-se alguns feixes prateados de luar. Não
era muito, mas oferecia iluminação suficiente para ver o solo devastado e
disperso com pedras que brilhavam com a geada.
A vários metros de distância, encontrava-se um portão alto e ameaçador, não
muito diferente do príncipe silencioso ao meu lado. Colunas esculpidas de
obsidiana, retratando pessoas a serem torturadas e assassinadas de formas
brutais, ladeavam duas portas feitas inteiramente de caveiras. Humanas.
Animais. Demoníacas. Algumas com chifres, outras com caninos. Todas
perturbadoras. A minha atenção pousou no que assumi ser a pega: um crânio de
alce com um enorme par de chifres cobertos de geada.
O Ira, o poderoso demónio da guerra e traidor da minha alma, moveu-se.
Uma pequena centelha de irritação fez-me olhar de relance para ele. Já me
habituara ao seu olhar penetrante. O mesmo olhar frio que lhe esculpia o rosto.
Quis arrancar-lhe o coração e espezinhá-lo para lhe arrancar nem que fosse um
vestígio de emoção. Qualquer coisa seria melhor do que a indiferença gélida que
agora vestia tão bem.
Ele voltara-se contra mim no momento em que isso lhe servira as
necessidades. Não passava de uma criatura egoísta. Tal como a Nonna advertira.
E eu fora uma tola por ter acreditado no contrário.
Entreolhámo-nos por um momento prolongado.
Aqui, nas sombras do submundo, os seus olhos dourado-escuros brilhavam
como a coroa de extremidades rubi na sua cabeça. Quanto mais nos olhávamos,
mais a minha pulsação acelerava. O seu aperto em mim fechou-se ligeiramente,
e só então me apercebi de que lhe estava a agarrar a mão com força. Larguei-a e
afastei-me.
Se ele estava aborrecido, divertido ou mesmo furioso, eu não tinha maneira
de saber. A sua expressão ainda não se alterara; permanecia tão distante como
quando me oferecera aquele contrato com o Orgulho, havia alguns minutos. Se
era assim que ele queria que as coisas ficassem entre nós, ótimo.
Não precisava dele, nem o queria. Na verdade, até lhe diria para ir para o
Inferno, se já não tivéssemos ambos alcançado esse feito.
Ele observou-me enquanto tentava controlar os meus pensamentos. Forcei-
me a adotar uma calma gélida que estava longe de sentir. Considerando quão
bem ele era capaz de pressentir emoções, provavelmente era um esforço inútil.
Fitei-o.
Fazendo o meu melhor para imitar o príncipe-demónio, incorporei o meu
tom mais altivo:
— Os infames Portões do Inferno, presumo.
Ele arqueou uma sobrancelha escura, como se me perguntasse se aquilo era o
melhor que eu conseguia fazer.
A raiva substituiu o medo persistente. Pelo menos, ele ainda preservara
alguma da sua utilidade.
— Será o diabo demasiado importante e poderoso para vir ao encontro da sua
futura rainha? Ou terá medo de uma caverna húmida?
O sorriso com que o Ira me respondeu foi afiado e repleto de um deleite
perverso.
— Isto não é uma caverna. É um vazio fora dos Sete Círculos. Pousou uma
mão na minha zona lombar e conduziu-me em frente. Fiquei tão surpreendida
com a agradabilidade da sensação, a intimidade terna do seu gesto, que não me
afastei. Os seixos arrastaram-se sob os nossos pés, mas sem fazer barulho. Fora
as nossas vozes, a falta de barulho era tão aguda que quase perdi o equilíbrio. O
Ira manteve-me segura antes de me soltar.
— O lugar onde as estrelas temem entrar — sussurrou-me ao ouvido, o seu
hálito quente um contraste forte ao ar gelado. Estremeci. — Mas nunca o diabo.
As trevas são seduzidas por ele. Assim como o medo.
Percorreu a minha coluna com os dedos frios, provocando-me mais arrepios.
A minha respiração parou. Virei-me e esbofeteei-lhe a mão para longe.
— Leva-me ao Orgulho. Estou farta da tua companhia.
O solo ressoou sob nós.
— Não foi o teu orgulho a aparecer naquele círculo de ossos, na noite em
que derramaste o teu sangue e me convocaste. Foi a tua ira. A tua fúria.
— Até pode ser verdade, Vossa Alteia, mas o pergaminho que assinei dizia
«Casa Orgulho», não dizia?
Aproximei-me, o coração exaltado enquanto preenchia o espaço dele. O
calor do seu corpo irradiava à minha volta como o sol, morno e convidativo.
Fazia-me lembrar a minha casa. Esta nova dor no peito era aguda, desgastante.
Afiei a língua como uma lâmina e apontei a direito para o seu coração glacial,
na esperança de penetrar o muro que ele tão habilmente erguera entre nós.
Errada ou não, queria magoá-lo da mesma forma que a sua mentira me
esventrara.
— Portanto, escolhi o diabo, não tu. Qual é a sensação? Saber que preferia
partilhar a cama com um monstro por toda a eternidade a voltar a submeter-me
a ti, Príncipe Ira?
A sua atenção desceu para os meus lábios e aí permaneceu. Um brilho
sedutor trespassou-lhe os olhos enquanto eu retribuía o favor. Ele podia não o
admitir, mas queria beijar-me. A minha boca curvou-se num sorriso feroz; por
fim, ele perdera aquela indiferença fria. Azar o dele, agora eu estava-lhe
interdita.
Ele prolongou o olhar por mais um instante e depois disse com uma calma
letal:
— Escolhes o diabo?
— Sim.
Agora estávamos tão próximos que partilhávamos o fôlego. Recusei-me a
recuar. E ele também.
— Se é esse o teu desejo, contacta o reino dele. De facto — arrancou a
adaga do interior do fato —, se tens tanta certeza em relação ao diabo, faz um
juramento de sangue. Se o orgulho for realmente o teu pecado de escolha,
imagino que não irás dizer que não.
O desafio ardia-lhe no olhar enquanto me entregava a lâmina, cabo
primeiro. Tirei-lhe a adaga da sua Casa e pressionei o metal afiado contra a
ponta do dedo. O Ira cruzou os braços e lançou-me um olhar desinteressado.
Achava que eu não iria em frente com aquilo. Talvez fosse o meu maldito
orgulho, mas também me senti como se o meu temperamento estivesse a arder
de fúria enquanto picava o dedo e lhe devolvia a lâmina da serpente. Já assinara
o contrato do Orgulho; não havia motivo para hesitar agora. O que não tem
remédio, remediado está.
— Eu, Emilia Maria di Carlo, escolho o diabo de livre vontade.
Uma única gota de sangue salpicou o chão, selando o voto. Voltei a minha
atenção para o Ira. Algo se inflamou nas profundezas dos seus olhos, mas ele
virou-se para o lado antes que eu o pudesse interpretar. Enfiou a adaga no
casaco e começou a abrir caminho em direção aos portões, deixando-me sozinha
à beira do nada.
Pensei em correr, mas não havia para onde ir.
Olhei uma última vez em redor e corri atrás do demónio, alcançando-lhe o
passo no degrau ao seu lado. Envolvi o tronco com os braços, tentando
desesperadamente parar os tremores crescentes, o que apenas conseguiu fazer-
me tremer mais. O Ira levara o seu calor com ele, e agora o espartilho de metal
mordia-me a pele com um vigor renovado. Se ficássemos aqui fora muito mais
tempo, morreria congelada. Conjurei memórias de calor, de paz.
Apenas sentira este frio uma vez, no Norte da Itália, quando era nova, e na
época ficara entusiasmada com a neve. Achara-a romântica, mas agora via a
verdade: era lindamente perigosa.
Muito como o meu atual companheiro de viagem.
Os meus dentes bateram como pequenos martelos, o único barulho no vazio.
— Porque é que podemos ouvir-nos um ao outro?
— Porque eu o permito.
Besta arrogante. Libertei um sopro de tremor. Deveria ter parecido
exasperado, mas temi que apenas revelasse o frio que eu estava a sentir. Um
pesado manto de veludo apareceu do ar rarefeito, arrastando-se à volta dos meus
ombros. Não sabia de onde o Ira o tirara e também não quis saber.
Puxei-o com mais força, grata pelo seu calor. Abri a boca para agradecer ao
demónio, mas detive-me com um rápido abanão interno. O Ira não agira por
gentileza ou mesmo por cavalheirismo. Imaginei que o tivesse feito, em grande
parte, para ter a certeza de que eu não morreria tão perto de completar a sua
missão.
Se a minha memória não me falhava, renunciar à minha alma pelo Orgulho
concedia-lhe a libertação do submundo. Algo que, certa vez, ele dissera prezar
acima de tudo.
Que excecionalmente maravilhoso para ele. A sua estada terminava assim
que a minha estava prestes a começar. E apenas precisara de me trair para
satisfazer o maior desejo do seu coração.
Suponho que compreendia isso bastante bem.
O Ira continuou em direção ao portão e não voltou a olhar para mim.
Pressionou uma mão sobre a coluna mais próxima de nós e sussurrou uma
palavra numa língua estrangeira, demasiado baixo para que eu pudesse ouvir. A
luz dourada pulsou da sua palma e fluiu para a pedra preciosa preta.
Um instante depois, os portões abriram-se lentamente. Não consegui ver o
que jazia mais além, e a minha mente depressa elaborou todo o tipo de coisas
terríveis. O príncipe-demónio não ofereceu nenhum convite formal; avançou em
direção à abertura sem se preocupar em ver se eu o seguia.
Respirei fundo e aguentei os nervos. Fosse o que fosse que nos esperasse,
faria o que fosse preciso para alcançar os meus objetivos. Aninhei-me no meu
manto e avancei atrás dele.
O Ira parou no limiar do submundo e dignou-se, por fim, a voltar a olhar
para mim. A sua expressão foi mais dura que o seu tom, o que me fez deter o
passo.
— Uma palavra de aviso.
— Estamos prestes a entrar no Inferno — interrompi sardonicamente. —
Creio que o discurso de precaução já vem um bocadinho tarde.
Ele não pareceu divertido.
— Nos Sete Círculos há três regras a cumprir. Primeiro, nunca reveles os
teus verdadeiros medos.
Não planeara fazê-lo.
— Porquê?
— Este mundo vai virar-se do avesso para te torturar. — Abri a boca, mas
ele levantou uma mão. — Segundo, controla os teus desejos ou eles provocar-
te-ão com ilusões facilmente confundidas com a realidade. Tiveste uma amostra
do que isso é quando conheceste o Luxúria. Cada um dos teus desejos será
ampliado dez vezes aqui, em especial quando entrarmos no Corredor do Pecado.
— Corredor do Pecado. — Não o proferira como uma pergunta, mas o Ira
respondeu ainda assim.
— Os novos súbditos do reino são testados para ver com qual das Casas
reais o seu pecado dominante se alinha melhor. Irás experienciar um certo...
estímulo... de emoções ao passar por ele.
— Renunciei à minha alma pelo Orgulho. Porque é que preciso de ver onde
me adapto melhor?
— Vive tempo suficiente para encontrares essa resposta por ti mesma. —
Engoli o meu desconforto crescente. A Nonna sempre nos prevenira de que as
más notícias surgiam em três, o que significava que o pior ainda está para vir.
— A terceira regra é... — A sua atenção escorregou para o dedo que eu picara.
— Sê prudente ao fazer acordos de sangue com um príncipe do Inferno. E em
nenhuma circunstância deverás fazer um que envolva o diabo. O que é dele, a
ele pertence. Só um tolo o contrariaria ou tentaria desafiar.
Cerrei os dentes. Os verdadeiros jogos de engano haviam claramente
começado. O seu aviso lembrou-me vagamente de uma nota do nosso grimório
de família, e perguntei-me como teríamos chegado a possuir esse conhecimento.
Afastei o pensamento, concentrando-me, em vez disso, na minha raiva
crescente.
Ele estava sem dúvida a alimentar as minhas emoções com o seu poder
homónimo. O que me enfurecia ainda mais.
— Renunciar à minha alma não te bastou. Então recorreste a truques. Pelo
menos és consistente.
— Um dia vê-lo-ás como um favor.
Improvável. Contraí a mão ferida num punho. O Ira voltou a encontrar o
meu olhar, e um sorriso encarquilhou-lhe os cantos da sua boca sensual. Sentia,
sem dúvida, a minha fúria crescente.
Um dia, em breve, fá-lo-ia pagar por isto.
Ofereci-lhe um sorriso deslumbrante, permitindo-me imaginar quão bem me
sentiria quando finalmente o destruísse. A sua expressão fechou-se e ele
inclinou a cabeça — como se estivesse a ler todos os meus pensamentos e
emoções e jurasse, silenciosamente, fazer o mesmo. Neste ódio encontrávamo-
nos unidos.
Sustendo o seu olhar intenso, assenti de volta, agradecida pela sua traição.
Era a última vez que caía nas suas mentiras. Contudo, com alguma sorte, ele e
os seus irmãos malditos iriam apenas começar a cair nas minhas. Teria de
desempenhar bem o meu papel, ou acabaria morta como as outras noivas
bruxas.
Passei por ele e pelos Portões do Inferno como se ambos me pertencessem.
— Leva-me para a minha nova casa. Estou pronta para saudar o meu
estimado marido.
Capítulo 2

Da escuridão da caverna saímos para uma tundra brilhante no topo de uma


montanha.
Pestanejei pela súbita picadela nos olhos e contemplei este mundo cruel e
impiedoso. Santa deusa. Estava o mais longe de casa que podia estar.
Não havia mar, nem calor, nem sol ardente e resplandecente. Estávamos no
buraco de um trilho íngreme coberto de neve, apenas largo o suficiente para
caminharmos lado a lado.
Um vento mordaz rosnou através da escarpada passagem da montanha,
rasgando-me o manto. Atrás de nós, os portões fecharam-se com um ressoar que
ecoou alto entre as montanhas cobertas de neve. O som inesperado deixou-me
tensa. Era o primeiro barulho que ouvia fora do vazio e não podia ter soado
mais como um prenúncio. Virei-me, o coração a trovejar, e vi a magia
demoníaca surgir das entranhas desta terra e deslizar pelos portões. As mesmas
videiras cobertas de espinhos azul-violáceos que haviam selado o diário da
Vittoria entre órbitas oculares e maxilares, entrelaçando-se até que as caveiras
brancas brilhassem com um tom gélido e fantasmagórico.
O ar frio encurtou-me o fôlego. Estava presa no submundo, rodeada pelos
Malvagi, sozinha. Agira por medo e desespero — dois ingredientes essenciais
para a criação de um desastre. Um clarão do corpo profanado da minha irmã
gémea carimbou aquele sentimento no chão gelado.
— Disseste-me que os portões estavam quebrados. — Havia uma
mordacidade impressionante no meu tom. — Que os demónios estavam a
escapulir-se, prontos para lançar a guerra no meu mundo.
— O Chifre de Hades foi restituído.
— Claro.
Os chifres do diabo eram necessários para trancar os portões. Pelos vistos,
qualquer príncipe-demónio poderia empunhá-los, e não me ocorrera pedir
esclarecimentos ao Ira. Fora outra forma de ele contornar a regra da minha
convocação que estipulava que «não podia mentir-me diretamente».
Se é que essa parte era sequer verdadeira.
Soltei um suspiro e voltei-me para trás, contemplando a paisagem. À nossa
direita, no terreno coberto de geada, havia um declive acentuado e ao longe,
pouco visível através de uma camada de nevoeiro ou de uma tempestade
longínqua, erguiam-se torreões sobre um castelo, apontando dedos esguios
acusatórios para os céus.
— É ali... — Engoli com força. — É ali que mora o Orgulho?
— Passou-te a ânsia de o conheceres? — Uma expressão presunçosa
espalhou-se pelas feições do Ira antes de ele ter tempo para instruir o rosto de
voltar à indiferença. — O primeiro círculo é o território do Luxúria. Imagina a
disposição como as Sete Colinas de Roma. Cada príncipe controla a sua própria
região ou cume. O círculo do Orgulho não pode ser visto a partir daqui. Situa-se
no centro, perto da minha Casa.
Estar tão perto do bastião do Luxúria não era reconfortante. Não me
esquecera de como a sua influência demoníaca me fizera sentir. De como
cobiçara o Ira e bebera demasiado vinho de maçã e dançara sem qualquer
preocupação enquanto um assassino caçava bruxas.
Também nunca me esqueceria de como fora difícil recuperar os sentidos
após o Luxúria ter cruelmente arrancado os seus poderes, deixando-me uma
casca vazia. Se não tivesse sido pela interferência do Ira, ainda poderia estar
naquele lugar sombrio e apavorante.
Quase podia sentir o desespero a atravessar-me a garganta com um prego
afiado, implorando, tentando... Fingi que o medo crescente era lama sob os
meus sapatos e esmaguei-o.
O Ira observou-me atentamente, e o seu olhar acendeu-se com grande
interesse. Talvez estivesse à espera de que me ajoelhasse e lhe implorasse que
me escoltasse de volta a casa. Precisaria de muito mais do que estar no canto
mais frio do Inferno para alguma vez me baixar perante ele.
— Pensei que seria mais quente — admiti, o que me fez receber um olhar
divertido do demónio. — Fogo e enxofre. O habitual.
— Os mortais têm lendas de advertência peculiares sobre deuses e
monstros e o seu suposto criador, mas a verdade, como podes ver, é muito
diferente daquilo que ouviste.
Um clique suave distraiu-me de mais indagações. Subindo uma encosta
vertiginosa à nossa esquerda, havia uma fila de árvores desgalhadas a balançar
sob o vento ártico, os seus membros chocalhando levemente uns contra os
outros. Algo nelas fez-me pensar em velhas de pele murcha e rugosa, sentadas
juntas, a usar ossos como agulhas de tricotar. Se semicerrasse os olhos, quase
jurava que distinguia o contorno sombrio das suas figuras. Pestanejei e a
imagem tinha desaparecido. Quase de imediato, um rosnado baixo flutuou sobre
o vento.
Olhei para o Ira, mas ele pareceu não se aperceber da visão peculiar nem
ouvir nada digno de nota. Fora um dia muito longo, carregado de emoções, e a
minha imaginação estava a levar a melhor sobre mim. Afastei a sensação
inquietante.
— Este é o Corredor do Pecado — continuou o Ira, interrompendo, sem
saber, as minhas preocupações. — A magia transvenio é proibida neste pedaço
de terra na primeira vez que atravessas para este reino, por isso terás de viajar a
pé.
— Tenho de o fazer sozinha?
O Ira desviou a sua atenção de mim.
— Não.
Libertei uma respiração lenta e tranquila. Graças à deusa pelos pequenos
favores.
— Porque é que as pessoas têm de passar por aqui?
— É uma forma de os recém-chegados formarem alianças com outros que
partilham o seu pecado dominante.
Refleti sobre aquilo.
— Se eu tiver tendência para a raiva, estaria mais bem alinhada com a Casa
Ira. — O príncipe assentiu. — E outros que são mais propensos a outros
pecados... seriam repelidos por outras Casas demoníacas? Digamos que um
membro da Casa Ira se associava com a Casa Preguiça, isso poderia causar um
escândalo de alguma forma?
— Um escândalo não digo, mas quase. Os mortais alinham-se com partidos e
causas políticas. Aqui não é diferente, mas trabalhamos com vício.
— Os demónios e os humanos são testados da mesma maneira? O Ira
pareceu escolher cuidadosamente as suas próximas palavras. — A maioria dos
mortais nunca chega ao Corredor do Pecado ou aos Sete Círculos. Tendem a
aprisionar-se na sua própria ilha separada fora dos portões, ao largo da costa
ocidental. É uma espécie de castigo autoinfligido.
— Não os prendem na Prisão da Condenação?
— A ilha é a prisão. Eles vivem numa realidade da sua própria autoria.
Podem sair a qualquer momento. A maioria nunca o faz. Vivem e morrem na
sua ilha e começam de novo.
Era um inferno à sua própria maneira.
— A Nonna disse que as Bruxas das Estrelas eram as guardiãs entre reinos.
Porque é que os mortais e os Malditos precisariam de guardas se eles nunca
saem?
— Talvez as almas mortais, e os meus irmãos, não sejam tudo o que elas
protegem.
Vago e frustrante como sempre.
— Ainda não percebi porque é que preciso sequer de ser testada. — Então
sugiro que te acauteles com o meu aviso anterior e que te concentres em
sobreviver.
Proferira-o não só como um desafio mas como uma ordem altiva para parar
de lhe fazer perguntas. Estava demasiado apreensiva para o contrariar. A
ameaça de morte pairava sobre mim, baixa e escura como as nuvens que se
acumulavam. O estúpido príncipe voltou a arrastar o olhar sobre mim,
demorando-se nas minhas curvas suaves.
Não estava a usar o meu amuleto — o Ira ainda estava de posse dele —, por
isso não havia confusão sobre onde recaía o seu foco.
Mesmo coberta pelo manto, jurei sentir o calor da sua atenção como uma
carícia física na minha pele.
Os pensamentos de morte dissiparam-se-me.
— Algum problema com o meu espartilho?
— Parece que os teus testes já começaram. Estava a olhar para o teu manto.
Expirei lentamente e reprimi as diversas maldições que me surgiram na
mente.
Ele sorriu como se o meu aborrecimento lhe agradasse infinitamente.
Ainda a sorrir, apressou-se a descer o íngreme desfiladeiro da montanha, os seus
passos eram firmes e seguros, apesar da neve e do gelo.
Não podia acreditar... ele estava a calcar a neve para que eu pudesse
caminhar através dela nos meus sapatos delicados? Lá estavam aqueles modos
impecáveis de demónio outra vez. Estava mesmo disposto a tudo para me
entregar em segurança ao Orgulho.
A propósito desse pecado em particular... Levantei o queixo, assumindo o
tom e comportamento mais arrogantes do que qualquer rei ou rainha mortal
nascido para governar poderia alguma vez esperar alcançar. E porque não me
deveria sentir superior? Estava prestes a governar o submundo. Já era tempo de
o Ira mostrar algum respeito pela sua rainha.
— Sou perfeitamente capaz de percorrer o meu próprio caminho. Podes ir
agora.
— Não te tomava pelo tipo de atirar pedras ao próprio telhado.
— Se não conseguir andar pela neve sem ajuda, mais vale cortar a garganta
agora e acabar com isto de uma vez. Não preciso que tu ou alguém me dê a
mão. Na verdade, gostaria que me deixasses em paz. Vou mais depressa sem ti.
Ele parou de andar e olhou por cima do ombro. Agora não havia qualquer
calor ou provocação na sua expressão.
— Resiste ao Corredor do Pecado, ou deixar-te-ei entregue à tua
arrogância orgulhosa. És mais suscetível a cair sob a influência de um
determinado pecado quando manifestas os seus primeiros atributos. Este é o
meu último aviso e o fim de qualquer ajuda que te darei. Aceita-o como é ou
deixa-te ir.
Cerrei os dentes e fiz o meu melhor para seguir pelo seu rasto. Cada passo
com que avançava para o submundo, sentia que os restantes pedaços de mim
mesma se desfaziam lentamente. Não pude deixar de me perguntar se restaria
algo que eu reconhecesse de mim quando regressasse a casa.
Como que em resposta às minhas incessantes preocupações, uma raiva
latente começou a arder em mim enquanto percorríamos quilómetros em
silêncio. Sem dúvida, estava agora a ser testada quanto à minha ira. Era
familiar, bem-vindo. Embora devesse certificar-me de que me alinhava melhor
com o orgulho, virei-me para a minha raiva enquanto percorríamos o trilho,
atravessávamos um riacho congelado e parávamos perto de uma extensão
ligeiramente maior e mais plana que espreitava por uma cordilheira mais
pequena. Aglomerados de plantas de folha perene que se pareciam com os
esboços de zimbro e cedro do grimório da Nonna dispersavam-se num
semicírculo em torno do canto mais a leste onde havíamos parado.
Mais acima, nuvens furiosas percorriam o céu. Um relâmpago disparou
como a língua de uma grande besta, seguido pelo rugido de trovão como um
batimento cardíaco mais tarde. Sem pestanejar, vi a massa escura a aproximar-
se a galope. Já havia presenciado muitas tempestades, mas nenhuma que se
movesse mais depressa do que as deusas em busca de vingança. Era como se a
própria atmosfera estivesse possuída. Ou talvez este mundo ressentisse a sua
mais nova habitante e estivesse a manifestar o seu desagrado. Tinha isso em
comum com o Ira.
Uns minutos depois, interrompemos a nossa marcha inexorável.
— Isto terá de servir.
O Ira despiu o seu casaco formal e pendurou-o cuidadosamente sobre um
ramo baixo. Havia estado enganada: a sua adaga não repousava no casaco; ele
trazia um coldre de couro no ombro, por cima da sua camisa em forma de
túnica, e o cabo dourado reluzia enquanto ele se torcia. Desabotoou os botões
dos punhos, arregaçou as mangas para trás e depois começou a juntar ramos
cobertos de gelo.
— O que estás a fazer?
— A construir um abrigo. A não ser que queiras dormir numa tempestade,
sugiro que apanhes algumas ramagens e que lhes tires o gelo. Vamos usar o que
recolheres para nos deitarmos.
— Eu não vou dormir contigo. — Por muitas razões, a mais gritante porque
estava prometida ao irmão dele, e, apesar da questão da sobrevivência, duvidava
que o diabo ficasse satisfeito se eu me aninhasse ao lado de outro príncipe-
demónio.
O Ira partiu um ramo do cedro mais próximo e olhou de relance para mim.
— A escolha é tua, mas não te irei curar quando ficares doente. — Ele
lançou-me um olhar duro. — Se não queres congelar até à morte, sugiro que te
apresses.
Não querendo voltar a ser testada quanto à ira ou ao orgulho — ou a
qualquer outro pecado —, engoli os meus protestos e fui à procura de ramagens.
Encontrei algumas, a uns passos de distância de onde estava o Ira, e limpei-lhes
os montes de neve e gelo o mais rápido que pude. Para minha surpresa, fi-lo tão
rápido quanto o príncipe-demónio. Em pouco tempo, tinha quase mais do que a
quantidade que podia carregar. O que era bom, uma vez que os meus dedos
estavam a ficar vermelhos e rígidos devido ao frio e à humidade.
Depois de ter reunido o suficiente para encher os braços, levei-as para o
nosso local de acampamento. As nuvens agitavam-se furiosamente e os trovões
sacudiam o chão. Se tivéssemos sorte, ainda nos restavam alguns minutos antes
do cair das primeiras gotas. O Ira já tinha criado um pequeno abrigo circular sob
uma das árvores mais densas e encontrava-se a empurrar a neve para cima e à
volta dos ramos que pusera no chão. As paredes exteriores eram de neve sólida,
o telhado era de ramos e colmo e provavelmente teríamos ambos de ficar
deitados enrolados de lado para caber. Não conseguia imaginar sobreviver à
noite numa câmara feita de oferendas de inverno, mas o Ira parecia acreditar
que ficaríamos seguros.
Olhei para cima; a grande árvore perene que se elevava por cima de nós
também proporcionava uma barreira adicional de proteção. Era uma escolha
inteligente de local.
Sem se virar, o Ira estendeu o braço.
— Dá-mas.
Fiz o que ele me pediu, dando-lhe uma ramagem de cada vez, enquanto
sonhava bater-lhe na cabeça com uma. Ele deitou-as em fila, certificando-se de
que o chão ficava todo coberto com duas camadas.
Moveu-se rápida e eficientemente, como se já o tivesse feito mil vezes antes.
E provavelmente tinha. Eu não era a primeira alma que ele roubara para o diabo.
Mas seria a sua última.
Assim que pousou a última ramagem, começou a desabotoar a camisa, com
cuidado para evitar o coldre de couro. Que manteve no ombro. Os músculos
possantes enrugaram-se enquanto ele despia a camisa, e não pude deixar de
olhar fixamente para a tatuagem da serpente que lhe envolvia o braço e ombro
direitos. Parecia mais grandiosa aqui, mais detalhada e marcante.
Talvez porque a sua pele parecia mais escura, em contraste com o fundo
pálido desta terra, e as linhas douradas metálicas sobressaíam de forma mais
vívida.
Aclarei a garganta.
— Porque é que te estás a despir? Também te sentes afetado pela magia
aqui?
Ele olhou para cima. O suor humedecia-lhe o cabelo escuro na testa,
fazendo-o parecer mortal, para variar.
— Despe o espartilho.
— Prefiro não o fazer. — Disparei-lhe um olhar incrédulo. — Que raio
pensas que estás a fazer?
— A dar-te algo para vestires para não congelares nesse metal. — Ele
estendeu-me a camisa, mas puxou-a para trás antes de eu a agarrar, um brilho de
regozijo nos olhos. — A não ser que prefiras dormir nua. A senhora é que
escolhe.
O meu rosto aqueceu.
— Porque não podes simplesmente conjurar mais roupa com magia?
— Qualquer uso de magia durante a tua primeira viagem pelo Corredor do
Pecado é considerado interferência.
— Conjuraste um manto.
— Antes de atravessarmos para o verdadeiro submundo.
— Como é que vais dormir?
A sua expressão tornou-se definitivamente perversa ao levantar uma
sobrancelha.
Oh.
Amaldiçoei este mundo e o diabo e marchei para dentro da nossa câmara
feita de neve e gelo, aceitando a camisa dele. Apressei-me a despir o meu manto
e pousei-o no chão. Como um cavalheiro, o Ira saiu da câmara — tempo
necessário para recuperar o seu casaco — e examinou-me de cima a baixo
quando regressou ao pequeno espaço. Lá se foram as boas maneiras.
Os seus lábios estremeceram enquanto eu rodava e tentava virar a estúpida
peça de roupa sem lhe tocar. Não se mexia, E ele também não. Olhei para o
demónio como se a minha presente adversidade fosse totalmente culpa dele. Ele
pareceu encantado com a minha raiva, o anormal.
— Preciso da tua ajuda — admiti por fim. — Não consigo despi-lo sozinha.
O príncipe infernal inspecionou o meu espartilho tão entusiasmado quanto se
eu lhe tivesse pedido para recitar um soneto à luz de uma lua cheia, mas não
negou o meu pedido.
— Vira-te.
— Tenta conter o entusiasmo, ou poderei pensar que gostas de mim.
— Dá-te por sortuda. Gostar de ti seria algo perigoso. Resfoleguei.
— Porquê? Arruinar-me-ias para todos os outros príncipes-demónios?
— Algo assim.
Ele sorriu e gesticulou para que me virasse. Os seus dedos moveram-se
habilmente pelas fitas que se entrecruzavam nas minhas costas, e ele puxou e
desatou-as com uma precisão militarista.
Segurei a parte da frente para o impedir de cair enquanto o tecido das costas
se abriu logo depois, expondo a minha pele. O ar beijado pelo gelo dançou
sobre mim.
Nunca tinha saído de um espartilho tão depressa. Ou tivera ajuda dos seus
sentidos sobrenaturais, ou então tinha muita prática a despir mulheres.
Nesse instante, um relance dele a deitar-se com alguém passou-me pela
cabeça com um detalhe vívido e impressionante. Vi unhas perfeitamente limpas
a cravarem-se-lhe nas costas, pernas longas e bronzeadas enroladas em torno
das suas ancas, gemidos suaves de prazer a escaparem enquanto ele investia
ritmadamente.
O pensamento despertou um sentimento sombrio. Cerrei os dentes, de
repente reprimindo uma série de acusações enquanto me virava. Se não
soubesse mais, pensaria que estava...
— Invejosa. — O Ira não demorou a detetar a minha mudança de humor.
— Pára de ler as minhas emoções. — Desviei a minha atenção para a cara
dele. A sua expressão apagou-se. Fora-se qualquer lampejo de humor irónico ou
de maldade. Permaneceu rígido, como se se tivesse forçado a transformar-se
num bloco de gelo impenetrável. Pelos vistos, a ideia de me tocar assim era
revoltante.
— O corredor vai continuar a testar-te. — Observou o rubor que me
manchava as faces com um tom de vermelho profundo, mas não o referiu. A sua
atenção deslocou-se brevemente para o meu pescoço antes de regressar aos
meus olhos. — Desliga-te o máximo possível das tuas emoções. A partir deste
ponto, apenas ficarão mais intensas. Além do medo, este mundo prospera tanto
no pecado como no desejo.
— O desejo não é o mesmo que a luxúria?
— Não. Podes desejar riqueza, poder ou estatuto. Amizade ou vingança.
Os desejos são mais complexos que meros pecados. Por vezes são bons. Outras
vezes refletem inseguranças. Este mundo é influenciado por aqueles que o
governam. Com o passar do tempo, tem vindo para brincar com todos nós.
Evitando o contacto visual, ele afastou-se, retirou a sua coroa e deitou-se
na extremidade das ramagens, chegando mesmo a virar-se de costas para mim.
E, mesmo assim, estaríamos a dormir demasiado perto. Mal havia espaço para
uma mão entre nós.
Invejosa. Dele a fornicar que nem um animal com outra pessoa.
A ideia era ridícula, sobretudo após a sua traição, mas a sensação
persistente de ciúmes não desapareceu de imediato. Praguejei entredentes e
concentrei-me mais em controlar as minhas emoções. A última coisa de que
precisava era de ter este reino a atrair-me mais profundamente para aqueles sete
pecados dominantes, alimentando-se dos meus sentimentos.
Deixei cair o espartilho/dispositivo de tortura e vesti a camisa dele. Ficava
enorme no meu corpo, mas não me importei. Estava quente e cheirava ao
príncipe. Menta e verão. E algo distintamente, inconfundivelmente masculino.
Olhei para o Ira. Continuava sem camisa, apesar da frialdade do ar. Fora as
suas calças justas, usava apenas o coldre no ombro e a adaga. Aquela seria uma
noite longa e miserável.
— Não vais vestir o teu casaco?
— Pára de ter pensamentos obscenos sobre mim e descansa um pouco.
— Eu devia ter-te matado quando tive oportunidade.
Ele virou-se para me estudar, o seu olhar lento e sinuoso à medida que
avançava dos meus olhos para a curva das minhas faces e assentava nos meus
lábios. Passado um longo momento, ele disse:
— Dorme.
Suspirei, depois deixei-me cair no chão e puxei o manto sobre mim, como
um cobertor. O pequeno espaço depressa se encheu com o cheiro a cedro e a
pinheiro. Lá fora, o vento uivava. Instantes depois, pequenas bolinhas de gelo
invadiram a nossa câmara. No entanto, nada se infiltrou no nosso abrigo.
Permaneci deitada durante algum tempo, a ouvir a respiração do demónio a
tornar-se lenta e regular. Assim que tive a certeza de que ele estava a dormir,
voltei a olhar para ele; dormia como se não tivesse qualquer preocupação no
mundo: o sono profundo de um predador. Olhei para a tinta cintilante nos seus
ombros, as linhas em latim ainda demasiado pálidas e distantes para as
distinguir.
Contrariando o meu bom senso, deixei-me intrigar sobre o que poderia ter
valor ou importância suficiente para ele marcar permanentemente no seu corpo.
Queria abrir-lhe a alma e lê-lo como um livro, descobrir os seus segredos mais
profundos e as histórias que o haviam formado.
O que era uma estupidez.
Tentei não reparar na forma como a nossa tatuagem a condizer agora lhe
rastejava também pelo cotovelo. As suas duas luas crescentes, flores selvagens e
serpentes lembravam-me uma cena de um conto de fadas gravada num fresco lá
em casa. Qualquer coisa sobre deuses e monstros.
Tentei desesperadamente não pensar no quanto queria percorrer as suas
tatuagens, primeiro com a ponta dos dedos e depois com a boca. Provar,
explorar.
Acima de tudo, não me permiti pensar em ser a pessoa com quem ele se
deitara e fizera amor. O seu corpo duro e poderoso movendo-se em cima do
meu, bem no fundo da...
Acabei com aquele pensamento escandalosamente carnal, em choque com a
intensidade do mesmo.
Corredor do Pecado tortuoso. Estava claramente a ser testada quanto à
luxúria e, tendo em conta o meu companheiro de cama, isso era mais perigoso
do que qualquer besta do inferno que rondasse o exterior, sedenta pelo meu
sangue. Não sei quanto tempo passou, mas o sono acabou por me encontrar.
Um pouco mais tarde, mexi-me. A tempestade intensificara-se, mas não
fora isso que me despertara. Uma respiração quente fez-me cócegas no pescoço,
em pinceladas rítmicas. Algures durante a noite devo ter-me aproximado do
demónio. E, surpreendentemente, nenhum de nós se havia movido.
O Ira estava deitado atrás de mim, um braço pesado a envolver-me a
cintura de forma possessiva, como que a desafiar qualquer intruso a roubar-lhe
o que ele reivindicara como seu. Devia afastar-me. E não apenas por uma
questão de decência. Estar assim tão perto dele era como brincar com o fogo, e
eu já havia sentido a sua ardência, mas eu não queria mexer-me.
Gostava do braço dele no meu corpo, o peso, a sensação e o cheiro dele
enrolado à minha volta como um pitão. Queria que ele me reivindicasse, quase
tanto como queria que ele fosse meu.
No instante em que esse pensamento me ocorreu, a respiração dele tornou-
se irregular.
Inclinei-me para trás, pressionando-me contra o peito dele, ainda ansiando
por mais contacto.
O seu abraço apertou-se.
— Emilia...
— Sim?
Ambos nos reduzimos ao silêncio com o tom escaldante da minha voz, o
desejo que não conseguia esconder. Mal reconhecia esta minha versão
abertamente ávida. De onde eu vinha, às mulheres era ensinado que esses
desejos eram perversos, errados. Os homens podiam satisfizer as suas
necessidades mais básicas e ninguém os acusava de serem pecaminosos. Eram
devassos, potencialmente perigosos — mas nunca ostracizados pelo seu
comportamento.
Um homem com um apetite sexual saudável era tido como cheio de
vitalidade, um excelente partido. Experiente para a sua companheira, isto se
alguma vez decidisse casar. Enquanto as mulheres eram ensinadas a
permanecerem virgens, puras. Como se os nossos desejos fossem coisas sujas e
vergonhosas.
Eu não era humana nem membro da nobreza — que sofria mais restrições
do que eu alguma vez sofrera —, mas claro que havia sido criada com essas
mesmas convicções.
Mas eu já não estava no mundo mortal. Já não era obrigada a jogar de
acordo com as regras deles.
Fui percorrida por uma sensação elétrica. Não conseguia decidir se por
excitação ou medo de me permitir arrancar àqueles grilhões nesta situação.
Talvez até soubesse e talvez fosse essa a parte que me assustava. Desejava algo
que me haviam advertido que não desejasse. E, agora, tudo o que tinha de fazer
era estender a mão e dar-lhe as boas-vindas. Era altura de ser valente, audaz.
Em vez de ser governada pelo medo, podia tornar-me destemida. A partir
de agora. Voltei a aninhar-me contra o Ira — fizera a minha escolha.
Lentamente, ele deslizou a mão pela parte da frente da minha camisa, brincando
com os botões. Mordi o lábio para não ofegar.
— O teu coração está a bater muito depressa.
A sua boca roçou o lóbulo da minha orelha e eu — que a deusa me tenha
— arqueei-me com o toque, sentindo o quanto ele gostava da nossa posição
atual. A excitação dele provocou-me uma onda de emoção até aos dedos dos
pés. Não devia querer isto. Não o devia querer a ele. Mas não conseguia apagar
da mente a imagem dele a dormir com outra pessoa, nem a forma como me
fazia sentir. Queria ser eu quem ele levava para a sua cama. Queria que ele me
desejasse assim. E apenas a mim. Era um sentimento primitivo e antigo.
Um sentimento que o meu futuro marido poderia não aprovar, mas já não
me importava. Talvez, de agora em diante, a única aprovação que eu procurasse
fosse a minha. O resto podia ir, literalmente, para o Inferno. Se acaso fosse a
rainha deste reino, abraçaria cada uma das suas partes — e o meu verdadeiro eu
— em pleno.
— Diz-me — sussurrou ele, a sua voz deslizando como seda sobre a minha
pele ruborizada.
— O quê? — ofeguei.
— Que sou o teu pecado favorito.
Neste momento, não tinha a certeza se conseguia dizer frases completas. O
Ira já me provocara, já me beijara furiosa e apaixonadamente, mas nunca tentara
seduzir-me.
Ele desapertou o primeiro botão da minha camisa — a sua camisa — com
um cuidado e uma demora infindáveis para passar para o próximo. Todos os
pensamentos racionais me fugiram; o seu toque reduziu-me a uma única
necessidade primitiva: o desejo. Bruto, selvagem e infinito. Não sentia
vergonha, nem preocupação, nem receio.
O meu peito levantou-se e descaiu a cada batimento acelerado do meu
coração. Outro botão desabotoado. Seguido de outro. Seguiu-se o contrair das
minhas emoções. Um fogo abrasador consumiu-me lentamente, dos dedos dos
pés para cima. Era um milagre que a neve sob nós não tivesse derretido.
Se ele não me tocasse, pele com pele, entraria em combustão. O quinto botão
abriu-se, restando apenas mais alguns. Estive prestes a rasgar a maldita camisa.
Sentindo o meu desejo, ou talvez, por fim, cedendo ao seu, o demónio apressou-
se a desapertar os restantes botões e abriu a camisa, expondo-me.
Por cima do meu ombro, ele contemplou o meu corpo, o seu olhar
escurecendo enquanto a sua mão insensível deslizava sobre a minha pele lisa.
Ele era tão meigo, tão atencioso enquanto me acariciava a clavícula. Quando
pressionou a sua mão contra o meu coração, sentindo-o bater como se fosse a
maior fonte de magia do seu mundo, pensei em atirá-lo para o chão e possuí-lo
ali mesmo. A leveza do seu toque estava em desacordo com o poder avassalador
que emanava dele.
— Nervosa?
De modo algum. Sentia-me extasiada. Inteiramente à sua mercê. Embora
olhando para a sua expressão bruta indicasse que o oposto poderia ser verdade.
Consegui abanar a cabeça.
Os seus dedos continuaram a descer, descobrindo a curva sob o meu peito,
explorando o meu estômago e detendo-se para brincar com o cinto de serpente
que eu me esquecera de que estava a usar. Se me virasse um pouco e me
inclinasse mais para cima, ele poderia facilmente desapertá-lo. Fora por isso que
ele parara. Estava à espera da minha decisão. Achei que a minha vontade era
óbvia.
— Diz-me.
Preferia mostrar-lhe. Com uma coragem renovada, passei o braço por trás do
seu pescoço e afundei os dedos no seu cabelo preto como um corvo. Até
podíamos estar no Inferno, mas estar assim com ele parecia-me o Paraíso.
As suas mãos obstinadas subiram para me voltarem a acariciar os seios. Ele
apertou-os suavemente, a aspereza da sua pele criando uma fricção agradável.
Era tão bom quanto me lembrava. Melhor, até. Não pude deixar de ofegar
quando uma das suas mãos obedeceu finalmente aos meus desejos tácitos e
desceu na direção oposta. Delineando-me as costelas, passando pelo meu
estômago e parando mesmo por cima de onde eu queria que ele explorasse.
Um calor melífero espalhou-se pela minha barriga. Por fim, o Ira fez deslizar
os dedos por baixo da tira da minha saia, acariciando-me a pele macia entre as
ancas, o seu toque delicado como uma pluma. Que a deusa me tenha. Naquele
momento, não me importei com as suas mentiras ou traição. Nada importava,
exceto a sensação das suas mãos no meu corpo.
— Por favor. — Puxei-o para mais perto. Lábios suaves roçaram os meus. —
Beija-me.
— Di-lo. — Ele apertou-se contra mim, por trás, oferecendo-me um gostinho
lascivo do que podia acontecer. A sua excitação palpitante alimentou as chamas
das minhas próprias paixões. Desejei que ele o fizesse enquanto estávamos
despidos. Esfreguei-me contra o seu membro endurecido, fazendo desaparecer
qualquer controlo que ele antes tivesse. Ele capturou a minha boca com a dele,
beijando-me possessivamente, faminto.
Uma das suas mãos permaneceu firme sobre o meu quadril e a outra
esgueirou-se por baixo das minhas saias, subindo-me pelo tornozelo, passando
pela barriga da perna, explorando o interior das minhas coxas enquanto o seu
beijo se aprofundava e a sua língua reivindicava a minha. Os seus dedos
estavam quase naquele centro molhado e sôfrego.
Precisava dele lá. Gemi o seu nome quando ele finalmente...
— Embora essa tua ilusão me pareça extremamente interessante — a voz
melíflua do Ira surgiu do outro lado do pequeno espaço —, talvez queiras voltar
a vestir-te. A temperatura agora está bastante abaixo de zero.
Levantei-me num salto, pestanejando na escuridão. Mas que diabos...
Demorei um momento a estabilizar a respiração e outro a orientar-me. A
camisa que ele me emprestara estava no chão, juntamente com o manto, e a
minha pele descoberta contraiu-se no ar gelado. Tinha as saias torcidas sobre a
cintura, como se as tivesse tentado puxar e falhado.
Fiquei a olhar para o ponto vazio ao meu lado, confusa.
— Passa-se alguma coisa? — Talvez a minha recente associação à Casa
Orgulho nos impedisse de nos relacionarmos intimamente um com o outro. —
Quebrámos alguma regra?
— Eu tentei avisar-te. — Não conseguia ver-lhe o rosto, mas pude ouvir a
satisfação, a presunção e o (muito masculino) riso que se lhe infiltrou na voz, e
um alarme soou dentro de mim. — Os teus desejos irão perseguir-te e provocar-
te até ao esquecimento se não os conseguires controlar. Este é um reino de
pecado e desejo. Necessita dos teus vícios para sobreviver, tal como o mundo
humano necessita de oxigénio e de água. Se perderes o controlo por um
segundo, ele irá atacar. E nem sempre como acreditas que o fará. Por exemplo,
se estivesses a pensar em ódio, poderia testar-te para ver se o oposto seria uma
possibilidade.
— Eu... — Santa deusa. O meu cérebro enfeitiçado pela luxúria entendeu,
por fim, o que acontecera. Ele dissera que fora uma ilusão. Mais como um
pesadelo. Enterrei o rosto ardente nas mãos, perguntando-me se haveria algum
feitiço que eu pudesse usar para desaparecer. — Nada daquilo... foi real?
— Posso garantir-te. — A sua voz era grave e sensual na escuridão. —
Quando eu te tocar, nunca irás duvidar se é real.
Frustrada, embaraçada e furiosa por me ter permitido desejá-lo por um
segundo que fosse, peguei na camisa dele vesti-a novamente à pressa antes de
me voltar a deitar de lado.
— Preferia morrer.
— Disse a pessoa que se esfregou contra a minha p...
— Atreve-te a terminar essa frase e asfixiar-te-ei no teu maldito sono,
demónio.
O riso baixo do Ira fez com que os meus dedos dos pés se contorcessem e a
minha imaginação regressasse diretamente para os poços ardentes do Inferno. A
minha mente traiçoeira começou a repetir uma pequena escolha de palavras uma
e outra vez. Quando ele me tocasse, fora o que ele dissera. Não se. Como se
planeasse concretizar aquela fantasia erótica algures num futuro próximo. Foi
preciso algum tempo até que o sono me voltasse a encontrar.
Só que desta vez não sonhei que era seduzida pelo príncipe proibido.
Sonhei com um assassínio pérfido e violento. E com uma linda mulher
com olhos de estrelas reluzentes, bradando uma maldição de vingança na mais
tenebrosa das noites.
O mais perturbador de tudo foi sentir que a conhecia. E que a sua maldição
fora dirigida a mim.
Capítulo 3

O amanhecer invadiu o nosso pequeno abrigo. Não que soubesse ao certo


que horas eram. Este mundo parecia aprisionado num permanente estado de
crepúsculo. Até agora, «nublado» fora o estado preferido da atmosfera aqui.
Como que provando a minha teoria, o vento chiou ao longe, fazendo eriçar os
pequenos pelos ao longo dos meus braços.
Houve apenas uma ligeira mudança no ângulo da luz, e a forma como o Ira
disse com aspereza «Hora de ir» indicava que era, de facto, de dia. Esperei que
o príncipe arrogante troçasse do que acontecera, mas ele não demonstrou
qualquer sinal de reconhecer que, havia algumas horas, eu estivera seminua e a
contorcer-me contra ele, atormentada com a ilusão pecaminosa dos nossos
corpos a entrelaçarem-se.
Talvez tivesse sido um sonho dentro de um sonho.
Aquela esperança deu-me energias para me levantar da nossa cama
improvisada. Rodei o tronco de um lado para o outro, alongando os músculos
doridos. Não fora a pior noite de sono da minha vida, o que também não
significava que fora, de todo, confortável. Um banho quente, uma mudança de
roupa e uma boa refeição eram precisamente aquilo de que precisava.
Ao pensar em comida, o meu estômago rugiu alto o suficiente para atrair o
olhar do Ira, um ligeiro vinco formou-se entre as suas sobrancelhas.
— O destino não é longe, mas, tendo em conta o tipo de terreno, é
provável que só cheguemos ao anoitecer.
— Eu sobrevivo.
O Ira parecia cético quanto a isso, mas manteve a sua desagradável boca
fechada.
Olhei com tristeza para o espartilho de metal e comecei a desabotoar a
camisa do demónio. Mais valia vestir rapidamente aquela peça de roupa
horrível para que pudéssemos ir andando. Embora conseguisse sobreviver sem
comida durante algum tempo, se demorássemos muito mais, acabaria por ter
uma dor de cabeça.
À Vittoria costumava acontecer a mesma coisa. O nosso pai brincava
connosco, afirmando que a nossa magia queimava um fluxo constante de
energia que necessitava de ser reabastecido e ainda bem que tínhamos um
restaurante. A Nonna abanava a cabeça e afugentava-o antes de nos dar doces às
escondidas.
Um tipo diferente de dor instalou-se-me perto do coração. Por muito que
tentasse afogá-los, os pensamentos de comida não demoraram a voltar-se para a
Mar & Vinho, a trattoria da nossa família.
Foi um golpe emocional que quase me fez desistir de mim própria. Sentia
muito a falta da minha família, e apenas passara uma noite no submundo. Era
provável que o tempo funcionasse de forma diferente aqui, pelo que talvez se
tivesse passado apenas uma hora no meu mundo, possivelmente menos.
Esperava que a Nonna tivesse conseguido encontrar um esconderijo seguro
para todos. Perder a minha irmã gémea fora devastador, e a minha dor ainda era
forte o suficiente para me deitar abaixo se eu a deixasse trespassar a fúria por
demasiado tempo. Se perdesse mais alguém... Empurrei essas preocupações
para um pequeno baú no meu peito e concentrei-me em sobreviver àquele dia.
Um novo pensamento entrou em cena.
— Onde está o Antonio? — Observei o Ira com cuidado. Não que
conseguisse decifrar-lhe muito se ele decidisse proteger as suas emoções. —
Não me chegaste a dizer para onde o mandaste.
— Para um lugar seguro.
Ele não desenvolveu mais a resposta e talvez fosse melhor largar o assunto
por agora. Tínhamos coisas mais importantes em que nos concentrar. Como sair
do Corredor do Pecado sem mais tentações aos meus pecados, e apresentar-me
formalmente ao Orgulho e à sua corte real.
Teria bastante tempo para falar com o Antonio no futuro, o punhal humano
que um dos príncipes-demónios influenciara a matar a minha irmã. E o jovem
com quem eu sonhara casar antes de descobrir a verdade acerca do seu ódio às
bruxas.
Na minha pressa de ficar pronta, arranquei um botão da minha camisa
emprestada e encolhi-me perante a linha desfiada. Consciente de quão exigente
era o meu companheiro de viagem em relação ao vestuário, preparei-me para
receber um sermão. Olhei para cima, um pedido de desculpas a aflorar-se-me
nos lábios, mas o Ira abanou a cabeça, cortando-me a palavra antes de lhe poder
dar voz.
— Fica com ela. — Vestiu o seu casaco preto. Franzi o sobrolho e ele foi
rápido a notar a suspeita que não me esforçara por esconder. — Está amarrotada
e estragada. Recuso-me a ser visto assim.
— A tua consideração é avassaladora. Sou capaz de desmaiar.
Inspecionei-lhe o casaco. O material luxuoso esticava-se sobre os seus
ombros largos, acentuando-lhe os músculos definidos e as linhas duras do peito.
Claro que ele preferia aparecer seminu em vez de usar uma camisa engelhada
diante de qualquer súbdito demoníaco. Quase revirei os olhos à sua vaidade,
mas consegui manter a expressão neutra.
Apercebi-me de algo que me escapara a noite passada: ele estava agora a
usar ambos os amuletos. Os primeiros traços de raiva agitaram-se dentro de
mim, mas reprimi-os. Já suportara provas suficientes para um dia.
O Ira abotoou o botão sobre as calças, deixando uma vista franca do seu
tronco esculpido e um pequeno indício do coldre de couro. A espada forjada por
demónios não era a sua melhor arma — bastava olhar para ele uma vez e
qualquer um hesitaria em levantar-lhe a mão.
O olhar do Ira reluziu com um prazer de escárnio ao ver o que captara a
minha atenção.
— Gostarias que voltasse a desabotoá-las? Ou preferias que fosses tu a
fazê-lo?
— Não sejas convencido. Estava a pensar em quão presunçoso és, não a
derreter-me por ti.
— Ontem à noite, o que mais querias era derreter-te por mim. De facto,
foste bastante insistente.
Ergui o queixo. Ele seria capaz de detetar uma mentira, por isso não me dei
ao trabalho de inventar uma.
— A luxúria não requer gostar ou sequer amar alguém. Não passa de uma
reação física.
— Fiquei com a impressão de que não estavas interessada em beijar alguém
que odeias — disse ele friamente. — Deverei acreditar que agora te dispões a
dormir com alguém que encaixe nessa descrição?
— Quem sabe? Talvez seja este reino e as suas maquinações perversas.
— Mentes.
— Está bem. Talvez me sentisse sozinha e assustada, e tu eras uma boa
distração.
Enfiei a camisa por dentro das saias. Era muito mais quente, e fiquei feliz por
deixar o espartilho de metal para trás. Dobrei-me para pegar no meu cinto de
serpente e afivelei-o em torno da cintura.
O Ira seguiu cada um dos meus movimentos, examinando-me com os seus
olhos dourados. Por mais estranho que fosse, parecia genuinamente intrigado
com a minha resposta.
— Porque é que te importas sequer? — perguntei-lhe. — Não é como se tu
fosses partilhar a cama comigo.
— Pergunto-me o que terá mudado.
— Para começar, estamos no submundo. — Os seus olhos semicerraram-se,
detetando até a mais pequena das mentiras. Interessante. — Deixa-me esclarecer
qualquer confusão. És muito agradável à vista. E em certas ocasiões em que a
lógica me falha até posso desejar-te, mas eu nunca te irei amar. Aproveita a
ilusão de ontem à noite. Não passou de uma fantasia... e nunca será mais do que
isso.
Ele lançou-me um sorriso de escárnio enquanto repunha a sua coroa.
— Veremos.
— Sinto-me tentada a apostar nisso, mas recuso-me a descer ao teu nível.
O seu olhar ardente fez-me lembrar as brasas de um fogo prestes a reacender-
se.
— Oh, acredito que apreciarias cada segundo da descida ao meu nível. Cada
deslize e cada queda acelerar-te-ia a pulsação e far-te-ia tremer os joelhos.
Sabes porquê?
— Nem imagino.
Um meio-sorriso irritante espalhou-se-lhe pelo rosto. Ele aproximou-se de
mim, a sua voz tornando-se impossivelmente baixa.
— O amor e o ódio estão ambos enraizados na paixão — disse ele, enquanto
fazia deslizar os lábios pelo meu maxilar, trazendo-os, lentamente, até ao meu
ouvido. A proximidade e aquele calor fizeram-me suster a respiração. Ele
recuou o suficiente para o seu olhar encontrar o meu, prendendo a atenção na
minha boca. Por um momento, pensei que me fosse puxar o rosto contra o seu,
percorrer o contorno dos meus lábios com a língua e saborear-me as mentiras.
— É estranho como essa linha se torna turva com o tempo.
Os meus lábios traidores afastaram-se para deixarem escapar um suspiro.
Antes mesmo de eu me aperceber de que se tinha mexido, ele abandonou o
nosso pequeno abrigo. Um arrepio percorreu-me a espinha. Não fora o frio que
me incomodara; fora o brilho de determinação nos seus olhos. Como se tivesse
declarado guerra e se recusasse a fugir à tentação da batalha. Se se referia ao
facto de eu nunca o amar ou de me recusar a dormir com ele, não era claro, mas
provocar o general de guerra significava problemas de qualquer forma.
Enquanto me cobria com o manto, recordei os avisos da Nonna em relação
aos Malditos — quando alguém atraía a atenção de um príncipe-demónio, ele
não pararia por nada para reivindicar essa pessoa.
A forma como o Ira olhara para mim, fez-me acreditar nessas histórias. E,
apesar da sua anterior declaração de que eu teria de ser a última criatura em
qualquer reino para que ele me desejasse e do facto de eu estar agora noiva do
seu irmão, algo tinha certamente mudado.
Que a deusa nos ajude a ambos.

A manhã esperneou e gritou até ao meio-dia como uma criança mimada no


auge de uma birra. Surgiram rajadas de neve, ferozes e uivantes, e partiram tão
depressa quanto haviam chegado. Quando pensei que o tempo finalmente se
tornara razoável, apareceu o gelo. Fios congelados de cabelo escuro colaram-se-
me ao rosto, e o meu manto agarrou-se ao corpo como uma segunda pele. Tinha
frio e sentia-me tão infeliz como nunca experienciara em casa, na minha ilha
quentinha. Várias partes do meu corpo ardiam ou faziam-me comichão devido
ao gelo, e há muito que perdera a sensibilidade nos pés. Esperava não perder um
dedo, ou três, por causa da geada.
Sempre que sentia os primeiros sinais de desespero a aproximarem-se,
rangia os dentes e forçava-me a prosseguir, de cabeça para baixo, enquanto as
rajadas de vento continuavam a açoitar-me. Recusava-me a sucumbir aos
elementos nesta altura da minha missão. A minha irmã nunca se daria por
vencida se o estivesse a fazer por mim.
Seria preciso algo muito pior do que gelo para me deter.
Talvez este corredor fizesse mais do que apenas testar os pecados; talvez
lutar contra tais elementos ferozes fosse um teste à coragem. À determinação. E
de descoberta até onde se estava disposto a ir por aqueles que se amava. Tanto
os demónios como este reino iriam descobrir a resposta em breve.
Ou o Ira conjurara algum tipo de ilusão, ou os elementos não se atreviam a
meter-se com o seu couro principesco. O seu cabelo permanecia intacto e a sua
roupa seca. Se a sua atitude cavalheiresca em relação à viagem já não me
incomodava, a forma como o clima se curvava à sua vontade era suficiente para
me irritar o bastante para uma morte precoce. Era totalmente injusto que ele
conservasse um ar tão arrebatador enquanto eu me assemelhava a um destroço
encharcado que se arrastara para terra após vários longos e duros meses no mar.
Nos poucos momentos em que não nevava, ou saraivava, ou alguma
combinação terrível de ambos, um nevoeiro espesso e frio pairava sobre nós
como um prenúncio de um deus de inverno desagradável. Começava a pensar
que havia um poder superior lá fora que gostava de brincar com os viajantes.
O tempo foi-se prolongando, embora o sol nunca tenha aparecido. Havia
apenas várias tonalidades de cinzento a tingir o céu. O Ira e eu mal falámos após
a nossa conversa matinal, algo que eu aceitei de muito bom grado. Em breve
estaria na Casa Orgulho.
Depois do que estimei ser mais uma ou duas horas na nossa viagem, comecei
a tremer incontrolavelmente. Quanto mais tentava forçar os meus músculos a
ficarem quietos, mais eles se revoltavam.
A Nonna sempre nos dissera para encontrarmos o lado positivo em qualquer
situação, e agora que me sentia tão emocional e fisicamente esvaziada pelos
elementos glaciares, ao menos fora poupada de continuar a ser testada pelo
Corredor do Pecado.
Não demorou até que os meus arrepios se tornassem violentos o suficiente
para chamar a atenção do Ira. Lançou-me um olhar indagante, crispou os lábios
e andou mais depressa. Ordenou-me que continuasse a andar. Que me
apressasse. Que levantasse os pés. Mais alto, mais rápido, anda, vai, agora. Ele
era o poderoso general de guerra, e não tive dificuldades em imaginar o quanto
os seus soldados o odiariam pelos exercícios que ele lhes impunha.
Quando o meu corpo foi atacado por intensas alfinetadas de dor, distraí-me
com um novo jogo. Talvez fosse o Corredor do Pecado a encorajar-me, mas
imaginei todas as formas como o Ira poderia escorregar e cair de um penhasco e
espalhar-se sobre as rochas escarpadas. Via-o tão claramente...
... correria atrás dele, o coração a martelar-me, enquanto seguia o rasto de
ramos partidos e destruição que ele deixara, o seu grande corpo colidindo
violentamente contra qualquer coisa que se atravessasse no seu caminho para
baixo. Assim que o apanhasse, ajoelhar-me-ia e verificar-lhe-ia o pulso. Depois,
mergulharia os dedos no seu sangue quente e desenharia pequenos corações e
estrelas.
O Ira olhou por cima do ombro, franzindo o sobrolho.
— Por que motivo sorris?
— Estou a fantasiar pintar o mundo com o teu sangue.
— Isso explica o olhar demasiado indulgente. — O gentio retorcido sorriu
e o Corredor do Pecado cessou de me empurrar da gula para a ira. Antes de me
libertar a mim própria, ele pronunciou-se, num tom casual: — Alguma vez te
disse que a tua raiva é como o meu afrodisíaco pessoal?
Não, não dissera. Mas claro que o demónio regente da guerra se sentiria
instigado pelo conflito. Inspirei profundamente, numa tentativa de acalmar o
meu temperamento e a raiva contra a qual continuava a ser empurrada.
— Se desejas manter intacto o teu membro favorito, sugiro que te
mantenhas em silêncio.
— Assim que acabares de pensar no meu impressionante membro, sugiro
que andes mais depressa. Temos um longo caminho pela frente. E já pareces
meio-morta.
— O seu talento para arrebatar uma mulher apenas não supera o seu charme,
Príncipe Ira.
As suas narinas dilataram-se e eu fiz um péssimo trabalho a conter a minha
expressão divertida. O que apenas intensificou o seu olhar carrancudo. Não
voltou a atormentar-me durante algumas horas, mas não pelo seu mau humor.
Estava absorto, tenso. Desconfiei que se sentisse mais preocupado do que
deixava transparecer. Fiz o meu melhor para o acompanhar, concentrando-me
no objetivo final e não no meu miserável presente. Avançámos pelo caminho
traiçoeiro enquanto o tempo se movia aflitivamente a um ritmo cada vez mais
lento. Comecei a escorregar mais e a recuperar o equilíbrio pouco antes de cair
sobre a beira.
O Ira olhou para mim, despertando-me raiva suficiente para continuar, nem
que fosse apenas para o irritar. Não tinha a certeza de quanto tempo demorara a
aperceber-me disso, mas a consciência disto formigou-me as profundezas dos
meus desorientados sentidos. O Ira adiantara-se bastante, assegurando que o
terreno era passível de ser atravessado, quando senti uma ligeira pontada de
desconforto que se intensificou ao ponto de ser impossível ignorar.
Parei de andar e o som da neve a estalar continuou a ouvir-se durante, pelo
menos, mais meio segundo, antes que um silêncio sinistro se abatesse sobre nós.
Lentamente, olhei em volta. Aquela parte do desfiladeiro estava forrada de
árvores com ramos pesados e curvados pela neve espessa, tornando impossível
ver além deles, em direção à parte mais escura da floresta. Os galhos
sobrecarregados rangeram e gemeram. Mais um estalido de neve.
Expirei e o meu hálito misturou-se com a névoa. O som de ramos quebrados
fora a origem daquela atmosfera assombrada. Dei meia-volta e detive-me. Uma
enorme criatura com três cabeças de cão estava a olhar para mim, cabeças
arqueadas e três pares de orelhas alerta. O seu pelo era tão branco como a neve
que caía e os seus olhos eram de um azul glacial. Aqueles estranhos olhos
examinaram os meus e as suas pupilas dilataram-se antes de se contraíram.
Não ousei sequer respirar demasiado profundamente, com medo de incitar
um ataque. As suas presas eram duas vezes o tamanho de facas de cozinha, e
pareciam igualmente afiadas. A criatura farejou o ar, o seu nariz molhado por
pouco não me tocava na garganta à medida que a cabeça do meio se
aproximava.
Engoli um grito enquanto avançava na minha direção, aqueles olhos gélidos
iluminando-se com...
Antes que eu pudesse gritar por socorro, cada par de mandíbulas abriu-se e
fechou-se, como que para me morder, mas a criatura mudou de ideias, para
surpresa sua e minha. Sacudiu a cabeça, de olhos vidrados, e recuou. O
predador pressentira uma ameaça maior. Deixei-me cair na neve e observei,
estupefacta, enquanto a criatura se afastava em retirada para o bosque, ainda
sustendo o meu olhar e rosnando suavemente.
Não voltei a respirar até a criatura estar fora de vista. O plano de projetar
uma imagem de bravura no submundo não estava a correr assim tão bem.
— Sangue e ossos. O que era aquilo?
— Se já acabaste de brincar com o cachorrinho, gostaria de prosseguir a
nossa viagem.
— Cachorrinho?
Virei a cabeça na direção do demónio. O Ira estava a alguns passos de mim,
os seus poderosos braços cruzados e um sorriso irritante no rosto. Não me
ajudou nem se ofereceu para o fazer. Limitou-se a escarnecer de uma situação
que poderia ter ficado feia muito rapidamente. Uma atitude típica de um
demónio.
— Era do tamanho de um cavalo pequeno!
— Abstém-te de o selar como se o fosse. Ao contrário dos meus irmãos,
eles não gostam de ser montados.
— Hilariante. — Levantei-me e limpei a neve do meu manto. Como se já
não estivesse suficientemente gelada e molhada. — Podia ter sido mutilada até à
morte.
— Há uma série de demónios solitários menores que chamam lar aos
bosques e terras remotas. Os cães infernais são a menor das tuas preocupações.
Se já acabaste com o teu pequeno drama, vamos embora. Já perdemos tempo
suficiente.
Claro que o demónio chamaria cãozinho a um cão infernal com três cabeças
e diria que eu estava a ser dramática com o que acontecera. Passei por ele,
murmurando todas as obscenidades de que me conseguia lembrar. A sua
gargalhada sombria fez-me andar mais depressa, para que o Corredor do Pecado
não tivesse mais ideias maliciosas.
Continuámos em frente, por sorte sem mais encontros com a vida
selvagem. O nosso maior desafio era a tempestade implacável. Jurei
silenciosamente que nunca mais romantizaria a neve.
Quando achava que o nosso tempestuoso infortúnio estava a chegar ao fim,
surgiu da névoa outra montanha imponente. Tive de me inclinar para atrás o
mais possível e mesmo assim não lhe consegui ver o cume.
Asfixiei um leve gemido. Não havia qualquer hipótese de eu conseguir
arrastar o meu corpo congelado para cima e além daquele colosso. Sentia a
cabeça estranha, uma combinação de tonturas e exaustão. Ou vertigens. Pensei
em deixar-me cair ali mesmo. Talvez alguns minutos de descanso ajudassem.
O Ira avançou e deixou-me onde estava, contemplando a minha morte quase
certa. Tal como quando tinha repousado uma mão sobre os Portões do Inferno,
pressionou a palma da mão contra a parede rochosa. Uma luz dourada brilhou
enquanto ele, em silêncio, ordenou à montanha que obedecesse à sua vontade.
Ou talvez estivesse a sussurrar uma ameaça a um deus infernal que lhe devia
um favor.
Estava demasiado longe para o ouvir e ri-me da ideia do que ele poderia estar
a pedir. Ri sonoramente quando uma parte da montanha deslizou para trás,
como se fosse a sua própria porta pessoal. Claro que era. Uma montanha que
satisfazia todos os seus desejos. Porque não?
Era uma pena que ele não tivesse ordenado à tempestade que parasse, como
devia ter feito com o cão infernal. Provavelmente, assim teria enfiado o rabo
entre as pernas e corrido na direção oposta.
Por algum motivo, a ideia fez-me dobrar e rir com tanta força que várias
lágrimas deslizaram-me pelo rosto abaixo. Um segundo depois, esquecera-me
do que fora tão engraçado. A neve caía em flocos mais pesados. A minha
pulsação abrandou, o meu coração ficou tenso. Senti-me como se estivesse a
morrer. Ou a viajar para uma ilha de...
No instante seguinte, o Ira estava diante de mim, as suas mãos fortes a
envolverem-me os braços. Só me apercebi de que havia estado cambaleante
quando ele me amparou. Mesmo com a sua ajuda, tudo continuava a girar
selvaticamente e fechei os olhos, o que apenas piorou as coisas.
Voltei a abri-los e tentei concentrar-me num ponto fixo para aliviar a
sensação.
O rosto severo do Ira surgiu diante de mim.
Ele observou-me, franzindo o sobrolho. Se me sentisse capaz de o fazer,
teria revirado os olhos à sua avaliação crítica do que quer que ele achasse que
me faltava. Nem toda a gente foi abençoada para se parecer com uma divindade
atraente enquanto atravessava o Inferno. Os seus lábios estremeceram.
Devo ter dito esta última parte em voz alta.
— Talvez seja melhor eu carregar-te o resto do caminho. Se estás a
comentar a minha aparência divina, deves estar terrivelmente doente.
— Não. Nem pensar.
Cambaleei para a abertura que ele fizera na montanha, desesperada por sair
da neve. Consegui avançar dois passos no interior escuro do túnel antes que
algo me levantasse as pernas e um braço quente e musculado me envolvesse os
ombros, impedindo-me de me mexer.
Contorci-me, humilhada por estar a ser carregada como uma boneca de
trapos ou uma criança. O Ira mostrou-se imperturbável perante as minhas
tentativas para me libertar. Como futura Rainha dos Malditos, esta não era a
primeira impressão que queria causar. Meio delirante, meio congelada e
completamente dependente de um demónio.
O Ira dissera-me uma vez que o poder era tudo aqui e, mesmo no meio do
meu delírio, sabia que renunciar ao meu por um segundo que fosse faria de mim
um alvo fácil.
— Põe-me. No. Chão.
— Assim farei.
A minha cabeça descaiu para trás e aterrou no recanto entre o seu ombro e o
seu pescoço. Estava deliciosamente quente.
— Quis dizer agora.
— Estou bem ciente disso.
O mundo balançou com cada um dos seus passos, tornando-se mais escuro.
De repente, tinha de me esforçar para me manter acordada. Senti a pele
estranhamente apertada. Estava tudo demasiado frio. Dormir faria com que tudo
desaparecesse. E depois poderia sonhar. Com a minha irmã. Com a minha vida
antes de ter invocado um demónio. E com o tempo em que acreditara, de forma
insensata, que o amor e o ódio não estavam perto de ser a mesma emoção.
— Odeio-te. — As minhas palavras saíram mais lentas do que deviam. —
Odeio-te das formas mais sombrias.
— Também estou bem ciente disso.
— O meu futuro marido não me pode ver assim.
Não vi, mas senti-o sorrir.
— Conhecendo-te, estou certo de que ele verá bem pior.
— Grazie. — Idiota. Aninhei-me contra o seu calor e suspirei, minando as
minhas próprias exigências de que ele me pusesse no chão. Iria apenas
descansar por alguns minutos. — Achas que vou gostar dele?
Os passos do Ira nunca vacilaram, mas ele agarrou-me com um pouco mais
de força.
— O tempo o dirá.
Deixei-me dormir e acordei de repente com um abanão no que esperava ter
sido apenas um ou dois segundos depois. Entre a escuridão do túnel e o seu
passo ritmado e constante, era difícil manter-me alerta. Pensamentos e
memórias absurdas rodopiaram na minha cabeça e os meus lábios
materializaram-nos.
— Disseste que não o farias.
— Não faria o quê?
O ressoar da sua voz vibrou-me no peito. Era uma sensação estranhamente
reconfortante. Pressionei a face contra o seu coração, ouvindo-lhe o bater
acelerado. Ou talvez fosse apenas da minha cabeça. A sua pele despida queimou
contra a minha. Era quase doloroso.
— Tomar conta de mim. Disseste que não o farias...
Ele não respondeu. Também não esperei que o fizesse. Ele não era brando
ou gentil. Era bruto e rude e alimentado pela raiva e pelo fogo. Compreendia as
batalhas, as guerras e a estratégia. A amizade não estava entre essas coisas.
Muito menos uma que envolvesse uma bruxa. Eu não passava de uma missão
para ele, uma promessa que ele fizera ao irmão, nada mais. Isso eu
compreendia, ainda que, no fundo do coração, me doesse. Tinha os meus
próprios objetivos, os meus próprios planos. E não hesitaria em destruir quem
quer que interferisse com eles.
Até mesmo ele.
O sono finalmente envolveu-me no seu abraço e relaxei contra o corpo do
Ira. Talvez ele me surpreendesse ao entrar furtivamente na Casa Orgulho através
de uma entrada secreta para evitar quaisquer demónios curiosos. Restava-me
esperar que ele me concedesse alguma misericórdia.
De algum lugar distante, podia ter jurado que ele sussurrara:
— Menti.
Capítulo 4

— Está morta?
Demorei um minuto, mas reconheci aquela voz. O Anir. O vice humano do
Ira. O demónio respondeu com uma obscenidade que soou terrivelmente a,
Claro que não, idiota de merda.
— E que culpa tenho eu? Ela parece-me bastante morta. Talvez devesses
deixar o destino seguir o seu curso. Ninguém te irá culpar se o coração dela
parar. Nem sequer...
— Cuidado. Não me lembro de ter pedido a tua opinião.
Dedos insensíveis tatearam-me a garganta e agarraram-me o pulso. Tentei
sentar-me, mas estava presa a algo duro e imóvel.
— Majestade, devíamos alertar a matrona. Não creio que isto seja...
— Vai buscar numa chávena de água quente e mais cobertores. Agora.
Sentia a pele como se alguém me tivesse atirado para o fogo e impedido de
me afastar das chamas. Beber algo quente ou cobrir-me com um cobertor era a
última coisa que eu queria. Torci-me para me libertar das correntes e uma delas
soltou-se e alisou-me o cabelo para trás. Braços, não correntes. O Ira ainda me
segurava contra o seu corpo. Tentei abrir os olhos, mas não consegui. Ele deu
alguns passos e pousou-me cuidadosamente sobre um colchão. Pelo menos,
esperava que fosse isso.
O que significava... o coração palpitou-me no peito. Devíamos estar no
castelo do diabo. O pânico fez-me cravar-lhe as unhas nos braços enquanto ele
tentava afastar-se. Apesar da minha anterior bravata, não queria ficar sozinha
com o rei dos demónios. Pelo menos não desta forma.
— N-não... não...
— Não te mexas muito ou o teu coração pode parar.
A minha respiração saiu-me entrecortada.
— A t-tua forma de tratar um doente...
— É abominável? Não é por acaso que não sou curandeiro. Deixa as
reclamações para depois. Tens um caso ligeiro de hipotermia. —
Desembaraçou-se suavemente do meu aperto de morte e recuou. Podia jurar que
os seus lábios haviam roçado na minha testa ardente antes de se levantar
completamente da cama. Quando falou, o seu tom foi duro o suficiente para me
fazer questionar se imaginara o beijo. — Fica deitada.
Ouvi o som de tecido a ser rasgado. Abri os olhos de supetão enquanto o
choque me atravessava. O Ira estava curvado sobre o meu corpo, rasgando-me a
roupa congelada até ao meio como se não passasse de um pedaço de
pergaminho. As saias, a camisa, o cinto. Mais alguns rasgões e o ar fresco
percorreu-me a pele em chamas.
Quase gemi de prazer enquanto ele me tirava a roupa molhada e a atirava
para bem longe. Nem sequer me importei de estar nua diante do demónio. Outra
vez.
Quis arrancar a minha carne com as unhas e mergulhar o corpo numa
banheira de gelo. O que era estranho, tendo em conta que estivera a congelar
ainda havia pouco tempo. Os meus olhos fecharam-se e, por muito que tentasse,
não conseguia reabri-los. Imagens estranhas passaram-me pela mente.
Memórias difusas e fragmentadas atravessavam um nevoeiro denso, o possível
resultado de um cérebro moribundo. Ou talvez fossem visões de um futuro que
eu nunca conheceria a escarnecer de mim. Estátuas e flores. Fogo. Corações em
frascos, uma parede de crânios.
Nada fazia sentido.
— Emilia... fica comigo.
O Ira pegou-me na mão e massajou gentilmente todos os meus dedos para
lhes infundir calor. Se estava a tentar manter-me acordada, não estava a resultar.
Uma paz sonolenta abateu-se sobre mim e relaxei sob as suas carícias enquanto
as memórias e imagens estranhas se dissipavam. Ele deslocou os seus
movimentos delicados dos meus dedos para o pulso e depois subiu lentamente o
meu braço até ao cotovelo, antes de passar para a minha outra mão.
Assim que terminou de devolver a vida aos meus dedos, foi mais para o
fundo da cama. Com uma mão, levantou-me a perna pelo tornozelo e com a
outra trabalhou em devolver-me a sensibilidade aos dedos dos pés, tal como
fizera aos meus dedos. As pontas dos seus polegares deslizaram pelo arco do
meu pé, e soltei um gemido suave enquanto ele aplicava a pressão certa para
aliviar a dor que ali sentia.
Alguém bateu à porta e o Ira ordenou que deixasse tudo lá fora. Passos
soaram pela sala, uma porta a abrir-se e a fechar-se, e depois o Ira voltou para
perto de mim e cobriu-me gentilmente o corpo com o tecido mais macio em que
eu alguma vez tocara.
Contive um grito. Senti-me como se ele me tivesse encharcado com parafina
e acendido um fósforo. Afastei o cobertor ao pontapé e recebi um rosnado de
frustração por parte do demónio.
— Pára. — Ele forçou-me a deitar-me e voltou a embrulhar-me no cobertor.
Um instante depois, senti um peso a pousar ao meu lado. Dois grandes braços
envolveram-me e puxaram-me para mais perto de si, o seu queixo repousando
na minha cabeça. Ele arrastou uma perna sobre a minha anca, reforçando a
nossa ligação.
Ele era fogo. E eu já estava a arder. Tentei rebolar para longe dele, apontando
para o chão. Queria rastejar para debaixo do soalho e afundar-me na terra como
um animal em hibernação. O aperto do Ira nunca vacilou; estava presa contra o
seu corpo. E com a sua força sobrenatural, não havia esforço da minha parte
capaz de quebrar o seu domínio. O meu instinto de sobrevivência entrou em
ação — tornei-me um gato selvagem a arranhar quem quer que estivesse a
tentar enjaular-me.
Os braços do Ira eram barras de aço.
— Larga-me.
— Não.
— O teu criador não te ensinou a forma correta de tratar uma mulher?
— Sobrevive à noite e aí respeitarei os teus desejos — atirou ele.
— Não estás a perceber... — Estava louca de raiva e desconcertada com a
necessidade de me mexer. Os seus braços apertaram-se em torno de mim, mas
nunca de forma dolorosa. — Preciso de estar no chão. Tenho de ir para o
subsolo agora.
— É um sintoma comum de hipotermia. Passará quando voltares a ficar
estável. — Deslizou um braço por atrás dos meus ombros e inclinou-me para
cima. — Bebe isto. Agora.
O seu tom indicava que me apertaria o nariz e obrigar-me-ia a engolir se não
obedecesse. Decerto que não era o mais delicado dos enfermeiros. Tomei um
gole do líquido quente e suprimi um grito. Estava tudo demasiado quente. O Ira
voltou a deitar-me numa almofada e puxou outro cobertor sobre mim. Era leve
como uma pena, mas doía terrivelmente. A dor intensificou-se até me toldar os
sentidos.
Cerrei os dentes, tentando deter a tagarelice. Felizmente, apenas momentos
depois de beber o líquido, entrei e saí de diferentes graus de consciência.
Perguntei-me se ele teria posto algo na bebida para me causar sonolência, mas
não consegui reunir energia suficiente para me sentir ameaçada. Se ele me
quisesse morta, ter-me-ia deixado à mercê da natureza.
Algum tempo depois, um movimento arrancou-me da minha batalha febril
contra a lucidez. Esquecera-me de onde estava. Com quem estava. Uma luz
quente emoldurava uma grande silhueta em ouro.
Olhei furtivamente, perguntando-me quem teria enviado um anjo. Depois
lembrei-me. Se o ser celestial que olhava para mim alguma vez fora um anjo,
agora era algo diferente. Algo a temer e a evitar. Algo que fazia os corações
disparar e os joelhos tremer.
Era tão proibido como o fruto oferecido a Eva, mas, de alguma forma, ainda
mais tentador.
Num estado onírico, vi o Ira ocupar-se das tarefas mais peculiares. Encher
uma chávena de líquido quente. Ajudar-me a bebê-lo até que um calor suave se
espalhasse lentamente pelo meu corpo. Tranquilo e relaxante, um tremendo
contraste com o inferno que sentira antes. Aconchegou-me com mais
cobertores. Atirou lenha para a enorme lareira diante de uma cama feita de
meia-noite. Os lençóis eram brancos e prateados como estrelas-cadentes. Eram
estranhamente familiares, embora eu nunca os tivesse visto.
A dada altura, virei-me para o encarar e reparei numa camada de suor que
reluzia na pele nua. Durante a noite retirou os dois amuletos. Também se pusera
debaixo dos cobertores, os seus braços à minha volta num abraço confortável e
o calor do seu corpo alimentava o meu. Ele era extraordinário. E não tinha nada
que ver com a sua aparência física.
Olhei-o nos olhos. Manchas pretas salpicavam-lhe as íris douradas como
pequenas estrelas que lhe rodeavam as pupilas. Ele observou-me enquanto lhe
inspecionava as feições, o seu olhar examinando-me o rosto com a mesma
intensidade. Quis saber o que ele via quando olhava para mim, o que sentia.
— Por vezes — a minha voz saiu rouca e suave —, por vezes acho que
quero ser tua amiga. Apesar de tudo o que aconteceu no passado. Talvez
aliarmo-nos um ao outro, as nossas Casas, possa ser algo a considerar.
O seu maxilar apertou-se, como se a mera ideia de amizade ou de uma
aliança fosse aterradora.
— Descansa.
O fogo agora ardia fulgurante na sala. As minhas pálpebras fecharam-se
como se eu assim lhes tivesse ordenado. O mundo tornou-se uma nevoa.
— Ira... — Queria dizer «obrigada», mas o sono roubou-me as palavras.
Ele falou em sussurros e muito suavemente. Afastou-me o cabelo do rosto
com a sua enorme mão tatuada. Foi como se estivesse a partilhar um segredo
comigo, algo vital. Tão importante que iria mudar a minha realidade para
sempre. Aproximei-me dele, esforçando-me para o ouvir. A sua voz ressoou
através de mim como uma tempestade distante que tentava despertar algo antes
que voltasse a dormir.
Não consegui reter nada e voltei a adormecer.

Quando acordei na vez seguinte, o lado da cama do Ira estava vazio. Sem o
seu enorme corpo e o seu constante olhar atento ou o seu cuidado não-tão-
gentil, o quarto parecia demasiado grande.
Um quarto.
Deixei sair um suspiro e fiquei imediatamente alerta. A pior parte do meu
estado de delírio desaparecera e a realidade foi como uma montanha a desabar
sobre mim. O Ira levara-me para... Não tinha a certeza. No dia anterior não
conseguira ver bem onde estava. Esfreguei os vestígios de sono dos olhos e
olhei para cima, onde vi superficialmente umas constelações. Muito inesperado.
Pestanejei. Tinham pintado o teto para que se parecesse com um céu cheio
de estrelas. Mas isso também não era inteiramente verdade. Após uma inspeção
mais atenta, vi que as constelações eram, na realidade, pequenas luzes que
emitiam um brilho suave num teto pintado de um tom de azul-escuro.
Olhei em torno do quarto. Era enorme. Elegante.
As paredes eram de um branco puro como a neve, com painéis repletos de
molduras decorativas, e a enorme lareira do outro lado da cama era debruada a
prata, a sua superfície brilhante refletia as chamas. Um espelho gigante,
ornamentado, estava pendurado por cima. Havia castiçais de prata em cada lado
da lareira e outro conjunto idêntico na parede atrás da cama. Fiquei
surpreendida por ver prata e não o ouro que era característico do Ira, embora
suspeitasse de que o metal fosse, na realidade, ouro branco.
Um tapete azul-escuro correspondia à sombra exata do teto, e a cama
parecia ter sido esculpida a partir da mesma pedra preciosa que rodeava os
Portões do Inferno. Sobre a carpete escura encontrava-se um tapete amarelo
tecido com fios de ouro.
Todos os tecidos eram macios, luxuosos e emitiam um ligeiro odor a ar
fresco de inverno e almíscar.
No outro extremo do aposento, um conjunto de cadeiras de cristal e uma
mesa a condizer estavam dispostos, com bom gosto, num canto. Se as suas
extremidades não estivessem a reluzir devido ao fogo, poderia tê-las ignorado
por completo. Ao lado da lareira havia um enorme armário de madeira escura,
alto e imponente. Nas portas, estavam esculpidas pequenas flores, estrelas e
cobras. Os puxadores tinham a forma de luas crescentes. Fizeram-me lembrar
um símbolo de deusa tripla incompleto. Ao lado do guarda-roupa havia uma
porta que conduzia a uma outra divisória ou a um corredor.
Isto era muito diferente do palácio abandonado que o Ira mandara
reconstruir na minha cidade.
Virei-me. À minha esquerda, outra porta conduzia a uma casa de banho, se
os salpicos de água fossem algum indício. Ao lado encontrava-se pendurada
uma grande tela. A moldura era prateada e tão ornamentada como o espelho
sobre a lareira, e devia ter custado uma pequena fortuna.
O próprio quadro parecia uma floresta encantada saída diretamente das
páginas de um conto de fadas. Verdes mudos e castanhos profundos davam vida
à paisagem. Um motim de flores escuras pontilhava o primeiro plano. As
trepadeiras rodeavam os enormes troncos de árvores.
As árvores frutíferas exibiam iguarias maduras, desde maçãs a enormes
romãs repletas de sementes e vários citrinos. A névoa pairava sobre o solo perto
do centro e a geada cobria as pétalas das flores à direita. A paleta que o artista
utilizara era escura, mas suave. Era uma cena vívida, mas congelada. O verão
habitava num dos lados e o gelo do inverno banhava o outro.
Era um jardim sazonal diferente de tudo o que eu alguma vez tivesse visto
na vida real. Senti uma súbita vontade de procurar o artista que o pintara,
curiosa quanto à inspiração por detrás de uma peça tão única. Se fosse baseado
num lugar real, desejava visitá-lo. Mas primeiro...
Olhei rapidamente para mim própria. O Ira arrancara-me a única roupa que
eu tinha no corpo na sua frenética tentativa de me aquecer, e só a deusa sabia
onde estava agora. Suspirei e puxei os lençóis para cima, atando-os numa
tentativa de vestido improvisado.
Alguém aclarou a garganta.
A minha pulsação acelerou e isso deu-me uma boa ideia de quem era antes
de olhar para ele. O meu ritmo cardíaco disparou para um ritmo
inacreditavelmente elevado no momento em que os nossos olhares se cruzaram,
recusando-se a deixar um ao outro.
Encontrava-me em clara desvantagem. E tencionava remediá-lo de imediato.
O Ira estava encostado à ombreira da porta, o cabelo escuro despenteado e
húmido, o novo fato engomado na perfeição, a sua expressão a roçar a
contemplação. Ele sondou-me lentamente; o seu olhar era aguçado e a sua
avaliação clínica. Trazia um roupão cor de ébano bordado com flores silvestres
pendurado na ponta dos dedos.
— Estás acordada.
— Que observador.
— Sê simpática — disse ele. — Sou eu que tenho o teu roupão. A minha
atenção deslizou para a peça em questão.
— Onde estamos?
— Num quarto, ao que tudo indica.
Nunca se cansava de ser um idiota.
— O teu? — indaguei.
Ele abanou a cabeça, sem desenvolver. Contei até dez em silêncio. O Ira
esperou, e um dos cantos da sua boca retorceu-se para cima, como se irritar-me
fosse o seu passatempo preferido.
Se discutir fosse o seu desejo, teria todo o gosto em fazê-lo. Até me lembrar
do que ele dissera sobre a raiva ser um afrodisíaco. Mordi a língua.
— Estamos na Casa real do Orgulho?
— Não. Esta é a Casa Ira.
— O contrato...
— Queres ir para lá? — Ele teve o cuidado de manter o tom neutro.
Algo na questão me pareceu uma armadilha, e tão cedo não pretendia cair
em nenhuma cilada demoníaca, ou melhor, nunca. Engoli com força.
— Fiz um juramento de sangue.
— Isso não responde à minha pergunta.
Como se ele respondesse a todas as minha. Decidi imitá-lo e atirei-lhe uma
pergunta de volta.
— O que é que isso importa? Assinei o contrato. Está feito.
— Queres ir para lá? — repetiu. Claro que não queria ir para lá e não queria
ficar onde estava. Queria fazer o que viera ali fazer e voltar para casa. Quanto
mais rápido melhor. Apertei os lábios, não querendo responder em voz alta, e
forcei-me a pensar em algo agradável. Ele sentia as emoções e as mentiras. E eu
possuía uma teoria que tinha de testar. Ele semicerrou os olhos enquanto
examinava a minha expressão em busca da verdade oculta. — Isso é um sim?
Assenti.
Um raro acesso de emoção atravessou-lhe o rosto, mas ele recompôs-se
rapidamente e atravessou a sala em poucos e grandes passos. Se não estivesse a
olhar tão fixamente para ele, teria perdido aquela reação, que desaparecera tão
rapidamente como um relâmpago. Agora, a raiva brilhava-lhe nos olhos. Uma
máscara para cobrir a sua dor.
— Não te preocupes. Quando o meu irmão fizer uma pausa nas suas
constantes festas e depravações, e quando o seu maldito orgulho finalmente se
render o suficiente para me deixar entrar no seu detestável domínio, cumprirei a
minha parte do acordo.
Estava certa de que todos os domínios eram detestáveis à sua própria
maneira, mas não me dei ao trabalho de o mencionar.
— Temos de ser convidados?
— A menos que queiras dar início a uma rixa entre as nossas Casas, sim.
Arquivei a informação na minha mente. A rixa entre os príncipes iria decerto
criar uma distração bem-vinda de atividades aparentemente mais inócuas, como
mexericos.
— Se entrares no seu território sem o seu consentimento, ele considerá-lo-á
uma ameaça? Ainda que fosse para lhe cumprires a vontade?
O Ira anuiu.
— Isso não faz muito sentido. É porque ele é rei e quer recordar-te do teu
lugar?
— Por estes lados, a pretensão real é o passatempo preferido de alguns.
O que não respondia propriamente às minhas perguntas. Príncipe Ira, um dos
temidos e poderosos Sete, general de guerra e mestre da evasão. Uma ideia
ardilosa assaltou-me a mente. Tentei fazer com que as minhas feições exibissem
desinteresse e escondi o meu sorriso. O Ira tinha muitas máscaras no seu
arsenal. Chegara o momento de acrescentar algumas à minha própria coleção.
— Na qualidade de sua noiva, e se decidir ir sozinha ao seu encontro? Não
serei, tecnicamente, integrante da Casa Orgulho? Se assim for, não vejo como é
que essa regra se pode aplicar a mim, a menos que ele ainda seja devoto à sua
primeira esposa, o que não pode ser verdade se ele for tão libertino como dizes.
Estou certa de que me acolheria no nosso leito matrimonial.
Duvidei que o Ira tivesse reparado, mas a sala arrefeceu um bocadinho.
Tocara num ponto sensível.
— O Orgulho dar-te-á as boas-vindas a ti e a qualquer pessoa por quem se
sinta fascinado para a sua cama. Todos ao mesmo tempo, se ele assim o desejar
e se tu o permitires nas noites que passares com ele. Embora sugira que finjas
que ele é o melhor amante do universo; caso contrário, ofenderás o seu pecado
epónimo e darás por ti sozinha.
Fiquei tão aturdida que me esqueci das sementes da discórdia que tentara
plantar.
— Não podes estar a falar a sério. O Orgulho quereria partilhar a nossa
cama com outra pessoa? Comigo presente? Não compreendo.
O Ira hesitou por um minuto.
— Há certas ocasiões em que o meu irmão aprecia a companhia de
diversos amantes.
— Ao mesmo tempo? — Senti as faces a arder enquanto ele anuía
lentamente.
— Aqui, o sexo não é visto como vergonhoso ou pecaminoso, Emilia.
Atração e desejo fazem parte da ordem natural da vida. Os mortais impõem
restrições a tais coisas. Os príncipes do Inferno não.
— Mas o Luxúria... a sua influência. É considerado um pecado, até aqui.
— O meu irmão brincou sobretudo com a tua felicidade, com coisas que
provocam todo o tipo de prazer e alegria, e não apenas impulsos carnais. Ser
testado ou empurrado para uma determinada emoção, por norma, significa que é
algo com que este reino sente que tens um problema. — Ergueu a cabeça. — Se
tens interesse em sexo, mas temes paixão ou intimidade, podes experienciar um
grau mais elevado de desejo sexual até ultrapassares o que te perturba em
relação a isso. Qual deles te intimida?
Engoli com força, desconfortável com o tema do prazer quando me
encontrava sozinha com o Ira, nua sob os lençóis de seda.
— Nenhum. E isso não é da tua conta. Falar sobre o que farei ou não com
o meu marido é impróprio. Sobretudo contigo.
O Ira atirou o roupão para o meu lado do colchão e continuou a mostrar a
sua expressão fria.
— De nada por te ter mantido viva. Pelas minhas contas, já é a segunda vez.
E também ainda não vi nem uma pontinha de gratidão.
O seu tom fez ferver o meu sangue. Perguntei-me se ele sabia que a sua
magia estava a infiltrar-se e a afetar-me muito. Talvez o facto de estar dentro da
sua casa exacerbasse a minha fúria, juntamente com a perceção de que eu era
terrivelmente inexperiente em certas áreas. Não pensara em dormir com o
Orgulho, nem tinha considerado quaisquer outros deveres de esposa que
pudesse ter de desempenhar. Senti-me como uma tola, encurralada. A minha
fúria crescente precisava de uma saída, e o Ira parecia-me o mais adequado.
— Exiges sempre algum tipo de agradecimento generoso quando fazes algo
decente? Começo a acreditar que o teu pecado é, na verdade, o orgulho, não a
ira. É evidente que possuis um ego frágil. Talvez devesse rastejar aos teus pés
ou organizar um desfile em tua honra. Isso iria satisfazer-te?
— Cuidado, bruxa.
— Se não o quê? Venderás a minha alma a quem der mais? — escarneci. —
Tarde demais. Não esqueçamos que, se não fosse por ti e pelo teu engano, eu
nem sequer estaria aqui, quase a congelar até à morte, ou a preocupar-me com
ter de dormir com o teu irmão e com quem quer que ele convide para o nosso
leito!
— Tu escolheste a Casa Orgulho.
— Porque é que ainda estás aqui sequer? Julguei que partirias no instante em
que recebesses a tua liberdade. Já não me atormentaste o suficiente? Ou o teu
dever apenas ficará completo quando o meu casamento for consumado? Se é
disso que estás à espera, decerto que o Orgulho te convidará a entrar no quarto
para o testemunhar, garantindo que eu me recoste e aguente como uma boa
rainha.
Se o ódio pudesse ser capturado num olhar, o Ira dominá-lo-ia.
— Tens roupa para ti no guarda-roupa. Veste o que quiseres. Faz o que
quiseres. Vai para onde quiseres dentro deste castelo. Se decidires deixar a Casa
Ira, boa sorte. Voltarei quando o Orgulho me convocar. Até lá, boa noite, minha
senhora.
Ele abandonou o quarto. Os seus passos soaram noutra divisão antes de uma
porta se abrir e se fechar e eu os ouvir a ressoar pelo corredor. Soltei um suspiro
frustrado.
Aquele demónio inflamava a minha raiva como nenhum outro.
Como se atrevia a exigir a verdade quando não me oferecia nada em troca?
Esperei que a minha pulsação acalmasse. Sentia-me grata por tudo o que ele
fizera na noite anterior. E, se ele me tivesse dado uma oportunidade, ter-lhe-ia
dito que apreciara os seus esforços. Não havia necessidade de me ter massajado
os pés. Aquilo não tivera nada que ver com queimaduras do frio, mas tudo que
ver com ternura.
— Que a deusa nos amaldiçoe a ambos — suspirei. Não tencionara ficar
tão zangada ou explodir por causa da caverna, mas aqueles sentimentos tinham
vindo a apodrecer. A melhor coisa a fazer era abrir a ferida e desfazer-me desse
peso.
Apesar da progressão tensa da nossa discussão, a minha pequena
experiência fora parcialmente bem-sucedida. O Ira apenas conseguia detetar
com certeza uma mentira quando eu falava. Mais um truque a acrescentar ao
meu arsenal.
Olhei para a porta e considerei persegui-lo para lhe torcer o pescoço ou
beijá-lo de forma insensata, mas reprimi esses impulsos. Para descobrir a
verdade do que acontecera à Vittoria, teria eventualmente de me desvincular
dele. E mais valia começar aqui e agora. Não conhecia todas as regras e
cerimonial do reino demoníaco, mas pelo menos agora sabia que os príncipes
não invadiam os domínios reais uns dos outros. Assim que partisse para a Casa
Orgulho, o Ira e eu nunca mais nos voltaríamos a ver. Pelo menos, não por
algum tempo.
Minha senhora.
Que disparate.
A minha atenção voltou-se para o roupão, e uma estranha sensação fez
disparar o meu coração. Não reparara quando o demónio o segurara, mas as
flores bordadas combinavam com as nossas tatuagens.
A tinta lavanda-pálida simbolizava um compromisso entre nós que eu
havia assumido involuntariamente quando o convocara pela primeira vez. Ele
havia percebido de imediato o que eu fizera e não se dera ao trabalho de me
dizer a verdade. Descobrira-o semanas depois através do Anir, na noite em que
havíamos encontrado outra bruxa assassinada num beco. O Ira jurara que me ia
contar, que tinha aguardado que confiássemos um no outro para revelar o nosso
casamento iminente, mas eu tinha certas dúvidas.
Tudo o que ele fazia era calculado. Cada movimento era estratégico. Havia
jogos que ele ainda estava a jogar e planos secretos que eu nem sequer
começara a decifrar. Talvez estivessem relacionados com o assassínio da minha
irmã, talvez não. Por mais zeloso que fosse com os seus segredos, iria descobrir
o que ele realmente andava a tramar. Por muito zelosamente que guardasse os
seus segredos, eu descobriria do que ele realmente andava atrás, de uma forma
ou de outra. Se aprendera alguma coisa sobre ele, era que estava disposto a ir
até ao fim para conseguir o que queria.
Olhei para o meu braço tatuado. Julgara que as tatuagens coincidentes
desapareceriam quando lançasse o meu feitiço de libertação naquela noite. Mas
não.
Apesar da magia quebrada, continuavam a crescer como sementes plantadas
e tratadas. Bocados de ambos alimentavam o desenho: as suas serpentes, as
minhas flores, as duas luas crescentes no interior de um anel de estrelas. Eram
uma recordação constante da minha inexperiência e das suas mentiras por
omissão.
Tracei os delicados caules e pétalas replicados no roupão, tecido sedoso e
fresco. Era bonito; exatamente o que eu escolheria se tivesse recursos
suficientes para adquirir uma peça de vestuário tão fina. Ele sabia-o. Ele
conhecia-me.
Talvez mais do que eu estava disposta a admitir. E, no entanto, ele
permanecia um mistério para mim.
Peguei no roupão, levantei-me da cama e fiquei nua ante o fogo a crepitar.
Estivera tão perto da morte havia horas, e a minha pele queimara com o gelo,
não com o fogo. E o Ira ficara ao meu lado a noite toda, embalando-me contra o
seu próprio corpo. Um corpo que não era frio como gelo, como a Nonna
costumava afirmar quando contava as suas histórias sobre os Malditos. Ele
podia ter delegado a tarefa a um dos seus curandeiros reais.
Também podia ter-me deixado morrer, como sugerira o Anir. Mas não o
fizera.
Ergui o tecido até ao rosto, inspirando o aroma persistente do Ira, e depois
atirei-o diretamente para as chamas.
Capítulo 5

«Morte por guarda-roupa» estava destinado a ser o epitáfio na minha lápide,


graças à obsessão do Ira por roupa fina e tecidos requintados. Havia tantos
vestidos e saias e corpetes e espartilhos e túnicas e meias e rendas delicadas e
camisas de noite e vestidos de seda que tive de fechar as portas do guarda-roupa
ornamentado e dar um passo atrás. Era demasiado.
Em casa tivera um punhado de vestidos simples sem espartilhos e alguns de
musselina. Dois pares de sapatos. Algumas sandálias e botas. Algumas blusas e
saias de usar por casa. A Vittoria e eu costumávamos partilhar roupa para fazer
o nosso parco guarda-roupa parecer maior do que era.
A roupa dentro deste armário não se assemelhavam a nada que eu alguma
vez tivesse visto no mundo mortal. E não apenas por serem tão ousadas e pela
quantidade escandalosa de pele que expunham. Eram as cores vivas, o detalhe
dos bordados e a sua natureza fantasiosa.
Respirei fundo e voltei a abrir o guarda-roupa. Ao fundo, os sapatos
estavam alinhados, desde chinelos e sapatos de salto raso a botas, num arco-íris
de cores escuras. Em preto, carvão, castanho-escuro, dourado e até púrpura-
escura e prata.
Fitas, rendas, couro. Vestidos com estampas exóticas e fantásticas, com
espinhos, serpentes, flores, fruta, e tecidos brilhantes que rivalizam com o céu
noturno. Sedas, tules, veludos e algo tão macio e felpudo que o esfreguei contra
a face.
Caxemira. Uma memória meio esquecida ganhou vida. Uma pequena
cabana nas profundezas de uma floresta gelada; uma coluna de fumo prateado a
serpentear para o céu. Sussurros, caldeirões e... e a Nonna oferecera-me a mim e
à Vittoria luvas de caxemira, quando fomos visitar a sua amiga no Norte de
Itália. Adorara o material nessa altura e adorava-o agora. Puxei o vestido
lavanda-pálido e engoli com força.
— Oh.
A moda nos Sete Círculos era muito mais apertada e reveladora do que a
roupa do meu mundo. O vestido assentar-me-ia tal como aquelas luvas e cobrir-
me-ia até metade da coxa. Se tivesse sorte.
Era a peça de vestuário mais obscena que alguma vez vira, mais curta do
que qualquer camisa de noite desenhada para aquelas que exerciam a sua
profissão em casas de prazer. Perguntava-me como seria estar confiante e
assumir o meu corpo e a minha sensualidade sem desculpas e sem medo de
ninguém.
De repente, imaginei-me a usar aquele vestido quando provocava uma
discussão com o demónio que o escolhera...
... o seu olhar escureceria enquanto, lentamente e pleno de raiva, caminhava
para mim, fazendo-me ferver o sangue. Eu empurrá-lo-ia contra a superfície
dura mais próxima, sem fôlego, enquanto ele passava os dedos sobre o tecido
suave das minhas coxas, considerando o seu próximo movimento com cautela.
Talvez a sua boca irritante me tentasse e desafiasse enquanto concebia
estratégias para me fazer gemer de prazer. Sussurrar-me-ia todo o tipo de
promessas obscenas, aquecendo-me até ao âmago em vez de me surpreender. Eu
inclinar-me-ia e morder-lhe-ia o lábio inferior, um aviso e um apelo.
Teria todo o gosto em informá-lo de que já não tinha medo das minhas
paixões e que já não estava disposta a negá-las. Essa vergonha seria a última
coisa que sentiria ao tê-lo nos meus braços.
Depois, beijar-me-ia, lenta e profundamente. Dominante, exploraria a minha
boca, o meu corpo. Uma prova de que tencionava cumprir as suas promessas
obscenas. Sentiria o seu próprio desejo pressionar-se contra mim, duro, quente e
excitante. A satisfação que experimentaria ao afetá-lo de tal forma transformar-
se-ia em necessidade tão rapidamente que nem sequer teria tempo de voltar a
respirar. Encostaria o meu corpo contra o dele, ávida por sentir mais.
Não seria preciso muito para ele me levantar o vestido sobre os quadris,
pôr-se de joelhos e deixar um rasto de beijos até à minha...
— Sangue e ossos.
Sacudi a ilusão que a magia havia induzido. Teria de me habituar a este
reino e aos impulsos que ele despertava. Não fora tão intensa como no Corredor
do Pecado, mas essa mesma magia demoníaca e sedutora estava lá, persistente,
testando-me e provocando-me.
Outra infeliz complicação. Teria de ter muito cuidado com todos os meus
pensamentos e sentimentos. Apressei-me a arrumar o vestido e agarrei num
roupão, banindo os pensamentos sobre o Ira.
Pensar no príncipe daquela Casa do Pecado enquanto nua, perto da minha
cama, era pedir problemas. Depois de ter vestido o roupão, dei um nó no cinto
de seda à volta da minha cintura e voltei a olhar para a roupa.
Encontrei outro vestido cujo estilo era um pouco mais parecido com a
minha roupa em casa. Bem, assemelhava-se aos vestidos que uma princesa ou
uma mulher nobre poderia ter. A parte de cima era um espartilho sem alças de
um preto-mate sem fim. Uma saia elegante que me abraçava as ancas e se
estendia até meio da coxa antes de descer em cascata até ao chão. Rolos pretos
de cetim contornavam os limites da parte superior do espartilho e da cintura.
Estava muito longe das simples blusas e saias sem espartilho que normalmente
usava para trabalhar.
Fui assaltada por dores de nostalgia. Não havia no mundo roupa
extravagante que pudesse substituir o conforto que sentia com a minha família.
Queria estar na cozinha da Mar & Vinho, a ouvir a sinfonia de sons que a minha
mãe, a Norma e a minha irmã criavam enquanto trabalhávamos. O cortar das
facas, o chiar das panelas, o tilintar das colheres e todas nós a cantarolar
alegremente enquanto partilhávamos os mexericos do mercado. O meu pai e o
meu tio Nino a conversarem alegremente com os clientes.
O aroma de comida saborosa à espera... Essa vida simples e feliz havia
terminado.
Quer estivesse pronta ou não, tinha de assumir este novo papel e torná-lo
meu. E era isso que faria. Tanto literal como figurativamente. E começaria
agora mesmo.
Peguei no meu vestido, entrei na divisão onde o príncipe se havia lavado e
depois detive-me.
— Deusa divina.
Cada superfície refletia a minha expressão de espanto. O chão, o teto, a
banheira encastrada, o toucador: tudo era feito de cristal sólido, vidro fosco ou
ouro branco. As velas cintilavam num candelabro circular no teto. A sala emitia
um brilho suave, como se tivesse atravessado do submundo para a superfície da
Lua.
Os únicos toques de cor provinham de várias pilhas de maquilhagem
dispostas de forma ordenada sobre o toucador. Pincéis para os olhos e o rosto e
pentes para o cabelo. Pinças, tiaras e alfinetes. Botões de flores para tecer no
cabelo. Frascos de tintas multicoloridas para os lábios. Ouro esmagado que
podia salpicar no meu rosto ou corpo, delicados frascos de perfume e
tonalidades de rosa-pálido e violeta para os quais não tinha um nome exato.
Pus o vestido de lado, peguei num perfume e inalei. Lilases e, talvez,
amêndoas com uma pitada de bergamota. A Vittoria teria adorado a imensa
variedade e riqueza dos perfumes. Engoli para desfazer o nó que começava a
formar-se na minha garganta e agarrei o perfume de lilases. Pulverizei um
pouco em cada pulso e esfreguei-os um no outro. O aroma era celestial. Cheirei
outro que me lembrou madressilva, madeira de bétula e chantilly. Talvez
também um toque de gardénia. Outro cheirava quase como o jacinto e
lembrava-me as exuberantes manhãs de primavera.
Sorri um bocadinho para mim; a paixão da Vittoria por criar perfumes
ajudou-me a distinguir as notas individuais de cada um. Por um instante, quase
senti que podia fechar os olhos e fingir que ela estava aqui. O momento chegou
e partiu, uma sombra temporária lançada por uma nuvem que passava apressada
pelo Sol.
Inspecionei todas as pequenas garrafas e todos os itens que o Ira me deixara.
Nada me surpreendeu tanto como as flores frescas. Havia uma jarra de cristal no
toucador ao lado da maquilhagem.
Várias flores perfumadas em várias tonalidades de branco, azul-pálido e
pinhões dourados em cascata à volta de um punhado de fetos e eucalipto
intercalados no arranjo. As flores eram todas encantadoras, quase as mesmas
que se encontravam no mundo humano, com a exceção de que estavam cobertas
de gelo.
Senti-lhes o aroma, surpreendida por a sua fragrância ter atravessado a
geada. Acariciei as pétalas geladas com os dedos. Perguntei-me se as flores
haviam sido ideia do Ira ou se alguém as teria enviado.
Alguém como o meu futuro marido. Deixei de me interrogar.
Não importava.
Concentrei-me na banheira de vidro embutida no chão; ocupava a maior
parte do centro da divisão. Podia nadar para trás e para a frente e dar largas
braçadas. Era uma das coisas mais luxuosas que alguma vez vira. Antes de ir
para a cama, tomaria um banho. Mas naquele momento tinha coisas para fazer,
segredos para descobrir. E sete cortes demoníacas em que me infiltrar, pouco a
pouco, começando pela Casa Ira.
Até agora, o submundo era muito diferente do que me tinha sido contado na
Terra. Tinha muito a aprender para ser capaz de distinguir a verdade da ficção.
Só tinha tempo para um banho rápido. Tirei o roupão, entrei na banheira e
esfreguei a pele e o cabelo o mais rápido que pude com uma barra de sabão que
encontrei pousada sobre algumas toalhas dobradas. A água estava à temperatura
perfeita. Nem demasiado quente, nem demasiado fria, mas deliciosamente
quente. Parte de mim reconsiderou o meu plano de um banho rápido para, em
vez disso, passar o resto da tarde a flutuar naquele céu.
Com um suspiro, enxaguei-me e saí da banheira. A toalha que encontrei
perto da borda da banheira era suficientemente grande para secar todo o meu
corpo e enrolar o meu cabelo.
Uma vez seca, peguei no vestido. Graças à deusa e ao demónio que
encomendara este guarda-roupa, aquele modelo de vestido permitiu-me vesti-lo
sem ajuda. Passei-o por cima dos quadris e dos seios. Tinha pequenos fechos
laterais e foi muito fácil apertá-los.
Voltei para o meu quarto e vasculhei o guarda-roupa até encontrar um par de
sapatos pretos com salto cobertos por um pó de carvão brilhante. Encaixavam
perfeitamente, tal como o vestido. Se o Ira possuísse alguma qualidade, seria
sem dúvida o perfeccionismo.
Voltei para a casa de banho, pronta para arranjar o meu cabelo. A minha
atenção voltou-se para a maquilhagem. Em casa não tínhamos dinheiro para
pagar tal variedade de artigos de luxo.
Sentei-me no banco de cristal e apliquei um pouco de kohl na parte superior
das minhas pestanas. Os meus dedos pairaram sobre um belo conjunto de flores
de laranjeira cuidadosamente embutidas nos ganchos de cabelo. Em casa teria
seguido o meu primeiro impulso de decorar o meu cabelo com elas. Mas ali...
Em vez disso, escolhi um tom de vermelho violento e sangrento e pintei os
lábios da cor do assassínio.

O guarda-roupa e as roupa não foram as únicas extravagâncias que descobri.


O Ira havia-me instalado em aposentos próprios para uma rainha. Não era
apenas a casa de banho que quase rivalizava com toda a casa da minha família;
havia também uma sala de estar, um quarto de dormir e um outro quarto que
parecia concebido para relaxar, entreter hóspedes ou quaisquer outras atividades
de lazer que eu desejasse. Havia um sofá convidativo que parecia perfeito para
me aconchegar com um bom livro. Não tinha a certeza do que fazer com tanto
espaço.
Uma estante cheia do que pareciam ser garrafas de licor caras preenchia uma
parede na sala recreativa. Passei um dedo por cima do vidro frio e olhei para
cada uma delas. No interior, vi várias pétalas e ervas esmagadas infundidas no
interior do licor. Subornos, sem dúvida. Deixei-as por abrir e continuei a minha
inspeção. Todos os espaços estavam decorados com bom gosto, a mobília
luxuosa e de bom gosto. A elegância era abundante. Ao que parecia, o príncipe-
demónio estava a tentar impressionar-me.
Ou talvez estivesse a tentar pedir desculpa por todo aquele assunto
desagradável do roubo de almas. A traição era mais bem servida com um bom
licor demoníaco, suítes pessoais em palácios luxuosos e presentes caros. Pelo
menos, segundo ele.
Embora supusesse que o Ira também poderia estar a demonstrar respeito pela
sua futura rainha. Pelos vistos, havia benefícios em estar noiva do Orgulho,
ainda que fosse numa Casa demoníaca rival.
Caminhei pelo quarto em direção à saída que encontrara numa antecâmara.
Seria preciso mais do que mobília decadente e vestidos bonitos para reparar a
nossa situação atual. Em primeiro lugar, o príncipe poderia começar com um
pedido de desculpas. Depois disso talvez pudéssemos ter uma conversa honesta.
Queria resolver o que quer que estivesse a fermentar entre nós antes de
partir para o castelo do meu marido. Não precisava de mais animosidade com a
Casa Ira.
Já tinha muito com que me preocupar.
Quando estava a fechar a mão em torno da maçaneta, bateram à porta.
Abri-a de supetão, pronta para moer o juízo ao Ira por ser um idiota pretensioso.
— Oh. — Pestanejei ao ver o Anir. — Não esperei que fosses tu.
— Também é bom voltar a ver-te.
O Anir trazia uma bandeja coberta numa mão e uma garrafa do que parecia
ser vinho na outra. O seu cabelo comprido, cor de meia-noite, estava atado
atrás, encostado à nuca, e a sua cicatriz prateada reluzia contra a sua pele
bronzeada. O fato que envergava era muito mais fino do que aquele que usara
quando nos havíamos conhecido em Palermo. Não vi a sua espada demoníaca,
mas sabia que ele estava, muito provavelmente, armado.
— Não foi isso que quis...
— Foi. E não me importo. — Ele piscou-me o olho. — Ocorreu-me que
talvez tivesses fome. Ou que talvez quisesses embebedar-te.
Olhei para o elegante corredor de pedra com arcos que rivalizavam com os
de qualquer grande catedral. Vazio.
— O teu mestre enviou-te para me espiares?
— Porque não descobres por ti mesma? Come e bebe um pouco de vinho.
A minha língua solta-se muito depois de algumas bebidas.
Tinha sérias dúvidas de que o Anir alguma vez se embebedasse o
suficiente para não controlar o que dizia. O Ira nunca confiaria nele se os
segredos lhe escapassem apenas com alguns copos de vinho ou licor. Torci o
nariz em direção à garrafa.
— Não é cedo para começar a beber?
— Já é de noite. Passaste a maior parte do dia a dormir.
Dei-lhe as boas-vindas com um movimento circular do braço e fechei a
porta atrás dele. O Anir pousou a bandeja e a garrafa na mesa de vidro ao canto
e retirou a tampa com um gesto teatral. Fruta, carne fumada, queijo curado,
azeitonas marinadas e crostini. Tudo disposto com um cuidado profissional.
Olhei fixamente para aquilo, sem emoção.
— O Ira agiu sempre como se nunca tivesse sido exposto a comida
humana. Outra mentira?
— Não. — O Anir tirou duas taças de um pequeno armário perto de uma
mesa em que eu não havia reparado e serviu, a cada um de nós, uma generosa
quantidade de vinho. — Sempre que posso, abasteço-me de mantimentos no
mundo humano. Sobretudo queijo, carne fumada e vários frutos secos, trigo e
arroz. Coisas que podem ser facilmente armazenadas ou desidratadas. —
Entregou-me a taça de vinho. — Sua Alteza certificou-se de que eu trazia estes
artigos. Ele pensou que esta noite poderias querer algo que te recordasse a tua
casa. Agora que já não estás à beira da morte e podes desfrutá-lo.
Aceitei a taça e farejei-a.
— Vinho tinto ou vinho demoníaco?
— Vinho tinto, humano. — Tilintou a taça contra a minha. — Saberás a
diferença quando beberes vinho demoníaco. É inconfundível.
Ignorando aquela informação sinistra, tomei um gole.
Tinha um travo suave e doce. Bebi mais.
— Então, comida humana e vinho. É suposto fazeres-me desinibir e ganhares
a minha confiança? Imagino que tentarás fingir que estás bêbado, oferecer-me-
ás alguma informação inócua que o teu mestre te contou para ver que segredos
me escaparão em troca.
— És sempre assim tão cínica?
— Se há algo que aprendi nos últimos tempos foi a questionar qualquer
pessoa com ligação ao reino demoníaco. Todos eles têm a sua própria agenda. O
seu próprio jogo. Se fizer perguntas suficientes, acabarei por descobrir a
verdade por detrás da mentira elaborada de alguém. Embora, de acordo com os
príncipes, eles sejam incapazes de mentir. O que, tenho a certeza, não é verdade.
Ou talvez seja essa a razão da tua presença. Tu podes mentir pelo Ira.
Tirei uma azeitona de um pequeno prato e levei-a à boca. O sabor salgado foi
um bom contraste para o vinho. Provei um pouco de queijo, carne e pão. O Anir
observou-me contemplativamente, se não com alguma tristeza.
— Só ainda não descobri o que mais poderá ele querer de mim agora. Ele já
ganhou.
O Anir fez rodopiar o vinho na taça, descrevendo círculos com a mão.
— O que, exatamente, achas que ele ganhou?
— A sua liberdade. A sua grande fraude. Fez-me parecer uma tola por
confiar nele quando disse que trabalharíamos juntos. — Acabei o meu vinho e
voltei a servir-me. Antes de tomar outro gole, comi nova azeitona. — Porque
não me explicas a política do diabo para eu poder descobrir que mais tem ele a
ganhar vendendo a minha alma ao diabo?
— Foi isso que ele te disse?
— Eu — Voltei a pensar na noite em que nos beijáramos, quando eu repetira
o que tinha ouvido da boca do Inveja. Não me conseguia lembrar ao certo das
palavras do Ira, mas... — Ele não negou a acusação. Se não estava preocupado
em ser apanhado a mentir, porque não me disse a verdade?
— Acta non verba — disse sorrindo. — Ele rege-se segundo esse princípio.
Ações, não palavras. Fechei a boca com força. O Ira trouxera-me para o
submundo. Aparecera com um contrato do Orgulho. Fora uma ação grande e
inegável quanto bastasse. Ele não precisava de dizer nada. Recebera a sua
mensagem, tão alto e claro como um céu de verão sem nuvens. O Ira não havia
hesitado em usar-me em seu proveito. Dissera-me, certa vez, que mentiria,
enganaria, roubaria ou assassinaria quem fosse preciso para ganhar a sua
liberdade. Tivera sorte por ele apenas me ter enganado, embora isso não
servisse de consolação.
— O que sabes sobre a consorte do Orgulho? Como foi assassinada?
— Interessante, se não uma agressiva, mudança de assunto. — O Anir pôs
queijo numa fatia de crostini e cobriu-a com prosciutto. — Queres um conselho
não solicitado? Adota uma abordagem mais subtil à recolha de informação. As
Casas reais são antigas e os seus modos antiquados. Não te darão nada se o
exigires ou pedires abertamente. É considerado rude e grosseiro. Além disso,
eles não acreditam em dar sem receber nada em troca. Se pedires alguma coisa,
é bom que estejas disposta a pagar um preço.
Mordi o lábio inferior, pensativa. O Anir cedera-me a verdade e conselhos de
livre e espontânea vontade. Se tivesse de apostar em qualquer amizade neste
lugar, talvez devesse apostar nele, independentemente da sua relação próxima
com o Ira. Pousei a taça em cima da mesa.
— Não tenho a certeza de como o abordar de forma menos direta ou inócua.
Para dizer a verdade, sinto-me um pouco sobrecarregada.
— Compreensível. Há muita coisa a mudar, e rapidamente. Imagino que seja
difícil... processar tantas emoções.
Era uma estranha reviravolta à frase.
— Deves ter atravessado o Corredor do Pecado. Creio que não precisas de
recorrer muito à imaginação para compreender como me sinto.
— É um facto. — Deu um gole no vinho enquanto me fitava. — Terás de
ganhar a confiança dos príncipes, tornar-te amiga deles. Deixa-os conspirar
contigo, deixa-os procurar-te. Se jogares com os seus egos e com os pecados
que representam, oferecer-te-ão informações úteis. Deverás estar sempre
preparada para revelar um segredo ou fazer um acordo. Opta por coisas que não
te importes de partilhar ou que sejam usadas contra ti. Define os termos antes de
concordares, ou eles distorcê-los-ão a seu favor.
Deixei escapar um suspiro.
— Tinha esperanças numa solução mais rápida.
— Está envolta em algo que se estende por décadas e reinos. Não há opção
rápida ou fácil. Isto transcende o derramamento de sangue na tua ilha. Mas se
começares por lá, talvez descubras mais. Reduz a lista. Concentra-te em quem
pensas que tem as respostas que procuras. De que informação precisa com mais
urgência? O que será mais benéfico para os teus objetivos?
— Não tenho uma agenda. Estou apenas curiosa. Se a mulher do Orgulho foi
assassinada, assim como todas as suas outras potenciais noives subsequentes,
gostaria de evitar esse mesmo destino.
— Se isso fosse completamente verdade, não terias vindo aqui.
— Estou aqui para garantir que os demónios não passam pelos portões. Estou
aqui para proteger a minha família.
O Anir não respondeu, mas ambos sabíamos que isto era apenas parte da
verdade. Se queria respostas sobre a consorte do Orgulho e os detalhes da sua
vida e morte, teria de ir até ele. Mas ele estava preso numa batalha infantil de
egos com o Ira, e eu precisava de um convite. Não tinha chegado a lado nenhum
com o Inveja, e o seu papel no assassínio da minha irmã continuava pouco
claro. Descobrir quem assassinara a primeira consorte poderia ser a forma mais
útil de resolver o meu mistério. E eu não mentira por completo; saber o que lhe
tinha acontecido ajudar-me-ia. Parecia que o Anir sabia mais, mas a forma
como havia formulado as suas frases impedia que se considerasse essa linha de
interrogatório. No mínimo, fora uma dica subtil.
— Porque escolheste juntar-te à Casa Ira?
O Anir não respondeu de imediato, e lamentei ter perguntado algo que,
com toda a probabilidade, era pessoal. Ele soltou um suspiro.
— Depois do assassínio dos meus pais, a raiva e a ira foram o meu maior
conforto. Ele pressentiu-o, viu para onde me dirigia e ofereceu-me uma saída
produtiva para essa raiva.
— Há quanto tempo estás aqui?
— Humm. O tempo aqui passa de uma maneira peculiar. Uma hora mortal
pode ser uma semana. Um mês, uma década. Tudo o que sei é que já lá vai
algum tempo. — O Anir tomou um generoso gole do seu vinho, semicerrando
os olhos. — É a tua vez. O que é que lhe fizeste?
— Não sei se entendo o que queres dizer. O que aconteceu?
— Ele saiu e derrubou uma montanha inteira na margem ocidental das
Terras Imortais. Até agora, recebemos cartas das Casas Luxúria e Gula. Pensam
que estamos próximos dos dias do fim e querem saber se nos estamos a preparar
para a guerra.
— Porque é que, de cada vez que um homem faz uma birra, se culpa uma
mulher pelo seu comportamento? Se o Ira se comportou como um idiota, fê-lo
por sua conta e risco. Não vejo por que motivo o seu temperamento é tão
chocante. Ele é a encarnação viva da ira. Tenho a certeza de que já o viste
zangado antes.
O Anir sorriu sobre o bordo da sua taça.
— De certeza que ele estava zangado?
— O que mais poderia ser?
— Escolhe outra emoção.
— Ser um idiota orgulhoso conta?
— O teu quarto, as tuas regras. Mas não creio que ele estivesse chateado ou
magoado com o próprio orgulho. — Os seus olhos escuros cintilaram. — Sabes,
em todos estes anos que o conheço, nunca o vi acompanhar ninguém
pessoalmente à Cidade do Gelo. — A expressão confusa que ele detetou no meu
rosto, levou-o a explicar-se. — É assim que a Casa Ira é conhecida dentro dos
Sete Círculos.
Isso explicava todas as decorações de cristal e vidro fosco na minha casa de
banho.
— Eu não tentaria analisar demasiado a sua suposta boa ação. Ele tinha de
me acompanhar por causa do contrato. Ele precisava da minha alma.
— Essa parte do contrato concretizou-se no instante em que atravessaste
para o submundo. Ele podia ter-te deixado sozinha no Corredor do Pecado.
Devia tê-lo feito. — O Anir levantou-se de repente e caminhou até à porta.
Bateu com os dedos na ombreira e olhou para mim. — Ele agora está na
varanda do sétimo andar. Caso queiras continuar a discutir com ele. Acho que
lhe faz bem. Ser desafiado. E é evidente que consegues afetá-lo.
Como uma lasca envenenada a perfurar o coração, sem dúvida. Era tentador
e poderia tê-lo feito, caso não tivesse reparado num objeto na borda da cama.
Algo que não pertencia ali e que não estivera lá momentos antes. Despedi-
me do Anir e encostei-me contra a porta fechada, contando em silêncio os
batimentos cada vez mais desconfortáveis do meu coração.
Medo. Este reino prosperava à conta do medo. E eu tencionava privá-lo de
todos os modos que pudesse.
Expirei lentamente e contei até dez.
Depois endireitei-me, atirei os ombros para trás e aproximei-me da caveira
humana.
Capítulo 6
— Angelus mortis vive — trauteou a caveira assim que fiquei a poucos
centímetros dela, a sua voz assustadoramente semelhante à da minha irmã
gémea. Os pelos eriçaram-se ao longo dos meus braços. Era como se a Vittoria
tivesse atravessado a barreira entre a vida e a morte para me enviar uma
mensagem, mas parecia fora do lugar, errado. — Fúria. Quase livre. Donzela,
Mãe, Anciã. Passado, presente, futuro, encontra.
— Vittoria? — O osso do maxilar caiu e qualquer magia demoníaca que
tivesse alimentado a caveira desapareceu. Engoli em seco, incapaz de arrancar
os olhos do mensageiro amaldiçoado. — Minha deusa.
O facto de alguém ter enfiado aqui uma caveira enfeitiçada sem eu ou o
Anir repararmos era quase tão perturbador como a magia usada para lhe dar
vida. Eu nunca ouvira falar de um feitiço que controlasse os ossos dos mortos.
Claro, havia a necromancia, mas não fora isso que dera vida à caveira. Isto nem
sequer era il Proibito. Era algo diferente, algo mais aterrador do que o Proibido.
Deixei a caveira onde estava, caí na cadeira de vidro e tomei um bom gole
de vinho enquanto a minha mente trabalhava a toda a velocidade. Pensei nas
lições de magia negra da Nonna, especificamente naqueles feitiços que
empregavam objetos tocados pela morte, e em como ambos deviam ser evitados
a todo o custo. Ela nunca nos tinha falado, nem uma única vez, de qualquer
bruxa que pudesse manipular algo morto há muito tempo para lhe dar vida. Se é
que tivesse sido isso que acontecera. Tinha de ser magia demoníaca. O que
significava que o remetente era muito provavelmente um príncipe do Inferno.
A questão era qual deles e porquê.
Reproduzi a mensagem na minha mente. O anjo da morte vive.
Fúria. Quase livre. Donzela, Mãe, Anciã. Passado, presente, futuro,
encontra.
Por uma questão de simplicidade, e para evitar o pânico sobre o mensageiro
macabro, decidi analisá-lo linha por linha, começando pelo anjo da morte.
Claudia, a minha melhor amiga e uma bruxa cuja família praticava
abertamente as artes das trevas, usara um espelho negro e ossos humanos na sua
última sessão de adivinhação, e as vozes dos mortos haviam perturbado a sua
mente. Ela também mencionara algo sobre o anjo da morte.
Eu não acreditava em coincidências.
Levantei-me e andei pela sala, esforçando-me por recordar mais detalhes da
sessão de adivinhação da Claudia. Aquela noite fora cheia de terror e os
detalhes eram um borrão. Eu encontrara-a de joelhos no pátio do mosteiro, com
as unhas partidas até ao sabugo, a recitar mensagens sem sentido sobre os
condenados e os amaldiçoados. Ela dissera-me para fugir, mas eu nunca a
abandonaria lá com os membros supersticiosos da irmandade sagrada. Ela havia
dito algo sobre um ladrão astuto que roubara as estrelas e as bebera até secarem.
Que ele vinha e ia.
Que deveria ter sido impossível...
Sabia de pelo menos quatro príncipes-demónios que andavam pela Sicília na
altura. Ira, Inveja, Ganância e Luxúria. Um deles tinha de ser o anjo da morte.
Talvez não no sentido literal, mas poderia muito bem ser um apelido. Parei de
repente, o coração a martelar.
Apenas um demónio encaixava nessa descrição. Até eu o chamara Samael
certa noite — o anjo da morte e príncipe de Roma —, pensando que se tratava
de uma descrição inteligente dele. Ele lançara-me um olhar perplexo segundos
antes de me advertir para que nunca mais o chamasse assim. Ira.
Ele não fazia segredo do facto de ser o general de guerra. Primava pelo uso
da violência. Se ele era a Morte, talvez não tivesse sido escolhido para
solucionar os assassínios; talvez estivesse enfurecido por alguém lhe ter
maculado o título e o tivesse envolvido sem o consentimento do diabo. Isso
explicaria o porquê de o Orgulho não o ter convidado para o seu círculo. O
diabo estava a castigar o Ira pela sua desobediência.
Se assim fosse, isto punha em causa todas as últimas informações que eu lhe
arrancara. Se o Ira tivesse omitido verdades fundamentais sobre o seu
envolvimento em tudo isto, não havia como saber até que ponto ele me tinha
enganado.
Massajei as têmporas. O Ira era o meu principal suspeito, tanto para o anjo
da morte como para a parte da fúria da mensagem enigmática. Depois havia a
Donzela, a Mãe e a Anciã. Essa parte era mais difícil de relacionar com os
assassínios. De acordo com a nossa história, a Donzela, a Mãe e a Anciã eram
três deusas que governavam o céu, a terra e o inferno.
As velhas lendas das bruxas diziam que elas haviam dado à luz as deusas a
quem rezávamos, e uma delas, a deusa do céu e do sol, era a mãe de La Prima
Strega. A Donzela, a Mãe e a Anciã eram para as nossas deusas o que os Titãs
eram para os deuses nas mitologias mortais.
Se a deusa do submundo — ou qualquer uma das deusas nascidas no seu
reino — fosse real e não uma fábula, era provável que possuísse o tipo de magia
capaz de reanimar ossos, mas o que a levara a enviar-me uma mensagem tão
enigmática permanecia um mistério. No passado, as deusas nunca haviam
mostrado qualquer interesse em associarem-se às bruxas. Tinha sérias dúvidas
de que fossem começar agora.
Contudo, se a Donzela, a Mãe e a Anciã tivessem algum papel em tudo isto,
não seria como nas lendas. Não era descabido pensar que os demónios tinham
os seus próprios contos e histórias sobre si mesmos.
E as respostas não se saberiam se eu permanecesse fechada no meu quarto.
Tirei um lenço do armário e embrulhei a caveira, tendo cuidado para não lhe
tocar com as mãos. Se a Vittoria aqui estivesse, teria pegado nela e dançado
pelo quarto sem hesitar, alimentando a preocupação da Nonna com a sua
afinidade com os mortos. Um sorriso quase me enrugou os lábios antes de eu o
banir. Procurei um esconderijo, depois ajoelhei-me, enfiei a caveira no armário
e fechei as portas.
Com a situação resolvida, limpei as mãos e fui inspecionar a casa do Ira.

Deixei de contar quantos lanços de escadas de pedra havia descido mais ou


menos quando cheguei à dúzia. Todos os patamares eram magníficos e
terminavam num chão que se estendia por aquilo que me pareciam centenas de
metros. O que devia ser obra de algum truque ilusório: era impossível que o
castelo do Ira fosse tão grande.
No patamar seguinte, fiz uma pausa para olhar para fora de um conjunto de
três janelas em arco. Uma enorme massa de água cor de merlot jazia no fundo
de um vale e um fumo subia em espirais preguiçosas a partir da sua superfície.
Um ramo de uma árvore próxima caiu na água e imediatamente se incendiou.
Escrevi uma nota mental para nunca me aproximar daquele lago
amaldiçoado, a menos que quisesse queimar a carne que me protegia os ossos.
Deixei as janelas e percorri o corredor.
Na quase totalidade, o castelo fora construído com uma pedra de tons
pálidos, semelhante ao calcário, e havia algumas asas adornadas luxuosamente
com grandes tapeçarias coloridas. Naquela ala em particular, havia anjos a
lutarem contra criaturas monstruosas.
Fazia-me lembrar a arte renascentista: cores profundas e escuras contra
paredes e colunas pálidas. Portas esculpidas em osso conduziam a salões de
baile, quartos não utilizados e salas de estar. Parei diante de um imponente
conjunto de portas duplas e desenhei com um dedo o delicado entalhe com que
eram adornadas. Um emaranhado de videiras com flores e estrelas percorria as
bordas e o topo, enquanto as raízes retorcidas das mesmas videiras afundavam
profundamente nas entranhas da Terra o fundo das portas.
Esqueletos e caveiras e coisas deixadas a apodrecer enfeitavam a parte
inferior.
Abri a porta e engoli um grito. Lá dentro encontrava-se uma biblioteca como
eu nunca havia sonhado. Fui trespassada por um entusiasmo quando entrei na
sala e olhei para as filas e filas de prateleiras de vidro. Não conseguia Ver-lhes o
fim.
Um sorriso largo dominou-me o rosto. As deusas deviam estar a sorrir para
mim — este era o lugar perfeito para pesquisar magia e mitos. Fiquei
maravilhada com a estampagem dourada na lombada dos milhares de livros que
lá se encontravam. Alguém os tinha organizado por cores, e as encadernações
variavam desde as tonalidades mais brilhantes de amarelo aos cremes mais
pálidos e brancos puros como a neve. Vermelhos, roxos, azuis, verdes e
laranjas; era um arco-íris de beleza contra um pano de fundo de gelo.
Não conseguia imaginar que o Ira fosse calmo o suficiente para uma noite
de leitura tranquila, e, se o fizesse, nunca teria imaginado que o faria rodeado de
um motim de cores. Ele era mais ébano e ouro... madeira e cabedal escuros e
cintilantes. Elegância masculina no seu melhor. Isto era...
— Um refúgio. Como o Paraíso, mas menos aborrecido.
Virei-me, pressionando uma mão contra o meu coração em alvoroço.
— Surpreender assim as pessoas é muita falta de educação. Supõe-se que
os príncipes-demónios têm maneiras impecáveis.
— Em geral, sim. — O olhar do Ira desceu descaradamente pelo meu
vestido sem alças. De repente, fiquei terrivelmente consciente de todas as áreas
onde o tecido sedoso deslizava sobre a minha pele. Suspeitei que o seu
escrutínio fosse mais para garantir que eu estava vestida como uma futura
rainha e que não o envergonharia em frente de qualquer membro da sua corte do
que qualquer outra coisa. — A minha biblioteca pessoal fica um nível abaixo.
— Deixa-me adivinhar... Inferno? Tons pretos, cabedal e ouro?
— Muito fogo, correntes e dispositivos de tortura também. — O seu
sorriso foi um rápido clarão de dentes. Perigoso, destinado a desarmar. Um tipo
diferente de arma, uma que ele aprimorara até à perfeição. Provavelmente a
mais perigosa do seu arsenal. Sobretudo ali. — Quando te sentires corajosa o
suficiente, mostro-ta.
O meu estômago contorceu-se um pouco só de pensar em correntes e
espaços escuros e no Ira.
— Suponho que chamar às tuas bibliotecas Paraíso e Inferno é dramático o
suficiente para se adequar a ti. — Percorri um corredor forrado de livros em
vários tons de azul e o demónio seguiu-me.
Tinha de parar de olhar para o seu sorriso ou este reino iria explodir.
— Tiveste notícias de algum dos teus irmãos?
— O Inveja, o Luxúria e o Ganância demonstraram interesse em receber-te.
Chegaram cartas das suas Casas. — A leveza do seu tom era suspeita. —
Solicitaram especificamente a tua presença nas celebrações do Banquete do
Lobo. Imagino que, com o tempo, o Preguiça e o Gula abandonarão os seus
excessos o suficiente para te enviarem também um convite.
As Lupercais eram uma festa pré-romana, que significava mais ou menos
«banquete do lobo», na qual os humanos sacrificavam cabras e depois ungiam a
testa dos ricos com o sangue derramado. Os pedaços cortados dos animais iriam
então correr pelas ruas e os transeuntes seriam golpeados com a carne. Se a
celebração dos demónios fosse de alguma forma semelhante, preferia não
comparecer.
Sem me voltar, disse:
— Vais organizar uma festa?
Ele apareceu perante mim, encostado casualmente a uma estante.
Velocidade sobrenatural no seu melhor. Não pude evitar fitá-lo. O seu fato era
do tom escuro das sombras. Fazia-me pensar na noite, em lençóis de seda,
encontros secretos e em coisas em que não deveria pensar.
— Não. Estou à espera para ver o que o Orgulho faz.
— Ele já te convocou?
— Não.
— Porque estás à espera de ver o que ele faz?
— É uma das poucas vezes em que os sete príncipes são convidados para o
mesmo domínio real. Depois são três dias de pompa e circunstância: jantares,
caçadas, um baile de máscaras e depois o festim. Decidimos onde vai acontecer
com base em dois fatores. Onde o convidado de honra escolhe ir e que príncipe
com a mais alta patente decide ser o anfitrião.
— Não têm todos o mesmo poder? — O Ira abanou a cabeça, sem dar mais
explicações. Tentei banir a minha frustração. — E se o convidado de honra não
escolher o príncipe com a mais alta patente?
— Escolhem sempre. E se não o fizerem, seja qual for a Casa em que se
encontrem, são fortemente aconselhados a fazê-lo. A recusa é um insulto grave
e tem levado a uns quantos banhos de sangue ao longo dos séculos. — Por um
momento fugaz, pareceu apanhado pela fome da batalha. Depois a sua
expressão ficou calma. — Ao que parece, todos os príncipes sofrem impulsos
de outros pecados.
Os nossos olhares encontraram-se. Compreendi o que ele realmente me
queria dizer. O Ira estava a pedir desculpa pela nossa discussão anterior. Aquela
informação era um ramo de oliveira lançado aos meus pés. Podia afastá-lo e
continuar a nossa disputa ou podia aceitá-lo e seguir em frente.
Retomei a minha lenta procissão pelo corredor, em busca de um tópico em
particular, mas projetando indiferença para evitar suspeitas.
— De qualquer forma, porque celebram uma tradição pré-romana?
— É tão mortal da tua parte acreditares que não foram eles que se
inspiraram nos nossos ritos e rituais — desdenhou ele. — Nem sequer tiveram a
decência de manter as datas ou práticas corretas.
Parei de ler os títulos e estudei-o com muita atenção.
— Porque me estás a contar isto? Será porque todos vocês, príncipes do
Inferno, se transformam em grandes lobos e uivam sob a lua cheia? Talvez
devesse começar a preocupar-me contigo a arfar à porta do meu quarto antes do
festim.
— Usamos máscaras de lobo, mas não irei ofegar. A não ser que peças
com jeitinho.
Engoli com força, forçando os meus pensamentos para longe de onde este
reino (e este príncipe problemático) os estava a direcionar.
— Não respondeste à minha primeira pergunta. Porque me estás a contar
tudo isto agora?
— Foste nomeada para convidado de honra. — O humor que lhe restava
abandonou-lhe a expressão. — A votação terá lugar no próximo mês. Não tenho
dúvidas de que serás eleita. A tua chegada é o maior tema de conversa dos Sete
Círculos. Duvido que haja mais alguém que seja tão intrigante nesta Época de
Sangue.
Maravilhoso.
— Vão obrigar-me a matar a cabra?
O Ira retribuiu-me o olhar.
— Não há cabra nenhuma, Emilia.
A forma como ele o disse fez com que os meus joelhos tremessem.
— Vão sacrificar-me a mim?
— Não. — Foi um alívio quando ele pronunciou aquela palavrinha preciosa.
— Como sacrifício, o teu maior medo ou um segredo do teu coração ser-te-á
tirado.
— Não. — A voz saiu-me num sussurro suave e trémulo. Odiei-o.
— Sim. — A voz dele era dura, cortante. — E acontecerá em frente de todos
os príncipes do Inferno e de todos os nossos súbditos presentes. Aqui, o medo é
poder. Quanto maior for o teu medo, mais poder nos concederás. Seria muito
melhor se sacrificasses a tua vida. Se o teu maior medo te for tirado, prometo-te
que irás desejar algo tão rápido e definitivo como a morte de um mortal.
Capítulo 7

— Não. Recuso-me. — Desta vez o meu tom era de aço. — Disseste que
teria sempre uma escolha.
A sua expressão tornou-se gélida.
— Dadas as tuas ações mais recentes, começava a pensar que te tinhas
esquecido dessa conversa.
— Queres discutir o que aconteceu na gruta agora?
— Nem por isso, não.
— Teremos de o fazer pela certa, por isso agora é um momento tão bom
como qualquer outro.
— Tudo bem. — Ele cruzou os braços diante do peito. — Podes começar
por explicar a tua decisão.
Ele falava como se eu realmente tivesse tido escolha, a sua voz tingida de
raiva mal reprimida. Fiquei tão surpreendida que dei um passo atrás e estudei-o
atentamente. Um músculo no seu maxilar tremeu e o seu olhar era duro o
suficiente para fazer inveja aos diamantes. O Ira não estava apenas zangado,
estava furioso. Quase conseguia sentir o calor da sua fúria a invadir o espaço
entre nós.
De repente tornou-se claro.
— Tu querias que eu rejeitasse o Orgulho.
— Eu não disse isso.
— Não foi preciso. — Por uma vez, as suas emoções estavam-lhe escritas
por todo o rosto. A minha surpresa deu logo lugar à irritação. Se ele me tivesse
dito a verdade naquela noite, as coisas teriam sido muito diferentes. Poderíamos
ter arranjado um novo plano. Juntos. A raiva soltou-me a língua. — Diz-me
porquê. Eu exijo saber por que razão querias que eu o recusasse.
— Pára de insistir, Emilia. Esta conversa acabou.
— Não, não acabou. Ele vai magoar-me?
As prateleiras mais próximas de nós agitaram-se.
— Julgas que eu o permitiria?
— Não sei — respondi honestamente. — Não sei o que é real, o que é
fantasia ou parte do teu último plano. Trouxeste-me aqui, para este reino, para
casar com o teu irmão.
— Não confundas as tuas escolhas com as minhas ações.
Como se alguma vez tivesse sido uma escolha justa.
— Esperavas que ficasse em casa a assistir enquanto os demónios destruíam
o meu mundo? Enquanto assassinavam ou torturavam a minha família e amigos
e continuavam a arrancar os corações às bruxas? Insistes em dizer que foi uma
escolha minha, mas não é verdade.
— Há sempre uma escolha.
— Não quando os ponteiros do relógio estão a contar e as portas a rachar.
Assinar o contrato com o Orgulho foi a minha melhor opção para parar a
carnificina. Tomei uma decisão com base na informação que tinha. Se cometi
um erro ou se estás infeliz, seja porque for, talvez devesses ter falado comigo
naquela noite. Em vez disso, limitaste-te a ficar parado, distante e zangado, e
não disseste uma palavra!
Os seus olhos dourados semicerraram-se.
— Alguma vez te passou pela cabeça que eu não podia?
— Que não podias o quê? Falar comigo?
— Interferir.
— Por magia ou por édito demoníaco? — Procurei-lhe uma resposta no
rosto, mas ele substituíra a sua irritação por aquela máscara sem emoção que
usava tão bem. Controlei o meu temperamento, não querendo discutir. — Pensei
que o diabo era o único que estava amaldiçoado. Está a insinuar que isso não é
verdade? Há alguma coisa que eu deva saber sobre ti?
Ele apertou as mãos em punhos ao lado do corpo. Parecia querer mergulhar
de cabeça em algum combate e libertar a sua frustração.
— Talvez essa fosse uma pergunta que devesses ter feito à tua família
mortal. Sem dúvida que eles parecem ter algumas lacunas seletivas nas suas
histórias. Alguma vez te perguntaste porquê, bruxa?
— Como te atreves a falar da minha família...
O Ira desapareceu magicamente numa nuvem de fumo, deixando-me
hesitante, confusa. A minha família não tinha segredos. Ao longo das nossas
vidas, a Nonna partilhara connosco histórias sobre os Malditos, as suas mentiras
e manipulações. Advertira-nos contra as artes das trevas e o preço que tal magia
exigia. Tudo isso era verdade.
Percorri o corredor forrado de livros. O Ira, ou estava enganado, ou a mentir,
ou a omitir parte da verdade. A Nonna contara-nos sobre a dívida de sangue
entre a Primeira Bruxa, La Prima Strega, e o diabo; contara-nos sobre o
sacrifício de sangue exigido pelo roubo.
Os dois amuletos que eu e a minha irmã havíamos recebido à nascença eram
afinal o Chifre de Hades. Os seus chifres. O Ira levara-os na noite em que me
entregara o contrato do Orgulho. Usara-os para fechar os Portões do Inferno, tal
como tinha prometido.
A fúria cresceu em mim, mas depressa deu lugar à confusão. A Nonna sabia
das Bruxas das Estrelas e dos chifres do diabo e não nos dissera nada.
Soubera dos chifres no diário da minha irmã e sobre as Bruxas das Estrelas
pelo Ira e pelo Inveja, embora não tivesse sido esse o nome que eles haviam
usado. O Inveja chamara-me uma bruxa das sombras.
A Nonna não havia admitido de imediato nenhuma das duas quando eu a
confrontara.
O que me levava a pensar em quantas mais coisas ela teria escondido.
Aprendêramos com ela o mínimo de magia da terra; como lançar feitiços
simples com a ajuda de ervas e objetos de intenção. Encantamentos protetores.
Feitiços para dormir e feitiços inofensivos para manipular o orvalho no cristal e
fazê-lo deslizar sobre a superfície. Coisas que requerem pouca habilidade.
Uma frase ou palavra em latim aqui, uma pitada disto ali e tínhamos um
feitiço, com a ajuda do nosso sangue mágico. O que mais havia para saber sobre
a maldição que eu não sabia?
Ou sobre a nossa magia, já agora.
Andei em círculos, agitada. Agora que estava a questionar as coisas,
continuava a encontrar cada vez mais lacunas nas nossas vidas. A Nonna
passara tanto tempo a ensinar-nos como os demónios se comportavam, apenas
para nos atrasar na educação das nossas próprias capacidades. Não pude deixar
de pensar se haveria alguma razão por detrás disto.
A Nonna era demasiado inteligente para se ter esquecido de lições valiosas.
A magia ofensiva era certamente tão importante como os nossos feitiços
defensivos e protetores, certo? Mas ela nunca nos havia ensinado aqueles
feitiços mais ousados. Na verdade, parecia determinada a afastar-nos dessa
magia a todo o custo. Seria perigoso para nós usá-la? A Vittoria e eu tínhamos
sido aconselhadas a ouvi-la, a obedecer e a seguir as regras ou a sofrer as
consequências. Eu nunca quisera irritar a Nonna ou causar qualquer dano.
Mas a Vittoria brincava sempre com os limites, sem medo das
consequências.
O comentário mordaz do Ira cortara-me a fundo, infetara-me. E fora essa a
sua intenção. O seu arsenal não se limitava a aço, balas, sorrisos manhosos e
beijos intoxicantes. As suas palavras eram igualmente mortíferas quando
apontadas e disparadas contra um alvo. E eu não conseguia apagar a sensação
irritante de que talvez ele estivesse certo.
Havia buracos na minha educação que eu não podia ignorar.
Alguns feitiços vinham até mim facilmente, como se fossem memória
corporal. Alguns tivera de aprendê-los e quase sempre os esquecia. Não me
conseguia lembrar onde ou como havia descoberto o feitiço da verdade, apenas
que um dia eu quisera saber a verdade e lançara um feitiço que roubava o livre-
arbítrio. A Nonna havia ficado furiosa quando eu lhe contara. Em vez de ser
recompensada por usar esse nível de poder, havia sido castigada.
Fiz o caminho até ao fim das prateleiras e encontrei uma cadeira enorme e
luxuosa para me sentar. Um pensamento de que não consegui escapar seguiu-
me até lá. Talvez o Ira não se tivesse referido apenas à Nonna.
A minha irmã encontrara o primeiro livro de feitiços, usara magia demoníaca
para selar o seu diário e reunira-se com o Ganância e os metamorfos por razões
que eu não conseguia entender, dado que os metamorfos e os demónios eram
inimigos naturais. Olhei para o meu dedo e fiquei surpreendida por ver que
ainda estava a usar o anel de ramos de oliveira que o Ira me oferecera. Perdida
em pensamentos, rodei o aro de ouro à volta do dedo. Perguntei-me o que mais
poderia a Vittoria ter descoberto antes de morrer. Poderia ter sido toda a verdade
sobre a maldição do diabo e a dívida de sangue? Talvez esse conhecimento,
mais do que qualquer outra coisa, tivesse sido a verdadeira razão pela qual ela
fora assassinada.
Algo enterrado no fundo da minha memória se contorceu e depois voou
para longe. Um sopro de fumo que não consegui conter. Deu-me a estranha
impressão de que talvez o diabo não tivesse sido amaldiçoado de todo.
Se isso fosse verdade... então talvez os assassínios daquelas bruxas não
tivessem nada que ver com a sua procura de uma noiva, e tudo o que eu pensava
saber fora criado de um engano. A Nonna. A Vittoria. Os sete príncipes do
Inferno. Pelo menos um deles andara a mentir-me.
E eu estava mais determinada do que nunca a descobrir o porquê.

Demorou algumas horas frustrantes, mas finalmente encontrei o que


procurava. Tirei um grimório de magia para principiantes da prateleira e
mergulhei numa cadeira perto de um canto escuro. Olhei em volta; não havia
qualquer som e nenhuma indicação de que estivesse mais alguém na biblioteca.
Não que parecesse estranho para uma bruxa estar a estudar magia. Mesmo
assim, não queria que ninguém se apercebesse das falhas na minha formação.
Abri a lombada de cabedal desgastada e comecei a ler.
De acordo com a bruxa que escrevera o livro, a nossa magia era como um
músculo que precisava de ser exercitado. Se fosse ignorado por muito tempo,
atrofiaria. Ela também a descreveu como uma «fonte»; um lugar dentro de nós
de onde a podíamos tirar facilmente, como um poço sem fundo no nosso
núcleo.
As sábias Fiadeiras do Destino dizem que o nosso poder é um dom
concedido pelas deusas, logo, tem uma tendência para imitar as suas
capacidades até certo ponto. Algumas linhagens irão notar uma afinidade por
certos feitiços, sobretudo aqueles que usam os quatro elementos. Este é um
sinal da deusa a quem a bruxa deve rezar a fim de realçar essa magia. O quinto
e menos falado elemento, o éter, é considerado o mais raro, mas isso pode não
ser verdade neste contexto.
Parei de ler e deixei-me levar pela informação. E com ela outra emoção que
preferi não examinar muito. Não era propriamente suspeição nem raiva, mas
algo relacionado com ambas. A Nonna nunca explicara de onde vinha o nosso
poder ou como funcionava. Era possível que não soubesse, mas foi-me difícil
acreditar.
Aquela era também a primeira vez em que ouvia falar sobre as Fiadeiras do
Destino e orar a uma deusa. Fôramos sempre ensinadas a rezar a todas elas.
Procurei na minha memória por qualquer altar que a Nonna tivesse feito para
uma qualquer deusa e nada me veio à mente. Talvez a nossa magia não estivesse
muito alinhada com nenhum dos elementos.
Vasculhei o grimório, em busca de mais informações sobre as Fiadeiras do
Destino, mas não encontrei outras referências. Voltei ao início, com a intenção
de me concentrar na fonte.
A raiva que sentia em relação à Nonna e à minha própria falta de
questionamento sobre a nossa educação continuavam a distrair-me.
— Concentra-te.
Sem muita confiança nas minhas capacidades, fechei os olhos, deixei a
mente ficar em branco e tentei sentir essa fonte interior de poder. De início não
notei nada de anormal, mas depois o mundo desvaneceu-se rapidamente à
minha volta. O interior da minha mente tornou-se mais escuro. Eu não sabia
nada, eu não era nada. Tornei-me nada.
Era quase como um vazio dentro de mim, bocejando na escuridão sem fim.
Tinha a estranha impressão de que ela estava à minha espera para poder usá-la,
e assim que reconheci a sua existência fui imediatamente atraída para ela. Agora
sentia tudo. Sintonizei-me para baixo, para baixo, para o meu próprio centro,
perto do meu coração, que batia desvairadamente, e parei. A minha magia
dormia ali. Não tinha a certeza de como o sabia, mas sabia.
Aproximei a minha consciência da magia e tentei ter uma melhor ideia de
como era.
Algo antigo, poderoso e zangado abriu um olho, furioso por ter sido
despertado.
Afastei-me do lugar com um arquejo.
— Valha-me a deusa... o que era aquilo?
Virei as páginas do grimório, mas não encontrei nenhuma referência a um
poder como aquele que acabara de experienciar. Era claro que não se encaixava
na terra, no ar, no fogo, na água ou no éter. Era enorme, omnisciente, poderoso
de uma forma que me preocupava. A sua raiva ardia com uma intensidade que
ofuscava a razão. Se pudesse invocar essa força à minha vontade... poderia
destruir este reino.
Não que eu quisesse. Só queria vingar-me do assassino da minha irmã
gémea. Respirei fundo e fechei os olhos, pronta para tentar novamente.
— Oh, perdoe-me.
Virei o olhar do meu livro de feitiços para a minha educação negligenciada e
fechei o grimório com um baque. Uma mulher jovem com cabelo preto
encaracolado, olhos cor de sépia e pele bronzeada fez-me uma reverência
educada. Nos seus longos cabelos havia crânios de animais, num estilo
semelhante à forma como fixei flores no meu cabelo. Um vestido avermelhado
profundo abraçava cada uma das suas curvas generosas. Trazia consigo um livro
sobre arboricultura, uma escolha surpreendente, mas interessante.
— Deves ser a Emilia. Deixaste toda a corte muito intrigada. Eu sou a Fauna.
Ofereci-lhe um sorriso hesitante. Já estava a contar com o facto de os
mexericos aqui serem tão ativos como no mercado do meu mundo.
— Que tipo de boatos desagradáveis estão a circular?
— O costume. Que o teu cabelo é feito de cobras e a tua língua de fogo, e
que quando te zangas cospes chamas como os poderosos dragões infernais da
Extensão Implacável. — Sorriu quando viu o meu olhar de surpresa. — Estou a
brincar. Eles são demasiado espertos para começarem rumores enquanto o
Príncipe Ira está em casa. Como sua convidada pessoal, tu és intocável. Ele
deixou-o muito claro. Se o teu nome estiver nos lábios de alguém, seja lorde ou
senhora da Corte Real Demoníaca, ele arrancar-lhes-á a língua.
— É mais provável que se limite a fulminá-los com o olhar até que
murchem e morram se impedirem a sua missão.
Ela lançou-me um olhar curioso.
— Na verdade, ele foi bastante literal na sua ameaça. O Lord Makaden
teve a sorte de escapar intacto. O príncipe prometeu que da próxima vez que ele
falasse mal de ti, a sua língua acabaria presa do lado de fora da sala do trono e
permaneceria lá até apodrecer. A elevada posição do Makaden na corte é muito
provavelmente o único motivo pelo qual ele ainda não o mutilou.
Tive de me lembrar mentalmente de continuar a respirar enquanto aquela
imagem tomava forma na minha cabeça.
— A sério? O Ira ameaçou arrancar a língua de alguém?
— Não é uma ameaça feita de ânimo leve. É um aviso a ter em conta. Sua
Alteza não é misericordiosa para com aqueles que o desafiam. Esta manhã
derrubou uma montanha sobre o Domitius, o seu tenente-general. — O sorriso
da Fauna desvaneceu-se. — Continuam à procura dele nos escombros.
Fiquei sem palavras. O Anir apenas me dissera que ele havia derrubado
uma montanha. Não mencionara que alguém havia sido esmagado. O Ira era um
príncipe do Inferno. Um general de guerra. Um dos temidos e poderosos Sete.
Essa notícia não devia surpreender-me. Já havia testemunhado a sua violência
anteriormente.
Ainda assim, serviu como um lembrete sobre com quem estava a lidar e
onde me encontrava. Tinha de jogar as minhas cartas com inteligência quando
visitasse as outras cortes.
O facto de o Ira ter ferido um oficial de alta patente não devia ser uma
surpresa. O mais provável é que tivesse descarregado o seu mau humor nele
depois da nossa discussão desta manhã. Se era assim que agia após uma simples
discussão, temi por quem pudesse ter sido vítima da sua ira lendária depois do
nosso último desentendimento. A culpa afundou as suas garras em mim,
embora, de forma racional, soubesse que não tinha razões para me sentir
culpada. Ele era o único responsável pelas suas ações.
— Sabes porque é que o Ira o atacou?
— Creio que o Domitius sugeriu servir aos soldados o teu coração ainda a
bater. Embora outros afirmem que ele tenha feito comentários lascivos sobre os
teus atributos físicos. Algo sobre provar-te para ver se eras tão doce como os
teus «seios maduros» sugeriam.
— E o outro? O que é que ele disse?
— O Lord Makaden perguntou se Sua Alteza tinha outras regras relativas à
língua e como se aplicavam a ti. — Hesitou. — Nenhuma delas foi considerada
muito... engraçada. Sua Majestade teve razão em agir rapidamente. Um fruto
podre estraga toda a colheita.
Encantador. Era uma forma delicada de dizer que os demónios tinham agido
como anunciado. Ou, pelo menos, tinham tentado. Podia não ser muito versada
em armas ou em combater, mas tinha alguma habilidade com o punhal, graças
ao tempo que passara na cozinha a cortar carcaças de animais. Conhecia as
áreas vitais a atingir e não hesitaria em defender-me contra quem me quisesse
prejudicar.
Da próxima vez que visse o Ira, iria pedir-lhe uma arma. Decerto que ele me
concederia alguns meios de proteção. Não queria que a minha segurança
dependesse dele ou de qualquer outro.
— Algum deles era teu amante?
— Diabos, não — bufou a Fauna. — Em breve irás conhecer o alvo do meu
desejo. Amanhã à noite, na verdade.
A desconfiança cresceu dentro de mim, a par com o pavor.
— O que vai acontecer amanhã?
— Nada de muito escandaloso ou assustador. Apenas um jantar com os
membros de mais alta patente da Casa Ira. — O seu sorriso era largo e
deslumbrante. — Não te preocupes. O Príncipe Ira proibiu os extirpamentos há
pelo menos um século. Agora as únicas lâminas com que nos armamos são os
nossos olhares cortantes. São punhais que lançamos sobre as nossas taças de
vinho enquanto sonhamos em apunhalar a carne dos nossos inimigos.
Considera-o um treino para o próximo banquete.
— Ouvi dizer que é arrancado um medo ao convidado de honra. Outra
pessoa poderia substituí-lo? — Se sim, negociaria com o Ira ou com o próprio
diabo, se fosse preciso. — Algum membro da alta nobreza, talvez.
— Se isso fosse permitido, o que bem poderia ser, ninguém se ofereceria
como voluntário. — A Fauna lançou-me um olhar piedoso. — Definitivamente,
nenhum príncipe neste reino. Daria demasiado poder aos demais membros da
realeza. Estás hospedada na Ala de Cristal, certo?
— Talvez? — Encolhi um ombro. — Há muitos cristais no meu quarto.
— Maravilhoso. Vemo-nos antes do jantar e acompanho-te até lá abaixo.
Antes que eu pudesse concordar ou perguntar qualquer coisa, ela saiu
apressada da biblioteca.
Sacudi a cabeça. O meu primeiro dia na casa do Ira fora um desastre.
Chegar com hipotermia, uma caveira enfeitiçada, discussões com o príncipe,
segredos que a minha família poderia estar a guardar sobre a minha magia, um
elemento mutilado do exército do Ira e a nova ameaça do Banquete do Lobo a
pairar sobre tudo isto.
A última coisa que eu queria era oferecer o meu pior medo a um reino que
me torturaria com ele. Mas talvez, se aprendesse a aproveitar o meu poder,
pudesse resolver o assassínio da Vittoria e voltar para casa, para o mundo
mortal, muito antes disso acontecer.
Peguei no grimório, levantei-me e retirei-me para os meus aposentos;
precisava de me preparar para o dia seguinte. Dada a informação sobre a
montanha derrubada, não tinha dúvidas de que o jantar seria uma espécie de
batalha perversa. Uma em que apenas com sorte escaparia incólume.
Não cheguei a voltar para a Ala de Cristal. A curiosidade levou a melhor
sobre mim e decidi investigar a versão de Inferno do Ira. Conhece o teu
inimigo... e os seus hábitos de leitura.
Encontrei uma escadaria circular perto das traseiras da biblioteca arco-íris e
desci cuidadosamente para a escuridão lá em baixo. A minha suposição inicial
de ébano, ouro e cabedal não estivera assim tão longe da realidade da sua
biblioteca pessoal. Havia cadeiras de cabedal escuras, suaves como manteiga,
em frente de uma lareira que preenchia uma parede de pedra. Não teria
dificuldade em ficar de pé na abertura e erguer os braços esticados acima da
cabeça e, mesmo assim, nem sequer chegaria perto de tocar na parte de cima.
Vários tapetes em vários tons de carvão e preto com detalhes a fio de ouro
haviam sido dispostos com requinte em redor da sala.
Ali, as estantes eram de obsidiana e todos os livros estavam encadernados
em tons de cabedal escuro. Havia um lustre circular com esguios braços de ferro
pendurado nas vigas expostas do teto, lançando um brilho tentador sobre a sala.
Era o local perfeito para uma pessoa se aninhar a ler em frente de um fogo
crepitante. Havia até uma manta felpuda sobre as costas de uma cadeira de
leitura.
Num canto do espaço de leitura principal, vi um conjunto de grilhões
pendurado na parede. O Ira não estivera a brincar. A minha boca secou e
apressei-me a desviar o olhar.
Tortura não fora a primeira coisa que me ocorrera. E eu não queria que este
reino manipulasse quaisquer emoções passageiras com a sua magia retorcida.
Observei o resto do espaço, absorvendo tudo o que pude.
Havia livros sobre guerra, estratégia, história (tanto demoníaca como
humana), rituais de bruxas, grimórios e notas escritas à mão em pilhas
arrumadas numa secretária grande e imponente. Em latim e numa língua em que
não estava familiarizada. Nada de incriminatório ou útil. Nada sobre as deusas e
a sua magia, nada de fábulas demoníacas sobre a Donzela, a Mãe ou a Anciã.
Nada de feitiços para reanimar crânios ou outros ossos.
Apenas penas e tinteiros. Uma pedra áspera que imaginei que fosse usada
para afiar lâminas.
Numa prateleira atrás da secretária, havia sete volumes de diários dedicados
a cada Casa demoníaca. Oito diários, na verdade, se o pó acumulado fosse
alguma indicação. Talvez uma Casa fosse tão prolífica que era necessário mais
do que um livro para guardar toda a informação.
Ao que parecia, os títulos eram a única coisa escrita em latim. Folheei
alguns, mas não consegui ler o que estava escrito. A frustração acumulou-se-me
atrás do esterno quando devolvi os diários ao seu lugar. Nunca nada era fácil.
Um decantador parcialmente cheio com um líquido cor de lavanda e um
copo de cristal a condizer atraiu-me a atenção. Fiquei curiosa quanto ao que o
Ira estava a beber e derramei um pouco do licor no copo para o cheirar.
Distingui uma mistura de cítrica e herbal. Tomei um pequeno gole e sibilei ao
senti-lo queimar-me a língua. Era forte. Quase como brande humano, mas com
uma nota de baunilha mais doce por baixo. Se o suavizasse com um pouco de
natas e gelo, estou certa de que ficaria delicioso.
E talvez me ajudasse a ultrapassar o evento da noite de amanhã. Pediria uma
bebida antes do jantar.
Pus o licor de lado e sentei-me à secretária para tentar abrir as gavetas.
Trancadas, claro. Por baixo de uma escultura de cobre com a forma de uma
serpente, que assumi ser usada como pisa-papéis, havia um envelope com uma
caligrafia elegante. Sem me sentir de todo culpada, li a mensagem.

Voltei a lê-lo, embora isso não me tenha ajudado a decifrar a frase. Imaginei
que o G. fosse a assinatura do Ganância. Mas também podia ser do Gula. Foram
encontrados. VIII. Tanto o Inveja como o Ganância haviam ido atrás do Chifre
de Hades, mas o Ira nunca demonstrara grande interesse nos amuletos. Para não
mencionar que agora se encontravam na sua posse até que o Orgulho nos
permitisse entrar no seu território.
— Vejamos então o que procuravas, meu querido e misterioso Ira?
Peguei no pisa-papéis da serpente e fi-lo rodar entre as palmas das mãos.
— Au.
Virei-o; pequenas arestas afiadas agrupadas num desenho geométrico
projetavam-se do lado de baixo. Era um selo de cera, não um pisa-papéis. Ou
talvez fosse ambos. Deixei-o de lado e voltei a analisar a nota. Desta vez houve
algo que me chamou a atenção. Não era dirigido a ninguém. O que significava
que não havia maneira de saber se o Ira era o destinatário pretendido ou se o
tinha intercetado.
Talvez o destinatário fosse o diabo e o objetivo fosse avisá-lo de que os seus
chifres haviam sido localizados. Talvez o G representasse o nome verdadeiro do
Ira e ele fosse o remetente. Ou talvez aquilo não tivesse importância nenhuma e
eu estivesse tão desesperada por pistas que as estava a inventar.
Também não havia uma data, por isso não tinha forma de saber se era
recente ou antiga. A menos que fosse esse o significado do VIII. Não fazia ideia
de como os demónios contabilizavam o tempo. No mundo humano, estávamos
no final do século XIX na Terra, mas talvez aqui estivessem no oitavo éon. Ou
talvez fosse uma referência ao oitavo diário, o que estava desaparecido. Poderia
passar uma eternidade a tentar adivinhar.
Deixei a nota, que não me serviu para nada, agarrei num tinteiro, numa pena
e num pergaminho, recuperei o grimório sobre magia para principiantes e
regressei ao meu quarto, mais frustrada e perdida do que antes. Quem sabe se o
dia de amanhã me esclareceria alguma coisa sobre o assunto; ainda que fosse
apenas através da observação de como os demónios interagiam e aprender como
se moviam pela corte.
Dada a minha posição como membro da classe trabalhadora, não estava
associada aos círculos abastados da sociedade em casa, na Terra, por isso, o dia
seguinte seria um teste a quão bem conseguiria passar despercebida. O meu
caminho para a vingança seria a fogo lento, não um inferno escaldante. Quando
invadisse a Casa Orgulho, já seria bem versada na forma certa de os enganar.
Com sorte, quando o demónio responsável pela morte da Vittoria sentir
finalmente as chamas da minha fúria, já terei reduzido a sua Casa do Pecado a
cinzas.
Capítulo 8

Sangue seco ou um merlot maduro, reduzido numa frigideira a regar um


corte de carne temperada com grãos de pimenta. Girei de um lado para o outro
diante do espelho dourado que ia até ao chão. Não conseguia decidir qual a
descrição que melhor captava a cor singular do vestido que estava a usar. A
Nonna chamá-lo-ia um presságio impregnado de sangue e ofereceria as suas
orações às deusas.
Já eu, gostava dele.
Obviamente, nunca tinha participado num jantar com a realeza demoníaca, e
o bilhete que chegara de manhã cedo com os elegantes traços do Ira indicava
que deveria usar algo feroz e formal. Este vestido preenchia ambos os
requisitos. Um corpete duro formava um V profundo entre os meus seios,
exibindo a minha pele bronzeada. Uma fina pele de cobra preta bordejava o top
arrojado, enquanto as saias permaneciam num consistente tom de vinho escuro.
Requinte demoníaco em todo o seu esplendor gótico.
Como o vestido não tinha mangas nem alças, a minha tatuagem brilhante via-
se. Decidi renunciar às luvas para a exibir. Não usaria joias, a não ser o anel que
o Ira me oferecera. Com certeza seria um muito interessante tópico de conversa.
E, com sorte, serviria bem o seu propósito.
Sentia falta do cornicello de prata que usara a minha vida toda, mas tinha de
aceitar que o meu amuleto se fora para sempre. Fui à casa de banho e mexi no
meu cabelo solto. No dia anterior, achara o penteado da Fauna tão solto,
selvagem e adorável que decidira pentear o meu de forma semelhante, para
evitar erros de vestuário. Ondas longas e escuras caíam-me em cascata pelas
costas, e as madeixas mais curtas que me emolduravam o rosto descaíam para a
frente enquanto fingia conversar com os comensais de ambos os meus lados.
Não bastaria. Não queria esconder-me atrás de nada naquela noite. A
nobreza do Inferno lançar-me-ia os seus olhares sem quaisquer obstáculos.
Por muito assustada ou nervosa que me sentisse, recusava-me a deixá-lo
transparecer.
Numa gaveta da cómoda descobri pequenos ganchos de cabelo com a forma
de um crânio de pássaro e puxei a parte de cima do meu cabelo para trás.
Posicionei os ganchos à volta da minha coroa como uma tiara mortífera e
acrescentei flores entre o macabro. Pronto. Agora já parecia uma princesa do
Inferno, se não a sua futura rainha.
Contudo, com os ossos no meu cabelo e o brilho familiar da raiva mal
contida nos meus olhos, suponho que também pudesse passar pela deusa da
morte e da fúria.
Voltei para o meu quarto e parei a meio caminho. Na mesa de vidro, ao lado
da garrafa de vinho que sobrara da visita do Anir na noite anterior, estava outra
caveira.
— Sangue e ossos. — Quase literalmente.
Respirei fundo e aproximei-me o suficiente para que entregasse a sua
mensagem. Logo a seguir, disse com a voz da Vittoria, o que me causou
arrepios por todo o corpo.
— Sete estrelas, sete pecados. Como é em cima, assim é em baixo.
— Valha-me a deusa. O que é que isso significa sequer?
Não esperava uma resposta e não fiquei muito desiludida quando não recebi
nenhuma. Dei um suspiro. Odiava enigmas. Eram confusos e inúteis. Tirei o
tinteiro, a pena e o pergaminho que levara da biblioteca do Ira e rabisquei
algumas notas.
Se um dos irmãos do Ira se estava a dar ao trabalho de me enviar mensagens
através de caveiras possuídas, tinha claramente de significar alguma coisa. A
não ser que um dos sete príncipes estivesse apenas a brincar comigo para se
entreter. O que eu duvidava, mas não o ignoraria. Talvez eles fossem
mesquinhos o suficiente para algo assim.
Os sete pecados eram os mais fáceis de decifrar; era evidente que se referia
aos príncipes do Inferno. «Como é em cima, assim é em baixo» era a parte
menos clara da profecia. Ninguém parecia ter a certeza absoluta do que isso
significava. A Nonna mencionara-o em relação à Vittoria e a mim. De acordo
com ela, devíamos trazer paz a ambos os reinos através de um grande sacrifício.
Mas mesmo a Nonna não tinha todas as respostas. Pelo menos fora isso que ela
proclamara. Quem sabia a verdade por esta altura? O resto... o resto iria
requerer alguma pesquisa.
Comecei uma nova secção nas minhas notas, determinada a definir
claramente cada teoria para que pudesse riscar ou acrescentar ao longo do
tempo. Escrever algo sempre me ajudara a ver realmente.
Além disso, era o que os detetives faziam nos romances, e no final do livro
resolviam sempre o mistério. Estava longe de ser uma especialista, mas daria o
meu melhor. Escrevi o máximo de informação de que me consegui lembrar
sobre a profecia.

Ofeguei ao reler o segundo ponto. As gémeas marcam o fim da maldição do


diabo.
— Deusa sagrada. Não pode ser...
Como é que não tínhamos reparado nisto antes? A minha mente voltou a
inundar-se de memórias da sessão de adivinhação da Claudia. Sobre o que ela
dissera de «ele» vaguear livremente e a impossibilidade disso. Não se referira
ao anjo da morte. A Claudia tentara avisar-nos em relação ao diabo. Se eu e a
minha irmã tivéssemos posto fim à sua maldição, o mais provável era ter sido o
nosso nascimento a quebrar a magia que o aprisionava, e não qualquer ação da
nossa parte.
O que significava que ele não fora acorrentado no Inferno, como
pensáramos.
E não o estava havia quase duas décadas. Enquanto eu investigava o
assassínio da Vittoria, ele andava por aí em liberdade, fazendo só a deusa sabe o
quê.
Então porque teria o Orgulho possuído o corpo do Antonio e enviado o Ira
no seu lugar para me ir buscar? Se ele não estava obrigado a reinar no Inferno,
ele próprio poderia ter vindo buscar-me. Poderia ter ido buscar todas as suas
potenciais noivas. Porquê delegar esse dever ao Ira?
A menos que a minha suspeita anterior estivesse correta e ele nunca tivera
necessidade de uma noiva. E os assassínios haviam sido cometidos por outro
motivo.
O medo percorreu-me a espinha. Olhei para o novo relógio na minha mesa
de cabeceira.
Antes de ir dormir, havia desejado ter uma mesa de cabeceira e um relógio,
e ambos tinham aparecido como que por magia na manhã seguinte. Não sabia se
o quarto estava encantado para fazer a minha vontade ou se o Ira havia
simplesmente adivinhado que eu iria precisar deles. O último era mais provável.
A atenção do Ira aos detalhes era espantosa. Como se ele não tivesse nada
melhor para fazer do que mandar vir mesas de cabeceira.
O jantar era à meia-noite e ainda faltava uma hora. O que apenas me dava
tempo suficiente para voltar a correr à biblioteca pessoal do príncipe-demónio.
Planeara passar algum tempo a praticar o aproveitamento a minha fonte mágica,
mas isso podia esperar. Tinha de ir buscar o diário da Casa Ira e levá-lo para o
meu quarto. Imediatamente. Com ou sem língua demoníaca, encontraria uma
forma de o ler, nem que para isso tivesse de vender outra parte da minha alma.
Consegui enfiar tanto a caveira como o diário roubado ao lado da primeira
caveira — escondera tudo atrás de um vestido volumoso — e fechar o guarda-
roupa no exato momento em que bateram à porta. Expirei calmamente, fiz uma
oração rápida à deusa das mentiras e do engano e desejei não só sobreviver à
noite, como sair dela mais vitoriosa do que esperava.
Alisei a frente do meu corpete e atravessei do meu quarto para a sala de estar
que também fazia de antecâmara.
Com alguma sorte, o meu coração acelerado passaria por nervos pelo jantar.
Abri a porta e a Fauna ofereceu-me um grande sorriso. A sua alegria não
parecia forçada, e isso soltou o nó que tinha no peito. Talvez pudesse fazer um
acordo com ela para ler o diário. Ela era um demónio, sem dúvida que possuía
as capacidades necessárias para ler a língua demoníaca.
Mas ainda não me sentia preparada para lhe dar a minha confiança.
Alheia à minha avaliação silenciosa e aos meus pensamentos errantes, o seu
olhar percorreu-me de cima a baixo.
— Estás linda, Emilia.
— Tu também. — Um eufemismo. Ela estava resplandecente com um
vestido prateado que parecia feito de metal líquido. Imagens de peitorais de
centuriões romanos passaram-me pela cabeça; a única coisa que faltava era a
saia escarlate ou a capa para completar a roupa. — O teu vestido é como uma
armadura.
— É a melhor coisa para te protegeres de olhares assassinos. — Piscou-me o
olho, deu um passo atrás no corredor e a sua expressão tornou-se séria. — Estás
pronta? Não tarda devemos ir. Espera-se que os convidados cheguem
elegantemente atrasados, mas não o suficiente para atiçar a ira real.
O meu coração martelava. Ainda não ouvira ou vira o Ira, a não ser pelo
bilhete que ele me enviara anteriormente em relação à minha indumentária. Não
fazia ideia do que esperar dele aquela noite, de como iria agir diante dos seus
súbditos, se iria ignorar a minha presença, gozar comigo ou sentar-me num
lugar de honra.
Talvez nem se desse ao trabalho de aparecer. Talvez me fosse atirar aos
lobos e ver se eu era cruel o suficiente para deixar crescer presas e tentar
sobreviver por mim mesma. Depois do nosso encontro na biblioteca, a verdade
é que ele parecia guardar rancor à minha família — que melhor maneira de se
vingar deles do que deixar-me sozinha numa sala cheia de demónios sedentos
de sangue?
— O Ira vai?
— Sim.
Aquela voz profunda e suave capturou toda a minha atenção com apenas
uma palavra. O meu olhar trancou-se no dele. O Ira estava no corredor, vestido
com o fato preto que lhe era característico. O seu olhar tornou-se sombrio ao
ver-me. Na sua cabeça repousava uma coroa de serpentes de obsidiana
salpicadas de ouro. Se uma sombra alta e ameaçadora ganhasse vida, perigosa e
tentadora como o pecado, assemelhar-se-ia a ele.
Disse a mim mesma que a sua aparição inesperada fora do meu quarto fora a
causa do meu coração agitado, e que não tinha absolutamente nada que ver com
o príncipe bonito ou com o brilho predatório dos seus olhos. Aquele olhar tão
fixo em mim, como se o resto do reino pudesse arder que ele não lhe prestaria a
mínima atenção. Havia algo na maneira como ele me fitava que...
A Fauna virou-se para ver quem me prendera a atenção e curvou-se
imediatamente numa reverência profunda.
— Vossa Alteza.
— Deixa-nos.
Após um rápido olhar de simpatia na minha direção, a Fauna apressou-se
para o corredor e a desaparecer de vista. Quando o som dos seus passos
desapareceu, o Ira aproximou-se e deslizou o olhar pesado da minha coroa de
ossos de animal para o seu anel no meu dedo, descendo lentamente até aos meus
dedos dos pés antes de o arrastar de volta para cima. Fiz o meu melhor para
respirar a intervalos regulares.
Não consegui determinar se o brilho nos seus olhos era ganância voraz,
raiva ou luxúria. Talvez uma combinação das três. Parecia que, agora, o
submundo não estava apenas a testar e a realçar os meus desejos, de repente, era
uma batalha que também ele estava a travar.
Quando o Ira terminou a sua inspeção minuciosa ao meu traje, olhou-me nos
olhos. Fui atravessada por uma pequena faísca enquanto os nossos olhares
colidiam e se sustinham.
Não era quase nada, um pouco da eletricidade estática que se sente depois
de se arrastar os pés e de tocar em algo metálico num dia seco. Só que... não
parecia ser nada, justamente.
Parecia o primeiro sinal de uma violenta tempestade a aproximar-se. Do tipo
em que ou te mantinhas firme ou corrias para te abrigares. O ar entre nós
pareceu crescer pesado e escuro com a promessa da fúria da natureza. Se
fechasse os olhos, conseguia imaginar trovões a fazerem-me bater os dentes
enquanto o vento soprava à minha volta, ameaçando varrer-me para o vórtice
giratório e devorar-me inteira. Era o tipo de tempestade que quebrava cidades,
que destruía reinos.
E o Ira controlava-a com um olhar poderoso.
— Pareces um belo cataclismo.
Ri-me, tentando aliviar a estranha tensão que pairava entre nós. A sua
escolha das palavras fez-me questionar quão bem seria ele capaz de me ler as
emoções. Talvez nenhum dos meus segredos tivesse alguma vez estado a salvo
dele.
— O sonho de qualquer mulher é ser comparada a um desastre natural.
— Um violento tumulto. Diria que te assenta.
Um sorriso quase lhe apareceu no rosto bonito. Em vez disso, fez sinal para
que eu me virasse. Obedeci lentamente para que pudesse absorver-me por
completo.
A parte de trás do vestido era tão escandalosa como a frente. Um decote em
V profundo expunha a minha pele quase até às ancas. Uma fina corrente
dourada presa entre os meus ombros balançava como um pêndulo contra a
minha coluna, o único outro adorno que usava.
Apenas porque estava a esforçar-me por prestar atenção, ouvi uma ténue
mudança na sua respiração enquanto inspirava com força. Fui percorrida por
algo semelhante a satisfação.
Receara sentir-me constrangida com tanta pele exposta no meu tronco e
costas e com a forma como o vestido se agarrava sedutoramente a cada curva,
mas sentia o oposto. Sentia-me poderosa. Agora compreendia o porquê de o Ira
escolher a sua roupa com tanto cuidado. Eu dominava-lhes a atenção sem
precisar de abrir a boca.
Fora um risco que decidira correr enquanto me vestia e — a julgar pelos
pontos de calor nas minhas costas e pelo que eu imaginava ser a incapacidade
do Ira para impedir que o seu olhar voltasse para mim uma e outra vez — estava
a funcionar. Ao jantar, queria que todos os olhos saltassem para mim assim que
entrasse, que todas as conversas cessassem. Não me esconderia atrás das
colunas nem passaria sem ser detetada. Se os súbditos do Ira fossem como ele,
não me podiam encarar como fraca. Farejar-me-iam o medo como um cardume
de tubarões farejaria uma gota de sangue no mar e atacar-me-iam com a mesma
violência predatória.
Comecei a virar-me novamente, mas o Ira deteve-me com um leve toque
no ombro. A sua pele nua ardeu contra a minha.
— Espera.
Talvez fosse a suavidade de como o disse ou o sentido de intimidade na
sua voz, mas obedeci. Gentilmente, ele agarrou-me o cabelo e empurrou-o para
um lado, deixando que as madeixas me fizessem cócegas enquanto deslizavam
pelos meus ombros. Mordi o lábio. Afinal, os ombros eram uma área mais
erógena do que eu alguma vez considerara. Ou talvez fosse apenas a forma
como o Ira se aproximava, até que senti o seu calor contra a minha pele e uma
pequena e intrigada parte de mim quis sentir mais.
Passou-me um fio por cima da cabeça e o seu peso assentou mesmo por
cima do meu decote. Ele apertou-o mais devagar do que era necessário. Mas
não me queixei nem me afastei.
Quando acabou, percorreu a minha coluna com um dedo, seguindo a linha
da corrente fina, e, sem se dar conta, causou-me arrepios. Recorri a cada grama
de teimosia que consegui reunir para não me inclinar para a sua carícia. Para me
lembrar do meu ódio. Porque era com certeza disso que se tratava: o fogo que
consumia tudo, a fúria do ódio.
Virei-me devagar até estarmos novamente cara a cara. O seu olhar caiu no
meu fio e olhei para baixo para ver o que me pusera em cima. O ar escapou-se-
me dos pulmões quando o meu cornicello prateado refletiu a luz.
— O diabo sabe que me estás a dar isto?
O Ira não desviou o olhar do amuleto.
— Considera-o um empréstimo, não um presente.
— Podes fazer isso? Não virão atrás de ti?
Ele dramatizou olhando para cada ponta do corredor vazio antes de voltar a
olhar para mim.
— Vês alguém a tentar impedir-me? — Abanei cabeça. — Então pára de te
preocupar.
— Não estou... — Ele contorceu a boca naquele seu sorriso perturbador
enquanto eu me calava, não terminando a mentira. Libertei um suspiro
silencioso. — Não é o que estás a pensar, por isso pára de sorrir.
— E em que é que tu achas que eu estou a pensar?
— Não me interessa o que tu estás a pensar. Para já, decidi ser cordial. E é
tudo. E irei limitar-me a tolerar a nossa situação atual até à minha partida para a
Casa Orgulho.
— Tens a certeza?
— Sim.
— Então diz-me que me odeias, Emilia, que sou o teu pior inimigo. Ou
melhor, diz-me que não me queres beijar.
— Não estou interessada em jogar este jogo. — Ele arqueou uma
sobrancelha, à espera, e eu lutei contra a vontade de revirar os olhos pela sua
presunção. — Está bem. Não te quero beijar. Satisfeito?
Uma centelha de compreensão reluziu no seu olhar. Percebi, tarde demais, o
que havia feito; o que ele ficara a saber no instante em que as palavras haviam
deixado os meus lábios traiçoeiros. Deu um passo em frente e eu recuei
apressadamente, até bater na parede. Ele inclinou-se sobre mim, apoiando as
mãos na parede de cada lado do meu corpo, com uma expressão incandescente o
suficiente para começar um incêndio.
— Mentirosa.
Antes que eu pudesse escavar uma sepultura mais profunda, a sua boca
debruçou-se sobre a minha, roubando-me o fôlego e qualquer outra negação
com a mesma facilidade com que me roubara a alma.
Capítulo 9

O seu beijo consumiu-me e seduziu-me. Tal como ele queria. Não foi rápido,
nem rígido, nem alimentado por ódio ou fúria. Era uma brasa, uma promessa do
fogo abrasador que está para vir com alguma carícia terna. Quase que o achei
doce — o tipo de abraço casto que dois amantes a cortejar-se roubam quando o
seu acompanhante não está a olhar — até que ele levantou lentamente os meus
braços acima da minha cabeça e me prendeu à parede pelos pulsos. Tomou o
meu lábio inferior entre os seus dentes e deu-me uma mordidela suave. Depois
lembrei-me; ele não era um anjo. E de repente senti-me mais do que disposta a
ser amaldiçoada.
Maldito seja este reino e as suas maquinações diabólicas. A sua necessidade
de pecado. A minha inegável necessidade dele. Naquele momento, não havia
pacto de sangue com o diabo. Não havia compromissos ou obrigações para com
a minha família. Havia apenas aquele momento, aquele príncipe maldito e o
calor que crescia entre nós.
O corpo do Ira moldou-se contra o meu, duro como uma rocha e inabalável
em todos os lugares certos. Qualquer que fosse a fome que eu sentisse, ele
tinha-a igualmente. Desejei odiá-lo. Desejei que não estivesse a passar a minha
língua pelos seus lábios ou a suspirar enquanto ele obedecia ao meu pedido
silencioso e aprofundava o nosso beijo.
Este novo beijo devorou, saqueou, roubou. Era um pedido de desculpas e um
desejo e uma recusa feroz de submeter-se a qualquer sentimento verdadeiro,
tudo num. Uma necessidade primordial no seu nível mais básico. Não tinha a
certeza se deixar-me conduzir por aquele sentimento selvagem me assustava ou
excitava.
Afastei-me, respirando com força.
— Isto é real?
— Sim.
Como que para provar a veracidade do que acabara de declarar, rodou as
ancas para a frente e eu tive quase a certeza de que todo o castelo tremeu no
momento em que os nossos corpos se uniram. Não havia dúvida do quanto este
príncipe das trevas me desejava. Agarrei-o pela lapela do casaco e puxei-lhe os
lábios para os meus.
Por um momento, com o coração a trovejar, desejei que ele puxasse o meu
vestido para cima, se enterrasse bem no fundo de mim e libertasse cada um dos
meus desejos aprisionados. Ansiava esquecer-me de onde estava e do que tinha
de fazer. Queria largar todo o sofrimento, dor e tristeza que nunca se afastavam
demasiado. Tudo o que desejava era o doce esquecimento das carícias. O Ira
poderia facilmente conceder-me isso. E mais.
Ele controlou-se e quebrou o beijo, apenas para começar a acariciar com
languidez a parte de cima do meu corpete. Uma necessidade explodiu por todo o
meu corpo e parecia estar espelhada no dele. Ele arrastou as mãos para o meu
flanco, puxando-me um pouco mais contra si.
— Ainda me vais destruir.
— Mais cedo do que julgas se não parares de falar e me beijares novamente.
— Criatura angélica e exigente.
Ele sorriu com indulgência e depois obedeceu. Este beijo. Era lento,
narcótico e fez-me perceber que ele não era o único em perigo de ser destruído.
Ele inclinou o meu rosto para cima, traçou os contornos do meu maxilar e fez
deslizar os dedos pelo meu pescoço, roçando suavemente o local onde podia
sentir-me a pulsação.
Sob a sua carícia, senti pequenas descargas de eletricidade. Quase me
esquecera de que ele me Marcara, dando-me uma maneira de o invocar sem usar
o punhal da Casa. Aquele S pequenino, quase invisível, que me formigava no
pescoço. A Nonna havia dito que a marca era uma grande honra, uma que
raramente era concedida.
Aquilo não a havia agradado.
Voltei a mim imediatamente e forcei-me a largar a qualidade viciante dos
seus beijos. Quase senti a magia do mundo a recuar como a maré baixa, a sua
desilusão a rebentar em ondas relutantes à nossa volta.
O Ira libertou-me gentilmente, sentindo a mudança nas minhas emoções.
— Porquê? — Consegui pronunciar uma palavra, a minha voz ainda tingida
de desejo.
— Pensei que não gostarias de uma plateia.
Uma imagem indecente de ele a possuir-me na mesa da sala de jantar
passou-me pela cabeça. Fora tão vívida que podia jurar que ouvira as
exclamações de surpresa dos convidados enquanto o seu príncipe me mostrava
o quão pecador podia ser; copos a estilhaçarem-se e garfos a baterem contra a
melhor porcelana demoníaca enquanto o Ira nos impelia aos dois até ao limite,
ignorando quem quer que nos estivesse a ver.
Engoli um risinho nervoso. Essa entrada causaria, sem dúvida, uma grande
impressão que a Casa Ira nunca esqueceria. Afastei esses pensamentos
escandalosos.
— Não foi isso que quis dizer, e tu sabes.
Embora me perguntasse o porquê de ele ter decidido beijar-me agora.
Os seus dentes brilharam numa espécie de sorriso, enquanto um brilho de
reconhecimento lhe surgia nos olhos. Evasão aceite. Era um progresso, por mais
pequeno que fosse. Ou talvez eu estivesse por fim a aprender a lê-lo melhor.
Embora suspeitasse que — naquele momento em particular — ele também não
estivesse a tentar esconder-se tanto de mim. Procurei não deixar que a cautela
arruinasse o momento.
— Estou a falar de quando me Marcaste. Não sobre o que quer que —
gesticulei entre nós — isto seja.
Ele analisou-me o rosto por um minuto cheio de tensão, e os últimos
vestígios de calor abandonaram-lhe a expressão. Agora, os seus olhos pareciam
quase pretos e sólidos. Desta vez não houve engano no estrondo que sacudiu o
castelo. Ele moveu os seus ombros, como que para libertar a tensão neles e entre
nós.
O Ira estendeu o braço na minha direção, todos os vestígios de paixão
apagados do seu rosto.
Cá estava o frio e insensível príncipe do Inferno.
— Não podemos demorar-nos mais. Chegou a hora de conheceres a minha
corte.
A nossa chegada ao exterior das enormes portas esculpidas em ossos do
salão real foi um borrão na minha mente. Não me conseguia lembrar se o Ira
falara comigo na nossa aparentemente interminável caminhada até lá ou se me
havia escoltado num completo e estoico silêncio. Esta última opção era a mais
provável; não conseguia imaginá-lo a participar em algo tão prosaico como uma
conversa sobre o meu dia ou sobre o tempo.
Não que eu tivesse reparado, de qualquer forma.
Senti uma sensação estranha no peito; um ligeiro puxão ou uma pontada,
ou uma combinação peculiar de ambos. De início pensei que fosse o meu
pânico a agitar-se contra as minhas costelas, medo pelo que acabara de
acontecer entre nós, mas não era bem isso. Era uma sensação que se acumulava
lentamente dentro de mim, viajando a partir do meu coração e serpenteando
como um riacho ao longo da parte inferior do meu braço.
O Ira virou a cabeça na minha direção, um sulco profundo a formar-se-lhe
na testa.
Olhei para baixo, para onde ele olhara. O meu cornicello brilhava com
aquele luccicare pálido, sobrenatural e púrpura que se adaptava aos humanos. Já
acontecera duas vezes no passado. A primeira quando encontrara o Ira ao lado
do cadáver da minha irmã gémea. E a segunda quando encontrara o meu
amuleto meio enterrado num túnel após ter sido roubado. Mesmo antes de os
demónios Umbra quase incorpóreos atacarem e o Inveja ter mergulhado o
punhal da sua Casa no estômago do Ira.
Apertei as mãos em punhos ao lembrar-me da forma como o sangue do Ira
havia secado nas minhas mãos, sob as minhas unhas. A sensação absoluta de...
— Respira. — A sua voz era profunda e reconfortante. — Vamos fazer as
apresentações e depois vamos embora se não quiseres ficar para jantar com eles.
— Não estou nervosa.
E eu fiquei surpreendida ao descobrir que era verdade. Larguei o braço do
Ira e encostei os dedos ao metal frio do amuleto em busca de conforto, um
velho hábito do qual dificilmente abdicaria. Os chifres do diabo, lembrei a mim
mesma com um pequeno arrepio. Não era um amuleto para afastar o mal.
Aquele fio já não segurava o amuleto inocente em que eu acreditara a vida toda.
Ao tocar-lhe, uma pequena corrente disparou pela minha pele, alarmando-
me o suficiente para afastar a mão. Aquilo era novidade. Olhei para o Ira.
— Viste aquilo?
Ele assentiu, sem desviar o olhar do chifre encolhido do diabo. A
preocupação ainda lhe marcava as feições.
— Consegues usá-lo no jantar?
— Claro — respondi. — Tenho-o usado há quase duas décadas.
— Se sentires qualquer tipo de desconforto, diz-me de imediato. O Ira
parecia estar prestes a dizer mais qualquer coisa, mas mudou de ideias no
último instante. O meu coração saltou um batimento.
— Desconfortável em que sentido?
— Qualquer coisa incomum. Não importa quão insignificante ou inócuo
possa parecer.
Estava prestes a contar-lhe sobre a sensação de formigueiro, mas dissipou-se
antes que as palavras se pudessem formar na minha língua. Talvez fosse apenas
o nervosismo a levar a melhor sobre mim. Viajara para o submundo com um
dos Malditos, fizera um pacto de sangue com o diabo e estava a poucos
segundos de conhecer a intrigante corte demoníaca do Príncipe Ira.
Sem mencionar que acabara de ser seduzida por alguém a quem não estava
prometida e que, muito provavelmente, os meus lábios estavam inchados de
forma incriminatória. Embora os meus sentimentos pelo Ira fossem muito mais
complexos, eu não odiara o beijo. Na verdade, parecia ter revelado uma verdade
que eu não queria examinar de perto. Ele perguntara-me se eu seria capaz de
dormir com alguém que odiasse e, embora a minha mente ainda se agitasse de
raiva com a sua traição, o meu corpo respondia ao seu toque.
Não conseguia imaginar o Orgulho a aceitar a notícia do meu
envolvimento com o seu irmão; quem poderia dizer se ele tinha espiões naquela
corte, ávidos e prontos a relatar qualquer situação? Embora não me opusesse a
espalhar sementes de discórdia entre as duas asas, não queria alienar o meu
noivo e arruinar as minhas hipóteses de resolver o assassínio da Vittoria. Tinha
todo o direito de estar nervosa. Seria estranho se não estivesse.
O Ira aproximou-se e acariciou-me o pescoço com os nós dos dedos, a sua
voz tão suave como o seu toque. Qualquer que fosse a magia que alimentasse a
sua Marca, acalmou-me instantaneamente.
— Pronta?
Acenei com a cabeça. Ele estudou a minha cara e deve ter visto que eu
estava verdadeiramente pronta para a minha introdução à Casa Ira. Sem aviso
prévio, ele rodou sobre os calcanhares e deu um pontapé nas portas.
Atravessou-as enquanto embatiam contra a parede com um estrondo, os
seus passos soando como trovões no silêncio repentino. Arquejei. Aquilo não
era de todo como eu imaginara a nossa grande entrada. Dada a sua propensão
para roupa elegante e maneiras impecáveis, julgara que ele seria mais... galante
ou refinado. Devia aprender de uma vez por todas a não presumir nada sobre
ele.
Uma onda de demónios vestidos com elegância pôs-se de joelhos, cabeças
curvadas e olhos presos no chão enquanto o Ira entrava na sala. Deteve-se após
vários passos no interior do grande salão e esperou que eu chegasse até ele. Os
meus passos foram lentos e firmes, ao contrário do bater do meu coração.
Senti-me como se uma eternidade e um único segundo se tivessem passado
antes de atravessar a sala, o meu vestido sussurrando sobre a pedra, e parar
perto do Príncipe Ira.
Quando falou, na sua voz foi tecida uma ordem real.
— Ergam-se. E deem as boas-vindas a Sua Alteza, Emilia Maria di Carlo,
a vossa futura rainha.
As deusas deviam estar a olhar por mim, porque consegui engolir a minha
surpresa sem mostrar que a sentia. Voltei-me para o Ira com subtileza, uma
pergunta a bailar-me nos olhos. Não fora informada em relação à parte do «Sua
Alteza». Imaginara que fosse acontecer após a coroação, ou qualquer que fosse
o seu equivalente demoníaco. O canto da sua boca estremeceu antes de voltar a
endurecer a expressão e a dirigir-se ao mar de demónios curiosos num tom frio
e implacável.
— Recordem-se do que vos disse sobre respeito. Como noiva de um
príncipe do Inferno, o estatuto da Lady Emilia subiu. Apenas se dirigirão a ela
como «Vossa Alteza» ou «minha senhora». Se a insultarem, terão de responder
perante mim.
O Ira fixou o olhar num nobre em particular, e assumi que fosse aquele que
a Fauna me dissera que o príncipe havia ameaçado. Decerto que não quereria
estar no lado recebedor desse olhar — era frio o suficiente para causar tremor
entre os nobres circundantes. E eles não pareciam do tipo que se acobardava
com facilidade.
— Considerem este o meu último aviso.
Depois, o Ira virou-se para mim e estendeu-me o braço. Depositei a mão na
dobra do seu cotovelo e levantei o queixo. Caminhámos lado a lado para uma
grande mesa ao fundo da sala, e deixei que o meu olhar percorresse subtilmente
o salão, absorvendo os detalhes do que nos rodeava. Uma tapeçaria pendurada
na parede distante retratava um anjo guerreiro envolvido numa batalha com
demónios. Cabeças cortadas rolavam a seus pés. Cobertas de sangue e com
olhos esbranquiçados. Uma escolha interessante para um salão de jantar.
Desviei a atenção daquele raio de sol. A mesa para onde nos dirigíamos era
feita de madeira antiga, sólida e deslumbrante. Uma grinalda de folhas estendia-
se pelo centro da mesa, juntamente com um candelabro de ferro com braços
pontiagudos, mesmo por cima da folhagem. Velas em tons de creme e ouro
decoravam-na de ponta a ponta, emitindo um agradável brilho cintilante. Havia
pratos de porcelana preta em frente às cadeiras douradas. E os talheres também
eram feitos do mesmo dourado. Tudo tinha um ar de pura elegância rústica.
Masculino, mas com alguns toques inesperadamente cálidos. Perfeito para um
príncipe guerreiro. Gostei muito.
O Ira levou-me ao centro da mesa, onde se encontravam os dois maiores e
mais ornamentados lugares. Não eram bem tronos, mas estavam lá perto. Ao
contrário do que me tinha sido dito sobre as cortes reais humanas, não nos
sentávamos em lados opostos da mesa. Estávamos no centro e todos os outros
se distribuíam à nossa volta, Havia duas filas de mesas de madeira semelhantes,
mas mais pequenas, em cada lado do salão, e entre elas encontrava-se o espaço
que estávamos a percorrer.
Essas mesas não tinham assentos dourados, mas havia bancos de madeira a
condizer. As velas abundavam em todas elas; uma peça central ardente para o
círculo mais frio do Inferno.
Os criados, que permaneciam perto da parede e nos quais eu não havia
reparado, avançaram e puxaram graciosamente para trás as nossas cadeiras
enquanto circulávamos a mesa. O Ira esperou que eu me sentasse antes de fazer
o mesmo. Rapidamente, verteram um vinho escuro em taças e pousaram-nas à
nossa frente.
Bagas congeladas flutuaram na superfície, encantadoras e tentadoras. Olhei
para o príncipe e estava prestes a perguntar por que razão mais ninguém se
havia mexido para se sentar, mas fechei a boca.
A atenção do Ira já estava fixa em mim, os seus olhos quase a brilhar à luz
das velas.
Tudo se dissipou nas sombras. Era como se ele e eu fôssemos os únicos no
salão de jantar, em todo o reino, e eu não pude evitar que os meus pensamentos
regressassem àquela anterior visão escandalosa de ele a fazer amor comigo até
me fazer ver estrelas. Tal como os heróis libertinos dos meus romances
favoritos prometiam fazer com aquelas a quem confessavam o seu afeto e
luxúria.
Maldito seja este reino ridículo e as suas inclinações pecaminosas. De
todos os momentos em que a sua magia retorcida poderia entrar em ação, este
era o pior. No entanto, não fiquei completamente surpreendida. O Ira havia
referido que este reino conseguia detetar os pontos mais conflituosos de cada
pessoa e trazê-los à tona. E era claro que eu estava em conflito entre as emoções
interiores e os anseios físicos.
Até que pusesse um fim à minha guerra interna, esses impulsos iriam
provavelmente continuar a atormentar-me.
Afastei a minha atenção do Ira e mexi-me desconfortavelmente no meu
lugar, olhando para o vinho. Ou ajudaria a distrair-me, ou transformar-me-ia
numa criatura feroz que rasgaria a roupa do príncipe. Pensar na roupa dele foi
um erro terrível, pois levou-me imediatamente a pensar nele sem camisa.
Sangue e ossos, esta atração proibida estava a piorar a cada minuto.
Talvez devesse pedir licença para apanhar um pouco de ar fresco. Olhei em
volta, em busca de uma varanda ou terraço. Precisava de me refrescar de
imediato. Depois da minha apresentação real, não havia dúvida de que toda a
gente aqui sabia que eu estava noiva do seu irmão. Dificilmente seria
apropriado para mim babar-me em público por este príncipe quando estava
prestes a casar com o rei dos demónios.
O Ira inclinou-se, os seus lábios quase me roçaram a orelha, e senti-o
sorrir. Falou baixo o suficiente para que apenas eu pudesse ouvir.
— Uma palavra e fá-los-ei desaparecer.
Senti um ímpeto de tentação.
— Pareço assim tão nervosa?
— Estou bastante seguro de que o que estou a sentir não tem nada que ver
com nervosismo.
Um rubor rastejou-me pelo pescoço acima. Não fazia ideia de que ele
conseguia detetar... excitação. Valha-me a deusa. Este reino ainda ia ser a minha
ruína. Forcei-me a lembrar-me do motivo por que viajara para este mundo. Não
fora a sedução ou o desejo que me havia levado a vender a alma. Fora a
vingança. A raiva. E essas emoções eram mais poderosas do que qualquer
magia pecaminosa.
Ou qualquer príncipe pecaminoso e sedutor. Levei os lábios ao seu ouvido.
— Sentis a faca com que estou a considerar esfaquear-vos neste momento,
Vossa Alteza?
— Se isso é uma tentativa de mudar de assunto, informo-te de que foi um
fracasso desolador. — Deslizou a mão para debaixo da mesa e ela aterrou
suavemente no meu joelho. Não havia dúvida de que isto era um
reconhecimento implícito da minha mais recente mentira. — Estou ainda mais
interessado em saber onde isto nos pode Levar, minha senhora. Parece
esquecer-se do pecado sobre o qual domino. Tenho uma certa predileção por
brincadeiras com facas.
— Os teus súbditos estão a observar-nos.
Com a sua mão livre, levantou a taça de vinho e tomou um longo e
cuidadoso gole. Agiu como se estivéssemos a tomar uma bebida sozinhos em
vez de estarmos a ser observados pela nobreza do Inferno.
Pousou a taça sobre a mesa e fitou a multidão silenciosa e atenta.
— Podem sentar-se.
Odiei admiti-lo, ainda que em silêncio, mas o seu toque manteve os meus
nervos à distância enquanto toda a corte real tomava os seus lugares. Era difícil
concentrar-me no medo enquanto os seus longos dedos acariciavam o tecido
fino do meu vestido, chamando toda a minha atenção para aquele ponto de
contacto. Imaginei que estivesse a tentar acalmar-me, mas o seu toque produzia
o efeito oposto. O meu coração estava acelerado.
O príncipe maldito não parecia de todo afetado. O meu olhar desceu para o
seu colo.
— É um prazer conhecê-la finalmente, Lady Emilia. Parece-se com uma
deusa esta noite. Uma autêntica feiticeira digna de ser recordada.
A mão do Ira apertou a minha perna, antes de continuar a arrastar o dedo ao
longo da costura exterior do meu vestido. Desviei o olhar do príncipe.
Diretamente em frente, do outro lado da mesa, atrás do seu assento, um
demónio loiro sorriu para mim. Era o nobre para quem o Ira olhara de relance.
Não lhe sorri de volta.
— Peço desculpa, creio que ainda não fomos apresentados. Quem é o
senhor?
— Lord Baylor Makaden, minha senhora.
De facto, era o demónio que fizera aqueles comentários grosseiros. Ele
sentou-se e começou a falar com os nobres que o ladeavam. Juntaram-se-nos
mais membros agradáveis da nobreza e os criados apressaram-se a avançar com
bandejas repletas de comida.
Massa folhada cozida no forno. Tubérculos assados guarnecidos com ervas
aromáticas. Pães estaladiços que cheiravam a especiarias misteriosas. Tigelas
cheias de molho escuro. Não havia nada na refeição que me parecesse familiar
ou me fizesse lembrar a minha casa, mas não era tão diferente como eu temera.
Secretamente, receara que me servissem animais estranhos, com vários olhos e
miudezas cruas e fumegantes. Aquilo era um verdadeiro deleite.
O Ira tirou a mão do meu joelho apenas para me surpreender, trinchando-me
a carne e enchendo o meu prato com um pouco de tudo o que estava em cima da
mesa. Outros comensais espreitaram-nos sob as suas pestanas, alguns ousados o
suficiente para sussurrarem. Tive a sensação de que este não era o
comportamento típico para um príncipe. Ele ignorou-os, embora, sem dúvida,
tivesse sentido a sua atenção e silenciosa especulação.
— Deseja mais molho, minha senhora? — perguntou.
Concentrei-me nele, o coração acelerado. Estava claramente a dar
espetáculo, mas não fazia ideia de quem iria beneficiar com isso. Decidi alinhar
e abanei a cabeça.
— Não, obrigada, Vossa Alteza.
Usar o seu título pareceu agradar-lhe, embora tivesse as minhas dúvidas de
que a curva quase impercetível dos seus lábios tivesse sido evidente para mais
alguém. Depois de tratar do meu prato, o Ira encheu o seu com porções
generosas e iniciou uma conversa com o nobre à sua esquerda.
Esta era a versão que eu esperara há pouco; o príncipe com maneiras
exemplares. Não o bárbaro que abrira a porta ao pontapé. Ainda que ambos os
aspetos dele fossem intrigantes. Que a deusa me ajude. Não tinha nada que o
achar intrigante ou atraente de todo.
Ouvi com educação a mulher nobre sentada ao meu lado enquanto ela se
queixava da sua empregada, depois do seu estômago e do tapete comido por
insetos da sua sala.
Deixei-a falar livremente enquanto comia. O seu olhar deslizou sobre a
minha tatuagem, amuleto e repousou sobre o anel no meu dedo, mas não
perguntou por eles. Até agora, ninguém tocara em nada importante e duvidei
que fosse aprender algo além de mexericos. Esta noite, a corte apresentaria o
seu melhor comportamento.
Não sabia se estava satisfeita, mas pelo menos a comida valia a pena. Cortei
a carne como se fosse manteiga e o sabor era igualmente bom. Esforcei-me ao
máximo para me concentrar nas conversas e não me perder nos sabores. Quem
quer que tivesse cozinhado aquela refeição era imensamente talentoso. Adoraria
ver esse alguém na cozinha e tomar notas. Talvez pudesse brincar com o molho
e criar as minhas próprias variações. Juntar um pouco de sal marinho e ervas à
massa folhada para finalizar os sabores nos quais a carne estivera a marinar.
Por várias vezes senti um olhar indiscreto e olhei para cima para encontrar
os olhos do Lord Makaden fixos no meu peito. A sua expressão esfomeada
indicava que não estava a olhar para o amuleto. Ignorei-o, tal como o Ira fizera.
Vermes como ele deviam permanecer escondidos. Embora a comparação fosse
injusta para com os pobres vermes.
A mulher ao meu lado, a Lady Arcaline, parou de me regalar com as suas
queixas tempo suficiente para me perguntar:
— Conheceu algum outro membro da corte além dos presentes no jantar
desta noite?
— Sim, conheci a Lady Fauna na biblioteca.
A Lady Arcaline fez um pequeno ruído de desdém e virou-se para o
demónio do lado oposto.
Com tudo o que acontecera, acabara por me esquecer da Fauna. Tomei um
gole de vinho, lancei um olhar ao salão e fiquei surpreendida ao vê-la a
conversar alegremente com o Anir e com um outro jovem demónio no fim da
nossa mesa. Era uma pena que não estivéssemos mais próximos; teria sido
muito mais agradável.
Antes que pudesse refletir sobre o facto de ter sentido uma certa
camaradagem com alguém da corte do Ira, o Lord Makaden inclinou-se sobre a
mesa, fitando-me os lábios de forma ousada. Era uma melhoria em relação à sua
não tão subtil análise do meu decote. Felizmente para ele, o Ira ainda estava
ocupado num debate com o lorde à sua esquerda e não havia reparado nos seus
olhares vulgares. Estava disposta a ignorar a sua idiotice a favor de manter a paz
naquela noite. O dia seguinte seria uma história diferente.
Provei outro bocado de carne e alguns vegetais.
Sabiam a glória.
— Esclareça-me, Lady Emilia. — A voz irritante do Makaden distraiu-me
da comida. — Alguma vez experimentou algo tão prazeroso como a comida
demoníaca? Em cada dentada, parece que está em êxtase. Devo admitir que é
cativante. Tenho inveja do seu garfo.
Os nobres mais próximos de mim continuaram a sua conversa de
circunstância, mas senti que me estavam a prestar atenção. Fora uma pergunta
frontal, quase a beirar os limites do decoro. Uma das coisas em que reparara ao
jantar era que certos temas eram tão escandalosos aqui como no mundo mortal.
Só o escândalo parecia implicar uma referência explícita a outros pecados.
Não fugi à pergunta.
— Diga-me, Lord Makaden, está sempre assim tão preocupado com a boca
dos outros? Talvez devesse reconsiderar a Casa do Pecado com que melhor se
alinha.
Ele tomou um gole do seu vinho e passou um dedo ao longo da borda do
copo, nunca desviando a sua atenção dos meus lábios. A raiva que havia tentado
conter fervia quanto mais ele olhava para mim.
Perguntei-me que tipo de impressão causaria na Casa Ira se o mutilasse
antes do próximo prato. Uma vez que o Ira havia banido a extirpação, imaginei
que, em tempos passados, teria sido uma prática bastante comum. Como futura
rainha, poderia ser poupada a qualquer castigo.
Enfrentar a fúria do Ira poderia valer a pena apenas para limpar aquele
olhar repulsivo do rosto do Makaden.
— Fui advertido a não falar da sua língua, minha senhora, por isso não irei
comentar quão afiada é. No entanto, já que menciona a boca, há uma pergunta
que não posso deixar de lhe fazer. Parece estar a gostar da carne, mas será que
essa sua boquinha perfeita já provou salsicha?
Apertei o maxilar com tanta força que fiquei surpreendida por o Ira não me
ter ouvido ranger os dentes. O Lord Makaden não se referia a um prato de
salsichas, embora tivesse dito as suas palavras de forma engenhosa o suficiente
para poder fingir o contrário. Expirei lentamente. Ele estava a tentar enervar-
me.
Recusei-me a deixá-lo ter sucesso.
— Se a resposta for não, teremos de remediar isso em breve. Esta noite,
talvez? — Mergulhou o dedo no vinho e sugou o líquido lentamente. O sorriso
amplo que me ofereceu não lhe chegou aos olhos repletos de ódio. Por um
instante, imaginei que lhos arrancava. — Até me ofereço para a preparar para si.
Já me disseram, em mais que uma ocasião, o quanto sou bom a fazê-lo.
Agarrei na minha faca com mais força. Não queria mais nada do que cravá-
la no seu coração. Sem pensar muito nas consequências, ergui a lâmina e
levantei-me, fazendo com que a minha cadeira se arrastasse contra a pedra
numa advertência estridente.
Toda na sala se sobressaltou. Foi o último barulho antes dos gritos
incoerentes do Lord Makaden. Um líquido quente pulverizou-me o peito e o
rosto. Fiquei tão assustada que deixei cair a faca e limpei as bochechas. Um
líquido vermelho cobria-me os dedos.
Um segundo depois, um cheiro metálico inundou-me a garganta. Sangue. A
grinalda de vegetais na mesa estava coberta de sangue, mesmo à minha frente.
Concentrei-me na sua fonte.
No prato à frente do lorde canalha, estava uma língua cortada e empalada.
Olhei sem pestanejar para a minha faca, sem saber se o atacara ou não. Foi
então que reparei na adaga da Casa Ira. Ainda vibrava com a força com que ele
a usara para a cravar no prato e depois na mesa. Deixei sair um suspiro
silencioso, incapaz de desviar o olhar. As pedras preciosas de lavanda dos olhos
da serpente brilhavam de fúria. Ou talvez fosse a sede de sangue.
Esquecera-me de como a adaga rejubilava com as suas oferendas.
— Acabou-se o jantar — declarou o príncipe-demónio, numa voz
perigosamente baixa. Arrancou a lâmina ensanguentada. — Saiam.
Capítulo 10

Ouvi cadeiras e bancos a serem arrastados pelo chão de pedra ao mesmo


tempo. O Anir estava ao meu lado um instante depois; o seu aperto era firme e
gentil enquanto me escoltava para fora do salão de jantar e subia um lanço de
escadas escondido atrás da tapeçaria de um jardim colorido em que não reparara
anteriormente.
Estava tão surpreendida que não protestei. Nem olhei para trás para ver se
o Ira nos seguia. Talvez estivesse a dilacerar os órgãos do Makaden para os
dispor em lanças do lado de fora do castelo, uma oferta generosa aos pássaros
que voavam em círculos por estes céus amaldiçoados. Valha-me a deusa. Ainda
conseguia ouvir o fraco eco dos uivos do lorde desgraçado. Arrepiaram-me até à
medula.
— Como? — Mal conseguia compreender os últimos sessenta segundos. O
Ira movera-se tão depressa que eu não tinha registado o seu ataque até ter
terminado. E depois limitara-se a ficar ali parado, ordenando calmamente a
todos que saíssem, como se não tivesse acabado de tirar brutalmente a alguém
uma parte do seu corpo...
Esfreguei os braços; de repente, a escadaria pareceu-me insuportavelmente
fria.
— Atenção onde pisas, as pedras não estão niveladas neste corredor.
Levantei um pouco as saias e concentrei-me em subir as escadas tão
depressa quanto os meus sapatos e o meu vestido me permitiam. Aos poucos, o
meu choque foi dando lugar a uma emoção completamente diferente. Uma que
me surpreendeu quase tanto como a violência. Apertei o vestido com tanta força
que quase me magoei, como se estivesse a estrangular o tecido.
O Anir conduziu-me escadaria após escadaria, lançando um olhar ocasional
sobre o ombro, a mão livre a descansar no punho da sua espada. Não pensei que
houvesse alguém corajoso ou estúpido o suficiente para nos seguir, sobretudo
após a cena de sangue a que escapávamos, O Ira explodira por uma insinuação.
Se alguém tentasse magoar-me ou agredir-me fisicamente, uma morte rápida
seria um gesto de bondade. E não havia qualquer sinal de bondade no rosto do
príncipe-demónio.
Apenas fúria glacial.
O que era muito pior. Um súbito mau feitio acabaria por desaparecer, mas a
frieza que cobrira as feições do príncipe era gélida. Passar-se-iam séculos e a
sua raiva permaneceria tão fresca como no início.
Surgimos através de um painel escondido no topo das escadas, e senti um
ligeiro formigueiro. O Anir não voltou a falar até pararmos do lado de fora da
porta do meu quarto.
Mesmo ali, o seu olhar aguçado percorreu o corredor vazio como se
esperasse que os problemas se materializassem do nada. Eu não partilhava a sua
preocupação. Os meus aposentos privados estavam perto do fim daquela ala e
havia apenas mais um par de portas ali. Mesmo que o Makaden tivesse aliados,
demónios furiosos tornados selvagens pelo pecado da Casa escolhida, o Ira iria
eliminá-los sem pensar duas vezes.
Se a minha raiva era um afrodisíaco para ele, a raiva da sua corte iria muito
provavelmente alimentar o seu próprio poder como um banquete. O Ira
prosperava na raiva, em todos os sentidos.
Olhei para o fim do corredor; um portão de ferro ornamentado caiu do teto,
impedindo qualquer pessoa de entrar naquela área. Doía-me o maxilar devido à
força com que o estava a apertar. Ficar enjaulada não me entusiasmou, mas pelo
menos o painel secreto poderia ser uma alternativa se eu quisesse sair. Uma que
estava protegida por magia, se aquele formigueiro fosse alguma indicação. O Ira
usara essa mesma magia no meu reino para me proteger dos seus irmãos.
O facto de ter tomado precauções na sua própria Casa real não era
reconfortante, mas confiei que ninguém violaria as suas proteções.
— O Makaden andava a pedi-las há séculos.
Voltei a minha atenção para o Anir.
— Imagino que sim.
— Então porque... — A sua voz perdeu-se quando olhou para mim a sério.
— Estás chateada.
Errado. Estava furiosa. Até me surpreendeu não ter vapor a sair-me dos
ouvidos. Se não pudesse lidar sozinha com criaturas tão repugnantes como o
Lord Makaden, nunca ganharia o respeito da corte.
O Ira devia dar graças por não ser ele a estar na minha presença naquele
momento. Levar-lhe-ia a sua preciosa adaga até à sua garganta, rasgaria a minha
roupa e banhar-me-ia no seu sangue quente enquanto o degolava.
O prazer inesperado que senti ao pensar em algo tão sombrio e perverso
trouxe-me de volta à razão. Embora as chamas da minha fúria se tivessem
atenuado, as brasas da minha raiva permaneceram intactas. Não estava tão
horrorizada como devia pela minha sede de sangue quase literal.
O Anir ofereceu-me um sorriso torto. Deve ter lido a promessa de morte no
meu olhar e considerado divertida. Teve a sensatez de não se rir.
— Os aposentos privados de Sua Alteza ficam no fim deste corredor. Dá-lhe
dez minutos, tenho a certeza de que ele já cá estará nessa altura.
Estava demasiado zangada para demonstrar qualquer vestígio de surpresa.
Claro que o Ira me alojara perto dele. Estava de olho na noiva do irmão. Sempre
um soldado obediente. Exceto quando ele me beijara antes do jantar. Duvidava
de que isso figurasse nas suas ordens. Embora, conhecendo-o, talvez tivesse
sido outra forma retorcida de me manter ocupada para eu não causar problemas.
Girei sobre os calcanhares e fechei a porta da minha suíte atrás de mim.

Passei o tempo a limpar o sangue e os vestígios do Makaden do corpo.


Sentei-me no tocador da casa de banho e mergulhei uma toalha de linho no
lavatório de vidro, tingindo a água de uma espécie de cor-de-rosa. Limpei a
humidade restante enquanto olhava para a mulher silenciosa no espelho. Não
encontrei vestígios da rapariga que era antes do assassínio da minha irmã.
Aquela Emilia havia morrido no quarto com a minha irmã gémea, o seu
coração também lhe fora arrancado e não me pareceu que ela o fosse recuperar
tão cedo. Por muito que tentasse, por mais que ludibriasse os outros e
negociasse com a minha alma, nada traria a minha irmã de volta. Ainda que o
meu plano para destruir aqueles que haviam magoado a Vittoria fosse um
sucesso, não conseguia conceber voltar a ser feliz com aquela simples e
tranquila vida. Uma em que me contentasse apenas com os meus livros e
receitas.
Esta nova realidade parecia-me estranha, mas adequada. Era uma vida na
qual eu não hesitava perante a violência, apenas me enfurecia quando o castigo
era infligido por outras mãos que não as minhas. Pensei na morte, naqueles que
perdêramos, e em como a sua perda nos privara de algo vital.
Uma lágrima escorreu-me pela face ao pôr de lado a toalha manchada de
sangue.
— Basta — disse em voz baixa, contundente para mim mesma enquanto me
levantava, pousava as mãos sobre o toucador e me inclinava para a frente para
olhar fixamente para o meu reflexo. — Basta.
Não havia mais lugar para tristeza ou dor no meu mundo. No meu coração.
Foquei-me intensamente naquela raiva, naquela faísca no meu âmago,
próxima da fonte da minha magia. Era como se houvesse um poço de lava a
borbulhar dentro de mim, pronto a rebentar. Nunca sentira o meu poder tão
forte, e apercebi-me de que não seria preciso muito para o utilizar. Tudo o que
tinha de fazer era estender a mão e agarrá-lo.
Concentrei-me na minha magia, imaginando-me a puxá-la da sua fonte e a
transformá-la num punhado de chamas. Em vez de lutar contra mim própria e
forçá-la a sair, libertei-me. Dos meus pensamentos, dos meus medos. Das
minhas preocupações.
Libertei-me de tudo exceto da minha própria raiva, à qual me agarrei como
se fosse a coisa mais essencial e vital do meu universo. Porque era a coisa mais
vital neste círculo do Inferno. Se a raiva do Príncipe Ira era um glaciar, a minha
era um inferno abrasador. E tão cedo não se iria extinguir.
Inspirei e expirei, imaginando-me a respirar nova vida para o fogo. Se
conseguisse dominar a minha raiva, concentrar-me nela sem sentir qualquer
emoção, poderia arder tão brilhantemente e por tanto tempo que poderia até
derreter o gelo impenetrável do Ira.
Estendi a palma da mão e sussurrei:
— Fiat lux.
Que haja luz.
Seria blasfémia para alguns mortais. Mas não para uma bruxa cuja residência
atual era o submundo e que estava noiva do diabo. Uma pequena esfera de
chamas de um tom rosa-dourado pairou sobre a minha palma. Crepitava como
fogo verdadeiro, mas não me queimava. Esperei que a dor começasse, que a
minha carne borbulhasse. Ou que a minha pele queimasse. Que o anel do Ira
derretesse no meu dedo.
O fogo limitou-se a arder com mais intensidade, pulsando suavemente,
como se me saudasse.
Observei, entorpecida, como se transformara numa flor em chamas.
Durante uma fração de segundo, considerei atirá-la contra a parede e ver o meu
quarto — e todo o seu mobiliário elegante — incinerar-se. Pequenos botões
ardentes a ganhar vida e a florescer num jardim de cinzas e chamas.
Fechei os dedos em torno da flor flamejante, muito lentamente,
extinguindo-a como devia ter extinguido a luz nos olhos do Makaden.
Continuava demasiado zangada para me regozijar com o que acabara de fazer.
Com a magia que não sabia que podia invocar. Mais tarde haveria tempo para
celebrar.
Neste momento tinha outras coisas para fazer. Como confrontar o mestre
demoníaco daquela Casa.
Essa mesma fúria pôs-me os pés em movimento exatos dez minutos depois
de o Anir ter partido. Transportou-me para fora do meu quarto, pelo corredor e
facilitou-me a entrada nos aposentos privados do Ira como se fossem os meus.
A porta bateu contra a parede, fazendo com que as velas cintilassem
incrivelmente na lareira. O Ira não se assustou nem se afligiu. Tinha as costas
viradas para mim enquanto se despia. Como se soubesse que eu iria ter com ele,
furiosa em vez de assustada.
Cruzei os braços.
— Então?
O príncipe-demónio ignorou-me deliberadamente. Encolheu os ombros,
tirou a camisa e atirou-a para cima de uma poltrona. As suas calças estavam
descidas até às ancas, e, com o fogo a arder-me no coração, tinha uma excelente
visão dos traços de tinta que se curvavam sobre cada músculo finamente
esculpido das suas costas.
Sem falar ou olhar para mim, ele embrenhou-se nos seus aposentos. Segui
atrás dele, demasiado irritada para reparar em qualquer detalhe da divisão, além
da acentuada cor merlot das paredes e do preto dos móveis e tecidos. Era escuro
e sensual. Como outras partes do castelo onde o príncipe passava a maior parte
do seu tempo.
— Olha para mim. — A minha voz era baixa, suave. Parecia uma carícia,
apesar de ter sido intencional. Pretendia desviar a atenção do tom férreo da
ordem.
O Ira virou-se com uma lentidão deliberada. Havia algo de sedutor no seu
movimento: poderoso e forte, mas fluido de todas as maneiras necessárias para
a batalha. Mesmo o mais pequeno detalhe de como ele se movia indicava que
era um predador. Mas eu não tinha medo. Nem mesmo depois do seu espetáculo
de violência. O Ira nunca me iria magoar. E estava quase certa de que isso
pouco tinha que ver com o seu dever.
Olhando para ele naquele momento, com a promessa de castigo eterno e sem
uma réstia de arrependimento nos seus olhos, compreendi o que ele fizera e por
que o fizera, ainda que ele não o tivesse compreendido.
Ele estava diante de uma grande cama cujos lençóis sedosos pareciam a
superfície imóvel de um lago atrás dele. Um cobertor de pelo cor de ébano
cobria o fundo. Pensei em despir-me e atirar-me para cima dele, causando outra
ondulação na perfeição lisa do seu mundo. Por uma fração de segundo, quase
imaginei que já o fizera antes. Apaguei aquele pensamento antes que pudesse
cair nas mãos de qualquer magia pecaminosa.
A expressão do Ira tornou-se ilegível.
— É tarde. Devias ir.
— Temos de falar sobre o que acabou de acontecer.
— Pronunciei uma ordem. O Makaden ignorou-a. Duas vezes. Deixei claras
as consequências.
Semicerrei os olhos; a sua resposta fora demasiado rígida e parecia
ensaiada. Aproximei-me dele.
— É só isso? Atacaste-o por causa da ordem que deste?
— Ele escolheu insinuar que devias provar a pila dele. Perante a minha
corte. — Os seus ombros tremeram devido ao esforço que estava a fazer para
controlar a respiração, para se manter calmo. Não se devia ter dado ao trabalho.
Não havia maneira de acalmar a tempestade que lhe rugia no olhar. — Se
tivesse deixado passar a sua desobediência, teria parecido fraco.
— Aquela luta era minha. Se interferires sempre que alguém me diz algo
menos lisonjeiro, nunca irei inspirar medo ou respeito. Recuso-me a passar por
fraca apenas para tu manteres o teu poder. — Avancei até parar mesmo à sua
frente, o calor da nossa raiva combinada a formigar-me na pele. Perguntei-me se
ele também o sentia. E se isso o acalmava. — Foi um problema de orgulho
masculino? Duvido muito que o teu controlo sobre a tua corte seja tão ténue que
um nobre desprezível possa enfraquecer o teu domínio.
— Tu sabes que o orgulho não é o meu pecado.
Não era a primeira vez que me perguntava se essa seria toda a verdade, mas
deixei passar.
— Quero a minha própria arma. Talvez se estiver armada, e conseguir
estripar alguém por mim mesma, não voltes a agir de forma tão controladora
diante dos teus súbditos. Porque, se o fizeres — permiti que o meu tom
transmitisse a doçura apropriada, o que o fez semicerrar os olhos desconfiado
—, da próxima vez espetar-te-ei a ti com a faca do jantar. Considera isto uma
promessa da tua futura rainha.
O Ira cruzou os braços e susteve-me o olhar. Nos seus olhos tremeluzia uma
emoção que não consegui identificar; sem dúvida que calculava as cem razões
pelas quais dar-me uma arma era uma má ideia. Sobretudo após a minha última
declaração. Esperei para ouvir o argumento que ele parecia ansioso por
apresentar.
— Tratarei que tenhas a tua própria arma. E lições.
— Não preciso...
— É essa a minha oferta. De nada servirá dar-te uma arma apenas para te
magoares durante uma luta por não saberes como lidar bem com ela.
Combinado?
— Um único pedido razoável... e concordas comigo? Assim tão simples?
— Parece que sim.
Olhei para ele.
— Já tinhas considerado dar-me uma arma.
— Sou o general de guerra, é claro que já o tinha considerado. Vamos
discutir as opções de treino pela manhã. Se vais ter lições físicas, vamos
acrescentar algumas sobre como bloquear a influência mágica. Aceitas os
termos do nosso acordo?
— Sim.
— Ótimo. Regressa aos teus aposentos. Estou cansado.
Deixei passar a sua atitude lamentável sem comentários. Ele ainda estava
tenso, a sua própria raiva não estava bem contida. Pensei em deixá-lo sozinho
com a sua própria companhia infame, mas, em vez disso, ofereci-lhe um meio-
sorriso de troça.
— Posso imaginar. Mutilar alguém deve ser deveras extenuante. Ele quase
me sorriu de volta, mas nunca lhe chegou aos lábios.
— Boa noite, Emilia.
— Boa noite, meu ciumento e poderoso assassino de línguas.
— Dizes coisas horríveis.
Mas o brilho intrigante no seu olhar indicava que não se importava. Muito
pelo contrário. Esperei que ele se virasse e se fosse embora, mas ele parecia ter
raízes. A indecisão estava-lhe rabiscada nas feições.
Um pouco demasiado tarde, apercebi-me de que também não havia saído do
quarto.
Fiquei parada quando ele inclinou o meu rosto para cima e os seus dedos
longos depositaram uma leve carícia no lado de fora do meu pescoço. Devia
estar a pensar na adaga que ele acabara de empunhar, no sangue que lhe tinha
manchado as mãos momentos atras. Na sua crueldade. Aquelas mãos eram
capazes de arrancar uma língua sem grande esforço, mas também eram capazes
de ternura. Proteção.
E, sem dúvida, prazer.
Humedeci os lábios, recordando o nosso último beijo.
— Limito-me a dizer a verdade.
O Ira olhou-me nos olhos antes de desviar o olhar com um esforço óbvio.
Não negou que estava com ciúmes. Nem pareceu surpreendido com a emoção.
Perguntei-me se já a teria identificado e não soube bem o que fazer com esse
conhecimento. Não que houvesse muito a fazer, ainda que um de nós pensasse
no assunto. Eu estava prometida ao irmão dele. E o seu dever para com essa
missão viria sempre em primeiro lugar. O que acontecera entre nós não voltaria
a acontecer.
Ele afastou a mão e a minha pele perdeu instantaneamente o calor à
medida que a minha mente se ia desconcertando, confusa, sob o peso do meu
conflito sentimental.
— Certificar-me-ei de que tens a tua arma e a tua primeira lição pela
manhã. Boa noite.
Desta vez não houve hesitação da sua parte. Desapareceu por detrás de
uma porta coberta de painéis transparentes e, sentindo-me dispensada, virei-me,
por fim, e saí por onde entrara. Parei mesmo no meio da antecâmara, os meus
pés recusando-se a levar-me para fora da divisão. Eu sabia que devia sair;
conseguira o que tinha vindo buscar, mas algo me reteve.
Entrei no quarto, aproximei-me daqueles painéis ondulantes e espreitei por
eles.
O Ira escapara para uma varanda. Estava de costas para mim, a olhar para
as colinas e para as montanhas cobertas de neve à distância, com uma garrafa de
vinho ao lado, sobre o parapeito. A temperatura nunca pareceu afetá-lo. Decerto
não o impediu de dormir ao relento durante a tempestade. Talvez essa fosse
outra vantagem da imortalidade.
Ou talvez eu me tivesse enganado, talvez ele nem sempre fosse pura fúria
gelada. Talvez também albergasse fogo dentro de si. E a sua capacidade de
resistir ao frio era apenas o calor da sua ira constante, ardendo, aquecendo-o
mais do que os elementos gelados poderiam combater.
Voltei a atenção para a sua bebida. A geada escorria pelo lado de fora da
taça, criando pequenas teias de aranha de gelo. O líquido no interior da garrafa
era diferente de tudo o que eu alguma vez vira em casa; semelhante a merlot ou
a chianti, mas não de um profundo vermelho. Era um roxo tão escuro que quase
parecia preto, mas essa não era a parte mais invulgar ou bonita. Havia umas
partículas prateadas a flutuar como bolhas reluzentes por toda a sua superfície.
O Ira encheu a taça e abanou-a, criando um frenesim de cintilações prateadas.
Parecia que criara a sua própria galáxia cintilante. Pousou a taça no
parapeito ao seu lado e inclinou a cabeça.
— Se vais continuar a espreitar do meu quarto, mais vale beberes um pouco
disto. Vai ajudar-te a dormir.
Pensei em voltar para o meu quarto, mas a curiosidade levou-me a melhor.
Saí para a varanda e examinei a taça sem lhe tocar.
— Não me vai fazer saltar por cima do parapeito e mergulhar na neve, pois
não?
Em vez de responder, o Ira pegou na taça e tomou um longo gole. Depois
devolveu-ma e susteve o meu olhar. A rebeldia nos seus olhos escuros era
evidente.
Por breves instantes fantasiei em empurrá-lo por cima do parapeito para o
banco de neve lá em baixo, mas imaginei que ele me arrastaria consigo e algo
na imagem dos nossos corpos a caírem juntos acelerou-me o coração. Não
porque eu tivesse medo da queda ou de me magoar. Sabia que o Ira agiria de
forma a ser o único a bater no chão. O que me fazia disparar a pulsação era
pensar sobre o que iria aterrar.
Decidi bebericar o que pareciam ser estrelas líquidas. Era... delicioso.
— E então? — indagou. — O que achas?
— Adoro.
— Foi o que pensei. — A sua voz tornou-se calma, contemplativa. Como se
não o quisesse dizer em voz alta ou admiti-lo. Se ao menos eu possuísse uma
pequena fração da sua capacidade de sentir as emoções. Tinha curiosidade em
saber o que ele sentia, o porquê da sua resignação.
Tomei outro pequeno gole e concentrei-me nos sabores. Picante, como
gengibre fresco. Uma pitada de citrinos, algo semelhante a lima. E havia uma
riqueza profunda que fazia com que as duas coisas combinassem na perfeição.
Não era rum, mas algo parecido. Esvaziei a minha taça e pensei em servir-me de
mais.
O Ira sorriu.
— O vinho de bagas demoníacas é uma das duas melhores ofertas neste
reino.
Ergui a garrafa e abanei-a um pouco. O líquido cintilava como poeira de
estrelas. Era uma das coisas mais magníficas que alguma vez tinha visto.
— O que faz com que pareça o céu noturno?
— As sementes das bagas demoníacas. São pequenas o suficiente para se
parecerem com bolhas. Ou estrelas.
Enchi a taça e encostei-me ao parapeito. Não estava propriamente com
calor, mas estava longe de ter frio. Talvez o vinho me estivesse a aquecer por
dentro. Dali podia ver claramente o Lago de Fogo, que separava aquele pedaço
de terra do castelo ornamentado à distância. Uma ponte ligava as duas faixas de
terra e, por baixo, as águas escuras agitavam-se como um caldeirão borbulhante.
Por um segundo, considerei contar ao Ira sobre a magia que invocara. Em
vez disso, fiz sinal com a cabeça para o castelo.
— Que Casa real é aquela?
O Ira seguiu o meu olhar.
— A do Orgulho.
Tomei outro gole da minha bebida. Senti as bagas demoníacas na língua. De
repente, abateu-se sobre nós um silêncio tal que ouvi o estalido de bolhas a
rebentar no copo.
— Já tiveste notícias dele?
— Não.
— Ele sabe que estou aqui?
— Sim.
Suspirei. Esperava sinceramente que o Orgulho se despachasse a superar o
seu pecado epónimo e enviasse o maldito convite. Queria descobrir toda a
verdade sobre o assassínio da minha irmã e voltar para a minha família antes de
ficar velha e grisalha. Ou antes de eles ficarem velhos e grisalhos. O mais
provável era que não envelhecesse muito enquanto aqui estivesse. O
pensamento furou a armadura que havia erguido em torno do meu coração, por
isso empurrei-o para longe.
Permanecemos num silêncio agradável, cada um perdido nos seus próprios
pensamentos enquanto tomávamos as nossas bebidas. O Ira moveu-se um
pouco, o seu braço quase a roçar o meu, e eu pensei em como aquilo era
confortável. Estar ali. Com ele. Com o meu inimigo. Bem, mais ou menos.
Os limites de quem éramos e o que eu sentia em relação a nós estavam a
esbater-se. Não fazia ideia se apenas porque ele me era familiar e eu estava
desesperada por me agarrar a qualquer coisa remotamente confortável enquanto
lá estivesse ou se os pecados e as ilusões estavam a fazer o seu melhor por
confundir as coisas. Antes, quando nos beijáramos, não o sentira como um
adversário.
Por muito que quisesse receber o convite do Orgulho, aprendera a gostar de
passar tempo com o Ira. Até aguardava as nossas discussões com expectativa.
Ver como as suas narinas dilatavam quando estava frustrado começava a
parecer-me estranhamente cativante. O pensamento devia ter-me perturbado,
sobretudo depois do incidente ao jantar. Mas não era o caso.
Não tinha a certeza do que isso dizia sobre mim, sobre a entidade em que
me estava a tornar, mas uma profunda sensação de desejo primordial
incendiara-se no meu âmago quando o Ira usara a adaga contra o Makaden para
me defender.
Durante algum tempo foi como se tivéssemos voltado a ser aliados. Não
achei que fosse sentir falta do nosso tempo juntos em Palermo, e não tinha a
certeza do que significava para mim sentir-me assim. Notei a atenção dele a
voltar para mim.
— Qual é a segunda? — perguntei, olhando-o nos olhos. Ele estava mais
perto do que eu esperava; por um instante, o seu olhar descaiu para a minha
boca, como se esta o intrigasse e seduzisse. O meu batimento cardíaco acelerou.
O Ira franziu o sobrolho e abanou a cabeça, lembrando-se, ao que parecia, de
que eu lhe fizera uma pergunta. O que quer que estivesse a pensar, cativara-o
por completo. — Disseste que o vinho era apenas a primeira. Qual é a segunda
melhor coisa deste reino?
— Os Baixios do Crescente — hesitou. — É uma lagoa.
Aquela estranha tensão pairava entre nós como um feitiço que se recusava a
quebrar. Levantei uma sobrancelha, os cantos dos meus lábios meio apontados
para cima.
— Deixa-me adivinhar, já que isto é o Inferno, está congelada?
— Por acaso, não. É um dos poucos lugares nos Sete Círculos em que o gelo
não toca. Situa-se sobre um campo de lava, por isso a água é mais quente do
que a água com que tomas banho, independentemente da temperatura do ar.
— Teremos de lutar com um cão com três cabeças para lá chegai?
— Não.
— Viajar até lá é como atravessar o Corredor do Pecado? — O Ira abanou a
cabeça, mas não me deu mais detalhes. Aproximei-me dele, semicerrando os
olhos. Ele estava a ser mais reservado do que o habitual. O que sem dúvida
significava que estava a esconder alguma coisa. — Onde fica?
— Esquece o que eu disse. — Reabasteceu o seu copo e tomou um bom
gole de vinho, recusando-se a suster o meu olhar de interrogação. — Já é tarde.
— Sangue e ossos. Fica aqui, não fica? Tens estado a esconder-me uma
fonte de água quente?
— Não escondi. Há regras que devem ser seguidas antes de entrares na
água. Duvido que gostes delas. E, mesmo que gostasses, não acho que seja uma
boa ideia.
— Estou a ver. — O Ira endireitou-se perante o meu tom e olhou lentamente
na minha direção. Quando tive a sua total atenção, continuei. — Em vez de
pedires a minha opinião, decidiste por mim. Já que vou casar com o diabo, isso
faz de mim a tua futura rainha, não é? — Ele não respondeu. — Gostaria que
me levasses até lá. Agora, por favor.
— Nada fabricado pode entrar na água.
— Nada... referes-te a roupa?
— Sim. Tens de te despir completamente antes de entrares na água, minha
futura rainha. — O seu sorriso era pura maldade. — Não pensei que quisesses ir
nadar nua comigo.
— É tudo? — Tinha sérias dúvidas. Nos últimos meses, ele já me vira sem
roupa em mais do que uma ocasião. Isso não seria um impedimento. Isto tinha
mais que ver com autopreservação. A dele. — Suponho que há algo na água que
gostarias de evitar.
O seu olhar percorreu-me, lento. Era impossível discernir o que ele estava a
sentir.
— Por vezes, penetra os corações daqueles que entram. E reflete a sua
verdade.
Sustive-lhe o olhar. Talvez fosse do vinho, ou daquele mundo e da sua
propensão para o pecado, ou da centelha de triunfo no seu olhar, mas recusei-me
a ceder àquela batalha.
Lembrei-me do que o Anir me dissera sobre desafiá-lo. Se tivesse de abdicar
de uma parte da minha verdade para descobrir algo sobre ele, era um pequeno
preço a pagar.
Apontei com o queixo para a garrafa e para as taças.
— Pega nisso e vamos visitar essa lagoa mágica. Dava-me jeito um banho
quente e relaxante depois da noite de hoje.
O sorriso do Ira desapareceu.
— Tens a certeza de que é isso que queres?
— Sim.
Era uma resposta terrivelmente perigosa, e isso tornou-se claro na grande
tensão que voltou a cair entre nós, mas era a verdade. Não queria voltar para o
meu quarto sozinha nem queria separar-me já deste príncipe. Uma aventura
noturna numa lagoa quente e mágica parecia-me a distração perfeita. Queria
uma memória agradável a que me agarrar antes de ir para a cama. Não desejava
repetir o incidente da língua cortada uma e outra vez até que o sono me tomasse.
E se voltasse para o meu quarto sozinha naquele momento, era exatamente isso
que iria acontecer.
Em vez de me acompanhar até lá, o Ira pegou-me na mão e fomos
magicamente transportados. A sensação familiar de ardor foi substituída por
uma luz, um formigueiro quente na minha pele. Estava longe de ser
desagradável. Arquejei quando senti terra sólida sob os pés.
O Ira soltou-me assim que teve a certeza de que eu não ia cair.
— A magia transvenio não é tão perturbadora quando viajamos dentro deste
círculo.
Queria fazer-lhe mais perguntas sobre magia, mas descobri que todo o
pensamento lógico me abandonara enquanto contemplava a nossa nova
localização. Estávamos na margem escura e cintilante de uma lagoa com a
forma de uma enorme lua crescente, e a água era de um azul glacial e leitoso.
A névoa flutuava preguiçosamente sobre a sua superfície. Consegui desviar o
olhar do charco cintilante tempo suficiente para olhar de relance para as paredes
de obsidiana à nossa volta. Esta lagoa ficava no subsolo.
— Onde estamos, ao certo?
— Por baixo da Casa Ira. — Avançou alguns passos em direção à margem
e apontou para um arco de pedra em que eu não havia reparado. — O Lago de
Fogo alimenta-se destes baixios a partir dali.
Olhei para cima, à espera de ver mais pedra, e fiquei sem fôlego. Na
verdade, o teto era de pedra, mas alguém pintara as fases da Lua ao longo da
sua extensão, juntamente com um punhado de estrelas. De cortar a respiração
não era a descrição mais precisa. Etéreo talvez se adequasse melhor.
Ia mergulhar os dedos dos pés na água quando o príncipe-demónio me
puxou gentilmente para trás.
— Nenhum pano de qualquer tipo pode contaminar a água. Tens de tirar o
teu vestido ou levantar a saia.
— Porquê?
O Ira levantou um ombro.
— Vês isto?
Segui o seu olhar, que aterrou sobre um pedaço de madeira gigante à
deriva. Inclinei-me para um olhar mais atento e semicerrei os olhos.
— Aquilo são... ossos?
Afastei a minha atenção do que restava da infeliz criatura e concentrei-me
no príncipe que estava ao meu lado. O brilho de diversão no seu rosto era quase
tão pecaminoso como ele.
— Ainda queres dar um mergulho?
— E se levarmos o vinho e as taças?
— Eu não o faria. Vem. — Ele estendeu-me a sua mão. — Eu levo-te de
volta para o quarto. Podes ficar com o vinho. Vai relaxar-te tanto quanto a lagoa
o teria feito. Tens uma enorme banheira privada ao teu dispor. Terá de ser
suficiente.
Ou ele estava preocupado que a lagoa revelasse uma verdade que preferia
manter escondida, ou estava convencido de que eu mudaria de ideias e voltaria
para a cama. Lancei-lhe o meu próprio sorriso enquanto corria habilmente os
fechos do vestido. Ele observou-me enquanto despia o material vermelho
sedoso, e a sua garganta estremeceu um pouco quando a minha roupa interior
rendada caiu no chão logo depois.
Retirei o seu anel e pousei-o sobre uma pedra lisa e plana.
Depois endireitei-me e sustive-lhe o olhar.
Estava nua à sua frente, sentindo tudo menos timidez. Levantei uma
sobrancelha.
— Vais despir-te para podermos nadar ou tencionas ficar a noite toda a olhar
para mim?
Capítulo 11

A roupa do Ira desapareceu e ele ficou nu e orgulhoso perante mim.


Qualquer indício de presunção que eu pudesse ter sentido desapareceu ao
mesmo tempo que a sua roupa. Maldito seja o diabo, tentei não lhe alimentar o
ego ao admirá-lo abertamente, mas falhei com distinção.
Grandes artistas poderiam tentar reproduzir a sua imagem, mas não havia
dúvida de que não iriam conseguir. Havia nele um certo domínio que impedia a
sua verdadeira forma de ser reproduzida em algo tão mundano como bronze ou
esculpida em mármore.
Deslizei o olhar sobre os seus ombros largos, pelo seu peito esculpido e
depois, lentamente, fui mais abaixo; passei por cada linha do seu abdómen,
pelos seus quadris, descendo até chegar, por fim, à sua...
Voltei a minha atenção para o seu rosto. Era muito óbvio que ele se sentia
atraído por mim. Era claro que a magia pecaminosa que vibrava sob a superfície
deste mundo estava a afetá-lo mais do que eu imaginara. Embora, dados os
comentários que proferira ao jantar e a forma como o nosso beijo se tornara
esfomeado e pleno de uma necessidade primitiva, talvez não fosse assim tão
simples. Para nenhum de nós.
O meu olhar traiçoeiro voltou a cair. Tentei não olhar fixamente durante
muito tempo, mas na sua coxa esquerda estava tatuado um desenho interessante.
Apontando para baixo, uma adaga estendia-se da anca aos joelhos e a lâmina
parecia coberta de rosas, enquanto padrões geométricos cobriam o cabo. Ao
contrário das suas outras tatuagens, esta fora feita numa escala de cinzentos.
Voltei a fitar-lhe o rosto e esperei, com o coração acelerado, que ele
arrastasse os olhos sobre cada centímetro exposto da minha pele. Os meus
nervos zumbiram de antecipação: era a primeira vez que me despia à frente dele
sem que isso fosse o resultado de uma necessidade clínica de me reanimar
perante a quase-morte. O olhar do Ira permaneceu fixo no meu enquanto me
estendia a mão, a palma para cima. Algo dentro de mim esvaziou um pouco.
Ia tirar o cornicello, mas ele abanou a cabeça.
— Isso pode ficar. Juntamente com as flores e os ossos do teu cabelo.
Confusa, deixei o amuleto e entrelacei os dedos nos dele. Tecnicamente,
dado que se tratava dos chifres do diabo, assumi que não contavam como
fabricados. E os ossos e as flores também eram matéria orgânica, por isso,
esperei que o Ira estivesse certo e que ficasse tudo bem.
Caminhámos até à beira da lagoa e a água roçou-me os meus dedos dos pés,
quente e sedosa.
Ele observou-me, à espera para ver se eu queria continuar. Dei mais um
passo e regozijei-me com a sensação que a água me dava, como se houvesse um
milhão de pequenas bolhas na minha pele. Assim que chegámos a uma
profundidade suficiente, o Ira soltou-me a mão e mergulhou. Voltou à superfície
um instante depois, inclinando a cabeça para trás e salpicando-me com um
monte de gotas. O seu riso era pleno e rico e o seu sorriso um dos mais
genuínos que eu alguma vez vira. Fez o meu coração sentir-se um pouco
instável. Mergulhei também antes que ele pudesse ver a minha expressão.
Quando surgi à superfície e afastei o emaranhado de cabelo molhado da
cara, apanhei-o a olhar para mim. Ao contrário de mim, não estava a tentar
esconder o que sentia. Pensei nos Malditos, nos seus jogos pecaminosos. Nas
histórias que diziam que os seus beijos eram viciantes o suficiente para fazer um
mortal vender a sua alma para ter a oportunidade de receber outro. No alerta
para o perigo de atrair a sua atenção. Era impossível negar que eu obtivera toda
a atenção do Ira. E o único perigo que reconhecia era quão poderosa ele me
fazia sentir.
Tinha uma escolha diante de mim. O Ira, a tentação encarnada, esperou,
como se soubesse para onde os meus pensamentos se haviam desviado. Podia
jurar que havia algo no que era proibido que o tornava mais agradável de
saborear.
Ou talvez não passasse de uma mentira que contava a mim própria. Talvez
apenas gostasse do sabor dele, contra o meu melhor discernimento. Aproximei-
me lentamente e estendi a mão na sua direção. Ele arquejou enquanto eu o
virava de costas e percorria com o dedo, incerta, as palavras latinas tatuadas nos
seus ombros. Sentira curiosidade em relação a elas desde o momento em que o
invocara no interior do círculo de ossos havia tantos meses. Arrepios
percorreram-lhe a pele com cada passagem suave da ponta dos meus dedos.
— Astra inclinant, sed non obligant. — Mordi o lábio inferior, tentando
traduzir. — As estrelas...
Ele virou-se até voltarmos a ficar cara a cara, os seus olhos emitindo um
brilho suave na escuridão.
— As estrelas influenciam-nos, não nos prendem.
— É lindo.
Não me passou despercebida a importância de ter marcado permanentemente
no seu corpo que não queria nada que o prendesse. Pensei no nosso laço
matrimonial, em como lho forçara sem me aperceber. Depois, aprisionara-o no
círculo de convocação durante dias e recusara-me a libertá-lo. Não admirava
que na altura me desprezasse. E era surpreendente que não me odiasse agora.
— Desculpa. — Disse as palavras com tanta suavidade que não tive a certeza
se ele me tinha ouvido. — Por te ter aprisionado.
Ele estendeu a mão e prendeu uma madeixa de cabelo húmido atrás da minha
orelha, prolongando o toque antes de recuar.
— O destino pode estender a sua mão, tentar guiar-nos por certos caminhos
ou intervir, mas no final somos livres de escolher o nosso próprio destino.
Nunca duvides disso.
— Pensei que não tinhas livre-arbítrio.
O seu sorriso estava tingido de tristeza.
— Todos temos direito à escolha. Mas para alguns carrega um preço.
— Fizeste essa tatuagem para te lembrares da tua escolha?
— Sim. — Ele susteve-me o olhar. — Creio que John Milton, um poeta
mortal, o disse melhor. «É melhor reinar no Inferno do que servir no Paraíso.»
Já te falei do poder da escolha, do quanto me atrai. Seria capaz de coisas
terríveis, imperdoáveis, para escolher o meu destino. Por muito amaldiçoado e
terrível que possa ser. É meu. Ninguém pode compreender o fascínio disto, a
menos que se tenha verdadeiramente encontrado sem qualquer escolha.
— E quanto à serpente, é outra escolha?
— Toda a tinta no meu corpo, à exceção da nossa tatuagem, foi escolha
minha.
O meu olhar caiu nos seus lábios e demorou-se ali antes que algo um
pouco mais abaixo me chamasse a atenção. Mal se distinguia, mas havia outra
frase rabiscada a tinta prateada sob a sua clavícula esquerda. Eu nunca a tinha
visto antes. Sem pensar, passei a ponta dos dedos pelas letras. Acta, non verba.
Não tive dificuldades em compreender aquela. Ações, não palavras.
— E o desenho na tua coxa?
O Ira estacou, e só então me apercebi de que me aproximara o suficiente para
que os nossos corpos estivessem prestes a tocar-se. Esqueci-me da minha
pergunta, esqueci-me de tudo exceto do fogo no seu olhar enquanto me
devorava centímetro a centímetro, lentamente. Pensei que ele não conseguiria
ver muito porque a água chegava-me ao pescoço, mas a verdade é que não me
parecia uma verdadeira barreira.
Quando ele olhou para mim com aquela intensidade ardente... qualquer ódio
ou animosidade persistente entre nós desapareceu num irromper de chamas.
Talvez essa fosse a verdade que eu não queria que a lagoa revelasse. A magia do
mundo apoderara-se de mim, alimentando as minhas emoções até eu também
não poder continuar a negar o meu desejo crescente. A sua pele molhada e
escorregadia deslizou contra a minha enquanto eu eliminava a distância entre
nós.
Talvez fosse a beleza onírica da cena celestial pintada no teto ou o vapor
sufocante dos Baixios do Crescente. Ou talvez fosse apenas desejo carnal, mas
ansiava pela sensação das suas mãos no meu corpo. Éramos dois adultos que o
consentiam. E eu queria que ele soltasse todo o poder da sua sensualidade sobre
mim.
Pensei na minha fantasia anterior; aquela em que ele me possuía contra a
parede ou contra a mesa.
Nunca, em toda a minha vida, havia reagido a alguém de forma tão carnal.
Já gostara de algumas pessoas, sonhara com beijos e não só, mas isto não era
uma fantasia sem importância. Era desejo na sua forma mais pura.
O meu apetite cresceu e ficou fora de controlo. Queria tocar-lhe, já não me
contentava em negar as minhas paixões. Tudo o que tinha de fazer era dar esse
primeiro passo.
Pus-me em bicos de pés e penteei-lhe o cabelo húmido para trás com
carícias suaves.
Esperei para ver se ele se afastaria. Se me diria que eu era a última criatura
em todos os reinos que ele desejava. A sua expressão estava quase tão tensa
como o seu corpo. Não podia dizer se ele estava a lutar contra a atração ou a
permitir obedientemente que um inimigo o seduzisse.
Inclinei-me e pressionei os lábios contra a tinta que lhe percorria a clavícula,
dando-lhe outra oportunidade de se afastar. Em vez disso, ele plantou a mão na
minha zona lombar, impedindo-me de me mexer. Eu sabia, sem a menor dúvida,
que o poderoso guerreiro me deixaria ir se eu decidisse parar ou afastar-me dele.
A minha boca moveu-se para o seu outro ombro, beijando-o ali mesmo.
— Emilia. — Proferiu o meu nome com suavidade. Parecia-se muito com a
versão dele que eu evocara no Corredor do Pecado, só que isto não era apenas
mais uma fantasia. Este momento era real.
— Eu sei que não me vais dizer o teu nome verdadeiro. — Percorri-lhe o
peito com as mãos. O seu olhar intenso seguiu cada movimento meu. — Mas é
um pouco estranho murmurar «Ira» num momento como este.
Voltei a fitar-lhe o rosto enquanto ele fechava os olhos e descansava a testa
contra a minha. O poderoso general de guerra estava a travar uma batalha
interna. Talvez o preocupasse que este fosse outro jogo de estratégia que
perderia se começasse a jogar segundo as minhas regras.
Eu já não sabia se o seu medo era justificado ou não. Pelo menos uma vez,
estávamos em pé de igualdade.
— Por isso, talvez devêssemos parar de falar — continuei. — Pelo menos,
esta noite. — Explorei-lhe as linhas do abdómen, e ele não se afastou nem
hesitou ao meu toque. — Talvez possamos ambos escolher comunicar de forma
diferente. Sem palavras.
Pensei no nosso último beijo, em como se tornara selvagem e desenfreado.
Fora alimentado por necessidade e luxúria primordiais. Conduzi o seu rosto até
ao meu e rocei-lhe os lábios com a minha boca. Foi um sussurro suave, doce.
Continha uma pergunta, uma a que eu não tinha a certeza se ele responderia.
Desta vez, queria que as coisas fossem diferentes. Mesmo que não
estivessem destinadas a durar. Podíamos ter esta noite, este momento, e render-
nos a qualquer que fosse esta força magnética que nos unia.
Não havia passado, não havia futuro, apenas o presente.
Este encontro não tinha de significar mais do que aquilo que era. Não
precisávamos de nos apaixonar ou de esquecer os nossos planos. Esta noite,
podíamos assinar uma trégua, uma que duraria apenas até ao amanhecer. Por
uma noite, podíamos parar de fingir que não o desejávamos. Se me dispusesse a
enfrentar essa parte desconhecida de mim, talvez este reino parasse de me
atormentar com tantas ilusões sensuais.
Quebrei o nosso abraço.
— A não ser que não o queiras.
Por um segundo angustiante, ele não reagiu. Pensei que havia julgado mal o
momento. Depois, o Ira beijou-me ternamente, e não senti que ele fosse meu
inimigo. Ou que me estivesse a beijar por qualquer outra razão que não fosse o
facto de querer fazê-lo. Cá em baixo, longe dos olhares atentos da sua corte e
dos papéis que devíamos desempenhar, podíamos simplesmente ser.
Era essa a sua escolha. Assim como a minha. E a escolha era poder.
As suas mãos fortes deslizaram pelo meu flanco enquanto ele se aproximava
e puxava ainda mais os nossos corpos um contra o outra De repente, estava
rodeada por ele, pelo seu cheiro, pelo seu enorme corpo. Por toda a sua força e
atenção. Era como viver a magia, talvez até mais do que nos nossos dois
últimos encontros.
Alguma coisa ganhou vida dentro de mim.
Nessa altura, quando ele enfiou a língua na minha boca, tudo o que pude
fazer foi não desistir por puro êxtase. As minhas mãos desceram até às suas
ancas, e as suas mãos desceram lentamente às minhas, deslizando sob a água
quente e pelas minhas costas enquanto me ancorava contra si.
Arqueei-me perante a sua carícia, esquecendo qualquer noção de «ir
devagar». Precisava de prazer. E queria que ele mo desse tanto quanto eu o
queria dar de volta.
Ele sorriu contra o meu pescoço antes de depositar um beijo casto na ponta
da minha orelha. Não precisava de lhe ver o rosto para saber que a minha
resposta o estava a divertir.
— Vossa Alteza é bastante exigente.
Se estava a tentar distrair-me com aquela invocação da Marca, não iria
funcionar. De todas as vezes que ele lhe tocara, sucedera apagar qualquer
emoção que estivesse a ficar fora de controlo. Não deixaria que isso nos tirasse
o foco. A parte de mim que acabara de despertar não pretendia voltar a
adormecer.
As minhas mãos mergulharam debaixo de água e arrastei-as lentamente
pelas suas pernas acima, antes de as voltar a levar para baixo.
Ele praguejou entre gemidos e eu sorri.
— Sem falar, lembras-te?
— Continua a fazer isso e condenarei todas as divindades.
Desenhei-lhe pequenos círculos na coxa, subindo cada vez mais até que a
sua atenção estivesse totalmente focada onde ele queria que eu explorasse a
seguir. Para que provasse do seu próprio remédio e experienciasse o quão
necessitada me deixara ao jantar.
— É horrível, não é? Querer algo tão desesperadamente apenas para ser
escarnecido quando finalmente está ao nosso alcance.
Pelos vistos, ele recebera a minha mensagem nitidamente. A sua mão
deslizou entre as minhas pernas e a língua dele encontrou a minha no instante
em que ele acariciou aquela parte ávida de mim. Ofeguei contra a sua boca, mas
ele interrompeu-me quando me puxou para mais perto de si. A sua própria
excitação foi pressionada contra o meu corpo. Dura e tentadora. Como ele.
— Está melhor assim, minha senhora?
Oh, pela deusa, sim. Muito melhor.
Devagarinho, traçou leves círculos com aquele seu dedo maldito em torno
do meu ápice, beijando-me até me roubar os sentidos. O calor explodiu-me nas
veias com cada carícia provocadora. Tomara algumas más decisões na vida, mas
ter o Ira como meu amante nunca seria uma delas. Ele agiria tão selvaticamente
como eu imaginara, mas essa parte primitiva de mim acolheu de bom grado esta
nova batalha de vontades.
Levantei a anca, incitando-o a prosseguir a sua exploração enquanto lhe
abraçava o pescoço e o puxava para um beijo mais profundo. O seu dedo
mergulhou um pouco dentro de mim e eu asfixiei um gemido. Ele retirou-o,
concentrando-se inteiramente na reação do meu corpo ao movimento: a ligeira
expiração, o estremecimento, a forma como eu me movia reflexivamente contra
ele e o agarrava com mais força. Ele estava a aprender aquilo de que eu mais
gostava, variando-o um pouco e repetindo-o.
Que a deusa me ajude. O demónio de guerra era um estrategista a todos os
níveis.
Acariciou gentilmente aquela parte latejante de mim com um segundo
dedo antes de voltar a concentrar-se nos beijos, devagar e inebriantes. Fogo.
Sem qualquer outra magia que não o requintado poder do seu toque, estava a
transformar o meu corpo num milhão de pequenas chamas de desejo.
E ele sabia-o. Toda esta provocação estava a enlouquecer-me.
— Leva-me para o teu quarto. — A minha voz era como fumo. — Agora.
— É isso que queres?
— Sim. — Mais do que tudo no mundo. Consegui acenar com a cabeça e
os seus dedos habilidosos recompensaram-me com outra carícia terna. —
Rápido.
Ele mordiscou o meu lábio inferior.
— A minha rainha ordena-o?
— Sim. — Oh, pela deusa, sim.
— Sou o vosso humilde servo agora?
Recuei. Havia um brilho diabólico nos seus olhos. Ainda que lhe quisesse
responder, a minha resposta ter-se-ia apagado no seu próximo beijo. Ambos
sabíamos que ele não era do tipo de receber ordens. Por isso não se apressou. A
criatura Maldita levou o seu tempo a beijar-me, enquanto os seus dedos
continuavam a explorar, a provocar, a espremer prazer de formas que eu não
sabia possíveis.
Ele prometera-me que, quando me tocasse, eu não confundiria a realidade
com uma ilusão. Não havia mentido. O Corredor do Pecado, este reino, nada se
podia comparar à sua magia.
Na vez seguinte em que ele me tocou, movi as minhas ancas para a frente
involuntariamente e, por fim, ele respondeu ao meu apelo silencioso. Os seus
dedos penetraram até ao fundo e ele mordeu-me o lábio com suavidade para
engolir o meu suspiro. O que apenas me tornou mais selvagem.
— Tome o seu prazer, minha senhora. — Com alguma incerteza, repeti o
balançar. Ele observou-me, os olhos a arder. — Assim mesmo.
Aprisionou o meu gemido com o seu próximo beijo, e eu enterrei as mãos
no seu cabelo. Precisava de o sentir mais. Não sei como, impulsionei-me para
cima e enrolei as pernas em torno da sua cintura. O seu braço livre fixou a
minha posição com facilidade. A sensação da água quente a borbulhar e a
fricção dos seus dedos insensíveis foi o suficiente para me empurrar para o
limite da mais crua necessidade. O instinto apoderou-se de mim.
Os nossos corpos pressionados um contra o outro, as nossas línguas e
dentes e a fome mútua correndo-me nas veias. Percebi que a magia deste mundo
não estava a criar este desejo; limitava-se a intensificar o que eu sentia. E eu
sentia mais do que alguma vez me havia permitido admitir. Movi as ancas ao
ritmo de cada um dos seus movimentos profundos. Já não me envergonhava de
perseguir o prazer que ele me estava a dar.
No meu fervor de experimentar todas as sensações, deslizei pelo seu corpo
até que, acidentalmente, rocei contra a sua dureza. Ele gemeu, um som
profundo e estridente. O meu sorriso foi puro deleite perverso. Repeti o
movimento e o ar sibilou entre os seus dentes. Os seus beijos tornaram-se
ávidos.
Balancei o corpo para cima e para baixo, sem parar, contra a mão dele,
contra ele. O calor acumulava-se dentro de mim, em busca de libertação. Os
seus olhos estavam vidrados com a sua própria luxúria, os dedos ainda
enterrados dentro de mim. Nunca o vira assim, fora de controlo. O que apenas
aumentou o meu prazer.
— Emilia... — Silenciei-o com um beijo. Que se dane o quarto dele.
Possui-lo-ia aqui e agora. Fechei a mão em torno da sua excitação e ele gemeu.
— Sangue de demónio, preciso...
— Leva-me para a cama. Agora.
O Príncipe Ira, que não recebia ordens de ninguém, submeteu-se às minhas.
Sem mais provocações, transportou-nos magicamente, os nossos corpos
entrelaçados, para o seu quarto.
Capítulo 12

Os dedos do Ira ainda estavam enterrados entre as minhas pernas quando ele
nos encostou à porta dos seus aposentos, a respiração forte e acelerada. Falhara
o quarto. Por uma boa razão. A minha mão permaneceu enrolada à volta da sua
impressionante extensão. Continuei a acariciar-lhe a pele sedosa e suave,
maravilhando-me com a forma como cada movimento lhe fazia perder ainda
mais o controlo.
Parecia errado sentir orgulho na altura, mas não podia negar que adorava o
facto de ter sido eu o motivo pelo qual a coleira apertada que ele atara a si
mesmo finalmente se soltara.
Não me ocorreu qualquer razão para ele nos ter transportado para o corredor
público que ligava os nossos quartos. Pelo menos a porta que encerrava aquela
ala ainda estava fechada, e ninguém se conseguiria aproximar o suficiente para
nos ver. Não que fossem ver muito com o enorme corpo do Ira a cobrir-me. Não
que importasse se pudessem ver-me.
Estava demasiado perdida nas ondas de prazer que cresciam e aumentavam
dentro de mim para me importar com onde estávamos ou com quem estava à
nossa volta. Queria-o ali e agora. Para o inferno com os Sete Círculos. Eu ainda
não era casada com o Orgulho. Além do breve período em que possuíra o
Antonio, nem sequer o conhecera. Duvidava que o diabo se importasse que eu
tivesse um amante antes de trocarmos os nossos votos malditos.
O nosso não seria um casamento por amor. E se o Orgulho se importava,
certamente não o demonstrava. Ainda não recebera uma carta, nem um convite,
nem sequer um sinal de reconhecimento da minha chegada. O Príncipe Orgulho
estava contente em ficar sozinho no seu castelo e, de momento, por mim tudo
bem.
O Ira continuou a beijar-me, continuou a empurrar os dedos enquanto
balançava contra o meu agarrar resoluto, e tudo o que eu queria era pôr aquela
poderosa criatura de joelhos com um êxtase implacável. Aquela sua parte
selvagem e desenfreada era quase tão intoxicante como as suas carícias.
Nunca tinha experienciado nada parecido, tão poderoso e correto. Ele estava
certo. E eu soube, com certeza infinita, que estávamos prestes a descobrir quão
bons éramos juntos. Talvez tivéssemos estado sempre destinados a acabar
assim, perdidos na paixão um do outro.
O som do seu prazer misturado com o meu estava a criar o seu próprio
feitiço, e eu sentia-me tão perto de explodir em pedaços, tão perto desse poder
que continuava a subir e a quebrar-se e...
A dor irrompeu numa torrente violenta, roubando-me o fôlego. Sempre em
sintonia com as minhas oscilações emocionais, o Ira parou de imediato; o feitiço
eufórico foi quebrado.
— Estás bem?
— Não. — Nunca odiara tanto uma palavra. — Estou com uma dor h-
horrível.
— Onde? — A sua voz soava áspera.
— Coração. — Soltei-o e estremeci. — Sangue e ossos. Dói tanto.
— Vem. Eu mando chamar um curandeiro...
— Acho que é o Chifre de Hades.
O Ira ia alcançar a maçaneta da porta do quarto, mas deixou cair a mão. Não
demorou dois segundos a voltar a sua atenção para o amuleto que eu ainda
estava a usar e amaldiçoou as deusas de forma impressionante.
Tudo isto se desintegrou em fumo e numa luz preta brilhante. Não o vira
mexer-se, mas num instante estávamos nus à porta do quarto dele, à beira da
libertação mútua, e no seguinte estávamos de pé, parcialmente vestidos, perante
uma porta de madeira entalhada numa torre.
As tochas de aspeto medieval queimavam intensamente de ambos os lados da
entrada. Fiquei quase tão surpreendida com a nossa localização como com a
camisa de noite cor de ébano que de repente estava a usar. Uma que ainda fazia
pouco para esconder a minha forma. O Ira usava calças pretas e nada mais.
Exceto, talvez, um leve olhar de preocupação.
— Onde estamos? — Tentei remover o cornicello. A dor estava a
intensificar-se.
— Não tires isso. — Era como se os últimos minutos de paixão nunca
tivessem existido. O Ira voltara a ser granito e fúria. Só que não era eu o recetor.
Ele ergueu o punho e bateu com força suficiente para abanar as dobradiças de
ferro, a sua voz transformando-se em aço puro.
— Matrona!
A onda de dor que se seguiu fez com que os meus joelhos se dobrassem,
mas recusei-me a cair. Mesmo sem olhar para mim, o príncipe-demónio não
perdeu nada. O seu próximo golpe sacudiu uma pedra solta. Pus-lhe uma mão
no braço e dei-lhe um leve aperto.
— Ira.
— Se não abres esta porta, juro pelo meu sangue...
— Vais derrubar a torre inteira com os teus disparates, rapaz. — A porta
abriu-se para revelar uma mulher mais velha com longos cabelos prateados e
cor de lavanda. Usava uma túnica roxo-escura com um cinto metálico estilo
corda que me fazia lembrar as sacerdotisas que vira em pinturas e livros.
O seu olhar sombrio prendeu-se em mim, estudando-me.
— Filha da Lua, bem-vinda. Eu sou a Celestia, Matrona das Maldições e dos
Venenos. Tenho estado à tua espera. — Deu um passo atrás e abriu ainda mais a
porta em sinal de boas-vindas. — Entra antes que Sua Majestade quebre o reino.
— Da próxima vez não demores tanto a abrir a porta.
O Ira entrou primeiro, alerta e pronto para a batalha. Além das tinturas,
antídotos e venenos, não tinha a certeza do inimigo que esperava encontrar ali,
mas estava com demasiadas dores para me preocupar. Segui-o para dentro e
detive-me. A sala circular era feita de madeira escura, pedra fria e prateleiras
que chegavam até ao cimo da torre. Havia uma escada encostada a uma das
secções, como se a matrona tivesse estado a catalogar itens nas prateleiras mais
altas quando a interrompemos. Uma mistura eclética de aromas suspensos no ar
criava um efeito agradável.
Mal conseguia respirar fundo e o cheiro, apelativo como era, começava a
dar-me a volta ao estômago. O suor escorria-me pela testa enquanto me
obrigava a respirar e a deixar sair o ar entre os dentes cerrados. Para evitar
concentrar-me na náusea crescente, deixei o meu olhar vaguear pelo espaço.
Numa longa mesa perto de uma única janela arqueada estavam vários
frascos de líquidos estranhos; alguns fumegavam, outros borbulhavam, outros
colidiam contra o vidro fino, como se estivessem a testar uma rota de fuga. Os
líquidos conscientes eram novos para mim e mais do que um pouco
desconcertantes.
Uma das prateleiras estava cheia de plantas e plântulas totalmente
cultivadas, pétalas secas e ervas. Havia cataplasmas e amuletos, caldeirões,
figuras esculpidas de criaturas como quimeras, divindades aladas e deuses.
Pedras, tanto ásperas como lisas, e, se a seiva escura fosse alguma indicação,
armas com lâminas e agulhas envenenadas a brilhar sob a luz cintilante do fogo.
Gotas de cera pingavam de enormes velas numa superfície de madeira por
cima de uma grande lareira perto do centro do aposento, e havia paus de incenso
a arder com torres de fumo impecáveis.
Parecia que a Matrona das Maldições e dos Venenos estava pronta para
qualquer atividade perversa.
Engoli em seco quando a próxima onda de dor me atingiu. Senti-me como se
o meu corpo estivesse, de repente, no meio de uma guerra brutal consigo
mesmo. O que quer que estivesse a causar a dor, estava a ganhar.
Com uma mão forte nas minhas costas, o Ira guiou-me até um pequeno
banco de madeira e virou-se para a matrona com hostilidade.
— Faz alguma coisa. Agora.
Ela estalou a língua enquanto atravessava a sala lentamente.
— Exigências e ameaças são para os assustados e os fracos. Nenhuma dessas
características te fica bem, por isso cala-te.
— Não me testes.
A Celestia caminhou até um recipiente cheio de tesouras e lâminas. Algumas
tinham pegas de ouro ou prata, outras eram feitas de brilhantes pedras preciosas
ou de ossos de mortais ou criaturas do submundo. Não olhei com atenção.
O Ira, no entanto, debruçou-se sobre os seus instrumentos.
— Move-te mais depressa.
— Não interfiro no teu trabalho, rapaz, por isso não interfiras no meu.
Agora pára de andar aí às voltas e senta-te, ou sai e descarrega a tua raiva
noutro lugar. — O seu olhar frio virou-se para o dele. — Fá-lo por ela, não por
mim.
O Ira não saiu, nem se sentou, nem teceu mais comentários, mas deu
espaço à matrona para trabalhar. Decidi que gostava desta mulher destemida e
perguntei-me quem era para o Ira. Ela tinha de saber que ele acabara de decepar
uma língua. Neste momento, o príncipe-demónio estava particularmente
furioso, e ela não lhe prestava a mínima atenção. Duvidava que muitos tivessem
a coragem de lhe virar as costas, sobretudo quando o seu poder se agitava como
uma víbora zangada, como naquele instante.
Não que estivesse a queixar-me. A sua maneira grosseira, ele estava a
cuidar de mim.
A matrona selecionou um par de tesouras finas e douradas com uma pega
em forma de asas de pássaro. Depois pegou num frasco cheio de um líquido
cerúleo cintilante, num frasquinho de ervas secas e escolheu outro cheio de
pétalas em tons de azul e prata. Levou tudo para a sua bancada de trabalho, tirou
uma taça de madeira de um armário, seguida de um almofariz e pilão.
Depois de um último olhar para tudo, virou os seus olhos de anciã para
mim.
— Preciso de uma madeixa do teu cabelo para a tintura.
— Não. — O pânico apoderou-se de mim e a palavra saiu-me da boca antes
que eu a pudesse deter. Os avisos da Nonna ecoaram-me nos ouvidos. Sempre
nos dissera para queimarmos o cabelo e as unhas que cortássemos em vez de
darmos a alguém a oportunidade de usar as artes das trevas contra nós. — Será
isso necessário? A dor já está a diminuir. Acho que Sua Alteza pode ter
exagerado.
Ela suavizou o olhar.
— Não tens nada a temer de mim, criança. Beberás a tintura até à última
gota. Depois queimaremos a taça. Não restará nada para aqueles que te desejam
mal.
Senti a atenção do Ira a queimar-me a nuca, mas recusei-me a olhar para ele.
A decisão era minha e só minha. Respirei fundo e acenei com a cabeça.
— Está bem.
A Celestia cortou uma pequena madeixa do meu cabelo e depois deitou-a
sobre a mistura que preparara: um terço de ervas e dois terços de pétalas. Moeu
tudo no almofariz até obter uma pasta.
Quando a consistência ficou ao seu gosto, sussurrou um encantamento numa
língua que me era desconhecida e depois adicionou umas gotas generosas do
líquido azul cintilante à mistura.
Verteu tudo para um cálice prateado com rosas gravadas na superfície e
agitou-o vigorosamente.
— Não será a bebida mais agradável que já ingeriste, mas as Lágrimas de
Saylonia irão melhorar um pouco o sabor.
— Lágrimas de Saylonia?
— Dizem que é a deusa da dor e da tristeza. Mas ela esconde mais do que
isso. As lágrimas são recolhidas num templo nas Ilhas Movediças.
— Onde ficam? Aqui?
Ela voltou a sua atenção para o príncipe, enquanto rodopiava a bebida na
direção oposta e o conteúdo transbordou devido à súbita mudança.
— Está quase pronto.
O Ira observava cada passo que a matrona dava na minha direção com um
brilho perigoso no olhar. Como se um movimento em falso sinalizasse a luta
para a qual ele se havia preparado.
Ignorei o seu comportamento estranho e voltei a minha atenção para a
mulher que se aproximava de mim.
— Uso o amuleto há décadas e nunca senti tamanha dor.
— Visitaste os Baixios do Crescente, não foi?
— Sim. — O meu cabelo estava húmido e não fazia sentido mentir. — Como
é que sabe?
— Foi apenas um palpite. Há um certo tipo de magia que não pode entrar
nessas águas sem consequências terríveis. Alguns dizem que as suas águas já
pertenceram às deusas e que elas queimam aquilo que não lhes serve. Outros
acreditam que os Temidos procuram recuperar o que lhes foi tirado. E não se
importam com a forma como irão restaurar o seu poder, apenas em obtê-lo. A
vingança é um objetivo brutal.
— Os Temidos? — Procurei na memória quaisquer histórias ou lendas de
infância, mas o nome não me era familiar. — É isso que chama às deusas ou aos
príncipes-demónios?
— Basta. — O tom do Ira era calmo, mas não admitia ser contrariado. —
Há quem ache sensato guardar para si superstições e contos populares antigos.
— Cruzou os braços sobre o peito, a sua expressão era dura como pedra. — Já
acabaste a tintura?
Olhei para baixo para ver o amuleto do chifre do diabo. O Ira dissera-me
para o manter. Lancei-lhe um olhar acusador.
— Esqueceste-te de me avisar sobre os perigos. E agora estás preocupado?
A Celestia semicerrou os olhos, mas manteve-se em silêncio por alguns
momentos enquanto continuava a agitar a tintura.
— Se ele soubesse do efeito que isso provocaria em ti, não te teria levado
lá. É sobre o seu outro segredo que o deves questionar. Ele está plenamente
consciente de que isso vos afeta a ambos. E, ainda assim, não disse uma palavra
sobre tal. Pergunto-me porquê. Talvez tenhamos por fim encontrado o vosso
calcanhar de Aquiles, Majestade.
O Ira ficou extraordinariamente imóvel. A temperatura na sala desceu o
suficiente para eu ver o vapor da minha respiração. As ampolas tilintaram
quando as prateleiras oscilaram com a força do poder que o demónio tentava
conter, a raiva que queria combater. Era evidente que a matrona tocara num
assunto sensível. Ainda mais intrigada com a sua resposta, estudei-o
atentamente. Ele estava quase irreconhecível. Não houvera qualquer alteração
na sua expressão fria, mas senti a imensa onda de magia que atraiu para si como
a maré.
— Cuidado — advertiu. — Estás a pisar em terreno perigoso.
— Bah. — Ela agitou a mão, sem se preocupar minimamente com a raiva
crescente que zumbia pelo ar. Entregou-me a taça e indicou-me que bebesse.
Desviei a atenção para o Ira, e o que quer que tivesse desencadeado a
manifestação do seu pecado homónimo desapareceu quando ele encontrou o
meu olhar preocupado. A temperatura voltou ao normal. Acenou com a cabeça
na direção ao cálice.
— Está tudo bem. Bebe.
Levei a poção aos lábios e detive-me. O cheiro não era nem um bocadinho
agradável. Enchi-me de coragem antes que a dor voltasse e bebi tudo de uma só
vez, ignorando o sabor enjoativo mas amargo das ervas. Os meus sintomas
desapareceram.
— Estás pronta, criança.
Devolvi-lhe o cálice e observei enquanto ela atirava a tigela de madeira para
as chamas. Ficou reduzida a cinzas numa questão de segundos.
— Devo tirar o amuleto agora?
Ela olhou para o Ira, uma sobrancelha grisalha levantou-se-lhe. Não me
virei a tempo de ver a sua reação, mas a matrona crispou os lábios. Voltou a sua
atenção para o meu pescoço antes de me olhar novamente nos olhos.
— Não. O amuleto já não te vai incomodar.
— Cuidado, Celestia.
— Vai brandir uma espada ou dar um murro noutra pedra e vai-te embora.
Julgavas que não ouviria da tua grande demonstração de temperamento? O
Domitius e o Makaden são uns tolos. Mas apenas um tolo ainda maior agiria
como tu. Outros poderão pensar que há novos pecados a despertar. Vossa Alteza
devia ser mais cuidado. Há outros a observar. E têm um interesse especial na tua
corte.
— Cuidado com o que dizes. — A sua fúria açoitou como as rajadas de
vento numa tempestade. Ela sorriu, mas não era o tipo de expressão amorosa
que uma avó daria ao seu neto. Estava coberta de aço. A expressão do Ira era
ainda pior. — Não recebo ordens tuas.
— Então considera-o uma sugestão. É irresponsável não lhe contares, de
qualquer maneira.
— Sim, eu gostaria muito de saber do que estão a falar. — Agora que a
minha dor havia diminuído, sentia-me irritada. Eu sabia que o Ira ainda
guardava segredos. Segredos que até a Celestia acreditava que eu tinha o direito
de saber. E depois do que acabara de acontecer entre nós na lagoa, não
tencionava tolerá-los por mais tempo. Lancei ao Ira um olhar mordaz.
— Alguém precisa de responder à minha pergunta. Agora.
A Celestia olhou para nós.
— Essa é uma conversa mais adequada a vocês os dois. Sozinhos. —
Naquela altura, o seu sorriso significava problemas. — Embora talvez queiras
levá-la para o Templo da Fúria, longe de onde poderão ser ouvidos. Tenho a
sensação de que irão acordar o castelo inteiro.
Dito isto, ela apressou-nos para fora da sua câmara de tinturas e bateu com
a velha porta de carvalho atrás de nós. Olhei para o príncipe. De uma maneira
ou de outra, ele contar-me-ia a verdade. Não conseguia compreender como é
que a Celestia podia saber do seu segredo e eu não, e o meu aborrecimento
estava a dar lugar à raiva. E essa emoção não fora causada pelo pecado daquela
Casa.
Quantos membros da sua corte teriam conhecimento da informação que ele
me escondia, que me pertencia? Era inaceitável que eu fosse a única a ser
mantida na ignorância.
— Quero a verdade. Acabaram-se as mentiras. Deves-me isso.
Ele parecia prestes a brandir uma arma. Embora a sua frustração não
parecesse dirigida a mim, nem sequer à matrona.
Talvez estivesse zangado consigo mesmo. Era claro que qualquer plano ou
conspiração que estivesse a levar a cabo chegara ao fim. E as coisas não haviam
corrido como ele esperara.
— Merda. — O Ira passou uma mão pelo cabelo e afastou-se de mim. —
Pensei que teríamos mais tempo. Mas depois desta noite, é óbvio que não
podemos esperar.

O Ira conduziu-nos até à sua biblioteca pessoal e enfeitiçou a sala para


conter as nossas vozes lá dentro. Mantive-me em frente à lareira, aquecendo as
mãos. Desde a temperatura fria do castelo, o cansaço provocado pela dor, a
minha fina camisa de dormir e a humidade do meu cabelo, estava gelada até aos
ossos.
O medo também desempenhou um papel no meu tremor — será possível
que algo tenha acontecido à minha família? Se estiverem feridos, ou pior, não
tenho a certeza se o Ira me irá dizer.
Ele sabia que eles eram a minha fraqueza, que eu iria negociar o meu
regresso ao meu mundo e quebrar o contrato com o Orgulho. Isso iria complicar
as coisas no seu mundo e seria razão suficiente para ele não ser honesto comigo.
O estado de tensão em que se encontrava o Ira também não estava a ajudar
a acalmar-me. Isso invadiu os meus sentidos até os meus próprios nervos
estarem suficientemente tensos para ceder.
Caminhava pela sala como um grande animal preso numa gaiola. Antes do
nosso apaixonado interlúdio na lagoa, e depois no corredor fora do seu quarto,
eu nunca o vira exibir nada a não ser calma; mesmo quando estava furioso,
nunca ficava tão... agitado. Era desconcertante vê-lo daquela maneira. O facto
de ter perdido a cabeça com a matrona também era invulgar. Por vezes, ele
podia ser brusco, arrogante ou cheio de petulância masculina, mas nunca era
mal-educado.
— Podes sentar-te, por favor? — Esfreguei os meus braços. — Estás a
deixar-me nervosa.
Ele foi até à sua secretária e verteu dois dedos de líquido lavanda no seu
copo. Engoliu-o num só gole antes de o voltar a encher e me oferecer a segunda
dose. Abanei a cabeça.
A espera era insuportável. E o meu estômago estava virado do avesso.
Queria saber o que ele tinha para me dizer e o porquê de o que quer que fosse o
estar a afetar tanto. Mesmo antes, quando atacara o Makaden, não houvera
remorsos ou preocupações da sua parte. Apenas eficiência gélida. Limitara-se a
cumprir uma sentença e fora imparcial quanto à sua brutalidade.
— Esse suspense todo é realmente necessário? — A minha voz soou
surpreendentemente calma. Uma contradição absoluta com o frenético bater do
meu coração. — O que quer que tenhas para dizer não pode ser assim tão mau.
Assim esperava.
Por fim, ele parou de se mexer tempo suficiente para me olhar nos olhos. A
sua expressão era impossível de decifrar. Fora possuído por uma calma fria e
inquietante. Um desconforto percorreu-me a espinha. O seu comportamento
lembrou-me de quando uma parteira me dera notícias fatais.
— No início desta noite, perguntaste-me porque é que te Marquei. Não
tenho a certeza se compreendes ao certo o que a Marca faz. O porquê de ser
algo tão raro.
Olhei para ele, momentaneamente surpreendida com a sua súbita mudança
de assunto, e questionei-me o que poderia ter a Marca que ver com isto tudo.
Pelo menos, compreendi como é que a Celestia havia decifrado este segredo; o
seu olhar deslocara-se brevemente para o meu pescoço. Na altura, achara que o
olhar se destinava ao meu amuleto.
— Então? — insistiu ele, voltando a chamar a minha atenção. — O que
sabes sobre isso?
— A Nonna disse-me que a Marca permite qualquer pessoa invocar um
príncipe do Inferno sem um objeto que lhe pertença. Que é uma grande honra
concedida a poucos. E que, enquanto essa pessoa respirar, o príncipe-demónio
deverá sempre responder à invocação. Com exceção, claro, de quando eu tentei
invocar-te e tu não apareceste. — O meu tom tornou-se gélido. — Pensei que
estavas morto.
Ele recuou um passo e olhou-me em silêncio, pensativo.
— Depois de ter sido ferido com a adaga da Casa Inveja, não havia
recuperado o suficiente para viajar entre reinos. Não me tinha apercebido de que
estavas perturbada com a minha ausência. — Lancei-lhe um olhar furioso, que
pareceu mostrar um franzir malicioso da sua boca. A expressão desapareceu-lhe
quase instantaneamente. — Sabes por que razão é algo tão raramente
concedido?
— Porque os príncipes são uns bastardos irascíveis e não gostam de ser
invocados à vontade de terceiros?
O fantasma de um sorriso regressou-lhe aos lábios antes de se dissipar.
— Porque é um vínculo mágico que nunca pode ser quebrado.
— Impossível. Toda a magia pode ser desfeita.
— Não este laço. Nem mesmo na morte.
— Mas tu és imortal.
— Imagina então quanto tempo dura.
Olhámos um para o outro enquanto o peso dessa verdade se estabelecia entre
nós. Esforcei-me para absorver a informação, as implicações. O Ira não falou, e
a sua expressão tornou-se sombria enquanto eu enfrentava o meu choque. Se o
vínculo durava mesmo depois da morte, não compreendia como funcionava essa
parte. As nossas almas ficariam unidas para sempre. Só que eu vendera a minha
e não fazia ideia de como isso afetava o vínculo. Ou a ele.
— Emilia. — Ele falou calmamente, mas havia algo de autoritário no seu
tom. — Diz qualquer coisa.
— Disseste-me para evitar falar em absolutos. Têm tendência a nunca
perdurar, lembras-te?
— Recordas-te de alguma coisa que eu tenha dito na noite em que foste
atacada pelo Viperidae?
O Ira aproximou-se, observando-me com cautela entre cada um dos seus
passos calculados. Imaginei que pressentia quão próxima me encontrava de sair
a correr e estava a dar o seu melhor para não fazer nenhum movimento brusco
que me assustasse. O seu olhar pousou na Marca.
Inconscientemente, estendi a mão para tocar no sítio do meu pescoço onde
aquele símbolo quase invisível me marcava a pele. Tivera demasiadas dores
para processar tudo o que ele me dissera naquela noite, e depois estivéramos
juntos no banho e os pesadelos haviam começado pouco depois.
E antes de eu acordar ele dissera-me...
— Eu disse-te para viveres tempo suficiente para me odiares. E estava a
falar a sério. — Ele estendeu a mão e percorreu o lado de fora do meu pescoço,
o seu toque leve como uma pena. — Essa foi a noite em que eu te Marquei. Mas
isso não é tudo.
O pânico agitou-se no interior da minha caixa torácica como um pássaro
encurralado.
Tive a terrível sensação de que sabia onde isto iria chegar e não queria
fazer parte disso. Podia jurar que a minha tatuagem de noivado começara a
formigar, lembrando-me da sua existência. Como se eu me tivesse esquecido.
Forcei os meus pés a permanecerem presos ao chão, apesar de uma grande
parte de mim querer levantar voo e correr para o meu quarto, fechar a porta e
nunca mais sair de lá.
— Pára. — Virei-me e comecei a ir embora. Aquele novo medo não parava
de crescer. Não queria continuar a ouvir a sua confissão. — Leva-me de volta
para os meus aposentos.
— Não enquanto não souberes toda a verdade.
O Ira estava agora à minha frente, o seu olhar fundido ao meu. Odiava
mesmo a sua velocidade sobrenatural. Ele não me voltou a tocar, não me
bloqueou o caminho nem me encostou a um canto, mas na sua expressão detetei
uma promessa de que se manteria perto de mim até que eu me sentisse pronta
para ouvir a sua confissão na totalidade. Eu sabia que ele esperaria uma
eternidade se fosse preciso, esperaria até que o Sol ardesse e a última estrela
desaparecesse do céu. E eu não tinha esse tempo para perder.
No final assenti, concedendo-lhe permissão para continuar. Para virar o meu
mundo do avesso mais uma vez.
— A magia que eu usei e que tu confundiste com um feitiço de
renascimento? Foi a Marca. Uniu-nos, carne com carne, de uma maneira que
permitiu que os meus poderes te curassem. Tu apenas sobreviveste àquele
ataque porque levei o veneno para o meu próprio corpo através desse vínculo
mágico.
O seu corpo imortal. Um corpo que não podia ser cortado ou envenenado e
que não sucumbiria a nenhuma das coisas que me teriam matado. Engoli com
força. O Ira vinculara-se a uma inimiga confessa apenas para que eu pudesse
viver. A gravidade do que ele fizera, o que ele sacrificara para me salvar na
noite em que fui atrás do amuleto da minha irmã, que lutara contra a serpente
demoníaca Viperidae e quase morrera, estatelou-se sobre mim. Não admira que
tivesse ficado furioso por eu ter sido tão arrogante a respeito disso.
O preço que ele pagara fora mais alto do que eu alguma vez poderia ter
imaginado. Mas, por outro lado, o mesmo se aplicava a mim.
— A Marca era mais do que uma forma de me invocares ou de te salvar.
Devido a outro vínculo mágico que partilhamos, foi também, em parte, um sinal
de aceitação. Acho que compreendes o que tenciono dizer com isto, mas queres
que continue?
A sua escolha das palavras fez disparar o meu coração. Aceitação. Já não
estávamos a falar da sua Marca ou da magia a que ele recorrera para me livrar
do veneno. Estávamos a falar do meu medo, do medo que continuava a crescer,
mesmo agora. Não me atrevi a olhá-lo nos olhos.
— Depois disso quebrei o feitiço.
— Não pareces tão segura disso. No entanto, a verdade esteve sempre lá, à
espera de que a visses.
Olhei para a tinta traiçoeira que lhe adornava o braço nu; as tatuagens
mágicas que não haviam desaparecido. Suspeitara que a minha tentativa de
reverter o feitiço não havia funcionado, mas pusera essas preocupações de lado.
Ele estava certo. Eu não quisera reconhecer o seu significado. Ainda não queria.
— Permites-me? — O Ira estendeu a mão, mas deteve-se antes de me tocar.
Anuí e ele levantou-me o braço com gentileza para puxar a manga da minha
camisa de noite. Trouxe o seu próprio antebraço para perto do meu, esperando
até que a verdade parasse de tremer como um pássaro assustado e assentasse em
mim.
Não havia como negar que eram um par perfeito. E eu sabia porquê.
Desviei a minha atenção das nossas tatuagens para o seu rosto. O seu belo,
frio e real rosto. O rosto de um deus caído. E do meu destruidor. A antecipação
fez a minha pele formigar.
— Estás em busca da verdade? Permite-me que ta conceda livremente. O
Orgulho não te convocou para a sua corte, e nunca o tentará. Pelo menos, não
pelos motivos que crês.
— Porque...
Eu sabia, pela deusa, eu sabia. Ainda assim, precisava que ele pronunciasse
as palavras.
— Tu não és prometida dele, Emilia. — O mundo inclinou-se sob os meus
pés. O olhar do Ira foi firme o suficiente para evitar que os meus joelhos e o
reino tremessem. — És minha.
Capítulo 13

És minha. Tudo, além dessas duas palavras, desapareceu. O meu choque, a


minha negação e a minha confusão absoluta simplesmente desapareceram. Era
como se tivesse saltado da biblioteca do Ira para a ausência do vazio. A minha
pulsação martelava em todas as células do meu corpo. A frase ecoou com
suavidade, batendo contra todos os meus nervos, gravada no meu coração.
Senti-me como se a magia que nos unia estivesse totalmente desperta. De
alguma forma, a confissão do Ira despertara-a da sua letargia e dera-lhe
permissão para esticar os braços.
Aquele poderoso príncipe guerreiro, repleto de vitalidade e poder imortal,
morte e fúria encarnados... De repente, fui sugada para uma visão.
Se era passado, futuro ou pura ilusão fabricada por este mundo pecaminoso,
fui incapaz de discernir. Estávamos na cama do Ira, centenas de velas a cintilar
na superfície brilhante dos seus lençóis de seda, as suas paredes escuras e o
brilho do suor a cobrir o seu peito nu.
Eu estava sentada sobre o príncipe-demónio, uma perna de cada lado do seu
tronco, as coxas abertas para acomodar a sua amplitude. Ele observava-me com
uma espécie de posse primitiva; os seus olhos semicerrados bebiam cada
centímetro do meu corpo enquanto eu balançava as ancas, em busca de prazer,
mas não até ao fim. Provoquei os dois, não atravessando por completo a ligeira
distância entre os nossos corpos.
Ele tentou agarrar-me, mas eu prendi-o contra o colchão e mordisquei-lhe a
boca antes de me perder nos seus beijos lentos. Pouco depois, o demónio
cansou-se de ser apenas espectador; as suas mãos agarraram as minhas ancas e
guiaram-me para a sua excitação feroz. Com um sussurro amoroso e uma rápida
estocada para cima, estávamos unidos em todos os sentidos. Por toda a
eternidade.
Consegui respirar fundo, embora de forma entrecortada, e banir a visão. A
negação voltou a manifestar-se.
— Nós ainda estamos prometidos.
Os olhos do Ira turvaram-se por um segundo, como se tivesse estado
naquela ilusão tentadora e sedutora comigo e ainda sentisse os arrepios de
prazer no corpo. O seu tom frio não correspondeu ao calor prolongado dos seus
olhos.
— Sim. Eu vou ser o teu marido.
— O meu marido. Tu, não o Orgulho.
— Emilia...
— Por favor.
Ergui uma mão para o deter. Algo ancestral sacudiu-me os ossos. Ignorei a
sensação e concentrei-me, em vez disso, na raiva que se desprendia como
gavinhas queimadas, substituindo qualquer sensação de choque ou negação
persistente e desanuviando a minha mente. Isto não podia estar a acontecer.
Tratava-se de uma complicação a que não podia permitir-me por diversas
razões; sendo a mais relevante o meu voto de vingar a minha irmã.
— Mentiste-me.
Ele ficou em silêncio por alguns instantes e depois disse calmamente:
— Apesar das circunstâncias menos do que ideais da nossa união, é
adequada. Quanto baste.
Fitei-o sem pestanejar. Com uma afirmação tão romântica, quem precisava
de amor ou paixão? Se não me casasse com o Orgulho para levar a cabo o meu
plano, casaria por amor. «É adequada» também era uma forma grosseira de
deturpar a situação. Continuava a querer estrangular o Ira mais do que queria
beijá-lo ou dormir com ele. Tive a sensação de que ele sentia o mesmo. O que
talvez fosse uma indicação de que tudo isto era adequado quanto bastasse. A
nossa seria uma união furiosa e profana.
— O teu irmão está ciente disto?
— Claro.
O príncipe-demónio parecia pronto para uma explosão violenta; os seus
pés estavam subtilmente afastados e alinhados à largura dos ombros, o corpo
inclinado para a frente. Merecia uma boa bofetada por me ter escondido aquilo,
mas eu quase não conseguia aceitar a sua confissão, e as suas palavras, por mais
inócuas que fossem, de repente aqueceram-me o sangue.
Todo o meu corpo zumbia de forma não natural com esta nova verdade.
Estava perfeitamente consciente de cada movimento dele, desde a ligeira troca
de peso nos pés à sua respiração constante. A minha nova perceção dele não me
aliviou a raiva. Quando muito, apenas a alimentou ainda mais.
Comecei a aperceber-me de outras coisas. Se eu era um membro da Casa
Ira, membros de outras Casas reais — tais como as da corte Orgulho — nunca
partilhariam mexericos comigo sobre o seu príncipe. Quaisquer esperanças ou
planos que pudesse ter para obter a informação de que precisava sobre a
primeira mulher do Orgulho haviam desaparecido.
— Isto é uma loucura.
Depois da morte da Vittoria, eu assumira o caos em que o meu mundo se
tornara e fingira que estava tudo em ordem, vindo para o inferno. Algo que
apenas sucedera graças à promessa que fizera à minha irmã.
Agora... agora a minha vida estava mais uma vez virada do avesso por
causa dos Malditos.
Do Ira em particular. A minha fúria finalmente explodiu.
— Estás sempre a dizer-me que tenho uma escolha. Quando é que isso de
facto acontece? Decerto não quando se trata de eu escolher uma Casa
demoníaca. Ou de pensar de que príncipe estou noiva. E não nos vamos
esquecer da minha favorita de todas, em Palermo, quando perguntei se me farias
vir aqui. Para governar no Inferno. Disseste que nunca me forçarias.
Aparentemente, enganar é um substituto perfeitamente aceitável. Parabéns. —
Aplaudi lentamente. — És ótimo a distorcer a verdade. Devo admitir que estou
impressionada.
Ele não parecia propriamente aliviado, mas relaxou um pouco a postura.
Detetei o momento exato em que ele se lembrou da noite a que me referira,
quando achara que ele desfizera o nosso noivado com um feitiço. Ele jurara-me
que não me obrigaria a casar nem me levaria para o submundo. Pelos vistos,
haviam sido apenas mais meias-verdades, se não mentiras descaradas.
— Ainda tens. Não tens de completar o nosso casamento.
Apontei um dedo acusador para a Marca.
— E este laço inquebrável? Não me parece que seja uma escolha. Eu sei
que também sacrificaste muito, mas pelo menos estavas ciente do que estavas a
decidir. De qualquer forma, devias ter-me dito mais cedo. Eu tinha todo o
direito de saber.
— A Marca foi a melhor alternativa que me ocorreu na altura. E, graças ao
veneno, não tinha muitas outras opções antes de o teu coração parar. Eu pedi a
tua permissão para ajudar naquela noite. Essa foi a tua escolha. Tu prometeste-
nos um ao outro. Eu aceitei.
Como se eu precisasse de me lembrar desse grave erro.
— Uma alternativa a quê?
— Para atrasar certos desejos que a aceitação do vínculo cria.
— Desejos.
Fechei a boca com um estalido audível quando compreendi Todos os meus
pensamentos e sentimentos lascivos pelo Ira tinham vindo a intensificar-se
lentamente. A corroer a desconfiança e a traição que eu sentira. Achava que era
apenas este reino, a sua tendência para o desejo alimentara-me as emoções,
empurrando-me para esta necessidade frenética, quase primária, de dormir com
ele. Mas não. Era também uma necessidade arcaica de recuperar o meu marido.
Para assegurar o nosso casamento.
Pela deusa. O Ira era o meu prometido.
Andara a travar uma batalha em múltiplas frentes sem ter a mínima
consciência disso. Não admira que me fosse tão difícil resistir à tentação.
Tentara combater a ligação, o reino e os seus incitando-me a enfrentar os meus
medos de intimidade e a possuir o meu próprio desejo sexual sem culpa ou
vergonha.
Para ser honesta, o conflito com os meus sentimentos começara muito
antes de chegarmos a este mundo. Quando o Inveja o atacara e ele sangrara à
minha frente, algo mudara.
E antes disso, quando caíra sob o feitiço do Luxúria, desejara o Ira
desesperadamente. Nessa noite, por um instante, também me parecera que ele
havia desejado fechar a distância entre nós.
Forcei-me a voltar ao presente.
— O facto de aceitares o noivado cria desejo?
— A consumação, juntamente com uma cerimónia tradicional, completa o
vínculo matrimonial. — Estudou-me o rosto, provavelmente para ver se estava
prestes a bater-lhe. Queria fazê-lo. Queria tanto. — Pareces...
— Zangada? — Erguei as sobrancelhas e inclinei a cabeça. O demónio era
sensato o suficiente para saber que o silêncio que se seguiu era duas vezes mais
perigoso do que se lhe tivesse levantado a mão.
— Criar foi uma má escolha de palavras. Encoraja a conclusão do vínculo.
De certa forma, tens de já ter tido esses sentimentos antes, caso contrário não
haveria nada para o vínculo encorajar.
— Este reino alguma vez me encorajou, ou é apenas o nosso elo?
— Ambos.
— E o que é que a tua Marca faz, exatamente?
— Marcar-te subjuga os desejos conjugais, porque, em si mesmo, é um
vínculo inquebrável entre nós. Se pensares nisso em termos de um corpo de
água, seria semelhante a um rio que se ramifica em dois riachos mais pequenos.
Cada um deles dilui o outro até certo ponto, até se voltarem a unir.
O que justificava o seu gesto de levar os dedos à Marca de cada vez que nos
beijámos. Tentara diluir o meu desejo. Também o fizera quando me encontrava
sob a influência do Luxúria na fogueira do acampamento. O que significava que
já o andava a diluir há algum tempo. E não se dera ao trabalho de me contar.
Não compreendia o porquê de me doer tanto, mas doía.
— O que acontece se eu me recusar a aceitar o casamento? Ainda te irei
querer na minha cama?
— O desejo permanecerá, mas nunca te prenderá a nada, Emilia. O vínculo
não funciona assim. Terás sempre uma escolha. A mesma que terias com
qualquer outro parceiro.
— Tenho sempre uma escolha — repeti em tom de escárnio. — A não ser
que queira casar com o diabo.
O Ira endureceu. As palavras haviam-me saído da boca sem pensar muito.
Ou sem pensar em como poderiam afetar o príncipe. Se também ele
experienciava aqueles desejos, tinha de ter algum tipo de sentimentos por mim.
E isso era... demasiado complicado para fazer sentido.
Sabia que era injusto culpá-lo, sobretudo porque fora eu quem o prendera a
um compromisso indesejado em primeiro lugar, mas não pude deixar de me
agarrar à minha fúria. Todos os meus planos estavam a arder em chamas. Se não
chegasse à Casa Orgulho, nunca descobriria a verdade sobre o que acontecera à
minha irmã gémea. A única razão que me levara a assinar o contrato fora a
possibilidade de me infiltrar no ninho da víbora e evitar que mais bruxas fossem
mortas.
Agora estava neste reino presa a uma situação que não ajudava em nada a
avançar com a minha missão. Não estava aqui para encontrar o amor ou para me
tornar a princesa da Casa Ira. Estava aqui para me vingar. Estava aqui para ser
rainha. Estava aqui para destruir o demónio que assassinara a Vittoria e salvar a
minha família e a minha ilha de um perigo maior do que os demónios invasores.
E o Ira estava a complicar todo o meu mundo.
— Porquê manter segredo? Se não querias que eu assinasse o contrato do
Orgulho, podias ter-me dito tudo isto naquela noite na caverna. Porque é que
não me pediste para me juntar à tua Casa? Não faz sentido esconderes isto de
mim.
— Sendo ou não minha noiva, és livre de te juntares a qualquer Casa do
Pecado que desejes. Eu nunca me irei intrometer no teu caminho. E não te
contei porque não queria que viesses cá.
— Porque é que não me queres aqui? — Ele crispou os lábios. Desta vez não
o deixaria escapar com aquela pobre imitação de uma resposta. — Diz-me. Diz-
me que isto tem algo que ver com a maldição e não com amares outra pessoa.
Preciso de compreender por que razão guardas certos segredos e abdicas de
outros.
— Não posso. Contenta-te com as respostas que tens.
Prestei muita atenção à sua escolha de palavras. Não posso e não o farei
eram coisas muito diferentes. Olhei bem para ele, a sua expressão impávida.
Mas sabia que ele havia escolhido aquelas palavras com todo o cuidado.
— É por isso que não posso viajar entre cortes demoníacas sem um convite?
Porque estou tecnicamente ligada à tua Casa?
Ele assentiu.
— Vais precisar de alguém que te acompanhe pelo reino, já que é perigoso
viajares sozinha, e necessitaríamos de ter uma delegação de cada Casa reunida
na fronteira dos nossos territórios, mas sim. Como minha noiva, aqui veem-te
como a futura corregente da Casa Ira. Por isso, seria considerado um ato de
agressão se aparecesses noutra corte sem aviso prévio ou autorização.
— E o contrato que assinei com a Casa Orgulho?
— Se completarmos o nosso matrimónio, ficará nulo e sem efeito.
— E se não o fizermos? E os assassínios das bruxas? Ainda estão a
acontecer?
— Não. Já não.
— Como é que isso é possível? Toda a tua missão girava em torno de
encontrares uma noiva para o diabo. A menos que não tenha sido isso que
realmente aconteceu...
O Ira parecia querer dizer mais, mas ou não podia ou não queria. O seu
silêncio cimentou a minha preocupação anterior de que os assassínios não
tinham nada que ver com a necessidade de o diabo encontrar uma noiva para
quebrar a sua maldição. O que significava que as bruxas haviam sido mortas por
alguma razão que eu ainda não desvendara. A minha irritação encontrou a
minha raiva enquanto olhava para o príncipe dos segredos.
— Se escolheres não fazer nada — disse ele finalmente, quebrando o silêncio
—, o assunto acabará por ser remetido para o Templo do Destino. Um conselho
de três reunir-se-á para deliberar sobre o assunto. Esse caminho é
desaconselhável, mas, ainda assim, a escolha permanece tua.
— Maravilhoso. O que fará o conselho? Decidir se me caso contigo ou com
outra pessoa?
— Decidirão o destino de todos nós.
Lamentei não ter aceitado a bebida que ele me oferecera antes. Girei a
cabeça, tentando aliviar a tensão crescente. Havia em mim demasiadas emoções
a lutar para se afirmarem naquele momento. O Ira aproximou-se de mim e
pousou-me o copo na mão, e depois começou a andar às voltas na sala.
— Como sabias que eu queria a bebida? Consegues sentir as minhas
emoções com toda essa clareza ou é um bónus adicional do nosso noivado? Ou
talvez da Marca. É difícil registar todos os teus truques.
— Olhaste para o copo, Emilia. Limitei-me a ler a tua linguagem corporal.
Observei-o enquanto andava, a minha mente a rodopiar a cada volta que ele
dava pela sala. Todas as suas ações começavam a fazer sentido. Ele não me
deixara morrer aquando dos elementos porque eu era a sua futura esposa. Era
também a razão pela qual ele ficara comigo no Corredor do Pecado, apesar de o
Anir ter dito que não o devia ter feito. Veio-me à memória outra recordação. Em
Palermo, o Anir mencionara algo sobre completar o vínculo matrimonial e
assegurar a sua Casa, algo sobre obter o poder por inteiro. Quando ele viera
buscar-me à caverna, detetara-lhe uma mudança no poder. Parecera-me infinito.
Mais forte.
O Ira até podia nutrir alguns sentimentos ou atração física por mim, mas,
dada a sua natureza, perguntei-me se havia agido em parte por autopreservação.
— Os teus súbditos sabem?
— Sim. Todo o reino está ciente disso.
O que explicava o porquê de ter tornado o Lord Makaden um exemplo tão
público. O nobre não se limitara a desobedecer a uma ordem real; desafiara o
Ira e insultara a sua futura esposa. E o mesmo se podia dizer do oficial sobre
quem ele havia derrubado a montanha; ele ameaçara matar a princesa da Casa
Ira. Se algum deles me tivesse feito mal, de certa forma, isso teria afetado o
poder do Ira. E eu conhecia muito bem a intensidade com que os príncipes do
Inferno cobiçavam o poder.
O suficiente para se unirem a alguém de quem poderiam desfrutar entre os
lençóis, mas a quem nunca iriam amar verdadeiramente. Por toda a eternidade.
Uma união adequada quanto bastasse.
Aquela escolha de palavras incomodava-me. Ele tampouco negara que havia
outra pessoa na sua vida. Alguém que ele escolhera antes de eu destruir o seu
mundo.
— Esta noite convidei-te para a minha cama. — A minha voz era baixa,
mas não meiga. O Ira deixou de andar e o seu olhar pesado encontrou o meu. Os
meus olhos estudaram-lhe o rosto. — Ter-me-ias contado isto antes de
dormirmos juntos?
— Por muito tentador que fosse, não teria consumado o nosso casamento
esta noite. Há muitas formas de dar e receber prazer que não comprometeriam o
teu livre-arbítrio.
— Estás a dizer-me a verdade ou apenas o que achas que eu quero ouvir?
Ele susteve o meu olhar, o maxilar tenso. A temperatura à nossa volta
desceu alguns graus. Parte de mim esperou que as fundações do castelo
tremessem.
— Que tipo de monstro julgas que sou?
Não tinha resposta para ele. E até ter... Respirei fundo, considerando as
minhas opções.
— Quero que me acompanhes à Casa Inveja de manhã. Podes enviar-lhe
um bilhete para que ele saiba que aceito o seu convite?
Durante um longo momento o Ira não reagiu; parecia não estar certo de me
ter ouvido bem. Olhou para mim com tamanha intensidade que comecei a
preocupar-me que talvez conseguisse ver diretamente o interior da alma,
perfurando carne e osso. Mantive a expressão neutra e forcei-me a pensar em
coisas serenas: colher conchas à beira-mar, rir com a minha irmã e a Claudia,
beber vinho e falar de coisas simples.
Qualquer coisa para evitar ser traída pelas minhas emoções.
Por fim, ele assentiu. Não estava contente, era óbvio pela forma como
ficara tenso quando lhe fizera a pergunta, mas também não estava a tentar
impedir-me ou prender-me.
Eu não era a sua princesa mimada. Por enquanto, as minhas escolhas
continuavam a ser de acordo com a minha vontade.
— Tens a certeza de que é isso que queres? Mesmo depois do que o Inveja
fez?
— Sim. — Pensei no meu próximo pedido. — Também preciso de um kit
de costura.
— Já não precisas de coser a tua própria roupa, Emilia. Uma costureira
pode fazer isso.
— Ainda assim, gostaria de ter um para emergências.
— Muito bem. Tratarei de enviar um para o teu quarto e de dar notícia ao
meu irmão esta noite. É tudo?
— Por agora.
— Vamos. — Ele ofereceu-me a sua mão, a sua voz e expressão suaves o
suficiente para me fazerem sentir desconfiada à medida que me aproximava.
Ignorei a pequena faísca que atravessou o espaço entre nós quando os seus
dedos se fecharam em torno dos meus. Se ele também a sentiu, não o deixou
transparecer. — Acompanhar-te-ei aos teus aposentos para fazeres as malas.
Partiremos para a Casa Inveja ao raiar da manhã.
Capítulo 14

O Ira fez um pequeno e aparentemente inócuo pedido antes de me deixar,


para que eu pudesse fazer as malas para a minha visita. De manhã, pedira que
me entregassem um vestido, um que fosse apropriado para ser recebida por um
príncipe do Inferno. Não obstante quaisquer segundas intenções, e tinha a
certeza de que ele tinha muitas, decidi que conceder-lhe o desejo não faria
grande mal, por isso não demorei a concordar.
Disse a mim mesma que a minha rápida anuência não tinha nada que ver
com o facto de o meu noivo estar no meu quarto privado, sem camisa, perto da
minha cama, como se tivesse sido esculpido da essência da própria tentação. Ele
manteve uma distância segura, quase dolorosa, mas não havia nada que eu
pudesse fazer para mitigar quão consciente estava da sua presença. O espaço
entre nós parecia vibrar, cheio de tensão e antecipação. Não tinha a certeza se
vinha apenas de mim ou se ele também o sentia. Voltara a ser o príncipe
enigmático e cordial, mas tudo o resto era difícil de ler.
Eu não estava muito calma. As minhas emoções ainda estavam ao rubro
após ter descoberto a verdade, e tinha todo o direito de ficar em negação,
aconchegando-me numa sensação de segurança, até que a situação começasse a
fazer sentido. Longe do príncipe.
Aquele brilho de diversão atravessou-lhe, por fim, as feições frias
enquanto eu o conduzia para fora do meu quarto e praticamente lhe batia com a
porta na cara. Encostei a cabeça à parede e expirei. Uma hora antes sentira algo
muito diferente. A ânsia de o levar para a cama.
Apaguei da minha mente a memória da nossa escapadinha romântica.
Recordar a sensação agradável das suas mãos a acariciar e a explorar-me o
corpo não me ajudaria em nada a dar sentido a tudo aquilo.
— Que pesadelo.
Corri para a casa de banho para lavar a cara e vislumbrei a minha imagem
ao espelho, percebendo, de imediato, a sua reação divertida. Os meus olhos
estavam escuros e selvagens, o meu cabelo desgrenhado do nosso prévio
mergulho nos problemas e a pele ruborizada, como se alguma febre se tivesse
apoderado de mim. Encontrava-me numa confusão indomada e louca por dentro
e estava a espalhar-se para o exterior. Não era claramente uma reação ideal ao
casamento, que reforçasse a confiança ou o ego masculino. Mas na verdade o
Ira não tinha falta disso.
O meu olhar tropeçou no meu amuleto, que por alguns segundos me
arrancou dos pensamentos de maridos, esposas e vínculos mágicos
inquebráveis. Dada a reação do Inveja ao Chifre de Hades da última vez, queria
o fio bem longe dele. Recusava-me a correr qualquer risco ou a ser descuidada e
exibi-lo debaixo do seu nariz enquanto estava na casa dele.
Tirei-o e coloquei-o no fundo da gaveta da minha cómoda. De manhã, diria
ao Ira onde o encontrar. Ao fechar a gaveta, reparei em algo que não estava lá
antes: na mesa havia um espelho de mão prateado, um pincel e um pente a
condizer.
Haviam aparecido entre a limpeza do sangue do Lord Makaden e agora.
Admirei a gravura detalhada e maravilhei-me com o trabalho artesanal. Outro
precioso (e atencioso) presente do meu futuro marido. Suspirei. Se o Ira
começasse a cortejar-me, não tinha a certeza se me lembraria de todas as razões
pelas quais não seríamos uma boa combinação. Que eram muitas.
Primeiro, ele era um príncipe do Inferno, um inimigo mortal das bruxas.
Depois, era misterioso e não confiava em mim, tal como eu não confiava nele.
Ele também podia sentir luxúria na minha presença, mas isso não era o mesmo
que amor. Eu queria um companheiro verdadeiro, um semelhante e confidente.
O Ira manteria sempre as suas cartas proverbiais escondidas, e eu não tinha a
certeza se ele alguma vez me daria uma mão. Considerando a ténue confiança
na nossa relação atual, era mais do que provável que eu também nunca o
incluísse nos meus planos.
Removi as caveiras de animais e os ganchos de flores à volta da coroa da
minha cabeça e depois passei o pente pelos meus caracóis soltos, tentando
desesperadamente que a minha pulsação abrandasse. Em vão.
Pousei o pente e voltei para o meu quarto, onde andei tão depressa que por
pouco não suei, demasiado nervosa para tentar dormir. Por muito apelativa que
fosse a ideia de pôr os meus sentimentos de lado, tinha de desenlear um pouco
esta confusão antes de partir para a Casa Inveja.
O Ira era um belo príncipe solteiro e, sem dúvida, muito desejado por todas
as senhoras nobres. Por vezes era um pouco distante e arrogante, mas também
era encantador e sedutor quando queria. Uma vez até se chamara a si próprio
«Sua Alteza Real de Desejo Inegável». E, maldito seja, podia agora ver que era
verdade. Se ele reparasse em alguém, duvidava que essa pessoa conseguisse
resistir às suas atenções românticas durante muito tempo.
Ele abordava tudo de forma estratégica e seria apenas uma questão de tempo
até que o alvo do seu desejo se rendesse alegremente à sua meticulosa sedução.
Era inegável que ele fora um amante generoso nos Baixios do Crescente,
concentrando-se nas minhas necessidades, como se a minha satisfação lhe desse
o derradeiro prazer. De facto, imaginava que antes de eu ter entrado no seu
mundo ele tinha à sua escolha companheiras de cama mais do que dispostas.
Alguns disputariam o seu trono, outros estariam interessados apenas no seu
corpo e no seu poder.
Subitamente deixei de andar depressa quando uma outra coisa me passou
pela cabeça, uma que picava como os espinhos da carapaça de um caranguejo
quando os servíamos na nossa trattoria. Já havia pensado nisso antes, e agora
parecia troçar de mim pelas suas implicações ainda maiores.
O Ira não tinha confessado amor ou afeto por mim, apenas declarara que a
nossa união era adequada quanto bastasse. Apesar de não ter sido a declaração
romântica dos meus sonhos, havia verdade nas suas palavras.
Eu conhecia-o o suficiente para saber que ele nunca me forçaria a nada ou
interferiria com o meu livre-arbítrio, e pelo menos não estaria ligada ao diabo.
Mas não pude deixar de pensar se haveria mais alguém com quem ele preferisse
casar. Antes de o ter invocado e por acidente nos termos tornado noivos, era
possível que houvesse alguém na sua cama e no seu coração.
Alguém em quem ele pudesse estar a pensar naquele preciso momento.
Quando nos conhecemos, ele deixara bem claro o quanto odiava bruxas. Ainda
que os seus sentimentos por mim já não fossem tão frios, ele poderia nunca
ultrapassar isso por completo, não o suficiente para me amar verdadeiramente.
Iria ele manter amantes se completássemos o nosso vínculo matrimonial?
Não apreciei a picadela de desconforto que acompanhou esses pensamentos.
Por muito que tentasse acalmar o meu cérebro, não conseguia parar de
pensar no nosso encontro apaixonado na lagoa e depois no corredor. As suas
mãos no meu corpo, as minhas costas pressionadas contra a parede, a sua língua
a reclamar a minha... Naqueles momentos, ele sentira-se bem.
Mas isso não significava que estivesse. Por uma multiplicidade de razões.
Paixão e luxúria não podam apagar a falta de confiança entre nós ou os segredos
que ambos guardávamos. Uma boa relação era construída sobre uma base sólida
e honesta, e eu nem sequer sabia o seu verdadeiro nome.
Além da possibilidade real de o Ira nunca se permitir amar-me plenamente,
não estava claro para mim se alguma vez permitiria a mim mesma amá-lo
plenamente. Dormir com ele, claro. Casar com ele, talvez. Mas desistir de tudo
o resto e aceitá-lo como ele era, com todos os seus segredos? Não tinha assim
tanta certeza.
— Deusa, ajuda-me. — Aquilo era um desastre.
Estava pronta para um casamento de conveniência com o Orgulho. Mas
apenas porque me daria acesso à sua Casa e a oportunidade de compreender
melhor o que o assassínio da sua mulher poderia ter que ver com o assassínio da
Vittoria. Vincular-me ao Ira... Não tinha a certeza de como isso ajudaria a minha
missão.
Na verdade, só conseguia pensar em mais complicações.
Atirei-me para a cama e invoquei a fonte da minha magia. Respondeu quase
de imediato, feliz por ser usada enquanto estava distraída. Criei um jardim de
rosas douradas flamejantes e fi-las flutuar até ao teto enquanto a minha mente se
voltava para os dois príncipes que ocupavam a maioria dos meus pensamentos.
Não sabia nada sobre o Orgulho, além do facto de ele ser o diabo. Quanto ao
Ira, estava a conhecê-lo um pouco melhor e, quando estava perto dele, por vezes
o meu peito doía um pouco menos. Não apagava as memórias da minha irmã,
ninguém podia fazer isso, mas quando ele estava por perto, encontrava uma
sensação perversa de paz discutindo com ele.
Libertei a magia do meu controlo e as flores de fogo extinguiram-se
lentamente. Observei enquanto as pétalas se transformavam em brasas pretas
que flutuavam até ao chão e se extinguiam antes de tocarem no tapete. Suspirei,
demasiado perturbada para ficar entusiasmada com a mais impressionante
exibição de magia que alguma vez conseguira. Não era o vínculo matrimonial
que me incomodava, era a perceção de que a minha família não conseguira tirar-
me do poço mais profundo da minha dor, mas o príncipe-demónio sim.
Certos dias odiava-o por isso, mas havia uma parte de mim ainda maior que
estava grata pela sua recusa em tolerar que o meu fogo se apagasse. Ele
provocava-me, espicaçava-me e desafiava-me até que eu apenas desejasse
rodear-lhe o pescoço com as mãos e apertar. E era muito melhor estar furiosa do
que tornar-me um fantasma do meu antigo eu devido à tristeza e à dor.
Fora uma noite muito longa e sem dormir, e aquele reino nunca me facilitava
o caminho quando percorria as minhas emoções. Levantei-me duas vezes e fui
até à porta que conduzia ao corredor, a mão a pairar sobre a maçaneta, mas
depois forcei-me a cair em mim e a voltar para a cama.
Estava ali para descobrir a verdade sobre a minha irmã gémea. Quanto mais
pensava na Vittoria, mais fácil era distanciar-me desses outros desejos. E
quando esses pensamentos não eram suficientes, continuava a mergulhar na
fonte, criando uma variedade de flores flamejantes de vários tamanhos.
Pratiquei extinguir algumas flores enquanto aumentava a intensidade das
chamas noutras.
Quando o vestido chegou pouco antes do amanhecer, juntamente com o
anel de ramos de oliveira que o Ira me oferecera no mundo mortal, abri o
embrulho de olhos avermelhados, mas contente. Era de renda preta, com
mangas compridas e apertadas e uma saia até ao chão, mas não era muito
modesto. Tinham cortado as laterais logo abaixo dos meus seios até à cintura.
Estes cortes escandalosos foram preenchidos com desenhos metálicos
dourados que me lembravam as videiras em flor. Também se viam serpentes a
contorcerem-se entre a flora.
Tentação era o nome que o vestido deveria ter, se é que se podiam dar
nomes a peças de roupa.
Agora, ao entrarmos na antecâmara escura da sala do trono do Inveja, no
meio de um mar de nobres à espera, vestidos com sedas multicoloridas e
veludos verde-escuros, não passou despercebido a ninguém que o Ira havia
escolhido a minha roupa com um propósito importante.
O seu fato perfeitamente à medida era a versão masculina do meu vestido.
Casaco preto, colete preto e dourado com o mesmo padrão de flores e serpentes,
camisa preta e calças a condizer. Nos seus nós dos dedos brilhavam vários anéis
que se assemelhavam a armas em vez de meros ornamentos. A sua coroa era
feita de folhas de louro douradas entrelaçadas com brilhantes serpentes de
ébano.
Não usava tiara ou diadema, mas o Ira vestira-me com as cores da sua
casa: preto e dourado. Era a sua maneira de mostrar à corte onde eu realmente
pertencia. A seu lado.
A julgar pelos sussurros e olhares curiosos que continuavam a lançar-nos
depois de o arauto se ter apressado a anunciar-nos, o plano do Ira tinha
funcionado.
Para dizer a verdade, apercebera-me do seu estratagema no instante em que
olhara para o vestido. O meu príncipe não era tão subtil como eu havia
imaginado. Ou talvez a subtileza não fosse de todo o seu objetivo. A última vez
que ele vira o Inveja, o seu irmão havia-o esventrado. Talvez o seu gesto de
posse tivesse mais que ver com alguma rixa privada entre eles.
Embora também pudesse ser que fosse a forma de o Ira se certificar de que
qualquer membro daquela corte pensaria duas vezes antes de me atacar. Estava
a proteger o seu potencial aumento de poder e a irritar o irmão. Não tinha
dúvidas de que também havia um profundo sentido de cavalheirismo em jogo.
O Ira não queria que nada de mal me acontecesse. Eu sabia que essa era a
verdadeira motivação para as suas ações, mais do que qualquer outra coisa.
Fora por isso que ele me enfiara no vestido que proclamava que eu fazia tanto
parte da sua família real como as nossas tatuagens mágicas e a sua Marca real.
Ele estava a estender a sua proteção, e apenas um tolo a recusaria. Posso ter-
me comportado como uma tola no passado, mas, graças à deusa, estava a
aprender depressa.
O arauto acenou com a cabeça a dois guardas posicionados nas portas duplas
e depois bateu no chão com um bastão encimado por uma esmeralda. As portas
abriram-se e permitiram-me o meu primeiro vislumbre da corte real do Inveja.
O chão de mármore verde-escuro estendia-se ao longo da sala tipo catedral, com
filas de colunas a condizer em ambos os lados de um longo corredor. Havia
aglomerados de membros da realeza elegantemente vestidos por todo o espaço,
com a sua atenção fixa no arauto.
E nas duas pessoas de pé atrás dele, à espera de serem apresentadas.
O Ira não lhes deu atenção, apesar de suspeitar que já havia achado as saídas
e verificado a localização dos guardas. Naquele momento, o general de guerra
estava escondido debaixo do príncipe gélido. Ele libertava arrogância, como se
tivesse esperado o escrutínio desta corte e não se deixasse surpreender por isso.
Olhei para lá da multidão, ignorando os seus olhares, até que a minha
atenção foi atraída para o estrado. O Príncipe Inveja encontrava-se no seu trono,
a sua expressão era de completo desinteresse. Como se houvesse uma centena
de outros lugares mais interessantes onde preferia estar e uma centena de outras
pessoas com quem preferia estar a socializar. Tinha de ser uma encenação.
Certamente que havia pressentido o irmão. E a onda de mal-estar que se
espalhava pela divisão.
Após uma estranha pausa para o efeito mais dramático possível, a voz do
arauto perfurou o silêncio:
— Sua Alteza Real, o Príncipe Ira da Casa Ira, General de Guerra e um dos
Sete, e Lady Emilia di Carlo da Casa Ira.
Não pensei que fosse possível que houvesse tanto silêncio na sala, mas
aconteceu. Os murmúrios cessaram. Os pés em movimento ficaram imóveis. Foi
como se toda a corte se tivesse transformado em pedra. Exceto o seu príncipe.
No momento em que fomos anunciados, o Inveja endireitou-se. Aquela
expressão indiferente foi substituída por um interesse manhoso enquanto nos
movíamos lentamente pelo corredor. Estudei-o tão atentamente como ele nos
estudou a nós.
Usava um casaco de veludo da cor de uma floresta sempre verdejante com
uma coroa de prata incrustada de joias. O seu cabelo preto estava diferente da
última vez que o vira. Mais curto dos lados e um pouco mais comprido em
cima. O novo estilo realçava os traços fortes e os ângulos do seu rosto, aquelas
maçãs do rosto suficientemente afiadas para esculpir alguns corações. Os seus
pelos faciais também haviam desaparecido na sua maioria, à exceção de uma
ligeira sombra que apenas serviu para realçar o seu charme austero.
Se eu não soubesse que tipo de monstro impiedoso espreitava por baixo
daquela pele, ter-me-ia sentido atraída por aquelas características fascinantes.
Tentei não deixar que o mal-estar se manifestasse quando os seus olhos
anormalmente verdes se despregaram do irmão e me examinaram o rosto. O
Inveja raptara a minha família e depois magoara o Ira na sua perseguição pelo
Chifre de Hades. Não teria de gostar ou confiar nele durante esta visita.
Só precisava de o usar em meu proveito.
— Irmão. Vejo que trouxeste a tua bruxa das sombras. — Mais uma vez, a
sua expressão era de aborrecimento, embora eu pudesse jurar que os seus lábios
se curvavam ligeiramente nos cantos enquanto o Ira ficava tenso a meu lado. —
Eu não sabia que gostavas de partilhar. Mas vestiste-a da forma mais atrativa
possível, reconheço-to. Toda aquela pele implora para ser venerada. Já está na
hora de me dedicar à religião, não achas? Mordi a língua só porque precisava
muito de obter informações. — Os teus modos parecem ter desaparecido
juntamente com o comprimento do teu cabelo. — O Ira apertou-me levemente a
mão. — A Lady Emilia teve a gentileza de aceitar o teu convite. Eu tê-la-ia
aconselhado a queimá-lo e a enviar-te as cinzas. Juntamente com uma pilha
fumegante de merda de cão infernal.
— Sim, bem, as gentilezas nunca foram o teu forte. Deixa a senhora e sai.
— Acompanhá-la-ei aos seus aposentos antes de partir.
— Não.
Um sorriso lento e ameaçador atravessou a cara do Ira.
— Não foi um pedido. Acompanhá-la-ei até aos seus aposentos. Depois
partirei.
A tensão desceu como um exército entre os dois irmãos, em posição e
pronto para atacar. Não ousei olhar para trás, mas ouvi o barulho das saias a
roçar pelo chão como se os membros da corte estivessem a distanciar-se o mais
possível entre eles e os dois membros da realeza.
Perguntei-me com que frequência lutariam e se usariam magia, armas ou
ambas.
Nenhum dos príncipes desviou o olhar do outro. Por pouco não revirei os
olhos enquanto eles continuavam a fitar-se mutuamente. Só lhes faltava
desabotoarem as calças para comparar tamanhos.
Por fim, o Inveja inclinou-se para trás, os dedos enluvados tamborilavam
sobre os apoios dos braços do trono. Deslizou o olhar entre mim e o seu irmão,
e aquele meio-sorriso presunçoso regressou.
— Muito bem. Se isso te tirar daqui mais depressa, permiti-lo-ei. — Esticou
o queixo na direção de um criado de cabelo prateado que esperava por perto. O
demónio avançou imediatamente, ansioso por agradar ao seu príncipe. —
Mostra ao meu irmão e ao seu brinquedo os seus aposentos privados. Se ele não
se for embora no espaço de um quarto de hora, recorre à força. A minha
hospitalidade e boa vontade para com a Casa Ira tem os seus limites. Por cada
minuto além do tempo previsto, irei planear algo criativo para fazer à tua pre‐
ciosa feiticeira.
Observei o Ira sorrateiramente pelo canto do olho. Desta vez ele não mordeu
o isco do Inveja. Ofereceu-lhe um ligeiro aceno e depois virou as costas ao
irmão. E rapidamente me apercebi de que esta era, muito possivelmente, a mais
gritante demonstração de desprezo que ele podia oferecer.
A sua ação mostrava que o Inveja era indigno do seu medo. Podia
praticamente ouvir o Príncipe Inveja a ranger os dentes enquanto nos
afastávamos.
Para ser honesta, fiquei surpreendida por ele não ter dado mais luta. O Ira
entrara na corte de outro demónio e ninguém parecia surpreendido com as suas
exigências. Ou pela relativa rapidez com que o seu príncipe lhes acedera. Talvez
a reputação e o papel do Ira enquanto general os fizessem ter cuidado.
O Ira pousou a minha mão no seu braço quando saímos da sala do trono e
seguimos o criado por uma escadaria larga e majestosa.
O castelo do Inveja era principalmente decorado a verde e prateado com
toques de preto e branco. Passámos por cima de azulejos que imitavam um
tabuleiro de xadrez, e sorri para mim mesma enquanto observava o desenho do
chão. Os seus convidados não eram mais do que peças de xadrez movendo-se
ao longo dos corredores elegantemente decorados, destinados a invocar
sentimentos invejosos. Desde os muitos tons de verde até às riquezas em
exposição, tudo jogava a favor do pecado que regia aquela Casa.
Havia estátuas de mármore alinhadas de cada lado do corredor dourado, mas
eu não lhes dei mais do que uma olhadela superficial. Não queria sucumbir
inadvertidamente a sentimentos de inveja pela profusão de tão preciosas obras
de arte. O Ira não ajustara a pressão do seu aperto, mas senti a tensão fluir-lhe
do corpo quanto nos embrenhávamos na fortaleza do seu irmão.
O corredor seguinte dividia-se em duas alas e fomos conduzidos para a da
direita.
O criado parou numa porta perto do fim do corredor e fez uma vénia.
— Os aposentos da senhora. A sua mala já está lá dentro. Precisa de mais
alguma coisa? — O Ira abanou a cabeça. O empregado expirou e voltou a sua
atenção para mim. — Toque o sino se precisar de algo.
Antes que o Ira pudesse assustar o demónio, ofereci-lhe um sorriso caloroso.
— Obrigada.
O criado parou por um instante, depois acenou uma vez com a cabeça e
desapareceu a toda a velocidade pelo corredor que havíamos acabado de
percorrer. O Ira viu-o partir antes de se virar para mim.
— Os empregados não esperam que lhes agradeças por terem feito o seu
trabalho.
— Devíamos ser gratos a todos os que trabalham ou prestam um serviço
que torna as nossas vidas mais confortáveis.
O Ira olhou para mim com a sua expressão impenetrável antes de entrar
nos aposentos que me haviam atribuído. Examinou todos os cantos, recantos e
manchas de pó como se esperasse que alguma criatura infame saltasse para fora
e atacasse.
Ou talvez tenha ficado enjoado com todas aquelas tonalidades de verde e
prata.
Fui atrás dele, tentando evitar que os meus lábios se curvassem para cima
enquanto espreitava por baixo da cama de dossel, depois enquanto abria as
cortinas e as janelas para as testar. Irrompeu pela minha casa de banho, a mão
no punho da sua adaga e a expressão feroz. Príncipe do Inferno ou guarda
pessoal. Era difícil dizer qual das identidades assumia enquanto revistava os
meus aposentos.
Mordi o lábio para não rir quando pegou num jarro, abanou-o um pouco e
aproximou-o do nariz. Duvidava que o Inveja a tivesse envenenado, mas o Ira
não estava disposto a correr riscos.
Apanhou-me a olhar para ele e lançou-me aquele seu olhar feroz.
— Pareço-te engraçado?
— Neste momento? Muito.
Atirou o jarro para o lado e caminhou na minha direção, os seus movimentos
eram lentos e deliberados. Ali estava o predador que ele mal escondia sob toda
aquela roupa extravagante. A sua aparência civilizada era apenas uma máscara,
uma forma de esconder a verdade da sua natureza. O seu lado caçador estava
agora totalmente exposto e tinha um novo alvo na sua mira.
Fui percorrida por um arrepio antes de o meu sorriso desaparecer e dei um
passo atrás. Ele não parou a sua perseguição até que as minhas coxas roçaram a
cama. Depois parou de avançar, dando-me a hipótese de escapar para o outro
lado da cama, mas eu não me mexi. Fiquei onde estava.
Ele deu mais um passo e parou, oferecendo-me a última oportunidade antes
de eliminar por completo a distância entre nós. Podia sentar-me ou ficar de pé.
Sentar-me seria um problema. Ficar de pé era pior. Estávamos demasiado perto.
Mantive a minha posição.
O Ira estava tão perto agora que, a cada respiração, os meus seios
pressionavam contra a dureza do seu peito. Verdade seja dita, sentia tudo menos
medo. Humedeci os lábios e o seu olhar escureceu.
— O que achas agora? — Ele inclinou o seu rosto para baixo e a sua boca
pairou por cima da minha. — Isto ainda a diverte, minha senhora?
A minha pulsação acelerou ainda mais. A julgar pelo seu olhar ardente, ele
sabia exatamente como eu me sentia naquele momento. Inspirei profundamente
para me acalmar e expirei muito devagar.
— Se eu decidir voltar, preciso de enviar um pedido para a tua Casa?
Um músculo do seu maxilar estremeceu, indicando que percebera a minha
escolha de palavras e não ficara agradado com a possibilidade de eu não voltar.
Em vez de discutir ou de fazer algum comentário arrogante, deu um passo atrás
e pegou-me na mão, virando-a cuidadosamente. Ergueu a minha palma até aos
seus lábios e depositou-lhe um beijo terno, fechando, de seguida, os meus
dedos, como se me tivesse dado um presente. O calor subiu-me pelo braço,
aqueceu-me o sangue. O meu corpo vibrou com a necessidade. A sua ternura
inesperada não ajudou a que as coisas entre nós ficassem menos turvas.
— A minha casa é a tua casa, Emilia. Não precisas de convite. Quando
decidires regressar, enviar-te-ei uma escolta. — Fez um gesto para a cama. —
Senta-te. Tenho de te dar uma coisa.
O meu olhar disparou para a boca dele e apressei-me a desviá-lo, lutando
contra a magia pecaminosa do reino, o nosso persistente vínculo conjugal, e a
atração geral do Ira.
Este não era o momento para pensar em beijá-lo.
Ele não disse nada, nem sorriu, mas quase consegui sentir o seu prazer
enquanto tentava controlar as minhas emoções. Decidi que não era provável que
ele me possuísse ali, por isso sentei-me na borda do colchão.
O Ira pôs-se de joelhos muito lentamente, depois levantou o meu pé esquerdo
e assentou-o na sua coxa. Tentei afastá-lo, mas ele não me deixou. Ambos
sabíamos que eu poderia sair da sua pressão se realmente quisesse, por isso
fiquei quieta.
— Se decidirmos consumar o nosso casamento, não será na casa do meu
irmão, nem por breves instantes. Tu mereces mais do que isso. — Ele esperou
que eu relaxasse, como se isso fosse possível depois daquela declaração, e a
seguir começou a puxar-me a saia para cima. Deteve-se perto da barriga da
perna, o seu olhar fixo no meu. — Confia em mim.
— Diz o príncipe das mentiras.
Ele levou o insulto com calma. Pensei na sua tatuagem, como, para ele, as
ações eram mais valiosas do que as palavras. A confiança era algo que tinha de
ser conquistado, mas para que tal existisse, eu teria de lhe dar uma
oportunidade. Um de nós teria de dar esse primeiro passo.
Indiquei-lhe que continuasse, mas, por um instante, ele pareceu incapaz de
prosseguir, antes que o feitiço fosse quebrado. O Ira agarrou-me nas saias e
levantou-as acima dos meus joelhos, parando apenas quando estavam a meio da
coxa.
Nem por uma vez desviou a sua atenção do meu rosto, nem permitiu que a
sua pele nua roçasse na minha. Também se certificou de que apenas a minha
perna esquerda ficava exposta.
— Toma. — Apontou para a minha saia com o queixo. — Segura-a assim.
Agarrei no tecido e observei enquanto ele puxava um invólucro de cabedal
do interior do seu fato. Retirou uma adaga muito fina e ergueu-a para que eu a
inspecionasse. No punho, havia flores silvestres entalhadas e a lâmina prateada
brilhava o suficiente para refletir o meu espanto.
— É espetacular.
— Será suficiente por agora. — Voltou a enfiar a adaga na bainha e passou a
correia de cabedal à volta da minha coxa antes de prender a fivela. Fez deslizar
um dedo por baixo da correia e olhou para cima. — Demasiado apertado?
— Não, está perfeito.
— Levanta-te e anda para teres a certeza. — Deu um rápido passo atrás e
desviou o olhar enquanto eu ajustava a minha saia e me levantava. Andei ao
redor do quarto e dei uma voltinha.
— Confortável?
— Sim. Obrigada. Como é que sabias que eu era canhota?
O Ira olhou para a arma agora oculta.
— Usas a mão esquerda quando cortas pão ou bebes vinho. — Sem me dar
hipótese de responder, acrescentou. — Quando quiseres ir para casa, envia uma
missiva. Eu voltarei por ti.
— Eu...
Não tinha a certeza do que dizer. Se voltasse, não sabia se isso seria um
sinal de que aceitava o nosso casamento. Havia uma atração inegável entre nós,
mas esse fogo poderia ser, em grande parte, o resultado da magia a tentar tornar-
nos, literal e figurativamente, num só. Não sabia se esse desejo continuaria a
arder tão intensamente se nos submetêssemos.
E tinha outros planos para a minha vida. Como voltar para a minha família.
Escolher o Ira significaria que a porta da minha antiga vida permaneceria
fechada para sempre. Poderia visitar a minha família ocasionalmente, mas o
meu mundo ficaria ainda mais fraturado do que já estava. Não acreditava que o
amor verdadeiro devesse roubar a vida de uma pessoa, apenas melhorá-la.
— É melhor começares a instalar-te.
O príncipe-demónio manteve uma expressão perfeitamente cordial, mas
detetei-lhe um qualquer brilho no olhar que ele não foi capaz de esconder
depressa o suficiente. Antes que pudesse dizer adeus, ele desapareceu num raio
de luz preta e fumo, deixando-me sozinha com o destino que havia escolhido.
E com o meu novo plano.
Capítulo 15

Não tive muito tempo para me sentar e pensar na minha decisão, pois pouco
depois de o Ira partir um criado chegou com uma caixa de roupa e um bilhete do
seu mestre. Dali a menos de uma hora jantaria com o príncipe daquela corte nos
seus aposentos privados. Ao que tudo indicava, o Inveja não queria uma plateia
para o nosso encontro.
Ou talvez não quisesse partilhar a sua última «curiosidade», como dissera
certa vez.
Senti os nervos a zumbirem-me no estômago como um enxame de abelhas. O
Inveja era implacável, mas sentia-me bastante confiante de que não me
magoaria para já. Não enquanto permanecesse neste reino e ele estivesse sujeito
a começar uma guerra com a Casa Ira. Estar associada ao Ira tinha certas
vantagens políticas, era inegável. Eu já não era apenas uma bruxa sem um
verdadeira corte demoníaca para me proteger. O Inveja teria de pensar longa e
profundamente antes de me apunhalar pelas costas.
No entanto, ter essa consciência não aliviava todas as minhas preocupações.
Era difícil pôr de lado a noite em que ele fizera os meus pais reféns e
controlara a nossa casa. Ainda era difícil acreditar que a Nonna o havia banido
para o submundo usando magia que eu não sabia que ela possuía. Aquele
vórtice giratório fora uma das coisas mais estranhas que eu alguma vez vira.
Afastei essas memórias e concentrei-me naquele tempo e lugar. Lembrei-me
do que o Ira me havia dito sobre vencedores e vítimas. Naquela noite, eu seria a
vencedora. Estava lá para obter informações.
E faria tudo o que estivesse ao meu alcance para ter sucesso. Se tivesse de
usar um traje à escolha do meu inimigo, que assim fosse. Era um preço
extremamente pequeno a pagar. Usaria o seu estúpido vestido e pestanejaria,
sempre a contar os segundos até conseguir o que realmente pretendia.
— Vamos ver que vestido escolheste, Príncipe dos Ciúmes.
Abri a caixa e revirei os olhos. O vestido era lindo, de um veludo verde-
escuro o suficiente para ser quase confundido com preto, mangas compridas,
um corpete apertado com um decote que se abria quase até ao umbigo e saias
esvoaçantes.
Uma única esmeralda do tamanho de um ovo estava presa a uma corrente
de prata brilhante. O mais provável era que o fio escandalosamente opulento
fosse uma bela arma que o Inveja desejava que eu usasse contra o seu irmão.
Imaginei a expressão do Ira a contrair-se quando visse o presente da Casa Inveja
a reluzir entre os meus seios.
Ao que parecia, os concursos de mijo não eram um passatempo exclusivo
para os mortais idiotas.
Considerei manter o meu vestido atual por despeito, mas depois pensei que
o Inveja poderia estar mais inclinado a partilhar informações se não tivesse de
escarnecer do traje ofensivo da Casa Ira. E também não tinha qualquer desejo
de me baixar ao seu nível de pretensão real ridícula.
Depois de me vestir e arregaçar as mangas para revelar os meus
antebraços, apliquei um pouco de pó nas maçãs do rosto e lábios. Peguei no fio.
A pedra preciosa era perfeita, e sem dúvida que faria a inveja de quem a visse.
Acabava de prendê-lo à volta do pescoço quando um criado entrou no meu
quarto.
— Se estiver pronta, acompanhá-la-ei ao jantar, Lady Emilia.
Esperara ter alguns momentos a sós para praticar a minha magia, para o
caso de as coisas correrem terrivelmente mal, mas mesmo algumas horas não
seriam suficientes para ultrapassar os anos de treino que me faltavam. Sorri para
o criado.
— Por favor, vá à frente.
Ao chegar à porta, vi o meu reflexo num espelho demasiado grande. Parecia
pronta para lutar da forma mais elegante e feroz possível. Estava a tornar-me
uma verdadeira princesa do Inferno.
Que a deusa ajude os demónios.
Dirigimo-nos para o fim do corredor oposto ao meu quarto. Como seria de
esperar, o Inveja alojara-me na ala real. Era melhor manter os inimigos por
perto e uma futura cunhada ainda mais. Perguntei-me se essa seria uma das
razões por detrás do estado de espírito do Ira. Era claro que os irmãos gostavam
de se provocar com muita frequência. No entanto, teriam de encontrar outra
coisa por que lutar. Vínculo mágico ou não, eu não pertencia a ninguém senão a
mim mesma.
Um guarda estoico baixou a cabeça, depois recuou e abriu a porta. Uma
divisão enorme estendeu-se à minha frente, na sua maioria camuflada pela
escuridão. Era para me perturbar.
Mas eu tinha pouco a temer nas sombras. Em breve, fariam a minha
vontade.
Entrei e detive-me para fazer uma avaliação completa da sala enquanto a
porta se fechava atrás de mim. Não era exatamente um estúdio nem uma sala de
jantar formal. Se estivéssemos no mundo mortal, seria semelhante a um
daqueles clubes de cavalheiros frequentemente retratados nos meus romances
favoritos.
Havia uma mesa circular com duas cadeiras posicionadas perto de uma
parede com janelas que oferecia um suave toque de luz. As velas num
impressionante candelabro prateado sobre a mesa estavam acesas e alguns
castiçais nos cantos mais afastados também acrescentavam um pouco de brilho.
A maior parte da sala estava nas sombras, incluindo a porta onde me
encontrava. Olhei para cima. O teto estava adornado com um fresco: criaturas
aladas sobre nuvens, algumas luminosas, algumas atormentadas.
Deixei que o meu olhar vagueasse pela sala e detive-o sobre a figura
sombria do príncipe. O Inveja estava sentado numa enorme cadeira de veludo,
perto de um canto escuro, um copo de líquido âmbar numa mão. Uma das suas
longas pernas estava levantada e o seu tornozelo repousava sobre o outro joelho.
Ele não poderia parecer mais confortável ou relaxado se tentasse. Ainda que a
força com que agarrava o copo me dissesse que não estava tão à vontade como
gostaria que eu pensasse.
Tomou um longo gole da sua bebida, escondendo o olhar, mas senti-o a
olhar-me de cima a baixo.
— Está claro que sabes como criar problemas, bicho.
Deixei-me ficar nas sombras.
— Posso ter garras, Vossa Alteza, mas garanto que não sou o bicho de
ninguém. Muito menos o vosso.
O Inveja inclinou-se para a frente até ser iluminado pelas velas e, de alguma
forma, mesmo quando se sentou, conseguiu empertigar o seu majestoso nariz. A
beleza severa das suas feições foi adornada com um franzido que demonstrava
não estar nada impressionado.
— Graças aos demónios por isso. Eu não partilho o que é meu.
— Reter amantes à força não é algo de que te devas gabar.
— O poder de decisão é atraente, a obrigação não é. O poder nem sempre faz
a coisa certa. A menos que a minha companheira de cama peça com jeitinho. —
Ele olhou para mim e eu perguntei-me quão bem ele conseguia ver na
escuridão. — Presumo que tenhas aceitado o meu convite para jogar com
emoções invejosas.
— Não te apraz inspirar inveja?
— Vir aqui para fazer ciúmes ao meu irmão não faz nada por mim. — Pousou
o copo numa mesa baixa e tirou um pedaço de cotão imaginário do fato.
Apanhei um vislumbre das esmeraldas da sua adaga a espreitar-lhe do casaco e
resisti à súbita vontade de a usar contra ele. Ele voltou a levantar o copo e
terminou a sua bebida. — Usar alguém é uma coisa muito grosseira sob
qualquer ponto de vista.
Se era nisso que ele acreditava, tanto melhor. Entrei na luz e vi o seu olhar
recair sobre a tatuagem metálica no meu antebraço. Divertira-o a primeira vez
que a vira. Agora sabia porquê.
— Na noite em que te conheci, sabias do meu noivado com o Ira.
Mencionaste algo sobre teias emaranhadas. Teria sido simpático da tua parte se
tivesses sido menos enigmático. Sobretudo se estivesses à procura de uma
aliança comigo.
— Caso ainda não tenhas reparado, eu não sou simpático. Nem finjo ser. E
mesmo que estivesse atormentado pela consciência, teria odiado estragar a
diversão. — Os lábios do Inveja contraíram-se com crueldade quando reparou
no meu fio. — É muito mais interessante sentar-me e ver como as coisas
correm. Alguns de nós até apostaram no resultado. Não consigo dizer o quanto
ganhei com o Ganância. Mas ele agora deve-me uma, e tenho a certeza de que
podes imaginar quão desagradado está com a situação.
Avancei pela sala com determinação. Havia um aparador com um copo
extra à minha espera e, sem esperar por um convite, verti dois dedos de líquido
âmbar e sentei-me na cadeira de veludo ao lado da do Inveja. Ele semicerrou os
olhos, mas não me admoestou pela minha indelicadeza. Ou pela falta de decoro
ou respeito pela sua alta patente.
— Querias que eu me juntasse à tua Casa, mesmo sabendo do laço
conjugal que partilhava com o teu irmão. — Tomei um pequeno gole,
antecipando o ardor. — Deve ser solitário. Ter de jogar tantos jogos sozinho.
— O que quer que estejas a tentar fazer, sugiro-te que pares enquanto ainda
me sinto hospitaleiro.
O seu tom era gélido, mas não foi capaz de esconder o clarão de dor nos
seus olhos a tempo. O meu primeiro tiro acertara no alvo. Rejeitei qualquer
sentimento de culpa. O seu instante de dor não era nada quando comparado com
o caráter definitivo do assassínio brutal da minha irmã.
— Quem diria. — Sorri por cima da bebida. — E eu que pensava que
ainda não tinha tido a oportunidade de testemunhar as tuas boas maneiras.
Primeiro, envias o teu cão de colo vampírico ameaçar-me, depois fazes a minha
família refém. E não nos podemos esquecer daquele pequeno incidente
desagradável nos túneis com o teu exército de demónios invisíveis e, claro, o
esventramento do Ira.
— Para alguém que está aqui em vez de estar com o seu noivo, pareces
realmente bastante chateada com isso. Pensei que o considerarias um favor.
— Perfurares-te com a tua própria adaga teria sido o maior dos favores.
Tal como quando o Ira estava de mau humor, a temperatura à nossa volta
pareceu disparar. Já sentira o horror gelado do poder e da influência do Inveja, o
ciúme frio que corroía todo o sentido de moralidade. As primeiras lambidelas
do seu poder roçaram-me a espinha, mas não me apanharam desprevenida.
Levantei uma mão, como que para remover uma madeixa de cabelo do
rosto, e passei os dedos por cima da Marca do Ira com subtileza. Isso quebrou a
influência do príncipe antes de poder criar raízes dentro de mim, como eu
esperava que acontecesse.
O Inveja mandou-se para trás e susteve o meu olhar. Um sorriso lento
espalhou-se-lhe no rosto, entorpecendo a cintilação da raiva.
— Estás cheia de surpresas esta noite. E eu que cheguei a temer que o jantar
fosse aborrecido.
Mantive a expressão calma, mas o meu coração estava acelerado. Se ele
tentasse usar o seu poder novamente, não tinha a certeza se o meu pequeno
truque funcionaria uma segunda vez. Ele pareceu pressenti-lo e considerou o
seu próximo passo. Fez-me lembrar um gato a tentar decidir se o pássaro a voar
à sua volta valia a pena o esforço de deixar o seu lugar ao sol.
O olhar do Inveja caiu sobre a adaga da sua Casa.
Removeu-a da sua bainha e passou um dedo ao longo da lâmina. A minha
mente não tinha dúvidas de que ele estava a fantasiar formas criativas de a usar
contra mim. Movi a mão ligeiramente em direção à minha própria arma, mas
não levantei a saia para a revelar. O que quer que acontecesse a seguir, estaria
pronta.
Ficámos ali sentados durante um tempo desconfortavelmente longo, tendo
como único som o tiquetaque de um relógio algures na sala. O Inveja acariciou
o metal e eu podia jurar que a lâmina quase ronronara. Assim que fui assaltada
pela certeza de que estava prestes a saltar, uma pancada soou na porta,
fraturando a tensão assassina entre nós. O Inveja devolveu a adaga ao seu lugar.
Por ordem sua, os criados entraram carregando bandejas de prata e pratos de
comida que pousaram na mesa circular perto do fim da sala.
O príncipe exibiu a sua impressionante estatura ao levantar-se e ofereceu-me
o seu braço.
— Esta noite, partamos o pão em vez de ossos, Bruxa das Sombras.
Levantei-me, ignorando o seu braço estendido. Não éramos amigos e não pensei
que ele fosse apreciar o meu fingimento quanto a isso. Tudo naquela noite me
parecia um teste.
Fui para a mesa e sentei-me enquanto uma cadeira era puxada para mim. O
Inveja não me pareceu insultado, apenas divertido, já que se sentou à minha
frente. Duvidava que muitos dos seus súbditos alguma vez o tentassem irritar.
Tal como com o Ira, era possível que a minha recusa em sorrir com afeto ao seu
enorme poder pudesse intrigá-lo o suficiente para me tolerar. A mim e às
minhas questões. Até se cansar delas. Deveria avançar com cautela ao pisar a
linha ténue que separava um leve desafio do ir longe demais.
— In vino veritas. — O Inveja dispensou os criados com um aceno da mão e
ele próprio encheu as nossas taças. — No vinho há verdade. Os mortais
impressionam de vez em quando. Embora suponha que sejam particularmente
suscetíveis no que diz respeito aos seus próprios vícios. Oferece vinho a um
homem e ele entoará versos sobre o seu sabor. Provavelmente até o irá comparar
com uma mulher com quem já dormiu. — O seu olhar deslizou para o meu. —
Ou com quem deseja fazê-lo.
Mordi a língua. Não acreditava que ele quisesse dormir comigo. E, se
quisesse, a sua única motivação seria usá-lo contra o seu irmão.
— Porque odeias os mortais?
— As suposições são a morte da verdade. — Ele tomou um gole generoso do
seu vinho. — Aconselho-te a não te aventurares por esse caminho. —
Gesticulou para o meu copo. — Já tentaste usar a tua magia na comida ou na
bebida?
— Não. Pelos sete infernos, porque haveria de fazer tal coisa?
— Oito. E pergunto porque podes encantar o vinho para te conceder a
verdade. Tal como com um feitiço da verdade. Quem o beber, ficará
subordinado à sua influência.
— E esperas que acredite que me estás a dizer isso por pura bondade do teu
coração?
— Não sejas tola. Asseguro-te que o mais próximo que chego da fibra moral
é através da ingestão de qualquer fibra que encontre no vinho de framboesa. Tu
queres a verdade e eu também. Porque não ter a certeza de que ambos
conseguimos o que queremos? Sem jogos.
Semicerrei os olhos.
— Deves querer algo verdadeiramente se estás disposto a sacrificar essa
informação ao teu inimigo.
— Esta noite podemos ser amigos. — Fez uma careta à palavra amigos,
como se a própria ideia o ferisse. Levantei uma sobrancelha e ele fingiu ignorar.
— Ou amantes.
Esperei para o sentir, para sentir a magia daquele mundo a seduzir-me com
pensamentos de camas e corpos e paixão. Como havia acontecido quase sempre
que a ideia de passar a noite com o Ira me passava pela cabeça. O Inveja era
bonito e o seu corpo ágil, mas com músculos fortes. Imaginei que seria solícito
com qualquer amante, mesmo uma por quem não tivesse particular interesse.
Nem que fosse apenas para as deixar furiosas de inveja quando as trocasse por
outra companheira. Não senti nenhum impulso romântico além do desejo
esmagador de lhe dar um pontapé.
— Se eu concordasse, levar-me-ias mesmo para a cama.
— Numa guerra, há sempre que fazer sacrifícios, querida. Eu faria o que
fosse necessário. Embora dificilmente fosse um sacrifício. A conversa de
almofada já é suficientemente agradável. Desvendam-se muitos segredos após
atos tão íntimos. — O Inveja contemplou o seu vinho com uma expressão
distante. — Agora sê amável e encanta o nosso vinho.
Hesitei. Queria respostas honestas às minhas perguntas, mas não tinha a
certeza se estava pronta para lhe dar o mesmo em troca. O Inveja podia
perguntar qualquer coisa e eu seria forçada a despir a minha máscara.
Alguns riscos valia a pena serem corridos. E outros não passavam de
burrice.
O Inveja inclinou a cabeça para um lado enquanto olhava para mim.
— Proteger a tua verdade vale mais do que descobrir a minha? Talvez seja o
medo que te esteja a prender. Talvez eu te devesse seduzir.
— Não me podeis levar a fazer a vossa vontade, Alteza. É sensato considerar
todos os ângulos antes de me submeter ao interrogatório.
— Poderia forçar-te a dizer-me o que quero, sabes? — O seu tom era leve,
casual. Como se as ameaças lhe saíssem da língua com a mesma naturalidade
que um comentário sobre o clima. Voltei a passar os dedos por cima da Marca,
atraindo a sua atenção para o meu pescoço. — Recorrendo à violência, minha
senhora. O Alexei não é o único membro com presas da minha casa. Se alguém
perder sangue suficiente, creio que os efeitos são bastante semelhantes ao do
vinho da verdade. Com menos prejuízo para mim, naturalmente.
Claro. Recorreria à estratégia de entregar-me aos seus vampiros. Voltei a
pensar na minha irmã. A Vittoria também deve ter feito alguns acordos difíceis.
Afastei-me da mesa e alguém se apressou a puxar a minha cadeira para
trás. Levaria algum tempo a habituar-me a ser tratada como se fosse um
membro mimado da realeza.
Pus-me ao lado do Inveja e tirei-lhe a taça. Sussurrei um feitiço de verdade
sobre ela e depois repeti o processo com as garrafas de reserva e com a minha
própria taça.
O sorriso do Inveja foi positivamente inquietante quando voltei a sentar-
me. Ele ergueu a taça.
— Um brinde a uma noite de sinceridade entre inimigos. Que os nossos
corações sangrem apenas pela perda da nossa dignidade e não por uma adaga
nas costas.
Bebeu tudo num só gole. Levantei as sobrancelhas.
— Isso é necessário?
— De todo. — Voltou a encher a taça e tomou outro grande gole. — Mas
também não dói.
Tomei um gole de vinho, insegura. O sabor era o mesmo. Se não tivesse
sido eu a proferir o feitiço, nunca teria desconfiado de nada. Franzi o sobrolho.
A súbita gargalhada do Inveja arrancou-me dos meus pensamentos.
— Vejo que as bruxas que te criaram guardaram muitos segredos. É
absolutamente delicioso.
— O quê?
— Ver o teu mundo perfeito desmoronar-se.
— És uma pessoa horrível.
— Minha querida, insistes em esquecer-te de que não sou uma pessoa. A
humanidade nunca foi uma das minhas aflições. — Encolheu os ombros e
voltou a beber. — Além disso, disse-o como um elogio. Uma fénix ergue-se das
cinzas por uma razão. O teu mundo tem de ser destruído para que possas voltar
a erguer-te. E irás fazê-lo. Tal como elas sempre temeram que o fizesses.
— Quanto tempo falta até que o feitiço da verdade comece a funcionar?
Ele terminou a sua bebida e não perdeu tempo a servir-se de outra.
— Já está a resultar.
— Gostas de mim?
— Acho-te tolerável. Se tivesses um fim violento, não verteria uma lágrima.
Nem me regozijaria. Prosseguiria como se nunca tivesses existido.
Funguei de uma forma muito pouco feminina e tomei mais um gole.
— Na noite em que a minha nonna te atacou... parecias conhecê-la. Como?
— As maldições são coisas curiosas. — Ele bebeu tudo outra vez e serviu-se
de mais. — Por vezes são como árvores. Ficam enraizadas no local onde são
plantadas. Outras são como flores silvestres. As suas sementes flutuam com as
abelhas e voam com os pássaros. Ficam emaranhadas, crescem e prosperam
longe do local onde foram depositadas pela primeira vez. São como as chaves.
Nem todas as chaves encaixam em todas as fechaduras. Algumas são muito
mais astuciosas.
Esperei que as suas divagações disparatadas se tornassem uma resposta
coerente. Ele apenas olhou para mim.
— Isso não é nem de perto o que eu perguntei. Estás bêbado?
— Bastante. — Aquele foi o primeiro sorriso genuíno que ele alguma vez me
concedeu. Uma covinha surgiu-lhe na face direita. Suavizou-lhe a dureza que
usava como uma armadura. — Mas o que eu disse é verdade. Há coisas que não
posso dizer, independentemente do feitiço que seja usado, porque há poderes
ainda maiores envolvidos. Eu conheço a tua avó. Embora conheça muitos outros
segredos interessantes. Queria saber como conhecera a Nonna, mas pouco podia
fazer para tentar arrancar-lhe informações que ele claramente não podia ou
queria dar.
— Fala-me sobre a maldição, então.
— É uma história tão antiga que apenas poucos conhecem as suas origens. E
até as suas memórias se tornam acobreadas com a idade e a pátina que se forma
sobre elas, entorpecendo o seu brilho até que a sombra do que foi é tudo o que
resta.
— Do que estás a falar?
— De maldições e memórias roubadas. E de desvendar muitas mentiras. —
Encostou-se de repente, quase derrubando a cadeira.
— O meu irmão nunca te vai forçar a casar com ele. Isso vai contra tudo o
que ele representa.
— Não te perguntei sobre o teu irmão.
— Não, mas imagino que estejas curiosa. Ele indicou-te que deseja que
completes a ligação?
Não queria responder, mas o feitiço da verdade atraiu as palavras aos meus
lábios.
— Ele falou comigo sobre isso, mas não indicou qual era a sua preferência.
— Não vou perguntar se o consideraste. Sobretudo porque sabemos a
forma como deve ser aceite. Pelo menos, em parte. — Tentei não parecer
aliviada, mas o Inveja deve ter visto o ligeiro brilho de tranquilidade no meu
rosto. O seu sorriso desdobrou-se num prazer cruel. — Ele pode não te forçar a
casar com ele, mas também não irá recuar para segundo plano como um
cordeirinho manso. Não é esse o seu estilo. Ele fará a sua presença e as suas
intenções conhecidas de todas as Casas reais. Como fez hoje.
Tomei mais um gole do vinho da verdade.
— Porque fazes isso?
— Perdão?
— Semeias sempre sementes de desconfiança entre mim e o teu irmão. —
Não precisei de beber o vinho para fazer a minha próxima pergunta. — Tens
assim tanta inveja dele? Ou apenas cobiças tudo aquilo que não te pertence?
— Nem sempre sou atormentado por pensamentos invejosos. — Os seus
olhos verdes brilharam com uma emoção que não era de troça nem de ciúmes.
— O temperamento do meu irmão fez com que algo importante me fosse tirado.
Espero retribuir o favor um dia. Não é a inveja que me motiva. É a retaliação.
Algo que eu imagino que tu e eu partilhamos, embora duvide que o admitas,
mesmo com o vinho da verdade.
Não o formulara como uma pergunta, por isso o feitiço não me obrigou a
responder.
— Faria tudo para ter a minha irmã de volta. Deves perdoar quaisquer
pecados que se tenham intrometido entre ti e o Ira. A felicidade deve ser a única
coisa que importa.
— Estou-me nas tintas para a felicidade dele. — O Inveja olhou para o seu
vinho, mas não bebeu. — Mas está claro que tu te importas. Mais do que
provavelmente te sentes à vontade para admitir. Estás apaixonada por ele?
Cerrei os dentes e agarrei o copo. Não ajudou. As palavras surgiram.
Concentrei-me na forma como o Inveja havia formulado a pergunta e deixei que
a verdade brotasse dos meus lábios.
— Não, não estou apaixonada por ele. Mas não nego que haja alguma
atração. Ele trouxe-me para este reino, vendeu a minha alma ao irmão e mentiu-
me em relação a ser o meu noivo.
— A senhora protesta demasiado.
— Shakespeare. — Quase revirei os olhos. — Que pomposo e previsível que
o cites. Devo invejar a tua educação agora?
Ele olhou para mim por cima do seu copo, um olhar de interrogação.
— Estranho, não é, que uma camponesa da Sicília tenha um gosto literário
tão refinado. Ou que leia de todo, já agora.
A sua insinuação irritou-me.
— Podemos não ter tido dinheiro e criados, Vossa Alteza, mas sabemos ler e
escrever.
— Suponho que me vais dizer que a tua habilidade se deve aos feitiços que a
tua avó te ensinou. Ou às receitas da tua casinha de comida ou outras tolices do
género.
— O que queres dizer com isso?
— Estou apenas curioso. Sabes o quanto me aprazem as curiosidades. Sorri.
Era a transição perfeita para as minhas próximas perguntas.
— Porque te interessas tanto em colecionar objetos?
— Interesso-me sobretudo por objetos divinos. Bem, isso não é inteiramente
verdade. — Riu-se, como se não acreditasse que a verdade ainda lhe estivesse a
fluir de forma tão espontânea. — Agora só estou interessado num objeto divino,
o Espelho da Lua Tripla.
— O que é isso?
Ele estalou os dedos e apareceu um criado. Sussurrou algo demasiado baixo
para eu ouvir e o lacaio saiu a correr, regressando pouco depois com uma caixa
de vidro com gravuras. Era simples, despretensiosa. Inclinei-me de imediato
sobre a mesa, na esperança de conseguir ver melhor.
— É um espelho dos deuses. Das deusas, devo dizer. — Passou o
indicador pela caixa de vidro, depois esfregou-o no polegar como se estivesse à
procura de pó. — Diz-se que foi imbuído da magia da Donzela, da Mãe e da
Anciã, e pode mostrar o passado, o presente e o futuro a qualquer um que o
solicite. Costumava estar nesta caixa, ou pelo menos foi o que me disseram.
Passado, presente, futuro, encontra. Arrepiei-me. Era quase igual ao que a
caveira enfeitiçada dissera, até à parte da Donzela, Mãe e Anciã.
O Inveja levantou a tampa, revelando uma almofada de veludo cor de
lavanda, com uma fenda na qual um espelho já lá estivera. Tentei o mais que
pude não reagir. Mas o meu coração batia-me desvairado no peito.
Se houvesse um objeto divino que me pudesse mostrar o passado,
conseguiria resolver o assassínio da minha irmã. E saberia de uma vez por todas
se realmente tivera alguma coisa que ver com o diabo a precisar de uma noiva.
Fui tomada por um entusiasmo. Tinha de ser isto o que a caveira queria
que eu encontrasse. Tinha a certeza. Se tivesse o espelho, já não teria de me
preocupar em casar com o Orgulho ou com o Ira ou escolher um lugar em
qualquer uma das suas Casas. Necessitava de encontrar aquele espelho.
— Soa-me a lenda infantil.
— Todas as lendas contêm fragmentos de verdade. — O seu olhar era
distante, contemplativo. — De qualquer forma, diz-se que é necessário o livro
de feitiços da Anciã, a Chave da Tentação e o espelho para ativar a magia da
deusa.
— Deixa-me adivinhar — baixei a voz para um sussurro conspiratório —,
tens tudo menos o espelho.
— Minha querida, acho que está na altura de veres pessoalmente as minhas
curiosidades. — O Inveja levantou-se. — Vamos?
Capítulo 16

O Inveja abriu as portas ornamentadas com um empurrão exagerado e


recuou, agindo de repente como um cavalheiro perfeito, permitindo-me
atravessar primeiro o limiar da sua câmara de curiosidades.
Desconfiando das suas verdadeiras intenções, hesitei por um momento. Não
me pareceu que me tivesse levado para um ninho de vampiros, embora tudo
fosse possível quando se tratava dele.
Lembrando-me da adaga na minha coxa, entrei e detive-me quando vi o que
estava lá dentro.
Não eram vampiros que me esperavam, mas sim gigantes altos e sombrios,
imóveis nas suas posições. A câmara parecia assustadoramente semelhante a
uma imagem mental que eu tivera quando conhecera o Inveja no mundo mortal.
Na altura, havia imaginado humanos congelados em várias poses num tabuleiro
de xadrez macabro. O chão que pisávamos naquele momento não fazia parte de
nenhum jogo, era apenas feito de azulejos de mármore preto e branco. E os
seres congelados eram obras de arte, não mortais aprisionados por um príncipe
sádico do Inferno.
As esculturas brindaram-nos com o silêncio, algumas fundidas em bronze,
outras esculpidas em mármore. Eram assombrosas, magníficas, tão reais que
tive de estender a mão para me certificar de que não eram de carne e osso.
Nunca havia estado num museu, mas já vira ilustrações em livros, e senti-me
incrédula com o tamanho da sua coleção de curiosidades.
— O silêncio deve-se à surpresa ou ao vinho?
Pestanejei e apercebi-me de que ainda não me mexera.
— Tive uma estranha sensação de déjà-vu.
O Inveja analisou a minha expressão, mas limitou-se a encolher os ombros.
— O design é baseado em muitos museus e coleções mortais. Não é de
admirar que estejas familiarizada.
— Eu nunca fui a um museu.
O que era verdade o suficiente para satisfazer o feitiço da verdade. Mas não
conseguia sacudir a sensação desconfortável de lhe ter visto um vislumbre havia
vários meses. Eu nunca estivera naquele reino ou naquela Casa real demoníaca.
Talvez tivesse um talento latente para a clarividência. Segundo a Nonna, não era
invulgar a magia continuar a desenvolver-se ao longo da vida de uma bruxa.
Também fazia sentido que o meu novo uso da fonte desbloqueasse outros dons
mágicos. Talento latente ou não, não era importante. Forcei-me a regressar ao
presente.
A sala era cavernosa o suficiente para que os nossos passos ecoassem
conforme nos movíamos em silêncio até à primeira escultura. Um homem com
um capacete alado, uma bandoleira e nenhuma peça de roupa, de pé com uma
mão estendida, segurando a cabeça decepada de Medusa. Com a outra mão
agarrava uma espada. Algo naquilo me entristeceu.
O Inveja aproximou-se da cena e a sua expressão suavizou-se.
— Perseu e Medusa. Há peças semelhantes na terra dos mortais, mas
nenhuma tão requintada como esta. O escultor captou o seu olhar abatido, a sua
recusa em ser transformado em pedra e amaldiçoado.
— O trabalho artístico é impressionante, mas horrível.
— Nem todas as histórias têm um final feliz, Emilia.
Eu sabia-o. A minha vida dera voltas inesperadas, muitas das quais não
haviam sido as ideais ou para melhor. Todos nós tínhamos ossos, senão
esqueletos cheios de angústia nos nossos armários. De repente, percebi. Olhei
sorrateiramente para o príncipe-demónio. O Inveja estava profundamente
magoado. Perguntei-me quem ou o que lhe havia partido o coração daquela
maneira. Ele reparou que eu o observava e lançou-me um olhar duro. Perguntas
sobre o seu coração partido não seriam bem-vindas. Por qualquer razão, deixei
passar a oportunidade. Nem todos os segredos deviam ser partilhados.
Caminhámos em silêncio para a estátua seguinte. Era magnífica. A minha
favorita, de longe. Um anjo — com um corpo poderoso esculpido da guerra —,
costas arqueadas, asas estendidas e braços dobrados atrás da cabeça, como se
tivesse sido empurrado de uma grande altura e estivesse a amaldiçoar aquele
que o fizera cair no vazio. As penas eram tão detalhadas que não pude deixar de
as acariciar com um dedo.
— O Caído. — O tom do Inveja era calmo e reverente. — Outra peça
magnífica.
Estudei o grande anjo guerreiro. O seu corpo era semelhante ao do Ira. Não
me surpreenderia se o artista se tivesse inspirado nele.
— É suposto ele representar o Ira ou Lúcifer?
— É a minha interpretação do meu irmão amaldiçoado. — O Inveja
contorceu os lábios num sorriso. — Mesmo antes de o diabo perder as suas
preciosas asas. E o mesmo aconteceu com todos nós pouco depois.
— Porque comemorarias um momento desses?
— Para o recordar sempre. — De repente, a sua voz tornou-se tão dura
como a estátua de mármore. Ele abanou a cabeça, a sua expressão mais uma vez
indiferente, como se tivesse reposto a máscara que escorregara por acidente. —
Vem. Há outra sala cheia de objetos que poderás achar mais interessante.
Estávamos a meio da sala seguinte, cheia de quadros, esboços e espelhos
numa variedade de molduras ornamentadas, quando reparei nos púlpitos.
Aproximei-me, atraída por um em particular. Um zumbido estranho e
familiar surgiu dentro de mim. Conhecia aquela sensação. Reconheci-a. Mas
não era bem como me lembrava. Não havia sussurros ou vozes febris a subir e a
descer numa cacofonia de sons. Apenas aquele zumbido subtil. Ouvira-o no
mosteiro, na noite em que encontrara a minha irmã gémea. E outra vez quando
confrontara o Antonio. Na altura não sabia o que era ou o que queria.
Parei no grimório aberto. Estava encerrado numa caixa de vidro, mas soube,
sem precisar de ver a capa, o que era. Era o primeiro livro de feitiços. O livro de
feitiços pessoal de La Prima.
— Como conseguiste isto? — A minha voz soava muito alta na sala mais
pequena. — Eu tinha-o comigo na noite em que eu...
— Na noite em que quase mataste aquele humano bajulador? Girei sobre os
calcanhares, fulminando-o com o olhar.
— Desapareceu nessa noite. Pensei... um demónio Umbra. — Respirei
fundo. — Mandaste um para me espiar, não foi?
— Espiar é uma palavra desagradável. Já para não falar que eu estava a
vigiar o mosteiro. Tu foste uma coincidência. Lugar errado, hora errada. —
Enfiou as mãos nos bolsos e caminhou até ao expositor seguinte. Outro livro
aberto. — Aquilo a que chamas o primeiro livro de feitiços não é um
manuscrito completo. É a terceira parte de um texto maior e mais elaborado. —
Fez sinal com a cabeça para o livro. — A Mãe e a Anciã estão na minha posse;
a Donzela desapareceu. As deusas são seres complicados com magias ainda
mais complicadas. E desafiar uma... — sibilou. — É insensato.
— O primeiro livro de feitiços pertenceu à Primeira Bruxa, não às deusas.
— Minha querida, não sei o que te disseram as bruxas que te criaram, ou
porquê, mas estes livros foram escritos pelas deusas. A tua suposta Primeira
Bruxa roubou o livro dos mortos, o livro de magia do submundo da Anciã. E,
acredita, a Anciã não gostou nada.
Ele falava como se conhecesse as deusas.
— Onde está a Anciã agora? Talvez devesse falar com ela pessoalmente.
— Se a encontrares, dá-lhe cumprimentos meus.
Libertei um suspiro de frustração. Algo naquela história não batia certo. O
Inveja não só estava de posse de um livro de feitiços que podia encantar
caveiras, como praticamente usara a frase que uma delas me murmurara. Tinha
de ser ele o misterioso remetente, mas, sabia a deusa porquê, recusava-se a
admiti-lo.
— Há feitiços de necromancia?
— A Anciã é a deusa do submundo. Os seus feitiços refletem a lua, a noite e
os mortos. Entre outras coisas, como as emoções mais obscuras e violentas. —
Ele estudou-me cuidadosamente. — A Floresta Sangrenta oferece vistas
espetaculares. Fica entre as minhas terras e as do Ganância. Nenhuma Casa
demoníaca a pode reclamar; por isso, não precisas de convite ou escolta para
viajar até lá. O truque, contudo, é conseguir passagem pelos territórios que a
rodeiam.
Desviei a minha atenção do livro de feitiços.
— Porque me estás a dizer isso?
— Porque não diria?
Se estávamos a ser amigáveis, mais valia tentar usá-lo a meu favor.
— Mencionaste algo chamado Chave da Tentação. Faz parte da tua
coleção?
— Temo que não. Embora não por falta de tentativas da minha parte em
adquiri-la. — Ele começou a ir-se embora, mas depois disse por cima do ombro.
— Antes de te retirares para a cama, talvez queiras ler a placa deste quadro.
Acho que é bastante informativa.
— Onde vais?
O Inveja não respondeu. Parecia que o nosso tempo juntos naquela noite
chegara ao fim. Fixei os olhos na direção que o príncipe-demónio tomara muito
depois de ele abandonar a sala. Refleti sobre tudo o que descobrira. O Inveja
estava atrás do Espelho da Lua Tripla e da Chave da Tentação. Dois objetos
que, agora, eu também tinha todo o interesse em conseguir.
Quando tive a certeza de que o Inveja não voltaria, aproximei-me do
quadro que ele mencionara. Era de uma árvore invulgar. Grande, com madeira
nodosa e folhas cor de ébano raiadas de prata. Algo no quadro me fez lembrar o
artista que captara o jardim sazonal do meu quarto na Casa Ira.
As sombras e o cuidado com que o artista executara cada pedaço de casca
de árvore ou folha a cair eram notáveis; era como se conseguisse chegar à
pintura e arrancar uma folha da árvore.
Passei os dedos pela placa de prata e li a inscrição.

Reli a fábula, sem entender o porquê de o Inveja o ter salientado dentre os


cerca de cinquenta quadros que revestiam as paredes daquela sala. Nada daquilo
que um príncipe do Inferno fazia era acidental. Tinha a sensação de que entrara
involuntariamente num dos seus esquemas, mas viraria o seu plano a meu favor.
Guardei a informação e fui atravessando o resto da galeria, parando em
frente de um mapa dos Sete Círculos. Todas as Casas demoníacas estavam
localizadas num pico de montanha, elevando-se acima dos seus territórios. Vi os
Portões do Inferno, o Corredor do Pecado.
Havia um lugar entre a Casa Luxúria e a Casa Gula marcado como Ventos
Violentos. Perguntei-me se seria o som que havíamos ouvido no Corredor do
Pecado.
Continuei a estudá-lo, memorizando o máximo que pude. A Floresta
Sangrenta ficava entre a Casa Ganância e a Casa Inveja. O Rio Negro
atravessava as Casas do Pecado, separando o castelo do Ira de ambos os
territórios do Ganância e do Orgulho. Atrás do castelo do Ganância, o rio
ramificava-se em dois: um que serpenteava pela parte inferior da Casa Ira e
outro que subia ao longo da fronteira norte do Inveja. Tracei a zona principal do
rio até terminar no Lago de Fogo. Do outro lado da maior secção do lago ficava
o castelo do diabo; a Casa Orgulho situava-se ligeiramente a noroeste da Casa
Inveja.
Assim que senti confiança na minha capacidade de me lembrar da maioria
dos pontos de referência e da disposição geral do reino, deixei o mapa para trás
e deambulei pela galeria. Um dos criados do Inveja, vestido de libré, aguardava-
me na sala das esculturas.
— Sua Alteza envia as suas desculpas, mas abandonou a propriedade.
Disse que ficará ausente durante algum tempo, mas que a Lady Emilia poderia
ficar quanto tempo quisesse. — O criado hesitou e aclarou a garganta, como se
não se sentisse à vontade com a ideia de entregar o resto da mensagem.
— Mais alguma coisa?
— Sua Alteza também mencionou que, se desejar fazer ciúmes ao Príncipe
Ira, pode dormir na sua cama esta noite. Sugere que o faça nua. E que...
permita-me que cite: «Tenha pensamentos obscenos sobre o príncipe mais
dotado deste reino», enquanto cuida de si mesma. Há um quadro de tamanho
real do Príncipe Inveja no teto, caso requeira um estímulo mais visual.
Contei mentalmente até que a vontade de ir atrás do Inveja passasse. —
Gostaria de enviar uma mensagem à Casa Ira. Desejo comunicar que amanhã
estarei em casa ao amanhecer.
— É para já, minha senhora. — Ele fez uma vénia. — Deseja uma escolta
de volta aos seus aposentos?
— Acho que consigo encontrar o caminho sozinha. Gostaria de admirar as
estátuas mais uma vez.
— Muito bem. Vou já enviar a missiva à Casa Ira.
Esperei que ele saísse antes de voltar para a sala da galeria. A minha
irritação pelo Inveja foi substituída por um júbilo. Eu sabia que iria encontrar
um bom motivo para o kit de costura.
E não tinha absolutamente nada que ver com coser rasgões em vestidos
bonitos.

O meu coração batia ao ritmo dos cascos dos cavalos enquanto a carruagem
se afastava da Casa Inveja. Afinal o Ira não viera para me acompanhar a casa,
enviara uma emissária e uma carruagem real. A emissária mostrou-se muito
satisfeita por salientar que não se tratava da carruagem pessoal ou dos corcéis
do príncipe. Apenas os que ele guardava nos estábulos.
Como se essa informação fosse de grande importância. Não tinha a certeza
do que sentia acerca do seu comentário desdenhoso ou por o príncipe ter
enviado alguém em seu lugar. A emissária, empertigada, permaneceu sentada no
seu lugar na carruagem, evitando deliberadamente o contacto visual e, assim,
qualquer conversa comigo.
Sentia-me confusa em relação ao seu óbvio desdém.
Estudei a demónia enquanto ela fingia dormir. Usava o seu cabelo vermelho-
escuro enrolado em torno de uma coroa, e a parte inferior era um conjunto de
longos caracóis penteados na perfeição. Um músculo no seu maxilar contraiu-
se, como se estivesse consciente do meu escrutínio e se esforçasse por reprimir
uma série de avisos. Talvez a sua raiva latente fosse apenas uma indicação da
Casa do Pecado a que pertencia e eu estava a dar-lhe demasiada importância.
Desviei a minha atenção para a janela. Por alguma razão, ela fechara as
cortinas antes de sair. Puxei-as para trás e ele olhou-me de relance.
— Deixe-as fechadas.
Respirei fundo pelo nariz, focando o meu crescente incómodo na sua atitude
rude. Discutir com ela não serviria de nada. E eu não precisava de outro inimigo
de quem desconfiar.
— Como se chama?
— Apenas precisa de se me dirigir pelo meu título.
Contudo, havia reparado que ela se recusava a chamar-me pelo título que o
Ira exigira que usassem na sua corte. Mas não me incomodou nem um
bocadinho. Eu não era uma mulher nobre.
— Muito bem, emissária. Onde está o Ira?
O seu olhar gélido encontrou o meu.
— Sua Alteza está ocupada.
Não havia como confundir a tensão na sua voz ou a advertência de que não
iria tolerar mais perguntas. Encostei a cabeça à lateral de pelúcia da carruagem.
Descemos firmemente a montanha, e eu tive de me contrair para me manter no
lugar, sem escorregar do assento. Depois do que me pareceu ser uma eternidade,
finalmente parámos. Ignorando a sua raiva, puxei as cortinas para trás e engoli
um suspiro.
Nunca tinha visto o exterior da Casa Ira. Da primeira vez que aqui cheguei,
estava a delirar nos braços do Ira, e havíamos entrado por uma montanha. O seu
castelo era enorme, com um portão, torreões, torres e uma enorme muralha que
abarcava todo o perímetro. As paredes eram de pedra clara e os telhados de
telha preta. Era um estudo magnífico de contrastes.
Trepadeiras, feitas de gelo sólido, estendiam-se ao longo das paredes.
Atravessámos os portões e avançámos até nos determos num caminho
semicircular. A emissária esperou que um criado de libré abrisse a porta da
carruagem e aceitou a sua ajuda para descer. Saiu sem olhar para trás, o seu
dever de apanhar a noiva errante fora cumprido.
Olhei para ela, perguntando-me porque teria sido tão fria e se eu teria feito
algo que a tivesse ofendido. Sabia que não. Tirando a minha surpresa ao vê-la
em vez do Ira, tinha sido amigável.
Uma suspeita desconfortável sobre a sua relação com o Ira infiltrou-se-me
na mente, mas bani-a. Recusava-me a deixar que aquilo me afetasse.
O criado de libré ajudou-me a descer e eu demorei-me a subir as escadas de
pedra em direção à porta da frente. À minha direita, escondido perto da parede,
havia um jardim dentro duma sebe. Anotei mentalmente para o visitar quando
fizesse mais calor.
Se fizesse mais calor. Como que de propósito, começou a cair uma neve
ligeira, cobrindo o castelo com uma fina camada de flocos cintilantes.
Apressei-me a entrar e sacudi o meu manto de viagem. Além do criado de
libré que estava a cuidar da minha mala, não havia criados à minha espera, o
que me fez descontrair.
Voltei para o meu quarto sem encontrar ninguém. Não havia criados a
limpar o castelo ou os seus muitos quartos. Não vi a Fauna ou o Anir ou o Ira.
Fiquei tremendamente grata por não me ter cruzado com nenhum dos outros
nobres residentes, como o agora sem língua Lord Makaden ou a tagarela Lady
Arcaline.
No entanto, à medida que a tarde se prolongava, comecei a ficar inquieta.
Não estava habituada a ter tanto tempo livre. Em Palermo estava sempre na
trattoria, a trabalhar na minha arte culinária em casa ou a ler, quando não estava
a cair exausta na cama após um dia de trabalho árduo. Além disso, raramente
estava sozinha — a minha família estava sempre lá, a rir e a conversar e a
transmitir-me o seu calor. Noutras noites, passeava na praia com a minha irmã e
a Claudia, enquanto partilhávamos segredos, esperanças e sonhos.
Até a minha irmã gémea ter sido assassinada. Depois, o meu mundo foi
irrevogavelmente alterado para sempre.
Incapaz de suportar a mórbida reviravolta nos meus pensamentos, fui até ao
quarto do Ira e bati à porta. Não obtive resposta. Considerei verificar se a porta
estava trancada, mas contive-me. Quando lhe invadira o quarto, após a sua
violenta explosão ao jantar, tinha uma desculpa válida.
Retornei para o meu quarto e decidi dedicar-me a voltar a encontrar a fonte
da minha magia. Fechei os olhos e concentrei-me no meu poço de magia
interior. Alguns segundos depois, aprofundei-me até ao meu centro e depois
despenhei-me. Senti-me como se tivesse batido numa parede de tijolo.
Tentei reunir energia para a voltar a localizar, mas dei por mim mais
exausta do que julgara estar.
Passara a maior parte da noite anterior acordada na cama, com medo que o
Inveja voltasse num acesso de fúria. E na noite antes dessa mal havia dormido
depois da confissão do Ira. Imaginei que para canalizar a Fonte precisava de
estar bem descansada. E o meu estado atual era precisamente o oposto.
Tirei o diário sobre a Casa Orgulho que levara emprestado da biblioteca do
Ira e folheei lentamente cada página, esperando encontrar algo escrito numa
língua com que estivesse familiarizada.
Foram esforços desperdiçados. Não havia sequer desenhos ou ilustrações
para decifrar. Apenas página após página de letras minúsculas no que poderia
ser um alfabeto demoníaco. A minha atenção não parava de se desviar para a
minha mala, para o objeto nela arrecadado que eu contrabandeara da Casa
Inveja.
Ainda não o queria tirar do seu esconderijo. Tinha um pressentimento de
que, em breve, alguém poderia vir à procura dele. Mal podia acreditar que tinha
sido tão fácil levá-lo. Demasiado fácil, na verdade. Parte de mim esperara que
os alarmes disparassem e que os demónios e vampiros Umbra aparecessem
assim que tirara o livro de feitiços da sua vitrina. Nada acontecera. Regressara
simplesmente ao meu quarto, cosera-o ao interior da minha mala e esperara por
um acerto de contas que nunca chegara.
Voltei ao momento e ao tempo presentes e folheei as páginas seguintes.
Concentrei-me mais uma vez no diário da Casa Orgulho, nas linhas onduladas
da caligrafia a esbaterem-se diante dos meus olhos.
Acordei várias horas depois, o rosto colado ao diário aberto.
Claramente, não era o meu tipo de livro. Um romance ter-me-ia mantido
acordada até às tantas; nunca conseguia virar as páginas depressa o suficiente
enquanto tentava desesperadamente saborear cada interação cheia de tensão
entre os protagonistas.
Adorava como se desprezavam a maior parte do tempo e como essa
centelha de desdém se transformava em algo completamente diferente.
A vida real não era nada como um romance, mas uma pequena parte do
meu antigo eu ainda esperava por um final feliz. Não havia como negar a faísca
entre mim e o Ira, mas a probabilidade de se transformar em amor não passava
de uma fantasia.
Penteei o cabelo e fui verificar novamente os aposentos do príncipe. O
demónio ainda estava fora. Ou não tencionava dar-se ao trabalho de abrir a
porta. Permaneci ali, a mão caindo para o meu flanco. Era possível que ele
estivesse chateado com a forma como eu me despedira dele na Casa Inveja. Mas
algo sobre isso não estava bem.
Ele estivera ao meu lado durante meses no mundo dos humanos, e depois
durante quase duas semanas ali. Se tivesse uma amante, talvez se tivesse
escapulido para a visitar. Decerto não contara que eu regressasse tão cedo.
Devia regozijar-me com a solidão. Não havia ninguém a olhar-me por cima do
ombro, nem desejos alimentados pela luxúria para completar um vínculo
matrimonial. Nenhuma distração. E no entanto... e no entanto não queria pensar
no porquê de me sentir tão inquieta.
Pedi que me levassem o jantar e comi no quarto, pensando na conversa
com o Inveja e em tudo o que tinha aprendido. Especificamente, no feitiço da
verdade que usara no vinho e no que isso poderia significar para o resto da
minha missão. A magia funcionara num príncipe do Inferno. E embora eu não
tivesse notado nada de diferente na nossa bebida, não significava que um
príncipe não conseguisse detetar algo de estranho. O Inveja sabia o que o
esperava, por isso não podia confiar nas suas reações.
O que eu queria era testar uma teoria. E precisava do Ira. Se conseguisse
encantar o vinho dele sem o seu conhecimento, poderia ter encontrado uma
habilidade útil para usar no Banquete do Lobo. Todos os príncipes estariam
presentes. Poderia sussurrar o feitiço durante o brinde e descobrir quem fora o
responsável pela morte da Vittoria sem que ninguém reparasse.
Se o Ira não detetasse o feitiço. Este plano apenas funcionaria se o teste
fosse bem-sucedido.
Na manhã seguinte, disse a mim própria que esse era o principal motivo
peio qual andara a passear pelo corredor à porta do quarto dele. Atenta a
qualquer sinal do seu regresso. É óbvio que não tinha nada que ver com ter
saudades dele. Ou com as minhas crescentes suspeitas quanto ao seu paradeiro e
companhia. O que era um disparate bem mais adequado à Casa Inveja. Talvez
não passassem de emoções residuais da minha visita à referida Casa do Pecado.
Se é que tais coisas sequer ocorreram.
Passaram-se dois dias e ainda não havia notícias do príncipe da casa. Tentei
invocar a fonte da minha magia mais algumas vezes, mas fui confrontada com a
mesma resistência. Não havia nada sobre isso no grimório, por isso restava-me
esperar. Eventualmente, acabaria por dominar o mergulho naquele poço.
Passava o tempo na biblioteca à procura de novas fábulas. Estava interessada
em aprender mais sobre a Árvore dos Condenados, em especial acerca do que se
dizia sobre ela conceder mais do que desejos.
Também procurei livros sobre a Chave da Tentação ou o Espelho da Lua
Tripla. Até então, todos os meus esforços haviam sido em vão. Por fim, quando
achei que iria enlouquecer, ouvi bater à minha porta.
— Olá, Lady Em. — O Anir sorriu. — Vim buscar-te para uma aventura.
— Lady Em? — Torci o nariz. — Nunca ninguém me chamou Em. Não
tenho a certeza se gosto.
— Isso é porque nunca foste a uma reunião clandestina. Vá lá. Veste uma
túnica e calças e vem ter comigo aqui. Estamos atrasados.
— Onde vamos?
Ele sorriu outra vez. Dessa vez o meu estômago contorceu-se com os
nervos.
— Já vais ver.
Decidi que o que quer que ele havia planeado teria de ser melhor do que
ficar sozinha no quarto ou vaguear pela biblioteca sem encontrar nada de útil,
por isso corri para os meus aposentos e vesti a roupa que ele sugerira.
Assim que me calcei, segui-o pelo corredor. Subimos um lanço de escadas e
parámos perto do fim de um longo corredor.
— Deixa-me apresentar-te... — O Anir empurrou a porta. — A sala de
armas.
— Pelas deusas. — Respirei fundo, embora não me devesse ter
surpreendido com tal grandeza, dado o papel do Ira como general de guerra.
Aquela era a joia da Casa Ira. — Impressionante.
— Dizem-me isso muitas vezes — brincou o Anir. — Entra.
Atravessei o limiar. Examinei o espaço cavernoso que parecia não ter fim.
As colunas dividiam a câmara em salas mais pequenas e interligadas. Se a
galeria do Inveja era a parte mais reveladora da sua personalidade, aquela era a
alma desnuda do Ira.
Bonita. Elegante. Mortífera. Polida a uma perfeição brutal e sem vergonha
de exaltar a violência. Permaneci parada enquanto catalogava tudo.
O teto de vidro permitia que a luz filtrasse para o interior e iluminasse o que
de outra forma seria um espaço escuro. As paredes e o chão eram de mármore
preto com veios dourados. Na sala principal, pela qual tínhamos entrado, havia
um desenho escondido — apresentando as fases da Lua de um lado, uma
miríade de estrelas do outro e uma serpente a engolir a própria cauda num
movimento circular — gravado a ouro no chão. Tanto quanto pude ver, cada
canto daquela secção do chão representava um dos quatro elementos. Parte do
desenho estava coberto por um grande tapete mesmo no centro.
Serpentes de ouro enrolavam-se em torno das colunas de mármore cor de
ébano, tornando-as as mais fantásticas e magníficas que alguma vez vira.
Espadas, adagas, escudos, arcos, flechas e uma variedade de facas reluziam
em ébano e ouro das suas posições cuidadosamente espaçadas nas paredes.
Virei-me enquanto absorvia todo aquele esplendor. No fundo da sala
encontrava-se o mosaico de uma serpente. Ao contrário do ouroboros gravado
no chão, o corpo desta estava enrolado num círculo intrincado. Recordava-me
algo, mas não tinha a certeza do quê.
Contra a parede do fundo, havia um fardo de feno com um alvo gigante
pintado no centro. Uma pequena mesa à sua esquerda e sobre ela um conjunto
de adagas alinhadas na perfeição. Observei-as fixamente, os meus dedos
ansiosos por agarrar o punho e atirá-las ao ar.
— A primeira lição será sobre a tua postura. — O Anir moveu-se para o
centro da sala de armas e apontou para o espaço no tapete à sua frente. Parei de
olhar para tudo boquiaberta e assumi o meu lugar onde ele indicara. — Deves
manter os pés bem assentes no chão, para que te deem apoio constante para
avançar, atacar ou desviar de um ataque rápido em qualquer direção sem
perderes o equilíbrio.
Mudei de posição para imitar a sua. Os seus pés estavam ligeiramente mais
separados do que a largura das suas ancas, um para a frente, o outro para trás.
Havia algo quase familiar naquela postura, mas eu nunca havia lutado ou tivera
motivos para receber aquele tipo de lições.
— Tens de distribuir o peso uniformemente. Certifica-te de que os teus
joelhos apontam na mesma direção que os teus dedos dos pés.
Baloucei um pouco, depois ajustei a minha postura. Mal tinha olhado para
cima quando o Anir se precipitou para a frente, oscilou o antebraço como um
aríete e fez contacto com o meu plexo solar, fazendo-me voar para trás. Os
meus braços agitaram-se no ar antes de aterrar de costas com muito pouca
graça.
Olhei para o meu professor.
— Você, signore, é horrível.
— Sou. E você, signorina, acabou de ter a sua primeira lição —
respondeu, o tom demasiado leve para as circunstâncias. Estendeu-me a mão e
ajudou-me a levantar. — Nunca deixes de prestar atenção ao teu adversário.
— Pensei que a lição era sobre postura.
— E é. — Ele piscou-me o olho. — Olhar para baixo não ajuda o teu
equilíbrio. Se tiveres de olhar para baixo, usa os olhos, não toda a parte superior
do corpo. A chave é teres consciência de ti mesma.
Repetimos o exercício com diversas variações daquele primeiro golpe e eu
acabava sempre estatelada no chão. Mesmo com o tapete macio por baixo,
estaria dorida na manhã seguinte. A cada golpe, sentia-me um pouco mais
confiante na minha postura, menos trémula. O suor escorria-me pela testa à
medida que praticava uma e outra vez.
Sabia bem treinar o corpo, esvaziar a mente.
Algum tempo depois, o Anir pediu uma pausa e limpou o suor do pescoço
e do rosto com um pedaço de linho. Estava pronta para continuar, mas dei um
passo atrás, saltitando nas pontas dos pés. Sentia-me viva, e os meus músculos
tremiam, mas era com fome de mais ação.
Ele dobrou-se pela cintura.
— Cinco minutos.
Segui-o até uma mesa lateral preparada com um cântaro de água e vários
copos.
— Onde está o Ira? — Não sei porque é que me limitei a perguntá-lo, mas
parecia-me estranho que o demónio da guerra não estivesse em lado nenhum
enquanto treinávamos na sua gloriosa sala de armas.
O Anir fitou-me pelo canto dos olhos enquanto servia um copo e bebia
metade do seu conteúdo.
— Pensei que não te irias importar com a sua ausência.
— E não me importo. Mas estou curiosa. — Como ele não respondeu, senti a
minha boca ridícula a tentar preencher o silêncio. — Ele parecia inquieto com a
minha decisão de visitar o Inveja. Pensei que me quisesse ver quando
regressasse.
— Perguntas por mim quando estou fora?
— Não.
— Ai!
Sangue e ossos. Eu repreendi-me de imediato quando o sorriso do Anir se
alargava. Servi-me de um pouco de água e tomei um longo gole.
— Só queria dizer que...
— Não fico ofendido. — Os seus olhos brilharam, divertidos. — Estás à
vontade para mentires a ti própria, mas comigo terás de te esforçar mais um
bocadinho.
— Está bem. A emissária irritou-me.
— A Lady Sundra? — O Anir fungou. — Não me surpreende. O pai dela é
duque, e ela nunca deixa que ninguém se esqueça da sua alta posição. Sempre
acreditou que iria acabar num casamento vantajoso com um príncipe.
— Ah. Por isso é que se tornou emissária. Isso garante a sua proximidade
com todos os membros da realeza.
— Vejam só a Lady Em. Até já pensa como uma nobre engenhosa. No
entanto, a maioria dos príncipes não planeia cair em nenhuma armadilha
matrimonial. Não importa quantas vezes as famílias nobres como a dela tentem,
os príncipes estão contentes como estão. O seu estado natural é estar chateada,
não é nada pessoal contra ti.
— Então, quanto mais alta a patente, mais os demónios exibem o pecado
com que se identificam.
— Do que eu aprendi no meu tempo aqui, sim. Embora ninguém consiga
ganhar poder suficiente para derrubar um príncipe. Eles são algo completamente
diferente. É como a diferença entre um leão e um tigre. São ambos grandes
gatos e predadores, mas longe de serem a mesma coisa.
— E os demónios menores? Eles são diferentes dos demónios nobres.
— De facto. E é por isso que tendem a escolher viver nos arredores dos
seus respetivos círculos.
— Se a Lady Sundra está mais bem alinhada com a Casa Ira, como poderia
casar-se com um príncipe representante de outro pecado?
— Seria raro, mas não seria a primeira vez que ocorreria uma mudança de
alinhamento.
Encostei-me à borda da mesa e pousei o copo.
— Sabias que o Ira tinha começado a aceitar o vínculo matrimonial na
noite em que o Viperidae me atacou.
— Todos saúdam a rainha da mudança de assunto. — Ofereceu-me uma
reverência dramática.
— Há alguma pergunta subentendida ou estás apenas à procura de
confirmação?
— Eu sei que não sou a sua primeira escolha para esposa — respondi,
ainda a pensar na filha do duque —, mas gostava de saber se havia alguém em
quem ele estivesse interessado antes... de tudo.
O brilho de diversão deixou o rosto do Anir.
— Não me cabe a mim partilhar a história dele.
— Não te estou a pedir que o faças. Apenas quero saber se havia mais
alguém.
— Mudaria alguma coisa se houvesse?
Pensei nisso. A minha curiosidade tinha um papel naquilo, sem dúvida,
mas mudaria, sim, as coisas. Eu rejeitaria o vínculo e o nosso destino seria
decidido pelo conselho de três que o Ira mencionara.
Se ele amasse alguém, bem, isso deixar-me-ia desconfortável e também
ficaria com o caminho livre para ir atrás do Orgulho. O que permanecia a forma
mais segura de alcançar o meu objetivo de vingança.
A não ser, claro, que eu vencesse o Inveja e encontrasse o mítico Espelho
da Lua Tripla. E se um príncipe-demónio não conseguia sentir que o vinho ou a
comida estava enfeitiçado, poderia descobrir a verdade dessa forma. Mas
precisava de praticar num príncipe do Inferno, que por sinal ainda estava
notavelmente ausente, maldito seja.
Voltei ao assunto em questão. Não queria ficar presa num casamento sem
amor com o Ira se o coração dele estivesse ocupado por outra pessoa.
— Sim. Mudaria. Mudaria muita coisa.
— Cuidado — disse uma voz profunda atrás de mim. — Ou posso pensar
até que gostarias de casar comigo.
Capítulo 17

Fechei os olhos e praguejei silenciosamente antes de fulminar o Anir com o


olhar.
— És mesmo horrível.
— Aposto sete moedas do diabo em como te sentirás diferente depois da tua
próxima aula. — O traidor ofereceu-me um sorriso malicioso. — Não te
esqueças da tua mala amanhã, Lady Em.
— Fecha a porta quando saíres.
A voz do Ira soara demasiado perto. Senti a sua respiração perto da base do
meu pescoço. Por um breve momento, considerei correr para a porta ou inventar
um feitiço para que o chão me engolisse por inteiro. Em vez disso, endireitei os
ombros e virei-me lentamente. O demónio estava a prestar toda a atenção ao
humano. O Anir perdeu alguma da sua arrogância trocista, que foi substituída
por uma seriedade que não vira nele desde a noite em que o Lord Makaden
perdera a língua.
— Ninguém pode entrar nesta sala até eu dar sinal de que o nosso treino
acabou. Entendido?
— Sim, Majestade.
O Anir ofereceu-me uma reverência educada e apressou-se até à saída.
Cobarde. Sorri para mim mesma. Por falar em cobardes, fingir que o príncipe-
demónio não estava ali e que não tinha ouvido o que nunca devia ter ouvido
também não serviria a minha tentativa de ser destemida.
Forcei-me a suster o olhar imponente do Ira e escondi a minha surpresa ao
avaliar o meu adversário mais recente. Não estava totalmente vestido de preto,
tendo optado por uma camisa branca brilhante e uma casaca. Avaliei a sua
enorme estatura, a rigidez dos seus contornos, e engoli em seco. Ele não estava
de bom humor. Decidi que este não era o momento de ser corajosa. Um
estrategista inteligente entendia a arte da retirada. O Ira estava a tramar alguma
e eu não queria descobrir quão mau ele poderia tornar-se.
— Não creio que o teu treino seja necessário. O Anir estava a fazer um
trabalho excecional.
Um sorriso espalhou-se pelo rosto do príncipe, embora não tivesse vestígios
de alegria. Aquele olhar confirmou-me que ficar para este treino seria uma
péssima ideia. Recuei um passo e algo de perigoso despertou nos olhos do Ira.
— Ele não possui as habilidades necessárias para esta lição.
— Ah, bom, eu tenho outro compromisso. Vamos ter de remarcar a sessão.
— Não me digas.
— Bem, sim, de facto, vamos.
— Lembras-te do acordo que fizemos no meu quarto?
Estava prestes a acenar com a cabeça quando fui tomada por uma enorme
onda letárgica e, de repente, a minha cabeça ficou demasiado pesada para se
mexer. O foco intenso do Ira direcionou-se para a minha mudança emocional e
física. Não havia nenhuma preocupação explícita na sua expressão, apenas uma
dureza que me deveria ter preocupado.
E teria, se não me encontrasse numa lassidão tão horrível.
Ao que parecia, não era capaz de me obrigar a ficar preocupada, ou de me
levantar. As minhas pernas dobraram-se por vontade própria e caí no chão numa
confusão de membros. Acabei com a face pressionada contra o tapete grosso, as
fibras a arranharem-me a pele de forma muito desconfortável. Ainda assim, não
me virei para ficar mais confortável. Nem sequer pestanejei. Para meu horror,
um gotejar de saliva abriu caminho desde o canto da minha boca. Não queria
saber.
De facto, apercebi-me de que realmente não me importava mesmo com nada.
Nem sequer com o brilho de triunfo que se agitava no olhar do Ira enquanto se
erguia sobre mim.
O príncipe-demónio contornou a minha postura desajeitada.
— Olha para mim, Emilia.
Eu queria, quase mais do que tudo, mas sentia-me sem energia. Em vez
disso, as minhas pálpebras fecharam-se. Apesar da minha postura muito pouco
digna, deitada no chão, a babar-me, não me vi capaz de...
A lassidão desapareceu num ápice, como se nunca tivesse existido. No seu
lugar, uma raiva ardente e consumidora fez-me levantar um instante depois. O
meu corpo estremecia de fúria. Ou talvez fosse ira.
Virei-me para o demónio.
— Vou matar-te!
— Matar-me? Tenho a certeza de que me queres beijar.
O Ira riu-se da minha súbita mudança de humor e depois, antes de eu lhe
poder tocar, a atmosfera voltou a mudar abruptamente. De repente, já não estava
a tentar apertar-lhe a garganta; estava a puxá-lo para mais perto de mim,
segurando o seu corpo com as minhas pernas e braços. Desejava-o.
Pela deusa. A necessidade de me deitar com ele era avassaladora, a dor
insuportável.
Nos Baixios do Crescente, achara que conhecera o desejo. Nada se
aproximava do que sentia naquele momento. Não conseguia pensar em nada a
não ser nas suas mãos em mim. As minhas mãos nele.
No fundo da minha mente, sabia que havia algo de muito errado. Aquilo
era exatamente o que o Luxúria me fizera aquela noite na praia, mas não
conseguia concentrar-me em nada a não ser no meu desejo.
A nossa fúria mútua encontraria um escape perfeito na paixão,
concedendo-nos liberdade enquanto nos despíamos, acariciávamos,
provocávamo-nos mutuamente. Puxei o rosto do Ira para perto do meu, os seus
olhos a brilhar com aquele mesmo desejo, lentamente tomei-lhe o lábio inferior
entre os dentes.
— Beija-me. — Soltei-lhe a boca apenas para passar a língua e os dentes
ao longo da parte lateral do seu pescoço, provando e chupando-lhe a pele
enquanto levava os meus lábios ao seu ouvido. — Preciso de ti.
— Querer, mas nunca precisar, minha senhora. — Ele não me devolveu as
carícias, mas o seu sorriso estava pleno de pecado quando se afastou do meu
toque. — No Corredor do Pecado foste testada pela inveja. Estou curioso para
saber o que te deixou tão zangada. Lembras-te que ilusão impulsionou o
pecado?
O meu desejo evaporou-se. Uma imagem do Ira a dormir com uma mulher
que não eu reapareceu na minha mente. Mais uma vez, vi as pernas dela
enroladas em torno do seu corpo, as suas ancas a balançar para a frente a cada
impulso que ele tomava para se afundar nela. Em vez dos gemidos dela, agora
ouvia os dele.
Uma emoção sombria e possessiva borbulhou dentro de mim. Tinha tantos
ciúmes deles que queria matar. O meu sangue arrefeceu tanto como o meu tom
de voz.
— Sim.
— Diz-me o que viste.
— Tu e outra mulher. Na cama.
Houve um momento de silêncio. Como se ele não esperasse que fosse aquele
o motivo.
— E como é que isso te fez sentir?
Expirei, o som mais semelhante a um rosnado.
— Homicida.
O Ira começou, aos poucos, a andar à minha volta; a sua voz era calma, mas
trocista.
— Isso foi antes ou depois de veres o prazer que ela me estava a dar? O puro
êxtase que senti enterrado no seu calor.
Uma lágrima escorreu-me pela face. Não me senti triste nem sequer zangada.
Estava agora completamente consumida pelo ciúme. Não da outra mulher, mas
da noite de intimidade que eles haviam partilhado. Eu queria isso. Queria o Ira
com uma intensidade que apagasse toda a razão da minha mente. E esse nível de
inveja era quase tão avassalador como na noite em que conhecera o príncipe que
governava sobre esse pecado.
O Inveja usara a sua influência sobre mim, e eu nunca esqueceria a frieza
de...
A compreensão atingiu-me numa explosão de fúria, quebrando o feitiço.
— Besta monstruosa. Estás a usar os teus poderes em mim!
— E como lhes sucumbiste facilmente. — A fúria do Ira subiu ao encontro
da minha. — Queres que os meus irmãos te manipulem?
Talvez queiras ser o objeto da sua diversão. Talvez comeces por ser o meu.
Tira a tua roupa e dança para me aprazer.
— És um porco.
— Sou muito pior que isso. Mas um acordo é um acordo.
— Eu não te consenti esta merda.
— Mentes. Pediste-me que te armasse. Exigiste, se bem me lembro. A
minha contraoferta foi que serias treinada contra ameaças físicas e mágicas.
Não concordaste com isso?
— Sim, mas...
— Tira a roupa.
Havia um estranho eco de poder na sua voz. Tentei afastar-me, tentei lutar
contra isso, mas senti a pressão a aumentar e a desabar. Desesperada, tentei
erguer uma barreira emocional entre nós, mas o Ira não o permitiu. Antes que
pudesse tocar na marca de invocação no meu pescoço, a sua voz soou clara e
forte e cheia de poder dominante.
— Agora.
A barreira quebrou-se e a minha vontade também. Os meus dedos
desapertaram rapidamente os botões e as correias das minhas calças. Despi-as,
deixando o tecido aos meus pés. A minha túnica foi a seguir. O Ira deslizou o
olhar da coroa da minha cabeça para os meus dedos dos pés, e depois foi
subindo, muito lentamente. Não havia luxúria, calor ou apreciação no seu olhar.
Apenas raiva.
E não era o único a senti-la. Odiava aquela impotência, odiava que ele me
obrigasse a despir-me. Optar por fazê-lo nos Baixios do Crescente fora
poderoso, libertador. Esta situação não era nem uma coisa nem outra. Fá-lo-ia
pagar por isto. Tão rapidamente como surgira, a minha necessidade de vingança
desapareceu com a próxima vaga da sua vontade.
Preparei-me para tirar a minha roupa interior, mas a sua voz cortou a
minha linha de pensamento.
— Mantém-na vestida. Mexe as ancas.
Concentrei-me na única centelha de fúria que não havia sido esmagada
pelo poder mágico da ordem do Ira. Tentei com todas as minhas forças
incendiar aquele núcleo de emoção que ainda me pertencia e usá-lo para
destruir a sua magia. Apenas eu decidiria quando me deveria despir diante dele
ou de qualquer outra pessoa. Eu seria a mestra da minha própria vontade. E
continuaria a lutar por mim, por mais terrível, desesperada ou fútil que a
situação se tornasse.
Apercebendo-se da minha determinação, o Ira libertou ainda mais o seu
poder.
— Eu disse, abana as ancas.
O pensamento consciente, a emoção e o livre-arbítrio estavam bem fechados
dentro de mim. Tudo o que eu conhecia era o som da sua voz, o seu desejo. A
sua vontade percorreu-me as veias, dominando-me em todos os sentidos da
palavra. Tornou-se uma só com o meu coração.
Fiz como ele me ordenara. Tornei-me pecado e vício. Senti-me luxuriosa. E
adorei o sentimento.
Mantive os olhos fixos nele enquanto me balançava sugestivamente. Queria
que ele me pedisse para tirar a roupa interior. Depois desejei que tirasse a sua.
O Ira aproximou-se, a sua expressão em fúria gélida. Não entendia por que
razão estava tão chateado. Acabei com a distância que havia entre nós e dancei
para ele, pressionando-me contra o seu corpo tenso. Algo na nossa posição me
fez lembrar de outro tempo, de outra dança. E a mesma fúria que o trespassara
naquela fogueira.
Ele era uma criatura difícil na altura, duas vezes mais difícil agora.
— Não é este o teu desejo?
— De todo. — Ele recuou um grande passo, colocando uma distância
odiosa entre nós. — A partir de agora, vais dirigir-te a mim como mestre.
Ajoelha-te.
— Nunca... — A raiva explodiu dentro de mim e depois extinguiu-se com a
mesma velocidade. Fui para o chão, dobrei a cabeça. — Isto agrada-lhe, mestre?
— Tira a minha bota direita.
Desatei os atacadores da sua bota, tirei-a e esperei pela sua próxima ordem.
— Leva as mãos até à minha barriga da perna. — Deslizei-lhe as mãos pelo
corpo, até ao músculo da barriga da perna, e ele puxou-a para trás. — Começa
pelo tornozelo.
Sem o menor sinal de hesitação, arrastei as mãos pelo seu corpo e sobre o
músculo da sua barriga da perna. Os meus dedos roçaram contra algo duro.
Olhei para cima.
— Satisfi-lo agora, mestre?
O Ira inclinou-se para me levantar o queixo, o seu olhar a passear-me pelo
rosto. Estava à procura de algo, mas o profundo franzir de testa indicava que
não o havia encontrado.
— Aprende a proteger-te. Isso dar-me-á o maior dos prazeres.
Com ele, de alguma forma, compreendi a própria essência do prazer. Isso
poderia fazer. Larguei-lhe a barriga da perna e alcancei-lhe a parte superior das
calças.
— Deixe-me satisfazê-lo, mestre.
A temperatura à nossa volta desceu vários graus.
— Se eu te quisesse de joelhos, nua diante de mim, sem um único
pensamento na cabeça, fá-lo-ia. Se quisesse foder-te para consumar o nosso
casamento, farias exatamente o que eu te dissesse. E implorar-me-ias por mais.
Nenhuma destas coisas me atrai ou agrada. Aquilo por que anseio é por uma
igual. Agarra a adaga escondida na minha perna. Levanta-te.
Tirei a lâmina da bainha de cabedal e levantei-me, o coração a afundar-se
com o seu tom severo e a sua rejeição aos meus avanços. Peguei-lhe na mão, na
esperança de o tentar a aceitar o que lhe estava a oferecer.
— Eu...
Uma fúria indomável, poderosa, devoradora queimou toda a luxúria que
sentira. Agarrei na adaga com tanta força que magoei a mão. O Ira não desviou
o olhar do meu enquanto desabotoava lentamente os primeiros botões da sua
camisa impecável.
— Crava a lâmina no meu coração.
Percorri a distância entre nós e a ponta da adaga furou-lhe a pele. Naquele
momento senti-me zangada. Furiosa. E reivindicaria o que me era devido a mim
e aos meus.
Começando ali e agora. Com aquele príncipe detestável.
O Ira inclinou-se, falando com uma voz baixa e sedutora.
— É com isto que sonhas. Sangue e vingança. Reivindica a tua vingança,
bruxa. Lembra-te do que acabei de te fazer. De como caíste de joelhos, a
implorar. Deixa que o ódio te consuma.
— Cala-te.
— Talvez tenhas gostado que eu te tenha feito despir. Que te tenha
submetido à minha vontade.
— Eu disse, cala-te!
— Talvez eu deva mostrar-te como posso ser cruel.
Olhei para o seu peito, para a lâmina a perfurar-lhe a pele. Uma gota de
sangue escorreu-lhe pelo corpo. Através da ira e da fúria que me dominavam os
sentidos, lembrei-me. Já lhe havia espetado uma faca no coração antes. No
mosteiro. Ele jurara-me que seria preciso muito mais do que uma adaga para
acabar com ele. Quisera testar a veracidade das suas palavras na época. Agora,
ele estava a oferecer-me a oportunidade de o fazer. Engoli com força, sentindo a
garganta inflamada. As lágrimas por derramar fizeram-me arder os olhos.
A minha mão tremeu e a lâmina cravou-se com mais força no seu peito
enquanto eu lutava contra aquilo.
— Reivindica. A. Tua. Vingança.
A sua influência demoníaca digladiou a minha vontade. E venceu.
Verti uma lágrima enquanto me inclinava para a adaga, usando o peso do
meu corpo para a fazer trespassar músculos e ossos. Observei com uma fúria
violenta enquanto a afundava no seu peito. O sangue jorrou da ferida, a sua
camisa ficou manchada e os meus dedos escorregadios. Não a puxei para fora.
Torci a adaga, rangendo os dentes antes de gritar alto o suficiente para convocar
o próprio Satanás.
O príncipe-demónio assistiu, impassível, enquanto eu arrancava a lâmina e o
apunhalava outra vez.
E outra vez.
E outra vez.
Capítulo 18

O Ira removeu toda a influência sobre mim de uma só vez.


Olhei para a lâmina espetada no peito do demónio, e espasmos violentos
percorreram-me todo o corpo. Em vez da raiva que acabara de sentir, fui
atingida por uma onda de náuseas. Larguei a arma e dei um passo atrás, incapaz
de desviar o olhar. Havia tanto sangue. Sangue do Ira.
Florescia de forma obscena na sua camisa branca, como uma flor mortal. E,
se tivesse sido qualquer outro, estaria morto. Eu tê-lo-ia matado. Respirei de
forma ofegante. O peso do que poderia ter sido, do que eu fizera, estava prestes
a esmagar-me.
O Ira arrancou a adaga do peito e atirou-a para longe. Estremeci quando
colidiu contra a parede distante, o único som na sala além da minha respiração
entrecortada. Ele forçara-me a apunhalá-lo. No coração. Eu... eu não conseguia
parar de olhar para o local onde lhe cravara a adaga. Não conseguia parar de
ouvir o estalido repugnante do osso enquanto lhe perfurava o peito. Tive
dificuldade em manter as mãos ao longo do corpo, para não tapar os ouvidos e
gritar até que aquele som horrível me saísse da cabeça.
A ferida tinha sarado, mas a sua camisa continuava encharcada de sangue. As
memórias de outro peito, de outro coração, inundaram-me os sentidos. A minha
irmã gémea. Só conseguia pensar no seu corpo brutalizado. Quão facilmente
poderia ter sido ela o corpo sob a minha adaga. Resistir teria sido um esforço
fútil.
Virei as mãos, as palmas pegajosas e manchadas de sangue para cima, e
gritei:
— Como te atreves? Como te atreves a sujeitar-me a esta depravação?
— Sim, como me atrevo a ensinar a minha mulher a proteger-se contra os
seus inimigos?
— Ainda não sou tua mulher. E se esta é a tua ideia de provar porque nos
devemos casar, estás louco. És a criatura mais desprezível que alguma vez tive
o infortúnio de conhecer.
— Se isso fosse verdade, eu ter-te-ia deixado como o Luxúria te deixou
quando te libertei da minha influência.
O demónio atirou-me um roupão. Não o tinha visto antes, mas não havia
reparado em muitas coisas para além dos pecados que ele queria que eu
experienciasse.
Agora estava a ver muita coisa.
A sua expressão estava mais próxima do assassínio do que eu alguma vez
testemunhara. Como se a sua pequena demonstração de poder o enfurecesse
mais do que me enfurecera a mim. Como se isso fosse possível.
Eu espetara-lhe uma adaga no coração. Nunca na minha vida me enfu‐
recera tanto. E sentira uma grande variedade de emoções furiosas desde o
assassínio da minha irmã gémea.
Agarrei no roupão e enfiei os meus braços lá dentro, odiando-o por saber
que iria precisar dele. Também compreendi claramente o porquê de ele usar
branco. A sua preparação para o treino fez com que o sangue nas minhas veias
fervesse ainda mais. Indicava que ele sabia exatamente que pecados usaria,
como me influenciaria a usá-los e que havia antecipado o que precisaria no final
da sua pequena demonstração de poder.
Senti-me tentada a regressar ao meu quarto em roupa interior ou a despir-
me completamente. Deixar a sua corte ver-me em toda a minha glória.
— À vontade. — Sem dúvida ele discernira os meus pensamentos da
minha própria linguagem corporal. Fez um gesto amplo com o braço. — Se
preferires ir sem o roupão, não serei eu a opor-me.
— Devias mesmo parar de falar agora.
— Obriga-me.
— Não me tentes, demónio.
— Fá-lo. — Ele avançou até estar mesmo à minha frente. — Utiliza o teu
poder. Retalia.
Uma provocação infantil. Mergulhei na minha fonte de magia, tentando
invocar algum poder para lhe arrancar aquele ar sabichão. Fui novamente
saudada por uma parede de nada. Estava tão frustrada que só queria gritar.
O Ira semicerrou os olhos, atento a tudo.
— Treinaremos todos os dias até ao Banquete do Lobo. Irás aprender a
proteger-te dos meus irmãos. Ou sofrerás indignidades maiores do que as que eu
te mostrei hoje. Dá-te por agradecida, minha noiva, por eu não te querer fazer
mal. Apenas ao teu ego e ao teu orgulho. Ambos, se não me engano, podem ser
reparados.
— Fizeste-me apunhalar-te.
— Eu curo-me depressa.
Era uma pena que eu não fosse recuperar tão rápido do impacto emocional
da pequena lição daquele dia. Apertei o cinto do roupão.
— Odeio-te.
— Consigo viver com o teu ódio. — Um músculo no seu maxilar contraiu-
se. — É muito melhor usá-lo a teu favor, em vez de me adorares e vergares à
depravação deste mundo.
— Porquê violência? — O meu tom era calmo. — Não precisavas de ter
libertado a minha ira dessa maneira.
— Eu ofereci-te uma saída. A vingança é um veneno, a morte lenta do eu.
Procura justiça. Procura verdade. Mas se escolheres a vingança acima de tudo,
irás perder mais do que a tua alma.
— Não acredito que estás a dizer que te preocupas com a minha alma.
— Não podes extinguir a tua dor através do ódio. Diz-me, sentes-te como
tinhas imaginado? O derramar do meu sangue curou as tuas feridas? A balança
da justiça está finalmente equilibrada, ou inclinaste-te um pouco mais para algo
que não reconheces?
Apertei o maxilar e olhei fixamente para ele. Ambos sabíamos que eu não
estava a sentir-me melhor. Se sentisse alguma coisa, era para pior.
— Foi o que pensei. — Ele virou-se e caminhou em direção à porta. —
Encontramo-nos aqui amanhã à noite.
— Eu nunca concordei com várias sessões de treino.
— Também não estabeleceste parâmetros durante o nosso acordo. Sugiro
que venhas preparada para a batalha ou darás por ti seminua diante de mim, de
joelhos e a implorar. Ou a apunhalar-me. Ou ambas as coisas.
Controlei as minhas emoções. O Ira estava a ser um sacana do pior, mas
ele nunca era impulsivo.
— A minha visita ao Inveja teve alguma coisa que ver com o momento que
escolheste para esta primeira lição?
— Não. — O Ira não se virou, mas parou antes de abrir a porta. — Ontem
votaram para escolher o convidado de honra para o Banquete do Lobo.
E lá estava. Ele devia ter esperado que alguém mais interessante ocupasse
o meu lugar.
— Ainda achas que me vão escolher.
— Tenho poucas dúvidas.
— Qual era o teu plano para esta noite? Mostrares-me quão implacável e
poderoso és realmente?
— Os meus irmãos ficarão mais do que felizes por te mostrar quão
pecadores podem ser perante uma grande e ávida audiência. Se pensavas que o
Makaden era mau, o comportamento dele não é nada quando comparado com
um evento organizado pela minha família. Eles vão demorar até ficarem
aborrecidos. Depois livrar-se-ão das peças partidas. E — acrescentou em voz
baixa — se estás tão horrorizada com o que acabou de acontecer aqui, sendo eu
a única testemunha, não fazes mesmo ideia do que te espera.
— Devias ter-me avisado de que iríamos começar a treinar esta noite.
— Os meus irmãos não irão perguntar. Nem te darão qualquer aviso.
— Não sou noiva dos teus irmãos. Se queres uma igual, sugiro que me
trates como tal. Podemos ter feito um acordo, mas isso não significa que não me
pudesses ter prevenido.
— O objetivo desta lição era mostrar-te como és vulnerável, não
envergonhar-te.
Observei as linhas tensas das suas costas. Os nós dos dedos brancos com
que agarrava a maçaneta da porta.
— Não sou um herói, Emilia. Também não sou um vilão. Já devias saber
isso.
— Vai-te embora. Já ouvi desculpas suficientes esta noite.
Por um segundo, ele não se mexeu, e preparei-me para o que quer que fosse
que ele parecia estar a ponderar se me devia ou não dizer. Sem mais uma
palavra, saiu da sala e a porta fechou-se atrás dele.
Fiquei a olhar para a porta por um instante e aproveitei a oportunidade para
me compor.
Imaginei que este treino fosse tão proveitoso para ele como para mim. Se
alguém conseguisse pôr-me meio nua e a contorcer-me durante a festa — ou
pior —, o general de guerra poderia recordar à sua família como havia ganho
aquela distinção militar. E não me parecia que o caminho para esse título em
particular tivesse sido sem derramamento de sangue por parte do Ira.
Olhei para a adaga que usara para o apunhalar, a lâmina coberta com o seu
sangue seco. Não consegui identificar a emoção exata que me inundou no lugar
do medo, mas já não estava agoniada. Sentia-me como se pudesse cuspir fogo.
E com a minha capacidade de o invocar, talvez conseguisse fazer aquilo mesmo
com um pouco de prática. Que a deusa ajude os príncipes-demónios agora.

Irrompi pelo meu quarto e bati a porta com força suficiente para abanar o
enorme quadro pendurado perto da casa de banho. De todos os truques
arrogantes, maldosos e desagradáveis... Sim, eu concordara com o maldito
acordo, mas não sabia que se tratava de um contrato vinculativo.
As minhas faces ardiam de fúria. Perder o controlo perturbara-me mais do
que qualquer um dos seus truques demoníacos. Quando ele entrara naquela sala
de treino, tinha um plano e executara-o sem falhas. E havia ficado à sua mercê.
Aquilo. Aquilo era o núcleo da minha raiva.
— A partir de agora, vais dirigir-te a mim como mestre. — Trocei, na minha
melhor imitação da sua voz. — Besta detestável.
Fui à minha casa de banho e comecei a esfregar o sangue das mãos, ainda a
ferver de raiva contra o Ira. Embora não tivesse parecido particularmente
convencido ou satisfeito com os seus esforços, isso não mudava o facto de ter
libertado o seu poder sobre mim. Sequei-me e andei em círculos pela sala.
Sentia-me irritada com ele por provar o seu ponto de vista, mas sentia-me ainda
mais furiosa por ter ficado quase indefesa.
Tudo isso à parte, tinha de admitir que era muito melhor estar sujeita à
influência do Ira, porque, por muito miserável que fosse, pelo menos sabia que
ele não iria levar as coisas demasiado longe. Podia obrigar-me a despir-me e
implorar, ou a cravar uma adaga no seu coração, mas ele nunca tentaria
aproveitar-se ou levar-me a fazer mal a alguém.
Olhei para as minhas mãos, que agora estavam limpas. Um pensamento
inquietante assomou-me à mente. Se um príncipe-demónio quisesse, sob as suas
ordens eu seria capaz de matar alguém. O Ira demonstrara-me isso naquela
noite. Parte de mim queria esfaqueá-lo, mas eu nunca teria atravessado essa
linha sozinha.
Pensei no Antonio, como era claro que ele havia agido sob algum tipo de
influência. Se o Ira podia dominar outros pecados com tanta força e facilidade,
era lógico que os seus irmãos também possuíam o mesmo talento.
O que significava que qualquer um deles poderia ter manipulado o Antonio
para que matasse as bruxas. O seu ódio já estava presente pela forma como a
sua amada mãe havia morrido. Não teria sido preciso muito para trazer essa
emoção à superfície, usando-a contra ele.
Afastando pensamentos e preocupações sobre o assassino da minha irmã e o
voto do Banquete do Lobo, fui até ao guarda-roupa e vesti um vestido preto
simples.
Olhei para baixo quando algo esbranquiçado surgiu da escuridão. Uma das
caveiras encantadas havia escorregado do seu esconderijo ao ter puxado o
vestido para fora.
Dei um suspiro. Ainda tinha de resolver o mistério por detrás das caveiras e
descobrir se fora o Inveja a enviá-las. A minha mente foi invadida por dúvidas
quanto ao seu envolvimento em tudo isto. Fazia pouco sentido que ele me
enviasse as caveiras em segredo apenas para partilhar informação de forma
aberta comigo.
Baixei-me para a voltar a tapar com um lenço quando a porta exterior dos
meus aposentos se abriu.
— Emilia, eu queria... — O olhar do Ira recaiu sobre a caveira encantada. O
que quer que ele estivesse prestes a dizer foi imediatamente esquecido quando
atravessou a sala num redemoinho de preto, ouro e fúria. Arrancou a caveira do
meu guarda-roupa e virou-se, olhando para mim como se mal me conhecesse.
— O que?...
— A menos que desejes que te esbofeteie com um feitiço mais do que
desagradável, sugiro que reconsideres o teu tom. Já não estamos na tua sala de
treino. Não irei tolerar tamanho desrespeito fora das nossas aulas.
Ele inspirou profundamente. Depois expirou. Repetiu ambas as ações. Duas
vezes. A cada inspiração e expiração, juro que a atmosfera se tornou cada vez
mais carregada. As nuvens de tempestade estavam a acumular-se.
— Poderia ter a gentileza, minha senhora, de me explicar como tomou posse
disto? Gostaria muito de saber.
Pude sentir uma veia a latejar-lhe na garganta. Depois do que ele me obrigara
a fazer-lhe, senti uma satisfação perversa ao vê-lo tão zangado.
— O que estás aqui a fazer?
— Vim pedir desculpa. Responde-me. Por favor.
— Alguém ma enviou. Tal como a segunda caveira.
— Segunda caveira? — murmurou como se se forçasse a manter a educação
contra a incredulidade que alastrava nas suas feições. — E, por favor, poderia
dizer-me onde se encontra agora essa outra caveira?
— No meu guarda-roupa. Atrás daquele vestido ridículo com a saia enorme.
Sem mais palavras, o Ira procurou calmamente no meu guarda-roupa e
recuperou o objeto em questão. Manter a calma pareceu exigir-lhe um esforço
hercúleo.
— Posso perguntar quando chegou a primeira caveira?
— Na noite em que o Anir me trouxe comida e vinho.
— Na primeira noite em que estiveste aqui? — A sua voz subiu de volume.
Acenei com a cabeça, o que aparentemente o levou a ranger os dentes. — E não
achaste que valia a pena partilhar essa informação porque?...
O meu sorriso era tudo menos doce.
— Não sabia que precisava de o informar, mestre. Terias respondido a
alguma das minhas perguntas?
— Emilia...
— Qual dos irmãos possui este tipo de magia? Quem iria querer
ridicularizar-me? Alguém deve odiar-me muito. Encantaram as caveiras com a
voz da minha irmã. Mais uma preciosa adaga direitinha ao meu coração. Tens
algo a acrescentar?
Levantei as sobrancelhas, sabendo que ele nada diria. Os lábios do
demónio tornaram-se uma linha firme, e não consegui evitar o riso sombrio que
me borbulhava na garganta.
— Já suspeitava. Mas posso prometer-te uma coisa, não será a última vez
que escolho limitar-me aos meus próprios conselhos até ter investigado a fundo
por conta própria. — Apontei para a porta. — Por favor, sai. Já te aturei o
suficiente por uma noite.
Ele semicerrou os olhos quando o dispensei. Duvidava que alguém alguma
vez lhe tivesse falado assim. Já estava na hora de se habituar a isso.
— Em relação ao treino anterior...
— Sou absolutamente capaz de compreender o valor da lição, por mais
terríveis que sejam os teus métodos. Independentemente do nosso acordo, no
futuro, perguntar-me-ás se quero treinar. — Enverguei uma cuidadosa expressão
de indiferença. — Se não planeias partilhar informação comigo, este
interrogatório termina agora. Põe as caveiras onde estavam e sai daqui.
— As caveiras serão guardadas num lugar seguro.
— Não tenho qualquer interesse na ambiguidade. Sê específico.
Se permitir que leves as caveiras, onde as guardarás?
— No meu quarto.
— Quero vê-las quando quiser. E partilharás comigo qualquer informação
que descubras.
Ele olhou-me fixamente.
— Se vamos começar com exigências, então, desde que concordes em jantar
comigo amanhã, acederei ao teu pedido.
— Não te posso dar uma resposta esta noite.
— E se eu insistir?
— Então terei de recusar, Alteza.
— Podes recusar a conversa esta noite. Recusar-te a jantar comigo. Mas
iremos falar sobre tudo isto. Em breve.
— Não, Ira. Falaremos sobre isto quando ambos estivermos preparados. —
Vi-o assimilar a minha declaração. — O teu treino e a tua influência apenas
serão consentidos naquela sala. Em qualquer outro lugar, respeitarás os meus
desejos.
— Caso contrário?
Abanei a cabeça, triste.
— Entendo que o teu reino é diferente, que os teus irmãos são diabólicos e
coniventes, mas nem todas as declarações são uma ameaça. Pelo menos, não
entre nós. Há uma coisa que tens de saber: de agora em diante, se não
respeitares os meus desejos, não permanecerei aqui. Isto não é para te castigar,
mas para me proteger. Perdoarei a tua feita de decoro, julgamento e decência
básica se prometeres aprender com este erro. No entanto, partilharás toda a
informação que receberes sobre as caveiras, quer eu decida ou não jantar
contigo. Combinado?
Ele olhou para mim, olhou mesmo para mim, e por fim anuiu.
— Aceito os teus termos.
O Ira pegou nas duas caveiras e deteve-se quando o seu olhar aterrou na
minha mesa de cabeceira. No diário sobre a Casa Orgulho.
— Como planeavas lê-lo? Deixa-me adivinhar. — A sua voz tornou-se
suspeitosamente baixa. — Ias fazer um acordo com um demónio? Oferecer um
pedaço da tua alma?
— Cheguei a considerá-lo.
— Permite-me poupar-te a esse trabalho. Não está escrito em linguagem
demoníaca. E nenhum acordo que faças com quem quer que seja, a não ser
comigo, te dará as respostas que procuras em qualquer um desses diários. Tudo
o que tinhas de fazer era pedir e eu ter-tos-ia dado. Roubar era desnecessário.
— Talvez. Mas ter-me-ias providenciado uma maneira de o ler?
— Não sei.
Ele deixou a sala. Esperei até ouvir o clique da porta a fechar-se antes de me
encostar à parede.
Contei as respirações, esperei até ter a certeza de que ele não voltaria, e
depois deixei que as lágrimas viessem com força e depressa. Dobrei-me, os
soluços a sacudirem-me o corpo, consumindo-me. No espaço de uma hora, fora
sujeita a múltiplos pecados e apunhalara o meu possível futuro marido. Esta
noite poderia claramente ser classificada como infernal.
Sentei-me de repente, o peito agitado enquanto lutava por controlar as
minhas emoções.
Sequei a cara e prometi a mim mesma, mais uma vez, que derrotaria os
meus inimigos. Mesmo aqueles que já não pareciam ser adversários.
Capítulo 19

As flores cobertas de gelo brilharam como cristal e os ramos tilintaram como


flocos de neve sobre a minha cabeça enquanto passeava pelo jardim.
Estava tanto frio que precisava de luvas forradas a pelo e de um pesado
manto de veludo, mas a manhã em si estava adorável. Pacífica. Não tinha tido
muitos dias assim nos últimos meses, e aquele parecia-me delicioso. Semicerrei
os olhos para espreitar através do emaranhado de ramos. Numa série de árvores,
as folhas agarravam-se à vida com obstinação, congeladas até que o calor ou a
luz do Sol as libertasse.
Ainda não tinha visto o Sol no meio de toda aquela neve e céus nublados, por
isso era provável que demorasse muito tempo até ao degelo. Se chegasse a
acontecer. Lembrei-me da forma como o Ira se havia banhado na luz do Sol
numa tarde preguiçosa no telhado do seu castelo na minha cidade. Na altura,
presumira que ansiava pelos poços ardentes da sua casa infernal. Agora sabia a
verdade.
Conjuntos de flores — rosas, peónias e uma com pétalas que pareciam
pequenas luas crescentes de prata — adornavam secções mais largas do
labirinto.
Caminhei lentamente pelo trilho interior, sebes elevando-se de ambos os
lados, paredes vivas polvilhadas com neve. Os jardins da Casa Ira eram outro
exemplo impressionante do seu gosto refinado. Segui o caminho serpenteante
até chegar a uma piscina refletora perto do centro.
Na água havia uma estátua em mármore de uma mulher nua: uma coroa de
estrelas na cabeça, duas adagas curvas nas mãos e uma expressão de fúria
gelada. Parecia que ia rasgar o tecido do universo com aquelas lâminas e não se
arrepender de nenhuma das suas ações.
Uma serpente enorme — duas vezes mais grossa do que os meus braços —
enroscava-se em torno do seu tornozelo esquerdo, deslizava-lhe entre as pernas,
agarrando-se à barriga da perna e coxa esquerdas e depois enrolava-se à volta da
sua cintura e costelas. A sua cabeça grande cobria-lhe um seio enquanto a
língua se movia para o outro, não como se o estivesse prestes a lamber, mas
como se bloqueasse a vista de transeuntes curiosos.
Aproximei-me, extasiada e um pouco horrorizada. Na realidade, o corpo da
serpente escondia-lhe a maior parte da sua anatomia íntima. Como se fosse uma
espécie de protetor malévolo. As suas escamas haviam sido esculpidas com
especial cuidado, como que para nos fazer acreditar que outrora havia sido real
e depois transformara-se em pedra.
Contornei a gigantesca estátua. No seu cabelo longo e ondulado, havia
pequenas flores em forma de lua crescente esculpidas nas madeixas soltas. Perto
do fundo da coluna, o símbolo de uma deusa esculpido horizontalmente. Estendi
a mão para acariciar a cobra quando ouvi um rugido baixo e agudo das
profundezas da Terra. Recuei e colidi com uma parede de carne quente.
Antes de sentir medo ou de ter tempo para reagir, um braço com músculos
de aço serpenteou à volta da minha cintura e puxou-me para si. Uma adaga
afiada foi pressionada contra o meu flanco. Estaquei, respirando o mais
superficialmente possível. O meu atacante inclinou-se para a frente, a sua
respiração quente contra a minha pele gelada. Os pelos da nuca arrepiaram-se-
me.
— Olá, pequena ladra.
Inveja.
Empurrei o medo para as profundezas do meu ser, afastado de onde ele
poderia detetar o quanto me havia afetado.
— Atacar um membro da Casa Ira é uma tolice. E vir aqui sem convite é
duas vezes mais imprudente. Mesmo para vós, Alteza.
— Roubar um príncipe é punível com a morte. — O seu riso baixo excluía
qualquer traço de humor. — Mas não é por isso que estou aqui, Bruxa das
Sombras.
Ele largou a adaga e libertou-me tão depressa que me inclinei para a frente.
Endireitei os ombros e encarei-o com uma expressão fria e dura.
— Se vieste pelo livro de feitiços, a tua jornada foi em vão. Pertence-me a
mim.
Pretendera dizer que pertencia às bruxas, mas quando as palavras me
escaparam dos lábios, senti que era essa a verdade. O Inveja pestanejou
lentamente.
— Audaz e descarada. Talvez tenhas mesmo encontrado as tais garras. — O
seu olhar deslizou para mim e depois para a estátua. — Notaste alguma coisa
estranha ultimamente? Alguma coisa estranha na tua magia, talvez?
— Não.
Ele lançou-me um breve sorriso.
— Todos nós somos capazes de detetar mentiras, Emilia. Deixa-me ser
franco. Tu roubaste-me, mas eu também te roubei a ti. Olho por olho.
— Nada me foi roubado.
— Havia uma maldição no livro de feitiços. Qualquer pessoa que o
removesse da minha coleção perderia algo vital em troca.
Um medo gelado percorreu-me as veias. Não havia sido capaz de mergulhar
na fonte da magia desde que regressara da sua casa real.
— Estás a mentir.
— Eu? Talvez devesses lançar-me um feitiço da verdade.
Ele embainhou a sua adaga e voltou a examinar-me lentamente enquanto
esperava. Embora suspeitasse que seria inútil, concentrei-me naquele poço de
magia, tentando mergulhar nele e extrair magia suficiente para o expulsar —
bem como a sua expressão presunçosa — daquele círculo.
Encontrei apenas uma parede incrivelmente espessa onde em tempos sentira
aquela besta adormecida. Ele sorriu com desprezo, como se a visão de mim o
enojasse.
— Foi o que pensei. Agora, minha querida, não és mais útil do que um
mortal.
Ele virou-se e começou a ir-se embora.
Marchei atrás dele, fumegando.
— Não tinhas o direito de me amaldiçoar.
— E tu tinhas ainda menos direito a roubar. Eu diria que estamos quites.
Pensei nos meus planos para encantar o vinho no Banquete do Lobo.
Precisava dos meus poderes de volta. Não era negociável.
— Está bem, eu devolvo o livro. Espera aqui enquanto o vou buscar. O
Inveja enfiou as mãos nos bolsos, ponderando a oferta.
— Acho que esta reviravolta nos acontecimentos é muito mais inte‐
ressante. Fica com o livro. Prefiro ver os teus planos desmoronarem-se.
— Estou disposta a fazer um acordo.
— É uma pena que não tenhas pensado nisso antes. Podia ter estado aberto
a um acordo que nos teria beneficiado a ambos. Agora? Agora vou gostar de ver
o destino seguir o seu caminho.
Cerrei os dentes para não o amaldiçoar ou implorar-lhe que reconsiderasse.
Um gemido ténue ressuscitou das entranhas da Terra. Num instante, os arrepios
subiram-me pelo corpo. Virei-me para olhar para a estátua.
— Se fosse a ti, não ficaria muito curioso com isso, bicho.
— Eu disse-te para não me chamares...
Voltei-me para encarar o Inveja novamente, apenas para descobrir que ele
desaparecera. Um tufo de verde brilhante e fumo preto era a única indicação de
que ele havia estado ali. Olhei para trás, para a estátua, e ouvi o gemido do que
quer que estivesse a ser torturado por baixo dela. Era um som triste e sem
esperança. O som de um coração partido. Um som que perfurava a minha
armadura emocional.
Perguntei-me o que estaria tão amaldiçoado para o Ira ter de o enterrar
debaixo da sua perversa Casa no submundo, sozinho e infeliz. Depois apercebi-
me de que devia ser mais horrível do que eu poderia sequer imaginar para
receber tal castigo. O Ira era a espada da justiça, rápida e brutal, sem emoções.
Mas não era cruel.
Fosse o que fosse que estava a emitir aqueles terríveis gemidos... eu não
queria ficar sozinha com aquilo sem magia. Deixei o jardim à pressa, e os
gemidos de sofrimento continuaram a ecoar nos meus ouvidos muito depois de
me ter enfiado entre os lençóis naquela noite.

No dia seguinte, a Fauna dançou entusiasmada à minha porta. As suas


pancadas eram tão rápidas e leves como as asas de um beija-flor. Abri a porta e
sorri. Os seus pés moviam-se tão depressa como a velocidade com que nos fazia
girar.
— Os convites para a festa chegam esta semana!
O meu sorriso desapareceu. Depois do treino diabólico do Ira, não partilhei
do seu entusiasmo. Para ser sincera, não me sentira entusiasmada com a festa
em momento algum desde que ele me falara nela. Mas agora... Agora dei pelo
meu olhar a flutuar para o relógio, sobressaltando-me com cada som que ouvia
no corredor. Estava longe de me sentir preparada para resistir à influência de um
príncipe-demónio. Já para não referir que não ter a minha magia era outro obstá‐
culo que não havia previsto.
A Fauna parecia pensar que não sabíamos quem seria o anfitrião por mais
alguns dias, mas eu suspeitava do contrário. Não tinha qualquer fundamento
para os medos que continuavam a crescer dentro de mim, por isso tentei o meu
melhor para ignorar a apreensão que se apoderara de mim como uma nuvem
indicativa de tormenta.
A minha amiga pediu chá e doces e deixou-se ficar na minha sala de estar
com um livro. Tentei relaxar da mesma maneira, mas estava demasiado tensa.
Depois do meu encontro com o Inveja no jardim, passara a pente fino vários
livros de magia em busca de uma forma de quebrar uma maldição ou mau-
olhado.
Era complexo — tinha ou de ser libertada por quem a tivesse lançado ou de
descobrir a sua estrutura intrínseca. Num grimório, vinha descrito como algo
semelhante a um conjunto de fios mágicos entrelaçados. Teria de localizar o nó
de origem e depois cortá-lo. Se me enganasse ou desfizesse o nó errado, poderia
acabar por cortar magicamente o fio da vida. E morrer.
O autor do livro sobre maldições certificara-se de o assinalar diversas vezes,
como se alguém pudesse confundir o significado de «cortar o fio da vida».
Por momentos, admitira uma visita à Matrona das Maldições e dos Venenos,
mas continuaria a ter de enfrentar a séria possibilidade da morte se não
localizasse o fio correto.
Era uma aposta que não estava disposta a fazer. Pelo menos, não neste
momento.
Desejei que o Anir aparecesse e começasse a nossa lição mais cedo. O
treino físico ajudar-me-ia a queimar o excesso de nervosismo. E precisava
desesperadamente de me livrar desta inquietação.
Por fim, já a noite ia avançada, um criado entregou-me o envelope que eu
tanto temia. Não havia nenhum brasão real, nenhuma indicação do que
continha, mas eu sabia. O meu nome e o meu título eram as únicas informações
escritas. O que indicava que não se tratava apenas de um bilhete do príncipe
daquela Casa.
Aceitei o envelope que me foi entregue pelo criado com o mesmo
entusiasmo de alguém que acaba de receber notícias da sua execução. Usei a
adaga fina que o Ira me oferecera e cortei a borda superior do envelope com
cuidado.

Se o meu coração batesse com mais força, poderia partir uma costela.
Fora-me dito que teria uma escolha, mesmo que no final fosse encorajada a
escolher a casa anfitriã. Não pude deixar de temer que outras regras acabassem
por ser postas de lado à última hora.
Olhei para o convite, cuja elegância contrastava fortemente com o pânico
que induzia. Ter sido escolhida como convidada de honra não me surpreendera
— o Ira deixara bem claro que havia grandes hipóteses de ser eu a
desafortunada —, mas vê-lo a preto-e-branco fez com que tudo parecesse
terrivelmente real.
Sobretudo a parte do meu maior medo ou de ter um dos segredos do meu
coração arrancado à força diante de todos os convidados. Com as «lições» do
Ira e a mortificação e o horror que implicavam tão frescas na minha mente, eu
senti que ia vomitar.
— O que é isso? — A Fauna pôs o seu livro de lado. — Sua Alteza mandou
chamar-te?
— Não. — Deixei escapar um suspiro. — É o convite para o Banquete do
Lobo.
— Tão cedo? — Ela saltou do sofá, estendendo a mão com um entusiasmo
impossível de conter. — Quem é o anfitrião desta temporada? — Passei-lhe o
convite, e a sua boca abriu-se de espanto enquanto o lia. — A Casa Gula.
Interessante. As festas dele são lendárias pela sua devassidão. O Inveja e o
Ganância devem ter retirado as suas candidaturas a anfitrião.
— Imagino que o Príncipe Gula terá muita comida.
— Não é só isso. A sua casa é o puro reflexo da indulgência a todos os
níveis. O álcool flui das fontes, a roupa é opcional no seu jardim crepuscular e
os encontros íntimos acontecem frequentemente em salas de vidro no próprio
salão de baile. Não há nada de clandestino no seu mundo. Tudo está disponível
para consumo: carne, comida, bebida, desejo carnal e todo o tipo de vício.
Sabias que o anfitrião era ele?
— É a primeira vez que oiço falar disto. Já foste a uma das suas festas?
— Não. Da última vez que ele foi anfitrião, eu era demasiado nova. Sempre
tive curiosidade. Algumas das histórias assumiram uma aura surreal, semelhante
a uma fábula. É difícil saber o que é real e o que é pura fantasia. Sobretudo com
o que aquela escritora publicou sobre ele no seu último artigo sobre a realeza.
— Imagino que os colunistas tenham muito em que se inspirar.
— Oh, e têm, e ela mais do que qualquer outro. Ela odeia-o mesmo. Diz-se
que ele arruinou a hipótese de o primo dela casar com um membro da nobreza, e
foi por isso que ela pegou na caneta amaldiçoada. Que escândalo! — A Fauna
soltou um suspiro feliz e depois uniu as sobrancelhas como se um novo
pensamento ameaçasse de repente encobrir-lhe o sonho ensolarado. A sua
atenção desviou-se mais uma vez para o convite. — Que medo achas que te será
arrancado do coração?
— Qualquer que seja, tenho a certeza de que será horrível.
— Talvez possamos trabalhar em algo que não seja muito mau.
— Se apenas a preocupação de dançar num baile sem pisar os dedos de
ninguém e causar uma cena fosse o meu maior medo.
Que dançar me deixava nervosa não era propriamente uma mentira. Nunca
fora a um baile real ou formal antes. Apenas dançáramos em festivais com
outras pessoas da nossa zona. Aqui, toda a gente estaria a assistir, a julgar. Não
me deveria importar com o que eles pensavam ou se se ririam de mim, mas
quando me imaginava ali de pé, vulnerável e exposta, o meu estômago encolhia.
— És um génio! — A minha amiga virou-se lentamente para mim e exibiu
um grande sorriso. — Podemos encontrar um feitiço ou uma poção. Vamos
transformar-te na pior dançarina dos Sete Círculos, digna do teu maior medo.
— Fauna — adverti. — Estava só a brincar.
— Não, pode funcionar. Se bebesses uma poção para fazer com que esse
medo ganhasse vida de forma desproporcionada, é ainda mais provável que te
seja arrancado enquanto estás no baile.
— E se descobrirem o ardil, o que acontece?
— Apenas temos de nos certificar de que usamos um feitiço ou uma poção
de primeira categoria.
— Ainda assim, a realeza consegue sentir a traição e as mentiras.
— Bastar-nos-á praticar para nos assegurarmos de que fica perfeito.
— Não há necessidade de te preocupares com isso, porque não vamos
enganar ninguém, Fauna.
— Devíamos perguntar à matrona se ela pode... — A Fauna desviou a sua
atenção do convite e contemplou a minha expressão. — Sangue de anjo. Parece
que precisas de uma distração com alguma urgência. Tenho o lugar perfeito em
mente. Anda, vamos lá.
Sem me dar hipótese de me opor, agarrou-me no braço e apressou-nos para
fora dos meus aposentos. O convite caiu-lhe da mão, esquecido por agora. Pelo
menos para ela.
O medo bateu-me no peito como um tambor, o ritmo constante e
implacável. E suspeitei que fosse manter-se assim até ao temido banquete.

A ideia da Fauna de uma distração não me poderia ter servido melhor. Após
quase me arrastar pelos corredores reais, descendo vários lanços de escadas e
atravessando o salão dos criados, chegámos, por fim, a uma cozinha
movimentada. Fiquei ali parada, a absorver as vistas e os sons.
O pessoal da cozinha estava a preparar a ementa para o jantar e a cozinha
estava a vibrar de vida.
Várias mesas encontravam-se dispostas à volta do espaço, com grupos de
trabalhadores designados para diferentes tarefas. Alguns estavam a cortar
vegetais, outros a trinchar carnes, outros a amassar massa para pães e bolachas.
Havia ainda mais pessoas diante de panelas e frigideiras.
Senti uma ameaça de lágrimas, mas reprimi-a. De nada me serviria chorar à
frente dos trabalhadores da Casa Ira.
O cozinheiro olhou para nós e depois apontou para uma mesa perto de uma
parede cheia de janelas. Estavam abertas, para deixar sair o calor do fogo dos
fornos.
— Pode usar tudo o que desejar, Lady Emilia. Se não encontrar o que
precisa, basta pedir.
— Obrigada.
— Agradeça a Sua Alteza. Ordenou-nos que lhe providenciássemos tudo o
que quisesse.
— Ah, sim? — A Fauna mal escondeu o seu risinho enquanto avançava mais
na cozinha. — Que incrivelmente atencioso, não concorda, Lady Emilia?
— Claro.
Olhei em volta. Não era nada como o nosso pequeno restaurante familiar —
este era muito maior e imponente —, mas, ainda assim, senti-me como em casa.
Contra o meu melhor juízo, fui trespassada por uma onda de gratidão. O Ira
adivinhara que eu acabaria por ir até lá, ao único lugar naquele reino que me
seria familiar como nenhum outro. E deixara claro ao pessoal que eu seria livre
de fazer o que me apetecesse. Senti-me igualmente grata a eles por me
acolherem no seu domínio.
Voltei-me para o chefe de cozinha.
— Obrigada por me deixar entrar na sua cozinha.
Ele inclinou a cabeça e voltou a gritar ordens aos cozinheiros da linha da
frente.
A tensão nos meus membros dissolveu-se quando remexi na caixa de gelo
e vi um cesto cheio de bagas. Junto a ele encontrava-se um frasco com o que
suspeitei ser ricota. A minha mãe era a mais talentosa da família com as
sobremesas, mas eu aprendera o suficiente para fazer uma tarte com as bagas.
Juntei todos os utensílios e produtos necessários e montei a minha área de
trabalho perto da janela gigante. Em poucos minutos tinha a massa da tarte
preparada. Apressei-me a lavar as bagas e coloquei-as sobre um pano para
secar, à espera do açúcar com que as iria polvilhar. Talvez também fizesse um
custard.
O som de metal contra metal chamou a minha atenção. Do outro lado da
janela, o Ira e o Anir andavam de um lado para o outro, as suas espadas e
punhais colidindo como trovões. Não pude evitar ficar boquiaberta enquanto se
atacavam um ao outro, açoitando o ar com as armas. Saltavam, literalmente,
faíscas de cada vez que as suas armas se encontravam.
Lancei um olhar acusador à Fauna.
— Vejo que a cozinha não era a única distração que tinhas em mente.
O seu sorriso era demasiado largo para ser inocente. Saltou para o
parapeito da janela, pegou numa caneta e num caderno e fingiu escrevinhar com
grande dedicação enquanto espreitava por cima das páginas e observava os dois
guerreiros numa batalha simulada. Moviam as respetivas espadas acima da
cabeça, os seus corpos poderosos tensos pelo esforço do treino e por levantar as
pesadas armas.
— Não faço ideia do que quer dizer, minha senhora. Desconhecia que eles
estavam aqui.
— És uma péssima mentirosa. — Observei-a enquanto ela fitava o Anir
com uma expressão sonhadora e lembrei-me de ter visto os dois a conversar
antes da remoção da língua do Makaden. — Há quanto tempo estás apaixonada
por ele?
Ela virou-se para mim e olhou-me nos olhos.
— Porque achas que me preocupo com o mortal?
— Quando nos conhecemos, disseste que conheceria o alvo do teu afeto e
ainda não paraste de olhar para ele. Não me irei intrometer se preferires guardar
segredo, mas eu gosto do Anir. — Fiz sinal com a cabeça para a área da
sobremesa que havia montado. — Não tenhas medo de pegar no rolo da massa e
ajudar. Ele não morde.
Ela riu-se de detrás do seu caderno.
— Talvez não, mas já viste a forma como o príncipe olha para ti? É à sua
mordidela que deves ficar atenta.
Estendi a massa para a base com uma concentração inigualável, fazendo tudo
o que estava ao meu alcance para não olhar para ele. De todos os lugares em
todo o castelo, ele tivera logo de escolher aquela altura para treinar, com uma
armadura de couro sem mangas, diretamente em frente das janelas da cozinha.
Apesar de desconfiar de que a Fauna fosse igualmente culpada em relação a
este suposto encontro inesperado.
— Ele adora doces — justifiquei, ao perceber que ela ainda estava à espera
de uma resposta. — Deve estar a olhar para a tarte.
— Não me parece que a sobremesa seja a única coisa que ele queira provar,
minha senhora. Quem me dera que o Anir olhasse para mim com tanto desejo.
— Insinua-te.
— Acredita, se ele mostrasse qualquer sinal de estar recetivo aos meus
avanços, atirar-me-ia sem hesitar. Sua Alteza parece estar a viver o mesmo
dilema neste preciso momento.
O meu olhar traiçoeiro deslizou para a janela. A luz de uma tocha fez refletir
o brilho do suor que o Ira adquirira ao brandir a espada. Os nossos olhares
cruzaram-se quando o metal da sua lâmina encontrou a do Anir. A Fauna estava
certa. O Ira parecia estar a debater-se com a magia da nossa ligação. E estava a
perder a batalha. Ele não se preocupou em esconder o seu olhar.
Prontamente, voltei a estender a massa, usando mais concentração do que a
necessária.
Não conseguia esquecer a sensação da adaga a deslizar-lhe para a carne.
Deixei o rolo de massa de lado e comecei a trabalhar no custard, forçando o
som de ossos a quebrar para fora dos meus pensamentos.
— Se me permites, o favor que ele te concedeu não foi pequeno.
— Que favor?
— Não insistir que finalizes o vínculo matrimonial. Não se tem falado de
outra coisa.
Esperava que o rubor nas minhas faces pudesse ser confundido com o efeito
do calor da cozinha. Fabuloso. A corte inteira estava imersa em mexericos sobre
a nossa suposta vida sexual.
— Está claro que este reino precisa de aprender a diferença entre escolhas e
favores.
Ela encolheu os ombros.
— Há quem diga que a tua escolha foi feita na noite em que iniciaste o
noivado. Na verdade, foi ele quem não teve escolha.
— Custa-me a acreditar que o Ira tolere que a sua corte discuta assuntos que
apenas nos dizem respeito a nós.
— O teu possível futuro como princesa deste círculo faz com que diga
respeito a todos nós.
— Eu...
— Ninguém te censura. É só que... ter um co-governante concede mais poder
à realeza. Protege-nos de quaisquer príncipes aborrecidos de outras casas.
Aqueles que gostam de causar problemas de vez em quando. Os príncipes são
imortais, e embora a maioria dos demónios tenha vidas extremamente longas,
nós não. A maioria preocupa-se que, se a corte entrar em guerra, o nosso
príncipe não faça tudo o que estiver ao seu alcance pelo bem do nosso reino. Há
sussurros de que ele pode estar a enfraquecer.
— Isso é ridículo — escarneci. — Ele é o príncipe mais poderoso que já
conheci.
— Não é o seu poder que está em causa, apenas o seu coração. Ele poderia
seduzir-te facilmente. Usar a sua influência se fosse precisa E mesmo assim está
a dar-te tempo para decidires por ti mesma.
— Lamento, mas tenho dificuldade em compreender como é que isso pode
ser um conceito tão estranho para ti. Os membros da corte acham mesmo que eu
devia ser obrigada a casar-me com ele? Ou a dormir com ele contra a minha
vontade? No mundo mortal, existem leis contra esse ato repugnante.
— Eu não estava a falar de violação, minha senhora. Essa prática não é
tolerada aqui, não sem que o Ira acabe com a vida de quem se atrever a tomar
alguém contra a sua vontade. — A Fauna olhou para mim. — Não fiques tão
surpreendida. Os Sete Círculos podem ser governados pelo pecado, mas alguns
atos são demasiado depravados, mesmo para o nosso reino. O castigo para a
violação é a morte. Executado pela própria mão do Ira. Há cortes que preferem
a castração. Prometo-te que se um príncipe decidisse seduzir-te, sobretudo o
nosso, escolherias de bom grado subir para a sua cama por livre vontade.
— E a corte questiona o porquê de ele não tentar seduzir-me?
— Entre outras coisas. — Ela encolheu os ombros enquanto o meu olhar se
desviou do custard para ela. — Considera isto: se um dos botões do seu fato
estiver desalinhado, a corte irá falar. Creem que se um príncipe não é capaz de
cuidar de algo tão simples como a sua roupa, não há esperança de que se
preocupe com aqueles que vivem neste círculo.
— Devem ter muito tempo livre se se dedicam a espalhar mexericos sobre
botões desalinhados.
— Nunca é realmente sobre a roupa. É sobre o significado subjacente ao
motivo que levaria o príncipe a não prestar atenção suficiente ou a não se
preocupar com esses pequenos detalhes.
Pensei em como o Ira ficara ofendido com aquela velha camisa do
mercado que eu lhe dera. Na altura, tomara-o por um homem arrogante que não
estava habituado a usar roupa de camponês. Agora sabia que se devia a algo
muito mais profundo: se alguém deste reino o tivesse visto, teria questionado a
sua regência.
— Um governante distraído é perigoso, Emilia. É um sinal de fraqueza.
Faz com que os membros da sua Casa se perguntem se deveriam procurar novas
alianças.
E os príncipes do Inferno cobiçavam todo o poder. O Ira devia estar ávido
por completar o vínculo. Mas acedera a abdicar da segurança da sua Casa, do
poder adicional, a suportar os rumores da corte, tudo para que eu pudesse ter a
única coisa que ele cobiçava acima de tudo: a escolha.
— Ele mencionou algo sobre ser necessária uma cerimónia. Se nós... —
inspirei profundamente. — Se...
— Se fizerem amor de uma forma doce, apaixonada e luxuriosa? —
sugeriu a Fauna, com ar inocente. — Se se devorassem um ao outro até às
primeiras horas da manhã? Se gritassem o nome um do outro enquanto ele te
dobra para a frente e enfia o seu?...
— ... sim. Isso. O nosso casamento não estaria completo até que a
cerimónia também fosse realizada, certo?
— Certo. — A Fauna sorriu como se estivesse consciente da direção dos
meus pensamentos. — O que quer que tenha acontecido entre vocês os dois no
passado, não duvides dele agora. Ele deve respeitar-te o suficiente para
condenar a sua própria corte. Ainda que seja por um período fugaz.
Reparei que ela não dissera nada sobre ele se preocupar comigo ou me
amar. Perguntei-me se ter um marido que me respeitasse seria o suficiente para
compensar a ausência das outras duas coisas. Talvez eu pertencesse à Casa
Ganância. Não pensei que me contentasse com um casamento que não incluísse
as três.
E ainda mais problemático... Não tinha a certeza de quando começara a
considerar tomar o Ira como marido. Eu já estava no submundo. Em breve iria
conhecer todos os príncipes e ter a oportunidade de descobrir alguns dos seus
segredos. Não precisava de casar. E não obstante os meus sentimentos naquele
momento, não abandonaria a minha família por ninguém. Enquanto me
concentrasse nisso, todas as minhas noções românticas desapareceriam.
Com sorte.
Mais tarde nessa noite recebi um bilhete com a caligrafia do Ira.

Considerei ignorar o seu pedido ou levar um par de calças e uma blusa só


para provar que ele não me controlava nem era meu dono. Mas agir por despeito
não era o caminho que queria seguir.
Por muito satisfatório que tivesse sido ver o brilho de incredulidade no seu
exigente rosto demoníaco, as suas lições acabariam por me trazer proveito.
E, naquele momento, estava disposta a aproveitar todas as vantagens a que
pudesse deitar a mão. O Banquete do Lobo aproximava-se a um ritmo
alarmante, e eu estaria preparada para enfrentar os demónios no seu território e
esmagá-los no seu próprio jogo. Da forma mais elegante e traiçoeira que se
possa imaginar.
Com um suspiro, atirei o bilhete para as chamas e fui vestir-me para o meu
treino com o Ira.
Capítulo 20

— Assim que começares a sentir a carícia da magia, deves agarrar-te


firmemente às tuas emoções e não as largar. Tens uma tendência natural para
gravitar para a raiva, por isso usa-a no início se necessário.
O Ira andou à minha volta na sala de armas, um brilho predatório nos olhos
enquanto me examinava o vestido. Um caçador talentoso a perseguir a sua
presa. Mal sabia ele que não fora só ele quem armara esta armadilha em
particular. E que tampouco iria sair vitorioso.
Esta noite, era claramente mais besta do que homem, sobretudo no que dizia
respeito à batalha.
Com calças justas de cabedal e armadura sem mangas a condizer, parecia
transformado. Este não era o príncipe bem-nascido que presidia a uma corte
demoníaca. Esta era uma criatura feita para lutar. E o primeiro vislumbre que eu
tinha do guerreiro marcado pela batalha, além do seu treino ao início da noite
com o Anir.
Os seus dentes brilhavam numa pobre imitação de um sorriso, aumentando
as minhas suspeitas de que, naquele momento, era apenas um animal. E isso
agradava-lhe. Deixei que o meu olhar vagueasse por ele. Talvez também me
agradasse.
— Senti-lo-ás como um sussurro através da tua pele. Subtil o suficiente para
ser quase impercetível. O teu livre-arbítrio é a única coisa que precisas de te
lembrar. Não sucumbirás a ninguém se optares por não o fazer.
A atmosfera entre nós estava carregada. Depois de ele me ter forçado a
apunhalá-lo, a nossa relação estava num ponto nem demasiado amigável, nem
totalmente consumida pelo ódio. Dado que ele se parecia com a Guerra e eu
com a Sedução, esta lição poderia acabar por tornar-se interessante.
— Portanto, o que estás a dizer é que me concentre na minha mente e na
minha vontade. Ou que imagine matar-te para manter o controlo sobre as
minhas próprias emoções. Não me parece difícil. — Sorri. — Se eu for bem-
sucedida na lição esta noite, creio que deverás aceder a rastejar perante mim. Na
verdade, adoraria ver-te de joelhos, a implorar.
O seu olhar desviou-se para o meu corpete.
A frente estava decorada com um conjunto de fitas minúsculas. Não tinha
ilusões quanto ao que ele planeara para tal vestido, sobretudo se o nosso treino
fosse parecido com a nossa última sessão. Sem dúvida de que usaria a sua
influência demoníaca sobre mim para desfazer todas e cada uma das fitas. E eu
não pararia até estar diante dele, vestida apenas com a roupa interior rendada
que usava por baixo.
Ou talvez esses fossem os meus próprios desejos secretos a vir à tona. Optara
por aquela roupa interior em particular com muito cuidado.
— As apostas são com o Ganância. Não comigo.
— No entanto, parece-me que, se eu ganhar, o golpe será contra o teu
orgulho. É por isso que não te irás ajoelhar perante mim. Talvez não consigas
suportar a ideia de te renderes a alguém. Mesmo à tua possível futura esposa.
— Não te enganes, Emilia. Quando me ajoelhar perante ti, será para
conquistar, não para me render. Se tiveres alguma dúvida, terei todo o gosto em
provar que estás errada. Agora, desaperta a minha armadura.
As suas últimas palavras estavam imbuídas de uma ordem mágica.
Senti a ligeira sensação de formigueiro que ele descrevera como sendo a sua
influência demoníaca, tentando controlar as minhas emoções para as vergar à
vontade do príncipe-demónio. Estava a meio da sala de armas antes de me
libertar da sua influência pecaminosa. Fui varrida por uma pequena onda de
emoção. Não precisava da minha magia para lutar contra ele. Apenas da minha
vontade.
— Desaperta-me a armadura, agora. Depois, corta-me o cinto com a tua
adaga.
Desta vez, o Ira usou toda a força do seu poder. A magia acariciou-me,
impulsionou-me para a frente. Desamarrei-lhe a armadura e deitei-a fora numa
questão de segundos.
Deslizei a mão para debaixo do meu vestido e, num movimento rápido,
puxei a adaga escondida. A lâmina já estava no seu cinto quando por fim
recuperei o controlo.
A boca do Ira apertou-se numa linha firme.
— Estás distraída.
— Porque será? — Fingi pensar sobre isso. — Talvez esteja relacionado
com o convite que recebi para o Banquete do Lobo. Ouvi dizer que as festas do
Gula são lendárias pela sua devassidão.
— A maioria dos eventos está carregada de pecado e vício. É a norma neste
reino e a razão pela qual estamos a treinar. Mas não é isso que te preocupa.
— Pensei que teria uma palavra a dizer sobre onde organizar a festa. —
Brinquei com a adaga. — Eu não... Não estou propriamente ansiosa que chegue.
— Por essa altura terás aprendido a sentir qualquer tipo de manipulação
emocional. E estarás pronta para te libertares da sua influência caso alguém se
comporte de maneira inadequada.
— Também não é isso.
Ele estudou o meu rosto.
— Não será agradável, mas não será o pior que irás experienciar.
— Como sempre, a tua capacidade de me acalmar é excecional. Eu... —
Abanei a cabeça, depois inclinei-me para pôr a adaga de volta na bainha da
minha coxa. — Não é só por o medo me ir ser arrancado.
— Os meus irmãos não te farão mal.
— Eu não sei dançar.
Ele levantou as sobrancelhas.
— Não te vão forçar a dançar se não quiseres.
Não lhe retribuí o olhar. Dançar dar-me-ia a oportunidade de passar tempo
com cada um dos seus irmãos. Imaginei que haveria um pouco de conversa
incluída, e não queria que a minha falta de requinte prejudicasse a minha
missão. Uma vez que já não podia tentar encantar o vinho, dançar e tomar um
refresco depois seria a oportunidade perfeita para conversar.
— Provavelmente tens razão. — Forcei-me a sorrir. — É uma parvoíce
preocupar-me com isso.
O Ira não respondeu de imediato. Inclinou a cabeça para o lado, os olhos
semicerrados.
— Dançaste na fogueira na noite em que conheceste o Luxúria. Foste
magnífica. Não vejo por que razão terias problemas com uma valsa.
Encolhi os ombros e voltei a minha atenção para a mesa ali perto. Nela
estavam dispostas em fila várias adagas estranhas. Eram pretas com uma longa
fenda no centro do punho e da lâmina.
— Facas de atirar de vinte centímetros. — Aproximou-se da mesa e pegou
numa das facas. — São de aço sólido, macias na base para serem mais difíceis
de agarrar, e têm mais peso à frente para tornar o arremesso mais preciso.
Queres praticar?
Passei um dedo ao longo do metal frio.
— Sim.
— Segura-a pelo cabo. Vamos trabalhar a tua técnica de girar.
Fiz o que ele disse e apontei para o alvo de madeira que o Ira indicou do
outro lado daquela zona da sala de armas. Rasgou o ar, atingiu o lado esquerdo
do centro e caiu no chão. O príncipe-demónio abanou a cabeça e entregou-me
outra adaga.
— A lâmina não cravou porque estás demasiado perto.
— Como é que sabes?
— Quando gira, se a lâmina estiver inclinada para baixo à medida que cai, é
indicativo de que deves recuar. Metade da arte de atirar facas e de as fazer
acertar no alvo está relacionada com de onde atiras.
Mudei a minha posição e repeti o passo. Desta vez a adaga acertou à direita
do círculo vermelho e ficou presa. Fui atravessada por uma sensação intensa de
euforia.
Estendi a mão, à espera da próxima adaga, e fiquei surpreendida ao sentir os
dedos do Ira a envolverem os meus.
— O que...
— Vamos dar início a uma nova lição. — Puxou-me gentilmente para perto
dele. — Põe uma mão no meu ombro. Agarra-te um pouco a mim com esta.
Muito bem. — Pôs os nossos corpos em posição e depois endireitou-se por
completo. — Os passos são simples. Vamos dançar como se desenhássemos
uma caixa. Dá um passo atrás com a frente do teu pé direito e segue com o
esquerdo. Mantém-nos separados cerca de trinta centímetros à medida que nos
movemos.
— Não podemos dançar aqui.
— Claro que podemos.
Éramos um par estranho. Sem a sua armadura, o peito do Ira estava nu e as
calças de cabedal ajustavam-se à sua forma, enquanto eu estava vestida de seda
carmesim. Ele não parecia importar-se. Agiu como se também usasse o melhor
traje de noite.
O príncipe guerreiro conduziu-me lentamente, passo a passo, mantendo-
nos a uma distância equivalente à largura dos ombros, enquanto deslizávamos
para trás, para os lados e para a frente, numa interpretação livre do que deveria
ser uma caixa.
Observei os nossos pés, receando pisá-lo ou ficar enrolada nas suas pernas.
— Levanta o queixo para poderes olhar-me nos olhos com adoração. —
Ele sorriu quando eu franzi o sobrolho. — Quero que te concentres em como
sou bonito e talentoso a dançar e a matar, e que esqueças tudo o resto. Exceto o
quanto me queres beijar.
Não consegui evitar; ri-me.
— És incorrigível.
— Talvez. — A sua voz tornou-se um sussurro sedutor enquanto a sua mão
deslizava para a base das minhas costas e me puxava para mais perto dele. —
Mas agora estás a dançar como uma deusa.
A sua calidez, os seus elogios, o músculo firme sob as pontas dos meus
dedos... Tudo isto me levou a aproximar-me dele. O Ira pressionou os lábios
contra o meu ouvido.
— Estás...
— Isto agora é o quê, um salão de baile? — O Anir estava encostado à
ombreira da porta de braços cruzados. Um sorriso preguiçoso espalhou-se-lhe
no rosto enquanto pestanejava. — Tencionais ensinar esta nova técnica a todos
os soldados, Vossa Alteza, ou apenas a nós, os mais bonitos?
Com o que pareceu exigir-lhe um esforço imenso, o Ira desviou o olhar de
mim, mas não desfez a nossa posição.
— Um bom guerreiro é especialista em armas. Um grande guerreiro é um
hábil dançarino. Talvez te promova a novo mestre de dança.
— Por mais emocionante que isso me pareça, tenho novidades. — O Anir
impeliu-se de onde se encostara casualmente e adotou uma expressão séria. —
É o mortal.
O Ira ficou tenso.
— O que aconteceu?
O olhar do Anir deslizou para mim.
— Está a perguntar pela Emilia.
— O Antonio? — Afastei-me do Ira, o coração a martelar. — Ele está aqui?
Capítulo 21

Esperava que as masmorras da Casa Ira fossem subterrâneas. Escuridão sem


fim interrompida apenas pelos feixes de luz esparsos das tochas espalhadas ao
longo dos corredores inóspitos. Pedras húmidas de urina e outros odores
imundos dos esquecidos e dos condenados a permear a própria essência do
espaço. Gritos de almas torturadas, que eram abomináveis o suficiente para
serem aprisionadas no Inferno. Convencera-me de que os gemidos que ouvira
nos jardins eram provenientes das celas.
A realidade era muito diferente.
Subimos uma ampla escadaria de pedra no interior de uma torre; o ar era
fresco e puro, e a luz entrava através de uma série de janelas arqueadas
instaladas ao alto. Uma bela porta de madeira saudou-nos no topo. Não havia
guardas no exterior. Não havia armas apontadas ao assassino que aguardava —
mais além das paredes de pedra clara — a sua audiência com o príncipe e
possível futura princesa daquela Casa do Pecado.
Lancei um olhar incrédulo ao Ira.
— Deixaste-o desprotegido?
— A porta está trancada com magia. E fecha-se por fora também. — Pousou
a palma da mão sobre a madeira e ela abriu-se. — Está encantada para se abrir a
nós.
Pestanejei muito devagar. Parecia ter perdido a capacidade de falar. Ou o Ira
confiava mais em mim do que deixava transparecer, ou não me considerava uma
ameaça. Era uma estupidez da parte dele subestimar-me.
Entrei na sala e estaquei.
O Antonio estava sentado numa cadeira de cabedal sumptuosa, um livro
repousava-lhe no colo e uma chávena fumegante do que parecia ser chá numa
mesa baixa ao seu lado. Tinha um cobertor sobre as pernas. Estava numa alcova
com vista para as montanhas cobertas de neve do reino. Um rio cor de ébano
deslizava pela propriedade como uma cobra gigante. A paisagem era de cortar a
respiração e o quarto muito melhor do que o seu dormitório na irmandade
sagrada. Esta cela era o cúmulo do conforto.
Não tinha a certeza se havia parado de respirar.
O Antonio olhou para cima quando chegámos, os seus olhos castanhos
cálidos e amigáveis. O ódio com que olhara para mim no passado havia
desaparecido. A repulsa.
— Emilia. Vieste.
Uma onda de raiva esmagadora apoderou-se de mim assim que vi o seu
sorriso. Quando ouvi a suavidade da sua voz. Aqui estava a espada humana que
assassinara a minha irmã gémea, aconchegada com um livro e uma bebida
quente. Como se estivesse a tirar umas agradáveis férias da irmandade sagrada
em vez de sofrer pelos seus crimes. O Ira fora inteligente, afinal de contas, em
esconder de mim a sua localização.
Já estava a meio da sala quando o Ira me enrolou os braços à volta da
cintura e levantou no ar. O contacto pouco fez para acalmar o fogo nas minhas
veias.
Agitei as pernas, tentando atingir aquele humano desprezível.
— Solta-me imediatamente, eu vou matá-lo!
O Ira prendeu-me contra o seu corpo firmemente. Enfrentei-o, selvagem,
com uma fúria que se intensificou para lá do controlo ou da razão. Nas
profundezas da minha mente, sabia que esta reação era exagerada, mas perdera
a capacidade de ver a razão.
Apenas via a vermelho.
O vermelho da raiva e a tonalidade carmesim do sangue da minha irmã a
acumular-se no chão duro. A manchar-me as mãos enquanto escorregava nele e
perdia qualquer sensação de paz que me restasse. Agora, seria eu a tirar-lhe tudo
até que não lhe sobrasse mais nada. Até que ele enfrentasse o mesmo destino
que a Vittoria.
Arrancar-lhe-ia aquele coração condenado do peito com os dentes, se
necessário.
O Antonio deixou cair o livro e afundou-se na cadeira, os olhos bem
abertos. A única coisa que se interpunha entre ele e um ataque feroz era o
demónio. Quanta ironia.
— Lembra-se do que lhe disse sobre a sua raiva, minha senhora?
A voz baixa do príncipe tinha uma pontada de troça que amorteceu o
inferno ardente que era a minha raiva. A vontade de resistir abandonou-me o
corpo, apenas para ser substituída por um tipo de tensão diferente.
Sem me soltar, o Ira levou-nos para o corredor e fechou a porta atrás de
nós com um pontapé. Com cuidado, pousou-me no chão, as minhas costas
contra a pedra fria e os seus braços posicionados de cada um dos lados do meu
corpo.
Um brilho de diversão atravessou-lhe nos olhos enquanto eu o fulminava.
— Controla o teu temperamento ou voltaremos a tentar amanhã.
— Isto foi um teste.
— E tu falhaste miseravelmente.
Tal como previra. Inspirei fundo pelo nariz e expirei pela boca. Tal como
ele fizera na noite em que havíamos discutido sobre as caveiras enfeitiçadas.
Repeti a respiração mais duas vezes antes de as minhas emoções acalmarem.
— Estou calma agora.
Um canto da sua boca curvou-se para cima.
— Acho fascinante que continues a mentir-me na cara quando sabes muito
bem que consigo detetar a falsidade. A raiva gera estratégias de batalha que
acabam em desastre. Se não conseguires controlar a tua raiva, arriscas-te a ficar
ferida.
— Está bem. Estou mais calma. Mas não por muito tempo, se não parares
de me bater com um pau.
— Mas que bela imagem mental.
E tal como ele pretendia, de repente já não estava a pensar em matar, fúria
ou raiva. No meu corpo surgiu um novo pulsar que pouco tinha que ver com o
meu coração. O meu olhar caiu para os seus lábios maliciosos e reparei na curva
tentadora que descreviam. O Ira não usara uma única grama de magia ou de
influência. Este estado de luxúria pertencia-me apenas a mim. E a este reino e
ao nosso estimulante vínculo matrimonial.
Ou talvez ele não fosse o único cuja raiva rapidamente se transformara em
paixão.
Talvez também fosse um afrodisíaco para mim.
— És tão inapropriado.
— Mentes. — O Ira moveu-se devagar e pressionou o corpo contra o meu.
O contacto físico foi uma distração mais do que bem-vinda da raiva ainda a
ferver dentro de mim. Concentrei-me no demónio, no calor que não emanava da
raiva. — Eu sou o teu noivo. E uma encarnação viva do pecado, como tu
outrora me chamaste. É de se esperar uma certa dose de comportamento
inapropriado. Sobretudo quando a futura princesa da Casa Ira é tão atraente.
— És um bárbaro. Acabei de tentar matar um homem.
— Precisamente. — Comprimiu os lábios sobre a minha bochecha. —
Pronta para tentar outra vez?
— Tentar matá-lo?
— Sugeria uma conversa, mas és livre, como sempre, para escolheres o teu
caminho.
— Então assassínio, ou pelo menos uma boa tareia.
— Tenta. — Aquela única palavra estava impregnada de desafio. — Vamos
acabar aqui outra vez.
Como se isso me afastasse.
— Confias em mim?
— É mais importante que confies em ti própria. — Ele afastou-se da parede.
— Só tu podes decidir como seguir em frente. O que gostarias de fazer?
Uma pergunta perigosa. Queria cortar o assassino ao meio, das tripas à
garganta, e ficar a ver as suas entranhas fedorentas e fumegantes espalharem-se
pelo chão. Essa resposta não me faria voltar a entrar. E, não obstante como me
tinha sentido momentos antes, não me queria transformar em alguém que não
fosse capaz de respeitar. Assassinar um homem, mesmo um que tivesse matado
violentamente a minha irmã gémea, apenas me rebaixaria ao seu nível. Fora por
isso que o Ira me fizera cravar a adaga nele na noite anterior.
Eu sabia o que sentira ao magoar alguém. Não iria sujar as minhas mãos de
sangue. Hoje.
O Ira esperou em silêncio, dando-me tempo e espaço para decidir o meu
próximo passo. A sua expressão era a mais gentil possível, sem qualquer
julgamento. Não detetei nenhum indício do que lhe ia na mente.
Rodei os meus ombros para libertar a tensão.
— Estou pronta para o questionar acerca da minha irmã.

— Emilia. — O Antonio pôs-se de pé num pulo. — Que bom ver-te.


O seu tom indicava que o que realmente queria dizer era: «Que bom ver que
já não estás a rosnar e a dar pontapés como uma besta raivosa a tentar rasgar-me
a garganta.»
No entanto, ainda agora tínhamos começado. Haveria muito tempo para
rosnar e tentar morder. A trela que pusera a mim mesma já começara a soltar-se.
Não lhe devolvi o sorriso inseguro. Só porque decidira não o esventrar, não
significava que tivéssemos voltado a ser amigos.
Entrei cuidadosamente no pequeno aposento da torre e senti o Ira a seguir
atentamente atrás de mim. Pelos vistos, a sua confiança tinha limites. Demónio
esperto.
— A sério? Concebi que, ao princípio, seria como olhar para o rosto de uma
das tuas vítimas. Apenas para descobrires que afinal ela não estava morta.
Houve um momento de silêncio que criou uma atmosfera desconfortável.
— Não posso... Palavras e desculpas nunca serão suficientes para compensar
o que te fiz.
— O que fizeste à Vittoria.
— C-claro. — A sua garganta estremeceu. Quase acreditei que a emoção era
real. — Tenho estado a tomar um tónico. — Apontou para o copo fumegante na
mesa pequena. — A matrona é talentosa a desfazer feitiços.
Parei no centro da sala. O Ira era uma sombra que pairava sobre mim na
minha visão periférica.
— É esse o teu novo argumento? A magia foi o verdadeiro vilão, não o teu
ódio?
O Antonio observou-me com atenção enquanto se inclinava para trás na sua
poltrona. Nem uma única vez o seu olhar se desviou para o príncipe-demónio
nas minhas costas. Ele não sabia que eu estava inibida de usar magia, que as
minhas ameaças não passavam de ameaças vazias. O seu medo desencadeou
algo em mim. Deu-me vontade de o atingir com mais força.
— Lembras-te da viagem que fiz àquela aldeia? Onde disseram que uma
deusa estava a celebrar com os lobos no reino espiritual e a ensinar-lhes formas
de se protegerem do mal?
— Deixa-me adivinhar. — O meu tom tornou-se gélido. — Vais dizer que
uma deusa desceu mesmo àquela aldeia para te amaldiçoar?
— Emilia, meu Deus. — Ele parecia ofendido. — Eu não...
— Esperavas perdão? Misericórdia não merecida? Tu assassinaste a minha
irmã. Mataste outras mulheres inocentes. Em vez de assumires a
responsabilidade pelos teus atos, tentas ludibriar-me com histórias su‐
persticiosas. Histórias que tu mesmo ficaste mais do que feliz por desvalorizar
como sendo tolas e infundadas, se bem me recordo. Admite a verdade do que
fizeste, dos teus erros, e não desperdices o meu tempo com lendas populares
antigas ou mais mentiras.
Girei nos calcanhares e dirigi-me para a porta. Não confiava na escuridão
crescente dentro de mim. O Ira afastou-se e deixou-me passar; a sua expressão
permanecia ilegível.
Virei-me na soleira e olhei para o homem que em tempos pensara amar.
Quão jovem e tola havia sido. O Antonio dedicara parte da sua vida à ordem
sagrada e nunca teria metade da honra do príncipe do Inferno ao seu lado.
— Quando recuperares todas as tuas memórias, ou seja lá o que for com que
a matrona te esteja a ajudar, manda chamar-me. Mas se me voltares a mentir,
virei buscar-te. Arrancar-te-ei o coração e dá-lo-ei a comer aos cães infernais. O
Ira não pode ficar de guarda a proteger-te para sempre.
O Antonio cerrou os lábios.
— Eu sei que tenho de ganhar o teu perdão. Por favor, Emilia. Por favor,
volta a visitar-me em breve. Deixa-me provar-te que sou de confiança.
O Inferno já estava congelado, por isso não salientei que seria necessário
descongelá-lo e transformá-lo no Jardim do Éden para que eu voltasse a confiar
nele.

Deixei o Ira na torre e corri de volta aos meus aposentos, indo direta para a
casa de banho. Tinha de absorver a experiência de estar na presença imunda do
Antonio. Chegara ao banco de vidro ao lado do meu toucador quando ouvi uma
pancada fraca.
— Entra.
— Minha senhora, eu sou a Harlow, e devo cuidá-la sempre que necessitar
de ajuda.
Olhei para cima, sentada que estava a escovar o meu longo cabelo. Uma
jovem criada demoníaca — com pele de lavanda e cabelo cor de neve —
encontrava-se à minha porta, algo nervosa. Respirei fundo e deixei sair o ar.
Recusava-me a permitir que o meu mau humor arruinasse o resto da noite.
— É um prazer conhecer-te, Harlow. Mas não precisas de te preocupar. Sou
capaz de tomar banho. — Ela mordeu o lábio e os seus olhos deslocaram-se
para a banheira afundada no chão. Perguntei-me se a minha recusa seria
interpretada como um insulto e não como uma tentativa de ser simpática.
Forcei-me a sorrir. — Se pudesses acrescentar alguns óleos e sabão à água, seria
agradável.
— É para já. — A Harlow apressou-se para dentro da casa de banho e a sua
expressão iluminou-se. — Vou buscar um pano de linho e ponho-o de lado para
que possa secar-se depois do banho, Lady Emilia.
— Obrigada.
A criada fez uma reverência rápida e depois saiu do aposento. Sabia que o Ira
dissera que os criados não esperavam que lhes agradecessem por fazerem o seu
trabalho, mas era estranho ignorar os esforços de alguém para me proporcionar
conforto. Ela ocupou-se da água, estendeu a toalha de linho e depois deixou-me
sozinha e em silêncio.
Deixei o roupão de seda escorregar dos meus ombros e pendurei-o num
gancho de cristal perto do toucador. As velas do candelabro tremeluziram com
os meus movimentos, acrescentando uma sensação de serenidade à atmosfera já
encantadora da casa de banho.
Depois da explosão de raiva que me consumira todo o pensamento racional
devido ao Antonio, era mesmo disto que eu precisava. Estava na altura de me
limitar a respirar, mergulhar e libertar a raiva que sentia.
Desci para a água quente enquanto os óleos perfumados ascendiam com o
vapor. Entre a dor das minhas aulas com o Anir e a tensão que me dominara o
corpo ao ver o Antonio, assim que entrei na água, foi como se estivesse no céu.
Submergi até ao pescoço e encostei-me à enorme banheira. Tentei esvaziar a
mente e as emoções. Sempre que repetia o que o Antonio me dissera sobre a
deusa e os metamorfos, sentia aquela assombrosa raiva assassina irromper.
Uma vez passada a fúria inicial, tentei analisar as suas palavras.
Não acreditava nele. Mas talvez o Antonio não tivesse sido influenciado por
um demónio. Não era impossível que uma bruxa tivesse cruzado o seu caminho
e fingido ser uma deusa. Ou seriam antes dois mortais influenciados por magia
demoníaca? Talvez a pessoa que se lhe revelara como o anjo da morte tivesse
sido outra vítima. Seria inteligente da parte do demónio se o Antonio nunca lhe
tivesse visto o rosto. Assim, nunca seria capaz de o identificar.
Depois das minhas lições com o Ira, sabia como era difícil resistir a um
ataque mágico, mas o perdão e a compaixão ainda estavam fora de alcance.
Parte de mim detestava admiti-lo, mesmo a mim mesma. Ficar tão furiosa... era
como se estivesse a abandonar o meu corpo e todo o sentido de humanidade
fosse substituído pela raiva mais elementar. Afundei-me na banheira, exausta
tanto emocional como fisicamente.
Devo ter adormecido; o ranger da porta a abrir acordou-me. Não ouvi passos
ou ruídos que indicassem o regresso da criada. Uma sensação desconfortável fez
a minha pele formigar. Não estava sozinha na casa de banho.
Alguém estava a observar-me. Alguém que não se tinha identificado.
— Harlow?
Um pedaço de linho enrolou-se à volta do meu pescoço, apertando-o. Os
meus dedos voaram para o tecido enquanto o fluxo de ar para os meus pulmões
era interrompido. Contorci-me na banheira, salpicando água em ondas
violentas. Um som estrangulado escapou-se-me dos lábios, mas não foi o
suficiente para alertar alguém para uma tentativa de homicídio. Senti a garganta
a queimar, vi manchas brancas nos cantos dos olhos. O pânico fez-me agitar o
corpo.
Depois lembrei-me da única coisa que não tirara para tomar banho.
A minha mão mergulhou imediatamente debaixo de água e emergiu com a
adaga que o Ira me oferecera.
Com uma explosão final de energia, puxei o braço para trás e senti um
entusiasmo selvagem enquanto a lâmina se afundava na carne macia do meu
atacante. O intruso ofegou e soltou o laço improvisado.
Nos segundos que demorei a arrancar o pano da garganta e a virar-me, ele
desaparecera. O único sinal de que alguma coisa tinha acontecido era a
quantidade obscena de gotículas de sangue que conduziam à porta. Com calma,
sentei-me e vesti o roupão. Depois chamei um criado para trazer o Ira. Tudo
enquanto sentia a pulsação a martelar-me nos ouvidos. Alguém tentara matar-
me. E eu apunhalara-o. Numa zona vital, a julgar pela quantidade de sangue no
chão.
Não consegui reunir uma única grama de arrependimento. Ou talvez
estivesse apenas entorpecida pelo choque.
No entanto, havia um detalhe que não me escapara. Graças à maldição do
Inveja por lhe ter roubado o livro de feitiços, não tivera magia com que me
defender do ataque. Não tivera poderes além do golpe físico que executara com
a adaga. O que significava que quem quer que tivesse vindo para me assassinar,
também não tinha magia para invocar. Se o tivesse feito, eu não estaria viva
naquele momento.
O Ira apareceu no meio de uma nuvem de fumo e de uma luz preta
brilhante, a fúria gravada nas suas feições gélidas.
— Estás ferida?
— Não. — Apontei para o sangue no chão. — Mas não posso dizer o
mesmo do atacante.
O Ira observou-me primeiro, concentrando-se no meu pescoço. A sua
expressão tornou-se tempestuosa. Imaginei que estivesse a começar a ficar com
nódoas negras. Os próprios alicerces do castelo tremeram.
— Queres acompanhar-me?
Olhei para as minhas mãos, para a adaga que ainda segurava, coberta de
sangue. Talvez me fizesse parecer fraca, mas não me vi capaz de testemunhar o
que estava prestes a acontecer. Abanei a cabeça, sem olhar o Ira nos olhos. Se
houvesse uma Casa Cobardia, provavelmente seria eu a sua rainha.
— É preciso uma força enorme para reconhecer os nossos limites, Emilia.
— A sua mão acariciou-me desde a têmpora até ao queixo, erguendo-o com
suavidade para que eu pudesse olhar para ele. — Uma verdadeira líder sabe
delegar. Tal como tu estás a fazer agora. Nunca duvides da tua coragem. Eu não
duvido.
Ao afastar a mão do meu rosto, o Ira olhou, por fim, para o sangue no chão.
Aproximou-se dele, um predador todo-poderoso à caça, e não proferiu mais
nenhuma palavra antes de desaparecer, com a adaga da sua Casa numa mão,
assemelhando-se a um pesadelo feito carne.
E para quem quer que tivesse acabado de me atacar na sua Casa, assumi que
era exatamente isso que ele estava prestes a ser. Que as deusas concedam ao
atacante uma morte rápida, porque o Ira certamente não o faria.
Capítulo 22

Tirei um pão acabado de cozer de uma bandeja e levei-o para a minha


enorme tábua de cortar de madeira. Duas cabeças de alho, uma generosa pitada
de manjericão, pecorino, pinhões e azeite também se juntaram ao meu espaço
de trabalho. O cozinheiro estava a acabar quando eu cheguei, e informou-me de
que o Ira trouxera aqueles ingredientes do mundo mortal para mim.
Ao que parecia, também comprara sementes e plantara-as na estufa do
castelo, por isso, teria à minha disposição todas as ervas e vegetais que me eram
familiares. Um toque de magia ajudara-as a crescer, segundo o cozinheiro, e
havia uma verdadeira recompensa à minha espera quando decidisse visitar o
jardim interior.
Remexi na caixa de gelo, tirando um pedaço do que me parecia ser queijo de
cabra e depois vesti um avental que encontrara pendurado num cabide ao lado
de um exército de toalhas de mesa limpas.
Cozinhar relaxava-me. Quando estava numa cozinha, os meus problemas
desapareciam. Éramos apenas eu e o prato; os cheiros, os sons e a satisfação de
criar algo nutritivo e delicioso compensavam tudo o resto. Não havia
homicídios. Não havia perda de entes queridos. Não havia mentirosos nem
pessoas que guardavam segredos. Nada sabia de tentativas de assassínios e
casamentos provocados por um feitiço que correra mal. Sentia alegria, paz. E
serenidade era algo de que precisava desesperadamente naquele momento.
Cortei o topo de uma cabeça de alho para expor todos os dentes, reguei-a
com azeite e levei-a ao forno. Concentrei-me no manjericão, nos pinhões, no
alho e no azeite.
Picar, misturar, derramar todo o meu amor e energia no molho, apagando o
resto da noite dos meus pensamentos. Não estava em negação, estava apenas à
procura de um momento de descanso.
Tinha acabado de preparar o pesto quando senti a sua presença. Continuei a
trabalhar, à espera de que ele falasse. Não sabia se queria que ele tivesse
encontrado o meu atacante ou se, de repente, preferia fingir que nada acontecera
de todo. Após vários instantes, finalmente olhei para cima.
— Precisas de me dizer alguma coisa?
O Ira estava mais perto do que eu pensava. Encostara-se à ponta da mesa
onde eu estava a trabalhar, de braços e pés cruzados. A imagem casual da
calma. Reparei que trocara de camisa e que o seu cabelo estava ligeiramente
húmido.
— São poucas as coisas de que preciso. Mas muitas as que desejo.
— Não vou voltar àquele quarto esta noite.
— Não te pedi para o fazeres. — Ele endireitou-se e deslocou-se para o meu
lado, acenando para o pão. — Posso ajudar?
Fitei-o pelo canto do olho.
— Não há muito mais a fazer, mas podes servir-nos um pouco de vinho.
Tinto cairia bem.
— Pois um vinho tinto terás.
Ele saiu e voltou pouco depois, garrafa e taças na mão. Foi até à caixa de
gelo e tirou o que parecia uma tigela de amoras silvestres. Depois de abrir a
garrafa, acrescentou algumas bagas a cada taça e pousou a minha ao lado de
onde estava a cortar o pão.
Dispus as fatias de pão numa assadeira e reguei azeite por cima. Levei-as ao
forno e ajustei o pequeno temporizador antes de tomar um gole de vinho. O Ira
bateu a sua taça contra a minha, o seu olhar refletindo-lhe o contentamento.
— Que possamos sempre celebrar após derramarmos o sangue dos nossos
inimigos.
Som para ele por cima da minha taça.
— És um bárbaro.
— Defendeste-te sozinha. Se ter orgulho faz de mim um bárbaro, que seja.
— Achas que o matei?
Ele fez rodopiar o líquido na taça sem desviar o olhar dela.
— Importaria se tivesses?
— Claro que importa. Eu não quero ser uma assassina.
— Defenderes-te não é o mesmo que atacares sem causa ou razão.
— O que, pela tua recusa em responder, presumo que signifique que o
matei.
— O fardo da morte desse demónio não recai sobre ti, Emilia. — O Ira
pousou a taça e olhou-me nos olhos com uma expressão severa. — Recai sobre
mim. — O sorriso que lhe encurvou os cantos da boca não era caloroso nem
amigável. Era frio, calculista. Concebido para assustar, para invocar medo e
seduzi-lo. — Aqui estou eu, a própria essência do mal e do pecado. Serei o
monstro que tanto temias?
Olhei para ele — olhei mesmo para ele. O seu rosto não refletia nenhum
sinal evidente das suas emoções, mas algo na forma como ele pronunciara a
pergunta me fez formular a minha resposta com muito cuidado. Ele não queria
que eu pensasse que ele era um monstro.
E, valha-me a deusa, não era isso que pensava. O meu olhar encontrou o
dele e fixou-o.
— Ele sofreu?
— Não o suficiente.
— Conseguiste arrancar-lhe alguma informação?
O Ira abanou a cabeça.
— A sua língua foi cortada recentemente. Parece ter sido por opção,
provavelmente uma medida de precaução para o caso de ser apanhado.
Não sei que loucura se apoderou de mim, mas deixei o meu vinho em cima
da mesa e mudei-me para onde o Ira permanecia rígido, como que à espera de
ser julgado. Devagar, como se me aproximasse de um animal pronto a fugir, pus
os braços à volta da sua cintura e encostei a cabeça ao seu peito.
Durante vários e longos instantes, ele mal respirou. Depois os seus braços
envolveram-me e o seu queixo repousou na minha cabeça. Ficámos ali a
agarrar-nos mutuamente, até que o pequeno relógio de corda assinalou a hora.
Mesmo assim, não o larguei de imediato. Este demónio, esta encarnação viva do
pecado, era muito mais do que o monstro que ele supunha ser.
Afastei-me lentamente e estiquei-me em bicos de pés pata pressionar os
lábios contra a sua face num beijo casto.
— Obrigada.
Sem lhe dar oportunidade para responder, corri para o forno e tirei o pão
torrado e o alho assado. Pousei ambos na tábua de cortar, depois acrescentei o
pedaço de queijo de cabra e o pesto. Tirei dois pequenos pratos e acrescentei
algumas facas da manteiga junto de cada item na tábua. Sorri para o resultado
do meu trabalho, imensamente satisfeita.
— Terás de te servir sozinho, mas é fácil. — Peguei numa fatia de pão
torrado e espalhei alguns dentes de alho assado como se fosse compota. —
Agora esfarela algum queijo de cabra por cima do alho. E no final —
acrescentei uma colher generosa de pesto — completas com um pouco de pesto.
O Ira viu-me fazer, depois pegou num pedaço de pão torrado e repetiu os
meus movimentos. Deu-lhe uma dentada e a sua atenção deslizou para mim.
— Acho que gosto disto quase mais do que os doces que fizeste.
— Que grande elogio, vindo do rei dos cannoli. — Sorri-lhe. — Às vezes,
acrescento um ovo escalfado se tiver sobrado algum do pequeno-almoço ou do
almoço. A Vittoria gosta dele...
Interrompi-me abruptamente e pus o meu lanche de lado.
O Ira tocou-me com gentileza no cotovelo, transportando-me de volta ao
presente.
— O que foi?
— Sinto falta dela.
— Da tua irmã gémea.
— Sim, desesperadamente. Às vezes, por um segundo, esqueço-me de que
ela já cá não está. Depois lembro-me de tudo. Parte de mim sente-se
pessimamente por esquecer. E a outra parte quer passar ao ataque. Ultimamente,
tem sido como se estivesse em guerra comigo mesma e não soubesse que lado
irá ganhar.
— Não tenho experiência pessoal com a morte, mas sei que isso é normal
para alguns mortais.
— Pergunto-me... — Olhei-o nos olhos. — Desde que a assassinaram,
tenho sido consumida pela raiva e pela fúria. A intensidade dessas emoções não
me assusta, e o facto de não me assustar com isso mete-me medo. Eu não
costumava ser assim. Então esta noite... Esta noite, quando aquele demónio me
tentou matar, não me senti assustada. Senti-me furiosa. Queria infligir-lhe dor.
Um dos meus primeiros pensamentos depois não foi de terror, mas de raiva por
ninguém me ter ensinado magia das trevas.
— A tua família mortal devia ter-te ensinado a protegeres-te.
Respirei fundo. Mais valia despejar todos os meus medos. Depois dos
acontecimentos daquela noite, precisava de expurgar os sentimentos sombrios
de toda a minha pessoa.
— Por vezes preocupa-me que não seja o diabo quem está amaldiçoado. Mas
sim eu.
O Ira estacou.
— Porque acreditarias nisso?
— Assassinaram a minha irmã gémea. Atacaram a minha avó. O Inveja fez
os meus pais reféns. E o que aconteceu comigo? Além da tentativa de assassínio
desta noite, quero dizer. — Examinei-lhe o rosto em busca de respostas. —
Talvez eu esteja amaldiçoada e todas as pessoas que amo estejam em perigo. E
se for eu a vilã? Uma tão violenta, tão terrível, que o meu castigo é esquecer? E
se as bruxas que foram mortas começarem a lembrar-se? Talvez seja eu o
monstro e nem sequer o saiba.
O Ira ficou em silêncio durante tanto tempo que se tornou desconfortável.
Quando comecei a sentir-me tola por ter partilhado tantos medos com ele, ele
respondeu com gentileza:
— Ou talvez todos eles estivessem envoltos em buscas que não deveriam
fazer. E tu é que ficaste para apanhar os destroços deixados para trás pelos seus
erros.

O vinho de bagas demoníacas escorreu-me pelo queixo e derramou-se pelo


meu vestido sem mangas, mas não parei de o beber da garrafa tempo suficiente
para me dar ao trabalho de limpar o rosto. A sensação mágica que me havia
dominado desaparecera. Pousei a garrafa, pensando seriamente em atirá-la para
o outro lado da mesa. O Ira dirigiu-me um sorriso presunçoso.
Ordenara que levassem uma grande mesa dourada e duas cadeiras muito
luxuosas para a sala de armas. Mais tronos que não eram tronos. A borda
exterior dos assentos estava coberta com serpentes de metal — não totalmente
douradas ou prateadas, mas algo pelo meio.
Pratos dourados repletos de fruta, sobremesas, taças de chantilly e outros
alimentos opulentos e saborosos ocupavam cada centímetro da superfície da
mesa coberta por uma toalha. Alguns pratos continham montanhas de comida
tão altas que se inclinavam e entornavam para o chão. Era um desperdício
abjeto.
Abanei a cabeça.
— Isto é vergonhoso.
— Os cachorros terão um festim como a realeza.
— Cachorros — resmunguei. — Referes-te àqueles cães com três cabeças?
— Preciso de te recordar de que foste tu que pediste que treinássemos? Pára
de evitar a lição.
— Considerando o facto de que não bebo em excesso, não sei bem o que
esperas que aprenda com esta sessãozinha. Decerto haverá algo mais útil que
me possas ensinar.
— Permite-me que me esforce mais para provar o meu ponto de vista.
Não devia ter assumido que o príncipe iria facilitar-me a vida durante a nossa
sessão de treino na noite seguinte. Parecia brincar com luxúria, inveja, ira e
preguiça, mas esta noite expusera-me ao pecado da gula. Tudo, desde a minha
roupa, às joias que usava, à comida opulenta que petiscáramos, ao vinho que
acabara de beber, falava de excesso.
De facto, eu enviara-lhe um bilhete a pedir para retomarmos as nossas lições.
Depois da tentativa de assassínio, estava ainda mais determinada a proteger-me
dos príncipes-demónios. Debati-me para descobrir o valor de beber vinho em
excesso e como essa habilidade me iria ajudar no meu objetivo.
O Ira deitou mais vinho numa taça enorme e entregou-ma. Era a terceira vez
que o fazia. E isto sem contar com as duas garrafas de vinho de bagas
demoníacas que eu já havia consumido na última hora ou duas.
Era cada vez mais difícil combater a influência demoníaca, ou mesmo
sentir aquele leve formigueiro que indicava que estava a usar magia em mim.
Respirei fundo para acalmar a onda de náuseas. Apenas me embebedara uma
vez no passado, mas reconheci os sintomas.
— Bebe-o todo o mais rápido que conseguires. Depois serve-te de mais e
faz o mesmo.
A sua magia pincelou-me os sentidos. Cerrei os dentes e concentrei-me na
irritação a crescer dentro de mim. Ele sorriu por cima de um prato de bagas
cobertas de chocolate. Depois o seu poder dominou-me.
Mantive-o afastado por mais um momento tenso; depois bebi até à última
gota da taça.
A minha cabeça girou e comecei a ver a dobrar. Limpei a boca, rindo como
uma idiota, e voltei a verter. O vinho caiu da taça para o chão. As minhas
sapatilhas de seda pareciam ter andado numa cena de um crime, mas eu não me
podia importar menos.
Quanto mais ele me influenciava a beber, mais difícil era para mim
concentrar-me no meu livre-arbítrio. O que, apesar do meu torpor bêbado,
finalmente fez sentido.
Era possível que os seus irmãos me obrigassem a beber e, por sua vez, uma
lenta inebriação tornaria quase impossível para mim evitar a sua influência.
Quanto mais descontrolada eu estivesse, mais fácil seria para eles ultrapassarem
as minhas defesas. Afinal, o Ira estava certo.
Não estava apenas a tentar que eu lutasse contra a gula.
Levantei-me do meu assento e aproximei-me do demónio aos tropeções, a
taça vazia dependurada da ponta dos meus dedos. Fizera-me vestir um longo e
extravagante vestido de seda prateado. Era luxuoso ao ponto de ser exagerado.
Não estava a usar roupa interior e o tecido não escondia nenhuma das minhas
curvas. Com o vinho ensopado na parte da frente do vestido, o efeito era
semelhante ao de dançar nua. Tinha sérias dúvidas de que ele tivesse planeado
essa parte.
O Ira nem sequer olhara para o meu decote. Sempre um perfeito cavalheiro.
Pelo menos, quando não estava a arrancar línguas ou a torturar possíveis
assassinos. Fios pesados carregados de diamantes pendiam-me do pescoço.
Havia tantos de diversos comprimentos que me sentia como se levasse cinco
quilos a mais em torno da garganta. Era tão excessivo que até o Inveja ficaria
horrorizado em vez de ciumento.
Inclinei-me de maneira precária sobre o Ira, a meu rosto perto do dele.
Ansiava beijá-lo. Talvez quebrar uma garrafa e apunhalá-lo com ela primeiro.
Mas depois, sem dúvida, beijá-lo.
— Estás a embebedar-me de propósito. — Lancei-lhe o que eu acreditei ser
um sorriso atrevido. — Seu demoniozinho maroto.
— Estar sob a influência do álcool ou de outras substâncias irá reduzir
notoriamente a tua capacidade de sentir a magia de um príncipe do Inferno.
Sobretudo a do Gula. Pressionar-te-á a beber pouco a pouco até que percas o
autodomínio e ele o possa assumir por ti. — O seu tom endureceu. — Tens de
resistir.
Estava a tentar prestar atenção à lição, mas fiquei fascinada com a forma dos
seus lábios enquanto ele falava. Estendi a mão e toquei-lhes. Ele pressionou-os
numa linha firme.
— Emilia. Concentra-te.
— Oh, eu prometo que estou. Estou muito concentrada neste momento.
Cativada. Ou será enfeitiçada? — Olhei para cima. Havia dois príncipes a
franzir o sobrolho. Pestanejei até restar apenas um único demónio irritado. —
Porque é que não me seduziste?
Era difícil ter a certeza, mas pareceu-me que ele estava a remover a sua
influência.
— Se não consegues combater a névoa do álcool, então é melhor evitares
beber alguma coisa na festa. Podes aceitar um brinde, mas finge apenas tomar
um gole. Pousa o copo assim que puderes, sem chamar a atenção sobre ti. Ou
atira o vinho para uma das muitas samambaias e potes que o meu irmão irá
certamente dispor pelo salão de baile.
— Preocupas-te demasiado. — Alisei-lhe o sulco entre as sobrancelhas. — A
Nonna diz que o vapor da cozinha vai manter as rugas longe. A Vittoria e eu
manter-nos-emos eternamente jovens. Tal como tu.
— Considerando que não és humana, imagino que haja alguma verdade
nisso.
— Não respondeste à minha pergunta. Sobre sedução. — Cambaleei
ligeiramente sobre os pés. O colo dele parecia confortável o suficiente. Deixei-
me cair em cima dele. Todo o seu corpo se tornou tenso, mas não me afastou.
Sorri para dentro ante aquela pequena vitória. — A Fauna disse que a corte
inteira gostaria de saber.
— A Lady Fauna fala demasiado. Talvez devesse insistir com ela para que
vá visitar um parente distante.
— Não descarregues o teu mau humor nela, ela estava apenas a contar-me
os mexericos. E além disso eu quero saber. Talvez eu queira que me seduzas
agora. — Encostei-me ao seu ombro e assentei o queixo na minha mão
enquanto olhava para ele. Um pouco tarde demais, apercebi-me de que devia
parecer uma louca a olhá-lo assim devido à posição em que estávamos. —
Sabes, há quem pense que a evasão é um sinal de cobardia.
— Estou ciente do que estás a fazer e não vai funcionar. — Ele franziu
ainda mais o sobrolho. — Não te estou a seduzir porque não quero fazê-lo neste
momento. É tão simples quanto isso.
Se ele me tivesse cravado uma faca no coração, teria doído menos. Virei-
me e aproximei-me do prato de bagas cobertas de chocolate. Adicionei-lhes
uma colher cheia de chantilly e tentei pegar numa com um garfo. Falhei. O
garfo bateu no prato. Uma baga foi catapultada para o outro lado da mesa.
Malditas fossem.
Era claramente culpa da sua pequena forma arredondada e não do meu
atual estado de embriaguez.
Fiz pontaria ao prato e semicerrei os olhos. As bagas estavam a nadar. Não
eram rivais à minha altura. Voltei a apontar e outra baga voou para fora. Deixei
escapar um impropério retumbante.
O suspiro profundo do Ira fez-me cócegas no ombro nu enquanto ele me
agarrava a mão e me tirava o garfo. Espetou-o numa baga coberta de chocolate
que mergulhou no chantilly.
Deteve-se com o garfo em frente à minha boca.
— Se disser uma palavra sobre isto, juro-lhe vingança, minha senhora.
— Muito bem. Embora duvide que me vá sequer lembrar deste ato de
extremo cavalheirismo pela manhã.
Encostei-me ao seu ombro, a cabeça estirada para trás, e esperei que ele me
desse a sobremesa. Após um instante de ténue hesitação, ele fê-lo. Podia jurar
que a comida tinha um sabor mais doce. Senti-me como uma deusa romana
mimada enquanto ele me dava de comer, uma baga de cada vez.
— Humm. Já mal me lembro do que estávamos a dizer.
— Mentirosa. — Ele pousou o garfo e aproximou a boca da minha orelha,
tomando de repente o meu lóbulo entre os dentes. O calor inundou-me e os
meus dedos dos pés enrolaram-se com a sensação. Não tinha a certeza se o Ira o
fizera, mas qualquer estado de embriaguez em que me encontrasse desapareceu.
— Mas, por outro lado, eu também sou. Em certo sentido.
Capítulo 23

O Ira traçou um rasto de beijos ardentes pelo meu pescoço abaixo,


inflamando-me de desejo.
As bagas cobertas de chocolate ficaram esquecidas. Havia um novo vício em
cima da mesa. E eu tomá-lo-ia de muito bom grado. Pedira sedução e o príncipe
estava a concedê-la. As suas mãos percorreram-me a silhueta, detendo-se nas
minhas ancas.
Mais do que me parecia possessivo, era como se ele se estivesse a conter. Ou
talvez estivesse apenas a contemplar formas engenhosas de me torturar
lentamente. Brincou com o fecho de um dos meus fios. Os excessivos fios de
diamantes não eram uma barreira, mas, de qualquer forma, desejava que
desaparecessem por completo. Não queria nada a interpor-se entre nós.
A sua boca regressou ao meu corpo e a minha mente esvaziou-se de tudo o
resto.
Atirei a cabeça para trás, perdida no êxtase da sua língua a acariciar-me a
zona onde ele me mordiscara. Puxou-me contra ele e os seus dentes rasparam
com suavidade o ponto onde o meu ombro e pescoço se encontravam. Arrepios
impregnados de tentação dançaram-me pelo corpo. Esta sensação... não era
pecaminosa, como os mortais tentavam convencer as suas filhas. Era natural,
maravilhosa. Se a sociedade considerava aceitável que o Ira tivesse uma
amante, então eu tinha o mesmo direito.
Afinal, tais encontros envolviam duas pessoas.
Arqueei-me ao sentir as suas carícias. Declarei-me dona daquele desejo,
desfrutei-o. E isso não significava que fosse libidinosa ou lasciva. Fazia sentir-
me humana, a controlar os meus desejos. Longe estava o tempo em que negava
as minhas paixões.
Agarrei com as mãos cada uma das suas coxas enquanto ele me dedicava
toda a sua atenção e me beijava o pescoço, os ombros. Queria virar-me e
enfrentá-lo, tinha de explorar o seu corpo com a mesma calma com que ele
explorava o meu. Por alguma razão, mesmo com a minha nova convicção,
hesitei.
— Há alguma coisa que deseje de mim, minha senhora?
— Não tens de tratar-me por você ou chamar-me isso quando estamos
sozinhos. Não há necessidade de espetáculo.
Ele sorriu contra o meu pescoço.
— Mais algum pedido?
— Eu...
— Reivindica os teus desejos. Não precisas de pedir desculpa por eles.
— Mesmo se eu quiser que pares?
— Sobretudo aí.
— Tira-me os diamantes. Por favor.
O príncipe soltou cada um dos fios de diamantes, deixando-os cair no chão
com um tilintar.
— Estou curioso. — A sua voz era suave como veludo enquanto se
inclinava e me retirava o último fio. — Com o que aconteceu no Corredor do
Pecado. Com o que experienciaste aquela noite, quando gritaste o meu nome.
Conta-me.
Não houve qualquer ordem mágica ou impulso demoníaco entrelaçado no
pedido. Apenas curiosidade genuína. Notei que a sensação de vertigem
provocada pela bebida também desaparecera. Já não estava sob qualquer
influência de qualquer tipo, a não ser a embriaguez das minhas próprias
paixões, e não estivera desde antes de ele me ter beijado pela primeira vez.
Talvez a nossa posição atual, o facto de eu não estar a olhar para o rosto
dele, tenha facilitado a minha confissão. Ou talvez apenas não quisesse sentir-
me culpada ou envergonhada pelo meu corpo e pelas coisas que desejava e
ansiava. Reuni toda a coragem que consegui, sabendo muito bem onde aquela
confissão conduziria. Rezando para que, de facto, seguisse esse caminho.
— Tu estavas... atrás de mim, tal como agora. Só que estávamos deitados.
Ele recompensou a minha honestidade com uma carícia suave ao longo do
meu braço.
— E?
— Eu estava a usar a tua camisa e tu estavas a desabotoá-la. Tão devagar
que me estavas a enlouquecer.
— Imagino que tenhas exigido que eu a tirasse. — O príncipe fez deslizar as
pontas dos dedos sobre o meu ombro, depois ao longo da minha clavícula, antes
de descer até à pele exposta do meu decote. A minha respiração parou quando
ele interrompeu as carícias e enfiou uma mão por baixo da alça do meu vestido.
Apenas aquela fina ramada de seda se interpunha entre nós. — E eu obedeci.
Correto?
— Mais ou menos.
— Gostarias que fizesse o mesmo agora? — Após uma pequena pausa,
assenti. — Preciso de ouvir as palavras, Emilia. Queres que pare?
— Não. — Agarrei-me mais às suas coxas, como se pudesse segurá-lo lá
para sempre. — Não, não quero.
Ele puxou-me o cabelo para um lado e inclinou-se para trás na cadeira,
deixando espaço suficiente entre nós para me massajar levemente os ombros.
Agarrou nas alças com cada uma das mãos, pressionou os lábios contra a minha
espinha e beijou-a enquanto me baixava a parte de cima do vestido.
O ar fresco soprou sobre a minha pele ruborizada.
— O que aconteceu a seguir?
Fantasia e realidade tornaram-se uma só. A minha respiração acelerou em
antecipação.
— Querias que eu te dissesse que és o meu pecado favorito.
O seu riso foi baixo e profundo. Apenas aumentou a minha avidez por ele.
— E sou?
— Neste momento, sim.
— Mas não o confessaste na altura.
Ouvi a pergunta na sua voz, embora ele não a tivesse formulado dessa
forma.
— Não. — Fechei os olhos antes de os voltar a abrir. — Começaste a
tocar-me e não consegui pensar em mais nada.
Acariciou-me a nuca antes de dar a volta com as mãos até aos meus seios.
Uma onda de calor atravessou-me o corpo. Os seus dedos traçaram a curva
exterior, aproximando-se dos bicos no centro. Ao roçar-lhes, endureceram,
vítimas do desejo. Fiquei sem fôlego, afundando os dentes no meu lábio
inferior. Recuei lentamente, desejando mais do seu calor, e consegui perceber
quão afetado ele estava.
— Diz-me o que fiz na tua ilusão para te fazer gritar o meu nome. Corei.
Nem pensar que lhe diria essa parte. Fechei os olhos e invoquei toda a minha
determinação, forçando-me a não me sentir envergonhada. Com uma confiança
renovada, dei-me a liberdade de me soltar.
— Puxaste-me com gentileza contra a tua excitação e enfiaste a mão por
baixo das minhas saias. E tocaste-me. Lá. Com os teus dedos.
— Sentiste o mesmo que nos Baixios do Crescente?
— Quase. Foi incrível, mas durou um mero instante. Depois acordei.
— Antes de teres atingido o clímax?
— Eu... acho que sim.
— Dá-me a honra de te compensar agora.
Ele não se mexeu logo e apercebi-me de que estava à espera do meu
consentimento. O Ira nunca o faria sem permissão.
— Por favor.
— Com prazer.
Fez deslizar uma mão sob o meu vestido de seda e o seu leve toque foi
subindo da minha barriga da perna até à parte interna da coxa, onde, lentamente,
traçou padrões circulares, subindo um pouco mais em cada círculo atrevido, até
eu não aguentar mais. Deixei de apertar as pernas uma contra a outra e ele
arrastou um dedo até ao ápice do meu corpo. A sensação foi superior à
combinação do que havia sentido no Corredor do Pecado e nos Baixios do
Crescente.
O Ira pressionou-me para a frente até eu quase me inclinar sobre ele, e foi
deixando um rasto de beijos pelas minhas costas. A minha pele formigou com
cada passagem dos seus lábios. Enquanto isso, os seus dedos exploraram e
dançaram sobre o meu corpo, levando-me a um frenesim.
Quando estava convencida de que morreria de prazer, ele enfiou-os dentro
de mim. Parei, habituando-me à sensação quando ele começou a movê-los
lentamente.
Incapaz de suportar o primor de cada sensação, inclinei-me para trás e
pressionei-me contra ele, acolhendo a dureza da sua excitação contra o meu
rabo. Ele parou os beijos e mordiscou-me o pescoço.
A minha respiração acelerou. Estava a perseguir uma sensação que me
parecia quase familiar, mas não de todo. Era magnífica. Um êxtase como
nenhum outro. Ao sentir a minha necessidade crescente, os dedos do Ira
moveram-se mais depressa e essa dor converteu-se na mais gloriosa onda de
euforia.
Afastei a timidez e deixei de pensar em tudo menos nesta incrível sensação.
Movi-me contra ele, perseguindo o êxtase, e apercebi-me de que, naquele
momento, o Ira estava a deixar-me sentir o meu próprio prazer. Estabeleci o
ritmo, movendo-me com a rapidez ou a lentidão que desejava. O facto de eu
estar a controlar o meu próprio corpo, os meus próprios desejos, que nenhuma
regra mortal me prendia...
... desmoronei.
Gritei quando o prazer me atravessou o corpo em extraordinárias ondas
consecutivas e depois, por fim, desfiz-me contra o seu peito, respirando como se
tivesse acabado de correr pela minha vida.
Assim que parei de tremer após a libertação, o Ira retirou lentamente a mão
de baixo das minhas saias e puxou a parte de cima do meu vestido. Um longo
momento de silêncio aconteceu entre nós enquanto eu ajustava as alças com
mais cuidado e atenção do que era necessário.
Remexi-me no seu colo e reparei que a sua excitação não tinha diminuído. O
meu batimento cardíaco acelerou. Poderíamos estar prestes a completar um dos
próximos passos para aceitar o nosso vínculo matrimonial.
Ali mesmo. Na sala de armas. Apenas as suas calças e o meu vestido se
interpunham entre nós. E podiam desaparecer facilmente. Talvez fosse a euforia
que ainda me corria pelas veias, enevoando-me os sentidos, mas não me parecia
uma ideia tão terrível.
Se fosse necessário uma cerimónia como passo final, não teríamos de a
realizar. Poderíamos regozijar-nos com o mero prazer carnal e permanecer
livres de qualquer vínculo que nos aprisionasse por toda a eternidade. Movi-me
de tal forma que submeti os nossos corpos a um roçar íntimo. A sensação que a
carícia criou, sobretudo depois do prazer que acabara de atingir, foi um novo
nível de êxtase.
O Ira não se moveu. Estava a dar-me permissão para escolher.
Agarrei na bainha das minhas saias e puxei-as lentamente para cima, sobre
as minhas coxas, sobre o meu rabo. Agora, o Ira só tinha de tirar as calças.
Recostei-me para trás e o atrito da sua excitação contra o meu corpo fez-me
engolir um gemido. Ele apertou as suas mãos em torno das minhas ancas.
Um raio de alarme atravessou-me, roubando-me o fôlego. Já não sabia se
dormirmos juntos era uma boa ideia, ou se o meu discernimento havia sido
comprometido pelo que acabáramos de fazer. Talvez fosse só dos nervos. Enchi-
me de coragem, recusando-me a sucumbir a qualquer dúvida.
— O nosso treino de hoje fica por aqui. — Num movimento rápido, o Ira
levantou-se, pondo-nos aos dois de pé.
Virei-me e olhei para ele. A sua expressão era completamente ilegível.
— Treino? É assim que descreves o que acabou de acontecer?
— Pediste sedução. E eu obedeci. — Ele curvou-se, oferecendo-me uma
reverência educada. — Agora que sabes o que te dá prazer, podes desfrutar dele
com a tua própria mão. Boa noite.
Capítulo 24

— Ele disse o quê? — Os olhos da Fauna arregalaram-se. Entrelaçou o


cotovelo no meu e conduziu-me para um caminho coberto. — Talvez o tenhas
ouvido mal. Ou interpretaste mal o sentido das suas palavras. É uma
possibilidade, não é?
— De todas as coisas que ele poderia ter dito depois daquele momento. —
Suspirei, a minha respiração formou uma nuvem no ar gelado da manhã. Estava
demasiado irritada para me sentir envergonhada. Após o incidente na sala de
armas, não voltara a ver o Ira durante o resto da noite. — Odeio mesmo aquele
demónio.
A minha amiga resfolegou, mas mordeu a língua. Caminhámos ao longo
de uma das grandes extensões de parapeitos cobertos que rodeavam o castelo.
Os guardas acenaram-nos com a cabeça dos seus postos ao longo do muro
enquanto passávamos. Quando nos afastámos o suficiente, a Fauna inclinou-se
na minha direção.
— Talvez ele apenas o tenha dito porque a partir de agora irá imaginar-te a
fazê-lo.
— Duvido. Estava cheio de pressa para sair da sala.
— Aposto toda a Casa Ganância que ontem à noite ele mesmo se ocupou
do seu desejo e pensou em ti enquanto derramava a sua semente.
Apesar da minha nova confiança em assumir os meus desejos e não sentir
vergonha, o meu rosto inundou-se de calor com a franqueza com que a Fauna
discutia assuntos tão privados.
Ela viera visitar-me logo pela manhã e conseguira convencer-me a
partilhar o que me apoquentava antes mesmo de eu ter tempo para vestir o meu
manto de veludo. A Fauna não havia corado ou sequer pestanejado ante aquele
assunto, que, em casa, teria causado comoção e escândalo. Ela apenas me
perguntou se eu lhe devolvera o favor com a minha mão ou com a minha boca,
e depois desatara a rir quando lhe pedira que me esclarecesse aquele último.
— Talvez ele não te quisesse tomar na sala de armas, onde qualquer um
poderia entrar. Vais ser mulher dele. Não seria impensável que ele te quisesse
proteger de olhares curiosos.
— Por favor. — Quase resfoleguei. — Metade deste reino não tem o menor
problema em fornicar em público. Duvido que ele se deixe dissuadir pela
possibilidade de alguém nos ver.
Decerto não se importara de ter uma plateia quando fôramos dar ao corredor
para os nossos quartos. A memória fez-me cerrar os dentes. Enfrentá-lo depois
desse encontro não fora constrangedor. Não podia dizer o mesmo da próxima
vez que o voltasse a ver. Não tinha a menor ideia de como agir.
— Na verdade, os encontros públicos não são tão comuns fora da Casa
Luxúria e da Casa Gula. Claro, os outros príncipes exibem a sua devassidão de
vez em quando, como o Ganância e o seu antro de jogos, mas não na mesma
proporção que aquelas duas Casas em particular. Sua Alteza pode querer que
tenhas a certeza de que o escolhes com a mente lúcida. Ou talvez não tivesse a
certeza de que era isso que tu querias. Talvez tenha decidido partir antes de
fazer algo de que, pensou ele, te irias arrepender.
A frustração acumulou-se no meu peito.
— Levantar as minhas saias foi uma indicação mais do que clara das minhas
intenções. Se ele deseja assegurar o vínculo matrimonial, não está a sair-se lá
muito bem a convencer-me de que é isso que ele quer.
— Pelo que descreve, minha senhora, parece-me que o problema não é a
atração física.
Parei. Não percebia o motivo de isto me incomodar tanto. Esquecendo o que
acontecera na noite anterior, continuava a não querer assegurar o nosso vínculo.
A ideia de que ele pudesse sentir o mesmo não deveria consumir-me os
pensamentos. Sobretudo quando tinha uma centena de outras coisas com que
me preocupar. Como o facto de o Banquete do Lobo estar a aproximar-se.
Libertei-me daquele incómodo e dirigi-me para a torre com a minha amiga.
— Basta de conversas sobre príncipes. Não quero que a matrona nos ouça e
vá dizer ao Ira.
A Fauna riu-se.
— Posso prometer que isso muito provavelmente nunca irá acontecer.
— Consegui perceber que a animosidade entre eles não é recente.
— De todo. — A Fauna fez-nos parar e depois olhou em volta. — Corre o
rumor de que já dura há séculos. Há quem diga que a sua filha foi amaldiçoada
e que o príncipe não fez nada para a salvar.
— A filha dela está no castelo?
— É essa a questão... ninguém sabe. Há especulações de que Sua Alteza a
baniu deste círculo. Pelo menos durante algum tempo. É possível que a matrona
a tenha encontrado e escondido em algum lugar.
Por alguma razão, fiquei arrepiada. Pensei no lamento que se elevara perto da
estátua da mulher e da serpente. Não conseguia imaginar o Ira a castigar alguém
enviando-o para o subsolo. Talvez porque ele não o fizera.
Apesar de mal a conhecer, não tinha dúvidas de que a matrona poderia ter
feito algo assim. Especialmente se não fosse para castigar, mas para proteger.
Talvez a criatura miserável e lamuriante que eu ouvira fosse a sua filha
desaparecida. E se a matrona havia trazido a filha de volta e a mantivesse presa,
estava ainda mais curiosa em saber porquê. O Ira sabia tudo o que se passava no
seu círculo e duvidava que a matrona conseguisse esconder-lhe esse segredo
durante muito tempo. O que indicava que ela estava a esconder a sua filha de
outro príncipe.
Uma nova suspeita assaltou-me os pensamentos. Esta história era semelhante
a outra que já tinha ouvido antes. Uma que envolvia La Prima Strega e a sua
filha. Corriam rumores de que a Primeira Bruxa amaldiçoara o diabo porque a
sua filha se apaixonara por ele e eles se haviam recusado a acabar com a sua
relação.
Seria a Matrona das Maldições e dos Venenos realmente a Primeira Bruxa?
Se fosse e tivesse amaldiçoado o diabo, queria saber por que razão estava
naquele momento no castelo do Ira, alegando ser outra pessoa. Ele devia
conhecer a sua verdadeira identidade. O que significava que também sabia o
que ela fizera ao seu irmão, e isso explicaria o seu ódio e a sua história. Então
porque estaria ele disposto a manter segredo, a menos que ela soubesse de
algum dos seus? E se fosse esse o caso, teria de ser um segredo tão perverso que
ele estaria disposto a fazer um acordo com uma inimiga.
Tendo em conta o que ele fizera para me salvar, não me parecia assim tão
rebuscado.

— Filha da Lua. Lady Fauna. — A Celestia abriu a porta instantes depois da


minha primeira pancada. Escondi o meu sorriso. O Ira ficaria furioso se
soubesse que ela havia respondido tão depressa. — Como posso ser-vos útil?
— Tenho algumas perguntas. Sobre maldições.
A sua felicidade parecia genuína.
— Ora, vieram ao sítio certo. Entrem.
Ao entrar naquela câmara da torre, o aroma agradável das ervas e óleos
inundou-me de imediato as narinas. Engoli a pontada da nostalgia, a súbita
memória da minha Nonna Maria a fazer velas mágicas na nossa pequena
cozinha familiar. A minha família estava a salvo. E eu terminaria o que me
havia proposto fazer e voltaria para eles para criar mais recordações. Em breve.
Forcei-me a regressar ao presente. A Celestia atravessou a câmara e tirou
livros e panelas de alguns bancos para que nos pudéssemos sentar à sua mesa.
Ao. fazê-lo, reparei nos itens que me haviam escapado durante a minha primeira
visita.
A matrona tinha coisas ainda mais estranhas e curiosas na sua coleção.
Desde frascos fechados cheios de olhos pestanejantes a cestos cheios de bicos
de pássaros, um a transbordar de garras e outro cheio de penas. Frascos de
unguentos, pomadas e loções de todo o tipo.
Um crânio de ave com runas esculpidas na sua superfície repousava sobre
uma pilha de livros encadernados em cabedal.
A matrona reparou no que me chamara a atenção e acenou com a cabeça.
— Os corvos simbolizam muitas coisas. Morte, cura, fertilidade.
Sabedoria.
— E as runas? — Aproximei-me, mas não toquei nas esculturas nem nas
restantes coisas. Se ela fosse a Primeira Bruxa, poderia ter enfeitiçado as
caveiras e tê-las enviado para mim. Não tinha a certeza se tentara ajudar-me ou
se a minha teoria estava errada. Era possível que ela fosse quem afirmava e eu
estivesse a tentar juntar peças de um puzzle que não encaixavam. — Conseguem
dar vida ao crânio?
— Não. — A Celestia olhou para mim com o que me pareceu ser
desconfiança. Se ela era a Primeira Bruxa, nascera diretamente da deusa do
submundo. Não tinha a certeza se ela conseguia sentir as emoções como o Ira
conseguia, mas tentei ao máximo manter-me calma. — Vêm a mim quando
medito sobre o crânio. Registo o que o corvo deseja que eu veja. Os símbolos
arcanos podem ser um poderoso aliado para aqueles que possuem magia no
sangue.
A Fauna mexeu-se desconfortavelmente, os seus olhos estavam fixos nos
frascos atingidos por forças invisíveis do lado mais distante da sala. Encarei a
matrona e baixei o tom de voz.
— Podem ser usados para melhorar a fonte?
— Para as bruxas, sim. Para aquelas que são fonte, não. Os símbolos
arcanos têm origem na sua essência.
— Aquelas que... quer dizer as deusas.
A Celestia acenou com a cabeça, o seu olhar fixo no meu rosto.
De acordo com as lendas da Nonna, as deusas eram a fonte original do nosso
poder, diluído ao longo do tempo através dos descendentes da Primeira Bruxa.
Estudei a mulher de cabelos prateados e lavanda. Tinha o rosto um pouco
enrugado, mas não consegui ver nenhuma indicação clara da sua idade. A Fauna
havia mencionado que a sua animosidade para com o Ira remontava há séculos,
o que significava que ela era, muito provavelmente, imortal. A tonalidade roxa
do seu cabelo também não me escapou. Era da mesma cor da tatuagem que eu
partilhava com o Ira, e também, quando vira o luccicare, da aura ténue que
rodeava os humanos.
Não consegui perceber se era entusiasmo ou medo o que me corria pelas
veias.
— Então, se uma bruxa usa símbolos arcanos nos seus feitiços, isso aumenta
a potência desse feitiço.
— Correto.
Desviei a minha atenção para a Fauna, que agora estava a olhar para um
caldeirão com olhos semicerrados.
— É possível alguém lançar um feitiço numa caveira e utilizá-la para enviar
uma mensagem? Talvez um príncipe do Inferno ou uma bruxa.
— Tudo é possível; se é ou não provável, já é outra história. Os que
possuem o saber dos símbolos arcanos podem ser capazes de tal feito. — A
Celestia indicou-me que me sentasse. — Havia algum símbolo esculpido no
osso? — Abanei a cabeça. — Então duvido que o responsável tenha sido um
príncipe-demónio ou uma bruxa. O mais provável é que seja alguém muito mais
próximo da fonte.
Alguém como a Primeira Bruxa. Mantive a respiração regular, não querendo
alertar ninguém para a intensidade das minhas emoções. Se a Celestia fosse a
Primeira Bruxa e a sua filha estivesse amaldiçoada, isso significava que, afinal,
a primeira mulher do diabo não estava morta. E, se ela estivesse mesmo viva,
então talvez eu estivesse certa acerca de as bruxas na minha ilha terem sido
mortas por um motivo diferente.
Um que não tinha nada que ver com o diabo à procura de uma noiva.
E tudo que ver com vingança.
— Lady Emilia? — A Fauna interrompeu a espiral descendente dos meus
pensamentos. — Vamos voltar para o palácio?
— Sim. — Levantei-me e virei-me para enfrentar a matrona. — Uma última
pergunta. A Arvore dos Condenados. Ouvi que concede mais do que desejos,
que oferece conhecimento. Como poderia alguém obter informação em vez de
um desejo ou de uma maldição?
A Fauna virou-se bruscamente para olhar para mim, mas eu ignorei-a. A
Celestia semicerrou os olhos.
— Entalha o nome verdadeiro da pessoa sobre a qual procuras informação
no tronco. De seguida, arranca uma folha da árvore. Tem cuidado quando o
fizeres; as folhas são tão frágeis como o vidro. Quando quiseres saber a
verdade, parte a folha na presença daquele cujo nome entalhaste.
Pensei na Primeira Bruxa, nas lendas e fábulas que nos tinham sido
contadas. Em nenhuma delas o seu nome fora usado.
— E se eu não tiver a certeza do nome verdadeiro da pessoa? Funcionará
se usar o seu título?
— Nomes têm poder. Os títulos são uma demonstração de poder. Um deles
pode ser concedido ou retirado por capricho; o outro não. — A Celestia sorriu
de uma maneira que me deixou nervosa. — Mais alguma coisa, minha senhora?
A forma como disse «minha senhora» provou o seu ponto de vista. Era um
título de cortesia, algo que me fora conferido e que pouco significado teria fora
deste reino. O meu nome era um assunto diferente. Além do meu nome próprio,
aqui eu seria apenas uma princesa ou uma senhora. Na minha ilha, seria para
sempre Emilia Maria di Carlo, a não ser que me casasse. E apenas o meu
apelido mudaria, nunca o meu primeiro nome.
— Não, obrigada. Isso foi muito... esclarecedor.
Capítulo 25

Pousei, com gentileza, outro livro no chão. O Paraíso, a contraparte celestial


do Inferno pessoal do Ira, alguns andares abaixo, parecia ter sido devastado por
uma tempestade que abalara as prateleiras organizadas por cores.
Peguei noutro volume antigo e folheei-o, consciente da delicadeza das
páginas.
Os livros desta biblioteca estavam todos escritos em latim, por isso
compreendia a maior parte do que diziam. Não que ajudasse a minha situação.
— Sangue e ossos.
Mais um grimório, mais uma desilusão. Não existiam registos da Primeira
Bruxa, embora isso pudesse dever-se ao facto de eu não saber o seu verdadeiro
nome. Em Palermo, o Ira dissera algo como «a Primeira Bruxa, como tu lhe
chamas», o que significava que não era esse o nome pelo qual os príncipes-
demónios a conheciam. Se não encontrasse algo em breve, teria de lhe
perguntar. O que preferia evitar por diversas razões. A primeira era que se ele
descobrisse que La Prima estava cá e a oferecer-lhe refúgio, iria frustrar os
meus esforços para resolver este mistério.
Procurara por registos da Celestia, mas também não havia nenhuma menção
à Matrona das Maldições e dos Venenos. Se ela fosse mesmo uma curandeira
real, bem como uma envenenadora, deveria estar listada em algum registo da
corte. Quer com menções das vidas que salvara quer das que tirara.
Não havia nada.
Era como se ela não existisse fora daquela câmara da torre. Mais uma
prova de que podia não ser quem dizia.
Deixei-me cair no chão e as minhas saias desdobraram-se à minha volta.
Usava um lindo vestido azul-marinho e dourado com flores bordadas no
corpete. Elegante o suficiente para uma senhora de realeza demoníaca e
confortável o suficiente para passar horas de joelhos num canto escuro da
biblioteca, à procura de respostas.
Folheei um diário bastante fino, cheio de notas e esboços. Falava de
demónios criados a partir de fontes não naturais. Não eram bem demónios
menores, mas estavam lá perto. Estas criaturas podiam variar desde uma
aparência humana até uma mistura entre o mundo natural e os mortais. Detive-
me numa ilustração em particular. Tinha uma forma humanoide, mas a pele
parecia a casca de uma árvore, a barba era de musgo e os seus dedos e membros
eram ramos de comprimentos e larguras variáveis.
A imagem seguinte mostrava um homem jovem com uma enorme armação
de alce. Outra mostrava uma mulher com orelhas pontiagudas e chifres de
carneiro que se curvavam para os seus ombros. As notas falavam de feitiços e
maldições que haviam corrido mal e transformado os mortais em pesadelos.
Amaldiçoados e rejeitados pelo seu mundo, tinham acabado lá, no submundo,
onde podiam vaguear sem medo.
De acordo com o livro, a maioria deles espalhara-se pelo reino, acabando
nas Terras Imortais, a noroeste, e ao longo de uma cadeia de montanhas a leste,
conhecida como o Extensão Implacável.
Uma nota em particular chamou-me a atenção.

As criaturas criadas através do medo primordial


possuem uma avidez frequentemente por sangue. Buscam
a vida e não há maior símbolo de vida do que o coração.

— Encantador. — Eram a versão deste reino de um vampiro.


Pus o diário ilustrado de lado e examinei o próximo grimório, com uma
orelha posta na entrada. Havia apenas páginas manuscritas de feitiços,
encantamentos e maldições. Deixei cair o livro na imponente pilha ao meu lado.
Depois levantei os joelhos e encostei-me às prateleiras.
Por muito que tentasse parar de imaginar estas criaturas a banquetearem-se
com corações, não conseguia banir o corpo mutilado da minha irmã da minha
mente.
Certa noite em Palermo, o Ira dissera-me que a mulher do Orgulho também
tivera o seu coração arrancado. Ele também mencionara que a Primeira Bruxa
havia recorrido à mais profunda magia das trevas para retirar os poderes à filha
e que isso conduzira a consequências imprevistas.
E se o seu coração desaparecido não fizesse parte do ritual do assassino e
fosse uma das consequências causadas por La Prima? Também podia ter sido
uma forma de a libertar de qualquer vínculo mortal. Tinha uma vaga memória
de que a Nonna dissera algo do género.
Se a filha de La Prima estivesse amaldiçoada e não morta, poderia ser ela o
monstro que andava por aí a arrancar corações às bruxas e a devorá-los.
Talvez a sua motivação fosse a vingança contra a mãe, contra o que a
humanidade lhe havia roubado quando os seus poderes lhe foram retirados. Se o
diabo fosse o seu amor eterno, talvez ela tivesse enlouquecido e matado
qualquer potencial noiva que pudesse tomar o seu lugar.
Ou talvez fosse tão simples como o diário ilustrado afirmava: se ela já não
possuía a sua humanidade, talvez a sua avidez por corações se devesse a tudo o
que lhe havia sido tirado.
— Talvez haja demasiados talvez e não respostas definitivas suficientes.
Levantei-me e puxei os ombros para trás. Agora que estava sozinha, voltaria
a visitar a matrona e confrontá-la-ia diretamente com as minhas suspeitas. Se
ela fosse a Primeira Bruxa, não achava que me fosse fazer mal. Havia um
motivo para ela me ter enviado as caveiras enfeitiçadas, e não fora para me
assustar. Talvez me pudesse dizer mais sobre a Chave da Tentação ou sobre o
Espelho da Lua Tripla e a sua possível localização.
Encostei a mão à bainha escondida na minha coxa.
E se tentasse magoar-me, não iria cair sem lutar.
A expectativa fez com que desse por mim à porta da câmara da torre da
matrona após o que me pareceram meros instantes. A desilusão fez-me apertar o
maxilar enquanto rasgava o bilhete preso à porta e lia a mensagem rabiscada.
Era impossível determinar se ela quisera dizer isso literal ou figura‐
tivamente. Ou se estaria de volta em poucos minutos ou fora em busca de um
feitiço. Não sabia quanto tempo este último poderia demorar, mas, na
possibilidade remota de que voltasse em breve, deixei-me ficar pela sua torre
até que a neve começou a cair e me afugentou.
Avançara dois passos para o corredor do meu quarto quando fui atingida por
uma flecha de reconhecimento. O Ira estava encostado à porta do meu quarto, a
sua atenção fixa no meu rosto. Engoli a onda de... o que quer que fosse aquela
sensação e levantei uma sobrancelha, como ele havia feito inúmeras vezes.
Ainda não o tinha visto nem falado com ele após a nossa última sessão de
treino. E aquela visita era bastante indesejável.
Parei a uma distância decente.
— Precisas de alguma coisa?
— Vim aqui perguntar-te o mesmo.
Não entrou em detalhes e eu não estava com disposição para jogar ao «fazer
mil perguntas ao Ira e obter respostas frustrantes». Movi-me em direção à
minha porta, à espera de que ele se afastasse, e respirei fundo quando vi que ele
não se mexia. Cruzei os braços e esperei.
Pressentindo a minha determinação, ou numa tentativa de redirecionar a sua
estratégia para esta batalha, o Ira mudou de tática.
— A biblioteca está uma confusão.
— Isso parece-me dramático. Há algumas pilhas de livros espalhadas por
uma das secções. Tratarei de arrumar tudo esta noite.
— Estás à procura de informação sobre a Primeira Bruxa.
— Estou interessada na minha história e ela faz parte dela.
A sua expressão ficou sombria. Não era bem trovejante, mas, sem dúvida,
algo tempestuosa.
— Mentes.
— Aquilo de que estou ou não à procura não é da tua conta.
— Tudo neste castelo é da minha conta. Especialmente tu. Respirei fundo.
— Eu não te pressiono nem me intrometo nos teus planos. Espero a mesma
cortesia da tua parte.
— Mesmo que tenha vindo para te oferecer ajuda?
— Após a nossa última «lição», fiquei com a impressão de que querias que
eu começasse a tratar das coisas com as minhas próprias mãos. De forma
bastante literal.
A atenção do Ira fixou-se na minha silhueta. Parecia que estava a reviver
mentalmente o nosso encontro na sala de armas, puxando-me o vestido até às
coxas, tocando-me e acariciando-me como se o meu prazer lhe pertencesse.
Quando voltou a olhar-me nos olhos, não havia calor, nenhum indício da
emoção que acabara de o dominar. Estava distante, insensível. Entre nós erguia-
se lentamente um muro. Não consegui perceber se o que me roía a boca do
estômago era alívio ou outra coisa qualquer.
— Partiremos para a Casa Gula dentro de três noites. Envia-me um bilhete
se quiseres treinar antes disso.
Ele virou-se para sair e, que o diabo me amaldiçoe, eu gritei:
— Está bem. Encontra-te comigo na sala de armas à meia-noite. Teremos
uma última lição antes de começarem os jogos a sério.

Cheguei à sala de armas quase meia hora antes do previsto. Queria definir o
tom da nossa lição e, a cada movimento do ponteiro do relógio, a minha
pulsação acelerava. Olhei para o meu reflexo num escudo particularmente
brilhante pendurado na parede, aliviada por a minha aparência exterior
permanecer impecável, independentemente do estado caótico do meu interior.
Libertei-me dos meus nervos e movi-me em direção ao centro da sala.
À meia-noite em ponto o Ira entrou na sala e parou perto da porta. Fechou-
se com um clique que me fez lembrar uma lâmina a deslizar para fora da sua
bainha. Um som apropriado, tendo em conta a batalha que estava prestes a ter
início entre nós.
O Ira reparou no meu vestido: um corpete preto que me deixava os ombros
descobertos, adornado com flores pálidas e videiras de missangas, com saias
fluidas da cor do champanhe escuro com uma abertura de um dos lados, um
pouco abaixo do meu joelho.
O seu olhar deteve-se no meu calçado. Mandara desenhar aqueles sapatos
especificamente para aquele vestido e tinha quase a certeza de que o príncipe-
demónio gostaria deles quase tanto como eu.
Eram sapatos de salto com serpentes pretas brilhantes enroladas ao redor do
meu tornozelo, que subiam até à coxa. A língua da serpente estava de fora, mas
meio coberta pelo meu vestido.
Se o Ira quisesse um vislumbre completo, teria de mover as saias para fora
do caminho. Para os sapatos, inspirara-me em parte na estátua nos jardins.
— Esta noite iremos...
— ... trabalhar o orgulho. — Sorri ao reparar que o meu batom da tonalidade
intensa de bagas lhe captara a atenção. Girei sobre mim mesma muito devagar.
— Desenhei isto para a nossa lição e estou muito contente com o resultado. É a
primeira vez que crio algo puramente da minha imaginação.
— É lindo.
— Eu sei. — Pisquei o olho e o Ira riu. — É perfeito.
— Vejo que o teu orgulho está pronto para a lição. — Algo obscuro e
perigoso reluziu-lhe no olhar. — Então, comecemos.
— Fazei o vosso pior, Alteza. Estou pronta.
Desta vez a magia foi como uma pequena conta a rolar-me entre os ombros,
deslizando pelas minhas costas, agradável e tentadora. Quase me arqueei na sua
direção, mas, no último instante, lembrei-me de que deveria afastá-la,
concentrar-me em criar uma barreira entre mim e a influência demoníaca.
Respirei fundo, inchando o peito eufórica. Estava a resistir à influência do
Ira, e mal me estava a esforçar. Combater o orgulho era, de longe, o mais fácil
que fizera até agora.
Lancei-lhe um sorriso arrogante para onde ele estava, meio escondido nas
sombras. Não avançara mais para dentro da sala; manteve-se ao pé da porta,
parecendo pronto para fugir. Já era tempo de ele se sentir instável. Ultimamente,
sempre que estava perto dele, sentia-me como se o meu mundo estivesse a girar
violentamente para fora do seu eixo.
— Tens de te esforçar mais. Tornei-me bastante boa a resistir à tua
influência.
— A sério? — Detetei um brilho de diversão nos seus olhos. — Parece-me
que estás um tanto orgulhosa.
Encolhi os ombros e deixei-os cair de forma casual.
— Não estou orgulhosa, não. Estou apenas a ser honesta. Tens sido um
professor decente, mas esta aluna superou as aulas. Aceito os meus desejos.
Aceito qualquer desafio. Perder é algo que não me assusta. Se fosse os teus
irmãos, ficaria preocupada.
— Ah, sim?
— Claro que sim. Não há nada mais perigoso do que uma mulher dona de si
própria e que não pede desculpa a ninguém. — Olhei-o de cima a baixo,
lentamente. — Sou poderosa porque me considero poderosa. Não é esse o
mesmo princípio pelo qual te reges? Bem, eu sei que sou poderosa. Sei que o
poder vem de muitas fontes e que agora tenho muitas armas no meu arsenal,
Vossa Alteza. De facto, poderia possuir-te agora mesmo, se assim o escolhesse.
E, por uma vez, ficarias indefeso.
— Presunçosa. Gabarolas. Uma opinião demasiado elevada de ti mesma. —
O Ira assinalou cada ponto com um erguer de dedos. — Tens razão. Não soa
nada como se estivesses sob a influência do orgulho.
— Sabes o que penso mais? Penso que, secretamente, gostarias que eu te
possuísse. Pelo menos em certas... áreas.
Movi-me com passos deliberados pela sala, permitindo que as minhas ancas
gingassem. A minha saia flutuou para ambos os lados, revelando a serpente
enrolada em torno da minha perna.
Se o Ira queria uma lição, eu dar-lhe-ia uma que ele tão cedo não esqueceria.
Encostei-o contra a parede, os meus lábios curvando-se para cima, enquanto
fazia descer um dedo pelo seu peito e depois seguia a fila de botões até às suas
calças. Demónio retorcido. Já estava excitado. Levantei o olhar para o dele e
observei-o atentamente enquanto deslizava a minha palma sobre a sua
protuberância. Ele silvou entredentes. Tracei aquele contorno duro por cima das
calças e a sua respiração acelerou.
A magia demoníaca que ele havia empunhado quebrou e desapareceu. Tal
como eu suspeitei que faria. O Ira revelara o seu conjunto pessoal de valores
morais em cada uma das nossas lições, e eu prestara-lhe a maior das atenções,
aprendendo o máximo possível, mesmo nas vezes em que não conseguira
bloquear a sua influência. Ele nunca usava magia quando as coisas se tornavam
românticas.
— Emilia.
Foi mais um apelo do que um aviso. Agora que a sua influência havia
desaparecido, a nossa lição estava apenas a começar. Encostei-me a ele,
pressionando o meu peito contra o dele, apreciando a forma como o seu olhar se
desviou para o meu decote. Sabia com precisão quão apertado estava o meu
espartilho, assim como a vista agradável dos meus melhores atributos que ele
estava a desfrutar de cima, graças à nossa nova posição. Ele parecia dividido
entre olhar fixamente e manter as suas maneiras cavalheirescas. Aquelas últimas
não me serviam para nada. Desejava-o solto por completo.
De repente, uma imagem invadiu-me os sentidos, tão vívida e real que me
fez confundir a realidade com uma miragem. Por um momento surpreendente,
estava em dois lugares ao mesmo tempo.
Havia o murmúrio baixo da música, dos instrumentos de corda e do piano,
um som abafado que se insinuava pelas paredes. Havíamo-nos escapulido
juntos, para longe do barulho agitado da festa no outro extremo do corredor. As
sombras escondiam-no da vista, mas ele encontrou-me rapidamente. Pousou a
mão sobre o meu peito por cima do meu corpete, arrebatando-me com beijos
possessivos. A minha paixão ardia com tanta intensidade como a dele. Mordi-
lhe o lábio, desafiando-o a fazer o mesmo. Ele fez melhor. Puxou a parte de
cima do meu vestido paru baixo, substituindo a sua ousada mão pela boca.
Fiz desligar a minha mão para dentro das suas calças e encontrei-o duro e
ansioso; depois som quando o ouvi soltar uma maldição com a primeira carícia
que lhe dei. Aproximei a boca do seu ouvido.
— Chiu. Vão ouvir-nos.
Na visão, tomei-o na mão como se fosse algo que já havia feito centenas de
vezes. Sabia exatamente do que ele gostava e como lhe proporcionar o maior
prazer possível. O seu corpo, a sua mente; conhecia-os tão bem como me
conhecia a mim própria. Naquele momento, usei esse conhecimento em meu
proveito.
Ele não pareceu importar-se.
Vários instantes depois ele estremeceu contra mim; a sua respiração era
irregular e laboriosa. Quando os seus tremores pararam, estiquei-me em bicos
de pés e dei-lhe um beijo longo e profundo.
— Vem ter comigo ao jardim na hora das bruxas, esta noite. Tu sabes
onde.
Ele mal conseguira abotoar as calças quando eu saí a correr, olhando por
cima do ombro uma última vez antes de escapar da sala escura.
O Ira chamou-me pelo nome e trouxe-me de volta ao presente. Nunca tinha
tido uma visão como aquela e não sabia o que fazer a esse respeito. Algo no que
vira fizera-me perceber que não se tratava de magia daquele reino.
Parecera uma memória.
O Ira traçou a curva da minha face e falou em tom calmo.
— Emilia...
— Eu...
Afastei-me dele, concedendo a ambos uma distância muito necessária, e
considerei as minhas próximas palavras com cautela. Senti que estava a perder o
contacto com a realidade. A preocupação inundou-lhe as feições, por isso tentei
o meu melhor para recuperar aquele sentimento de orgulho. Para o exercer em
meu proveito.
Intencionalmente, deixei que o meu olhar recaísse sobre as suas calças. Ao
que parecia, a minha distração não lhe passara despercebida.
Ofereci-lhe um sorriso cortante.
— Parece que a nossa lição acabou.
Antes que a minha máscara escorregasse, girei sobre os calcanhares e saí
porta fora. Algo de estranho estava a acontecer. E parecia acontecer sempre que
eu e o Ira nos encontrávamos em situações passionais.
Se fossem memórias e não ilusões criadas por aquele reino... então eu
podia ter descoberto outro dos segredos do Ira. Com a exceção de que eu não
fazia ideia de como tudo aquilo podia ser possível.
Mas não pararia até descobrir.
Capítulo 26

Flocos de neve dançaram maliciosamente do outro lado da minha janela.


A geada rastejou pelas vidraças como videiras de inverno. Sentei-me no
parapeito largo e contemplei o mundo coberto por um manto de neve recente. A
noite estava a cair depressa, tingindo tudo num profundo tom de azul. Havia
dois dias que vira o príncipe daquele círculo pela última vez. Desde a visão que
o andava a evitar, ainda na dúvida de se ter tratado de uma memória ou de uma
fantasia. Tinha de ser algo que o reino conjurara, mas parecera-me tão real que
tinha dificuldade em deixá-la de lado.
A Matrona das Maldições e dos Venenos ainda não havia regressado e eu não
queria confiar a ninguém o que vira ou experienciara. Esperava que ela
conseguisse elaborar um tónico ou que soubesse de alguma magia capaz de
libertar a verdade oculta dentro de mim.
Se tivesse sido uma memória, significava que eu já havia estado neste reino
antes. E o Ira e eu... Não conseguia compreender como pudera fingir que não
me conhecia em Palermo. No entanto, houve alturas em que me perguntara
como soubera de certos detalhes que eu própria não havia partilhado. Como a
minha morada. O meu nome. Consolara-me com a ideia de que tinha algo que
ver com o que eu assumira ser o seu feitiço de renascimento — na noite em que
fora atacada pelo Viperidae, havíamos entrado na mente um do outro por breves
segundos.
Seria isso o que estava a acontecer? Era possível que eu estivesse a ver as
suas memórias, a testemunhar o seu encontro com outra pessoa.
Talvez estivesse a experienciar o mundo através dos olhos dela, a reviver
as suas memórias. Sabia que os demónios podiam possuir pessoas, mas nunca
ouvira falar de uma bruxa que fizesse o mesmo. Neste momento, nada me podia
surpreender.
Passara a maior parte dos últimos dois dias a tentar desvendar todos os
significados possíveis. Nenhuma teoria era demasiado absurda. Escrevera tudo.
Desde pensar que o Ira poderia ser o Orgulho, até considerar a possibilidade de
eu ser a Primeira Bruxa, condenada ao esquecimento como castigo pelo que
havia feito.
Passado algum tempo, os detalhes começaram a desaparecer, confundindo-
me ainda mais. Não me conseguia lembrar se tinha visto a cara do Ira ou se fora
apenas a impressão de que era ele.
Lembrei-me de que, na minha visão, o quarto estava escuro e havia sons de
uma festa distante, mas não conseguia lembrar-me da voz do meu amante. Se
praguejara em voz alta quando atingira a libertação ou se fora apenas um
murmúrio. E se não fosse o Ira comigo na visão?
Expirei, a minha respiração criando nuvens no vidro da janela. Isso
complicava ainda mais as coisas. Esta noite, quando chegasse ao banquete,
talvez reconhecesse o amante da memória. Se dançássemos juntos, poderia isso
desbloquear outras memórias escondidas?
Deslizei do parapeito da janela e folheei as notas que tinha tirado sobre as
caveiras enfeitiçadas. Passado, presente, futuro, encontra. De início
interpretara-o como uma referência ao Espelho da Lua Tripla que o Inveja
procurava. Agora perguntava-me se abrangeria mais do que isso.
Seriam estas visões parte do meu passado ou do meu futuro? Se eram
imagens do futuro, talvez estivessem relacionadas com a profecia. À parte em
que dizia que eu podia corrigir um erro terrível.
Sob a influência do Luxúria, tivera a impressão de que tinha uma escolha,
que estava em equilíbrio. Que ou podia condená-los a todos ou consertar
alguma coisa. Mas o quê?
Acabava sempre por regressar ao tema da noiva assassinada do diabo. Seria
possível que apaixonar-me fosse a chave para quebrar a maldição?
Superficialmente parecia simples. Mas não era. Teria de me apaixonar
perdidamente pelo Orgulho. E, para fazer isso, teria de quebrar o meu noivado
com o Ira de forma definitiva.
— Que a deusa me ajude, isto é um desastre.
O Orgulho iria estar na festa. Se fosse ele o amante misterioso da minha
visão, e se isto fizesse parte do passado e não do futuro, era muito provável que
nenhum de nós fosse capaz de negar em pessoa a nossa ligação ardente. O que
me assustava.
Se o que eu tinha visto era o passado... então isso significava que eu já era a
mulher do Orgulho. Talvez, para quebrar a maldição, tivesse de voltar a
apaixonar-me por ele, sem qualquer memória prévia de nós.
Uma teoria tão estranha que podia ser verdadeira. Podia ser a verdadeira
razão pela qual o Orgulho não me convidara para o seu círculo. Talvez se
devesse a algo mais profundo do que o meu envolvimento acidental com o Ira.
Talvez eu tivesse quebrado o coração do Orgulho sem saber e os tivesse
condenado a todos ao escolher o irmão errado. Isso também explicaria o ódio do
Ira da primeira vez que eu o invocara e ele exigira que eu revertesse o feitiço
antes que fosse tarde demais.
Uma pancada na porta dos meus aposentos arrancou-me dos meus
devaneios.
— Pode entrar.
A Harlow fez uma curta reverência e depois estendeu-me um longo porta-
vestidos.
— O sapateiro terá os sapatos prontos em breve. Gostaria que lhe preparasse
o vestido?
— Por favor.
Com todas as minhas preocupações, perdera por completo a noção do
tempo. Daqui a uma hora estaríamos a caminho da Casa Gula. Esta seria a
primeira das três noites dedicadas ao Banquete do Lobo, um evento que eu
preferia evitar, se não fosse pela possível informação que lá pudesse obter.
Contudo, pensar que me iriam arrancar o meu maior medo fez com que o meu
ritmo cardíaco se tornasse três vezes mais rápido do que o normal.
De início, temera que o meu maior medo fosse a revelação da minha missão
secreta de vingança. Agora, podia ser o meu medo sobre a criatura que chorava
debaixo da estátua, de que a minha família morresse às mãos dos nossos
inimigos, de que a minha magia nunca mais regressasse, ou a possibilidade de
as minhas memórias terem sido roubadas e a vida que eu vivera até então não
passasse de uma mentira.
O maior medo de todos continuava a girar-me na cabeça como um
presságio de morte e desgraça.
Não conseguia parar de pensar que eu era a noiva do diabo e que não havia
sido morta, e sim amaldiçoada a esquecer. As palmas das minhas mãos
humedeceram. Não era possível que isso fosse verdade.
Ainda assim, o pensamento assombrou-me enquanto me preparava para a
festa de inauguração desta noite. Quer fosse verdade ou não, se não conseguisse
pôr de lado o meu medo, ele seria revelado perante todos os meus inimigos e os
seus súbditos. Não só seria humilhante, como uma indicação de que eu não
havia deixado o passado para trás ao vender a minha alma e que estava a
trabalhar arduamente para destruir um deles.
Se os príncipes-demónios já suspeitavam da motivação subjacente à minha
vinda para o Inferno, os seus palpites apenas seriam confirmados. E eu não
queria saber o que fariam para se vingarem.

Desci as escadas, os ombros para trás e a cabeça erguida. Esperei ver a


Fauna e o Anir. Em vez disso, era o Príncipe Ira quem me esperava, vestido
para arrasar, o seu olhar fixo no meu. Optara por não usar nenhuma das cores
características da sua Casa. Não que ele parecesse descontente com o vestido de
veludo vermelho ou com a forma como se agarrava às minhas curvas antes de
se acumular ao redor dos meus pés.
Na verdade, quase perdi o equilíbrio quando reparei na cor da sua camisa.
Um tom profundo e tentador de arando a espreitar sob o colete preto e o casaco
do seu fato. A Harlow ou a costureira deviam tê-lo informado do meu traje.
Cheguei ao degrau de baixo e dei uma voltinha lenta. Os meus sapatos
tinham o mesmo padrão de serpente que os de algumas noites atrás, mas estes
eram dourados em vez de pretos. Era o único tributo à minha atual Casa do
Pecado. Por mais que alguma das minhas teorias estivesse correta, naquela
realidade, naquela versão de mim mesma, era ali que me sentia confortável. De
nada me servia negar que o pecado da ira me assentava melhor do que qualquer
outro.
— Então? — incitei. — Que tal estou?
O olhar do Ira toldou-se numa sombra de promessa pecaminosa.
— Suspeito de que já saibas.
— Elucida-me.
— És a encarnação de problemas.
— Um grande elogio vindo de um dos Malvagi. — Olhei de relance para o
corredor vazio. O silêncio estendeu-se entre nós. O que não ajudou nada para
acalmar os meus nervos em crescendo. Quanto mais eu tentava não me
concentrar nas minhas teorias, com mais insistência elas me assombravam. —
Onde estão a Fauna e o Anir?
— Neste momento, devem estar prestes a chegar à Casa Gula.
— Quem mais vem connosco?
— Ninguém. — Ele estendeu o braço. Perguntei-me se sabia que também
aparentava trazer problemas. E tentação. Mas se o Orgulho fosse o homem da
minha visão, o Ira também poderia parecer uma recordação agradável antes de a
noite acabar. O pensamento despertou uma pontada no meu âmago. — Esta
noite usaremos a minha carruagem. É considerado indelicado chegar ao
banquete por meios mágicos.
Tomei o seu braço e atravessámos as ameaçadoras portas duplas.
Lá fora o nosso veículo aguardava-nos, flocos de neve agarrando-se ao teto
como açúcar em pó. A carruagem do Ira era mais escura do que a noite, com
salpicos de ouro no acabamento em verniz. Não havia sinal de condutor, apenas
cavalos.
— Serás tu a conduzir a carruagem?
— Não. O meu poder guiá-la-á.
— Magia transvenio é vista como indelicada, mas manobrar uma carruagem
com magia não? — Abanei a cabeça. — Ainda que viva por milhares de anos,
nunca irei entender as vossas ridículas regras demoníacas.
Quatro corcéis negros como ébano farejaram o ar, sendo os seus olhos
vermelhos a única indicação de que não pertenciam à raça dos cavalos do
mundo mortal. O Ira começou por verificar-lhes as rédeas e deixou escapar um
pequeno ruído de desagrado quando um dos cavalos infernais o mordiscou.
Arquejei. Estava equivocada. Os seus olhos não era a única coisa que os
distinguia. Os seus brilhantes dentes de metal indicavam que eram mais
predadores do que meros equinos. O cavalo infernal mordiscou-o outra vez,
com mais insistência.
— Calma, Morte.
— Deusa, dai-me forças. — Olhei para as outras três bestas. — Fome,
Peste e Guerra, presumo. — O sorriso do Ira foi confirmação suficiente quando
me fitou por cima do ombro. — Não acredito que lhes deste o nome dos quatro
cavaleiros, mas, ao mesmo tempo, não me surpreende.
O príncipe caminhou até mim e ajudou-me a entrar na carruagem.
— Talvez não seja só isso.
Instalou-se no banco de veludo à minha frente com uma expressão
presunçosa enquanto eu processava a informação. Com uma rápida pancada no
forro do teto, começámos a avançar.
As rodas ressoaram sobre a pedra, mas o som e a vibração desagradável
foram abafados pelos assentos bem almofadados e pelas camadas de carpete
luxuosa. Eu nunca viajara num veículo tão opulento. Mas também nunca viajara
num de fraca qualidade. Antes da minha viagem com a emissária, o mais perto
que alguma vez estivera de andar de carruagem fora numa caleche puxado por
cavalos.
Franzi o sobrolho. Isso não podia estar certo... Devíamos ter viajado de
carruagem para visitar a amiga da Norma no Norte de Itália. Só que eu não me
lembrava de como havíamos lá chegado.
O Ira estudou-me.
— Pareces embrenhada num enigma intrigante.
Encolhi um ombro.
— Suponho que seja dos nervos.
— Por causa da parte do medo do banquete?
— Por causa do medo e de toda a provação. Conhecer o resto dos teus
irmãos. Dançar.
Ele ficou em silêncio durante algum tempo. Duvidei que esperasse tanta
honestidade e muito provavelmente não tinha a certeza de como proceder. Por
fim, inclinou-se para a frente.
— Nenhum mal te será feito. Eu não o permitirei.
— Talvez devesses preocupar-te com os teus irmãos.
— Se forem estúpidos o suficiente para inflamar a tua fúria, merecem arder.
Sorri-lhe.
— E, no entanto, insistes em atirar fósforos para a parafina.
— A ira e a fúria são os meus pecados. do teu temperamento.
Após um tempo indeterminado a descer e a subir algumas montanhas, a
nossa carruagem parou abruptamente. O Ira olhou para fora, a sua expressão,
mais uma vez, convertida numa máscara fria e implacável.
— Chegámos. — Estendeu a mão para o puxador e depois deteve-se. Tinha
os músculos tensos por baixo do seu fato feito à medida. Abanou a cabeça uma
vez e depois olhou para mim. — Se te encontrares sem parceiro, dançarei
contigo.
Antes que eu pudesse reagir, ele abriu a porta e saiu da carruagem. A mão
dele apareceu das sombras à espera da minha. Concedi-me um instante para
controlar as minhas emoções. Não mentira ao príncipe quanto à causa dos meus
nervos, mas não expressara todos os motivos subjacentes às palpitações do meu
coração. Agora, teria a oportunidade de falar com todos os príncipes do Inferno.
E era muito provável que um deles tivesse orquestrado o assassínio da minha
irmã.
Nos próximos dias, muito seria ganho ou perdido. E se o assassino da minha
irmã estivesse presente, nada me garantia que não tentaria também arrancar-me
o coração do peito.
Se estava prestes a travar uma batalha pela minha vida, pelo menos teria o
Ira do meu lado.
Ignorando a forma como os seus dedos apertaram os meus, e o conforto que
aquele pequeno gesto me trouxe, desci da carruagem e olhei em torno da Casa
Gula. Era enorme, mas com um estilo invulgar. Uma cruz entre terraços
romanos abertos com janelas altas em arco e torres medievais. Fora construída
ao lado de um pico íngreme da montanha e parecia saída de um conto de fadas
gótico.
— Prepara-te. — O Ira acompanhou-me por um curto lanço de escadas e
parou diante da grande entrada do castelo. — A devassidão do meu irmão não
conhece limites.
Quando entrámos, as palavras falharam-me O príncipe daquele círculo não
escondia os seus pecados nem os seus vícios homónimo. Imediatamente ao
avançar pelo grande hall, fomos recebidos pela cena mais escandalosa que eu
alguma vez testemunhara.
Uma mesa do tamanho de quatro colchões enormes estava proeminentemente
em exposição, o que obrigava os convidados a espremerem-se à sua volta se
quisessem avançar mais para o castelo. A mesa não estava coberta de comida ou
vinho. Estava coberta de amantes. Alguns deles envolvidos em atos que eu
nunca havia sonhado.
Numa extremidade, uma mulher nua deitada com as pernas abertas enquanto
um homem despejava um rasto de molho de chocolate sobre os seus seios,
estômago e através do ápice do seu corpo. Depois, atirou o jarro para o lado,
ajoelhou-se e começou a banquetear-se. Não havia nada de romântico na cena,
nenhum tipo de sedução. Apenas uma fome animal e pura. Não que a mulher
parecesse importar-se.
Olhei para o extremo oposto da mesa, onde um jovem se recostava com um
braço atrás da cabeça, observando o seu parceiro a chupar chantilly do seu
membro, enquanto outro amante o penetrava por trás. Senti o rosto a arder
perante a cena erótica.
Antes de saber que o Orgulho não era o meu noivo, o Ira mencionara a
possibilidade de o seu irmão convidar outros amantes para a nossa cama.
Naquele momento, percebi o que quisera dizer. Soube também, com vívida
clareza, ao que a Fauna se referira quando perguntara se eu tomara o Ira na
minha boca.
— O meu irmão gosta de surpreender os convidados à chegada. — A voz
baixa do Ira junto do meu ouvido disparou-me arrepios pela espinha. — Os seus
súbditos estão mais do que dispostos a participar no espetáculo do seu vício
preferido. Estes amantes aqui querem ser vistos. Querem que nos deixemos
levar pelo seu prazer. A nossa atenção alimenta-os como os seus encontros nos
alimentam. Não será assim por toda a casa.
A mão do Ira nas minhas costas não me arrancou os pés de onde eu os fixara.
— A influência do Gula levar-me-á a fazer isto? A frente de toda a gente?
O Ira seguiu o meu olhar, a sua própria expressão impenetrável.
— Não.
Eu estudei subtilmente o demónio ao meu lado. Parecia indiferente perante
todos os corpos nus, grunhidos e gemidos. Podia estar a olhar para os móveis,
apercebendo-se de que estavam lá para serem usados, mas como se não
merecessem mais do que um olhar superficial. Não podia dizer o mesmo de
mim própria. Desviei o olhar de onde o homem estava a lamber e a chupar com
abandono febril.
— Como podes ter a certeza? O Luxúria conseguiu influenciar-me. Tal
como o Inveja. Tenho a certeza de que o teu irmão me consegue obrigar a fazer
o que lhe apetecer com quem lhe apetecer. Talvez as nossas lições não tenham
sido suficientes. Talvez...
— Respira. Ninguém te irá tocar enquanto estivermos aqui, Emilia. Seria
um ato de guerra, e estamos reunidos sob o manto de uma trégua temporária. Tu
pertences à Casa Ira. E se eles se esquecerem, terei todo o prazer em relembrá-
los.
Um olhar sobre as suas feições rígidas convenceu-me da verdade da sua
promessa. Tinha poucas dúvidas de que este príncipe despedaçaria membro por
membro quem se atrevesse a tocar-me com um dedo não consentido. Desejava
esse poder. Ansiava por conhecer a segurança pela minha própria mão, e quase
podia jurar que, em tempos, já a detivera. Talvez fosse por isso que eu sentisse
tanta invídia quando conhecera o Inveja, e ele usara a sua influência sobre mim.
Ansiava pelo poder de me defender a mim própria e aos meus entes queridos.
O meu olhar desviou-se para o homem ajoelhado entre as coxas da mulher.
Estava agora a usar tanto a boca como a mão. Uma outra amante avançou para
os seus seios, verteu chantilly sobre eles e lambeu-lhe a pele antes de adicionar
outra dose.
O Gula queria chocar os convidados para os perturbar. Só que muitos deles
pertenciam a este reino e muito provavelmente já testemunharam muito mais
devassidão. Não, este quadro não se destinava a todos os seus convidados. Isto
era para mim. Para perturbar a convidada de honra mortal muito antes de entrar
no seu salão de baile.
E por pouco conseguira.
Corpos nus, pessoas em busca de prazer. Por muito que tentasse ultrapassar
isso, o hábito mortal de pensar que era errado e vergonhoso ainda me
assombrava. Estas coisas nunca deixariam de me surpreender, porque, no fundo,
eu ainda me preocupava com aquilo que as noções humanas de escândalo me
podiam trazer. Acima de tudo, preocupava-me com o que os outros poderiam
pensar.
Basta. Cansara-me da rotina de cair em velhos medos. Atravessei a mesa e
mergulhei um dedo numa tigela de chantilly, virando-me lentamente para o Ira
enquanto o lambia.
Naquele instante, nada na sua expressão indicava aborrecimento ou
desinteresse. O seu olhar seguiu cada um dos meus movimentos como se os
memorizasse.
Um empregado apareceu com uma bandeja de taças de champanhe. Lancei
ao Ira um sorriso ténue e desonesto e agarrei numa taça de vinho espumante.
— Um brinde aos atos escandalosos.
Sem esperar pela sua resposta, virei-me e passei pela mesa cheia de
amantes.
Quando entrei no Banquete do Lobo e o arauto gritou o meu nome,
convenci-me a mim mesma de que era a mais temível da sala.
Capítulo 27

O Príncipe Gula não era de todo o que eu esperava. Não estava sentado num
trono, nem parecia aborrecido e frio, nem exalava arrogância real. Não havia
nada na sua aparência que me parecesse particularmente perigoso. A não ser a
ameaça que representava aos corações.
Estava de pé, com várias mulheres voluptuosas sob os braços, perto de uma
fonte de espíritos, e com um sorriso secreto a puxar-lhe os cantos dos lábios
lascivos. O príncipe inclinou-se para sussurrar algo aos ouvidos de cada uma
das suas companheiras, os seus risos intensos e inundados de promessas
maliciosas.
Ergui uma sobrancelha enquanto ele se revezava a mordiscar-lhes o
pescoço.
Era libertino até ao âmago. E parecia ser adorado por isso.
Não era tão alto como o Ira, mas tinha ombros largos, ancas estreitas e a
largura das suas coxas sugeria um corpo em forma sob o seu fato cor de amora.
O seu cabelo castanho ligeiramente desgrenhado tinha madeixas douradas e
avermelhadas, dependendo de como a luz incidia sobre elas, embora a escuridão
nunca saísse do seu domínio por muito tempo. Usava uma coroa de bronze,
enfeitada com pedras preciosas multicoloridas. Os olhos do Gula eram uma
mistura de tons verdes, dourados e castanhos cintilantes, disputando
dominância, desfrutando da sua própria beleza.
E agora estavam fixos em mim e no Ira. Ele arqueou uma sobrancelha.
— Irmão! Vem conhecer as minhas recentes amigas. Drusilla e Lucinda.
Estavam mesmo agora a contar-me uma história muito interessante.
— Não duvido. — A falta de decoro do Ira não pareceu surpreender
ninguém a não ser a mim. Pousou uma mão na base das minhas costas. — A
minha mulher, Emilia di Carlo.
O olhar do Gula desviou-se para mim. Parecia que tinha partido o nariz uma
ou duas vezes no passado, mas essa imperfeição apenas o tornava mais
interessante. O seu olhar percorreu-me e uma faísca maliciosa rebentou-lhe nos
olhos.
— Futura esposa, creio.
— Na verdade — interrompi —, ainda não decidi se vou aceitar a ligação.
— Ouviste, irmão? — O Gula afastou-se das suas companheiras e fez
deslizar um braço à volta dos ombros do Ira. — Ainda posso ter esperanças.
— Se respirares perto dela sem a sua permissão, ela esventrar-te-á. — O Ira
tirou um copo de vinho demoníaco de uma bandeia de passagem e tomou um
gole, a imagem da elegância sem esforço. — Já lhe pedi que se abstivesse de
violência durante a nossa visita, mas se fosse a ti não tentaria a sua fúria.
Os dois irmãos trocaram um longo olhar. Basicamente, o Ira chegara e
estabelecera as suas próprias regras na corte real do irmão. Tal como fizera na
Casa Inveja. Era um milagre que o Gula não levantasse sequer uma sobrancelha
à impertinência do Ira.
— Com que então é uma harpiazinha violenta?
— Tenho os meus momentos, Vossa Alteza.
A sua gargalhada foi plena e intensa.
— Isso explica como conseguiu a atenção deste aqui. — Inclinou-se e falou
num tom de falso sussurro, sério, como se partilhasse um segredo perigoso. —
O Ira tem um gosto insaciável pela fúria. Embora nunca a exceda. Para desgosto
de todos nós. — O Ira não retribuiu o sorriso do irmão, o que apenas encantou o
príncipe daquele círculo. — Talvez seja desta que nos surpreendes a todos,
querido irmão. Talvez este seja o ano em que finalmente te deixas levar. Em que
vives à altura das nossas expectativas. Entrega-te a um pouco de diversão por
uma vez.
— Devias sentir-te grato pelos limites que imponho à minha diversão,
irmão.
— Bom, nesse caso, a caçada começa ao amanhecer, para que possas selar
um cavalo infernal e libertar o teu espírito guerreiro. — Ele olhou para mim
com um sorriso perturbador. — Você também, Lady Emilia. Deixe-nos ver se é
guiada pela mesma sede de sangue.
— Eu não monto.
— Não? — Os seus olhos brilham de regozijo. — Então eu fico e faço-lhe
companhia. Enquanto eles se metem em sarilhos, decerto que poderemos
encontrar alguns para nós.
Qualquer leviandade que o Gula tivesse sentido desapareceu de repente,
substituída por uma expressão gelada. Segui a direção do seu olhar e fiquei
surpreendida ao descobrir que o alvo do seu ódio era uma bela mulher nobre
com ar presunçoso. O seu cabelo azul-pálido fora penteado ao estilo das
senhoras inglesas mais formais e o seu vestido elegante era abotoado até ao
pescoço. Usava umas luvas de pelica que lhe chegavam aos cotovelos e uma
expressão de repugnância enquanto fitava o anfitrião com o seu olhar cortante.
Inclinou-se para perto da sua companheira e sussurrou-lhe algo que fez com que
a outra mulher nobre se risse.
— Com a vossa licença. — O humor do Gula tornou-se ainda mais sombrio.
— Temos uma desmancha-prazeres entre nós.
Sem dizer mais nada, o Gula afastou-se em direção às senhoras e ao seu riso
tolo.
Virei-me para o Ira.
— O que acabou de acontecer?
— Ela é uma jornalista das Ilhas Movediças. E raras vezes tem algo de
lisonjeiro a dizer sobre a realeza deste reino. Tem sido particularmente
impiedosa com o Gula.
Voltei a pensar nos amantes em cima da mesa.
— Presumo que não lhe agradem as suas demonstrações de excesso.
— Pelo contrário. — A boca do Ira curvou-se de um dos lados. — Ela
descreveu o último encontro a que o meu irmão presidiu como «perfeitamente
comum e excessivamente artificial. Uma noite branda e previsível».
— Não acredito que tenhas memorizado isso.
— O meu irmão citou essa frase tantas vezes que acabou por colar. O Gula
ficou furioso. Desde então tem dado as festas mais luxuosas, exageradas e
devassas que pode.
— Ele quer que ela engula as suas palavras.
— Entre outras coisas, sem dúvida.
Não pude evitar sorrir.
— Para alguns, o ódio é um poderoso afrodisíaco.
— É. De facto. — O olhar do Ira demorou-se nos meus lábios. — Gostarias
de percorrer os jardins do prazer ou preferes instalar-te nos teus aposentos?
Lembrei-me do que a Fauna dissera sobre os jardins crepusculares e o meu
estômago revirou-se de nervoso. Se eu e o Ira fugíssemos naquele momento,
perderia a oportunidade de conhecer o resto da sua família. Para não dizer que
não tinha a certeza de que estar sozinha com ele, onde a sedução era servida
numa bandeja, seria uma boa ideia.
Como se me tivesse tirado o pensamento da cabeça, ele acrescentou em voz
baixa:
— O Orgulho irá fazer a sua grande entrada no baile de máscaras amanhã. O
Preguiça irá entrar mesmo antes da cerimónia do medo. O Ganância e o Inveja
chegarão elegantemente atrasados esta noite.
— E o Luxúria?
— Imagino que já cá esteja, a entregar-se ao ambiente do serão. Apesar da
sua tendência para se apropriar de sentimentos felizes para aumentar o seu
poder, ele participa em tentações carnais quando lhe são oferecidas. Estas festas
alimentam-lhe o pecado em vários níveis.
Olhei para o terraço, onde havia um par de portas abertas através das quais
uma brisa fria, acompanhada por alguns flocos de neve, soprava do pátio mais
adiante. Pequenos orbes de prata flutuavam e cintilavam na escuridão.
Ir para o meu quarto seria a melhor decisão. No entanto, dei por mim a
dizer:
— Vamos dar um passeio rápido pelo jardim.

Como seria de esperar, a ideia do Gula de um jardim do prazer era bastante


literal. Passámos por amantes mal escondidos nas sombras, os sons das suas
peles nuas a baterem uma contra a outra e os gemidos entrecortados criaram
uma sinfonia estranhamente perturbadora. Fiz o melhor que consegui para
manter os olhos fixos no caminho iluminado pelas tochas à nossa frente, não me
atrevendo a procurar sombras que se contorciam perto das sebes.
O Ira, como sempre, parecia não se deixar afetar por nada daquilo. — Já
tinhas estado nestes jardins? — Desejei de imediato não ter perguntado.
— Sim. — O Ira lançou-me um olhar pelo canto do olho. — Faço sempre
uma verificação ao terreno para ter a certeza de que não há nenhuma ameaça
escondida.
Quase como se estivesse a obedecer a uma ordem, uma mulher chamou pelo
nome do seu amante.
— Claro. — Revirei os olhos. — Sem dúvida de que parece haver aqui
algum perigo.
— Exércitos ocultos, convidados indesejados, reuniões clandestinas entre
Casas intriguistas. — O Ira aproximou-se e baixou o tom de voz. — Muitas
coisas podem acontecer no escuro, minha senhora.
— Ele não está errado. — O sorriso do Príncipe Luxúria parecia quase felino
quando entrou no nosso campo de visão e esticou os braços acima da cabeça,
expondo uma mancha de pele dourada. Os seus olhos de carvão beberam do
meu corpo e depois cuspiram-me com desinteresse. — Olá novamente, minha
querida.
— Luxúria. — Embora a vozinha dentro de mim me incitasse a fugir,
mantive a minha posição. Todos os meus sentidos ficaram em alerta enquanto
esperava por aquele primeiro indício da sua esmagadora influência. — Diria que
é bom voltar a ver-te, mas... — Encolhi os ombros, deixando o resto da resposta
em suspenso.
— Terei de remediar isso. Mais tarde. — Virou-se para o irmão. Não havia
raiva ou sede de vingança na sua expressão. Tanto quanto sabia, da última vez
que se haviam encontrado, o Ira espetara-lhe uma adaga no peito. — Preciso de
falar contigo. A sós.
O Ira hesitou antes de acenar uma única vez com a cabeça. Voltou-se para
mim.
— Passarei pelo teu quarto mais tarde. A menos que queiras que te
acompanhe até lá agora.
— Não. — Abanei a cabeça, grata pelo pretexto para me afastar do
Luxúria e da sua problemática influência. — Estou certa de que encontrarei o
caminho de volta.
O Ira anuiu, mas não se mexeu para seguir o irmão. Senti o seu olhar sobre
mim até dobrar a esquina. A meio caminho do trilho seguinte, apareceu um
criado. Influência do Ira, sem dúvida.
— Lady Emilia, se tiverdes a gentileza de me seguir. Posso mostrar-vos os
vossos aposentos.
Depois de me ter instalado no meu quarto bem mobilado — azul-cobalto,
prata e excessivamente luxuoso —, sentei-me na beira da cama durante o que
me pareceram horas, à espera de ouvir o suave bater da mão do Ira na minha
porta.
Isso nunca aconteceu.
No início preocupei-me que o Luxúria o tivesse atacado para se vingar do
que acontecera entre eles em Palermo. Depois, uma nova preocupação assomou-
me à mente. Estávamos numa casa repleta de devassidão. Se o Ira ainda não
chegara à sua cama, perguntei-me se isso significava que havia caído na de
outra pessoa.

Olhei fixamente para o bilhete que chegou bem depois da meia-noite. Papel
azul-cobalto com tinta prateada. O pergaminho era grosso e luxuoso.
Não havia indicação sobre o remetente, o que encontraria se aceitasse o
convite, ou que tipo de maldade poderia estar a convidar para o meu mundo já
complicado. A caligrafia não pertencia ao Ira, que até então ainda não
aparecera.
Dado o requinte do papel e da tinta, imaginei que fosse do Gula, mas havia
sempre a possibilidade de ter sido enviado por um dos outros príncipes.
Vestir algo «de cortar a respiração» podia não ser um eufemismo
demoníaco.
Considerei as minhas opções com extremo cuidado. Podia ignorar o convite.
Decerto que seria o caminho mais seguro. Após a tentativa de assassínio na
Casa Ira, não seria um exagero pensar que se tratava de uma armadilha.
Uma vez que todos se reuniriam ao amanhecer para a caçada, ficaria sozinha
e vulnerável. Quem quer que tivesse enviado o bilhete devia saber que eu
escolhera não montar com os outros.
E a única pessoa que sabia disso — além do Ira — era o Gula.
Se o meu vestuário era importante, isso poderia sugerir alguma festa
clandestina. Uma em que as máscaras fossem obrigatórias para manter o
anonimato dos participantes. Um evento misterioso organizado no submundo de
um anfitrião desconhecido não era o tipo de serão em que teria considerado
participar no passado.
Mas agora... suspirei. Agora não podia recusar algo que me pudesse
proporcionar a oportunidade de interrogar um príncipe do Inferno sem a
presença do Ira.
Virei o bilhete e examinei ambos os lados, pensativa. O facto de terem
solicitado que fosse ao Jardim Geada de Prata não implicava que fosse esse o
local onde deveria comparecer. Pelo menos, não de início.
Um plano começou lentamente a tomar forma na minha mente. Havia um
grande terraço fora do salão de baile, na torre sudeste, com uma grande
escadaria que dava para os jardins. Chegaria mais cedo e aguardaria lá, nos
cantos mais escuros. Saí da cama e apressei-me a entrar num vestido feito de
sombras.

O Gula passeava pelo terraço vazio, um dedo de licor num copo de cristal.
Trazia uma garrafa escondida debaixo do braço. Diria que era demasiado cedo
para beber, mas ele não parecia ter ido à cama.
Tinha o cabelo ligeiramente desgrenhado e um pequeno vinco no fato.
Como se a sua companheira de cama o tivesse mantido ocupado a noite toda e
até de manhã. O seu papel de libertino assentava-lhe na perfeição.
Tomou um gole generoso do seu licor. Todos os príncipes pareciam gostar
de álcool em igual medida, embora pudessem diferir nas quantidades que
consumiam.
Escondi-me mais nas sombras e vi-o aproximar-se. Sustive a respiração para
evitar ser detetada. Como se o mais pequeno suspiro me pudesse denunciar.
— Não consigo decidir se isto me diverte ou insulta.
Todo o meu corpo ficou tenso ao ser descoberta tão rapidamente. Levei a
mão à minha adaga e relaxei quando lhe senti o peso familiar. Avancei para a
luz aquosa que precedia o amanhecer.
Já não valia a pena esconder-me.
Esperei em silêncio que ele continuasse. Estava claro que desejava manter
este encontro a dois. Mais valia começar a deslumbrar-me com qualquer
discurso que tivesse preparado.
O príncipe inclinou-se sobre a grade de pedra, contemplando o jardim
decadente lá em baixo. As flores prateadas cobertas de geada reluziam como
diamantes.
— Talvez a tua estratégia funcione em pleno.
— Que estratégia?
— Ganhar a caçada. Dentro de cinco minutos, o castelo inteiro estará a
galopar para fora dos estábulos. — Pousou a taça na grade ampla diante de si e
gesticulou para o telhado negro ao longe. As colinas cobertas de neve davam
lugar a uma floresta. — As pessoas raramente reparam no que está à sua frente,
sobretudo quando esperam encontrar outra coisa.
— Não sei bem se estou a entender o que queres dizer.
Muito devagar, ele virou-se para olhar para mim, a sua expressão de falso
desagrado.
— Sou capaz de ter omitido alguns detalhes importantes no bilhete.
Nomeadamente o prémio para quem ganhar a caçada.
Mantive uma expressão impassível. Pensava que não passava de um típico
desporto de campo.
— Não sabia que havia um prémio envolvido na caçada.
— Prémio. Presa. Há quem argumente que são a mesma coisa. — O seu
sorriso era esculpido por más intenções. — O anfitrião escolhe a presa a cada
Época de Sangue. Os participantes só sabem o que procuram nos estábulos
segundos antes de começar a caçada.
O sangue gelou-se-me nas veias.
— O Ira disse que as festividades destes três dias não envolveriam nenhum
tipo de sacrifício.
— Eu nunca disse nada sobre sacrifício. Apenas que alguém ou algo será
caçado. — Ele estudou-me mais atentamente do que eu pensava ser possível,
tendo em conta o quanto deveria ter bebido. — Ninguém mata a presa
escolhida. — Piscou-me o olho. — Não somos assim tão monstruosos.
— Porque querias que usasse uma máscara?
— Para ver se me farias a vontade — explicou o Gula, encolhendo os
ombros. Como se isso fosse justificação suficiente. — Alguém te disse porque é
que se chama Época de Sangue?
— Não, mas estou certa de que será uma história encantadora.
— Se um demónio menor ou nobre ganhar a caçada, é-lhe dada a opção de
beber o elixir da vida.
— Sangue.
O meu estômago contorceu-se enquanto o Gula anuía. A Nonna costumava
dizer-nos que os Malvagi bebiam sangue. Agora sabia de onde surgira o boato.
— E se for um membro da realeza a ganhar?
— Temos a opção de reclamar o nosso próprio prémio, se pelo menos
quatro votarem a favor — esclareceu. Depois continuou: — Mas beber o elixir
da vida não é o único motivo pelo qual lhe chamamos Época de Sangue. O
vencedor da caçada é determinado por aquele que derramar a primeira gota de
sangue. Os participantes escolhem quanto derramar e como o fazer. Garras,
lâminas, flechas, dentes. — O seu olhar regressou aos estábulos. Um disparo
rasgou o ar, inquietando-me. — Ah, sim. Encontraram as armas. Se eu fosse a
ti, considerava juntar-me agora à caçada.
— Já te disse que eu não monto.
— É uma pena. Vão caçar um dragão de gelo este ano. Criaturas majestosas
e violentas. — O príncipe desviou a sua atenção do edifício ao longe e voltou a
olhar para mim. — E, quanto a montar, eu reconsideraria. Tenho cá para mim
que, por vezes, os nossos corpos recordam o que a mente não consegue.
O Gula curvou a cabeça e depois voltou para o seu castelo, deixando-me
sozinha a analisar as suas palavras de despedida. Um segundo tiro soou como
um trovão, seguido pelo estrondo de uma debandada. A terra roncou sob os
meus pés. Algo se agitou no meu sangue.
Antes que pudesse mudar de ideias, levantei as saias e corri em direção aos
estábulos.
Capítulo 28

No exterior dos estábulos, uma égua violeta-pálida a esmagar neve com


cascos de metal pontiagudos virou os olhos cor de mercúrio na minha direção.
A inteligência brilhava-lhe naqueles olhos líquidos à medida que me
aproximava, lentamente, do enorme cavalo infernal Uma lua crescente prateada
iluminava-lhe a testa e tinha um punhado de estrelas espalhadas na parte
traseira, como uma constelação de sardas.
— És magnífica. — Aproximei-me. — Não sei o teu nome, mas tenho de te
chamar alguma coisa. Que tal Tanzie? Diminutivo de Tanzanite.
Sorri quando a égua inclinou a cabeça em sinal de aprovação.
O momento de tranquilidade foi de curta duração. Ao longe, ouvi gritos,
seguidos de um rugido que fez tremer a terra. Imaginei que pertencesse ao
dragão de gelo que o Gula mencionara.
Era evidente que a caçada estava em plena atividade, mas sentia-me menos
preocupada com ela do que com a necessidade crescente de atravessar o terreno
gelado o mais depressa possível.
O coração trovejou-me no peito como um tambor de guerra. Montar a alta
velocidade sobre aquele terreno seria perigoso, se não fossem as ferraduras
pontiagudas como garras. Eu acariciei o flanco da Tanzie com confiança. De
alguma forma, sabia que ela não toleraria nada menos da pessoa a quem
permitira a honra de montar a sua sela. E que bela sela — tão escura e oleada
que parecia tinta congelada.
Havia uma pequena bolsa pendurada de lado. O Gula devia tê-la mandado
preparar.
Pus um pé no estribo e impulsionei-me para cima, grata por ter decidido
usar meias grossas por baixo do vestido. Sentar-me com uma perna de cada lado
seria bastante inapropriado, mas duvidava que houvesse alguém no submundo
que o encarasse da mesma forma que os mortais.
Contraí os músculos das minhas coxas em torno da égua enquanto me
preparava. Emiti um estalido com a língua e levantei as rédeas. Não precisei de
insistir mais com a grande besta. A Tanzie trotou para longe do estábulo,
descendo uma colina íngreme, acelerando na inclinação em vez de abrandar.
A julgar pelos sons abafados de outros cascos a bater na neve, o grupo da
caçada estava atrás de nós, ou na floresta ou apenas nos seus limites. Não havia
regras que indicassem que eu tinha de participar na caçada, mas não queria ser
descoberta e encorajada a juntar-me a eles.
A respiração formava nuvens de vapor à minha frente enquanto me
inclinava na sela, o coração a martelar com cada impacto dos cascos do corcel.
Andámos à volta do castelo do Gula e a suave encosta transformou-se numa
queda acentuada. O meu cabelo solto voou para trás enquanto o vento cortante
me mordeu o corpo. As lágrimas arderam-me nos olhos, mas não consegui
pestanejar, não consegui fazer nada a não ser ficar ainda mais alta na sela e
incentivar a minha montada a lançar-se pela montanha abaixo. Uma memória
agitou-se dentro de mim... Senti como se já lá tivesse estado, a correr contra o
vento e a cavalgar como uma guerreira em batalha.
Esqueci-me da caçada, do Banquete do Lobo e da realeza demoníaca que
cavalgava nas proximidades. Não fazia ideia para onde ia, mas, nas profundezas
do meu sangue, algo me chamava. Gritava-me que recordasse, que parasse de
pensar e me limitasse a sentir.
A Tanzie relinchou, como que para confirmar esses sentimentos. Como se
quisesse que eu me lembrasse para que fôramos criadas. Aquele sentimento de
liberdade máxima e ausência de restrições. As únicas coisas que importavam
eram o chão sobre o qual nos precipitávamos e o sangue que nos corria nas
veias.
Quando chegámos ao topo de uma enorme colina, ficámos diante de um
campo de rosas pretas como tinta. Abrandei para um trote lento e conduzi a
Tanzie a aproximar-se mais da brilhante colina.
De perto, vi que a escuridão não era sólida. Eram milhões de pequenas
flores pretas a crescer através do gelo. Detive a marcha da Tanzie e saltei para o
chão. Aquelas pétalas cor de ébano estavam salpicadas de pontos de prata.
Intrigada, arranquei uma flor, surpreendendo-me ao ver que toda a raiz saíra
sem esforço. As estranhas raízes prateadas brilharam intensamente e depois
secaram diante dos meus olhos. Quer fossem mágicas ou alguma planta infernal
peculiar, queria estudá-las mais tarde e ver o que mais faziam elas. Arranquei
um punhado de flores e enfiei-as na pequena bolsa de couro presa à sela.
A Tanzie relinchou e pisou o chão autoritariamente, sinalizando que estava
aborrecida com a apanha de flores. Sem olhar para trás, voltei a subir para a sela
e andámos ainda mais depressa do que antes. Estava tão absorvida no aspeto
sensorial do passeio, na alegria do ar gelado a mordiscar-me a pele e a roubar-
me o fôlego que não reparei no castelo imponente à nossa frente. Nem que
tínhamos atravessado uma espécie de linha divisória invisível.
Apenas quando o primeiro grupo de guardas nos cercou, espadas erguidas e
prontas para serem usadas, gritando-me para parar, é que me apercebi do meu
erro. Invadira o domínio de outro príncipe-demónio sem ter sido convidada. A
Tanzie empinou-se e depois desceu, batendo com os cascos enquanto um dos
guardas silenciava os outros e me dirigia uma ordem clara:
— Desmonta e põe-te de joelhos.
— Creio que há aqui um mal-entendido. — Agarrei as rédeas com força. —
Estava a cavalgar pela Casa Gula e não me apercebi de que me afastara tanto.
— Já disse, desmonta e põe-te de joelhos.
O guarda que falara afastou-se da formação. O seu capacete de ferro, que lhe
deixava o rosto descoberto, tinha asas de aspeto mortal em ambos os lados. No
topo, onde o capacete lhe assentava sobre a testa, havia um conjunto de marcas
de garras douradas gravadas no metal.
Reparei que nenhum dos outros guardas usava o mesmo desenho, o que
claramente o indicava como líder do grupo. Outra linha de guardas irrompeu do
castelo, com setas em arcos prontos a disparar.
Prestei-lhes pouca atenção e decidi concentrar-me na maior das ameaça.
O meu olhar deslizou pelas feições do guarda principal, memorizando-as
para o caso de as coisas correrem mal e precisar de relembrar detalhes durante a
minha fuga. Por baixo do seu capacete espreitavam alguns fios de cabelo
dourado brilhante. A sua pele bronzeada não apresentava imperfeições, exceto
uma: uma cicatriz pálida e prateada atravessava na diagonal um par de lábios
arrogantes.
De onde estava não conseguia distinguir-lhe a cor dos olhos, mas a dureza
do seu olhar era impossível de esquecer. A Tanzie farejou o ar e recuou
enquanto os outros guardas avançaram um passo, cerrando as suas fileiras. Se
desmontasse naquele momento, tinha a certeza de que me iria arrepender.
Sentei-me o mais direito possível e usei o meu tom mais autoritário.
— Exijo falar com o príncipe desta Casa. Foi cometido um erro.
— Desmonta antes que a minha espada encontre o caminho para as tuas
entranhas.
— Toca-me e prometo-te que sentirás mais do que a minha raiva. — O
sorriso que me enrugou os lábios era tão agressivo como a sua arma. — Decerto
que ver o Príncipe Ira a esventrar-te valeria a dor. Duvido que se mostre
compassivo com quem fizer mal à sua princesa.
A surpresa tremeluziu-lhe no olhar antes de voltar a controlar a expressão.
— Lamento, mas não me lembro de ter sido avisado de que foste convidada
para as nossas terras. — Ele aproximou-se, alinhando a lâmina com o meu
coração. — O que me permite eliminar qualquer ameaça ao nosso território
como achar melhor. Agora, desmonta a merda do cavalo, princesa.

Se tivesse de me concentrar no lado positivo de uma situação muito má, eu


não fora acorrentada e escoltada até uma cela. Fui levada para um salão luxuoso
e, de seguida, trancada lá dentro com um punhado de guardas armados
posicionados nas portas e janelas. Ignorei os seus olhares gélidos e examinei a
sala.
O chão e as paredes de mármore branco reluziam à luz das velas
cintilantes. Estava rodeada por mobília aveludada, com dourados e ornamentos
suficientes para rivalizar com o famoso palácio do Rei-Sol em França. Sentei-
me à ponta de um sofá de brocado cor de pérola, os dedos ansiosos por chegar à
minha adaga escondida. Ninguém falou. Não havia brasão real nos seus
uniformes, nada que indicasse a Casa do Pecado que eu invadira por acidente.
Não que eu soubesse identificar qualquer brasão de armas além do sapo
com uma coroa do Ganância. Tinha a certeza de que não estava na Casa Ira,
Inveja ou Gula. Tanto quanto sabia, os sete príncipes do Inferno já se
encontravam no Banquete do Lobo. O que provavelmente justificava a
complicação de os guardas não conhecerem o protocolo adequado para lidar
com um intruso. Um lado positivo para aquela situação sombria era que havia
encontrado o esconderijo perfeito para evitar a caçada.
Um relógio imperial rococó sobre a lareira marcava os segundos que
passavam. O comandante dos guardas deixara-me lá e partira, murmurando
ordens para os dois subordinados postados de cada lado da porta. A sua atenção
deslizara para mim antes de abanarem o queixo em sinal de reconhecimento das
suas ordens. Passou-se um quarto de hora. Certamente, como convidada de
honra, alguém da Casa Gula iria dar pela minha falta. Sem dúvida de que o Ira
viria à minha procura.
Uma hora. Ninguém apareceu. Depois outra hora, no que tinha de ser a
passagem de tempo mais lenta da história. Ainda assim, nenhum príncipe surgiu
de punhal na mão para me libertar.
Chegara a hora de ser a minha própria heroína e de me salvar a mim mesma.
Aclarei a garganta.
— Que Casa real é esta?
Silêncio.
Ninguém se mexeu, ninguém sequer pestanejou. Foi como se eu não tivesse
falado de todo. Inclinei-me para trás no meu lugar e pus-me à vontade. Mais
uma hora se passou, e quando me senti prestes a enlouquecer, a porta abriu-se.
Um dos guardas bloqueou-me a vista e as vozes estavam demasiado baixas para
conseguir perceber quaisquer detalhes da conversa. O guarda acenou com a
cabeça e depois fechou a porta.
Virou-se para mim com uma expressão gélida.
— Levantai-vos.
Os meus joelhos falharam.
— Onde vamos?
— Sua Alteza libertou-vos.
— Não entendo... o príncipe não deseja falar comigo?
Um sorriso cruel atravessou o rosto do guarda.
— É melhor que não pergunteis sobre os seus desejos. Suspeito que vos
dariam pesadelos.

A viagem de regresso à Casa Gula foi fria e miserável. Não conseguia


livrar-me da sensação de mau presságio que me seguia como uma sombra. A
Tanzie parecia igualmente perturbada; cavalgava rápida e firme, os cascos a
bater com força na neve e no gelo como se não conseguisse afastar-nos daquela
maldita casa demoníaca suficientemente depressa. Chegámos ao topo da
montanha e corremos com todas as nossas forças em direção ao lado sul do
castelo. O Gula estava encostado ao gradeamento do lado de fora dos estábulos,
uma capa da cor do cobalto esvoaçava na brisa. Observou-nos a aproximar com
uma sobrancelha arqueada.
— Aconteceu alguma coisa interessante?
Desmontei e dei uma palmadinha no flanco da Tanzie.
— Qual é o teu jogo?
— Neste momento? — Consultou um relógio de bolso. — É aquele em que
te acompanho até aos teus aposentos. O baile de máscaras começará dentro de
algumas horas. A tua pequena excursão quase nos atrasou.
A minha pequena excursão para me tornar uma prisioneira. Antes que lhe
pudesse responder, dei por ele mesmo à minha frente, a sua adaga a reluzir sob a
luz minguante enquanto cortava a pequena bolsa de couro da sela da Tanzie.
— Isto — tirou uma flor da bolsa e segurou-a, as raízes prateadas brilhando
enquanto se contorciam na brisa ligeira — é a raiz do sono. Capaz de derrubar
até o mais poderoso dos demónios reais. Que tipo de planos perversos tens para
esta noite?
— Nenhum.
— A sério? — Parecia desapontado. — Tens na tua posse uma planta que a
maioria dos príncipes teme e não tens um plano escondido para a usares contra
nós? — Atirou-me a bolsa com a raiz do sono. — Conspira em grande, minha
amiga. Deixa que o teu eu interior maligno se liberte.
— Agora que já sei o que faz — respondi em tom gentil —, certificar-me-
ei de lhe dar bom uso.
— Perfeito. Agora preparemo-nos para uma boa dose de devassidão.
Capítulo 29

O meu vestido de missangas era extravagante. E pesado. Pela deusa, podia


jurar que pesava quase um quarto do meu peso corporal completo. Na parte de
cima, usava um espartilho justo que me apertava o suficiente até aos quadris
para me sentir como se tivesse mergulhado em ouro líquido. Lantejoulas
metálicas costuradas em padrões geométricos acentuavam-me as curvas. Ancas,
cintura, busto. Cada zona tinha uma mistura de missangas, lantejoulas e padrões
desenhados para chamar a atenção, Contorci-me diante ao espelho, admirando o
trabalho laborioso que envolvera criar uma peça como aquela. A seda colorida
cor de champanhe sussurrava contra a minha pele. As saias abriam-se no centro,
alguns centímetros acima dos joelhos, e a parte coberta de missangas ondulava
sobre a seda pura. Um cinto dourado brilhante com trepadeiras e espinhos
concedia um toque perigoso à beleza de tudo o resto.
A minha máscara... pertencia inteiramente à Casa Ira. Fora informada de que
apenas os príncipes podiam usar máscaras de lobo, e os restantes convidados
eram livres de usar o que quisessem.
A meia máscara que mandara fazer era de muito bom gosto. De tom
dourado-escuro com delicados fios brilhantes e uma leve semelhança à pele de
uma serpente. Deixei o cabelo solto e selvagem e adicionei alguns alfinetes de
ouro para o manter afastado do rosto. Tinha acabado de dar os retoques finais
quando o Ira entrou nos aposentos e parou de repente.
Não consegui conter um sorriso tímido que me puxou os lábios para cima
quando guardei a agulha e a linha no meu kit de costura.
— Creio que se servirá.
O Ira desviou o seu olhar intenso para a máscara.
— Onde encontraste isso?
Estendi a mão para tocar no metal frio com os dedos.
— Um autêntico cavalheiro comentaria sobre a beleza do seu par. Não a
questionaria acerca da sua máscara.
— És o meu par desta noite?
O tom dele continha uma centelha de troça, no entanto, detetei-lhe uma
certa tensão subjacente. Tentei não pensar onde estivera na noite anterior, no
porquê de não ter ido ao meu quarto como prometera. Não fazia ideia das
intenções do Luxúria, mas conseguia imaginar o tipo de entretenimento que
poderia procurar e usar para atrair o seu irmão. O súbito aperto que senti no
peito assemelhou-se demasiado a mágoa.
— Irás escoltar-me até à festa. — Encolhi os ombros. — Não tenho a
certeza de como te chamar mais. Se insistires, talvez consiga encontrar mais
algumas descrições.
— Não tenho dúvidas quanto a isso.
Admirei o seu fato sem reservas. Ébano e ouro — o seu colete também
fazia lembrar pele de cobra, só que o dele era de metal verdadeiro, como uma
armadura de cota de malha.
— Esperas uma batalha?
— Apenas se me pedires para lutar contra os teus pretendentes.
— E a tua máscara?
Ele estendeu um braço.
— Desfruta desse mistério.
— Estou prestes a ser submetida à honra de ter o meu maior medo ou um
segredo arrancado do meu coração. Pensar que esta noite serei capaz de
desfrutar de tudo parece irrealista. Gostaria de saber exatamente o que esperar
de cada parte deste banquete.
— Agora vem o jantar. E tenho a certeza de que vais apreciar o espetáculo.
Sem me oferecer mais pistas, o Ira acompanhou-me até a um im‐
pressionante lanço de escadas e a um hall cheio de convidados mascarados a
beberem champanhe e a conversarem em tons abafados. Esta noite o ambiente
era mais subtil, mas não menos encantador.
O Gula notou a nossa chegada e bateu palmas uma vez, atraindo, sem
esforço, a atenção dos convidados.
— Por favor, peço que entrem no grande salão e ocupem os vossos lugares.
A festa está prestes a começar.
O Ira levou-me aos nossos assentos e fiquei feliz por ver que o lugar ao
lado do meu fora atribuído à Fauna. O Anir estava diante dela, e foi a partir daí
que a minha sorte acabou. A expressão da Lady Sundra, radiante como a luz do
sol, tornou-se tempestuosa ao ver-me.
— Lady Sundra.
Ela apertou o maxilar e eu apercebi-me de imediato da armadilha que,
involuntariamente, lhe montara. Com o Ira presente, estava a forçá-la a usar o
meu título.
— Lady Emilia.
O Inveja entrou na sala e afundou-se na cadeira em frente do Ira — e ao
lado de uma Lady Sundra que ainda me fulminava com o olhar —, um sorriso
cúmplice a bailar-lhe nos lábios.
Antes que me pudesse provocar com o que quer que estivesse a fermentar
no seu olhar, um chef apresentou-se.
— Boa noite, senhores, senhoras e príncipes do submundo. O tema do
menu desta noite é Fogo e Gelo. Cada um dos pratos das terras mortais irá
representar os elementos escolhidos de uma forma ou de outra. O nosso
primeiro prato é uma salada frisée com gelo. Em breve descobrirão o porquê.
Ao mesmo tempo, surgiu um exército de criados, carregados com pratos
individuais que pousaram em frente de cada convidado. As minhas
preocupações em relação à Lady Sundra esvaneceram. Não conseguia desviar a
minha atenção do prato. Os vegetais tinham sido dispostos em círculo sobre
uma base de madeira, fazendo com que o prato se parecesse com um ninho de
pássaros que fora arrancado a uma árvore.
Ao redor dos vegetais havia pedaços de queijo e nozes esmagadas. No
centro, algo em forma de ovo de cor rubi, parcialmente cheio de líquido. Não
era apenas uma salada — era uma obra de arte, de paixão. Um génio criativo a
um nível que eu nunca encontrara.
Alegrou-me ver que não era a única que ainda não tinha pegado no
respetivo garfo, sem estar pronta para destruir aquela escultura comestível.
— Vinaigrette de morango congelado. — O Príncipe Gula esmagou o falso
ovo, quebrando-o e fazendo derramar o molho. Atirou os pedaços de queijo e as
nozes esmagadas para as verduras e misturou tudo com o molho. Todos o
imitaram e o grande salão foi inundado de conversas animadas.
O Ira observou-me, os cantos da sua boca virados para cima, enquanto
partia o meu ovo vinagrete e me maravilhava com o que tinha no prato.
— Vejo que estás a passar um mau bocado.
— Terrivelmente mau. — Apesar da atenção intrusiva que senti vinda do
lado oposto da mesa, sorri-lhe de volta. — É quase demasiado bonito para
comer.
A hortelã picada, a cebola roxa ralada e a erva-doce conjugavam
soberbamente com o amargor dos vegetais. Assim que os nossos pratos ficaram
limpos, os criados apressaram-se a retirá-los para dar lugar ao nosso próximo
deleite culinário. Como se ele fosse um maestro e a comida a orquestra que
dirigia, o chef reapareceu para anunciar o seu próximo prato com orgulho.
— O nosso segundo prato desta noite inclui fogo. A «vela» é feita de
gordura de bacon. Ao queimar lentamente, criará um molho no qual poderão
mergulhar as vossas vieiras e aparas carbonizadas de couves-de-bruxelas com
parmesão.
Os criados inclinaram-se e acenderam as velas de bacon todos ao mesmo
tempo. O Gula encorajou todos a tomarem um gole de vinho e ver as velas
derreterem. Aborrecido com a teatralidade, o Inveja voltou-se para o demónio
sentado ao seu lado.
— Alguma novidade das Estrelas das Sete?
— Nada de novo, Alteza. Todas as pistas conduzem à floresta. A atenção do
Ira foi desviada para o irmão. Tomou um gole cauteloso de vinho.
— Outra vez a perseguir contos de fada?
— Pergunto-me, querido irmão, se quando me tornar o mais poderoso
continuarás a troçar de mim. — O sorriso do Inveja era feroz. — Ou curvar-te-
ás perante o teu novo rei?
A Lady Sundra olhou subtilmente para o príncipe sentado ao seu lado e
lançou-lhe um olhar calculista.
Crispei os lábios, tentando evitar que as perguntas se precipitassem para fora
deles. O Anir debruçou-se sobre a mesa com um brilho malicioso nos olhos.
— O poder é a moeda corrente deste lugar. Os mortais acumulam riqueza,
a nossa realeza faz o mesmo com magia.
— Os demónios menores podem destronar os príncipes do Inferno?
— Não. Eles dominam sempre nos seus círculos. No fundo, é um teste para
determinar quem entre eles detém mais poder. Uma rivalidade fraternal, por
assim dizer.
— Então, o diabo é um título que pode ser transmitido a diferentes
governantes.
Os príncipes próximos de nós enrijeceram, mas o Anir prestou-lhes pouca
atenção.
— Nem sempre. Em maior ou menor grau, é algo que influencia as
diferentes épocas da Terra. Poderás ver, através da história do mundo mortal,
qual dos sete príncipes teve mais poder e influência em determinada era.
Guerras, ganância, despertares sexuais. E, no entanto — o seu sussurro foi tudo
menos suave —, não me lembro de nenhuma era de inveja.
O Inveja pousou a sua taça de vinho sobre a mesa com um baque
agressivo.
— Cuidado com a língua, mortal.
— Se não...
Antes que pudessem partir para a violência, o chef reapareceu, a sua voz
ecoou bem alto pelo salão.
— O nosso terceiro prato é o mais interativo. Vou pedir-lhes que coloquem
as tiras de carne crua marinada sobre as brasas e rapidamente disponham as
castanhas de ambos os lados. Assim que a carne for retirada das brasas,
polvilhem o queijo azul congelado por cima.
À minha direita, o Ira mexeu-se, o que me chamou a atenção. Os seus
olhos estavam fixos na porta através da qual o Ganância acabara de entrar e se
curvou numa breve reverência. Usava um fato cor de bronze que combinava
com o seu cabelo e olhos, a tonalidade exata do metal de que pareciam ser
feitos. No seu olhar mordaz, permanecia aquela sensação de que algo não
encaixava, como se não estivesse muito habituado a seres inferiores como os
seus irmãos.
Dedicou ao Ira um pequeno aceno de cabeça antes de se sentar no extremo
oposto da mesa.
— Peço desculpa pelo meu atraso. Não parem o banquete por minha causa.
— Foda-se, senta-te de uma vez — murmurou o Gula. — Chef! Traz outro
prato.
Aproveitando os dramas familiares que haviam captado a atenção do Ira,
inclinei-me para sussurrar ao ouvido da Fauna.
— Já ouviste falar das Estrelas das Sete?
— Oh, referes-te às Sete Irmãs. Claro que ouvi. Aqui já todos ouviram
falar delas. Nas lendas antigas, apareciam aos viajantes necessitados em formas
não mais robustas do que as sombras. Alguns dizem que encontrá-las é uma
bênção, mas a maioria aqui acredita que é uma maldição.
— Porquê?
— Se interromperes a sua fiação celestial, há uma hipótese de poderem
arrancar e tecer o fio errado do destino. Por vezes os resultados de tal
interferência são imediatos, outras levam décadas a revelar-se.
— Que... interessante. Se elas tecem os fios do destino, devem ser capazes
de recordar o passado. Ver os fios que elas já teceram. — A Fauna lançou-me
um olhar desconfiado, mas anuiu. — Então, se alguém sabe onde estão os
objetos perdidos, são as Sete Irmãs.
— Emilia — advertiu a Fauna. — Não deves procurá-las. Perguntar por
um ser vivo pode causar danos, tanto ao passado como ao futuro.
— Não estava a pensar perguntar por um ser. Apenas por um objeto.
— O que quer que estejas a tramar, pára. É demasiado perigoso. Perigoso
ou não, encontraria as misteriosas fiadeiras do destino. Uma das caveiras
enfeitiçadas mencionara «Sete Estrelas» e «Sete Pecados». O meu primeiro
palpite fora para os príncipes-demónios, mas na altura não sabia o significado
das sete estrelas. Agora tinha quase a certeza de que sabia. E o demónio que o
Inveja questionara no início do jantar havia mencionado uma floresta.
Fiquei entusiasmada. Ao visitar a corte do Inveja, ele insistira em contar-
me sobre a Floresta Sangrenta. Nunca havia entendido o porquê da sua
insistência para que eu conhecesse a fábula da Árvore dos Condenados.
Começava a suspeitar de que também tentara insinuar outra coisa.
A escolha do tema da conversa naquela noite também não fora acidental. O
Inveja queria que eu fosse atrás das Sete Irmãs. E eu apostava em como se
relacionava com os objetos mágicos que ele procurava — a Chave da Tentação
e o Espelho da Lua Tripla. Por qualquer razão, deve ter pensado que eu tinha
mais hipóteses de lhes extrair informação. Quaisquer que fossem os seus
motivos, essa informação condizia bastante bem com os meus.
Tentei lembrar-me do mapa que encontrara na Casa Inveja. Consegui
visualizar a floresta, mas não me lembrava da sua localização em relação à Casa
Gula.
— Como se vai para a Floresta Sangrenta a partir daqui? O Príncipe Inveja
mencionou que não faz parte de nenhum território real, mas acho que se tem de
passar por algum território para lá chegar.
— A partir daqui? — perguntou a Fauna. — O caminho mais rápido será
através do círculo do Orgulho.
Olhei em volta da longa mesa. Ira, Ganância, Inveja, Gula. Não via o
Preguiça, mas lembrei-me do que o Ira me dissera sobre ele aparecer antes da
cerimónia do medo. Beberiquei o meu vinho e permiti que o meu olhasse
viajasse para o outro extremo do salão. O Luxúria sorriu-me do outro lado do
aposento, com uma expressão de troça.
Ignorei-o e perguntei em voz baixa:
— O diabo já chegou?
A conversa cessou. As mãos segurando talheres e copos pararam a meio
caminho da boca. Foi como se tivesse lançado um feitiço para congelar o
tempo. Pelos vistos, perguntar pelo diabo era assunto tabu.
— Para o nosso último prato — a voz do chef perfurou o silêncio do salão
—, temos uma combinação de fogo e gelo. Crème brûlée, cozinhado
diretamente diante de vós, coberto com pérolas de framboesa congeladas e
folhas de hortelã esmigalhadas.
Assim que o chef nos deixou com a sobremesa, dedos quentes acariciaram-
me o pulso. Fitei o Ira nos olhos.
— Dança comigo esta noite.
Ele levantou-se, tal como o resto dos príncipes presentes. Os criados
apressaram-se a puxar as suas cadeiras para trás antes de desaparecerem na
sombra.
— Onde vais?
— Está na hora de pormos as nossas máscaras.
— E de despirmos o nosso civismo — brincou o Gula. — Vemo-nos no
baile de máscaras.
Capítulo 30

Uma coisa era certa — aquele príncipe do Inferno sabia como organizar um
evento inesquecível.
Apesar da negatividade que a colunista iria, sem dúvida, relatar no seu
artigo sobre a festa, ela foi divertida. E espetacular. O salão de baile onde eu e a
Fauna entrámos destilava decadência a cada centímetro quadrado. No mundo
mortal, a conceção do pecado da gula centrava-se na comida, mas aqui, nos Sete
Círculos, era pura indulgência.
A receção da noite anterior havia sido uma representação mínima de quão
longe o Gula podia levar o seu pecado epónimo. Taças feitas de diamantes
transbordavam de vinho espumante de bagas demoníacas sobre as mesas e
bandejas incrustadas com pedras preciosas. Mais de uma dúzia de candelabros
de cristal estavam suspensos de postes curvos instalados a intervalos regulares à
volta da pista de dança.
Entrelaçadas nos postes havia grinaldas de flores com cristais transparentes
costurados nas pétalas. Era como se tivéssemos acabado de entrar num conto de
fadas de inverno. Como se o gelo fosse feito de diamantes em vez de água.
Quando a luz das velas incidia sobre os cristais e as pedras preciosas, era como
se as chamas estivessem presas dentro do gelo. O tema do Gula continuava
presente mesmo depois do jantar.
— Isto é...
— Olha! — A Fauna quase gritou. — Ali.
As sobremesas, cobertas de ouro comestível e transformadas em bestas
fantásticas realistas, eram tão altas como os convidados.
Dragões de gelo alados, lindos unicórnios em tons pastel, cães infernais
com três cabeças. Tinha tanto de intrigante como de pouco apetitoso. Os
mascarados não pareceram achar desagradável e começaram a cortar o flanco de
um unicórnio, banqueteando-se com o bolo recheado de bagas, que se parecia
demasiado com sangue para o meu gosto. Voltei a minha atenção para um prato
de fruta coberta de chocolate que formava uma pilha tão alta como a que o Ira
pusera perante mim na noite em que me testara para este pecado.
Examinei o salão, à procura dele e dos outros príncipes. Nenhum deles
havia ainda chegado a esta parte do banquete. Voltei a olhar para a escultura do
dragão de gelo.
— Quem ganhou a caçada?
— Sua Alteza, creio. Parecia determinado a ganhar a todo o custo.
— O Ira?
— Hum? Oh, sim. — A Fauna agarrou-me no cotovelo como que para se
impedir de sair a voar. — Olha para ali. Os rumores eram verdadeiros. — A voz
da Fauna estava plena de admiração. — Ele tem salas para encontros íntimos.
Como traças atraídas pela chama da devassidão, aproximámo-nos. Os
infames quartos de vidro estavam alinhados do lado oeste do salão de baile. As
velas tremeluziam no interior e as cortinas estavam cuidadosamente atadas para
garantir que todos os que passavam podiam apreciar as exibições românticas
que decorriam naquelas câmaras não tão privadas.
A Fauna agarrou-me bem no braço, os olhos arregalados por trás da sua
máscara iridescente. Em cada quarto de casal por que passávamos, as cenas
tornavam-se mais desinibidas, mais ousadas. Graças à deusa que estávamos
com máscaras. Por muitas vezes que contemplasse tais demonstrações públicas
de sexualidade, não conseguia conter aquele instinto inicial de vergonha.
Senti o calor do meu rubor e soube que o meu rosto devia estar quase
escarlate.
A Fauna não estava a ter a mesma reação que eu, mas estudava os casais
como que para memorizar certos truques. Não teria ficado surpreendida se
tivesse puxado de um caderno.
— Viste aquilo? — O tom da Fauna continha uma centelha de apreciação.
— Não fazia ideia que conseguia caber tanta gente numa sala tão pequena,
quanto mais fazer o que todos estão a fazer e manter o ritmo. Deve requerer
uma habilidade tremenda.
— E resistência. Essa é a verdadeira proeza em exibição.
Ela riu-se e tocou-me no braço de forma brincalhona.
— E pensar... que esta é a zona mais comedida. Ouvi dizer que o jardim
crepuscular é muito mais arrojado do que me foi dito originalmente.
Sem querer, pensei no Ira. Tentei não deixar que as suspeitas voltassem a
surgir.
O que havia feito, e quem quer que tivesse visitado na noite anterior, não era
da minha conta. Repreendi-me a mim mesma. Se o Ira aqui estivesse, sorriria e
denunciar-me-ia a mentira descarada.
Antes que eu pudesse continuar a examinar os meus sentimentos, um
silêncio sinistro abateu-se sobre nós como um regimento de soldados a cercar o
baile de máscaras. Examinei o salão, procurando a causa de tal reação. Parei de
respirar. Seis figuras imponentes em máscaras de lobo emergiram de cada canto
do salão de baile. Altas, silenciosas, letais. Havia algo na forma como se
mantinham juntos — com os esquemas e rivalidades entre eles postos de lado
para se tornarem uma unidade temível — que me despertou uma pontada de
mal-estar, convertendo-a num instinto de fuga. Até os nobres do Inferno
pareciam prontos para fugir.
Toda a multidão foi contagiada pela tensão.
O meu olhar fixou-me sobre o maior de todos eles à medida que avançava.
Mesmo com uma máscara sobre o rosto, reconheceria aquele andar confiante
em qualquer lugar. O Ira não se limitava a entrar numa sala, ele dominava-a. E
sem sequer tentar. Todos os demais poderiam desaparecer que ele continuaria a
arder brilhantemente. Uma fonte constante de poder e vitalidade.
Os príncipes rodearam lentamente a multidão como se estivessem a
pastorear todos. A Fauna e eu fomo-nos juntando relutantemente aos outros,
sentindo o cerco a apertar. Depois, quando já todos estavam perto da pista de
dança, os príncipes viraram-se e olharam para as escadas.
Desviei o olhar do Ira e esperei. Num movimento bem coreografado, um
príncipe solitário desceu a grande escadaria com as mãos nos bolsos e os
sapatos a brilhar como pedras preciosas à luz de velas cintilantes. Mesmo no
lado oposto daquele espaço gigantesco, ouvi o som débil dos seus passos
enquanto as solas de cabedal batiam no chão de mármore.
A Fauna aproximou-se de mim.
— Aquele é o Príncipe Orgulho.
Observei a figura surpreendente a passear pela multidão. Tal como os
outros príncipes, usava uma máscara de lobo que cobria tudo menos o seu lábio
inferior e o queixo. A sua era de prata e ouro. Ornamentada, mas mantendo a
elegância. Ele não olhou para ninguém nem fez nenhum gesto de
reconhecimento àqueles que se curvaram em reverência à sua passagem. Tinha
cabelo castanho com algumas madeixas douradas, elegantemente cortado dos
lados e mais comprido na parte de cima. Não havia um único fio fora do sítio.
Nem um único vinco no seu fraque.
Vestido de azul-marinho e prateado, não se misturava com as sombras.
Manteve-se um pouco afastado, como se quisesse que todos se lembrassem de
quem os possuía.
Não me apercebera de que estivera a suster a respiração enquanto olhava
para ele, sem pestanejar, por detrás da segurança da minha própria máscara, até
que expirei. O diabo estava apenas a alguns passos de distância. Uma figura
vilipendiada e odiada por quase todos. Se as histórias fossem verdadeiras,
aquele era um anjo rebelde, um anjo banido do céu.
E agora era o rei dos demónios. Tão corrompido pelo pecado, tão
monstruoso, que governava sobre os piores habitantes de todos os reinos. O seu
olhar prateado encontrou o meu e cintilou como uma estrela-cadente pelo céu.
Um arrepio percorreu-me a espinha. Se não me tivesse vinculado ao Ira por
acidente e se ele não tivesse aceitado o vínculo, estaria agora a olhar para o meu
marido.
O Orgulho estudou-me da máscara aos pés, a sua cabeça ligeiramente
inclinada para um lado. Tive a horrível sensação de que me estava a avaliar,
debatendo a melhor forma de usar as suas capacidades para derrubar a sua
presa. Se houve alturas em que o Ira me fizera lembrar uma pantera enjaulada, o
Orgulho era um leão de juba dourada.
Ambos príncipes ferozes. Ambos mortíferos. Mas apenas um se podia
fundir com a noite, atacar forte e rápido ao abrigo da escuridão e depois fugir
sem ser detetado. Desviei o olhar do diabo e procurei o Ira. Ele desaparecera.
— Olá, Lady Vingança.
A sua voz baixa e áspera soou-me perto do ouvido. Tive de fazer um grande
esforço para não demonstrar surpresa ou tensão. Esperei que ele não sentisse o
objeto que levava escondido em mim. Lentamente, virei a minha atenção para o
príncipe ao meu lado e ofereci-lhe um ligeiro aceno de cabeça. Ele não era o
meu rei. E nunca me fora dito que me curvasse.
— Alteza.
— Honrar-me-ias com uma dança?
A Fauna afundou os dentes no lábio inferior, praticamente a dançar na ponta
dos pés enquanto me dirigia um aceno de cabeça encorajador.
— Eu...
— Tu? — O diabo varreu o salão com o olhar, um brilho de reconhecimento
nos olhos. A multidão recuou, como se estivesse aterrorizada por ele virar a sua
atenção para eles. A pista de dança estava vazia. — Há alguém com quem
esperavas dançar primeiro? Se sim, façamo-lo arrepender-se de não te ter
convidado antes de mim.
— Dançarei convosco, mas não há nenhum motivo escondido nisso.
— Claro.
Manteve a sua expressão de divertimento enquanto me conduzia para a pista
de dança. A orquestra começou a tocar uma valsa. Durante alguns segundos,
não falámos. Ele limitou-se a fazer-me girar pela sala e os meus nervos por ter
de dançar em público tornaram-se uma memória esquecida enquanto ele
facilmente nos guiava através dos passos. Ele era encantador. Um diamante
cintilante envolto em pura platina.
Ou talvez isso fosse o que ele queria que eu acreditasse. Talvez, na verdade,
ele fosse espada. Forjada em fogo infernal e mortífera como o pecado. À
medida que dançávamos juntos, esperei ser tocada por alguma centelha de
memória que me incendiasse chamas ocultas de desejo. Se era ele o amante da
minha visão, o meu corpo pareceu não o reconhecer.
— Se estás tão intrigada com a minha máscara, espera até eu a tirar.
— Asseguro-vos, Majestade, de que não estou a olhar para a vossa
máscara. Para ser sincera, estou à procura de chifres ou presas.
Os olhos do Orgulho cintilaram.
— Posso ser assustador. Quando quero.
— Estou certa de que sim, mas não como alguém que conheço.
— O Ira? — A sua boca retorceu-se nos cantos enquanto o meu olhar
percorria a pista de dança na esperança de que o seu nome fosse suficiente para
o convocar. — Não estou habituado a que um par de dança tão bonito pense no
meu irmão enquanto se encontra nos meus braços.
Não consegui evitar ri-me na cara do diabo.
— Sois demasiado pretensioso.
— Uma das nossas características familiares mais proeminentes. Embora
te possa assegurar de que o meu ego é mais do que justificado.
— Terei de acreditar na vossa palavra, Alteza.
Dançámos pela pista de dança, em conjunto com outros casais que se
haviam juntado a nós, os seus passos firmes e fluidos enquanto me guiava por
cada movimento. Mesmo depois da lição improvisada do Ira, tinha medo de
falhar o passo e de o pisar, mas a sua habilidade era suficiente para ultrapassar
qualquer um dos meus erros.
Parte de mim sentiu-se desapontada. Se isto tivesse corrido terrivelmente
mal, poderia ter-se tornado no meu atual maior medo.
— O Príncipe Ira é bastante sério em comparação com o resto de vocês.
— Isso é o que ele faz, destaca-se na guerra e na justiça. Ambos assuntos
sérios. E é por isso que nenhum de nós precisa de se preocupar com os aspetos
desagradáveis de reinar. — Franzi o sobrolho. — Este reino teria sido feito em
pedaços se ele não o tivesse aterrorizado até à submissão.
— Não sei se vos estou a entender.
O Orgulho fez-nos girar até que pude ver o Ira encostado à coluna de
mármore. Tinha a máscara puxada para trás e o seu olhar seguia cada
movimento, cada volta ao salão de baile.
Não parecia satisfeito ou zangado, mas algo na sua expressão me fez
pensar que estava... com ciúmes. O Orgulho deslizou a mão pelas minhas
costas, sem dúvida para alimentar deliberadamente a irritação do Ira. Pisei-lhe o
pé e sorri para dentro quando ele fez uma careta.
— Ele, minha querida, é o equilíbrio. E muitas vezes é a única coisa que
impede a destruição total. O Ira é a justiça imparcial feita de carne. É temido
porque não hesita em executar uma sentença, em ministrar justiça àqueles que
merecem punição. Se deve enviar alguém para a Prisão da Condenação, o que
os mortais consideram a sua versão de «inferno», isso não é decidido com
leveza.
Até agora, ninguém falara das almas mortais que eram enviadas para lá.
— Onde fica? Nas Ilhas Movediças?
— É adorável que penses que te vou dizer. Já perguntaste ao Ira?
Perguntara, e estava bastante confiante de que a sua resposta envolvera uma
ilha ao largo da costa ocidental.
— Tinha a impressão de que esse deveria ser o vosso papel.
— As regras são mais divertidas quando são quebradas. — Ele encolheu os
ombros. — Delegar também faz parte de governar, não é?
Antes que pudesse responder, ele arrastou-nos uma vez mais pela pista de
dança, os seus movimentos fluidos, graciosos e dominantes. Percebi que já não
estava interessado em falar de poder e mudei de tática. Esperei até nos
afastarmos o suficiente dos outros casais, e depois disse em voz baixa:
— Sei que este é um assunto privado, mas queria apresentar as minhas
condolências.
O Orgulho ficou tenso sob as mãos. Duvidei que tivesse reparado se não
estivéssemos a dançar, e fora exatamente por isso que esperara para abordar o
assunto na pista de dança.
— Perder alguém que se ama — continuei quando vi que ele não falava — é
o pior tipo de dor que existe. Não a desejaria ao meu pior inimigo.
— Como estou certo de que eu e os meus irmãos estamos entre aqueles que
consideras inimigos, apraz-me ouvi-lo.
Era apenas parcialmente verdade, mas não o corrigi. Com a seguinte volta à
pista de dança, a sua máscara deslizou para cima, revelando-lhe a boca. Uma
pequena cicatriz diagonal atravessava-lhe o lábio superior, terminando logo
abaixo do seu lábio inferior. Esperei que o meu batimento cardíaco acelerado
fosse confundido com o ritmo da nossa dança.
Deslizámos em direção ao limite da pista de dança, perto de um canto
escondido por um conjunto de grandes samambaias. Assim que nos
aproximámos, dei a volta e puxei-o para as sombras, longe dos olhos curiosos.
Não lhe vi a expressão toda, mas ouvi a sua respiração anormal enquanto o
pressionava contra a parede e aproximava os meus lábios ao seu ouvido.
Sem precisar de mais encorajamento, removeu a máscara e deixou-a cair
no chão. Depois tentou remover a minha, confundindo a nossa posição com
algo que não era.
A reação que eu esperava.
— O teu irmão julga-te um libertino. Demasiado ocupado a embriagar-se
de vinho e amantes para se preocupar com qualquer coisa de importante. —
Afastei-me o suficiente para o estudar. A cautela dominou-lhe as feições. — No
entanto, esta manhã estavas a comandar os teus guardas pelos terrenos da Casa
Orgulho, aparentando tudo menos embriaguez.
— Perdão? — Ele fingiu-se confuso como o mais habilidoso dos atores.
Reparei que ele não abordou diretamente a minha questão. Isso concedia-lhe
uma forma de evitar mentir. — Estou aqui para te beijar, não para me submeter
a um interrogatório. Se estiveres interessada em falar, posso encontrar tópicos
mais interessantes.
O diabo moveu a boca em direção à minha e eu detive-o com uma palma
da mão no peito.
— Permiti-me ser mais clara, Majestade. Não vamos agir como se ambos
não soubéssemos que foste tu quem me obrigou a desmontar do meu cavalo.
Porque me mantiveste refém na tua Casa durante tanto tempo? Terá sido para
que pudesses esconder a quantidade de guardas a patrulhar os teus terrenos?
— Não podes estar à espera de que partilhe informações com outra Casa.
— Está bem. Responde-me antes a isto: porque escondes o facto de não
seres tão bêbado e orgulhoso como gostarias que os outros acreditassem?
— Por uma questão de princípio, raramente mostro a minha verdadeira face
a alguém. Aconselhar-te-ia a fazer o mesmo.
O meu olhar desviou-se para a sua cicatriz. Tinha sérias dúvidas de que
aquele fosse o único motivo para ele se esconder.
— Não apareceste no mosteiro naquela noite; possuíste o Antonio. Foi para
manter o anonimato?
— Não devias estar a perguntar sobre a maldição?
Uma tática evasiva familiar entre os demónios, responder a uma pergunta
com outra.
— Eu sei que o meu nascimento marcou o fim da tua maldição. Por isso,
deves ter tido outras razões para te teres escondido.
O seu temperamento inflamou. A minha seta acertara o alvo.
— Eu não me escondi. Estava ocupado com outros assuntos.
— Bom, embora eu tenha a certeza de que podíamos desviar de assuntos por
toda a eternidade, não te trouxe até aqui para uma conversa.
— Então passemos à parte divertida. — O Orgulho arrastou a mão pela
minha silhueta e voltou, lentamente, a subir, parando perto da minha coxa.
Arqueou as sobrancelhas. — O que temos aqui?
— A minha adaga. — Sorri quando ele a soltou abruptamente. — A parte
divertida é esta. Atravessarei as tuas terras duas vezes, numa hora e data à
minha escolha, sem qualquer interferência tua, dos teus guardas ou de qualquer
outra pessoa que pertença à Casa Orgulho ou àquele círculo.
— E porque haveria de concordar com tal acordo?
— Porque eu conheço um dos teus segredos.
— Os meus talentos na cama já são bem conhecidos. O seu namoriscar era
mais uma tentativa de desviar a conversa.
Encurralara-o e ele estava a mostrar-me os dentes sorrindo como se aquilo
não o afetasse. O Orgulho mostrava uma atitude perfeitamente despreocupada.
Tão suspeitosamente.
— Não contarei ao teu irmão da raiz do sono. Tens o suficiente para
derrubar um exército inteiro. E isso, Alteza, parece-me o tipo de informação que
gostaríeis de manter em segredo. Ao contrário dos talentos de cama de que
tanto te gabas.
Ele lançou-me um olhar duro e calculista. Um músculo no seu maxilar
contraiu-se enquanto abanava a cabeça em concordância.
— Está bem.
— Vais ter de ser mais específico.
— Podes atravessar as minhas terras, duas vezes, sem quaisquer
impedimentos de ninguém que considere o meu círculo a sua casa. Em troca,
não vais contar ao meu irmão da minha raiz do sono. Pronto. — Ele olhou-me
de cima a baixo. — Satisfeita?
— Mais do que possais imaginar, Vossa Alteza.
As suspeitas inundaram-lhe as feições. E com razão. Ele acabara de cometer
um grande erro.
Virei-me e saí do nosso cantinho, mas não avancei muito antes de ser
intercetada por um outro príncipe. O Inveja também havia removido a sua
máscara, e os seus olhos verdes praticamente brilharam quando pousaram em
mim.
— Bem jogado, Bruxa das Sombras. Uma pedra, dois príncipes.
— Já se embebedou?
— Não de álcool. — Esboçou o sorriso que fazia aparecer a sua covinha. —
Vim buscar a nossa convidada de honra. Está na hora de nos alimentares com o
teu maior medo. E não tenho palavras para expressar quão faminto me sinto de
repente.
Capítulo 31

Vislumbrei a Fauna na multidão, a sua pele castanha consideravelmente


pálida sob a sua máscara. A minha amiga estava a olhar em volta, como se
tentasse encontrar uma maneira de distrair os convidados e parar o pesadelo
antes que pudesse começar. O Anir estava ao seu lado, a sua expressão
irradiando raiva suficiente para ser digna da Casa do Pecado que o adotara.
Parecia pronto para agarrar na arma que eu sabia estar escondida sob o seu traje.
A dureza do seu olhar prometia sofrimento a qualquer um que o tentasse
impedir de me acompanhar para fora dali. Tanto ele como a Fauna sabiam que
não havia maneira de o contornar, mas não tinham de gostar nem de facilitar a
vida à realeza.
Apesar das minhas muitas preocupações, a sua demonstração de amizade
reforçou o meu espírito. Afastei-me do braço que o Inveja me oferecia e olhei
em volta, à procura do Ira. Precisava do seu olhar familiar para acalmar os
nervos. Estiquei-me em bicos de pés, espreitando por cima de ombros e cabeças
em busca da figura imponente do príncipe-demónio. E, claro, ele voltara a
desaparecer.
Também não vi o Luxúria ou o Ganância na multidão. E o Preguiça devia
estar presente — haviam sido sete príncipes em máscaras de lobo —, mas
também estava desaparecido. Ou a descansar em algum lugar. Talvez houvesse
uma sala de jogos para onde se pudesse retirar. Parte de mim queria correr o
castelo inteiro até os encontrar. O que apenas iria atrasar o inevitável.
O Orgulho saiu do canto onde fecháramos o nosso acordo e encostou-se a
um pilar, deixando-me a enfrentar o julgamento por minha conta e risco. Não
que eu tivesse ficado surpreendida.
— Vem. — O Inveja não se preocupou em controlar a emoção na sua voz.
— Permite-me que te apresente o mestre de cerimónias.
Segui-o através da multidão enquanto ele indicava o caminho, a minha
pulsação a acelerar a cada passo que nos aproximava do estrado que haviam
transportado para ali. Um demónio de pele azul com olhos vermelhos aguardava
com uma adaga horrenda na mão. Foi um milagre que o coração não me tivesse
rebentado no corpo. Segurei as pontas das minhas saias com missangas
enquanto subia as escadas e me punha ao lado do demónio. Ele acenou uma vez
com a cabeça e depois levantou a lâmina, revelando as runas gravadas, e a
multidão irrompeu em murmúrios e arquejos.
— Sem mais demoras, se não houver objeções, libertaremos o maior medo
da nossa convidada. — O mestre de cerimónias estendeu-me a sua mão. —
Lady Emilia. Se tiver a gentileza de oferecer o seu pulso. A magia requer
algumas gotas de sangue para funcionar.
O pânico abalou-me todas as células. Mal conseguia ver além das
minúsculas manchas brancas que me entorpeciam a visão enquanto lentamente
levantava o braço. A vida inteira a Nonna Maria advertira-nos para que
mantivéssemos o nosso sangue longe de mãos inimigas. E cá estava eu,
oferecendo-o livremente. A uma lâmina inscrita com runas mágicas que me
roubariam os segredos.
Estendi o braço com firmeza, debatendo-me contra a vontade de o puxar
para trás e fugir.
Para lhe fazer jus, o mestre de cerimónias não expressou alegria nem
triunfo. Ofereceu-me um olhar solidário e sussurrou-me:
— Um pequeno corte e tudo acabará em breve.
A sensação fria da lâmina foi como gelo contra a minha pele. Entrei em
pânico. Isto estava realmente a acontecer. Fechei os olhos com força, rezando
em silêncio às deusas para que...
— Pára. — A voz profunda ecoou na sala. — Serei eu a sacrificar um
segredo do coração.
O metal desapareceu imediatamente da minha pele. Abri os olhos e olhei do
mestre de cerimónias para a multidão. Ao mesmo tempo, os convidados
viraram-se e olharam com espanto para o demónio que se pronunciara. Segui-
lhes os seus olhares até o ver.
O Ira estava de pé, os braços cruzados e o olhar fixo em mim.
— Com todo o respeito, Vossa Majestade, não podeis substituir... — Venci a
caçada. Reclamo-o como prémio.
O mestre de cerimónias abanou a cabeça como se considerasse as suas
palavras com muito cuidado.
— Não... não creio que isso possa ser feito. Não sem que pagueis um preço
elevado.
— Estou bem ciente do preço.
Observei-o incrédula enquanto atravessava o corredor e subia as escadas até
ao estrado. Recearia ele que o meu maior medo tivesse repercussões piores do
que revelar a sua verdade? O Ira treinara-me para resistir à influência
demoníaca, mas nunca me parecera preocupado com esta parte da festa. Teria
sempre sabido que me iria substituir?
Ele estava a tramar alguma coisa, mas eu não compreendia o seu objetivo.
Sem quebrar o contacto visual comigo, despiu o seu casaco e subiu a manga
do seu braço esquerdo. Vendo as nossas tatuagens condizentes, um murmúrio
ergueu-se da multidão. Ao que parecia, nem todos estavam cientes de que o
nosso noivado fora forçado.
Para eles, fazer um príncipe apaixonar-se era uma coisa; vinculá-lo
magicamente em matrimónio, aparentemente, era outra totalmente diferente.
Talvez os preocupasse que a sua inesperada demonstração de heroísmo fosse
motivada por um feitiço mágico. O mestre de cerimónias olhou fixamente e de
boca aberta para o príncipe-demónio. Tinha sérias dúvidas de que este príncipe
alguma vez se tivesse voluntariado para fazer algo assim. Nem mesmo eu podia
acreditar nisso. O Ira, o demónio que valorizava os seus segredos mais do que
qualquer um que eu conhecia, estava a oferecer um.
Por mim. Em frente a todas as cortes inimigas. Não era uma declaração de
amor, mas estava perto.
O Ira quebrou, por fim, o contacto visual.
— Pega na adaga.
— Eu... — O mestre de cerimónias procurou a arma, claramente
desconfortável com a perspetiva de cortar um dos governantes do Inferno. —
Antes de começarmos, ainda há a questão de os seus irmãos precisarem de votar
para que seja este o seu prémio.
— Oh, já chega desta merda. — O Orgulho disparou a partir de onde estava,
encostado à coluna, semicerrando os olhos prateados em tom de aviso. — Isto é
incrivelmente maçador. Decerto que haverá algum prémio mais divertido que
possas reclamar. Os segredos aborrecem-me. — Lançou ao irmão um olhar duro
e prolongado. — Talvez o sacrifício deste ano tome a forma de um encontro
proibido. Tenho a certeza de que podemos encontrar um voluntário disposto a
levar a convidada de honra para a cama. Depois, o meu irmão poderá escolher
um prémio diferente.
Os demónios reunidos olharam subtilmente entre o Ira e o seu rei, prendendo
a respiração.
— Não.
O tom do Ira era frio o suficiente para rivalizar com o gelo. Fitou-me pelo
canto do olho, provavelmente para ver se a ideia me intrigara e se ele falara
demasiado cedo. Imaginei que, se concordasse, ele recuaria e não proferiria uma
palavra de protesto se eu escolhesse dormir com o Orgulho. Por muito que
odiasse a ideia.
E odiaria. A máscara da indiferença do Ira escorregara e ele não a pusera
novamente.
— Parece-me ter havido um mal-entendido. — O sorriso do diabo era de
puro pecado enquanto o Ira o fitava com desconfiança. O Orgulho estava todo
emproado, satisfeito por ter lançado o isco perfeito e o Ira ter caído na sua
verdadeira armadilha. — Não queria sugerir que seria eu a oferecer o serviço.
Dado que a Lady Emilia é tua noiva, penso que deverias ser tu a levá-la para a
cama, irmão.
Enrijeci. Se eu e o Ira partilhássemos uma cama...
... estaríamos muito mais perto de completar o nosso vínculo matrimonial. E
o Orgulho sabia-o. Parecia estar imperturbável com a ideia; na verdade, parecia
ansiar que eu me casasse com o seu irmão. O que indicava que ele nunca se
havia preocupado com o contrato que eu assinara e que eu nunca chegara a ser
sua noiva. Então, pelos sete infernos, o que estava a acontecer? Se a maldição
do diabo fora quebrada pelo meu nascimento e da Vittoria, ainda não
compreendia o porquê de os demónios terem mentido sobre as noivas.
O Inveja, que ficara carrancudo com a interrupção, endireitou-se de repente.
O Ira olhou para mim, a sua expressão em branco, exceto pela ligeira
tensão que lhe detetei em torno da boca. Era a única indicação de que não
estava satisfeito com a reviravolta dos acontecimentos.
O que quer que tivesse visto na minha cara, fez com que o seu tom
endurecesse quando se virou novamente para o irmão.
— Escolhe outra opção ou recua e votemos para completar a cerimónia.
— Já te disse — respondeu o Orgulho. — Os segredos aborrecem-me. Está
na hora de uma nova tradição. Tenho a certeza de que o nosso anfitrião está
disposto a agradar-me.
O Orgulho fez sinal com a cabeça na direção do Gula. O príncipe daquele
círculo esfregou as suas mãos.
— Sem dúvida. Adoro quebrar as regras. Têm duas escolhas. Podem
deitar-se num dos quartos de vidro aqui. — Afastou-se e, com um movimento
teatral, puxou um cordão dourado que segurava as cortinas. No interior, um
quarto vazio brilhava com suavidade à luz das velas. — Ou...
— Nos teus aposentos reais — sugeri, deixando todos os presentes
surpreendidos, eu própria incluída.
— Nos meus aposentos? — O Ira olhou para mim enquanto eu anuía. —
Não temos de mudar as regras, Emilia. Se eu quiser reivindicar o medo como
prémio, fá-lo-ei.
— Só se receberes votos suficientes. — O sorriso do Gula aumentou. —
Podes ter ganho a caçada, mas este prémio já não é teu para reivindicar.
Estamos a substituir o sacrifício da convidada de honra. E ela fez a sua escolha.
Podes escolher os aposentos reais, o quarto de vidro ou, melhor ainda, podem
ficar aqui mesmo. Toma-a sobre o estrado ou contra um pilar. Assim, podemos
ter a certeza de que completaram a tarefa.
— A menos que desejes afastar-te e deixar que outro se ofereça como
voluntário — propôs o Inveja, o seu sorriso demasiado inocente indicava que
estava a usar o seu pecado epónimo para provocar o irmão. — O meu voto iria
para o Gula.
— Não.
O tom do Ira indicou que não havia a mínima hipótese naquele círculo
infernal de ele transformar isto num desporto de espectadores e que estava
disposto a ir para a guerra se algum dos seus irmãos se opusesse.
O Gula encarou tudo aquilo com leveza, e perguntei-me se o seu humor
alguma vez se azedava ou se ele era permanentemente feliz.
— Fica então decidido um encontro nos teus aposentos reais. — Bateu
palmas duas vezes. — Mestre de cerimónias, completa o ritual.
O Ira percorreu a silenciosa suíte real, um poderoso predador enjaulado
contra a sua vontade. Não importava que a sua jaula fosse um magnífico quarto
bem abastecido com champanhe gelado, fruta coberta de chocolate, lustres de
cristal e lençóis de seda. E uma noiva que ansiava pelas suas carícias.
Eu tê-lo-ia desejado mesmo que ele não tivesse oferecido um dos seus
próprios segredos para me deixar manter os meus. Estava na hora de parar de
mentir a mim mesma. De parar de fingir que era apenas a magia sedutora deste
mundo e o nosso vínculo que criavam esta atração. Eu queria-o. Era a sua figura
imponente que eu procurava em cada sala apinhada. Era a sua proteção que eu
ansiava e o seu pecado com que eu melhor me alinhava.
Deixando de lado o nosso passado e as circunstâncias que nos haviam trazido
a esta situação, a este momento, juntos, ansiava por esta noite de paixão com
ele.
O príncipe não parecia sentir o mesmo. Aproximou-se da lareira e encostou-
se à cornija, observando as chamas. Não falara o caminho todo até ao quarto, e
tampouco olhara para mim uma única vez depois de entrar.
Sem se virar para me olhar nos olhos, disse-me:
— Não é demasiado tarde para revelar um segredo. Não temos de fazer isto.
Prometi-te que terias uma escolha. Tenciono manter a minha palavra. Os meus
irmãos não votarão contra mim, não importa o que disseram antes.
— Mas eu escolhi.
Por fim, ele virou-se, a sua expressão ameaçadora.
— Escolher entre duas opções não ideais não é uma escolha.
Os meus lábios curvaram-se para cima.
— Dividir uma cama contigo será não ideal?
— Não encares esta situação de ânimo leve.
— Não o estou a fazer. — A minha voz perdeu o seu tom trocista. — Eu
nunca quis abdicar de um medo ou de um segredo. Não posso dizer o mesmo
sobre desejar-te.
Ele estacou, o seu olhar deslizou dos meus olhos para a minha boca.
— Isto não é a mesma coisa.
— É a proposta mais romântica? Não há como negar que não. No entanto,
não posso dizer que esteja descontente. Dada a tua especialidade em detetar
emoções e mentiras, creio que já o sabes. Por isso, presumo que estejas
chateado porque sentes que foste roubado da tua escolha. — Ocorreu-me um
pensamento diferente. — Ou talvez não queiras dormir comigo.
— É isso que pensas?
— Se ontem à noite visitaste a cama de alguém e não quiseste estar comigo,
eu compreendo. Podemos voltar lá para baixo e completarei a cerimónia do
medo. Não me deves nada.
O Ira atravessou o quarto e eu mantive-me firme. Pousou gentilmente as
mãos nas minhas ancas e puxou-me para si. Senti um ligeiro arrepio no sítio em
que os nossos corpos se uniram. Mesmo através do tecido das suas calças e do
meu vestido com missangas, pude sentir a verdade pressionada contra mim.
— Vês? — O seu tom era áspero, profundo. Arranhava uma parte interior de
mim, fazia-me despertar e fazia-me querer apoiar-me mais nele. — Não é uma
questão de te querer, Emilia.
— Então o que é?
— Posso ser egoísta. Mas não quero que sejam as forças externas a
empurrar-te para os meus braços. — Ele inclinou a minha cabeça para cima e os
seus lábios pairando sobre os meus. — Quando decidires vir para o meu quarto,
quero que saibas em que lençóis te vais meter. Quero que grites o meu nome.
— Eu sei quem tu és.
— Sabes? — Os seus lábios fecharam-se sobre a minha pele, por pouco não
tocando na zona sensível do meu pescoço, mas não exatamente, porque ele
levou a boca ao meu ouvido. — Gostaria de te ouvir dizê-lo.
— Os teus irmãos apenas disseram «encontro». — Apressei-me a mudar de
assunto. — Não especificaram que devíamos...
— Que devíamos o quê? — Inclinou-se para trás, a boca torcida para um
lado enquanto esperava. O maldito sabia muito bem o que eu quisera dizer. E
far-se-ia de sonso até eu o dizer.
— Foder. Ou fornicar. Embora apenas tenha ouvido a primeira palavra neste
círculo, repetida como uma oração perversa quando saí do jardim do prazer
ontem à noite.
As suas gargalhadas foram estrondosas e magníficas. Desejei poder voltar a
enfiar aquela palavra grosseira na minha estúpida boca enquanto as minhas
faces ruborizavam e eu, em silêncio, praguejava contra elas e contra o diabo.
O Ira acariciou-me o maxilar com os nós dos dedos, a sua expressão
calorosa.
— Não, suponho que não tenham especificado se devíamos fornicar ou não.
— Os seus olhos escureceram para um tom de ouro fundido. — O que deseja
que eu faça, minha senhora? Isto?
Não tive tempo para responder. Ele depositou pequenas e afetuosas
mordidelas ao longo do meu pescoço. Nem sequer tentei controlar o suspiro que
me escapou enquanto a sua língua me lambia o pulso latejante.
— Diz-me o que desejas e tê-lo-ás.
Fechei os olhos e inclinei-me para mais perto da sua carícia. Uma imagem
dos amantes deitados sobre a mesa do hall à nossa chegada atravessou-me a
mente. A boca do Ira percorreu-me o ombro, deixando um rasto de beijos
quentes, distraindo-me cada vez mais enquanto se aproximavam do meu decote.
— Desejo...
Ele fez uma pausa longa o suficiente para me puxar para trás e me olhar nos
olhos.
— Sim?
— ... que me tires o vestido.
Os seus dedos ágeis começaram a desabotoar os botões de lado do meu
vestido. Ao contrário da ajuda que ele me dera durante o nosso passeio pelo
Corredor do Pecado, desta vez não o fez rapidamente. Levou o seu tempo, como
se soubesse que cada botão que desapertava apenas me incendiava de desejo.
Com cada roçar acidental dos seus dedos na minha pele, com cada respiração
acelerada que me escapava... Estava perto de entrar em combustão e ainda nem
sequer tirara a roupa.
Ele deslizou a alça de um ombro para baixo e deixou um rasto de beijos de
boca aberta à medida que avançava. Depois, deslizou a outra alça para baixo e a
sua língua e dentes seguiram-lhe o exemplo. Puxou a parte de cima do vestido
para baixo com cuidado, detendo-se apenas depois de me ter libertado os seios.
— És tão perdidamente bonita. — Ele parecia um homem a quem tinha sido
oferecida a melhor comida que o dinheiro podia comprar depois de quase ter
morrido à fome. Mas, em vez de se empanturrar, planeava desfrutar de cada
dentada, saboreá-las. Passou um polegar lentamente por cima do meu mamilo,
fazendo-me sentir tensa de prazer. Um calor acumulou-se na minha barriga. —
Que mais deseja, minha senhora?
— Prazer. Sedução. — Reuni toda a minha coragem. — Quero que fiques.
A noite inteira. Comigo. E se pensares sequer em fazer-me uma vénia no final e
partires como da última vez que me tocaste, prometo que farei com que te
arrependas.
— Ameaça-me outra vez.
O seu tom rouco indicava que havia gostado muito.
— Bárbaro pervertido.
— Apenas o melhor para ti.
A sua boca apoderou-se da minha. O seu beijo dominou-me, possuiu-me. E
eu estava mais do que feliz por me deixar subjugar. Por um momento. Passei a
língua pelo seu lábio inferior, suspirando enquanto ele aproveitava e introduzia
a língua na minha boca. Conquistando, seduzindo. Tal como eu solicitara.
Puxei-o mais para mim, segurei-o com mais força. Sentira falta disto.
Sentira falta dele. A maneira como ele se sentia, o som da sua respiração
ofegante enquanto me tocava, libertando os seus próprios desejos e rendendo-se
à nossa ligação. Os seus dedos habilidosos mimaram-me os seios, presenteando-
os com carícias frustrantemente leves que me deixaram a desejar mais. O meu
vestido ainda estava em torno da minha cintura. Queria que ele o tirasse. Queria
a sua pele nua na minha, as suas mãos livres para explorar cada centímetro do
meu corpo.
Arrastei-o pela pequena sala de estar para o quarto, desejando sentir o seu
peso a pressionar-me contra o colchão. Nisto, ele permitiu-me assumir a
liderança, nunca cessando a lenta exploração da minha boca. Seguiu-me até à
cama, puxando lentamente o meu vestido ao longo do caminho. Levantei as
ancas para o ajudar a despir-me e ele atirou-o para o lado.
O casaco e a camisa dele foram os próximos a chegar ao chão. A única coisa
que se interpunha entre nós era a minha roupa interior escandalosamente fina e
as suas calças.
O Ira olhou para as fitas que me rodeavam as coxas. Tinha o olhar de alguém
ansioso por desembrulhar o presente que lhe estava a ser oferecido. E, maldita
seja, eu queria que ele rasgasse a minha roupa interior em pedaços. Um sorriso
lento e triunfante espalhou-se-lhe pelo rosto, dado que, muito provavelmente,
sentia a minha excitação.
Posicionou-se entre as minhas coxas e inclinou-se para a frente para puxar o
tecido com os dentes. Contorci-me sob dele, sem saber ao certo o que ele queria
que eu fizesse a seguir, mas conhecendo a sua posição atual era muito tentador.
Ele parou o que estava a fazer.
— Está bem assim?
— Sim. — Tomei-lhe o rosto entre as mãos e acariciei-lhe a face. — Por
favor, não pares.
Era a permissão por que ele ansiava. Sem demoras, terminou a tarefa que
havia começado. Depois de me ter tirado a roupa interior, admirou-me por um
longo instante, o seu olhar queimando-me com a sua intensidade. Combati a
vontade de fechar as pernas ou de me cobrir.
Como se tivesse detetado esse medo na minha mente, fixou o olhar no meu.
— Nunca te escondas de mim. A menos que queiras que eu pare ou não te
esteja a dar o prazer que desejas. Tu és linda. E não há nada que eu queira mais
do que fazer isto. — Deslizou um dedo pelo centro do meu corpo e eu quase vi
estrelas. — Com a língua.
Olhou-me intensamente nos olhos, certificando-se de que eu via a verdade
nos seus, e depois trouxe a sua boca até mim. A primeira lambida enviou um
choque de prazer que eletrizou todo o meu corpo. Arqueei-me na cama, o meu
corpo a formigar com a antecipação do próximo toque.
O Ira envolveu os seus braços à volta das minhas pernas e a sua boca
desceu mais uma vez. Desta vez, prendeu-me no lugar e inclinou-me as ancas
para que eu sentisse o máximo prazer. O sangue inundou-me a cabeça. Oh, pela
deusa, cada carícia era uma doce tortura. Mesmo quando pensava que não podia
sentir-me melhor, ele mergulhou um dedo dentro de mim e a sua boca mexeu-se
com mais força contra mim.
Contorci-me sob ele, as minhas mãos à procura de algo a que se agarrarem,
desesperadas por criar raízes enquanto aquela tempestade de prazer me atirava
para o ar e me levava a voar. Agarrei os lençóis com os punhos enquanto ele
continuava a beijar-me de boca aberta naquele lugar íntimo, os seus dedos
bombeando ao ritmo de cada batimento do meu coração. Estava a desfazer-me,
a perseguir aquela sensação de fogo puro que me atravessava o meu corpo.
Afundei os dedos no seu cabelo macio, a minha respiração convertida num
conjunto de suspiros ténues, a minha pulsação a martelar em cada centímetro
glorioso do meu corpo. Estava tão perto.
As carícias do Ira tornaram-se exigentes, o demónio da guerra a ordenar ao
meu corpo que obedecesse aos seus desejos e explodisse contra a sua boca.
Porque ele queria que assim fosse. Desejava-o.
Girei os quadris para a frente e ele soltou um grunhido de aprovação, cujo
som e vibração quase me libertaram por completo. Antes que eu pudesse gritar
o seu nome, ele subiu pelo meu corpo e pressionou a sua própria excitação
contra mim, a sua boca aterrando na minha. Moveu as ancas com uma força
gloriosamente dura enquanto os nossos corpos colidiam. Retirou-se e voltou a
mover-se contra mim. Uma e outra vez.
Cravei-lhe as minhas unhas nos ombros e alinhei os meus movimentos à
sua avidez.
Cada impulso me aproximava mais daquele limiar. O seu comprimento
duro a deslizar contra mim criou uma fricção que aumentou o meu prazer. O
demónio continuava a usar as malditas calças, o que nos impossibilitou de nos
ligarmos por completo, mas não me impediu de finalmente estilhaçar por baixo
do seu enorme corpo.
Com um gemido tão poderoso que quase abanou a cama, o Ira seguiu-me
até à beira do precipício.
Capítulo 32

Estava deitada dentro do círculo dos braços do Ira, as minhas costas


pressionadas contra o seu peito enquanto ambos recuperávamos o fôlego. Ele
traçou o contorno da minha tatuagem com a ponta dos dedos e as suas carícias
ociosas despertaram em mim um novo conjunto de emoções. Havia algo mais
íntimo naquele toque suave do que em qualquer ato sexual ou expressão física
de amor. Não tinha a certeza se o Ira estava completamente consciente de que o
estava a fazer. O que tornava as coisas mais complicadas.
Aconcheguei-me contra ele, tentando deixar de lado as minhas
preocupações e aproveitar o momento.
Ele pressionou os lábios na minha têmpora.
— Por favor, abstém-te de te mexeres assim. Pelo menos durante alguns
minutos.
— Dói?
Ele sorriu contra a minha pele.
— Pelo contrário.
Intrigada, e péssima a obedecer a ordens, voltei a fazê-lo. O corpo do Ira
endureceu-se contra mim. Deusa de cima. A sua sede de sedução era insaciável.
Virei-me para o enfrentar.
— Tira as calças.
Ele arqueou uma sobrancelha. Gesticulei para o meu corpo nu.
— Recuso-me a ser a única completamente nua.
— Se tirar as calças, não posso garantir que iremos dormir grande coisa.
Imitei-lhe a sobrancelha arqueada e esperei. Eu nunca dissera nada sobre
dormir. Que arrogância da parte dele assumir que descobrira os meus planos.
Depois de um suspiro, as suas calças desapareceram. Aninhei-me contra ele e
sorri enquanto me aproximava e ouvia a sua respiração.
— Emilia.
— Sim? — O meu tom era de pura inocência salpicada de açúcar. — Algum
problema?
Devia ter pensado melhor antes de ter provocado o general de guerra. O Ira
não jogava com lealdade, jogava para ganhar. Por detrás, posicionou-se mesmo
à entrada do meu corpo, fazendo-me prender a respiração. Senti-me apertada e
solta ao mesmo tempo, pronta para ele se afundar mais ainda.
— Diz-me, querida noiva, tens a certeza de que me queres como teu
marido? — Segurou-me a anca com uma mão e deslizou a outra por baixo de
mim, puxando-me para mais perto. O meu fraco autocontrolo começou a
desaparecer. Eu arqueei-me contra ele. — Estás pronta e disposta a passar a
eternidade aqui, comigo?
A minha mente ainda estava a decidir, mas o meu corpo estava dócil e
disposto. Desta vez, quando ele balançou as ancas, as suas carícias foram
deliberadamente lentas e tentadoras. Sem calças, a sua pele aveludada deslizou
sobre a minha e senti uma sensação de puro êxtase. Naquele momento, teria
desistido de quase tudo para experienciá-lo por completo. Exceto da minha
missão.
Com grande esforço, escorreguei de debaixo dos seus braços e levantei-me.
Ele não resistiu nem lutou. Para suavizar o golpe da minha rejeição, debrucei-
me sobre a cama e dei-lhe um beijo casto.
— Que tal uma bebida antes de dormir?
O Ira observou-me atentamente, mas não havia desilusão ou dor na sua
expressão. Apenas vitória. Ele sabia que não iria continuar a insistir em fazê-lo.
— Queres que te traga alguma coisa?
— Já estou de pé. Deixa-te estar aí. — Ele rodou sobre um cotovelo e
lançou-me um olhar confuso enquanto eu lhe apontava um dedo. — Nada de te
mexeres. Nada de reverências. Tu prometeste.
— Sou um demónio vinculado ao valor da sua palavra.
— Ótimo.
Peguei no meu vestido e dirigi-me para a sala de estar onde o champanhe
frio aguardava. Com o coração a martelar, olhei por cima do ombro para ter a
certeza de que ele ficara na cama e depois rezei uma oração rápida à deusa das
mentiras e do engano.
Fizera uma promessa a alguém que amara muito antes de conhecer o Ira. E
esta oportunidade era demasiado boa para a deixar escapar. Por muito que o
meu coração rugisse de dor, antecipando os destroços.
Agarrei no objeto que havia cosido nas minhas saias, os meus movimentos
seguros e rápidos. Antes que pudesse desistir, polvilhei uma pitada da mistura
na taça do Ira e depois verti o champanhe por cima. Deixei cair um pedaço de
fruta coberta de chocolate em cada taça. As bolhas elevaram-se em torno da
intrusão indesejada, o que foi o ideal para encobrir a minha traição.
Voltei ao quarto, contente por ver o Ira, tão respeitoso como era, distraído
pelo gingar das minhas ancas. Até então, não me dera ao trabalho de vestir a
minha roupa de dormir. E ele tampouco. A musculada parte superior do seu
corpo estava nua, apesar de ele ter puxado os lençóis até à cintura. Deu umas
palmadinhas no lugar vazio ao seu lado, um sorriso preguiçoso a encurvar-lhe
aqueles lábios malditos.
Numa outra vida teria sido feliz a beijá-lo por toda a eternidade.
— A novos começos. — Ofereci ao príncipe a sua bebida e depois levantei
a minha própria taça. — Iucundíssima somnia.
O Ira franziu o sobrolho na última parte do brinde. Se ele se lembrava de
mo ter dito uma vez, não o comentou. Bateu a sua taça contra a minha e bebeu o
champanhe num só gole.
Beberiquei o meu e contei em silêncio. A taça dele caiu no chão antes de
eu terminar o meu primeiro gole.
— Emilia. — O Ira dirigiu-me um olhar sonolento, os seus olhos a faiscar
de fúria. E traição. A temperatura desceu à nossa volta e depois voltou ao
normal quando ele caiu para trás.
O poderoso demónio da guerra já não era uma ameaça. Pousei a minha
taça na mesa de cabeceira e depois aproximei-me para lhe pentear o cabelo para
trás. Quaisquer que fossem os termos de paz a que havíamos feito, deixariam de
existir quando ele acordasse. Era um sacrifício que eu estava disposta a fazer,
mas isso não o tornava mais fácil. Beijei-o na testa, saboreando o momento
antes de me endireitar.
— Bons sonhos, Vossa Alteza.

Nessa noite eu era uma ladra de um tipo diferente quando me escapulia pelo
corredor entre os aposentos do Ira e os meus, entrando e saindo das sombras
como uma carteirista em plena atividade. Entrei no meu quarto e corri para a
mala. Puxei as calças de cabedal forradas a pelo, a camisola grossa e as meias
que trouxera, calcei as minhas botas e atirei o manto cor de ébano sobre os
ombros em tempo recorde. Pus a adaga na bainha presa à minha coxa e puxei-a
para verificar se estava cingida corretamente.
Pouco depois estava de volta ao corredor e a descer as escadas dos criados.
Com a festa ainda a decorrer, não havia ninguém perto daquela ponta do castelo.
Ou assim esperava.
Com o meu coração a trovejar como advertência, espreitei ao virar a
esquina. Havia uma porta aberta nas traseiras da cozinha, tal como eu
suspeitava, para deixar sair o calor em excesso criado pelo fogo nos fomos.
Fiz uma oração rápida à deusa das mentiras e do engano, corri pelo corredor
e abrandei um pouco quando entrei na cozinha. Não fazia ideia de quanto tempo
a raiz do sono iria manter o Ira inconsciente; dado o seu imenso poder, pensei
que não tinha muito tempo. Tinha de estar suficientemente longe para que ele
não me apanhasse antes de eu atravessar o território do Orgulho. Corri através
da grande extensão de terreno que ligava a parte de trás do castelo aos estábulos
e não parei até chegar à entrada.
Observei o exterior do edifício, examinando cada recanto, em busca de
qualquer movimento na escuridão. Os moços de estrebaria já deviam estar na
cama após terem cuidado dos cavalos depois da caçada daquela manhã. Abri a
porta o suficiente para entrar e corri ao longo dos estábulos até encontrar a
Tanzie. Ela farejou-me em tom de saudação enquanto os seus cascos prateados
rasgavam a cama.
— Vamos embarcar numa aventura, minha linda.
Selei a égua rapidamente, impressionada e grata por me lembrar dos passos
necessários para o fazer depois de o ter testemunhado em casa em algumas
ocasiões. Puxei-a pelas rédeas e, abençoada seja, ela precipitou-se pela porta da
frente, como se soubesse da necessidade de se ser furtivo.
— Leva-me para a Casa Orgulho. — Dei-lhe uma palmadinha no flanco e
saímos a correr. — Vamos visitar a Floresta Sangrenta.
A Tanzie disparou para a noite, fazendo levantar a neve atrás de nós
enquanto praticamente sobrevoávamos as encostas da Casa Gula. Fiz força com
os joelhos e inclinei-me para o vento.
Cada passo trovejante fazia-me querer olhar por cima do ombro, convencida
de que tinha alertado os guardas do castelo e eles haviam começado a
perseguição. Atravessámos as colinas da raiz do sono e à nossa direita, embora
eu não tivesse reparado nele antes, vimos a margem superior do Lago de Fogo.
Uma brisa fria e perfumada atravessou o ar, fazendo com que alguns fios de
cabelo se levantassem, causando-me tremores. Mantive a atenção fixa no
castelo à distância, tensa e atenta aos guardas do Orgulho. A Tanzie acelerou,
como se se recusasse a ser levada pelos guardas outra vez, e os seus cascos
devoravam a terra congelada. Rodeámos o perímetro da Casa Orgulho e
deixámo-la para trás num piscar de olhos.
Deixei escapar um grito de alegria. Uma pequena vitória.
Se a memória me não falhasse, passaria do círculo do Orgulho para o círculo
do Inveja. Já fora convidada a entrar no território do Inveja e ele não revogara
essa permissão. Com alguma sorte, conseguiria atravessá-lo e entrar na Floresta
Sangrenta incólume.
Enquanto cavalgávamos como se o diabo nos perseguisse, a minha mente
percorreu todos os pensamentos que tentara esconder durante o banquete. O
Inveja estava atrás das Sete Irmãs. E apontara-me a Árvore dos Condenados
quando passeara pela sua galeria. Podia não saber os detalhes da floresta, mas
seria capaz de encontrar uma árvore tão invulgar graças à fábula que indicava
que se encontrava «nas profundezas» da floresta.
E, com sorte, encontraria os seres místicos que me poderiam ajudar a
encontrar a Chave da Tentação ou o Espelho da Lua Tripla. Nesta altura,
qualquer informação que me pudessem dar sobre qualquer um dos objetos
mágicos seria útil.
Passámos pela Casa Inveja sem incidentes. Como fora o príncipe daquela
casa quem insistira em soltar pistas na minha presença, não achei que me fosse
tentar impedir de atravessar as suas terras.
Antes que eu desse por isso, chegámos ao Rio Negro, que dividia o
território do Inveja e entroncava na Floresta Sangrenta. A Tanzie abrandou até
quase parar e pisou o chão enquanto considerava o salto. Eu estava a avaliar as
vistas à nossa frente. A Floresta Sangrenta havia sido apropriadamente batizada.
Mesmo debaixo do cobertor de um céu noturno, consegui perceber que a casca
das árvores era de um carmesim-escuro.
Nas profundezas do bosque, tufos de fumo flutuavam como névoa
fantasmagórica. Tive uma suspeita incómoda de que isto não era o resultado de
um incêndio, mas sim o bafo de bestas enormes a rondarem a floresta carmesim.
Ou talvez fosse um dos demónios que eu vira nos diários. Os que ansiavam por
corações e sangue. Respirei fundo.
— Preparada para encontrar a Árvore dos Condenados?
A Tanzie abanou a cabeça, depois trotou para trás e carregou para o rio cor
de ébano. Forcei os meus olhos a permanecerem abertos enquanto estávamos no
ar e o meu estômago se revolvia. Aterrámos e a Tanzie nem sequer parou para
recuperar o fôlego; atravessou o bosque, esquivando-se de árvores e vegetação
rasteira.
Esperara um silêncio sinistro, mas a realidade foi um coro de insetos tão
alto que se tornava desorientador. Se houvesse algum predador por perto, seria
impossível ouvir o ataque até que fosse demasiado tarde. A Tanzie parecia saber
isto. A minha imponente égua do inferno enfiou o focinho no chão e contornou
os obstáculos que apareciam. Determinada a que a sua cavaleira chegasse ilesa
ao nosso destino.
Corríamos por uma clareira, e na orla vi um demónio Aper. Ele balançou a
sua cabeça gigante para a frente e foi tudo o que eu vi; deixámo-lo para trás, a
babar-se. Passámos por vislumbres de árvores carmesins, as cores tingiram-me
a visão periférica como centenas de estrelas-cadentes a sangrar. Agarrei-me à
égua com mais força, contando cada pulsar do meu coração. Tínhamos de estar
perto do centro da floresta.
Depois de alguns minutos a cavalgar a toda a velocidade, a Tanzie parou
abruptamente.
Ali, entre as restantes árvores carmesins, destacava-se uma enorme árvore
prateada. Conseguíramos. Conseguíramos mesmo encontrá-la. A Árvore dos
Condenados era, inconfundivelmente, maior, mais larga e diferente na cor de
todas as outras árvores da floresta. Sob o luar, a casca prateada da maldita
árvore brilhava como uma gigantesca espada atirada para as profundezas da
Terra. Desmontei e dei uma palmadinha na Tanzie.
— Fica aqui e mantém-te alerta.
Acariciou-me o ombro com o focinho como se me dissesse o mesmo.
Movi-me lentamente em direção à árvore, agora com a adaga na mão. Os
bichos haviam ficado em silêncio. Uma névoa ameaçadora pairava sobre o solo
congelado, ocultando qualquer vestígio de pegadas recentes. As raízes
sobressaíam como os dedos apodrecidos de gigantes mortos. Aproximei-me
para inspecionar melhor as folhas. Eram semelhantes às de uma bétula comum,
mas da cor do ébano com veias prateadas. De acordo com as lendas que lera,
eram afiadas como lâminas e quebradiças como vidro.
— Vieste solicitar um desejo de sangue?
Virei-me e o capuz do meu manto caiu para trás. Havia uma figura solitária
apoiada num bastão, demasiado afastada e oculta pela neblina para se distinguir
claramente. A Tanzie desaparecera.
Eu agarrei no punho da minha adaga e lentamente assumi a posição de luta
que o Anir me ensinara.
— Quem és tu?
— A melhor pergunta é, quem és tu, criança?
— Sou alguém que precisa de informação.
Não consegui ver-lhe a cara por causa do nevoeiro, mas fiquei com a
impressão de que ela estava a sorrir.
— Que situação excecional. Sabes, eu sou alguém que tem informação. E
que espera pagamento.
Aquilo fez-me parar e reprimi a minha resposta inicial de lhe oferecer o que
ela quisesse. Isso seria perigoso em qualquer reino, quanto mais num repleto de
pecados como este.
— Retribuir-te-ei com um segredo.
— Não. — A figura aproximou-se. Usava o capuz do manto para baixo,
cobrindo-lhe o rosto. — Eu conheço os teus segredos. Melhor do que tu, creio.
Eu quero um favor. Cobrado no futuro, à minha discrição. Pela deusa. Era um
acordo terrível.
— Não irei cometer assassínio.
— Ou aceitas o favor ou não. Tudo depende, suponho, do quanto precisas
dessa informação. Considera-o um teste de coragem. O que será? Bravura ou
medo?
A coragem podia ser a ausência de medo em muitos casos, mas também me
parecia um pouco como fazer algo insensato por uma boa causa. Não estava
preocupada em ser corajosa. Estava interessada em tomar conta de mim, em
tomar a melhor decisão possível. Se esta mulher misteriosa me conhecia melhor
do que eu, então não tinha outra escolha senão aceitar. As consequências que
fossem para o Inferno, assim como a minha alma.
— Aceito.
Antes que as palavras me tivessem saído por completo dos meus lábios, a
figura avançou. Aconteceu tão depressa que mal registei a picada que senti no
braço. Ela cortara-me. Olhei para cima, pronta para me defender de qualquer
outro ataque, e detive-me quando vi que ela estava a cortar a sua própria palma
e a colocá-la sobre a minha ferida.
Sussurrou uma palavra e uma luz ofuscante perfurou o céu noturno.
— Continua, criança. Faz as tuas perguntas.
— Quero encontrar as Sete Irmãs. Elas estão aqui?
— Não. Elas habitam onde nenhum pecado governa sobre os outros.
— Isso não é uma resposta.
— Na altura certa, compreenderás.
Cerrei os dentes. Está bem.
— Quero informações sobre a minha irmã gémea. Ela foi assassinada e
preciso de saber qual a casa demoníaca que está por detrás da sua morte. Se
algum deles é responsável.
— Não podes esperar encontrar respostas para o mistério de alguém quando
ainda não compreendes o teu próprio mistério.
— Não é esse o propósito da nossa conversa? Não aceitei o teu acordo para
que me pudesses atirar mais perguntas. Não me podes dizer onde estão as Sete
Irmãs, não me podes contar sobre a minha irmã gémea. Então como me podes
ajudar ao certo?
— Se esperas encontrar o que procuras, tens de passar pelo meu teste de
coragem.
— Isso não fazia parte do nosso acordo.
— Oh, mas faz. Tu, minha filha, estás no centro do teu próprio mistério. Até
descobrires os segredos que te rodeiam, não saberás as respostas para o mistério
da tua irmã. E isso é algo que eu não te posso dizer. Algumas verdades deves
encontrar por ti mesma. O que mais te preocupa?
Engoli em seco.
— A minha magia. Não lhe consigo aceder.
— Talvez eu saiba uma maneira de a recuperares. E de encontrares a
resposta que o teu coração anseia. Quanto ao teu príncipe. — A figura parou de
repente diante da árvore. — Se queres saber a sua verdade, então entalha o
nome dele na árvore e leva uma folha.
Pensei na fábula e uma sensação de mal-estar contorceu-se como uma faca
dentro de mim. Aquela figura encapuzada tinha de ser a Anciã. A deusa do
submundo. E algo a temer.
— Se eu o fizer e estiver errada, haverá um preço.
— É impossível realizar um verdadeiro ato de bravura sem o risco de um
preço elevado. — O seu sorriso mordaz foi tudo o que consegui ver dela, e
pouco fez para me acalmar os nervos. — Assim que esculpires o seu verdadeiro
nome e pegares na folha, deverás parti-la na sua presença. Se estiveres certa,
saberás. Se não...
Engoli o meu crescente ataque de terror. Se estivesse certa e ela fosse a
deusa do submundo, o seu preço seria a morte. Um pequeno detalhe que tanto o
Inveja como a Celestia haviam omitido.
— Não sei com certeza.
— Sabes quem ele é, mas escolhes permanecer nas sombras, confortável no
escuro. Talvez não seja a sua verdade que receias, mas sim a tua. Talvez
também te recuses a olhar para ele atentamente pelo que isso poderá revelar
sobre ti. Ele é o teu espelho. E nós raramente apreciamos aquilo que nos
devolve o nosso próprio reflexo. É aí, minha filha, que começa o verdadeiro
teste: serás realmente corajosa o suficiente para enfrentares os teus demónios?
Poucos são.
Olhei para a minha tatuagem mágica, aquela que contava a nossa história.
— Não foi essa a pergunta que me trouxe até aqui.
— Não. Mas é aquela que tens demasiado medo de perguntar. Por isso vou
perguntar outra vez, Filha da Lua, não quem é ele, mas quem és tu?
— Eu... eu não sei.
— Errado. — Ela bateu com o pé no chão, dispersando a névoa com o seu
movimento repentino. — Diz-me, quem és tu?
— Não me lembro. Mas vou descobrir, caramba!
— Bem, é um começo. — Ofereceu-me um leve acenar de cabeça de
cumplicidade. — O que vais fazer?
Olhei por cima do ombro. A Tanzie voltara de onde quer que a Anciã a
tivesse escondido, os seus olhos líquidos plenos de solenidade. Esta escolha
poderia custar-me a vida.
Levantei a minha adaga e pressionei-a contra a Árvore dos Condenados. Iria
escrever o verdadeiro nome do Ira na madeira e seguir a sugestão da Anciã:
enfrentar a verdade da qual tentara fugir.
E se estivesse errada... Teria de rezar às deusas para que não fosse esse o
caso, ou juntar-me-ia à Vittoria no túmulo da nossa família antes de a noite
acabar.
Capítulo 33

O Ira não estava nos seus aposentos nem na sua biblioteca. Fui procurá-lo
na sua varanda e estava prestes a partir para os Baixios do Crescente quando
decidi parar nas cozinhas.
Era um dos últimos lugares onde esperava encontrar o demónio da guerra,
mas ali estava ele, de costas para mim, faca na mão, a cortar um pedaço do que
me parecia ser queijo e a depositar os cubos perfeitos numa bandeja que já
enchera com vários frutos.
— Não precisas de um convite para te juntares a mim, Emilia. — Não se
virou para olhar para mim. — A não ser, claro, que não queiras estar na minha
companhia.
— Tenho andado à tua procura. Acho que isso indica que desejo a tua
companhia.
— Depois de me teres drogado para escapares dos meus aposentos,
perguntei-me se isso teria mudado.
— Isso... não teve nada que ver contigo.
Ele continuou a cortar, a faca a golpear a tábua.
— Pareceu-me bastante pessoal, tendo em conta o que havia acontecido
entre nós.
— Eu...
— Não precisas de te explicar.
— Não ia. Ia pedir-te desculpa porque foste vítima do que eu tinha de
fazer. — O silêncio cresceu entre nós. — Quanto tempo estiveste inconsciente?
— Não podes esperar que partilhe essa informação.
— Não, suponho que não.
Caminhei até onde ele estava a trabalhar, admirando a sua habilidade com a
faca. A forma como dispusera a fruta também era impressionante. Os figos
estavam cuidadosamente cortados em quartos, as bagas e as uvas empilhadas
em montinhos atrativos. Ele tinha até encontrado uma romã.
— Pensei que não gostavas de passar tempo na cozinha.
— Eu também não. — Encolheu os ombros, os olhos fixos apenas na sua
tarefa. — Não me interessa muito cozer ou misturar, mas acho o corte e a
fatiagem estranhamente relaxantes.
Sorri. Claro que lhe agradava esta parte de cozinhar. Em vez de comentar ou
quebrar o momento, tirei um pedaço de maçã do prato e levei-o à boca. Estava a
adiar a situação e sabia-o muito bem. Bom, lá se ia o meu teste de coragem.
— Em algumas religiões mortais, diz-se que as maçãs são o fruto proibido.
O Ira deteve-se por menos de um segundo, mas eu estava a prestar muita
atenção. Ele não olhou para cima.
— Para alguém que cresceu com bruxas, estou surpreendido por dedicares
tanto tempo a crenças humanas.
Escolhi outra peça de fruta.
— Também ouvi dizer que os figos, as uvas e as romãs são concorrentes na
corrida para serem o fruto proibido.
— Pensas muito em alimentos proibidos.
— Visitei a Árvore dos Condenados. — Ele continuou a cortar
cuidadosamente o queijo cheddar na tábua. Fui para o outro lado da mesa para
ficar de frente para ele, para poder olhá-lo nos olhos. — Fiz um acordo com a
Anciã. E ela disse algo que me fez pensar em frutos proibidos e árvores do
conhecimento.
Os nós dos dedos do Ira ficaram brancos à medida que ele agarrava na faca
com mais força.
— E?
— Queria saber a verdade sobre a minha irmã, mas ela insistiu que eu
precisava de descobrir a minha verdade primeiro. Para enfrentar os meus
medos. Disse que eu descobriria parte da minha verdade se eu reconhecer quem
tu és. — O seu olhar encontrou o meu. — Disse-me para escrever o teu
verdadeiro nome na árvore.
— Por favor, diz-me que recusaste. A Anciã é pior do que os meus irmãos.
Abanei a cabeça e pousei a folha cor de ébano raiada de prata sobre a
mesa. O Ira olhou para baixo, como se eu tivesse trazido uma cobra para a
cozinha. Levantei o punho para a esmagar e a mão dele saiu disparava, cobrindo
a minha. Puxou-me para ele e segurou-me a mão contra o seu coração. Batia
com força.
— Vamos voltar e fazer outro acordo com a Anciã.
Recuei o suficiente para o olhar nos olhos.
— Estás nervoso.
— Escreveste um nome numa árvore que exige sangue pela verdade. — O
príncipe soltou um suspiro frustrado. — É claro que estou nervoso.
Movi a minha mão livre para a pousar sobre a sua face. Aquela não era a
verdade completa por detrás do seu nervosismo, e ambos sabíamos disso.
— Eu sei quem tu és.
— Tenho sérias dúvidas.
O seu tom indicava que, se eu soubesse a sua verdade, não estaria tão perto
dele, aceitando-o pelo que era. O seu segredo aterrorizava-me, mas eu nunca o
superaria se não o revelasse. Nunca descobriria quem eu era e o que acontecera
à minha irmã se continuasse a ter medo da verdade. A Anciã tinha razão. Eu
habituara-me à escuridão, permanecera nela durante demasiado tempo. Primeiro
por causa da Nonna e agora por minha livre vontade. Chegara a altura de largar
os meus medos e avançar para a luz.
Antes que ele percebesse o que eu estava a fazer, pontapeei a mesa com
toda a força que tinha, mandando-a ao chão juntamente com a fruta, o queijo e a
folha amaldiçoada, cujos pedaços caíram entre os destroços.
Ele envolveu-me nos seus braços, como se pudesse proteger-me da árvore
amaldiçoada e do preço que estava prestes a cobrar. Mas eu não senti nenhum
acesso repentino de dor. Não enfraqueci nem perdi a consciência. Não morri.
Nem sequer sangrei.
O Ira abraçou-me com mais força, a sua respiração saindo áspera e rápida.
De repente, as lágrimas arderam-me nos olhos, mas recusei-me a deixá-las
cair. Estar ali, de pé, a salvo no círculo dos braços do Ira, significava que eu
acertara. E que a Anciã estava certa, mais uma vez.
Agora que estava de posse da verdade, não sabia o que fazer com ela. Pensei
que estava pronta, que conseguia aguentar ter o seu segredo desvendado.
Enganei-me.
E odiava-me a mim própria.
Deixei sair um suspiro entrecortado. Precisava de um instante para digerir
completamente o que havia descoberto. O Ira sentiu que estava a retrair-me para
dentro de mim e, com relutância, deixou cair os braços e afastou-se, conferindo
distância entre nós. Não disse nada, apenas esperou, pacientemente, que eu
falasse.
Sangue e ossos. Isto era difícil. Mas já passara por pior e sobrevivera. O que
quer que acontecesse a seguir, também sobreviveria a isso. — Quando ignoraste
o nome que te chamei no mosteiro, perguntei-me se haveria alguma razão para
não reagires com mais veemência. — Eu limpei os olhos, ainda sem olhar para
ele. — Agiste como se isso não significasse nada, como se eu te tivesse apenas
irritado. — Sorri, a olhar para as minhas mãos. — Porque, segundo a Nonna,
um príncipe do Inferno nunca revelará o seu nome aos verdadeiramente seus
inimigos.
Pude sentir a sua atenção fixa em mim, mas, ainda assim, não conseguia
olhá-lo nos olhos.
— Eu sei que as bruxas e os demónios são inimigos. Mas há mais na nossa
história, não há?
— Emilia...
— Tu és tentação. Sedução. — Por fim, arrastei o olhar para o braço dele e
acenei na direção da tatuagem da serpente. — A serpente no jardim. A que
encorajou os mortais a pecarem.
Subi o olhar para finalmente o fitar olhos nos olhos. Olhei para ele, olhei
mesmo para ele, objetivamente. O seu rosto, o seu corpo, toda a sua presença e a
forma como se comportava gritavam autoridade. Domínio. E ele fora concebido
para seduzir. Era a encarnação da tentação.
A sua expressão fechou-se enquanto esperava. Naquele momento, mais do
que nunca, desejei desesperadamente poder sentir as suas emoções. Apesar de
suspeitar que ele estava a sentir as minhas e que fora por isso que se tornara tão
distante. A sua armadura estava a postos, imutável. E estava a proteger-se de
mim.
— Não sei como enganaste a humanidade durante tanto tempo, mas o Inveja
estava certo. Tu és o mentiroso mais habilidoso de todos. Samael.
O seu nome verdadeiro pareceu afetá-lo. Não parecera que tivesse sustido a
respiração desde o início da nossa conversa. Naquele instante expirou.
— Príncipe das Trevas. Rei dos Malditos. Já me chamaram muitas coisas,
mas não sou um mentiroso.
Observei-lhe o rosto. Eu tinha razão. Soubera-o no preciso momento em que
a árvore não havia cobrado o seu preço, mas a verdade era difícil de engolir. O
Ira era o diabo. O mal que se temia em todo o mundo.
E eu caíra no seu jogo de sedução como uma idiota. Pelos seus olhos
dourados ardentes e sagacidade mordaz. Pelo orgulho que tinha na sua
aparência. Pela forma como protegia os que estavam ao seu cuidado e escolhia a
justiça em vez da vingança. Não era de admirar que o mundo mortal
confundisse os dois príncipes com tanta facilidade — o Orgulho e o Ira decerto
que partilhavam muitas semelhanças.
— Tiveste muitas oportunidades para me dizeres que eras o diabo. Foste tu
que amaldiçoaste La Prima. A mulher do Orgulho morreu mesmo ou foi a tua
consorte?
— Eu nunca te menti diretamente.
— Pára de omitir coisas.
— Ao contrário do Orgulho, eu nunca tive uma consorte. Mas sim, fui
amaldiçoado pela Primeira Bruxa. Tal como todos os meus irmãos. O meu
castigo por não a ter ajudado foi maior. Ela roubou-me algo muito importante
para mim. Algo pelo qual estou disposto a quase tudo para recuperar.
— O Chifre de Hades — adivinhei, pensando nos amuletos que compunham
os chifres do diabo.
Não lhes sentia a falta. Se alguma coisa sentia... era alívio por o meu amuleto
ter desaparecido nos últimos dias. O que não era de todo consistente com o que
sentira quando os tirara pela primeira vez. Embora suspeitasse que pudesse ter
algo que ver com a minha dolorosa experiência nos Baixios do Crescente.
Lembrei-me da minha preocupação de que o diabo ficasse zangado com o
Ira por ele me ter deixado levar o cornicello emprestado naquela noite. Quão
tola devo ter-lhe parecido.
— Eras o único que não parecia querê-los. O que suponho que indicava
que os desejavas mais do que todos os outros e apenas não querias parecer
muito ansioso e levantar suspeitas.
— São as minhas asas, não são chifres. A tua primeira bruxa amaldiçoou-
as numa ridicularização da sabedoria mortal, e depois escondeu-mas. — Ele
parecia perdido na memória. Uma levou-o a fechar as mãos em punhos de
ambos os lados do corpo. Quando olhou para mim, uma fúria gélida ardeu-lhe
nos seus olhos. — Para as restaurar, preciso de um feitiço achado no seu
grimório.
— Tens asas. — Porque ele era um anjo. Pela deusa. Uma coisa era
suspeitar, outra era ver essa suspeita confirmada.
— Tinha.
Havia todo um mundo de raiva e dor a envolver-lhe a voz. Parte de mim
queria aproximar-se dele, acalmar-lhe a ferida emocional ainda aberta. Em vez
disso, permaneci onde estava, hesitante.
As suas asas eram uma ligação ao mundo angelical. O reino que ele
deixara para trás. Era difícil de acreditar que o diabo chorasse por algo que o
prendia ao lugar que odiara o suficiente para ser expulso por toda a eternidade.
Ou talvez nada disso fosse verdade. Talvez fossem apenas contos mortais,
distorcidos pela passagem do tempo. O Ira não parecia ser a encarnação do mal.
Nem nenhum grande sedutor. No entanto... ele infiltrara-se lentamente na minha
vida. E no meu coração.
— Emilia. — Ele estendeu-me a mão e eu estremeci. Voltou a retraí-la. —
Consigo sentir as tuas emoções básicas, mas quero saber como te sentes
realmente.
— Tu és o diabo.
— Tal como fizeste questão de me relembrar.
— Mas o Lúcifer... O Orgulho... Não compreendo.
Ele suspirou.
— O pecado de eleição do meu irmão quase que o impossibilita de negar que
é o rei dos demónios. Os mortais assumem que é ele, e o seu orgulho impede-o
de admitir a verdade. Ele tem grande prazer em alimentar o seu próprio ego.
Não detenho quaisquer emoções sobre o meu verdadeiro título. Para mim, é um
dever. Uma obrigação imposta. Nada mais. Em todo o caso, o facto de o
Orgulho assumir o prestígio permite-me realizar o meu trabalho sem pretensões.
— Havia alguma coisa de real entre nós ou não passou de um jogo lento de
sedução? Uma pitada de verdade salpicada de mentiras.
— Diz-me. — Os seus olhos semicerraram-se. — Quando concordaste em
casar com o Orgulho, acreditando que ele era o diabo, isto importava?
Fui atingida por uma recordação não desejada.
— Nos Baixios do Crescente, na noite em que nós... tu me chamaste tua
rainha.
— Vieste aqui, acreditando que serias a Rainha dos Malditos. Tudo isso é
verdade. Se escolheres completar o nosso vínculo matrimonial, não serás apenas
a minha rainha, mas a rainha. — Ele examinou-me o rosto, a sua própria
expressão tornando-se distante. — A única alteração é com o irmão com quem
te vais casar. Neste reino, todos sabem quem eu sou. Conhecem o meu
verdadeiro título. Só os mortais assumem o contrário. Por isso, volto a
perguntar-te, importa mesmo agora que saibas quem eu sou?
— Para ser sincera, não tenho a certeza. É muito para assimilar. Tu és o
diabo. O mal encarnado.
— É assim que me vês?
— Fora deste reino, é assim que todos te veem.
— Não me importa o que os outros pensam. Apenas tu. — Deu um passo
atrás e baixou a cabeça. Os seus movimentos eram rígidos. — Obrigado pela
honestidade. Era tudo o que eu precisava de ouvir, minha senhora.
— Ira, espera.
Ele desapareceu numa nuvem brilhante de fumo.
Capítulo 34

— Lamento — sussurrei para o espaço vazio.


O fumo ficou suspenso no ar durante vários minutos depois de o Ira ter
saído. Fiquei a contemplá-lo enquanto os meus olhos ardiam, desejando poder
lançar um feitiço para inverter o tempo.
Seria muito mais fácil esquecer o que tinha acontecido. Ou, melhor ainda,
esquecer a verdade sobre o seu nome. O seu título. E a forma como me doía o
coração ao pensar que tudo ou quase tudo o que tinha acontecido entre nós fora
parte de um qualquer jogo.
Encostei uma anca a uma das mesas e examinei a confusão no chão. Parecia
uma metáfora adequada para a minha vida. Sempre que pensava que estava a
aproximar-me da verdade em torno do assassínio da minha irmã, algo de novo
era acrescentado à pilha, distraindo-me com mais lixo por remexer.
Porque a maldição tinha uma consciência e um papel ativo na preservação
dos seus próprios segredos, era quase impossível encaixar as peças do puzzle.
Uma velha preocupação voltou para me assombrar. Começara a pensar que
andara a experienciar memórias esquecidas, normalmente depois ou durante
alguns encontros românticos com o Ira.
Se eu não era a consorte, seria eu a Primeira Bruxa? Estava quase
convencida de que a Matrona das Maldições e dos Venenos era a Primeira
Bruxa, mas agora parecia-me menos provável. Não conseguia imaginar o Ira a
mantê-la por perto, agora que sabia que ela lhe tinha roubado as asas.
Seria localizar a Primeira Bruxa a verdadeira razão por detrás dos
assassínios? Faria sentido que alguém tentasse encontrá-la para a fazer pagar
por tudo o que havia roubado. E se todos os príncipes do Inferno tivessem
perdido as suas asas, ou algo igualmente precioso, então esse alguém poderia
ser qualquer um deles.
Se eu fosse a Primeira Bruxa, também fazia sentido que o Ira me tivesse
odiado na noite em que eu o invocara. Nessa ocasião, ele chamara-me
«criatura» e jurara que nunca seria tentado por mim, quando eu acreditara
erroneamente que os pactos com demónios eram selados com beijos viciantes.
— Parabéns, Emilia — escarneci. — Entregaste-te completamente à loucura.
E à paranoia.
Falar comigo mesma em voz alta não ajudou a dissipar as minhas
preocupações. Quase me ri da ideia. Talvez estivesse, de facto, a perder todo o
sentido da realidade.
Talvez houvesse um tónico que eu pudesse tomar para me livrar de todas as
memórias e pensamentos tontos da minha mente. Uma ficha branca para
começar de novo.
Resfoleguei. Era absurdo e... e inteiramente possível. Havia alguém naquele
castelo com o dom de criar tónicos e tinturas. Alguém que talvez pudesse ter as
competências necessárias para quebrar qualquer maldição que estivesse a pairar
sobre mim. Quer fosse a Primeira Bruxa ou não, ainda podia pedir-lhe ajuda.
Apressei-me a visitar a Matrona das Maldições e dos Venenos, rezando a
todas as deusas de que me lembrei para que estivesse na sua torre.

— Filha da Lua. — A Celestia lançou-me um olhar confuso quando eu


passei a correr por ela e lhe fiz sinal para que fechasse a porta. — O que te traz
aqui?
— Sabe quem eu sou?
Era difícil dizer se a sua hesitação se devia à preocupação com o meu bem-
estar ou se estava a tentar contornar a verdade.
— Sim, minha senhora.
— Não me refiro ao meu título de cortesia. Já nos conhecemos antes?
O seu escrutínio tornou-se mais cuidadoso.
— Ingeriste alguma coisa estranha?
— Não. — Andei em círculos, agitada. — Experienciei algumas memórias
que, no início, pareciam não me pertencer. Agora não tenho tanta certeza. Há
algum tónico que me possa dar? Algo que detete uma maldição ou que a
quebre?
— Senta-te. — Dirigiu-se para a mesa pequena e para os bancos em que
costumava trabalhar. Eu segui-a. — Dá-me as tuas mãos. — Inclinei-me sobre a
mesa e fiz o que ela pediu. — Por vezes o esquecimento pode ser um presente.
Envolvi as minhas mãos nas dela.
— Está a falar por experiência própria?
— Falo como alguém que deseja tal presente.
— Sou a Primeira Bruxa?
A expressão da Celestia suavizou.
— Não, criança.
— E você?
— Não.
Libertei as minhas mãos das dela e sentei-me. A sua pulsação não havia
acelerado em nenhuma das minhas perguntas.
— Devo admitir que me sinto apenas ligeiramente aliviada. Quanto mais
aprendo sobre ela, menos me soa como a heroína das nossas fábulas.
— Todos os vilões pensam que são o herói. E vice-versa. Na realidade, há
um pequeno vilão e um pequeno herói em cada um de nós. Dependendo das
circunstâncias.
Olhei em redor da câmara circular e os meus olhos detiveram-se na caveira
entalhada.
— Tentei resolver um enigma. Sobre uma chave que não abre
necessariamente uma fechadura. E sete estrelas e pecados, e o anjo da morte.
— Procuras a Chave da Tentação. — A Celestia soltou um grande suspiro.
— Posso dizer-te isto, Filha da Lua, já a encontraste. — A minha atenção voltou
para ela. — Se eu estivesse no teu lugar, reconsideraria. Assim que entres nesse
caminho, não há retorno.
— Quem matou a minha irmã gémea devia ter pensado nisso. — Levantei-
me. — A Chave da Tentação está aqui, na Casa Ira?
— É perigoso. Os objetos divinos... não devem ser encarados de ânimo leve.
— Mas está aqui.
A Celestia apertou os lábios. Foi confirmação suficiente para mim. Pensei
na minha conversa com o Inveja, em como confundira as suas divagações com
embriaguez na noite em que bebêramos o vinho da verdade. Ele mencionara que
nem todas as chaves tinham a forma que por norma se julgava que tinham.
O sangue era a chave para desbloquear a magia demoníaca, por exemplo.
Portanto, tendo isso em mente, não havia limite para o que o Espelho da Lua
Tripla poderia realmente desbloquear. Pelo que sabia, a Chave da Tentação
podia ser um elixir. E no entanto... algo se começou a insinuar na minha
memória.
Se o Ira tinha um objeto divino e queria mantê-lo escondido, não havia lugar
mais seguro do que à vista de todos. O Ira tornara o óbvio questionável ao
levantar dúvidas. Era a mesma estratégia que usara quando eu o chamara
Samael pela primeira vez, em Palermo. Duvidava que ele guardasse a Chave da
Tentação no seu quarto.
O que me levou a pensar que a chave estava num de dois lugares possíveis.
Na sua biblioteca pessoal ou na sala de armas.
Levantei-me, pronta para correr até lá e revirar tudo se fosse preciso.
A Celestia agarrou-me pela manga do vestido.
— Se o fizeres, prepara-te para consequências para lá do teu controlo.
— Há muito pouco que esteja sob o meu controlo, matrona. A única coisa
que vai mudar é que finalmente saberei a verdade.
A Celestia soltou-me o braço e afastou-se. Não perdi um segundo e
apressei-me a chegar à sala de armas. Parte de mim temia que o Ira estivesse lá,
a eliminar o excesso de emoções depois da nossa conversa. Estava silenciosa,
vazia. Vasculhei cada centímetro, passando as mãos por cada desenho dourado
que encontrava, em busca de qualquer compartimento ou objeto secreto que
pudesse ser uma chave.
Parei no fundo da sala, perto do mosaico da serpente. Como da primeira vez
que o vira, podia jurar que havia algo de familiar... A minha mente acelerou, à
procura de uma memória.
— Sangue e ossos. — Peguei nas raízes do meu cabelo e puxei-as com
gentileza. — Pensa.
Já a tinha visto antes. Apostaria o que restava da minha alma. Se ao menos
pudesse...
— Demónio maldito. Tu és brilhante. — Tapei a boca com a mão para me
impedir de gritar de alegria. — Apanhei-te.
Detive-me na secretária do Ira e levantei o pisa-papéis da serpente.
Ou o que originalmente confundira com um pisa-papéis. Virei-o e estudei as
arestas e o padrão geométrico com uma nova perspetiva. Poderia certamente ser
uma chave. Dada a sua forma, caberia perfeitamente em cima de um espelho de
mão. E isso explicaria o porquê de o Inveja ter partilhado essa informação
comigo.
Sem um convite para a Casa Ira, não poderia revistar o castelo em pessoa.
Aparecer lá fora no jardim por um minuto ou dois era uma coisa, mas vaguear
pela biblioteca pessoal do Ira teria sido outra bem diferente. Embora,
conhecendo o Ira, fosse provável que o interior estivesse protegido para manter
os irmãos afastados. Nada disso importava.
Segurei a Chave da Tentação contra o peito e senti as primeiras reviravoltas
de esperança. Não tinha a certeza de por que razão ficara a Celestia tão
preocupada por eu tocar num objeto divino. Até agora, apenas me trouxera paz.
Alegria. Depois de tantos arranques e paragens, aquele era um benefício
tangível. Um verdadeiro fio para ser puxado. Agora, tudo o que eu tinha de
fazer era localizar o Espelho da Lua Tripla. E, armada com a chave, comecei a
conceber um novo plano.
De volta aos meus aposentos, saquei das minhas notas e de uma pena. Se ao
menos conseguisse decifrar a mensagem das caveiras enfeitiçadas, teria um
rumo a seguir.

Bati nos lábios com a pena enquanto analisava as notas, desejando que a
resposta se manifestasse. A mensagem da primeira caveira já parecia um pouco
mais clara. Tinha quase a certeza de que estava relacionada com o Espelho da
Lua Tripla e a sua capacidade de ver o passado, o presente e o futuro.
Era a mensagem da segunda caveira que me mantinha intrigada. Sabendo o
que sabia agora sobre as sete estrelas serem outro nome para as Sete Irmãs e o
facto de o Inveja estar interessado em localizá-las, perguntei-me...
Respirei fundo, distraída por um novo pensamento. Se o Ira estava a
esconder a Chave da Tentação à vista de todos, talvez tivesse feito o mesmo
com o Espelho da Lua Tripla. Talvez não me pudesse contar sobre a maldição,
mas tivesse tentado ajudar de uma maneira mais subtil.
No estojo do Inveja havia espaço para um espelho de mão. Eu recebera um
desses espelhos como presente antes de partir para a Casa Inveja. A esperança
fez-me pegar na chave, correr para a casa de banho e tirar o precioso espelho de
onde o guardara no tocador. Já tinha admirado a gravura na parte de trás, mas
não havia considerado que podia ser algo mais do que um desenho bonito.
Com o entusiasmo a inundar-me o peito, pressionei a Chave da Tentação na
parte de trás do espelho e virei-a. Ou tentei fazê-lo. Encontrar o alinhamento
certo foi difícil. Tentei várias outras formas, experimentei várias direções. Virei
a chave e estudei as linhas em relevo. Parte do meu anterior entusiasmo
dissipou-se. Não pareciam corresponder, mas ainda não queria desistir.
Depois de tentar o meu melhor para encaixar as duas peças, aceitei, por fim,
o facto de que não correspondiam.
Voltei para o meu quarto e deixei-me cair na cama para reler as minhas notas.
O que teria de fazer a seguir era encontrar as Sete Irmãs e perguntar-lhes se
sabiam onde estava o Espelho da Lua Tripla. As caveiras eram a chave para o
decifrar, se conseguisse resolver o enigma.

Inspirei e expirei, expulsando a frustração e as minhas teorias anteriores. A


Anciã dissera-me algo a que eu apenas prestara alguma atenção. Concentrei-me
nessa conversa e as suas palavras sobre as Sete Irmãs regressaram-me pouco a
pouco. «Elas habitam onde nenhum pecado governa sobre os outros.»
Era isso. Voltei a ler a mensagem entregue pela segunda caveira.
Estivera tão convencida de que a parte sobre os sete pecados era a mais fácil
de decifrar, mas isso poderia não ser de todo verdade.
Talvez fosse a simplicidade daquela parte da pista que se pretendia destacar.
Eu pensara que se referia aos sete príncipes do Inferno. Mas e se fosse um lugar
dentro dos Sete Círculos? «Como é em cima, assim é em baixo» era
frequentemente usado para se referir ao equilíbrio. A pista poderia apontar para
o lugar onde os sete pecados eram usados de forma igual, onde nenhum
dominava sobre os outros. Tal como a Anciã insinuara.
O Corredor do Pecado.
Com o coração acelerado, sorri para as minhas notas. Tinha de ser isso.
As Sete Irmãs moravam algures no Corredor do Pecado e eu tinha a
sensação de que elas estavam de posse do espelho. Isso explicaria como se
continuavam a mover pelo reino, escondendo-se dos príncipes. Ou eram ladras
mágicas ou guardiãs da paz.
Qualquer que fosse o papel que desempenhassem para com os príncipes-
demónios, eram a minha salvação.
Apressei-me a preparar uma sacola com mantimentos: a Chave da Tentação,
o livro de feitiços da Anciã que roubara ao Inveja, um par de meias extra e
nozes que surripiara das cozinhas. Depois troquei-me e vesti algo mais quente.
Tirei o meu vestido e substituí-o por calças de cabedal forradas a pelo, uma
túnica, uma camisola de caxemira e um manto de veludo. Calcei umas botas que
me chegavam às coxas e ajustei a alça da minha sacola enquanto corria lá para
fora. Detive-me perto dos estábulos; uma parte egoísta de mim queria levar a
Tanzie para ter companhia, mas não fazia ideia do que procurava e não queria
perder nenhum detalhe ao ir demasiado depressa. Isto era algo que eu tinha de
fazer sozinha.
Antes que tivesse tempo para me poder dissuadir ou chamar a atenção de
qualquer membro intrometido da Casa Ira, dirigi-me para o limite da
propriedade e desci a montanha íngreme. Em tempo recorde estava de volta a
um terreno semiplano. Olhei para trás: a montanha que o Ira abrira com uma
palavra sussurrada era tão alta e imponente como eu me lembrava.
Esperava voltar a vê-la em breve.
Com a imagem da minha irmã gémea em mente e o coração cheio de
determinação, parti para a minha jornada através do implacável desfiladeiro da
montanha. Desta vez estava preparada para o subtil puxão das minhas emoções.
E sabia como combater a influência demoníaca. Senti as primeiras ondas de
poder a deslizarem pela minha pele, à procura de um lugar para cravarem os
dentes. Mas fora eu quem cravara os meus dentes neste reino. Mesmo sem o uso
da minha magia, não estava desamparada. Tinha uma adaga e uma coragem
recém-descoberta.
— Mostra-me o teu pior.
Com toda a certeza eu mostraria o meu. Avancei pela neve, que
gradualmente atingiu a altura dos joelhos, com passos lentos e hesitantes. Não
pensei no frio nem no gelo. Eram meras distrações. Concentrei-me no que me
rodeava e procurei por qualquer sinal das Sete Irmãs. Da primeira vez que
passáramos por aqui, podia jurar que tinha visto mulheres a usar ossos como
agulhas de tricotar. Convencera-me de que a minha mente estava a pregar-me
partidas, mas não achava que fosse esse o caso. Se as Sete Irmãs haviam
aparecido diante de mim nessa altura, rezei para que o fizessem novamente,
sobretudo agora, que já não estava a atravessar aquele território com o inimigo.
A cerca de um terço da subida de uma enorme secção da montanha, irrompeu
uma tempestade gelada. Puxei o capuz do manto sobre a cabeça e continuei.
Pequenas bolinhas começaram a golpear-me, uma e outra vez. Como se
estivessem furiosas com a minha rebeldia.
Nisso o reino estava errado. Não era a rebeldia que me fazia avançar, um
passo excruciante atrás do outro, naquele inferno. Era o amor.
Esta jornada podia ter começado com vingança e retaliação, mas, por baixo
de tudo isso, fora sempre sobre o amor que sentia pela minha irmã gémea. A
Nonna estava certa: o amor era a magia mais poderosa de todas. E eu aproveitá-
la-ia e... pela deusa. Detive-me perante uma visão de algo que não me pareceu
natural de nenhuma árvore.
Olhei de soslaio na direção do cedro gigante e senti o sangue a abandonar-
me o rosto ao fitar a inscrição talhada.
— Olá?
Peguei na minha adaga e olhei em volta. Não havia sons, nem pegadas, nem
indicações sobrenaturais de que as Sete Irmãs estivessem por perto. Mas aquele
sete romano entalhado no tronco... Fora ensinada a nunca deixar escapar os
sinais. E aquele era demasiado óbvio.
Dei a volta à árvore e não encontrei mais nada de invulgar. Era de tamanho
médio, um pouco mais fina do que o grupo de cedros que a rodeava. Ajoelhei-
me e comecei a cavar na neve. Tinha de haver alguma coisa ali.
Após alguns segundos dolorosos e mais do que um dedo congelado, as
minhas unhas rasparam na terra congelada. Eu tentei raspar a superfície mas
apenas consegui partir várias unhas.
Levantei-me, as mãos fechadas em punhos ao longo do corpo, e tentei
controlar o meu temperamento. O Corredor do Pecado sentiu a perda
momentânea de autocontrolo e abateu-se sobre mim. O meu pecado favorito
desencadeou a minha fúria e eu gritei. O som foi abafado pela neve recém-
caída.
Libertei todas as minhas emoções, pontapeei a neve, quebrei ramos e
golpeei no chão. Formou-se suor em pequenas gotas na minha testa e eu não
consegui parar. Levei o meu punho contra a árvore e bati o mais forte que pude.
— Merda!
A dor percorreu-me o braço inteiro. Fiz uma careta ao ver os meus dedos a
sangrar, e a vontade de lutar e a fúria abandonaram-me de imediato. Raios
partam missão de tolos! Enigmas ridículos e... Ocorreu-me um pensamento
quando o meu sangue pingou na neve. Seguindo um palpite, derramei algumas
gotas na árvore, mesmo por cima do número romano. Sem hesitar um momento,
o tronco abriu-se para revelar umas escadas largas lá dentro. Voltei a andar à
volta da árvore. Não parecia possível que um conjunto de escadas tão grande
pudesse lá caber, mas já não tinha mais perguntas. Chegara a hora das respostas.
Disse uma oração às deusas e entrei. A porta escondida fechou-se atrás de
mim, mas as tochas estavam acesas. Ia pegar na minha adaga, mas algo dentro
de mim me advertiu para que não o fizesse. Não sei como, mas naquele instante
soube com toda a certeza de que ali não encontraria inimigos.
Respirei fundo e segui em frente. As escadas eram de pedra, semicirculares e
dispostas à volta de um enorme tronco. Avancei com passos confiantes, certos,
entusiasmo e inquietude a percorrerem-me as veias à medida que me
aproximava do fundo. Fui saudada por uma pequena câmara de pedra com um
pedestal solitário no centro. E lá estava ele. Tinha de ser isso. Parei para
observar a beleza do espelho que ali estava exposto. Criado a partir do que
parecia ser uma combinação de madrepérola e pedra lunar em bruto, era a coisa
mais magnífica que eu alguma vez tinha visto.
Parecia brilhar de dentro para fora. Parei diante dele, mal reparando nas
lágrimas que me deslizavam pelas faces até que as gotas atingiram o espelho.
Pousei a minha sacola no chão e preparava-me para o alcançar quando um
monte de velas se acendeu em torno da câmara.
Sete sombras fantasmagóricas cintilaram sob a luz fraca. Não falaram. Não
fizeram nenhum movimento na minha direção. Ficaram à espera. As Sete Irmãs
haviam chegado. Não era medo mas sim assombro que sentia, nas profundezas
da minha alma. E uma sensação de familiaridade.
— Olá, eu estou...
— Prestes a tomar uma decisão complicada. O que desencadeares aqui vai
ser irreversível. — A Celestia emergiu do extremo oposto da câmara, com um
brilho nos seus estranhos olhos estrelados. Devia ter ficado surpreendida com a
sua presença, mas não fiquei.
— Ofereço-te uma última oportunidade, criança. Vai-te embora.
— Não posso.
Ela lançou-me um olhar prolongado e depois sorriu. Era o sorriso que eu já
tinha visto antes, meio escondido atrás de um manto, nas profundezas da
Floresta Sangrenta. Agora eu fora apanhada de surpresa. Fitei-a por um
segundo, incapaz de acreditar na verdade perante mim.
— Você é a Anciã.
Ela anuiu, acenando com a cabeça, e eu inspirei rapidamente para digerir a
informação.
— E o Ira sabe?
— Não podemos perder tempo a falar dele. Reivindico o meu favor, criança.
— Ela aproximou-se do Espelho da Lua Tripla e olhou para ele com amor. —
Assim que ativares o espelho, peço-te que me devolvas o meu livro de feitiços.
— É só?
— Não, criança. — Ela virou novamente a sua atenção para mim. — É tudo.
A Celestia estendeu-me a mão, e um estranho formigueiro percorreu-me a
pele com rapidez, como se uns fios invisíveis fossem rebentando a chicoteando
sucessivamente o meu corpo.
Uma onda de magia borbulhou dentro de mim e eu mergulhei na minha
fonte, quase chorando de euforia quando me aprofundei para lá da parede que
tinha sido quebrada.
Ela lançou-me um olhar cúmplice e apontou para as sombras.
— Quando receberes as tuas respostas, vem ter comigo. Espero o meu
pagamento sem demora.
Capítulo 35

Deixei-me cair no chão no interior da árvore mágica e folheei o livro de


feitiços, o papel farfalhando como folhas secas entre o tremor dos meus dedos.
Do meio das páginas caiu uma nota que não estava lá antes. Peguei-lhe com
cuidado e li a caligrafia cuidadosa.

Samael. Ira. A sua nota era estranhamente semelhante à advertência dada


pela Anciã, mas para mim, acontecesse o que acontecesse, não havia retorno ou
seguir em frente até que concedesse à minha irmã o descanso e a paz eternos.
Tracei o S com o qual ele assinara a mensagem, a sua verdade que eu nunca
mais poderia voltar a negar.
Não fiquei surpreendida que o Ira tivesse encontrado o grimório roubado.
Afinal, andava à procura de um feitiço para restaurar as suas asas amaldiçoadas.
No entanto, surpreendera-me que ele o tivesse devolvido, mesmo após ter
deduzido que eu o levaria da sua Casa do Pecado.
Ele sabia em primeira mão que a verdade tanto detinha o poder de cortar
quanto o de curar. Eu ensinara-lhe isso. E ele provara-me, através das suas
ações, que não era tão mau como o mundo o pintava. Ele era a espada da justiça
e derrubava sem emoção aqueles que haviam sido condenados.
Era um soldado que seguia as ordens, governado pelo dever e pela honra.
E eu não conseguira dizer-lhe que via isso. Que o via a ele. O Ira era o
equilíbrio entre o certo e o errado. Não era nem bom nem mau; simplesmente
existia, tal como me havia dito no passado.
As chamas das velas cintilaram com violência, projetando sombras à volta
da câmara escurecer. A Anciã e as Sete Irmãs haviam desaparecido, deixando-
me sozinha com a minha tarefa.
Ignorei a pressão do medo que me roubava o fôlego. Talvez fosse do meu
encontro com uma deusa verdadeira — algo que o meu cérebro ainda não
conseguira processar por completo — ou talvez fosse desta câmara subterrânea,
mas eu nunca fora do tipo de me sentir melindrada em espaços pequenos ou
caves. E recusava-me a começar agora. Estava tão perto. Tão perto da verdade
que me escapara durante todos estes meses.
Se tudo corresse bem, numa questão de minutos, saberia finalmente o que
acontecera à minha irmã.
Parei por um momento. O Espelho da Lua Tripla poderia mostrar-me os
momentos que antecederam a morte da minha irmã gémea. Ou pior, eu poderia
testemunhar o seu assassínio em primeira mão. Uma coisa era encontrar o seu
corpo mutilado, mas assistir ao que acontecera... Estremeci.
— Sê corajosa. — Encontrei o feitiço que deixara marcado havia algumas
noites e respirei fundo. Chegara o momento. Não importava o que visse a
seguir, saberia quem tirara a vida à Vittoria. — Passado, presente, futuro,
encontra. Mostra-me o meu maior desejo oculto nas profundezas da mente do
universo.
De início, tal como no feitiço de invocação que usara no Ira, nada
aconteceu. Olhei para o espelho enquanto colocava o maior desejo do meu
coração na linha da frente dos meus pensamentos. Pensei na minha irmã gémea
e, pela primeira vez em meses, consegui evocá-la com a máxima clareza. Ouvi o
seu riso despreocupado, senti o seu aroma a lavanda e sálvia-branca, senti a
força do seu amor por mim. Um vínculo tão poderoso que nem a morte o
poderia enfraquecer. No espelho cintilou uma luz e depois surgiu um turbilhão
de nuvens escuras. Parecia que se estava a formar uma tempestade no reflexo. A
magia zumbiu pelo metal, sobressaltando-me, mas agarrei-me firmemente ao
Espelho da Lua Tripla; não estava disposta a desviar o olhar ou a deixá-lo cair
agora que o tinha.
A tempestade lá dentro persistiu, mas as vozes abafadas chegaram até
mim. A minha pulsação disparou. Desejei que a tempestade que me bloqueava a
visão se dissipasse para me deixar ver a minha irmã gémea.
Devagar, como se a cena tivesse sido presa num pote de mel que se
derramava para fora lentamente, surgiu um quarto. Havia janelas num canto
redondo. Lá fora, montanhas cobertas de neve elevavam-se acima da neblina.
Demorei um instante a orientar-me, mas parecia a câmara onde o Ira mantinha o
Antonio prisioneiro. A imagem do espelho deslocou-se mais para trás,
permitindo-me ver uma porção maior do espaço.
Pestanejei quando o enorme sofá de cabedal apareceu. Juntamente com o
humano que assassinara a minha irmã gémea. Estava embrenhado numa
conversa, mas quem quer que fosse o seu interlocutor estava fora de vista.
Depois ouvi a outra voz. E o meu coração saltou um batimento.
— ... bem a minha vontade.
Vittoria. As lágrimas não derramadas picaram-me os olhos quando percebi
que devia ser uma ilusão. O Antonio não estava a falar com ninguém — o mais
provável era que alguém lhe tivesse enviado uma caveira enfeitiçada. Não fazia
ideia de como aquela podia soar tão real, mas queria desesperadamente que
voltasse a falar. Não me importava que a voz saísse entrecortada e mais aguda,
era o mais próximo que havia chegado de ouvir a minha irmã gémea em meses.
Em silêncio, implorei à voz que voltasse a falar.
Em resposta às minhas preces, uma mulher aproximou-se do Antonio e
sentou-se no braço da sua cadeira. Usava um vestido de gaze lavanda que
parecia flutuar numa brisa mágica. Os seus caracóis escuros caíam-lhe soltos
pelas costas, e a sua pele de bronze praticamente resplandecia. Parecia um
quadro de uma divindade romana a que haviam dado vida. E, no entanto, havia
algo de muito familiar na sua pose descontraída.
— Valham-me as deusas. Não pode ser.
A mulher era muito parecida com a minha irmã. Pelo menos de perfil.
Voltou-se como se pressentisse uma presença mágica na sala que não lhe
pertencia. Olhos de lavanda, não de um castanho profundo, olharam-me
fixamente. Ou o que quer que fosse que ela sentisse no espelho. O seu rosto era,
ao mesmo tempo, familiar e estranho.
Era a Vittoria, mas não era.
Mal conseguia processar o que estava a ver. A minha mente girou
lentamente à medida que as emoções me dominavam ao assimilar a imagem que
o espelho me revelara. A Vittoria estava na Casa Ira. Com o Antonio. Devia ter
ido para o Inferno antes de ser morta. Mas o Ira jurara-me que não a conhecia...
E eu não voltaria a duvidar dele. O que significava que não era uma imagem do
passado. Ou era o presente ou era o futuro. E, de alguma maneira, fosse ela qual
fosse, a minha irmã estava viva. Pelo menos neste reino.
As lágrimas ameaçaram voltar a transbordar, mas eu retive-as; não queria
perder um único segundo daquela imagem mágica. A Vittoria do espelho
inclinou a cabeça para um lado, ainda a olhar para a magia que a minha
presença criava. Pensei no seu diário, no que ela dissera sobre objetos mágicos
que falavam com ela. Talvez o Espelho da Lua Tripla estivesse a conversar com
ela naquele momento.
— Vittoria! — gritei, agitando as mãos. — Consegues ouvir-me?
— Chegou a hora. — Ela desviou o olhar da minha direção e fixou-o no
Antonio. — Estás pronto?
— Sim. — Não consegui ver a cara do Antonio, mas soava ofegante. Como
se soubesse que estava na presença de algo avassalador. — Dedicarei a minha
vida à vossa causa, meu anjo.
A Vittoria acariciou-lhe a cabeça e depois levantou-se.
— Dá-me um momento e depois vamos embora.
— Não! — gritei. Se este fosse o presente, não podia perder a minha gémea
outra vez. Quase deixei cair o espelho na minha pressa de chegar à torre da
masmorra. Consegui guardá-lo na minha sacola e corri pelas escadas acima, até
chegar à porta do tronco da árvore.
Desatei a correr em direção à noite e pelo Corredor do Pecado, tropeçando
em raízes e rochas em que não reparara da primeira vez, ensanguentada e
magoada, enquanto aumentava a minha velocidade e força. Tinha de chegar à
Casa Ira. Ao fim de muito menos tempo do que deveria ter sido possível,
irrompi pelos portões e dobrei-me para recuperar o fôlego. A adaga do Anir
estava pressionada contra a minha garganta.
— Sangue do diabo, Emilia. Pensei que... — Embainhou a arma e estendeu-
me a mão. — Estás ferida? O Ira não te conseguia detetar em lado nenhum.
— Onde é que ele está?
— Estás a sangrar.
Não podia estar menos preocupada.
— Onde é que ele está?
— Acabou de ir para o Corredor do Pecado. É o único sítio onde não te
consegue sentir.
— Tenho de chegar à torre da masmorra. Vai buscar o Ira. Agora.
O Anir gritou alguma coisa, um praguejar ou talvez um apelo, mas não me
atrevi a parar. Não tinha maneira de saber se a cena que testemunhara pertencia
ao presente ou ao futuro. Mas, de uma forma ou de outra, a minha irmã estava
aqui, ou estaria, e eu não sabia se devia rir, gritar ou ficar catatónica.
Subi as escadas a correr, com uma energia e força que pareciam inesgotáveis.
Sem sequer parar para recuperar o fôlego, abri a porta. O Ira dissera que fora
enfeitiçada para abrir quando eu lhe tocasse, e não havia mentido.
— Antonio? — chamei, avançando pela sala. Havia uma vela a deitar fumo
na mesa ao lado da poltrona, como se alguém a tivesse apagado com um
movimento rápido. A minha mão voou para a minha adaga. O quarto não era
grande, apenas espaçoso o suficiente para acomodar uma cama, um pequeno
recanto de leitura e uma cortina que lhe concedia privacidade enquanto se
lavava e usava o bacio. Olhei para a cortina. Por detrás dela não ouvia som
algum. — Olá?
Uma pontada de mal-estar rastejou-me pela espinha enquanto me movia
lentamente em direção à cortina e ao que quer que estivesse escondido atrás
dela. Puxei-a para o lado e soltei um suspiro frustrado. Ali, ao lado de um jarro
e de uma bacia, estava outra caveira enfeitiçada. O meu batimento cardíaco
acelerou quando me aproximei dela, o meu corpo tenso, à espera de ouvir a sua
mensagem. Ganhou vida assim que eliminei a distância entre nós com um
último passo.
— Vem para as Ilhas Movediças, irmã. Temos muito que conversar sobre
como quebrar o resto da nossa maldição. As respostas aguardam a tua
chegada. Até lá. Recua.
Sem pensar, saltei para trás e a caveira explodiu numa nuvem de pó
brilhante, deixando apenas a mensagem arrepiante a ecoar-me nos ouvidos.
Permaneci ali parada, a respiração acelerada com a concretização do impossível.
A minha irmã estava mesmo viva.
A Vittoria sobrevivera.
Engasguei-me com a gargalhada demente que irrompeu da minha garganta.
A Vittoria podia voltar para casa. Poderíamos voltar para a Nonna e para os
nossos pais. Poderíamos cozinhar e rir-nos na Mar & Vinho. Retomar as nossas
vidas. Ainda podíamos ter o futuro com que havíamos sonhado. Juntas. E, se
por algum motivo ela não pudesse regressar ao mundo mortal, eu ficaria aqui. O
que quer que acontecesse, em breve estaríamos novamente reunidas.
Ela esteve aqui. Escapara-me por minutos, segundos.
O alívio foi-se lentamente transformando em algo mais sombrio. A Vittoria
esteve aqui, tão perto, e, no entanto, levou o Antonio e desapareceu sem me ver.
Deixou-me uma caveira enfeitiçada com uma mensagem. Como se estivesse
demasiado ocupada para se dar ao trabalho de fazer uma simples visita aos
meus aposentos. Ou para esperar que eu chegasse. Esta noite. Ela havia de ter
sentido a minha presença. E mesmo assim desapareceu. Como se eu e o meu
coração despedaçado não tivéssemos a mínima importância.
Eu passara meses perdida em fúria e vingança.
Meses de dor e de raiva.
De luto.
Tudo isto enquanto a minha irmã gémea estava viva. Bem. Melhor do que
bem se a sua poderosa nova magia servisse de indicação. A minha irmã gémea
andara a enfeitiçar caveiras. Deixando-as por aí como pistas mórbidas. Quando
tudo o que tinha de fazer era esgueirar-se para o meu quarto. Em vez disso
jogara comigo. Tentara quebrar-me.
E quase me transformara num monstro.
Inspirei fundo e depois libertei o ar, que me ardia como fogo nos pulmões.
As lições do Ira sobre o controlo das minhas emoções foram incineradas pela
minha fúria. A minha irmã gémea estava viva. Viera atrás do Antonio. E não
fora para o atacar ou para o fazer pagar pelo que ele fizera. Antes pelo contrário,
ele aparentava ter recebido uma bênção. Chamara-lhe o seu anjo. Como se se
tratasse do anjo da morte que ele mencionara naquela noite no mosteiro.
Pensara que ele se estivesse a referir ao Ira ou a algum outro príncipe do
Inferno. Se ele nunca havia matado a Vittoria, então isso significava que ele
nunca estivera sob a influência de um príncipe-demónio. Ainda não tinha
provas, mas tinha novas suspeitas.
Enganos. Mentiras. Traição.
Todas as palavras que associara aos Malditos, agora pertenciam à Vittoria.
Fora ela quem orquestrara tudo: uma dramaturga a criar a sua própria história
retorcida, distribuindo papéis a atores que não sabiam que o eram, incluindo eu
mesma. Mas eu fartara-me de ser um peão no seu jogo.
Não importava que o seu objetivo final fosse quebrar a maldição, ela não
tinha o direito de me mentir. De me deixar no escuro. Mas eu já não estava
coberta pelas sombras. Agora ardia de raiva.
Senti uma dor nas mãos e olhei para baixo, reparando nos pequenos cortes
que marcavam as zonas das minhas palmas em que cravara as unhas com tanta
força que rasgara a pele. Expirei, retendo, por fim, o fogo da minha raiva.
Tinha um novo plano, uma nova direção a seguir. Teria todo o gosto em fazer
uma visita à minha querida irmã. E não dependia de mim impedi-la de, muito
em breve, lamentar ter-me feito esse convite. Chegara a altura de a Vittoria
conhecer o monstro que ajudara a criar.
Girei sobre os calcanhares e dirigi-me para a porta. As Ilhas Movediças
aguardavam-me. Mas havia uma última coisa que tinha de fazer antes de
abandonar a Casa Ira.

Percorri os corredores enquanto a minha mente trabalhava a toda a


velocidade em estratégias e planos. Já não me importava quem começara o jogo.
As bruxas. Os Malditos. A minha irmã gémea. E todas as criaturas desprezíveis
e temíveis pelo meio. Se a minha irmã estava viva, isso punha em causa os
assassínios que haviam sido cometidos antes e depois do dela.
Estaria alguma dessas bruxas realmente morta, ou faria tudo parte de uma
conspiração maior para acumular mais poder ou transferi-lo? Não fazia ideia do
que havia a ganhar em orquestrar falsos assassínios, a menos que esperassem
incitar uma guerra entre reinos em vez de simplesmente quebrar a maldição. E
uma guerra era algo que eu me recusava a deixar que acontecesse. Fossem quais
fossem os esquemas da minha irmã gémea, iria proteger a minha família e o
mundo mortal a todo o custo.
A cada passo que me aproximava dos aposentos do Ira, tornava-se tudo mais
claro. Tomara a minha decisão. E o meu único arrependimento era o quanto
demorara a lá chegar.
Abri a porta com um pontapé e olhei em volta. A sala de receção estava
vazia, o fogo definhava. O Ira não havia posto os pés nos seus aposentos a noite
inteira. Devia ter começado a procurar-me pouco depois de eu ter saído. Mesmo
tendo duvidado dele, da bondade do seu coração. Da sua alma. Ele fora à minha
procura.
Tirando o meu manto, caminhei em direção ao quarto dele, peguei numa
garrafa de vinho de bagas demoníacas de uma prateleira e continuei em direção
à varanda. Ele conseguia detetar o meu paradeiro com maior ou menor precisão
através da nossa tatuagem. Não tinha a menor dúvida de que me encontraria em
breve. Saquei a rolha e bebi o vinho diretamente da garrafa enquanto
contemplava o lago.
A esta hora, as águas carmesins pareciam um charco de sangue derramado.
Era uma espécie de presságio. E, por uma vez, dei-lhe as boas-vindas.
Momentos depois senti a eletricidade que precedia a chegada do Ira. Um
fumo negro brilhante flutuou na minha direção através da brisa quando o rei dos
demónios se aproximou. A sua voz retumbou como um trovão no meu ouvido.
— Emilia.
Virei-me lentamente e observei-o. O perigo espreitava-lhe no olhar, a par
com o seu pecado homónimo. Mas ele não era o único que estava zangado. Só
que desta vez a minha ira não era dirigida a ele. Ele era o único que me
ancorava. Mergulhei na fonte da minha magia e libertei toda a raiva e fúria que
reprimira desde que vira a minha irmã gémea. O meu poder respondeu
imediatamente ao chamamento.
Levantei as mãos, o meu olhar fixo no rosto do Ira enquanto uma flor
ardente aparecia em cada uma das minhas palmas. Não houve nenhum clarão de
surpresa. Ele não estreitou os olhos nem cerrou o maxilar. Libertei o meu
controlo sobre o meu poder e deixei-o arder até que se extinguisse. As flores
adquiriram uma tonalidade carbonizada, as pequenas brasas cor-de-rosa a única
réstia de cor antes que a brisa transportasse as cinzas.
O Ira sabia que eu possuía este talento. Este poder. E ele nunca o revelara.
Quis descobrir que mais sabia ele sobre mim, que outros segredos ainda teria de
desvendar sobre o meu passado.
A Anciã dissera-me para resolver o mistério sozinha. E era precisamente
isso que eu tencionava fazer.
Talvez, apesar do que a Celestia dissera na sua câmara, eu fosse mesmo a
Primeira Bruxa, e este bloqueio nas minhas memórias fosse o preço que eu
pagara por ter usado magia das trevas. Decerto que isso explicaria o porquê de a
Nonna me ter advertido que me mantivesse afastada de certos feitiços.
Rangi os dentes, recordando a forma como ela nos fizera abençoar os nossos
amuletos a cada lua cheia. Saberia a verdade sobre a minha identidade? Tinha
de saber. A sua traição era profunda.
Talvez — contrariamente ao que a Nonna nos dissera sobre os nossos
amuletos nos protegerem do diabo — o meu cornicello, as suas asas, fosse
destinado a manter o meu poder sob controlo, não o dele. E se isso fosse
verdade, talvez o Ira os tivesse levado não só para seu benefício, mas também
para meu. Sem dúvida de que o meu poder se alterara desde a sua remoção.
— Há quanto tempo sabias que eu podia invocar o fogo? — Ele franziu os
lábios. Abanei a cabeça, soltando uma gargalhada amarga. — A minha irmã está
viva. Embora eu suspeite que também já soubesses disso.
Por fim, uma centelha de emoção reluziu-lhe nos olhos, mas ele
permaneceu em silêncio, vigilante. Em guarda. Como se eu fosse algo a temer.
Não estava errado.
— Quero respostas.
Não esperaria que a minha irmã gémea me desse a sua versão da verdade
quando a visse no dia seguinte. Queria ser eu própria a recolhê-la. Começando
agora. Olhei para o Ira. Certa vez, ele aconselhara-me a estudar os meus
inimigos atentamente. Para procurar quaisquer sinais da verdade nos seus
gestos. Até agora, ele não dissera uma palavra. E isso era invulgar.
— A julgar pelo teu silêncio, imagino que a maldição esteja de novo em
ação. Estamos a aproximar-nos de algo que não queres que eu descubra. — Um
brilho de aprovação bailou-lhe nos olhos. — Se eu aceitar o vínculo
matrimonial, tenho a estranha sensação de que parte disso irá mudar. Poderá não
ser o suficiente para quebrar a maldição por completo, mas acredito que existem
laços mais poderosos do que a magia das trevas. E não há nada mais perigoso
do que o amor, pois não? É algo por que lutar. Por que morrer. Por que ir para a
guerra e cometer atos de traição e todo o tipo de pecados em seu nome.
Eu, melhor do que ninguém, sabia-o. Estivera disposta a fazer coisas
terríveis para vingar a minha irmã gémea.
Algo semelhante a preocupação trespassou-lhe o olhar.
— Os sentimentos não são factos.
— Interessante.
Curvei a boca sedutoramente. O Ira acabara de mentir. Ou acercara-se da
mentira o mais que pudera.
Que a maldição fosse para o inferno, ele ainda queria que eu tivesse uma
escolha. Que aceitasse o nosso vínculo sem qualquer força exterior a interferir
no meu livre-arbítrio. O príncipe dos acordos estava disposto a perder, mesmo
tendo uma mão vencedora. E estava a fazê-lo por mim. Sempre por mim.
— Fala-me sobre os nossos amuletos, sobre as tuas asas. Quero saber o
verdadeiro motivo para eu e a Vittoria os termos usado. Era para manter os
nossos poderes contidos ou era, como dizia a minha família, para os esconder de
ti?
— Não tenho provas, mas creio que ambas são verdadeiras. Também tenho
andado a investigar a possibilidade de terem sido enfeitiçados para te fazer
esquecer de certas coisas.
— Fizeste-me usar o amuleto nos Baixios do Crescente para testares a tua
teoria. — Respirei fundo enquanto ele anuía em confirmação. Pelo menos a sua
expressão era de culpa.
— Esperava que as propriedades da verdade dos Baixios removessem
quaisquer bloqueios na tua mente. Não antecipei a reação extrema que te
causaram.
— Eles fecham mesmo os Portões do Inferno?
— Sim.
Dentro de mim, deixei escapar um suspiro de alívio. Pelo menos nem tudo o
que me haviam contado era mentira.
— Tenho uma última pergunta, Vossa Alteza. — Pousei a minha mão sobre
o seu peito e senti-lhe a firmeza do batimento cardíaco sob a palma da mão. Ele
olhou para aquele pequeno ponto de ligação antes de devolver a sua atenção aos
meus olhos. — Finge que não há maldição. Nenhum vínculo mágico. Nenhuns
impulsos românticos gerados pelo nosso vínculo. Escolher-me-ias? Para reinar
ao teu lado. Para ser a tua rainha. A tua amiga. A tua confidente. A tua amante.
— Emilia...
— Enganaste-me para que fizesse um acordo de sangue contigo antes de
atravessar para o submundo. Lembras-te do que me disseste? — Jurava que o
seu coração saltou um batimento antes de acelerar para um ritmo furioso. —
Disseste-me para nunca fazer um acordo com o diabo. «O que é dele, a ele
pertence.»
— Era uma forma de falar. Um acordo de sangue não equivale a posse.
— Talvez não, tecnicamente. — Deixei cair a mão e recuei um passo. —
Fizeste-o como outra forma de me protegeres. Caso eu não quisesse aceitar o
nosso vínculo. Afirmaste que nenhum outro príncipe do Inferno seria estúpido o
suficiente para te desafiar. Era a tua forma secreta de me ofereceres uma saída
para qualquer contrato com outra Casa demoníaca. O que incluía o pacto de
sangue que eu fiz com o Orgulho. Estou errada?
— Não.
— Não respondas agora, mas quero saber se manténs o que disseste na
altura.
— Terás de ser mais específica. Eu disse muita coisa.
— Se eu ainda sou tua.
Ele estacou. As minhas palavras pairaram entre nós, pesadas e persistentes.
Como o seu olhar.
— Se sou, dir-te-ei que tu és meu. Que te escolho como meu marido. Não
há mais ninguém com quem preferisse enfrentar os meus demónios, nenhuma
alma com quem atravessaria o Inferno. E mais ninguém que deseje que esteja ao
meu lado amanhã, quando for às Ilhas Movediças.
Ele ficou em silêncio durante um longo momento, como se estivesse a
medir a minha sinceridade e a pesá-la contra os seus próprios sentimentos.
— E se eu não precisar de tempo para pensar?
Graças à deusa.
Em silêncio, libertei o ar que estava a prender e saí da varanda para o seu
quarto, desapertando os atilhos da minha túnica enquanto passava por ele. Olhei
por cima do ombro e reparei, com satisfação, no desejo que lhe escurecia o seu
olhar enquanto eu fazia deslizar o tecido pelo meu corpo, deixando-o cair no
chão.
— Nesse caso, sugiro que venha para a cama, Majestade.
Agradecimentos

Escrever um livro durante uma pandemia global foi um autêntico


desafio, e estou imensamente grata às seguintes pessoas que me
encorajaram (e a esta história!).
Stephanie Garber — ser-te-ei eternamente grata por todas aquelas horas
de brainstorming e a esmiuçar cenas. Ainda mais do que isso, estou grata
pela nossa amizade fora do setor editorial.
Anissa de Gomery — a nossa amizade e o nosso amor por livros, comida
e todas as coisas românticas são as melhores, tal como TU.
Isabel Ibanez — fico tão feliz por poder chamar-te minha amiga.
Obrigada por leres o rascunho, por fazeres comentários excecionais, e por
teres literalmente ido mais além para me visitares com todos. (Menção
honrosa ao nosso grupo de almoço: Kristin Dwyer, Adrienne Young,
Stephanie Garber e a minha irmã Kelli!)
À minha família — o meu amor e apreço por vocês é imensurável. Um
agradecimento especial à minha irmã Kelli, pela leitura do rascunho e pela
sua loja (Dogwood Lane Boutique), que continua a inspirar muitos detalhes
nos meus livros.
Barbara Poelle, minha agente, amiga e eterna campeã, um grande viva a
mais uma DÉCADA de cumplicidade a cometer crimes editoriais.
Às minhas equipas na IGLA, Baror Intemational e Grandview —
Maggie Kane, Irene Goodman, Heather Baror-Shapiro e Sean Berard, um
milhão de obrigadas por tudo o que fazem.
À minha nova equipa na Little Brown Books for Young Readers e
NOVL, vocês assumiram esta série com emoção e entusiasmo, e o vosso
amor pelas personagens brilha mais do que a tatuagem metalizada do Ira.
Desde os meus editores ao departamento editorial, ao departamento de
marketing, ao departamento de distribuição e publicidade da biblioteca, ao
incrível departamento de produção, ao departamento de arte e aos
departamentos de vendas e direitos, ser-vos-ei etemamente grata por todo o
trabalho árduo que fazem nos bastidores.
Um agradecimento especial à minha editora Liz Kossnar por acolher
de braços abertos o romance neste livro; Virgina Allyn por criar o mapa
deslumbrante; Alvina Ling, Siena Koncsol, Savannah Kennelly, Stefanie
Hoffman, Emilie Polster, Victoria Stapleton, Marisa Finkelstein, Scott
Bryan Wilson, Tracy Shaw, Virgínia Lawther, Danielle Cantarella, Shawn
Foster, Claire Gamble, Karen Torres, Barbara Blasucci, Carol Meadows,
Katharine Tucker, Anna Herling, Celeste Gordon, Leah Collins Lipsett,
Janelle DeLuise, Elece Green, Michelle Figueroa, a narradora dos
audiolivros, Marisa Calin, e aos meus editores Megan Tingley e Jackie
Engel. Publicar um livro não é uma façanha pequena, e todos vocês
tornaram a magia possível durante uma pandemia.
JIMMY Patterson Books — ser-vos-ei sempre grata por tudo o que
esta equipa e James Patterson fizeram para ajudar a lançar os meus livros no
mundo.
À minha família do Reino Unido na Hodder & Stoughton — Molly
Powell, Kate Keehan, Maddy Marshall, Laura Bartholomew, Callie
Robertson, Sarah Clay, Iman Khabl, Claudette Morris e toda a equipa,
vocês são estrelas de rock e eu estou muito feliz por poder trabalhar com
todos vocês.
Aos livreiros, bibliotecários, livrarias independentes, bloguistas,
instagrammers, Bookish Box, FairyLoot, Librarian Box e aos adoráveis e
entusiastas fãs do BookTok — vocês são os verdadeiros criadores de magia.
Obrigada por falarem sobre estes livros, por os venderem pessoalmente e
por todo o «passa a palavra» imensamente positivo. Agradeço todos e cada
um dos vossos esforços mais do que alguma vez saberão. Desejo-vos de
volta a magia que ajudam a criar multiplicada por dez.

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