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— Está morta?
Demorei um minuto, mas reconheci aquela voz. O Anir. O vice humano do
Ira. O demónio respondeu com uma obscenidade que soou terrivelmente a,
Claro que não, idiota de merda.
— E que culpa tenho eu? Ela parece-me bastante morta. Talvez devesses
deixar o destino seguir o seu curso. Ninguém te irá culpar se o coração dela
parar. Nem sequer...
— Cuidado. Não me lembro de ter pedido a tua opinião.
Dedos insensíveis tatearam-me a garganta e agarraram-me o pulso. Tentei
sentar-me, mas estava presa a algo duro e imóvel.
— Majestade, devíamos alertar a matrona. Não creio que isto seja...
— Vai buscar numa chávena de água quente e mais cobertores. Agora.
Sentia a pele como se alguém me tivesse atirado para o fogo e impedido de
me afastar das chamas. Beber algo quente ou cobrir-me com um cobertor era a
última coisa que eu queria. Torci-me para me libertar das correntes e uma delas
soltou-se e alisou-me o cabelo para trás. Braços, não correntes. O Ira ainda me
segurava contra o seu corpo. Tentei abrir os olhos, mas não consegui. Ele deu
alguns passos e pousou-me cuidadosamente sobre um colchão. Pelo menos,
esperava que fosse isso.
O que significava... o coração palpitou-me no peito. Devíamos estar no
castelo do diabo. O pânico fez-me cravar-lhe as unhas nos braços enquanto ele
tentava afastar-se. Apesar da minha anterior bravata, não queria ficar sozinha
com o rei dos demónios. Pelo menos não desta forma.
— N-não... não...
— Não te mexas muito ou o teu coração pode parar.
A minha respiração saiu-me entrecortada.
— A t-tua forma de tratar um doente...
— É abominável? Não é por acaso que não sou curandeiro. Deixa as
reclamações para depois. Tens um caso ligeiro de hipotermia. —
Desembaraçou-se suavemente do meu aperto de morte e recuou. Podia jurar que
os seus lábios haviam roçado na minha testa ardente antes de se levantar
completamente da cama. Quando falou, o seu tom foi duro o suficiente para me
fazer questionar se imaginara o beijo. — Fica deitada.
Ouvi o som de tecido a ser rasgado. Abri os olhos de supetão enquanto o
choque me atravessava. O Ira estava curvado sobre o meu corpo, rasgando-me a
roupa congelada até ao meio como se não passasse de um pedaço de
pergaminho. As saias, a camisa, o cinto. Mais alguns rasgões e o ar fresco
percorreu-me a pele em chamas.
Quase gemi de prazer enquanto ele me tirava a roupa molhada e a atirava
para bem longe. Nem sequer me importei de estar nua diante do demónio. Outra
vez.
Quis arrancar a minha carne com as unhas e mergulhar o corpo numa
banheira de gelo. O que era estranho, tendo em conta que estivera a congelar
ainda havia pouco tempo. Os meus olhos fecharam-se e, por muito que tentasse,
não conseguia reabri-los. Imagens estranhas passaram-me pela mente.
Memórias difusas e fragmentadas atravessavam um nevoeiro denso, o possível
resultado de um cérebro moribundo. Ou talvez fossem visões de um futuro que
eu nunca conheceria a escarnecer de mim. Estátuas e flores. Fogo. Corações em
frascos, uma parede de crânios.
Nada fazia sentido.
— Emilia... fica comigo.
O Ira pegou-me na mão e massajou gentilmente todos os meus dedos para
lhes infundir calor. Se estava a tentar manter-me acordada, não estava a resultar.
Uma paz sonolenta abateu-se sobre mim e relaxei sob as suas carícias enquanto
as memórias e imagens estranhas se dissipavam. Ele deslocou os seus
movimentos delicados dos meus dedos para o pulso e depois subiu lentamente o
meu braço até ao cotovelo, antes de passar para a minha outra mão.
Assim que terminou de devolver a vida aos meus dedos, foi mais para o
fundo da cama. Com uma mão, levantou-me a perna pelo tornozelo e com a
outra trabalhou em devolver-me a sensibilidade aos dedos dos pés, tal como
fizera aos meus dedos. As pontas dos seus polegares deslizaram pelo arco do
meu pé, e soltei um gemido suave enquanto ele aplicava a pressão certa para
aliviar a dor que ali sentia.
Alguém bateu à porta e o Ira ordenou que deixasse tudo lá fora. Passos
soaram pela sala, uma porta a abrir-se e a fechar-se, e depois o Ira voltou para
perto de mim e cobriu-me gentilmente o corpo com o tecido mais macio em que
eu alguma vez tocara.
Contive um grito. Senti-me como se ele me tivesse encharcado com parafina
e acendido um fósforo. Afastei o cobertor ao pontapé e recebi um rosnado de
frustração por parte do demónio.
— Pára. — Ele forçou-me a deitar-me e voltou a embrulhar-me no cobertor.
Um instante depois, senti um peso a pousar ao meu lado. Dois grandes braços
envolveram-me e puxaram-me para mais perto de si, o seu queixo repousando
na minha cabeça. Ele arrastou uma perna sobre a minha anca, reforçando a
nossa ligação.
Ele era fogo. E eu já estava a arder. Tentei rebolar para longe dele, apontando
para o chão. Queria rastejar para debaixo do soalho e afundar-me na terra como
um animal em hibernação. O aperto do Ira nunca vacilou; estava presa contra o
seu corpo. E com a sua força sobrenatural, não havia esforço da minha parte
capaz de quebrar o seu domínio. O meu instinto de sobrevivência entrou em
ação — tornei-me um gato selvagem a arranhar quem quer que estivesse a
tentar enjaular-me.
Os braços do Ira eram barras de aço.
— Larga-me.
— Não.
— O teu criador não te ensinou a forma correta de tratar uma mulher?
— Sobrevive à noite e aí respeitarei os teus desejos — atirou ele.
— Não estás a perceber... — Estava louca de raiva e desconcertada com a
necessidade de me mexer. Os seus braços apertaram-se em torno de mim, mas
nunca de forma dolorosa. — Preciso de estar no chão. Tenho de ir para o
subsolo agora.
— É um sintoma comum de hipotermia. Passará quando voltares a ficar
estável. — Deslizou um braço por atrás dos meus ombros e inclinou-me para
cima. — Bebe isto. Agora.
O seu tom indicava que me apertaria o nariz e obrigar-me-ia a engolir se não
obedecesse. Decerto que não era o mais delicado dos enfermeiros. Tomei um
gole do líquido quente e suprimi um grito. Estava tudo demasiado quente. O Ira
voltou a deitar-me numa almofada e puxou outro cobertor sobre mim. Era leve
como uma pena, mas doía terrivelmente. A dor intensificou-se até me toldar os
sentidos.
Cerrei os dentes, tentando deter a tagarelice. Felizmente, apenas momentos
depois de beber o líquido, entrei e saí de diferentes graus de consciência.
Perguntei-me se ele teria posto algo na bebida para me causar sonolência, mas
não consegui reunir energia suficiente para me sentir ameaçada. Se ele me
quisesse morta, ter-me-ia deixado à mercê da natureza.
Algum tempo depois, um movimento arrancou-me da minha batalha febril
contra a lucidez. Esquecera-me de onde estava. Com quem estava. Uma luz
quente emoldurava uma grande silhueta em ouro.
Olhei furtivamente, perguntando-me quem teria enviado um anjo. Depois
lembrei-me. Se o ser celestial que olhava para mim alguma vez fora um anjo,
agora era algo diferente. Algo a temer e a evitar. Algo que fazia os corações
disparar e os joelhos tremer.
Era tão proibido como o fruto oferecido a Eva, mas, de alguma forma, ainda
mais tentador.
Num estado onírico, vi o Ira ocupar-se das tarefas mais peculiares. Encher
uma chávena de líquido quente. Ajudar-me a bebê-lo até que um calor suave se
espalhasse lentamente pelo meu corpo. Tranquilo e relaxante, um tremendo
contraste com o inferno que sentira antes. Aconchegou-me com mais
cobertores. Atirou lenha para a enorme lareira diante de uma cama feita de
meia-noite. Os lençóis eram brancos e prateados como estrelas-cadentes. Eram
estranhamente familiares, embora eu nunca os tivesse visto.
A dada altura, virei-me para o encarar e reparei numa camada de suor que
reluzia na pele nua. Durante a noite retirou os dois amuletos. Também se pusera
debaixo dos cobertores, os seus braços à minha volta num abraço confortável e
o calor do seu corpo alimentava o meu. Ele era extraordinário. E não tinha nada
que ver com a sua aparência física.
Olhei-o nos olhos. Manchas pretas salpicavam-lhe as íris douradas como
pequenas estrelas que lhe rodeavam as pupilas. Ele observou-me enquanto lhe
inspecionava as feições, o seu olhar examinando-me o rosto com a mesma
intensidade. Quis saber o que ele via quando olhava para mim, o que sentia.
— Por vezes — a minha voz saiu rouca e suave —, por vezes acho que
quero ser tua amiga. Apesar de tudo o que aconteceu no passado. Talvez
aliarmo-nos um ao outro, as nossas Casas, possa ser algo a considerar.
O seu maxilar apertou-se, como se a mera ideia de amizade ou de uma
aliança fosse aterradora.
— Descansa.
O fogo agora ardia fulgurante na sala. As minhas pálpebras fecharam-se
como se eu assim lhes tivesse ordenado. O mundo tornou-se uma nevoa.
— Ira... — Queria dizer «obrigada», mas o sono roubou-me as palavras.
Ele falou em sussurros e muito suavemente. Afastou-me o cabelo do rosto
com a sua enorme mão tatuada. Foi como se estivesse a partilhar um segredo
comigo, algo vital. Tão importante que iria mudar a minha realidade para
sempre. Aproximei-me dele, esforçando-me para o ouvir. A sua voz ressoou
através de mim como uma tempestade distante que tentava despertar algo antes
que voltasse a dormir.
Não consegui reter nada e voltei a adormecer.
Quando acordei na vez seguinte, o lado da cama do Ira estava vazio. Sem o
seu enorme corpo e o seu constante olhar atento ou o seu cuidado não-tão-
gentil, o quarto parecia demasiado grande.
Um quarto.
Deixei sair um suspiro e fiquei imediatamente alerta. A pior parte do meu
estado de delírio desaparecera e a realidade foi como uma montanha a desabar
sobre mim. O Ira levara-me para... Não tinha a certeza. No dia anterior não
conseguira ver bem onde estava. Esfreguei os vestígios de sono dos olhos e
olhei para cima, onde vi superficialmente umas constelações. Muito inesperado.
Pestanejei. Tinham pintado o teto para que se parecesse com um céu cheio
de estrelas. Mas isso também não era inteiramente verdade. Após uma inspeção
mais atenta, vi que as constelações eram, na realidade, pequenas luzes que
emitiam um brilho suave num teto pintado de um tom de azul-escuro.
Olhei em torno do quarto. Era enorme. Elegante.
As paredes eram de um branco puro como a neve, com painéis repletos de
molduras decorativas, e a enorme lareira do outro lado da cama era debruada a
prata, a sua superfície brilhante refletia as chamas. Um espelho gigante,
ornamentado, estava pendurado por cima. Havia castiçais de prata em cada lado
da lareira e outro conjunto idêntico na parede atrás da cama. Fiquei
surpreendida por ver prata e não o ouro que era característico do Ira, embora
suspeitasse de que o metal fosse, na realidade, ouro branco.
Um tapete azul-escuro correspondia à sombra exata do teto, e a cama
parecia ter sido esculpida a partir da mesma pedra preciosa que rodeava os
Portões do Inferno. Sobre a carpete escura encontrava-se um tapete amarelo
tecido com fios de ouro.
Todos os tecidos eram macios, luxuosos e emitiam um ligeiro odor a ar
fresco de inverno e almíscar.
No outro extremo do aposento, um conjunto de cadeiras de cristal e uma
mesa a condizer estavam dispostos, com bom gosto, num canto. Se as suas
extremidades não estivessem a reluzir devido ao fogo, poderia tê-las ignorado
por completo. Ao lado da lareira havia um enorme armário de madeira escura,
alto e imponente. Nas portas, estavam esculpidas pequenas flores, estrelas e
cobras. Os puxadores tinham a forma de luas crescentes. Fizeram-me lembrar
um símbolo de deusa tripla incompleto. Ao lado do guarda-roupa havia uma
porta que conduzia a uma outra divisória ou a um corredor.
Isto era muito diferente do palácio abandonado que o Ira mandara
reconstruir na minha cidade.
Virei-me. À minha esquerda, outra porta conduzia a uma casa de banho, se
os salpicos de água fossem algum indício. Ao lado encontrava-se pendurada
uma grande tela. A moldura era prateada e tão ornamentada como o espelho
sobre a lareira, e devia ter custado uma pequena fortuna.
O próprio quadro parecia uma floresta encantada saída diretamente das
páginas de um conto de fadas. Verdes mudos e castanhos profundos davam vida
à paisagem. Um motim de flores escuras pontilhava o primeiro plano. As
trepadeiras rodeavam os enormes troncos de árvores.
As árvores frutíferas exibiam iguarias maduras, desde maçãs a enormes
romãs repletas de sementes e vários citrinos. A névoa pairava sobre o solo perto
do centro e a geada cobria as pétalas das flores à direita. A paleta que o artista
utilizara era escura, mas suave. Era uma cena vívida, mas congelada. O verão
habitava num dos lados e o gelo do inverno banhava o outro.
Era um jardim sazonal diferente de tudo o que eu alguma vez tivesse visto
na vida real. Senti uma súbita vontade de procurar o artista que o pintara,
curiosa quanto à inspiração por detrás de uma peça tão única. Se fosse baseado
num lugar real, desejava visitá-lo. Mas primeiro...
Olhei rapidamente para mim própria. O Ira arrancara-me a única roupa que
eu tinha no corpo na sua frenética tentativa de me aquecer, e só a deusa sabia
onde estava agora. Suspirei e puxei os lençóis para cima, atando-os numa
tentativa de vestido improvisado.
Alguém aclarou a garganta.
A minha pulsação acelerou e isso deu-me uma boa ideia de quem era antes
de olhar para ele. O meu ritmo cardíaco disparou para um ritmo
inacreditavelmente elevado no momento em que os nossos olhares se cruzaram,
recusando-se a deixar um ao outro.
Encontrava-me em clara desvantagem. E tencionava remediá-lo de imediato.
O Ira estava encostado à ombreira da porta, o cabelo escuro despenteado e
húmido, o novo fato engomado na perfeição, a sua expressão a roçar a
contemplação. Ele sondou-me lentamente; o seu olhar era aguçado e a sua
avaliação clínica. Trazia um roupão cor de ébano bordado com flores silvestres
pendurado na ponta dos dedos.
— Estás acordada.
— Que observador.
— Sê simpática — disse ele. — Sou eu que tenho o teu roupão. A minha
atenção deslizou para a peça em questão.
— Onde estamos?
— Num quarto, ao que tudo indica.
Nunca se cansava de ser um idiota.
— O teu? — indaguei.
Ele abanou a cabeça, sem desenvolver. Contei até dez em silêncio. O Ira
esperou, e um dos cantos da sua boca retorceu-se para cima, como se irritar-me
fosse o seu passatempo preferido.
Se discutir fosse o seu desejo, teria todo o gosto em fazê-lo. Até me lembrar
do que ele dissera sobre a raiva ser um afrodisíaco. Mordi a língua.
— Estamos na Casa real do Orgulho?
— Não. Esta é a Casa Ira.
— O contrato...
— Queres ir para lá? — Ele teve o cuidado de manter o tom neutro.
Algo na questão me pareceu uma armadilha, e tão cedo não pretendia cair
em nenhuma cilada demoníaca, ou melhor, nunca. Engoli com força.
— Fiz um juramento de sangue.
— Isso não responde à minha pergunta.
Como se ele respondesse a todas as minha. Decidi imitá-lo e atirei-lhe uma
pergunta de volta.
— O que é que isso importa? Assinei o contrato. Está feito.
— Queres ir para lá? — repetiu. Claro que não queria ir para lá e não queria
ficar onde estava. Queria fazer o que viera ali fazer e voltar para casa. Quanto
mais rápido melhor. Apertei os lábios, não querendo responder em voz alta, e
forcei-me a pensar em algo agradável. Ele sentia as emoções e as mentiras. E eu
possuía uma teoria que tinha de testar. Ele semicerrou os olhos enquanto
examinava a minha expressão em busca da verdade oculta. — Isso é um sim?
Assenti.
Um raro acesso de emoção atravessou-lhe o rosto, mas ele recompôs-se
rapidamente e atravessou a sala em poucos e grandes passos. Se não estivesse a
olhar tão fixamente para ele, teria perdido aquela reação, que desaparecera tão
rapidamente como um relâmpago. Agora, a raiva brilhava-lhe nos olhos. Uma
máscara para cobrir a sua dor.
— Não te preocupes. Quando o meu irmão fizer uma pausa nas suas
constantes festas e depravações, e quando o seu maldito orgulho finalmente se
render o suficiente para me deixar entrar no seu detestável domínio, cumprirei a
minha parte do acordo.
Estava certa de que todos os domínios eram detestáveis à sua própria
maneira, mas não me dei ao trabalho de o mencionar.
— Temos de ser convidados?
— A menos que queiras dar início a uma rixa entre as nossas Casas, sim.
Arquivei a informação na minha mente. A rixa entre os príncipes iria decerto
criar uma distração bem-vinda de atividades aparentemente mais inócuas, como
mexericos.
— Se entrares no seu território sem o seu consentimento, ele considerá-lo-á
uma ameaça? Ainda que fosse para lhe cumprires a vontade?
O Ira anuiu.
— Isso não faz muito sentido. É porque ele é rei e quer recordar-te do teu
lugar?
— Por estes lados, a pretensão real é o passatempo preferido de alguns.
O que não respondia propriamente às minhas perguntas. Príncipe Ira, um dos
temidos e poderosos Sete, general de guerra e mestre da evasão. Uma ideia
ardilosa assaltou-me a mente. Tentei fazer com que as minhas feições exibissem
desinteresse e escondi o meu sorriso. O Ira tinha muitas máscaras no seu
arsenal. Chegara o momento de acrescentar algumas à minha própria coleção.
— Na qualidade de sua noiva, e se decidir ir sozinha ao seu encontro? Não
serei, tecnicamente, integrante da Casa Orgulho? Se assim for, não vejo como é
que essa regra se pode aplicar a mim, a menos que ele ainda seja devoto à sua
primeira esposa, o que não pode ser verdade se ele for tão libertino como dizes.
Estou certa de que me acolheria no nosso leito matrimonial.
Duvidei que o Ira tivesse reparado, mas a sala arrefeceu um bocadinho.
Tocara num ponto sensível.
— O Orgulho dar-te-á as boas-vindas a ti e a qualquer pessoa por quem se
sinta fascinado para a sua cama. Todos ao mesmo tempo, se ele assim o desejar
e se tu o permitires nas noites que passares com ele. Embora sugira que finjas
que ele é o melhor amante do universo; caso contrário, ofenderás o seu pecado
epónimo e darás por ti sozinha.
Fiquei tão aturdida que me esqueci das sementes da discórdia que tentara
plantar.
— Não podes estar a falar a sério. O Orgulho quereria partilhar a nossa
cama com outra pessoa? Comigo presente? Não compreendo.
O Ira hesitou por um minuto.
— Há certas ocasiões em que o meu irmão aprecia a companhia de
diversos amantes.
— Ao mesmo tempo? — Senti as faces a arder enquanto ele anuía
lentamente.
— Aqui, o sexo não é visto como vergonhoso ou pecaminoso, Emilia.
Atração e desejo fazem parte da ordem natural da vida. Os mortais impõem
restrições a tais coisas. Os príncipes do Inferno não.
— Mas o Luxúria... a sua influência. É considerado um pecado, até aqui.
— O meu irmão brincou sobretudo com a tua felicidade, com coisas que
provocam todo o tipo de prazer e alegria, e não apenas impulsos carnais. Ser
testado ou empurrado para uma determinada emoção, por norma, significa que é
algo com que este reino sente que tens um problema. — Ergueu a cabeça. — Se
tens interesse em sexo, mas temes paixão ou intimidade, podes experienciar um
grau mais elevado de desejo sexual até ultrapassares o que te perturba em
relação a isso. Qual deles te intimida?
Engoli com força, desconfortável com o tema do prazer quando me
encontrava sozinha com o Ira, nua sob os lençóis de seda.
— Nenhum. E isso não é da tua conta. Falar sobre o que farei ou não com
o meu marido é impróprio. Sobretudo contigo.
O Ira atirou o roupão para o meu lado do colchão e continuou a mostrar a
sua expressão fria.
— De nada por te ter mantido viva. Pelas minhas contas, já é a segunda vez.
E também ainda não vi nem uma pontinha de gratidão.
O seu tom fez ferver o meu sangue. Perguntei-me se ele sabia que a sua
magia estava a infiltrar-se e a afetar-me muito. Talvez o facto de estar dentro da
sua casa exacerbasse a minha fúria, juntamente com a perceção de que eu era
terrivelmente inexperiente em certas áreas. Não pensara em dormir com o
Orgulho, nem tinha considerado quaisquer outros deveres de esposa que
pudesse ter de desempenhar. Senti-me como uma tola, encurralada. A minha
fúria crescente precisava de uma saída, e o Ira parecia-me o mais adequado.
— Exiges sempre algum tipo de agradecimento generoso quando fazes algo
decente? Começo a acreditar que o teu pecado é, na verdade, o orgulho, não a
ira. É evidente que possuis um ego frágil. Talvez devesse rastejar aos teus pés
ou organizar um desfile em tua honra. Isso iria satisfazer-te?
— Cuidado, bruxa.
— Se não o quê? Venderás a minha alma a quem der mais? — escarneci. —
Tarde demais. Não esqueçamos que, se não fosse por ti e pelo teu engano, eu
nem sequer estaria aqui, quase a congelar até à morte, ou a preocupar-me com
ter de dormir com o teu irmão e com quem quer que ele convide para o nosso
leito!
— Tu escolheste a Casa Orgulho.
— Porque é que ainda estás aqui sequer? Julguei que partirias no instante em
que recebesses a tua liberdade. Já não me atormentaste o suficiente? Ou o teu
dever apenas ficará completo quando o meu casamento for consumado? Se é
disso que estás à espera, decerto que o Orgulho te convidará a entrar no quarto
para o testemunhar, garantindo que eu me recoste e aguente como uma boa
rainha.
Se o ódio pudesse ser capturado num olhar, o Ira dominá-lo-ia.
— Tens roupa para ti no guarda-roupa. Veste o que quiseres. Faz o que
quiseres. Vai para onde quiseres dentro deste castelo. Se decidires deixar a Casa
Ira, boa sorte. Voltarei quando o Orgulho me convocar. Até lá, boa noite, minha
senhora.
Ele abandonou o quarto. Os seus passos soaram noutra divisão antes de uma
porta se abrir e se fechar e eu os ouvir a ressoar pelo corredor. Soltei um suspiro
frustrado.
Aquele demónio inflamava a minha raiva como nenhum outro.
Como se atrevia a exigir a verdade quando não me oferecia nada em troca?
Esperei que a minha pulsação acalmasse. Sentia-me grata por tudo o que ele
fizera na noite anterior. E, se ele me tivesse dado uma oportunidade, ter-lhe-ia
dito que apreciara os seus esforços. Não havia necessidade de me ter massajado
os pés. Aquilo não tivera nada que ver com queimaduras do frio, mas tudo que
ver com ternura.
— Que a deusa nos amaldiçoe a ambos — suspirei. Não tencionara ficar
tão zangada ou explodir por causa da caverna, mas aqueles sentimentos tinham
vindo a apodrecer. A melhor coisa a fazer era abrir a ferida e desfazer-me desse
peso.
Apesar da progressão tensa da nossa discussão, a minha pequena
experiência fora parcialmente bem-sucedida. O Ira apenas conseguia detetar
com certeza uma mentira quando eu falava. Mais um truque a acrescentar ao
meu arsenal.
Olhei para a porta e considerei persegui-lo para lhe torcer o pescoço ou
beijá-lo de forma insensata, mas reprimi esses impulsos. Para descobrir a
verdade do que acontecera à Vittoria, teria eventualmente de me desvincular
dele. E mais valia começar aqui e agora. Não conhecia todas as regras e
cerimonial do reino demoníaco, mas pelo menos agora sabia que os príncipes
não invadiam os domínios reais uns dos outros. Assim que partisse para a Casa
Orgulho, o Ira e eu nunca mais nos voltaríamos a ver. Pelo menos, não por
algum tempo.
Minha senhora.
Que disparate.
A minha atenção voltou-se para o roupão, e uma estranha sensação fez
disparar o meu coração. Não reparara quando o demónio o segurara, mas as
flores bordadas combinavam com as nossas tatuagens.
A tinta lavanda-pálida simbolizava um compromisso entre nós que eu
havia assumido involuntariamente quando o convocara pela primeira vez. Ele
havia percebido de imediato o que eu fizera e não se dera ao trabalho de me
dizer a verdade. Descobrira-o semanas depois através do Anir, na noite em que
havíamos encontrado outra bruxa assassinada num beco. O Ira jurara que me ia
contar, que tinha aguardado que confiássemos um no outro para revelar o nosso
casamento iminente, mas eu tinha certas dúvidas.
Tudo o que ele fazia era calculado. Cada movimento era estratégico. Havia
jogos que ele ainda estava a jogar e planos secretos que eu nem sequer
começara a decifrar. Talvez estivessem relacionados com o assassínio da minha
irmã, talvez não. Por mais zeloso que fosse com os seus segredos, iria descobrir
o que ele realmente andava a tramar. Por muito zelosamente que guardasse os
seus segredos, eu descobriria do que ele realmente andava atrás, de uma forma
ou de outra. Se aprendera alguma coisa sobre ele, era que estava disposto a ir
até ao fim para conseguir o que queria.
Olhei para o meu braço tatuado. Julgara que as tatuagens coincidentes
desapareceriam quando lançasse o meu feitiço de libertação naquela noite. Mas
não.
Apesar da magia quebrada, continuavam a crescer como sementes plantadas
e tratadas. Bocados de ambos alimentavam o desenho: as suas serpentes, as
minhas flores, as duas luas crescentes no interior de um anel de estrelas. Eram
uma recordação constante da minha inexperiência e das suas mentiras por
omissão.
Tracei os delicados caules e pétalas replicados no roupão, tecido sedoso e
fresco. Era bonito; exatamente o que eu escolheria se tivesse recursos
suficientes para adquirir uma peça de vestuário tão fina. Ele sabia-o. Ele
conhecia-me.
Talvez mais do que eu estava disposta a admitir. E, no entanto, ele
permanecia um mistério para mim.
Peguei no roupão, levantei-me da cama e fiquei nua ante o fogo a crepitar.
Estivera tão perto da morte havia horas, e a minha pele queimara com o gelo,
não com o fogo. E o Ira ficara ao meu lado a noite toda, embalando-me contra o
seu próprio corpo. Um corpo que não era frio como gelo, como a Nonna
costumava afirmar quando contava as suas histórias sobre os Malditos. Ele
podia ter delegado a tarefa a um dos seus curandeiros reais.
Também podia ter-me deixado morrer, como sugerira o Anir. Mas não o
fizera.
Ergui o tecido até ao rosto, inspirando o aroma persistente do Ira, e depois
atirei-o diretamente para as chamas.
Capítulo 5
— Não. Recuso-me. — Desta vez o meu tom era de aço. — Disseste que
teria sempre uma escolha.
A sua expressão tornou-se gélida.
— Dadas as tuas ações mais recentes, começava a pensar que te tinhas
esquecido dessa conversa.
— Queres discutir o que aconteceu na gruta agora?
— Nem por isso, não.
— Teremos de o fazer pela certa, por isso agora é um momento tão bom
como qualquer outro.
— Tudo bem. — Ele cruzou os braços diante do peito. — Podes começar
por explicar a tua decisão.
Ele falava como se eu realmente tivesse tido escolha, a sua voz tingida de
raiva mal reprimida. Fiquei tão surpreendida que dei um passo atrás e estudei-o
atentamente. Um músculo no seu maxilar tremeu e o seu olhar era duro o
suficiente para fazer inveja aos diamantes. O Ira não estava apenas zangado,
estava furioso. Quase conseguia sentir o calor da sua fúria a invadir o espaço
entre nós.
De repente tornou-se claro.
— Tu querias que eu rejeitasse o Orgulho.
— Eu não disse isso.
— Não foi preciso. — Por uma vez, as suas emoções estavam-lhe escritas
por todo o rosto. A minha surpresa deu logo lugar à irritação. Se ele me tivesse
dito a verdade naquela noite, as coisas teriam sido muito diferentes. Poderíamos
ter arranjado um novo plano. Juntos. A raiva soltou-me a língua. — Diz-me
porquê. Eu exijo saber por que razão querias que eu o recusasse.
— Pára de insistir, Emilia. Esta conversa acabou.
— Não, não acabou. Ele vai magoar-me?
As prateleiras mais próximas de nós agitaram-se.
— Julgas que eu o permitiria?
— Não sei — respondi honestamente. — Não sei o que é real, o que é
fantasia ou parte do teu último plano. Trouxeste-me aqui, para este reino, para
casar com o teu irmão.
— Não confundas as tuas escolhas com as minhas ações.
Como se alguma vez tivesse sido uma escolha justa.
— Esperavas que ficasse em casa a assistir enquanto os demónios destruíam
o meu mundo? Enquanto assassinavam ou torturavam a minha família e amigos
e continuavam a arrancar os corações às bruxas? Insistes em dizer que foi uma
escolha minha, mas não é verdade.
— Há sempre uma escolha.
— Não quando os ponteiros do relógio estão a contar e as portas a rachar.
Assinar o contrato com o Orgulho foi a minha melhor opção para parar a
carnificina. Tomei uma decisão com base na informação que tinha. Se cometi
um erro ou se estás infeliz, seja porque for, talvez devesses ter falado comigo
naquela noite. Em vez disso, limitaste-te a ficar parado, distante e zangado, e
não disseste uma palavra!
Os seus olhos dourados semicerraram-se.
— Alguma vez te passou pela cabeça que eu não podia?
— Que não podias o quê? Falar comigo?
— Interferir.
— Por magia ou por édito demoníaco? — Procurei-lhe uma resposta no
rosto, mas ele substituíra a sua irritação por aquela máscara sem emoção que
usava tão bem. Controlei o meu temperamento, não querendo discutir. — Pensei
que o diabo era o único que estava amaldiçoado. Está a insinuar que isso não é
verdade? Há alguma coisa que eu deva saber sobre ti?
Ele apertou as mãos em punhos ao lado do corpo. Parecia querer mergulhar
de cabeça em algum combate e libertar a sua frustração.
— Talvez essa fosse uma pergunta que devesses ter feito à tua família
mortal. Sem dúvida que eles parecem ter algumas lacunas seletivas nas suas
histórias. Alguma vez te perguntaste porquê, bruxa?
— Como te atreves a falar da minha família...
O Ira desapareceu magicamente numa nuvem de fumo, deixando-me
hesitante, confusa. A minha família não tinha segredos. Ao longo das nossas
vidas, a Nonna partilhara connosco histórias sobre os Malditos, as suas mentiras
e manipulações. Advertira-nos contra as artes das trevas e o preço que tal magia
exigia. Tudo isso era verdade.
Percorri o corredor forrado de livros. O Ira, ou estava enganado, ou a mentir,
ou a omitir parte da verdade. A Nonna contara-nos sobre a dívida de sangue
entre a Primeira Bruxa, La Prima Strega, e o diabo; contara-nos sobre o
sacrifício de sangue exigido pelo roubo.
Os dois amuletos que eu e a minha irmã havíamos recebido à nascença eram
afinal o Chifre de Hades. Os seus chifres. O Ira levara-os na noite em que me
entregara o contrato do Orgulho. Usara-os para fechar os Portões do Inferno, tal
como tinha prometido.
A fúria cresceu em mim, mas depressa deu lugar à confusão. A Nonna sabia
das Bruxas das Estrelas e dos chifres do diabo e não nos dissera nada.
Soubera dos chifres no diário da minha irmã e sobre as Bruxas das Estrelas
pelo Ira e pelo Inveja, embora não tivesse sido esse o nome que eles haviam
usado. O Inveja chamara-me uma bruxa das sombras.
A Nonna não havia admitido de imediato nenhuma das duas quando eu a
confrontara.
O que me levava a pensar em quantas mais coisas ela teria escondido.
Aprendêramos com ela o mínimo de magia da terra; como lançar feitiços
simples com a ajuda de ervas e objetos de intenção. Encantamentos protetores.
Feitiços para dormir e feitiços inofensivos para manipular o orvalho no cristal e
fazê-lo deslizar sobre a superfície. Coisas que requerem pouca habilidade.
Uma frase ou palavra em latim aqui, uma pitada disto ali e tínhamos um
feitiço, com a ajuda do nosso sangue mágico. O que mais havia para saber sobre
a maldição que eu não sabia?
Ou sobre a nossa magia, já agora.
Andei em círculos, agitada. Agora que estava a questionar as coisas,
continuava a encontrar cada vez mais lacunas nas nossas vidas. A Nonna
passara tanto tempo a ensinar-nos como os demónios se comportavam, apenas
para nos atrasar na educação das nossas próprias capacidades. Não pude deixar
de pensar se haveria alguma razão por detrás disto.
A Nonna era demasiado inteligente para se ter esquecido de lições valiosas.
A magia ofensiva era certamente tão importante como os nossos feitiços
defensivos e protetores, certo? Mas ela nunca nos havia ensinado aqueles
feitiços mais ousados. Na verdade, parecia determinada a afastar-nos dessa
magia a todo o custo. Seria perigoso para nós usá-la? A Vittoria e eu tínhamos
sido aconselhadas a ouvi-la, a obedecer e a seguir as regras ou a sofrer as
consequências. Eu nunca quisera irritar a Nonna ou causar qualquer dano.
Mas a Vittoria brincava sempre com os limites, sem medo das
consequências.
O comentário mordaz do Ira cortara-me a fundo, infetara-me. E fora essa a
sua intenção. O seu arsenal não se limitava a aço, balas, sorrisos manhosos e
beijos intoxicantes. As suas palavras eram igualmente mortíferas quando
apontadas e disparadas contra um alvo. E eu não conseguia apagar a sensação
irritante de que talvez ele estivesse certo.
Havia buracos na minha educação que eu não podia ignorar.
Alguns feitiços vinham até mim facilmente, como se fossem memória
corporal. Alguns tivera de aprendê-los e quase sempre os esquecia. Não me
conseguia lembrar onde ou como havia descoberto o feitiço da verdade, apenas
que um dia eu quisera saber a verdade e lançara um feitiço que roubava o livre-
arbítrio. A Nonna havia ficado furiosa quando eu lhe contara. Em vez de ser
recompensada por usar esse nível de poder, havia sido castigada.
Fiz o caminho até ao fim das prateleiras e encontrei uma cadeira enorme e
luxuosa para me sentar. Um pensamento de que não consegui escapar seguiu-
me até lá. Talvez o Ira não se tivesse referido apenas à Nonna.
A minha irmã encontrara o primeiro livro de feitiços, usara magia demoníaca
para selar o seu diário e reunira-se com o Ganância e os metamorfos por razões
que eu não conseguia entender, dado que os metamorfos e os demónios eram
inimigos naturais. Olhei para o meu dedo e fiquei surpreendida por ver que
ainda estava a usar o anel de ramos de oliveira que o Ira me oferecera. Perdida
em pensamentos, rodei o aro de ouro à volta do dedo. Perguntei-me o que mais
poderia a Vittoria ter descoberto antes de morrer. Poderia ter sido toda a verdade
sobre a maldição do diabo e a dívida de sangue? Talvez esse conhecimento,
mais do que qualquer outra coisa, tivesse sido a verdadeira razão pela qual ela
fora assassinada.
Algo enterrado no fundo da minha memória se contorceu e depois voou
para longe. Um sopro de fumo que não consegui conter. Deu-me a estranha
impressão de que talvez o diabo não tivesse sido amaldiçoado de todo.
Se isso fosse verdade... então talvez os assassínios daquelas bruxas não
tivessem nada que ver com a sua procura de uma noiva, e tudo o que eu pensava
saber fora criado de um engano. A Nonna. A Vittoria. Os sete príncipes do
Inferno. Pelo menos um deles andara a mentir-me.
E eu estava mais determinada do que nunca a descobrir o porquê.
Voltei a lê-lo, embora isso não me tenha ajudado a decifrar a frase. Imaginei
que o G. fosse a assinatura do Ganância. Mas também podia ser do Gula. Foram
encontrados. VIII. Tanto o Inveja como o Ganância haviam ido atrás do Chifre
de Hades, mas o Ira nunca demonstrara grande interesse nos amuletos. Para não
mencionar que agora se encontravam na sua posse até que o Orgulho nos
permitisse entrar no seu território.
— Vejamos então o que procuravas, meu querido e misterioso Ira?
Peguei no pisa-papéis da serpente e fi-lo rodar entre as palmas das mãos.
— Au.
Virei-o; pequenas arestas afiadas agrupadas num desenho geométrico
projetavam-se do lado de baixo. Era um selo de cera, não um pisa-papéis. Ou
talvez fosse ambos. Deixei-o de lado e voltei a analisar a nota. Desta vez houve
algo que me chamou a atenção. Não era dirigido a ninguém. O que significava
que não havia maneira de saber se o Ira era o destinatário pretendido ou se o
tinha intercetado.
Talvez o destinatário fosse o diabo e o objetivo fosse avisá-lo de que os seus
chifres haviam sido localizados. Talvez o G representasse o nome verdadeiro do
Ira e ele fosse o remetente. Ou talvez aquilo não tivesse importância nenhuma e
eu estivesse tão desesperada por pistas que as estava a inventar.
Também não havia uma data, por isso não tinha forma de saber se era
recente ou antiga. A menos que fosse esse o significado do VIII. Não fazia ideia
de como os demónios contabilizavam o tempo. No mundo humano, estávamos
no final do século XIX na Terra, mas talvez aqui estivessem no oitavo éon. Ou
talvez fosse uma referência ao oitavo diário, o que estava desaparecido. Poderia
passar uma eternidade a tentar adivinhar.
Deixei a nota, que não me serviu para nada, agarrei num tinteiro, numa pena
e num pergaminho, recuperei o grimório sobre magia para principiantes e
regressei ao meu quarto, mais frustrada e perdida do que antes. Quem sabe se o
dia de amanhã me esclareceria alguma coisa sobre o assunto; ainda que fosse
apenas através da observação de como os demónios interagiam e aprender como
se moviam pela corte.
Dada a minha posição como membro da classe trabalhadora, não estava
associada aos círculos abastados da sociedade em casa, na Terra, por isso, o dia
seguinte seria um teste a quão bem conseguiria passar despercebida. O meu
caminho para a vingança seria a fogo lento, não um inferno escaldante. Quando
invadisse a Casa Orgulho, já seria bem versada na forma certa de os enganar.
Com sorte, quando o demónio responsável pela morte da Vittoria sentir
finalmente as chamas da minha fúria, já terei reduzido a sua Casa do Pecado a
cinzas.
Capítulo 8
O seu beijo consumiu-me e seduziu-me. Tal como ele queria. Não foi rápido,
nem rígido, nem alimentado por ódio ou fúria. Era uma brasa, uma promessa do
fogo abrasador que está para vir com alguma carícia terna. Quase que o achei
doce — o tipo de abraço casto que dois amantes a cortejar-se roubam quando o
seu acompanhante não está a olhar — até que ele levantou lentamente os meus
braços acima da minha cabeça e me prendeu à parede pelos pulsos. Tomou o
meu lábio inferior entre os seus dentes e deu-me uma mordidela suave. Depois
lembrei-me; ele não era um anjo. E de repente senti-me mais do que disposta a
ser amaldiçoada.
Maldito seja este reino e as suas maquinações diabólicas. A sua necessidade
de pecado. A minha inegável necessidade dele. Naquele momento, não havia
pacto de sangue com o diabo. Não havia compromissos ou obrigações para com
a minha família. Havia apenas aquele momento, aquele príncipe maldito e o
calor que crescia entre nós.
O corpo do Ira moldou-se contra o meu, duro como uma rocha e inabalável
em todos os lugares certos. Qualquer que fosse a fome que eu sentisse, ele
tinha-a igualmente. Desejei odiá-lo. Desejei que não estivesse a passar a minha
língua pelos seus lábios ou a suspirar enquanto ele obedecia ao meu pedido
silencioso e aprofundava o nosso beijo.
Este novo beijo devorou, saqueou, roubou. Era um pedido de desculpas e um
desejo e uma recusa feroz de submeter-se a qualquer sentimento verdadeiro,
tudo num. Uma necessidade primordial no seu nível mais básico. Não tinha a
certeza se deixar-me conduzir por aquele sentimento selvagem me assustava ou
excitava.
Afastei-me, respirando com força.
— Isto é real?
— Sim.
Como que para provar a veracidade do que acabara de declarar, rodou as
ancas para a frente e eu tive quase a certeza de que todo o castelo tremeu no
momento em que os nossos corpos se uniram. Não havia dúvida do quanto este
príncipe das trevas me desejava. Agarrei-o pela lapela do casaco e puxei-lhe os
lábios para os meus.
Por um momento, com o coração a trovejar, desejei que ele puxasse o meu
vestido para cima, se enterrasse bem no fundo de mim e libertasse cada um dos
meus desejos aprisionados. Ansiava esquecer-me de onde estava e do que tinha
de fazer. Queria largar todo o sofrimento, dor e tristeza que nunca se afastavam
demasiado. Tudo o que desejava era o doce esquecimento das carícias. O Ira
poderia facilmente conceder-me isso. E mais.
Ele controlou-se e quebrou o beijo, apenas para começar a acariciar com
languidez a parte de cima do meu corpete. Uma necessidade explodiu por todo o
meu corpo e parecia estar espelhada no dele. Ele arrastou as mãos para o meu
flanco, puxando-me um pouco mais contra si.
— Ainda me vais destruir.
— Mais cedo do que julgas se não parares de falar e me beijares novamente.
— Criatura angélica e exigente.
Ele sorriu com indulgência e depois obedeceu. Este beijo. Era lento,
narcótico e fez-me perceber que ele não era o único em perigo de ser destruído.
Ele inclinou o meu rosto para cima, traçou os contornos do meu maxilar e fez
deslizar os dedos pelo meu pescoço, roçando suavemente o local onde podia
sentir-me a pulsação.
Sob a sua carícia, senti pequenas descargas de eletricidade. Quase me
esquecera de que ele me Marcara, dando-me uma maneira de o invocar sem usar
o punhal da Casa. Aquele S pequenino, quase invisível, que me formigava no
pescoço. A Nonna havia dito que a marca era uma grande honra, uma que
raramente era concedida.
Aquilo não a havia agradado.
Voltei a mim imediatamente e forcei-me a largar a qualidade viciante dos
seus beijos. Quase senti a magia do mundo a recuar como a maré baixa, a sua
desilusão a rebentar em ondas relutantes à nossa volta.
O Ira libertou-me gentilmente, sentindo a mudança nas minhas emoções.
— Porquê? — Consegui pronunciar uma palavra, a minha voz ainda tingida
de desejo.
— Pensei que não gostarias de uma plateia.
Uma imagem indecente de ele a possuir-me na mesa da sala de jantar
passou-me pela cabeça. Fora tão vívida que podia jurar que ouvira as
exclamações de surpresa dos convidados enquanto o seu príncipe me mostrava
o quão pecador podia ser; copos a estilhaçarem-se e garfos a baterem contra a
melhor porcelana demoníaca enquanto o Ira nos impelia aos dois até ao limite,
ignorando quem quer que nos estivesse a ver.
Engoli um risinho nervoso. Essa entrada causaria, sem dúvida, uma grande
impressão que a Casa Ira nunca esqueceria. Afastei esses pensamentos
escandalosos.
— Não foi isso que quis dizer, e tu sabes.
Embora me perguntasse o porquê de ele ter decidido beijar-me agora.
Os seus dentes brilharam numa espécie de sorriso, enquanto um brilho de
reconhecimento lhe surgia nos olhos. Evasão aceite. Era um progresso, por mais
pequeno que fosse. Ou talvez eu estivesse por fim a aprender a lê-lo melhor.
Embora suspeitasse que — naquele momento em particular — ele também não
estivesse a tentar esconder-se tanto de mim. Procurei não deixar que a cautela
arruinasse o momento.
— Estou a falar de quando me Marcaste. Não sobre o que quer que —
gesticulei entre nós — isto seja.
Ele analisou-me o rosto por um minuto cheio de tensão, e os últimos
vestígios de calor abandonaram-lhe a expressão. Agora, os seus olhos pareciam
quase pretos e sólidos. Desta vez não houve engano no estrondo que sacudiu o
castelo. Ele moveu os seus ombros, como que para libertar a tensão neles e entre
nós.
O Ira estendeu o braço na minha direção, todos os vestígios de paixão
apagados do seu rosto.
Cá estava o frio e insensível príncipe do Inferno.
— Não podemos demorar-nos mais. Chegou a hora de conheceres a minha
corte.
A nossa chegada ao exterior das enormes portas esculpidas em ossos do
salão real foi um borrão na minha mente. Não me conseguia lembrar se o Ira
falara comigo na nossa aparentemente interminável caminhada até lá ou se me
havia escoltado num completo e estoico silêncio. Esta última opção era a mais
provável; não conseguia imaginá-lo a participar em algo tão prosaico como uma
conversa sobre o meu dia ou sobre o tempo.
Não que eu tivesse reparado, de qualquer forma.
Senti uma sensação estranha no peito; um ligeiro puxão ou uma pontada,
ou uma combinação peculiar de ambos. De início pensei que fosse o meu
pânico a agitar-se contra as minhas costelas, medo pelo que acabara de
acontecer entre nós, mas não era bem isso. Era uma sensação que se acumulava
lentamente dentro de mim, viajando a partir do meu coração e serpenteando
como um riacho ao longo da parte inferior do meu braço.
O Ira virou a cabeça na minha direção, um sulco profundo a formar-se-lhe
na testa.
Olhei para baixo, para onde ele olhara. O meu cornicello brilhava com
aquele luccicare pálido, sobrenatural e púrpura que se adaptava aos humanos. Já
acontecera duas vezes no passado. A primeira quando encontrara o Ira ao lado
do cadáver da minha irmã gémea. E a segunda quando encontrara o meu
amuleto meio enterrado num túnel após ter sido roubado. Mesmo antes de os
demónios Umbra quase incorpóreos atacarem e o Inveja ter mergulhado o
punhal da sua Casa no estômago do Ira.
Apertei as mãos em punhos ao lembrar-me da forma como o sangue do Ira
havia secado nas minhas mãos, sob as minhas unhas. A sensação absoluta de...
— Respira. — A sua voz era profunda e reconfortante. — Vamos fazer as
apresentações e depois vamos embora se não quiseres ficar para jantar com eles.
— Não estou nervosa.
E eu fiquei surpreendida ao descobrir que era verdade. Larguei o braço do
Ira e encostei os dedos ao metal frio do amuleto em busca de conforto, um
velho hábito do qual dificilmente abdicaria. Os chifres do diabo, lembrei a mim
mesma com um pequeno arrepio. Não era um amuleto para afastar o mal.
Aquele fio já não segurava o amuleto inocente em que eu acreditara a vida toda.
Ao tocar-lhe, uma pequena corrente disparou pela minha pele, alarmando-
me o suficiente para afastar a mão. Aquilo era novidade. Olhei para o Ira.
— Viste aquilo?
Ele assentiu, sem desviar o olhar do chifre encolhido do diabo. A
preocupação ainda lhe marcava as feições.
— Consegues usá-lo no jantar?
— Claro — respondi. — Tenho-o usado há quase duas décadas.
— Se sentires qualquer tipo de desconforto, diz-me de imediato. O Ira
parecia estar prestes a dizer mais qualquer coisa, mas mudou de ideias no
último instante. O meu coração saltou um batimento.
— Desconfortável em que sentido?
— Qualquer coisa incomum. Não importa quão insignificante ou inócuo
possa parecer.
Estava prestes a contar-lhe sobre a sensação de formigueiro, mas dissipou-se
antes que as palavras se pudessem formar na minha língua. Talvez fosse apenas
o nervosismo a levar a melhor sobre mim. Viajara para o submundo com um
dos Malditos, fizera um pacto de sangue com o diabo e estava a poucos
segundos de conhecer a intrigante corte demoníaca do Príncipe Ira.
Sem mencionar que acabara de ser seduzida por alguém a quem não estava
prometida e que, muito provavelmente, os meus lábios estavam inchados de
forma incriminatória. Embora os meus sentimentos pelo Ira fossem muito mais
complexos, eu não odiara o beijo. Na verdade, parecia ter revelado uma verdade
que eu não queria examinar de perto. Ele perguntara-me se eu seria capaz de
dormir com alguém que odiasse e, embora a minha mente ainda se agitasse de
raiva com a sua traição, o meu corpo respondia ao seu toque.
Não conseguia imaginar o Orgulho a aceitar a notícia do meu
envolvimento com o seu irmão; quem poderia dizer se ele tinha espiões naquela
corte, ávidos e prontos a relatar qualquer situação? Embora não me opusesse a
espalhar sementes de discórdia entre as duas asas, não queria alienar o meu
noivo e arruinar as minhas hipóteses de resolver o assassínio da Vittoria. Tinha
todo o direito de estar nervosa. Seria estranho se não estivesse.
O Ira aproximou-se e acariciou-me o pescoço com os nós dos dedos, a sua
voz tão suave como o seu toque. Qualquer que fosse a magia que alimentasse a
sua Marca, acalmou-me instantaneamente.
— Pronta?
Acenei com a cabeça. Ele estudou a minha cara e deve ter visto que eu
estava verdadeiramente pronta para a minha introdução à Casa Ira. Sem aviso
prévio, ele rodou sobre os calcanhares e deu um pontapé nas portas.
Atravessou-as enquanto embatiam contra a parede com um estrondo, os
seus passos soando como trovões no silêncio repentino. Arquejei. Aquilo não
era de todo como eu imaginara a nossa grande entrada. Dada a sua propensão
para roupa elegante e maneiras impecáveis, julgara que ele seria mais... galante
ou refinado. Devia aprender de uma vez por todas a não presumir nada sobre
ele.
Uma onda de demónios vestidos com elegância pôs-se de joelhos, cabeças
curvadas e olhos presos no chão enquanto o Ira entrava na sala. Deteve-se após
vários passos no interior do grande salão e esperou que eu chegasse até ele. Os
meus passos foram lentos e firmes, ao contrário do bater do meu coração.
Senti-me como se uma eternidade e um único segundo se tivessem passado
antes de atravessar a sala, o meu vestido sussurrando sobre a pedra, e parar
perto do Príncipe Ira.
Quando falou, na sua voz foi tecida uma ordem real.
— Ergam-se. E deem as boas-vindas a Sua Alteza, Emilia Maria di Carlo,
a vossa futura rainha.
As deusas deviam estar a olhar por mim, porque consegui engolir a minha
surpresa sem mostrar que a sentia. Voltei-me para o Ira com subtileza, uma
pergunta a bailar-me nos olhos. Não fora informada em relação à parte do «Sua
Alteza». Imaginara que fosse acontecer após a coroação, ou qualquer que fosse
o seu equivalente demoníaco. O canto da sua boca estremeceu antes de voltar a
endurecer a expressão e a dirigir-se ao mar de demónios curiosos num tom frio
e implacável.
— Recordem-se do que vos disse sobre respeito. Como noiva de um
príncipe do Inferno, o estatuto da Lady Emilia subiu. Apenas se dirigirão a ela
como «Vossa Alteza» ou «minha senhora». Se a insultarem, terão de responder
perante mim.
O Ira fixou o olhar num nobre em particular, e assumi que fosse aquele que
a Fauna me dissera que o príncipe havia ameaçado. Decerto que não quereria
estar no lado recebedor desse olhar — era frio o suficiente para causar tremor
entre os nobres circundantes. E eles não pareciam do tipo que se acobardava
com facilidade.
— Considerem este o meu último aviso.
Depois, o Ira virou-se para mim e estendeu-me o braço. Depositei a mão na
dobra do seu cotovelo e levantei o queixo. Caminhámos lado a lado para uma
grande mesa ao fundo da sala, e deixei que o meu olhar percorresse subtilmente
o salão, absorvendo os detalhes do que nos rodeava. Uma tapeçaria pendurada
na parede distante retratava um anjo guerreiro envolvido numa batalha com
demónios. Cabeças cortadas rolavam a seus pés. Cobertas de sangue e com
olhos esbranquiçados. Uma escolha interessante para um salão de jantar.
Desviei a atenção daquele raio de sol. A mesa para onde nos dirigíamos era
feita de madeira antiga, sólida e deslumbrante. Uma grinalda de folhas estendia-
se pelo centro da mesa, juntamente com um candelabro de ferro com braços
pontiagudos, mesmo por cima da folhagem. Velas em tons de creme e ouro
decoravam-na de ponta a ponta, emitindo um agradável brilho cintilante. Havia
pratos de porcelana preta em frente às cadeiras douradas. E os talheres também
eram feitos do mesmo dourado. Tudo tinha um ar de pura elegância rústica.
Masculino, mas com alguns toques inesperadamente cálidos. Perfeito para um
príncipe guerreiro. Gostei muito.
O Ira levou-me ao centro da mesa, onde se encontravam os dois maiores e
mais ornamentados lugares. Não eram bem tronos, mas estavam lá perto. Ao
contrário do que me tinha sido dito sobre as cortes reais humanas, não nos
sentávamos em lados opostos da mesa. Estávamos no centro e todos os outros
se distribuíam à nossa volta, Havia duas filas de mesas de madeira semelhantes,
mas mais pequenas, em cada lado do salão, e entre elas encontrava-se o espaço
que estávamos a percorrer.
Essas mesas não tinham assentos dourados, mas havia bancos de madeira a
condizer. As velas abundavam em todas elas; uma peça central ardente para o
círculo mais frio do Inferno.
Os criados, que permaneciam perto da parede e nos quais eu não havia
reparado, avançaram e puxaram graciosamente para trás as nossas cadeiras
enquanto circulávamos a mesa. O Ira esperou que eu me sentasse antes de fazer
o mesmo. Rapidamente, verteram um vinho escuro em taças e pousaram-nas à
nossa frente.
Bagas congeladas flutuaram na superfície, encantadoras e tentadoras. Olhei
para o príncipe e estava prestes a perguntar por que razão mais ninguém se
havia mexido para se sentar, mas fechei a boca.
A atenção do Ira já estava fixa em mim, os seus olhos quase a brilhar à luz
das velas.
Tudo se dissipou nas sombras. Era como se ele e eu fôssemos os únicos no
salão de jantar, em todo o reino, e eu não pude evitar que os meus pensamentos
regressassem àquela anterior visão escandalosa de ele a fazer amor comigo até
me fazer ver estrelas. Tal como os heróis libertinos dos meus romances
favoritos prometiam fazer com aquelas a quem confessavam o seu afeto e
luxúria.
Maldito seja este reino ridículo e as suas inclinações pecaminosas. De
todos os momentos em que a sua magia retorcida poderia entrar em ação, este
era o pior. No entanto, não fiquei completamente surpreendida. O Ira havia
referido que este reino conseguia detetar os pontos mais conflituosos de cada
pessoa e trazê-los à tona. E era claro que eu estava em conflito entre as emoções
interiores e os anseios físicos.
Até que pusesse um fim à minha guerra interna, esses impulsos iriam
provavelmente continuar a atormentar-me.
Afastei a minha atenção do Ira e mexi-me desconfortavelmente no meu
lugar, olhando para o vinho. Ou ajudaria a distrair-me, ou transformar-me-ia
numa criatura feroz que rasgaria a roupa do príncipe. Pensar na roupa dele foi
um erro terrível, pois levou-me imediatamente a pensar nele sem camisa.
Sangue e ossos, esta atração proibida estava a piorar a cada minuto.
Talvez devesse pedir licença para apanhar um pouco de ar fresco. Olhei em
volta, em busca de uma varanda ou terraço. Precisava de me refrescar de
imediato. Depois da minha apresentação real, não havia dúvida de que toda a
gente aqui sabia que eu estava noiva do seu irmão. Dificilmente seria
apropriado para mim babar-me em público por este príncipe quando estava
prestes a casar com o rei dos demónios.
O Ira inclinou-se, os seus lábios quase me roçaram a orelha, e senti-o
sorrir. Falou baixo o suficiente para que apenas eu pudesse ouvir.
— Uma palavra e fá-los-ei desaparecer.
Senti um ímpeto de tentação.
— Pareço assim tão nervosa?
— Estou bastante seguro de que o que estou a sentir não tem nada que ver
com nervosismo.
Um rubor rastejou-me pelo pescoço acima. Não fazia ideia de que ele
conseguia detetar... excitação. Valha-me a deusa. Este reino ainda ia ser a minha
ruína. Forcei-me a lembrar-me do motivo por que viajara para este mundo. Não
fora a sedução ou o desejo que me havia levado a vender a alma. Fora a
vingança. A raiva. E essas emoções eram mais poderosas do que qualquer
magia pecaminosa.
Ou qualquer príncipe pecaminoso e sedutor. Levei os lábios ao seu ouvido.
— Sentis a faca com que estou a considerar esfaquear-vos neste momento,
Vossa Alteza?
— Se isso é uma tentativa de mudar de assunto, informo-te de que foi um
fracasso desolador. — Deslizou a mão para debaixo da mesa e ela aterrou
suavemente no meu joelho. Não havia dúvida de que isto era um
reconhecimento implícito da minha mais recente mentira. — Estou ainda mais
interessado em saber onde isto nos pode Levar, minha senhora. Parece
esquecer-se do pecado sobre o qual domino. Tenho uma certa predileção por
brincadeiras com facas.
— Os teus súbditos estão a observar-nos.
Com a sua mão livre, levantou a taça de vinho e tomou um longo e
cuidadoso gole. Agiu como se estivéssemos a tomar uma bebida sozinhos em
vez de estarmos a ser observados pela nobreza do Inferno.
Pousou a taça sobre a mesa e fitou a multidão silenciosa e atenta.
— Podem sentar-se.
Odiei admiti-lo, ainda que em silêncio, mas o seu toque manteve os meus
nervos à distância enquanto toda a corte real tomava os seus lugares. Era difícil
concentrar-me no medo enquanto os seus longos dedos acariciavam o tecido
fino do meu vestido, chamando toda a minha atenção para aquele ponto de
contacto. Imaginei que estivesse a tentar acalmar-me, mas o seu toque produzia
o efeito oposto. O meu coração estava acelerado.
O príncipe maldito não parecia de todo afetado. O meu olhar desceu para o
seu colo.
— É um prazer conhecê-la finalmente, Lady Emilia. Parece-se com uma
deusa esta noite. Uma autêntica feiticeira digna de ser recordada.
A mão do Ira apertou a minha perna, antes de continuar a arrastar o dedo ao
longo da costura exterior do meu vestido. Desviei o olhar do príncipe.
Diretamente em frente, do outro lado da mesa, atrás do seu assento, um
demónio loiro sorriu para mim. Era o nobre para quem o Ira olhara de relance.
Não lhe sorri de volta.
— Peço desculpa, creio que ainda não fomos apresentados. Quem é o
senhor?
— Lord Baylor Makaden, minha senhora.
De facto, era o demónio que fizera aqueles comentários grosseiros. Ele
sentou-se e começou a falar com os nobres que o ladeavam. Juntaram-se-nos
mais membros agradáveis da nobreza e os criados apressaram-se a avançar com
bandejas repletas de comida.
Massa folhada cozida no forno. Tubérculos assados guarnecidos com ervas
aromáticas. Pães estaladiços que cheiravam a especiarias misteriosas. Tigelas
cheias de molho escuro. Não havia nada na refeição que me parecesse familiar
ou me fizesse lembrar a minha casa, mas não era tão diferente como eu temera.
Secretamente, receara que me servissem animais estranhos, com vários olhos e
miudezas cruas e fumegantes. Aquilo era um verdadeiro deleite.
O Ira tirou a mão do meu joelho apenas para me surpreender, trinchando-me
a carne e enchendo o meu prato com um pouco de tudo o que estava em cima da
mesa. Outros comensais espreitaram-nos sob as suas pestanas, alguns ousados o
suficiente para sussurrarem. Tive a sensação de que este não era o
comportamento típico para um príncipe. Ele ignorou-os, embora, sem dúvida,
tivesse sentido a sua atenção e silenciosa especulação.
— Deseja mais molho, minha senhora? — perguntou.
Concentrei-me nele, o coração acelerado. Estava claramente a dar
espetáculo, mas não fazia ideia de quem iria beneficiar com isso. Decidi alinhar
e abanei a cabeça.
— Não, obrigada, Vossa Alteza.
Usar o seu título pareceu agradar-lhe, embora tivesse as minhas dúvidas de
que a curva quase impercetível dos seus lábios tivesse sido evidente para mais
alguém. Depois de tratar do meu prato, o Ira encheu o seu com porções
generosas e iniciou uma conversa com o nobre à sua esquerda.
Esta era a versão que eu esperara há pouco; o príncipe com maneiras
exemplares. Não o bárbaro que abrira a porta ao pontapé. Ainda que ambos os
aspetos dele fossem intrigantes. Que a deusa me ajude. Não tinha nada que o
achar intrigante ou atraente de todo.
Ouvi com educação a mulher nobre sentada ao meu lado enquanto ela se
queixava da sua empregada, depois do seu estômago e do tapete comido por
insetos da sua sala.
Deixei-a falar livremente enquanto comia. O seu olhar deslizou sobre a
minha tatuagem, amuleto e repousou sobre o anel no meu dedo, mas não
perguntou por eles. Até agora, ninguém tocara em nada importante e duvidei
que fosse aprender algo além de mexericos. Esta noite, a corte apresentaria o
seu melhor comportamento.
Não sabia se estava satisfeita, mas pelo menos a comida valia a pena. Cortei
a carne como se fosse manteiga e o sabor era igualmente bom. Esforcei-me ao
máximo para me concentrar nas conversas e não me perder nos sabores. Quem
quer que tivesse cozinhado aquela refeição era imensamente talentoso. Adoraria
ver esse alguém na cozinha e tomar notas. Talvez pudesse brincar com o molho
e criar as minhas próprias variações. Juntar um pouco de sal marinho e ervas à
massa folhada para finalizar os sabores nos quais a carne estivera a marinar.
Por várias vezes senti um olhar indiscreto e olhei para cima para encontrar
os olhos do Lord Makaden fixos no meu peito. A sua expressão esfomeada
indicava que não estava a olhar para o amuleto. Ignorei-o, tal como o Ira fizera.
Vermes como ele deviam permanecer escondidos. Embora a comparação fosse
injusta para com os pobres vermes.
A mulher ao meu lado, a Lady Arcaline, parou de me regalar com as suas
queixas tempo suficiente para me perguntar:
— Conheceu algum outro membro da corte além dos presentes no jantar
desta noite?
— Sim, conheci a Lady Fauna na biblioteca.
A Lady Arcaline fez um pequeno ruído de desdém e virou-se para o
demónio do lado oposto.
Com tudo o que acontecera, acabara por me esquecer da Fauna. Tomei um
gole de vinho, lancei um olhar ao salão e fiquei surpreendida ao vê-la a
conversar alegremente com o Anir e com um outro jovem demónio no fim da
nossa mesa. Era uma pena que não estivéssemos mais próximos; teria sido
muito mais agradável.
Antes que pudesse refletir sobre o facto de ter sentido uma certa
camaradagem com alguém da corte do Ira, o Lord Makaden inclinou-se sobre a
mesa, fitando-me os lábios de forma ousada. Era uma melhoria em relação à sua
não tão subtil análise do meu decote. Felizmente para ele, o Ira ainda estava
ocupado num debate com o lorde à sua esquerda e não havia reparado nos seus
olhares vulgares. Estava disposta a ignorar a sua idiotice a favor de manter a paz
naquela noite. O dia seguinte seria uma história diferente.
Provei outro bocado de carne e alguns vegetais.
Sabiam a glória.
— Esclareça-me, Lady Emilia. — A voz irritante do Makaden distraiu-me
da comida. — Alguma vez experimentou algo tão prazeroso como a comida
demoníaca? Em cada dentada, parece que está em êxtase. Devo admitir que é
cativante. Tenho inveja do seu garfo.
Os nobres mais próximos de mim continuaram a sua conversa de
circunstância, mas senti que me estavam a prestar atenção. Fora uma pergunta
frontal, quase a beirar os limites do decoro. Uma das coisas em que reparara ao
jantar era que certos temas eram tão escandalosos aqui como no mundo mortal.
Só o escândalo parecia implicar uma referência explícita a outros pecados.
Não fugi à pergunta.
— Diga-me, Lord Makaden, está sempre assim tão preocupado com a boca
dos outros? Talvez devesse reconsiderar a Casa do Pecado com que melhor se
alinha.
Ele tomou um gole do seu vinho e passou um dedo ao longo da borda do
copo, nunca desviando a sua atenção dos meus lábios. A raiva que havia tentado
conter fervia quanto mais ele olhava para mim.
Perguntei-me que tipo de impressão causaria na Casa Ira se o mutilasse
antes do próximo prato. Uma vez que o Ira havia banido a extirpação, imaginei
que, em tempos passados, teria sido uma prática bastante comum. Como futura
rainha, poderia ser poupada a qualquer castigo.
Enfrentar a fúria do Ira poderia valer a pena apenas para limpar aquele
olhar repulsivo do rosto do Makaden.
— Fui advertido a não falar da sua língua, minha senhora, por isso não irei
comentar quão afiada é. No entanto, já que menciona a boca, há uma pergunta
que não posso deixar de lhe fazer. Parece estar a gostar da carne, mas será que
essa sua boquinha perfeita já provou salsicha?
Apertei o maxilar com tanta força que fiquei surpreendida por o Ira não me
ter ouvido ranger os dentes. O Lord Makaden não se referia a um prato de
salsichas, embora tivesse dito as suas palavras de forma engenhosa o suficiente
para poder fingir o contrário. Expirei lentamente. Ele estava a tentar enervar-
me.
Recusei-me a deixá-lo ter sucesso.
— Se a resposta for não, teremos de remediar isso em breve. Esta noite,
talvez? — Mergulhou o dedo no vinho e sugou o líquido lentamente. O sorriso
amplo que me ofereceu não lhe chegou aos olhos repletos de ódio. Por um
instante, imaginei que lhos arrancava. — Até me ofereço para a preparar para si.
Já me disseram, em mais que uma ocasião, o quanto sou bom a fazê-lo.
Agarrei na minha faca com mais força. Não queria mais nada do que cravá-
la no seu coração. Sem pensar muito nas consequências, ergui a lâmina e
levantei-me, fazendo com que a minha cadeira se arrastasse contra a pedra
numa advertência estridente.
Toda na sala se sobressaltou. Foi o último barulho antes dos gritos
incoerentes do Lord Makaden. Um líquido quente pulverizou-me o peito e o
rosto. Fiquei tão assustada que deixei cair a faca e limpei as bochechas. Um
líquido vermelho cobria-me os dedos.
Um segundo depois, um cheiro metálico inundou-me a garganta. Sangue. A
grinalda de vegetais na mesa estava coberta de sangue, mesmo à minha frente.
Concentrei-me na sua fonte.
No prato à frente do lorde canalha, estava uma língua cortada e empalada.
Olhei sem pestanejar para a minha faca, sem saber se o atacara ou não. Foi
então que reparei na adaga da Casa Ira. Ainda vibrava com a força com que ele
a usara para a cravar no prato e depois na mesa. Deixei sair um suspiro
silencioso, incapaz de desviar o olhar. As pedras preciosas de lavanda dos olhos
da serpente brilhavam de fúria. Ou talvez fosse a sede de sangue.
Esquecera-me de como a adaga rejubilava com as suas oferendas.
— Acabou-se o jantar — declarou o príncipe-demónio, numa voz
perigosamente baixa. Arrancou a lâmina ensanguentada. — Saiam.
Capítulo 10
Os dedos do Ira ainda estavam enterrados entre as minhas pernas quando ele
nos encostou à porta dos seus aposentos, a respiração forte e acelerada. Falhara
o quarto. Por uma boa razão. A minha mão permaneceu enrolada à volta da sua
impressionante extensão. Continuei a acariciar-lhe a pele sedosa e suave,
maravilhando-me com a forma como cada movimento lhe fazia perder ainda
mais o controlo.
Parecia errado sentir orgulho na altura, mas não podia negar que adorava o
facto de ter sido eu o motivo pelo qual a coleira apertada que ele atara a si
mesmo finalmente se soltara.
Não me ocorreu qualquer razão para ele nos ter transportado para o corredor
público que ligava os nossos quartos. Pelo menos a porta que encerrava aquela
ala ainda estava fechada, e ninguém se conseguiria aproximar o suficiente para
nos ver. Não que fossem ver muito com o enorme corpo do Ira a cobrir-me. Não
que importasse se pudessem ver-me.
Estava demasiado perdida nas ondas de prazer que cresciam e aumentavam
dentro de mim para me importar com onde estávamos ou com quem estava à
nossa volta. Queria-o ali e agora. Para o inferno com os Sete Círculos. Eu ainda
não era casada com o Orgulho. Além do breve período em que possuíra o
Antonio, nem sequer o conhecera. Duvidava que o diabo se importasse que eu
tivesse um amante antes de trocarmos os nossos votos malditos.
O nosso não seria um casamento por amor. E se o Orgulho se importava,
certamente não o demonstrava. Ainda não recebera uma carta, nem um convite,
nem sequer um sinal de reconhecimento da minha chegada. O Príncipe Orgulho
estava contente em ficar sozinho no seu castelo e, de momento, por mim tudo
bem.
O Ira continuou a beijar-me, continuou a empurrar os dedos enquanto
balançava contra o meu agarrar resoluto, e tudo o que eu queria era pôr aquela
poderosa criatura de joelhos com um êxtase implacável. Aquela sua parte
selvagem e desenfreada era quase tão intoxicante como as suas carícias.
Nunca tinha experienciado nada parecido, tão poderoso e correto. Ele estava
certo. E eu soube, com certeza infinita, que estávamos prestes a descobrir quão
bons éramos juntos. Talvez tivéssemos estado sempre destinados a acabar
assim, perdidos na paixão um do outro.
O som do seu prazer misturado com o meu estava a criar o seu próprio
feitiço, e eu sentia-me tão perto de explodir em pedaços, tão perto desse poder
que continuava a subir e a quebrar-se e...
A dor irrompeu numa torrente violenta, roubando-me o fôlego. Sempre em
sintonia com as minhas oscilações emocionais, o Ira parou de imediato; o feitiço
eufórico foi quebrado.
— Estás bem?
— Não. — Nunca odiara tanto uma palavra. — Estou com uma dor h-
horrível.
— Onde? — A sua voz soava áspera.
— Coração. — Soltei-o e estremeci. — Sangue e ossos. Dói tanto.
— Vem. Eu mando chamar um curandeiro...
— Acho que é o Chifre de Hades.
O Ira ia alcançar a maçaneta da porta do quarto, mas deixou cair a mão. Não
demorou dois segundos a voltar a sua atenção para o amuleto que eu ainda
estava a usar e amaldiçoou as deusas de forma impressionante.
Tudo isto se desintegrou em fumo e numa luz preta brilhante. Não o vira
mexer-se, mas num instante estávamos nus à porta do quarto dele, à beira da
libertação mútua, e no seguinte estávamos de pé, parcialmente vestidos, perante
uma porta de madeira entalhada numa torre.
As tochas de aspeto medieval queimavam intensamente de ambos os lados da
entrada. Fiquei quase tão surpreendida com a nossa localização como com a
camisa de noite cor de ébano que de repente estava a usar. Uma que ainda fazia
pouco para esconder a minha forma. O Ira usava calças pretas e nada mais.
Exceto, talvez, um leve olhar de preocupação.
— Onde estamos? — Tentei remover o cornicello. A dor estava a
intensificar-se.
— Não tires isso. — Era como se os últimos minutos de paixão nunca
tivessem existido. O Ira voltara a ser granito e fúria. Só que não era eu o recetor.
Ele ergueu o punho e bateu com força suficiente para abanar as dobradiças de
ferro, a sua voz transformando-se em aço puro.
— Matrona!
A onda de dor que se seguiu fez com que os meus joelhos se dobrassem,
mas recusei-me a cair. Mesmo sem olhar para mim, o príncipe-demónio não
perdeu nada. O seu próximo golpe sacudiu uma pedra solta. Pus-lhe uma mão
no braço e dei-lhe um leve aperto.
— Ira.
— Se não abres esta porta, juro pelo meu sangue...
— Vais derrubar a torre inteira com os teus disparates, rapaz. — A porta
abriu-se para revelar uma mulher mais velha com longos cabelos prateados e
cor de lavanda. Usava uma túnica roxo-escura com um cinto metálico estilo
corda que me fazia lembrar as sacerdotisas que vira em pinturas e livros.
O seu olhar sombrio prendeu-se em mim, estudando-me.
— Filha da Lua, bem-vinda. Eu sou a Celestia, Matrona das Maldições e dos
Venenos. Tenho estado à tua espera. — Deu um passo atrás e abriu ainda mais a
porta em sinal de boas-vindas. — Entra antes que Sua Majestade quebre o reino.
— Da próxima vez não demores tanto a abrir a porta.
O Ira entrou primeiro, alerta e pronto para a batalha. Além das tinturas,
antídotos e venenos, não tinha a certeza do inimigo que esperava encontrar ali,
mas estava com demasiadas dores para me preocupar. Segui-o para dentro e
detive-me. A sala circular era feita de madeira escura, pedra fria e prateleiras
que chegavam até ao cimo da torre. Havia uma escada encostada a uma das
secções, como se a matrona tivesse estado a catalogar itens nas prateleiras mais
altas quando a interrompemos. Uma mistura eclética de aromas suspensos no ar
criava um efeito agradável.
Mal conseguia respirar fundo e o cheiro, apelativo como era, começava a
dar-me a volta ao estômago. O suor escorria-me pela testa enquanto me
obrigava a respirar e a deixar sair o ar entre os dentes cerrados. Para evitar
concentrar-me na náusea crescente, deixei o meu olhar vaguear pelo espaço.
Numa longa mesa perto de uma única janela arqueada estavam vários
frascos de líquidos estranhos; alguns fumegavam, outros borbulhavam, outros
colidiam contra o vidro fino, como se estivessem a testar uma rota de fuga. Os
líquidos conscientes eram novos para mim e mais do que um pouco
desconcertantes.
Uma das prateleiras estava cheia de plantas e plântulas totalmente
cultivadas, pétalas secas e ervas. Havia cataplasmas e amuletos, caldeirões,
figuras esculpidas de criaturas como quimeras, divindades aladas e deuses.
Pedras, tanto ásperas como lisas, e, se a seiva escura fosse alguma indicação,
armas com lâminas e agulhas envenenadas a brilhar sob a luz cintilante do fogo.
Gotas de cera pingavam de enormes velas numa superfície de madeira por
cima de uma grande lareira perto do centro do aposento, e havia paus de incenso
a arder com torres de fumo impecáveis.
Parecia que a Matrona das Maldições e dos Venenos estava pronta para
qualquer atividade perversa.
Engoli em seco quando a próxima onda de dor me atingiu. Senti-me como se
o meu corpo estivesse, de repente, no meio de uma guerra brutal consigo
mesmo. O que quer que estivesse a causar a dor, estava a ganhar.
Com uma mão forte nas minhas costas, o Ira guiou-me até um pequeno
banco de madeira e virou-se para a matrona com hostilidade.
— Faz alguma coisa. Agora.
Ela estalou a língua enquanto atravessava a sala lentamente.
— Exigências e ameaças são para os assustados e os fracos. Nenhuma dessas
características te fica bem, por isso cala-te.
— Não me testes.
A Celestia caminhou até um recipiente cheio de tesouras e lâminas. Algumas
tinham pegas de ouro ou prata, outras eram feitas de brilhantes pedras preciosas
ou de ossos de mortais ou criaturas do submundo. Não olhei com atenção.
O Ira, no entanto, debruçou-se sobre os seus instrumentos.
— Move-te mais depressa.
— Não interfiro no teu trabalho, rapaz, por isso não interfiras no meu.
Agora pára de andar aí às voltas e senta-te, ou sai e descarrega a tua raiva
noutro lugar. — O seu olhar frio virou-se para o dele. — Fá-lo por ela, não por
mim.
O Ira não saiu, nem se sentou, nem teceu mais comentários, mas deu
espaço à matrona para trabalhar. Decidi que gostava desta mulher destemida e
perguntei-me quem era para o Ira. Ela tinha de saber que ele acabara de decepar
uma língua. Neste momento, o príncipe-demónio estava particularmente
furioso, e ela não lhe prestava a mínima atenção. Duvidava que muitos tivessem
a coragem de lhe virar as costas, sobretudo quando o seu poder se agitava como
uma víbora zangada, como naquele instante.
Não que estivesse a queixar-me. A sua maneira grosseira, ele estava a
cuidar de mim.
A matrona selecionou um par de tesouras finas e douradas com uma pega
em forma de asas de pássaro. Depois pegou num frasco cheio de um líquido
cerúleo cintilante, num frasquinho de ervas secas e escolheu outro cheio de
pétalas em tons de azul e prata. Levou tudo para a sua bancada de trabalho, tirou
uma taça de madeira de um armário, seguida de um almofariz e pilão.
Depois de um último olhar para tudo, virou os seus olhos de anciã para
mim.
— Preciso de uma madeixa do teu cabelo para a tintura.
— Não. — O pânico apoderou-se de mim e a palavra saiu-me da boca antes
que eu a pudesse deter. Os avisos da Nonna ecoaram-me nos ouvidos. Sempre
nos dissera para queimarmos o cabelo e as unhas que cortássemos em vez de
darmos a alguém a oportunidade de usar as artes das trevas contra nós. — Será
isso necessário? A dor já está a diminuir. Acho que Sua Alteza pode ter
exagerado.
Ela suavizou o olhar.
— Não tens nada a temer de mim, criança. Beberás a tintura até à última
gota. Depois queimaremos a taça. Não restará nada para aqueles que te desejam
mal.
Senti a atenção do Ira a queimar-me a nuca, mas recusei-me a olhar para ele.
A decisão era minha e só minha. Respirei fundo e acenei com a cabeça.
— Está bem.
A Celestia cortou uma pequena madeixa do meu cabelo e depois deitou-a
sobre a mistura que preparara: um terço de ervas e dois terços de pétalas. Moeu
tudo no almofariz até obter uma pasta.
Quando a consistência ficou ao seu gosto, sussurrou um encantamento numa
língua que me era desconhecida e depois adicionou umas gotas generosas do
líquido azul cintilante à mistura.
Verteu tudo para um cálice prateado com rosas gravadas na superfície e
agitou-o vigorosamente.
— Não será a bebida mais agradável que já ingeriste, mas as Lágrimas de
Saylonia irão melhorar um pouco o sabor.
— Lágrimas de Saylonia?
— Dizem que é a deusa da dor e da tristeza. Mas ela esconde mais do que
isso. As lágrimas são recolhidas num templo nas Ilhas Movediças.
— Onde ficam? Aqui?
Ela voltou a sua atenção para o príncipe, enquanto rodopiava a bebida na
direção oposta e o conteúdo transbordou devido à súbita mudança.
— Está quase pronto.
O Ira observava cada passo que a matrona dava na minha direção com um
brilho perigoso no olhar. Como se um movimento em falso sinalizasse a luta
para a qual ele se havia preparado.
Ignorei o seu comportamento estranho e voltei a minha atenção para a
mulher que se aproximava de mim.
— Uso o amuleto há décadas e nunca senti tamanha dor.
— Visitaste os Baixios do Crescente, não foi?
— Sim. — O meu cabelo estava húmido e não fazia sentido mentir. — Como
é que sabe?
— Foi apenas um palpite. Há um certo tipo de magia que não pode entrar
nessas águas sem consequências terríveis. Alguns dizem que as suas águas já
pertenceram às deusas e que elas queimam aquilo que não lhes serve. Outros
acreditam que os Temidos procuram recuperar o que lhes foi tirado. E não se
importam com a forma como irão restaurar o seu poder, apenas em obtê-lo. A
vingança é um objetivo brutal.
— Os Temidos? — Procurei na memória quaisquer histórias ou lendas de
infância, mas o nome não me era familiar. — É isso que chama às deusas ou aos
príncipes-demónios?
— Basta. — O tom do Ira era calmo, mas não admitia ser contrariado. —
Há quem ache sensato guardar para si superstições e contos populares antigos.
— Cruzou os braços sobre o peito, a sua expressão era dura como pedra. — Já
acabaste a tintura?
Olhei para baixo para ver o amuleto do chifre do diabo. O Ira dissera-me
para o manter. Lancei-lhe um olhar acusador.
— Esqueceste-te de me avisar sobre os perigos. E agora estás preocupado?
A Celestia semicerrou os olhos, mas manteve-se em silêncio por alguns
momentos enquanto continuava a agitar a tintura.
— Se ele soubesse do efeito que isso provocaria em ti, não te teria levado
lá. É sobre o seu outro segredo que o deves questionar. Ele está plenamente
consciente de que isso vos afeta a ambos. E, ainda assim, não disse uma palavra
sobre tal. Pergunto-me porquê. Talvez tenhamos por fim encontrado o vosso
calcanhar de Aquiles, Majestade.
O Ira ficou extraordinariamente imóvel. A temperatura na sala desceu o
suficiente para eu ver o vapor da minha respiração. As ampolas tilintaram
quando as prateleiras oscilaram com a força do poder que o demónio tentava
conter, a raiva que queria combater. Era evidente que a matrona tocara num
assunto sensível. Ainda mais intrigada com a sua resposta, estudei-o
atentamente. Ele estava quase irreconhecível. Não houvera qualquer alteração
na sua expressão fria, mas senti a imensa onda de magia que atraiu para si como
a maré.
— Cuidado — advertiu. — Estás a pisar em terreno perigoso.
— Bah. — Ela agitou a mão, sem se preocupar minimamente com a raiva
crescente que zumbia pelo ar. Entregou-me a taça e indicou-me que bebesse.
Desviei a atenção para o Ira, e o que quer que tivesse desencadeado a
manifestação do seu pecado homónimo desapareceu quando ele encontrou o
meu olhar preocupado. A temperatura voltou ao normal. Acenou com a cabeça
na direção ao cálice.
— Está tudo bem. Bebe.
Levei a poção aos lábios e detive-me. O cheiro não era nem um bocadinho
agradável. Enchi-me de coragem antes que a dor voltasse e bebi tudo de uma só
vez, ignorando o sabor enjoativo mas amargo das ervas. Os meus sintomas
desapareceram.
— Estás pronta, criança.
Devolvi-lhe o cálice e observei enquanto ela atirava a tigela de madeira para
as chamas. Ficou reduzida a cinzas numa questão de segundos.
— Devo tirar o amuleto agora?
Ela olhou para o Ira, uma sobrancelha grisalha levantou-se-lhe. Não me
virei a tempo de ver a sua reação, mas a matrona crispou os lábios. Voltou a sua
atenção para o meu pescoço antes de me olhar novamente nos olhos.
— Não. O amuleto já não te vai incomodar.
— Cuidado, Celestia.
— Vai brandir uma espada ou dar um murro noutra pedra e vai-te embora.
Julgavas que não ouviria da tua grande demonstração de temperamento? O
Domitius e o Makaden são uns tolos. Mas apenas um tolo ainda maior agiria
como tu. Outros poderão pensar que há novos pecados a despertar. Vossa Alteza
devia ser mais cuidado. Há outros a observar. E têm um interesse especial na tua
corte.
— Cuidado com o que dizes. — A sua fúria açoitou como as rajadas de
vento numa tempestade. Ela sorriu, mas não era o tipo de expressão amorosa
que uma avó daria ao seu neto. Estava coberta de aço. A expressão do Ira era
ainda pior. — Não recebo ordens tuas.
— Então considera-o uma sugestão. É irresponsável não lhe contares, de
qualquer maneira.
— Sim, eu gostaria muito de saber do que estão a falar. — Agora que a
minha dor havia diminuído, sentia-me irritada. Eu sabia que o Ira ainda
guardava segredos. Segredos que até a Celestia acreditava que eu tinha o direito
de saber. E depois do que acabara de acontecer entre nós na lagoa, não
tencionava tolerá-los por mais tempo. Lancei ao Ira um olhar mordaz.
— Alguém precisa de responder à minha pergunta. Agora.
A Celestia olhou para nós.
— Essa é uma conversa mais adequada a vocês os dois. Sozinhos. —
Naquela altura, o seu sorriso significava problemas. — Embora talvez queiras
levá-la para o Templo da Fúria, longe de onde poderão ser ouvidos. Tenho a
sensação de que irão acordar o castelo inteiro.
Dito isto, ela apressou-nos para fora da sua câmara de tinturas e bateu com
a velha porta de carvalho atrás de nós. Olhei para o príncipe. De uma maneira
ou de outra, ele contar-me-ia a verdade. Não conseguia compreender como é
que a Celestia podia saber do seu segredo e eu não, e o meu aborrecimento
estava a dar lugar à raiva. E essa emoção não fora causada pelo pecado daquela
Casa.
Quantos membros da sua corte teriam conhecimento da informação que ele
me escondia, que me pertencia? Era inaceitável que eu fosse a única a ser
mantida na ignorância.
— Quero a verdade. Acabaram-se as mentiras. Deves-me isso.
Ele parecia prestes a brandir uma arma. Embora a sua frustração não
parecesse dirigida a mim, nem sequer à matrona.
Talvez estivesse zangado consigo mesmo. Era claro que qualquer plano ou
conspiração que estivesse a levar a cabo chegara ao fim. E as coisas não haviam
corrido como ele esperara.
— Merda. — O Ira passou uma mão pelo cabelo e afastou-se de mim. —
Pensei que teríamos mais tempo. Mas depois desta noite, é óbvio que não
podemos esperar.
Não tive muito tempo para me sentar e pensar na minha decisão, pois pouco
depois de o Ira partir um criado chegou com uma caixa de roupa e um bilhete do
seu mestre. Dali a menos de uma hora jantaria com o príncipe daquela corte nos
seus aposentos privados. Ao que tudo indicava, o Inveja não queria uma plateia
para o nosso encontro.
Ou talvez não quisesse partilhar a sua última «curiosidade», como dissera
certa vez.
Senti os nervos a zumbirem-me no estômago como um enxame de abelhas. O
Inveja era implacável, mas sentia-me bastante confiante de que não me
magoaria para já. Não enquanto permanecesse neste reino e ele estivesse sujeito
a começar uma guerra com a Casa Ira. Estar associada ao Ira tinha certas
vantagens políticas, era inegável. Eu já não era apenas uma bruxa sem um
verdadeira corte demoníaca para me proteger. O Inveja teria de pensar longa e
profundamente antes de me apunhalar pelas costas.
No entanto, ter essa consciência não aliviava todas as minhas preocupações.
Era difícil pôr de lado a noite em que ele fizera os meus pais reféns e
controlara a nossa casa. Ainda era difícil acreditar que a Nonna o havia banido
para o submundo usando magia que eu não sabia que ela possuía. Aquele
vórtice giratório fora uma das coisas mais estranhas que eu alguma vez vira.
Afastei essas memórias e concentrei-me naquele tempo e lugar. Lembrei-me
do que o Ira me havia dito sobre vencedores e vítimas. Naquela noite, eu seria a
vencedora. Estava lá para obter informações.
E faria tudo o que estivesse ao meu alcance para ter sucesso. Se tivesse de
usar um traje à escolha do meu inimigo, que assim fosse. Era um preço
extremamente pequeno a pagar. Usaria o seu estúpido vestido e pestanejaria,
sempre a contar os segundos até conseguir o que realmente pretendia.
— Vamos ver que vestido escolheste, Príncipe dos Ciúmes.
Abri a caixa e revirei os olhos. O vestido era lindo, de um veludo verde-
escuro o suficiente para ser quase confundido com preto, mangas compridas,
um corpete apertado com um decote que se abria quase até ao umbigo e saias
esvoaçantes.
Uma única esmeralda do tamanho de um ovo estava presa a uma corrente
de prata brilhante. O mais provável era que o fio escandalosamente opulento
fosse uma bela arma que o Inveja desejava que eu usasse contra o seu irmão.
Imaginei a expressão do Ira a contrair-se quando visse o presente da Casa Inveja
a reluzir entre os meus seios.
Ao que parecia, os concursos de mijo não eram um passatempo exclusivo
para os mortais idiotas.
Considerei manter o meu vestido atual por despeito, mas depois pensei que
o Inveja poderia estar mais inclinado a partilhar informações se não tivesse de
escarnecer do traje ofensivo da Casa Ira. E também não tinha qualquer desejo
de me baixar ao seu nível de pretensão real ridícula.
Depois de me vestir e arregaçar as mangas para revelar os meus
antebraços, apliquei um pouco de pó nas maçãs do rosto e lábios. Peguei no fio.
A pedra preciosa era perfeita, e sem dúvida que faria a inveja de quem a visse.
Acabava de prendê-lo à volta do pescoço quando um criado entrou no meu
quarto.
— Se estiver pronta, acompanhá-la-ei ao jantar, Lady Emilia.
Esperara ter alguns momentos a sós para praticar a minha magia, para o
caso de as coisas correrem terrivelmente mal, mas mesmo algumas horas não
seriam suficientes para ultrapassar os anos de treino que me faltavam. Sorri para
o criado.
— Por favor, vá à frente.
Ao chegar à porta, vi o meu reflexo num espelho demasiado grande. Parecia
pronta para lutar da forma mais elegante e feroz possível. Estava a tornar-me
uma verdadeira princesa do Inferno.
Que a deusa ajude os demónios.
Dirigimo-nos para o fim do corredor oposto ao meu quarto. Como seria de
esperar, o Inveja alojara-me na ala real. Era melhor manter os inimigos por
perto e uma futura cunhada ainda mais. Perguntei-me se essa seria uma das
razões por detrás do estado de espírito do Ira. Era claro que os irmãos gostavam
de se provocar com muita frequência. No entanto, teriam de encontrar outra
coisa por que lutar. Vínculo mágico ou não, eu não pertencia a ninguém senão a
mim mesma.
Um guarda estoico baixou a cabeça, depois recuou e abriu a porta. Uma
divisão enorme estendeu-se à minha frente, na sua maioria camuflada pela
escuridão. Era para me perturbar.
Mas eu tinha pouco a temer nas sombras. Em breve, fariam a minha
vontade.
Entrei e detive-me para fazer uma avaliação completa da sala enquanto a
porta se fechava atrás de mim. Não era exatamente um estúdio nem uma sala de
jantar formal. Se estivéssemos no mundo mortal, seria semelhante a um
daqueles clubes de cavalheiros frequentemente retratados nos meus romances
favoritos.
Havia uma mesa circular com duas cadeiras posicionadas perto de uma
parede com janelas que oferecia um suave toque de luz. As velas num
impressionante candelabro prateado sobre a mesa estavam acesas e alguns
castiçais nos cantos mais afastados também acrescentavam um pouco de brilho.
A maior parte da sala estava nas sombras, incluindo a porta onde me
encontrava. Olhei para cima. O teto estava adornado com um fresco: criaturas
aladas sobre nuvens, algumas luminosas, algumas atormentadas.
Deixei que o meu olhar vagueasse pela sala e detive-o sobre a figura
sombria do príncipe. O Inveja estava sentado numa enorme cadeira de veludo,
perto de um canto escuro, um copo de líquido âmbar numa mão. Uma das suas
longas pernas estava levantada e o seu tornozelo repousava sobre o outro joelho.
Ele não poderia parecer mais confortável ou relaxado se tentasse. Ainda que a
força com que agarrava o copo me dissesse que não estava tão à vontade como
gostaria que eu pensasse.
Tomou um longo gole da sua bebida, escondendo o olhar, mas senti-o a
olhar-me de cima a baixo.
— Está claro que sabes como criar problemas, bicho.
Deixei-me ficar nas sombras.
— Posso ter garras, Vossa Alteza, mas garanto que não sou o bicho de
ninguém. Muito menos o vosso.
O Inveja inclinou-se para a frente até ser iluminado pelas velas e, de alguma
forma, mesmo quando se sentou, conseguiu empertigar o seu majestoso nariz. A
beleza severa das suas feições foi adornada com um franzido que demonstrava
não estar nada impressionado.
— Graças aos demónios por isso. Eu não partilho o que é meu.
— Reter amantes à força não é algo de que te devas gabar.
— O poder de decisão é atraente, a obrigação não é. O poder nem sempre faz
a coisa certa. A menos que a minha companheira de cama peça com jeitinho. —
Ele olhou para mim e eu perguntei-me quão bem ele conseguia ver na
escuridão. — Presumo que tenhas aceitado o meu convite para jogar com
emoções invejosas.
— Não te apraz inspirar inveja?
— Vir aqui para fazer ciúmes ao meu irmão não faz nada por mim. — Pousou
o copo numa mesa baixa e tirou um pedaço de cotão imaginário do fato.
Apanhei um vislumbre das esmeraldas da sua adaga a espreitar-lhe do casaco e
resisti à súbita vontade de a usar contra ele. Ele voltou a levantar o copo e
terminou a sua bebida. — Usar alguém é uma coisa muito grosseira sob
qualquer ponto de vista.
Se era nisso que ele acreditava, tanto melhor. Entrei na luz e vi o seu olhar
recair sobre a tatuagem metálica no meu antebraço. Divertira-o a primeira vez
que a vira. Agora sabia porquê.
— Na noite em que te conheci, sabias do meu noivado com o Ira.
Mencionaste algo sobre teias emaranhadas. Teria sido simpático da tua parte se
tivesses sido menos enigmático. Sobretudo se estivesses à procura de uma
aliança comigo.
— Caso ainda não tenhas reparado, eu não sou simpático. Nem finjo ser. E
mesmo que estivesse atormentado pela consciência, teria odiado estragar a
diversão. — Os lábios do Inveja contraíram-se com crueldade quando reparou
no meu fio. — É muito mais interessante sentar-me e ver como as coisas
correm. Alguns de nós até apostaram no resultado. Não consigo dizer o quanto
ganhei com o Ganância. Mas ele agora deve-me uma, e tenho a certeza de que
podes imaginar quão desagradado está com a situação.
Avancei pela sala com determinação. Havia um aparador com um copo
extra à minha espera e, sem esperar por um convite, verti dois dedos de líquido
âmbar e sentei-me na cadeira de veludo ao lado da do Inveja. Ele semicerrou os
olhos, mas não me admoestou pela minha indelicadeza. Ou pela falta de decoro
ou respeito pela sua alta patente.
— Querias que eu me juntasse à tua Casa, mesmo sabendo do laço
conjugal que partilhava com o teu irmão. — Tomei um pequeno gole,
antecipando o ardor. — Deve ser solitário. Ter de jogar tantos jogos sozinho.
— O que quer que estejas a tentar fazer, sugiro-te que pares enquanto ainda
me sinto hospitaleiro.
O seu tom era gélido, mas não foi capaz de esconder o clarão de dor nos
seus olhos a tempo. O meu primeiro tiro acertara no alvo. Rejeitei qualquer
sentimento de culpa. O seu instante de dor não era nada quando comparado com
o caráter definitivo do assassínio brutal da minha irmã.
— Quem diria. — Sorri por cima da bebida. — E eu que pensava que
ainda não tinha tido a oportunidade de testemunhar as tuas boas maneiras.
Primeiro, envias o teu cão de colo vampírico ameaçar-me, depois fazes a minha
família refém. E não nos podemos esquecer daquele pequeno incidente
desagradável nos túneis com o teu exército de demónios invisíveis e, claro, o
esventramento do Ira.
— Para alguém que está aqui em vez de estar com o seu noivo, pareces
realmente bastante chateada com isso. Pensei que o considerarias um favor.
— Perfurares-te com a tua própria adaga teria sido o maior dos favores.
Tal como quando o Ira estava de mau humor, a temperatura à nossa volta
pareceu disparar. Já sentira o horror gelado do poder e da influência do Inveja, o
ciúme frio que corroía todo o sentido de moralidade. As primeiras lambidelas
do seu poder roçaram-me a espinha, mas não me apanharam desprevenida.
Levantei uma mão, como que para remover uma madeixa de cabelo do
rosto, e passei os dedos por cima da Marca do Ira com subtileza. Isso quebrou a
influência do príncipe antes de poder criar raízes dentro de mim, como eu
esperava que acontecesse.
O Inveja mandou-se para trás e susteve o meu olhar. Um sorriso lento
espalhou-se-lhe no rosto, entorpecendo a cintilação da raiva.
— Estás cheia de surpresas esta noite. E eu que cheguei a temer que o jantar
fosse aborrecido.
Mantive a expressão calma, mas o meu coração estava acelerado. Se ele
tentasse usar o seu poder novamente, não tinha a certeza se o meu pequeno
truque funcionaria uma segunda vez. Ele pareceu pressenti-lo e considerou o
seu próximo passo. Fez-me lembrar um gato a tentar decidir se o pássaro a voar
à sua volta valia a pena o esforço de deixar o seu lugar ao sol.
O olhar do Inveja caiu sobre a adaga da sua Casa.
Removeu-a da sua bainha e passou um dedo ao longo da lâmina. A minha
mente não tinha dúvidas de que ele estava a fantasiar formas criativas de a usar
contra mim. Movi a mão ligeiramente em direção à minha própria arma, mas
não levantei a saia para a revelar. O que quer que acontecesse a seguir, estaria
pronta.
Ficámos ali sentados durante um tempo desconfortavelmente longo, tendo
como único som o tiquetaque de um relógio algures na sala. O Inveja acariciou
o metal e eu podia jurar que a lâmina quase ronronara. Assim que fui assaltada
pela certeza de que estava prestes a saltar, uma pancada soou na porta,
fraturando a tensão assassina entre nós. O Inveja devolveu a adaga ao seu lugar.
Por ordem sua, os criados entraram carregando bandejas de prata e pratos de
comida que pousaram na mesa circular perto do fim da sala.
O príncipe exibiu a sua impressionante estatura ao levantar-se e ofereceu-me
o seu braço.
— Esta noite, partamos o pão em vez de ossos, Bruxa das Sombras.
Levantei-me, ignorando o seu braço estendido. Não éramos amigos e não pensei
que ele fosse apreciar o meu fingimento quanto a isso. Tudo naquela noite me
parecia um teste.
Fui para a mesa e sentei-me enquanto uma cadeira era puxada para mim. O
Inveja não me pareceu insultado, apenas divertido, já que se sentou à minha
frente. Duvidava que muitos dos seus súbditos alguma vez o tentassem irritar.
Tal como com o Ira, era possível que a minha recusa em sorrir com afeto ao seu
enorme poder pudesse intrigá-lo o suficiente para me tolerar. A mim e às
minhas questões. Até se cansar delas. Deveria avançar com cautela ao pisar a
linha ténue que separava um leve desafio do ir longe demais.
— In vino veritas. — O Inveja dispensou os criados com um aceno da mão e
ele próprio encheu as nossas taças. — No vinho há verdade. Os mortais
impressionam de vez em quando. Embora suponha que sejam particularmente
suscetíveis no que diz respeito aos seus próprios vícios. Oferece vinho a um
homem e ele entoará versos sobre o seu sabor. Provavelmente até o irá comparar
com uma mulher com quem já dormiu. — O seu olhar deslizou para o meu. —
Ou com quem deseja fazê-lo.
Mordi a língua. Não acreditava que ele quisesse dormir comigo. E, se
quisesse, a sua única motivação seria usá-lo contra o seu irmão.
— Porque odeias os mortais?
— As suposições são a morte da verdade. — Ele tomou um gole generoso do
seu vinho. — Aconselho-te a não te aventurares por esse caminho. —
Gesticulou para o meu copo. — Já tentaste usar a tua magia na comida ou na
bebida?
— Não. Pelos sete infernos, porque haveria de fazer tal coisa?
— Oito. E pergunto porque podes encantar o vinho para te conceder a
verdade. Tal como com um feitiço da verdade. Quem o beber, ficará
subordinado à sua influência.
— E esperas que acredite que me estás a dizer isso por pura bondade do teu
coração?
— Não sejas tola. Asseguro-te que o mais próximo que chego da fibra moral
é através da ingestão de qualquer fibra que encontre no vinho de framboesa. Tu
queres a verdade e eu também. Porque não ter a certeza de que ambos
conseguimos o que queremos? Sem jogos.
Semicerrei os olhos.
— Deves querer algo verdadeiramente se estás disposto a sacrificar essa
informação ao teu inimigo.
— Esta noite podemos ser amigos. — Fez uma careta à palavra amigos,
como se a própria ideia o ferisse. Levantei uma sobrancelha e ele fingiu ignorar.
— Ou amantes.
Esperei para o sentir, para sentir a magia daquele mundo a seduzir-me com
pensamentos de camas e corpos e paixão. Como havia acontecido quase sempre
que a ideia de passar a noite com o Ira me passava pela cabeça. O Inveja era
bonito e o seu corpo ágil, mas com músculos fortes. Imaginei que seria solícito
com qualquer amante, mesmo uma por quem não tivesse particular interesse.
Nem que fosse apenas para as deixar furiosas de inveja quando as trocasse por
outra companheira. Não senti nenhum impulso romântico além do desejo
esmagador de lhe dar um pontapé.
— Se eu concordasse, levar-me-ias mesmo para a cama.
— Numa guerra, há sempre que fazer sacrifícios, querida. Eu faria o que
fosse necessário. Embora dificilmente fosse um sacrifício. A conversa de
almofada já é suficientemente agradável. Desvendam-se muitos segredos após
atos tão íntimos. — O Inveja contemplou o seu vinho com uma expressão
distante. — Agora sê amável e encanta o nosso vinho.
Hesitei. Queria respostas honestas às minhas perguntas, mas não tinha a
certeza se estava pronta para lhe dar o mesmo em troca. O Inveja podia
perguntar qualquer coisa e eu seria forçada a despir a minha máscara.
Alguns riscos valia a pena serem corridos. E outros não passavam de
burrice.
O Inveja inclinou a cabeça para um lado enquanto olhava para mim.
— Proteger a tua verdade vale mais do que descobrir a minha? Talvez seja o
medo que te esteja a prender. Talvez eu te devesse seduzir.
— Não me podeis levar a fazer a vossa vontade, Alteza. É sensato considerar
todos os ângulos antes de me submeter ao interrogatório.
— Poderia forçar-te a dizer-me o que quero, sabes? — O seu tom era leve,
casual. Como se as ameaças lhe saíssem da língua com a mesma naturalidade
que um comentário sobre o clima. Voltei a passar os dedos por cima da Marca,
atraindo a sua atenção para o meu pescoço. — Recorrendo à violência, minha
senhora. O Alexei não é o único membro com presas da minha casa. Se alguém
perder sangue suficiente, creio que os efeitos são bastante semelhantes ao do
vinho da verdade. Com menos prejuízo para mim, naturalmente.
Claro. Recorreria à estratégia de entregar-me aos seus vampiros. Voltei a
pensar na minha irmã. A Vittoria também deve ter feito alguns acordos difíceis.
Afastei-me da mesa e alguém se apressou a puxar a minha cadeira para
trás. Levaria algum tempo a habituar-me a ser tratada como se fosse um
membro mimado da realeza.
Pus-me ao lado do Inveja e tirei-lhe a taça. Sussurrei um feitiço de verdade
sobre ela e depois repeti o processo com as garrafas de reserva e com a minha
própria taça.
O sorriso do Inveja foi positivamente inquietante quando voltei a sentar-
me. Ele ergueu a taça.
— Um brinde a uma noite de sinceridade entre inimigos. Que os nossos
corações sangrem apenas pela perda da nossa dignidade e não por uma adaga
nas costas.
Bebeu tudo num só gole. Levantei as sobrancelhas.
— Isso é necessário?
— De todo. — Voltou a encher a taça e tomou outro grande gole. — Mas
também não dói.
Tomei um gole de vinho, insegura. O sabor era o mesmo. Se não tivesse
sido eu a proferir o feitiço, nunca teria desconfiado de nada. Franzi o sobrolho.
A súbita gargalhada do Inveja arrancou-me dos meus pensamentos.
— Vejo que as bruxas que te criaram guardaram muitos segredos. É
absolutamente delicioso.
— O quê?
— Ver o teu mundo perfeito desmoronar-se.
— És uma pessoa horrível.
— Minha querida, insistes em esquecer-te de que não sou uma pessoa. A
humanidade nunca foi uma das minhas aflições. — Encolheu os ombros e
voltou a beber. — Além disso, disse-o como um elogio. Uma fénix ergue-se das
cinzas por uma razão. O teu mundo tem de ser destruído para que possas voltar
a erguer-te. E irás fazê-lo. Tal como elas sempre temeram que o fizesses.
— Quanto tempo falta até que o feitiço da verdade comece a funcionar?
Ele terminou a sua bebida e não perdeu tempo a servir-se de outra.
— Já está a resultar.
— Gostas de mim?
— Acho-te tolerável. Se tivesses um fim violento, não verteria uma lágrima.
Nem me regozijaria. Prosseguiria como se nunca tivesses existido.
Funguei de uma forma muito pouco feminina e tomei mais um gole.
— Na noite em que a minha nonna te atacou... parecias conhecê-la. Como?
— As maldições são coisas curiosas. — Ele bebeu tudo outra vez e serviu-se
de mais. — Por vezes são como árvores. Ficam enraizadas no local onde são
plantadas. Outras são como flores silvestres. As suas sementes flutuam com as
abelhas e voam com os pássaros. Ficam emaranhadas, crescem e prosperam
longe do local onde foram depositadas pela primeira vez. São como as chaves.
Nem todas as chaves encaixam em todas as fechaduras. Algumas são muito
mais astuciosas.
Esperei que as suas divagações disparatadas se tornassem uma resposta
coerente. Ele apenas olhou para mim.
— Isso não é nem de perto o que eu perguntei. Estás bêbado?
— Bastante. — Aquele foi o primeiro sorriso genuíno que ele alguma vez me
concedeu. Uma covinha surgiu-lhe na face direita. Suavizou-lhe a dureza que
usava como uma armadura. — Mas o que eu disse é verdade. Há coisas que não
posso dizer, independentemente do feitiço que seja usado, porque há poderes
ainda maiores envolvidos. Eu conheço a tua avó. Embora conheça muitos outros
segredos interessantes. Queria saber como conhecera a Nonna, mas pouco podia
fazer para tentar arrancar-lhe informações que ele claramente não podia ou
queria dar.
— Fala-me sobre a maldição, então.
— É uma história tão antiga que apenas poucos conhecem as suas origens. E
até as suas memórias se tornam acobreadas com a idade e a pátina que se forma
sobre elas, entorpecendo o seu brilho até que a sombra do que foi é tudo o que
resta.
— Do que estás a falar?
— De maldições e memórias roubadas. E de desvendar muitas mentiras. —
Encostou-se de repente, quase derrubando a cadeira.
— O meu irmão nunca te vai forçar a casar com ele. Isso vai contra tudo o
que ele representa.
— Não te perguntei sobre o teu irmão.
— Não, mas imagino que estejas curiosa. Ele indicou-te que deseja que
completes a ligação?
Não queria responder, mas o feitiço da verdade atraiu as palavras aos meus
lábios.
— Ele falou comigo sobre isso, mas não indicou qual era a sua preferência.
— Não vou perguntar se o consideraste. Sobretudo porque sabemos a
forma como deve ser aceite. Pelo menos, em parte. — Tentei não parecer
aliviada, mas o Inveja deve ter visto o ligeiro brilho de tranquilidade no meu
rosto. O seu sorriso desdobrou-se num prazer cruel. — Ele pode não te forçar a
casar com ele, mas também não irá recuar para segundo plano como um
cordeirinho manso. Não é esse o seu estilo. Ele fará a sua presença e as suas
intenções conhecidas de todas as Casas reais. Como fez hoje.
Tomei mais um gole do vinho da verdade.
— Porque fazes isso?
— Perdão?
— Semeias sempre sementes de desconfiança entre mim e o teu irmão. —
Não precisei de beber o vinho para fazer a minha próxima pergunta. — Tens
assim tanta inveja dele? Ou apenas cobiças tudo aquilo que não te pertence?
— Nem sempre sou atormentado por pensamentos invejosos. — Os seus
olhos verdes brilharam com uma emoção que não era de troça nem de ciúmes.
— O temperamento do meu irmão fez com que algo importante me fosse tirado.
Espero retribuir o favor um dia. Não é a inveja que me motiva. É a retaliação.
Algo que eu imagino que tu e eu partilhamos, embora duvide que o admitas,
mesmo com o vinho da verdade.
Não o formulara como uma pergunta, por isso o feitiço não me obrigou a
responder.
— Faria tudo para ter a minha irmã de volta. Deves perdoar quaisquer
pecados que se tenham intrometido entre ti e o Ira. A felicidade deve ser a única
coisa que importa.
— Estou-me nas tintas para a felicidade dele. — O Inveja olhou para o seu
vinho, mas não bebeu. — Mas está claro que tu te importas. Mais do que
provavelmente te sentes à vontade para admitir. Estás apaixonada por ele?
Cerrei os dentes e agarrei o copo. Não ajudou. As palavras surgiram.
Concentrei-me na forma como o Inveja havia formulado a pergunta e deixei que
a verdade brotasse dos meus lábios.
— Não, não estou apaixonada por ele. Mas não nego que haja alguma
atração. Ele trouxe-me para este reino, vendeu a minha alma ao irmão e mentiu-
me em relação a ser o meu noivo.
— A senhora protesta demasiado.
— Shakespeare. — Quase revirei os olhos. — Que pomposo e previsível que
o cites. Devo invejar a tua educação agora?
Ele olhou para mim por cima do seu copo, um olhar de interrogação.
— Estranho, não é, que uma camponesa da Sicília tenha um gosto literário
tão refinado. Ou que leia de todo, já agora.
A sua insinuação irritou-me.
— Podemos não ter tido dinheiro e criados, Vossa Alteza, mas sabemos ler e
escrever.
— Suponho que me vais dizer que a tua habilidade se deve aos feitiços que a
tua avó te ensinou. Ou às receitas da tua casinha de comida ou outras tolices do
género.
— O que queres dizer com isso?
— Estou apenas curioso. Sabes o quanto me aprazem as curiosidades. Sorri.
Era a transição perfeita para as minhas próximas perguntas.
— Porque te interessas tanto em colecionar objetos?
— Interesso-me sobretudo por objetos divinos. Bem, isso não é inteiramente
verdade. — Riu-se, como se não acreditasse que a verdade ainda lhe estivesse a
fluir de forma tão espontânea. — Agora só estou interessado num objeto divino,
o Espelho da Lua Tripla.
— O que é isso?
Ele estalou os dedos e apareceu um criado. Sussurrou algo demasiado baixo
para eu ouvir e o lacaio saiu a correr, regressando pouco depois com uma caixa
de vidro com gravuras. Era simples, despretensiosa. Inclinei-me de imediato
sobre a mesa, na esperança de conseguir ver melhor.
— É um espelho dos deuses. Das deusas, devo dizer. — Passou o
indicador pela caixa de vidro, depois esfregou-o no polegar como se estivesse à
procura de pó. — Diz-se que foi imbuído da magia da Donzela, da Mãe e da
Anciã, e pode mostrar o passado, o presente e o futuro a qualquer um que o
solicite. Costumava estar nesta caixa, ou pelo menos foi o que me disseram.
Passado, presente, futuro, encontra. Arrepiei-me. Era quase igual ao que a
caveira enfeitiçada dissera, até à parte da Donzela, Mãe e Anciã.
O Inveja levantou a tampa, revelando uma almofada de veludo cor de
lavanda, com uma fenda na qual um espelho já lá estivera. Tentei o mais que
pude não reagir. Mas o meu coração batia-me desvairado no peito.
Se houvesse um objeto divino que me pudesse mostrar o passado,
conseguiria resolver o assassínio da minha irmã. E saberia de uma vez por todas
se realmente tivera alguma coisa que ver com o diabo a precisar de uma noiva.
Fui tomada por um entusiasmo. Tinha de ser isto o que a caveira queria
que eu encontrasse. Tinha a certeza. Se tivesse o espelho, já não teria de me
preocupar em casar com o Orgulho ou com o Ira ou escolher um lugar em
qualquer uma das suas Casas. Necessitava de encontrar aquele espelho.
— Soa-me a lenda infantil.
— Todas as lendas contêm fragmentos de verdade. — O seu olhar era
distante, contemplativo. — De qualquer forma, diz-se que é necessário o livro
de feitiços da Anciã, a Chave da Tentação e o espelho para ativar a magia da
deusa.
— Deixa-me adivinhar — baixei a voz para um sussurro conspiratório —,
tens tudo menos o espelho.
— Minha querida, acho que está na altura de veres pessoalmente as minhas
curiosidades. — O Inveja levantou-se. — Vamos?
Capítulo 16
O meu coração batia ao ritmo dos cascos dos cavalos enquanto a carruagem
se afastava da Casa Inveja. Afinal o Ira não viera para me acompanhar a casa,
enviara uma emissária e uma carruagem real. A emissária mostrou-se muito
satisfeita por salientar que não se tratava da carruagem pessoal ou dos corcéis
do príncipe. Apenas os que ele guardava nos estábulos.
Como se essa informação fosse de grande importância. Não tinha a certeza
do que sentia acerca do seu comentário desdenhoso ou por o príncipe ter
enviado alguém em seu lugar. A emissária, empertigada, permaneceu sentada no
seu lugar na carruagem, evitando deliberadamente o contacto visual e, assim,
qualquer conversa comigo.
Sentia-me confusa em relação ao seu óbvio desdém.
Estudei a demónia enquanto ela fingia dormir. Usava o seu cabelo vermelho-
escuro enrolado em torno de uma coroa, e a parte inferior era um conjunto de
longos caracóis penteados na perfeição. Um músculo no seu maxilar contraiu-
se, como se estivesse consciente do meu escrutínio e se esforçasse por reprimir
uma série de avisos. Talvez a sua raiva latente fosse apenas uma indicação da
Casa do Pecado a que pertencia e eu estava a dar-lhe demasiada importância.
Desviei a minha atenção para a janela. Por alguma razão, ela fechara as
cortinas antes de sair. Puxei-as para trás e ele olhou-me de relance.
— Deixe-as fechadas.
Respirei fundo pelo nariz, focando o meu crescente incómodo na sua atitude
rude. Discutir com ela não serviria de nada. E eu não precisava de outro inimigo
de quem desconfiar.
— Como se chama?
— Apenas precisa de se me dirigir pelo meu título.
Contudo, havia reparado que ela se recusava a chamar-me pelo título que o
Ira exigira que usassem na sua corte. Mas não me incomodou nem um
bocadinho. Eu não era uma mulher nobre.
— Muito bem, emissária. Onde está o Ira?
O seu olhar gélido encontrou o meu.
— Sua Alteza está ocupada.
Não havia como confundir a tensão na sua voz ou a advertência de que não
iria tolerar mais perguntas. Encostei a cabeça à lateral de pelúcia da carruagem.
Descemos firmemente a montanha, e eu tive de me contrair para me manter no
lugar, sem escorregar do assento. Depois do que me pareceu ser uma eternidade,
finalmente parámos. Ignorando a sua raiva, puxei as cortinas para trás e engoli
um suspiro.
Nunca tinha visto o exterior da Casa Ira. Da primeira vez que aqui cheguei,
estava a delirar nos braços do Ira, e havíamos entrado por uma montanha. O seu
castelo era enorme, com um portão, torreões, torres e uma enorme muralha que
abarcava todo o perímetro. As paredes eram de pedra clara e os telhados de
telha preta. Era um estudo magnífico de contrastes.
Trepadeiras, feitas de gelo sólido, estendiam-se ao longo das paredes.
Atravessámos os portões e avançámos até nos determos num caminho
semicircular. A emissária esperou que um criado de libré abrisse a porta da
carruagem e aceitou a sua ajuda para descer. Saiu sem olhar para trás, o seu
dever de apanhar a noiva errante fora cumprido.
Olhei para ela, perguntando-me porque teria sido tão fria e se eu teria feito
algo que a tivesse ofendido. Sabia que não. Tirando a minha surpresa ao vê-la
em vez do Ira, tinha sido amigável.
Uma suspeita desconfortável sobre a sua relação com o Ira infiltrou-se-me
na mente, mas bani-a. Recusava-me a deixar que aquilo me afetasse.
O criado de libré ajudou-me a descer e eu demorei-me a subir as escadas de
pedra em direção à porta da frente. À minha direita, escondido perto da parede,
havia um jardim dentro duma sebe. Anotei mentalmente para o visitar quando
fizesse mais calor.
Se fizesse mais calor. Como que de propósito, começou a cair uma neve
ligeira, cobrindo o castelo com uma fina camada de flocos cintilantes.
Apressei-me a entrar e sacudi o meu manto de viagem. Além do criado de
libré que estava a cuidar da minha mala, não havia criados à minha espera, o
que me fez descontrair.
Voltei para o meu quarto sem encontrar ninguém. Não havia criados a
limpar o castelo ou os seus muitos quartos. Não vi a Fauna ou o Anir ou o Ira.
Fiquei tremendamente grata por não me ter cruzado com nenhum dos outros
nobres residentes, como o agora sem língua Lord Makaden ou a tagarela Lady
Arcaline.
No entanto, à medida que a tarde se prolongava, comecei a ficar inquieta.
Não estava habituada a ter tanto tempo livre. Em Palermo estava sempre na
trattoria, a trabalhar na minha arte culinária em casa ou a ler, quando não estava
a cair exausta na cama após um dia de trabalho árduo. Além disso, raramente
estava sozinha — a minha família estava sempre lá, a rir e a conversar e a
transmitir-me o seu calor. Noutras noites, passeava na praia com a minha irmã e
a Claudia, enquanto partilhávamos segredos, esperanças e sonhos.
Até a minha irmã gémea ter sido assassinada. Depois, o meu mundo foi
irrevogavelmente alterado para sempre.
Incapaz de suportar a mórbida reviravolta nos meus pensamentos, fui até ao
quarto do Ira e bati à porta. Não obtive resposta. Considerei verificar se a porta
estava trancada, mas contive-me. Quando lhe invadira o quarto, após a sua
violenta explosão ao jantar, tinha uma desculpa válida.
Retornei para o meu quarto e decidi dedicar-me a voltar a encontrar a fonte
da minha magia. Fechei os olhos e concentrei-me no meu poço de magia
interior. Alguns segundos depois, aprofundei-me até ao meu centro e depois
despenhei-me. Senti-me como se tivesse batido numa parede de tijolo.
Tentei reunir energia para a voltar a localizar, mas dei por mim mais
exausta do que julgara estar.
Passara a maior parte da noite anterior acordada na cama, com medo que o
Inveja voltasse num acesso de fúria. E na noite antes dessa mal havia dormido
depois da confissão do Ira. Imaginei que para canalizar a Fonte precisava de
estar bem descansada. E o meu estado atual era precisamente o oposto.
Tirei o diário sobre a Casa Orgulho que levara emprestado da biblioteca do
Ira e folheei lentamente cada página, esperando encontrar algo escrito numa
língua com que estivesse familiarizada.
Foram esforços desperdiçados. Não havia sequer desenhos ou ilustrações
para decifrar. Apenas página após página de letras minúsculas no que poderia
ser um alfabeto demoníaco. A minha atenção não parava de se desviar para a
minha mala, para o objeto nela arrecadado que eu contrabandeara da Casa
Inveja.
Ainda não o queria tirar do seu esconderijo. Tinha um pressentimento de
que, em breve, alguém poderia vir à procura dele. Mal podia acreditar que tinha
sido tão fácil levá-lo. Demasiado fácil, na verdade. Parte de mim esperara que
os alarmes disparassem e que os demónios e vampiros Umbra aparecessem
assim que tirara o livro de feitiços da sua vitrina. Nada acontecera. Regressara
simplesmente ao meu quarto, cosera-o ao interior da minha mala e esperara por
um acerto de contas que nunca chegara.
Voltei ao momento e ao tempo presentes e folheei as páginas seguintes.
Concentrei-me mais uma vez no diário da Casa Orgulho, nas linhas onduladas
da caligrafia a esbaterem-se diante dos meus olhos.
Acordei várias horas depois, o rosto colado ao diário aberto.
Claramente, não era o meu tipo de livro. Um romance ter-me-ia mantido
acordada até às tantas; nunca conseguia virar as páginas depressa o suficiente
enquanto tentava desesperadamente saborear cada interação cheia de tensão
entre os protagonistas.
Adorava como se desprezavam a maior parte do tempo e como essa
centelha de desdém se transformava em algo completamente diferente.
A vida real não era nada como um romance, mas uma pequena parte do
meu antigo eu ainda esperava por um final feliz. Não havia como negar a faísca
entre mim e o Ira, mas a probabilidade de se transformar em amor não passava
de uma fantasia.
Penteei o cabelo e fui verificar novamente os aposentos do príncipe. O
demónio ainda estava fora. Ou não tencionava dar-se ao trabalho de abrir a
porta. Permaneci ali, a mão caindo para o meu flanco. Era possível que ele
estivesse chateado com a forma como eu me despedira dele na Casa Inveja. Mas
algo sobre isso não estava bem.
Ele estivera ao meu lado durante meses no mundo dos humanos, e depois
durante quase duas semanas ali. Se tivesse uma amante, talvez se tivesse
escapulido para a visitar. Decerto não contara que eu regressasse tão cedo.
Devia regozijar-me com a solidão. Não havia ninguém a olhar-me por cima do
ombro, nem desejos alimentados pela luxúria para completar um vínculo
matrimonial. Nenhuma distração. E no entanto... e no entanto não queria pensar
no porquê de me sentir tão inquieta.
Pedi que me levassem o jantar e comi no quarto, pensando na conversa
com o Inveja e em tudo o que tinha aprendido. Especificamente, no feitiço da
verdade que usara no vinho e no que isso poderia significar para o resto da
minha missão. A magia funcionara num príncipe do Inferno. E embora eu não
tivesse notado nada de diferente na nossa bebida, não significava que um
príncipe não conseguisse detetar algo de estranho. O Inveja sabia o que o
esperava, por isso não podia confiar nas suas reações.
O que eu queria era testar uma teoria. E precisava do Ira. Se conseguisse
encantar o vinho dele sem o seu conhecimento, poderia ter encontrado uma
habilidade útil para usar no Banquete do Lobo. Todos os príncipes estariam
presentes. Poderia sussurrar o feitiço durante o brinde e descobrir quem fora o
responsável pela morte da Vittoria sem que ninguém reparasse.
Se o Ira não detetasse o feitiço. Este plano apenas funcionaria se o teste
fosse bem-sucedido.
Na manhã seguinte, disse a mim própria que esse era o principal motivo
peio qual andara a passear pelo corredor à porta do quarto dele. Atenta a
qualquer sinal do seu regresso. É óbvio que não tinha nada que ver com ter
saudades dele. Ou com as minhas crescentes suspeitas quanto ao seu paradeiro e
companhia. O que era um disparate bem mais adequado à Casa Inveja. Talvez
não passassem de emoções residuais da minha visita à referida Casa do Pecado.
Se é que tais coisas sequer ocorreram.
Passaram-se dois dias e ainda não havia notícias do príncipe da casa. Tentei
invocar a fonte da minha magia mais algumas vezes, mas fui confrontada com a
mesma resistência. Não havia nada sobre isso no grimório, por isso restava-me
esperar. Eventualmente, acabaria por dominar o mergulho naquele poço.
Passava o tempo na biblioteca à procura de novas fábulas. Estava interessada
em aprender mais sobre a Árvore dos Condenados, em especial acerca do que se
dizia sobre ela conceder mais do que desejos.
Também procurei livros sobre a Chave da Tentação ou o Espelho da Lua
Tripla. Até então, todos os meus esforços haviam sido em vão. Por fim, quando
achei que iria enlouquecer, ouvi bater à minha porta.
— Olá, Lady Em. — O Anir sorriu. — Vim buscar-te para uma aventura.
— Lady Em? — Torci o nariz. — Nunca ninguém me chamou Em. Não
tenho a certeza se gosto.
— Isso é porque nunca foste a uma reunião clandestina. Vá lá. Veste uma
túnica e calças e vem ter comigo aqui. Estamos atrasados.
— Onde vamos?
Ele sorriu outra vez. Dessa vez o meu estômago contorceu-se com os
nervos.
— Já vais ver.
Decidi que o que quer que ele havia planeado teria de ser melhor do que
ficar sozinha no quarto ou vaguear pela biblioteca sem encontrar nada de útil,
por isso corri para os meus aposentos e vesti a roupa que ele sugerira.
Assim que me calcei, segui-o pelo corredor. Subimos um lanço de escadas e
parámos perto do fim de um longo corredor.
— Deixa-me apresentar-te... — O Anir empurrou a porta. — A sala de
armas.
— Pelas deusas. — Respirei fundo, embora não me devesse ter
surpreendido com tal grandeza, dado o papel do Ira como general de guerra.
Aquela era a joia da Casa Ira. — Impressionante.
— Dizem-me isso muitas vezes — brincou o Anir. — Entra.
Atravessei o limiar. Examinei o espaço cavernoso que parecia não ter fim.
As colunas dividiam a câmara em salas mais pequenas e interligadas. Se a
galeria do Inveja era a parte mais reveladora da sua personalidade, aquela era a
alma desnuda do Ira.
Bonita. Elegante. Mortífera. Polida a uma perfeição brutal e sem vergonha
de exaltar a violência. Permaneci parada enquanto catalogava tudo.
O teto de vidro permitia que a luz filtrasse para o interior e iluminasse o que
de outra forma seria um espaço escuro. As paredes e o chão eram de mármore
preto com veios dourados. Na sala principal, pela qual tínhamos entrado, havia
um desenho escondido — apresentando as fases da Lua de um lado, uma
miríade de estrelas do outro e uma serpente a engolir a própria cauda num
movimento circular — gravado a ouro no chão. Tanto quanto pude ver, cada
canto daquela secção do chão representava um dos quatro elementos. Parte do
desenho estava coberto por um grande tapete mesmo no centro.
Serpentes de ouro enrolavam-se em torno das colunas de mármore cor de
ébano, tornando-as as mais fantásticas e magníficas que alguma vez vira.
Espadas, adagas, escudos, arcos, flechas e uma variedade de facas reluziam
em ébano e ouro das suas posições cuidadosamente espaçadas nas paredes.
Virei-me enquanto absorvia todo aquele esplendor. No fundo da sala
encontrava-se o mosaico de uma serpente. Ao contrário do ouroboros gravado
no chão, o corpo desta estava enrolado num círculo intrincado. Recordava-me
algo, mas não tinha a certeza do quê.
Contra a parede do fundo, havia um fardo de feno com um alvo gigante
pintado no centro. Uma pequena mesa à sua esquerda e sobre ela um conjunto
de adagas alinhadas na perfeição. Observei-as fixamente, os meus dedos
ansiosos por agarrar o punho e atirá-las ao ar.
— A primeira lição será sobre a tua postura. — O Anir moveu-se para o
centro da sala de armas e apontou para o espaço no tapete à sua frente. Parei de
olhar para tudo boquiaberta e assumi o meu lugar onde ele indicara. — Deves
manter os pés bem assentes no chão, para que te deem apoio constante para
avançar, atacar ou desviar de um ataque rápido em qualquer direção sem
perderes o equilíbrio.
Mudei de posição para imitar a sua. Os seus pés estavam ligeiramente mais
separados do que a largura das suas ancas, um para a frente, o outro para trás.
Havia algo quase familiar naquela postura, mas eu nunca havia lutado ou tivera
motivos para receber aquele tipo de lições.
— Tens de distribuir o peso uniformemente. Certifica-te de que os teus
joelhos apontam na mesma direção que os teus dedos dos pés.
Baloucei um pouco, depois ajustei a minha postura. Mal tinha olhado para
cima quando o Anir se precipitou para a frente, oscilou o antebraço como um
aríete e fez contacto com o meu plexo solar, fazendo-me voar para trás. Os
meus braços agitaram-se no ar antes de aterrar de costas com muito pouca
graça.
Olhei para o meu professor.
— Você, signore, é horrível.
— Sou. E você, signorina, acabou de ter a sua primeira lição —
respondeu, o tom demasiado leve para as circunstâncias. Estendeu-me a mão e
ajudou-me a levantar. — Nunca deixes de prestar atenção ao teu adversário.
— Pensei que a lição era sobre postura.
— E é. — Ele piscou-me o olho. — Olhar para baixo não ajuda o teu
equilíbrio. Se tiveres de olhar para baixo, usa os olhos, não toda a parte superior
do corpo. A chave é teres consciência de ti mesma.
Repetimos o exercício com diversas variações daquele primeiro golpe e eu
acabava sempre estatelada no chão. Mesmo com o tapete macio por baixo,
estaria dorida na manhã seguinte. A cada golpe, sentia-me um pouco mais
confiante na minha postura, menos trémula. O suor escorria-me pela testa à
medida que praticava uma e outra vez.
Sabia bem treinar o corpo, esvaziar a mente.
Algum tempo depois, o Anir pediu uma pausa e limpou o suor do pescoço
e do rosto com um pedaço de linho. Estava pronta para continuar, mas dei um
passo atrás, saltitando nas pontas dos pés. Sentia-me viva, e os meus músculos
tremiam, mas era com fome de mais ação.
Ele dobrou-se pela cintura.
— Cinco minutos.
Segui-o até uma mesa lateral preparada com um cântaro de água e vários
copos.
— Onde está o Ira? — Não sei porque é que me limitei a perguntá-lo, mas
parecia-me estranho que o demónio da guerra não estivesse em lado nenhum
enquanto treinávamos na sua gloriosa sala de armas.
O Anir fitou-me pelo canto dos olhos enquanto servia um copo e bebia
metade do seu conteúdo.
— Pensei que não te irias importar com a sua ausência.
— E não me importo. Mas estou curiosa. — Como ele não respondeu, senti a
minha boca ridícula a tentar preencher o silêncio. — Ele parecia inquieto com a
minha decisão de visitar o Inveja. Pensei que me quisesse ver quando
regressasse.
— Perguntas por mim quando estou fora?
— Não.
— Ai!
Sangue e ossos. Eu repreendi-me de imediato quando o sorriso do Anir se
alargava. Servi-me de um pouco de água e tomei um longo gole.
— Só queria dizer que...
— Não fico ofendido. — Os seus olhos brilharam, divertidos. — Estás à
vontade para mentires a ti própria, mas comigo terás de te esforçar mais um
bocadinho.
— Está bem. A emissária irritou-me.
— A Lady Sundra? — O Anir fungou. — Não me surpreende. O pai dela é
duque, e ela nunca deixa que ninguém se esqueça da sua alta posição. Sempre
acreditou que iria acabar num casamento vantajoso com um príncipe.
— Ah. Por isso é que se tornou emissária. Isso garante a sua proximidade
com todos os membros da realeza.
— Vejam só a Lady Em. Até já pensa como uma nobre engenhosa. No
entanto, a maioria dos príncipes não planeia cair em nenhuma armadilha
matrimonial. Não importa quantas vezes as famílias nobres como a dela tentem,
os príncipes estão contentes como estão. O seu estado natural é estar chateada,
não é nada pessoal contra ti.
— Então, quanto mais alta a patente, mais os demónios exibem o pecado
com que se identificam.
— Do que eu aprendi no meu tempo aqui, sim. Embora ninguém consiga
ganhar poder suficiente para derrubar um príncipe. Eles são algo completamente
diferente. É como a diferença entre um leão e um tigre. São ambos grandes
gatos e predadores, mas longe de serem a mesma coisa.
— E os demónios menores? Eles são diferentes dos demónios nobres.
— De facto. E é por isso que tendem a escolher viver nos arredores dos
seus respetivos círculos.
— Se a Lady Sundra está mais bem alinhada com a Casa Ira, como poderia
casar-se com um príncipe representante de outro pecado?
— Seria raro, mas não seria a primeira vez que ocorreria uma mudança de
alinhamento.
Encostei-me à borda da mesa e pousei o copo.
— Sabias que o Ira tinha começado a aceitar o vínculo matrimonial na
noite em que o Viperidae me atacou.
— Todos saúdam a rainha da mudança de assunto. — Ofereceu-me uma
reverência dramática.
— Há alguma pergunta subentendida ou estás apenas à procura de
confirmação?
— Eu sei que não sou a sua primeira escolha para esposa — respondi,
ainda a pensar na filha do duque —, mas gostava de saber se havia alguém em
quem ele estivesse interessado antes... de tudo.
O brilho de diversão deixou o rosto do Anir.
— Não me cabe a mim partilhar a história dele.
— Não te estou a pedir que o faças. Apenas quero saber se havia mais
alguém.
— Mudaria alguma coisa se houvesse?
Pensei nisso. A minha curiosidade tinha um papel naquilo, sem dúvida,
mas mudaria, sim, as coisas. Eu rejeitaria o vínculo e o nosso destino seria
decidido pelo conselho de três que o Ira mencionara.
Se ele amasse alguém, bem, isso deixar-me-ia desconfortável e também
ficaria com o caminho livre para ir atrás do Orgulho. O que permanecia a forma
mais segura de alcançar o meu objetivo de vingança.
A não ser, claro, que eu vencesse o Inveja e encontrasse o mítico Espelho
da Lua Tripla. E se um príncipe-demónio não conseguia sentir que o vinho ou a
comida estava enfeitiçado, poderia descobrir a verdade dessa forma. Mas
precisava de praticar num príncipe do Inferno, que por sinal ainda estava
notavelmente ausente, maldito seja.
Voltei ao assunto em questão. Não queria ficar presa num casamento sem
amor com o Ira se o coração dele estivesse ocupado por outra pessoa.
— Sim. Mudaria. Mudaria muita coisa.
— Cuidado — disse uma voz profunda atrás de mim. — Ou posso pensar
até que gostarias de casar comigo.
Capítulo 17
Irrompi pelo meu quarto e bati a porta com força suficiente para abanar o
enorme quadro pendurado perto da casa de banho. De todos os truques
arrogantes, maldosos e desagradáveis... Sim, eu concordara com o maldito
acordo, mas não sabia que se tratava de um contrato vinculativo.
As minhas faces ardiam de fúria. Perder o controlo perturbara-me mais do
que qualquer um dos seus truques demoníacos. Quando ele entrara naquela sala
de treino, tinha um plano e executara-o sem falhas. E havia ficado à sua mercê.
Aquilo. Aquilo era o núcleo da minha raiva.
— A partir de agora, vais dirigir-te a mim como mestre. — Trocei, na minha
melhor imitação da sua voz. — Besta detestável.
Fui à minha casa de banho e comecei a esfregar o sangue das mãos, ainda a
ferver de raiva contra o Ira. Embora não tivesse parecido particularmente
convencido ou satisfeito com os seus esforços, isso não mudava o facto de ter
libertado o seu poder sobre mim. Sequei-me e andei em círculos pela sala.
Sentia-me irritada com ele por provar o seu ponto de vista, mas sentia-me ainda
mais furiosa por ter ficado quase indefesa.
Tudo isso à parte, tinha de admitir que era muito melhor estar sujeita à
influência do Ira, porque, por muito miserável que fosse, pelo menos sabia que
ele não iria levar as coisas demasiado longe. Podia obrigar-me a despir-me e
implorar, ou a cravar uma adaga no seu coração, mas ele nunca tentaria
aproveitar-se ou levar-me a fazer mal a alguém.
Olhei para as minhas mãos, que agora estavam limpas. Um pensamento
inquietante assomou-me à mente. Se um príncipe-demónio quisesse, sob as suas
ordens eu seria capaz de matar alguém. O Ira demonstrara-me isso naquela
noite. Parte de mim queria esfaqueá-lo, mas eu nunca teria atravessado essa
linha sozinha.
Pensei no Antonio, como era claro que ele havia agido sob algum tipo de
influência. Se o Ira podia dominar outros pecados com tanta força e facilidade,
era lógico que os seus irmãos também possuíam o mesmo talento.
O que significava que qualquer um deles poderia ter manipulado o Antonio
para que matasse as bruxas. O seu ódio já estava presente pela forma como a
sua amada mãe havia morrido. Não teria sido preciso muito para trazer essa
emoção à superfície, usando-a contra ele.
Afastando pensamentos e preocupações sobre o assassino da minha irmã e o
voto do Banquete do Lobo, fui até ao guarda-roupa e vesti um vestido preto
simples.
Olhei para baixo quando algo esbranquiçado surgiu da escuridão. Uma das
caveiras encantadas havia escorregado do seu esconderijo ao ter puxado o
vestido para fora.
Dei um suspiro. Ainda tinha de resolver o mistério por detrás das caveiras e
descobrir se fora o Inveja a enviá-las. A minha mente foi invadida por dúvidas
quanto ao seu envolvimento em tudo isto. Fazia pouco sentido que ele me
enviasse as caveiras em segredo apenas para partilhar informação de forma
aberta comigo.
Baixei-me para a voltar a tapar com um lenço quando a porta exterior dos
meus aposentos se abriu.
— Emilia, eu queria... — O olhar do Ira recaiu sobre a caveira encantada. O
que quer que ele estivesse prestes a dizer foi imediatamente esquecido quando
atravessou a sala num redemoinho de preto, ouro e fúria. Arrancou a caveira do
meu guarda-roupa e virou-se, olhando para mim como se mal me conhecesse.
— O que?...
— A menos que desejes que te esbofeteie com um feitiço mais do que
desagradável, sugiro que reconsideres o teu tom. Já não estamos na tua sala de
treino. Não irei tolerar tamanho desrespeito fora das nossas aulas.
Ele inspirou profundamente. Depois expirou. Repetiu ambas as ações. Duas
vezes. A cada inspiração e expiração, juro que a atmosfera se tornou cada vez
mais carregada. As nuvens de tempestade estavam a acumular-se.
— Poderia ter a gentileza, minha senhora, de me explicar como tomou posse
disto? Gostaria muito de saber.
Pude sentir uma veia a latejar-lhe na garganta. Depois do que ele me obrigara
a fazer-lhe, senti uma satisfação perversa ao vê-lo tão zangado.
— O que estás aqui a fazer?
— Vim pedir desculpa. Responde-me. Por favor.
— Alguém ma enviou. Tal como a segunda caveira.
— Segunda caveira? — murmurou como se se forçasse a manter a educação
contra a incredulidade que alastrava nas suas feições. — E, por favor, poderia
dizer-me onde se encontra agora essa outra caveira?
— No meu guarda-roupa. Atrás daquele vestido ridículo com a saia enorme.
Sem mais palavras, o Ira procurou calmamente no meu guarda-roupa e
recuperou o objeto em questão. Manter a calma pareceu exigir-lhe um esforço
hercúleo.
— Posso perguntar quando chegou a primeira caveira?
— Na noite em que o Anir me trouxe comida e vinho.
— Na primeira noite em que estiveste aqui? — A sua voz subiu de volume.
Acenei com a cabeça, o que aparentemente o levou a ranger os dentes. — E não
achaste que valia a pena partilhar essa informação porque?...
O meu sorriso era tudo menos doce.
— Não sabia que precisava de o informar, mestre. Terias respondido a
alguma das minhas perguntas?
— Emilia...
— Qual dos irmãos possui este tipo de magia? Quem iria querer
ridicularizar-me? Alguém deve odiar-me muito. Encantaram as caveiras com a
voz da minha irmã. Mais uma preciosa adaga direitinha ao meu coração. Tens
algo a acrescentar?
Levantei as sobrancelhas, sabendo que ele nada diria. Os lábios do
demónio tornaram-se uma linha firme, e não consegui evitar o riso sombrio que
me borbulhava na garganta.
— Já suspeitava. Mas posso prometer-te uma coisa, não será a última vez
que escolho limitar-me aos meus próprios conselhos até ter investigado a fundo
por conta própria. — Apontei para a porta. — Por favor, sai. Já te aturei o
suficiente por uma noite.
Ele semicerrou os olhos quando o dispensei. Duvidava que alguém alguma
vez lhe tivesse falado assim. Já estava na hora de se habituar a isso.
— Em relação ao treino anterior...
— Sou absolutamente capaz de compreender o valor da lição, por mais
terríveis que sejam os teus métodos. Independentemente do nosso acordo, no
futuro, perguntar-me-ás se quero treinar. — Enverguei uma cuidadosa expressão
de indiferença. — Se não planeias partilhar informação comigo, este
interrogatório termina agora. Põe as caveiras onde estavam e sai daqui.
— As caveiras serão guardadas num lugar seguro.
— Não tenho qualquer interesse na ambiguidade. Sê específico.
Se permitir que leves as caveiras, onde as guardarás?
— No meu quarto.
— Quero vê-las quando quiser. E partilharás comigo qualquer informação
que descubras.
Ele olhou-me fixamente.
— Se vamos começar com exigências, então, desde que concordes em jantar
comigo amanhã, acederei ao teu pedido.
— Não te posso dar uma resposta esta noite.
— E se eu insistir?
— Então terei de recusar, Alteza.
— Podes recusar a conversa esta noite. Recusar-te a jantar comigo. Mas
iremos falar sobre tudo isto. Em breve.
— Não, Ira. Falaremos sobre isto quando ambos estivermos preparados. —
Vi-o assimilar a minha declaração. — O teu treino e a tua influência apenas
serão consentidos naquela sala. Em qualquer outro lugar, respeitarás os meus
desejos.
— Caso contrário?
Abanei a cabeça, triste.
— Entendo que o teu reino é diferente, que os teus irmãos são diabólicos e
coniventes, mas nem todas as declarações são uma ameaça. Pelo menos, não
entre nós. Há uma coisa que tens de saber: de agora em diante, se não
respeitares os meus desejos, não permanecerei aqui. Isto não é para te castigar,
mas para me proteger. Perdoarei a tua feita de decoro, julgamento e decência
básica se prometeres aprender com este erro. No entanto, partilharás toda a
informação que receberes sobre as caveiras, quer eu decida ou não jantar
contigo. Combinado?
Ele olhou para mim, olhou mesmo para mim, e por fim anuiu.
— Aceito os teus termos.
O Ira pegou nas duas caveiras e deteve-se quando o seu olhar aterrou na
minha mesa de cabeceira. No diário sobre a Casa Orgulho.
— Como planeavas lê-lo? Deixa-me adivinhar. — A sua voz tornou-se
suspeitosamente baixa. — Ias fazer um acordo com um demónio? Oferecer um
pedaço da tua alma?
— Cheguei a considerá-lo.
— Permite-me poupar-te a esse trabalho. Não está escrito em linguagem
demoníaca. E nenhum acordo que faças com quem quer que seja, a não ser
comigo, te dará as respostas que procuras em qualquer um desses diários. Tudo
o que tinhas de fazer era pedir e eu ter-tos-ia dado. Roubar era desnecessário.
— Talvez. Mas ter-me-ias providenciado uma maneira de o ler?
— Não sei.
Ele deixou a sala. Esperei até ouvir o clique da porta a fechar-se antes de me
encostar à parede.
Contei as respirações, esperei até ter a certeza de que ele não voltaria, e
depois deixei que as lágrimas viessem com força e depressa. Dobrei-me, os
soluços a sacudirem-me o corpo, consumindo-me. No espaço de uma hora, fora
sujeita a múltiplos pecados e apunhalara o meu possível futuro marido. Esta
noite poderia claramente ser classificada como infernal.
Sentei-me de repente, o peito agitado enquanto lutava por controlar as
minhas emoções.
Sequei a cara e prometi a mim mesma, mais uma vez, que derrotaria os
meus inimigos. Mesmo aqueles que já não pareciam ser adversários.
Capítulo 19
Se o meu coração batesse com mais força, poderia partir uma costela.
Fora-me dito que teria uma escolha, mesmo que no final fosse encorajada a
escolher a casa anfitriã. Não pude deixar de temer que outras regras acabassem
por ser postas de lado à última hora.
Olhei para o convite, cuja elegância contrastava fortemente com o pânico
que induzia. Ter sido escolhida como convidada de honra não me surpreendera
— o Ira deixara bem claro que havia grandes hipóteses de ser eu a
desafortunada —, mas vê-lo a preto-e-branco fez com que tudo parecesse
terrivelmente real.
Sobretudo a parte do meu maior medo ou de ter um dos segredos do meu
coração arrancado à força diante de todos os convidados. Com as «lições» do
Ira e a mortificação e o horror que implicavam tão frescas na minha mente, eu
senti que ia vomitar.
— O que é isso? — A Fauna pôs o seu livro de lado. — Sua Alteza mandou
chamar-te?
— Não. — Deixei escapar um suspiro. — É o convite para o Banquete do
Lobo.
— Tão cedo? — Ela saltou do sofá, estendendo a mão com um entusiasmo
impossível de conter. — Quem é o anfitrião desta temporada? — Passei-lhe o
convite, e a sua boca abriu-se de espanto enquanto o lia. — A Casa Gula.
Interessante. As festas dele são lendárias pela sua devassidão. O Inveja e o
Ganância devem ter retirado as suas candidaturas a anfitrião.
— Imagino que o Príncipe Gula terá muita comida.
— Não é só isso. A sua casa é o puro reflexo da indulgência a todos os
níveis. O álcool flui das fontes, a roupa é opcional no seu jardim crepuscular e
os encontros íntimos acontecem frequentemente em salas de vidro no próprio
salão de baile. Não há nada de clandestino no seu mundo. Tudo está disponível
para consumo: carne, comida, bebida, desejo carnal e todo o tipo de vício.
Sabias que o anfitrião era ele?
— É a primeira vez que oiço falar disto. Já foste a uma das suas festas?
— Não. Da última vez que ele foi anfitrião, eu era demasiado nova. Sempre
tive curiosidade. Algumas das histórias assumiram uma aura surreal, semelhante
a uma fábula. É difícil saber o que é real e o que é pura fantasia. Sobretudo com
o que aquela escritora publicou sobre ele no seu último artigo sobre a realeza.
— Imagino que os colunistas tenham muito em que se inspirar.
— Oh, e têm, e ela mais do que qualquer outro. Ela odeia-o mesmo. Diz-se
que ele arruinou a hipótese de o primo dela casar com um membro da nobreza, e
foi por isso que ela pegou na caneta amaldiçoada. Que escândalo! — A Fauna
soltou um suspiro feliz e depois uniu as sobrancelhas como se um novo
pensamento ameaçasse de repente encobrir-lhe o sonho ensolarado. A sua
atenção desviou-se mais uma vez para o convite. — Que medo achas que te será
arrancado do coração?
— Qualquer que seja, tenho a certeza de que será horrível.
— Talvez possamos trabalhar em algo que não seja muito mau.
— Se apenas a preocupação de dançar num baile sem pisar os dedos de
ninguém e causar uma cena fosse o meu maior medo.
Que dançar me deixava nervosa não era propriamente uma mentira. Nunca
fora a um baile real ou formal antes. Apenas dançáramos em festivais com
outras pessoas da nossa zona. Aqui, toda a gente estaria a assistir, a julgar. Não
me deveria importar com o que eles pensavam ou se se ririam de mim, mas
quando me imaginava ali de pé, vulnerável e exposta, o meu estômago encolhia.
— És um génio! — A minha amiga virou-se lentamente para mim e exibiu
um grande sorriso. — Podemos encontrar um feitiço ou uma poção. Vamos
transformar-te na pior dançarina dos Sete Círculos, digna do teu maior medo.
— Fauna — adverti. — Estava só a brincar.
— Não, pode funcionar. Se bebesses uma poção para fazer com que esse
medo ganhasse vida de forma desproporcionada, é ainda mais provável que te
seja arrancado enquanto estás no baile.
— E se descobrirem o ardil, o que acontece?
— Apenas temos de nos certificar de que usamos um feitiço ou uma poção
de primeira categoria.
— Ainda assim, a realeza consegue sentir a traição e as mentiras.
— Bastar-nos-á praticar para nos assegurarmos de que fica perfeito.
— Não há necessidade de te preocupares com isso, porque não vamos
enganar ninguém, Fauna.
— Devíamos perguntar à matrona se ela pode... — A Fauna desviou a sua
atenção do convite e contemplou a minha expressão. — Sangue de anjo. Parece
que precisas de uma distração com alguma urgência. Tenho o lugar perfeito em
mente. Anda, vamos lá.
Sem me dar hipótese de me opor, agarrou-me no braço e apressou-nos para
fora dos meus aposentos. O convite caiu-lhe da mão, esquecido por agora. Pelo
menos para ela.
O medo bateu-me no peito como um tambor, o ritmo constante e
implacável. E suspeitei que fosse manter-se assim até ao temido banquete.
A ideia da Fauna de uma distração não me poderia ter servido melhor. Após
quase me arrastar pelos corredores reais, descendo vários lanços de escadas e
atravessando o salão dos criados, chegámos, por fim, a uma cozinha
movimentada. Fiquei ali parada, a absorver as vistas e os sons.
O pessoal da cozinha estava a preparar a ementa para o jantar e a cozinha
estava a vibrar de vida.
Várias mesas encontravam-se dispostas à volta do espaço, com grupos de
trabalhadores designados para diferentes tarefas. Alguns estavam a cortar
vegetais, outros a trinchar carnes, outros a amassar massa para pães e bolachas.
Havia ainda mais pessoas diante de panelas e frigideiras.
Senti uma ameaça de lágrimas, mas reprimi-a. De nada me serviria chorar à
frente dos trabalhadores da Casa Ira.
O cozinheiro olhou para nós e depois apontou para uma mesa perto de uma
parede cheia de janelas. Estavam abertas, para deixar sair o calor do fogo dos
fornos.
— Pode usar tudo o que desejar, Lady Emilia. Se não encontrar o que
precisa, basta pedir.
— Obrigada.
— Agradeça a Sua Alteza. Ordenou-nos que lhe providenciássemos tudo o
que quisesse.
— Ah, sim? — A Fauna mal escondeu o seu risinho enquanto avançava mais
na cozinha. — Que incrivelmente atencioso, não concorda, Lady Emilia?
— Claro.
Olhei em volta. Não era nada como o nosso pequeno restaurante familiar —
este era muito maior e imponente —, mas, ainda assim, senti-me como em casa.
Contra o meu melhor juízo, fui trespassada por uma onda de gratidão. O Ira
adivinhara que eu acabaria por ir até lá, ao único lugar naquele reino que me
seria familiar como nenhum outro. E deixara claro ao pessoal que eu seria livre
de fazer o que me apetecesse. Senti-me igualmente grata a eles por me
acolherem no seu domínio.
Voltei-me para o chefe de cozinha.
— Obrigada por me deixar entrar na sua cozinha.
Ele inclinou a cabeça e voltou a gritar ordens aos cozinheiros da linha da
frente.
A tensão nos meus membros dissolveu-se quando remexi na caixa de gelo
e vi um cesto cheio de bagas. Junto a ele encontrava-se um frasco com o que
suspeitei ser ricota. A minha mãe era a mais talentosa da família com as
sobremesas, mas eu aprendera o suficiente para fazer uma tarte com as bagas.
Juntei todos os utensílios e produtos necessários e montei a minha área de
trabalho perto da janela gigante. Em poucos minutos tinha a massa da tarte
preparada. Apressei-me a lavar as bagas e coloquei-as sobre um pano para
secar, à espera do açúcar com que as iria polvilhar. Talvez também fizesse um
custard.
O som de metal contra metal chamou a minha atenção. Do outro lado da
janela, o Ira e o Anir andavam de um lado para o outro, as suas espadas e
punhais colidindo como trovões. Não pude evitar ficar boquiaberta enquanto se
atacavam um ao outro, açoitando o ar com as armas. Saltavam, literalmente,
faíscas de cada vez que as suas armas se encontravam.
Lancei um olhar acusador à Fauna.
— Vejo que a cozinha não era a única distração que tinhas em mente.
O seu sorriso era demasiado largo para ser inocente. Saltou para o
parapeito da janela, pegou numa caneta e num caderno e fingiu escrevinhar com
grande dedicação enquanto espreitava por cima das páginas e observava os dois
guerreiros numa batalha simulada. Moviam as respetivas espadas acima da
cabeça, os seus corpos poderosos tensos pelo esforço do treino e por levantar as
pesadas armas.
— Não faço ideia do que quer dizer, minha senhora. Desconhecia que eles
estavam aqui.
— És uma péssima mentirosa. — Observei-a enquanto ela fitava o Anir
com uma expressão sonhadora e lembrei-me de ter visto os dois a conversar
antes da remoção da língua do Makaden. — Há quanto tempo estás apaixonada
por ele?
Ela virou-se para mim e olhou-me nos olhos.
— Porque achas que me preocupo com o mortal?
— Quando nos conhecemos, disseste que conheceria o alvo do teu afeto e
ainda não paraste de olhar para ele. Não me irei intrometer se preferires guardar
segredo, mas eu gosto do Anir. — Fiz sinal com a cabeça para a área da
sobremesa que havia montado. — Não tenhas medo de pegar no rolo da massa e
ajudar. Ele não morde.
Ela riu-se de detrás do seu caderno.
— Talvez não, mas já viste a forma como o príncipe olha para ti? É à sua
mordidela que deves ficar atenta.
Estendi a massa para a base com uma concentração inigualável, fazendo tudo
o que estava ao meu alcance para não olhar para ele. De todos os lugares em
todo o castelo, ele tivera logo de escolher aquela altura para treinar, com uma
armadura de couro sem mangas, diretamente em frente das janelas da cozinha.
Apesar de desconfiar de que a Fauna fosse igualmente culpada em relação a
este suposto encontro inesperado.
— Ele adora doces — justifiquei, ao perceber que ela ainda estava à espera
de uma resposta. — Deve estar a olhar para a tarte.
— Não me parece que a sobremesa seja a única coisa que ele queira provar,
minha senhora. Quem me dera que o Anir olhasse para mim com tanto desejo.
— Insinua-te.
— Acredita, se ele mostrasse qualquer sinal de estar recetivo aos meus
avanços, atirar-me-ia sem hesitar. Sua Alteza parece estar a viver o mesmo
dilema neste preciso momento.
O meu olhar traiçoeiro deslizou para a janela. A luz de uma tocha fez refletir
o brilho do suor que o Ira adquirira ao brandir a espada. Os nossos olhares
cruzaram-se quando o metal da sua lâmina encontrou a do Anir. A Fauna estava
certa. O Ira parecia estar a debater-se com a magia da nossa ligação. E estava a
perder a batalha. Ele não se preocupou em esconder o seu olhar.
Prontamente, voltei a estender a massa, usando mais concentração do que a
necessária.
Não conseguia esquecer a sensação da adaga a deslizar-lhe para a carne.
Deixei o rolo de massa de lado e comecei a trabalhar no custard, forçando o
som de ossos a quebrar para fora dos meus pensamentos.
— Se me permites, o favor que ele te concedeu não foi pequeno.
— Que favor?
— Não insistir que finalizes o vínculo matrimonial. Não se tem falado de
outra coisa.
Esperava que o rubor nas minhas faces pudesse ser confundido com o efeito
do calor da cozinha. Fabuloso. A corte inteira estava imersa em mexericos sobre
a nossa suposta vida sexual.
— Está claro que este reino precisa de aprender a diferença entre escolhas e
favores.
Ela encolheu os ombros.
— Há quem diga que a tua escolha foi feita na noite em que iniciaste o
noivado. Na verdade, foi ele quem não teve escolha.
— Custa-me a acreditar que o Ira tolere que a sua corte discuta assuntos que
apenas nos dizem respeito a nós.
— O teu possível futuro como princesa deste círculo faz com que diga
respeito a todos nós.
— Eu...
— Ninguém te censura. É só que... ter um co-governante concede mais poder
à realeza. Protege-nos de quaisquer príncipes aborrecidos de outras casas.
Aqueles que gostam de causar problemas de vez em quando. Os príncipes são
imortais, e embora a maioria dos demónios tenha vidas extremamente longas,
nós não. A maioria preocupa-se que, se a corte entrar em guerra, o nosso
príncipe não faça tudo o que estiver ao seu alcance pelo bem do nosso reino. Há
sussurros de que ele pode estar a enfraquecer.
— Isso é ridículo — escarneci. — Ele é o príncipe mais poderoso que já
conheci.
— Não é o seu poder que está em causa, apenas o seu coração. Ele poderia
seduzir-te facilmente. Usar a sua influência se fosse precisa E mesmo assim está
a dar-te tempo para decidires por ti mesma.
— Lamento, mas tenho dificuldade em compreender como é que isso pode
ser um conceito tão estranho para ti. Os membros da corte acham mesmo que eu
devia ser obrigada a casar-me com ele? Ou a dormir com ele contra a minha
vontade? No mundo mortal, existem leis contra esse ato repugnante.
— Eu não estava a falar de violação, minha senhora. Essa prática não é
tolerada aqui, não sem que o Ira acabe com a vida de quem se atrever a tomar
alguém contra a sua vontade. — A Fauna olhou para mim. — Não fiques tão
surpreendida. Os Sete Círculos podem ser governados pelo pecado, mas alguns
atos são demasiado depravados, mesmo para o nosso reino. O castigo para a
violação é a morte. Executado pela própria mão do Ira. Há cortes que preferem
a castração. Prometo-te que se um príncipe decidisse seduzir-te, sobretudo o
nosso, escolherias de bom grado subir para a sua cama por livre vontade.
— E a corte questiona o porquê de ele não tentar seduzir-me?
— Entre outras coisas. — Ela encolheu os ombros enquanto o meu olhar se
desviou do custard para ela. — Considera isto: se um dos botões do seu fato
estiver desalinhado, a corte irá falar. Creem que se um príncipe não é capaz de
cuidar de algo tão simples como a sua roupa, não há esperança de que se
preocupe com aqueles que vivem neste círculo.
— Devem ter muito tempo livre se se dedicam a espalhar mexericos sobre
botões desalinhados.
— Nunca é realmente sobre a roupa. É sobre o significado subjacente ao
motivo que levaria o príncipe a não prestar atenção suficiente ou a não se
preocupar com esses pequenos detalhes.
Pensei em como o Ira ficara ofendido com aquela velha camisa do
mercado que eu lhe dera. Na altura, tomara-o por um homem arrogante que não
estava habituado a usar roupa de camponês. Agora sabia que se devia a algo
muito mais profundo: se alguém deste reino o tivesse visto, teria questionado a
sua regência.
— Um governante distraído é perigoso, Emilia. É um sinal de fraqueza.
Faz com que os membros da sua Casa se perguntem se deveriam procurar novas
alianças.
E os príncipes do Inferno cobiçavam todo o poder. O Ira devia estar ávido
por completar o vínculo. Mas acedera a abdicar da segurança da sua Casa, do
poder adicional, a suportar os rumores da corte, tudo para que eu pudesse ter a
única coisa que ele cobiçava acima de tudo: a escolha.
— Ele mencionou algo sobre ser necessária uma cerimónia. Se nós... —
inspirei profundamente. — Se...
— Se fizerem amor de uma forma doce, apaixonada e luxuriosa? —
sugeriu a Fauna, com ar inocente. — Se se devorassem um ao outro até às
primeiras horas da manhã? Se gritassem o nome um do outro enquanto ele te
dobra para a frente e enfia o seu?...
— ... sim. Isso. O nosso casamento não estaria completo até que a
cerimónia também fosse realizada, certo?
— Certo. — A Fauna sorriu como se estivesse consciente da direção dos
meus pensamentos. — O que quer que tenha acontecido entre vocês os dois no
passado, não duvides dele agora. Ele deve respeitar-te o suficiente para
condenar a sua própria corte. Ainda que seja por um período fugaz.
Reparei que ela não dissera nada sobre ele se preocupar comigo ou me
amar. Perguntei-me se ter um marido que me respeitasse seria o suficiente para
compensar a ausência das outras duas coisas. Talvez eu pertencesse à Casa
Ganância. Não pensei que me contentasse com um casamento que não incluísse
as três.
E ainda mais problemático... Não tinha a certeza de quando começara a
considerar tomar o Ira como marido. Eu já estava no submundo. Em breve iria
conhecer todos os príncipes e ter a oportunidade de descobrir alguns dos seus
segredos. Não precisava de casar. E não obstante os meus sentimentos naquele
momento, não abandonaria a minha família por ninguém. Enquanto me
concentrasse nisso, todas as minhas noções românticas desapareceriam.
Com sorte.
Mais tarde nessa noite recebi um bilhete com a caligrafia do Ira.
Deixei o Ira na torre e corri de volta aos meus aposentos, indo direta para a
casa de banho. Tinha de absorver a experiência de estar na presença imunda do
Antonio. Chegara ao banco de vidro ao lado do meu toucador quando ouvi uma
pancada fraca.
— Entra.
— Minha senhora, eu sou a Harlow, e devo cuidá-la sempre que necessitar
de ajuda.
Olhei para cima, sentada que estava a escovar o meu longo cabelo. Uma
jovem criada demoníaca — com pele de lavanda e cabelo cor de neve —
encontrava-se à minha porta, algo nervosa. Respirei fundo e deixei sair o ar.
Recusava-me a permitir que o meu mau humor arruinasse o resto da noite.
— É um prazer conhecer-te, Harlow. Mas não precisas de te preocupar. Sou
capaz de tomar banho. — Ela mordeu o lábio e os seus olhos deslocaram-se
para a banheira afundada no chão. Perguntei-me se a minha recusa seria
interpretada como um insulto e não como uma tentativa de ser simpática.
Forcei-me a sorrir. — Se pudesses acrescentar alguns óleos e sabão à água, seria
agradável.
— É para já. — A Harlow apressou-se para dentro da casa de banho e a sua
expressão iluminou-se. — Vou buscar um pano de linho e ponho-o de lado para
que possa secar-se depois do banho, Lady Emilia.
— Obrigada.
A criada fez uma reverência rápida e depois saiu do aposento. Sabia que o Ira
dissera que os criados não esperavam que lhes agradecessem por fazerem o seu
trabalho, mas era estranho ignorar os esforços de alguém para me proporcionar
conforto. Ela ocupou-se da água, estendeu a toalha de linho e depois deixou-me
sozinha e em silêncio.
Deixei o roupão de seda escorregar dos meus ombros e pendurei-o num
gancho de cristal perto do toucador. As velas do candelabro tremeluziram com
os meus movimentos, acrescentando uma sensação de serenidade à atmosfera já
encantadora da casa de banho.
Depois da explosão de raiva que me consumira todo o pensamento racional
devido ao Antonio, era mesmo disto que eu precisava. Estava na altura de me
limitar a respirar, mergulhar e libertar a raiva que sentia.
Desci para a água quente enquanto os óleos perfumados ascendiam com o
vapor. Entre a dor das minhas aulas com o Anir e a tensão que me dominara o
corpo ao ver o Antonio, assim que entrei na água, foi como se estivesse no céu.
Submergi até ao pescoço e encostei-me à enorme banheira. Tentei esvaziar a
mente e as emoções. Sempre que repetia o que o Antonio me dissera sobre a
deusa e os metamorfos, sentia aquela assombrosa raiva assassina irromper.
Uma vez passada a fúria inicial, tentei analisar as suas palavras.
Não acreditava nele. Mas talvez o Antonio não tivesse sido influenciado por
um demónio. Não era impossível que uma bruxa tivesse cruzado o seu caminho
e fingido ser uma deusa. Ou seriam antes dois mortais influenciados por magia
demoníaca? Talvez a pessoa que se lhe revelara como o anjo da morte tivesse
sido outra vítima. Seria inteligente da parte do demónio se o Antonio nunca lhe
tivesse visto o rosto. Assim, nunca seria capaz de o identificar.
Depois das minhas lições com o Ira, sabia como era difícil resistir a um
ataque mágico, mas o perdão e a compaixão ainda estavam fora de alcance.
Parte de mim detestava admiti-lo, mesmo a mim mesma. Ficar tão furiosa... era
como se estivesse a abandonar o meu corpo e todo o sentido de humanidade
fosse substituído pela raiva mais elementar. Afundei-me na banheira, exausta
tanto emocional como fisicamente.
Devo ter adormecido; o ranger da porta a abrir acordou-me. Não ouvi passos
ou ruídos que indicassem o regresso da criada. Uma sensação desconfortável fez
a minha pele formigar. Não estava sozinha na casa de banho.
Alguém estava a observar-me. Alguém que não se tinha identificado.
— Harlow?
Um pedaço de linho enrolou-se à volta do meu pescoço, apertando-o. Os
meus dedos voaram para o tecido enquanto o fluxo de ar para os meus pulmões
era interrompido. Contorci-me na banheira, salpicando água em ondas
violentas. Um som estrangulado escapou-se-me dos lábios, mas não foi o
suficiente para alertar alguém para uma tentativa de homicídio. Senti a garganta
a queimar, vi manchas brancas nos cantos dos olhos. O pânico fez-me agitar o
corpo.
Depois lembrei-me da única coisa que não tirara para tomar banho.
A minha mão mergulhou imediatamente debaixo de água e emergiu com a
adaga que o Ira me oferecera.
Com uma explosão final de energia, puxei o braço para trás e senti um
entusiasmo selvagem enquanto a lâmina se afundava na carne macia do meu
atacante. O intruso ofegou e soltou o laço improvisado.
Nos segundos que demorei a arrancar o pano da garganta e a virar-me, ele
desaparecera. O único sinal de que alguma coisa tinha acontecido era a
quantidade obscena de gotículas de sangue que conduziam à porta. Com calma,
sentei-me e vesti o roupão. Depois chamei um criado para trazer o Ira. Tudo
enquanto sentia a pulsação a martelar-me nos ouvidos. Alguém tentara matar-
me. E eu apunhalara-o. Numa zona vital, a julgar pela quantidade de sangue no
chão.
Não consegui reunir uma única grama de arrependimento. Ou talvez
estivesse apenas entorpecida pelo choque.
No entanto, havia um detalhe que não me escapara. Graças à maldição do
Inveja por lhe ter roubado o livro de feitiços, não tivera magia com que me
defender do ataque. Não tivera poderes além do golpe físico que executara com
a adaga. O que significava que quem quer que tivesse vindo para me assassinar,
também não tinha magia para invocar. Se o tivesse feito, eu não estaria viva
naquele momento.
O Ira apareceu no meio de uma nuvem de fumo e de uma luz preta
brilhante, a fúria gravada nas suas feições gélidas.
— Estás ferida?
— Não. — Apontei para o sangue no chão. — Mas não posso dizer o
mesmo do atacante.
O Ira observou-me primeiro, concentrando-se no meu pescoço. A sua
expressão tornou-se tempestuosa. Imaginei que estivesse a começar a ficar com
nódoas negras. Os próprios alicerces do castelo tremeram.
— Queres acompanhar-me?
Olhei para as minhas mãos, para a adaga que ainda segurava, coberta de
sangue. Talvez me fizesse parecer fraca, mas não me vi capaz de testemunhar o
que estava prestes a acontecer. Abanei a cabeça, sem olhar o Ira nos olhos. Se
houvesse uma Casa Cobardia, provavelmente seria eu a sua rainha.
— É preciso uma força enorme para reconhecer os nossos limites, Emilia.
— A sua mão acariciou-me desde a têmpora até ao queixo, erguendo-o com
suavidade para que eu pudesse olhar para ele. — Uma verdadeira líder sabe
delegar. Tal como tu estás a fazer agora. Nunca duvides da tua coragem. Eu não
duvido.
Ao afastar a mão do meu rosto, o Ira olhou, por fim, para o sangue no chão.
Aproximou-se dele, um predador todo-poderoso à caça, e não proferiu mais
nenhuma palavra antes de desaparecer, com a adaga da sua Casa numa mão,
assemelhando-se a um pesadelo feito carne.
E para quem quer que tivesse acabado de me atacar na sua Casa, assumi que
era exatamente isso que ele estava prestes a ser. Que as deusas concedam ao
atacante uma morte rápida, porque o Ira certamente não o faria.
Capítulo 22
Cheguei à sala de armas quase meia hora antes do previsto. Queria definir o
tom da nossa lição e, a cada movimento do ponteiro do relógio, a minha
pulsação acelerava. Olhei para o meu reflexo num escudo particularmente
brilhante pendurado na parede, aliviada por a minha aparência exterior
permanecer impecável, independentemente do estado caótico do meu interior.
Libertei-me dos meus nervos e movi-me em direção ao centro da sala.
À meia-noite em ponto o Ira entrou na sala e parou perto da porta. Fechou-
se com um clique que me fez lembrar uma lâmina a deslizar para fora da sua
bainha. Um som apropriado, tendo em conta a batalha que estava prestes a ter
início entre nós.
O Ira reparou no meu vestido: um corpete preto que me deixava os ombros
descobertos, adornado com flores pálidas e videiras de missangas, com saias
fluidas da cor do champanhe escuro com uma abertura de um dos lados, um
pouco abaixo do meu joelho.
O seu olhar deteve-se no meu calçado. Mandara desenhar aqueles sapatos
especificamente para aquele vestido e tinha quase a certeza de que o príncipe-
demónio gostaria deles quase tanto como eu.
Eram sapatos de salto com serpentes pretas brilhantes enroladas ao redor do
meu tornozelo, que subiam até à coxa. A língua da serpente estava de fora, mas
meio coberta pelo meu vestido.
Se o Ira quisesse um vislumbre completo, teria de mover as saias para fora
do caminho. Para os sapatos, inspirara-me em parte na estátua nos jardins.
— Esta noite iremos...
— ... trabalhar o orgulho. — Sorri ao reparar que o meu batom da tonalidade
intensa de bagas lhe captara a atenção. Girei sobre mim mesma muito devagar.
— Desenhei isto para a nossa lição e estou muito contente com o resultado. É a
primeira vez que crio algo puramente da minha imaginação.
— É lindo.
— Eu sei. — Pisquei o olho e o Ira riu. — É perfeito.
— Vejo que o teu orgulho está pronto para a lição. — Algo obscuro e
perigoso reluziu-lhe no olhar. — Então, comecemos.
— Fazei o vosso pior, Alteza. Estou pronta.
Desta vez a magia foi como uma pequena conta a rolar-me entre os ombros,
deslizando pelas minhas costas, agradável e tentadora. Quase me arqueei na sua
direção, mas, no último instante, lembrei-me de que deveria afastá-la,
concentrar-me em criar uma barreira entre mim e a influência demoníaca.
Respirei fundo, inchando o peito eufórica. Estava a resistir à influência do
Ira, e mal me estava a esforçar. Combater o orgulho era, de longe, o mais fácil
que fizera até agora.
Lancei-lhe um sorriso arrogante para onde ele estava, meio escondido nas
sombras. Não avançara mais para dentro da sala; manteve-se ao pé da porta,
parecendo pronto para fugir. Já era tempo de ele se sentir instável. Ultimamente,
sempre que estava perto dele, sentia-me como se o meu mundo estivesse a girar
violentamente para fora do seu eixo.
— Tens de te esforçar mais. Tornei-me bastante boa a resistir à tua
influência.
— A sério? — Detetei um brilho de diversão nos seus olhos. — Parece-me
que estás um tanto orgulhosa.
Encolhi os ombros e deixei-os cair de forma casual.
— Não estou orgulhosa, não. Estou apenas a ser honesta. Tens sido um
professor decente, mas esta aluna superou as aulas. Aceito os meus desejos.
Aceito qualquer desafio. Perder é algo que não me assusta. Se fosse os teus
irmãos, ficaria preocupada.
— Ah, sim?
— Claro que sim. Não há nada mais perigoso do que uma mulher dona de si
própria e que não pede desculpa a ninguém. — Olhei-o de cima a baixo,
lentamente. — Sou poderosa porque me considero poderosa. Não é esse o
mesmo princípio pelo qual te reges? Bem, eu sei que sou poderosa. Sei que o
poder vem de muitas fontes e que agora tenho muitas armas no meu arsenal,
Vossa Alteza. De facto, poderia possuir-te agora mesmo, se assim o escolhesse.
E, por uma vez, ficarias indefeso.
— Presunçosa. Gabarolas. Uma opinião demasiado elevada de ti mesma. —
O Ira assinalou cada ponto com um erguer de dedos. — Tens razão. Não soa
nada como se estivesses sob a influência do orgulho.
— Sabes o que penso mais? Penso que, secretamente, gostarias que eu te
possuísse. Pelo menos em certas... áreas.
Movi-me com passos deliberados pela sala, permitindo que as minhas ancas
gingassem. A minha saia flutuou para ambos os lados, revelando a serpente
enrolada em torno da minha perna.
Se o Ira queria uma lição, eu dar-lhe-ia uma que ele tão cedo não esqueceria.
Encostei-o contra a parede, os meus lábios curvando-se para cima, enquanto
fazia descer um dedo pelo seu peito e depois seguia a fila de botões até às suas
calças. Demónio retorcido. Já estava excitado. Levantei o olhar para o dele e
observei-o atentamente enquanto deslizava a minha palma sobre a sua
protuberância. Ele silvou entredentes. Tracei aquele contorno duro por cima das
calças e a sua respiração acelerou.
A magia demoníaca que ele havia empunhado quebrou e desapareceu. Tal
como eu suspeitei que faria. O Ira revelara o seu conjunto pessoal de valores
morais em cada uma das nossas lições, e eu prestara-lhe a maior das atenções,
aprendendo o máximo possível, mesmo nas vezes em que não conseguira
bloquear a sua influência. Ele nunca usava magia quando as coisas se tornavam
românticas.
— Emilia.
Foi mais um apelo do que um aviso. Agora que a sua influência havia
desaparecido, a nossa lição estava apenas a começar. Encostei-me a ele,
pressionando o meu peito contra o dele, apreciando a forma como o seu olhar se
desviou para o meu decote. Sabia com precisão quão apertado estava o meu
espartilho, assim como a vista agradável dos meus melhores atributos que ele
estava a desfrutar de cima, graças à nossa nova posição. Ele parecia dividido
entre olhar fixamente e manter as suas maneiras cavalheirescas. Aquelas últimas
não me serviam para nada. Desejava-o solto por completo.
De repente, uma imagem invadiu-me os sentidos, tão vívida e real que me
fez confundir a realidade com uma miragem. Por um momento surpreendente,
estava em dois lugares ao mesmo tempo.
Havia o murmúrio baixo da música, dos instrumentos de corda e do piano,
um som abafado que se insinuava pelas paredes. Havíamo-nos escapulido
juntos, para longe do barulho agitado da festa no outro extremo do corredor. As
sombras escondiam-no da vista, mas ele encontrou-me rapidamente. Pousou a
mão sobre o meu peito por cima do meu corpete, arrebatando-me com beijos
possessivos. A minha paixão ardia com tanta intensidade como a dele. Mordi-
lhe o lábio, desafiando-o a fazer o mesmo. Ele fez melhor. Puxou a parte de
cima do meu vestido paru baixo, substituindo a sua ousada mão pela boca.
Fiz desligar a minha mão para dentro das suas calças e encontrei-o duro e
ansioso; depois som quando o ouvi soltar uma maldição com a primeira carícia
que lhe dei. Aproximei a boca do seu ouvido.
— Chiu. Vão ouvir-nos.
Na visão, tomei-o na mão como se fosse algo que já havia feito centenas de
vezes. Sabia exatamente do que ele gostava e como lhe proporcionar o maior
prazer possível. O seu corpo, a sua mente; conhecia-os tão bem como me
conhecia a mim própria. Naquele momento, usei esse conhecimento em meu
proveito.
Ele não pareceu importar-se.
Vários instantes depois ele estremeceu contra mim; a sua respiração era
irregular e laboriosa. Quando os seus tremores pararam, estiquei-me em bicos
de pés e dei-lhe um beijo longo e profundo.
— Vem ter comigo ao jardim na hora das bruxas, esta noite. Tu sabes
onde.
Ele mal conseguira abotoar as calças quando eu saí a correr, olhando por
cima do ombro uma última vez antes de escapar da sala escura.
O Ira chamou-me pelo nome e trouxe-me de volta ao presente. Nunca tinha
tido uma visão como aquela e não sabia o que fazer a esse respeito. Algo no que
vira fizera-me perceber que não se tratava de magia daquele reino.
Parecera uma memória.
O Ira traçou a curva da minha face e falou em tom calmo.
— Emilia...
— Eu...
Afastei-me dele, concedendo a ambos uma distância muito necessária, e
considerei as minhas próximas palavras com cautela. Senti que estava a perder o
contacto com a realidade. A preocupação inundou-lhe as feições, por isso tentei
o meu melhor para recuperar aquele sentimento de orgulho. Para o exercer em
meu proveito.
Intencionalmente, deixei que o meu olhar recaísse sobre as suas calças. Ao
que parecia, a minha distração não lhe passara despercebida.
Ofereci-lhe um sorriso cortante.
— Parece que a nossa lição acabou.
Antes que a minha máscara escorregasse, girei sobre os calcanhares e saí
porta fora. Algo de estranho estava a acontecer. E parecia acontecer sempre que
eu e o Ira nos encontrávamos em situações passionais.
Se fossem memórias e não ilusões criadas por aquele reino... então eu
podia ter descoberto outro dos segredos do Ira. Com a exceção de que eu não
fazia ideia de como tudo aquilo podia ser possível.
Mas não pararia até descobrir.
Capítulo 26
O Príncipe Gula não era de todo o que eu esperava. Não estava sentado num
trono, nem parecia aborrecido e frio, nem exalava arrogância real. Não havia
nada na sua aparência que me parecesse particularmente perigoso. A não ser a
ameaça que representava aos corações.
Estava de pé, com várias mulheres voluptuosas sob os braços, perto de uma
fonte de espíritos, e com um sorriso secreto a puxar-lhe os cantos dos lábios
lascivos. O príncipe inclinou-se para sussurrar algo aos ouvidos de cada uma
das suas companheiras, os seus risos intensos e inundados de promessas
maliciosas.
Ergui uma sobrancelha enquanto ele se revezava a mordiscar-lhes o
pescoço.
Era libertino até ao âmago. E parecia ser adorado por isso.
Não era tão alto como o Ira, mas tinha ombros largos, ancas estreitas e a
largura das suas coxas sugeria um corpo em forma sob o seu fato cor de amora.
O seu cabelo castanho ligeiramente desgrenhado tinha madeixas douradas e
avermelhadas, dependendo de como a luz incidia sobre elas, embora a escuridão
nunca saísse do seu domínio por muito tempo. Usava uma coroa de bronze,
enfeitada com pedras preciosas multicoloridas. Os olhos do Gula eram uma
mistura de tons verdes, dourados e castanhos cintilantes, disputando
dominância, desfrutando da sua própria beleza.
E agora estavam fixos em mim e no Ira. Ele arqueou uma sobrancelha.
— Irmão! Vem conhecer as minhas recentes amigas. Drusilla e Lucinda.
Estavam mesmo agora a contar-me uma história muito interessante.
— Não duvido. — A falta de decoro do Ira não pareceu surpreender
ninguém a não ser a mim. Pousou uma mão na base das minhas costas. — A
minha mulher, Emilia di Carlo.
O olhar do Gula desviou-se para mim. Parecia que tinha partido o nariz uma
ou duas vezes no passado, mas essa imperfeição apenas o tornava mais
interessante. O seu olhar percorreu-me e uma faísca maliciosa rebentou-lhe nos
olhos.
— Futura esposa, creio.
— Na verdade — interrompi —, ainda não decidi se vou aceitar a ligação.
— Ouviste, irmão? — O Gula afastou-se das suas companheiras e fez
deslizar um braço à volta dos ombros do Ira. — Ainda posso ter esperanças.
— Se respirares perto dela sem a sua permissão, ela esventrar-te-á. — O Ira
tirou um copo de vinho demoníaco de uma bandeia de passagem e tomou um
gole, a imagem da elegância sem esforço. — Já lhe pedi que se abstivesse de
violência durante a nossa visita, mas se fosse a ti não tentaria a sua fúria.
Os dois irmãos trocaram um longo olhar. Basicamente, o Ira chegara e
estabelecera as suas próprias regras na corte real do irmão. Tal como fizera na
Casa Inveja. Era um milagre que o Gula não levantasse sequer uma sobrancelha
à impertinência do Ira.
— Com que então é uma harpiazinha violenta?
— Tenho os meus momentos, Vossa Alteza.
A sua gargalhada foi plena e intensa.
— Isso explica como conseguiu a atenção deste aqui. — Inclinou-se e falou
num tom de falso sussurro, sério, como se partilhasse um segredo perigoso. —
O Ira tem um gosto insaciável pela fúria. Embora nunca a exceda. Para desgosto
de todos nós. — O Ira não retribuiu o sorriso do irmão, o que apenas encantou o
príncipe daquele círculo. — Talvez seja desta que nos surpreendes a todos,
querido irmão. Talvez este seja o ano em que finalmente te deixas levar. Em que
vives à altura das nossas expectativas. Entrega-te a um pouco de diversão por
uma vez.
— Devias sentir-te grato pelos limites que imponho à minha diversão,
irmão.
— Bom, nesse caso, a caçada começa ao amanhecer, para que possas selar
um cavalo infernal e libertar o teu espírito guerreiro. — Ele olhou para mim
com um sorriso perturbador. — Você também, Lady Emilia. Deixe-nos ver se é
guiada pela mesma sede de sangue.
— Eu não monto.
— Não? — Os seus olhos brilham de regozijo. — Então eu fico e faço-lhe
companhia. Enquanto eles se metem em sarilhos, decerto que poderemos
encontrar alguns para nós.
Qualquer leviandade que o Gula tivesse sentido desapareceu de repente,
substituída por uma expressão gelada. Segui a direção do seu olhar e fiquei
surpreendida ao descobrir que o alvo do seu ódio era uma bela mulher nobre
com ar presunçoso. O seu cabelo azul-pálido fora penteado ao estilo das
senhoras inglesas mais formais e o seu vestido elegante era abotoado até ao
pescoço. Usava umas luvas de pelica que lhe chegavam aos cotovelos e uma
expressão de repugnância enquanto fitava o anfitrião com o seu olhar cortante.
Inclinou-se para perto da sua companheira e sussurrou-lhe algo que fez com que
a outra mulher nobre se risse.
— Com a vossa licença. — O humor do Gula tornou-se ainda mais sombrio.
— Temos uma desmancha-prazeres entre nós.
Sem dizer mais nada, o Gula afastou-se em direção às senhoras e ao seu riso
tolo.
Virei-me para o Ira.
— O que acabou de acontecer?
— Ela é uma jornalista das Ilhas Movediças. E raras vezes tem algo de
lisonjeiro a dizer sobre a realeza deste reino. Tem sido particularmente
impiedosa com o Gula.
Voltei a pensar nos amantes em cima da mesa.
— Presumo que não lhe agradem as suas demonstrações de excesso.
— Pelo contrário. — A boca do Ira curvou-se de um dos lados. — Ela
descreveu o último encontro a que o meu irmão presidiu como «perfeitamente
comum e excessivamente artificial. Uma noite branda e previsível».
— Não acredito que tenhas memorizado isso.
— O meu irmão citou essa frase tantas vezes que acabou por colar. O Gula
ficou furioso. Desde então tem dado as festas mais luxuosas, exageradas e
devassas que pode.
— Ele quer que ela engula as suas palavras.
— Entre outras coisas, sem dúvida.
Não pude evitar sorrir.
— Para alguns, o ódio é um poderoso afrodisíaco.
— É. De facto. — O olhar do Ira demorou-se nos meus lábios. — Gostarias
de percorrer os jardins do prazer ou preferes instalar-te nos teus aposentos?
Lembrei-me do que a Fauna dissera sobre os jardins crepusculares e o meu
estômago revirou-se de nervoso. Se eu e o Ira fugíssemos naquele momento,
perderia a oportunidade de conhecer o resto da sua família. Para não dizer que
não tinha a certeza de que estar sozinha com ele, onde a sedução era servida
numa bandeja, seria uma boa ideia.
Como se me tivesse tirado o pensamento da cabeça, ele acrescentou em voz
baixa:
— O Orgulho irá fazer a sua grande entrada no baile de máscaras amanhã. O
Preguiça irá entrar mesmo antes da cerimónia do medo. O Ganância e o Inveja
chegarão elegantemente atrasados esta noite.
— E o Luxúria?
— Imagino que já cá esteja, a entregar-se ao ambiente do serão. Apesar da
sua tendência para se apropriar de sentimentos felizes para aumentar o seu
poder, ele participa em tentações carnais quando lhe são oferecidas. Estas festas
alimentam-lhe o pecado em vários níveis.
Olhei para o terraço, onde havia um par de portas abertas através das quais
uma brisa fria, acompanhada por alguns flocos de neve, soprava do pátio mais
adiante. Pequenos orbes de prata flutuavam e cintilavam na escuridão.
Ir para o meu quarto seria a melhor decisão. No entanto, dei por mim a
dizer:
— Vamos dar um passeio rápido pelo jardim.
Olhei fixamente para o bilhete que chegou bem depois da meia-noite. Papel
azul-cobalto com tinta prateada. O pergaminho era grosso e luxuoso.
Não havia indicação sobre o remetente, o que encontraria se aceitasse o
convite, ou que tipo de maldade poderia estar a convidar para o meu mundo já
complicado. A caligrafia não pertencia ao Ira, que até então ainda não
aparecera.
Dado o requinte do papel e da tinta, imaginei que fosse do Gula, mas havia
sempre a possibilidade de ter sido enviado por um dos outros príncipes.
Vestir algo «de cortar a respiração» podia não ser um eufemismo
demoníaco.
Considerei as minhas opções com extremo cuidado. Podia ignorar o convite.
Decerto que seria o caminho mais seguro. Após a tentativa de assassínio na
Casa Ira, não seria um exagero pensar que se tratava de uma armadilha.
Uma vez que todos se reuniriam ao amanhecer para a caçada, ficaria sozinha
e vulnerável. Quem quer que tivesse enviado o bilhete devia saber que eu
escolhera não montar com os outros.
E a única pessoa que sabia disso — além do Ira — era o Gula.
Se o meu vestuário era importante, isso poderia sugerir alguma festa
clandestina. Uma em que as máscaras fossem obrigatórias para manter o
anonimato dos participantes. Um evento misterioso organizado no submundo de
um anfitrião desconhecido não era o tipo de serão em que teria considerado
participar no passado.
Mas agora... suspirei. Agora não podia recusar algo que me pudesse
proporcionar a oportunidade de interrogar um príncipe do Inferno sem a
presença do Ira.
Virei o bilhete e examinei ambos os lados, pensativa. O facto de terem
solicitado que fosse ao Jardim Geada de Prata não implicava que fosse esse o
local onde deveria comparecer. Pelo menos, não de início.
Um plano começou lentamente a tomar forma na minha mente. Havia um
grande terraço fora do salão de baile, na torre sudeste, com uma grande
escadaria que dava para os jardins. Chegaria mais cedo e aguardaria lá, nos
cantos mais escuros. Saí da cama e apressei-me a entrar num vestido feito de
sombras.
O Gula passeava pelo terraço vazio, um dedo de licor num copo de cristal.
Trazia uma garrafa escondida debaixo do braço. Diria que era demasiado cedo
para beber, mas ele não parecia ter ido à cama.
Tinha o cabelo ligeiramente desgrenhado e um pequeno vinco no fato.
Como se a sua companheira de cama o tivesse mantido ocupado a noite toda e
até de manhã. O seu papel de libertino assentava-lhe na perfeição.
Tomou um gole generoso do seu licor. Todos os príncipes pareciam gostar
de álcool em igual medida, embora pudessem diferir nas quantidades que
consumiam.
Escondi-me mais nas sombras e vi-o aproximar-se. Sustive a respiração para
evitar ser detetada. Como se o mais pequeno suspiro me pudesse denunciar.
— Não consigo decidir se isto me diverte ou insulta.
Todo o meu corpo ficou tenso ao ser descoberta tão rapidamente. Levei a
mão à minha adaga e relaxei quando lhe senti o peso familiar. Avancei para a
luz aquosa que precedia o amanhecer.
Já não valia a pena esconder-me.
Esperei em silêncio que ele continuasse. Estava claro que desejava manter
este encontro a dois. Mais valia começar a deslumbrar-me com qualquer
discurso que tivesse preparado.
O príncipe inclinou-se sobre a grade de pedra, contemplando o jardim
decadente lá em baixo. As flores prateadas cobertas de geada reluziam como
diamantes.
— Talvez a tua estratégia funcione em pleno.
— Que estratégia?
— Ganhar a caçada. Dentro de cinco minutos, o castelo inteiro estará a
galopar para fora dos estábulos. — Pousou a taça na grade ampla diante de si e
gesticulou para o telhado negro ao longe. As colinas cobertas de neve davam
lugar a uma floresta. — As pessoas raramente reparam no que está à sua frente,
sobretudo quando esperam encontrar outra coisa.
— Não sei bem se estou a entender o que queres dizer.
Muito devagar, ele virou-se para olhar para mim, a sua expressão de falso
desagrado.
— Sou capaz de ter omitido alguns detalhes importantes no bilhete.
Nomeadamente o prémio para quem ganhar a caçada.
Mantive uma expressão impassível. Pensava que não passava de um típico
desporto de campo.
— Não sabia que havia um prémio envolvido na caçada.
— Prémio. Presa. Há quem argumente que são a mesma coisa. — O seu
sorriso era esculpido por más intenções. — O anfitrião escolhe a presa a cada
Época de Sangue. Os participantes só sabem o que procuram nos estábulos
segundos antes de começar a caçada.
O sangue gelou-se-me nas veias.
— O Ira disse que as festividades destes três dias não envolveriam nenhum
tipo de sacrifício.
— Eu nunca disse nada sobre sacrifício. Apenas que alguém ou algo será
caçado. — Ele estudou-me mais atentamente do que eu pensava ser possível,
tendo em conta o quanto deveria ter bebido. — Ninguém mata a presa
escolhida. — Piscou-me o olho. — Não somos assim tão monstruosos.
— Porque querias que usasse uma máscara?
— Para ver se me farias a vontade — explicou o Gula, encolhendo os
ombros. Como se isso fosse justificação suficiente. — Alguém te disse porque é
que se chama Época de Sangue?
— Não, mas estou certa de que será uma história encantadora.
— Se um demónio menor ou nobre ganhar a caçada, é-lhe dada a opção de
beber o elixir da vida.
— Sangue.
O meu estômago contorceu-se enquanto o Gula anuía. A Nonna costumava
dizer-nos que os Malvagi bebiam sangue. Agora sabia de onde surgira o boato.
— E se for um membro da realeza a ganhar?
— Temos a opção de reclamar o nosso próprio prémio, se pelo menos
quatro votarem a favor — esclareceu. Depois continuou: — Mas beber o elixir
da vida não é o único motivo pelo qual lhe chamamos Época de Sangue. O
vencedor da caçada é determinado por aquele que derramar a primeira gota de
sangue. Os participantes escolhem quanto derramar e como o fazer. Garras,
lâminas, flechas, dentes. — O seu olhar regressou aos estábulos. Um disparo
rasgou o ar, inquietando-me. — Ah, sim. Encontraram as armas. Se eu fosse a
ti, considerava juntar-me agora à caçada.
— Já te disse que eu não monto.
— É uma pena. Vão caçar um dragão de gelo este ano. Criaturas majestosas
e violentas. — O príncipe desviou a sua atenção do edifício ao longe e voltou a
olhar para mim. — E, quanto a montar, eu reconsideraria. Tenho cá para mim
que, por vezes, os nossos corpos recordam o que a mente não consegue.
O Gula curvou a cabeça e depois voltou para o seu castelo, deixando-me
sozinha a analisar as suas palavras de despedida. Um segundo tiro soou como
um trovão, seguido pelo estrondo de uma debandada. A terra roncou sob os
meus pés. Algo se agitou no meu sangue.
Antes que pudesse mudar de ideias, levantei as saias e corri em direção aos
estábulos.
Capítulo 28
Uma coisa era certa — aquele príncipe do Inferno sabia como organizar um
evento inesquecível.
Apesar da negatividade que a colunista iria, sem dúvida, relatar no seu
artigo sobre a festa, ela foi divertida. E espetacular. O salão de baile onde eu e a
Fauna entrámos destilava decadência a cada centímetro quadrado. No mundo
mortal, a conceção do pecado da gula centrava-se na comida, mas aqui, nos Sete
Círculos, era pura indulgência.
A receção da noite anterior havia sido uma representação mínima de quão
longe o Gula podia levar o seu pecado epónimo. Taças feitas de diamantes
transbordavam de vinho espumante de bagas demoníacas sobre as mesas e
bandejas incrustadas com pedras preciosas. Mais de uma dúzia de candelabros
de cristal estavam suspensos de postes curvos instalados a intervalos regulares à
volta da pista de dança.
Entrelaçadas nos postes havia grinaldas de flores com cristais transparentes
costurados nas pétalas. Era como se tivéssemos acabado de entrar num conto de
fadas de inverno. Como se o gelo fosse feito de diamantes em vez de água.
Quando a luz das velas incidia sobre os cristais e as pedras preciosas, era como
se as chamas estivessem presas dentro do gelo. O tema do Gula continuava
presente mesmo depois do jantar.
— Isto é...
— Olha! — A Fauna quase gritou. — Ali.
As sobremesas, cobertas de ouro comestível e transformadas em bestas
fantásticas realistas, eram tão altas como os convidados.
Dragões de gelo alados, lindos unicórnios em tons pastel, cães infernais
com três cabeças. Tinha tanto de intrigante como de pouco apetitoso. Os
mascarados não pareceram achar desagradável e começaram a cortar o flanco de
um unicórnio, banqueteando-se com o bolo recheado de bagas, que se parecia
demasiado com sangue para o meu gosto. Voltei a minha atenção para um prato
de fruta coberta de chocolate que formava uma pilha tão alta como a que o Ira
pusera perante mim na noite em que me testara para este pecado.
Examinei o salão, à procura dele e dos outros príncipes. Nenhum deles
havia ainda chegado a esta parte do banquete. Voltei a olhar para a escultura do
dragão de gelo.
— Quem ganhou a caçada?
— Sua Alteza, creio. Parecia determinado a ganhar a todo o custo.
— O Ira?
— Hum? Oh, sim. — A Fauna agarrou-me no cotovelo como que para se
impedir de sair a voar. — Olha para ali. Os rumores eram verdadeiros. — A voz
da Fauna estava plena de admiração. — Ele tem salas para encontros íntimos.
Como traças atraídas pela chama da devassidão, aproximámo-nos. Os
infames quartos de vidro estavam alinhados do lado oeste do salão de baile. As
velas tremeluziam no interior e as cortinas estavam cuidadosamente atadas para
garantir que todos os que passavam podiam apreciar as exibições românticas
que decorriam naquelas câmaras não tão privadas.
A Fauna agarrou-me bem no braço, os olhos arregalados por trás da sua
máscara iridescente. Em cada quarto de casal por que passávamos, as cenas
tornavam-se mais desinibidas, mais ousadas. Graças à deusa que estávamos
com máscaras. Por muitas vezes que contemplasse tais demonstrações públicas
de sexualidade, não conseguia conter aquele instinto inicial de vergonha.
Senti o calor do meu rubor e soube que o meu rosto devia estar quase
escarlate.
A Fauna não estava a ter a mesma reação que eu, mas estudava os casais
como que para memorizar certos truques. Não teria ficado surpreendida se
tivesse puxado de um caderno.
— Viste aquilo? — O tom da Fauna continha uma centelha de apreciação.
— Não fazia ideia que conseguia caber tanta gente numa sala tão pequena,
quanto mais fazer o que todos estão a fazer e manter o ritmo. Deve requerer
uma habilidade tremenda.
— E resistência. Essa é a verdadeira proeza em exibição.
Ela riu-se e tocou-me no braço de forma brincalhona.
— E pensar... que esta é a zona mais comedida. Ouvi dizer que o jardim
crepuscular é muito mais arrojado do que me foi dito originalmente.
Sem querer, pensei no Ira. Tentei não deixar que as suspeitas voltassem a
surgir.
O que havia feito, e quem quer que tivesse visitado na noite anterior, não era
da minha conta. Repreendi-me a mim mesma. Se o Ira aqui estivesse, sorriria e
denunciar-me-ia a mentira descarada.
Antes que eu pudesse continuar a examinar os meus sentimentos, um
silêncio sinistro abateu-se sobre nós como um regimento de soldados a cercar o
baile de máscaras. Examinei o salão, procurando a causa de tal reação. Parei de
respirar. Seis figuras imponentes em máscaras de lobo emergiram de cada canto
do salão de baile. Altas, silenciosas, letais. Havia algo na forma como se
mantinham juntos — com os esquemas e rivalidades entre eles postos de lado
para se tornarem uma unidade temível — que me despertou uma pontada de
mal-estar, convertendo-a num instinto de fuga. Até os nobres do Inferno
pareciam prontos para fugir.
Toda a multidão foi contagiada pela tensão.
O meu olhar fixou-me sobre o maior de todos eles à medida que avançava.
Mesmo com uma máscara sobre o rosto, reconheceria aquele andar confiante
em qualquer lugar. O Ira não se limitava a entrar numa sala, ele dominava-a. E
sem sequer tentar. Todos os demais poderiam desaparecer que ele continuaria a
arder brilhantemente. Uma fonte constante de poder e vitalidade.
Os príncipes rodearam lentamente a multidão como se estivessem a
pastorear todos. A Fauna e eu fomo-nos juntando relutantemente aos outros,
sentindo o cerco a apertar. Depois, quando já todos estavam perto da pista de
dança, os príncipes viraram-se e olharam para as escadas.
Desviei o olhar do Ira e esperei. Num movimento bem coreografado, um
príncipe solitário desceu a grande escadaria com as mãos nos bolsos e os
sapatos a brilhar como pedras preciosas à luz de velas cintilantes. Mesmo no
lado oposto daquele espaço gigantesco, ouvi o som débil dos seus passos
enquanto as solas de cabedal batiam no chão de mármore.
A Fauna aproximou-se de mim.
— Aquele é o Príncipe Orgulho.
Observei a figura surpreendente a passear pela multidão. Tal como os
outros príncipes, usava uma máscara de lobo que cobria tudo menos o seu lábio
inferior e o queixo. A sua era de prata e ouro. Ornamentada, mas mantendo a
elegância. Ele não olhou para ninguém nem fez nenhum gesto de
reconhecimento àqueles que se curvaram em reverência à sua passagem. Tinha
cabelo castanho com algumas madeixas douradas, elegantemente cortado dos
lados e mais comprido na parte de cima. Não havia um único fio fora do sítio.
Nem um único vinco no seu fraque.
Vestido de azul-marinho e prateado, não se misturava com as sombras.
Manteve-se um pouco afastado, como se quisesse que todos se lembrassem de
quem os possuía.
Não me apercebera de que estivera a suster a respiração enquanto olhava
para ele, sem pestanejar, por detrás da segurança da minha própria máscara, até
que expirei. O diabo estava apenas a alguns passos de distância. Uma figura
vilipendiada e odiada por quase todos. Se as histórias fossem verdadeiras,
aquele era um anjo rebelde, um anjo banido do céu.
E agora era o rei dos demónios. Tão corrompido pelo pecado, tão
monstruoso, que governava sobre os piores habitantes de todos os reinos. O seu
olhar prateado encontrou o meu e cintilou como uma estrela-cadente pelo céu.
Um arrepio percorreu-me a espinha. Se não me tivesse vinculado ao Ira por
acidente e se ele não tivesse aceitado o vínculo, estaria agora a olhar para o meu
marido.
O Orgulho estudou-me da máscara aos pés, a sua cabeça ligeiramente
inclinada para um lado. Tive a horrível sensação de que me estava a avaliar,
debatendo a melhor forma de usar as suas capacidades para derrubar a sua
presa. Se houve alturas em que o Ira me fizera lembrar uma pantera enjaulada, o
Orgulho era um leão de juba dourada.
Ambos príncipes ferozes. Ambos mortíferos. Mas apenas um se podia
fundir com a noite, atacar forte e rápido ao abrigo da escuridão e depois fugir
sem ser detetado. Desviei o olhar do diabo e procurei o Ira. Ele desaparecera.
— Olá, Lady Vingança.
A sua voz baixa e áspera soou-me perto do ouvido. Tive de fazer um grande
esforço para não demonstrar surpresa ou tensão. Esperei que ele não sentisse o
objeto que levava escondido em mim. Lentamente, virei a minha atenção para o
príncipe ao meu lado e ofereci-lhe um ligeiro aceno de cabeça. Ele não era o
meu rei. E nunca me fora dito que me curvasse.
— Alteza.
— Honrar-me-ias com uma dança?
A Fauna afundou os dentes no lábio inferior, praticamente a dançar na ponta
dos pés enquanto me dirigia um aceno de cabeça encorajador.
— Eu...
— Tu? — O diabo varreu o salão com o olhar, um brilho de reconhecimento
nos olhos. A multidão recuou, como se estivesse aterrorizada por ele virar a sua
atenção para eles. A pista de dança estava vazia. — Há alguém com quem
esperavas dançar primeiro? Se sim, façamo-lo arrepender-se de não te ter
convidado antes de mim.
— Dançarei convosco, mas não há nenhum motivo escondido nisso.
— Claro.
Manteve a sua expressão de divertimento enquanto me conduzia para a pista
de dança. A orquestra começou a tocar uma valsa. Durante alguns segundos,
não falámos. Ele limitou-se a fazer-me girar pela sala e os meus nervos por ter
de dançar em público tornaram-se uma memória esquecida enquanto ele
facilmente nos guiava através dos passos. Ele era encantador. Um diamante
cintilante envolto em pura platina.
Ou talvez isso fosse o que ele queria que eu acreditasse. Talvez, na verdade,
ele fosse espada. Forjada em fogo infernal e mortífera como o pecado. À
medida que dançávamos juntos, esperei ser tocada por alguma centelha de
memória que me incendiasse chamas ocultas de desejo. Se era ele o amante da
minha visão, o meu corpo pareceu não o reconhecer.
— Se estás tão intrigada com a minha máscara, espera até eu a tirar.
— Asseguro-vos, Majestade, de que não estou a olhar para a vossa
máscara. Para ser sincera, estou à procura de chifres ou presas.
Os olhos do Orgulho cintilaram.
— Posso ser assustador. Quando quero.
— Estou certa de que sim, mas não como alguém que conheço.
— O Ira? — A sua boca retorceu-se nos cantos enquanto o meu olhar
percorria a pista de dança na esperança de que o seu nome fosse suficiente para
o convocar. — Não estou habituado a que um par de dança tão bonito pense no
meu irmão enquanto se encontra nos meus braços.
Não consegui evitar ri-me na cara do diabo.
— Sois demasiado pretensioso.
— Uma das nossas características familiares mais proeminentes. Embora
te possa assegurar de que o meu ego é mais do que justificado.
— Terei de acreditar na vossa palavra, Alteza.
Dançámos pela pista de dança, em conjunto com outros casais que se
haviam juntado a nós, os seus passos firmes e fluidos enquanto me guiava por
cada movimento. Mesmo depois da lição improvisada do Ira, tinha medo de
falhar o passo e de o pisar, mas a sua habilidade era suficiente para ultrapassar
qualquer um dos meus erros.
Parte de mim sentiu-se desapontada. Se isto tivesse corrido terrivelmente
mal, poderia ter-se tornado no meu atual maior medo.
— O Príncipe Ira é bastante sério em comparação com o resto de vocês.
— Isso é o que ele faz, destaca-se na guerra e na justiça. Ambos assuntos
sérios. E é por isso que nenhum de nós precisa de se preocupar com os aspetos
desagradáveis de reinar. — Franzi o sobrolho. — Este reino teria sido feito em
pedaços se ele não o tivesse aterrorizado até à submissão.
— Não sei se vos estou a entender.
O Orgulho fez-nos girar até que pude ver o Ira encostado à coluna de
mármore. Tinha a máscara puxada para trás e o seu olhar seguia cada
movimento, cada volta ao salão de baile.
Não parecia satisfeito ou zangado, mas algo na sua expressão me fez
pensar que estava... com ciúmes. O Orgulho deslizou a mão pelas minhas
costas, sem dúvida para alimentar deliberadamente a irritação do Ira. Pisei-lhe o
pé e sorri para dentro quando ele fez uma careta.
— Ele, minha querida, é o equilíbrio. E muitas vezes é a única coisa que
impede a destruição total. O Ira é a justiça imparcial feita de carne. É temido
porque não hesita em executar uma sentença, em ministrar justiça àqueles que
merecem punição. Se deve enviar alguém para a Prisão da Condenação, o que
os mortais consideram a sua versão de «inferno», isso não é decidido com
leveza.
Até agora, ninguém falara das almas mortais que eram enviadas para lá.
— Onde fica? Nas Ilhas Movediças?
— É adorável que penses que te vou dizer. Já perguntaste ao Ira?
Perguntara, e estava bastante confiante de que a sua resposta envolvera uma
ilha ao largo da costa ocidental.
— Tinha a impressão de que esse deveria ser o vosso papel.
— As regras são mais divertidas quando são quebradas. — Ele encolheu os
ombros. — Delegar também faz parte de governar, não é?
Antes que pudesse responder, ele arrastou-nos uma vez mais pela pista de
dança, os seus movimentos fluidos, graciosos e dominantes. Percebi que já não
estava interessado em falar de poder e mudei de tática. Esperei até nos
afastarmos o suficiente dos outros casais, e depois disse em voz baixa:
— Sei que este é um assunto privado, mas queria apresentar as minhas
condolências.
O Orgulho ficou tenso sob as mãos. Duvidei que tivesse reparado se não
estivéssemos a dançar, e fora exatamente por isso que esperara para abordar o
assunto na pista de dança.
— Perder alguém que se ama — continuei quando vi que ele não falava — é
o pior tipo de dor que existe. Não a desejaria ao meu pior inimigo.
— Como estou certo de que eu e os meus irmãos estamos entre aqueles que
consideras inimigos, apraz-me ouvi-lo.
Era apenas parcialmente verdade, mas não o corrigi. Com a seguinte volta à
pista de dança, a sua máscara deslizou para cima, revelando-lhe a boca. Uma
pequena cicatriz diagonal atravessava-lhe o lábio superior, terminando logo
abaixo do seu lábio inferior. Esperei que o meu batimento cardíaco acelerado
fosse confundido com o ritmo da nossa dança.
Deslizámos em direção ao limite da pista de dança, perto de um canto
escondido por um conjunto de grandes samambaias. Assim que nos
aproximámos, dei a volta e puxei-o para as sombras, longe dos olhos curiosos.
Não lhe vi a expressão toda, mas ouvi a sua respiração anormal enquanto o
pressionava contra a parede e aproximava os meus lábios ao seu ouvido.
Sem precisar de mais encorajamento, removeu a máscara e deixou-a cair
no chão. Depois tentou remover a minha, confundindo a nossa posição com
algo que não era.
A reação que eu esperava.
— O teu irmão julga-te um libertino. Demasiado ocupado a embriagar-se
de vinho e amantes para se preocupar com qualquer coisa de importante. —
Afastei-me o suficiente para o estudar. A cautela dominou-lhe as feições. — No
entanto, esta manhã estavas a comandar os teus guardas pelos terrenos da Casa
Orgulho, aparentando tudo menos embriaguez.
— Perdão? — Ele fingiu-se confuso como o mais habilidoso dos atores.
Reparei que ele não abordou diretamente a minha questão. Isso concedia-lhe
uma forma de evitar mentir. — Estou aqui para te beijar, não para me submeter
a um interrogatório. Se estiveres interessada em falar, posso encontrar tópicos
mais interessantes.
O diabo moveu a boca em direção à minha e eu detive-o com uma palma
da mão no peito.
— Permiti-me ser mais clara, Majestade. Não vamos agir como se ambos
não soubéssemos que foste tu quem me obrigou a desmontar do meu cavalo.
Porque me mantiveste refém na tua Casa durante tanto tempo? Terá sido para
que pudesses esconder a quantidade de guardas a patrulhar os teus terrenos?
— Não podes estar à espera de que partilhe informações com outra Casa.
— Está bem. Responde-me antes a isto: porque escondes o facto de não
seres tão bêbado e orgulhoso como gostarias que os outros acreditassem?
— Por uma questão de princípio, raramente mostro a minha verdadeira face
a alguém. Aconselhar-te-ia a fazer o mesmo.
O meu olhar desviou-se para a sua cicatriz. Tinha sérias dúvidas de que
aquele fosse o único motivo para ele se esconder.
— Não apareceste no mosteiro naquela noite; possuíste o Antonio. Foi para
manter o anonimato?
— Não devias estar a perguntar sobre a maldição?
Uma tática evasiva familiar entre os demónios, responder a uma pergunta
com outra.
— Eu sei que o meu nascimento marcou o fim da tua maldição. Por isso,
deves ter tido outras razões para te teres escondido.
O seu temperamento inflamou. A minha seta acertara o alvo.
— Eu não me escondi. Estava ocupado com outros assuntos.
— Bom, embora eu tenha a certeza de que podíamos desviar de assuntos por
toda a eternidade, não te trouxe até aqui para uma conversa.
— Então passemos à parte divertida. — O Orgulho arrastou a mão pela
minha silhueta e voltou, lentamente, a subir, parando perto da minha coxa.
Arqueou as sobrancelhas. — O que temos aqui?
— A minha adaga. — Sorri quando ele a soltou abruptamente. — A parte
divertida é esta. Atravessarei as tuas terras duas vezes, numa hora e data à
minha escolha, sem qualquer interferência tua, dos teus guardas ou de qualquer
outra pessoa que pertença à Casa Orgulho ou àquele círculo.
— E porque haveria de concordar com tal acordo?
— Porque eu conheço um dos teus segredos.
— Os meus talentos na cama já são bem conhecidos. O seu namoriscar era
mais uma tentativa de desviar a conversa.
Encurralara-o e ele estava a mostrar-me os dentes sorrindo como se aquilo
não o afetasse. O Orgulho mostrava uma atitude perfeitamente despreocupada.
Tão suspeitosamente.
— Não contarei ao teu irmão da raiz do sono. Tens o suficiente para
derrubar um exército inteiro. E isso, Alteza, parece-me o tipo de informação que
gostaríeis de manter em segredo. Ao contrário dos talentos de cama de que
tanto te gabas.
Ele lançou-me um olhar duro e calculista. Um músculo no seu maxilar
contraiu-se enquanto abanava a cabeça em concordância.
— Está bem.
— Vais ter de ser mais específico.
— Podes atravessar as minhas terras, duas vezes, sem quaisquer
impedimentos de ninguém que considere o meu círculo a sua casa. Em troca,
não vais contar ao meu irmão da minha raiz do sono. Pronto. — Ele olhou-me
de cima a baixo. — Satisfeita?
— Mais do que possais imaginar, Vossa Alteza.
As suspeitas inundaram-lhe as feições. E com razão. Ele acabara de cometer
um grande erro.
Virei-me e saí do nosso cantinho, mas não avancei muito antes de ser
intercetada por um outro príncipe. O Inveja também havia removido a sua
máscara, e os seus olhos verdes praticamente brilharam quando pousaram em
mim.
— Bem jogado, Bruxa das Sombras. Uma pedra, dois príncipes.
— Já se embebedou?
— Não de álcool. — Esboçou o sorriso que fazia aparecer a sua covinha. —
Vim buscar a nossa convidada de honra. Está na hora de nos alimentares com o
teu maior medo. E não tenho palavras para expressar quão faminto me sinto de
repente.
Capítulo 31
Nessa noite eu era uma ladra de um tipo diferente quando me escapulia pelo
corredor entre os aposentos do Ira e os meus, entrando e saindo das sombras
como uma carteirista em plena atividade. Entrei no meu quarto e corri para a
mala. Puxei as calças de cabedal forradas a pelo, a camisola grossa e as meias
que trouxera, calcei as minhas botas e atirei o manto cor de ébano sobre os
ombros em tempo recorde. Pus a adaga na bainha presa à minha coxa e puxei-a
para verificar se estava cingida corretamente.
Pouco depois estava de volta ao corredor e a descer as escadas dos criados.
Com a festa ainda a decorrer, não havia ninguém perto daquela ponta do castelo.
Ou assim esperava.
Com o meu coração a trovejar como advertência, espreitei ao virar a
esquina. Havia uma porta aberta nas traseiras da cozinha, tal como eu
suspeitava, para deixar sair o calor em excesso criado pelo fogo nos fomos.
Fiz uma oração rápida à deusa das mentiras e do engano, corri pelo corredor
e abrandei um pouco quando entrei na cozinha. Não fazia ideia de quanto tempo
a raiz do sono iria manter o Ira inconsciente; dado o seu imenso poder, pensei
que não tinha muito tempo. Tinha de estar suficientemente longe para que ele
não me apanhasse antes de eu atravessar o território do Orgulho. Corri através
da grande extensão de terreno que ligava a parte de trás do castelo aos estábulos
e não parei até chegar à entrada.
Observei o exterior do edifício, examinando cada recanto, em busca de
qualquer movimento na escuridão. Os moços de estrebaria já deviam estar na
cama após terem cuidado dos cavalos depois da caçada daquela manhã. Abri a
porta o suficiente para entrar e corri ao longo dos estábulos até encontrar a
Tanzie. Ela farejou-me em tom de saudação enquanto os seus cascos prateados
rasgavam a cama.
— Vamos embarcar numa aventura, minha linda.
Selei a égua rapidamente, impressionada e grata por me lembrar dos passos
necessários para o fazer depois de o ter testemunhado em casa em algumas
ocasiões. Puxei-a pelas rédeas e, abençoada seja, ela precipitou-se pela porta da
frente, como se soubesse da necessidade de se ser furtivo.
— Leva-me para a Casa Orgulho. — Dei-lhe uma palmadinha no flanco e
saímos a correr. — Vamos visitar a Floresta Sangrenta.
A Tanzie disparou para a noite, fazendo levantar a neve atrás de nós
enquanto praticamente sobrevoávamos as encostas da Casa Gula. Fiz força com
os joelhos e inclinei-me para o vento.
Cada passo trovejante fazia-me querer olhar por cima do ombro, convencida
de que tinha alertado os guardas do castelo e eles haviam começado a
perseguição. Atravessámos as colinas da raiz do sono e à nossa direita, embora
eu não tivesse reparado nele antes, vimos a margem superior do Lago de Fogo.
Uma brisa fria e perfumada atravessou o ar, fazendo com que alguns fios de
cabelo se levantassem, causando-me tremores. Mantive a atenção fixa no
castelo à distância, tensa e atenta aos guardas do Orgulho. A Tanzie acelerou,
como se se recusasse a ser levada pelos guardas outra vez, e os seus cascos
devoravam a terra congelada. Rodeámos o perímetro da Casa Orgulho e
deixámo-la para trás num piscar de olhos.
Deixei escapar um grito de alegria. Uma pequena vitória.
Se a memória me não falhasse, passaria do círculo do Orgulho para o círculo
do Inveja. Já fora convidada a entrar no território do Inveja e ele não revogara
essa permissão. Com alguma sorte, conseguiria atravessá-lo e entrar na Floresta
Sangrenta incólume.
Enquanto cavalgávamos como se o diabo nos perseguisse, a minha mente
percorreu todos os pensamentos que tentara esconder durante o banquete. O
Inveja estava atrás das Sete Irmãs. E apontara-me a Árvore dos Condenados
quando passeara pela sua galeria. Podia não saber os detalhes da floresta, mas
seria capaz de encontrar uma árvore tão invulgar graças à fábula que indicava
que se encontrava «nas profundezas» da floresta.
E, com sorte, encontraria os seres místicos que me poderiam ajudar a
encontrar a Chave da Tentação ou o Espelho da Lua Tripla. Nesta altura,
qualquer informação que me pudessem dar sobre qualquer um dos objetos
mágicos seria útil.
Passámos pela Casa Inveja sem incidentes. Como fora o príncipe daquela
casa quem insistira em soltar pistas na minha presença, não achei que me fosse
tentar impedir de atravessar as suas terras.
Antes que eu desse por isso, chegámos ao Rio Negro, que dividia o
território do Inveja e entroncava na Floresta Sangrenta. A Tanzie abrandou até
quase parar e pisou o chão enquanto considerava o salto. Eu estava a avaliar as
vistas à nossa frente. A Floresta Sangrenta havia sido apropriadamente batizada.
Mesmo debaixo do cobertor de um céu noturno, consegui perceber que a casca
das árvores era de um carmesim-escuro.
Nas profundezas do bosque, tufos de fumo flutuavam como névoa
fantasmagórica. Tive uma suspeita incómoda de que isto não era o resultado de
um incêndio, mas sim o bafo de bestas enormes a rondarem a floresta carmesim.
Ou talvez fosse um dos demónios que eu vira nos diários. Os que ansiavam por
corações e sangue. Respirei fundo.
— Preparada para encontrar a Árvore dos Condenados?
A Tanzie abanou a cabeça, depois trotou para trás e carregou para o rio cor
de ébano. Forcei os meus olhos a permanecerem abertos enquanto estávamos no
ar e o meu estômago se revolvia. Aterrámos e a Tanzie nem sequer parou para
recuperar o fôlego; atravessou o bosque, esquivando-se de árvores e vegetação
rasteira.
Esperara um silêncio sinistro, mas a realidade foi um coro de insetos tão
alto que se tornava desorientador. Se houvesse algum predador por perto, seria
impossível ouvir o ataque até que fosse demasiado tarde. A Tanzie parecia saber
isto. A minha imponente égua do inferno enfiou o focinho no chão e contornou
os obstáculos que apareciam. Determinada a que a sua cavaleira chegasse ilesa
ao nosso destino.
Corríamos por uma clareira, e na orla vi um demónio Aper. Ele balançou a
sua cabeça gigante para a frente e foi tudo o que eu vi; deixámo-lo para trás, a
babar-se. Passámos por vislumbres de árvores carmesins, as cores tingiram-me
a visão periférica como centenas de estrelas-cadentes a sangrar. Agarrei-me à
égua com mais força, contando cada pulsar do meu coração. Tínhamos de estar
perto do centro da floresta.
Depois de alguns minutos a cavalgar a toda a velocidade, a Tanzie parou
abruptamente.
Ali, entre as restantes árvores carmesins, destacava-se uma enorme árvore
prateada. Conseguíramos. Conseguíramos mesmo encontrá-la. A Árvore dos
Condenados era, inconfundivelmente, maior, mais larga e diferente na cor de
todas as outras árvores da floresta. Sob o luar, a casca prateada da maldita
árvore brilhava como uma gigantesca espada atirada para as profundezas da
Terra. Desmontei e dei uma palmadinha na Tanzie.
— Fica aqui e mantém-te alerta.
Acariciou-me o ombro com o focinho como se me dissesse o mesmo.
Movi-me lentamente em direção à árvore, agora com a adaga na mão. Os
bichos haviam ficado em silêncio. Uma névoa ameaçadora pairava sobre o solo
congelado, ocultando qualquer vestígio de pegadas recentes. As raízes
sobressaíam como os dedos apodrecidos de gigantes mortos. Aproximei-me
para inspecionar melhor as folhas. Eram semelhantes às de uma bétula comum,
mas da cor do ébano com veias prateadas. De acordo com as lendas que lera,
eram afiadas como lâminas e quebradiças como vidro.
— Vieste solicitar um desejo de sangue?
Virei-me e o capuz do meu manto caiu para trás. Havia uma figura solitária
apoiada num bastão, demasiado afastada e oculta pela neblina para se distinguir
claramente. A Tanzie desaparecera.
Eu agarrei no punho da minha adaga e lentamente assumi a posição de luta
que o Anir me ensinara.
— Quem és tu?
— A melhor pergunta é, quem és tu, criança?
— Sou alguém que precisa de informação.
Não consegui ver-lhe a cara por causa do nevoeiro, mas fiquei com a
impressão de que ela estava a sorrir.
— Que situação excecional. Sabes, eu sou alguém que tem informação. E
que espera pagamento.
Aquilo fez-me parar e reprimi a minha resposta inicial de lhe oferecer o que
ela quisesse. Isso seria perigoso em qualquer reino, quanto mais num repleto de
pecados como este.
— Retribuir-te-ei com um segredo.
— Não. — A figura aproximou-se. Usava o capuz do manto para baixo,
cobrindo-lhe o rosto. — Eu conheço os teus segredos. Melhor do que tu, creio.
Eu quero um favor. Cobrado no futuro, à minha discrição. Pela deusa. Era um
acordo terrível.
— Não irei cometer assassínio.
— Ou aceitas o favor ou não. Tudo depende, suponho, do quanto precisas
dessa informação. Considera-o um teste de coragem. O que será? Bravura ou
medo?
A coragem podia ser a ausência de medo em muitos casos, mas também me
parecia um pouco como fazer algo insensato por uma boa causa. Não estava
preocupada em ser corajosa. Estava interessada em tomar conta de mim, em
tomar a melhor decisão possível. Se esta mulher misteriosa me conhecia melhor
do que eu, então não tinha outra escolha senão aceitar. As consequências que
fossem para o Inferno, assim como a minha alma.
— Aceito.
Antes que as palavras me tivessem saído por completo dos meus lábios, a
figura avançou. Aconteceu tão depressa que mal registei a picada que senti no
braço. Ela cortara-me. Olhei para cima, pronta para me defender de qualquer
outro ataque, e detive-me quando vi que ela estava a cortar a sua própria palma
e a colocá-la sobre a minha ferida.
Sussurrou uma palavra e uma luz ofuscante perfurou o céu noturno.
— Continua, criança. Faz as tuas perguntas.
— Quero encontrar as Sete Irmãs. Elas estão aqui?
— Não. Elas habitam onde nenhum pecado governa sobre os outros.
— Isso não é uma resposta.
— Na altura certa, compreenderás.
Cerrei os dentes. Está bem.
— Quero informações sobre a minha irmã gémea. Ela foi assassinada e
preciso de saber qual a casa demoníaca que está por detrás da sua morte. Se
algum deles é responsável.
— Não podes esperar encontrar respostas para o mistério de alguém quando
ainda não compreendes o teu próprio mistério.
— Não é esse o propósito da nossa conversa? Não aceitei o teu acordo para
que me pudesses atirar mais perguntas. Não me podes dizer onde estão as Sete
Irmãs, não me podes contar sobre a minha irmã gémea. Então como me podes
ajudar ao certo?
— Se esperas encontrar o que procuras, tens de passar pelo meu teste de
coragem.
— Isso não fazia parte do nosso acordo.
— Oh, mas faz. Tu, minha filha, estás no centro do teu próprio mistério. Até
descobrires os segredos que te rodeiam, não saberás as respostas para o mistério
da tua irmã. E isso é algo que eu não te posso dizer. Algumas verdades deves
encontrar por ti mesma. O que mais te preocupa?
Engoli em seco.
— A minha magia. Não lhe consigo aceder.
— Talvez eu saiba uma maneira de a recuperares. E de encontrares a
resposta que o teu coração anseia. Quanto ao teu príncipe. — A figura parou de
repente diante da árvore. — Se queres saber a sua verdade, então entalha o
nome dele na árvore e leva uma folha.
Pensei na fábula e uma sensação de mal-estar contorceu-se como uma faca
dentro de mim. Aquela figura encapuzada tinha de ser a Anciã. A deusa do
submundo. E algo a temer.
— Se eu o fizer e estiver errada, haverá um preço.
— É impossível realizar um verdadeiro ato de bravura sem o risco de um
preço elevado. — O seu sorriso mordaz foi tudo o que consegui ver dela, e
pouco fez para me acalmar os nervos. — Assim que esculpires o seu verdadeiro
nome e pegares na folha, deverás parti-la na sua presença. Se estiveres certa,
saberás. Se não...
Engoli o meu crescente ataque de terror. Se estivesse certa e ela fosse a
deusa do submundo, o seu preço seria a morte. Um pequeno detalhe que tanto o
Inveja como a Celestia haviam omitido.
— Não sei com certeza.
— Sabes quem ele é, mas escolhes permanecer nas sombras, confortável no
escuro. Talvez não seja a sua verdade que receias, mas sim a tua. Talvez
também te recuses a olhar para ele atentamente pelo que isso poderá revelar
sobre ti. Ele é o teu espelho. E nós raramente apreciamos aquilo que nos
devolve o nosso próprio reflexo. É aí, minha filha, que começa o verdadeiro
teste: serás realmente corajosa o suficiente para enfrentares os teus demónios?
Poucos são.
Olhei para a minha tatuagem mágica, aquela que contava a nossa história.
— Não foi essa a pergunta que me trouxe até aqui.
— Não. Mas é aquela que tens demasiado medo de perguntar. Por isso vou
perguntar outra vez, Filha da Lua, não quem é ele, mas quem és tu?
— Eu... eu não sei.
— Errado. — Ela bateu com o pé no chão, dispersando a névoa com o seu
movimento repentino. — Diz-me, quem és tu?
— Não me lembro. Mas vou descobrir, caramba!
— Bem, é um começo. — Ofereceu-me um leve acenar de cabeça de
cumplicidade. — O que vais fazer?
Olhei por cima do ombro. A Tanzie voltara de onde quer que a Anciã a
tivesse escondido, os seus olhos líquidos plenos de solenidade. Esta escolha
poderia custar-me a vida.
Levantei a minha adaga e pressionei-a contra a Árvore dos Condenados. Iria
escrever o verdadeiro nome do Ira na madeira e seguir a sugestão da Anciã:
enfrentar a verdade da qual tentara fugir.
E se estivesse errada... Teria de rezar às deusas para que não fosse esse o
caso, ou juntar-me-ia à Vittoria no túmulo da nossa família antes de a noite
acabar.
Capítulo 33
O Ira não estava nos seus aposentos nem na sua biblioteca. Fui procurá-lo
na sua varanda e estava prestes a partir para os Baixios do Crescente quando
decidi parar nas cozinhas.
Era um dos últimos lugares onde esperava encontrar o demónio da guerra,
mas ali estava ele, de costas para mim, faca na mão, a cortar um pedaço do que
me parecia ser queijo e a depositar os cubos perfeitos numa bandeja que já
enchera com vários frutos.
— Não precisas de um convite para te juntares a mim, Emilia. — Não se
virou para olhar para mim. — A não ser, claro, que não queiras estar na minha
companhia.
— Tenho andado à tua procura. Acho que isso indica que desejo a tua
companhia.
— Depois de me teres drogado para escapares dos meus aposentos,
perguntei-me se isso teria mudado.
— Isso... não teve nada que ver contigo.
Ele continuou a cortar, a faca a golpear a tábua.
— Pareceu-me bastante pessoal, tendo em conta o que havia acontecido
entre nós.
— Eu...
— Não precisas de te explicar.
— Não ia. Ia pedir-te desculpa porque foste vítima do que eu tinha de
fazer. — O silêncio cresceu entre nós. — Quanto tempo estiveste inconsciente?
— Não podes esperar que partilhe essa informação.
— Não, suponho que não.
Caminhei até onde ele estava a trabalhar, admirando a sua habilidade com a
faca. A forma como dispusera a fruta também era impressionante. Os figos
estavam cuidadosamente cortados em quartos, as bagas e as uvas empilhadas
em montinhos atrativos. Ele tinha até encontrado uma romã.
— Pensei que não gostavas de passar tempo na cozinha.
— Eu também não. — Encolheu os ombros, os olhos fixos apenas na sua
tarefa. — Não me interessa muito cozer ou misturar, mas acho o corte e a
fatiagem estranhamente relaxantes.
Sorri. Claro que lhe agradava esta parte de cozinhar. Em vez de comentar ou
quebrar o momento, tirei um pedaço de maçã do prato e levei-o à boca. Estava a
adiar a situação e sabia-o muito bem. Bom, lá se ia o meu teste de coragem.
— Em algumas religiões mortais, diz-se que as maçãs são o fruto proibido.
O Ira deteve-se por menos de um segundo, mas eu estava a prestar muita
atenção. Ele não olhou para cima.
— Para alguém que cresceu com bruxas, estou surpreendido por dedicares
tanto tempo a crenças humanas.
Escolhi outra peça de fruta.
— Também ouvi dizer que os figos, as uvas e as romãs são concorrentes na
corrida para serem o fruto proibido.
— Pensas muito em alimentos proibidos.
— Visitei a Árvore dos Condenados. — Ele continuou a cortar
cuidadosamente o queijo cheddar na tábua. Fui para o outro lado da mesa para
ficar de frente para ele, para poder olhá-lo nos olhos. — Fiz um acordo com a
Anciã. E ela disse algo que me fez pensar em frutos proibidos e árvores do
conhecimento.
Os nós dos dedos do Ira ficaram brancos à medida que ele agarrava na faca
com mais força.
— E?
— Queria saber a verdade sobre a minha irmã, mas ela insistiu que eu
precisava de descobrir a minha verdade primeiro. Para enfrentar os meus
medos. Disse que eu descobriria parte da minha verdade se eu reconhecer quem
tu és. — O seu olhar encontrou o meu. — Disse-me para escrever o teu
verdadeiro nome na árvore.
— Por favor, diz-me que recusaste. A Anciã é pior do que os meus irmãos.
Abanei a cabeça e pousei a folha cor de ébano raiada de prata sobre a
mesa. O Ira olhou para baixo, como se eu tivesse trazido uma cobra para a
cozinha. Levantei o punho para a esmagar e a mão dele saiu disparava, cobrindo
a minha. Puxou-me para ele e segurou-me a mão contra o seu coração. Batia
com força.
— Vamos voltar e fazer outro acordo com a Anciã.
Recuei o suficiente para o olhar nos olhos.
— Estás nervoso.
— Escreveste um nome numa árvore que exige sangue pela verdade. — O
príncipe soltou um suspiro frustrado. — É claro que estou nervoso.
Movi a minha mão livre para a pousar sobre a sua face. Aquela não era a
verdade completa por detrás do seu nervosismo, e ambos sabíamos disso.
— Eu sei quem tu és.
— Tenho sérias dúvidas.
O seu tom indicava que, se eu soubesse a sua verdade, não estaria tão perto
dele, aceitando-o pelo que era. O seu segredo aterrorizava-me, mas eu nunca o
superaria se não o revelasse. Nunca descobriria quem eu era e o que acontecera
à minha irmã se continuasse a ter medo da verdade. A Anciã tinha razão. Eu
habituara-me à escuridão, permanecera nela durante demasiado tempo. Primeiro
por causa da Nonna e agora por minha livre vontade. Chegara a altura de largar
os meus medos e avançar para a luz.
Antes que ele percebesse o que eu estava a fazer, pontapeei a mesa com
toda a força que tinha, mandando-a ao chão juntamente com a fruta, o queijo e a
folha amaldiçoada, cujos pedaços caíram entre os destroços.
Ele envolveu-me nos seus braços, como se pudesse proteger-me da árvore
amaldiçoada e do preço que estava prestes a cobrar. Mas eu não senti nenhum
acesso repentino de dor. Não enfraqueci nem perdi a consciência. Não morri.
Nem sequer sangrei.
O Ira abraçou-me com mais força, a sua respiração saindo áspera e rápida.
De repente, as lágrimas arderam-me nos olhos, mas recusei-me a deixá-las
cair. Estar ali, de pé, a salvo no círculo dos braços do Ira, significava que eu
acertara. E que a Anciã estava certa, mais uma vez.
Agora que estava de posse da verdade, não sabia o que fazer com ela. Pensei
que estava pronta, que conseguia aguentar ter o seu segredo desvendado.
Enganei-me.
E odiava-me a mim própria.
Deixei sair um suspiro entrecortado. Precisava de um instante para digerir
completamente o que havia descoberto. O Ira sentiu que estava a retrair-me para
dentro de mim e, com relutância, deixou cair os braços e afastou-se, conferindo
distância entre nós. Não disse nada, apenas esperou, pacientemente, que eu
falasse.
Sangue e ossos. Isto era difícil. Mas já passara por pior e sobrevivera. O que
quer que acontecesse a seguir, também sobreviveria a isso. — Quando ignoraste
o nome que te chamei no mosteiro, perguntei-me se haveria alguma razão para
não reagires com mais veemência. — Eu limpei os olhos, ainda sem olhar para
ele. — Agiste como se isso não significasse nada, como se eu te tivesse apenas
irritado. — Sorri, a olhar para as minhas mãos. — Porque, segundo a Nonna,
um príncipe do Inferno nunca revelará o seu nome aos verdadeiramente seus
inimigos.
Pude sentir a sua atenção fixa em mim, mas, ainda assim, não conseguia
olhá-lo nos olhos.
— Eu sei que as bruxas e os demónios são inimigos. Mas há mais na nossa
história, não há?
— Emilia...
— Tu és tentação. Sedução. — Por fim, arrastei o olhar para o braço dele e
acenei na direção da tatuagem da serpente. — A serpente no jardim. A que
encorajou os mortais a pecarem.
Subi o olhar para finalmente o fitar olhos nos olhos. Olhei para ele, olhei
mesmo para ele, objetivamente. O seu rosto, o seu corpo, toda a sua presença e a
forma como se comportava gritavam autoridade. Domínio. E ele fora concebido
para seduzir. Era a encarnação da tentação.
A sua expressão fechou-se enquanto esperava. Naquele momento, mais do
que nunca, desejei desesperadamente poder sentir as suas emoções. Apesar de
suspeitar que ele estava a sentir as minhas e que fora por isso que se tornara tão
distante. A sua armadura estava a postos, imutável. E estava a proteger-se de
mim.
— Não sei como enganaste a humanidade durante tanto tempo, mas o Inveja
estava certo. Tu és o mentiroso mais habilidoso de todos. Samael.
O seu nome verdadeiro pareceu afetá-lo. Não parecera que tivesse sustido a
respiração desde o início da nossa conversa. Naquele instante expirou.
— Príncipe das Trevas. Rei dos Malditos. Já me chamaram muitas coisas,
mas não sou um mentiroso.
Observei-lhe o rosto. Eu tinha razão. Soubera-o no preciso momento em que
a árvore não havia cobrado o seu preço, mas a verdade era difícil de engolir. O
Ira era o diabo. O mal que se temia em todo o mundo.
E eu caíra no seu jogo de sedução como uma idiota. Pelos seus olhos
dourados ardentes e sagacidade mordaz. Pelo orgulho que tinha na sua
aparência. Pela forma como protegia os que estavam ao seu cuidado e escolhia a
justiça em vez da vingança. Não era de admirar que o mundo mortal
confundisse os dois príncipes com tanta facilidade — o Orgulho e o Ira decerto
que partilhavam muitas semelhanças.
— Tiveste muitas oportunidades para me dizeres que eras o diabo. Foste tu
que amaldiçoaste La Prima. A mulher do Orgulho morreu mesmo ou foi a tua
consorte?
— Eu nunca te menti diretamente.
— Pára de omitir coisas.
— Ao contrário do Orgulho, eu nunca tive uma consorte. Mas sim, fui
amaldiçoado pela Primeira Bruxa. Tal como todos os meus irmãos. O meu
castigo por não a ter ajudado foi maior. Ela roubou-me algo muito importante
para mim. Algo pelo qual estou disposto a quase tudo para recuperar.
— O Chifre de Hades — adivinhei, pensando nos amuletos que compunham
os chifres do diabo.
Não lhes sentia a falta. Se alguma coisa sentia... era alívio por o meu amuleto
ter desaparecido nos últimos dias. O que não era de todo consistente com o que
sentira quando os tirara pela primeira vez. Embora suspeitasse que pudesse ter
algo que ver com a minha dolorosa experiência nos Baixios do Crescente.
Lembrei-me da minha preocupação de que o diabo ficasse zangado com o
Ira por ele me ter deixado levar o cornicello emprestado naquela noite. Quão
tola devo ter-lhe parecido.
— Eras o único que não parecia querê-los. O que suponho que indicava
que os desejavas mais do que todos os outros e apenas não querias parecer
muito ansioso e levantar suspeitas.
— São as minhas asas, não são chifres. A tua primeira bruxa amaldiçoou-
as numa ridicularização da sabedoria mortal, e depois escondeu-mas. — Ele
parecia perdido na memória. Uma levou-o a fechar as mãos em punhos de
ambos os lados do corpo. Quando olhou para mim, uma fúria gélida ardeu-lhe
nos seus olhos. — Para as restaurar, preciso de um feitiço achado no seu
grimório.
— Tens asas. — Porque ele era um anjo. Pela deusa. Uma coisa era
suspeitar, outra era ver essa suspeita confirmada.
— Tinha.
Havia todo um mundo de raiva e dor a envolver-lhe a voz. Parte de mim
queria aproximar-se dele, acalmar-lhe a ferida emocional ainda aberta. Em vez
disso, permaneci onde estava, hesitante.
As suas asas eram uma ligação ao mundo angelical. O reino que ele
deixara para trás. Era difícil de acreditar que o diabo chorasse por algo que o
prendia ao lugar que odiara o suficiente para ser expulso por toda a eternidade.
Ou talvez nada disso fosse verdade. Talvez fossem apenas contos mortais,
distorcidos pela passagem do tempo. O Ira não parecia ser a encarnação do mal.
Nem nenhum grande sedutor. No entanto... ele infiltrara-se lentamente na minha
vida. E no meu coração.
— Emilia. — Ele estendeu-me a mão e eu estremeci. Voltou a retraí-la. —
Consigo sentir as tuas emoções básicas, mas quero saber como te sentes
realmente.
— Tu és o diabo.
— Tal como fizeste questão de me relembrar.
— Mas o Lúcifer... O Orgulho... Não compreendo.
Ele suspirou.
— O pecado de eleição do meu irmão quase que o impossibilita de negar que
é o rei dos demónios. Os mortais assumem que é ele, e o seu orgulho impede-o
de admitir a verdade. Ele tem grande prazer em alimentar o seu próprio ego.
Não detenho quaisquer emoções sobre o meu verdadeiro título. Para mim, é um
dever. Uma obrigação imposta. Nada mais. Em todo o caso, o facto de o
Orgulho assumir o prestígio permite-me realizar o meu trabalho sem pretensões.
— Havia alguma coisa de real entre nós ou não passou de um jogo lento de
sedução? Uma pitada de verdade salpicada de mentiras.
— Diz-me. — Os seus olhos semicerraram-se. — Quando concordaste em
casar com o Orgulho, acreditando que ele era o diabo, isto importava?
Fui atingida por uma recordação não desejada.
— Nos Baixios do Crescente, na noite em que nós... tu me chamaste tua
rainha.
— Vieste aqui, acreditando que serias a Rainha dos Malditos. Tudo isso é
verdade. Se escolheres completar o nosso vínculo matrimonial, não serás apenas
a minha rainha, mas a rainha. — Ele examinou-me o rosto, a sua própria
expressão tornando-se distante. — A única alteração é com o irmão com quem
te vais casar. Neste reino, todos sabem quem eu sou. Conhecem o meu
verdadeiro título. Só os mortais assumem o contrário. Por isso, volto a
perguntar-te, importa mesmo agora que saibas quem eu sou?
— Para ser sincera, não tenho a certeza. É muito para assimilar. Tu és o
diabo. O mal encarnado.
— É assim que me vês?
— Fora deste reino, é assim que todos te veem.
— Não me importa o que os outros pensam. Apenas tu. — Deu um passo
atrás e baixou a cabeça. Os seus movimentos eram rígidos. — Obrigado pela
honestidade. Era tudo o que eu precisava de ouvir, minha senhora.
— Ira, espera.
Ele desapareceu numa nuvem brilhante de fumo.
Capítulo 34
Bati nos lábios com a pena enquanto analisava as notas, desejando que a
resposta se manifestasse. A mensagem da primeira caveira já parecia um pouco
mais clara. Tinha quase a certeza de que estava relacionada com o Espelho da
Lua Tripla e a sua capacidade de ver o passado, o presente e o futuro.
Era a mensagem da segunda caveira que me mantinha intrigada. Sabendo o
que sabia agora sobre as sete estrelas serem outro nome para as Sete Irmãs e o
facto de o Inveja estar interessado em localizá-las, perguntei-me...
Respirei fundo, distraída por um novo pensamento. Se o Ira estava a
esconder a Chave da Tentação à vista de todos, talvez tivesse feito o mesmo
com o Espelho da Lua Tripla. Talvez não me pudesse contar sobre a maldição,
mas tivesse tentado ajudar de uma maneira mais subtil.
No estojo do Inveja havia espaço para um espelho de mão. Eu recebera um
desses espelhos como presente antes de partir para a Casa Inveja. A esperança
fez-me pegar na chave, correr para a casa de banho e tirar o precioso espelho de
onde o guardara no tocador. Já tinha admirado a gravura na parte de trás, mas
não havia considerado que podia ser algo mais do que um desenho bonito.
Com o entusiasmo a inundar-me o peito, pressionei a Chave da Tentação na
parte de trás do espelho e virei-a. Ou tentei fazê-lo. Encontrar o alinhamento
certo foi difícil. Tentei várias outras formas, experimentei várias direções. Virei
a chave e estudei as linhas em relevo. Parte do meu anterior entusiasmo
dissipou-se. Não pareciam corresponder, mas ainda não queria desistir.
Depois de tentar o meu melhor para encaixar as duas peças, aceitei, por fim,
o facto de que não correspondiam.
Voltei para o meu quarto e deixei-me cair na cama para reler as minhas notas.
O que teria de fazer a seguir era encontrar as Sete Irmãs e perguntar-lhes se
sabiam onde estava o Espelho da Lua Tripla. As caveiras eram a chave para o
decifrar, se conseguisse resolver o enigma.