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CONTEÚDO EXCLUSIVO MENSAGEM NA GARRAFA

Bryce, Nestha e Azriel

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CONTEÚDO EXCLUSIVO MENSAGEM NA GARRAFA

Ping. Ping-ping-ping. Ping.


De olhos fechados, com a cabeça apoiada em uma pedra úmida e
irregular da parede da caverna, Bryce ouvia a pedra e a água falarem.
Ping-ping. Ping. Ping-ping-ping.
Era mais do que Nestha e Azriel tinham conversado nas duas horas
em que estavam fazendo uma pausa. Em teoria, Bryce deveria estar
dormindo. Mas sem o dia e a noite para ditarem o ritmo do corpo,
estava sentada em um estado de semitorpor, sem estar, de fato, dor-
mindo ou acordada.
Ping-ping-ping. Ping.
Bryce abriu um olho, analisando seus dois companheiros. Nestha
estava sentada na parede oposta, de cabeça baixa, respirando super-
ficialmente.
Mas Azriel olhava direto para Bryce. Ela levou um susto e bateu a
cabeça contra a pedra. A dor fez sua visão ficar turva. Quando enfim
conseguiu voltar a enxergar, Nestha tinha acordado.
— O que foi? — Nestha olhou de um lado para o outro no túnel. A
escuridão gotejante os cercava de ambos os lados, interrompida apenas
pelo brilho prateado e tênue da estrela de Bryce através da camisa. Um
brilho que se mantinha estável, sem aumentar nem diminuir. Como
se dissesse: Você está no caminho certo. Siga em frente.
Bryce esfregou a parte de trás da cabeça dolorida e se levantou.
— Não foi nada. Só o seu guerreiro predador noturno, que estava
me encarando enquanto eu dormia.

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— Você não estava dormindo — disse Azriel, com um leve traço
de divertimento na voz.
— Como você sabe? — retrucou Bryce, mas os lábios dela se cur-
varam para cima.
Nestha bocejou, esticando os braços acima da cabeça e estalando
o pescoço de um lado para o outro.
— O trabalho dele é vigiar. — Ela abaixou os braços, franzindo a
testa sutilmente para Azriel. — Você estava mesmo observando ela
dormir?
Azriel olhou com desaprovação.
— Falando desse jeito, faz parecer... indecente.
— É esquisito — resmungou Bryce.
— Você é uma desconhecida — ressaltou Nestha. — Seria erro
nosso deixar de prestar atenção em você um segundo sequer. Mesmo
quando está dormindo.
Bryce cruzou as pernas, suspirando. Já não tinha mais esperança
alguma de dormir naquele momento.
— Bom, então vamos deixar de ser desconhecidos — sugeriu ela.
Uma tática de sobrevivência que Randall tinha lhe ensinado: ser simpá-
tica com quem quer que a tenha capturado. Fazer com que a vissem de
corpo e alma, para que considerassem a possibilidade de não matá-la.
Porque, apesar de terem saído da cela usada para interrogação,
apesar de Nestha ter devolvido o celular dela, Bryce não tinha dúvidas
de que matá-la ainda não tinha sido descartado.
— O que você quer saber? — perguntou Nestha com cuidado.
Bryce olhou para eles.
— Como vocês se conheceram?
Ela poderia jurar ter percebido certa tensão vinda de Azriel, como
se estivesse ponderando os perigos de responder à pergunta, avaliando
por que Bryce poderia querer saber daquilo.
— Teve uma guerra — disse Nestha brevemente.
— Entre quem? — indagou Bryce.
De novo aquele silêncio avaliador. Dessa vez foi Azriel quem res-
pondeu.
— Entre um Rei Feérico maligno e nós.
— Vocês dois ou tipo... todo mundo?

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Nestha olhou com desdém para ela.
— Sim, o Rei de Hybern declarou guerra só contra mim e Azriel,
mais ninguém.
Bryce deu de ombros.
— Vindo de um feérico, não me surpreenderia. Bem no estilo da
babaquice e da mesquinharia deles.
Azriel riu, mas explicou:
— Ele queria conquistar nossas terras... e, por fim, o mundo. Não
tínhamos a intenção de permitir.
Nestha acrescentou em tom sombrio:
— Ainda mais depois que ele transformou minha irmã e eu, que
éramos humanas, em Grãs-Feéricas. — Palavras, ao mesmo tempo,
cruéis e cheias de desolação.
— Vou chutar que o lado de vocês ganhou, certo? — Bryce ergueu
uma sobrancelha.
— Derrotamos Hybern — confirmou Azriel, olhando para a
Reveladora da Verdade ao lado dele. E em seguida para Nestha. — Foi
a própria Nestha que decapitou o Rei de Hybern.
Bryce ficou sem reação.
— Fodona — murmurou.
A satisfação brilhava forte nos olhos de Nestha.
— Ele teve o que merecia. — Ela analisou Bryce. — Pelo que você
disse, seu mundo vive em guerra constante. Tem... rebeldes?
— Sim. — Bryce brincava com a bainha da camisa. — Já faz mui-
to tempo que eles estão combatendo os asteri. Meu parceiro, Hunt,
lutou em uma rebelião diferente séculos atrás... uma que fracassou.
A rebelião humana começou um século depois. E os asteri estavam
tão putos da vida por causa disso que começaram o serviço de recru-
tamento de humanos.
— O que é isso? — perguntou Azriel.
Bryce franziu a testa.
— Cada humano é membro da classe dos peregrinos, quando
comparados com os vanir, que são cidadãos de fato, ou civitas, como
chamamos. E cada peregrino é obrigado a servir no exército imperial
durante três anos. Os asteri enviam todos para combater a fronte
rebelde. Fazem com que matem seu próprio povo, assassinando as
pessoas que lutam pela liberdade deles.

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— Você precisou servir? — perguntou Nestha, olhando para Bryce.
— Não — respondeu Bryce, tensa. — Minha mãe arrumou uma
solução com meu pai biológico, que é feérico. Ele me fez receber o
status de cidadã e, assim, fui dispensada do exército. Ele não vale pra
quase nada, mas minha mãe arriscou entrar em contato e permitir
que voltasse para nossas vidas, só para me proteger. Para que eu não
tivesse que lutar. — Bryce sempre seria grata à mãe por isso.
— Mas a sua mãe, sendo humana, precisou servir, presumo — falou
Nestha, a pena estampada em seu rosto.
— Não — respondeu Bryce de novo. — Para preservar as pessoas
mais inteligentes, os asteri oferecem um teste que permite escapar
do exército. Quem tiver as maiores pontuações é tido como valioso
o bastante para não precisar servir. Minha mãe fez o teste quando
tinha 16 anos, quase gabaritou e pôde escapar do exército. Meu pai...
meu padrasto, quer dizer, tirou um ponto a menos da nota de corte.
Foi enviado para combater duas semanas depois. E, hum... não foi
fácil para ele.
Randall sofrera durante muito tempo com o peso de seus anos como
atirador de elite. Ainda fazia terapia duas vezes por semana, ainda
se deixava perder nos horrores que enfrentou, assim como naqueles
que infligiu em outros.
Deuses, Bryce só podia torcer para que ele estivesse a salvo. Torcer
para que ele fosse capaz de usar aquelas habilidades assassinas pelas
quais pagou tão caro para manter sua mãe e Cooper seguros.
— Sua mãe deve ser bem inteligente, então — comentou Nestha
—, e resiliente.
— Sim — respondeu Bryce, sentindo um aperto no peito. — Vive
me aporrinhando, mas devo muito do que sou a ela. Sua mãe também
deve ter orgulho de você ser tão... fodona.
A postura de Nestha ficou tensa.
— Minha mãe estaria se revirando no túmulo se soubesse que sou
uma guerreira... se soubesse que uso calça todos os dias e que tenho
um parceiro feérico. Não sei dizer o que a aterrorizaria mais, me ver
casada com um homem humano e pobre ou o que me tornei agora.
Bryce fez uma careta.

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— Parece que ela podia ter tido umas aulinhas de caráter. Sem
querer ofender.
A boca de Nestha se retorceu dos lados em um sorriso zombeteiro.
— Não me ofendi.
Bryce apontou para Azriel com o queixo.
— Essa sua cara fechada me diz que você também teve uma mãe
horrível. Quer compartilhar?
Nestha riu, irônica.
— Az nunca fala da mãe, assim como nenhum dos nossos amigos
fala, então imagino que ela era ainda pior.
O illyriano rosnou baixinho:
— Minha mãe é tudo, menos horrível.
Nestha ficou tensa, como se tivesse sido pega de surpresa por ter
recebido uma resposta dessas.
— Era brincadeira, Az. Eu nem sabia...
— Não quero falar disso — cortou Azriel friamente.
Bryce não deixou de notar a mágoa no olhar de Nestha. Em uma
tentativa de salvar a conversa, disse:
— Bom, se serve de consolo, minha melhor amiga Danika também
teve uma péssima mãe.
— Não tenho o monopólio desse tema — respondeu Nestha, seca,
ainda se recuperando da resposta atravessada de Azriel.
Bryce deu um sorriso.
— Danika disse que isso ajuda a fortalecer. — Diante da expressão
fechada de Nestha, ela se viu dizendo: — Acho que ela tinha razão...
de algum modo. Acho que a crueldade da mãe dela a tornou uma
pessoa mais gentil, mais atenciosa. Via como Sabine tratava os outros,
e ficava tão enojada que queria se tornar o oposto daquilo. Danika
vivia com medo de acabar ficando igual a mãe.
Nestha não respondeu, mas ali estava. Um gesto discreto de con-
cordância. Como se ela entendesse. Como se convivesse diariamente
com esse medo.
A água, ping-ping-pingava de novo no silêncio pesado que se seguiu.
— Então, esse seu... celular — comentou Nestha de repente, como
se buscasse mudar de assunto para o bem de todos. — Você disse que
tem música aí?

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Bryce pegou o celular no bolso traseiro, o brilho forte da tela contra
o de sua luz estelar, ainda que mais fraco.
— Sim. Tenho a minha biblioteca de música completa aqui.
O relógio do celular informava que eram 3h56 da manhã. A cabeça
dela girava. Seria aquele o tempo local? Ou em seu mundo? Que dia
seria ali... ou em Midgard? Há quanto tempo Hunt e Ruhn estavam...
Ela afastou esses pensamentos.
— Posso... ouvir um pouco da música de vocês? — A pergunta de
Nestha soava hesitante, como se estivesse desconfortável por fazer um
pedido tão pessoal.
Bryce deu um sorriso discreto para ela.
— Claro. Que tipo de música vocês gostam?
Ao perceber o silêncio confuso, Bryce explicou:
— Clássica, mais dance, jazz... beleza, já percebi que essas palavras
não querem dizer nada pra vocês.
— Coloque a música que mais represente o seu mundo — pediu
Nestha.
— Acho que uma discussão sobre isso poderia levar Midgard a
entrar em outra guerra — comentou Bryce. — Mas vou colocar a
minha favorita.
Ela fez uma careta para a bateria chegando ao final, bastante ciente
de que tocar música iria acabar ainda mais com a carga, mas o desejo
de sentir o gostinho de casa foi mais forte que sua apreensão.
Bryce vasculhou as músicas em seu celular até escolher a dupla folk
que tinha surgido em sua mente: Josie e Laurel. Sua mão tremia um
pouco pela magnitude do que representava escolher uma das muitas
músicas deles para tocar, a que seria a primeira a ser ouvida nesse pla-
neta. Ela sempre mudava de favorita de acordo com o humor, a fase
de vida que estivesse passando. No fim das contas, resolveu confiar
em seu instinto.
“Stone Mother” começou a tocar, as batidas retumbantes balancea-
das pela guitarra feroz, mas ainda assim, suave. Então, a voz de Josie
preencheu o túnel, aguda e, ainda assim, crescente, acentuada pela
entonação doce e bem definida de Laurel. O som era estrangeiro,
terreno; assombroso. Bastaram algumas notas para que Bryce esti-

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vesse de volta em seu quarto de criança em Nidaros, esparramada no
carpete, deixando o som dominá-la pela primeira vez.
Então ela se viu nas colinas de Valbara, cercada de oliveiras. Depois,
no cais repleto de palmeiras ao longo do Istros. Então, com Danika.
Depois, sozinha.
E enfim, com Hunt.
A canção a ajudara a viver todos esses momentos — todos os anos
de dor e vazio e de reconstrução. O som a carregava da luz para a
escuridão e de volta para a luz.
As harmonias fantasmagóricas ecoavam nas pedras, até que pare-
cesse que a própria rocha estivesse cantando.
E quando a canção acabou, o silêncio dominou. Nestha estava de
olhos arregalados.
— Isso foi lindo — disse ela, por fim. — Não entendi uma única
palavra, mas consegui sentir.
Bryce assentiu, nostálgica, pensando em seu lar, nos rostos que a
canção a fazia lembrar.
— Essa é uma música bem no estilo folk, country. Mas o que cha-
mamos de música clássica, que toca em grandes salões. Do tipo que
minha amiga Juniper dança no Balé da Cidade da Lua Crescente. E
eu também costumava dançar, mas... longa história. Essa é uma das
minhas danças favoritas. É de um balé chamado O caixão de vidro. —
Bryce apertou o play de novo e os violinos começaram.
Nestha ficou em silêncio de novo, os joelhos agora apertados contra
o peito, encarando a escuridão. Como se dedicasse cada pedacinho
de si mesma a sentir a canção.
— Isso parece um pouco com a nossa música — murmurou Azriel.
Nestha o silenciou.
Bryce batia os pés de acordo com o ritmo, lendo as expressões
que se espalhavam pelo rosto de Nestha enquanto a música tocava.
Admiração e curiosidade, alegria e... saudade. Nestha parecia estar
vibrando com a música, apesar de não se mover. Era como se estivesse
ganhando vida apenas ouvindo o som.
Quando a canção acabou, seu final estrondoso ecoando pela ca-
verna, Nestha olhou nos olhos de Bryce e disse:
— Também gosto de dançar.

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Era uma pequena parte dela, mas uma que ela compartilhou de
bom grado. Bryce sentiu uma onda de afeto em relação à guerreira,
ainda que breve.
— Ah, é?
Nestha apontou para o celular de novo.
— Toque mais, por favor.
E Bryce tocou.

* * *

Duas horas depois, eles estavam caminhando de novo. Talvez Azriel


tivesse se interessado o bastante pela música para permitir que se
demorassem mais um pouco. Bryce os fizera ouvir um pouco de cada
gênero que conseguiu se lembrar. Nestha cobrira as orelhas ao ouvir
o death metal cheio de gritos e uivos, mas Azriel se limitara a rir.
Ele provavelmente se daria bem com Ruhn e seus amigos idiotas.
Nestha gostara mais da música clássica, e os dois ficaram um tanto
intrigados com a música de festa, pulsante e agitada.
— É isso que vocês dançam no seu mundo? — perguntara Nestha.
Bryce não conseguia dizer se ela estava fascinada ou chocada. Azriel,
ao menos, parecia ter gostado.
Mas agora estavam em silêncio de novo, passando por desenhos
nas paredes, um atrás do outro. Deviam estar chegando perto do...
seja lá o que os esperasse no fim do túnel.
E se andassem e andassem sem, no entanto, encontrar nada? Em
que momento decidiriam que era hora de desistir? A estrela de Bryce
ainda brilhava, apontando o caminho à frente deles, mas e se não os
estivesse guiando corretamente? Talvez seus instintos estivessem errados.
Vai ver ela não tinha sido enviada ali por Urd. Talvez fosse tudo
uma grande confusão cósmica.
Um enorme acidente.
Bryce sentiu um aperto na garganta. Tentou não pensar no que
estaria acontecendo com Hunt e Ruhn, mas na lugubridade sem fim
daqueles túneis, seu medo dava as caras de novo. Estariam a salvo?
Estariam sequer vivos?

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— A música do seu mundo — perguntou Nestha de repente, in-
terrompendo o turbilhão de pensamentos funestos de Bryce — fica
disponível para todo mundo, simples assim?
— Mais ou menos. Temos uma espécie de... biblioteca não física,
criada por máquinas, que pode armazenar todas as informações do
mundo. Música, arte, livros... qualquer coisa. Então, sim, você pode
encontrar qualquer canção, qualquer tipo de música e ouvir sempre
que quiser.
— Vocês têm coisas incríveis em seu mundo — respondeu Nestha.
Azriel acrescentou, estando alguns passos atrás delas:
— E aterrorizantes.
Bryce resmungou em concordância.
— Tenho certeza que vocês também têm.
— Temos mesmo — concordou Azriel baixinho.
Bryce preencheu as lacunas do que ele não queria revelar.
— Mas vocês nunca viram nada como nossas armas ou bombas,
certo? — Ela presumiu que nunca tivessem visto, já que pareceram
tão chocados quando mostrara suas lembranças na esfera de Veritas.
— Foram os asteri que inventaram essas armas? — perguntou
Azriel com a voz sombria.
— Não. Algum outro babaca escroto que inventou — murmurou
Bryce. — Mas agora elas estão por toda a parte.
— Deviam ser todas destruídas.
— Sim. Elas não trazem nada de bom para o mundo. — Bryce incli-
nou a cabeça para o lado. — Então vocês têm espadas e coisas do tipo?
— Mais ou menos isso — respondeu Azriel, sucinto. Era óbvio que
ele não ia fazer uma lista dos sistemas de defesa deles para Bryce.
— E sua magia é...
— Não force a barra — retrucou Azriel, uma pitada daquele frio
de antes se fazendo perceber em sua voz.
Nestha franziu os lábios ao ouvir seu tom de voz, como se também
se lembrasse daquilo. Como se não a agradasse.
— Tá bem, tá bem — concordou Bryce. — Mas seria legal saber
alguma coisa do seu mundo. Ou de vocês.
Os dois ficaram em silêncio.
Bryce perguntou para Nestha:

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— Você tem um parceiro, certo? — Ela apontou para Azriel com
a cabeça: — E você?
— Não — respondeu Azriel depressa, o tom seco.
— Uma companheira ou esposa?
— Não.
Bryce suspirou.
— Tá bom, então.
As asas de Azriel se contraíram.
— Você é uma bisbilhoteira incansável.
— Acho que essa é a coisa mais simpática que você já disse de mim.
— Bryce deu uma piscadela para ele. — Olha, eu só... estou curiosa.
Vocês não estão?
Azriel não respondeu, mas Nestha disse:
— Sim. Estamos.
Bryce passou uma das mãos por cima de um entalhe de uma garota
sentada em um cogumelo, um cão de caça esparramado no chão ao
lado dela.
— É absurdo pensar que, em quinze mil anos, nós desenvolvemos
todas essas tecnologias e seu mundo ainda está, sabe, assim. — Ela
apontou para as roupas deles, para a caverna. Quando Nestha estrei-
tou os olhos, Bryce acrescentou, depressa: — Só fico me perguntando
por que não aconteceram mudanças desse tipo aqui. Quer dizer, nós
temos os asteri, mas muitas das nossas invenções não vieram deles.
— Talvez seja o resultado de tantos mundos diferentes se mistu-
rando em Midgard — considerou Nestha. — Cada um levou seus
aprendizados. Juntos, conseguiram descobrir mais. Pode ser que isso
não tivesse ocorrido caso continuassem separados.
— Talvez. Mas também temos a primalux, uma fonte coletiva de
poder. Vocês não têm isso aqui. Apenas o poder individual. — Era
preciso admitir que o poder coletivo de Midgard só existia graças
aos asteri. Seria algo bom ou ruim? Bryce não sabia nem por onde
começar a descobrir. Sentia, ao mesmo tempo, gratidão e ódio por
isso, uma confusão de emoções.
Nestha perguntou:
— Sem a primalux, você acha que o seu mundo ficaria como o
nosso?

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Bryce pensou a respeito.
— Não vejo outra forma de fazer nossos carros ou celulares fun-
cionarem, então... acho que sim.
Azriel perguntou:
— As armas precisam de primalux?
— Não — respondeu Bryce. — E algumas das bombas também
não precisam. — O peso da escuridão parecia pressioná-los. — Essas
desgraças permanecerão em Midgard para sempre, mesmo sem a
primalux.
— E as pessoas ainda iriam matar umas às outras, mesmo sem essas
armas — comentou Nestha, com seriedade — Os maus sempre acham
uma forma de ferir e machucar.
— É agora que vocês me relembram que sempre vão encontrar uma
forma de me ferir e machucar se eu ultrapassar os limites?
— Sim — respondeu Azriel com suavidade. — Mas também é ago-
ra que digo que geralmente somos nós que tentamos encontrar uma
forma de parar essas pessoas más.
— Isso não é revelar um pouco demais? — provocou Bryce. — Vocês
deveriam manter a imagem de malvadões. Não me dizer que são os
bonzinhos que combatem crimes.
— É possível fazer o bem — alertou Azriel — e, ainda assim, ser
mau.
Bryce assoviou.
— Conheço alguns machos no meu mundo que não poderiam nem
sonhar em dizer uma frase dessas de um jeito tão descolado.
Nestha riu.
— Também conheço alguns.
Azriel olhou incrédulo para Nestha. Mas a fêmea estava sorrindo
para Bryce.
Bryce retribuiu o sorriso.
— O ego dos machos é uma constante universal.
Nestha riu de novo.
— Se não fosse nossa prisioneira — disse ela, balançando a cabeça
—, acho até que poderia chamar você de amiga, Bryce Quinlan.
Bryce não sabia por que aquelas palavras a tocaram tão profun-
damente.

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— Sim — respondeu Bryce com a voz rouca —, digo o mesmo.
Eles voltaram a caminhar em silêncio, mas a tensão tinha se dissi-
pado. A atmosfera estava, de alguma forma... mais leve. Mesmo que
só por alguns instantes. Como se eles não fossem mais seus captores,
mas companheiros.
Tudo bem. Pelo menos, naquele mundo, os feéricos não eram tão
ruins assim. É claro que eles tinham alguns feéricos bem babacas
por ali também, mas Nestha... Bryce não a colocaria nessa categoria.
Era um tanto desconfortável, na verdade. Ela sempre se orgulha-
ra de seu ressentimento por todo e qualquer feérico, seu irmão e os
amigos idiotas sendo uma das raras exceções, mas esses dois estra-
nhos, e as informações que Bryce conseguira reunir sobre as pessoas
próximas a eles...
Eles pareciam pessoas decentes e protetoras que amavam uns aos
outros.
Bryce nem saberia dizer se os feéricos de Midgard sabiam o sig-
nificado da palavra amor. A definição que o Rei Outonal tinha dessa
palavra deixara uma discreta cicatriz no rosto da mãe dela.
Mas aqueles feéricos eram diferentes.
Será que isso importava? Os feéricos de Midgard não eram proble-
ma dela, e ela não queria que fossem, mas e se pudessem ser mais?
Será que tal mudança seria possível?
— Você gosta? — perguntou Bryce para Nestha de repente. — De
ser feérica?
— No começo eu não gostava — respondeu Nestha. — Mas agora
eu gosto.
Azriel parecia prestar atenção na conversa.
Nestha continuou.
— Sou mais forte, mais rápida. Difícil de matar. Não vejo um lado
ruim nisso.
— E a quase imortalidade também não é nada mal, hein? — pro-
vocou Bryce.
— Ainda estou me acostumando com a ideia — respondeu Nestha,
olhando para o túnel à frente. — De o tempo ser tão... vasto. Do dia
a dia versus os muitos séculos. — Ela olhou para Azriel. — Como você
lida com isso?

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Ele ficou em silêncio por um momento antes de responder.
— Encontre pessoas que você ama... elas fazem o tempo passar
mais rápido. — Ele cruzou o olhar com o de Nestha e disse, como se
pedisse desculpas: — Ainda mais se elas perdoarem quando você, de
vez em quando, se irritar e descontar nelas, por coisas que não são
culpa delas.
Algo pareceu se suavizar nos olhos de Nestha. Alívio, talvez, pela
oferta de paz. Ela disse baixinho, hesitante:
— Nada a ser perdoado, Az.
Mas suas palavras aliviaram parte da tensão restante. E as seguin-
tes deram o ponto final, quando ele deu uma piscadela para Nestha.
— E me disseram que ter filhos também faz o tempo voar.
Nestha revirou os olhos, mas Bryce não deixou de notar o brilho
neles. A fêmea estava disposta a entrar na brincadeira, a voltar para
a dinâmica normal entre os dois. Ela admitiu:
— Eu não faço a menor ideia de como criar uma criança. — Ela
apontou para si mesma. — Minha mãe era péssima, lembra?
— Não significa que você também vá ser — respondeu Azriel com
gentileza.
Nestha ficou quieta por alguns instantes, depois ressaltou:
— Minha mãe era ainda pior com a Feyre... e minha irmã se reve-
lou ser... — Ela procurou pelas palavras certas. — Uma mãe perfeita.
— Não existe isso de mãe perfeita — interveio Bryce. — Só pra
você saber.
— Sua mãe me parece bem perfeita — retrucou Nestha, seca.
— Pelos Deuses, não — disse Bryce, rindo. — Mas ela seria a pri-
meira pessoa a afirmar isso. Perfeito é um estigma injusto para impor
a qualquer pessoa. E foi minha própria mãe quem me ensinou isso.
Bryce engoliu em seco, pensando em Ember. Teriam os asteri ido
atrás dela para matá-la? Se Bryce um dia voltasse para casa... a mãe
estaria lá?
Nestha apoiou uma mão no ombro dela, parecendo, de alguma
forma, consolá-la. Como se sentisse tudo o que se passava na mente
de Bryce, o pânico que agora fazia seu coração bater mais forte.
— O que foi? — perguntou Bryce, olhando para a fêmea.
Nestha apontou com a cabeça para o bolso de Bryce.

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— A gente pode ouvir um pouco mais da sua música?
Era um pedido amigável, sem dúvida uma tentativa de tirar Bryce
de seus pensamentos lúgubres. Uma gentileza vinda de uma fêmea
que claramente não estava acostumada com atitudes assim. Bryce
pegou o celular de novo.
A bateria já se aproximava do vermelho. Acabaria em breve. Mas
para isso... ela poderia usá-la mais um pouco.
— O que vocês querem ouvir? — perguntou Bryce, abrindo a bi-
blioteca de música.
Nestha e Azriel trocaram olhares, e o macho respondeu um tanto
acanhadamente:
— A música que vocês tocam nas suas casas de espetáculos.
Bryce riu:
— Você é do tipo baladeiro, Azriel?
Ele olhou de cara fechada para ela, o que rendeu uma risada de
Nestha, mas Bryce colocou uma de suas músicas favoritas para dançar
em festas, uma mistura animada de graves estrondosos e saxofones,
dentre outras coisas. E conforme os três caminhavam rumo à escuri-
dão sem fim, ela poderia jurar que vira Azriel balançando a cabeça
no ritmo da música.
Ela disfarçou o sorriso e tocou uma música após a outra, até que
a bateria do celular, por fim, acabou de vez. Até que aquela última
linda conexão com Midgard se apagou e morreu.
Sem música. Sem fotos de Hunt.
Mas o som pareceu perdurar, como um eco fantasmagórico nas
cavernas.
E a cada quilômetro percorrido, ela podia ouvir Azriel cantarolan-
do baixinho para si mesmo. A melodia rítmica e agitada de “Stone
Mother” saía de seus lábios, e ela podia jurar que até as sombras
dançavam com o som.

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