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O DESPERTAR
DA MENINA PRIM
Tradução de Artur Lopes Cardoso
Oo
A chegada
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Em San Ireneo de Arnois, toda a gente comentou a chegada da
menina Prim. Na tarde em que a viram atravessar a aldeia, era ape-
nas uma candidata a caminho de uma entrevista, mas os habitantes
do lugar conheciam-se suficientemente bem para saber que uma
vaga era, ali, um bem efémero. Muitos deles ainda se lembravam do
que acontecera, uns anos antes, com a professora da escola primária.
Então, apresentaram-se nada menos do que oito candidatas, mas só
a três foi permitido expor os seus talentos. Isso não revelava desin-
teresse pela educação – em San Ireneo de Arnois o nível educativo
era primoroso –, mas a convicção, por parte dos seus habitantes,
de que não é por muito escolher que se aumentam as possibilida-
des de acertar. A proprietária da papelaria, uma mulher capaz de se
entregar, durante uma tarde inteira, a decorar uma simples folha de
papel, não hesitou em qualificar de extravagância a possibilidade de
dedicar mais do que uma manhã à seleção de uma professora. Todos
se mostraram de acordo. Naquela comunidade, era às famílias, cada
uma em função do seu perfil, da sua ambição e das suas possibili-
dades, que competia formar intelectualmente os filhos. A escola era
vista como um elemento subsidiário – indesejável, mas necessário –
em que uma boa parte dos pais se apoiava. Uma boa parte, mas não
todos. Assim, porquê dedicar-lhe tanto tempo?
Aos olhos dos visitantes, San Ireneo de Arnois parecia um lugar
ancorado no passado. As antigas casas de pedra, rodeadas de jardins
cheios de rosas, erguiam-se, orgulhosas, em torno de um punhado
de ruas que desembocavam numa praça buliçosa. Ali reinavam
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pequenos estabelecimentos e lojas que compravam e vendiam com o
ritmo regular de um coração saudável. Os arredores da aldeia estavam
salpicados por quintas minúsculas e oficinas que forneciam bens às
lojas locais. Era uma sociedade reduzida. Na vila, residia um labo-
rioso grupo de agricultores, artesãos, comerciantes e profissionais,
um círculo recolhido e seleto de académicos, e a sóbria comunidade
monacal da abadia de San Ireneo. Aquelas vidas entrelaçadas forma-
vam um verdadeiro universo. Eram as engrenagens de uma comuni-
dade de pequenos proprietários que se orgulhava de se autoabastecer
através do comércio, da produção artesanal de bens e serviços e do
encanto da cortesia local. Provavelmente, aqueles que diziam que pa-
recia um lugar ancorado no passado tinham razão. E, no entanto, ape-
nas uns anos antes, ninguém teria vislumbrado ali o menor indício do
mercado vivo e alegre que agora recebia os visitantes.
Que acontecera naquele intervalo? Se, quando ia a caminho do
seu novo emprego, a menina Prim tivesse feito essa pergunta à dona
da papelaria, esta ter-lhe-ia explicado que aquele mistério de prospe-
ridade era fruto da tenacidade de um homem jovem e da sabedoria de
um velho monge. Mas como, no seu percurso apressado em direção
à casa, a menina Prim não reparou no belo estabelecimento, a dona
não lhe pôde revelar com orgulho que San Ireneo era, na realidade,
uma florescente colónia de exilados do mundo moderno em busca de
uma vida simples e rural.
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I
O homem do cadeirão
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ter sido vítimas de um erro histórico fatal, dizia a si própria, com or-
gulho. Nem todos viviam, como ela, com a sensação permanente de
terem nascido num momento e num meio errados. Nem sequer todos
podiam ter consciência, como ela, de que tudo o que valia a pena
admirar, tudo o que era belo, excelso, parecia estar a desaparecer sem
quase deixar rasto. O mundo, queixava-se Prudencia Prim, perdera
o gosto pela harmonia, o equilíbrio e a beleza. E nem todos podiam
ver essa verdade, tal como nem todos podiam sentir, no seu interior,
a firme determinação de resistir.
Foi precisamente essa férrea decisão que levou a menina Prim
a responder, três dias antes de atravessar o carreiro de hortênsias, a
um breve anúncio publicado no jornal:
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– É a nova bibliotecária dele?
A aspirante inclinou a cabeça, surpreendida. Ali, no alpendre do
que parecia ser a entrada principal da casa, deparou-se com o olhar
de um miúdo de cabelo loiro e expressão carrancuda.
– É a senhora ou não? – insistiu o pequeno.
– Suponho que ainda é cedo para o dizer – respondeu ela. – Estou
aqui por causa do anúncio posto pelo teu pai.
– Ele não é nenhum pai – limitou-se a replicar o miúdo, antes de
dar meia-volta e de se precipitar, a correr, para o interior da casa.
A menina Prim contemplou, desconcertada, a ombreira da porta.
Tinha a certeza absoluta de que lera, no anúncio, uma referência ex-
plícita a um cavalheiro com filhos. Naturalmente, não era necessário
que um cavalheiro tivesse filhos; ao longo da vida, conhecera alguns
que os não tinham, mas, quando uma frase unia a palavra cavalheiro
à palavra crianças, que outra coisa se poderia pensar?
Foi nesse momento que ergueu os olhos e reparou, pela primeira
vez, na casa. Atravessara o jardim tão embrenhada nos seus pensa-
mentos que nem sequer se apercebera dela. Era um edifício antigo,
com uma fachada vermelha descolorida, cheio de janelas e portadas
que comunicavam com o jardim. Uma construção pesada e descas-
cada, com as paredes cobertas de trepadeiras que não pareciam ter
conhecido um jardineiro, cheia de gretas e rachas. O alpendre da
frente, formado por quatro velhas colunas sobre as quais pendia
uma enorme glicínia, ostentava um aspeto imponente e desolador.
– Deve ser gelada, no inverno – murmurou.
Então, consultou o relógio; estava-se quase a meio da tarde e o
vento fresco agitava caprichosamente as cortinas, brancas e leves
como velas. «Parece um barco», pensou, «um velho barco encalhado.»
E, dando uma volta, aproximou-se da primeira janela, disposta a en-
contrar um anfitrião que tivesse atingido, pelo menos, a maioridade.
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estavam estendidos em cima do tapete, deitados em velhos sofás, en-
rolados em cadeirões de couro desconjuntados. Também observou
dois enormes cães estendidos em cada um dos lados do cadeirão
colocado em frente da lareira, de costas para a janela. O rapazinho
que a recebera no alpendre estava ali, no tapete, conscienciosamente
inclinado sobre um caderno. Os restantes levantavam a cabeça de
vez em quando, para responder a um interlocutor, cuja voz parecia
brotar diretamente do cadeirão em frente da lareira.
– Vamos começar – disse o homem do cadeirão.
– Podemos pedir pistas? – perguntou uma das crianças.
Em resposta, a voz masculina limitou-se a recitar:
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quisesse dar testemunho do seu interesse por aquele acontecimento
histórico, se levantou, aproximou da lareira e voltou a deitar-se em
cima do tapete.
– Estudámos tudo isso, absolutamente tudo, na primavera pas-
sada – lamentou-se, então, o homem.
Sem levantarem a cabeça, as crianças mordiscavam pensativa-
mente as esferográficas, balançavam despreocupadamente os pés,
apoiavam as bochechas nas mãos.
– Bando de bestas ignorantes – insistiu a voz, num tom irritado.
– Que diabo se passa hoje?
A menina Prim sentiu uma onda de calor subir-lhe ao rosto. Era
verdade que não tinha a menor experiência com miúdos pequenos,
mas era mestra numa arte chamada delicadeza. A menina Prim acre-
ditava firmemente que a delicadeza era a força que movia o universo.
Onde esta faltava, sabia-o por experiência, o mundo tornava-se es-
curo e tenebroso. Indignada com a cena e um pouco entorpecida,
tentou mexer-se com cuidado no seu esconderijo, mas o inesperado
grunhido de um dos cães fê-la desistir da tentativa.
– Está bem. – O tom do homem tornou-se mais suave. – Vamos
tentar outro mais fácil.
– Do mesmo autor? – perguntou uma rapariga.
– Exatamente do mesmo. Estão preparados? Vou recitar apenas
meia linha:
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