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NATALIA SANMARTIN FENOLLERA

O DESPERTAR
DA MENINA PRIM
Tradução de Artur Lopes Cardoso

Oo
A chegada

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Em San Ireneo de Arnois, toda a gente comentou a chegada da
menina Prim. Na tarde em que a viram atravessar a aldeia, era ape-
nas uma candidata a caminho de uma entrevista, mas os habitantes
do lugar conheciam-se suficientemente bem para saber que uma
vaga era, ali, um bem efémero. Muitos deles ainda se lembravam do
que acontecera, uns anos antes, com a professora da escola primária.
Então, apresentaram-se nada menos do que oito candidatas, mas só
a três foi permitido expor os seus talentos. Isso não revelava desin-
teresse pela educação – em San Ireneo de Arnois o nível educativo
era primoroso –, mas a convicção, por parte dos seus habitantes,
de que não é por muito escolher que se aumentam as possibilida-
des de acertar. A proprietária da papelaria, uma mulher capaz de se
entregar, durante uma tarde inteira, a decorar uma simples folha de
papel, não hesitou em qualificar de extravagância a possibilidade de
dedicar mais do que uma manhã à seleção de uma professora. Todos
se mostraram de acordo. Naquela comunidade, era às famílias, cada
uma em função do seu perfil, da sua ambição e das suas possibili-
dades, que competia formar intelectualmente os filhos. A escola era
vista como um elemento subsidiário – indesejável, mas necessário –
em que uma boa parte dos pais se apoiava. Uma boa parte, mas não
todos. Assim, porquê dedicar-lhe tanto tempo?
Aos olhos dos visitantes, San Ireneo de Arnois parecia um lugar
ancorado no passado. As antigas casas de pedra, rodeadas de jardins
cheios de rosas, erguiam-se, orgulhosas, em torno de um punhado
de ruas que desembocavam numa praça buliçosa. Ali reinavam

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pequenos estabelecimentos e lojas que compravam e vendiam com o
ritmo regular de um coração saudável. Os arredores da aldeia estavam
salpicados por quintas minúsculas e oficinas que forneciam bens às
lojas locais. Era uma sociedade reduzida. Na vila, residia um labo-
rioso grupo de agricultores, artesãos, comerciantes e profissionais,
um círculo recolhido e seleto de académicos, e a sóbria comunidade
monacal da abadia de San Ireneo. Aquelas vidas entrelaçadas forma-
vam um verdadeiro universo. Eram as engrenagens de uma comuni-
dade de pequenos proprietários que se orgulhava de se autoabastecer
através do comércio, da produção artesanal de bens e serviços e do
encanto da cortesia local. Provavelmente, aqueles que diziam que pa-
recia um lugar ancorado no passado tinham razão. E, no entanto, ape-
nas uns anos antes, ninguém teria vislumbrado ali o menor indício do
mercado vivo e alegre que agora recebia os visitantes.
Que acontecera naquele intervalo? Se, quando ia a caminho do
seu novo emprego, a menina Prim tivesse feito essa pergunta à dona
da papelaria, esta ter-lhe-ia explicado que aquele mistério de prospe-
ridade era fruto da tenacidade de um homem jovem e da sabedoria de
um velho monge. Mas como, no seu percurso apressado em direção
à casa, a menina Prim não reparou no belo estabelecimento, a dona
não lhe pôde revelar com orgulho que San Ireneo era, na realidade,
uma florescente colónia de exilados do mundo moderno em busca de
uma vida simples e rural.

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I

O homem do cadeirão

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Precisamente no mesmo momento em que o pequeno Septimus


se espreguiçava, depois da sesta, enfiava os dois pés de onze anos
numas sapatilhas para uns pés de catorze e se aproximava da janela
do seu quarto, a menina Prim atravessava a oxidada grade do jar-
dim. A criança olhou-a com curiosidade. À primeira vista, não pa-
recia nervosa, nem sequer um pouco assustada. Também não tinha
aquele ar ameaçador do anterior responsável, aquela aparência de
saber perfeitamente que tipo de livro iria pedir quem quer que ou-
sasse pedir um.
– Se calhar, agrada-nos – disse para consigo, esfregando os olhos
com as duas mãos. Depois, afastou-se da janela, abotoou, à pressa, o
casaco e desceu as escadas para ir abrir a porta.
A menina Prim, que naquele momento avançava, calmamente,
entre maciços de hortênsias azuis, começara a sua jornada conven-
cida de que aquele era o dia por que esperara durante toda a vida.
Ao longo dos anos, fantasiara com uma oportunidade como aquela.
Desenhara-a, imaginara-a, refletira sobre cada um dos seus porme-
nores. E, no entanto, naquela manhã, enquanto atravessava o jardim,
Prudencia Prim teve de reconhecer que, no seu coração, não havia a
mais remota aceleração nem a mais leve agitação que indicasse que
chegara o grande dia.
Uma coisa sabia, iriam observá-la com curiosidade. As pessoas
costumavam olhar assim para ela, tinha plena consciência disso.
Como também sabia que em nada se parecia com os que costumavam
examiná-la desse modo hostil. Nem todos eram capazes de admitir

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ter sido vítimas de um erro histórico fatal, dizia a si própria, com or-
gulho. Nem todos viviam, como ela, com a sensação permanente de
terem nascido num momento e num meio errados. Nem sequer todos
podiam ter consciência, como ela, de que tudo o que valia a pena
admirar, tudo o que era belo, excelso, parecia estar a desaparecer sem
quase deixar rasto. O mundo, queixava-se Prudencia Prim, perdera
o gosto pela harmonia, o equilíbrio e a beleza. E nem todos podiam
ver essa verdade, tal como nem todos podiam sentir, no seu interior,
a firme determinação de resistir.
Foi precisamente essa férrea decisão que levou a menina Prim
a responder, três dias antes de atravessar o carreiro de hortênsias, a
um breve anúncio publicado no jornal:

«Procura-se espírito feminino que não esteja subjugado


pelo mundo. Capaz de exercer as funções de bibliotecária para
um cavalheiro e os seus livros. Com facilidade de convívio com
cães e crianças. De preferência sem experiência laboral. As de-
tentoras de curso superior e pós-graduação devem abster-se.»

A menina Prim só correspondia em parte àquele perfil. Não estava


de modo algum subjugada pelo mundo, isso era claro. Tal como o era
a sua indubitável capacidade de exercer as funções de bibliotecária de
um cavalheiro e dos seus livros. Mas não tinha experiência de lidar
com crianças nem cães e muito menos de conviver com eles. No en-
tanto, para ser sincera, o que mais a preocupava era a dificuldade de
encaixar o seu perfil no requisito «as detentoras de curso superior e
pós-graduação devem abster-se».
A menina Prim considerava-se uma mulher fortemente quali-
ficada. Licenciada em Relações Internacionais, Ciências Políticas e
Antropologia, era doutorada em Sociologia e especialista em bibliote-
conomia e arte russa medieval. As pessoas que a conheciam olhavam
com curiosidade para aquele currículo extraordinário, sobretudo
atendendo a que a sua titular era uma simples administrativa sem
ambições conhecidas. Não compreendiam, dizia a si própria com dis-
plicência, não compreendiam a ideia de excelência. Como poderiam,
num mundo em que nada significava já o que deveria significar?

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– É a nova bibliotecária dele?
A aspirante inclinou a cabeça, surpreendida. Ali, no alpendre do
que parecia ser a entrada principal da casa, deparou-se com o olhar
de um miúdo de cabelo loiro e expressão carrancuda.
– É a senhora ou não? – insistiu o pequeno.
– Suponho que ainda é cedo para o dizer – respondeu ela. – Estou
aqui por causa do anúncio posto pelo teu pai.
– Ele não é nenhum pai – limitou-se a replicar o miúdo, antes de
dar meia-volta e de se precipitar, a correr, para o interior da casa.
A menina Prim contemplou, desconcertada, a ombreira da porta.
Tinha a certeza absoluta de que lera, no anúncio, uma referência ex-
plícita a um cavalheiro com filhos. Naturalmente, não era necessário
que um cavalheiro tivesse filhos; ao longo da vida, conhecera alguns
que os não tinham, mas, quando uma frase unia a palavra cavalheiro
à palavra crianças, que outra coisa se poderia pensar?
Foi nesse momento que ergueu os olhos e reparou, pela primeira
vez, na casa. Atravessara o jardim tão embrenhada nos seus pensa-
mentos que nem sequer se apercebera dela. Era um edifício antigo,
com uma fachada vermelha descolorida, cheio de janelas e portadas
que comunicavam com o jardim. Uma construção pesada e descas-
cada, com as paredes cobertas de trepadeiras que não pareciam ter
conhecido um jardineiro, cheia de gretas e rachas. O alpendre da
frente, formado por quatro velhas colunas sobre as quais pendia
uma enorme glicínia, ostentava um aspeto imponente e desolador.
– Deve ser gelada, no inverno – murmurou.
Então, consultou o relógio; estava-se quase a meio da tarde e o
vento fresco agitava caprichosamente as cortinas, brancas e leves
como velas. «Parece um barco», pensou, «um velho barco encalhado.»
E, dando uma volta, aproximou-se da primeira janela, disposta a en-
contrar um anfitrião que tivesse atingido, pelo menos, a maioridade.

Assim que se aproximou da janela, a menina Prim descobriu


uma sala grande, muito desordenada, repleta de livros e crianças.
Havia mais livros do que crianças, muitos mais, mas, por qualquer
razão, a relação de forças parecia equilibrada. A candidata contou
trinta braços, trinta pernas e quinze cabeças. Os seus proprietários
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estavam estendidos em cima do tapete, deitados em velhos sofás, en-
rolados em cadeirões de couro desconjuntados. Também observou
dois enormes cães estendidos em cada um dos lados do cadeirão
colocado em frente da lareira, de costas para a janela. O rapazinho
que a recebera no alpendre estava ali, no tapete, conscienciosamente
inclinado sobre um caderno. Os restantes levantavam a cabeça de
vez em quando, para responder a um interlocutor, cuja voz parecia
brotar diretamente do cadeirão em frente da lareira.
– Vamos começar – disse o homem do cadeirão.
– Podemos pedir pistas? – perguntou uma das crianças.
Em resposta, a voz masculina limitou-se a recitar:

Ultima Cumaei venit iam carminis aetas;


magnus ab integro saeclorum nascitur ordo:
iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna;
iam nova progenies caelo demittitur alto.

– E então? – perguntou, ao terminar.


As crianças guardaram silêncio.
– Poderia ser Horácio – respondeu o homem –, mas não é. Vamos,
tentem lá outra vez. Quem se atreve a traduzir?
A candidata, que contemplava a cena escondida atrás dos gros-
sos reposteiros que emolduravam as cortinas leves, pensou que a
pergunta era excessiva. Aquelas crianças eram demasiado novas
para reconhecer uma obra através de uma única citação, sobretudo
escrita em latim. Apesar de ter lido Virgílio com prazer, a menina
Prim não aprovava aquele jogo, não o aprovava de modo algum.
– Vou ajudá-los um pouco – continuou a voz vinda do cadeirão.
– Estes versos foram dedicados a um político romano de princípios
do Império. Um político que chegou a ser amigo de grandes homens
que já estudámos, como Horácio. Um desses amigos dedicou-lhe estas
linhas por ter mediado a Paz de Brundisium, que, como sabem ou
deveriam saber, pôs termo a um confronto entre António e Octávio.
O homem calou-se e olhou para as crianças – ou foi isso que
imaginou a menina Prim no seu esconderijo – num gesto de muda
interrogação que não obteve resposta. Só um dos cães, como se

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quisesse dar testemunho do seu interesse por aquele acontecimento
histórico, se levantou, aproximou da lareira e voltou a deitar-se em
cima do tapete.
– Estudámos tudo isso, absolutamente tudo, na primavera pas-
sada – lamentou-se, então, o homem.
Sem levantarem a cabeça, as crianças mordiscavam pensativa-
mente as esferográficas, balançavam despreocupadamente os pés,
apoiavam as bochechas nas mãos.
– Bando de bestas ignorantes – insistiu a voz, num tom irritado.
– Que diabo se passa hoje?
A menina Prim sentiu uma onda de calor subir-lhe ao rosto. Era
verdade que não tinha a menor experiência com miúdos pequenos,
mas era mestra numa arte chamada delicadeza. A menina Prim acre-
ditava firmemente que a delicadeza era a força que movia o universo.
Onde esta faltava, sabia-o por experiência, o mundo tornava-se es-
curo e tenebroso. Indignada com a cena e um pouco entorpecida,
tentou mexer-se com cuidado no seu esconderijo, mas o inesperado
grunhido de um dos cães fê-la desistir da tentativa.
– Está bem. – O tom do homem tornou-se mais suave. – Vamos
tentar outro mais fácil.
– Do mesmo autor? – perguntou uma rapariga.
– Exatamente do mesmo. Estão preparados? Vou recitar apenas
meia linha:

… facilis descensus Averno…

Uma inesperada onda de braços erguidos e de exclamações rui-


dosas de triunfo demonstrou claramente que, desta vez, os pupilos
sabiam a resposta.
– Virgílio! – gritaram um a um, num coro estridente. – É a Eneida!
– É isso mesmo, é isso mesmo – riu o homem, satisfeito. – E aquilo
que recitei antes eram as Éclogas, a IV Écloga. Por conseguinte, o esta-
dista romano que foi amigo de Virgílio e de Horácio é…
Antes que alguma das crianças pudesse responder, a voz clara e
musical da menina Prim emergiu das cortinas e encheu a sala.
– Asínio Polião, evidentemente.

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