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O Canto do Náufrago

Diogo Silva

11º ano nº 107


“……..
Acho o teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co’ sacrílego gigante.

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,


Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos que em vão desejo
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da sorte dura,


Meu fim demando ao céu, pela certeza
De que serei só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és… Mas, oh tristeza!...


Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da natureza!”

Bocage
I
Diana, é este o nome da mulher que me contou a história que irei narrar.
Conheci-a numa viagem rotineira Faro-Porto, num comboio pendular desgastado do
tempo, oxidado, e de tamanho considerável, tanto no seu comprimento como, também,
na intriga e riqueza de peripécias que absorvi daquela traineira. Diana, era uma mulher
feita, baixa, fina; tinha um cabelo liso, tratado, não em demasia, apenas o aceitável, a
pele branca, macia como seda autêntica; os olhos, azuis cor do céu aberto, do mar, da
aventura; o semblante era terno, doce, intrigante, misterioso quanto baste, mas de um
magnetismo inebriante. Não me interessei pelos detalhes do acessório, ou seja, a triste
paisagem verdejante emoldurada na janela do comboio como, também, pela abundância
de monumentos e historicidade deste país, mas sim pelo enredo.
Estávamos na Primavera. O calor e a verdura despontavam. Uma viagem de
comboio naquela altura era um dos passeios da moda, contudo, é nisto que consiste o
princípio do fim da nossa beleza natural. A degeneração que as novas tecnologias
provocam no “environment” português é imensa em comparação com o benefício que
proporcionam. Se fosse programada numa forma mais racional seria valiosa para a
comunidade. No plano intelectual, ela bloqueia a mente humana. Assim sendo, num
futuro longínquo, pode ir ao extremo de transformar os indivíduos, transformando-os
em seres latentes. Serão privados do senso da rectidão, lealdade e justiça. A natureza é
vítima destes excessos do homem, mas que terão reflexão nele próprio e nos seus.
Diana estava ansiosa por contar a sua história, eu pronto para escutá-la com
atenção devota. Ela tinha em sua posse uns manuscritos de um antepassado seu, Luís
era o seu nome, sendo uma espécie de uma autobiografia deste, juntamente com alguns
rascunhos da sua arte, escrever. Estes tinham passado de geração em geração até às
mãos de Diana. E ela queira partilhar esse seu orgulho com alguém. O acaso decidiu
escolher-me a mim, ou melhor, como dizia Eça de Queirós: “O que não contas à tua
mulher, o que não contas ao teu amigo, vais contar a um estranho numa estalagem”.

**
Na casa de Luís, em Lisboa, faltava algo. Inexistia a necessidade, a ausência de
alguma coisa importante. Tudo sobrava. A sua família era abastada, rica, importante.
Tudo isso não era ganho, conquistado, pelo contrário, era oferecido. Havia um ar pesado
naquela residência. As paredes tinham cores carentes ostentando retratos das gerações
até aí habitantes da mansão. Todas as divisões, que não eram poucas, mostravam as
marcas do tempo. Salas, biblioteca, quartos, suites, banheiros marmorizados, uma
imensidão. Vinte e nove divisões repletas de móveis finos, de empregados trabalhando,
de silêncio comedido. Moravam ali, da família, seis pessoas. Aos pedaços, bem
verdade. Três filhos do primeiro casamento de Pedro, o pai de Luís, um filho só da
primeira mulher, um bebé do segundo casamento. E a esposa actual, da idade dos mais
velhos. Pedro, casara, portanto, duas vezes. A primeira mulher falecera. De desgosto,
diziam, ele não prestava.

Como ele não prestaria com a fortuna que tem? A perfeita felicidade, terá de ser
despida, inteiramente, de todas as paixões; e, nada mais difícil, ou melhor, fácil,
depende. Ao avistarmos uma mulher bonita podemos dizer: aquelas faces murcharão um
dia; vermelhos e lacrimosos se tornarão aqueles olhos; flácidos, cairão aqueles seios, e
aquela cabeça tornar-se-à calva. Isto é, bastar-nos-à imaginar o que será ela no futuro, e
certamente nenhum rosto bonito nos dará a volta à cabeça. Mas não é assim, a
moderação não está ligada ao fenómeno humano. Em vão nos deveriam tentar seduzir
com um bom petisco, ou os encantos da sociedade. Seria suficiente que nos figurasse as
consequências do excesso, mas isso vem com o tempo, com a idade, com a astúcia, não
com o instinto humano. É tudo tão difícil que mérito nenhum há-de consegui-lo. É de
prever.

Luís era o terceiro na ordem cronológica dos irmãos, ou meio-irmãos. Mas,


apesar de todo o luxo, continuava a faltar algo naquela casa. E ele sabia o que era.
- O que é Luís? O pai manda comprar. – disse Pedro vendo o filho triste, certa
noite. Novamente, iria sair de casa para um encontro de irmãos deixando a família
desacompanhada.
- Comprar algo? Só se fosse uma boa almofada para desabafar. Na falta de um
ombro… – falou ele.
- Não percebo. Tu já não deves saber o que dizes. – disse Pedro.
Luís era o irmão mais novo, mas não mimado, apesar do contexto social em que
vivia. Era já adolescente, os irmãos, adultos e estabelecidos. Dava-se mal com os
irmãos. Não eram da sua têmpera. Excluindo Luís, os outros irmãos discutiam feio,
ninguém queria sair derrotado, parece que havia algo mais em jogo. Apelavam para as
ofensas reais e imaginárias, concretas e abstractas. Transferiam para eles todos os
traumas, recalques, rancores. E assim seguiam enquanto houvesse argumento. Um teria
que desistir, e essa era a pior parte, pois nenhum deles dava o braço a torcer. Naquela
altura, gladiavam-se em busca da melhor posição pela herança do pai que, embora não
fosse velho ou caduco, teimava em não partilhar com os seus a riqueza que não tinha
sido conquistada à custa do seu suor, mas sim do sangue de muitas mulheres que foram
fulminadas pela sua aura de “Don Juan” e teimaram em superlativá-lo.

Superlativar Pedro? Todo o ser humano é a existência do que nunca existiu.


Somente o nada é inconcebível, porque não podemos conceber aquilo que não existe. E
da mesma forma que um parasita não pode agredir o seu hospedeiro para não destruir o
seu ninho e perder o seu sustento, também não se deve contentar eternamente com essa
condição. A verdade é um facto, que se revela de qualquer modo. Nunca se deve
descuidar os laços de amizade, todavia, isso não é uma necessidade, pois eles não fazem
conhecer o interior humano onde adormecem a lealdade e a gratidão. Todas as pessoas
devem ver a justiça como um atributo exclusivamente de Deus, que em si não outorga
privilégios a ninguém. Este é o único motivo pelo qual, a classe que exerce o poder
sobre as outras, a abomina. A humanidade é naturalmente bela, a beleza física do ser
vivente, dentro e fora de si mesmo, assim o demonstram. É bom entender que, alguém
que ao longo da sua vida cultivou o hábito de semear a discórdia entre os irmãos, é
porque somente viveu para o seu mundo. Porém, se ao contrário, teve o gozo de um
procedimento condizente com o seu ambiente, agirá em todo o caso dentro dos limites
do dever e do ideal moral. O Homem é uma acção moral, uma obra perfeita da arte
divina, apesar de, em toda a sua rudeza, ser uma aparência disforme na natureza.

Luís era um rapaz sonhador, sagaz, sincero, aventureiro, perspicaz, patriota,


inteligente, leal, genial, idealista, nacionalista, astuto, talentoso, activo, fino, dedicado,
enérgico, mas também, inconstante, inseguro, instável e volúvel. Fisicamente tinha
altura média, olhos e cabelos escuros, magro e uma figura aristocrata e nobre. As
raparigas da sua idade suspiravam por ele, impressionadas pelos seus atributos. Ele não
se fazia rogado, adorava amar e ser amado, apaixonar-se e cair em desgostos amorosos.
Fazia-o sentir-se vivo, existente, ser importante para alguém, ter um rumo na sua vida.
Todos estes sentimentos ele tentava encaixá-los na sua arte, a escrita. Era um poeta por
natureza. A sua cabeça era a pena com que escrevia infinitamente, o seu coração a tinta
que colocava no papel. Mas por muito que tentasse equacionar uma solução, uma saída,
um motivo, um porquê, ele continuava sem entender uma pequena grande coisa, o amor,
esse sentimento contraditório.

Amor? A este propósito convém contar um episódio na vida de Luís que o


marcou tanto na sua personalidade, como no rumo que a sua vida tomou.
Um dia algo aconteceu – seus olhos brilharam quando uma pessoa amiga lhe
contou sobre uma jovem loira recém chegada. Ao abrir a cortina dos seus aposentos,
Luís deslumbrou-se com a visão de uma jovem na janela da casa em frente. Os cabelos
loiros emolduravam um rosto perfeito, angelical, belo, próspero, e ela, alegre, debruçada
na janela, exibia uma figura formosa. Por trás das cortinas, como já havia muitas vezes
feito ao pesquisar a redondeza nas noites de solidão – podia admirar aquela exuberante
mulher. E imediatamente encantou-se e apaixonou-se por aquela imagem.
Depois arrojou-se. Fixou nela o seu olhar e a jovem sorria, em resposta. Decidiu
enfrentar o mundo para conhecer aquela que surgira como uma deusa à sua janela. A
sua timidez apenas enrubescia o seu sentimento. Reconhecia a própria obsessão. Dormia
mal e acordava como um autómato correndo para a janela. Ninguém. Assim foi por
algumas semanas. Cuidava de indagar a janela, na esperança de avistar a jovem loira,
enquanto usava a imaginação para vaguear pelas mais românticas situações e descobrir
um modo de conhecê-la. Pouco tempo depois a sorte o ajudou e encontrou-se, aturdido
e encantado, com a jovem. Ficou, mais uma vez, deslumbrado, classificando a beleza e
a elegância da jovem, incomparáveis. Apesar da educada distância e respeito com que
se manteve em relação à rapariga, pôde ouvir o nome dela, que lhe soou lindamente,
Ana. Apesar da série de investidas que fez, não conseguiu o que mais queria, o coração
da jovem. Obteve a resposta secamente, estava comprometida. Não queria acreditar.
Julgava possui-la ainda antes de a conhecer. Sentia o coração explodir dentro dele…
Depois, de soslaio, reavaliou a beleza daquele rosto, que o enfeitiçara. Os olhos azuis
outrora alegres, escondiam-se sem brilho, como as máscaras de criminosos; as pernas
desnudas, marcadas pelo sol, lembravam um mosaico; toda ela havia perdido o frescor;
os cabelos loiros, antes tão cheios de vida, agora empastados, salgados, colavam-lhe nas
faces. Naquele momento, toda aquela beleza, que ele admirara da janela, parecia ter-se
esvaído, inexplicavelmente. Sentiu-se enganado. O caminho da sua própria vida parecia
sem sentido. Sentia-se inseguro e desnorteado. Desistiu de se transformar, quis parar de
amar. Árduo sofrimento que se seguiu. Um longo isolamento. Um descontentamento
incessante. Uma ferida profunda que dói e não se sente.

O que será esta ferida profunda? O ser adulto tem de conservar os seus hábitos
de criança, para não tolher a espontaneidade de se admirar como é; porque o mal só se
apodera do homem quando ele perde a aptidão de portar-se como um menino. Se sente
prazer em pensar, que escreva para estimular o seu espírito crítico e abrir os horizontes
infinitos do pensamento, pois pensar é participar da Literatura Divina. Se almejar a
evolução espiritual, o primeiro passo nessa direcção, é refrear a gula; assim, aliviará as
suas pernas do peso que têm se suportar e deixará seu ser um total menos material e
mais psíquico. E simultaneamente, ficará convencido de que, cada indivíduo tem a
prerrogativa de achar no seu âmago, tudo aquilo de que necessita, evitando assim pedir
ajuda àqueles que são iguais a ele, logrando êxito sozinho. A excepcional prova de amor
que aqueles que se amam podem dar um ao outro, são os laços da ternura. E sem
meandros lhe será ensinado que um acto heróico resultante em morte, é menos ecoador
do que o heroísmo festejado em vida. Portanto, ninguém se deve preocupar em agradar
ao mundo, consciente de que está desagradando a Deus.

Depois deste desgosto amoroso, um entre inúmeros, Luís cada vez se interessava
mais pelo abstracto, pelo invisível, pelo sentido, não tocado, pelo espiritual, sentimental.
Interessava-se, sobretudo, pelo amor. As ideias petrarquistas tocaram-lhe
particularmente. A oposição entre o amor platónico e o amor carnal serviu de inspiração
para muitos versos na tentativa de explicar o inexplicável.
Luís tinha um modo muito especial de encarar o ser das coisas, tal como o
filósofo Platão. Para ele, as coisas não têm ser, já que o verdadeiro existir está nas ideias
e elas não estão acessíveis ao conhecimento directo, não estão no mundo. Contudo,
podemos de algum modo ter uma aproximação a essas imagens pois elas estão dentro de
nós através da alma. A existência humana resulta, pois, da queda de uma alma de
procedência divina que já tivesse contemplado essas ideias. O homem parte dos factos,
não para quedar-se neles, mas sim para que lhe provoquem uma recordação ou
reminiscência das ideologias contempladas noutro mundo. Conhecer não é ver o que
está por fora, mas o contrário: recordar aquilo que está dentro de nós. As coisas são um
estímulo para que nos afastemos delas e nos elevemos até às ideias. Os factos são
sombras das reminiscências. Sombras, essas, que são sinais das coisas, sinais que nos
tornam possível a sua presença. Luís distingue duas grandes regiões do real: o mundo
sensível (o das coisas) e o mundo inteligível (das ideias ou arquétipos), ou seja, existe
um dualismo cosmológico que simboliza o pensamento platónico. Estas duas regiões do
real podem-se unificar numa só em virtude da intervenção humana com a sua alma. A
alma é o único elemento capaz de contemplar os dois mundos e estabelecer a relação
entre eles. Outra característica do pensamento platónico é a crença na vida eterna da
alma, isto é, que ela não morria com o corpo. Ela encarnava no homem para, com muito
esforço e sofrimento, adquirir maior virtude e conhecimento. Isto para que a alma tenha
maior capacidade para contemplar o mundo inteligível. Este processo é crescente até ao
objectivo final que é ficar para sempre no mundo das ideias.
Luís comungava do amor platónico mas não excluía o seu oposto, o amor carnal
de Aristóteles. Ele entendia que o problema do desejo associado ao amor se resolveria
pela identificação da amada pela imaginação. Contudo, o desejo persiste dado que o
“amor ideal” é apenas um acidente, ou seja, não é consubstancial e está presente apenas
no pensamento. Para Luís, estas ideias ajudavam-lhe a perceber melhor o amor pois,
para ele, o “amor espiritual” não pode descansar em si, ou seja, tem de buscar uma
forma de se realizar, a satisfação do desejo, através da “carne”.

E foi por esta eterna dúvida que Luís partiu do seu “mundo sensível” para ir para
um outro mundo, o “inteligível”. Depois do desgosto amoroso provocado por Ana, ele
decidiu fazer uma evasão e alistou-se na armada portuguesa que ia de partida para uma
nova terra descoberta, rica de promessas e oportunidades. Não as deixou escapar, e
partiu em busca de um futuro diferente. Os pais, a família, ninguém foi avisado, nem ele
queria que fossem. Afinal, não faziam tão parte da sua vida para além da partilha do
mesmo sangue. Queria morrer por uns tempos. E assim foi.
Diz-se que é preciso pensar um pouco no dinheiro pois é indispensável para
conseguir conforto e tranquilidade perante as dificuldades da vida. Luís não pensava
assim. Os seus desejos eram moderados, a sua riqueza foi esquecida por uma aventura.
Tinha que viver independente e essa era a maior das bênçãos. Nunca se encontrou na
cruel necessidade de bajular a corte. Todavia, isto não era fácil de conseguir. Tinha
alguns amigos e conservou-os, pois faziam-lhe diferença; não levava a mal o que eles
diziam ou faziam, e da mesma forma se comportavam eles consigo. Comoveu-se por
esta despedida. Era forte a sua deliberação de não se deixar levar por tais emoções. O
desgosto que no rosto dele se estampava assim o dizia. No entanto, tinha o consolo do
dever que estava a ser cumprido, e o seu caminho aberto. E então, a adorável criatura
partiu com ar de grande simplicidade, e de maneira afectuosa, da manha com que a
despojara ele de seus bens imaginários, e das violências que fingiu sofrer.

Violências? Convém perceber que a existência humana contém uma evidente


duplicidade, a qual pode ser explicada até aos que não alcançam o seu entendimento.
Quando as ideias são transcendentes, a luz não fica submersa nas trevas. Aquele que
avilta os seus princípios morais, converte em cépticos todos os outros que com ele
convive. Nessa hora terá o ensejo de conceber que, em algo que um ser humano
despendeu tempo para pensar, não pode haver compreensão sem esforço. Conhecerá
bem, que aquele ser que tem domínio da sua mente, não será vítima do efeito dos
sedativos para induzi-lo ao sono contra a sua vontade. E lhe será permitido conceber,
que as emoções somáticas, associadas à parte espiritual do homem, satisfaz o seu
orgulho e suaviza a sua vaidade. Contudo, se tiver a intenção de compreender
prontamente a elevação da consciência alheia, antes, terá de empenhar-se em
engrandecer a sua. E assim compreenderá porque todo sábio sabe tornar menos dolorosa
a estranha visão oposta da sua nudez psicológica, e porque a mente é a única actividade
da alma que atende a sua urgência de satisfação. E desse modo verificará que, se Deus
desse para todos, aptidão natural para pensar racionalmente, seria a falência das escolas,
pois o ser humano de sensibilidade, é incapaz de conceber profundamente.
II
Luís, nesse tempo, tinha o cabelo escuro juntamente com a barba longa. A sua
figura tinha um magnetismo sagaz. Optou e tomou o caminho do seu talento e
qualidades, que o forçam à levitação perante a normalidade.
Foi na praia de Belém, na capital, que partiu para a Índia. Manhã nebulosa,
cinzenta, a convidar um temporal que se adivinhava. As traineiras eram carregadas com
todos os mantimentos necessários, tendo para isso a ajuda da população local que
compareceu em grande maioria a esta despedida. A família real estava presente, mas
Luís não dava muita importância a todo este tumulto. Achava, sim, uma certa graça a
um velho, encostado a uma colina por detrás das cabanas de praia, que não se calava.
Insultava e denegria toda esta operação marítima classificando-a como megalómana e
nefasta para Portugal. Criticava vícios com o intuito de corrigir condutas e costumes.
O tempo deu uma certa razão a este velho. Esta viagem levou à dissolução de
famílias inteiras, ao adultério das mulheres dos maridos que partiram. Provocou,
também, saques, corrupção, mortes e ambição na procura da riqueza fácil naqueles que
partiram.
O exemplo mais evidente destas “nuances” foi a família de Luís. A expansão
marítima, por esta altura, era a grande fonte de negócio e riqueza no país. Os produtos
trazidos das terras estrangeiras eram bastante apetecíveis por todos. Eram relíquias que
vinham do além, de outro mundo. Pedro não era excepção e também era parte
interveniente nestas negociatas. Duplicou a fortuna da sua família, ou melhor, a dele
pois a generosidade era um atributo que definitivamente não tinha. Mas, o ódio, a
inveja, a cobiça desmesurada, também, duplicaram, inclusivamente no seio do seu lar.
As suas repetidas ausências levaram ao adultério da sua mulher com um dos seus
“amigalhaços”. Como sempre acontece, foi o último a saber. Mas, quando soube,
levantou a terra e o céu. Assassinou o adúltero e sua mulher, ao encontrá-los juntos, a
sangue frio com uma navalha que o acompanhava desde a juventude para situações
difíceis como esta, e que a ele lhe ocorriam com maior regularidade, ultimamente. Foi
preso e exilado. Desapareceu do mundo tal como os outros dois que ele entregou ao
Diabo.
Os irmãos de Luís provaram a sua fraqueza ao herdarem a fortuna do pai. Não
aguentaram a pressão, que só os fortes conseguem suster. Eram flores jovens e cheias de
vida, sobrepondo-se a outras mais belas. No entanto, mal as suas raízes foram cortadas,
não souberam sobreviver com a imensa água que lhes foi deixada. Murcharam. Essa
água diluiu-se na vastidão do jardim levando a que as outras flores tenham um lugar ao
sol e dêem o seu fruto segundo a lei da natureza, que assim lhes manda.

A natureza manda? A natureza conduz-nos a um quarto perfumado, e


polidamente faz-nos sentar com ela confortavelmente, onde ambos se deveriam colocar
em harmonia. Mas assim não acontece. A natureza fala com os olhos baixos, dos quais
uma ou outra vez desliza uma lágrima, e quando se aventura a erguê-los, estes
encontram-se sempre com os nossos. Cheio de ternura é o discurso dela, e redobrado de
meiguice toda vez que os seus olhos se encontravam com os nossos. Nós limitamo-nos a
acolher no nosso coração, com ignóbil ardor, os lamentos da senhora, e a cada instante,
mais e mais, desprezamos uma tão virtuosa e infeliz criatura. Aos poucos, com o calor
destes olhares, existe a tendência a aproximarem-se mais. De tão perto nos aconselha, e
com tão suave exortação, que pouco depois não conseguimos dar azo às aflições e
dúvidas. Estamos sempre armados da cabeça aos pés, e a primeira coisa que fazemos é
sacrificar imediatamente, e injustamente, a Natureza. Mas esta, está sempre disposta a
perdoar mediante uma polpuda caridade. Somos obrigados a comprar a própria
liberdade com todo o dinheiro que possuímos. Apenas naqueles dias se conhecia a
felicidade da fácil libertação. É tempo de os retornar a ver.

**
Luís caminhava só, quando avistou a costa ao longe, a desaparecer. Ficou a
contemplá-la por um longo tempo. Perguntava o que fazia ali, porque desafiava assim o
destino. Implorava às ninfas para não o impedirem de continuar o caminho. Este era
apenas dele, e a sua evolução em nada as prejudicava. Como resposta, apenas um
silêncio. Frio, seco. Pensou então que tudo bem, elas faziam mesmo parte da estrada, e
iria continuar, não era o caso de renunciar. Animou-se com a ideia de que estradas sem
pedras não levam a lugar nenhum, e elas iriam aparecer, quando o Luís menos contar.
Enquanto retomava o seu caminhar e a brisa marítima de fim de tarde atingia as suas
narinas, sentiu o seu coração, porque agora sentia-se temeroso. Seus passos eram mais
lentos, evitando levantar a cabeça do chão mas nem sempre conseguindo. Temia o
inesperado indefinido. Atrás dele, apenas marcas no caminho que desaparecia. Não
poderia nunca mais ignorar o que o cercava. Não conseguiu, e seguiu assim, perdido,
indo sempre, indo por ir, sem saber nem para onde, sem entender muito bem porque
precisava passar por tudo aquilo, só sabendo que precisava passar, precisava chegar,
num lugar onde talvez se encontrasse a si mesmo.
Luís estava bem, estava só, o olhar perdido no vazio de si mesmo, sentado no
alto da proa, os pés desaforando o chamamento que vinha do mar. Sentindo o toque
suave do vento a acariciar seus cabelos ondulados, tentando afugentar pensamentos
maus. Dali julgava ver quase todo o mundo, e pensava em como toda a imensidão tem
um fim, assim como a vida, como a graça das coisas, como o livre arbítrio. Fazia versos
sobre tudo isto. Uma epopeia marítima, heróica. Assim se entretinha. Estava cansado. A
viagem estava a mostrar-se longa, cheia de mistérios e emboscadas. Tempestades,
doenças, frio, rotina. A erosão do tempo começava a ter efeito, querendo, por algum
motivo, barrar o seu avanço. Não entendia. Nunca quisera mal ao fado das ninfas,
jamais o tinha considerado como inimigo. Mas elas não adoptavam outra postura,
pareciam não ter outro objectivo. Julgou que alguém o chamava. Mas não via um vulto
sequer além da própria sombra escondida num lado oculto ao seu redor. Quis dizer,
então, que não precisava de ninguém, que estava bem assim, daquele jeito, quieto para
não se trair, inerte para não mais se expor ao que lhe parecia sem sentido. Não precisava
de nenhuma mão para levantar e seguir, não queria nada de ninguém. Evita as soluções
e as conclusões, os problemas e as explicações. E tudo se tornaria passageiro, como a
tempestade que lhe surpreendera no caminho, dando ares de tão eterna quanto intensa,
apavorando o seu íntimo até passar. Depois do agora chegará sempre o depois, e jamais
serão iguais.
Parecia não haver outra forma de conhecimento. Tudo vinha através da dor. Mas
não precisava ser assim. Novamente o chamamento, agora bem mais nítido. Veio com a
brisa e tocou a sua face. Um lamento distante, um gemido. Então, Luís pensou que tinha
sido egoísta, um ser sofria ao alcance do seu coração. Alguém precisava de ajuda. É
estranho como neste mundo se coloca a própria dor sempre à frente das outras, como se
fosse mais importante. Não poderia ficar parado. E quando o canto ficou mais forte,
teve a certeza de que havia algo a ser feito, agradava-lhe ver um par de olhos que brilhe
com a sua chegada e chore felicidades pela sua vitória. Que precise de nós na alegria e
dificuldade. Um motivo para viver. Então Luís saltou ao mar, que se eriçava
prometendo engolir tudo. Chovia desalmadamente, o vento destemido, levava tudo
consigo. Mas, ainda possuía o livre arbítrio, sim, na verdade talvez todos o possuíssem.
Deus dava os caminhos, as almas escolhiam o que seguir. A água gelada e o medo da
queda. Procurou o náufrago. Uma busca interior incessante, infinita, mas o canto que
ouvira era o da sua alma gémea, sabia disso. Poderia morrer ou matar por isso. Poderia
desistir ou lutar. Bastava ser ele mesmo. Continuou a perseguir a voz que ele julgava vir
de dentro do seu próprio peito.

**
Luís é um pensador. O seu raciocínio intelectual transpira arte, cultura, simetria.
Este seu pensamento coordena as suas diversas actividades e não se contenta em crer em
valores com que está comprometido e que o orientam, mas sem poder compreendê-los.
Ajuda-o a perceber os valores em que está inserido e evita o caminhar sem saber para
onde se vai e o quanto se ganhará com isso. Este é um atributo bastante característico de
Luís, mas que é transformado por ele em arte pura, nomeadamente na forma como o
coloca no papel escrevendo.
Luís é um inconformado. As suas questões acerca da nossa origem, da nossa
essência, a formação do mundo, o sentido da vida…são perguntas que a maioria não
coloca devido à sua complexidade, mas que ele continua a pôr sem temer os obstáculos
inerentes.
Luís é um artista. Ele é um “peregrino em busca da verdade”. Tem uma incrível
capacidade para se surpreender, tornando a realidade incompreensível, enigmática e
misteriosa. Vai ao último porquê das coisas. Indaga a sua natureza íntima e a sua razão
de ser. Assume uma atitude livre. Livre para pensar, livre para agir de acordo com
aquilo que pensa. É sensível a tudo o que o rodeia, não agindo com indiferença e
alheamento, que se manifesta na sua admiração e interrogação acerca dos problemas do
Homem e da sua história.
É um nacionalista por excelência. Não cai num individualismo exacerbado. Se
assim fosse, viveria suspenso na falsidade de um real utópico, completamente alheado
das coordenadas existenciais em que decorre a vida do homem concreto. Isto pode
acontecer por vezes na sua personalidade, contudo, é apenas, um sonhar mais alto, uma
evasão. Luís é um ser histórico, um ser enraizado, um ser em situação, ou seja, um ser
que vive numa circunstância definida por um ‘aqui’ e um ‘agora’ que lhe sugerem os
parâmetros dentro dos quais se move o seu pensamento e se desenrola a sua acção. E
esses parâmetros são a prosperidade portuguesa vivida durante os séculos XV e XVI e
está-lhe intrinsecamente ligada pois irá ser um dos participantes activos num desses
processos. Identifica-se, portanto, com os ideais da sua nação e eleva-os ao sublime, ao
supremo.
Luís é um ser no tempo, integrando o passado de que emerge e projectando-se
no futuro para que caminha.

**
Agarrou Jorge, era este o nome do socorrido, pela mão, impedindo que este
fosse ao fundo e evitando o pior. Salvou-o e trouxe-o para a embarcação onde passou a
ser mais um tripulante. Tornou-se num grande amigo de Luís. A melhor amizade que
alguma vez tinha tido. Deu um novo alento à sua vida. Sentia ter feito a coisa mais
importante da sua vida. Estava terrivelmente enganado.

Terrivelmente enganado? Só assim se percebe claramente que não há razão para


se bisar por costume, a menos que não se tenha a distinção da oportunidade. É
necessário ter presente que se a nossa vida é um céu iluminado, é porque a formamos no
espírito e a vivemos com total simplicidade, impedindo deste modo, que ela se esconda.
Se uma pessoa real pode ser uma idealista de facto, sem perder o seu carácter prático,
qualquer criatura que tencione elevar a sua alma acima do ponto alcançado, deve
edificar dentro de si a sua torre de ascensão. Visto que nenhum objecto do
conhecimento superior pode ser conhecido por meio do aprendizado inferior. Algo que
está acima do entendimento intelectual, não pode ser apreendido e descrito usando as
ideias comuns do intelecto. Por esse motivo, aquele que almeja sabedoria infinita, deve
procurar harmonizar-se com os aspectos nobres da vida e dedicar-se por qualquer meio
a servir aos outros. Todavia, temos de conviver com condutas genuinamente
emocionais, fruto do raciocínio facultativo, que não se baseia em concepções
imparciais. Por isso, quando os homens pensam a verdade universal, não pode haver
grandes divergências nos seus pensamentos, porque vivificam unanimemente todos os
efeitos das causas que desencadeiam. Em consequência disso, é indispensável
compreender, que somente o sucessivo esforço do homem de erguer-se acima do seu
nível de nascimento, o fez elevar-se intelectual, mental e espiritualmente. Ninguém tem
o direito de julgar totalmente culpado aquele que não detenha o domínio da mente. É
necessário ter no espírito que, todo ser humano tem a obrigação de tentar influenciar os
seus semelhantes que não ambicionam ver, embora, com total liberdade para desistir.
Justiça é a meta cobiçada por aqueles que buscam um caminho para Deus. Que
conscientes dessa necessidade, se esforçam para compreender a razão contida atrás de
todo o acto. Ao passo que a sabedoria é um conhecimento pessoal e profundo, gerado
no interior do homem, tal e qual uma bênção alcançada por meio da prece, quando
raciocínio e intuição se confundem. Porém, a iluminação que significa compreensão do
homem e da sua finalidade, motivada por inspiração da divindade, não está ao alcance
da inteligência arbitrária do ser humano.

Desta feita, cansado talvez da sua pequenez, um outro procurador, Jorge,


depositou um precioso tesouro nas mãos de Luís como que a lhe dizer: o caminho está
aberto. Esse tesouro era a sua amizade, que Luís aceitou de muito bom agrado. O seu
coração não o deixava mentir.
A sua harmoniosa personalidade partiu, como chegou, o tesouro permanece
guardado até hoje.
Por esta altura era ainda um leigo nesta matéria. Contudo, a natureza dotara-o do
senso natural da percepção e com certeza o iria ajudar.
Para a grande maioria de nós, essa percepção é possível devido à crença que a
consciência pessoal está unida com a consciência da Grande Força Omnipresente. Essa
grande força que está dentro de nós que toda a gente ignora por não a ver ou até, palpar.
Enfim…adiante.
Depois de se deixar sentado por um bom tempo, com uma grande intenção nessa
espera, Jorge decide aproximar-se de Luís, sem um sorriso, sem uma tristeza e, com
total neutralidade, perguntando-lhe:
- Você conhece-me?
- Não. Mas assim o desejo.
- Isso que me acaba de responder é um reconhecimento para mim. Muito
obrigado.
- Olhe para o céu. Identifica-se com alguma coisa? – pergunta Luís tratando de
raciocinar com maior propriedade.
- Com o Sol.
É o que brilha. Reluz a toda a hora, mesmo que não esteja à vista. Resguarda-se
e desaparece quando assim o quer. Tem o poder sobre as gentes. Luís ficou surpreso,
um espanto alvissareiro. O diálogo foi suspenso. Até um dia.
A jornada de Luís continuava. Jorge acompanhava-o. Os ensinamentos dos
diversos povos por onde passou e as suas diferentes culturas têm-no ajudado a
aperfeiçoar-se. Dão-lhe algumas respostas. O seu caminho está aberto. Concentrava-se
no seu próprio ambiente, num voto pelo silêncio. Deixava-se levar nas asas da
imaginação e sublimava acima das suas próprias limitações, deixando os olhos da mente
conduzi-lo por inteiro. Naqueles instantes, visitava as expressões da natureza,
saboreando a percepção desse pedaço de universo. Sentia uma plena conexão. Seguiu
em frente e a tranquilidade tomou conta do seu íntimo reconhecendo-se através das
perguntas, devaneios, momentos de angústia, paz e serenidade, que se formavam à sua
volta. Nessa consciência, as sensações foram passadas a limpo e a todo o instante novas
imagens e símbolos, começavam a relacionarem-se. Teve, naquele momento, a
necessidade de abandonar todo o tipo de segurança que reuniu para cair na leveza da
vida como um pássaro, no cimo de uma montanha e observar a movimentação rítmica
daquelas formações “arquetípicas”. Tinha mil respostas, mas nenhuma pergunta.
A sua voz interna dizia: “Nenhum movimento, nenhum gesto, nenhum símbolo
pode passar despercebido àquele que quer entender a linguagem universal. No universo,
tudo se expressa: é a linguagem da acção e do movimento. Os símbolos que trazemos
para expressar acções, são identidades de cada um. Eles interagem-se como os
instrumentos de um orquestra, são potências, uma vez que representam realidades.”
A expressividade dessas pictografias estava directamente relacionada com a
figura do Olimpo. Luís sentia-se o seu representante visível. Que viagem! Exclamava
no seu íntimo. Agora, sim, tornava-se num viajante. Viajante sem nau, sem destino, sem
fronteiras, sem cordilheiras. Viajante dessa incógnita que é.
Abre as cortinas do tempo, saudando a mãe-Terra, assim que a escuridão da
consciência se desvanece, dando lugar a um novo dia, permitindo-se existir. Jorge
curva-se diante de Luís com a consciência de um peregrino sedento de verdades. As
lições chegam com as lembranças. Em seguida, abraça a rotina diária e abre a
imaginação, presenciado uma folha de papel gotejada por pingos de tintas, misturadas.
Para ele, esses pingos iriam completar uma obra-prima literária. A maior de todas já
feitas. A epopeia marítima portuguesa. Era essa a sua maneira de abrir eternamente as
cortinas do tempo, saudando a vida, pois pretende um espaço perene no mundo. Julga
ser a sua obrigação, ser o viajante de todos os caminhos, todas as montanhas, todos os
sonhos, todos os tempos, todos os “eus”, e assim encontrar em cada um, pedaço seu.
As jornadas eram cansativas, algumas carregadas de fortes emoções, porque as
novidades nem sempre eram imediatamente assimiladas. Era necessário um certo tempo
para entender essa similaridade entre o viver e o viajar. Podia dividir os seus caminhos
em dois momentos: um de busca, outro de aprendizagem. A busca fora aquele período
em que queria encontrar, mas não assimilar. A aprendizagem fora aquele em que
desistiu desse intento.
Perdeu mapas que revelavam saídas necessárias, permitindo que o vício da
viagem sem rumo tomasse fôlego. A constante inconstância estava naquele momento,
maior do que a própria decisão de aquietar-se. Não queria conter o pulsar latente de
viajante. Não queria deter esta marcha febril, esse vigor exalante de realidades
encontradas, que embriagavam as suas veias.
Esperava que a tranquilidade viesse. Os espaços e tempos e tempos já
percorridos mostraram-lhe o quanto era ansioso pelo amor. Estava a senti-lo mas
também lhe fazia falta. Amor, esse sentimento contraditório, um contentamento
descontente, uma ferida que dói e não se sente, um fogo que arde sem se ver. Assim
descrevia Luís esse sentimento.

O oceano é simultaneamente fonte e desembocadura, simbolizando o universo.


Do mesmo modo que o homem é o fluxo que mana de um lado para o outro num vai e
vem infinito. Da foz para a nascente, a corrente é aparentemente impossível. Do fim
para o começo desconhecido, a caminhada não é compreendida. Umas certas correntes
fazem-se inertes e se escondem por tempo indefinido. E muitas criaturas humanas têm o
mesmo destino, ficam estáticas e desaparecem, porque não fizeram jus à vida e à
realidade que retinham em seu poder. É essencial entender que aquilo que encaramos
como destruição, não é coisa alguma além da outra fase natural de um processo
construtivo. O demónio é o aspecto carnal do homem, que vive a miséria ou entrega-se
à ganância, sendo induzido por tudo que o façam ver ou ouvir. Que o converteu em
escravo de todas as invenções materiais que o mundo o fez conhecer. Assim sendo, a
tendência natural pela posse e o desejo de acumulação, podem transformar o homem
honesto num ladrão, impedindo a sua união essencial com os seus semelhantes e com
Deus. Pois em todas as criaturas existem dois instintos opostos, e somente quando eles
se combinam entre si, é que surgem os incompreendidos, os heróis, os génios, e
consequentemente, os iluminados. Luís era um deles, uma dupla criatura.
III
Silêncio. O único axioma do espaço. A moderna traineira portuguesa navega
pelo mar serenamente, como se estivesse a deslizar sob água veludosa. As gigantescas
nuvens metalizadas e entrelaçadas formavam um só corpo, definindo uma capa
protectora dos deuses, dizia Luís. Sentado sobre uma cadeira ouve o capitão sobre a
trajectória a seguir. Tudo normal. Jorge esconde seus olhos, deixando a sua face ainda
mais sisuda. A tripulação acompanha, atenta, todas as ordens dos comandos. Era uma
tripulação média, a ideal para aquele tipo de embarcação. Jorge, que estava no ponto
mais alto do barco mirando o horizonte, levanta-se, e para espanto de todos, lança um
alarme. O negro de seus olhos produziu uma faísca intuitiva, mas foi logo ofuscada pela
vastidão nebulosa e negra que se encontrava por trás dele.
- Avisto uma grande tempestade, a uns 1000 metros de distância. Parece um
furacão ou tornado. Preparem-se para o pior e baixem o mastro.
- Eu espero que vocês dêem o seu melhor. Esta caravela é a nossa casa, a nossa
vida. Tudo o que fiz durante todos os anos da minha vida é isto que vocês pisam
agora… É melhor tomarmos nossos postos, senhores. Hoje vamos onde ninguém jamais
esteve. – disse o capitão.
Luís senta-se. Suas mãos cansadas escorregam até às pernas. As anteriores faces
animadas, parecem agora um misto de angústia e desprazer, como se o peso de cada
uma daquelas palavras tivesse residido em suas almas. Havia, naquele instante, deixado
de existir o sonho conjunto, para tornar-se num pesadelo.
O tempo escoa inoportunamente. É o chamamento da Maldita. Sem tempo para
qualquer descanso, os oficiais trabalham ininterruptamente. Alguns não aguentam a
pressão e lançam-se ao mar, suicidando-se. O capitão isolou-se na sua cabina, deixando
tudo na mão dos bravos marinheiros. Contudo, a descrença mostrava-se dominante
abafando a ténue esperança de sucesso da missão.
- Vocês já imaginaram o que está para nos acontecer? Estamos a cada dia mais
próximos do Cabo. O nosso capitão isolou-se no seu abismo de egoísmos, o nosso
comandante é tão principiante como nós. – disse Jorge.
- Pára com todo esse pessimismo. Eu confio nas habilidades da tripulação e sei
que nos podemos dar bem nesta missão. – disse Luís.
- Nenhum controlo na trajectória. As bússolas partiram-se. Os mapas
desapareceram. O mastro foi destruído. O barco está a encher de água. Evacuar. Repito:
evacuar.
As caras assustadas começavam a esboçar fúria em seus olhos. Todas as mãos
trabalhavam rápido para chegar às mesmas constatações. Não havia solução. Toda a
força seria impotente perante tal violência natural. A tripulação começava a pegar em
bóias de salvamento e a atirar-se ao mar. Estas esgotaram rapidamente. Jorge agarrava-
se a duas para mais dificilmente ir ao fundo. Luís atirava-se ao mar despido de tudo.
Entregava-se ao destino. Pediu a Jorge para lhe atirar uma bóia. Não obteve resposta. O
sacrifício que tinha feito da última vez não era correspondido. A sua face, não é a
mesma, como se de alguma forma, antes extasiado, encontrar-se agora numa espécie de
disputa interna, quase como medo. Contudo, Luís não parece surpreso. As suas palavras
são já expelidas com muito cansaço:
- Eu já sabia. Queria um amigo, tive um traidor. Vai-te. Para o Inferno, donde
viestes e de onde nunca devias ter saído.
Esta era uma viagem sem volta. Jorge ao ouvir as palavras de Luís baixa a
cabeça, envergonhado, mas não o ajuda. Afasta-se para longe e sai da vista de Luís. Este
deixa de lutar. Entrega-se ao mar. É o canto do náufrago. Deixa-se ir, seja para onde for.
Para se morrer basta estar vivo. E Luís estava mais vivo que nunca. Olha para a Lua, no
alto do céu, o seu reflexo e traços foram perdidos no negro do espaço, tristes e pouco
esperançosos, mostram pouco brilho. Mergulhado no veludo negro do espaço, já
estando todo marcado pelo tempo, consciente de não existir como ser e sim como coisa,
é abençoado com o pesado sentir do instante. O silêncio é apenas o que sobra.

Luís era de todos, o que mais havia de sofrer. Nele julgava residir as almas de
todos aqueles homens, que deram todo seu tempo, treino e vida, para o bem da
humanidade e foram levados no meio de um turbilhão dos deuses, e que sem explicação
partiram, vivendo apenas na história. Se pudéssemos pesar, ou medir, os actos dos seres
humanos, como se analisássemo-nos num espelho, será que gostaríamos do que
veríamos? Será que todas as mudanças, todas as mortes valem a pena, ou será que se
perderam em meio de nada? Será que chegará um momento que não haverá sombras em
nossos reflexos?

Foi aí que Luís conheceu as outras pedras que a estrada escondia. Afogado em
suas próprias lágrimas, náufrago em seu próprio oceano de dúvidas, desespero e solidão,
quis voltar. Quis ser anjo novamente, quis ser moço outra vez, sentia-se desprotegido.
Ainda tinha uma última chance. A derradeira. Não podia falhar. E o mundo jamais seria
tão simples como no início.
As ondas do mar levaram-no a terra, heroicamente. Luís nadou apenas com um
braço, levando no outro a sua grande epopeia ainda incompleta. Susto destes pode ser
comparado a um outro que tinha sofrido em Ceuta, anos antes, e que lhe subtraiu um
olho. Com um olho e um braço fez-se campeão de todos os portugueses, para sempre.
A deusa Vénus tinha ouvido as suas preces. Baco tinha sido desfeiteado. Era a
vitória de Portugal, da Pátria, de Vasco da Gama, de Os Lusíadas. Dedicou a obra a
todos os portugueses, esse povo brioso e nobre, mas especialmente a D. Sebastião, o
então Rei. Este ficou deleitado com a genialidade da epopeia comparável, ou até
superior às de Homero e Virgílio. A essa obra juntou numerosos vilancetes e poemas
que o eternizaram. Tornou-se no grande poeta português, unanimemente reconhecido.

Voltou a Portugal. Encontrou uma terra próspera e abastada, mas triste. Imensas
famílias tinham-se desfeito. A ambição pela riqueza fácil, o dinheiro, havia corrompido
a sociedade. A família de Luís, não tinha paradeiro. Estava sozinho, afinal o caminho
para que sempre tendem os génios, incompreendidos. Uma face em constante
movimento e em desenhos entrelaçados, foi isso que imaginava encontrar depois de
todo esse tempo. E de certo modo até era dessa maneira, mas à sua maneira. O vento
soprava. Não tinha onde dormir. A corte tinha ficado com todos os lucros das suas
obras. Vagabundeava. Olhava para o chão para não tropeçar na calçada quebrada,
pegava num papel para escrever uns rascunhos do que lhe ia na alma, era isso que o
mantinha vivo. Andava e observava, tinha desgosto, tinha raiva. Não comunicava.
Alimentava-se das recordações, e quão belas elas eram. Lindos pensamentos sugestivos,
prontos para serem apreciados. Queria fechar-se e ficar para sempre naquele outro
hemisfério, era o ideal. A estrada agora era outra, e o caminho também.

**
**

Por todo o momento imaginamo-nos em longínquo pensamento, em toda aquela


necessidade de ocultar outras formas de convívio. Nesse exacto momento, sentimos
vontade de estar fora dessa sala com a qual o único ar que respiramos é poluído e sujo.
Ao olhar diante de tantas paredes, acompanhamos o nosso processo de envelhecimento
descamado, vendo o nosso destino cruzado. Agora, temos de ocupar o tempo para
cumprir um certo existencial a ser cumprido pelo retorno que esperamos ter. Neste
mundo esférico, escutamos barulhos de um projecto sendo realizado, apenas para se
fazer mais uma fábrica de dúvidas e problemas; nas quais os trabalhadores se esforçam
para obter o mesmo ideal. Obtemos uma visão apreciada como um desenho ou como
belos quadros movimentados. Mas e o que fica? E o que é real? Esse registo é guardado
num pequeno suporte que se chama mente. Sem compromissos nem explicações. Pelo
menos agora. E onde estamos agora? Na verdade parece que ficamos sempre ansiosos
pelo que o amanhã irá oferecer. Não será muito com certeza, tudo é tão previsível. A
natureza humana não muda e isso explica tudo. Esta visão estruturada do mundo era,
agora, partilhada por Luís. Refugiava-se no seu mundo, e não voltar para aquele clima
de paredes inertes e descamadas; à irritação daqueles ruídos.
Luís acordou para o último dia da sua vida. Nessa manhã tudo era
maravilhosamente normal, não se manifestava nada e não contestava nada. Apenas o
olhar do olhar. A visão da visão. Pensar? Nem pensar. Podia pensar nas situações reais e
rotineiras, mas nem queria mais saber se existia isto ou aquilo no passado não muito
distante. Não queria voltar a ver essas cores, a sentir esse vento. Queria o silêncio, sem
quaisquer perturbações. Admirava o Olimpo, as deusas, as ninfas, aqueles maravilhosos
de linda arquitectura, a inquietude do seu inerte pensar. Não estar perto delas fazia-o
sofrer. O Barbudo fez-lhe a vontade e levou-lhe a existência, dignificando o seu passado
e acautelando-lhe o futuro, que se estava a degradar.

Futuro degradante? A atitude de Luís foi um passo para um livre arbítrio, um


acto apreciado que o levou à mais tranquila harmonia. Foi uma imensidão
contemporânea passando as suas metas convencionais e tardias. Remotas de
pensamentos insanos ou conscientes de todos os lados. Lados, esses, opostos de partes e
de retorno principal. A parede descamada de que falava está, agora, prestes a cair de
tantos empurrões. Ao menos é útil para o que realmente nos trouxe aqui. Uma sombra
apartou a mais deliciosa ganância daquele momento. A parte principal dela está nele e a
dele nela, por isso partem do mesmo princípio. Tornando tudo mais prazenteiro. O
momento mais sagrado de ambas as partes, em pleno desligamento de qualquer
actividade humana que não for do mesmo feitio. A hora mais sagrada da vida humana é
o motivo da paciência e dos sonhos de todos os cantos isolados ou guardados em cada
alma ambulante. A necessidade do desejo, a própria necessidade humana. Seja aqui ou
ali, o melhor é o tanto faz.

**
O nome real de Luís é: Luís Vaz de Camões. O maior poeta e escritor português
de todos os tempos. A sua obra-prima foram Os Lusíadas, uma epopeia marítima
dedicada aos Descobrimentos portugueses de que fez parte activamente e, também, à
heroicidade da pátria portuguesa. Era também, um filósofo e um pensador actualizado
sobre todo o real. Isso serviu-lhe de inspiração para numerosos poemas, demonstrando
todas as inegáveis e ímpares qualidades e capacidades. Fascinava-o um sentimento
particular, o amor. Esse sentimento contraditório que comanda a vida. Não invejava
ninguém, logo todos o invejavam. Desapareceu do mundo levando com ele desgostos,
desilusões, mas também um enorme orgulho, o de ser português.

Fim
“Que fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante,
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter inveja”

Luís de Camões

Diogo Silva, 2002

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