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homem mais feio do mundo descolava uma carona... Após dois dias de absoluta paralisia
em uma estação de trem desativada. O feitiço espacial do mago o descartara na pequena
dispensa da localidade em meio a vassouras imprestáveis e panos de chão devorados por
traça. Tão fodido Rítaro se encontrava, o rosto reduzido a um cavidade em formato de
punho, que seu único pensamento nesse entretempo fora a pura vontade de receber o
devido atendimento médico. A que ponto decaíra, resmungara de si para si. Eia o Preza
Cinzenta implorando aos deuses por atendimento especializado de humanos.
Maldito fosse José Willie! Abandonara-o ali da maneira como uma criança mimada
descarta os brinquedos dos quais se enjoa. Que justificaria teria o desgraçado? Que a
magia de transporte até a fazenda mais próxima lhe custaria recursos dos quais não
dispunha? Ora, para as favas! Que o truque então saísse mais caro que, que, que o que quer
que fosse! O miserável deveria demonstrar gratidão pelos serviços prestados por Rítaro há
muitas e muitas décadas.
— Filha duma puta ingrato! — Balbuciara, sentindo a dor aumentar a cada palavra. —
Moleque filho duma puta!
Apalpou o rosto percebendo, em pânico crescente, que nada restara de seu focinho
senão uma farinata de ossos pastosa. Do olho esquerdo, aliás, uma sombra do que se
poderia chamar positivamente de olho, restava uma cavidade salpicada aqui e ali com
reminiscência estracinhadas de esclera, córnea e íris somadas a um e outro cílio a pender
desordenadamente. Em súmula: um vale obscurecido em carne viva, mas que, ao contrário
do restante da face, deveria ser curado com o tempo, se não, por meio da luminosidade
sacra da próxima lua cheia. Afinal, o olho lhe tinha sido subtraído por um tiro, chumbo
banal; o resto da face, porém, fora cruelmente remodelado por uma soqueira de prata.
Nunca seria o mesmo! Nem o transcorrer de todas as luas cheias da história
poderia curá-lo de tamanha deformidade. Ao avaliar essa veracidade que o mestre
resolvera por descartá-lo? Fazê-lo em lugar onde o cadáver estivesse devidamente
distanciado dos bisturis e lupas a serviço de Insanistka? Ou, ao menos, em que a eventual
sobrevivência do homem lobo resultasse no silêncio dos incapacitados em lugar de tortura
e interrogatório?
Ainda assim, ainda em posse dessa conscientização acerca da natureza nada
confiável da chefia, suas melhores chances estavam em ir de encontro ao mago. Willie, o
desgraçado e egoísta Willie, era seu único aliado em todo o continente de Bastardia e, para
ser honesto (e deprimente), no mundo inteiro.
Repensava pela enésima vez que merda fizera com sua vida quando ouviu o zunir
distanciado de uma roda a percorrer a abandonada estradinha ao largo da estação. Uma,
duas almas metidas numa carruagem conduzida por um cocheiro e um par de cavalos. Os
animais trotavam desamparados noite adentro. Aqui e ali, uma chicotada ressoava no
silêncio sepulcral com o intuito de comunicar aos animais o ritmo desejado.
O cocheiro mantinha os lábios cerrados e a respiração funda, era um desses
homens que já não dispunham de energia ou paciência para lidar com a vida. Já o casal de
passageiros matraqueavam algo que Rítaro custara a compreender à princípio, palavras
que iam se tornando audíveis à proporção que o trajeto do veículo se aproximava do
esconderijo.
— Já lhe falei, Isaac! Isso é um ultimato... — Sussurrou a voz de um mulher que, pelo
timbre juvenil da voz, deveria ter por volta de vinte anos.
O varão apressou-se em responder, a voz salpicada de uma urgência desesperada.
— Preciso de tempo, pelo amor de Asus! Quantas vezes tenho que repetir que essas coisas
são complicadas como o diabo?
— São bem complicadas, vejo! Tão complicadas que melhor te apraz deixar-me a esmo!
Pobre de mim, abandonada a tuas necessidades carnais! A quem o senhorio só recorre
quando precisas te refugiar do diabo da esposa, aquela velha cacarejante! Pobre de mim,
pobre de mim ser reduzida a uma meretriz, a um mísero passatempo!
— Querida Julie, não fale desse jeito! Minha mulher é o diabo, é verdade! Mas você se
equivoca em todo o resto! Garanto a ti pela alma que habita em meu corpo que estou
organizando a papelada e os impostos para que até o final do ano...
— Até o final do ano, você diz. Isaac, venho escutando isso desde o ano retrasado!
— Imprevistos aconteceram, coisas que delongaram as estimativas!
— Aconteceram e continuarão a acontecer até que eu esteja velha, tão velha quanto o
monstro que dorme a teu lado toda noite.
— Julie, minha amada, porque precisas me fazer sofrer desse jeito quando estás certa de
minha afei...
— Às favas com sua afeição, Isaac, ás favas! Sou uma mulher de família, uma garota que
poderia arranjar um bom pretendente sem dificuldades. Um punhado de bailes, algumas
idas ao teatro, eis o que me custaria! Mas o amor, o amor... Esse cão dos diabos que me pôs
ao lado de um infiel com o dobro de minha idade!
— Sim, o amor nos uniu e peço-te que ele baste para manter nossa união só por mais um
tantinho de tempo. — Disse o basbaque, gesticulando com os dedos gordos.
— É mesmo? É isso que esperas de mim? Sofro e choro por ti a cada noite, pois sei que se
deita ao lado de tua senhora. É justamente isso que fulmina a alma: por mais desalmada
que seja a criatura, sei que tu a pertence, somente a ela. O matrimônio entrelaça vosso
destino com a benção dos deuses e do mundo...
— Minha amada, sejamos racionais! Um pouco de tempo e tudo se endireita!
— Pare essa carruagem, deixe-me aqui ao relento, é tudo que mereço por lançar minha
juventude aos desígnios de uma criatura sem moral! Caminharei até a casa de meus pais e
começarei por contar a verdade a eles!
Nesse tresandar da conversa, a voz da moça ganhou vida com um esbaforir
descompassado. Ela lançava palavras ao mundo com a sofreguidão dos náufragos e, Rítaro
poderia jurar, faltava pouco para que a primeira fungada de choro viesse à tona. Ora, o
orgulho daquela moça recém-saída da adolescência faria o possível e o impossível para
que as inevitáveis lágrimas se fizessem invisíveis ao indigno amante. Além disso — e nesse
ponto Rítaro contemplava a discussão do casal com a perspectiva interessada de quem
acompanha uma novela — o lobisomem sabia que a moça sabia que seu amante sabia que
as lágrimas sabiamente amolecer-lhe-iam a determinação pouco sabida.
Ora, que teor redundante e delicioso para uma trama de amor!
Suficientemente delicioso para que, até o presente momento, Rítaro se esquecesse
da possibilidade de aproveitar a ocasião para assaltar os passantes solitários. Algum
prejuízo na ausência de conjuntura até o penúltimo fiado de instante? Absolutamente
nenhum: estava fodido demais para assaltar uma carruagem a se precipitar célere noite
adentro. A trama, pelo menos, o fizera esquecer da própria sofreguidão até que...
Até que a o supracitado veículo estancasse, a moça saltasse num arranque
desvairado (coitada, prestes a desmoronar em lágrimas) e o amante fosse atrás. O
desesperado Isaac temia que as ameaças da jovem viessem a se concretizar.
A moçoila correu a esmo, metendo-se com vestido e tudo na vegetação rasteira de
arbustos secos, árvores desfolhadas e eventuais eras venenosas. O pançudo capitão foi ao
encalço, mas logo perdia terreno para a adversária. Temeu, o desgraçado, que todos
aqueles anos de fumo, vinho e sedentarismo o tivessem tornado incapaz de acompanhar o
ritmo da moçoila. Ora, não fosse o excesso da adiposidade inútil!
E de fato fora o que sucedeu. Nem cinco minutos após a parada forçada (Julie
ameaçou se lançar para a fora da carruagem em movimento, baseada em uma de suas
impertinentes heroínas românticas), e já estava além dos alcance de seu corpanzil
semiesférico. Ao se aperceber de tal realidade, caiu de assalto sob a possibilidade de que a
amada encontrasse um destino pior que a desgraça social.
Se chegasse em casa, isto é, percorresse sã e salva as duas dezenas de quilômetros
que a separava da propriedade de seus pais, estragaria a vida de ambos: ela poderia dizer
adeus à possibilidade de se casar com qualquer homem com mais que um vintém nos
bolsos, ele teria que por abaixo o plano de ser promovido na hierarquia militar e assumir
um cargo bem remunerado no setor de inteligência do exército. Na circunstância ainda
pior de ser atacada por uma jararaca ou estraçalhada por um raptor... Jamais cerraria
novamente os olhos em busca de tranquilidade. Enganava-se Julie em relação às intenções
de Isaac: verdadeiramente estimava-a, verdadeiramente pretendia abandonar a esposa
insuportável. O problema é que devia seu sucesso na corporação militar á megera e, com o
cargo presente, estava pouco certo de ser capaz de manter o prestigioso modo de vida
bancado pela esposa. Como poderia, se até os mimos e joias com que presenteava Julie
vinham do bolso da bruxa velha?
E assim consumiu os vinte minutos seguintes a gritar inutilmente por Julie e a
rezar que um eventual golpe de racionalidade a fizesse. Esperou por mais palavras além
das suas, não vieram — e saiu desapontado.
O caminho de volta à carruagem (por um punhado de segundos, temeu não
encontrar o transporte no breu da noite) consumiu uns bons dez ou quinze minutos. Já o
absurdo com que se deparou quando adentrou a portinhola teve o efeito de paralisá-lo por
um intervalo de tempo imensurável.
— Boas notícias, Isaac, seu casamento está salvo!
A frase veio em palavras gorgolejadas, grunhidas por uma criatura sem face. A
absurda ausência de um rosto, contudo, não fora o que defenestrara a sanidade do homem
com um golpe único. O horror, o supremo e absurdo horror, encerrava-se por inteiro na
cabeça decepada de Julie — solitária, repousava lépida no colo da monstruosidade.
Naquela parte terrivelmente subtraída do restante do corpo, os lábios, contorcidos num
esgar cuja mudez se estenderia para a eternidade, faziam companhia a um par de olhos
esbugalhados semi cobertos por tufos de cabelo salpicados em sangue fresco.
O militar replicou na própria face a expressão com a qual se deparou no que
sobrara da amante. Os lábios se entreabriram por último, porém, o grito deu lugar à urina
e a lágrimas descontroladas. Perceba-se que, sem levantar dúvidas, o homem fizera bem
em preservar o silêncio. De outro modo, Rítaro o puniria de imediato. Que paciência teria o
lobisomem para gritos e mal criação em resposta a um favorecimento digno de elogios?
Antevia algum absurdo em salvar o casamento e a futura patente da personagem
novelesca? Alguma tristeza ou pesar justificáveis a repousar sobre a situação improvável?
Obviamente que afirmativo, diria ao futuro capitão Isaac Navares. Até porque, embora se
tratassem de criaturas inferiores na hierarquia da natureza, Rítaro observava com a
atenção devida — aquela atenção cujas proporções eram cabíveis e afeitas ao pareamento
da proporcionalidade — o sofrimento dos seres humanos. Eles foram criados pelos deuses
para fabricar e perecer, para servir e serem consumidos, sempre nesses respectivos
ordenamentos. Tinham essa importância e o lobisomem a aceitava.
— É melhor respirar fundo parceiro. Sei que amava a delícia aqui, mas agora ela está tão
morta quanto uma pedra. Quase destruiu sua carreira militar... Veja bem, minha
intervenção foi necessária.
— Por Asus, por Asus, por Asus...
— Ustra é um deus mais decente para pedir arrego nessas ou em quaisquer outra,
companheiro. Respire fundo e não se preocupe com o resto, em quinze minutinhos nos
livramos do corpo de Julie e do cocheiro... Esse sim morreu por má sorte.
— Por Ustra!
— Exato, por Ustra. — Retrucou, desgostoso da inobservância do companheiro.
— Você matou ela! — Lá se ia o homem a choramingar, os últimos jatos de urina
terminavam de encharcar a calça de linho fino, obra-prima do alfaiate da família.
— Quanto a isso, pensei que já estávamos resolvidos.
A besta estendeu uma pata repleta de garras afiadas, a menor delas alcançava fácil
dez centímetros.
— Alguém tem que se salvar nessa roda-viva, companheiro... E realmente torci para que eu
não fosse o único.
— O que quer que eu faça? — A pergunta vinha cabisbaixa, repleta do tom daqueles que
aceitam a derrota antes mesmo de travar o bom combate.
— Comece tirando da cabeça a ideia de puxar esse revolver ai. Vou permitir que continue
em sua posse, que diferença faria se disparasse um punhado a mais de tiros em minha
fuça? Aliás, faria diferença sim, você acabaria morto.
— Desde que poupe minha vida. — Choramingou o pançudo.
— Já está salva. Agora pensemos nos mortos. Acho melhor conduzir a carroceria até a
estação abandonada.
— A antiga estação rodoviária de Sir Gerard, você quer dizer?
— Exatamente essa. Tem umas pás lá... Eu te ajudo a enterrar os corpos, você parece um
tanto chocado.
Engolindo o choro, Navares recorreu ao que lhe restava de razão.
— Não se é todo dia que um homem vê o que eu vi.
— E acredite em mim quando digo que é essa inércia que os torna fracos. Que seja, ouvi
que tem uma guerra vindo por aí... Mas não percamos mais tempo, hein. Queria um favor
seu, para compensar o que lhe fiz. Precisarei, ou melhor, precisaremos de uma muda de
roupas. Seria arriscado demais sermos pegos banhados em sangue e suor, poderia
levantar suspeitas, sabe?
Claro, e o estranho declive de ossos esmigalhados de que se compunha o rosto do
mostrengo teria efeito oposto. Aliás, o simples fato de o sujeito ser uma coisa meio lobo
meio homem, com garras capazes de decepar a cabeça de uma mulher, já isso seria
suficiente para alertar os instintos da criatura mais primitiva a habitar a terra. Ainda
assim, pensou o homem de quarenta e tantos anos, seria prudente obedecer sem
questionar quaisquer que fossem os desvarios.
E numa mudez conturbada assumiu a posição do cocheiro morto sem antes dar
uma boas empurradas sobre seu cadáver (bem inteiriço se comparado ao da pobre Julie)
para liberar espaço. E lá se foram os cavalinhos estoicos, apesar do cheiro de sangue e
morte a empestar a noite.
O enterro correu conforme os desígnios de Rítaro. Aqui, nosso amigo deu ao
sofrimento do companheiro o devido crédito, permitindo que seu tempo precioso fosse
desperdiçado com uma oração melancólica, um punhado de cravos secos a fazer as vezes
de buquê e, para completar a clássica tríade funérea, cem mililitros de lágrimas
besuntadas em dúzia e meia de balbucios desesperados. Que enquadramento surrealista o
futuro capitão presenciara: encerrado num buraco de metro e meio de profundidade, jazia
a amante fracionada, a areia cobrindo paulatinamente suas feições e silhuetas à medida
que as pás faziam o trabalho. A cabeça, apoiada sobre o ventre e abarcada por mãos
descarnas, ia-se a encarar o céu noturno, imersa na gélida estupefação de que se valia
desde o fatídico momento... Em que fora irremediavelmente separada do pescoço. Aquela
expressão, lançada ao vazio entre as estrelas, sinalizaria a presença de um terror cósmico
à espreita? Haveria naquela imensidão louca entre as estrelas alguma entidade interessada
em um instante favorável à extirpação da vida na terra?
Oh, devida impressão, porque os mortos a emanam? — Pensou consigo o homem
lobo — Uma poesia de cuja franqueza crua os amantes de arte jamais encontrarão em seus
quadros e esculturas artificiais. Sem máscaras, sem trejeitos e falseamentos, assim é que
os mortos encaram a realidade. E nesse encarar desinteressado (pois que o mal já lhes foi
feito) exclui-se toda a dissimulação a que costumam recorrer os pretensos vivos quando se
inserem no intento de falsear ou contornar a fenomenologia das coisas em usufruto
próprio. Esse pensamento, exatamente esse pensamento, já havia testemunhado o mago
sintetizar em uma breve e perfurante proposição...
"Os olhos dos mortos, somente eles espelham a vida."
Algo similar explicaria a lógica implacável que impelia Rítaro a matar com
presteza: só os vivos guardam rancor. A moça ali, mortinha da silva, de fato, não guardava
ressentimento algum de seu assassino. Aliás, mais provável seria que se erguesse uma
derradeira vez para agradecer-lhe o cavalheirismo de ajudar com o sepultamento.
E lá ia nosso amigo, em forma humana, a lançar a última pá de terra sobre a
sepultura. Depois lançou um bocado de pedregulho, um tanto de galhos mortos aqui e ali e
deu-se por satisfeito. Um feliz sentimento de dever cumprido se apossou de seu espírito a
tal ponto que por pouco não mascarou a dor proveniente dos ossos moídos do rosto.
Metade do serviço feito, pôs-se a cavar o segundo buraco, esse para o cocheiro.