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O quarteto deixava Insanistka enquanto, nas adjacências de Barrica Furada, o

homem mais feio do mundo descolava uma carona... Após dois dias de absoluta paralisia
em uma estação de trem desativada. O feitiço espacial do mago o descartara na pequena
dispensa da localidade em meio a vassouras imprestáveis e panos de chão devorados por
traça. Tão fodido Rítaro se encontrava, o rosto reduzido a um cavidade em formato de
punho, que seu único pensamento nesse entretempo fora a pura vontade de receber o
devido atendimento médico. A que ponto decaíra, resmungara de si para si. Eia o Preza
Cinzenta implorando aos deuses por atendimento especializado de humanos.
Maldito fosse José Willie! Abandonara-o ali da maneira como uma criança mimada
descarta os brinquedos dos quais se enjoa. Que justificaria teria o desgraçado? Que a
magia de transporte até a fazenda mais próxima lhe custaria recursos dos quais não
dispunha? Ora, para as favas! Que o truque então saísse mais caro que, que, que o que quer
que fosse! O miserável deveria demonstrar gratidão pelos serviços prestados por Rítaro há
muitas e muitas décadas.
— Filha duma puta ingrato! — Balbuciara, sentindo a dor aumentar a cada palavra. —
Moleque filho duma puta!
Apalpou o rosto percebendo, em pânico crescente, que nada restara de seu focinho
senão uma farinata de ossos pastosa. Do olho esquerdo, aliás, uma sombra do que se
poderia chamar positivamente de olho, restava uma cavidade salpicada aqui e ali com
reminiscência estracinhadas de esclera, córnea e íris somadas a um e outro cílio a pender
desordenadamente. Em súmula: um vale obscurecido em carne viva, mas que, ao contrário
do restante da face, deveria ser curado com o tempo, se não, por meio da luminosidade
sacra da próxima lua cheia. Afinal, o olho lhe tinha sido subtraído por um tiro, chumbo
banal; o resto da face, porém, fora cruelmente remodelado por uma soqueira de prata.
Nunca seria o mesmo! Nem o transcorrer de todas as luas cheias da história
poderia curá-lo de tamanha deformidade. Ao avaliar essa veracidade que o mestre
resolvera por descartá-lo? Fazê-lo em lugar onde o cadáver estivesse devidamente
distanciado dos bisturis e lupas a serviço de Insanistka? Ou, ao menos, em que a eventual
sobrevivência do homem lobo resultasse no silêncio dos incapacitados em lugar de tortura
e interrogatório?
Ainda assim, ainda em posse dessa conscientização acerca da natureza nada
confiável da chefia, suas melhores chances estavam em ir de encontro ao mago. Willie, o
desgraçado e egoísta Willie, era seu único aliado em todo o continente de Bastardia e, para
ser honesto (e deprimente), no mundo inteiro.
Repensava pela enésima vez que merda fizera com sua vida quando ouviu o zunir
distanciado de uma roda a percorrer a abandonada estradinha ao largo da estação. Uma,
duas almas metidas numa carruagem conduzida por um cocheiro e um par de cavalos. Os
animais trotavam desamparados noite adentro. Aqui e ali, uma chicotada ressoava no
silêncio sepulcral com o intuito de comunicar aos animais o ritmo desejado.
O cocheiro mantinha os lábios cerrados e a respiração funda, era um desses
homens que já não dispunham de energia ou paciência para lidar com a vida. Já o casal de
passageiros matraqueavam algo que Rítaro custara a compreender à princípio, palavras
que iam se tornando audíveis à proporção que o trajeto do veículo se aproximava do
esconderijo.
— Já lhe falei, Isaac! Isso é um ultimato... — Sussurrou a voz de um mulher que, pelo
timbre juvenil da voz, deveria ter por volta de vinte anos.
O varão apressou-se em responder, a voz salpicada de uma urgência desesperada.
— Preciso de tempo, pelo amor de Asus! Quantas vezes tenho que repetir que essas coisas
são complicadas como o diabo?
— São bem complicadas, vejo! Tão complicadas que melhor te apraz deixar-me a esmo!
Pobre de mim, abandonada a tuas necessidades carnais! A quem o senhorio só recorre
quando precisas te refugiar do diabo da esposa, aquela velha cacarejante! Pobre de mim,
pobre de mim ser reduzida a uma meretriz, a um mísero passatempo!
— Querida Julie, não fale desse jeito! Minha mulher é o diabo, é verdade! Mas você se
equivoca em todo o resto! Garanto a ti pela alma que habita em meu corpo que estou
organizando a papelada e os impostos para que até o final do ano...
— Até o final do ano, você diz. Isaac, venho escutando isso desde o ano retrasado!
— Imprevistos aconteceram, coisas que delongaram as estimativas!
— Aconteceram e continuarão a acontecer até que eu esteja velha, tão velha quanto o
monstro que dorme a teu lado toda noite.
— Julie, minha amada, porque precisas me fazer sofrer desse jeito quando estás certa de
minha afei...
— Às favas com sua afeição, Isaac, ás favas! Sou uma mulher de família, uma garota que
poderia arranjar um bom pretendente sem dificuldades. Um punhado de bailes, algumas
idas ao teatro, eis o que me custaria! Mas o amor, o amor... Esse cão dos diabos que me pôs
ao lado de um infiel com o dobro de minha idade!
— Sim, o amor nos uniu e peço-te que ele baste para manter nossa união só por mais um
tantinho de tempo. — Disse o basbaque, gesticulando com os dedos gordos.
— É mesmo? É isso que esperas de mim? Sofro e choro por ti a cada noite, pois sei que se
deita ao lado de tua senhora. É justamente isso que fulmina a alma: por mais desalmada
que seja a criatura, sei que tu a pertence, somente a ela. O matrimônio entrelaça vosso
destino com a benção dos deuses e do mundo...
— Minha amada, sejamos racionais! Um pouco de tempo e tudo se endireita!
— Pare essa carruagem, deixe-me aqui ao relento, é tudo que mereço por lançar minha
juventude aos desígnios de uma criatura sem moral! Caminharei até a casa de meus pais e
começarei por contar a verdade a eles!
Nesse tresandar da conversa, a voz da moça ganhou vida com um esbaforir
descompassado. Ela lançava palavras ao mundo com a sofreguidão dos náufragos e, Rítaro
poderia jurar, faltava pouco para que a primeira fungada de choro viesse à tona. Ora, o
orgulho daquela moça recém-saída da adolescência faria o possível e o impossível para
que as inevitáveis lágrimas se fizessem invisíveis ao indigno amante. Além disso — e nesse
ponto Rítaro contemplava a discussão do casal com a perspectiva interessada de quem
acompanha uma novela — o lobisomem sabia que a moça sabia que seu amante sabia que
as lágrimas sabiamente amolecer-lhe-iam a determinação pouco sabida.
Ora, que teor redundante e delicioso para uma trama de amor!
Suficientemente delicioso para que, até o presente momento, Rítaro se esquecesse
da possibilidade de aproveitar a ocasião para assaltar os passantes solitários. Algum
prejuízo na ausência de conjuntura até o penúltimo fiado de instante? Absolutamente
nenhum: estava fodido demais para assaltar uma carruagem a se precipitar célere noite
adentro. A trama, pelo menos, o fizera esquecer da própria sofreguidão até que...
Até que a o supracitado veículo estancasse, a moça saltasse num arranque
desvairado (coitada, prestes a desmoronar em lágrimas) e o amante fosse atrás. O
desesperado Isaac temia que as ameaças da jovem viessem a se concretizar.
A moçoila correu a esmo, metendo-se com vestido e tudo na vegetação rasteira de
arbustos secos, árvores desfolhadas e eventuais eras venenosas. O pançudo capitão foi ao
encalço, mas logo perdia terreno para a adversária. Temeu, o desgraçado, que todos
aqueles anos de fumo, vinho e sedentarismo o tivessem tornado incapaz de acompanhar o
ritmo da moçoila. Ora, não fosse o excesso da adiposidade inútil!
E de fato fora o que sucedeu. Nem cinco minutos após a parada forçada (Julie
ameaçou se lançar para a fora da carruagem em movimento, baseada em uma de suas
impertinentes heroínas românticas), e já estava além dos alcance de seu corpanzil
semiesférico. Ao se aperceber de tal realidade, caiu de assalto sob a possibilidade de que a
amada encontrasse um destino pior que a desgraça social.
Se chegasse em casa, isto é, percorresse sã e salva as duas dezenas de quilômetros
que a separava da propriedade de seus pais, estragaria a vida de ambos: ela poderia dizer
adeus à possibilidade de se casar com qualquer homem com mais que um vintém nos
bolsos, ele teria que por abaixo o plano de ser promovido na hierarquia militar e assumir
um cargo bem remunerado no setor de inteligência do exército. Na circunstância ainda
pior de ser atacada por uma jararaca ou estraçalhada por um raptor... Jamais cerraria
novamente os olhos em busca de tranquilidade. Enganava-se Julie em relação às intenções
de Isaac: verdadeiramente estimava-a, verdadeiramente pretendia abandonar a esposa
insuportável. O problema é que devia seu sucesso na corporação militar á megera e, com o
cargo presente, estava pouco certo de ser capaz de manter o prestigioso modo de vida
bancado pela esposa. Como poderia, se até os mimos e joias com que presenteava Julie
vinham do bolso da bruxa velha?
E assim consumiu os vinte minutos seguintes a gritar inutilmente por Julie e a
rezar que um eventual golpe de racionalidade a fizesse. Esperou por mais palavras além
das suas, não vieram — e saiu desapontado.
O caminho de volta à carruagem (por um punhado de segundos, temeu não
encontrar o transporte no breu da noite) consumiu uns bons dez ou quinze minutos. Já o
absurdo com que se deparou quando adentrou a portinhola teve o efeito de paralisá-lo por
um intervalo de tempo imensurável.
— Boas notícias, Isaac, seu casamento está salvo!
A frase veio em palavras gorgolejadas, grunhidas por uma criatura sem face. A
absurda ausência de um rosto, contudo, não fora o que defenestrara a sanidade do homem
com um golpe único. O horror, o supremo e absurdo horror, encerrava-se por inteiro na
cabeça decepada de Julie — solitária, repousava lépida no colo da monstruosidade.
Naquela parte terrivelmente subtraída do restante do corpo, os lábios, contorcidos num
esgar cuja mudez se estenderia para a eternidade, faziam companhia a um par de olhos
esbugalhados semi cobertos por tufos de cabelo salpicados em sangue fresco.
O militar replicou na própria face a expressão com a qual se deparou no que
sobrara da amante. Os lábios se entreabriram por último, porém, o grito deu lugar à urina
e a lágrimas descontroladas. Perceba-se que, sem levantar dúvidas, o homem fizera bem
em preservar o silêncio. De outro modo, Rítaro o puniria de imediato. Que paciência teria o
lobisomem para gritos e mal criação em resposta a um favorecimento digno de elogios?
Antevia algum absurdo em salvar o casamento e a futura patente da personagem
novelesca? Alguma tristeza ou pesar justificáveis a repousar sobre a situação improvável?
Obviamente que afirmativo, diria ao futuro capitão Isaac Navares. Até porque, embora se
tratassem de criaturas inferiores na hierarquia da natureza, Rítaro observava com a
atenção devida — aquela atenção cujas proporções eram cabíveis e afeitas ao pareamento
da proporcionalidade — o sofrimento dos seres humanos. Eles foram criados pelos deuses
para fabricar e perecer, para servir e serem consumidos, sempre nesses respectivos
ordenamentos. Tinham essa importância e o lobisomem a aceitava.
— É melhor respirar fundo parceiro. Sei que amava a delícia aqui, mas agora ela está tão
morta quanto uma pedra. Quase destruiu sua carreira militar... Veja bem, minha
intervenção foi necessária.
— Por Asus, por Asus, por Asus...
— Ustra é um deus mais decente para pedir arrego nessas ou em quaisquer outra,
companheiro. Respire fundo e não se preocupe com o resto, em quinze minutinhos nos
livramos do corpo de Julie e do cocheiro... Esse sim morreu por má sorte.
— Por Ustra!
— Exato, por Ustra. — Retrucou, desgostoso da inobservância do companheiro.
— Você matou ela! — Lá se ia o homem a choramingar, os últimos jatos de urina
terminavam de encharcar a calça de linho fino, obra-prima do alfaiate da família.
— Quanto a isso, pensei que já estávamos resolvidos.
A besta estendeu uma pata repleta de garras afiadas, a menor delas alcançava fácil
dez centímetros.
— Alguém tem que se salvar nessa roda-viva, companheiro... E realmente torci para que eu
não fosse o único.
— O que quer que eu faça? — A pergunta vinha cabisbaixa, repleta do tom daqueles que
aceitam a derrota antes mesmo de travar o bom combate.
— Comece tirando da cabeça a ideia de puxar esse revolver ai. Vou permitir que continue
em sua posse, que diferença faria se disparasse um punhado a mais de tiros em minha
fuça? Aliás, faria diferença sim, você acabaria morto.
— Desde que poupe minha vida. — Choramingou o pançudo.
— Já está salva. Agora pensemos nos mortos. Acho melhor conduzir a carroceria até a
estação abandonada.
— A antiga estação rodoviária de Sir Gerard, você quer dizer?
— Exatamente essa. Tem umas pás lá... Eu te ajudo a enterrar os corpos, você parece um
tanto chocado.
Engolindo o choro, Navares recorreu ao que lhe restava de razão.
— Não se é todo dia que um homem vê o que eu vi.
— E acredite em mim quando digo que é essa inércia que os torna fracos. Que seja, ouvi
que tem uma guerra vindo por aí... Mas não percamos mais tempo, hein. Queria um favor
seu, para compensar o que lhe fiz. Precisarei, ou melhor, precisaremos de uma muda de
roupas. Seria arriscado demais sermos pegos banhados em sangue e suor, poderia
levantar suspeitas, sabe?
Claro, e o estranho declive de ossos esmigalhados de que se compunha o rosto do
mostrengo teria efeito oposto. Aliás, o simples fato de o sujeito ser uma coisa meio lobo
meio homem, com garras capazes de decepar a cabeça de uma mulher, já isso seria
suficiente para alertar os instintos da criatura mais primitiva a habitar a terra. Ainda
assim, pensou o homem de quarenta e tantos anos, seria prudente obedecer sem
questionar quaisquer que fossem os desvarios.
E numa mudez conturbada assumiu a posição do cocheiro morto sem antes dar
uma boas empurradas sobre seu cadáver (bem inteiriço se comparado ao da pobre Julie)
para liberar espaço. E lá se foram os cavalinhos estoicos, apesar do cheiro de sangue e
morte a empestar a noite.
O enterro correu conforme os desígnios de Rítaro. Aqui, nosso amigo deu ao
sofrimento do companheiro o devido crédito, permitindo que seu tempo precioso fosse
desperdiçado com uma oração melancólica, um punhado de cravos secos a fazer as vezes
de buquê e, para completar a clássica tríade funérea, cem mililitros de lágrimas
besuntadas em dúzia e meia de balbucios desesperados. Que enquadramento surrealista o
futuro capitão presenciara: encerrado num buraco de metro e meio de profundidade, jazia
a amante fracionada, a areia cobrindo paulatinamente suas feições e silhuetas à medida
que as pás faziam o trabalho. A cabeça, apoiada sobre o ventre e abarcada por mãos
descarnas, ia-se a encarar o céu noturno, imersa na gélida estupefação de que se valia
desde o fatídico momento... Em que fora irremediavelmente separada do pescoço. Aquela
expressão, lançada ao vazio entre as estrelas, sinalizaria a presença de um terror cósmico
à espreita? Haveria naquela imensidão louca entre as estrelas alguma entidade interessada
em um instante favorável à extirpação da vida na terra?
Oh, devida impressão, porque os mortos a emanam? — Pensou consigo o homem
lobo — Uma poesia de cuja franqueza crua os amantes de arte jamais encontrarão em seus
quadros e esculturas artificiais. Sem máscaras, sem trejeitos e falseamentos, assim é que
os mortos encaram a realidade. E nesse encarar desinteressado (pois que o mal já lhes foi
feito) exclui-se toda a dissimulação a que costumam recorrer os pretensos vivos quando se
inserem no intento de falsear ou contornar a fenomenologia das coisas em usufruto
próprio. Esse pensamento, exatamente esse pensamento, já havia testemunhado o mago
sintetizar em uma breve e perfurante proposição...
"Os olhos dos mortos, somente eles espelham a vida."
Algo similar explicaria a lógica implacável que impelia Rítaro a matar com
presteza: só os vivos guardam rancor. A moça ali, mortinha da silva, de fato, não guardava
ressentimento algum de seu assassino. Aliás, mais provável seria que se erguesse uma
derradeira vez para agradecer-lhe o cavalheirismo de ajudar com o sepultamento.
E lá ia nosso amigo, em forma humana, a lançar a última pá de terra sobre a
sepultura. Depois lançou um bocado de pedregulho, um tanto de galhos mortos aqui e ali e
deu-se por satisfeito. Um feliz sentimento de dever cumprido se apossou de seu espírito a
tal ponto que por pouco não mascarou a dor proveniente dos ossos moídos do rosto.
Metade do serviço feito, pôs-se a cavar o segundo buraco, esse para o cocheiro.

Oito horas depois, o veículo se aproximava do povoado conhecido por Falange


Norte. Antes da guerra dos Kubrick, a localidade fora um importante ponto de produção de
trigo, aveia e cana-de-açúcar. Os fazendeiros da localidade apoiaram o antigo regime. Na
verdade, a tal ponto que o novo viria a decapitar os proprietários, estuprar suas mulheres
e incendiar suas instalações. Em razão de tal atitude impensada, a recém batizada
Insanistka amargaria seis anos de desabastecimento e fome absoluta. Isso na medida em
que nem Lunagrado, tampouco Argentado tinham interesse em estabelecer relações
comerciais com um governo tomado por golpe sanguinário. Essa animosidade com o novo
tirano duraria meia década, quando a descendência dos Helenos, o príncipe Henrique
Kernec III, a princesa Carlita Emanuella Kernec e o punhado de primos sobreviventes
foram entregues aos Kernecs de Argentado. Tanto a decisão de poupar a nova geração de
monarcas quanto a de negociar a abertura comercial com as polis vizinhas nasceram do
general Merrin Kubrick Hourglass, visto que a vontade do irmão tirano era a dispensar aos
vestigiais nobres a piedade que pudesse advir de ferro e fogo.
À libertação de Henrique III o general Hourglass somou um oitavo do tesouro
saqueado do governo deposto. O valor foi entregue de mãos beijadas a Argentado. Já
Lunagrado se contentou com a extirpação das taxas para trafegar e comercializar sua
prata em Insanistka. Mas essa medida teve àqueles o intento único de retomar, num
primeiro momento, as antigas e necessárias relações com a polis de maior arsenal bélico
de Bastardia, de modo que, com o passar das décadas, velhos tributos voltaram a circular
com nomes inéditos. Por outro lado, a própria Lunagrado cessou a comercialização de
armas para Insanistka em resposta à contínua política militarista perpetuada pelos
vizinhos. E assim foi que, de bom grado, todo o arsenal produzido em Lunagrado passou a
ser exportado para Argentado ou (e sobretudo) para alimentar conflitos além-mar.
O panorama levantou-se de soslaio na mente de Navares, dando-lhe o conforto
momentâneo de esquecer os escabrosos eventos decorridos na madrugada anterior. Isso
até margear o limite do povoado. Viu-o ao longe, reduzido a dois armazéns, uma farmácia,
uma delegacia para manter a ordem conforme as legislatura de Insanistka e umas cinco
pousadas focadas em atender a demandas de viajantes e caravanas comerciais que ainda
insistiam em utilizar a antiga rota à margem do lugarejo. Nesse ponto, o militar quarentão
se viu obrigado a checar a condição do homem que carregava na carroceria.
Dormia Rítaro como um bebê, isso se um bebê roncasse com a rudez entrecortada
de uma latrina entupida. Lá se ia o ar a entrar com uma presteza sôfrega naquela fuça de
medonha geografia. A julgar pelo som da expiração, travava uma batalha igualmente
hercúlea para escapar da então labiríntica cavidade nasal.
— Chegamos em Falange Norte. Devemos parar em alguma pousada?
Um dos olhos entreabriu-se e, negando-se ao trabalho de abrir o outro, o homem
lobo se pronunciou, a voz ranhosa e tépida.
— Claro, Navares, naquela que melhor lhe provenha. Acho que um bom descanso fará bem
a ambos.
— Sem dúvida, senhor.
— Tirei uma soneca, quanto tempo se passou desde que partimos.
— Seis horas aproximadamente, senhor.
— Sem essa de senhor, acho que já passamos por poucas e boas para nos considerarmos
bons companheiros pelo menos.
Nevares se deteve com o pensamento por um momento antes de decidir que
concordar com um balouçar de cabeça era o melhor caminho a tomar.
— Tudo bem, compreendo a insegurança. Que monstro seria se fosse incapaz de tanto...
Monstro, aliás, é a palavra mágica aqui. Lamentável que me veja assim quando tive que me
decidir num átimo por um caminho que levasse tanto a minha salvação quanto a sua.
— Ela iria mudar de ideia... — Essas palavras brotaram incontroladas dos lábios de Isaac e,
sem perceber, já estavam dando lugar a outras e encadeando-se para exprimir
sentimentos de pesar e comiseração. — Ária é testemunha de que a jovenzinha merecia
um destino melhor do que ter o esguio corpo, aquele corpo de querubim, mutilado sem
piedade.
— Pare de romantizar a coisa, Navares. Toda morte é igual, tem os mesmo resultados: o
sujeito para de bater o coração e, quando lhe resta alguma educação, cerra os olhos. Agora
é hora de nos importarmos com quem está vivo, eu e você! Já tenho um plano bem feito
para escapar desse continente, me livrar de uma vez por todas do urata de merda e do
filho da puta a quem dediquei inutilmente minha lealdade.. É verdadeiro o ditado: não há
bem que não venha para o mal.
— É o contrário. O ditado diz que não há mal que não venha para o bem.
— A ordem dos resultados não altera os fatores, é a matemática de sua espécie quem
afirma! Sabe, essa minha deformação aqui é obra de um homem da tua espécie tão grande
quanto um búfalo bem alimentado. Nunca pensei que levaria uma sova de um ser humano.
É como dizem, aprendendo e vivendo.
Dessa vez, Navares se absteve de corrigir.
— Que me importa agora, hein? Fracassei miseravelmente em minha empreitada e melhor
seja que eu a deixe repousar em seu leito, tão morta quanto a sua amante.
— Pobre Julie... — Uma lágrima rotunda escapuliu do olho direito de Navares num belo
esforço fisiológico em parafrasear-lhe as palavras.
— E o que você pretende fazer agora? Quer me dar o troco? Se for o caso, te deixo sair dois
tiros na frente.
— Isso não a traria de volta...
— E dificilmente daria fim a minha existência moribunda, tenente. Sou da raça dos que
tardam a morrer. Ora, mas que importância há em toda essa conversa fiada? Quero saber
quais são os seus planos.
— Planos? Como é que vou sair dessa vivo?
Surpreendentemente, Rítaro estampou no que restara de sua face a expressão de
quem se sente ofendido por um destrato ao qual nada fizera para merecer.
— Se depender de mim, vai ser libertado quando me deixar no porto de Argentado.
Quantos dias a mais de viagem isso dá?
— Dois dias, se mantivermos o ritmo.
— E depois disso, o que a senhoria fará da vida?
— Ora, o que me resto fazer: voltar para minha esposa e seguir a carreira.
— Tem uma guerra vindo aí.
— Você já havia dito isso.
— Pensei que repetir serviria para animá-lo.
— Ambição do rei, fortuna para o rei — com o que devo me animar?
A incredulidade mais genuína tomou a mente da criatura. Da perspectiva de Rítaro,
conflito e diversão eram conceitos tão atrelados que dificilmente se poderia distingui-los
positivamente em entes individuais. Agora que se via forçado a repensar o ponto, a
responder por meio da razão a uma constatação óbvia e cabal, surpreendeu-se na ausência
de qualquer argumento em favor da perspectiva.
— Terei exatamente a mesma vida que tive antes do que se passou, exceto que sem amor
ou felicidade. — Continuou Navares.
— Você sempre pode arranjar outra amante.
— Improvável, aprendi a lição. — E, esquivando o olhar, saiu do interior da carruagem e
ocupou o lugar de cocheiro. Faltava pouco para que tivesse umas merecidas horas de
descanso.
Faltava pouco para adentrar o povoado propriamente dito: a cem passos
desenhava-se a placa semi desmoronada de boas vindas à Falange Norte. Lugarejo fodido,
vale dizer, muito aquém da glória passada. Seu decaimento aparentemente espelhava o
torvelinho das sensações febris a tomar o doentio Rítaro. Sendo de notar-lhe os sentidos
deturpados por um que de desgosto profundo em razão de obra falha, por pitada de
desapontamento com o que poderia ser mas efetivamente não o era somado a um algo do
remorso cabível ao arrependimento em disponibilizar energia a empresas longe de valer o
esforço. Até porque o humano, aquele infundado alvo sobre o qual resolvera
aleatoriamente derramar sua afeição de enfermo — como se, por estar fodido, tivesse de
honrar algum débito de empatia para com criaturas igualmente fodidas — insistia em
cagar sobre uma situação que já fedia sem esforço. Vejam bem, o sujeito podia sair dali
bem vivinho, sem ferimento algum... Daí seria questão de viver pianinho com sua bruxa
velha, tornar-se capitão e lutar uma guerra. Glória e fama no conflito, algo como uma
terceira bola materializando-se no saco escrotal. Fim da batalha, muitos mortos e muita
alegria, volta e bate de cara com a cônjuge indesejada. É questão de despachá-la com uma
bom triturar de pescoço ou, conforme a covardia natural à espécie, contratar um
despachante. Diabos, a coisa nem precisa chamar atenção! Dai, num condão ético
porquanto merecido (apostará a vida numa guerra, eis porque do merecimento), se via
capitão ou major cheio da grana e com uma vida repleta de bocetas pela frente.
Atormentava-o saber: Rítaro poderia ele próprio ter despachado o sujeito, invés
disso, preferiu desenhar caridosamente um futuro feliz para ele, de alegrias e benfeitorias
ao mundo. Eia um erro estúpido, eia um erro que sua impaciência trataria de extirpar.
— Encoste sobre aquele arvoredo, meu bom tenente. Preciso verificar algumas coisas
antes de adentrarmos a cidade. Apenas um tanto de ataduras aqui e ali para garantir o
segredo de minha identidade. Tem dessas coisas aqui?
— Conforme a Lei de Viagens de Insanistka, Senhor, estamos equipados com um baú de
primeiros socorros... Nada que possa alterar sua feição ao ponto de que deixe de causar
certo... Desconforto, se o senhor me permite a honestidade...
"Cuzão! Honestidade? Pra que porra de honestidade numa hora dessas!"
— Já lhe permito tudo, ainda assim siga essa ordem e venha aqui atrás dar uma luz nessas
questões.
— Sim, senhor. — Essas últimas palavras saíram monótonas, como que pronunciadas por
quem não dá conta do próprio destino. Que o futuro capitão houvesse vislumbrado o
desenlace prestes a se desdobrar, Rítaro duvidava com veemência. Ainda aquele volume
de impassibilidade surgia de uma vivência e idealização romântica abruptamente
sepultada pelo peso da realidade. Talvez coisas como o amor estejam longe de feder tanto
como um punhado fumegante de bosta, mas invente de engolir a pílula e veremos se o
efeito não lhe sai ainda pior.
Encostaram sobre a parca conglomeração de árvores. O sujeito pançudo desceu,
caminhou até a carruagem, entreabriu a portinhola e caiu morto. Uma patada para
decapitar e o único estrago a ser considerado sobre a cena era o sangue sobre a estrada. A
isso, Rítaro resolveu da mesma maneira que resolveu o corpo, lançando terra por cima.
Para ser bem justo, nosso amigo lobisomem parecia resolver um bocado de problemas
com o feliz e simples — e a simplicidade torna a coisa toda duplamente mais feliz — ato de
lançar terra por cima. E com tamanha frequência tomara tal providência nas últimas horas
que até se lamentava de ter dispensado a mão de obra do gordo. Ora, nada seria mais justo
do que fazer o indivíduo cavar a própria cova. Justo, sim, e por certo o futuro capitão
encontrasse alguma espécie de honra servil num episódio de morte pelo qual se trabalha e
se esforça. Evita-se aí a preguiça de derramar apenas sangue, além de que o suor do
trabalho como que completa a cota de respeitabilidade do morto.
Quinze minutos e adentrava o povoado sem levar uma faixa de gaze ou
esparadrapo no rosto destroçado. Como mais uma dúzia e meia de povoados dispostos
entre as principais polis do micro continente, Falange Norte era pouco além de uma
estrada principal de terra batida cercada dos dois lados por edificações que supuravam
filetes de esgoto a céu aberto. Além dos recintos já apontados, havia três ou quatro
recintos dado ao comércio de bens de primeira necessidade, uns bares, um prostíbulo e
uma igreja, como se esses dois últimos se equilibrassem. Também aquelas pousadas
espraiadas para fazer a alegria do viajante cansado, sempre uns prediozinhos velhos
tentando aparentar luxo maior daquele que factualmente possuíam e, para a felicidade
geral da nação, ficavam os amontoados de tijolos todos aconchegados nas adjacências de
uma delegacia.
Entregou a carruagem a um funcionário do primeiro desses hotéis. O sujeito fez
umas perguntas, Rítaro respondeu com uns grunhidos nem afirmativos, tampouco
negativos, adentrou o local e, dando merda ao modo como os seres imundos encaravam
sua face desfigurada, alugou um quarto que o atendente ofertou às pressas. Sem demora,
pegou a chave e subiu a escadaria, apenas para lembrar no segundo andar que a porcaria
do seu recinto ficava no térreo. Desceu, adentrou seu lugarzinho seguro e dorminhocou
por cinco horas felizes.
Teria dobrado a soneca, mas um cheiro pungente o pôs de pé num sobressalto
comumente provocado por uma golpe bem empregado no queixo. Sua primeira impressão
fora a do puro e flagrante engano propiciado pela ficção do sono ou do sonho. Contudo, a
porcaria do cheiro ia persistindo, de algum modo feliz, assertivo ao assegurar sua
veracidade no transcorrer do minuto seguinte. O sol fervia e a porcaria do quarto ficava no
poente da hospedaria. Assim o mormaço da tarde acentuava o odor inconfundível,
tornava-o quase um sólido e por pouco se provava incapaz de materializar os entes
responsáveis por sua origem. Foge-se, nesse ponto, da força da linguagem porque ausenta-
se igualmente o desejo de exagerar: o cheiro era forte, o cheiro quase materializava seus
genitores porque os desgraçados estavam quase efetivamente ali, separados de Rítaro
senão por um punhado de milhas passíveis de serem contadas nos dedos.
Vampiros... E dos dois, reconhecia a assinatura aérea de um bastante bem para que
a imagem suscitada pelo olfato provocasse arrepios tórridos na penugem das costas.
Quem, se não o pai de toda a hedionda espécie condenada pela natureza, pelos deuses,
pelo bom gosto, pelo bom senso...
Ora, estava quase fodido, bastava um triz... Talvez já condenado a uma morte
penosa e lenta. Em noite de lua cheia e sem os ferimentos de prata, lutaria por seu orgulho
e usaria de todo o frenesi para dar cabo do ente geratriz da matilha de sanguessugas.
Resfolegaria com a urgência de entorpecer-se com o próprio brado! Oh, e quantas vezes o
faria sem o mínimo temor!? Com que ódio e impetuosidade se serviria para assegurar a
resolução sem volta do combate!? Eis uma luta digna do último sacrifício! De feita que, de
modo algum poderia negar-se a tal destino ou, retificando, jamais quando bem alimentado
em sua psique incrustada de orgulho febril! E assim o é, e assim reforçamos e assim
acabamos repetindo que a hipótese de afeitar-se à covardia teria sobre o jovem
transmorfo o efeito da prata sobre o sangue. Rítaro nascera com propósito alheio ao
dessas criaturas palustres, esses humanos, alheios ao mundo no sorver das horas e a
ruminar no pasto sereno e aguado da covardia. Orgulho, honra e virilidade estavam em
fazer estrago, ainda mais se vitimasse qualquer coisa digna de ser vitimada.
Diabos, por que toda esse tempo perdido quando nos ocupamos agora em informar
que o honroso homem-lobo sequer pensou uma segunda vez em combater até as últimas
forças? Aliás, tudo que refletira fora uma versão bem simplificada do parágrafo anterior,
algo como 'sou foda', a que logo acrescentou 'estou fodido'. Tendo ele em mente o
prognóstico de que uma foda negativa cancela sempre uma positiva, ficou por fim com o cu
na mão. Um cu para ser preservado, um ainda, mais que zero e menos que um plano. Na
medida em que se esboça planos com a finalidade módica de se conservar nulidades
preferíveis a déficits impagáveis, eia, eia, eia que pululava na mente de Rítaro o improviso
da fuga. Algo bem viável, desde que se apelasse ao bom senso e à covardia. Duas
denominações, convenhamos, asseguráveis e inalienáveis a toda criatura que vive e
rebosteia. Quanto ao que se disse a seu respeito no parágrafo anterior? Naquelas tantas e,
verdade seja dita, inúteis linhas? Já Rítaro manda a potencial elaboração de tais
pensamentos de orgulho às favas, ou a colher morangos, ou para um buraco profundo e
quente que cá sabemos.
Sem tempo a perder, desceu as escadas com uma série de saltos estranhos para um
ser humano e ainda mais para um lobisomem, bateu de frente com o recepcionista.
— Onde está a carruagem? — Arguiu, lágrimas de preocupação escorrendo sobre as
bochechas do rosto deformado.
— Que carruagem?
— A minha, a minha, caralho!
— Senhor? Como posso saber de tal coisa?
— Entreguei ao cocheiro desta merda!
— Oh, claro, desculpe... Deve estar no curral do Geraldino.
— E onde fica isso?
— Uns duzentos metros acima, do outro lado da rua.
Rítaro ensaiou uma meia volta, tornando flagrante a intenção de dar no pé. A isso o
assalariado reagiu entreabrindo a boca e, como se falasse para dentro, ou com uma piroca
entre os dentes a engastar-lhe as palavras, arguiu:
— Senhor? O senhor... Não se esquece de... Quitar as dívidas?
A forma mais célere que Rítaro encontrou de honrar o nome na praça foi
decapitando o sujeitinho magrela, numa repetição desvirtuada do ato que realizara há
cinco ou seis horas. Desprezava repetições, quanto mais se repetir, mas havia outro jeito
naquele dia? Nesse tresandar, abria exceções para tudo e quase considerava, na maior das
abstrações que não chegara propriamente a pensar (alcançara instintivamente), que
quaisquer atos não deveriam ser julgados por sua natureza ou efeito, mas antes pela
intenção de seus autores. Como de outra forma poderia ser quando os efeitos, viventes na
esfera das infinitas reações e contrarreações de nosso universo, estariam para além dos
limiares das nossas especulações, até das mais sábias? No fim dos fins, cada criatura do
universo, as mais torpes que sejam, são umas mais inocentes que as outras...
Nisso Rítaro também não pensou ou, retificando, chegou ao limiar de pensar em
todo esse azáfama filosófico. O que fez foi se lançar rua afora de quatro, as patas traseiras e
dianteiras semi transformadas, a coluna encurvando-se e distendendo-se a cada ciclo do
movimento canino. No minuto seguinte, abandonava Falange Norte pelo que esperava ser
a última vez. Ia-se numa carruagem distinta da que adentrara o lugarejo, os cavalos
aparentando maior robustez e descanso. Deixara, em sua impetuosidade, outros dois
azarões mortos pelo caminho, de feita que dali saíra como adentrara: sem dever nada a
ninguém. Há aqui algo de poético, quase uma coisa de se estampar no brasão de uma casa
ou dinastia: Rítaro, aquele que sempre paga suas dívidas.
Ao encarar o sol de soslaio, fechou o cenho: uns quinze minutos para as três da
tarde. Como diabos seus perseguidores o capturariam àquela hora? Talvez tivesse se
avexado demais, 'saltado a contemplação', como o bom e velho Torrado costumava dizer,
um eufemismo do qual se valia quando desejava indicar, e não tinha colhões para tanto,
que Rítaro fizera merda, cagara tudo.
"Cagar tudo!"
Sorriu desgraçadamente ao pensar nesse enunciadozinho singelo. Porque diabos a
frase se encaixava tão precisamente na situação atual? Soava como uma denominação fiel
da coisa a ser nomeada e, agora que as milhas entre ele e seus antagonistas se esticavam e
o cheiro dos diabos começava a amainar, agora que o bem-estar acenava num horizonte
mais que fictício, sentiu-se um tanto babaca em perceber que a expressão recaia como
uma luva para aqueles três últimos dias. Se despencasse morto, um raio que o partisse, ao
menos teria encontrado uma definição para suas 72 horas finais.
"Cagar tudo".
Vinha a noite impaciente, intrépida, e logo seus apêndices de sombra iam-se a
impregnar os espaços antes revelados. Costuravam-se à luz em ritmo febril e, se agiam
com presteza, era somente para aprisionar tudo de visível à constrição da morte. O sol
desfalecia sem receio sobre o abraço do horizonte, evento diário a respeito do qual casais
enamorados, poetas e desocupados afins adoram cultivar invencionices desnaturadas.
Desnaturadas, confirme-se, por creditar — e aqui reside o condão do romântico —
sentimentalismo e beleza a uma impassibilidade de acontecimentos astrais. Mas essa
tontura humana não poderia estar mais longe de sensibilizar a consciência de Rítaro. Se
ele vislumbrava a verdade fisiológica por trás do crepúsculo ou se, porventura,
transcendia até essa fenomenologia fundamental a fim de contemplá-la sem invencionices
(e assim gozar de uma beleza das coisas justamente por serem coisas, beleza não
subjetivada em não distinguir-se de seu objeto)? Pois bem era que... Não! Para que a
honestidade impere nesta narrativa, é de se notar que Rítaro carregava em si um 'foda-se'
tão grande a ponto de, se alguém o interpelasse com tais trivialidades, afundaria suas
garras nas tripas do infeliz. Uma pitada a mais de inteligência e reflexão o permitiria
articular durante o entretempo em que seu interlocutor agoniza: "que importa ao macho o
porquê ele esporra, desde que esporre? Ou o porquê de sentirmos fome, desde que seja
saciada!?"
Mas que a noite ia adentrando o território do dia, sem dúvida que ia. E a esse
ponto, para adiantarmos o andar da carruagem (algo que o próprio Rítaro tomaria como
bem vindo), digamos logo que a noite já ia era noite adentro, e muito bem adentrada. O
momento de romantismo passou como veio, sem deixar nenhuma questão que valha a
pena ser debatida e com nenhum propósito alheio ao de engazopar jovens amantes com
promessas falsas em contraste ao fluxo de hormônios realmente por trás de suas condutas.
Via-se que a hora já sugeria até aquele tipo de violência encoberto pela escuridão. A
medida que verificava isso, Rítaro aprumou os ouvidos e até tentou envergar o focinho
para ver se já era capaz de captar algo no ar.
O que sentiu: uma cagada ainda fumarenta de raptor e a brisa seca da noite
ventando das bandas onde seus captores antes residiam. Nem sinal deles, aliás. Agradeceu
a ausência de um fato ruim com o ânimo e o regozijo que sempre dispensara aos golpes de
sorte. Chegou também à conclusão que os cavalinhos mereciam algum descanso, talvez até
ele próprio merecesse umas horas às favas... Afinal, era bem possível que os sanguessuga
não soubessem de sua localização, ou fizessem ideia inexata. Fato era que o vento soprava
de seu paradeiros para o sudoeste, e não o contrário. A proximidade com a qual se
revelaram naquele início de tarde seria, portanto, um conhecimento exclusivo a Rítaro.
Com base nessa conclusão feliz, mais otimista do que de merecimento, Rítaro
permitiu que os animais transitassem de uma corrida controlada a um trote ligeiro. Nessa
tentativa de abrandar o passo, notou que fazer os bichos empreenderem esforço era mais
fácil do que permiti-los poupar energia. A dupla de equinos vinha, por conta própria,
empreendendo uma fuga. Estavam, a horas e horas, absortos na tentativa de cavar um
distanciamento entre eles e o cocheiro, nenhuma consideração suas mentes primitivas
teceram sobre a irracionalidade da empreitada.
Pois que continuassem a correr até a morte, ia concluindo Rítaro, embora
empenhasse um lânguido esforço em refrear os cavalos. Por pena? Óbvio que não! Esse
decréscimo era imperativo para fazer aquelas bestas percorrerem a centena e meia de
quilômetro que o separava do porto de Argentado.
Até o momento, vivalma cruzara seu caminho. Seguindo por aquela estradinha de
terra batida — a vegetação já avançando pelas laterais — a ausência de perseguidores e
acidentes constituía toda a sorte que poderia desejar. Caso a noite seguisse nesse passo, já
poderia alimentar as esperanças de evaporar daquele continente no dia vindouro.
Duas da madrugada, o lobisomem ouvia a barriga felpuda roncar de fome ao passo
que os cavalinhos, coitados, passaram a se importar pouco ou nada com o predador
permanentemente a seu encalço. Agora iam os quadrúpedes refreando o passo, a
musculatura impedia-os de agir de maneira avessa. De súbito, o temor de perder os
animais o assaltou como uma verdade flagrante e até o momento indevidamente ignorada.
Mas esse piscar de cu durou menos que um instante, visto como o acalentou a resolução do
momento seguinte. Fodam-se! Que caiam mortas aquelas bestas, até porque, se este fosse
o destino das desgraçadas, trataria de encher a pança com sua carne antes de terem a
ousadia de resfolegar o último suspiro. E, assim fazendo, forçaria uma tênue
transformação para concluir os quilômetros finais da jornada.
Os cavalos segurariam mais algumas horas naquela passada entorpecida pelo
cansaço, isso Rítaro não só achava provável como pressentia. Deixou-os avançar através
da estradinha interiorana tomada de vegetação rasteira. Sentiu pela primeira vez, o
lobisomem, nessas horas avançadas em que a noite ameaça desaguar sobre os primeiros
raios de sol, o peso do cansaço assomando-se sobre os ombros. Dessa feita ia ele cerrando
os olhos por intervalos crescentes, retornando a despertar das doses de descanso
involuntário segundos depois de a elas ceder, sempre a esbaforir os arquejos alarmados de
quem põe tanto a perder por tão pouco. Repreendeu-se uma, duas, quinze vezes, embora a
estafa física o condenasse tanto a repetir o erro quanto a implementar-lhe, em cada
repetição, a duração. Às quatro e tanto da madrugada, sofreu o último sobressalto que
culminou em uma soneca de vinte minutos corridos. Despertou mais assustado que nunca
para decidir-se que, de modo algum, voltaria a cerrar os olhos enquanto o sol não se
erguesse.
Mal teve tempo de se comprometer com a resolução quando notou os cavalinhos
parados. Os bexiguentos respiravam fundo e comedidamente, a saliva acumulava-se em
suas bocas até despencarem em filetes borbulhantes. A resposta de nosso amigo
desgraçado foi retesar o cabresto na tentativa de recolocar a dupla em movimento. Os
animais ensaiaram uma retomada de marcha, mas, como que engessados por uma
resignação impassível, abandonaram a empresa, isso de tal feita que as tentativas
seguintes do cocheiro sequer provocaram a menor das reações.
O primeiro pensamento de Rítaro remeteu ao cansaço. A respiração lenta,
profunda e compassada das bestas sugeria, todavia, cenário distinto, cuja antinaturalidade
nem poderia ser desmentida pela estupidez flagrante no volume de saliva a pendular
viscosamente sob a fronte alongada das bestas, uma espécie estúpida de queda quase
estacionária; tampouco pelo medo aterrador que nelas despertara o odor predatório de
Rítaro. Ali havia algo mais e nem sombra de qualquer coisa ignorável. Seria, certamente,
um reviravolta súbita e inaceitável do destino.
Assaltou-o o pensamento seguinte:
"Como poderia ser de outra forma? É hipnotismo, flagrante! Os bichentos foram
hipnotizados com o intuito de... Me deixar nas mão!?"
— Falta precisão no raciocínio, embora ainda deva reconhecer a perspicácia. —
Respondeu uma voz suave, confiante e dotada de altivez cavalheiresca. Partia do interior
da carruagem e fazia-se soar sem qualquer traço de urgência. Em verdade, deve-se afirmar
que traduzia uma tranquilidade tão absurda e deslocada para o momento que o pobre
Rítaro se viu, por um instante, como o mais trivial dos humanos. De repente, dele se fazia
um cocheiro muito ocupado em deslocar seu senhor para um encontro qualquer com a
elite de uma cidade aleatória. — É quase isso. — Continuou o agradável vozerio — Exceto
que você não já não é o meio para qualquer coisa que o valha... Apenas o fim.
Restava ao homem lobo, pouco ou nada além de um homem agora, forçar-se sobre
o fio da realidade para propelir-se sobre a melhor resposta à ameaça presente. Ia já
retesando os músculo dos membros, forçando uma transmutação intensa, talvez até
completa... Para a briga ou para a fuga, ainda não sabia.
— Poupe-se, faça-nos o favor. — A voz continuou, um timbre contrafeito dissimulava-se ao
fundo. — Já é caso perdido. Fugir, meu caro, é carta fora do baralho. Lutar é insensatez, e
provar-se-ia também uma humilhação. Porque não demonstrar um pouco de decência
quando o jogo termina? Porque nós não guardamos as peças do tabuleiro e encerramos as
apostas com o devido pagamento? A decência em pagar suas dívidas, hein? Essa decência é
o único elemento que se pode ganhar ao se perder todo o resto.
Veio então uma respiração forte, quase um riso abafado — e assim o era de fato,
porque dispunha da natureza e do intuito propriamente galhofeiro. Esse som partia do
mesmo recinto, de uma fonte feminil. Ela tinha um vibrante ardil faceiro e, repita-se,
feminil como só a feminilidade pode se dispor e se servir.
— Não o enxote, Justine. Pelo amor dos deuses, permita que a criatura tenha a
oportunidade de se retratar com decência.
— Como se fosse acrescer algo de valor a ela ou a outrem, senhor? Como se nossas
equações estivessem passíveis de ser perturbadas por essa bestialidade?
Ela, a criatura mulher, referira-se à primeira voz com a palavra 'senhor', tal
designação de gênero fez emergir um contraste cujo efeito único era conscientizar Rítaro,
fazê-lo tomar nota, que o primeiro locutor revestia-se tanto quanto o segundo com o
timbre mulheril... Embora, para seu sobressalto, houvesse na primeira algo de além-
mundo, inconcebível e de difícil reconciliação com o parâmetro da naturalidade. Foi
quando rememorou o conhecimento de que Leviathan era e sempre fora um ser masculino
metido em carnes de mulher. No caso, o ente macho fazia um fantasmagórico uso das
cordas vocais de uma senhorita com arroubos virginais na carne e no sangue.
— Não o enxote, repito. Antes trancafie-se em silêncio, Justine.
— Eu, sob a lápide do silêncio? Acompanhei-o aqui em pé de igualdade, servindo-o com a
honestidade repartível entre os pares. Há justiça em solicitar-me silêncio, em fazer-me de
morta no auge de nossas intrigas?
— Sim, filha, pois se há justiça no corpo de meus enunciados, falta no intuito sobre o qual
sua sintaxe brota e se organiza.
— Novamente com divagações que não recairiam bem seque na filosofia mortal!
Repetindo-se com disposições abstratas sem propósito num mundo onde só os efeitos
cabem ser contabilizados?!
— E você de novo a questionar-me em ponto certo e fechado?! Mil vezes e uma a tentar
abdicar-me de minha boa temperança?! Por tolice e só por isso volto a repetir: julgar as
palavras pela reação que produzem é muitas vezes julgá-las mal! Além de esses efeitos
tantas e tantas vezes negarem-se a medidas contábeis — quando não são de todo
imperceptíveis —, variam a um infinito tão amplo quanto às circunstâncias sobre as quais
o enunciado fora expresso. Queira o julgamento probo avaliar os oradores pela intenção
inicial da qual se valem...

Rítaro se sentiu estranhamento atraído pela elocução, como se algo daquilo


houvesse lhe roçado a mente nas horas anteriores.
— Oh, claro, meu senhor, esse repeteco de lição é sempre bem vindo! Como não? Eis todo
o fundamento para a sua filosofia da mentira. A mesma tão válida na restrição ao consumo
do sangue, ou ao uso da força sobre o que houver de inferior. Aqui, em sua mente como
em seu semblante: nada de novo. É só aquela velharia sofística como a servir da
inobservância mental para envernizar nossas necessidades inalienáveis ou encobrir o
resto dos desejos postergáveis.
— Está claro quem se trata da rainha da eloquência. — Exclamou com comedida urgência
a primeira das vozes e, visto que intentava o desfecho do debate, determinou. — Cale-se
agora, mas não cale-se para sempre, está bem assim?
— Locuplete-se, diz-me logo que punição tens em mente.
— Um afastamento justo, rápido e necessário a meu bem estar espiritual.
Isso que poderia passar por uma languida ameaça, consoante até ao teor acalorado
da discussão construída em sórdido movimento, teve por resposta o silêncio mais
obediente e sepulcral da segunda dama, aquela que Rítaro julgava de feminilidade
autêntica. Tratou-se de uma quietude, aliás, cujo impacto crescia com o passar dos
segundos. E, nesse comedido e tenso passar de tempo, é que Rítaro notou, porque a tudo
notava com uma lerdeza e surpresa inéditas, que até ali não transpassara seu crânio
remodelado a ideia de aproveitar-se da distração das duas suculentas (a julgar-se pela
juvenil beleza das vozes) senhorinhas para dar no pé ou nas patas. Fato é que agira bem de
contrário em seu auscultar contínuo da lenga-lenga inteligível.
— Que ideia é essa de fugir, Presa Fugaz? Esteja certo que fugir está fora de suas
possibilidades. É já nosso, e muito nosso. — Veio a voz impiedosa da primeira dama, a que
em si trazia algo de anciente e másculo. — Nada a ganhar. A tentativa o faria até perder a
chance de explicar-se, argumentar ou implorar por uma morte indolor. Esqueça os cavalos,
esqueça a possibilidade de forçar uma transformação e sair de quatro nesse esgar ridículo.
Ao invés disso, venha ter conosco diretamente, nesta cômoda carruagem.
Por pouco não se surpreendeu em perceber suas ações conformarem-se às ordens
da algoz. Diga-se 'por pouco' porque soube (e como o desgraçado não poderia saber?) que
milagre algum seria capaz de resgatá-lo daquele sórdido e absurdo embotamento mental.
Tudo em seu absurdo estado de consciência testemunhava a favor de uma alteração
fisiológica no sistema nervoso central. Pior: esse retardamento da mente revestia-se com
uma imutabilidade que sobrepujaria sem esforço o transladar das eras.
Foi com sombras desse temor que dispensou um derradeiro olhar aos cavalos
estupidificados. Nada da indisposição estúpida dos animais casava-se ao cansaço da
corrida. Alguma imponderável influência externa havia surrupiado, com um arroubo
abrupto, a força instintiva das bestas. A mesma força o havia surrupiado com facilidade
semelhante.
Ia descendo o banco de condução, ia já se dirigindo ao interior requintado da
carruagem, em passos lentos e incertos, quando um pensamento limpo e vigoroso o
assaltou de súbito. Um pensamento ágil, saudável em meio a uma multidão sequelada.
"Primeiro me desfiguraram o corpo com prata, agora destroçam minha mente.
Alterado como estou, que vantagem pode haver em estar vivo?"
— Exatamente, Presa Fugaz, não há mais pelo que lutar e, não havendo urgência em
sobreviver, desvalorização alguma incide sobre a morte. Agora entre e venha logo ter
conosco. Enfim, façamo-nos entender.
Os olhos do lobo se adaptaram á escuridão com uma presteza inigualada pela
mente. Ele lamentou a divergência e nisso experimentava pela primeira vez a falta de
perspectiva e a aceitação fraca de quem vive uma vida de opressão.
A imagem do Tostado, do bom e velho Tostado, se formou lentamente nos campos
degenerados de sua consciência. Ali a regra em vigor ditava a existência de um única
imagem por vez. Atrelada à lentidão imagética, a unicidade intransponível da concepção
mais breve. Convertido em um ser de impressões singulares, lentas e sequenciais, Rítaro
sentiu cabalmente a escravidão. Primeiro adveio uma desesperança tristonha, porque só
conseguia se sentir triste por hora. Num salto desajeitado a tristeza deu lugar ao
sentimento de opressão, antepondo-se com pureza idêntica ao primeiro pensamento. Daí
em diante a opressão deixou-se estar, visto que nada urgia em substituí-la.
Ou, retifique-se, a opressão e as duas jovens de feição perfeitamente marmórea.
Aquela cuja voz indicava ser Justine rompeu o silêncio prometido à amante.
— Mato os inocentes, digo, os que existem sob essa caracterização subjetiva. Mato-os sem
temor e sem remorso, um após o outro. Já o fiz tantas e tantas vezes enquanto o Sr. virava
as costas ao mundo e meditava...
— Cale-se, Justine, por amor a mim ou ao mundo, cale-se! — Levi interrompeu com a
urgência dos que sofrem.
— ... E a todos esse inocentes nunca reduzi como o senhor reduziu essa, digo, essas
criaturas. É questão e momento propício para você, primevo espírito, rever os conceitos,
abandonar de vez essa justificativa esfarrapada de que tais conclusões são nascidas do
auge de sua existência, quando estava apto a mil vezes refletir uma mesma questão, apurar
as conclusões e fixar-se pela eternidade sobre a pedra fundamental do resultado.
— É hora de fazermos tão somente o que viermos fazer aqui, Justine! Ou sente o mais
derradeiro ódio por mim, ou um amor infundado por essas criaturas!?
— Sinto as duas coisas e uma terceira: amo-te a cima de tudo.
— Se é esse o caso, deixe-me respirar! Deixe logo que termine essa execução!
Justine cerrou os olhos, os cabelos absurdamente ruivos contrastavam em absoluta
sinergia preternatural com o restante de seu rosto.
— Deixe-me a sós um pouco, minha querida... Deixe minhas resposta bastarem nessa hora.
Sim, nesse derradeiro momento em que a vingança se cumpre, tudo que me sustenta são
as conclusões por quais me decidi quando havia em mim a maior clareza. É tudo que posso
ser por hora, nessa bendita hora em que preciso agir. Oh, essa velha pedra fundamental
sobre a qual escarras, ainda a vejo tão bela e verdadeira! Ainda enxergo nela tudo de bom
que pode haver de mim!
As sobrancelhas de Justine arquearam-se, os cílios tremeluziram, embora os olhos
estivessem destinados a se manter cerrados. Por certo que um pensamento cruel lhes
trespassava a mente felina. E que fosse uma dessas resoluções capaz de assassinar a fé no
compêndio de uma vida inteira ninguém deve duvidar. A desgraça de uma revolução bem
poderia estourar em seus miolos sobrenaturais: uma tempestade furiosa, de raios e
destruição. Em resposta a esse vislumbre de ódio e caos incontrolável, Justine agarrou-se a
um derradeiro sentimento de amor.
Pois que nela havia amor por Levi, sentimento daqueles tempos de mortalidade
quando acompanhara o mestre e progenitor em intermináveis viagens ao redor do mundo.
Cada novo cenário, um encantamento inédito para sua alma jovem; cada pedaço da
história de um continente narrada pelo companheiro imortal, um turbilhão de orgulho
borbulhante capaz de arrancar-lhe lágrimas. Poderia, por acaso, deixar de amar aquele ser
em sua interminável façanha de apresentar e explicar o mundo? Ensinara-lhe, ele, a poesia
de cada língua, os recônditos sutis das cultura; apresentara a arte dos desesperados e o
lazer despreocupado dos nascidos para morrer em riqueza; contara a história do mundo
desde as eras primevas, quando o planeta reduzia-se ao estoicismo das rochas. Tempos
primeiros onde os deuses nem sonhavam em nascer, tampouco as loucuras paridas no
espaço insano entre as estrelas suspeitavam da existência de um naco de terra apetecível a
seus deleites hediondos para com mundos de natureza e vida. Tempos primeiros em que
os espíritos primogênitos brotaram, raros e espaçados, das enormes e tempestuosas
tempestades de lava... Cada um, fundo de um sonho ou desejo abstrato da Gênesis.
Havia amor, a mera memória desses fatos justificaria uma eternidade de devoção a
Levi... Ao estúpido, incorrigível e estagnado Levi.
Retornando a seu Deus e mentor, ia a questionar a criatura feita estúpida, a nutrir a
ideia da purificar-se pelo apiedamento. Nenhum alteração naquilo que realmente
importaria no fim das contas: a morte, com ou sem dor, com ou sem apiedamento, morte.
Rítaro gaguejava uma justificativa sincera, embora patética, para o assassinato
cometido contra os sanguessugas.
— O mago me ofereceu a vida com que sempre sonhei: fodas e matança desenfreada.
Sequer cumpriu o prometido! Era degolar um escravo, um aleijado que fosse e o fodido
lançava o mundo sobre mim.
— Sexo e violência, isso foi todo o necessário para comprá-lo? — Levi arguia na
passividade de quem acata a explicação mais fortuita para os maiores mistérios.
— São as coisas que me dão prazer. — Ia Rítaro respondendo, a mente esforçando-se ao
máximo para elaborar a resposta. — É tudo que sempre quis e busquei mundo afora... Na
verdade, percebi tarde demais que não, que aquilo que sempre quis era algo além, algo
relacionado ao domínio, à admiração dos meus, dos meus... Pares.
— Nada de incomum e muito de louvável nisso. Então julgas ter errado o caminho?
Um sorriso bestificado, absurdamente grato, estampou o rosto do transmorfo e, ao
encará-lo, Justine teve a certeza exata: não suportaria por muito tempo tamanha
bestialidade. Levi só poderia estar biruta em ver alguma bondade naquele confissão
pautada em retardamento mental. Louco e, acima de louco, intoleravelmente hipócrita.
Por que diabos abrira ela os olhos para encarar a desgraçada criatura? Apenas para
sentir pena de sua humilhação? Ou culpa somente por deixar de lhe providenciar, no exato
instante, a piedade de uma morte rápida?
Foda-se! Bastava cerrar os olhos uma vez mais e implorar à sorte que o infeliz
estivesse morto quando os entreabrisse novamente.
Seguiu-se, na escuridão tumular do recinto, o descarrego da criatura.
— Acho agora que o que sempre quis era o amor de minha tribo. Era o amor que viria de
uma posição de liderança...
— E o que fez por isso?
— Rebelei-me, quebrei a fuça de uns filhos da puta... Eu tinha um quê de ódio na presa ou
na ponta da garra. Nasci assim, se para foder a quem amava, já não sei dizer.
— Fale-me do bruxo... — Solicitou Levi.
"Pelo amor de Deus, apenas leia a mente do miserável e dê fim a esse vexame!" —
Justine pensou, o ódio da situação pesando-lhe em medidas de abominável.
— O mago, bruxo é o usuário de magia corrompida e não seria o caso... Acho.
— A magia dos terrores espaciais?
— Desses mesmos.
— Sem problemas, fale sobre o mago.
— Ele pode estar lhe observando agora mesmo... Pelo que sei.
— Não se preocupe, provavelmente eu já teria percebido.
— É mesmo?
O corpo de Maya Black Stone acenou afirmativo.
— O que quer saber?
— Porque o mago quis que matasse uma de meu sangue.
— Matar? Ela não está morta...
Aqui um pesado impacto contra Levi, o espírito o exprimiu fazendo os olhos da
jovem que possuía se esbugalharem em incredulidade.
— Não?
— Não, ela não serviria morta... Como acha que Willie sobreviveu por, sei lá, duzentos e
tantos anos?
— Magia?
— Não, foi simplesmente sangue.
— Nosso sangue é incapaz de prolongar a vida de um mortal, não é assim que nossa
fisiologia funciona.
— É exatamente assim... Você não sabe? É um preparado secreto, leva sangue da vampira...
Estou certo que sim. Uma bela moça... Vinte e poucos para toda a eternidade. Quis fodê-la,
Willie nunca permitiu.
— Como ele a mantém cativa?
— Magia? Um crucifixo horrendo, ervas, remédios, agulhas e... Magia?
— Onde ela está.
— Em uma das casas maiores do latifúndio, nuns quartinhos subterrâneos. Só quem entra
e Willie e o Tostado, quero dizer, o escravo de confiança.
— E esse latifúndio, onde está?
— Quase tudo que não é Insanistka é de Willie.
— Essas casas, digo.
— Uma perto do Morro do Velho Gato, outro em Barrica Seca. E talvez...
— Talvez?
— Talvez esteja no Cisne Negro ou na Libertina, bordeis de luxo. Lembro que uma vez foi
mandada, a vampira, para um lugar seguido do outro. Eram os tempos da experiências...
— É um montante de merda imensurável, tanta que vai acabar nos confundindo! — Justine
exclamou, rompendo o silêncio que mantivera, embora recusar-se, ainda, a abrir os olhos.
— Despache-o agora, pelo amor dos deuses, como dizem os mortais! Já vi sua mente de
cabo a rabo. A chance maior é de encontrarmos Margaret no Morro do Velho Gato.
Seu erro foi dar por certo que Levi não impeliria de encontro a ela uma reação
violenta. Raro seu mentor perdia o controle, de modo que sua ordinária tranquilidade
assumira, para a desprevenida Justine, a solidez do factual. Contrapontos verbais eram
esperados. Um esgar de ódio acompanhado de violência física, contudo, eram feitos de
pouca ou nenhuma previsibilidade. Eis o que se passou em poucas linhas: o espírito valeu-
se das mãozinhas enluvadas da jovem hospedeira para lançar, num safanão de força
preternatural, Justine fora da carruagem. Nem teve a moçoila tempo de compreender o
que lhe acontecera; viu-se, no instante seguinte, lançada ao chão sobre a portinhola
metálica, brutalmente arrancada pelo impacto.
— Que diabos, Leviathan! O que pensa que está fazendo!?
— Desapareça antes que pense em algo pior! — Proclamou Levi, penava para disfarçar
algum resquício de calma e racionalidade. — Por hora, considero-a de todo insuportável e
nada além disso!
— Um arroubou de fúria seu, do estoico e imperturbável filósofo, e lança toda o vigor de
uma eternidade sobre mim! Eu, a quem o senhor adora nomear de criança, neófita ou
qualquer outro nome que traga a sensação de superioridade!
A essa resposta, Levi, em corpo de Maya, ergue-se; o corpo delgado, a pose altiva, a
forma esbelta, tudo indicava perigo.
— Uma palavra sua é o que pode bastar para que eu irrompa em fúria. Não permita que ela
transborde, não deixe que nela te afogue! Ao revés, desapareça, Justine Black Stone, antes
que eu mesma tenha que providenciar isso!
Uma coisa Justine percebeu antes de se entranhar na vegetação seca: a
concordância do adjetivo 'mesma'. Tal pequenez indicaria a participação de Maya? E,
sendo assim, quem agira para lançá-la rudemente fora da carruagem? Ora, que Leviathan
sempre estivera ali, isso até se eximia de questionar... A questão se resumia a como a
entidade se deixava influenciar pela detestável hospedeira.
A tal questionamento Justine interpôs um severo foda-se. Pois bem, fosse quem
fosse estava cansada da dupla Maya/Levi, terrivelmente estafada com todo aquele código
moral que os dois compartilhavam, Maya carregando no juízo a porcaria da humanidade,
aquela famigerada humanidade no tocante a qual se impedia de abandonar com a urgência
de seu autocontrole. Um século no sangue e ainda bafejava babaquices como direito à vida,
dignidade dos seres e merdas a fim. Pior é que Levi comprava, porque sempre comprou e
era até bem provável ser ele o primeiro a vender tais ideias mundo a fora. Pois bem, pois
bem que dessas masturbações mentais, dessa miríade de pequenas regras no viver e no
agir, toda essa volumosa merda a atuar em detrimento de seu carpe diem!
E pensar que Levi, do alto de sua estúpida intelectualidade, a recriminara por
conservar, no sangue, uma filosofia de vida fundamentada na mortalidade. Como parecia
boçal com o dedo enriste! Um imbecil com pretensões de fama defronte a um público
imaginário, verbalizando o porquê do que e quanto que há na medida em que sua
discípula estaria errada. Hediondamente errado, por fim, ao orientar-se em contrariedade
a um denominado epicurismo.
"Abandone o que lhe permiti e mesmo semeie no decorrer da mortalidade. O que
permiti, assim o fiz porque a amei quando viva até mais do que posso amá-la na morte.
Como não se goza da faculdade de produzir efeitos substanciais sobre a coletividade dos
seres e das coisas na vida-breve e, não obstante, é alcançável em seu curto perseverar um
gozo pelo belo e pelo sofisticado equiparável à fruição dos seres superiores, desaguamos
na certeza de que todo e qualquer recurso deve ser dispensado para tanto: não há luxo em
demasia para aquele que definha e morre. O prejuízo na objetividade fica, em todo o
imaginário, aquém do lucro auferido na subjetividade do ser." — Assim explicara Levi
porque aos mortais toda extravagância é pouca, ao passo que, ao expandir o corpo à
eternidade, a existência se alça (simples e naturalmente, um dogma) ao panteão da mais
inescrutável responsabilidade.
Saltando ágil sobre a vegetação rasteira, mastigando milhas de deserto com o
tresloucar dos que se acreditam irremediavelmente traídos e descartados e, ainda,
berrando multidões de 'foda-se' — visto como dela se desprendia algum princípio
ultrajado de liberdade — Justine Black Stone desapareceu dessa narrativa rumo a destino
ignorado...
De volta ao trio restante, tem-se uma dupla impossível, aquela reclusa num único
corpo, contemplando a possibilidade de poupar a vida do infeliz Rítaro...
"Pois que aos mortais pouco há de restrito".
Ou a cabal possibilidade de exterminar o homem morto por seus crimes.
"Considerando a responsabilidade para com os da nossa espécie".
Era uma concepção, uma verdade (mas não uma regra) a constranger uma
responsabilidade intersubjetiva entre a semidesperta Maya e seu mentor Levi. Não era
uma regra, já o disse, nada ali testemunhava contra a ética: mortais podiam ser
assassinados por sua mãos e, aliás, o foram por incontáveis vezes.
A questão toda é que apreciava o protocolo do assassinato, o qual lhe fora negado
pela impaciência injustificada, a birra infantil de Justine.
A tentativa de retomar a coisa lhe soava um abuso. De que servia se o encanto
estava morto? Justine riria de sua cara, riria em sua cara no caso de escutar tais palavras.
Aquela aura de justiça que o tomava quando detinha o senso do indubitável estava
irremediavelmente morta.
De outro ângulo, ignorava, possivelmente outro resultado do fator Justine, a maior
revelação da noite: ELA estava viva.
Margaret DulGarden Stone ainda habitava a dimensão material. Por quais
mutilações o mago a submetera, a que sofrimentos fora submetida nesse entretempo e a
troco de que? Essa última questão já fora sanada e, ainda assim, recusava-se a fugir de suas
contemplações. Havia nela o dissabor do medíocre, de uma constatação que partia, mas
insistia em retornar à consciência com a contusão de um porrete.
— Que mesquinharia, que desproporcionalidade em fazê-la sofrer por desígnio miserê: a
mera vontade de permanecer vivo. — Sussurrou entredentes.
A besta, nada agitada com seu traseiro metido no sofá, não dispunha da
inteligência social para detectar a impaciência de sua interlocutora, isto é, deixara de
dispor desse tipo de inteligência e de uma bateria de outras. Por conseguinte, deixou-se
estar no banco, contemplando bestificada o espaço vazio deixado por Justine Black. Deve
ter demorado algo entre um e dois minutos até que a jovem a sua frente retornasse sua
atenção à Rítaro e, quando o fez, tinha no semblante a urgência e a sofreguidão do pássaro
que percebe a ausência dos filhotes no retorno ao ninho.
— Estou com um problema aqui. A solução é quase certa e a dificuldade reside por inteira
na abordagem que estou prestes a tomar...
— Do que a senhorita fala? — Arguiu o homem lobo, longe de notar que o tal problema,
tanto quanto a solução, dizia a seu respeito.
— Imagine que preciso me livrar de um indivíduo, embora desejasse recorrer a um
método eticamente correto para com a criatura senciente. Imagine agora que um evento
imprevisível se interpôs a essa minha intenção de mitigar o sofrimento do condenado...
— É muita aeragem para pouca bosta! Acabe logo com o miserável! — Rítaro sussurrou
um tanto atônito. Nem uma sombra em sua mente a indicar que acabara de determinar a
própria execução.
Leviathan desvelou alguma justiça em extirpar a vida do indivíduo em consoante
ao conselho do próprio indivíduo. Não pelo que nisso haveria de tragicômico ou agridoce,
e sim porque seu ato refletia certeiro a conduta frequente vezes adotada pelo lobisomem
quando adiante de suas vítimas.
Seu ato foi simples e até de alguma ternura, se é que pode haver alguma ternura
num assassinato. Enfim, penetrara o indicador no intervalo entre os olhos do lupino. O
dedo em riste adentrou o crânio como o faria em uma porção de manteiga.
No instante seguinte, Rítaro jazia morto.

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