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Sul do Brasil, 1810

Prisciliana é a filha de um senhor de engenho, e vive sua vida pacata


cercada pelos familiares e escravos que são propriedade de seu pai.
Envolvida pelas doces palavras de um vizinho, ela não imagina que o
destino lhe preparara não apenas uma decepção, mas também uma
surpresa maravilhosa. Miguel, o jovem lisboeta, é quem leva Prisciliana
a desejar o amor, e depois, descobri-lo em outro homem.
O Sr. Francisco, cruel feitor de escravos, surge na vida de ambos, e sem
saber, Prisciliana passa a debater-se em dúvidas. Pois tanto quanto a
repulsa, Francisco também lhe provoca estranhos sentimentos,
pensamentos e desejos. Qual desses homens trará a verdadeira
felicidade para o coração apático e sofrido de Prisciliana? Ela poderia
entregar-se de corpo e alma a Miguel? Ou teria o maligno Francisco
algum tipo de magia em seu poder, para fazê-la pensar nele de maneira
tão obsessiva?
CAPITULO I

Meu amor impossível


Eu sou, na dor que me avassala,
O transeunte perdido na tormenta,
O vento ulula, a chuva açoita, o raio estala,

E não há uma janela aberta,


E não há uma porta amiga, um cálido refúgio
Que me acolha e aqueça, que me distraia e console
Do rigor da tormenta.

O único refúgio serias tu, e tu estás para além da muralha intransponível


Que marca os limites do possível.

Helena Kolody, “Canto do amor impossível”

Brasil, província de Santa Catarina, 1810

DONA MARIA de Sá Taques ergueu os olhos das teclas do piano para a


janela, aberta à sua frente. Lá fora, o verde intenso das matas chegava a
doer nos olhos, e uma brisa levemente perfumada, com toques doces
cheirando a ervas e flores, chegou-lhe às narinas, despertando-lhe certa
euforia. Aquela natureza tão exuberante era-lhe quase um bálsamo, em
seus momentos de dor ou tristeza. Entretanto, hoje ela estava calma, apesar
de um pouco preocupada com a família. Pensava, principalmente, na filha.

Ela voltou novamente os olhos para o piano e recomeçou a tocar,


embora o pensamento continuasse na filha. Prisciliana, era o nome da sua
menina. Menina? Não, hoje em dia já uma mulher, uma bela mulher! Ela
sorria para sim mesma. Uma jovem de vinte anos! Como o tempo passava,
ainda ontem ela – Maria – é que tinha sido uma moçoila, quem brincava e
passeava pelos jardins da casa-grande, quem pensara em namorados. E
hoje, hoje. Estava se sentindo tão velha! Aos 47 anos, uma mulher já
pensava nos netos. Por que o tempo para as mulheres parecia transcorrer
de outro jeito que para os homens?
Ela pensou no marido, Horácio Taques, descendente de um grande
fidalgo português de mesmo sobrenome.
Horácio era o senhor do Engenho Estrela de Sant’Ana, que herdara
de seu pai, o engenho[1] onde moravam. Era um homem envelhecido,
embora tivesse apenas 55 anos. Tinha um rosto austero, amorenado por
causa do sol, olhos fundos, negros e frios. Os cabelos escuros já estavam
bastante grisalhos, e ele tinha um queixo forte, quadrado, maxilares
salientes e uma boca fina, quase sempre fechada e séria. Não era um
homem muito dado a sorrisos e alegrias.
Cuidava do engenho, dos serviçais e dos escravos com mão de ferro.
Era impiedoso, muitas vezes cruel quando alguém o desagradava ou
quando os escravos mostravam alguma rebeldia.
Dona Maria lamentava que ele fosse assim... Porque ela, apesar de
tudo, estava já acostumada, mas a filha... Prisciliana sofria muito com o
temperamento seco e severo do pai.
Naquele exato momento, a porta da sala abriu-se. Um frufru suave
de sedas e logo ela ouviu a voz cálida de Prisciliana.
— Mamãe! Continue! Está tão bonito.
— Ah, querida – Dona Maria sorriu e fechou o piano. – Desculpa,
mas acho que já está na hora de ir até a cozinha. Ver como vai o almoço.
Daqui a pouquinho teu pai chega, e se a Bá Velha tiver deixado o feijão
duro, como da outra vez.
Prisciliana baixou os olhos. Lembrava-se muito bem como tinha
sido, da última vez... Senhor Horácio tinha ficado enfurecido com a
cozinheira, e a pobre acabara por levar toda a culpa. Afinal, ela quase fora
levada para o tronco[2], por conta de um simples descuido. E D. Maria
também acabara levando uma severíssima reprimenda do marido, como se
fosse simples serviçal da casa, e não a Senhora D. Maria de Sá Taques.
— Entendo, mãe. É bom estar sempre atenta a tudo, não? Meu pai
não tolera o menor descuido.
Dona Maria sorriu tristemente para a filha.
— É assim, minha filha. A vida das mulheres é essa mesma. Quando
somos jovens, temos de obedecer nossos pais. Mais tarde, nossos maridos.
A senhora suspirou e deixou a sala.
Prisciliana mordeu o lábio e foi até a janela, de onde se descortinava
um panorama rústico e agreste do engenho.
Ao longe, viu a casa da moenda do açúcar. Ao lado, outras
edificações, onde o açúcar era purificado, para depois se cristalizar. Uma
grande pradaria estendia-se até essas construções, e mais ao longe, a
plantação verde-clara de cana-de-açúcar. Mais longe ainda, as matas que se
estendiam por infindáveis alqueires de terras. Ela sabia que era muito, mas
não sabia o quanto exatamente. Sabia apenas que seu pai era um homem
muito rico.
Ela não conseguia sorrir, quando pensava em seu pai. Sentia-se
quase como um daqueles negros escravos do eito, que viviam sob a chibata
do feitor[3], sem direito a nada. Mas, ah, o que ela estava pensando? Que
loucura! Como podia ser capaz de comparar a sua falta de liberdade com a
deles, pobres criaturas? Eles não tinham o alimento que ela tinha.
Alimentavam-se mal, vestiam-se de trapos, apanhavam por qualquer
motivo. Ela deveria envergonhar-se desse pensamento, conforme diria o
Padre Freitas. Ela tinha tudo! Filha de um rico senhor de engenho, tinha
conforto, educação, segurança, tinha. Sim, sua mãe. Sua querida mãe, que
lhe valia mais do que tudo.
Mas alguma coisa ainda lhe faltava. Ela não sabia o que seria,
exatamente. Ou sabia? Claro, claro que sim. Mas envergonhava-se desse
pensamento. Era uma moça de família. Não era decente ficar pensando em
amores. “Prisciliana, uma moça decente não ergue os olhos para um
homem desconhecido. Comporte-se, rapariga.” Parecia ouvir a voz de seu
pai.
Tivera alguma instrução, ministrada pelos padres e por sua própria
mãe: Sabia ler e escrever, bordar, costurar e tocar piano. Também se
orgulhava de compor alguns versos, que aprendera lendo muito...
Apreciava Camões, sobretudo seus versos que contavam a triste história de
Inês de Castro e Dom Pedro. Inês, ‘a que depois de morta, foi rainha’. Ás
vezes, Prisciliana chorava quando lia e relia estes versos.
Às vezes, quando era noite de luar, ela debruçava-se à sua janela,
apoiava o queixo nas mãos e suspirava, sonhando com alguma coisa
impalpável, com alguma realidade que tivesse um gosto de magia e que lhe
trouxesse algo diferente daquilo a que se acostumara, no engenho e na Vila
de Sant’Ana, onde morava. Algo diferente da sua vida pacata, insossa e de
certa forma, tristonha.
Não gostava do que presenciava entre os escravos, do tratamento
que recebiam, da vida infeliz que levavam. Não gostava da crueldade
demonstrada por seu pai, pelo feitor e pelos capatazes. Não gostava dos
trabalhadores brancos do engenho: Eram todos grosseiros, tinham um jeito
estranho de olhar meio de esguelha. Trajavam-se mal e seu odor lembrava
uma mistura de esterco, suor e urina.
Às vezes, preferia a companhia dos negros, à dessa gente que
recebia salário. Os negros, ao menos, demonstravam uma subserviência,
uma humildade tamanha, que ela tinha-lhes pena.
Resolveu sair um pouco, o ar dentro da casa-grande parecia sufocá-
la.
Arrebanhou as saias e saiu rápido da sala, indo atrás de Cândida,
sua mucama. Mas a escrava não estava na cozinha, onde costumava ficar,
ajudando a Bá Velha com os afazeres domésticos.
— A Candinha? Ai, Sinhá, ela saiu com as outras molecas, a pedido
da Sinhá Maria. Foi buscar uns franguinhos para o almoço... nhazinha quer
sair?
— É, Bá. Eu queria passear um pouco. Ainda é tão cedo, não é? A
manhã está tão bonita. Eu gostaria de aspirar um pouco de ar puro, fazer
um pouco de exercício. — Ela ergueu subitamente o rosto, encarando o
rosto luzidio da Bá, surpresa.
Ora, ela não sabia exatamente por que estava dando explicações
para a velha escrava. Que bobagem, pensou. Mas sorriu da surpresa da sua
velha amiga.
— Eu vou sozinha.
Disse, enquanto voltava-se para a porta. Bá Velha sorriu, um ar
enigmático no rosto suado. E meneou a cabeça, como se soubesse
exatamente o que se passava pela mente da Nhazinha.

Prisciliana pensou em montar, mas lembrou-se que não seria


prático, já que teria de trocar suas saias por uma roupa apropriada, e que
seu pai não aprovava esses “modismos franceses e ingleses” que tiravam a
“feminilidade” das mulheres.
Apanhou sua sombrinha rosa-pêssego – que combinava com seu
vestido da mesma cor – e colocou o chapeuzinho que a protegeria do sol.
Esperava não encontrar seu pai, nem nenhum dos capatazes.
Caminhou um tanto temerosa, tomando a direção dos pomares,
afastando-se o mais rápido que pôde da vista dos agregados.
Quando ela finalmente lançou a última vista d’olhos para trás e
certificou-se de que ninguém a via, suspirou de alívio e continuou
caminhando, mais calma.
Tomou a direção das macieiras, que àquela época, estavam
florescendo. Ela aspirou o suave perfume e pensou na sua vida. Sonhava.
Sonhava com uma vida diferente, cheia de emoções, cheia de desafios, de
romantismo. Sonhava com...
Ela corou. Mas sorriu. Um homem. Por que não? Ela já o conhecera.
Miguel Gonçalves. Era português, um jovem “aventureiro”, como dissera
seu pai. Chegara na Vila de Santana há pouco tempo, “tentar a vida cá no
Brasil”, como ele mesmo dissera.
Era um rapaz alto, aproximadamente trinta anos, com um rosto
anguloso, nariz reto, olhos azuis muito profundos. Ah! Aqueles olhos
pareciam falar tanto. Prisciliana sorria sozinha, pensando naqueles olhos
abissais, cheios de um brilho diferente. Falavam. Aqueles olhos falavam
mais do que as palavras que ele lhe dissera, meio a medo, entre tímido e
assustado com o ar feroz de Senhor Horácio.
Sim, os olhos de Miguel falavam muito mais que as palavras.
Falavam de um país distante, de onde vieram os ancestrais dela também,
mas desconhecido por inteiro. Falavam de guerras, de batalhas, de viagens
por mares estranhos. Falavam de aventuras entre marinheiros brutais, de
tempestades, de luta pela vida. Falavam de sonhos, de desejos. Ah, como
esse homem devia desejar encontrar a felicidade aqui, no Brasil. Pelo pouco
que ele conversou com Senhor Horácio, e pelo muito que Prisciliana pode
ler-lhe nos olhos, o único desejo dele era estabelecer-se aqui e encontrar
sua felicidade.
E como seus olhos encontraram os dela, com uma espécie de
admiração mista de temor, respeito e...
Prisciliana não conseguia deixar de pensar nele, desde o dia em que
ele pusera os pés no engenho. Entretanto, sabia que era impossível. Miguel
não tinha posses, estava trabalhando numa fazenda próxima, como
administrador. Seu único bem foi a recomendação que trouxera de Lisboa,
de um fidalgo muito conhecido no reino e nas colônias. E graças a essa
recomendação, conseguira o trabalho.
Enquanto caminhava assim, envolvida por seus pensamentos,
Prisciliana não se deu conta de que alguém mais caminhava próximo, um
vulto alto, sombrio, semi-oculto pelas árvores.
Ela sorria para si mesma, dos seus pensamentos, sem se aperceber
de que alguém ali perto a observava.
E ela só se deu conta do quanto já estava longe da casa-grande,
quando um vulto alto surgiu à sua frente, assustando-a a ponto de fazê-la
sufocar um grito.
Ela tropeçou e cairia, se não fosse ajudada por ele.
— Toma cuidado, Sinhazinha.
O homem à sua frente sorriu, mas era um sorriso sombrio, que lhe
acentuava as pequenas rugas em torno dos olhos castanhos e maliciosos.
Era também muito alto e pesado, vestindo calças de tecido grosseiro,
camisa listrada, colete de couro e botas, também de couro. Tinha um porte
altivo, embora estivesse vestido com uma rusticidade quase selvagem.
Tratava-se de Francisco Leme, o feitor.
— Oh, senhor Francisco! O senhor me assustou!
— Desculpe, Sinhá Prisciliana – ele falou, numa espécie de
resmungo.
Por mais que tentasse demonstrar educação, ele sempre soava algo
falso, como se lhe custasse muito manter certo nível na conversação.
Acostumado como estava, pensou ela, a tratar com os negros, devia-lhe ser
difícil segurar a língua e não falar grosserias e blasfêmias.
— Mas Sinhá está caminhando sozinha por estas paragens. Pode ser
perigoso, vosmecê sabia disso?
— Sim, eu... — Ela estava confusa e um pouco envergonhada de
estar ali sozinha, diante daquele homem rústico.
Francisco olhava para ela de um modo estranho, os olhos
semicerrados, um meio sorriso nos lábios finos. O chapelão de couro caía-
lhe um pouco sobre a testa, lançando sombras em seus olhos, mas ela pôde
ver que tinham um brilho ferino. Aquela criatura lembrava-lhe uma onça
pintada, prestes a lançar-se sobre um animalzinho indefeso. E aquele brilho
nos olhos dele. O que significaria aquilo? Estaria a pensar mal dela?
Ela retraiu-se, incomodada por aquela presença máscula e sombria.
Dele vinha um leve odor de fumo e suor, que a incomodava ainda mais.
— Eu só estava passeando, Sr. Francisco.
— Estou vendo. – Ele resmungou, sem despregar dela os olhos
fundos e estranhos. – A sinhazinha esqueceu a mucama, foi?
—Não! Eu vim porque quis passear sozinha. Cândida estava
ocupada.
Ela franziu a testa.
— Estou muito bem, agradecida. Por que vosmecê não volta para
seus afazeres?
Ele sorriu de novo, enquanto parecia tentar embromá-la com sua
conversa fiada.
— Tem certeza que não carece de ajuda, não?
— Absoluta! – Ela respondeu, irritada, e pondo-se a caminhar, sem
olhar para ele.
Estava nervosa, e mais nervosa ainda ficou, quando parou uma
dezena de passos adiante, e lançou um olhar para trás. O feitor ainda estava
lá, olhando-a do mesmo jeito. O que aquele homem pensava? Que
despudorado!
Prisciliana corou até a raiz dos cabelos. Não gostava daquele
homem, e o principal motivo era justamente a ocupação dele. Maltratar
pessoas não era algo que pudesse atrair a simpatia de quem quer que fosse,
muito menos a dela. E Francisco Leme, como todos os feitores de que ela
tivera conhecimento, não passava de um abrutalhado, uma fera com
aparência humana. Ela jamais compreenderia esta faceta da alma humana,
se é que se poderia dizer que um homem daqueles tivesse ‘alma’, e menos
ainda, ‘humana’. Mas o Padre Freitas sempre lhe dissera que Deus criara a
tudo, a todos. Até o demônio fora criado por Ele, assim certamente
Francisco Leme era um ser humano criado por Deus, mas que devia dar
muito desgosto a Ele.
Ela estava com o rosto afogueado de vergonha, nervosismo e medo.
Medo? Por que deveria estar com medo? Estava nas terras de seu pai, nas
suas terras! Mesmo assim, um pressentimento estranho pareceu nascer do
fundo de sua alma, um terror sem motivo, uma intuição ruim e ao mesmo
tempo, uma excitação louca, vontade de gritar, de correr. Ela nem sabia
exatamente de quê, mas era algo que bulia com suas entranhas, com seu
coração e seu corpo.
Parou ao chegar no final do pequeno bosque, que ficava atrás do
pomar. Adiante dela, um pequeno riacho corria, sereno, luzindo como uma
fita de prata aos raios de sol.
Ela pensou de novo em Miguel.
Sentou-se à beira do riacho, e esticou as pernas, para relaxar um
pouco da caminhada. Fechou a sombrinha, deixando-a do lado, pois estava
à sombra de uma grande árvore de ipês[4] roxos.
Voltou-se e olhou novamente para trás, mas não viu mais o vulto
maciço e sombrio do feitor, para seu alívio.
— Graças à minha Nossa Senhora! – Ela murmurou, sorrindo.
Agora podia respirar melhor. Ah, se sua vida fosse assim, sempre.
Como naqueles breves momentos ali, diante do riacho, ouvindo a cantoria
alvoroçada dos pássaros na mata, sentindo os raios quentes do sol na sua
pele tão branca, despreocupada, tranqüila, sem pensar em seu pai, sem
pensar nos escravos lá, ao longe e sem pensar na vida retirada e severa de
sua mãe. Se ao menos seu pai não fosse tão intransigente.
Ela recostou-se contra a árvore e fechou os olhos, pensando mais
uma vez em Miguel. Haveria alguma chance para ele?
Ela fechou os olhos, tentando acreditar que sim, que sua vida
poderia transformar-se como num passe de mágica, e que um galante
cavaleiro, vestido com um gibão de couro, camisa púrpura com bordados
de seda, olhos azuis como um céu primaveril, iria chegar e salvá-la.
Minutos depois, levantava-se, tomava sua sombrinha e rumava
outra vez para a casa-grande, com certa esperança no coração, embora essa
fosse toldada pela sombra de um negro e dolorido pressentimento.
CAPÍTULO DOIS

Francisco Leme, o feitor, caminhava de volta para seu trabalho. Caminhava


lentamente, e tinha o cenho franzido, os olhos semicerrados, apertados,
uma expressão enigmática nos olhos.
Quando chegou próximo das plantações, ouviu os ruídos habituais
da moenda, ruído dos animais, as vozes de alguns escravos domésticos que
faziam o serviço lá fora.
Quando se aproximava das plantações, viu Mariano, um agregado,
vir em sua direção. Trazia na mão uma chibata e no rosto, uma expressão
irritada.
— Seu Francisco, é de novo o bicho ruim do Crispim. O danado do
negro não consegue trabalhar.
Francisco apertou os lábios, indignado.
— Não consegue? Como, não consegue? O que é que tem o diacho do
negro, agora?
— Sei não, seu Francisco – Os olhos do outro demonstraram um
certo receio. – Mas ele diz que o mundo está girando em redor dele, que
não consegue parar em pé, que quando fica em pé, sente que vai cair, e cai
mesmo, o desgramado já apanhou por demais, mas não adianta, não sinhô.
— Ah, é assim?
Francisco tomou a chibata das mãos do outro.

— Vamos ver. Tenho aqui um remédio


muito do bom, pra esses dengos de negro. Quero ver se ele fica de pé ou
não fica.
Quando Francisco voltou-se para ir ver o negro, Mariano redargüiu:
— Seu Francisco, faz isso não.
O feitor olhou para o outro, com um ar feroz, mostrando os dentes.
— O que vosmecê disse?
— É que o miseráve do negro tá me parecendo muito mal, mesmo.
Sei não, seu Francisco. Mas acho que o pobre diabo vai batê as bota[5].
Francisco replicou, elevando a voz:
— Deixe de melindres, homem! Negro é um bicho malicioso! Com
eles, é só no açoite. Vosmecê vai assuntar os outros que estão no eito, que
vou ver esse traste do Crispim.
Quando Francisco deu as costas ao Mariano, uma negrinha esguia,
de vestido florido, olhou assustada para ele, enquanto ajudava outros
negros a carregarem alguns frangos, para a casa-grande. E comentou com a
escrava que caminhava ao seu lado:
— Vosmecê escutou, Chica?
— Escutá o quê? – A outra olhou-a surpresa.
— O feitor, o mardito do sinhô Francisco. Eu escutei muito bem
quando ele falou no nome do Crispim. Os dois desgramados estavam
falando do Crispim! Do meu irmão, Chica. Meu irmão! Ele tá doente, eu bem
vi, outro dia e agora, inda por riba, ele vai apanhá de novo.
— Arre, Candinha. É melhor procê e pra todos nóis, vosmecê ficá
quieta no teu canto. Se não, quem vai pro tronco é vosmecê, junto com o
Crispim.
Candinha, entretanto, não poderia esquecer aquilo.
Assim que chegou à casa-grande, foi procurar pela Sinhazinha.
A moça estava ajudando Dona Maria pôr a mesa para o almoço, mas
percebeu o jeito aflito da mucama.
— Olá, Candinha! Por onde tens andado?
— Eu fui cuidar das galinhas, minha sinhá.
— Então agora vem aqui, menina e ajuda-nos com esses pratos –
disse Prisciliana.
A mucama apressou-se a distribuir a louça pela mesa, com as mãos
trêmulas. Prisciliana percebeu aquilo e inquiriu, docemente:
— O quê aconteceu contigo?
— Sinhá, é meu irmão, Crispim.
Dona Maria franziu a testa. Voltou para a mucama um olhar severo:
— O que tem teu irmão, moleca?
— A sinhá Maria me adescurpe, mas eu ouvi o feitor Francisco
dizendo que ia surrar meu irmão de novo e ele está adoentado, sinhá.
Dona Maria levantou uma sobrancelha, um pouco pressurosa.
Depois, continuou dispondo os talheres na mesa.
— É mesmo? Mas esses assuntos são lá com meu esposo, o Senhor
Horácio. Que podemos fazer, menina?
Prisciliana interveio, preocupada como sempre:
— Candinha, teu irmão está doente? O quê tem ele?
— Sei não, sinhazinha. Mais os outros me contaram que ele não
consegue nem ficá em pé, anda tonto, fraco, parece mandinga que fizeram,
mas quem ia fazer mandinga logo pro Crispim, um homem ajuizado? Pra
mim, sinhá, ele tá é com banzo[6], triste e adoentado por causa das surra do
feitor.
— Minha mãe – Prisciliana olhou para a mãe, uma expressão súplice
nos olhos castanhos. – Será que a senhora poderia intervir? Afinal, Crispim
é irmão de Candinha. E ela é minha mucama, e...
— Filha!
Dona Maria parou de arrumar a louça e fitou a filha com tristeza.
— Sabes bem que não posso intervir nesses assuntos. Teu pai me
reprovaria se o fizesse. Os escravos domésticos são minha
responsabilidade, mas os do eito... Não posso. Embora eu talvez pudesse
pedir ao Sr. Francisco.
Mas Dona Maria suspirou e meneou a cabeça.
— Não, não posso. Sabes como teu pai é irredutível. Ele jamais me
perdoaria uma intromissão nos assuntos do engenho. E ademais, Sr.
Francisco não me ouviria. Ele só acataria uma ordem de teu pai.
— Então meu irmão vai morrer, sinhá — Tornou Candinha,
sufocando os soluços. Eu sei bem como ele fica, quando o feitor surra ele.
Prisciliana começou a mordiscar as unhas, pensando em resolver
aquele caso.
— Não é possível isso, minha mãe! Como é possível que seres
humanos sejam tratados desse jeito?! São seres humanos! Não animais!
— Eu entendo tua revolta, Prisciliana – a mãe tentou acalmá-la.
Também tinha sido como a jovem, quando se casara. Uma moça delicada,
de boa índole, preocupada com o bem de todos, fossem brancos, negros ou
bugres. Sua família costumava dizer que “negros e índios” não eram bem
seres “humanos”, mas algo intermediário, mais para animais. Dona Maria
jamais tolerara aquela ideia. – Filha, eu entendo que estejas tão preocupada
com o bem estar dos escravos, mas procura compreender, nós nada
podemos contra essa situação. Quanto mais nos revoltarmos, tanto pior
será para nós mesmas! Quem sabe um dia alguém, algum homem de boa
alma, resolva por um ponto final na escravidão. Mas nós hoje nada
podemos.
— Pois eu não me conformo! – Reclamou Prisciliana.
E saiu correndo da sala para o seu quarto, sendo logo seguida pela
mucama, que esfregava os olhos sem parar.
Prisciliana ficou por mais de uma hora deitada em sua cama,
pedindo para Candinha que a deixasse só. Estava triste, de uma tristeza
profunda, incompreensível, abismal. Não sabia exatamente do quê
provinha aquela dor, mas sabia que era algo ligado ao sofrimento alheio.
Sabia o que era injusto, embora todos lhe dissessem o contrário, embora
seu pai falasse com sua retórica perfeita e apurada por anos de leitura e
conversas com outros senhores de engenho, embora sua mãe tentasse
acalmá-la, embora seus parentes e amigos dissessem que era normal: Pois
que alguns seres nasciam inferiores aos outros – apesar de tudo isso, ela
tinha certeza que havia injustiça naquela filosofia.
Não era possível. Ela ali estava, saudável, perfeita, gozando do
conforto e da felicidade de uma família unida e próspera. E aquele pobre
escravo lá fora, sofrendo os horrores da tortura e da humilhação, por quê...?
Porque nascera com a pele escura. Absurdo!
Depois de uma hora inteira trancada no quarto, recusou-se a
almoçar, quando a vieram chamar. E levantou-se, afinal da cama, decidida a
fazer alguma coisa.
Sabia que a essas alturas, Sr. Horácio já devia estar deitado, fazendo
a sesta e sua mãe estaria na cozinha ou bordando, na sala.
Ela abriu a porta do quarto e saiu silenciosamente, procurando a
porta dos fundos.
Candinha a viu no pátio, assim que ela saiu e veio correndo ao seu
encontro, toda afogueada.
— Nhazinha! Vai sair?
— Fale baixo, Cândida. Se quiser, pode vir comigo, mas sem fazer
barulho.
— Onde, Nhá?
— Vamos ver Crispim.
A mucama arregalou os olhos, que pareciam duas jabuticabas e
tapou a boca com as mãos.
— Mas...
— Silêncio! – Ela pediu.
— Onde ele está?
— Na senzala[7], Nhá, eu acho.
As duas se esgueiraram o mais rápido que puderam através das
árvores do jardim, tomando cuidado para não chamarem a atenção dos
empregados brancos do engenho. Depois de contornarem a casa-grande,
aproximaram-se das construções que ficavam mais ao fundo, sendo que a
senzala era última delas, uma espécie de galpão feito de taipa, com uma
porta muito grande, onde os negros dormiam mais ou menos amontoados,
sobre palha.
Um ou dois agregados viram a Sinhazinha, mas se limitaram a
observá-la de longe, com olhos curiosos.
Prisciliana apressou o passo, e chegou à porta da senzala. Ali, havia
um odor desagradável que quase a fez recuar.
— É assim mesmo, Nhá. É muito sujo aqui – explicou Candinha.
— Eu nunca tinha vindo aqui, mas imaginava disse ela, adiantando-
se.
Entrou. Lá dentro, reinava um silêncio morno, uma escuridão
cortada apenas por réstias finas de sol que entravam pelos vãos das
paredes. Mas num dos cantos, havia dois vultos.
Assim que seus olhos se acostumaram à obscuridade, ela conseguiu
enxergar: Alguém estava caído no chão, provavelmente o escravo Crispim,
enquanto diante dele, o chicote em punho, estava o feitor Francisco.
Ela nada disse, mas ficou observando. Candinha, ao seu lado, parecia
querer explodir de tanta aflição. Tinha a mão sobre o peito, e o olhar
desesperado de medo.
O feitor ergueu o pé direito e colocou-o sobre o dorso do negro, que
estava no chão. Então disse:
— E agora, negro? Como vai? Levanta ou não levanta?
Crispim nada disse. Prisciliana apurou os ouvidos, e para seu alívio,
ouviu ainda a respiração opressa e cansada do escravo. Por um instante,
temeu que ele estivesse morto, ou morrendo.
— Não levanta, heim?
Francisco ergueu a chibata. Prisciliana não conseguiu intervir, mas
fechou os olhos a tempo de não ver a crueldade, mas pode ouvir o estalo do
couro nas costas nuas. O negro emitiu um gemido baixo, entrecortado de
soluços. Ao seu lado, Candinha estava quase louca de desespero.
Ela resolveu-se e adentrou a senzala, quase correndo.
— Pare, Sr. Francisco! – Ela gritou, aproximando-se.
O feitor pareceu petrificar-se com a surpresa. Voltou o rosto para a
moça, olhos ardendo de surpresa e indignação. Prisciliana notou que o suor
fazia sua pele rebrilhar, e tinha os lábios trêmulos. Seria surpresa por vê-la
ali?
— Senhorinha Prisciliana!
O homem pareceu tomar um choque ao vê-la.
— O que significa isso? Como está a senhora aqui, sozinha?
— Vim acompanhada por minha mucama, Cândida, que aliás, é irmã
deste pobre negro que o senhor está a maltratar!
Ela disse, erguendo o rosto, tentando imprimir o máximo de
autoridade à sua voz, quase sempre doce e suave.
— Que eu estou a maltratar? Mas que diacho está acontecendo? – O
feitor parecia transtornado. – Onde está vosso pai? Sr. Horácio sabe que
vosmecê está aqui na senzala? Aqui não é lugar para damas!
— Pois eu pouco me importo com sua opinião, Sr. Francisco! Eu vim
aqui por minha própria conta. E porque sei que Crispim está adoentado.
Não quero, ouviu? Não quero – ela disse, salientando bem as palavras – que
ele seja mais açoitado. Já chega de torturas por hoje!
Francisco baixou o chicote, mas começou a acariciá-lo com a outra
mão. Um sorriso zombeteiro surgiu em seus lábios finos.
— A sinhazinha agora tomou as rédeas dos negócios, foi?
— E se assim fosse?
— Se assim fosse, seria mau — ele continuou, irônico. – Mulheres
não foram feitas para esse tipo de trabalho. Cuidar de negócios, administrar
fazendas, é serviço para homens. E principalmente...
Olhou para o escravo, inerte no chão.
—... Cuidar de escravos rebeldes.
— Chega, Sr. Francisco. Eu lhe peço que pare de bater nesse pobre
homem.
Ela deu mais um passo à frente. Candinha, com a respiração
ofegante, ajoelhou-se para o irmão.
— Eu já parei, Dona Prisciliana. Mesmo a ordem não vindo de Sr.
Horácio, eu a acato respeitosamente, ainda mais vinda de vosmecê. – Ele
disse, aproximando-se mais de Prisciliana e fitando-a nos olhos.
A moça desviou os olhos dele. Aquela presença a importunava.
Aquele homem tinha o dom de a deixar assustada, como se um mau agouro
acompanhasse cada palavra dita por ele, cada olhar em sua direção, cada
pensamento dele.
— O senhor o machucou muito – ela disse, curvando-se para
Crispim.
O negro tinha as costas cortadas em todas as direções, e o sangue
fluía das feridas, que já pareciam até inflamadas. Alguns cortes que
pareciam ter começado a cicatrizar, estavam novamente abertos.
— Candinha, eu posso ajudar.
— Não, Nhá, deixa, isso não é pra vassuncê. Eu cuido dele.
Francisco olhava para a cena com um ar desdenhoso.
— Senhorinha, não creio que vosso pai vá gostar de saber que
vosmecê esteve na senzala e menos ainda, cuidando de negro rebelde –
disse o feitor, com sua voz áspera e o sorriso irônico ainda nos lábios.
— Sr. Francisco, eu peço por favor ao senhor que... não conte a ele. –
Ela viu-se obrigada a pedir aquilo, diante da ameaça.
— Não? Mas eu não sei se posso omitir isso.
— Não estou fazendo nada de errado, e... estou aqui porquê me
causa pena o sofrimento dos outros.
O feitor sorriu, mostrando uns dentes graúdos e brancos.
Prisciliana mal podia sustentar aquele olhar, irônico e maldoso. O
que estaria a pensar dela aquele homem? Por que a fitava daquele jeito
atrevido? Como se ela fosse mera serviçal do engenho, ao invés de filha do
senhor?
— Não devia desperdiçar seus sentimentos, sua bondade, com esses
animais, minha senhorinha – ele disse.
Prisciliana voltou-lhe as costas.
— Candinha, como ele está?
Francisco fechou a cara, diante da evidente hostilidade de
Prisciliana, e saiu a passos largos da senzala.
Crispim parecia mal. Entretanto, conseguiu abrir os olhos.
— Quem... quem tá aí? – Ele gemeu, entreabrindo os olhos
embaçados pela dor.
— Sou eu, Crispim. Tua irmã Candinha...
A mucama tentava ajudá-lo a ficar numa posição menos
desconfortável, mas ele não podia virar-se, devido aos ferimentos.
— Candinha... tem mais arguém aí, com vassuncê. É uma santa? Será
que Nossa Senhora desceu do céu pra me acudí?
— Não, Crispim, é a Sinhazinha Prisciliana.
O negro piscou, ainda tonto. Mas a imagem da dama branca e
sorridente, diante dele, era mais do que a imagem de uma mulher de carne
e osso. Parecia uma criatura de outro mundo, um anjo, uma santa. Porque a
ele parecia impossível que uma mulher de fino trato, como a filha do
senhor do engenho, estivesse ali diante dele, na senzala.
E ele fechou de novo os olhos, sentindo-se reconfortado pela
presença da irmã e daquela outra mulher de incrível beleza e olhos doces,
provavelmente um anjo que viera até ele graças à compaixão divina.
CAPÍTULO TRÊS
O ENGENHO de Sant’Ana ficou mais animado para o fim da semana,
quando Sr. Horácio Taques recebeu resposta de seu vizinho, o Marquês de
Suassuna, de que aceitaria seu convite para um jantar.
A casa-grande estava em polvorosa. Dona Maria mandara polir a
prataria e retirar dos armários a porcelana inglesa que ganhara de sua avó.
Alguns escravos escancaravam as janelas e colocavam flores frescas em
todos os vasos, enquanto outros batiam tapetes, esfregavam o
assoalho, espanavam o pó dos antigos e pesados móveis de jacarandá.
Sr. Horácio estava contente, porque com o Marquês traria, além de
sua esposa e do administrador que era seu parente, seu filho mais jovem,
estudante de Direito. E era do gosto de Sr. Horácio que o rapaz se
engraçasse de sua filha Prisciliana que, aliás, já passava da idade para o
casamento.
“Esta menina precisa se casar”, dizia ele à esposa. “Já está com vinte
anos. Daqui a pouco estará velha demais, e as pessoas começarão a tecer
comentários insidiosos”.

Prisciliana já conhecia os planos do pai,


mas estava irritada com isso. E se não gostasse do tal rapaz? E se ele fosse
um pretensioso almofadinha, como já ouvira uma senhora da vila dizer?
Entretanto, o jantar não lhe era de todo desagradável, porque
Miguel viria junto, o “parente” afastado do Marquês. E essa perspectiva a
deixava muito excitada...
Preparou-se com esmero, escolheu seu mais gracioso vestido – que
era amarelo-claro com florinhas róseas – de tafetá, com rendas cor de
creme no peito. Escolheu ainda uma bonita jóia dada por sua mãe, uma
corrente de ouro com um pendente de topázios.
A noite chegou e com ela, todo o esplendor que, há mais de um ano,
não se fazia presente no engenho.
Prisciliana reviu o Sr. Marquês, um homem já envelhecido, com
veneráveis cabelos brancos e um rosto inteligente, reviu a Marquesa – uma
dama graciosa, mas um pouco tagarela demais. Ela vestia-se com requintes,
e seu saio de cetim flamengo, azul-celeste, combinava com o corpete azul-
marinho e realçava sua mantilha branca, toda recamada de fitas e rendas. A
idosa senhora tinha ares de européia, e falava sem parar nas modas do Rio
de Janeiro, que eram copiadas rigorosamente de Paris.
A vaidosa dama conversou muito com Dona Maria e Prisciliana, e
esta última, ao sentir os olhares avaliadores dela sobre seu vestido, corou,
envergonhada. Não entendia muito das modas do Rio de Janeiro, e sabia
que seu vestido, embora fosse ‘bonito’ para os padrões do engenho, talvez
estivesse meio fora de moda...
Mas o mais embaraçoso de tudo foi o filho do casal, o jovem doutor
Augusto. Era um rapaz alto e magro, de mortiços olhos castanhos e pele
pálida de quem não estava acostumado ao sol.
Foi educado e gentil, mas Prisciliana, ao vê-lo ao lado de Miguel,
sentiu uma pontada de medo. E se o seu pai resolvesse de fato casá-la com
este moço? Miguel, ao lado do outro, parecia um garboso galo-da-serra[8]
ao lado de um modesto pardal.
Após o jantar, Prisciliana pediu licença e disse que iria tomar um
pouco de ar.
Saiu para o jardim, incomodada com a situação. Durante todo o
jantar, sentiu sobre si os olhares de ambos os rapazes, um que parecia
curioso, o outro, embevecido...
Na varanda, respirou fundo e abanou-se com o leque. Estava
nervosa, e não sabia o que fazer, pois uma decisão de seu pai, era a decisão
do Sr. Horácio Taques, o mais rico senhor de engenho das províncias do
Sul! Como ela ousaria contradizê-lo...?
Desceu as escadas e começou a caminhar pelo jardim, quando
pressentiu alguém atrás de si. Voltou-se e seus olhos encontraram os de
Miguel, muito azuis e brilhantes.
— Oh! O senhor.
— Tomando a fresca? – Ele perguntou, solícito.
— Sim, isso. – Ela ficou mais embaraçada.
— Senhorinha Prisciliana... Perdoa-me a ousadia, maseu precisava
estar um momento a sós com a senhora.
— Sim? – Ela ergueu o rosto rubro para ele.
— Sei que eu não devia, que não posso, mas eu preciso dizer. É
sobre meus sentimentos em relação à senhora. Eu não poderia deixar de
falar a sós com a senhora, sobre isso. Estou encantado com vossa beleza e
graça.
Por um momento, ela viu que ele também parecia tímido e
acanhado. Percebeu que lutava contra aquele sentimento, tanto quanto ela,
mas que não havia meios de o conter. Estava apaixonado por ela!
Ela ofegou e caminhou mais um pouco pelo jardim, seguida por ele.
— Desculpe, senhor, mas não sei o que isso significa.
— Significa, que eu estou apaixonado pela senhora.
Ela emudeceu. Sentiu a brisa leve soprar-lhe o rosto, um perfume de
flores e ervas aromáticas e uma emoção estranha penetrar-lhe o peito,
deixando-a tonta, ansiosa e medrosa, ao mesmo tempo. Ela caminhou mais
um pouco, e de repente, ambos estavam parcialmente ocultos em meio a
um caramanchão, e próximos de um balanço.
— Eu não sei o que dizer, senhor Miguel.
— Basta que não me chames mais de senhor, e não me repila.
Prisciliana! Desde o primeiro momento em que meus olhos caíram sobre ti
eu nunca mais tive sossego, sonho contigo noite e dia, embora eu sofra com
as conversas de meu parente, o Marquês, que tem planos para doutor
Augusto, seu filho.
— Planos? Como assim? Planos para o Dr. Augusto em relação a
mim?
Ele suspirou e assentiu.
— É isso.
— O senhor quer dizer que é plano do senhor marquês um
casamento entre o Dr. Augusto e eu?
— Sim, perdoa-me entrar nesse assunto tão delicado.
— Oh! Que bom que o senhor tocou nesse assunto. Eu não posso
casar-me com Dr. Augusto
— Não? – Ele deu um passo em sua direção.
— Porque também estou apaixonada por outra pessoa.
Ele pareceu empalidecer. À sombra do caramanchão, ela não
conseguia vislumbrar mais que o brilho dos olhos, mas ele estava tão
próximo, que sentia sua respiração ofegante, e um arrepio percorreu-lhe o
corpo.
— Outra pessoa. Entendo. – A voz dele era de decepção e tristeza.
— O senhor – ela completou, ousadamente. Sabia que estava
fazendo uma loucura, mas era preciso.
Miguel estremeceu, ela sentiu quando ele tomou-lhe as mãos. Era o
primeiro contato entre ambos, e aquilo a deixou assustada mas ao mesmo
tempo, sentir suas mãos frias entre as mãos fortes e quentes dele, a
enterneciam quase ao ponto de fazê-la chorar. Miguel, era este o homem de
sua vida!
— Prisciliana — ele suspirou. – Eu te amo.
Ele a puxou delicadamente para junto de si. Ela entreabriu os lábios
para replicar, mas um beijo a calou. Não eram necessárias mais as palavras.
Era um beijo tão sonhado, tão esperado, tão profundo...!Os lábios de
Miguel eram como ferro em brasa sobre a sua boca. Ela entregou-se a ele,
nada mais desejando no mundo senão senti-lo todo seu e sentir-se toda
dele... Sabia que era reprovável, mas nada naquele instante lhe importava.
Os lábios dele eram possessivos, obrigaram-na a abrir os seus e sentir a
língua dele, enquanto suas mãos fortes a acariciavam com delicadeza.
— Miguel — ela sussurrou. – O que estamos a fazer? Isso não é
certo. Meu pai...
— Querida — ele disse, encostando a boca ardente em seus ouvidos.
– Dona do meu coração, eu arrostaria o mundo se preciso, por ti. Eu não sei
te amo ou se deliro, completamente escravo deste sonho, desta emoção.
Não! Não, eu, eu... Adoro-te, minha formosa. Adoro-te. Viveria mil vidas,
morreria mil mortes, só para estar contigo.
— Ah, eu te entendo, pois que é assim que também sinto. Amo-te!
Novamente estavam nos braços, um do outro. Mas então, com um
pressentimento estranho, ela o afastou de si e olhou ao redor.
— Que foi? – Ele perguntou, ainda tentando retê-la junto de si.
— Não sei.
Tudo ao redor era silêncio, a noite era morna e convidativa. Mas ela
teve medo, de repente.
— Eu preciso ir. Alguém sentirá minha falta, e vão me procurar.
Ninguém pode ver-nos juntos, Miguel.
— Sei – os olhos dele anuviaram-se de novo, entristecidos.
— Mas eu juro-te que nos veremos outras vezes. E não vou casar-me
com o Dr. Augusto, nem que isso me custe a vida, a honra e tudo o mais!
— Onde nos veremos? – Ele parecia aflito.
— Conheces bem a região?
— Sim!
— Conheces um regato que corre a meia légua das divisas entre o
Engenho de Sant’Ana e o engenho onde trabalha?
— Sim, sim...
— Quando puderes estejas lá. Pela tardinha, após o almoço. É a hora
em que todos no engenho estão à sesta.
— Irei, minha formosa.
Ela ainda o beijou mais uma vez, e correu de volta para casa.
Nos dias que se seguiram, a casa-grande do engenho Sant’Ana foi
abalada por uma tempestade de emoções conflituosas.
Sr. Horácio conversou com D. Maria e com Prisciliana, explicando
sobre o casamento arranjado entre esta e o Dr. Augusto, o que fez com que
a filha se trancasse no quarto, replicando que não se casaria com o rapaz,
porquanto não gostara dele.
O pai, irritado, falara asperamente à D. Maria, acusando-a de não ter
dado ‘educação correta’ à filha, que “se tornara uma rapariga muito da
birrenta e rebelde”. A pobre mulher, sem saber o que dizer ou o que fazer,
pôs-se a chorar, o que causara ainda mais cólera no marido.
Prisciliana, por seu lado, também se entregara ao desespero, e
chorara muito. Rezou durante todo aquele dia, para que o pai se esquecesse
do acordo com o Marquês e desse o dito pelo não dito.
Entretanto, as coisas não pareciam ter melhorado muito, nos dias
que se seguiram. Dois dias depois da discussão, mesmo temendo a ira do
pai e a desconfiança da mãe, ela decidiu que iria encontrar-se com Miguel.
Logo depois do almoço, colocou seu vestido branco com rendas –
que realçava sua beleza morena e os cabelos de um castanho rico, com
reflexos avermelhados – e suas sapatilhas de couro, apanhou a sombrinha e
saiu silenciosamente. Quando se encontrou com Candinha, à porta dos
fundos, teve que dar uma desculpa qualquer, para evitar que a mucama a
acompanhasse.
— Sinhazinha, eu sei que vassuncê tá brigada com vosso pai... e anda
triste que só, mas eu queria dizer que eu e Crispim tamo muito agradicidos
a vassuncê, pelo que fez.
— Você e Crispim? Ah, claro. E como está teu irmão, Cândida?
Por um instante, ela lembrou-se do pobre negro, e do suplício
sofrido pelas mãos do feitor.
— Ah, sinhá, ele ainda tá muito doentado, mas melhorou um
pouquinho. Eu tenho ido trata dele toda noite. A Bá Velha me deu muitas
erva boa, que ela conhece, pra fazê uma meizinha[9]. Acho que é essa
meizinha que está fazendo bem pr’ele.
Prisciliana respirou aliviada.
— Que bom, Candida! Sabes que é difícil que eu vá vê-lo, mas assim
que puder, irei.
Candinha sorriu, mostrando os grandes e alvíssimos dentes.
— Sinhazinha. O Crispim não acredita que foi vassuncê que esteve lá
na senzala, aquele dia. Pr’ele, foi uma aparição de Nossa Senhora.
Prisciliana fraziu a testa, entre divertida e preocupada.
— Ora, que ideia! Eu?!
Ela pensou consigo: Ninguém menos parecida com uma santa, do
que eu. Pobre de mim. Que Deus me perdoe, mas ainda hoje estarei
cometendo mais um pecado, pois vou me encontrar com um homem às
escondidas, e estarei contrariando em tudo as vontades de meu pai, e de
minha pobre mãe. Mas que hei de fazer? Não há como escarpar ao amor à
morte. Ela pensou, enrubescendo.
— Candinha, a febre dele baixou? – Ela perguntou, preocupando-se.
— Sim, sinhá. Eu fiz como vossa mãe ensinou, muita compressa de
água fria, e ele já tá no eito, trabaiando de novo.
— Ah! Bem, isso já nos alenta um pouco. Mesmo assim, logo que
possa, quero ver Crispim. As feridas devem estar bem limpas, pois podem
arruinar, sabias disso?
— Sabia não, sinhá — Disse Candinha, com um ar mais assustado. –
Eu lavei, e botei as erva que a Bá Velha mandou. Mas esse negócio de ferida
arruinada eu num entendo, não. Mas o Crispim não se queixou mais.
— Certo, Candinha. É preciso cuidar muito da limpeza, porque se
não estiverem perfeitamente limpas, elas se inflamam, e a febre e a
prostração podem voltar. Mais tarde irei vê-lo.
Prisciliana caminhou até a porta, quando a jovem mucama a
interpelou.
— A sinhá vai saí?
— Vou, mas não carece que me acompanhes. Quero caminhar um
pouco sozinha.
Cândida assentiu com obediência. Prisciliana saiu para o pátio, e
depois de cruzar com alguns moleques, que corriam e um ou outro negro
que trabalhava na casa, afastou-se a passos rápidos em direção ao pomar.
Após vinte minutos de caminhada – felizmente através dos bosques,
o que impedia que ela suasse demais com o calor – ela aproximou-se do
local onde combinara o encontro.
Era uma clareira em meio ao bosque, mas havia um desnível do
terreno, que era uma espécie de barranco, descida abrupta em direção ao
riacho. Ela teve que descer com cuidado, tirando os sapatos, para não
escorregar.
Logo que deu os primeiros passos, avistou do outro lado do riacho,
chegando pela viela estreita que levava à cerca da fazenda vizinha, o vulto
de um homem.
Ela prendeu a respiração e sentiu um calor sufocante e a um tempo
agradável, invadir-lhe o corpo. Era Miguel! A figura dele, agora já familiar
para ela, tinha um encanto indizível. Alto, trazia as roupas modestas com
que passava o dia – calças escuras metidas dentro das botas de couro, e
uma camisa simples, aberta no peito por causa do calor. Mesmo vestido
com toda a modéstia, ainda é um homem belo, ela pensou... A beleza dele,
porém, não era apenas a externa. Havia algo nele que era de uma
excepcional harmonia, e vinha de dentro dele, como uma aura de luz, de
generosidade e de gentileza.
Assim que a viu, o rosto dele se transformou. Sorriu, e correu até a
beirada do riacho, depois atravessou-o, pisando com cuidado sobre as
pedras. Galgou com agilidade o pequeno barranco e alcançou-a. Deu-lhe a
mão, ajudando-a.
— Prisciliana! Então vieste!
Ela sorriu, afastando do rosto mechas do cabelo castanho. Corou, e
sentiu o coração bater forte.
— Claro, tínhamos combinado.
— Eu estive aqui ontem, e antes de ontem, e também antes e antes.
Vinha todos os dias, na esperança de encontrar-te. Mas tu não vieste antes,
e achei que tinhas desistido, que tinhas mudado de ideia. Eu estava já
entristecido, mas ainda tive esperanças e resolvi vir hoje. E minha
persistência foi recompensada!
Prisciliana desceu e com a ajuda dele, chegou à beira do riacho.
Ajeitou as longas e rodadas anáguas e sentou-se em uma pedra.
— Eu viria, de qualquer modo, Miguel. Sabes que sim.
Ele sentou-se ao lado dela, e tomou-lhe a mão, beijando-a. Ela corou
novamente, ao sentir os lábios macios em suas mãos.
— És o sentido de toda minha existência, Prisciliana.
Ela sorriu.
Quando ela sorri, é como se as nuvens escuras se abrissem, e o sol
brilhasse com toda a força, ele pensou. Pena que tudo não passe de um
simples...
— Me deixas tonta, Miguel, com essas palavras.
— São ditas pelo meu coração, não pela mente. Estou sendo sincero.
Ela olhou para o rio, que parecia tão fresco. Pequenos raios de sol
caíam, coados pela folhagem espessa da mata, produzindo pequenas
estrelas luminosas que ofuscavam a vista.
— Eu sei que sim.
— Sabes porém, que não tenho posses para desposar-te, sabes que
sou apenas um parente distante do Marquês, e não posso competir com
meu primo, o Dr. Augusto. Poderia apresentar-me diante de teu pai, e pedir
tua mão, sabes que eu faria isso, faria qualquer coisa. Mas sabes tanto
quanto eu, que ele me rechaçaria, como a um cão vira-latas. Sabes que ele
não me aceitaria, não sabes, minha formosa?
— Mais do que ninguém, eu sei disso, Miguel. – ela respondeu,
baixando os olhos.
— Esta semana toda estive a ouvir os brados de meu pai, e suas
ameaças de me jogar em um convento, caso eu não aceitasse a corte do Dr.
Augusto. Mas eu ainda assim, mantive-me firme. Eu disse que não me
casaria com ele. Jamais!
Miguel sorriu tristemente.
— Será que nosso amor ainda tem alguma esperança de ser aceito?
Minha formosa princesa, penso nisso todos os dias...
— Não, Miguel. Por meu pai, acredito firmemente que não. Ele é um
homem rigoroso – ela disse, pensando que na realidade, seu pai era
intratável e às vezes, quase cruel.
— Entendo — Miguel apertou os lábios. – Minha família tinha uma
pequena quinta, nos arredores de Lisboa, nada que se compare ao Engenho
Sant’Ana, claro. Quando meu pai morreu, esta quinta deveria ser dividida
entre eu e meu irmão, mas como vim para o Brasil, meu irmão ficou com
ela. Tenho certeza de que, se eu voltasse para lá, casado, ele receberia a
mim e a minha esposa, de braços abertos. Penso que nossa solução,
Prisciliana, seria partir para...
Ela arregalou os olhos, assustada.
— Fugir?
— Meu amor, não serias capaz de ir embora, comigo?
— Seria muito arriscado e Portugal, conquanto seja a terra de meus
avós, para mim é apenas um nome.

— Tu irias amá-lo, como eu amo. Como amas esta terra cá. Portugal
e Brasil, hoje em dia, são ambos parte de um único reino, agora que Dom
João e toda família real vive cá. Compreendes, meu amor?
— Sim, eu compreendo. E como te amo, também amaria a tua terra –
ela disse, sorrindo novamente. – Mas tenho minha mãe, que eu também
amo.
— Querida! Sei o que sentes.
Miguel enlaçou-a, com delicadeza. Prisciliana sentiu-se protegida,
amparada, entre os braços fortes e o peito rijo do namorado. Recostou a
cabeça no ombro dele e por um momento, esqueceu tudo. As brigas com o
pai, as dificuldades que os ameaçavam, o medo de ser surpreendida, o
casamento arranjado.
Naquele momento, ela queria esquecer o mundo à sua volta e sentir-
se apenas dele, unida a ele, parte dele.
— Miguel, eu sei que sabes. Para mim, és como parte de mim
mesma. E quero ser tua mulher.
Ele a olhou no fundo dos olhos. Ela percebeu que o azul dos olhos
dele tinha a tonalidade do céu quando estava levemente nublado: Um
cinza-azul profundo e brilhante.
— E será, eu te juro. Mesmo que eu tenha de enfrentar o próprio
Rei!
— Quero amar-te. Agora, como tua mulher.
— Que dizes, minha princesa? – Ele ficou um pouco aturdido.
— Quero que me tomes em teus braços e me beijes, como o faria
com tua esposa.
Ela enrubesceu. Sabia de casos assim: Em que uma jovem tornava-
se “mulher” de um homem, sem ser casada. E depois, o pai a obrigava a
casar-se com ele. Talvez, ela pensou, se ela e Miguel se deitassem juntos.
Seu pai esqueceria a ideia de casá-la com Dr. Augusto, e aceitasse a ideia de
vê-la casada com Miguel.
— Mas, minha amada, tens certeza?
— Eu quero ser tua! – Ela gemeu, aproximando o rosto do dele.
Sentia o coração batendo forte, mas uma onda de desejo invadiu-a,
como uma daquelas rajadas de vento, quando há tempestade: Arrojam tudo
ao chão, derrubam árvores, arrancam as telhas das casas, carregam para
longe objetos. Assim ela se sentia, dominada por aquela emoção estranha e
fascinante.
— Minha bem-amada, eu também quero.
O jovem português dobrou-a com delicadeza, inclinando-se sobre
ela e beijando-a.
Os lábios e o beijo são doces como a voz dele, ela pensou. Oh, minha
Nossa Senhora, como eu gosto dele. Que Deus me perdoe!
Prisciliana entregou-se às carícias mais ousadas de Miguel, sem
resistir, apesar de sentir um vago temor.
Mas quando ele desatou o nó do corpete e tirou-o, quando ele, finalmente,
tocou-lhe a pele nua do colo, ela gemeu e estremeceu de prazer. E deixou
que ele escorregasse as mãos sobre seus seios, sobre seu ventre... Ela
mesma acabou de desatar os cordões das saias, e viu-o tirar a camisa,
mostrando o peito nu, levemente bronzeado.
Ele inclinou-se, então, beijando-a sempre e ela pôde sentir a
masculinidade dele roçando-lhe o corpo... Sentiu uma onda súbita de medo
e prazer, que a deixou indecisa...
— Miguel, por favor, sou uma virgem.
— Meu amor, sei disso, não me queres mais? – Ele perguntou,
erguendo o rosto suado, com os olhos brilhantes. — Estás com medo?
— Tenho. Por favor...
Ela o afastou de si, assustada. Ouvira um leve ruído na mata.
— Que foi, minha formosa princesa?
— Eu tenho medo. Ouvi alguma coisa, não ouviste também?
Ele sentou-se ao lado, ofegante e ficou de ouvidos atentos. Pareceu-
lhe ouvir um leve roçagar de alguma coisa contra as folhagens, mas achou
que era bobagem.
— Algum animalzinho. As matas são cheias de animais pequenos,
que fazem esse tipo de ruído.
— Mas – Ela baixou os olhos, e apanhou as saias, cobrindo a nudez
novamente. — Por favor, meu querido. Dá-me ainda algum tempo. Tenho
medo.
Ele sorriu.
— Querida, eu jamais te forçaria. Amo-te porque esse sentimento é
meu, e pronto. Não pelo que venhas a dizer, fazer ou conceder. Ainda que
não me amasses, ainda que me desprezasses e que eu jamais viesse a ter-te
em meus braços, ainda assim te amaria.
Prisciliana sorriu, e ele ajudou-a a vestir-se novamente.
— Eu te amo muito, Miguel. Quanto mais te conheço, mais acredito
na sinceridade do teu sentimento.
Após mais alguns minutos de mútuos afagos, eles se despediram,
com um longo beijo e a promessa de que se reencontrariam de novo.

Eles de nada desconfiaram, mas o ruído que ouviram na mata não


tinha sido o de um animalzinho.
Oculto pelas largas folhas de uma planta tropical, um homem estava
agachado, olhando-os lá de cima do barranco. Tinha um rosto queimado de
sol, olhos grandes e negros, e uma boca fina, apertada num esgar de ódio ou
outra emoção forte.
Sr. Francisco, o feitor. Ele vira quando a jovem Senhorinha deixara o
pátio do engenho, dirigindo-se furtivamente para as bandas da mata. E
deixando um de seus homens tomando conta dos negros, seguiu-a de longe,
sempre ocultando-se e cuidando para não ser ouvido.
Tinha uma expressão ansiosa e ávida nos olhos escuros. Quando viu
o encontro dos jovens, sua expressão ficou ainda mais rígida, o cenho
franziu-se. Teve ímpetos de correr até eles, mas controlou-se, pensando
que poderia tirar mais proveito da situação, se desse tempo ao tempo.
Era um homem grosseiro, mas sabia muito bem o quanto a sutileza
às vezes era importante.
No momento em que viu Prisciliana despindo-se, o brilho metálico de seus
olhos aumentou, ele entreabriu os lábios, numa expressão ao mesmo tempo
ávida e enraivecida.
O corpo nu da moça, branco como uma pétala de lírio, os longos
cabelos soltos, espalhando-se pelos ombros, e as mãos do outro a tocando,
encheram-no de um desespero quase insuportável.
Ele rangeu os dentes, enfurecido. Suas mãos ásperas esmagaram as
folhas do arbusto, com ódio, e por um instante, ele ficou de pé, e quase foi
visto. Foi no momento em que Prisciliana ouvira o ruído.
Afinal, ele agachou-se de novo, e ali ficou, de tocaia, esperando que
eles terminassem o que haviam começado, mas não foi assim. Viu com os
olhos cobiçosos quando a moça tornou a vestir-se.
— Ah, a sinhazinha perdeu a coragem — ele murmurou, consigo
mesmo.
Depois, viu que os dois trocavam novas palavras enamoradas,
beijavam-se e separavam-se.
— Ah, desgraçado portuga[10], vosmecê há de me pagar...
Quando Prisciliana começou a subir novamente o terreno, ele
ocultou-se melhor entre as folhas. Deixou que ela se fosse, e viu o
português afastar-se também, tomando o caminho da fazenda vizinha.
Só então, ele deixou-se cair no chão, as mãos largas apertando a
própria cabeça. Parecia um animal encurralado, debatendo-se numa ânsia
insuportável.
A visão da moça nua ainda povoava seus pensamentos.
Aquela mulher tinha que ser dele, mas como? Desde que a vira pela
primeira vez, a imagem da filha do senhor era uma constante em seus
pensamentos. A sinhazinha tinha os dotes de uma bela francesa, que ele um
dia conhecera, quando ainda morava na corte. A criatura parecia uma
daquelas pinturas renascentistas, com seus cabelos sedosos castanhos,
olhos escuros como duas jabuticabas, espáduas macias e brancas, coxas
firmes e bem modeladas. A diferença, porém, estava em que Prisciliana era
uma moça de família, e a francesa não passava de uma rameira.
E em Prisciliana, ele começou a ver outras qualidades. O ar delicado, as
feições bem feitas, o olhar ingênuo, a pureza, os lábios úmidos e rosados e
aquele jeito, aquele jeitinho... Ah, ele gostava daquele jeito altivo como ela
olhava para ele! A moça o odiava, ele sabia disso, mas pouco se importava.
Se um dia ele tivesse a chance, a chance de fazê-la curvar-se diante dele, de
submeter-se a ele. Embora ele soubesse como isso estava longe de
acontecer – por ser ela filha do senhor Horácio – gostava de sonhar.
Sonhava em tomá-la nos braços, beijá-la com toda a sua furiosa
paixão e depois... bem, depois, o resto...
Ele nunca almejara mais do que isto, embora todo o seu desejo fosse
cerceado pela situação desfavorável de ser um simples feitor, enquanto ela
era a Senhorinha, a herdeira do seu patrão. Mas um dia. Ele ainda a faria
engolir todo aquele orgulho.
E agora, a ocasião se lhe apresentara.
Francisco levantou-se, limpou o suor da testa com um lenço,
recolocou o chapelão e respirou fundo.
A ocasião se lhe apresentara. Iria saber tirar proveito dela, ah! Como
saberia.
CAPÍTULO QUATRO

SR. HORÁCIO Taques andava aperreado, como dizia Dona Maria. Ele
tinha gostado de conhecer seu novo vizinho, o Marquês de Suassuna, que
lhe comprara a fazenda. Era este um homem viajado, um homem da corte,
que tinha boas relações com alguns dos mais importantes fidalgos do Rio
de Janeiro, e Sr. Horácio tinha planos de unir-se a ele nesse círculo de “boas
relações”. Quem sabe, cair até nas boas graças de El Rei, Dom João? Sr.
Horácio ficara sabendo que o Marquês era íntimo de um guarda-roupas do
Rei, um tal de Antônio Andrada.
E, de repente, surgira-lhe a grande oportunidade! Casar sua filha
com o jovem Augusto, filho único do Marquês. Sim, era uma oportunidade
como poucas. Entraria para a família do ilustre vizinho, e quiçá, para seu
círculo de influentes amizades!
E agora, deparara-se com a birra de Prisciliana. A criatura
encasquetara que não queria casar-se com Augusto, e pronto.
Horácio andava irritadiço com a situação. Precisava dar à filha um
bom castigo, para que ela não ousasse mais rebelar-se contra sua
autoridade.

Assim pensando, ele não conseguiu ter


a tranqüilidade necessária para tocar os negócios, no dia seguinte e sua
impaciência acarretou aos escravos muitos brados de ira e castigos
desnecessários. Era sempre assim: Quando o “Sinhô” se zangava,
descontava sobre os negros e agregados sua revolta, e muitas das vezes, o
castigo era injusto.

No dia seguinte ao encontro com Miguel, Prisciliana levantou-se


muito cedo, pois pretendia ir com a mucama até a senzala, novamente.
Sabia que o pai estava na sua saleta, fumando seus charutos e
assinando documentos. Dona Maria estava na cozinha, orientando as
escravas sobre o trabalho. Era, pois, a ocasião perfeita.
Saíram ambas, depois de uma refeição frugal de pão de milho e
frutas.
Foram diretamente até o canavial, onde Crispim estava
trabalhando. Ao vê-las, os homens do feitor se entreolharam, curiosos.
Prisciliana baixou os olhos, pois detestava ser olhada e observada por eles.
Quando chegaram ao canavial, avistaram Francisco, de chicote em
punho e dando gritos de advertência aos negros que, arreados já pelo
cansaço, paravam às vezes para descansar.
A moça engoliu em seco, ao ver a figura do homem cruel. Este
voltou-se no mesmo instante e cravou nela os olhos interrogativos.
— Sinhazinha?!
— Feitor, vim para ver o Crispim.
O feitor semicerrou os olhos e olhou avaliativamente para a jovem.
— Pra mode quê, a sinhazinha quer ver o negro?
— Porque quero saber se ele está melhor.
— Melhor?
O homem aproximou-se, com a testa franzida. Subitamente, sentiu
ódio daquela mulher, que o desafiava e desafiava o próprio pai, vindo até
ali porque se preocupava com um escravo!
—Um escravo? A sinhazinha está se preocupando com... um
escravo?
— Sim, por quê? Isso não é da conta de vossa mercê – ela retrucou,
mandando Candinha chamar o irmão.
— Não é da minha conta?
Crispim largou o trabalho, um tanto temeroso. Olhou para o feitor,
depois para a Sinhazinha.
Ela o chamou, com um gesto decidido.
Crispim aproximou-se, o passo trôpego pelo cansaço, sempre
olhando atravessado para o feitor, que parecia alucinado pela cólera.
— A sinhá me desculpe, mas vosmecê não tem nenhum direito de
atrapalhar o meu trabalho e o trabalho dos negros! – Ele bradou, o rosto
vermelho de ódio.
— O senhor quer calar-se? – Ela falou, sentindo um calor súbito. No
fundo de sua mente, uma vozinha fraca ainda lhe dizia para voltar atrás,
não discutir com aquele homem rude.
Crispim aproximou-se. No mesmo instante, Francisco deu-lhes as
costas e saiu às pressas em direção à casa-grande.
— Nhá, minha nhazinha, o mardito foi avisar vosso pai! – Gemeu
Candinha, aturdida de medo. – VOSSO PAI!
Crispim, que tinha os olhos baixos e uma expressão embrutecida,
ergueu então os olhos e fitou sua benfeitora.
Seus olhos encheram-se de uma luz suave, e a expressão de seu
rosto se transformou, como se ele vislumbrasse um pedaço do paraíso.
— Nhá...? – Ele tartamudeou, indeciso. – Nhá Prisciliana?
— Sou eu, Crispim. Vim para saber como estão esses ferimentos.
Posso olhar?
O negro meneou a cabeça e a sombra de um sorriso triste lhe surgiu
nos lábios.
— Vamos ver.
Prisciliana pediu que ele tirasse os trapos que lhe serviam de
camisa, o que ele obedeceu. Daí virou de costas, mostrando as grandes
feridas, algumas ainda meio abertas, outras começando a fechar.
— Deus do céu! – Ela sussurrou. – Como estás ferido, Crispim!
Precisas cuidar melhor disso. Candinha?
— Nhá?
— Tragas os bálsamos que temos no grande armário da cozinha,
para ferimentos.
— Mas, Nhá. O feitor. Ele foi chamar vosso pai.
Ela piscou várias vezes, pensando. Depois disse:
— Vai assim mesmo. Espero aqui.
Logo que a mucama afastou-se, ela disse para o escravo:
— Senta-te e descansa um pouco, à sombra daquela árvore –
apontou para uma grande seringueira, a poucos passos dali.
O negro obedeceu.
Ela também dirigiu-se para a sombra da árvore.
Crispim olhava para a moça, com os olhos embevecidos. Nunca
tinha visto criatura mais bela, nem mais bondosa.
— Nhá, vassuncê tá se arriscando muito... descurpe, mas vassuncê
devia vortá pra casa... vosso pai está arreliado[11] por demais.
— Te preocupes não, Crispim. – Ela sorriu, gentilmente. – Se meu
pai vier, conversarei com ele sobre os desmandos do Sr. Francisco.
O negro baixou a cabeça, ainda com um sorriso nos lábios. Estava
feliz, como nunca estivera em sua miserável vida.
Ele não se atrevia erguer muito os olhos para a linda criatura que ali
estava, diante dele. Parecia-lhe quase um sacrilégio, fitar os grandes e
límpidos olhos da moça, que a ele lembravam dois grandes lagos à luz da
lua, escuros, porém belos – da misteriosa beleza que possui tudo o que é
profundo e insondável. A ele, pobre escravo, filho de uma raça desprezada e
humilde, ela dera atenção, arriscando-se a incorrer na ira do pai. Por ele.
Por ele, Crispim, um escravo!
Ele temia erguer os olhos, mas podia sentir a presença da
sinhazinha, podia sentir um leve odor de flores que dela emanava, uma
carícia morna e doce em seu corpo doído e maltratado. Se ele...Se ele fosse
um homem branco. Se... Não! Pra que eu devo pensar nisso? Eu sou só um
escravo. Ela teve pena de mim, só.
Prisciliana andava de um lado para outro, inquieta. Afinal, quando
se voltou para a casa-grande, avistou de novo a figura de Francisco,
caminhando apressado. Ao lado dele, vinha o Sr. Horácio.
Prisciliana ficou rígida. Seu peito subia e descia, ofegante, suas
narinas dilataram-se. Seu pai vinha a passos largos, uma expressão feroz no
rosto.
O feitor parecia não menos irado, apesar de alguma coisa nos olhos
escuros traírem outra emoção secreta – dir-se-ia que uma névoa de
mistério toldava qualquer tentativa de se desvendar aquela alma.
A moça sentiu-se tonta.
Sr. Horácio não teve a menor delicadeza, chegou e tomou-lhe o
braço, com rudeza.
— O que fazes aqui?!! Já te não disse que não deves vir a te meter
com os negros...?
— Meu pai, por favor. Eu só estava aqui para ajudar esse pobre
homem...
— “Homem”, Prisciliana? Do que falas? Negros não são homens, tu
bem sabes!
O senhor parecia transtornado pela fúria.
— É claro que são, meu pai! É claro, é ...
— Cala-te! Volta para casa, já e já! – Horácio apertava o braço da
filha, com ímpetos de quebrá-lo.
— Mas isso não é verdade! O padre sempre disse que são, e eu...
— Cala-te, já disse! Os padres estão sempre a meter a colher em
assuntos que não lhes competem! Por eles, estaríamos sendo governados
por um bugre, tendo negros como príncipes, duques e barões!
Ele a empurrou rudemente em direção à casa.
Ela ainda voltou-se uma última vez, e olhou para o pobre negro,
encolhido ao pé da árvore. Crispim tinha os olhos marejados de lágrimas.

Prisciliana foi para casa, seguida de perto pelo pai. Assim que
entraram em casa, Dona Maria correu em direção a eles, aflita.
— Afasta-te, Maria! – Berrou Horácio. – Tua filha irá para o quarto
dela, e lá conversaremos... Não adianta querer intervir!
Prisciliana foi para o quarto, obediente.
Lá dentro, assentou-se sobre a cama, e olhou, aterrorizada, para o
pai.
— Meu pai, eu só tive pena! O pobre homem...
— Já te disse que negros não são “homens”! Filha desnaturada e
ingrata! É assim que pagas todos os anos em que eu e tua mãe te demos do
melhor...? É assim que pagas a teu pai pela boa vida que tens, pelos belos
vestidos, pelo conforto, pela educação...? Maldita sejas!
E Sr. Horácio ergueu a grande mão, esbofeteando a filha com
violência.
Prisciliana deu um grito e caiu sobre a cama, o rosto latejando,
lágrimas ardentes brotando-lhe dos olhos, uma angústia negra como as
trevas de um grande abismo, toldando-lhe a mente.
— E vais te casar com o Dr. Augusto, sim! Ousa dizer novamente
que não!
Horácio berrou, o rosto como uma máscara vermelha de raiva.
— Ficarás presa no quarto, pelo tempo que for necessário. Só sairás
daqui, quando tiveres posto a cabeça no lugar, e deixares de lado essas
tolas ideias de rebeldia.
E saiu, batendo a porta e fechando-a pelo lado de fora.
CAPÍTULO CINCO

NAQUELA NOITE, outra pessoa estava insone no engenho, além de


Prisciliana.
A noite estava quente, apesar de uma brisa fresca estar soprando,
vinda do lado das serras, ao sul.
Uma grande lua espalhava seu brilho cintilante sobre as matas, que
tinham ressaltados seus contornos, como se um pincel gigantesco as
houvesse delineado em aquarela.
No pátio próximo da senzala, os negros cantavam suas canções
nativas, ao redor de uma fogueira. Sentadas muito juntas, cinco ou seis
moças negras conversavam com ares assustados, puxando os xales de
algodão sobre os ombros, por causa do vento fresco que soprava. Candinha,
entre elas, parecia a mais assustada, e falava com voz estridente:
—... E o Sinhô trancou ela no quarto. E diz que ela não sai mais de lá,
até deixar de se rebelar contra ele.
— Ma isso é uma judiaria[12], a sinhazinha é de uma bondade que
num se vê em branco nenhum.
— Credo-em-cruz – disse outra mulata. – Esse sinhô Horácio é ruim
como o demo...

A poucos passos dali, caminhando pelo pátio, o Sr. Francisco ouvia a


conversa, com o rosto tenso. Ouviu perfeitamente bem o que
Candinha dissera. “Ele bateu nela. Ele trancou ela no quarto...”.
Francisco franziu o cenho, num esgar de dor. O que estava
acontecendo com ele? Por que se preocupava tanto com a sorte daquela
gente, daquela mulher? Nada daquilo lhe dizia respeito. Ele era apenas o
feitor, sua obrigação fora cumprida, e só.
Dispersou os negros, mandando-os para a senzala. Depois, fez sua
refeição com os outros agregados, ouviu sua conversa monótona sobre o
trabalho do dia e as novidades da vila, respondeu por monossílabos.
Tomou seu último gole de vinho e despediu-se.
Sua casa ficava entre muitas outras moradias simples que
compunham a pequena “cidadela” que rodeava o engenho, no qual a casa-
grande era o forte.
Ele entrou, fechou a porta, despiu-se. Encheu uma grande bacia
esmaltada com água de um tonel e lavou-se. Havia um pedaço de espelho
sobre uma cômoda rústica, na qual ele se olhou detidamente.
O rosto que o fitava era uma feição assustadora, tamanha era a
angústia que se estampava nela. Tinha os olhos negros mais sombrios do
que nunca, o cenho carregado, os lábios apertados. A barba por fazer
tornava-o ainda mais estranho.
Precisava fazer a barba, pensou. Mas afinal, para quê? Quem se
interessaria por ele, pela sua aparência?
Mesmo assim, fez a barba. Alguma coisa dentro dele o fazia agir
mecanicamente, mesmo estando sem vontade. Fazia porque era preciso.
Poderia deixar a barba crescer, como faziam os outros homens brancos do
engenho. Mas sabia que de cara raspada pareceria menos selvagem?
Terminado aquilo, deitou-se, braços cruzados sob a nuca, os olhos
presos no teto do casebre.
Dona Prisciliana. A orgulhosa sinhazinha estava agora sendo
castigada pelo pai, e por culpa dele, Francisco. Deveria estar feliz pela
pequena vingança, mas não estava. E por quê? Por que sentia-se mal ao
pensar no sofrimento dela? Não era isso que ele queria? Afinal, a pequena
traiçoeira tinha enganado toda a família, indo se encontrar às escondidas
com o portuga. Mas, mesmo assim.
Ele revirava-se insone, na cama. Estaria ela também sem sono,
naquela noite enluarada? Estaria chorando?
Francisco não conseguia esquecer a visão do corpo dela, nu sobre o
relvado, à beira do riacho. Linda! Ah, mas ela nunca seria dele, jamais. Ela o
odiava.
Ele apertou as frontes com ambas as mãos, nervoso. Tinha que
apagar aquela imagem da cabeça. Precisava esquecê-la. Precisava lembrar-
se do seu papel, naquele lugar. Era o feitor. Era o homem que castigava os
negros. Era o homem que ela mais desprezava no mundo.
Precisava esquecê-la, a qualquer custo! Mas também havia outra
coisa a fazer. Não suportava a ideia de sabê-la prisioneira dentro da própria
casa. Tinha que fazer alguma coisa a respeito. Ele fora o culpado, e agora
precisava reparar seu erro.
Virou-se para a parede. Após muito tempo revirando-se na cama, o
peito largo e suado, finalmente ele conseguiu adormecer.
Candinha assustou-se quando, no dia seguinte, logo cedo, o feitor
veio em sua direção.
Ela atrapalhou-se, derrubando todo o cesto de frutas que carregava,
pelo pátio, e curvou-se para juntar as frutas, trêmula.
— Deixe de dengos, moleca! – Falou Francisco, agitando as mãos.
— Vassuncê me adescurpe, sinhô, é que estou meio atarantada[13],
hoje.
— Está sempre atarantada, criatura. Preciso falar, e rápido.
Ela terminou de juntar a última laranja, que Francisco tomou-lhe
das mãos, com rudeza.
— Eu ainda não comi nada, deixe isso comigo. E me siga, preciso
falar com vosmecê, mas não aqui.
Candinha, totalmente zonza, seguiu o homem em direção aos
casebres, onde ele morava.
Após vinte minutos, sentada numa banqueta rústica, ele perguntou
à mucama se ela tinha entendido o que ele lhe explicara.
Candinha meneou a cabeça, meio confusa, mas ainda assim satisfeita
com aquela súbita mudança ocorrida com o feitor, antes tão rude. Desde
que chegara ao casebre, ele lhe falara e por nenhum momento resmungou
ou praguejou.
— Sim, sinhô Francisco, vassuncê quer que eu fale com o Bentinho
já?
— Isso. Quanto antes o moleque for, melhor.
— E a mensagem, vassuncê já escreveu ela?
— Está aqui – ele esticou um pedaço de papel.
Candinha não sabia ler, mas ao passar os olhos pelo papel, viu – para
sua surpresa! – que o feitor tinha uma bela caligrafia, delgada e levemente
inclinada. Muito parecida com a caligrafia da própria Sinhá Prisciliana!
— Atenção – ele disse, com os olhos semi-cerrados – muito cuidado,
moleca. Este papel é uma coisa preciosa, jamais deverá cair nas mãos
erradas. Entendeu?
Ela assentiu, com olhos enormes de medo. Deus nos alivre, pensou
ela. Esse papé tem que í pras mão certa.

Naquela mesma manhã, o moleque de recados do Engenho Sant’Ana


chegou à Fazenda Arribação, do Marquês de Suassuna.
O moleque desceu do cavalo, e foi recebido à porta da casa-grande
pela mucama da Senhora Marquesa. Entregou à ela um envelope fechado, e
depois de uma conversa breve, despediu-se.
A mucama entrou em seguida na grande sala de jantar, e pediu
licença para entregar uma carta ao Dr. Augusto. A família, que se achava
reunida em torno da longa mesa de jacarandá e prestes a tomar a refeição
matinal, voltou-se toda para o rapaz.
— Uma carta? De quem, filho? – Perguntou a Marquesa, esticando o
pescoço orlado de pequenas safiras cintilantes.
Augusto tomou o envelope nas mãos e leu. Sua expressão era de
surpresa, mesclada com preocupação.
— Uma carta de um amigo. De São Paulo.
O Marquês deitou mais café na xícara e pegou um pedaço de bolo.
Ao lado dele, o jovem Miguel também tomava sua refeição, mas nada disse.
Apenas lançou ao “primo” um longo olhar.
— Mas de que se trata? – Insistiu a Marquesa, os olhos brilhantes de
curiosidade.
— Ora, minha mãe, nada com que te amofines. Trata-se de um
colega de faculdade. Na certa, aprontou alguma e agora quer o meu
conselho. Nada de importante.
E num gesto displicente, colocou o envelope no bolso do paletó,
tornando a sentar-se. Continuou a tomar sua refeição.
— Ah, esses moços — disse o Marquês. – Para nossa alegria, minha
querida esposa, nem todos são esses biltres que vemos a toda hora, pelas
grandes cidades. Temos a sorte de que nosso filho é um homem de siso.
Além do mais, temos ainda aqui, nosso parente, Sr. Miguel Pereira e Mello,
um jovem de grande caráter e honestidade, que não se furtou a um trabalho
mais humilde, a fim de viver dignamente.
— Ora, senhor Marquês — Miguel pareceu ficar constrangido.- Por
favor, vossa mercê está sendo por demais gentil e generoso. Eu só tenho a
agradecer por tanta bondade, recebendo-me em sua casa, e arranjado-me
trabalho em sua fazenda.
Os olhos azuis do rapaz cintilaram. Augusto tomou o resto de seu
café e levantou-se, apressadamente.
— Obrigado pela refeição, mãe. Com licença.
— Ora, Augusto parece-me tão apressado, mal provou do nosso bolo
de milho! – Resmungou a Marquesa, meneando a cabeça.
O Marquês voltou-se para Miguel.
— Meu caro rapaz, é sempre um prazer receber em minha casa um
Pereira e Mello. Sabes, não cheguei a conhecer muito bem meu tio-avô
Geraldo, pois meu avô deixou a família muito jovem para aventurar-se nas
Américas. Aqui chegando, desposou uma brasileira, e foi cá que nascemos
todos nós e, depois muitos anos, ele nos contou sobre suas origens e sua
família em Portugal. Então ficamos a saber que ele tivera três filhos, sendo
um deles o Sr. Martim, que veio a ser teu avô, pois não?
— Sim, é exato – replicou Miguel, tomando mais um gole de café.
— Sim, sim. É inacreditável como nos afastamos de nossas origens,
pois não? E depois de tantos anos, acabamos por encontrar parentes que
julgávamos jamais encontrar! É um tanto quanto estranho, confesso. Saber-
te nosso parente, neto de meu primo Martim!
Miguel parecia um pouco ansioso. A conversa do Marquês parecia ir
por caminhos tortuosos, os quais ele não estava disposto a percorrer.
— Sim, senhor.
— Dize, Miguel. Martim, ele falou-te algum dia, sobre nós?
Miguel sentiu que sua mão tremia um pouco. Recolocou a xícara
sobre o pires. O ar, dentro da grande sala, já estava abafado, mesmo
naquelas horas do dia.
— Nunca, não senhor. Como eu já disse, eu mal conheci meu avô. Saí
de casa aos quinze anos, devido a um atrito com meu pai. Meu avô,
naturalmente, era um homem conservador e jamais me perdoou.
A Marquesa lançou um olhar crítico sobre o rapaz e ergueu a
sobrancelha.
— Compreendemos perfeitamente, Sr. Miguel. Creio, meu esposo,
que não devemos tocar nesse assunto. O Sr. Miguel já nos explicou tudo,
quando aqui chegou.
— Ah, sim, sim, claro. — respondeu o Marquês.
Miguel levantou-se, agradeceu a refeição e despediu-se do casal,
avisando que ia tocar ao trabalho.
Logo que ele saiu, a Marquesa replicou:
— Novamente, Alberto, tocas nesse assunto. Já percebeste como ele
fica constrangido, quando se fala na família que ele deixou?
— Mas há alguma coisa nessa história que eu não consigo
compreender, minha cara.
— O quê?
— Não sei exatamente. Mas alguma coisa não se encaixa.
— É, não é? – A Marquesa fez um ar zombeteiro, enquanto piscava
um olho. – Eu bem te avisei. Esse rapaz é por demais misterioso.
— Eu sei muito bem o que faço, minha esposa. Embora o jovem
Miguel tenha se mostrado honesto, dedicado ao trabalho e tenha trazido
cartas de recomendação de um homem de posses, em Lisboa (o qual eu
conheço) ainda não sei, ou não tenho certeza, se ele é de fato uma pessoa de
confiança. Mas vou logo saber.
A Marquesa limpou os lábios num guardanapo rendado e replicou:
— E como saberás?
— Espero a resposta de meu parente, filho de Martim Pereira e
Mello, o Sr. Manoel Pereira e Mello. Pai de Miguel. Escrevi-lhe semana
retrasada, perguntando-lhe sobre o filho. O que quer tenha acontecido
entre ambos, se foi coisa séria, e que espécie de coisa foi, tudo isso eu
saberei em breve. Podes estar certa!
A mulher sorriu e chamou a mucama para retirar a mesa.
— Que bom que tomaste esta providência, meu esposo!

Recolhido ao seu quarto, o jovem Augusto viu-se só e tirou,


apressado, o envelope do bolso. Era uma carta endereçada a ele, mas não
tinha remetente.
Rasgou logo o envelope e leu. À medida que lia, sua testa foi se
franzindo, cada vez mais. Seus olhos adquiriram um brilho de curiosidade e
tristeza, ao mesmo tempo.
— Mas que é isso? – Dizia consigo. – Como tal coisa é possível? Que
barbarismo! Que loucura! Isso não poderá ficar assim, é um absurdo!
Terminando de ler, dobrou cuidadosamente a missiva, guardou-a de
novo no bolso, tomou seu chapéu e saiu apressadamente do quarto.

Sentada na cama, Prisciliana mal tivera vontade de trocar de roupa,


ou pentear os cabelos, que caíam como um cortinado sedoso e negro, pelos
seus ombros. Tinha o rosto desfeito pelas lágrimas, e uma dor profunda no
peito, que era misto de medo, tristeza, decepção e saudades.
Que infelicidade! Era jovem, era bela – segundo lhe diziam – era rica.
Mas de que lhe servia tudo isso? Seu pai era um homem brutal. Ainda sentia
o rosto dolorido, e olhando-se ao espelho, vira que estava levemente
inchado devido à bofetada que ele lhe dera. Ele exercia contra ela e a mãe a
mesma crueldade que exercia contra os negros!
Ela e a mãe eram tão escravas quanto todo o resto da senzala,
apenas por terem nascido mulheres...
Ela também chorava por eles, pelos escravos. Sabia que na maioria
dos engenhos haviam os mesmos desmandos, a mesma injustiça, a mesma
crueldade.
Alguém bateu à porta.
Ela nem se mexeu, apenas enxugou os olhos nas mangas da
camisola.
A porta se abriu, e Dona Maria entrou, acompanhada de Candinha,
trazendo a bandeja com a refeição.
— Minha filha!
A mãe correu até ela, e abraçou-a. Ela continuou muda, mas outra
lágrima rolou-lhe dos olhos.
— Filha, por favor! Toma juízo! Sabes como é teu pai... Ele acha que
já é hora de amadureceres, e pensares em casamento. Além do mais, meter-
te no meio dos escravos, arvorando-te o direito de advogada deles, é uma
grande asneira. Sabias muito bem no que isso ia dar.
— Sei, mãe. Sei. – ela apenas disse isso, desanimada. – Eu entendo a
senhora, e a condição a que a senhora se sujeita. Nada pode fazer por mim,
eu entendo.
— Querida filha, se eu pudesse...
Candinha, aflita, esperava que logo terminasse o diálogo entre mãe e
filha, para poder segredar o recado do feitor à sua ama.
Finalmente, Dona Maria levantou-se. Com os olhos vermelhos, disse
que ia tentar falar de novo ao marido.
— Mas por ora tenho de ir-me, querida – disse ela. – Ele logo virá
verificar se...
— Se estou bem trancada aqui, não é? – Gritou Prisciliana, irritada
com a submissão da mãe.
— Desculpa, filha.
— Vá, minha mãe. Vá logo.
— Sinhá Maria, eu posso ficá um bocadinho só com a Sinhazinha? –
Pediu Cândida, com ar medroso. – Quero ajudá ela a se vestir e se pentear.
— Muito bem, podes ficar. Prisciliana, querida, precisas trocar essas
roupas, tomares um banho e te pentear. Deixarei tua mucama aqui.
Dona Maria saiu. Prisciliana voltou um olhar lânguido em direção à
mucama, que se aproximou com um jeito estabanado, mostrando os dentes
num sorriso matreiro:
— Nhazinha, eu perciso contar pra vassuncê o sucedido.
— Contar-me o quê?
— O que o feitô Francisco andou fazendo.
Ela ergueu a cabeça, ao ouvir a mulata falar no feitor.
— Aquele homem miserável... – ela rangeu os dentes. – Por culpa
dele, Candinha, é que estou aqui.
— Sim, sinhá, eu sei, mai ele se arrependeu, ele ficou com peso na
consciência, e pensô num jeito de ajudá vassuncê!
Prisciliana sentiu o corpo tomado por uma espécie de energia, como
se um raio a atingisse. O rosto enrubesceu na hora. Os olhos cintilaram.
Pôs-se de pé, e pediu para que a mucama lhe trouxesse água para banhar-
se.
— Ora, Cândida. Aquele homem com peso na consciência? É difícil
de crer – disse ela, enquanto despia-se para o banho.
— Mas é verdade, sinhá! Eu sei porque ele mesmo me disse.
Havia um quarto para os banhos, numa peça ao lado do quarto de
dormir. Ali, havia uma grande banheira e o local todo era decorado com
azulejos portugueses com motivos de flores. Candinha tinha saído, e voltara
com água quente, que foi despejando na banheira, enquanto falava, muito
agitada. Estava tão aflita para contar tudo, que escorregou com a jarra e
caiu de largo ao lado da banheira.
Prisciliana começou a rir – seu primeiro riso, desde a cena com o
pai, ontem.
— Cuidado, moleca! – Ela repreendeu a escrava, dando-lhe a mão
para ajudá-la. – desse jeito, acabarás quebrando essa tua cabeça dura...!
— Desculpe, sinhá – Cândida ficou de pé – mas eu acho que quebrei
foi outra coisa...
Disse, enquanto massageava as nádegas.
Prisciliana continuou rindo. Depois perguntou:
— Mas essa tua agonia toda tem um motivo. Qual é? O que foi que
aquele homem te disse, que te deixaste assim, tão aflita?
— Ele quis ajudar, sinhá, ele me pediu pra entregar uma carta para
uma pessoa, a única pessoa que podia ajudar vassuncê. Quero dizê, tirá
vassuncê desse castigo...
— O quê?! – Ela ergueu o rosto, rubra de cólera. – Aquele homem,
aquele monstro, ousou escrever a alguém, pedindo ajuda para mim?! Como
se eu precisasse da ajuda dele?
Candida recuou, assustada com a reação da senhora.
— Adescurpe, Nhá. Eu fiz o que ele me pediu pra móde ajudá a Nhá.
Prisciliana conteve a sua fúria. Entrou na banheira, e começou a
lavar-se.
— Fala, Cândida. O que ele disse, e a quem mandou essa tal carta?
— Ele mandô... – a mucama mordeu os lábios. – Pro dotô Augusto.
— Não!
Prisciliana esperneou dentro da banheira, espirrando água e
espuma para todos os lados.
A mucama assustou-se, e escorregou, não caindo por pouco.
— Cândida! – Prisciliana gritou. – Fizeste o que ele pediu?
A escrava assentiu, de olhos baixos.
— Eu queria tanto ajudá, sinhazinha. Que pensei que quarqué ajuda
era boa, até a ajuda daquele miseráve.
Prisciliana parecia furiosa. Começou a se esfregar com força,
molhou o rosto e os cabelos e de repente, saiu da banheira, enrolando-se
numa toalha. Parecia a ponto de explodir de cólera.
— Ah, aquele homem, aquele bárbaro! Ele quer o meu mal, ele me
odeia, Cândida! Eu sinto que ele me odeia. Não contente de me ver
arrastada e supliciada por meu próprio pai, ainda inventou esta história
esdrúxula de “me ajudar”, empurrando-me de vez para o abismo! Eu não
quero me casar com o Dr. Augusto, não quero.
A mucama acorreu, ajudando a senhora a vestir-se.
— Mas, Nhazinha...
— Se eu quisesse casar-me com aquele almofadinha da corte, eu
mesma escreveria uma carta a ele, pedindo-lhe ajuda! Não precisaria da
intervenção daquele bruto!
— Nhá, me perdoe, mai eu acho que não vai precisá se casar co’ele,
não – disse a mucama, trêmula de medo. – Eu acho que se esse dotô quisé
ajudá...
Prisciliana sentou-se diante do espelho. Os raios de sol que
entravam pela janela, punham filamentos dourado-avermelhados em seus
cabelos e um brilho de nácar em seus grandes olhos escuros. Apesar de
tudo, a fúria a tinha deixado ainda mais bela, recompondo a cor do rosto e
dos lábios, e trazendo aquele brilho especial aos olhos.
— Está bem, Cândida. Está bem. Acalma-te, não tens culpa de nada.
Se esse doutor quiser me ajudar, bem, ele me ajudará. Sem pedir nada em
troca.
A mucama meneou a cabeça e sorriu. Um grande sorriso de
luminosos dentes brancos.
CAPÍTULO SEIS

ERAM QUASE dez horas daquela manhã, quando o Dr. Augusto


chegou ao Engenho de Sant’Ana.
Sr. Horácio e D. Maria o receberam alegres, mas uma certa surpresa.
O rapaz explicou que resolvera fazer uma visita, já que o dia estava tão
bonito. E além do mais, trouxera alguns mimos para a Senhorinha Dona
Prisciliana. Assim falando, tirou do alforje um pequeno embrulho em papel
azul-claro, amarrado com uma fita de cetim.
Dona Maria ficou surpresa e deliciou-se com a gentileza e bonomia
do rapaz.
— Ora, mas que delicado, Dr. Augusto! – disse a senhora, segurando
o embrulho.
— Muito bem, vejo que o senhor, então quer ver minha filha. – disse
o Sr. Horácio, sem dar mostras de se sensibilizar com a gentileza. – Vamos
ver.
Augusto permaneceu sorridente, olhando com curiosidade para o
venerável e rígido senhor.
— Maria, manda que a mucama chame minha filha – disse ele, com o
cenho fechado. – Ela deverá vir aqui.

Minutos depois, Prisciliana entrava na


sala. Usava um vestido de algodão com estampa de flores miúdas, de fundo
amarelo-claro e trazia o cabelo arrumado em cachos, que lhe caíam sobre
os ombros. O rapaz admirou aquela beleza natural, que parecia ainda mais
marcante quanto mais simples fossem seus trajes. Como ornamento, ela
trazia apenas um par de brincos de ametistas.
— Como tem passado, senhorinha? – Disse o moço, tomando-lhe a
mão para beijar.
— Bem, obrigada. E o senhor?
— Muito bem.
Dona Maria entregou à filha o presente do rapaz, que era na verdade
um belo corte de renda irlandesa. Prisciliana admirou o presente, sorriu e
agradeceu. Entretanto, seu olhar, em direção ao pai, era frio.
Depois de alguns minutos de conversa, onde falaram amenidades,
Sr. Horácio levantou-se.
— Bem, Dr. Augusto. O senhor é sempre bem vindo em minha casa.
Agora vou ter de ir à vila, fechar alguns negócios. Deixo o senhor por ora,
mas peço que fique e almoce conosco. Estarei aqui pontualmente ao meio-
dia. Até mais ver.
— Muito agradecido, senhor. – respondeu Augusto, com uma leve
inclinação de cabeça.
Sr. Horácio deixou a sala, depois de lançar um olhar satisfeito em
direção à filha.
Dona Maria continuou a conversa, até que Cândida entrou de súbito
na sala e chamou a patroa:
— Sinhá, sinhá Maria!
— Arre, criatura, que modos são esses? – disse Dona Maria,
levantando-se. – Não vês que temos visita?
A mucama fez uma reverência diante do moço, e falou algo em voz
baixa. Dona Maria assentiu, e voltou-se para o visitante:
— Perdoe-me, Dr. Augusto. Trata-se de um imprevisto na cozinha.
Com licença.
Assim que a senhora saiu, acompanhada por Candinha, o rapaz
voltou-se de imediato para Prisciliana:
— Senhora, não sei se imagina por quê estou aqui hoje. Não se trata
de uma simples visita, mas o motivo é muito sério. Veja o que recebi esta
manhã.
Tirou o envelope com a carta anônima do bolso e estendeu a ela.
Prisciliana segurou o papel com a mão trêmula.
— Uma carta anônima – ela disse.
Começou a ler. A primeira coisa que chamou-lhe a atenção era a
bonita letra do feitor. Nunca imaginara que o bruto soubesse ler ou
escrever, e muito menos, que tivesse uma letra tão bela. Depois, ficou ainda
mais surpresa com a correção das palavras e das expressões, e com a
maneira delicada com que ele expusera a situação, falando sobre sua
preocupação com a ira do Sr. Horácio e com o sofrimento dela, Prisciliana.
Ela ainda tremia quando devolveu o papel ao Dr. Augusto.
— Eu fico muito constrangida com isso, senhor. Mas se pensa que
sou eu a autora dessa missiva, está equivocado. Juro por Nossa Senhora e
por todos os santos, que não fui eu! Juro, e sei quem vo-la escreveu. Minha
mucama contou-me tudo, trata-se de um agregado do engenho. Uma pessoa
que presenciou a cena.
O rapaz, preocupado com a sensibilidade dela, tratou de acalmá-la.
— Fique tranqüila, senhorinha, eu sei disso. Pelo tom da missiva dá
para se perceber que ela jamais poderia ter sido escrita pela senhora. Mas o
que me preocupa, não é a carta ou quem a escreveu, porém a situação de
vossa mercê.
Ela ficou rubra. Seu embaraço era tanto, que ela não sabia se olhava
para ele ou se escondia o rosto, fugindo dali. A carta falava que ela fora
presa no quarto por causa de sua atitude junto aos negros, mas a verdade ia
ainda mais além e se ele quisesse ajudá-la, teria de saber toda a verdade.
Constrangida, ela contou. Falou que não queria casar-se com ele, e
esse era um dos principais motivos da fúria de seu pai contra ela.
O rapaz, que já era pálido, pareceu ficar transparente. Ela teve
vontade de chorar, mas de nada adiantaria. Já chorara muito, e o que a
situação precisava, era de uma férrea atitude, coragem, nada mais.
— Sinto muito, Dr. Augusto, sinto tanto por vossa mercê! Mas não
posso concordar com esse acordo entre meu pai e o seu. Lembre-se, vossa
mercê deveria sentir-se tão injuriado com esse acordo, quanto eu! Afinal,
não fomos comunicados de nada, e...
Ele levantou a mão. Ela observou que a mão dele era tão clara, que
as veias azuladas pareciam até salientes, e as unhas, arroxeadas.
— Desculpe, Dona Prisciliana. Mas eu já tinha sido “comunicado”
por meu pai. E infelizmente para mim, claro, eu tinha concordado.
— Oh, meu Deus! Por favor, me desculpe, Dr. Augusto! Mas eu não
posso, nada tenho contra vossa mercê, porém não posso casar-me consigo.
Amo outra pessoa.
Ela disse essas palavras com os olhos baixos. Agora a sorte estava
lançada. Ou ele a perdoaria, ou faria como seu pai e tantos outros homens.
Forçá-la-ia a desposá-lo, mesmo contra a vontade, e faria dela sua escrava –
como aconteceu à sua mãe, quando casou-se com seu pai.
O rapaz parecia embaraçado. Levantou-se, andou um pouco pela
sala. Mas quando voltou a encará-la, tinha nos olhos uma expressão
decidida:
— A senhora diz que ama a outro. Poderia eu saber quem?
— Infelizmente não – ela disse, com firmeza. – mas não quero que
me leve à mal, ou julgue-me uma inimiga por recusar seu pedido de
casamento. Considero-o um homem honrado, e talvez, se eu não tivesse
gostado de outra pessoa teria aceitado casar-me com vossa mercê. Porém,
diante das atuais circunstâncias, isso para mim seria impossível.
Compreende?
Nenhum homem ficaria feliz em tal situação, pensou Prisciliana,
pondo no pálido rapaz os olhos meigos. Pobre dele, será que vai me odiar
por isso?
— Senhorinha. Eu acho que esta situação é realmente complexa e
um tanto triste, tanto para mim, como para a senhora.
Prisciliana torceu as mãos, ansiosa. O que ele queria dizer com isso?
— Sim, senhor e só uma pessoa, só uma pessoa poderia me ajudar,
nesse caso.
—...?
— O senhor.
— Não entendo – ele disse, franzindo a sobrancelha. – Eu? Vossa
mercê acaba de dizer-me que não deseja ter-me como marido. Assim sendo,
nada mais me resta, senão partir. Acho que voltarei à corte, vou trabalhar,
tenho clientes no Rio de Janeiro. Como poderia ajudar?
— Se o senhor disser a seu pai e ao meu, que nosso compromisso
está rompido, mesmo que dissesse que por sua vontade, meu pai não
acreditaria. Ele acharia que eu pedi para romper e continuaria a me
castigar.
— Então o quê sugere?
— Não sei.
— Quer que continuemos com uma espécie de encenação? – ele
perguntou, um pouco intrigado.
— Seria essa a solução, talvez. – ela disse, impaciente. – Só até
encontrarmos um bom motivo para rompermos. O senhor concorda?
Augusto apertou a testa com os nós dos dedos, como se aquela
decisão fizesse-lhe mal. Na verdade, era isso mesmo. Saber-se desdenhado
por uma bonita moça, saber que ela amava outro homem e ainda assim
continuar ao lado dela, como seu noivo de mentira, era algo que lhe parecia
muito difícil. Foi o que disse a ela.
— Mas, Dr. Augusto, por favor! – ela quase implorou.
Ele olhou para o rosto que tinha uma espécie de luz interior. Então
lembrou-se do rosto duro do Sr. Horácio e do quanto ele poderia fazê-la
sofrer, ainda. Ele, Augusto, era de fato o único que podia ajudar aquela
mulher. Então lembrou-se de outra pessoa:
— O outro, o homem que a senhora disse amar. Por que ele não a
ajuda?
— Impossível. Meu pai não o aceitaria.
Então ele disse uma coisa que a alarmou:
— Não teria sido ele o autor anônimo da carta?
— NÃAO!
Ela quase gritou. Então recompôs-se, fechou os olhos e respirou
fundo. O rapaz a olhava desconfiado.
— Não, claro que não. Se ele soubesse, ele mesmo falaria. Não
enviaria carta anônima. Ele é um cavalheiro, mas não soube do que me
aconteceu.
— Entendo. Acredito mesmo que, sendo um cavalheiro, ele teria
feito alguma coisa.
— Ele nada pode fazer. Sua situação e posição social o impedem.
Meu pai jamais o aceitaria.
O rapaz, finalmente, achou que deveria dar uma resposta certa. Não
poderiam continuar com aquele impasse.
— Está certo, senhorinha. Eu concordo com seu pedido. Por pouco
tempo, porém. Manteremos uma espécie de encenação de noivado. Mas
apenas por pouco tempo. A senhorinha, então, tentará encontrar uma
solução para seu problema, pois eu terei de partir para a corte.
Ela olhou para ele com os olhos brilhantes de emoção. Augusto, de
repente, sentiu pena de si mesmo. Por que aquela linda mulher não o
queria? Por quê sofrer em vão por alguém socialmente inferior, que ela
sabia que não seria aceito por sua família? Por quê ela não o amava, como
amava a esse outro? Mas estava feito, pensou ele. Essa linda moça não o
queria. Nada mais restava, a não ser cumprir sua parte no acordo.
— Obrigada, senhor! Mil vezes, obrigada!
Ele sorriu com tristeza.
— Eu nunca saberei como lhe agradecer – ela disse, sorrindo.
— Está bem, Dona Prisciliana. Agora, espero que seu pai a liberte, e
passe a tratá-la com mais delicadeza.
Minutos depois, ele se despedia dela e de Dona Maria, que ficou
radiante, com a notícia do “entendimento” entre a filha e o jovem Doutor.
— Pena que ele não ficou para almoçar – disse a mãe, afagando o
rosto da filha.
— Melhor assim – disse Prisciliana.
— Tens certeza, filha?
— Do quê, minha mãe?
— De que vais aceitar esse rapaz como marido? Ou estás a fazer isso
por medo?
— E me resta outra alternativa?
Prisciliana ergueu o rosto, com altivez. E deixou a sala.

Sr. Horácio ficou desapontado, porque o futuro genro não ficara


para almoçar com eles. Por outro lado, estava muito feliz. Comeu com
vontade, e lançou sorrisos amistosos para a filha, que não retribuiu.
Após o almoço, ele mesmo sugeriu à moça um passeio a cavalo.
— Com o senhor? – Perguntou ela.
— Sim, comigo.
— Prefiro um passeio à pé, só que mais tarde – ela disse,
levantando-se da mesa com o rosto fechado.
Prisciliana estava ansiosa. Precisava falar com Miguel, e tinha que
ser naquele dia. Ele não poderia ficar sabendo do seu “noivado” pela boca
de outrem, ou não iria entender.
Entretanto, não conseguiu sair, uma vez que o pai – todo sorrisos –
decidiu que ela deveria ir à vila, comprar alguma “bugiganga feminina”
para se enfeitar mais.
E dessa forma, passou da hora em que ela marcara de encontrar-se
com Miguel.

Era já noite, quando Sr. Francisco tornou a encontrar a mucama da


Sinhazinha, quando os negros estavam reunidos em torno do fogo.
Os escravos olharam para ele com certa surpresa. Durante todo o
dia, o feitor tinha se mantido de cara fechada – como era o normal – porém,
não tinha cometido nenhuma crueldade.
Ainda assim, era com certa reserva e ódio que olharam para a figura
alta, o rosto queimado de sol, os olhos fundos e escuros. Parando diante das
mulheres, ele apontou com o cabo do chicote para Candinha.
— Vosmecê! Venha cá.
A mucama levantou-se e o seguiu, sob os olhares atentos e
desconfiados dos outros negros.
— Vassuncê ta pensando o mesmo que eu? – Perguntou uma das
negras, olhando para Crispim.
— Sei não, Rosa. O que vassuncê pensa?
— Desse feitor mardito, aí.
A negra era uma mulher de cerca de trinta anos, bem feita de corpo,
cintura flexível, e um rosto de traços delicados. Mas nos olhos havia um ar
de desprezo e ódio mortais.
— E o quê vassuncê pensa dele?
— Que esse traste ta querendo alguma coisa com a tua irmã.
Vassuncê não percebeu ainda, não? Ele está nessa lengalenga[14] desde
ontem. Eu vi quando ele chamou a Candinha lá para o casebre dele.
— Nem brinca com isso, Rosa! – Gritou Crispim, exaltado. – Eu num
acredito que Candinha fizesse uma loucura dessa. Se deitá com esse
desgramado.
Mas os olhos brilhantes de indignação da negra diziam o contrário.
Entretanto, Candinha seguiu o feitor até próximo das casas dos
trabalhadores, mas desta feita não entraram. Francisco achou melhor não
dar impressão falsa aos outros negros e aos homens brancos que
trabalhavam por ali.
— E então, negrinha? – disse ele, com a mesma expressão feroz. –
Falou à tua dona? Fez como te mandei?
— Sim, sinhô. Fiz, e o moleque foi até a fazenda.
— Eu sei, eu sei, vi quando aquele biltre afeminado chegou aqui,
hoje de manhã.
— O sinhô tá falando do moço Dr. Augusto?
— Claro que estou falando dele.
— Mas ele ajudou a sinhazinha.
— Pelo menos pra isso que sirva – rosnou ele, entre dentes. – Mas e
vosmecê explicou o que eu fiz?
— Sim, sinhô. A sinhazinha ficou muito enraivecida, mas depois
achou que era bem feito.
— Bem, ao menos o Sr. Horácio agora não vai mais zangar-se com
ela. – Ele disse, como se falasse consigo mesmo.
— Nisso o sinhô tá certo.
— Bem, mas eu lhe chamei aqui por outra razão, Candinha. Vou
precisar de mais um favor seu, digamos assim.
A mulata arregalou os olhos. Francisco pedindo “favor” para uma
escrava?
— Sim sinhô, se for pro bem da sinhazinha, eu faço quarqué coisa.
— Sim, é para o bem dela, e também para o seu e do seu irmão – ele
rosnou, ainda acariciando a ponta da chibata.
Ela cruzou os braços, sentindo um frio súbito.
— Eu preciso que fale novamente com sua sinhazinha.
— De novo, sinhô?
— Sim. É um recado meu. Mas veja bem, menina. Só ela. Só ela
deverá saber desse recado. Em hipótese alguma vosmecê deverá abrir a
boca perto de outra pessoa, exceto ela, Dona Prisciliana.
Candinha assentiu e ficou calada, ouvindo o que Francisco tinha a
dizer.
CAPÍTULO SETE

O DIA amanheceu com uma leve aragem fria, mas por volta das oito
horas da manhã o movimento no engenho já era grande e o calor também.
Como costumavam dizer os cronistas franceses daquela época, num
engenho, tudo é trabalho, nada de apatia, não se perdia uma só gota de
suor.
Prisciliana levantava-se cedo, mas naquele dia, ainda mais. Sem
muitas delongas, tomou seu café e disse ao pai e à mãe que queria ir à uma
costureira da vila, mandar fazer um vestido com o lindo corte de rendas
que recebera de presente do Dr. Augusto.
Foi-se, antes das oito horas, acompanhada de Candinha. Passara na
costureira, mas ao voltar para casa, dirigiu a charrete para um atalho que
passava nos fundos do engenho. Candinha nada disse, mas imaginava o que
ia suceder.
A senhorinha parou numa estrada antiga, usada às vezes pelo
pessoal do engenho ou da Fazenda Suassuna, mas que no geral, estava
sempre deserta.
Desceu da charrete e disse à mucama:
— É por aqui. Tu ficas, Cândida, que logo volto.

— Sinhá, num é perigoso? Vosmecê tem


certeza que num carece eu ir junto?
— Que tolice! Eu só não compreendo por que Miguel escolheu um
lugar diferente para nosso encontro, e um horário também diferente, mas
vamos lá.
A mucama olhou para ela com olhos brilhantes:
— Sinhá, tomara Deus que tudo corra nos conforme.
Prisciliana retribuiu o sorriso da mucama e encaminhou-se para
uma vereda, na mata, seguindo até um grande descampado.
Nunca tinha ido ali, mas percebeu que o local também era aprazível.
A relva era tenra e algumas árvores esparsas, aqui e ali, projetavam
sombras frescas por todo o descampado.
Ela tirou o chapeuzinho e jogou-o no chão. Respirou fundo o ar
matinal e nunca o canto dos pássaros lhe parece tão sonoro, tão cheio e
harmonioso.
Ela tinha estado muito aflita, pensando em como comunicar-se com
Miguel, mas o dia anterior passara sem que nada, ou ninguém lhe
inspirasse um pouco de alento. Finalmente, à noite, a resposta chegara.
Ela suspirou e quando ouviu um ruído de passos próximos, sentiu
que o coração disparava. Sim, era ele! Mas por que ela estava tão
pressurosa, tão aflita? Havia alguma coisa dentro dela que não estava como
deveria, que não era natural. Afinal, ia reencontrar o homem que amava.
Mas por que essa perspectiva a punha tão pouco à vontade? Não era por
isso que tanto ansiava? Ou estaria dando um passo em falso? No último
encontro, sentiu-se mal, quando o contato entre eles se tornara mais
íntimo. Era como se ainda restasse certa dúvida, quanto aos seus
sentimentos por ele. Mas por quê? Oh, ela pensou, como esses assuntos do
coração são complicados. Pensei que, finalmente, tinha conseguido seguir na
direção certa. Miguel era o homem ideal, o idealizado por ela durante todos
os anos da juventude, a encarnação e a fonte dos sonhos de toda moça
romântica.
Ela puxou os cachos do cabelo castanho e lustroso, numa espécie de
irritação angustiosa.
Sim, ele era, mas ela era uma moça como as outras? Seu pai dizia
que não. Era uma rebelde.
Ela estava assim, quando os passos se aproximaram, e ela pôde
avistar o vulto alto e maciço de um homem. Sorriu, mas quando ele chegou
à orla do descampado, o sorriso morreu-lhe nos lábios.
Diante dela, estava o feitor, Sr. Francisco.
Ela quis gritar, mas sentiu-se sufocada. Medo, susto, indignação,
tudo isso ardeu em seus olhos quando viu o homem diante de si. Tinha sido
enganada?!? Ou aquele crápula conseguira descobrir seus amores com o
jovem português?
Ela soltou um gritinho sufocado. Pôs as mãos sobre o peito.
Tinha soltado o xale algodão, e estava com os ombros e o peito nus,
ostentando o garrido vestido rosa que ela tanto gostava. A brancura nívea
de sua pele brilhava contra o fundo verde-escuro das árvores.
— Acalme-se, sinhazinha. – disse o homem, quando aproximou-se
dela.
Ele tirou o chapéu, e ela pela primeira vez, ela pôde ver com nitidez
o rosto dele. Com certa surpresa, observou que ele tinha os traços do rosto
regulares e olhos fundos e muito escuros, que luziam feito brasas numa
noite sem lua. Tinha os cabelos também escuros, com raros fios brancos e
um queixo firme.
Sentiu-se tonta. Que significava aquilo? O que quereria aquele bruto
com ela?
— Senhor, não compreendo. Que faz aqui?!
— A pergunta deveria ser dirigida a vosmecê, Dona Prisciliana.
Ela sentiu o suor brotar-lhe na testa. Aquele homem tinha o dom de
perturbá-la, tirá-la fora dos seus sentidos normais. Ele a amedrontava. Era
como se todo o seu corpo se arrepiasse com a aproximação dele, numa
reação de angústia, medo e ódio ao mesmo tempo. Mas havia mais alguma
coisa... que ela não conseguia entender. Alguma coisa em seu corpo, e uma
vozinha fraca que falava-lhe em sua cabeça numa linguagem que ela não
conseguia entender. Ou talvez não quisesse entender.
Ela virou o rosto. Os olhos daquele bruto pareciam queimá-la por
dentro e por fora. O que ele estaria querendo?
— Que deseja, Sr. Francisco? – ela perguntou, numa voz que se
esforçava por parecer firme.
— Sinhazinha.
A voz dele era um sussurro, o que a assustou mais ainda. Estava
acostumada a ouvir a voz daquele homem sempre áspera, irritada ou aos
brados, incitando os negros ao trabalho ou praguejando. Aquele tom
sussurrado era estranho. Ela deu um passo atrás.
— Fale, por favor! Que deseja?
— A minha sinhazinha não sabe? Ou não adivinha?
— Como eu poderia?
Ele sorriu. A expressão dele era estranha, ela pensou. Ele me olha de
um jeito ousado! E aquela maneira de falar: “minha” sinhazinha. Era um
abuso.
— Eu vou embora – disse ela, decidida a afastar-se logo daquele
homem, que a punha tão agitada.
— Vai, não! Ou seu pai vai ficar sabendo de tudo e seu noivo
também – ele disse, com uma nota de ironia na voz.
Ela parou. Então era isso!
— Que disse?
— O que vosmecê ouviu.
— Sobre o quê está o senhor falando? Não o compreendo.
Ele sorriu de novo e soltou o chapéu, que caiu no chão. Aproximou-
se dela, tanto que ela podia sentir o cheiro que vinha dele. Ela sentiu que o
sangue gelava-se em suas veias.
— Claro que vosmecê sabe, Dona Prisciliana – a voz dele ainda era
sussurrada. – Eu falo dos seus encontros às ocultas com o português, o
almofadinha da fazenda Suassuna.
— Quê?
— Vosmecê agora sabe que eu sei.
Ela sentiu o ódio crescer em seu peito. Desejou ter uma arma nas
mãos. Desejou ter uma faca, qualquer coisa com que pudesse ferir aquele
canalha!
— O senhor é... repugnante! – ela cuspiu as palavras, o rosto
enrubescido, olhos cintilantes.
Então ele deu mais um passo e ela viu-se presa entre as mãos
calosas dele.
— Que está vossa mercê fazendo, Sr. Francisco...? Tire as mãos de
mim, pelo amor de Deus!
Ele primeiro prendera-lhe os braços, mas não a machucou, apenas
segurou-a com firmeza e puxou-a para perto de si. Ela viu-se, então, muito
próxima do rosto dele e sentiu o hálito quente em seu pescoço, quando ele
disse:
— Eu quero vosmecê, Dona Prisciliana.
Ela sentiu uma vertigem, mas conseguiu ainda protestar:
— O senhor é um monstro, um monstro lascivo e cruel, senhor
Francisco!
— Cala essa boca, mulher frívola, nada sabe vosmecê dos
sentimentos de um homem, um homem! Eu falo de um homem, não de um
tolo estrangeiro que fala palavras bonitas decoradas de livros. Vosmecê não
sabe o que eu sinto!
Ele a tinha preso firmemente entre os braços fortes. Prisciliana
sentiu as pernas amolecerem e o coração parecia explodir de susto.
— O senhor vai pagar caro por essa ousadia...!
— Eu já pago caro por isso, toda noite, quando penso na sinhazinha,
minha patroa!
— Solte-me, por favor!
Ela gemia, ofegante. Francisco empurrou-a contra uma árvore
próxima e falou de novo, a voz arrastada e trêmula e o olhar um animal
faminto pousado no rosto dela:
— Vosmecê nunca imaginou, não é mesmo? Que eu pudesse
sentir...? Mas sinto, não me pergunte o quê, pois que não sei, a única coisa
que sei, é que quero vosmecê, quero tocar vosmecê, quero beijar essa sua
boca...
Ela não conseguiu reagir e evitar que ele aproximasse a boca da sua
e a beijasse avidamente. Ela tentou manter os lábios cerrados, mas ele
forçou-a a abri-los, sua língua penetrou-lhe a boca e sugou-a com força,
numa ânsia gigantesca, como se daquele beijo insano dependesse sua vida
toda, como se da boca dela ele fosse tirar um hausto salvador.
Prisciliana debatia-se, tentando virar a cabeça, mas ele era forte
demais. Finalmente, ele ergueu a cabeça, a boca ainda úmida e falou:
— Eu quero vosmecê, sinhazinha, eu preciso...!
— Não sabe o que está dizendo! Ficou louco! Louco! Meu pai matará
o senhor!
— Ele pode me matar se quiser, pra mim pouco importa.
— Por favor, solte-me!
Ela já não sabia mais o que fazer. Ao mesmo tempo o odiava e
desprezava, mas a loucura do desejo dele a agitava e despertava nela
emoções estranhas.
— O senhor está me confundindo com uma rameira...! – Ela gritou,
quase chorando.
Então ele relaxou o amplexo. Soltou-lhe os braços, e ela pôde
afastar-se um pouco, com passos trôpegos.
— Não, sinhazinha, nunca eu ia sentir por uma rameira o que sinto
por vosmecê.
Ela pegou o xale do chão e cobriu-se com ele, ainda tremendo.
— Vossa mercê perdeu o juízo, Sr. Francisco – ela disse, ofegante. –
Como pode dizer essas coisas, fazer essas coisas...
— Não sei, eu só sei que quando olho pra vosmecê perco meu juízo.
Ele estava ali diante dela, suado, a camisa grosseira de algodão
entreaberta e o peito largo à mostra.
— Não pode ser assim, Sr. Francisco – ela falou, meio insegura. –
Sabe que seus sentimentos por mim jamais serão correspondidos, que meu
pai o matará se souber. Além de tudo isso, vossa mercê sabe muito bem o
que penso do seu “trabalho”. É um homem mau, Sr. Francisco.
Então lembrou-se do ardil que ele usara, da carta anônima. Afinal,
fizera alguma coisa digna.
— Sei que vossa mercê escreveu a carta anônima para o Dr.
Augusto, a fim de ajudar-me. Fico muito agradecida ao senhor por isso, mas
não me peça nenhuma espécie de retribuição.
Ela fez menção de afastar-se, quando ele gritou, ainda meio
ensandecido:
— Sinhazinha, vosmecê ainda vai vir para mim.
Ela voltou-se para ele, com os olhos incendiados de ira e aflição:
— Está louco! Ficará longe de mim, Sr. Francisco! Esqueça-me!
— Vosmecê ainda será minha, por bem... ou por mal.
Ele estava ofegante. Por um momento, ela o comparou a Miguel, e
uma abstração louca veio-lhe à mente: A selvageria dos sentimentos deste
homem eram tão naturais quanto puros – embora ela ainda não soubesse
exatamente como isso podia acontecer – enquanto os de Miguel pareceram-
lhe um pouco deslocados e superficiais...
Afinal, ela lançou a ele um último olhar, e correu para longe dali.

Nos dias que se seguiram, tudo pareceu mudado para Prisciliana.


Em casa, a mesma rotina punha-a irritada, nervosa. Já não se contentava
em ficar bordando, sentada na sala ou no alpendre, na companhia de
Candinha ou das outras negras domésticas.
Tinha vontade de sair dali, de fugir, correr pelos campos, deitar-se
na relva, tomar banho no riacho, gritar, voar até mesmo. Alguma coisa
dentro dela parecia explodir de ansiedade. Era o seu coração, angustiado.
Nada comentara com Candinha sobre o “encontro com o Sr Miguel”,
pois que a mucama acreditava que fora com este o encontro misterioso.
Também não tivera coragem de denunciar a loucura do feitor a ninguém.
Resolvera esquecer o incidente, muito embora, no seu coração, aquilo
tivesse ficado marcado como ferro em brasa.
Durante uma viagem à vila, comprava gêneros no armazém junto
com a mãe, quando foi surpreendida. Estava olhando para as mercadorias,
quando ouviu um tropel de cavalos. Alguém mais entrava no armazém.
Ela ainda observava os produtos, quando Dona Maria voltou-se
para o recém chegado.
— Ora, bons dias, Sr. Miguel! Como o senhor tem passado? – disse
Dona Maria.
— Bons dias, senhora.
Prisciliana voltou-se, assustada. Deparou-se com o guapo rapaz, que
olhava para sua mãe com um ar sereno. Voltou-se em seguida para ela e
inclinou a cabeça, respeitosamente.
— Bons dias, Dona Prisciliana.
Ela ficou embasbacada. Finalmente, o encontrava! Mas em que
circunstância mais imprópria... Torceu as mãos, confusa, mas respondeu.
— Bons dias.
— Dize-me, Sr. Miguel. Como tem passado a senhora Marquesa? –
Perguntou Dona Maria. – Há já muito tempo que não a vejo. Preciso
convidá-la para passar uma tarde em nossa casa. Afinal, temos muitos
assuntos a tratar, agora, com o noivado de nossos filhos.
— Sem dúvida – ele disse, sorrindo amavelmente. – A senhora
Marquesa passa bem. Se a senhora quiser, transmitirei a ela seu recado.
— Ah, por favor! Faça isso, sim?
E Dona Maria voltou-se outra vez para o galego[15] do balcão, e
continuou a ler sua lista de compras.
Prisciliana baixou os olhos. Mordia os lábios, pois percebeu que
Miguel estava apenas fingindo olhar as mercadorias. Provavelmente,
descobrira por algum meio que ela estaria na vila. Decerto, quereria falar-
lhe.
Ela retirou da bolsinha o leque, e pôs-se a abanar-se. Saiu para fora
do estabelecimento.
A vila era um agrupamento agro-pastoril de casas, algumas poucas
lojas onde se vendiam gêneros alimentícios básicos, como carne-seca, feijão
e milho. Não havia lojas de roupas, apenas uma costureira, e quando as
senhoras abastadas queriam comprar tecidos mais finos, tinham de ir à
capital da província, ou encomendar aos mascates.
O agrupamento de umas poucas casas, algumas lojas, sobrados e
tavernas, tinha como centro uma pequena praça calçada com pedras, e um
quiosque. Havia ainda, um pouco mais ao longe, a pequena igreja onde o
Padre Freitas era o capelão.
Prisciliana caminhou sem pressa para o quiosque, e lá sentou-se,
para abrigar-se do sol quente.
A poucos metros, estava a charrete que ela e a mãe usavam, e na
qual estava o moleque do engenho, que a guiava.
Não demorou muito que Miguel se aproximasse dela. Ao mesmo
tempo que ansiava, ela temia por aquele encontro.
O rapaz parecia um pouco desconfortável, mas falou com firmeza:
— Precisava tanto falar-te, Prisciliana.
— Agora estamos a sós, fala – disse ela.
— O quê aconteceu? Não mais foste ao meu encontro, esqueceste-
me?
Ela ficou embaraçada. Não podia contar sobre a tempestade de
emoções de que estava possuída, muito menos do que o feitor descobrira.
— Não, Miguel, não te esqueci, porém aconteceram coisas, muitas
coisas que me impediram de ir a teu encontro. Nada soubeste, não é
mesmo? Ninguém ousaria te contar, mas meu noivado, meu noivado com o
Dr. Augusto é apenas um embuste.
— Como, um embuste? Augusto trouxe a notícia para a fazenda,
parecendo muito contente. O Marquês e a Marquesa estão felicíssimos e já
fazem planos sobre o casamento do filho, e eu fiquei muito desapontado,
Prisciliana.
Ela ergueu o rosto contorcido de angústia para ele:
— Miguel, perdoa-me! Perdoa-me, mas eu estava sendo maltratada
por meu pai, porque recusava-me a casar com o Dr. Augusto. Ele prendeu-
me em meu quarto, bateu-me. Se eu me recusasse, nem imaginas o que ele
me teria feito. Meu pai é um homem às antigas.
— Então, tu concordaste – ele pareceu ficar com o rosto turvado
pela tristeza. – E nada me disseste. Nem ao menos um aceno, nem uma
única vez foste ao meu encontro, para me dizeres que estava tudo acabado
entre nós.
— Oh, eu não quis dizer isso. Não está acabado, mas por favor,
tende paciência, só mais um pouco, como já te disse, meu noivado é só uma
encenação, até que o Dr. Augusto encontre um bom pretexto para
desfazermos o compromisso.
— Ora, bem vejo que não estás mais como antes, há alguma coisa
em ti que mudou.
Ela voltou para ele os olhos castanhos, onde o sol punha reflexos
dourados.
—Nada mudou. Por favor, Miguel, só te peço que compreendas.
Ele parecia ansioso, e sentou-se ao lado dela. Ela levantou-se de
imediato, pois quem os visse naquela atitude, imaginaria que algo se
passava entre eles.
— Está bem – disse ele – Mas então dize. Irei amanhã de novo ao
nosso recanto, perto do riacho. Estarás lá também?
Ela refletiu por um momento, enquanto brincava com a bolsinha de
seda. Falou:
— Farei todo o possível para estar.
— Ainda me amas? – Ele perguntou, com uma voz sussurrada.
— Ah, claro que sim. Agora, Miguel, devo ir-me. Minha mãe ficará
surpresa se nos vir juntos aqui. Até logo.
Ela saiu do quiosque a passos rápidos e Miguel seguiu-a com uns
olhos repletos de desconfiança.
CAPÍTULO OITO
AS NOITES, no engenho, eram mansas e tão silenciosas, que era
difícil imaginar como durante o dia havia tanto barulho. Depois que os
negros se recolhiam à senzala, tudo ficava calmo. Somente havia o cricrilar
dos grilos, e um ou outro ruído de aves noturnas.
Como no sul do Brasil o clima é mais ameno, pelo início do outono
fazia muito calor durante o dia, mas as noites eram frescas, quase frias e
um vento gelado às vezes arrepiava as copas das árvores.
Em noites menos frias, os negros costumavam dormir mais tarde,
pois aproveitavam para conversarem um pouco. Naquela noite, porém, em
que a temperatura estava mais baixa, todos já estavam dormindo,
amontoando-se uns sobre os outros para se aquecerem melhor. Somente
um ainda estava acordado.
A senzala era fria e desolada, pois o vento entrava por todas as
frestas. Esfregando os braços quase nus, Crispim estava sentado sobre
alguns trapos, o olhar perdido no lusco-fusco que envolvia o ambiente, o ar
tristemente pensativo.
Rosa, a mulata que dormia ao lado dele, ergueu a cabeça, esfregou
os olhos e esticou o braço, colocando a mão no ombro dele.
— Vassuncê ainda não dormiu? –ela perguntou.
— Num consigo pregar o olho.

— Pru quê? – A mulher piscou,


sonolenta.
— Rosa, o quê vassuncê acha da sinhazinha Prisciliana? – ele
perguntou, olhando para ela com atenção.
— O quê eu acho? Ara, Crispim, pra móde quê vassuncê tá
perguntando isso agora?
— Ela num parece uma flô?
— Quê é que vassuncê ta dizendo, homem?
Rosa pôs-se sentada, e segurou o braço dele, olhando-o com os
olhos muito abertos.
— Ué, eu disse que sinhazinha parece uma flô. Tão bonita feito uma
flô, tão bondosa feito um anjo. Até nem parece filha daquele homem
desgraçado. Vassuncê soube o quê ela fez por mim, não soube?
Rosa jogou uma manta grosseira sobre os ombros e franziu a testa,
ao responder:
— Soube.
— Então.
O homem parecia imerso em sonhos, a fisionomia fitando alguma
coisa vaga e inefável, um sorriso nos lábios. Rosa pressentiu que algo nada
bom se passava com seu companheiro:
— Acho que vassuncê ta variando, Crispim. Deixa de chiste, home!
Vassuncê tá falando da fia do Sinhô Horácio, aquele diacho dos inferno!
— Pois então. É por isso mesmo que eu fico assim, sem entender,
Rosa. Como é que aquela menina, com coração de ouro e a face mais linda
do mundo, pode ser filha daquele bicho ruim.
— Ô, Crispim, será que vassuncê abilolô[16] de vez...? Tá caído de
amor pela sinhazinha, home...?
Rosa tinha arregalado os olhos.
Crispim levantou-se de um salto, olhando para os lados com uma
expressão de medo.
— Vassuncê cala essa boca, criatura! Eu...? Eu não! Que Deus me
livre! Só porque acho que a sinhazinha é um anjo de bondade, pro móde que
me ajudou e me livrou das garra do feitô, vassuncê fica aí falando essa
bobajada!
— Antão vassuncê pare de ficá falando dela toda hora, homem.
Pensa que eu não vejo, como oia pra ela, quando ela passeia por aí?
Crispim parecia transtornado com as palavras de Rosa. Meneou a
cabeça com raiva e tornou a sentar-se ao lado dela.
— Pára com isso, Rosa. – sua respiração era ofegante. – Preto, pra
eles, não é gente, é bicho.
— Até pra sinhazinha?
— Isso não sei, não. Mas é melhor não se falar mais nisso. Vamo
durmi.
Deitou-se, encolhendo-se sobre a palha, e puxou o ralo cobertor que
a companheira lhe estendeu. Mas quando fechou os olhos, pouco antes de
adormecer, ainda era o rosto claro e luminoso da sinhazinha que ele viu,
sorrindo-lhe de um jeito que lembrava raios de sol, jorrando por uma
janela aberta.
Não muito longe dali, num quarto bem mobiliado, deitada sobre
uma cama em dossel e sobre um travesseiro de ervas cheirosas, Prisciliana
também não conseguia conciliar o sono. Revirando-se de um lado para
outro, ela finalmente atirou longe o cobertor e pôs-se sentada sobre o leito.
Apanhou um jarro com água, sobre o criado mudo e despejou num copo.
Tomou um gole e recolocou o copo no lugar, com um ar aflito.
Jogou as pernas para fora da cama, ainda indecisa se levantava ou
tentava dormir, mas sabia ser isso impossível. Não conseguiria. Tinha um
turbilhão de ideias dentro de sua mente, que a punham num estado de
excitação insuportável, e cada uma das questões que se lhe ofereciam, ela
teria forçosamente de responder, de encontrar uma resposta, ainda que
tais respostas lhe custassem ainda mais dor e sofrimento.
A primeira das questões, era Miguel. Já não sabia mais o que sentia
por ele, tampouco se iria ao encontro dele, no dia seguinte. A outra questão
ela mal podia pensar naquilo. Mas a outra questão era o Sr. Francisco.
Percebera que nos últimos dias, tinha ouvido poucos rumores sobre
sevícias contra os negros, embora ela não tivesse tentado se aproximar
novamente da senzala. Talvez seu pai, contente por ela estar “noiva”,
estivesse de bem humorado, e isso acarretasse menos zanga e menos
crueldade contra os escravos. Ou talvez o feitor estivesse menos brutal,
agora.
Ela suspirou, quando pensou nele. Aquele homem a beijara! A
lembrança daquele encontro era de tal forma contundente, que não lhe saía
da cabeça. Era um misto de medo, susto e... Ah, ela não queria pensar nisso,
mas toda vez que varria aquela lembrança da mente, alguma coisa dela
ainda ficava, impertinente, atroz, como um espinho na carne.
Ela não queria pensar nele, mas pensava, pensava cada vez mais e
nas palavras dele. Vosmecê ainda será minha, por bem...ou por mal.
Um arrepio percorreu-lhe o corpo, ao lembrar dele, das palavras
dele, sussurradas, ternas e ásperas ao mesmo tempo e o gosto daquele
beijo roubado, daquela boca ousada contra a sua, o cheiro dele, as mãos
dele apertando-lhe os braços. Aquele homem era um bruto. Mas aquela
brutalidade dele tinha alguma coisa que mexia com ela, com seu corpo.
Ela fechou os olhos, tentando apagar da cabeça a lembrança da
lascívia dele, mas era impossível. Aquele homem a queria! E ela...? Por que
não parava de pensar nele, em seu beijo agressivo, com gosto de pecado?
Não gostava dele, tinha-lhe ódio! Talvez precisasse se confessar e contar ao
padre todos os erros. Talvez assim conseguisse tirar da cabeça aquelas
barbaridades.
Ela suspirou e achegou-se à janela, abrindo-a. A noite estava fria, e
uma lua cheia, dum branco azulado, boiava tranqüila e altaneira no céu. As
estrelas também piscavam, por entre fiapos acinzentados de nuvens. Ela
não sabia o por quê, mas aquela aragem fria da noite a fazia pensar em
alguma coisa quente, alguma coisa com a qual ela pudesse se aquecer, mas
não eram os cobertores de sua cama de virgem.
Finalmente, sem conseguir mais conter aquela ânsia, ela cobriu o
rosto com as mãos. Ah, céus! Ela precisava disso, precisava. Não poderia
mais ter paz se não conseguisse isso.
Teve uma ideia, uma louca, absurda e desesperada ideia. Ia arriscar-
se, mas precisava.
Vestiu um roupão de seda, apanhou a vela e saiu do quarto, pisando
de mansinho para não acordar os outros.
Viu-se no grande corredor às escuras. Continuou caminhando, até
chegar no final, quando dobrou à esquerda. Saiu numa sala menor,
mobiliada com uma cadeirinha de dois lugares, uma cômoda antiga e
algumas tapeçarias. Do lado esquerdo, havia uma porta, que Prisciliana
abriu. Entrou em um quartinho pequeno, de dimensões modestas. Ali não
havia móveis, com exceção de um pequeno catre. Dois grandes cestos de
vime e um pequeno baú completavam a “mobília”.
Deitada no catre, enrolada em um cobertor, estava Candinha.
Prisciliana acordou-a, sacudindo-a de leve.
— O quê foi, o quê é, Sinhazinha?! Que hora são?
— Depressa, Candinha. Agora vou precisar de teus préstimos, e o
mais importante deles, é a tua absoluta fidelidade. Porque hoje vou fazer
uma coisa, da qual espero não me arrepender depois e tu serás a única a
saber desse segredo.
Candinha pôs-se logo de pé, e encarou a sinhazinha.
— Minha Nossa Senhora! A Sinhá sabe que pode conta sempre
comigo.
— Preciso agora, Candinha, de tuas roupas.
— Minhas?! Roupa?
— Sim, isso mesmo. Arranja-me agora um daqueles teus vestidos,
um dos mais escuros e um dos teus turbantes, também.
Candinha, diante da desusada pressa da senhora, acorreu a abrir
seu baú, tirando dele as peças que ela pedia e estendendo-as sobre a cama.
— Minha sinhá, que hora é...?
— Não sei, talvez quase dez horas, todos estão dormindo. Mas eu
preciso de tuas roupas, Candinha. Porque preciso sair da casa-grande e
resolver um assunto meu, mas ninguém pode ver-me, compreendes?
Candinha meneou a cabeça e tratou de ajudar a senhora a tirar o
roupão e a camisola, e a vestir suas roupas de escrava. Quando terminaram,
o resultado ficou muito estranho, e a mucama não pode esconder um
sorriso travesso.
— Sinhazinha! Quando que eu haveria de imaginar uma coisa
dessas? Ver vassuncê vestida com roupa de escrava.
Prisciliana sorriu, mas tinha pressa. Pediu:
— Ajuda-me a esconder meus cabelos, apressa-te, moleca!
A mucama obedeceu, mas ainda estava curiosa e preocupada:
— Descurpe, sinhá, mas vassuncê vai se encontrá com o tal moço?
Prisciliana olhou para a mulatinha e assentiu. Precisava confiar
nela. Mas sabia que podia confiar.
— Sim. Vou.
— E onde ele está, a essas horas da noite? Num é muito tarde,
sinhazinha?
— Deve ser, mas eu sei onde encontrá-lo, não te preocupes. Vai dar
tudo certo. Arranja-me, agora, uma das suas mantas de algodão, para que
eu cubra as espáduas. A noite está fria.
A mucama arranjou-lhe uma manta larga, marrom-escura, que
Prisciliana jogou sobre os ombros.
— Toma cuidado, sinhazinha.
— Tomarei, não te preocupes.
Deixando a escrava ainda um pouco temerosa, ela saiu do quarto.
Em alguns momentos, tinha atravessado toda a casa, e saído pela porta dos
fundos, dando graças a Deus por não encontrar mais ninguém acordado,
àquela hora.
Saindo para o pátio, olhou para todos os lados, e não avistou
ninguém. Os cães, alguns vira-latas magros que um dos agregados criava,
estavam do outro lado, não a veriam. Caminhou rapidamente e atravessou
o pátio. Da casa-grande até a casa da moenda e os casebres era uma boa
pernada, mas ela transpôs a distância em menos de um quarto de hora.
Então, puxou ainda mais a manta marrom sobre os ombros,
temendo encontrar algum dos brancos ou mesmo dos negros, zanzando por
ali, embriagado ou pitando seus cachimbos, como era costume fazerem à
noite.
Para seu alívio, não havia ninguém. Os casebres pareciam todos
adormecidos.
Ela continuou caminhando resoluta, embora suas pernas
estivessem um pouco trêmulas, ela pensou muito em voltar, esquecer essa
loucura, esquecer tudo. Talvez fugir, ou casar-se com o Dr. Augusto, mas
alguma coisa em seu corpo a impulsionava.
Finalmente, chegou aos casebres rústicos, que ficavam atrás da
senzala. Sabia exatamente qual era, porquê um dia precisara ir até lá, com o
pai.
Aproximou-se da porta de madeira, e com a mão trêmula, bateu. Viu
que, lá dentro, havia uma luzinha amarelada. Será que ele estaria
dormindo?
Demorou um pouco, mas a porta finalmente se abriu, e o rosto de
linhas duras surgiu diante dela. O feitor não tinha o ar de quem estivera
dormindo, ao contrário. Parecia bem desperto, olhou-a quase sem acreditar
no que via.
— O quê...? Espera. Vosmecê, Dona Prisciliana!
— Sr. Francisco, preciso falar com o senhor.
— Falar-me? – Ele parecia aturdido. – Mas e essas roupas?
— Tive de valer-me disso, para não ser reconhecida, há muitas
escravas mulatas, quase brancas. Se alguém me visse à noite, talvez não me
reconhecesse.
Ele afastou-se, para que ela entrasse.
— Entre, sinhazinha.
Ela entrou, trêmula de susto e ao mesmo tempo, com uma espécie
de exaltação tomando-lhe todo o corpo.
O interior do casebre era humilde, quase miserável. Tinha apenas
dois cômodos, e ela se encontrava no quarto onde ele dormia. A cama era
apenas um velho estrado, com um colchão antigo, manchado de mofo.
Entretanto, nada daquilo a espantava ou fazia diminuir a determinação de
que ela se achava tomada.
— Então, vosmecê veio.
— Não é o que o senhor pode estar pensando – ela disse, sem
convicção.
— Não? Então a que veio? – ele perguntou, sorrindo.
Prisciliana ficou subitamente envergonhada. Aquele homem, aquele
maldito rústico, a estava vexando, fazendo-a sentir-se uma tola.
— Queria dizer ao senhor que...
— Sinhazinha – ele sussurrou, com aquela voz que ela já conhecia. –
vosmecê veio pelo mesmo motivo que eu fui ao seu encontro, aquele dia.
— Senhor Francisco, eu vim dizer ao senhor que as loucuras do
senhor não tem nenhum cabimento. Eu jamais...
— Ainda nega, Dona Prisciliana?
Então, sem que ela pudesse replicar, ele a puxou para si com uma
agressiva ânsia.
Ela viu quão tola estava sendo, tentando negar a ele e a si mesma,
tudo o que queria, era ver-se envolvida novamente pelos braços daquele
homem rústico, sentir novamente seu másculo cheiro de suor e sentir-se
tomada pela força bruta que dele emanava.
Sentiu-se abraçada e não se opôs, pois era só o que ela queria.
Ele tomou-lhe o rosto entre as mãos, com uma força que quase a
machucou, e depois de olhá-la nos olhos, colou os lábios aos dela. Dessa
vez, ela retribuiu com todo o desejo e fúria de sua paixão, uma onda de fogo
parecia invadi-la, ao toque daquela boca, sentiu que ele lambia seus lábios e
depois fustigava sua língua, toda a sua boca, com a dele.
— Minha sinhazinha! – ele gemia, enquanto seus beijos agressivos
desciam pelo pescoço dela, até chegar ao colo.
Então arrancou-lhe o turbante, afastando-se um pouco para ver a
cascata escura dos cabelos dela, caindo-lhe pelos ombros.
Com mãos febris arrancou-lhe a roupa, e puxou-a para sua cama.
Deitou-se sobre ela, cobrindo-a de beijos loucos, que faziam-na gemer e
arrepiar-se diante de tanto desejo.
Ela jamais imaginara tal coisa, nem em seus sonhos mais
alucinados, mas a força do desejo daquele homem superava qualquer coisa
que pudesse ter imaginado com Miguel.
Ela sentia medo, e ao mesmo tempo, um desejo animalesco de ser
tomada por ele. Estou louca, pensou. Devo estar sonhando tudo isso, não
posso admitir para mim mesma que isso esteja acontecendo.
Mas quando viu-se nua, quando sentiu sobre si o peso do corpo do
feitor, do homem que antes ela tanto abominara e por quem jurara ódio
eterno, ela não teve dúvidas quando à realidade. Estava entregando seu
corpo, sua honra, seu destino a um homem brutal, um selvagem cheio de
lascívia, um bandido.
Mas nada importava mais, a loucura daquela noite tinha tomado a
ambos, e eles se entregaram da maneira mais voraz e alucinada, ela
gemendo de prazer, ele silenciosa e selvagemente.

Eram três horas da madrugada quando alguém viu, saindo da casa


do feitor, uma escrava apressada, envolvida num manto escuro e indo em
direção à casa-grande.
A pessoa – um dos agregados – meneou a cabeça, enquanto acendia
de novo seu cachimbo, sentado à porta do casebre.
— Esse sinhô Francisco! Nem a mucama de sinhazinha escapa da
luxúria dele. Hehehehe...
CAPÍTULO NOVE
Nua,
Pequena e graciosa,
com teus seios
pesados e cheios
que enchem as minhas mãos,
embriagam
meus lábios
e entontecem meu olhar,
tu me lembras
uma parreira nova
de haste delicada,
com dois belos cachos
sazonados
a balançar...

J.G. de Araújo Jorge, “Parreira”

O DIA foi saudado por uma canção de Dona Maria, tocada ao piano.
Era uma canção brasileira, alegre, que falava dos folguedos em dias
santificados, das ruas cheias de gente, de danças, de colorido.

O Sr. Horácio, tendo-se levantado um


pouco antes dela, já estava vestido e preparava-se para dar uma cavalgada
pelo engenho. Estava já à mesa, quando perguntou por Prisciliana.
— Ah! Ainda dorme, a folgazona – replicou D. Maria, levantando-se
do piano e dirigindo-se à sala de refeições.
— Ela é sempre a primeira a levantar-se. Estará doente? – Indagou
o marido, derramando leite na xícara.
— Tá não, sinhô – adiantou-se Candinha, mas interrompeu-se, e
mordeu o lábio.
— Ah, não? É, mesmo, Candinha? Como sabes? – perguntou o Sr.
Horácio.
— Ela me parecia muito disposta, ontem, sinhô – ajuntou a mulata.
— Entendo. – Sr. Horácio continuou sua refeição.
— Bons dias!
Dona Maria voltou-se e deu com a filha, à porta da sala. No rosto
sereno e corado havia um ar mais saudável do que nunca.
— Bons dias, minha querida – saudou a mãe. – Falávamos de ti.
— Sim, e queria aproveitar para convidar-te a cavalgar hoje comigo
– disse o pai, sorrindo.
— Convite aceito, meu pai – ela disse, sorrindo.
— Aliás, eu pensava em ir até a fazenda Arribação. Há já alguns dias
que teu noivo não te visita, heim? – disse o pai, num tom seco. – Acredito
que não seria mau se fôssemos até lá, e tu o visses, indo comigo, não vejo
nenhum inconveniente.
— Oh, não, meu pai.
— Por quê?
— Bem, porque faz tanto tempo que não passeamos por aqui!
Sr. Horácio franziu a testa, e tomou mais um gole de café.
— Está muito bem. Embora ainda ache que tu e teu noivo parecem
tão... bem, esqueçamos esse assunto. Tudo virá a seu tempo.
Momentos mais tarde, Prisciliana envergava um traje de montaria –
com calças semelhantes às masculinas, e com as quais ela quase não se
acostumava – e ia com o pai até as cavalariças. Mariano, que cuidava dos
animais, encilhou para ela o Tostado, um belo animal de cor amarela –
como dizia o próprio nome dele.
— E então? – perguntou o pai, enquanto cavalgavam. – Estás agora
com a cabeça mais no lugar? Largaste mão de preocupações com os negros?
Ela meneou a cabeça, enquanto olhava em direção aos canaviais,
uma mancha esverdinhada que cobria muitos acres de terra.
— Não.
— Então continuas com essas teimosias?
— Meu pai, eu jamais deixarei de preocupar-me com o destino
deles.
— Prisciliana! – O tom dele era frio e irritado. – Estás a me aperrear
de novo. O negro é uma criatura teimosa e dada ao ócio, por natureza. Não
os castiguemos, e teremos motivos para muito arrependimento. Eles por si
próprios, não se mexem. A chibata é apenas um instrumento disciplinar.
— Por favor, pai! – ela sentiu um nó na garganta, ouvindo-o falar
daquele jeito. – Nada do que o senhor disser, me fará mudar de opinião.
— Eu não sei quem te meteu na cabeça tais ideias, minha filha!
Como pudeste nascer com essas loucas ideias de querer ajudar negros?
Sabes o que meu pai costumava fazer com escravos fujões...?
Ela teve ímpetos de tapar os ouvidos. Alguma coisa dentro de si
revoltava-se ante aquele barbarismo, aquela frieza, aquele modo de pensar,
que não obstante, era considerado o mais normal e correto, por toda a
sociedade.
—... ele os ia buscar com os capitães-do-mato...
Ela procurou não prestar atenção às palavras dele, e fixou os olhos
na paisagem que se estendia à sua frente. Os campos, às vezes, terminavam
abruptamente nos sopés de um ou outro morro, ou em descidas fortes. Às
vezes, entravam por pequenas trilhas que margeavam as matas.
—... e à cavalo, trazia-os arrastados... os fujões chegavam esfolados,
e...
Ela suspirou e deu um pequeno grito:
— Chega, pai! Vamos parar de falar sobre essas crueldades.
— Só estou tentando fazê-la entender como aqui, em Sant’Ana, não
existe injustiça. Apenas disciplina, diferente dos tempos de dantes, onde o
senhor era de uma crueldade inegável.
Quando voltavam para casa, passaram pelo canavial, onde os negros
cortavam a cana. Dez ou doze negros e negras enfaixavam a cana cortada,
que era colocada a seguir nos carros, atrelados de quatro bois. Estes iam
para o engenho, e voltavam logo para nova carga. O serviço era incessante,
e havia no ar um cheiro de suor e terra molhada.
Entre os negros, ela avistou o Sr. Francisco. Ele continuava com o
seu serviço, a chibata na mão, o olhar esquivo sem perder um único
movimento dos escravos. Assim que avistou o patrão e a filha, ele voltou-se
para eles, tirando o chapéu.
Sr Horácio aproximou-se e o cumprimentou.
— Bons dias, Francisco.
— Bons dias, Sr. Horácio.
— Nenhuma rebeldia por ora?
— Nenhuma, não senhor.
Ele voltou, por um instante rápido, o olhar para Prisciliana. Esta
corou violentamente, mas sustentou o olhar dele. Um calor subiu-lhe ao
peito, vendo-o ali, à luz do dia, fazendo o trabalho que antes tanto a
perturbara. Ele envergava o mesmo traje de sempre, e tinha a mesma
atitude tranqüila, o olhar sombrio, embora diante do patrão tivesse uma
atitude mais servil. Mas ela percebeu um brilho cúmplice nos olhos negros,
quando voltou-se para ela, e um leve sorriso a flutuar-lhe nos lábios.
Ela baixou os olhos. Estava ao lado de seu pai, e as lembranças da
loucura noturna ainda povoavam-lhe os pensamentos, deixando-a um tanto
nervosa.
Quando se afastaram, ela ainda voltou a cabeça, olhando para trás, e
viu-o no mesmo lugar, também seguindo-a com os olhos.
Durante todo o resto da manhã ela quedou-se quase distraída,
sentada no alpendre, e Dona Maria estranhou-lhe o jeito, que considerou
‘apático’. Mas só ela sabia o alvoroço que ia em seu íntimo, pensando no
feitor. Sr. Francisco. Deus, ela tivera coragem para...! Para fazer aquilo!
Estava arrependida? Deveria estar, fora uma louca, uma destrambelhada.
Ela não se cansava de repassar todos os momentos em que estivera nos
braços dele, desde o instante em que chegou à porta da casinha, e deu com
o olhar de alvoroçada surpresa dele, até o momento em que ele a tomara, e
a atirara sobre a cama. E em que ela viu-se nua, toda nua!
Diante de tal pensamento, sentia o coração batendo forte, um misto
de terror e alegria. Ela já não era mais uma virgem, agora era uma mulher e
sabia o que era ser possuída por um homem. Deus do céu, não poderia mais
casar-se com honra, o que seria dela? De seu futuro? Entregara-se à bestial
sensualidade de seu corpo, atraída como mariposa para a luz, e fora pasto
dos desejos loucos de um homem, um agregado do engenho! Um homem
sem futuro, sem dinheiro, sem posição, mas que lhe importava tudo isso?
Ela fechava os olhos, sentindo o corpo todo trêmulo, quando pensava na
noite que passara com ele. Agora ela sabia que era só isso o que lhe
importava. Queria aquele homem, da mesma forma, com a mesma
intensidade com que ele a queria.
Não mais pensaria na pobreza dele, na situação miserável ou na
profissão indigna dele. Sabia que ele a queria. Suspirava quando lembrava
dos momentos mais íntimos dos dois. Ah! Loucura, loucura absoluta!
Não pensava mais em Miguel, e decidiu que nunca mais encontrar-
se com ele seria a melhor maneira de demonstrar-lhe que queria o
rompimento.
Ela contava os minutos para que a noite logo chegasse, embora
ainda morrendo de medo, ela sabia que voltaria à casinha humilde.

Às dez horas, pontualmente, Prisciliana ficou à escuta em seu


quarto, esperando. Quando não ouviu mais nenhuma tosse de seu pai,
nenhum barulho na cozinha e a casa toda parecia mergulhada na
serenidade do sono, ela envergou novamente a roupa que Candinha lhe
entregara, e esgueirou-se com o maior cuidado para fora de seus
aposentos. Se fosse vista por alguém da casa naquelas roupas, o que diriam
dela?
Mas estava tudo muito calmo, e ela conseguiu novamente
atravessar a casa-grande e sair para o pátio.
Agasalhando-se com a manta, passou quase correndo pela grande
porta da senzala. Não percebeu, porém, que um dos negros estava
encostado nela, o rosto perto da fresta e olhando para fora.
Era Crispim, que forcejou a vista, diante daquela estranha visão. Era
a sinhazinha, vestida como uma mucama! Sim, sim, era ela, não havia erro.
Crispim esfregou o rosto com as mãos.
Estava tendo visões, estava enlouquecendo, pensou ele. E uma
lágrima correu-lhe dos olhos baços.

Prisciliana logo alcançava a casa. Bateu muito de leve, e ele abriu a


porta em seguida.
— Minha sinhazinha.
Ela entrou, e no instante seguinte, quase sem uma única palavra, ele
a agarrava com aquela febril agressividade, e beijava-a. Não, aquilo não
seria um beijo, era mais um jeito de sorvê-la e absorvê-la...
— Sr. Francisco – ela começou a gemer, enquanto ele beijava-lhe a
boca, o queixo, o rosto, o pescoço. – precisamos conversar.
— Sim, precisamos – ele sussurrou – mas depois, depois.
— Eu tenho que saber...
Ele agora puxava-lhe a blusa, desnudando-lhe o colo, acariciando-
lhe a pele fina.
Ajoelhou-se diante dela e ali ficou, as mãos pousadas em seus
quadris, os olhos fixos no rosto dela, uma expressão de completo
embevecimento.
— Vosmecê agora é minha, eu nem acredito que isso aconteceu!
Minha mulher, minha amante.
E pousou a cabeça contra o ventre dela. Prisciliana gemeu baixinho,
e meteu as mãos entre os cabelos bastos dele.
— Sr. Francisco, é disso que quero falar. Não sou sua mulher. O que
vamos fazer? Eu não sou mais uma virgem, tenho medo. Medo do futuro.
Ele começou a beijar-lhe o ventre, enquanto terminava de despi-la.
Depois tomou-a nos braços e levou-a para a cama.
— Não tenha medo do futuro, minha sinhazinha. Eu quero muito
vosmecê, eu sou seu homem, eu vou proteger vosmecê de tudo e de todos.
Ela sorriu. Agarrou-se a ele, beijando-o com ternura, e sedenta
daquele amor estranho, brutal e gentil, a um tempo.
Quando o sentiu dentro de si, foi como se sua consciência
explodisse em mil fagulhas, de todas as coras e matizes, como se ela não
tivesse mais nada – nem mente, nem pensamento, nem sonhos, nem medos,
nem passado ou futuro – e fosse apenas um pedaço dele – uma extensão
dele, naquela fusão de corpos, no saciar daquela sede que os elevava e
depois os lançava nos mais profundos abismos da loucura e da paixão.

Ela adormeceu só um pouco, no ombro dele, acordando-se no meio


da madrugada. Não queria acordá-lo, mas quando mexeu-se, ele ergueu a
cabeça e ainda tentou segura-la mais um pouco.
— Minha sinhazinha já vai, já?
— Preciso, sim.
— Fica só mais um bocadinho.
— Sr. Francisco, preciso ir-me. É muito arriscado isso que faço.
— Vosmecê está mesmo se arriscando – ele disse, franzindo a testa,
pensativo. – Temos que pensar em outro jeito de nos encontrarmos.
— Sim, precisamos, mas existem outras coisas em que temos de
pensar.
— Eu sei, eu sei. E vosmecê tem razão em se amofinar por isso. Eu
sei que, diante dos outros, vosmecê está desonrada e quem sou eu para
sonhar em...
— Tssstss – ela colocou os dedos sobre os lábios dele, meneando a
cabeça. - Para tudo haverá de se dar um jeito. Talvez não hoje, nem amanhã,
há que se dar tempo ao tempo.
— E aquele poltrão do galego? – ele perguntou, os olhos fuzilantes
de ciúme.
— Oh, eu já disse a ele, encontrei-o na vila, outro dia. Disse-lhe que
nada mais temos um com o outro.
Francisco puxou-a de novo para si e beijou-a com força, daquele
jeito áspero e possessivo que a tornava totalmente submissa.
— Minha sinhazinha, de pele tão macia, tão perfumosa, tão linda –
ele deu uma risada, enquanto a olhava, extasiado. – Eu sempre pensei que
só os negros podiam ser escravos. Agora sei que branco também pode ser...

Nos dias que se seguiram, a vida de Prisciliana transcorreu de uma


maneira que ela jamais sonhou, no engenho onde nascera e crescera, e
onde julgara que só conheceria a rotina e a mesmice.
Passou-se uma semana, na qual ela mergulhou profundamente
naquela paixão insana por Francisco, indo encontrá-lo às vezes à noite, às
vezes durante o dia no recanto onde pela primeira vez ele a beijara, e a
cada dia sentia-se mais cativa daquele sentimento, daquela fome atroz e
doce, que era um prazer e uma tortura.
CAPÍTULO DEZ
NA FAZENDA Arribação, a Marquesa entrou na sala, onde seu
marido acabava de pegar uma carta das mãos da mucama.
— Notícias? De quem? – quis saber a dama.
O velho senhor segurou os óculos com uma mão, enquanto com a
outra segurava os papéis.
— Nem imaginas, minha querida. Esta é a carta que eu espero há
quase dois meses, de meu parente de Lisboa, Sr. Manoel Pereira e Mello. Pai
de Miguel.
— Oh! Deveras, estava também ansiosa por essa missiva.
A Marquesa sentou-se na cadeira de palhinha, e tomou do leque,
abanando-se com certo enfado. Observava a expressão do marido, que ia
primeiro de surpresa a um espanto e deste, a uma expressão de verdadeiro
horror.
— Ora, meu esposo, que estás a ler aí ? Alguma notícia ruim?

— Ruim, minha cara – ele meneou a


cabeça branca, apertando os lábios com um ar preocupado e assustado. –
Pior do que isso. Notícias decepcionantes! Terríveis!
— Pelas Chagas de Cristo! Fala logo, meu esposo! O que acontece?
O Marquês leu mais um pouco, depois recolocou os óculos no bolso
do paletó. Dobrou cuidadosamente a carta, e olhou com cenho franzido
para a mucama, uma negra graciosa e de formas muito flexíveis, que se
ocupava em arrumar as flores no vaso sobre a mesa.
— Por favor, Balbina. Quer nos deixar a sós?
A negra olhou para o senhor com os olhos muito grandes e meneou
a cabeça, sacudindo as argolas coloridas das orelhas.
— Pois sim, sinhô.
Saiu rapidamente da sala, fechando a porta atrás de si.
— Não sei por que, não me sinto à vontade com todos esses
serviçais em torno – falou o Marquês, com um ar preocupado.
— Fala logo, meu caro. Deixaste-me ansiosa! O que diz essa carta?
— Minha querida. Acredita-me, estou atordoado. Sabes o que me
disse o Sr. Manoel Pereira?
O Marquês aproximou-se da esposa, e disse em voz baixa, como se
temesse ser ouvido por mais alguém:
— Ele não tem nenhum filho. Sua progênie consta de duas filhas,
sendo que uma está casada e morando em Coimbra, e a outra solteira,
vivendo com ele. Acreditas nisso, minha esposa? Ele não tem nenhum filho!
A Marquesa prendeu a respiração por um instante. Levantou-se,
alarmada e pôs-se a andar pela sala, falando e refletindo ao mesmo tempo:
— Isto significa... O quê isto significa, Alberto? Na verdade, Miguel
mentiu?
— Pior do que isso, querida. – O velho Marquês meneou a cabeça,
com um ar de desespero. – Pior do que isso. Eu falei a ele sobre o moço
Miguel, e sobre a carta de recomendação que ele nos trouxe, do Conde
Malheiros. O Sr. Manoel diz aqui, nesta missiva, que o Conde Malheiros está
preso em Lisboa, as milícias descobriram o envolvimento dele com facções
liberais, e o pior de tudo: com bandidos, dentre os quais um jovem,
chamado Miguel Boaventura, que desapareceu. Acreditas numa coisa
dessas?
A Marquesa abanou-se, agitadíssima, enquanto voltava a sentar-se.
— Alberto! Estou aqui quase a ter uma síncope! Que dizes? Que
falas? Estamos nós, então a abrigar no seio de nossa família a um bandido?
Um malfeitor?
O Marquês meneou a cabeça:
— Sim, pelo que tudo indica. Vê, tudo agora se encaixa. Miguel não é
filho do Sr. Manoel Pereira, que aliás não tem filho algum. O Conde
Malheiros foi preso, com sérias acusações. E tem relações com vários
homens de má fama, sendo um chamado Miguel.
— Céus! Céus! E o que vamos fazer? Este mancebo sempre pareceu-
me um modelo de retidão e caráter, e agora! Oh, como nos enganamos com
as pessoas! Bem dizia minha mãe: O hábito não faz o monge.
O Marquês estava preocupadíssimo, e movia-se rapidamente pela
sala.
— Bem, tomarei minhas providências.
E abrindo novamente a porta da sala, chamou em voz alta:
— Balbina! Ô Balbina! Chama-me cá... Ora esta! Onde se meteu essa
rapariga?
A Marquesa levantou-se e entrou na sala contígua. Olharam em
torno, mas quem acorreu foi outra mucama.
— Vassuncê chamô, sinhô Marquês? – A negra era bem mais velha
que Balbina, e tinha um olhar cansado.
— Onde meteu-se aquela rapariga? – Perguntou a Marquesa.
— Balbina? Sei não, Sinhá, ela saiu correndo, agora inda poquinho.
Passou por mim feito um serelepe, e sumiu lá pra fora.
— Ora e essa! – O Marquês torcia as mãos. – Então vai tu mesma, ou
chama o moleque Bentinho. Dize a ele que chame o Sr. Feitosa.
— Sinhô Feitosa? – A negra estranhou.
— Sim, isso mesmo. Mas vai logo, pois preciso dele nesse instante! –
Reclamou o Marquês.

A mulata Balbina, assim que deixou a sala da casa-grande, correra


para o meio do terreiro. Lá, olhou para todos os lados, e não encontrando a
quem procurava, continuou correndo em direção às cavalariças e
estrebarias.
Corria feito um relâmpago, e lá chegou ofegante. Pôs-se a procurar
ansiosamente, olhando em todos os cantos, até que, numa das baias, ouviu
a voz do administrador.
— Com efeito! – Ele conversava com um negro, tratador de animais.
– Este zaino está coberto de carrapatos! Não viste isso? Trata já disso,
negro. Ora, pois. Será que terei de verificar pessoalmente o serviço de todo
mundo?
Balbina chegou para ele com o ar afobado:
— Sinhozinho, preciso falar com vosmecê, agora.
— Balbina! - Ele deu um sorriso manhoso. – Tu por aqui, a estas
horas do dia? Não devias estar zelando pelo bem estar da senhora
Marquesa?
A mulata pousou a mão no braço dele, familiarmente, e o puxou
para outra direção.
— Sinhozinho, a coisa é séria. Eu não vim aqui pra bulir com as
luxúria de vassuncê, vim por outra coisa. Coisa que pode trazer ao sinhô
muito aperreio[17].
Miguel olhou em volta, e percebendo que estavam sozinhos, puxou
a mulata para dentro de um dos estábulos, onde ninguém poderia vê-los
nem ouvi-los.
Lá dentro, os olhos azuis do português encheram-se de um brilho
malicioso, enquanto suas mãos agarravam a mulata pela cintura. Em um
instante, estava puxando-a para si, e acariciando-lhe o corpo flexível.
— Eu sei, minha cabrocha, tu inventas cada coisa para vires me
encontrar!
— Sinhô, me larga, bem que eu queria, mas acho que o Marquês
pode acabar com a alegria de vassuncê, logo, logo.
Miguel soltou-a e fez um gesto irritado:
— Que dizes?
— Eu tô falando do Marquês, vassuncê sabe o que eu ouvi lá na sala
da casa-grande? O Marquês recebeu a resposta dum parente lá de Portugal.
Que falava sobre vassuncê! Que dizia ser o pai de vassuncê!
Miguel ergueu os braços, um brilho de agitação nos olhos:
— Que estás a me dizer? Que o velhote recebeu uma carta de meu
pai ? Tens certeza, Balbina?
— Claro que tenho. Pois eu num vi, quando ele pegou o papel das
mãos do mensageiro?
— E o que dizia? Pudeste ouvir alguma coisa?
— Nada, não. Quando eu pensei de ouvi, eles me tocaram da sala.
Mas ouvi o que baste. Que um tar parente dele ia dar umas informação
sobre vassuncê. E que as notícia não eram nada boa, que era coisa ruim.
— Coisa ruim? Maldição!
Miguel chutou uma canastra, para longe, tomado de ira. Fechou os
punhos, e agitou-os no ar, com os olhos chamejantes.
— Maldito velho! Maldito bode velho! Se ele pensa em pegar-me,
está muito enganado! Ora essa! O maldito então escreveu ao outro velho, o
tal do Pereira de Mello. E eu que imaginava que este já tivesse batido as
botas.
Miguel enfiou as mãos entre os cabelos, pensando na situação.
— Preciso que me ajudes, Balbina. Farias tal coisa por mim?
— Pois já não tô aqui le ajudando?
— Preciso de mais alguma coisa de ti.O moleque de recados. Preciso
dele agora!
Balbina pôs as mãos na cintura e meneou a cabeça:
— Vassuncê tá pensando em quê? Acho que o moleque está de
nosso lado, mas se vassuncê não abrir as bolsas...
Miguel fez um gesto irritado, e meteu a mão nos bolsos, tirando
algumas moedas, que entregou a ela:
— Aqui está, pede a ele para ver-me, agora!
Prisciliana caminhava com Cândida pelo jardim. Trazia uma
sombrinha, mas o sol não estava ainda muito quente, pois não passavam de
nove e meia da manhã.
— Então, vixe! Sinhazinha, quer dizer que tá mesmo gostando de um
moço, é?
Prisciliana pôs um dedo sobre os lábios, pedindo cuidado.
— Por favor, moleca, cuidado com isso. Tu, só tu e ninguém mais
sabe disso, por favor, fala baixo.
A mulatinha deu um sorriso largo e piscou um olho, matreira.
— Ai que coisa mais bonita, sinhá.E é segredo, é?
— Pois sabes que é!
— E aquela noite, a sinhazinha e esse moço...
— Sim e depois noutra noite, e noutra, menos ontem e hoje. Tive
medo – disse Prisciliana, colocando as mãos sobre os lábios.
Cândida não refreou uma gargalhada fresca e melodiosa.
— Vixe! Minha Nossa Senhora. Mas e vosso pai, sinhá?
Prisciliana agitou o leque colorido e suspirou:
— Morro de medo, Candinha. E não sei por quanto tempo
poderemos levar essa situação, ele também tem medo, mas se arrisca. Por
mim.
— Ora, sinhá! Quisera eu pudesse conhecer esse moço tão
fremoso[18]. Sim, porque pra ganhar vosso coração, deve ser muito
fremoso. E galante.
Prisciliana sorriu. Sim, ele era, ela jamais imaginou que um dia
pensaria no feitor Francisco como um homem “galante” ou “formoso”,
como dizia a mucama. Agora, porém, tudo estava diferente. A situação era
outra. Agora ela o conhecia por dentro do coração, e não só pela sua
aparência externa. Sabia que era um homem forte, inteligente e, até mesmo,
culto. Ele não cursara nenhuma universidade, mas tinha aprendido a ler e a
escrever, e lia muito. Além do mais, não era feio – antes, sua expressão
sombria, as atitudes duras contra os negros e o jeito áspero tornavam-no
odioso para ela. Agora, porém, havia nele as tintas iridescentes e luminosas
que tingem a aura da pessoa amada. Ela suspirou. Ela amava aquele
homem. Sabia disso, apesar do pouco tempo em que estavam se
encontrando. Mas aquele sentimento, aquela certeza de que só ele a
poderia preencher, completar, ser parte de sua vida e de seu destino eram
muito, muito fortes.
— Sim, eu posso dizer que certamente ele é formoso.
— Eu num posso sabê quem é ele, sinhá? – perguntou Cândida.
— Não por enquanto – ela disse, sorrindo.
Estavam naquela conversa, quando perceberam que alguém
chegava no engenho. Um cavaleiro mal vestido, montando um cavalinho
magro, acabava de entrar porteira adentro. Cândida olhou e disse, agitada:
— Ara, veja só! O moleque de recado da fazenda Arribação!
— É mesmo? – Ela olhou, com desinteresse.
O negrinho, que devia ter em torno de dezesseis ou dezessete anos,
apeou-se e vendo-as, veio correndo na direção delas.
Fez uma rápida mesura diante da sinhazinha e disse, meio afobado:
— Sinhá Dona Prisciliana, era mesmo com a sinhá que eu queria
falar.
— Então fala! – disse ela, um pouco preocupada.
O garoto tomou fôlego e começou:
— Tenho recado pra vassuncê, mas é segredo.
Prisciliana olhou para a mucama e tornou, ansiosa:
— Não se avexe de falar diante de minha mucama. Cândida é de
inteira confiança.
— É recado do sinhô Miguel.
Cândida abriu a boca diante do nome. Então era aquele o “amor
secreto” de sinhazinha? Ela ficou surpresa. A senhora, porém, pareceu
aborrecida com aquele recado:
— Senhor Miguel? Nada tenho com ele, por que me haveria de
mandar recado?
— Mais ele disse que tem, sim sinhá. Bom, o recado é muito
especial.
— Recado especial? – Prisciliana ficou indecisa. – Fala lá, moleque.
— Sinhô Miguel disse pra vassuncê se encontra c’o ele no lugar de
sempre, mas tem muita precisão, e a sinhazinha não pode fartá, de jeito
maneira!
— Posso saber por quê é assim, tão especial?
— Sei dizer não, sinhazinha. Mas ele jurou que era caso de vida ou
morte!
Prisciliana bateu com leque na palma da mão, refletindo.
— Céus. Então que seja e a que horas deverá ser isso?
— Ele mandou dizer que era pra agorinha mesmo. Se a sinhazinha
pudesse ir agorinha, era melhor...
Cândida deu uma risadinha, que abafou com as mãos. Prisciliana
despediu o moleque e pôs as mãos na cabeça, confusa.
— Eu não poderia ir a tal encontro.
— Mas por que, sinhá? Não é ele o vosso...
— Não, Cândida! Não é ele, eu pensei, de início, mas depois descobri
que amava outra pessoa.
Cândida arregalou os olhos. A sinhazinha andava tão estranha!
Então se não era o moço Miguel, tão garboso e bem falante, quem mais
haveria de ser? Ela não se lembrava de mais ninguém, exceto o Dr. Augusto,
que sinhazinha afirmara desde o início que não gostava. Teria mudado de
ideia? Mas se não fosse nenhum deles, seria alguém da vila?
— Candinha, eu irei ter com Sr. Miguel, já que ele precisa tanto
falar-me. Tu ficarás aqui. Aliás, vê só o moleque, parece estar cansado.
O moleque de recado, ao invés de voltar para o cavalo, tinha ido
sentar-se à sombra de um grande pinheiro.
— Vá até ele, e vejas se precisa de alguma coisa, dê-lhe água. Talvez
esteja com sede. Quanto a mim, irei imediatamente. Se minha mãe
perguntar por mim, diga-lhe que fui ao pomar, colher algumas laranjas. Até
logo! Prisciliana afastou-se a passos rápidos. Cândida, repuxando os
lábios com desdém, ficou olhando para a senhora um pouco desenxabida.
Ora, por que não a levara junto? Eram confidentes e ela queria tanto saber
como seria o tal encontro!
CAPÍTULO ONZE

ELA CHEGOU próximo do riacho, onde pela primeira vez


encontrara-se com Miguel. Seu estado de ânimo agora, porém, era
completamente diferente. Naquele primeiro encontro, estava alegre,
excitada, cheia de sonhos. Agora, estava preocupada. Não queria ter de
rever novamente o rapaz. Temia ofendê-lo, contando-lhe que seus
sentimentos agora eram outros. Mas também sabia que era necessário tal
encontro. Porque tinha ficado um vazio entre ambos, um hiato que era
preciso corrigir, era preciso que ela fosse forte e decidida o bastante para
olhar novamente para ele e falar a verdade. Assim, estaria colocado o ponto
final.
Ela desceu o pequeno barranco, sentindo um enorme desejo de que
não fosse Miguel a aparecer ali, e sim, Francisco. Sentia-lhe a falta, agora,
uma falta que chegava a ser quase como dor física. Ah, se ela pudesse
enfrentar a todos, se ela pudesse expor para o mundo inteiro seu
sentimento por ele. Se pudesse correr agora mesmo para ele, e na frente de
todos, tomá-lo pela mão, levá-lo para longe, onde pudessem ficar sozinhos,
os dois.

Ela chegou quase à beira do riacho.


Então ouviu um farfalhar seco na outra margem e Miguel apareceu. Estava
bonito como sempre, embora nos trajes simples de trabalhador.
Sorriu-lhe, mas ela não conseguiu retribuir.
— Ah, Prisciliana, há quanto tempo não nos víamos! – ele disse,
atravessando o riacho, pisando com cuidado nas pedras.
Ele quis aproximar-se e tocá-la, mas ela se afastou e ergueu a mão.
— Por favor, Miguel! Não, não pode mais acontecer nada.
Ele franziu o sobrolho. Depois sorriu, de um jeito estranhamente
malicioso.
— Ora e por quê? – disse ele, o sotaque mais carregado. – Tu
perdeste o interesse por mim, é? O que aconteceu, que não mais me
queres?
— Nada. Apenas cheguei à conclusão que é uma parvoíce
continuarmos a nos encontrar, agora que vou me casar.
Ele não pareceu impressionado. Continuou sorrindo, como se
aquela declaração nada significasse para ele.
— Não creio que seja parvoíce. Estarias, isso sim, desperdiçando teu
tempo com o toleirão de meu primo Augusto. Que importa se vais te casar
com ele?
Ela sentiu no tom de voz dele alguma coisa incômoda, como um
acento de malícia ou ironia.
— Como, “o que importa”? Então achas mesmo que trair alguém não
é importante?
Ele estava diante dela. De repente, colocou a mão por dentro da
cinta, tirando uma pistola.
Prisciliana deu um pequeno grito, que ele abafou, colocando a mão
sobre a boca dela.
— Cala-te, Prisciliana, se não quiseres que te estoure os miolos.
Achaste mesmo que eu seria posto assim, de lado, como um velho traste, do
qual te queres livrar?
Ela sentiu-se tonta, o coração aos pulos. O canalha estava armado!
Não ousou fazer nenhum movimento, e ele tomou-a pelo braço e
empurrou-a para a outra margem, com brutalidade. Ela obedeceu, e
atravessou o riacho, através das pedras. Ele continuou com a arma
apontada para ela e foi até um alforje, pendurado em um galho de árvore.
Dali retirou uma corda e atou-lhe as mãos, sempre com o odioso sorriso
nos lábios.
— Que vais fazer? Por que estás fazendo isso? – Ela perguntou,
oprimida pelo medo.
— Eu já te disse. Não receberia um “não” de tua parte. Nunca o
recebi de mulher alguma, por que receberia de ti? Já tive em meus braços
grandes damas, já vivi em Paris, em Lisboa e no Rio de Janeiro. Já conheci
mulheres de todos os tipos, principalmente as grandes e belas cortesãs
francesas, e damas da corte de El Rei Dom João. Todas elas me amaram e
sofreram quando rompia com elas.
Prisciliana pensou: Maldito covarde e falso! Então não passa de um
biltre, um mulherengo! E fazia-me juras de amor. Como fui tola!
— E por que tu me haverias de desdenhar? – Ele teve um esgar de
raiva. Um brilho rancoroso surgiu-lhe nos olhos. – Além disso, contigo sob
meu poder, ninguém poderá fazer-me mal. Vamos, anda!
Ele a puxou pelo mato adentro, fazendo-a caminhar entre a
vegetação espessa da mata, arranhando-se nos galhos pontiagudos, nos
espinhos ou nas ramadas maiores.
— Sou, então, uma refém – ela sussurrou, com o coração dorido e
ardendo de desgosto.
— Sim, és. Eu vim de Portugal, mas não sou filho do velho parente
do Marquês, como todos pensavam. Ah, o velho tolo! Tudo passaria muito
bem, se tu não tivesses tido a ideia de me desdenhar, e o velho tolo não
tivesse ido remexer com coisas que não lhe diziam respeito. Agora, só me
resta isto.
— Para onde iremos?
— Continua a andar! Não te preocupes, logo saberás...

Francisco fazia a vistoria da casa da moenda, pois a roda d’água


parecia ter um problema qualquer. Depois de resolvido o problema, ele
afastara-se um pouco do trabalho, para descansar à sombra do refeitório,
extenso edifício ao rés do chão, onde os brancos almoçavam e jantavam.
Uma negra trouxe-lhe um cantil com água fresca e um prato com
frutas, o que ele agradeceu. A negra – que trabalhava na cozinha, e jamais
vira o Sr. Francisco agradecer por coisa alguma servida por escravos –
ergueu as sobrancelhas, estranhando. Era como a Bá Velha e os outros
escravos domésticos diziam. O feitor andava esquisito por demais.
Francisco tinha o olhar perdido. Ele próprio estava perdido em
pensamentos. Sabia que estava relaxando as rédeas do seu trabalho.
Ultimamente, a pedido da sinhazinha, não tinha mais havido castigos.
Quando era imperioso um castigo por algum tipo qualquer de
desobediência, era Mariano quem aplicava. Ele sempre inventava uma
desculpa qualquer e saía de perto.
Não se importava muito mais com a rebeldia dos negros, desde que
não lhe faltassem com o devido respeito, e desde que fizessem o seu
trabalho. Sr. Horácio não poderia reclamar de nada, exceto talvez, de que o
feitor “amolecera”, mas isso o senhor do engenho de Sant’Ana jamais
saberia, porquê o trabalho continuava sendo feito. Não haveria brecha
alguma para acusarem-no de negligência.
Ele não conseguia pensar em mais nada, os dias se passavam, as
coisas não mudavam, as pessoas à sua volta não mudavam. Talvez seu
trabalho jamais mudasse. Mas dentro dele tudo tinha se transformado. Ele
sentia como se seu mundo tivesse virado de cabeça para baixo. Todas as
coisas que antes ele dera tanto valor – a obediência ao patrão, o rigor com
os escravos, o cuidado com todo o processo da transformação da cana em
açúcar, a vida difícil, idas e vindas até a vila, uma viagem ou outra à capital.
Até mesmo os sonhos de um dia, tornar-se pequeno proprietário de terras.
Tudo isso tinha acabado, tudo isso tinha perdido as cores antes tão vívidas,
e esmaecia-se, tornava-se cinzento, pálido, quase inexistente. Para ele, tudo
agora se resumia num único nome: Prisciliana de Sá Taques, a sinhazinha.
Nas duas últimas noites, em que não a viu, ele quase enlouquecera
de ansiedade. E se ela tivesse mudado de ideia? E se tivesse tomado a
resolução de casar-se com o almofadinha da capital? E se estivesse apenas
brincando com ele? Diante dessa ideia, ele sentia se enrijecerem todos os
músculos do corpo, como se algum raio o tivesse atingido, da cabeça aos
pés. Essa mulher, essa mulher não faria isso. Ela me pertence, agora, ele
dizia para si mesmo. Mas sabia que à força de repetir isso para si mesmo,
não tornaria a ideia menos falsa. Prisciliana não lhe pertenceria, nem agora,
nem jamais. Ela era a dona da situação. Se ela não mais o quisesse, ele seria
despachado de sua vida.
Ele suspirou. Ela não deixava os seus pensamentos, um só instante.
Olhou para os negros à sua volta, na sua luta cotidiana com a lida, com a
monotonia, com o frio, a fome, as doenças, a crueldade. Eles são mais livres
do que eu, agora, pensou ele, estremecendo. Estava preso àquela mulher,
aos sentimentos dela, aos caprichos dela, para sempre.
Tomou seu último gole d’água, e então percebeu um movimento
inusitado em torno da casa-grande. Erguendo os olhos, avistou ao longe
vários cavaleiros. Eram os homens da fazenda dos Suassuna. Um dos
negros domésticos entrara correndo pela casa adentro, provavelmente
indo a chamar Sr. Horácio.
Francisco franziu a testa, curioso com a súbita visita de toda aquela
gente. O que estaria acontecendo?
Dirigiu-se para lá, entre curioso e preocupado. À sua aproximação,
um dos agregados desmontou e veio ao seu encontro. Era Feitosa, um dos
principais homens do Marquês.
— Ora, Francisco, cá está vosmecê – disse o homem, que era baixo e
atarracado.
— Como vai, Feitosa? – Disse Francisco, olhando em torno de olhos
sombrios. – Pode-se saber o que sucede?
— Ara, pois vosmecê ainda não sabe de nada?
— A respeito de quê?
— Do está sucedendo com o Marquês? Quero dizer, com o tal
mancebo que se dizia aparentado dele?
— Não, não soube. Por causa de quê?
Naquele instante, o Sr. Horácio surgiu no alpendre. Com as feições
ainda mais duras que de costume, metido numa fatiota domingueira – via-
se que ele pretendia sair em viagem – ele apresentou-se aos empregados
do Marquês. O Sr. Feitosa voltou-se para ele, e tomou a palavra.
— Como vai vosmecê, Sr. Horácio?
O velho e severo senhor inclinou de leve a cabeça, à guisa de
cumprimento.
— Que novidades são essas, que trazes da fazenda Arribação?
— Infelizmente, senhor, não são boas novas. Creio que vosmecê
conheceu o chamado Sr. Miguel, que dizia-se parente do Marquês.
Em poucos minutos, Feitosa explicou a situação. Sr. Horácio ficou
muito surpreso com aquela nova, mas ninguém mais do que o feitor,
Francisco.
— Então o bonito moço de além-mar, que se dizia “recomendado”
por um fidalgo, não passa de um salafrário – Horácio ainda remoia a
notícia, fechando os punhos. – Posso compreender a revolta do Marquês!
Como é que pode? Ordinário! Biltre! E agora, Sr. Feitosa? Como podemos
ajudar a caçar o malandro?
— O Marquês pede sua permissão para darmos uma busca em suas
terras. O impostor fugiu, mas sabe-se lá para onde.
Francisco tinha os olhos fuzilantes de raiva e apertava a chibata com
toda a sua força. Aquele meliante maldito tinha quase seduzido a
sinhazinha!
— Bem, é claro que tens minha permissão – disse Sr. Horácio. –
Podem dar a busca! Francisco!
— Sim, senhor?
— Acompanha o Sr. Feitosa pelas nossas terras. Talvez melhor que
isso: Convoca nossos homens, vamos ajudar o Marquês!
Francisco meneava a cabeça, quando ouviram gritos vindos dos
fundos da casa-grande. Todos olharam naquela direção, e viram que era
Candinha, a mucama de Prisciliana.
A moça vinha correndo, como uma louca em direção deles. Dona
Maria, que estava à janela, ouviu também os gritinhos da escrava favorita
da filha, e saiu à porta, preocupada.
— Que sucede, moleca? – Gritou Horácio, descendo as escadas e com
os olhos já cheios de susto.
A mulata parou diante de todos eles e falou, aos trancos, quase sem
respirar:
— Sinhô Horácio, sinhá Dona Maria... o moleque... o moleque do... da
fazenda...
Sr. Horácio olhou em torno, já ficando pálido diante de toda aquela
algaravia. Dona Maria, com sua intuição materna, estava ainda mais lívida
que o marido.
— Toma fôlego, rapariga – disse Francisco, também perturbado.
— Onde está minha filha, Candinha? – Perguntou Dona Maria.
— Fala logo, criatura! – Sr. Horácio estava a ponto de explodir.
— É que... o moleque... da fazenda do sinhô Marquês esteve aqui
inda agorinha – Cândida estava branca como cal. – Ele não parou, ficou com
medo de vassuncê, sinhô Horácio. Ele fugiu, mas teve coragem de me
contar a verdade...
— Que verdade, rapariga? – O tom do Sr. Horácio fez a mucama
estremecer.
— É que ele trouxe um recado pra sinhazinha, um recado dum moço
da fazenda...
Francisco apertou os lábios, ficando mais e mais pálido. Seus dedos
ficaram doloridos, tanta era a força com que segurava o cabo da chibata,
para que ninguém percebesse que suas mãos estavam trêmulas.
— Um moço? – Dessa vez o próprio Feitosa interveio, com sua voz
rude. – Vosmecê fala do noivo da sinhazinha?
— Não sinhô, não é do dotô. Ele trouxe um recado do moço
português, o sinhô Miguel – completou Cândida, ainda ofegante. – Vassuncê
me perdoe, Sr. Horácio, mas o recado era....
— Como, que dizes, moleca?!
O senhor do engenho parecia enlouquecido de raiva. Ergueu as
mãos, e agarrou a mulatinha pelos braços, pondo-se a sacudi-la.
— Para com isso, Horácio! – Gritou Dona Maria. – Deixa a menina
falar!
Francisco fechou os olhos, com um fogo interno a consumi-lo. O que
acontecera? Como essa negrinha deixara acontecer uma coisa dessas? Teria
Prisciliana ido ao encontro do bandido? Ele sentiu o coração debatendo-se
no peito, como se fosse um pássaro assustado numa gaiola.
— Sinhô! Por amor de Deus! – A mucama começou a choramingar,
de medo. – Eu num sabia de nada. Juro por tudo que é sagrado! O moleque
veio trazê o recado do moço, que era pra sinhazinha i se encontrá com ele
no lugar de sempre, mas eu fiz o quê ela me pediu.
— Se encontrar com ele! No lugar de sempre! Diabos! Maldito biltre
desavergonhado! – Gritou Sr. Horácio.
Francisco ofegava, a boca entreaberta, o coração batendo
desesperado. Tinha o rosto moreno agora lívido, e os brilhantes.
— Oh, Jesus! – Dona Maria teve uma vertigem. Agarrou-se à
balaustrada, para não cair. Chamou uma escrava, que veio correndo para
acudi-la.
Horácio ajudou a esposa a entrar em casa, e voltou correndo.
— E então, criatura? Fala, tudo o que sabes sobre os encontros
furtivos daquele salafrário com minha filha! Deus do céu! Deus do céu! – Sr.
Horácio segurava a cabeça com ambas as mãos, num profundo desespero.
— Num sei dos outro encontro, num sei, eu nem sabia que a
sinhazinha tava gostando desse moço, até que o moleque Bentinho chegou
aqui com esse recado e disse que era caso de vida ou morte, credo-em-cruz!
– a mucama benzeu-se.
Francisco começou a andar de um lado para outro, o rosto agora
começando a ficar mais e mais vermelho, o ódio, o ciúme e o medo
crescendo-lhe como monstros incontroláveis dentro do peito. Ódio de
Miguel, ciúme porque agora, ele estava com ela e medo do que o maldito
impostor podia fazer contra ela.
— Sinhô Horácio, se vosmecê me permite, vou reunir os homens
para irmos atrás desse salafrário! – disse ele, com olhos fuzilando de ódio. –
Não podemos perder mais um minuto!
Sr. Horácio assentiu, com os lábios trêmulos.
— Está bem, Francisco. Vai, vai logo, eu vou daqui a alguns
instantes.
Francisco voltou para perto dos agregados, um desespero a crescer-
lhe no peito, cada vez maior.
Sr. Horácio Taques entrou na casa, o rosto retorcido de fúria e
aflição. Dona Maria veio-lhe ao encontro, chorosa, quase louca de
ansiedade.
— Deus, o quê nossa filha fez, Horácio!
— Não posso atinar com o que ela possa ter feito, Maria. Mas coisa
boa não dever ser. Oh, pelos céus! Minha filha está desonrada! Para sempre
desonrada. Encontros furtivos com esse bandido! E agora, ainda por cima,
refém da sanha criminosa do desavergonhado! Eu não mereço isso!
Dona Maria tinha os olhos úmidos de lágrimas.
— Mas Horácio, tu não pensas no risco de vida que ela corre? Tu só
sabes pensar que isso poderá contrariar teus planos? É só isso o que te
preocupa?
Sr. Horácio encarou a mulher, furioso. Os olhos arregalados, ergueu
ambas as mãos e esmurrou a mesa com toda a força de seus punhos
maciços.
— Cala-te, Maria! Essa rapariga arrasta o nosso nome na lama e tu
vens me exortar? Que não penso nela, só em mim? Ora, eu penso! Penso em
todos nós, e no que será de nós, depois de tudo isso, depois desse incidente
degradante e vergonhoso! Como achas que vou olhar novamente para o
Marquês, depois disso? E para o Dr. Augusto? E para todo o povo da vila?
Achas que me será fácil enfrentar os motejos, as ironias e as risadinhas
disfarçadas dessa gente?
Dona Maria enxugou as lágrimas com as mãos trêmulas.
— Mas ela está em perigo, sabe-se lá o que o bandido fará com ela!
— Por culpa dela própria! – Esbravejou ele, o rosto contorcido de
fúria. – Por culpa dela própria! Se algo acontecer, terá sido castigo, ouviste
bem? Castigo, pelo mal que ela fez a si própria e a nós todos! E, valha-me
Deus! Se algo acontecer com ela... pois bem, será menos pior do que tê-la
entre nós, com a reputação de uma rameira!
Ele disse e saiu da sala, pisando duro. Dona Maria meneou
tristemente a cabeça. Triste era a sina de uma mulher, pensou ela. Não
existia amor entre os homens, apenas o desejo físico, a prepotência
paternalista e o desejo de possuir e comandar. Nenhum sentimento de
amor verdadeiro à família – apenas o sentido da “honra” – como se essa
palavra encerrasse todo o preconceito, vaidade e egoísmo do mundo.
Ah, honra, honra! Do quê ele falava, de uma ocorrência física, a
perda da virgindade – e isso para ele, era tudo! Não mais lhe importava a
vida da filha, a felicidade dela, o bem-estar ou o futuro. Apenas a maldita
“honra”!
Dona Maria foi para o seu quarto, onde trancou-se. Diante do seu
oratório, havia uma imagem de Nossa Senhora com o Menino Jesus. Ela
ajoelhou-se ali, e começou a rezar.
CAPÍTULO DOZE

PRISCILIANA caminhava aos tropeções pela mata, sempre sendo


puxada por Miguel. Ele continuava empunhando a pistola, e parecia um
pouco amedrontado, à medida que o tempo foi passando.
Depois de meia hora de caminhada, eles chegaram à beira de uma
tortuosa viela, onde ele amarrara o cavalo. Ajudou-a montar, agora sisudo e
de poucas palavras, e montou em seguida.
Prisciliana estava a cada minuto mais aflita. Sabia que ele estava
sentindo-se acuado, e que se fosse pego por qualquer um, não hesitaria em
matá-la. Era um bandido completo, ela pensava com desgosto.
Passaram para a ruazinha, num trote mais ou menos rápido, e ela
percebeu que iam na direção oposta às fazendas e à vila. Estavam indo para
o norte e com certeza ele daria algum jeito de conseguir pousada em algum
lugar. Também devia trazer consigo algum dinheiro, já que tinha a intenção
de prosseguir com ela.

Quase no final da tarde, chegaram a


uma espécie de mocambo abandonado, circundado por um pequeno espaço
de terra batida que estava, pouco a pouco, sendo engolida capim-gordura.
Uma cerca torta de bambus cercava o rancho, que parecia muito feio e
mofado, e Prisciliana sentiu certa repulsa quando pensou que teria de
entrar ali.
Eles pararam, e ele apeou, ajudando-a em seguida.
— Vamos andando, sinhazinha – disse ele, com desdém.
Ela obedeceu, e foi andando com ele até a porta do mocambo. O ar
da tarde parecia triste e levemente frio. O sol morria no horizonte, tingindo
todo céu de um laranja-dourado fosforescente e a silhueta das árvores, ao
longe, destacavam-se nítidas, num tom de cinza-escuro.
A casa abandonada, feita pau à pique, tinha uma janela – tapada por
um pedaço de trapo já todo rasgado – e uma porta, que gemeu quando ele
abriu. De dentro, veio uma catinga de mofo e poeira, que fê-la tossir.
— Desculpa, minha senhora – ele disse, no mesmo tom desdenhoso
– mas por hoje, é só o que te posso oferecer. Creio, porém, que devias
agradecer-me por ainda estar viva.
— Eu só gostaria de saber o quê pretendes fazer comigo – disse ela,
apreensiva. – Se estás fugindo de alguém, por que não o fazes sozinho? Não
precisarias retardar tanto a marcha, e poderias estar muito mais longe, a
estas alturas.
— Cala-te – disse ele, empurrando-a para dentro do rancho.
Lá dentro, o cheiro ruim era ainda mais forte. Ele, porém, nada
parecia perceber, e tirando do alforje uma grande capa de lã, estendeu-a no
chão, perto da parede. Ela franziu o nariz, pois o chão de madeira, todo
comido de caruncho, estava ainda muito sujo de terra e pó.
— Vamos, senta-te – ele disse, chegando-se à janela. – Tens fome?
— Pouca – ela disse, sentando-se. – O que eu queria, é que me
tirasses essas cordas das mãos. Estão machucando.
— Por ora, está bem.
Ele desatou as cordas, e Prisciliana massageou os pulsos doloridos e
levemente esfolados.
Ele, então, deu-lhe um cantil com água e um pote fechado, onde ela
encontrou pão, queijo e algumas frutas. Ele sentou-se perto dela, e também
comeu, sempre a olhando no rosto.
— Sabes, se não me tivesses desdenhado... tenho certeza de que
estarias aqui, comigo, por livre e espontânea vontade. Porque posso ser um
perseguido pela justiça, mas sou também um homem.
— Não posso te entender – disse ela, pensando no único homem que
conhecera até ali, e que demonstrara ter não só os desejos físicos de
homem, mas também o caráter. Ah, ela pensou, sentindo um vazio enorme
no peito. Francisco, onde estarás?
— E que queres entender? Queres saber por que estás, aqui,
comigo? Já te disse. Porque eu te quero comigo!
Ele mordeu os lábios, enraivecido.
— Para ser tua refém?
— E minha amante.
Ela fechou os olhos, horrorizada. Não podia acreditar naquilo!
Aquele impostor não tinha se conformado com a indiferença dela, e agora
resolvera vingar-se! Céus, ela estava perdida. Se não lhe havia tirado a vida,
ia tirar-lhe a honra, de uma vez por todas. Agora, ela jamais poderia ser a
mesma pessoa, a donzela filha de um próspero senhor de engenho, a jovem
senhora respeitada por todos. Ela encolheu-se, contra a parede, e em
pensamento, começou a rezar.
Sr. Horácio tinha organizado seus homens, que dividiram-se em
duplas e saíram a vasculhar as redondezas.
Ele mesmo ia sair, junto com Francisco, que lhe recomendara certo
itinerário.
— Acho que sei por onde podemos começar nossas buscas – disse o
feitor, enquanto ambos cavalgavam.
— Inda bem que tu conhecesses mais essas terras do que! – disse
Sr. Horácio.
Depois de alguns minutos, fizeram um contorno na mata mais
cerrada, desceram um áspero barranco e encontraram-se à beira do riacho,
onde Prisciliana e Miguel tinham se encontrado.
— Terá sido aqui que minha filha veio ao encontro do patife? –
Perguntou Sr. Horácio, como que adivinhando.
— Não sei, senhor. Mas poderia ser – Francisco respondeu, o rosto
sombrio. – Pois por aqui tem um atalho para a Fazenda Arribação.
Entretanto, vou dar uma olhada melhor.
Francisco apeou e desceu cuidadosamente o barranco. Sr. Horácio
observava o feitor, curioso. O homem atravessou o rio e começou a
examinar toda a extensão da margem contrária, procurando rastos que
dessem alguma indicação. Depois de um exame cauteloso, Francisco voltou-
se para o patrão sorrindo:
— Como eu pensava! Há capim amassado de fresco por aqui, tenho
certeza de passaram.
— Mas como podes ter certeza de que não foi outra pessoa?
— Faro, senhor Horácio – disse Francisco, exagerando. Não poderia
dizer que tinha certeza, por ter já pilhado sua filha ali, nos braços do outro.
– Estou tão acostumado a perseguir os negros fujões com o capitão-do-
mato, que isso já é parte de minha natureza.
— Compreendo-te, Francisco. E queira Deus que teu faro não esteja
enganado. Como faremos? Vamos nos internar por esse mato?
— Não será preciso.
— Como? Como então saberemos pra onde foram? Não seguiremos
o rasto?
— Sei exatamente como faremos para segui-los, sem que
precisemos nos internar a pé na mata.
— Não compreendo, Francisco.
Francisco enxugou o suor da testa e subiu novamente,
aproximando-se de sua montaria.
— Essa mata. Eu já a corri tantas e tantas vezes, senhor, atrás dos
negros que até já sei para onde vão.
— Sim, mas agora não se tratam de negros fujões, mas de um
homem branco!
— No final das contas, senhor Horácio, acabará dando tudo na
mesma, sendo, aliás, até mais fácil imaginar para onde o malandro foi.
— Tens certeza?
— Toda certeza, senhor Horácio.
O homem mais velho meneou a cabeça e olhou com certa admiração
para o feitor. Enfim, um empregado que lhe valia muito bem.
Francisco esporeou seu cavalo e fez um gesto, indicando ao patrão
por onde deveriam seguir.

A noite já caíra, e Prisciliana, depois do parco jantar, tentou deitar-


se sobre a capa, enrodilhando-se numa espécie de cobertor curto, que
Miguel lhe atirara.
Sentia frio, medo e aos poucos, um desespero que lhe apertava a
garganta, como um nó amargo e incômodo. Queria chorar, mas não
conseguia.
Miguel, depois de muito espiar pela janela, resolveu sentar-se
debaixo desta. Tinha a pistola em punho, e a expressão aflita de quem
pressente algum perigo.
Prisciliana acomodou a cabeça sobre um braço, e fechou os olhos,
na escuridão. Já não tentava mais pensar em fugir, nem nos perigos que o
amanhã lhe reservava. Evitava ainda, pensar em Francisco, em sua mãe e
em seu pai, pois quanto mais pensava, pior a situação lhe parecia.
Quando seus olhos acostumaram-se à semi-obscuridade, percebeu
que Miguel estava dormitando, a cabeça inclinada, mas sempre com a arma
na mão.
Ela levantou-se um pouco, e ficou indecisa. O que fazer? Foi então
que ouviu um ruído, vindo lá de fora. O que seria? Parecia que alguém
aproximava-se, muito lentamente.
Francisco e o Sr. Horácio haviam chegado nas proximidades do
mocambo, onde Prisciliana estava com Miguel.
Logo que o avistaram, Francisco apontou para o animal, amarrado
numa árvore próxima.
— Vê aquilo? – disse o feitor.
— Como poderemos saber?
— Esse mocambo é onde, por duas vezes, encontrei negros que
fugiram do engenho. Esse é o melhor lugar para se passar a noite, quando
se está em fuga por essas bandas, e quando digo essas bandas, refiro-me ao
afastamento máximo das fazendas e engenhos da região de Sant’Ana. Os
negros sempre amoitam por aqui e um branco que estivesse em fuga,
provavelmente não tomaria outro caminho, que o levaria inevitavelmente
de volta à vila ou aos engenhos. Seria por aqui, mesmo, senhor Horácio.
Eles conversavam em voz baixa. Em seguida, apearam e
aproximaram-se do casebre. Francisco colocou a mão sobre a garrucha e
abaixou-se um pouco.
No momento seguinte, entretanto, avistaram o trapo da janela
movendo-se ligeiramente, e não fora nenhuma brisa. Francisco mal teve
tempo de deitar-se no chão, antes que um tiro cortasse o silêncio da noite.
Ouviu um grito lá dentro! Era um grito Prisciliana! Ele foi rápido
como um raio, e voltou a cabeça para ver o patrão, enquanto corria
agachado para perto da cabana. Levou um susto quando viu Sr. Horácio
estendido no chão, a mão sobre o peito manchada de sangue. No instante
seguinte, porém, houve um segundo disparo, que não atingiu ninguém.
Francisco ouviu a voz do bandido, atroadora, dentro da cabana:
— Eu mato ela, ouviram? Eu mato Dona Prisciliana!
Ele moveu-se de novo, ágil como uma jaguatirica, e num salto,
estava atrás da casinha. Procurou por alguma nova abertura. Esgueirou-se
contra a parede, silencioso, o rosto suado, os olhos ardentes de aflição.
Então encontrou uma segunda porta, que serviria decerto para a saída dos
fundos. Tinha que agir, não poderia prolongar o impasse. Essa porta estava
semi-aberta, e ele entrou, silencioso. Era um cômodo pequeno, mas uma
vez lá dentro, ele avistou Miguel, de costas, segurando Prisciliana contra o
peito, enquanto empunhava a pistola com a outra.
Foi tudo muito rápido. Ele tinha anos e anos da escola da vida, no
que se tratava de emboscadas e fugas. Então, no espaço de um segundo,
ouviu um novo estampido: Miguel estava atirando em direção à porta da
frente! Foi o tempo suficiente para que ele, Francisco, desse um salto e
agarrasse o impostor pelo pescoço, antes que ele pudesse se mexer ou
atirar de novo.
Miguel soltou Prisciliana, que correu desesperadamente para a
porta, onde o pai agonizava.
Francisco em poucos minutos tinha imobilizado Miguel. Minutos
depois, era este que tinha as mãos e os pés fortemente atados com corda,
enquanto Francisco acorria até o patrão.
Este ainda respirava, e Prisciliana com o rosto desfigurado pela dor,
tinha a cabeça do velho sobre o colo.
— Meu pai, meu pai, Sr. Francisco! Ele está...
Francisco olhou para o rosto lindo da mulher amada, e sentiu que
seu coração estava batendo descompassado, num ritmo louco. Como ele
queria poder salvar Sr. Horácio! Como ele gostaria de vê-la sorrir,
abraçando o pai, ao invés de chorar.
— Tenha calma, sinhazinha – foi tudo o que ele conseguiu dizer.
O velho abriu os olhos, embaçados pela dor e fitou a filha, depois
Francisco. Seus olhos pareciam querer dizer algo – algo que no íntimo ele
pressentia – e seus lábios moveram-se, num sussurro.
— Meu pai, meu pai! Vamos tirá-lo daqui logo, o senhor logo estará
bem – dizia ela, os olhos marejados de lágrimas.
Sr. Horácio sussurrou:
— Cuida... dela...
— Que dizes, pai? – Perguntou Prisciliana, tentando compreender.
— Francisco... cuida dela. – e ele moveu a mão, que tremia, para
segurar a mão da filha.
— Oh, pai – disse ela, com a voz entrecortada. – Não te esforces.
Francisco, porém, com um brilho nos olhos, meneou a cabeça e
disse para o patrão:
— Cuidarei, sim senhor.
Sr. Horácio fechou os olhos, como que mais tranqüilo. Logo em
seguida, sua respiração cessou. Prisciliana curvou-se sobre o rosto do pai,
chorando. Francisco sentiu a mesma dor que ela, mas conteve-se.
Levantou-se, a respiração ainda ofegante e num gesto rápido,
passou as mãos nos olhos.
CAPÍTULO TREZE

A VOLTA para o engenho foi um retorno extremamente difícil.


Francisco encontrara os homens do Marquês a pouca distância do
mocambo, e em alguns minutos, eles estavam lá, prontos a descarregarem
sua ira contra o bandido.
Dois deles foram até a vila, juntamente com Francisco, para
avisarem a milícia. Prisciliana voltou com o Sr. Feitosa para o engenho, mas
seu estado de ânimo era dos mais deprimentes. Quando Francisco avisou-a
que ia até a vila, ela abriu os grandes olhos, agora muito vermelhos e
inchados, como a implorar que não fosse, que não a deixasse sozinha. Mas
não podia expressar seus sentimentos ali, diante de todos.
— Sr. Francisco, é mesmo preciso que o senhor vá? – Ela perguntou,
com a voz embargada.
Francisco tinha um ar desgostoso. Estava pálido, os olhos negros
muito fundos, o queixo azulado por uma barba incipiente. Parecia meio
fraco, quando respondeu:
— Sim, sinhazinha. Mas não se amofine, o Feitosa irá com vosmecê
até o engenho.

Prisciliana resignou-se, baixou a


cabeça. Além da dor pela morte do pai, pela humilhação passada nas mãos
do infame bandido, agora sentia-se mais do que nunca sozinha.
Chegaram ao engenho por volta das duas horas da manhã. O
encontro com a mãe foi o momento mais triste de sua vida. Dona Maria
estava magoada com o marido, as últimas palavras dele tinham sido rudes
e impiedosas, mas apesar de tudo, da vida nada fácil ao lado dele, de todo o
rigor das atitudes dele e até mesmo, de sua crueldade – ela nutria pelo
esposo um sentimento de afeto terno e submisso.
No dia do enterro, todos os proprietários de terra da região estavam
presentes. Todos deram seus pêsames e ainda protestaram sua amizade e
solidariedade à Dona Maria, que recebeu a todos com delicadeza, apesar da
prostração que a dominava.
Durante uma semana, Prisciliana fez companhia à mãe, que não saía
de casa, abatida e desanimada. Lamentava-se, dizendo que não sabia o que
fazer, agora que a mão forte do marido não estava mais ali para sustê-la.
Então tocou no assunto do noivado de Prisciliana com o Dr. Augusto:
— Seu noivo foi tão gentil – disse Dona Maria, sorrindo debilmente
para a filha. – Queira Deus que vocês se casem logo.
Foi então que Prisciliana lembrou-se do engodo combinado com Dr.
Augusto. Nervosamente, pensou que teria de desfazer aquela farsa, sob
pena de magoar ainda mais o coração já enfraquecido da mãe.
— Mãe, eu não vou me casar com Dr. Augusto. Não existe noivado
algum, nunca existiu.
A mulher olhou-a com susto:
— Que dizes? Como, não ouvi direito?
— Meu “noivado” foi apenas um embuste, que combinei com Dr.
Augusto, para que meu pai deixasse de castigar-me.
Dona Maria levantou-se da cadeira, e começou a caminhar pelo
grande salão, que agora parecia-lhe imenso como jamais imaginara. Tinha
uma expressão ainda mais triste.
— Deus do céu, minha filha. Que me dizes! Então não tens noivo,
não tens nada! O que será de nós? Oh, céus, e o Marquês, sabia disso?
— Não creio. Mas o Dr. Augusto, agora, poderá revelar a verdade a
ele.
Dona Maria voltou-se para a filha, com os lábios trêmulos. Olhou-a
bem nos olhos e perguntou-lhe:
— Filha, agora poderás me falar toda a verdade. Estavas apaixonada
por aquele bandido do Sr. Miguel, estavas? Foi por isso que inventaste essa
história com o filho do Marquês?
— A bem da verdade, mamãe, eu achei que estivesse, sim. Mas isso
só no começo. Quando o vi a primeira vez. Lembras-te do jantar, em que
estivera presente toda a família do Marquês e mais o tal do Sr. Miguel? Pois
naquela noite ele tinha se declarado a mim. Eu fiquei confusa, achei que
poderia estar apaixonada por ele. Então, no dia seguinte, encontrei-me às
escondidas com ele.
Dona Maria levou as mãos à cabeça, nervosa. As revelações da filha
a deixavam cada vez mais agitada.
— Oh, céus, foi o que pensei. E a partir daí começaste a te encontrar
sempre com ele, não é? E te entregaste a ele.
— Não, mãe. Não. – Prisciliana suspirou. Não sabia mais até onde
deveria ser sincera com sua mãe, uma vez que o estado emocional dela era
delicado. – Eu não me entreguei à ele.
— Falas a verdade? Oh, Deus do céu, minha filha. Falas a verdade?
— Sim.
Prisciliana baixou a cabeça.
— Nunca me entregue ao miserável do Miguel. Nunca. Porém...
A mãe segurou-lhe a mão, tentando infundir-lhe confiança.
— Sim? Fala, por favor, Prisciliana!
— Amo a outro homem.
— Como? – Dona Maria enrugou o rosto, num misto de horror e
ansiedade. – Outro homem? Mas de quem falas agora? Outra notícia ruim?
Não suporto mais notícias ruins, Prisciliana!
— Não, minha mãe. Tranqüiliza-te. Eu posso garantir-te que esse
outro homem não é nenhum bandido, nem salafrário ou desonesto. Pelo
contrário. É um homem bom.
— Quem?
— Mamãe, eu não quero falar nisso agora. Estamos de luto e não
quero vê-la agitar-se mais, não fará bem à sua saúde. Vamos passear um
pouco? Que tal uma caminhada pelo jardim?
Dona Maria meneou a cabeça, tristonha. Olhou pelas janelas abertas,
por onde o sol entrava, enchendo a casa de uma alegria da qual ela não
partilhava.
— Filha, confio em tua correção e honestidade. Não vou insistir em
que me fales o nome desse rapaz, por quem te apaixonaste. Agora, peço-te
que vás tu, passear. Eu estou muito cansada, vou deitar-me um pouco.
Quando Dona Maria ia para o quarto, alguém bateu à porta.
Candinha atendeu, e o Sr. Francisco surgiu à porta da sala, o chapéu nas
mãos, um olhar sombrio. Prisciliana sentiu o coração batendo com força,
mas a expressão dele deixou-a confusa.
— Sr. Francisco! – Dona Maria sorriu ao olhar para ele. – Entra, por
favor. Até agora ainda não pude agradecer-te de modo decente, por tudo o
que fizeste por nós, desde aquele dia fatídico.
— Com sua licença, senhora Dona Maria.
Ele entrou, e lançou um olhar para Prisciliana, que o sustentou de
coração agitado.
— Senta-te, por favor – Disse Dona Maria.
Ele sentou-se, e pigarreou. Dona Maria sentou-se à frente, e pediu à
filha que se sentasse também.
— Sr. Francisco, não tenho palavras para agradecer. Salvaste a vida
de minha filha!
— Ora, Dona Maria. Eu nada fiz, além do que era necessário. Além
disso, não me perdôo pela morte do Senhor Horácio. Foi uma fatalidade, eu
sei. Não consegui evitar que ele...
— Por favor! – Protestou ela, erguendo a mão. – Não digas isso!
Fizeste o que estava ao teu alcance, e nós só temos a te agradecer, não é
mesmo, filha?
Prisciliana meneou a cabeça, e não conseguiu dizer nada. As
palavras lhe faltavam.
— Obrigado, Dona Maria. A senhora é uma pessoa de bem. Por isso,
o que vou pedir à senhora vai ser difícil, mas eu preciso dizer.
Prisciliana sentiu o coração bater tão forte, que parecia querer
pular-lhe para fora do peito.
— Deveras, senhor Francisco. Podes falar!
— Eu queria pedir a vosmecê as minhas contas.
Prisciliana sentiu que ia desfalecer. Seu rosto perdeu as cores, e ela
apertou as mãos, num gesto convulsivo.
— Como? – Dona Maria ficou assustada com aquela declaração
inusitada. – O que estás a dizer? Pedir as contas?
— Isso mesmo, senhora. É que estou indo embora do Engenho
Sant’Ana.
— Não podes estar falando sério, Sr. Francisco!
— Infelizmente, estou, sim senhora.
Prisciliana sentiu-se sufocar. Levantou-se, torceu as mãos, e disse,
sem conseguir disfarçar a agitação:
— O senhor vai nos deixar? Podemos saber por quê?
Francisco olhou calmamente para o rosto pálido da jovem. Tinha
nos olhos uma serenidade triste.
— Porque, sinhazinha? Por que. Bom. É que tenho um irmão, que
mora nos Campos Gerais, e está muito doente, precisa de mim por lá.
— Isso me deixa muito, muito penalizada, Sr. Francisco – disse Dona
Maria, com sinceridade. – Logo agora, agora que precisamos tanto dos teus
serviços por aqui... Sempre fostes o homem de confiança de Horácio. E eu
tinha ao menos esse consolo, saber que estavas aqui para nos auxiliar. É
realmente uma pena.
— Mais uma vez agradeço à senhora – ele disse. – Mas é preciso que
eu me vá.
— Ah, é lamentável – disse Dona Maria. – Por favor, queria que
ficasses. Pensa mais um pouco, Sr. Francisco. É realmente necessária essa
partida?
— Infelizmente creio... que sim – ele disse e olhou subitamente para
Prisciliana.
— Bem, que seja, então – disse Dona Maria, suspirando. – Poderias
esperar até amanhã? Ainda terei de arranjar outra pessoa para ficar no teu
lugar.
— Sim, senhora.
Ele inclinou a cabeça, tomou de novo o chapéu e saiu da sala.
Prisciliana, muda e extática, de repente pareceu voltar a si do choque. A
mãe conversou um pouco, mas ela só pode dar respostas evasivas, pois
tinha o pensamento longe. Então, sentindo que um calor subia-lhe do peito
até o rosto, pediu à mãe:
— Mãe, espera um pouco, vou conversar com ele.
— Como? Com o Sr. Francisco? Mas achas que poderás convencê-lo
a ficar?
A moça nada respondeu, e saiu correndo da sala. Lá fora, olhou para
todos os lados, e viu-o andando, em direção aos canaviais.
— Espera, por favor!
Francisco parou e voltou-se.
Ofegante, Prisciliana parou diante dele, agitada, ansiosa, quase
desesperada. Fez um gesto, indicando o pomar, que ficava para os lados do
bosque.
— Por favor, vamos até lá, onde poderemos conversar com mais
tranqüilidade.
Ele assentiu, e começaram a caminhar para o outro lado. Francisco
ia de cabeça baixa, e ela pensava, num tumulto de emoções que quase a
afogavam, no porque daquela atitude.
— Francisco, não estou entendendo. Por quê isso? Por que vais nos
deixar?
Ele parecia taciturno, e tinha os olhos perdidos na distância.
— Não posso mais permanecer aqui. Do teu lado.
— Por quê?
— Porque sei, compreendo que não mais me queres. Compreendo
que tua vida agora irá mudar. E também porque não foste sincera comigo.
Foste ao encontro daquele vagabundo miserável, quando ele te chamou.
Estavam entre as árvores do pomar. Ela olhou para ele, e aquele
rosto – que antes ela tanto odiara – agora parecia-lhe tão triste, tão
desiludido, que ela sentiu o coração se partir dentro do peito. Ergueu a
mão, e tocou-o.
— Francisco, não compreendes?
— Compreender? O quê, sinhazinha? Que eu devo agora me afastar
de ti? Desde antes daquele nefasto dia, em que ele fugiu contigo, tu já
andavas me evitando. Sei, cansaste de mim. Fui uma diversão agradável,
mas agora bastou para ti, não é mesmo?
— Não! – Ela gritou, lançando os braços ao pescoço dele. – Nada
disso é verdade! Francisco, ainda te quero!
Ele esticou os braços e apertou-a contra si, suspirando. Ao senti-la
tão perto de si, o desejo apossou-se dele e esqueceu-se de tudo e de todos.
Queria tê-la novamente nos braços, amá-la como naquelas inesquecíveis
noites, na sua casa, na cama humilde onde ela o fora procurar.
— Minha sinhazinha, por quê me deixaste só por tanto tempo? E
depois que teu pai morreu também me ignoraste. Pensei que tinhas me
esquecido.
— Nunca! – Ela sussurrou no ouvido dele. – Tu és o meu homem,
ouviste? Nunca, nunca vou deixar-te. Quero-te, Francisco. Quero-te ao meu
lado agora e sempre.
Ele segurou o rosto dela entre as mãos, e Prisciliana fechou os olhos,
ao sentir aquelas mãos tão fortes tocando-a, ao sentir o desejo dele
novamente pulsando em cada ponto do corpo dele e passando para ela,
com aquele contato forte e quente.
Então, ele a beijou. Um beijo desesperado, com gosto de saudades,
de desejo, de furiosa e possessiva paixão. Ela abriu a boca para ele,
sentindo todo seu corpo amolecer diante daquele toque, e o fogo interior
reacender-se com uma violência inesperada.
Naquele momento, nada parecia existir para ele. Não se importaram
com nada. Queriam-se, com uma loucura, uma urgência, que nada poderia
detê-los.
— Preciso estar contigo agora, Prisciliana – ele sussurrou-lhe aos
ouvidos. – Quero te amar de novo.
— Francisco – ela protestou debilmente, incapaz de sair dos braços
que a aprisionavam. – Agora, não, mais tarde. Mais tarde, por favor, alguém
poderia nos ver.
— Está bem – ele disse, afastando a cabeça para respirar. – Mais
tarde.

Prisciliana estava aturdida, de tanto pensar em Francisco e em seu


amor proibido por ele. Voltara para a casa-grande, fizera companhia à mãe,
e pela tardinha, saiu novamente em companhia da mucama, para ver os
escravos do eito.
Ficou ouvindo as tagarelices da mulata, que começara falando sobre
a recuperação de Crispim, e terminou mencionando a “mudança do jeito de
sinhô Francisco”.
— Como? Que dizes, menina? – Perguntou Prisciliana.
— Eu estou falando, sinhazinha, do jeito do sinhô Francisco. Ele tá
mudado, a sinhá não notou?
— Mudado? Como? – Perguntou ela, surpresa.
— Ah, ele nunca mais maltratou ninguém, já passa dum mês que ele
não manda mais ninguém pro tronco. Quando ele quer castigar, manda o
Mariano tomar conta dos negro rebelde.
Prisciliana sorriu. Como era bom pensar nele assim! Já não restava
nenhuma dúvida sobre o caráter de Francisco. Ele sempre fora um homem
correto, no fundo.
— Sinhá, lá está o Crispim!
O escravo estava, hoje, carregando os carros de boi com a cana
cortada. Ao vê-la, ele não pôde deixar de sorrir, embora encabulado.
Prisciliana aproximou-se dele, e Crispim, mais do que nunca, via
nela uma espécie de entidade benfazeja, uma deusa de pele branca e olhos
iluminados, que nascera para trazer um pouco de paz aos corações cativos.
Ela nunca lhe parecera mais bela: Os longos cabelos ondulados presos na
cabeça com um adereço simples e arrematado por duas florinhas brancas, o
vestido negro do luto que se moldava ao corpo elegante e tornava o
pescoço níveo ainda mais claro, um simples medalhão de ouro, onde
provavelmente ela deveria guardar um retrato do pai. Tão singela e tão
encantadora! E o sorriso. Crispim baixou os olhos, quando vislumbrou o
sorriso naqueles lábios cheios e mais vermelhos do que uma pitanga
madura.
— Como está, Crispim? – Ela perguntou, parando perto dele.
— Melhor, sinhá, agora que tudo passou, e a sinhazinha está bem. A
sinhá me desculpe, mas eu fiquei muito preocupado, quando soube do
acontecido com a sinhazinha. Se eu tivesse ido junto com o vosso pai e os
outro homem do engenho, e tivesse botado as minha mãos naquele
desgraçado... – ia dizendo Crispim, com os olhos muito arregalados. –...acho
que eu matava ele e não ia sobrar muita coisa pra enterrar, não.
Prisciliana alteou as sobrancelhas, observando o escravo, cheia de
curiosidade. Como nunca percebera o afeto que aqueles pobres tinham por
ela? Comovida, ela apenas sorriu e disse:
— Como é bom saber que tem tanta gente que gosta de mim!
Crispim, que tinha parado um pouco com o trabalho, ficou
embatucando, mas afinal falou:
— Quem num gosta da sinhazinha? A sinhazinha é um anjo de
bondade.
Ele baixou rapidamente a cabeça. E percebendo que, de longe, o Sr.
Francisco os observava, ficou um pouco temeroso e continuou com o
trabalho. Mas então, aconteceu uma coisa engraçada.
Ele continuou erguendo os fardos de cana-de-açúcar, mas o canto
dos olhos, notou que ela sorria. Primeiro olhando para ele, Crispim. Mas
depois, ergueu a cabeça e olhou na direção oposta. E era um sorriso cheio
de uma espécie de luz, de graça especial, de carinho; se fosse para ele,
aquele sorriso, pensou Crispim... Mas não era. Porque lá, do outro lado, a
algumas dezenas de passos deles, estava o feitor, Sr. Francisco.
O escravo ficou encafifado, e virou um pouco a cabeça. O Sr.
Francisco também estava olhando para ela, e sorria! Sorria, como quem
sorri para alguém muito, mas muito especial.
Crispim atrapalhou-se com o fardo de cana, que acabou por
escorregar de suas mãos, caindo estrepitosamente.
Ele sentiu o coração batendo forte no peito. Então era isso... Ele
lembrou-se de uma noite, em que viu o vulto da sinhazinha, passando
rápido perto da senzala e vestida como uma escrava. Vestida como
escrava? Sim, fazia sentido. E agora, ela e o sinhô Francisco estavam se
olhando e sorrindo-se, um para o outro.
Crispim franziu a testa, e continuou silenciosamente o seu trabalho,
sem ousar erguer os olhos para sinhazinha, e encontrar de novo aquele
sorriso. Aquele sorriso, que dizia tudo.
EPÍLOGO
PRISCILIANA queria fazer a ele uma surpresa. Não sabia exatamente
como, ou com quê, mas sentiu aquele impulso, à noite...
Durante mais de uma semana, não pôde ver Francisco, pelo menos,
não da maneira como desejava. Via-o rapidamente, quando saía com Dona
Maria a passear pela propriedade, quando ia sair para ir à vila e passava
por ele, enquanto ele dirigia o trabalho dos escravos.
Não tivera coragem de contar nada à mãe, mas sabia que Francisco
estava começando a ficar impaciente. Amava-o cada vez mais, cada vez
mais sentia falta dos braços dele, em torno do seu corpo...cada vez mais
desejava o corpo dele próximo do seu, principalmente à noite, quando
deitava-se sozinha em sua grande e confortável cama – que ela odiava, pois
estava sempre vazia dele – nunca poderia imaginá-lo ali, deitado com ela.
Entretanto, como sentia saudades da casinha de madeira, lá nos fundos do
engenho, da cama estreita, coberta por um lençol de algodão simples e dos
cobertores finos, de lã grosseira.

Depois de muito revirar-se na cama,


sem poder dormir, ela achou que já estava na hora de viver outra aventura
noturna. Era preciso. Não podia mais conter-se.

Francisco também andava de um lado para outro, na frente de sua


casa. Já tinha tomado um gole de aguardente, para acalmar os clamores
insuportáveis de seu corpo e de sua mente.
Entretanto, ainda estava lá, aquele anseio, aquela febre. Ele
caminhou um pouco pela noite, sentindo o vento frio que anunciava o
inverno machucar-lhe o rosto. Andou em torno do terreno, conversou um
pouco com os outros agregados, que se achavam encostados á porta de
suas casas. Alguns deles tocaram no nome da senhora, mencionando que
“Dona Maria era uma viúva, agora, e uma viúva jovem e bem ajeitada”.
Francisco nada disse, mas fechou a cara diante do comentário desairoso.
— Isso sem falar da filha – disse outro agregado, um caboclo magro,
de bigodinho fino e ar atrevido. – que é também bonita como o diacho!
Francisco lançou a este um olhar cheio de ódio.
— Ahm, mas esta – comentou outro agregado – ia casar com o filho
do Marquês ou será que foi por água abaixo o noivado?
— Sei não – tornou de novo o caboclinho. – Depois de ela ter sido
“roubada” pelo tal galego fora-da-lei, parece que o noivo não quis mais
saber dela.
E os três caíram na gargalhada. Francisco não mais se conteve:
Lançou fora seu copo de bebida e pulou sobre o caboclo, agarrando-o pelo
colarinho e sacudindo-o com toda a força de sua ira. Gaguejou, com o rosto
convulsionado de raiva:
— Cala-te, imbecil! Cala-te, se não quiseres que te moa de
bordoadas!
O caboclo esbugalhou os olhos, e ficou encarando o feitor, sem nada
entender.
— Sinhô Francisco, eu nada disse.
— Disseste muito, para alguém do teu tamanho! Estás a falar de
pessoas honradas, da esposa do Sr. Horácio, que hoje é tua patroa. E da
sinhazinha, cujo nome não deve andar em bocas como a tua!
O homenzinho estremeceu, e meneou freneticamente a cabeça,
concordando com as palavras do feitor.
— Sim, sim, sinhô. Eu não queria falar mal de ninguém, não sinhô.
Francisco largou-o, ainda irritado. Os outros dois se entreolharam,
assustados e sem compreenderem nada.
— E isso serve pra vosmecês também.
E assim dizendo lançou a eles um olhar furioso que parecia
despedir chispas de fogo e afastou-se, em direção à sua casa.
Os três homens ficaram a olhá-lo, boquiabertos. O mais velho, que
trabalhava no engenho há mais tempo do que todos os outros, fez um
trejeito com os lábios e um gesto, apontando para Francisco:
— Nunca vi nada igual, nesta minha vida. Sinhô Francisco está
muito esquisito, sabem? Ele nunca foi assim.
— O que o sinhô acha que é? – Perguntou o caboclo do bigodinho.
— Oi, não sei não, mas que ele está mudado, está. E essa agora! É
boa! Ficar cheio de dengos por causa da mulher e da filha do falecido
senhor...
O velho repuxou os lábios e sacudiu o dedo, falando com um ar de
quem sabia mais do que falava:
— Isso não me cheira a boa coisa...
Já passavam das onze horas, e Francisco continuava sem sono.
Estava sentado no catre, a cabeça entre os braços, com um vazio enorme no
peito.
A chama tremulante da vela lançava um círculo informe de luz
sobre ele, deixando tudo o mais mergulhado na escuridão. E ele, olhando
em torno, desejou não estar mais ali, desejou estar longe, em outra cidade,
em outra província talvez. Aquele quartinho pequeno já não abarcava mais
a sua solidão, que aumentava dia a dia.
Estava afundando em desespero, não lhe bastava mais vê-la,
durante o dia. Ouvir um cumprimento ocasional e receber dela um sorriso
bonito, de quando em vez. Aquela situação o punha fora de si. Qualquer dia,
acabaria traindo-se diante dos outros empregados, diante dos escravos.
Então, ouviu uma batida leve à porta. Levantou-se, sem acreditar
nos próprios ouvidos. Seria possível? De novo? Seria improvável.
Segurou a trave da porta, pensando um pouco. Seria mesmo ela? Ele
respirou fundo e abriu a porta.
Prisciliana, apertando com força o xale de lã sobre os ombros,
encarou-o. Estava pálida, parecia tensa e aflita, mas seu rosto irradiava
tanta alegria, que ele mal se conteve.
— Entra! – Disse ele, o coração batendo loucamente.
Ela entrou e então sorriu.
— Meu amor! – ela disse, atirando-se nos braços dele.
Abraçaram-se com força. Por um momento, nada disseram, e
ficaram apenas assim, sentindo-se mutuamente.
Francisco começou a beijá-la com toda a paixão que lhe
transbordava do peito, começando pela testa, rosto, pescoço e boca.
Estavam fora de si. Tanto tempo! Tanto tempo passara desde a
última vez em que se tinham amado, e agora estavam novamente juntos.
Prisciliana apreciou com pleno prazer o calor do corpo dele, seu
toque áspero e terno ao mesmo tempo, o peso dele sobre si.
— Francisco ! – Ela disse de repente, erguendo a cabeça.
— Fala, minha sinhazinha.
Ele havia tirado a própria camisa e começava a despi-la também,
sofregamente.
— Tu nunca me disseste uma coisa, uma coisa que eu sempre quis
ouvir de tua boca.
— O quê?
— Nunca me disseste que me amas!
Ele riu-se, mostrando os dentes muito brancos. Ela pensou consigo:
Como ele fica ainda mais bonito, quando sorri...
— E preciso? É mesmo preciso que uma mulher ouça belas palavras
da boca de um homem, para acreditar nele?
Ela meneou a cabeça:
— Ás vezes.
— Te amo, sinhazinha – ele disse, com um brilho ainda mais forte
nos olhos. – Te amo. Mas não é só isso. Quero-te ao meu lado para sempre,
para sempre... Lembras-te do que teu pai disse, pouco antes de soltar seu
último suspiro?
Prisciliana fechou os olhos. Viu-se novamente no mocambo perdido
na mata, o pai esvaindo-se em sangue, a cabeça apoiada em seus braços.
Seu pai, seu pai, que sempre fora um rígido moralista, um escravocrata, um
homem que sempre lhe parecera insensível. Lembrou-se de suas últimas
palavras: “Cuida dela... Francisco, cuida dela.”
— Sim, eu lembro. Claro! Ele se referia a mim e pediu-te que
cuidasses de mim.
Francisco sorriu de leve.
— Ele sabia, ou naqueles últimos instantes, deve ter tido algum
pressentimento sobre nós. Então, me pediu que cuidasse de ti. E vou cuidar,
minha sinhazinha, vou cuidar.
Beijou-a novamente, com delicadeza, depois com mais força, com
mais desejo e mais voracidade.
Prisciliana empurrou-o um pouco, de leve, e tornou a falar:
— Francisco, eu ainda nada disse à minha mãe, não pude.
Ele começou a acariciar-lhe o corpo, contornando cada traço, cada
curva, cada ponto macio e oculto sob as roupas dela.
— Eu sei, minha branca. Mas não podemos mais nos encontrar
assim, sempre às escondidas. Isso não é bom para ti, nem para mim.
— Também acho. Terei de criar coragem. Falarei a ela amanhã cedo,
falarei com ela. Mas, Francisco... devo te dizer uma coisa.
— Quê? – Ele agora beijava-lhe os ombros, suavemente.
— Se minha mãe disser não, serei obrigada a obedecê-la.
Francisco ergueu os olhos e fitou-a um momento. Uma sombra
passou-lhe pelas feições másculas, como se uma nuvem de chuva
escondesse de repente o sol. Prisciliana arrependeu-se de ter dito isso, de
tê-lo entristecido. Mas era uma verdade, e ela não poderia se furtar à
verdade.
— Eu acho – ele começou a dizer – que estás certa.
— Vou morrer – ela falou – se minha mãe disser não. Vou morrer de
dor e saudades, eu quase não consigo nem respirar sem pensar em ti. Mas
não poderei contrariar minha mãe, neste momento mais difícil da vida dela.
Francisco ergueu-se um instante e virou a cabeça, fitando um ponto
qualquer na escuridão do quarto.
— Isso quer dizer que essa noite... pode ser a nossa última noite, que
pode ser uma... despedida?
Ela soltou um gemido e abraçou-o com toda força, puxando-o de
volta de encontro a si.
— Não quero pensar assim, não, não quero. Vamos, ama-me,
querido. Ama-me, e não pensemos no que ainda está por vir. Já nos basta o
dia de hoje, vamos vivê-lo!
Francisco sentiu uma pontada de medo dentro do peito, mas não
poderia amargurar aquela noite com seus temores e dúvidas, não agora.
Agora que ela estava ali, pronta para entregar-se a ele, macia e quente.
Ele tentou afastar a ansiedade e eles voltaram a se acariciar e se
beijar.
Aquela noite, para eles foi como a última noite de suas vidas, tal a
loucura e o delírio com que se amaram.

O dia seguinte amanheceu levemente nublado, com um céu cor de


chumbo dando mostras de que o clima não ia ser muito quente, pelo menos
nas próximas horas.
Francisco levantara-se à hora de sempre, tomara seu banho e
dirigira-se ao refeitório. Suas atitudes eram as mesmas, mas todos os
agregados e – até mesmo os escravos – notaram-lhe alguma diferença sutil.
Ninguém saberia dizer ao certo o que era, mas ele estava mais sério e
compenetrado do que o costume, o rosto parecia mais fechado, o olhar
mais profundo e melancólico.
Os escravos olhavam-no com temor, pois há muito tempo não viam
o feitor com o rosto assim, sombrio.
Francisco, no entanto, não mais iria descarregar sobre os cativos o
seu furor e as suas preocupações. Mesmo porque, o que o afligia estava
muito aquém do que todos imaginavam. Ele não estava aborrecido, nem
irado, tampouco de mau humor. Tudo o que sentia era temor.
Não sabia mais o que seria de sua vida dali para frente. Estava com
medo, pela primeira vez em sua vida, ele sentia medo, medo do futuro.
Medo do que poderia acontecer a ele e a seu amor ilícito pela sinhazinha.
Enquanto conversava com os outros empregados, enquanto andava
até as plantações, enquanto dirigia o trabalho dos negros, ele pensava nela.
Relembrava cada momento, desde que a vira pela primeira vez, quando
viera trabalhar para o Sr. Horácio, há cerca de cinco anos.
Ela, então, era uma mocinha de uns dezesseis ou dezessete anos,
mas já bonita como poucas. Mas Francisco, perto dos vinte e seis anos,
jamais se atrevera a olhar para a menina, filha do senhor. Ele tivera suas
amantes, mulheres da vila. Uma vez, uma mulata bonita e alforriada, que
logo, entretanto, se separara dele por causa de um mascate cheio dos
traquejos da corte. Francisco não lamentara a partida da mulata, sentira-se
um pouco solitário, mas no fundo sabia que não conhecia o amor ainda. E
julgara que jamais sentiria aquilo, pieguice de poetas e romancistas, como
dizia para si mesmo.
Como as coisas mudaram, desde então. A meninazinha se tornara
uma mulher linda, cortejada por muitos rapazes. Foi num dia qualquer, em
que ele a vira passeando pelo jardim, acompanhada de um daqueles
mancebos, sorridente, no seu vestido rosa-pêssego, na singeleza e
ingenuidade dos dezoito anos, que Francisco sentiu alguma coisa em seu
peito, um clamor diferente, uma exaltação dos sentidos. E desde então,
passara a viver encarcerado naquela paixão doentia e sem esperanças.
Relembrou o dia em que a vira quase nua, nos braços do torpe
bandido, o português Miguel, e do ódio infernal que lhe consumiu a alma,
dia após dia, noite após noite, jurando que ele, Francisco, iria tomá-la, iria
tê-la de qualquer jeito, mesmo que isso lhe custasse o resto de esperança
de um dia ela vir a amá-lo. Sim, ele tinha pensado. Mesmo que ela passe a
me votar um ódio profundo, mesmo que se negue, mesmo que me
espezinhe, que me rogue pragas e maldições, um dia ela estará em minhas
mãos. Vai baixar a cabeça diante de mim, vai se render, vai se entregar.
Então, quando pensava que tudo estava perdido, ela viera à sua
procura. Seu beijo forçado não tinha sido em vão! Ela o procurara, sozinha.
Ela sentira desejo por ele. De início, talvez só desejo. Depois, uma afeição
suave que, pouco a pouco, fora se transformando em paixão e amor.
E depois, todo o resto, o rapto dela pelo bandido. Como Francisco se
sentira traído! Mas ela explicara-lhe o porquê de ter ido ao encontro do
galego. Quisera por um ponto final nas intenções dele, ela dissera.
E a noite de ontem. Que fogo, que loucura! Prisciliana era a mulher
que ele ia querer para sempre em sua cama, em sua vida, em sua alma. Ela
já fazia parte de sua vida, mas ele queria mais, muito mais do que um ou
outro encontro ocasional, um beijo rápido em meio ao bosque, um sorriso
de longe. Ele queria-a como sua esposa, para sempre. Não apenas a
lembrança suave e doce dela, não apenas recordar os olhos castanhos, não
apenas sonhar com os lábios polpudos, não apenas desejar, desejar e nunca
tê-la de fato. Ele a queria inteira, diante de tudo e de todos. Amá-la sem sem
medo, sem preocupação. Imprimi-la em sua pele, como ela estava
impregnada em sua alma.
Ele estava mergulhado nesses pensamentos, enquanto caminhava
pelas plantações de cana, observando os escravos. Então voltou os olhos
para a casa-grande.
Prisciliana vinha correndo em sua direção, como uma andorinha
que cruza os céus na primavera.
Ele abriu mais os olhos, sem acreditar. Ela corria para ele, e vinha
sorrindo.
Chegou quase sem fôlego diante dele, sempre sorrindo e dos olhos
vivos e brilhantes, derramava-se uma luz alegre e festiva.
— Francisco!
Ele olhou ao redor, encabulado e sem saber o que dizer.
— Francisco! – Ela repetiu, feliz e sorridente. – Já falei com minha
mãe. Estamos livres!
— Livres? – Ele repetiu, sem compreender, mas já sorrindo.
— Livres para viver nosso amor!
Ele não podia acreditar no que estava ouvindo.
— Livres? Mesmo? Tu falaste a tua mãe? – Ele ainda duvidava.
— Falei! Expliquei a ela tudo. A princípio ela resistiu à idéia, por
causa da tua condição social. Mas eu disse a ela o quanto nosso amor é
sincero, o quanto te arriscaste para me salvar, e o que meu pai disse, as
últimas palavras dele.
Francisco olhou para a casa-grande. Lá, da grande varanda, Dona
Maria olhava para eles, um vulto muito pequeno, quase imperceptível
naquela distância. Mas ele sabia ou sentia, que a bondosa senhora estava
sorrindo, também.
— Então, ela concordou – Francisco sorriu, um sorriso largo e
radiante. Sua felicidade não cabia-lhe no peito.
Beijou a sua sinhazinha nos lábios, depois abraçou-a.
Os negros todos, que trabalhavam na plantação, pararam
momentaneamente, para olhar aquela cena inusitada.
Crispim, que fora requisitado por Dona Maria para trabalhar na
casa, estava caminhando naquele instante, ao lado de Candinha, ajudando-a
com um grande cesto de frutas, e também parou, quando viu o casal.
— Oia lá, Candinha. Agora vassuncê entende por quê o feitor mudou
tanto, né? – disse ele.
— Virgem! Eu não sabia que era isso, Crispim!
Candinha deu uma risada, entre assustada e alegre. E olhou para o
irmão, que tinha um meio-sorriso no rosto.
— Eita, Crispim! E agora? O quê vassuncê me diz disso? O feitor, que
era ruim como o diabo, virou um homem bom. E tudo por causa da nossa
sinhá!
Crispim, finalmente, sorriu.
— É. Eu também sentia pela sinhazinha um afeto muito grande,
Candinha. Vassuncê deve ter percebido. Mas era um afeto que eu guardava
muito bem escondido. Agora eu sei que num perciso escondê nada, porque é
o mesmo tipo de afeto que ela tem por mim, por vassuncê, por todos os
escravos. Mas esse outro amor, lá... – ele apontou com a cabeça para os dois
enamorados – não é amor, é paixão, dá pra ver como eles se gostam.
Os dois escravos olharam novamente para o casal. Prisciliana e
Francisco estavam abraçados, agora. E como Crispim, todos os outros
escravos perceberam o porquê da mudança do Sr. Francisco.
Como a maioria dos seres humanos, ele tinha experimentado o amor
não correspondido, e mostrara sua faceta agressiva e dura. Mas como todo
ser humano, agora ele estava conhecendo o amor correspondido, e era
claro como a luz daquele sol – que começava a romper as nuvens escuras –
que ele agora era um homem feliz.
— Vais ser minha enfim, Dona Prisciliana. Minha por inteiro – disse
ele, sorrindo.
— Para sempre tua, Senhor Francisco... – Ela respondeu, selando a
promessa com outro beijo.
SOBRE A AUTORA

JOSSI BORGES é web design e escritora. Durante três anos


trabalhou no ramo de comércio e informática. Atualmente, tem um
comércio virtual, escreve contos, e já publicou a antologia solo
“Estranhas Histórias de Amor” (2010), participando e organizando
“Beijos e Sombras” (2010), “Beijos e Névoas” (2010), “Beijos e
Sangue (2010) e “Poções, Encantos e Assombrações” (2010), pelo
Clube de Autores. Também participou das antologias “Histórias
Fantásticas” volumes III e IV, organizadas por Georgette Silen e
publicadas pela editora Cidadela.

[1] Engenhos eram propriedades, locais destinados à fabricação de açúcar, propriamente a moenda,
a casa das caldeiras e a casa de purgar. Tudo isso junto era chamado de engenho-bangüê, e passou
com o tempo a ser assim denominado, incluindo as plantações, a casa-de-engenho ou moita (a
fábrica), a casa-grande (casa do proprietário), a senzala (lugar onde ficavam os escravos) e tudo
quanto pertencia à propriedade.Até meados do século XX os engenhos eram a principal indústria de
açúcar e álcool no Brasil. N. da A.

[2] Tronco foi o nome dado a um instrumento de tortura e humilhação, com função semelhante à
do pelourinho. Foi usado na Europa e nos Estados Unidos até ao século XIX, e no Brasil, com o intuito
de castigar os escravos, havia uma variante do tronco onde os indivíduos eram chicoteados, também
como exemplo. N da A.

[3] Administrador da fazenda, principalmente nos assuntos referentes aos escravos.


[4] Árvore bignoniácea brasileira, cujas flores são famosas pela beleza e forte colorido. N. da A.
[5] Frase-feita, significa: morrer.
[6] Nostalgia, na linguagem dos antigos escravos. Tristeza, depressão, fraqueza física e mental.
[7] Edifício dos engenhos e fazendas, galpão que servia de moradia aos escravos. N. da A.
[8] Ave típica do Brasil, com plumagem colorida e um topete na cabeça, que lembra crista de galo. N
da A.
[9] Remédios caseiros, geralmente constituídos por ervas medicinais, usados antigamente na zona
rural do Brasil.
[10] Portuga: Termo equivalente a “português”, no jargão popular.
[11] Arreliado: Irritado, nervoso, enraivecido. N. da A.
[12] Judiaria: Maldade, malvadeza.
[13] Atarantada: Atrapalhada, agitada.

[14] Lengalenga: Linguajar popular, significa situação duvidosa, de difícil resolução ou conclusão.
[15] Galego: Português, natural de Portugal.
[16] Abilolar: Enlouquecer.
[17] Aperreio: Incômodo, problema, complicação.
[18] Fremoso: Formoso.

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