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Além Tejo

Catarina Pereira Araújo

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«There are places I’ll remember
All my life though some have changed
Some forever, not for better
Some have gone and some remain
All these places have their moments
With lovers and friends I still can recall
Some are dead and some are living
In my life I loved them all.
[…]»

In my Life, Rubber Soul, Beatles,


EMI Records Ltdona, 1965

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Capítulo I

P
or baixo de um par de sobrancelhas finas, firmemente alçadas, es‑
preitavam uns olhos pestanudos cor de mel, observando casais a
deslizar na pista de dança, embalados pela música lenta e pelas lu‑
zes adormecidas dos candeeiros. Do seu rosto afilado, transbordante de
candura, desprendiam‑se sorrisos e cumprimentos formais aos conheci‑
dos que por ela passavam. Poucos ficavam imunes à sua presença. Não
era nem a anfitriã, nem sequer uma convidada ilustre, porém chamava
facilmente a atenção, tanto pela sua beleza natural, como pelo seu carisma
de mulher moderna. O modelo quase perfeito de decoro e independência
feminina. O seu sobrenome era de tal modo sonante que todos achavam
ser de algum proprietário muito rico, talvez até com brasão. Mas Isabel
ignorava este burburinho geral acerca da sua pessoa. Estava tão ocupada
a responder às solicitações dos convidados que nem deu conta quando
a mãe se aproximou, dardejando críticas ferozes contra o vestido inde‑
cente da Teresinha. Descreveu‑o acutilantemente durante vários minutos,
apontando cada pormenor originador da sua revolta. Ao terminar estas
e outras asserções sobre como se devia trajar uma rapariga solteira, fixou
os olhos na Josefina, que dançava com José Vidal Cantanhede, um rapaz
distinto, de temperamento alegre, mas com um futuro profissional pouco
promissor, tendo em conta que não era médico, nem advogado.
– Essa tua amiga Josefina é uma tola! – comentou a mãe, em voz
baixa. – Não consigo perceber o que viu ela naquele rapaz.
– Viu aquilo a que eu chamo as três boas virtudes: é bonito, bran‑
do e bem‑humorado – retorquiu a filha, na esperança de lhe travar a lín‑
gua afiada.
Mas os seus esforços foram vãos, porque Ana Maria lá continuou
a discursar sobre a arte de arranjar um bom marido. Essas ideias român‑
ticas eram muito bonitas, mas quando a realidade acabasse por ruir sobre

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o casal apaixonado, tinha a certeza de que não havia romance capaz de
resistir a tamanho golpe.
– Deixa‑a estar! – acrescentou, num tom conspirativo. – Pelo me‑
nos não anda atrás do Ricardo, pois esse é para ti!
O desejo da mãe em vê‑la casada o mais depressa possível pa‑
recia‑lhe despropositado, porém numa festa de passagem de ano como
aquela era normal os pais com filhos solteiros aproveitarem a ocasião para
os fazerem desfilar pela sala à procura do companheiro ou companheira
ideais. Era como um leilão, quem oferecesse as melhores condições era
logo sequestrado, de modo a ser feito o arranjinho.
– Mãezinha… – suspirou Isabel, aborrecida. – A intenção era
divertir‑me esta noite! Por favor, guarde essas suas armas de caçadora de
maridos. Não estou com paciência para passar as próximas horas a entre‑
vistar possíveis pretendentes.
Os olhos da outra esbugalharam‑se, como se lhe tivesse dito al‑
gum absurdo. E perante a impassibilidade da filha, logo se fez valer de
argumentos pesados para rejeitar o seu pedido.
– Ora, eu, na tua idade, já estava casada e com o teu irmão nos
braços, Deus o tenha!
– Sim, mas no seu tempo os casamentos mais pareciam negócios
da China! Não fazia diferença se a mulher e o homem gostavam um do
outro, desde que isso fosse vantajoso para as suas famílias!
– E pensas tu que hoje em dia já deixaram de ser assim? Ó, filha,
julgava‑te menos ingénua. Nesse aspecto saíste ao teu pai, um romântico
incurável! Um tolo! Um tolo!
Isso não a impedira de casar com ele, como observou Isabel.
Pois, porque nessa altura já ele estava a trabalhar na companhia de se‑
guros do tio e em vias de ser promovido, frisou logo de seguida a mãe,
pelo que as suas famílias não hesitaram em dar graças ao noivado. Pe‑
rante esta exposição fria dos factos, à filha só restou fitá‑la, tomada de
choque.
– Vai‑me dizer que casou por conveniência? Nem sequer estava
apaixonada?
Ana Maria devolveu‑lhe o olhar espantado, depois comprimindo
os lábios num sorriso contido.
– Apaixonada? Oh, que piada… – calou‑se por breves instantes
para cumprimentar a dona Emília e prosseguiu, com um brilho distante
a despontar‑lhe nas pupilas contraídas. – O teu pai costumava aparecer lá
em casa com grandes ramos de flores e escrevia‑me poemas que me dei‑
xavam corada até ao couro cabeludo. Mas paixão… Só nos conhecemos
bem depois de casados, e a paixão esmorece rapidamente. O que fica é a

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amizade e o companheirismo. Não sei se amava o teu pai quando me casei
com ele, mas acho que agora isso deixou de ter importância.
Isabel sentiu uma náusea a corroer‑lhe o estômago. Mal podia acre‑
ditar que os pais tinham casado sem amor, que haviam cedido às imposi‑
ções das respectivas famílias e se haviam deixado governar pelas conveni‑
ências da sociedade. No fundo, a felicidade dos dois dependera de um mero
golpe de sorte, perspectiva que a deixava aterrorizada.
O silêncio que se abateu subitamente sobre as duas propiciou mais
uma vez a observação. Inúmeros casais desfilavam os seus trajes de festa
ao longo da pista de dança. As raparigas solteiras conversavam umas com
as outras, distribuindo sorrisinhos e fingindo partilhar segredos entre elas,
enquanto os rapazes as convidavam a dançar à vez. Seguiam‑se os rituais
de conquista aos quais Isabel não era indiferente. Evitava, contudo, usar
os seus atributos para atrair as atenções masculinas, pois considerava esse
tipo de jogos demasiado perigoso, preferindo mil vezes uma boa conversa.
É claro que quando fazia esta sugestão ao seu companheiro de dança, ele
resmoneava, deixava escapar um sorriso amarelo e inventava uma súbita
vontade de ir à casa de banho. Josefina divertia‑se a ver os rapazes fugirem
dela, mas a mãezinha ficava furiosa com a determinação de Isabel em se
manter solteira aos vinte e três anos de idade.
– Valha‑me Deus! – suspirava Ana Maria, compondo os caracóis
pretos, enquanto abanava a cabeça. – Nem sequer é por falta de aspirantes.
O tempo passa muito depressa, o que é que tu pensas? Nós, as mulheres,
temos de nos salvaguardar ou acabaremos a cuidar dos filhos dos outros.
Olha, ficas para tia e ajudas a tua irmã a tratar dos pequenos dela.
Acabada de se lhes juntar, Josefina acrescentou a rir:
– E há‑de ser uma tia muito útil, com a independência de um ho‑
mem, a sensibilidade de uma mulher e a jovialidade de uma criança!
Todas gargalharam, divertidas, excepto Ana Maria, que fungou, in‑
satisfeita.
– A Geninha, aos vinte anos, já tem o seu Gonçalinho e a Maria
Antónia não pára de me mostrar as fotografias do neto adorado! Exi‑
be‑o como se fosse um troféu! E o genro foi promovido há pouco tempo.
«O escritório é do tamanho do nosso salão lá de casa», disse‑me ela, de
nariz empinado. Porque não segues o exemplo da tua irmã? – sugeriu, re‑
ferindo‑se a Inês, de dezoito anos, uma bela tempestade de Primavera, aos
pés de quem os rapazes caíam enfeitiçados à primeira vista.
Isabel abanou a cabeça, com pena da mãe e das suas tentativas frus‑
tradas para a convencer a ouvir os seus velados conselhos. Na verdade, o
único homem com quem costumava ter conversas interessantes, cheias de
espirituosidade, era Ricardo da Cunha Cabral, um indivíduo esbelto, de

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quase trinta anos, filho de um amigo íntimo do pai. Parte do seu charme,
que tanto atraía as raparigas em idade casadoira, residia no facto de ser ad‑
vogado e de possuir um certo estatuto no seio das mais altas instâncias do
governo, devido aos contactos estabelecidos na sua carreira em vertigino‑
sa ascensão, causando inveja a muitos homens da ditadura. A convivência
próxima entre as suas famílias tornara‑o, consequentemente, uma compa‑
nhia divertida para Isabel. As mães de ambos já faziam planos, a pensar no
casamento, mas apesar de haver um interesse evidente por parte de Ricardo,
Isabel apenas o considerava um bom amigo, e mais do que isso não pensava
ela, ou pelo menos tentava não pensar. Tinha vagas ambições para a sua
própria vida e, até concretizá-las, jamais consideraria o casamento como o
seu ancoradouro de segurança, contrariando os planos da mãe.
Aos dezassete anos, Isabel Maria do Couto Maia matriculara‑se na
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a fim de se tornar professo‑
ra. A sua sorte fora ter um pai liberal, porque naquele tempo poucos eram
os homens que permitiam às filhas estudar e trabalhar fora de casa. Apesar
do obscurantismo que afectava o ensino universitário, especialmente a Fa‑
culdade de Letras, Isabel formou‑se com distinção e começou de imediato
a ensinar num colégio para raparigas. O sonho de formar livres‑pensadores
havia sido desfeito logo no primeiro ano do curso, quando deparou com
um grupo de professores desmotivado, sem a mínima vocação para o en‑
sino, e teve de lidar com as arbitrariedades cometidas em todo o processo
de avaliação, a falta de estímulo dos alunos e a mediocridade que lhes era
incutida. Contudo, as suas movimentações no submundo estudantil, onde
se vivia o clima puro da vida universitária, forneceram‑lhe as subtilezas ne‑
cessárias para fazer passar aos seus alunos um modo aberto de pensar, sem
colidir de frente com a cartilha salazarista.
Colaborava na revista Modas e Bordados, suplemento do jornal
O Século, na qual dava largas à sua veia interventiva, aproveitando para cha‑
mar a atenção para questões sociais importantes, sobretudo no que dizia
respeito às mulheres. Algumas das suas crónicas haviam chegado a provo‑
car celeuma junto da censura; nada que desencorajasse Isabel. No entanto,
teve de se refrear, pois, segundo o Ministério da Educação Nacional, uma
professora não devia exprimir ideias que não fossem as defendidas pelo Es‑
tado. Era «Deus, Pátria, Família» e pronto. Isto agravou‑lhe o sentimento de
revolta em relação ao modo como as mulheres eram tratadas na sociedade,
revolta essa que foi obrigada a reprimir sob pena de poder vir a ser impedi‑
da de ensinar. Em consequência, cresceu no seu íntimo uma amargura que
se manifestava na sua constante atitude indagadora.
Inês, a irmã, era o oposto. Estudara apenas porque o pai a obrigara
e pretendia casar‑se assim que surgisse o seu príncipe encantado. Enquanto

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isso, a mãe entretinha‑se a discriminar as qualidades e defeitos dos rapa‑
zes a concurso. António do Couto Maia achava aquilo tudo imensamente
divertido, mas no fundo tinha pena que Inês se tivesse tornado tão frívola,
pois encantara‑se com a sua vivacidade de criança, tendo sido com ela me‑
nos exigente e mais tolerante, talvez por vontade de rever na pequena a sua
própria juventude perdida. Não obstante, António encontrou consolo junto
da filha primogénita, na falta de um varão. Esse morrera‑lhes cedo, mal
havia deixado o colo da mãe. Restaram as duas raparigas, robustas, cheias
de vida, mas de personalidades opostas. Isabel até podia ter influenciado a
irmã nos seus tempos de adolescente rebelde, no entanto o contacto com
o mundo do trabalho amadurecera‑a, canalizara‑lhe a obstinação para a
racionalidade e a filosofia. Costumava deliberar sobre os acontecimentos
do dia‑a‑dia e sobre as atitudes das pessoas, convencida da justeza de todas
as suas declarações, acolhidas com grande respeito e raramente postas em
causa pelas mulheres do seu círculo, talvez por a maior parte delas se sentir
intimidada com tanta assertividade. O facto de a sua vida até ali ter sido,
de certo modo, previsível também ajudara no crescimento dessa segurança
excessiva, que, segundo o pai dizia, ainda lhe havia de trazer dissabores.
«Se alguma vez isso acontecer, reconhecerei o erro e admitirei a culpa sem
reserva!», limitava‑se Isabel a responder, com algum sarcasmo. É claro que
também isto já era sinal do seu orgulho desmedido. Porém, numa socie‑
dade governada pela hipocrisia, onde as aparências norteavam as relações
humanas, quem teria coragem de a desafiar?
Era já quase meia‑noite e o ano de 1956 estava a poucos minutos
de distância quando Ricardo se juntou a Isabel, convidando‑a a dançar. Só
faltou a mãe empurrá‑la para cima do rapaz. De bom grado, a jovem esten‑
deu a mão ao amigo, que, com um gesto firme, a conduziu para o meio do
salão, onde se entregaram a uma valsa pachorrenta.
– A tratar de negócios em plena festa! – disse Isabel, em tom de
amável censura.
– Observadora como sempre! – gracejou ele. – Estavas a olhar para
mim?
Ela franziu os lábios, fazendo uma careta.
– Não estava a olhar só para ti, mas para o vosso grupo de senhores
carrancudos a gesticular gravosamente. Ora, já assisti a reuniões suficientes
para perceber do que estavam a falar.
– O teu pai levou‑te demasiadas vezes ao escritório.
– Era eu que pedia. Vais dizer‑me agora que o escritório não é lugar
para uma mulher!
– Ah, não me atreveria – apressou‑se ele a dizer, cheio de boa dis‑
posição –, com medo de sair daqui com um olho negro!

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– Fiz alguns na minha infância, é verdade. És muito mau em fa‑
zer‑me recordá‑lo.
– O António não se cansa de contar essas histórias e ri‑se às garga‑
lhadas de cada vez que as relembra! – Depois sussurrou: – Mas aposto que
a tua mãe morria de embaraço.
Isabel concordou com um anuir de cabeça, sem tentar defender-se.
– Há liberdades que só as crianças podem ter – disse ela, observan‑
do a irmã a rir‑se a bandeiras despregadas. – As de poderem fazer coisas
que normalmente não fariam, porque ainda estão a descobrir o seu lugar
no mundo. Mas uma vez ultrapassada essa fase, têm a responsabilidade de
usar o bom senso para evitar fazer figuras tristes e à Inês, tenho muita pena
de dizer, falta essa qualidade importantíssima. Nunca vi rapariga mais in‑
sensata em toda a minha vida.
– Acho que estás a ser demasiado dura com ela. Ainda é uma crian‑
ça.
– Inês tem dezoito anos, e não treze.
– Tu aos dezoito ainda eras um pouco selvagem.
– Talvez… – admitiu ela, de olhos fixos na irmã, que agora circula‑
va entre os convidados a provocar um dos candidatos a namorado. – Mas
não me entretinha a dar esperanças aos rapazes, com palavras doces e pro‑
messas falsas, para depois agir como se nunca tivesse dito nada.
– Não lhes dás esperanças com palavras, mas em actos – disse ele,
os traços do seu rosto espelhando seriedade.
Isabel despertou da vigilância da irmã, como se lhe tivessem be‑
liscado o braço, e fitou o parceiro de dança, de olhos muito abertos, sem
conseguir disfarçar o espanto que aquela declaração lhe causara. Tentou
afastar‑se, mas Ricardo não a largou.
– Desculpa… Não foi minha intenção…
– Ricardo, eu nunca…
– Eu sei… Eu sei… Perdoa‑me! Vamos mudar de assunto, mas,
por favor, continuemos a dançar. Não me deixes aqui sozinho no meio da
pista.
O embaraço era tal que Isabel se esqueceu onde colocar os pés, aca‑
bando, inevitavelmente, por pisar o seu par várias vezes. Este disparou a rir
e ela relaxou de imediato. Apreciava muito a amizade de Ricardo e esfor‑
çava‑se por preservá‑la, embora soubesse que no íntimo do amigo crescia
a vontade de ceder aos apelos do coração. Isabel estava certa de nada sen‑
tir por ele e lamentava magoá‑lo ao despedaçar‑lhe as esperanças. Finda
a dança, os dois separaram‑se e juntaram‑se aos seus respectivos grupos,
homens para um lado e mulheres para o outro. Cada qual falava de assun‑
tos do seu interesse, raramente se misturando. Isabel bem tentava intro‑

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duzir temas mais substanciais nas conversas das suas amigas, demasiado
entretidas a falar mal umas das outras para se libertarem de um hábito tão
enraizado.
Com o aproximar das doze badaladas, os convidados acorreram às
mesas, à procura de passas e de copos de champanhe, prontos a festejar o
início do novo ano. E quando a primeira badalada soou, saltaram as rolhas
das garrafas, distribuíram‑se os abraços e brindou‑se à vida, na tentativa de
esquecer, pelo menos por alguns momentos, a situação do país.
Os vivaços olhos pestanudos de Isabel mais uma vez vaguearam
pelo salão. O ano de 1956 entrava pela noite adentro, envolto numa energia
diferente. Podia senti‑lo no ar, o odor da mudança. O semblante do pai
reflectia‑o claramente, pois parecia preocupado e mais circunspecto do que
era costume. Ele encaminhou‑se para junto da mulher e da filha mais nova
com um sorriso doce e pesaroso ao mesmo tempo. Depois os seus olhos
descaíram, fitos no chão até se fixarem nos de Isabel. E no breve instante em
que os seus olhares se cruzaram, uma treva desprendeu‑se da expressão do
seu rosto, atingindo‑a como um calafrio.

13
Capítulo II

A
ntónio Gonçalves do Couto Maia era um homem relativamente
abastado, filho de um oficial do Exército, falecido durante a Pri‑
meira Guerra Mundial. Ocupando um alto cargo na companhia
de seguros do cunhado, recebia um bom salário que lhe permitira instalar
a família numa casa de oito assoalhadas, com acomodações para a criada‑
gem, numa zona privilegiada da Rua da Bela Vista, em Lisboa. Não tinha
portanto razões de queixa quanto à sua posição na vida e na sociedade.
Isabel, porém, sabia que o pai era infeliz.
António não era particularmente bonito, nem mesmo elegante, mas
a índole serena que transparecia nos seus modos, até nos seus hábitos, con‑
quistava amizades duradouras e lealdades difíceis de quebrar. Não era por
isso de admirar que mantivesse as mesmas amizades de há cerca de trinta
anos com dois singulares cavalheiros, o senhor Joaquim Cunha Cabral e o
senhor Mendes de Agostinho, às quais juntara mais tarde a de Ricardo da
Cunha Cabral e de um outro jovem chamado José Alfredo Soares. Os cinco
frequentavam um Clube ao fim‑de‑semana, de onde saíam a altas horas da
noite, após discutirem sobre vários assuntos de interesse corrente, desde
negócios às políticas implementadas pelo governo, este último à socapa,
não fossem ser ouvidos por informadores da PIDE, a quem apelidavam de
bufos, por se dedicarem a denunciar manifestantes contra o Estado Novo.
Ele era, acima de tudo, um apaixonado pela cultura, gosto incutido
pela mãe que, depois da morte do pai, o tirara dos Pupilos do Exército e se
encarregara da sua educação, com medo de que o filho se tornasse num ho‑
mem insensível e rígido como fora o progenitor. Assim, pô‑lo em contacto
com as artes, o teatro e a literatura. Depois de ter servido no exército, do
qual saiu prematuramente devido a um acidente que lhe lesionou os joe‑
lhos, António tentou dedicar‑se à escrita. Todavia, para a mãe, tal activida‑
de devia ser apenas um passatempo, e assim ela obrigou‑o a matricular‑se

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na universidade, a fim de tirar a licenciatura em Economia. Uma vez que
viviam em dificuldades, ele cumpriu o seu desejo e licenciou‑se, começan‑
do de imediato a trabalhar na companhia de seguros de um amigo, através
do qual viria a conhecer a futura esposa, Ana Maria.
Mas a sua grande mágoa era nunca ter conseguido dedicar tempo
suficiente à sua paixão: a poesia, através da qual exprimia os seus pensa‑
mentos contra a ditadura, instalada desde 1926 e cujas raízes opressoras
pareciam ter‑se infiltrado de vez na crosta da nação, sem que ninguém fosse
capaz de lhe fazer frente. Depois da pequena crise gerada pela morte do
presidente Carmona em 1951, Salazar escolhera Francisco Craveiro Lopes
para o substituir, por reunir as qualidades necessárias à manutenção do
sistema: tinha pouca experiência política, era fraco e manipulável, ou pelo
menos assim pensava ele. Além disso, no auge da Guerra Fria, o regime,
profundamente anticomunista, era apoiado pelos aliados da NATO, o que
ajudou a legitimar o governo e as suas actuações arbitrárias na perseguição
aos «vermelhos». O imobilismo e as actividades repressivas atacavam em
todas as frentes.
Assim, a depressão de António aprofundou‑se, muito por culpa
da monotonia instalada nos meios de diversão da capital, restringidos pela
censura em pleno apogeu. A única escapatória que lhe restava era a leitura,
à qual dedicava a maior parte do seu tempo livre. A sua lista obrigatória
era longa e não dispensava as obras proibidas pelo regime. Ana Maria nem
sonhava que ele as tinha escondidas em casa, porque se descobrisse, logo as
mandaria queimar, com horror a ser descoberta e humilhada em público.
Ana Maria Varela do Couto Maia nascera entre as paisagens verde‑
jantes do Minho, numa mansão antiga, onde vivera toda a infância até a fa‑
mília se ter mudado para Lisboa. Esta mudança inesperada dilacerou‑lhe a
alma. A vida na cidade, tão contrastante com o quotidiano calmo e pacífico
do campo, afectou‑a sobremaneira. Os odores indistintos, as ruas labirínti‑
cas, estranguladas por prédios cinzentos colados uns aos outros, a agitação
desenfreada, a pobreza ao virar da esquina, a decadência, tudo a chocava e
a deprimia constantemente, numa provação que só por pouco não a levara
à loucura.
Conhecer António fora uma bênção, depressa encontrando nele o
seu ancoradouro, apesar de saber que se casasse com ele, nunca mais sai‑
riam de Lisboa. Por altura do primeiro ano de casamento já se conformara
com esse facto. Encontrava pois consolo numa vida confortável, pacífica,
pontuada por algumas viagens ao estrangeiro, de onde trazia uma ou outra
extravagância com que decorava as três salas e os cinco quartos da casa.
Apesar de os móveis terem sido herdados da família, demorou anos até
encontrar tudo de que necessitava para decorar a casa convenientemen‑

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te, recheando‑a com os objectos e demais coisas que lhe faziam lembrar
a infância vivida na Casa Varela, no Minho. O seu quotidiano dividia‑se
essencialmente entre a coordenação das criadas e as acções na Igreja. Com
a idade tornara‑se menos gastadora. Consolava‑se em mimar a filha mais
nova com generosas prendas, já que Isabel dispensava a boa mesada por
ela oferecida todos os meses, preferindo sustentar‑se com o dinheiro que
fazia como professora, embora não fosse muito. Ana Maria criara as duas
de modo igual, com vista a serem perfeitas donas de casa e se uma a enchia
de orgulho, a outra desvirtuara‑se totalmente, por culpa de António, acha‑
va ela, pois tratava Isabel como se fosse um rapaz, ele respondendo de um
modo complacente que bastava uma filha tola para alegrar a casa. Até entre
os amigos havia quem o criticasse por ser tão liberal na educação das suas
raparigas, de lhes querer enfiar macaquinhos no sótão com leituras e ateís‑
mos. Mas ele não os levava a sério e limitava‑se a dar‑lhes palmadinhas nas
costas para encerrar o assunto de maneira amigável antes que a conversa
tomasse proporções desagradáveis.
Entretanto, Ana Maria ia tentando convencer Isabel a seguir os seus
conselhos e a tornar‑se mais feminina. Acenava‑lhe com uns quantos escu‑
dos na mão, como se de um leque se tratasse, pedindo‑lhe para se embone‑
car um bocadinho. A seu ver, todas as mulheres deviam embonecar‑se de
vez em quando, tanto para os homens, como para as outras mulheres. Se
não era para atrair o sexo oposto, deviam fazê‑lo, pelo menos, pela compe‑
tição. Mas nunca lhe passaria pela cabeça uma mulher vestir‑se apenas para
si própria. Tinha de haver sempre um objectivo em mente.
– Guarde isso, guarde isso – pediu Isabel, agastada com a insistên‑
cia da mãe.
– Ora! – exclamou Inês, segurando em cinco vestidos acabados de
trazer pela modista. – Lá estás tu com as tuas manias. Até parece que aceitar
o dinheiro dos pais nos leva à bancarrota.
– Não é nada disso. Só acho que devemos ser mais escrupulosos na
maneira como gastamos o nosso dinheiro. Temos muito mais a perder do
que outras famílias de condição inferior.
– Ó, filha! – exclamou Ana Maria, de sobrolho franzido. – Mas o que
queres tu dizer com isso? Sabes alguma coisa que nós desconheçamos?
Isabel parou de costas, evitando olhar para a mãe, pois sentia os
seus grandes olhos inquiridores postos nela. Engoliu em seco, humedeceu
os lábios e virou‑se.
– Não sei de nada. Foi só uma observação. Só isso. Já me arrependi
até de ter falado.
Bem podia tentar fazê‑la entender o seu ponto de vista, mas tudo o
que lhe saía da boca soava sempre a disparate aos ouvidos da mãe ou então

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a mensagens encriptadas, cheias de segundos sentidos, sobre as quais ela
ficava depois a matutar durante horas, pensando que aquela estranha con‑
versa surgira de alguma confidência feita por António à filha mais velha.
O medo de que algo perturbasse inesperadamente a estabilidade familiar
provocava‑lhe, volta e meia, acessos de paranóia. Não perguntava nada di‑
rectamente ao marido, mas era capaz de passar semanas inteiras a espiá‑lo,
só para confirmar ou refutar as suas teorias. Depois sossegava, seguiam‑se
dias de relativa serenidade, até ser de novo assombrada pela inquietude.
Estava precisamente a passar por um desses momentos, quando António
chegou e se sentou à mesa, em torno da qual caiu um silêncio carregado,
apenas interrompido pelos ruídos de Inês a cantarolar entredentes.
– Isto é uma mesa, não é um palco, querida! – advertiu‑a Ana Ma‑
ria, olhando de soslaio para o marido, cujos olhos fixavam a comida.
A jovem calou‑se, mas persistiu em menear os ombros, como se
cantasse de si para consigo, ignorando o ambiente tenso ao redor. Várias
vezes a mãe experimentou fazer um comentário sobre os acontecimentos
do dia ou um reparo acerca de como o tempo estava instável, mas o marido
não lhe respondia, continuando a comer, como se nada fosse. Era óbvio
que algo se passava, no entanto ninguém se atrevia a confrontá‑lo. Isabel,
embora desconhecesse os motivos que o haviam imergido naquele estado
de espírito, receava o momento em que tomasse a decisão de os revelar à es‑
posa. Essa decisão, ele tomou‑a nessa mesma noite. Aproveitou para seguir
Ana Maria quando ela se resolvera a ir ao quarto buscar os seus bordados e
ali se trancaram durante mais de duas horas.
Inês mal fazia ideia do que se passava, tão entretida que estava a
experimentar os vestidos novos, mas Isabel andava de um lado para outro,
com a garganta sufocada por um mau pressentimento.
– Pára com isso, mana! Já estou a ficar tonta! – queixou‑se Inês,
bailando em frente ao espelho.
Um chiar estridente vindo do corredor, fez Isabel precipitar‑se para
a porta e abri‑la, apanhando o pai a vaguear em roupão entre o escritório e
a casa de banho. Quando retornava, deu‑se conta da presença da filha.
– O que estás a fazer acordada? Vai‑te deitar.
– Está tudo bem?
– Sim, sim – respondeu ele, numa voz roufenha. – Vai dormir, já se
faz tarde. Amanhã conversamos… Amanhã conversamos… – repetiu ele,
pesadamente, desejando‑lhe boa-noite.
Desde a festa de passagem de ano, Isabel tinha a percepção de que
algo se alterara. António não era homem de muitas palavras, mas perce‑
bia‑se quando estava sorumbático. Durante aqueles primeiros dias de Ja‑
neiro andava profundamente preocupado, diria até angustiado, o que era

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estranho, porque poucas coisas no mundo eram capazes de o perturbar
àquele ponto. Mas era um facto. Se antes costumava ler os seus livros favo‑
ritos no canto da sala, junto à janela, debaixo da luz trémula de um velho
candeeiro de família, agora escolhia sempre a reclusão do escritório. Nunca
mais recebera ninguém em casa, quando as visitas dos amigos chegavam
a ser diárias. Também passara a falar muito ao telefone, instrumento que
ele sempre detestara, só o usando em casos de extrema necessidade. Isabel
ficou a pensar no que teria causado esta mudança de rotina, temendo ser
apanhada nesse torvelinho que são os acontecimentos imprevistos. Contu‑
do, não chegou a conclusão nenhuma. Era escusado. Teria de esperar para
saber.
Mal a aurora irrompeu pela janela do quarto, levantou‑se da cama e
foi arranjar‑se. Todas as manhãs cumpria a sua rotina com uma pontualida‑
de britânica e tudo o que interferisse naquela coreografia, ensaiada ao longo
de anos, só podia resultar num dia péssimo. Daí ter‑se dirigido à cozinha
pé ante pé, com os pensamentos toldados de desconfiança. Ana Maria e as
criadas preparavam o pequeno‑almoço, entretidas a conversar ao som da
telefonia. A disposição da mãe parecia a mesma de sempre.
– Bom dia! – cumprimentou ela, seguido de um coro de bons dias
em resposta.
Isabel suspirou de alívio. A distância entre as coisas terríveis que
imaginara na noite anterior e o que se lhe revelava naquela pálida manhã
parecia agora abismal. No entanto, enquanto descia a rua, a caminho do
colégio, o grasnar das gaivotas chamou‑lhe a atenção para os telhados, onde
as viu pousar umas ao lado das outras, como num prenúncio de tempesta‑
de. A nortada batia‑lhe no rosto e escapava‑se na direcção do rio ao fundo,
quebrando a ondulação.
Passou a tarde a corrigir trabalhos, refugiada na biblioteca. Ler os
contos das crianças apaziguava‑a, porque eram inocentes, perspectivavam
um futuro doce, simples, onde o mal era curável e o bem perpétuo. Não
fossem os erros de escrita daria a todos a nota máxima. Frequentemente
pedia‑lhes para redigirem um texto sobre temas variados, a maior parte das
vezes pela simples curiosidade de saber o que lhes passava pela cabeça em
dado momento. Não tinha medo de passar horas a tentar descodificar as
suas tenras caligrafias, como acontecia com algumas colegas que chegavam
a açoitar as palmas das mãos das suas alunas com o ponteiro de madeira para
que aprendessem a escrever correctamente de uma vez por todas. Isabel era
contra estes métodos violentos, preferia dar‑lhes tempo, deixá‑las descobrir
o prazer de escrever, de desenhar as letras, como se fossem pedaços de arte
numa tela gigantesca e magnífica. Era como se o trabalho que fazia para
decifrar cada traço lhe permitisse abrir os olhos para um mundo diferente,

18
feito de mudanças, que ela podia explorar na segurança da sua secretária.
Por causa dessa sua mania, alguns professores olhavam‑na de lado, com re‑
ceio de que estivesse a planear uma revolução nos métodos pedagógicos
tradicionais. Seria queimada viva se tentasse alguma coisa nesse sentido.
Ao final da tarde, no regresso a casa, levantou‑se um vendaval. Uma
morrinha plácida começara a cair logo a seguir ao almoço, e àquela hora
estava já prestes a tornar‑se num intenso aguaceiro, de modo que Isabel
apressou o passo, na tentativa de escapar à molha. Chegou ao patamar do
prédio encharcada até aos ossos.
O pai esperava‑a na sala, sozinho, com olheiras escuras penduradas
debaixo dos olhos mortiços. Pediu‑lhe que o acompanhasse ao escritório,
arrastando‑se ao longo do corredor, como se carregasse uma cruz nos om‑
bros. Ela seguiu‑o, a tremer, não sabia se de frio ou de expectativa. Sen‑
taram‑se frente a frente, nos cadeirões frios, de couro castanho, dispostos
em torno da mesa de centro, onde repousava uma jarra com duas peónias
murchas. António esfregava a testa, ansioso.
– O que se passa, paizinho? Onde estão a mãe e a Inês?
– A tua mãe está na salinha a falar com ela. Eu fiquei encarregado
de falar contigo – tossicou, aclarou a voz e depois ergueu o olhar, encaran‑
do‑a de frente. – Isabel… nós vamos ter de nos mudar.
– Para onde? Para aquela casa que andou a ver nas Avenidas No‑
vas?
– Não… para outro sítio. Vamos sair de Lisboa!
– Sair de Lisboa! – repetiu ela, estupefacta. – Mas porquê?
António não respondeu. Esfregou as mãos e tornou a fitá‑la com o
mesmo olhar perturbado. Era melhor que ela não soubesse os motivos que
os obrigavam a sair da capital. Tanto ele como a mãe estavam bem de saúde,
as suas razões não se prendiam com nada dessa natureza, se era isso que ela
receava. Contudo, tinham de partir em breve.
– Para onde?
– O pai do Ricardo conhece um lavrador, dono de uma grande her‑
dade no Alentejo que precisa de um administrador experiente… – mirou o
rosto da filha, analisando‑lhe a expressão e continuou: – Fica em Moura, no
Baixo Alentejo, entre o rio Guadiana e a fronteira. O Joaquim mostrou‑me
fotografias da região. Parece um sítio bastante agradável, sossegado…
O seu tom de voz, a maneira como falava do plano, como se já há
muito tivesse sido determinado, provocou‑lhe um formigueiro no peito.
Afinal, nada do que imaginara se comparava à realidade. Ergueu‑se da ca‑
deira num impulso e andou pela sala, meio perdida, na tentativa de gerir
os nervos e de assimilar a notícia, porém, em menos de um segundo, as
paredes começaram a rodopiar, como se tivesse caído para dentro de um

19
caleidoscópio. Na outra ponta, em frente, António resfolegava. A sua dor
era de tal modo evidente que sentiu uma mistura de pena e repúdio. Só um
acontecimento muito grave o obrigaria a deixar o emprego, a casa, todas as
suas coisas, laboriosamente conseguidas ao longo de anos, e mudar‑se para
tão longe! A essa pergunta ele não quis responder, o que fez com que aceitar
aquela situação fosse ainda mais difícil.
– Não é tão mau como parece! – tentou ele apaziguá‑la. – É uma
vila grande e tem vindo a crescer bastante nos últimos anos! Além disso,
está cercada de grandes explorações, portanto deve ter uma vida social ani‑
mada. O Ricardo vai lá de vez em quando, foi ele próprio quem mo disse.
Isabel virou‑se para ele, branca de cera. Ajoelhou‑se a seus pés e
tomou‑lhe as mãos frias, com força.
– Oh, não estou preocupada com isso! Se diz que temos de ir em‑
bora, então iremos consigo. Desde que estejamos juntos, é só isso que me
importa.
– E a Escola? Os teus alunos? Podias ficar cá com a tua tia. Ela teria
todo o gosto em acolher-te.
A rapariga abanou a cabeça, muito convicta.
– Não. Eu quero ir com vocês. Além disso, a Inês não vai aceitar
isto com a mesma calma que eu; se ficar, vai ser pior para ela. A mãezinha
há‑de estar demasiado ocupada a tratar da mudança para lhe dar atenção.
Eu posso ajudar. Está decidido. Vou convosco e não se fala mais nisso.
Isabel enterrou a cabeça nas mãos do pai e inspirou fundo, aterrori‑
zada. Sentia o coração a esmurrar‑lhe o peito. Por momentos só conseguiu
ouvir os seus batimentos cardíacos, pulsando‑lhe nas têmporas tão acelera‑
damente que pareciam querer abreviar o próprio Tempo. De nada serviria
entrar em pânico. Tinha de ser forte. A expressão do pai suavizou‑se e os
seus olhos arredondaram, cheios de lágrimas. Então abraçou‑a, comovido.
– Obrigado, minha querida! Já me sinto melhor agora. Sempre
pude contar com o teu apoio! Como pude duvidar de ti? Perdoa‑me!
Isabel acariciou‑lhe o rosto enrugado e sorriu‑lhe.
– Calculo que a mãezinha não tenha aceitado isto de ânimo leve.
– É verdade, a tua mãe não recebeu muito bem a notícia. Pelo me‑
nos ao princípio. Se há região que ela mais deteste neste país é o Alentejo e
saber deste plano, já em tão avançado estado de execução, foi um choque
para ela. Mas conversámos muito. Ela também não sabe os verdadeiros
motivos que me levaram a tomar esta decisão. É bom que vocês saibam o
menos possível e isso dificultou ainda mais a sua complacência para comi‑
go. Não a censuro. Mas no fim acabou por ceder.
– É assim tão grave? É mesmo necessário partir desta maneira?
Quase como se estivéssemos a fugir?

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– Tem que ser assim, Isabel. E isso é tudo o que eu te posso dizer
agora.
Seguiu‑se um longo momento de silêncio, interrompido apenas
pelo som da chuva a fustigar as janelas. Ela percorria a sala, de um lado para
o outro, mas não havia saída, por mais voltas que desse. Sentou‑se. O cabelo
pingava‑lhe. A luz do candeeiro tremia no lusco‑fusco. Era difícil acreditar.
Então a pergunta surgiu‑lhe: Quando seria a partida? Segunda‑feira. Não
podiam levar mais do que uma mala cada um. A casa ficaria aos cuida‑
dos de um amigo por tempo indeterminado, pelo menos até se saber o que
fazer com ela. Tudo aquilo lhe soava a definitivo. Parecia‑lhe impossível,
inacreditável. De repente, alguém desferira uma chicotada no destino e o
rasgara em dois, levando‑os para um caminho nunca antes traçado, nunca
antes perspectivado, completamente paralelo, noutra dimensão. António
ora fitava o tapete, ora a janela, sem saber muito bem onde fixar os olhos
aguados. Não sabia, não sabia dizer se alguma vez poderia regressar. Só
morto, repetiu ele várias vezes, em murmúrios que se dissolveram num ar‑
quejo ruidoso.
Nesse instante, a aparente calma que reinava no resto da casa foi
brutalmente interrompida por gritos inconformados. Inês irrompia pelo
escritório adentro, como um furacão.
– Eu não vou! Não vou para esse maldito lugar! Vão vocês
que eu fico com a tia maria antónia! Jamais porei os pés nesse lu‑
gar horrível!
– Não sejas ridícula, Inês! – berrou Isabel.
A irmã tinha o rosto inchado, os olhos escuros muito abertos, fixos
nela.
– Já viste o que querem fazer? – gritou, a saliva a saltar‑lhe da boca
em todas as direcções. – Querem tirar‑nos da nossa casa e largar‑nos numa
vilazinha qualquer, cheia de gente ignorante que provavelmente nunca viu
sequer uma tela de cinema ou um automóvel na vida! Aposto que estás tão
chocada quanto eu! E vais deixá‑los fazer isto? Vais?
Ana Maria apareceu atrás deles, como um espectro, os olhos injec‑
tados de sangue. Inês ia recomeçar a gritar quando, para o espanto de todos,
a mãe brandiu a mão a todo o comprimento e atingiu-a com um violento
tabefe. A rapariga gemeu, soluçou, caiu na poltrona a chorar baba e ranho.
– Tu vens connosco, ouviste‑me? – vociferou a mãe. – És nossa fi‑
lha… E se nos tens lealdade e amor nessa alma egoísta, calas‑te e fazes a tua
mala.
Inês olhava para ela, com a mão sobre a face atingida, como se a es‑
tivesse a ver pela primeira vez. Parecia não caber em si de surpresa, quando
anuiu com a cabeça, sustendo a custo os soluços que lhe sacudiam o peito.

21
Capítulo III

A
partir daí, a casa caiu num silêncio condoído. Apesar do transtorno
que era ver‑se a braços com uma mudança repentina, após tantos
anos ali instalados, continuaram a sua rotina, vendo as horas pas‑
sar numa impiedosa contagem decrescente. Por vezes, Isabel dava por si a
passar lentamente no corredor, a observar com atenção os quadros pendu‑
rados nas paredes cor de pêssego ou os quebra‑luzes em forma de tulipa,
tentando gravar na memória a forma lânguida como iluminavam os seus
passos à noite.
Os próprios passeios em Lisboa haviam‑se tornado dolorosas via‑
gens de despedida e uma vez que o pai lhe pedira segredo sobre a viagem,
nem se pôde despedir dos seus alunos. Teve de avisar, no entanto, o director
da escola, que por ser amigo do pai e desconhecer os seus planos, não se
coibiu de demonstrar o seu espanto com a súbita partida. Isabel, por ter
uma grande consideração pelo senhor, tentou justificar a decisão de Antó‑
nio, mas nada foi suficiente para diminuir a tristeza do director, que com
muita pena lá a dispensou.
Na sexta‑feira, o sol espraiou‑se sobre a cidade estendida ao lon‑
go das colinas e as águas do Tejo rebrilharam no seu curso tranquilo. Isa‑
bel absorveu esta imagem com um resfolegar penoso antes de visitar a sua
amiga Josefina que nunca a perdoaria se ela se fosse embora, sem lhe dar
uma explicação, por mais vaga que fosse. Seria uma despedida difícil. Mal
Josefina atendeu, abraçou‑se a ela, emocionada e chorosa. Isabel susteve
a respiração, surpreendida e receosa de que tivesse descoberto tudo. Nem
sequer pudera prepará‑la. E agora estava destroçada! Mas quando as duas
se separaram, pôde perceber que o seu choro não era de tristeza, mas de
alegria. O Zé pedira‑a em casamento e ela aceitara. De início a família fora
contra, contudo a personalidade afável do rapaz, depressa conquistou pai,
mãe e irmãos, pelo que a sua felicidade era agora quase total.

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– Só faltas tu para me deixar completamente feliz! – disse‑lhe ela,
radiante.
– O que eu puder fazer…
– Então aceitas ser a minha madrinha?
Era o que Isabel mais temia. Tentou disfarçar o desânimo com que
recebera o convite, forçando os lábios a esboçarem um sorriso de falso
contentamento, atitude essa que descompôs a amiga, pois bastara um ins‑
tante para reparar no seu estado de espírito.
– Assim até me ofendes! Julgas que não te conheço? O que se
passa?
– Desculpa. Não quis estragar a tua felicidade.
– Diz‑me então o que tens.
Sem querer prolongar mais o suspense, Isabel pediu‑lhe para se
sentar e escutá‑la com atenção.
– Não posso aceitar o teu convite. O meu pai… aceitou um cargo
novo e nós vamos ter de deixar Lisboa. Espera! Não digas nada! Deixa‑me
terminar antes que me desfaça em lágrimas! Se quiseres saber porquê, não
te vou poder responder, pois desconheço os motivos. E se depois me per‑
guntares para onde vamos, também não te poderei dizer, porque o paizinho
proibiu‑me de o revelar a quem quer que fosse. Desculpa anunciar‑te isto
assim, mas não encontrei outra forma menos dolorosa. Nós vamos embora
daqui e não sei quando voltaremos.
Os traços de Josefina transmitiam choque, espanto e confusão ao
mesmo tempo. Isabel pôs‑se a desfiar a alça da pasta, os olhos ardendo‑lhe.
Depois de uma curta pausa, a amiga disse, quase sem voz:
– Quando é que vão?
Isabel ergueu a cabeça. Josefina sorria, os lábios regados por um
fio de água que lhe corria pelas maçãs do rosto. Segunda‑feira, respondeu.
E calou‑se, com aquela palavra a ressoar‑lhe no cérebro. Era demasiado
cedo, demasiado repentino. Durante uns momentos, a amiga ficou abstra‑
ída, olhando um ponto fixo no chão. Por fim, quebrou o silêncio, murmu‑
rando:
– O meu pai andava sisudo desde a passagem de ano – contou,
referindo‑se ao senhor Mendes de Agostinho, um dos melhores amigos de
António. – Agora compreendo‑o. E sinto‑me como ele. Triste de vos ver
partir assim, sem saber para onde vão ou porquê.
– Pára com isso, Josefina.
– Eu sei. Desculpa. Vou tentar ser mais forte… Achas que me po‑
derás escrever?
– Não sei… Talvez o Ricardo nos vá lá visitar. Aproveito e faço dele
o nosso carteiro pessoal, se não se importar. Ele é um bom amigo, tenho a

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certeza de que não se importa. Desculpa, mas tenho mesmo de ir com eles.
Tu conheces‑me. Como poderia eu deixá‑los ir, sem ter a certeza de que
ficam bem? Preciso de me certificar disso pessoalmente.
– O teu pai deve saber o que faz.
– Será? – indagou Isabel, alvoroçada. – Às vezes parece absorvido
numa guerra entre o que quer fazer e o que acha que deve fazer. Talvez tenhas
razão. Devia confiar nele. Vivi sempre com medo de que uma coisa destas
acontecesse e agora aconteceu. Nem sei por que motivo me sobressaltava
com esses estúpidos receios. Pelos vistos, não eram assim tão estúpidos.
– És muito corajosa – murmurou Josefina. – Não sei como reagiria
se de repente tivesse de sair da minha casa, afastar‑me de tudo o que conhe‑
cia, sem saber sequer porquê. Acho que não aguentaria. Tentaria escapar
como pudesse. Não reagiria com essa calma toda que demonstras.
– Se isso te conforta, a Inês ficou transtornada! Nunca a tinha visto
assim e fiquei realmente preocupada. No meu caso… Acho que, no fundo,
nem quero saber para já, mas há‑de chegar a altura em que ele vai ter de me
contar e eu não vou deixar esse momento passar.
– Seja como for, vou sentir a tua falta.
Isabel levou as mãos ao casaco azul que trazia vestido e desprendeu
da aba um pequeno broche prateado, com penas cerúleas talhadas na fron‑
te, estendendo‑o à amiga.
– Toma. É para ti. Vá lá, aceita! Quem melhor do que tu para o
guardar? Faz‑me esse favor. Usa‑o no dia do teu casamento. Só assim terás
um pouco de mim no dia mais feliz da tua vida. Podes devolver‑mo quando
nos reencontrarmos, se isso te fizer sentir melhor.
– Prometes?
Ela assentiu com um aceno discreto e as duas despediram‑se. Seria
a última vez que se veriam até dali a muitos meses.

No sábado de manhã, os amigos mais próximos do pai apareceram em casa,


fechando‑se no escritório durante horas. Do corredor escutava‑se apenas
um burburinho agitado, apesar das tentativas frustradas de Isabel e Ana
Maria para escutarem através da porta. Derrotada, a mãe afastou‑se, a fim
de encher as criadas de tarefas, gesto catártico a que habitualmente recor‑
ria para aliviar os nervos. Depois de distribuir ordens, feita general de um
quartel prestes a ser abandonado, foi fazer as malas, o sentimento de perda
corroendo‑lhe a disposição a cada instante.
Quase todo o fim‑de‑semana, Inês permaneceu enfiada na cama,
sem forças para se levantar. As discussões com a mãe eram viscerais e quan‑
do ela a obrigou a preparar as suas coisas, a rapariga desabou num choro
convulsivo, de profundo desgosto. Parecia não haver lugar para compaixões

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no peito de Ana Maria, nem pela filha favorita, só amargura. E o tempera‑
mento caprichoso de Inês, acostumado à indulgência da mãe, definhava
lentamente; a falta de atenção desesperava‑a, nada era suficiente para satis‑
fazer a sua enorme e sobrenutrida carência afectiva.
Com a hora da viagem a aproximar‑se, era chegada a altura de par‑
ticipar aos empregados a despedida iminente, embora durante toda aquela
semana tivesse havido um ruge‑ruge entre eles que tinham logo tratado de
arranjar alternativas antes de se verem postos no olho da rua. Ermelinda,
a criada mais antiga e ama das raparigas, ficou inconsolável com a notícia.
Queria, porque queria ir com a família, convencida de que não consegui‑
riam sobreviver sem ela. Os seus filhos já estavam todos crescidos, tinha
deixado de lhes ser útil há muito tempo e não queria servir mais nenhuma
patroa até ao fim dos seus dias. Os olhos de Ana Maria avermelharam‑se
perante as suas declarações de fidelidade e dedicação infinitas, mas teve de
ser firme, ela teria de ficar, pois nem tinha a certeza se dali para a frente
poderia continuar a pagar‑lhe o salário.
– Não preciso de dinheiro e como pouco! Bem preciso de perder
uns quilinhos!
– Vá lá, estás a ser tola – replicou Isabel, reprimindo um riso invo‑
luntário.
– Mas onde encontrarei patrões tão bons e generosos como os se‑
nhores?! Não tenho mais nada nesta vida. O que será de mim? O que será
do patrão e da patroa?
– Ficaremos bem, se Deus quiser. E tu também ficarás! – asseverou
Ana Maria, com benevolência. – Falei com a minha irmã e ela aceitou rece‑
ber‑te. Infelizmente, o salário será um bocadinho mais baixo. Não consegui
convencê‑la a aumentá‑lo, mas nada te faltará, assegurei‑me disso!
– A senhora é demasiado bondosa! Desculpe‑me a franqueza, mas
a dona Maria Antónia nunca será tão generosa como a senhora.
A seguir ao almoço, Ermelinda e a mãe procuraram consolo jun‑
to do rádio, a canção do anúncio ao detergente Tide fazendo eco por toda
a casa, sucedida de um clamor de vozes que, numa entoação dramatiza‑
da, interpretavam as personagens do folhetim mais popular da altura,
A Força do Destino, sobre uma rapariga coxa, sujeita a todo o tipo de alei‑
vosias.
No domingo, enquanto Ana Maria e Inês se encontravam na missa,
António andava de um lado para o outro carregado com sacos volumosos,
o conteúdo dos quais deitava na lareira e deixava arder em cinza. Isabel via
aquilo suceder‑se sem se atrever a questioná‑lo, pois sabia que ele nunca lhe
responderia, pelo menos enquanto estivessem em Lisboa.
Ricardo apareceu sozinho, pelas onze horas da manhã, mas em vez

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de se dirigir ao escritório, acompanhou Isabel à salinha, onde se sentaram
durante vários minutos, em silêncio.
– Custa‑me tanto ver‑te assim! – disse ele, docemente.
Ela não disse nada, apenas anuiu com a cabeça e fixou a janela.
Estavam comodamente instalados nos seus lugares, com uma mesa entre
eles, mas podia ouvir‑lhe a respiração pesada, sentir‑lhe de longe o ner‑
voso miudinho. De alguma forma, pressentiu o que ele tinha ido fazer ali.
E então, como se estivesse prestes a rebentar, Ricardo sentou‑se ao seu lado,
muito perto, perto de mais.
– Tenho de te confessar, Isabel! Antes de isto tudo acontecer, ten‑
cionava pedir‑te em casamento, pedir‑te para seres a minha mulher, porque
és a única na minha vida e não poderei amar mais ninguém, como te amo
a ti.
Ela virou‑se para ele, desconcertada. Encostou‑se à outra ponta do
sofá, com os olhos piscos e o queixo descaído. Ainda levou algum tempo até
conseguir produzir um som e muito mais para dizer o que lhe ia na alma.
– Sabes bem que nunca poderia aceitar…
– Sim, eu calculei. Se não fosse esta maldita situação, tudo seria di‑
ferente.
– Não estou a dizer isto porque nos vamos embora! A minha res‑
posta seria a mesma, quaisquer que fossem as circunstâncias.
Ricardo parecia espantado e Isabel continuou:
– Prezo muito a nossa amizade…
– Não posso ser tão repugnante para ti, se gostas da minha compa‑
nhia!
– Eu não te acho repugnante! Que ideia disparatada!
– Então o que é? O que falta para derrubar essa maldita barreira
entre a amizade e o amor? Diz‑me o que é e eu farei! – suplicou ele, arre‑
batado.
Isabel fitou‑o, boquiaberta, desarmada. Como lhe poderia explicar
se ela própria nem sabia?
– Sabes que essas coisas não funcionam assim. Se a lógica e a razão
bastassem, eu seria tua, acredita!
– A lógica e a razão… Só assim tu gostarias de mim?! Dispenso a
tua condescendência, Isabel! – interrompeu ele, lançando‑se a andar de um
lado para o outro.
– Então não me faças perguntas para às quais, sabes perfeitamente,
é impossível dar uma resposta racional!
– Diz‑me ao menos que há esperança! Não te vás embora… As‑
sim… Para sempre.
Ela levantou‑se, de rompante.

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– Não abandones o meu pai, só porque eu…
– A minha amizade pelo António é inabalável. Jamais faria uma
coisa dessas! Achas que sou mesquinho?
– Desculpa, se te ofendi… Estou tão desorientada que já nem digo
coisa com coisa.
Um calor húmido insuportável roubava‑lhes o ar dos pulmões.
Alastrou‑se um silêncio constrangedor que os impediu de falar, como se
amordaçados pela própria vergonha, um por se ter precipitado a expressar
os seus sentimentos, convicto de que seria correspondido, e a outra por
se encontrar na difícil posição de ter de o desiludir com a sua recusa. De
repente, a sala tinha diminuído radicalmente de tamanho e o espaço entre
eles ficado demasiado curto para aguentarem sozinhos a presença um do
outro por muito mais tempo. Então a voz dele soou, vacilante.
– Eu é que te peço desculpa. Estás prestes a sofrer uma mudança
radical na tua vida e eu pioro tudo, vindo para aqui falar destas coisas do
amor… Mas só de pensar que te posso perder!
Isabel deu por si a ter pena dele. Queria confortá‑lo, porém temia
que um movimento em falso fosse retomar todas as esperanças desfeitas
pouco antes.
– Não posso aceitar o teu pedido. Gosto muito de ti. Mas é um amor
fraternal, nada mais. Isto pode parecer um enorme cliché, mas tu mereces
que te amem plenamente, Ricardo, e não pela metade. Serias feliz assim?
– Acho que não…
– Admiro‑te muito. És mais merecedor do meu amor do que qual‑
quer outro, mas não posso ir contra os meus sentimentos. E isso é tudo o
que te posso dizer, sem correr o risco de condescender de ti outra vez. Neste
momento, o meu futuro é uma grande tela em branco. Só esta mudança me
poderá ajudar a entender aquilo que sinto. Perdoas‑me?
– Claro – murmurou ele, visivelmente constrangido.
O movimento pesado da porta da frente a abrir anunciou a chegada
da mãe. Com os joelhos trémulos, Isabel dirigiu‑se para a saída, deitou um
último olhar de reconciliação a Ricardo, este respondendo com um sorriso
triste, e abandonou a sala.

27
Capítulo IV

E
ra meia‑noite. As doze badaladas soaram, espalhando um eco sono‑
ro pelo corredor até aos quartos. Ninguém se moveu. Com a respi‑
ração em suspenso, esperaram, cada um no seu covil, o cessar das
pancadas. Quando tal aconteceu, permaneceram de olhos abertos, fixos na
face amarelada do tecto. No pensamento de Isabel desfilavam as memórias
espalhadas pelos quatro cantos do seu quarto. Vivera ali quase toda a infân‑
cia, por todo o lado havia vestígios das suas tropelias de criança, das revoltas
da adolescência e das tentativas, já em adulta, de apagar todas essas marcas.
Sentia‑se tola por estar tão assustada com a mudança. Ao voltar‑se para a
janela, recordou os acontecimentos da tarde anterior, o rosto de Ricardo
tomado de paixão, a sua voz trémula declarando‑lhe o seu amor. Era im‑
possível não se sentir lisonjeada. Mas como pudera ele ter‑se exposto tanto?
Que desespero o levara a assumir de um modo tão aberto os seus desejos,
mesmo com o risco de perder a sua amizade? Como pudera ele fazer‑lhes
isto? Isabel zangou‑se, revoltou‑se, comoveu‑se e, por fim, resignou‑se. Lá‑
grimas penduraram‑se‑lhe nas pestanas e correram o pescoço até forma‑
rem pequenos círculos húmidos na almofada. Era escusado lutar. Tinha de
seguir em frente.
Às sete da manhã, a família levantou‑se e tomou o pequeno‑almoço
em silêncio. A criadagem fora toda dispensada, pelo que teve de ser a mãe
a tratar da refeição com o que restava nos armários esvaziados. Ninguém
proferiu palavra, enquanto comia, apenas se ouvindo o ruído das bocas a
mastigar, o tinir das chávenas a pousar nos pires e o gorgolejar de um ou
outro pombo que se atrevia a pousar no parapeito da varanda. A casa pare‑
cia vazia, embora os móveis, as loiças e a maior parte dos livros continuas‑
sem no lugar. Era como um cemitério, e os objectos deixados ali, as campas
de antigas recordações votadas ao abandono.
Inês chorou durante todo o caminho até ao Terreiro do Paço onde

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apanharam o barco, que atracaria no cais da Estação do Barreiro para apa‑
nharem o comboio com destino a Beja. O rio estava anormalmente calmo
para um dia tão cinzento. As ondas dançavam de encontro ao casco da
embarcação, borrifando‑lhes as faces geladas, como se para os manter des‑
pertos, de olhos bem abertos, conscientes do seu caminho. O perfume a
maresia aquietou Isabel à medida que se afastavam da margem do Terreiro
do Paço e se aproximavam das terras além do rio Tejo.
– Falta muito? Estou a ficar enjoada! – queixou‑se Inês, entredentes.
– Está quase. Aguenta mais um pouco – encorajou‑a Isabel.
António espreitava o rio, apoiado no corrimão, de frente para o
Barreiro, sem nunca se voltar, nem quando aportaram e se encaminharam
para a estação de comboios, apinhada de gente.
Quando o comboio arrancou com um solavanco e o ruído estri‑
dente das rodas a bater nos carris acompanhou o compasso da carrua‑
gem a mover‑se, lágrimas nasceram nos olhos de Inês. António procurou
os seus lugares, após o que se sentaram com profundos suspiros. Isabel
preferiu o lugar à janela, por onde vislumbrou a pradaria a correr na di‑
recção contrária. Uma pontada no peito despertou‑a para a realidade.
Lisboa tinha ficado definitivamente para trás e agora avançavam rumo a
Moura, uma vila singela, no meio do Baixo Alentejo, pouco aliciante para
quem estava habituado ao reboliço da cidade. Se tinha cinema, teatro ou
outras actividades capazes de satisfazer alguém do seu nível de instrução,
Isabel não sabia, contudo tentou afastar da mente esses receios e apreciar
a viagem.
Enquanto a locomotiva bramia na planície, penetrando no inte‑
rior do Alentejo, a enorme nuvem cinzenta começou a desfazer‑se, deu
lugar a um céu azul límpido, escalavrado por nuvens altas em forma de
crinas de cavalo. Nem todos se deixavam perturbar pelo barulho do vagão
a sacudir‑se contra o vento; havia quem dormisse profundamente, com o
chapéu sobre a face. Havia também quem aproveitasse para pôr a leitu‑
ra em dia ou para bordar, indiferente aos gritos impacientes das crianças
que corriam entre os bancos a perseguirem‑se umas às outras para de‑
sespero da mãe. Aquela gente parecia feliz com a perspectiva de chegar a
Beja, ideia essa que espantou Inês sobejamente. Horas depois, o comboio
abrandou e, com dois soluços, parou na estação. Aí apanharam a automo‑
tora até Moura. Mal saíram do transporte, chegados ao destino, Isabel sen‑
tiu um odor diferente penetrar‑lhe nas narinas. Era um perfume leve, mas
tão agradável que a fez sentir‑se inebriada ao fim de algumas inalações.
A nortada, fria e seca, era paralisante.
– Esperem aqui enquanto eu vou chamar um carro de aluguer, está
bem? – disse António, já a andar.

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– Nós vamos contigo! – disse Ana Maria, obstinada. – Não quero
ficar aqui sozinha.
Pegaram nas malas e dirigiram‑se para o exterior da pequena es‑
tação, à procura de um carro. Assim que António arranjou um motorista,
arrumaram as coisas na bagageira e arrancaram para o Grande Hotel, onde
ficariam instalados até alugarem uma casa.
– É a primeira vez que os senhores cá vêm? Se não se importam
que pergunte!
– Sim, é a primeira vez – respondeu António. – Viemos para ficar!
O homem olhou‑o como se ele fosse de outro mundo.
– Verdade? Isso espanta‑me muito. É que os que aqui vivem, mal se
lhes aparece a oportunidade, vão‑se daqui para nunca mais voltar! É raro
ver alguém assentar nestas terras, a não ser aqueles que vêm no Verão para
a ceifa ou no Outono para a sementeira. E esses não ficam muito tempo. No
fim da época, também abalam daqui. E agora vêm os senhores da cidade
instalar‑se neste fim de mundo. Ora aí está uma coisa engraçada para mu‑
dar a rotina.
– Isso é mau? – perguntou o pai, bem-humorado.
O condutor coçou o topo da cabeça e respondeu, encolhendo os
ombros:
– Olhe, não sei se é bom, se é mau, para lhe dizer a verdade! A gente
daqui é simples e está habituada a pouco. As únicas coisas que nos alegram
são as festas de Outubro e depois as poucas que se vão organizando ao lon‑
go do ano. A animação toda faz‑se é nas tabernas, mas às vezes, quando as
coisas aquecem, aparecem logo os agentes a mandarem‑nos dispersar.
– Têm cinema cá?
O homem espreitou Inês por cima do ombro, incomodado com o
tom de desprezo com que ela fizera aquela pergunta, mas respondeu edu‑
cadamente.
– Temos sim, menina. Mas as matinés são só ao domingo.
A rapariga recostou‑se, revirando os olhos, com um esbaforir irri‑
tado.
Enquanto o pai conversava com o motorista, Isabel aproveitou
para espreitar pela janela. Percorriam uma rua ladeada de casinhas bran‑
cas, caiadas a preceito, com telhados cor de tijolo e janelas enfeitadas com
vasos de flores, pendurados nas varandas de ferro. Os burros calcorreavam
o empedrado a puxar as carroças, na sua moleza de vila, imunes ao fretenir
ruidoso de uma lambreta a subir a estrada. Depois de contornarem duas ou
três ruas, estacionaram diante de um edifício de grande dimensão, ao lado
da igreja que o taxista informou ser a Igreja de Santo Agostinho.
Ficaram instalados em quartos aconchegantes, num andar alto,

30
com vista para a vila ou pelo menos para os telhados, dos quais sobressaíam
pináculos branquinhos a fumegar e cata‑ventos em forma de galo. Os pom‑
bos enfileiravam‑se nas beiras das telhas, saindo à vez para palmilhar a rua
em busca de alimento.
– Não vale a pena desfazerem as malas! – avisou António, já de noi‑
te. – Logo de manhã vou procurar uma casa para alugar. O senhor Leôncio
Teles lá saberá informar‑me se existe alguma disponível. Espero resolver
isto depressa para não termos de gastar muito dinheiro aqui.
As outras assentiram com acenos de cabeça e o pai voltou para o
seu quarto. Inês caiu no cadeirão, com os lábios comprimidos de raiva. Fa‑
zia sempre aquela careta de criança rabugenta quando era contrariada e
todos os seus esforços para manipular os protagonistas dos seus contratem‑
pos, de forma a satisfazerem-lhe os caprichos, se revelavam infrutíferos.
– Odeio o pai! Odeio‑o! – resmungou. – Nunca hei‑de compreen‑
der porque me fez ele isto!
Isabel fechou as portadas das janelas, correu as cortinas, arrumou
a mala da irmã que tinha ficado caída no meio do chão e empilhou três
pedaços de lenha na lareira. Largou um longo suspiro e pediu que se con‑
formasse, que não valia a pena remoer sobre o assunto, pois agora estavam
ali e já não havia como voltar para trás.
– Podes falar à vontade. Para ti é fácil dizer essas coisas. Tu vieste
para cá, porque quiseste, enquanto eu vim contra a minha vontade. Digas
o que disseres, nunca irei perdoá-lo! Nem sequer me pude despedir do Vi‑
cente!
Vicente era o rapaz lá da rua, tinha dezoito anos e ia para a tropa
naquele ano. Inês nunca gostara dele, achava‑o sensaborão e muito sarden‑
to para o seu gosto. No entanto, pusera‑lhe a coleira ao pescoço, apertada
apenas o suficiente de modo a mantê‑lo por perto, não fosse tornar‑se de
repente num solteiro apetecível, porque afinal de contas era filho de um
médico reputadíssimo. O sentido de oportunidade de Inês era fenomenal
e se os rapazes se deixavam ir nas suas conversas, então só lhe restava apro‑
veitar enquanto não dessem conta da artimanha. Isabel já gastara todo o
seu latim, na tentativa de inspirar bom senso na irmã, mas ela recusara‑se
terminantemente a atender aos seus sermões. Quando a rabugice lhe pas‑
sou, perguntou em tom de caso se ela sabia porque haviam deixado Lisboa,
porque é que o pai as tinha desenraizado daquela maneira e as tinha trazido
para a terra de ninguém.
– Não sei de nada e mesmo que soubesse não te contaria no estado
em que estás!
– Odeio‑o… – murmurou a rapariga, fechando a boca num beiço
mal‑humorado, antes de se enfiar entre os cobertores e adormecer.

31
Isabel ateou a lareira e sentou‑se. Sentia as pernas quentes, doridas,
como se tivesse atravessado o país a pé. Ficou quieta, a observar as chamas a
consumirem a lenha, lambendo as paredes da chaminé, até não ver mais do
que uma luminescência desfocada. Podia revolver o cérebro à procura de
explicações para a atitude do pai, no entanto nada lhe saía, nada que justifi‑
casse a radicalidade do seu acto. Só lhe surgiam coisas más no pensamento,
espectros da realidade, peças daqui e dali, poucas das quais acabavam por
se ligar entre si e trazer alguma luz. Vinham‑lhe apenas clarões fugazes, pe‑
quenas possibilidades que ela imaginava, mas que logo descartava por lhe
parecerem demasiado rebuscadas ou funestas. Ou ele ter‑se‑ia envolvido
em alguma falcatrua ou tropeçado nela e a única solução para qualquer das
duas fora fugir, a ser apanhado pela polícia ou pelos supostos perpetrado‑
res. Fosse qual fosse a verdade e por mais que tentasse censurar as palavras
da irmã, sabia dispor, no fundo, de poucos argumentos para o defender.
No dia seguinte, tal como combinado, o pai saiu cedo a fim de se
encontrar com o senhor Leôncio Teles. Estava ansioso, mas entusiasmado.
A perspectiva de trabalhar num meio totalmente diferente daquele a que
estava habituado não o assustava, muito pelo contrário, fazia‑o sentir‑se jo‑
vem outra vez, espevitado pelos novos desafios. Enquanto o marido tratava
de se familiarizar com o seu futuro local de trabalho, Ana Maria resolveu ir
ao mercado fazer compras.
– Se nos mudarmos para a casa nova hoje, quero ter comida para
fazer o jantar – disse, num tom monocórdico.
Isabel e Inês acompanharam‑na ao longo das ruelas, algumas muito
estreitas, na sua maioria com edifícios de dois ou três pisos e uma filazinha
de varandins singelos. As pessoas que passavam olhavam‑nas com curio‑
sidade. Ali toda a gente se conhecia, pelo que era fácil detectar caras novas,
rapidamente tornando-se no foco do interesse geral. Consciente disso, Isa‑
bel colou os olhos ao chão e continuou a andar, sem se atrever a levantar
a cabeça. Finalmente, chegaram a uma praça espaçosa e comprida, quase
toda atapetada com calçada portuguesa. Podiam‑se encontrar algumas lo‑
jas de um lado e um mercado municipal do outro, tudo muito modesto,
provinciano, sem a grandiosidade dos armazéns do Chiado ou o requinte
das lojas da Rua Garrett.
Uma berraria alvoroçada atordoou‑lhes os ouvidos assim que pe‑
netraram no mercado. Inês levou as mãos ao peito, estonteada, e deitou
os olhos aos homens e às moças que passavam de cestas nas mãos, en‑
quanto submergiam nos estreitos corredores do mercado, respondendo
aos pregões vociferados pelos vendedores, numa confusão que enfeitiçava
os sentidos. Ana Maria escolheu os alimentos de que ia precisar para fazer
o jantar. Passeou de banca em banca com Inês a puxar‑lhe pela manga do

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casaco para saírem dali o mais depressa possível, pois não suportava o ba‑
rulho estridente, os olhares curiosos, os empurrões, a mistura indistinta
de odores. Tudo a assustava e a atordoava. Isabel, apesar de igualmente
assarapantada com tamanha explosão de vida, ficou fascinada com o tem‑
peramento arisco das pessoas. Ó, mulher!, gritava um homem de bigode,
erguendo‑se sobre uma velhota vestida de preto. Vai‑te daqui, se não levas
um sopapo. Espera só por a minha filha ouvir‑te falar assim comigo, des‑
graçado! Ó, minha senhora, peço imensa desculpa! disse uma outra a Ana
Maria depois de lhe ter dado um valente encontrão, enquanto um grupo
de catraios arruaceiros corriam ali no meio. Estes miúdos não vêem por
onde andam… Ó, Manel! Ai se eu te apanho! Vai para a escola que aí é o
teu lugar! Falavam todos ao mesmo tempo, uns por cima dos outros, com
cada vozeirão que nem se percebia para quem se dirigiam. Alguns trata‑
vam‑nas com grande respeito e distinção, outros com indiferença e outros
ainda com desconfiança. Isabel não sabia se era por não gostarem dos seus
modos ou pelo simples facto de serem de fora. Se havia dúvidas quanto a
isso, elas desfaziam‑se mal os aldeões se punham a observá‑las, trajadas
nos seus vestidos bem tratados, a tez das suas peles imaculadas, a maneira
de andar sobre os sapatos de salto alto. De qualquer forma, os olhares ajui‑
zadores eram mútuos, o que só aumentava a sensação de desconforto e o
desejo de sair dali rapidamente.
Feitas as compras, seguiram caminho por uma rua bastante mo‑
vimentada, onde puderam circular com maior à-vontade, pois viviam na‑
quela parte da vila pessoas de estratos sociais mais elevados. Mas nem Ana
Maria, nem as filhas tinham vontade de travar novos conhecimentos, talvez
porque lhes custava acreditar que fossem permanecer ali muito tempo. As‑
sim, limitaram‑se a fazer as compras e a voltar para o hotel. António já as
esperava com boas notícias.
– Aluguei uma casa do outro lado da vila! Fica muito perto da casa
do senhor Leôncio Teles. Visitei‑a esta manhã e parece‑me bastante agra‑
dável. Até tem um quintal!
À sua descrição detalhada de cada divisão, a mulher respondeu
com um franzir de lábios desconfiado. Inês entretanto quis saber como era
esse tal Leôncio Teles.
– É um rapaz garboso, jovem, não deve ter trinta anos! Fiquei im‑
pressionado. É educado e bastante inteligente. Parece que estudou Enge‑
nharia na Universidade do Porto, mas veio tomar as rédeas do negócio após
a morte do tio. Não sei ao certo os pormenores. Tem um irmão, chamado
Pedro, mais ou menos da idade da Isabel, e vivem com a tia, uma tal de
dona Ercília que foi quem os criou desde pequenos.
– O que aconteceu aos pais?

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– Isso não sei. Pareceu‑me indiscreto fazer‑lhe esse tipo de pergun‑
ta, tendo-o conhecido minutos antes.
– Quando nos podemos mudar? – interrompeu a mãe, arreliada.
– Já tenho as chaves; é só pegar nas malas e seguir para lá.
– Então vai chamar um carro de aluguer que não estou para atra‑
vessar a vila a acartar bagagens.
António acenou pacientemente com as mãos, fazendo um gesto
apaziguador, e foi tratar do transporte com o director do hotel. Passado
pouco mais de meia hora, entravam num pequeno largo, com um jardim
ao centro, cheio de laranjeiras. A frontaria da casa ficava virada para esse
jardim, o que agradou muito a Isabel, pois assim podia arranjar um canto
à janela para ler e desfrutar do lusco‑fusco, quando o céu tomava uma pro‑
fusão de cores até estas desaparecerem na cauda do sol‑posto. Segundo o
pai, a casa estava desabitada havia algum tempo. Os postigos gradeados da
porta da frente serviam agora de suporte a rendas de teias de aranha que
tremiam à mais pequena aragem. Ao penetrarem no interior, encontraram
um hall espaçoso, o chão em mosaico, tipo tabuleiro de xadrez, com um
tapete verde circular e um vaso de cobre no centro. Ana Maria mal foi
capaz de esconder a exasperação, porque a casa era incomparavelmente
mais pequena do que a de Lisboa. Inês tratou de subir as escadas e reclamar
o seu quarto, o único, além do de casal, com janela, pois o outro era‑lhe
contíguo e a única luz que recebia era através da passagem entre os dois
quartos. Isabel protestou, mal descobriu isto, as duas caindo numa enorme
discussão infantil na disputa pelo quarto com janela. No fim, aquele ficou
para a irmã e Isabel teve de se resignar. De repente, ouviram‑se gritos ofe‑
gantes do rés‑do‑chão que alarmaram pai e filhas, estes deslizando escadas
abaixo até à cozinha. Lá encontraram Ana Maria agarrada ao peito, com
os olhos redondos de pavor. António seguiu o dedo indicador da esposa
que apontava para o lava‑loiça. Depois avançou cautelosamente, com os
olhos semicerrados. Ao analisar a mancha negra, o homem largou a rir às
gargalhadas.
– São formigas, mulher! São só formigas!
Isabel sorriu, aliviada e divertida, mas as outras duas franziram os
lábios, enojadas. Ana Maria passou o resto da tarde barafustando contra o
aspecto abandonado da casa.
– Vou ter de passar a próxima semana a limpar isto tudo. E não
posso fazê‑lo sozinha. Os móveis estão cheios de pó e teias de aranha. Onde
já se viu entregar uma casa neste estado!
– Não está assim tão mau.
– Eu ajudo, mãezinha – disse Isabel, na esperança de a apaziguar.
– Ora, é muita coisa! Duas pessoas não chegam para tanto trabalho.

34
Temos de arranjar uma criada ou uma mulher‑a‑dias, porque isto assim
não tem condições nenhumas. Nem cortinados têm as janelas. Franca‑
mente.
À noite, depois do jantar, acomodaram‑se na sala. António e Isa‑
bel aproveitaram o momento de lazer para espreitar os poucos livros que
enfeitavam os móveis de estrutura maciça. Em quase todas as divisões po‑
dia-se encontrar uma cruz pendurada na parede ou retratos a óleo de uma
santa com um menino. Aquela também não falhava. Lá estava ela, a cruz,
estrategicamente colocada em frente a uma das entradas para que não res‑
tassem dúvidas quanto à religiosidade da senhoria. Alheias às observações
de Isabel, Ana Maria sentou‑se numa cadeira de verga a fazer croché, e Inês
entreteve‑se com as suas revistas de moda, trazidas de Lisboa.
– Ó, Tó! Que tipo de herdade é essa dos Leôncio Teles?
– Parece que é a maior do Alentejo. Chama‑se Herdade da Salú‑
quia.
– Salúquia? Que raio de nome é esse? – quis saber Inês.
– Faz parte da história de Moura – explicou o pai, pacientemente. –
Remonta à época da reconquista cristã. Salúquia era a alcaidessa de Moura e
estava prometida a um príncipe da vizinha cidade de Aroche. Segundo con‑
ta a lenda, Salúquia esperava a chegada do noivo e da sua comitiva no alto de
uma das torres do seu castelo para o ansiado casamento. Ao saber disto, dom
Álvaro Rodrigues e dom Pedro Rodrigues reuniram um grupo de cristãos,
a fim de organizar uma emboscada aos muçulmanos. Os cristãos venceram
a batalha, vestiram‑se com os trajes dos derrotados e dirigiram‑se a Moura.
Salúquia, quando os avistou, julgou tratar‑se do noivo e restantes muçulma‑
nos e mandou baixar a ponte levadiça de acesso ao castelo. Seguiu‑se uma
chacina que só terminou com a dominação cristã. Salúquia, ao aperceber‑se
do infeliz destino do seu príncipe, tomou as chaves do castelo e precipitou‑se
da torre que ainda hoje guarda o seu nome. Foi esta história que deu o nome
à cidade.
– Que romântico! – exclamou Inês, eterna apreciadora de histórias
trágicas. – A propriedade é muito antiga?
– Sim, sim e tem prosperado! Dão emprego o ano inteiro a muitas
pessoas. Têm um palacete no monte, situado numa grande zona adminis‑
trativa que é onde eu vou trabalhar. Mas a tia prefere viver aqui na vila, pelo
menos durante o Inverno, e só no Verão é que se muda para lá até Setem‑
bro. Os sobrinhos vão e vêm conforme lhes convém, ao que parece.
– Esse senhor Leôncio Teles toma conta de tudo sozinho? – inqui‑
riu Ana Maria, sem despregar os olhos do croché.
– O Eduardo? Calculo que sim. Tem um feitor de confiança, já do
tempo do tio, mas de resto acho que é ele quem gere tudo sozinho. Não sei

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o que aconteceu ao antigo administrador. Deve ter sido demitido, desconfio
eu, pois percebi que está a acontecer uma revolução por lá. Amanhã vou à
propriedade. Alguém se aventura a vir comigo?
– Eu! – voluntariou‑se Isabel. – Estou com curiosidade em conhecer
esse tal Leôncio Teles. Nunca ouvi dizer muito bem dos grandes senhores
proprietários, mas se houver um que possa mudar a imagem negativa que
em geral se tem deles, então quero descobrir essa preciosidade em pessoa.
– Bom, não se pode dizer que o tenha ficado a conhecer muito bem.
Mas olha que fiquei com uma boa impressão dele. Podes troçar à vontade,
querida, este não te há‑de desiludir.
Isabel limitou‑se a assentir em silêncio, com ironia no olhar. An‑
tónio espreitou as outras duas por cima dos óculos, sabendo de antemão
que elas se recusariam a pôr os pés num lugar onde pastoreavam vacas e
ovelhas. Tal como previra, Inês e Ana Maria abanaram as cabeças, lançan‑
do‑lhe olhares fulminantes de desdém.
Antes de se deitar, Isabel ocupou‑se a arrumar as suas roupas num
grande armário, encostado a um canto no patamar do primeiro piso. As
gavetas eram largas e maciças, tinha de as puxar com muita força para abrir
pelo menos uma frincha. Ao fim de algum tempo, após minutos de luta fu‑
riosa, deixou‑se cair no chão, frustrada. Apetecia‑lhe espetar a cabeça con‑
tra a parede, pois sentia qualquer coisa esquisita a subir‑lhe pela garganta,
como se as entranhas quisessem emergir numa erupção violenta. O que ia
fazer da vida? Sentia‑se atordoada há dias, com a cabeça em banho‑maria,
perdida algures, entre aquilo que deixara para trás e aquilo que imaginava
que passaria a ser o seu quotidiano a partir dali. Respirou fundo, recos‑
tou‑se contra a parede e fechou os olhos. Talvez um pouco de escuridão a
sossegasse. Ouvir os sons do corpo a funcionar, entre os ruídos vindos de
fora, ajudou‑lhe a recuperar o ritmo. Encontrado o compasso tranquilo da
vida, ergueu o olhar e fixou‑o no tecto, detectando no centro um alçapão.
Intrigada com a descoberta, foi buscar uma cadeira, em cima da qual se pôs
a investigar a portinhola meio dissimulada. Tentou abri‑la, porém estava
trancada. Muito bem trancada. Voltou ao chão e pôs‑se a reflectir sobre o
que haveria lá em cima. Devia ser um grande sótão, com imenso espaço
e enorme potencial para, quem sabe, ser transformado num quarto ou
numa biblioteca. Não. Não podia pensar assim. A intenção não era ficar ali
muito tempo, só até o pai resolver os seus problemas. Arrumou a cadeira e
fez por ignorar o alçapão, muito embora a sua existência a intrigasse, mais
do que ela desejava.
Na primeira noite, teve dificuldade em adormecer. A cama de
ferros guinchava ao mais leve movimento, o breu toldava‑lhe completa‑
mente a visão, e a única luz que alumiava as paredes, escorria através da

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passagem do quarto contíguo, coada pelos reposteiros. A central eléctrica,
instalada ali perto, fazia um ruído lento e cadenciado, como um velho ra‑
quítico, labutando penosamente para fornecer energia à vila amodorrada.
Era impossível abstrair‑se daquele som. Ele invadia os pensamentos sem
pedir licença, o sono, tomava tudo e não deixava espaço para mais nada.
Ao fim de algumas horas a rebolar na cama, Isabel desceu ao rés‑do‑chão
e sentou‑se diante da janela a fitar o jardim, à espera do amanhecer. Se an‑
tes se confortava com o facto de ter a vida mais ou menos definida, agora
essa confiança desvanecia‑se perante a força demolidora da Mudança. Essa
inevitabilidade da vida, capaz de alterar para sempre a paisagem da nossa
existência, tornando‑a assustadoramente irreconhecível. Teve de admitir a
si própria que o medo de ficar sozinha tivera um peso importante na de‑
cisão de acompanhar a família. A Mudança viera, sem que a pudesse ter
previsto, interrompera‑lhe a rotina, com a qual compunha o seu quotidia‑
no, como um bailado, dia após dia, noite após noite, tudo muito previsível
e seguro, mesmo os pequenos percalços. Sim, não pudera evitar nada disso.
Fora maior do que ela. Ao menos que a abraçasse por inteiro.
Quando a luz fosca da alvorada começou a erguer‑se atrás das ca‑
sas do largo, Isabel inspirou fundo, retornando ao quarto. A perspectiva de
conhecer novas pessoas animou‑a, pois talvez assim descobrisse que ir para
Moura não fora afinal uma ideia tão má como a princípio julgara.

37
Capítulo V

D
e manhã, tomava a família o pequeno‑almoço na cozinha, quan‑
do o retinir da campainha rompeu o ar quieto, anunciando visitas
inesperadas, mas bem‑vindas. Ansioso, António tirou o guardana‑
po do colarinho e foi atender. Enquanto as outras chocalharam os ombros
com indiferença, Isabel encostou‑se ao umbral, à espreita. O pai abriu a por‑
ta da frente e cumprimentou o estranho que explicou vir da parte do senhor
doutor Eduardo.
– O patrão enviou‑me para o levar de charrete ao monte.
– Oh, mas que simpatia a dele! – exclamou António, agradecido.
– Vou só buscar o casaco e vamos já.
– Sim, senhor – assentiu o outro, vivamente.
Ao sinal do pai, Isabel terminou de comer, buscou o seu casaco e
pouco depois os dois subiam à charrete e o condutor atiçava o cavalo de
crinas escuras que com um trote vigoroso se pôs a caminho. Abandonaram
a vila e seguiram por uma estrada de terra a recortar a encosta até ao cabe‑
ço de um monte. Passaram‑se cerca de vinte minutos antes de alcançarem
o muro alto que marcava os limites da propriedade, com um portão de
grades, ladeado por dois portentosos pavilhões de ângulo. Num dos lados,
uma placa de azulejos indicava: «Herdade da Salúquia.»
Atravessado o portão, tiveram de percorrer mais quinze minutos
de estrada até ser possível avistar uma grande casa apalaçada, de aspecto
pardacento, com um renque de portentosas janelas, erigida bem no topo do
monte, como um velho nobre sentado na sua cadeira, contemplando alti‑
vamente o imenso reino estendido a seus pés. No centro do jardim frontei‑
ro, cercado de árvores cujos troncos rugosos se contorciam entre as rama‑
gens silvestres, havia uma estátua de mármore enegrecido que nem Isabel,
nem António souberam identificar. A charrete, no entanto, passou a Casa
Grande, como chamavam assim os rurais da região, e dirigiu‑se para a área

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administrativa que ficava um pouco mais atrás. Isabel ainda contemplou
por algum tempo a fisionomia do palacete, bastante diferente das casinhas
simples da vila e, em contraste, sombrio, solitário, destoado de tudo o resto
ao seu redor.
– Qual é a extensão da propriedade? – perguntou António ao con‑
dutor.
– São cerca de oito mil hectares, mais umas terrinhas espalhadas
por aí – respondeu ele, com as faces coradas de orgulho. – Trabalho aqui há
vinte anos e conheço o Alentejo de fio a pavio. Posso garantir que nunca vi
em lado nenhum uma propriedade como esta. O doutor Eduardo dá em‑
prego a muita gente! Até temos uma escola para os miúdos e uma cantina
para os trabalhadores, além das casas permanentes e da enfermaria.
– Isso é extraordinário! Um patrão que se preocupa com as pessoas
– comentou António.
Isabel agarrava‑se ao banco, atordoada com as sacudidelas da char‑
rete. A viagem era desconfortável, devido à irregularidade do terreno, e por
isso ansiou pelo fim do passeio. Pouco depois, chegaram ao pátio de um
enorme edifício de três pisos, em frente do qual o condutor fez o cavalo
parar. António e Isabel apearam-se e foram recebidos por um senhor com
cerca de cinquenta anos, as feições lapidadas pela severidade do estio alen‑
tejano, mas de ar afável. Apresentou‑se com um firme aperto de mão, en‑
quanto o pai correspondia, satisfeito.
– Sou o Daniel Fontes, feitor da propriedade. O patrão está a tratar
de uns assuntos e pediu para o aguardarem no seu escritório. Ele virá assim
que puder. Por isso, se não se importam, é por aqui.
António acedeu, caminhando para o edifício, Isabel detendo‑se
mais atrás. Ao aperceber-se de que ela não o acompanhava, estacou, intri‑
gado.
– Passa‑se alguma coisa?
– Acredito que a conversa será muito interessante, mas enquanto
o doutor Eduardo não chega, seria de algum modo inapropriado que eu
desse um passeio aqui pelas redondezas? – perguntou ela ao feitor.
– Ó, claro que não! Se quiser pode levar a charrete.
– Não é preciso, obrigada. Prefiro andar…
– Esteja à vontade. As vinhas são lá para o fundo, os montados do
outro lado, as searas já aí em frente e o gado encontra‑se cá mais para trás.
Portanto, como pode ver, há muita coisa com que entreter a vista.
Ela concordou com um sorriso e António aproveitou para pergun‑
tar se Eduardo era o único proprietário.
– Não – respondeu o senhor Fontes, esfregando a testa. – O irmão,
o menino Pedro, também é dono disto. Não liga é muito ao negócio, apenas

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goza do dinheiro como lhe convém. Prefere gastar o tempo com outras coi‑
sas. O patrão é quem cuida dos negócios sozinho.
– Ainda é muito novo, não é?
– Vinte e oito anos. É um moço rijo. Conheço‑o desde miúdo. Há
cinco anos, quando o tio, o senhor doutor Álvaro faleceu num acidente de
viação, Deus o tenha, veio de propósito do Porto, onde se estava a formar
engenheiro, para tomar conta da herdade. Houve aí umas complicações,
mas nada que o assustasse. Pôs tudo de pé outra vez e agora há cerca de três
meses abrimos uma segunda loja em Lisboa.
– Lojas! Têm lojas na capital? – indagou Isabel, surpreendida.
– Sim, sim. Temos duas. A mais antiga fica nos Restauradores e a
outra que abriu recentemente é na Avenida de Roma. Vendemos de tudo lá,
como seja carne de porco preto, enchidos, queijos, azeite, vinho e, desde o
outro dia, o mel. Somos a marca mais conhecida de produtos do Alentejo.
Isabel alçou as sobrancelhas, pois nunca ouvira falar nos produtos
da Salúquia, contudo, como não costumava fazer compras para a casa, quem
tratava de tais coisas era a Ermelinda, era bem possível já ter consumido al‑
gum produto daquela propriedade sem ter tido conhecimento disso.
Ansiosa pelo passeio, Isabel despediu‑se do pai e arrancou num
passo apressado na direcção do descampado. Ao atingir o cume de um pe‑
queno monte, os seus olhos alongaram‑se‑lhe de perplexidade. Dali pôde
vislumbrar a planície, varrida pela nortada, e o horizonte ondulado ao fun‑
do, onde se distinguia a silhueta dos olivais. Ao rodar sobre os calcanhares,
a imagem alterou‑se, detectando mais abaixo, fileiras de vinhas a recortar
o solo arruivado.
Foi então que entre o vinhedo avistou dois homens a cavalo. Nu‑
vens de poeira despregaram‑se da terra quando um deles desmontou e se
ergueu hirto sobre um outro, de estatura atarracada, com os braços estica‑
dos, ameaçadores. Os movimentos bruscos de um e de outro transmitiam
uma tensão que rebentou quando o mais alto atacou, enterrando um punho
no meio da barriga do camponês que se retraiu, aflito. O coração de Isabel
disparou ao ver o homem entroncado tornar a socar‑lhe a cabeça e a barri‑
ga à vez. Por fim, a vítima fugiu aos tropeços, a gritar do fundo da garganta,
enquanto o vulto alto subia para a garupa do seu cavalo. A princípio julgou
que ele o fosse perseguir, mas em lugar disso seguiu com o olhar o braço
apontado do outro cavaleiro. Só então ela reparou que esse braço se esticava
na sua direcção. O ar sumiu‑lhe dos pulmões ao vê‑los acossar os cavalos.
Num impulso, procurou o edifício dos escritórios, decidida a correr. No en‑
tanto, depressa constatou ser o esforço escusado. Estava muito longe, seria
apanhada antes de chegar ao sopé do monte. Fincou os pés na relva, ergueu
o queixo e arqueou as sobrancelhas, como se nada temesse.

40
O homem do cavalo preto-alcatrão estacou diante dela, o animal
soltando um bruto relincho. Isabel encarou o vulto com um olhar vivo. De
perto, parecia‑lhe ainda mais alto e espadaúdo. Usava um fato de cavaleiro,
com o colarinho desabotoado, e as suas feições eram distintas, o cabelo pre‑
to e os olhos de um azul-safira surpreendente.
– Quem é você? O que faz aqui? – perguntou ele, rispidamente.
– Isto é propriedade privada.
– Perdão! – balbuciou ela, desconcertada. – Eu…
– Vá‑se embora! Só veio aqui perder o seu tempo!
– Desculpe?!
– Já disse. Será que é surda? Está a perder o seu tempo e o meu ao
vir com todo esse aprumo até aqui. Pode dar meia volta e dizer ao seu pa‑
trão que não estou interessado.
O choque produzido por aquelas palavras cruas emudeceu Isabel,
cujas pernas pareciam querer vergar‑se contra a sua vontade.
– Que truque mais baixo! – continuou o indivíduo, cruzando olha‑
res zombeteiros com o colega. – Enviar uma mulher bonita para me con‑
vencer a mudar de ideias. Realmente, desta vez esmerou‑se. Pobre rapariga.
Vá‑se embora! A sua viagem foi em vão. Talvez noutras circunstâncias!
O outro riu‑se às gargalhadas. Isabel estremecia de humilhação.
Com a cólera a encher‑lhe a face de um rubor visceral, rebateu:
– Isto é um engano, com certeza! Não faço ideia do que o senhor
está a falar. Eu não vim aqui convencê‑lo de coisa alguma e muito menos
é necessário desperdiçar a sua imensa piedade na minha pessoa. Eu sou a
filha do senhor António do Couto Maia, o novo administrador da herdade!
Estamos aqui a convite do doutor Eduardo Leôncio Teles.
A expressão do homem do cavalo preto suavizou‑se, mas não o su‑
ficiente para ela lhe perdoar o mal-entendido. Ele mirou‑a de alto a baixo,
impenetrável, e disse:
– O melhor é a menina voltar para junto do seu pai. Isto não é lugar
para raparigas da cidade. Se quer ver paisagens bonitas visite o Norte. Deve
ter coisas muito mais interessantes com que regalar os olhos.
– Não tenho dúvidas – ripostou ela.
Ele franziu os lábios, como que surpreso com a sua afoiteza. De‑
pois fez um gesto de despedida e arrancou dali numa corrida desenfreada à
frente do colega que lhe sorriu antes de também ele abalar.
Isabel mal coube em si de despeito. Tinha as palmas das mãos hú‑
midas de suor, tal era o nervosismo, e todo o seu corpo tremia, alvoroçado.
Que atrevimento! Quanta má educação! Como fora ele capaz de a enxotar
daquela maneira? O choque fora tremendo e a grosseria pior ainda. Ao to‑
mar consciência de onde estava, regressou aos escritórios, abismada com o

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que lhe acabara de acontecer. Pelo caminho reencontrou o senhor Fontes
que logo a achou adoentada. A menina está bem? Não gostou do passeio?
Gostei, sim. Gostei muito. Talvez tenha andado demasiado. Foi tudo o que
lhe ocorreu dizer, pois era‑lhe impossível disfarçar o mal‑estar. O outro, pre‑
ocupado de a ver naquele estado, de imediato lhe indicou a casa de banho,
informando que o patrão entretanto chegara e subira com o seu pai para o
escritório. Ela agradeceu ao feitor e entrou nos lavabos, desejosa de banhar
o rosto. Sentia as faces ruborizadas e o coração batia‑lhe desenfreadamente
contra o peito. A imagem do homem a espancar o camponês assomava‑lhe
ao cérebro a todo o instante. Quase podia sentir‑lhe os punhos cerrados no
seu próprio estômago. E como se não bastasse, tinha sido destratada por
um indivíduo sem escrúpulos, insensível, talvez até sem alma. Enxugou o
rosto, comprimiu os lábios com força e tentou recompor‑se. Se alguma vez,
algum homem se atrevera a dirigir‑se‑lhe naqueles modos! Subiu a esca‑
daria num passo firme, com ideias de denunciar o maldito. Com certeza
o tal do doutor não ia gostar de saber que os seus empregados estavam a
ser agredidos a torto e a direito. No topo, deparou com uma sala arejada e
cadeiras dispostas lado a lado, numa das quais se sentou, à espera, a baloiçar
vigorosamente a perna. O pai saiu do escritório algum tempo depois, muito
bem‑disposto.
– Ó, Isabel, estavas aí! Porque não entraste?
– Não quis incomodar.
Ele reparou na sua expressão quebrantada e quis saber o que acon‑
tecera ao que a filha respondeu estar tudo bem. Porém, António insistiu e
quando Isabel estava prestes a contar o sucedido, eis que lhe surgiu à frente
um vulto alto e maciço. Ao reconhecê‑lo, a garganta secou‑lhe instanta‑
neamente, tal era o constrangimento de reencontrar o cavaleiro ali, nos
escritórios, onde supostamente devia estar era o patrão. Ele fitou‑a de volta
com um certo desconforto espelhado nos olhos azuis penetrantes. Sem se
ter apercebido de tudo isto, António apresentou‑os:
– Esta é a minha filha mais velha, a Isabel. Querida, este é o Eduar‑
do Leôncio Teles.
O choque foi demasiado grande para conseguir disfarçá‑lo por
muito tempo. Não conseguiu evitar dar um passo atrás, depois o rosto
contraiu‑se‑lhe de insuportável embaraço quando ele lhe estendeu a mão
para a cumprimentar. Ela ergueu a sua, trémula, e apertou‑a, logo de se‑
guida largando-a, demasiado furiosa para o fitar nos olhos. Nessa altura,
as expressões de consternação de ambos já não passaram despercebidas a
António que tentou aplacar o ambiente.
– Estou certo de que vai ser muito agradável trabalhar neste lugar,
Eduardo! Longe do reboliço da cidade.

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– Ah, mas não se deixe enganar. Aqui há muito para fazer.
– Sei bem disso. Não se preocupe. Não tenho medo do trabalho.
Isabel encarou o homem, queda e muda. Era mesmo ele. O cava‑
leiro. Não os estava a confundir. Contudo, os seus modos eram outros, sin‑
ceros, mas muito mais civilizados. Se o primeiro encontro não tivesse sido
tão brutal, até era capaz de o considerar desconcertantemente atraente, com
um brilho profundo no olhar que lhe suavizava o semblante. Mas era o ca‑
valeiro, ainda tinha os nós dos dedos esfolados, de esmurrar o camponês.
Indiferente ao olhar transtornado de Isabel, o homem perguntou‑lhes se já
tinham experimentado os produtos da sua marca ao que António respon‑
deu negativamente. Ele então tornou a entrar no escritório, regressando de
lá com uma cesta de vime. A mudança total de atitude desorientou‑a.
– É um cabaz com todos os nossos produtos desde o queijo ao azei‑
te, vinho e enchidos. Oferta da casa. Espero que vos agrade.
– Obrigado! – agradeceu António, comovido. – Já estou com água
na boca só de olhar para eles. Têm realmente muito bom aspecto.
Isabel nada disse, nem conseguiria, tão incomodada que se sentia.
Volta e meia despontava nela uma vontade quase incontrolável de expor
a crueldade daquele homem, mas teve de se conter. Estava num lugar es‑
tranho e era ali que o pai ia começar a trabalhar em breve. Tinha de ficar
calada, por maior que fosse a sua revolta. E isso fê‑la odiar‑se tanto quanto
o odiava a ele que os acompanhou ao exterior, onde lhes explicou a funcio‑
nalidade de cada edifício, todos juntos ocupando uma grande extensão de
terra, à qual chamavam o monte.
– Aguardo por si amanhã cedo – disse o proprietário a António,
esboçando um belo sorriso.
– Com certeza! – respondeu o pai, com um passou‑bem de despe‑
dida.
Ela tentou evitar este embaraço ao dirigir‑se discretamente para a
charrete onde pousou a cesta. Porém, para sua mortificação, Eduardo fez
questão de a ajudar a subir para o transporte, tomando‑lhe a mão enquanto
ela escalava o degrau e se sentava. Acabou por ser uma cena perturbadora,
mais para um do que para o outro, em cuja expressão nada de particular
se detectava senão mera cortesia. Depois de António se juntar à filha, o
cocheiro atiçou o cavalo e partiram de regresso a Moura.
Isabel sentia o olhar inquiridor do pai e tentou esquivar‑se do as‑
sunto durante quase toda a viagem até ele a questionar abertamente.
– O que se passou? Já se tinham cruzado?
– Eu preferia não falar sobre isso.
– Ele destratou‑te?
– Não! – apressou‑se ela a negar, embora com pouca segurança.

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– Quero dizer, acho que me confundiu como uma visita indesejada, mas
eu logo desfiz o mal-entendido. Apenas fiquei atrapalhada ao ver que se
tratava do próprio dono. Só isso.

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Capítulo VI

I
sabel e Ana Maria passaram o resto da tarde a arrumar o pouco que
tinham conseguido trazer de Lisboa, enquanto Inês se entreteve a empi‑
lhar as suas revistas ou a planear a decoração do quarto. O trabalho de
limpeza revelou‑se cansativo, pois os móveis, apesar de bem preservados,
estavam cobertos de pó e no ar pairavam nuvens espessas de um odor ba‑
fiento. Escancararam assim as janelas de modo a deixar passar uma aragem
que refrescasse as divisões carregadas de uma atmosfera sombria.
– Ó da casa! – ouviram elas gritar, de repente. – Ó da casa!
Ana Maria acorreu à porta entreaberta, de onde uma criada magri‑
cela chamava e fazia sinais.
– Boas tardes! Eu venho da parte da dona Ercília, a senhoria, para
avisar que ela virá fazer uma visita lá para o final da tarde. Ah, a senhora
pergunta também se têm tudo o que precisam! Caso não tenham, estou às
vossas ordens.
Ana Maria e Isabel entreolharam‑se com um sorriso de espanto.
– Não, muito obrigada, não precisamos de nada – disse a mãe. –
E pode‑lhe dizer que cá a esperamos mais logo então.
– Muito bem! – disse a moça, fazendo um gesto de despedida. –
Boas tardes!
Assim, com a perspectiva da visita da senhoria para mais logo, ace‑
leraram as limpezas e as arrumações, de modo a estar tudo pronto para a re‑
ceber. O facto de uma criada ter vindo à porta de propósito anunciar a visita
da proprietária da casa, fazia antever o tipo de pessoa que estavam prestes a
conhecer, o que provocou uma ansiedade generalizada. Ao fim de algumas
horas, caíram rotundamente nos maples da sala de estar. Ana Maria franzia
os sobrolhos, aborrecida.
– Quanto tempo teremos nós de ficar neste sítio? Já reparaste no
silêncio? Depois de tanto tempo, o silêncio passou a fazer‑me confusão. Eu

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que adorava a paz do Minho. Mas isto não tem nada que se lhe compare.
Estas terras são uma desolação.
– Há‑de haver algo de bom neste lugar, mãezinha.
Ela limitou‑se a encolher os ombros. Quando se levantava para
preparar o lanche, a campainha tocou com um grito ríspido que a fez dar
um pulo. As duas trocaram olhares cheios de significado, sem se mexerem.
Daí a um momento, a campainha soava de novo com urgência ao que a
mãe respondeu com uma corrida até à porta da frente. Isabel logo esprei‑
tou pela janela, através da qual vislumbrou uma mulher distinta, vestida de
preto, com um xaile pardo sobre os ombros. A fatiota escura fazia destacar
a palidez do seu pescoço longilíneo e do rosto, os cabelos prateados presos
num carrapicho no alto da cabeça. Toda ela tinha um ar magistral.
Ana Maria atendeu a senhora que se apresentou como sendo Er‑
cília da Conceição Leôncio Teles, a proprietária da casa. Num instante, a
mãe convidou‑a a entrar, visivelmente atrapalhada. A outra avançou para o
hall, num passo firme e desembaraçado. Depois voltou‑se para ela, com os
ombros largos e a cabeça bem alta.
– Calculo que a senhora seja a Ana Maria, a esposa do senhor Maia.
– Sim, senhora.
– É muito mais nova do que eu esperava. A diferença de idades
entre si e o seu marido deve ser grande ou então ele está muito mal conser‑
vado – concluiu, sem esperar uma resposta. – Vejo que já se estão a instalar.
A casa é bastante boa e eu encarreguei‑me pessoalmente da decoração. Fi‑
cou simples, como é conveniente, mas todas as peças são de muito bom
gosto. Pois, vejo que pôs cortinas novas nas janelas! Infelizmente, não pare‑
cem combinar muito bem com os tapetes. Mas não a vou recriminar. É ver‑
dade que nem todas as mulheres possuem a sensibilidade necessária para
decorarem a sua casa com estilo e bom gosto. Esse é um dom destinado
apenas a uns poucos privilegiados.
Ana Maria corava a cada segundo, muda de pasmo. A cabeça da
senhoria girou, de sobrancelhas alçadas, detectando Isabel a um canto.
– E esta é uma das suas filhas?
Ana Maria apressou‑se a apresentar Isabel que a cumprimentou
com um aperto de mão. A dona Ercília observou‑a com um olhar pesado,
transparente, como se não estivesse de todo satisfeita com o que via.
– E a sua outra filha? Onde está?
– Na cozinha. É por aqui, por favor…
– Eu sei onde é. Eu espero ali na sala de estar com a sua filha mais
velha, se ela não se importar de me fazer companhia.
A mãe fez‑lhe sinal para assentir e retirou‑se. Isabel seguiu atrás
da senhora que entrou pausadamente na sala, examinando com cuidado o

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mobiliário ao redor, e sentou-se, muito direita. Ela fez o mesmo, fascinada
com a austeridade da mulher. Havia qualquer coisa de intimidante na sua
atitude, no tom gelado da sua voz.
– Quantos anos tem? – foi a primeira pergunta que fez.
Isabel teve de sufocar o riso. Susteve a respiração e respondeu:
– Vinte e três.
– E está comprometida com alguém?
– Peço desculpa, minha senhora, mas acho que isso não lhe diz
respeito.
– Estou apenas a tentar estabelecer o mote da nossa conversa. Por
exemplo se estiver noiva, podemos falar acerca das obrigações de uma
dona de casa, embora calcule que a sua mãe já lhe tenha dado alguns con‑
selhos. Mas se estiver descomprometida, poderemos falar de outras coisas,
como seja as suas habilitações, os seus dons. Tinha alguma profissão em
Lisboa?
– Sim, era professora.
– Hum… – rumorejou a dona Ercília, com um franzir de sobrolho.
– Suponho que uma jovem com profissão tenha ideias de se tornar inde‑
pendente. Nestes últimos tempos cresceu muito o número de mulheres que
atrasam o casamento, por ambicionarem seguir uma carreira profissional.
Estou a perceber.
– A senhora diz isso como se fosse mau.
– Se a mulher tiver de sustentar os seus filhos, porque o salário do
marido não é suficiente ou por se encontrar sozinha na vida, não vejo mal
algum em que trabalhe. Agora se for de uma certa condição social, e a me‑
nina parece‑me pertencer a uma família de classe média, o único motivo
que a levará a querer seguir uma carreira é o de pretender enfrentar o pai ou
a mãe ou ambos. Isso revela uma rebeldia e uma falta de respeito para com
a autoridade, muito comum nas jovens de hoje, infelizmente.
– A razão pela qual me tornei professora, nada teve a ver com isso.
Apenas segui o meu desejo de contribuir para a sociedade. Afinal, se não
fossem mulheres como eu, a senhora não saberia ler, nem escrever.
– Acontece que o meu preceptor era do sexo masculino. Tive uma
instrutora de música muito competente, sim, e o facto de me ter tornado
dona de casa não me impediu de contribuir para a sociedade. Afinal fui eu
que criei os meus sobrinhos que são hoje rapazes muito bem‑sucedidos!
Os seus rostos contraídos fitaram‑se mutuamente, debaixo de um
silêncio pesado. Os traços crispados da senhora revelaram a Isabel o quan‑
to ficara desagradada com as suas respostas. A entrada de Ana Maria na
sala, sustentando uma bandeja com o serviço de chá, ajudou a aliviar um
pouco a atmosfera. Inês veio logo atrás e sentou‑se no cadeirão ao lado da

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dona Ercília. Esta observou‑a com um olhar avaliador, como se esperasse
ver nela o reflexo da irmã.
– Tem uma filha muito opinativa! Espero que lhes tenha ensinado
a respeitar os mais velhos.
– Elas sempre foram bem‑educadas, não lhes tolero más criações!
– disse Ana Maria, resolutamente. – No entanto, eu e o meu marido va‑
lorizamos a individualidade de cada uma e reservamos‑lhes o direito de
decidir sobre as suas próprias vidas.
O efeito que estas palavras produziram na dona Ercília foi reve‑
lador quanto ao conservadorismo dos seus valores. Seguiram‑se trinta
minutos de um discurso deplorável que convenceu Isabel de que aquela
mulher era uma aristocrata empertigada, com quem seria terrível conviver
diariamente. Ao pensar no sobrinho mais velho, percebeu de onde vinha a
sua crueldade. Criado como um príncipe, julgar‑se‑ia superior aos outros,
encorajado pela tia e bajulado pelos seus trabalhadores.
– O meu marido contou‑me um pouco da história da sua família
– continuou Ana Maria, cujas faces se enchiam de um vermelho-pimentão
à medida que a conversa progredia. – Lamento muito o falecimento prema‑
turo do seu marido.
– Sim, foi uma tragédia. Fizeram essas estradas pelo país fora e de‑
pois nem se dão ao trabalho de as arranjar como deve ser. O pobre do meu
sobrinho, o Pedro, foi quem mais sofreu com a sua morte. Adorava‑o como
a um pai.
– O que aconteceu aos pais deles?
A dona Ercília, que até ali falara com uma altivez repugnante, ins‑
pirou fundo. Contou que o cunhado, irmão do marido, morrera de doença
e a cunhada não resistira ao parto.
– Tinha apenas oito anos, o meu Eduardo, mas era já tão forte e
corajoso! Prometeu à mãe, no leito da sua morte, cuidar do irmão. E tem
cumprido a promessa até hoje!
Terminado o chá, a dona Ercília soergueu‑se, recuperando a ex‑
pressão austera, e despediu‑se com um convite para jantarem em sua casa
na sexta‑feira, o qual Ana Maria aceitou, agradecida. Mal a senhora saiu,
pôs‑se a bufar e a gesticular de fúria.
– Que criatura mais desagradável! Por momentos pensei que esti‑
véssemos a ser julgadas em pleno tribunal. Não podia abrir a boca e ela ia
logo dando a sua sentença.
– Bom… ela é a senhoria! Pode‑se dar ao luxo de dizer o que enten‑
der – murmurou Inês.
– Desde quando isso lhe dá o direito de nos avaliar daquela manei‑
ra?! Juro que fiquei sem chão quando começou a criticar a minha falta de

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gosto. E ainda tem a audácia de me querer ensinar a criar as minhas filhas.
Que insolência! Como se pudesse falar de boa educação.
Quando António chegou a casa, Ana Maria fez questão de o in‑
formar o quanto antipatizara com a dona Ercília, descrevendo‑lhe todo o
episódio da visita que lhe parecera ter demorado uma eternidade. O pai
assumiu uma atitude diplomática e rogou à mulher que tentasse esquecer
a má impressão deixada pelo primeiro encontro. A outra rebateu com o
argumento de que na sua própria casa a dona Ercília seria abominável.
– Estou a pedir‑te que lhe dês uma oportunidade! – insistiu Antó‑
nio, com veemência. – Estarás a agir como ela, se te precipitas a julgá‑la.
Isabel compreendeu a posição do pai e ajudou‑o a convencer a mãe,
embora ela própria desejasse nunca mais tornar a cruzar‑se com aquela fa‑
mília. Assim, à repetição do convite feito pela dona Ercília para jantar no
dia combinado, António confirmou a resposta positiva, pelo que às seis e
meia da tarde em ponto de sexta‑feira, batiam à porta da casa dos Leôncio
Teles que ficava a poucos metros de distância, logo ao virar da esquina.
À porta apareceu um criado robusto, altivo, vestido com um fato
abotoado até cima. Encaminhou‑os para o vestíbulo onde os ajudou a des‑
pir os casacos e conduziu‑os escadas acima ao primeiro piso até a uma sala
espaçosa, de soalho luzidio, forrado com tapetes persas. Toda a decoração
tinha um colorido severo, os reposteiros verde‑escuros contrastando com o
papel de parede imaculado, no qual se derramava o clarão dourado de um
grande lustre.
A família Leôncio Teles ergueu‑se toda para os receber. Além deles,
encontravam‑se também ali um outro jovem e dois casais. Seguiram‑se as
apresentações, de entre as quais se destacou Pedro, um rapaz alegre, muito
bonito.
Isabel sobressaltou‑se quando cruzou o olhar com o de Eduardo.
Vinha‑lhe à memória a repetição de todo o episódio dos primeiros encon‑
tros, da brutalidade dos seus modos e depois a cortesia com que os tratara
nos minutos posteriores. No entanto, desta vez, ele estava com muito me‑
lhor aspecto, e apesar de lhe persistirem sinais de austeridade na sua postu‑
ra em geral, despontava no seu sorriso e no olhar uma vivacidade que fez os
pais sentirem‑se bem‑vindos. Foi amável especialmente para com António,
a quem tratou de apresentar o irmão, um amigo chamado André Toledo e
os outros casais, um deles bastante jovem. Como era possível alguém ter
duas caras tão distintas?
A dona Ercília surpreendeu‑os ao recebê‑los com cortesia. Mas não
era falsa. Continuava a tratar as mulheres da família Maia com desconfiança
e de vez em quando lá dava a sua alfinetada, talvez para ver aonde chegava a
paciência de cada uma delas. Talvez para lhes medir a fibra ou simplesmen‑

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te para se regozijar às suas custas ou para demonstrar que fizessem o que
fizessem nunca iria gostar delas. Fez as perguntas do costume, Ana Maria
agradeceu o convite e apartaram‑se em paz.
A certa altura, enquanto todos se serviam de aperitivos, Isabel
aproveitou para admirar um belo pianoforte do século xviii, instalado num
canto sombrio. Podia‑se constatar facilmente que não era usado há muito
tempo, não por estar sujo de pó, porque rebrilhava em toda a sua glória,
mas por servir de mesa de suporte a várias caixinhas de porcelana estrategi‑
camente dispostas em cima de um naperon. Era isso que faltava. Música.
– Deseja beber algo? – perguntou‑lhe o criado, por cima do ombro.
Isabel virou‑se com um pulo, apanhada de surpresa.
– Ó, não! Muito obrigada!
Ao volver, determinada a oferecer‑se para tocar, deparou com
Eduardo, plantado diante de si, inquieto.
– Gostaria de lhe pedir desculpa pelo modo como a tratei no outro
dia. Foi muito incorrecto da minha parte. Tinha acabado de discutir com
um trabalhador e confundi‑a a si com a empregada de um senhor de quem
desejo distância.
– Devia ter mais cuidado com o modo como trata as pessoas. Não
se devia precipitar a descompor e a maltratar os outros antes sequer de lhes
dar a oportunidade de abrir a boca.
O homem inclinou a cabeça, tomado de surpresa, como se nunca
tivesse ouvido uma mulher falar daquela maneira, exceptuando talvez a tia.
Recompôs‑se e respondeu:
– Desculpe se perdi as boas maneiras após tantos anos afastado da
sociedade lisboeta, mas como irá perceber, a vida no campo é muito dura.
– A dureza da vida no campo não devia servir de desculpa para a
sua falta de discernimento.
– Por isso mesmo estou‑lhe a pedir perdão… – notou ele, a testa
encrespando‑se.
– Não estou a falar só de mim, estou a falar do modo como tratou
aquele camponês! Eu vi‑o espancar um homem indefeso, um pobre tra‑
balhador do seu campo que provavelmente nem sabe escrever o próprio
nome.
A expressão de Eduardo enchia‑se de um espanto que o fazia sorrir.
– Você é muito opinativa para assuntos que desconhece!
– Sei o que vi e não achei correcto.
– Ver não basta, tem de saber o contexto em que os factos ocorrem.
– Nada justifica aquele tratamento!
Eduardo respirou fundo, alterado, e encarou‑a com firmeza.
– Não que eu lhe deva alguma explicação, mas aquele trabalhador

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indefeso, como lhe chamou, estava a destruir‑me as vinhas, depois de eu o
ter despedido por me ter roubado sacas de cereais. Quando fui falar com
ele para tentar perceber porque estava a fazer aquilo, atacou‑me sem mais
nem menos.
– Ele devia estar desesperado! O senhor podia ter sido mais com‑
preensivo! Se conhece tão bem o campo, como diz, deve conhecer também
as dificuldades dos seus trabalhadores. Você é instruído, entende melhor
os problemas do mundo do que a maioria. Devia ter sido superior às atitu‑
des tresloucadas de alguém que acabara de ser despedido.
– Que sabe você sobre as dificuldades de um lavrador ou de um
trabalhador do campo?
Isabel sentiu as faces aquecerem profusamente e antes de conse‑
guir dizer alguma coisa, o mordomo reentrou na sala e anunciou que o
jantar estava pronto a ser servido. Eduardo pediu licença e foi buscar a tia,
acompanhando‑a ao salão.
Enquanto Isabel procurava o seu lugar, Ana Maria agarrou‑lhe o
antebraço e murmurou‑lhe ao ouvido:
– O que foi aquilo? A discutir com o dono da casa?! Havemos de
ser expulsos e ainda nem uma semana fez desde que aqui chegámos! Se
não tens nada simpático para dizer, fica calada! Estou a fazer um esforço
para manter boas relações com estas pessoas. Não estragues tudo com as
tuas malditas opiniões, ouviste?
Isabel limitou‑se a acenar com a cabeça, atordoada. Por sorte,
Eduardo ficou na outra ponta da mesa, pelo que o constrangimento de
ter de falar de novo com ele foi‑lhe poupado durante mais de uma hora.
Apesar de tudo, a refeição decorreu sob um ambiente descontraído. Pe‑
dro era um rapaz vivo e comunicativo. Tinha os cabelos pretos, como os
do irmão, porém os olhos eram de um castanho esverdeado e as feições
pálidas, herança talvez da falecida mãe. Ria‑se abertamente e não tinha
qualquer problema em brincar com a seriedade de Eduardo, expondo‑o
aos convidados como um irmão rígido, mas afectuoso.
– E competente! – acrescentou, no fim. – A segunda loja já está a
conquistar a clientela da avenida de Roma. Conta‑lhes!
– Tenho razões para estar satisfeito – disse ele, cauteloso. –
O mercado é difícil, mas aos poucos vamos conseguindo expandir o ne‑
gócio.
Por momentos só se ouviu o tinir dos talheres e o degustar da co‑
mida até Horácio, amigo íntimo da família e padrinho de Eduardo, inter‑
romper o bebericar do vinho alentejano com uma declaração que silenciou
o resto da mesa.
– Já soubeste o que andam a falar por aí acerca dos Planos de

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Fomento? Dizem que querem parcelar os grandes latifúndios. Os proprie‑
tários andam em parafuso com a notícia. Já falam em unir‑se numa frente
contra mais esta malograda tentativa de reforma agrária.
As sobrancelhas espessas do afilhado arquearam.
– Não estou preocupado. Admito que a reforma agrária é um mal
necessário. É preciso desenvolver a agricultura para aumentar a produção
e, logicamente, os lucros. Acho que o emparcelamento dos terrenos de pe‑
quena dimensão tornará mais viável a sua exploração. Mas tenho dúvidas
se o parcelamento das grandes propriedades seria bom para a efectividade
desse processo.
– Então discorda dos Planos de Fomento? – indagou António.
– Nem uma coisa, nem outra – respondeu ele, descontraído. – Acho
louvável a vontade do Estado em conciliar a industrialização com a agricul‑
tura, pois sei o quanto desagrada a muitos o crescimento desse sector. No
fim das contas, o meu único interesse é mesmo o proveito.
– Mas então se os grandes lavradores alentejanos forem mesmo
para a frente com esta pressão sobre o governo, estará ao lado deles?
– A pressão para manter tudo na mesma já vem de há muito tempo,
senhor Maia. E começa no próprio topo.
A ansiedade em mudar de assunto era generalizada e Ana Maria
concretizou esse desejo ao pedir à dona Ercília que lhe recomendasse uma
pessoa para a ajudar nas lides da casa. Sim, havia a filha da cozinheira, a
Ernestina, muito boa rapariga, casada com um jornaleiro, portanto muito
necessitada de um salário extra. Estivera lá por casa naqueles últimos dias a
limpar‑lhe as pratas, mas podia dispensá‑la.
– Se não lhe fizer falta.
– De maneira nenhuma. Será muito mais útil na sua casa.
– Sendo assim, fico agradecida!
– Não tem de quê! Poderá esperá‑la amanhã mesmo.
Saciado o apetite e terminada a sobremesa, foram todos para a sala
de estar onde lhes foi servido um digestivo. Pedro colocou‑se diante dos
convidados mais jovens, no alto da sua inesgotável disposição, e desafiou‑os
para uma partida de canasta. Com a mesa de jogo a ser preparada com todo
o requinte, ninguém foi capaz de recusar. À terceira ronda, Inês e Pedro
divertiam‑se tanto um com o outro que daí a pouco já se tinham esque‑
cido das cartas. Isabel aproveitou para conhecer melhor André, amigo de
infância de Eduardo e médico de profissão. Além de ser um homem de
temperamento pacato, tinha também um à‑vontade natural e a sua manei‑
ra articulada de falar inspirava respeitabilidade.
– Vivemos em Moura até aos quinze anos – contou, passando os
dedos pelos cabelos encaracolados. – Depois eu e o Eduardo fomos para

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um colégio interno em Lisboa. Fizemos também juntos a tropa e quando
entrámos na faculdade eu fiquei na capital e ele foi para o Porto.
– Sempre quis ser médico?
– Não… Quando era mais novo queria ser mineiro! – Ele riu‑se ao
ver o ar sério de Isabel e ela correspondeu, divertida. – O meu pai fez essa
mesma cara quando lhe disse. E lá conseguiu convencer‑me a mudar de
ideias.
– Deve ter ficado aliviado quando lhe anunciou que ia para me‑
dicina!
– Estava implícito, sabe? É a profissão da família. O meu avô era médi‑
co, o meu pai é médico e a minha mãe enfermeira. Estava‑me no sangue…
– Bom, mas pelo menos faz aquilo de que gosta!
Ele anuiu com a cabeça, mas Isabel ficou com a impressão de que a
sua vontade podia tê‑lo conduzido para outro caminho se tivesse resistido
à pressão familiar.
Eduardo estava ocupado a conversar com António e Horácio, mas
quando estes se viraram para responder ao chamamento da dona Ercília,
aproveitou para se aproximar da mesa de jogo. Isabel tomou consciência da
sua presença e, na primeira oportunidade, encarou‑o e disse:
– Nem todos têm o privilégio de ser felizes na sua profissão! Às
vezes vêem‑se obrigados a tomar decisões difíceis.
– Todos os dias! – aquiesceu Eduardo.
– Ele parece ser feito de ferro, mas no fundo tem um coração de
manteiga! – disse André, com ar zombeteiro, levantando‑se e dando‑lhe
uma palmada amigável nas costas.
Isabel ficou calada, abstendo‑se de fazer comentários. Para sua sur‑
presa, o lavrador continuou, com ar desafiador:
– Acho que ela não acreditou em ti, André!
– Ó, mas porquê? – quis ele saber, surpreendido.
– A primeira vez que me viu, eu estava a dispensar um trabalhador.
– A sua maneira de dispensar trabalhadores deixa muito a desejar.
Você apontou os punhos ao pobre do homem e espancou‑o, mesmo depois
de ele ter caído desamparado! – retorquiu Isabel, asperamente.
– Eu não lhe bati de graça, se é isso que pensa. Acredite que foi bem
melhor eu ter-lhe dado aquela sova, ao invés de chamar a polícia.
– Já sabe a minha opinião sobre esse assunto. É escusado retomar
esta conversa, se mantemos as mesmas posições.
– É de ideias fixas, já percebi! – atirou ele, enquanto ela se afastava.
Isabel parou e retrucou com gravidade:
– Se pensa que estou a dizer isto com o mero propósito de o atacar,
está enganado. Não gosto de perder o meu tempo com discussões fúteis!

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– Pois, porque você de fútil não tem nada.
– Está a fazer uma constatação ou a ser sarcástico?
Ele riu‑se, sem desprender os olhos dela.
– Não costumo ser sarcástico. Digo sempre tudo o que tenho a di‑
zer. E você?
As suas íris azuis-acinzentadas fixavam‑na como duas miras. Ten‑
tando disfarçar o profundo incómodo que aquela pergunta lhe provocara,
Isabel afastou‑se para encontrar refúgio na companhia dos pais que já ves‑
tiam os seus casacos, a fim de regressar a casa.

54
Capítulo VII

C
aminhando na penumbra, Isabel sentiu uma frustração desconcer‑
tante apossar‑se dela. Sempre se gabara de ser mais sincera e jus‑
ta do que a maioria dos seus conhecidos e naquela noite vira‑se
numa situação em que o seu julgamento fora posto à prova. E por alguém
com quem antipatizara desde o primeiro instante. Na verdade, era raro ser
confrontada de forma tão aberta e agora sentia‑se desarmada e vulnerá‑
vel. Consequentemente, teve dificuldade em adormecer. A incerteza de ter
podido ser imparcial no seu juízo do que acontecera tornou‑se demasiado
incómoda para passar despercebida.
Passava pouco das oito da manhã quando o galo afinou a garganta
e anunciou a alvorada com o seu canto triunfal. Inês saltou da cama, enfiou
um dos seus melhores vestidos, penteou‑se com esmero e desceu até à co‑
zinha a cantarolar. O pai espreitou por cima do jornal, querendo saber qual
era o motivo de tanta alegria, pois até há minutos julgava que ela detestava
estar ali. A outra limitou‑se a esboçar uma careta enigmática.
– Eu cá sei a razão dessa cantoria toda – disse Isabel, semicerrando
o olhar. – Só pode ser por causa de um certo Pedro Leôncio Teles.
Inês deixou escapar um risinho comprometido. Achava‑o lindo,
bom de conversa e divertidíssimo, enfim, um cavalheiro.
– Sim, concordo – assentiu Ana Maria. – Não estava à espera de
encontrar grande coisa aqui por estes lados. Os jovens são todos muito pro‑
vincianos, ligados à terra e ignorantes. Mas o Pedro não! Esse é digno da
atenção da minha filha. É de boas famílias, jovial e educado.
Como ninguém fez comentários, Inês continuou, escolhendo a
irmã como alvo.
– Não sei o que aconteceu entre ti e o irmão do Pedro, mas espero
que isso passe depressa. Senão é mais um obstáculo à concretização dos
meus planos.

55
– Planos! Quais planos?! – perguntou Isabel, num tom zombetei‑
ro.
– Ora! Não é óbvio? Estou a pensar em namorar com ele e preciso
da tua ajuda para que tudo corra de feição. Já é altura de ter a minha própria
vida. E não me venhas com as tuas críticas, porque não estou disposta a
ouvir‑te.
Isabel e António petrificaram.
– Mas do que estás tu para aí a falar?
– Do meu namoro com o Pedro. Já disse! Vou namorar com ele e
podias facilitar‑me a vida se te desses bem com o irmão dele e principal‑
mente com a dona Ercília, pois essa vai ser difícil de convencer. Para além
de ser muito conservadora, tem pulso forte e não é qualquer pessoa que cai
nas suas boas graças.
– Pelos vistos já tens tudo bem pensado. Quantos disparates oiço eu
sair dessa boca! És uma tola.
– Ao menos sou feliz!
– Duvido que alguém seja feliz a iludir‑se o tempo inteiro. Onde
está o teu bom senso? Mal conheceste o rapaz e já dizes que vais namorar
com ele! Nem te atrevas a partilhar essa ideia infeliz com a dona Ercília.
Aliás, quanto menos contacto tiveres com essa família melhor. Não precisa‑
mos de conviver com eles mais do que o necessário para manter as boas re‑
lações entre vizinhos. Deixa‑os lá entreterem‑se com os seus amigos ricos,
não hão‑de sentir a nossa falta.
– Credo! Às vezes és cá uma pedante! – atirou Inês, após o que en‑
colheu os ombros em desdém.
– Ah! Mas fazem um par bonito! – atalhou a mãe, alheia à ani‑
mosidade entre as duas irmãs. – Talvez seja um pouco imaturo para a sua
idade. Não tem emprego, parece andar por aí à deriva, à espera de melhores
ventos. De qualquer maneira, acho que nunca terá de se preocupar com
dinheiro. E isso para mim é o suficiente. Fica descansada, filha. Por mim,
está aprovado.
Isabel nem queria acreditar no que ouvia e António fingia ignorar a
conversa, escondido atrás do jornal.
– Ó, pai, por favor, ponha juízo nestas duas.
– Deixa‑as! Deixa‑as! – repetiu ele, sardónico. – Ao menos diver‑
tem‑se e divertem‑me a mim! Faz bem à saúde e à mente. E tu bem precisas
de rir um bocado! Andas muito séria ultimamente!
As outras duas rebentaram a rir e Isabel mal foi capaz de suprimir
as gargalhadas no fundo da garganta. Desde o dia da visita à Salúquia que
andava mal‑humorada, sendo‑lhe cada vez mais difícil disfarçá‑lo, mas so‑
bre isto ela nada quis partilhar com o pai. Havia limites sobre o que podia

56
falar com ele, e este era um deles, porque Eduardo era o seu patrão e dada
a situação delicada em que se encontravam, talvez fosse melhor não lhe re‑
velar, por enquanto, o verdadeiro carácter do lavrador. De volta ao quarto,
sentiu o olhar ser de novo atraído para a porta do alçapão, no tecto do pa‑
tamar. Como António vinha a subir as escadas, chamou‑lhe a atenção para
a sua descoberta, à qual ele deu pouca importância. Na realidade, tinha
muita pena de a decepcionar, mas a chave não estava na sua posse. Talvez
a tivessem perdido, supôs Isabel, ao que o pai franziu os lábios num sorriso
clarividente.
– Sei muito bem o que estás a tentar fazer – disse, perante a expres‑
são fingidamente inocente da filha. – Estás desejosa de ver o sótão e ficarás
de consciência menos pesada em forçar a fechadura, se supuseres que per‑
deram a chave.
– Sim, é verdade – confessou. – Tenho muita vontade de descobrir
o que está lá dentro. A renda da casa, que eu saiba, não exclui o sótão. Seria
muito mau se me aventurasse lá por cima?
António afagou o queixo durante alguns momentos, chegando a
uma conclusão.
– Se o alçapão está trancado e não nos deixaram a chave, nem qual‑
quer aviso ou recomendação sobre o facto, então é porque a dona Ercília
nunca tencionou que tivéssemos acesso a essa parte da casa. Tem paciência,
mas acho que vais ter de morder a língua e engolir essa tua curiosidade.
Tal como a dona Ercília prometera, a nova criada apareceu‑lhes à
porta, nessa manhã de sábado. Chamava‑se Ernestina e tinha cerca de qua‑
renta anos de idade, marcados no olhar pesado. As linhas robustas do seu
corpo formavam a silhueta de uma pêra e os cabelos aos caracóis caíam‑lhe
sobre os ombros largos, como grandes cachos de uvas pretas. Era de estatu‑
ra baixa, mas ágil, o que agradou bastante a Ana Maria.
– Sei fazer um pouco de tudo – contou ela, o sotaque alentejano
bem carregado. – Cozinhar, lavar, passar a ferro, costurar e tudo o mais. Até
limpo chaminés, se for preciso.
– Óptimo! – animou‑se Ana Maria.
Acordado o montante do salário, Ernestina pôs‑se imediatamente
a trabalhar. Ajudou a fazer uma lista completa de compras, indicou os me‑
lhores sítios na vila onde fazê-las e começou a limpar a cozinha, com uma
desenvoltura impressionante.
– A dona Ercília contou‑nos que é casada com um jornaleiro –
apontou Isabel, depois de a mãe e irmã terem saído a caminho da praça.
– Sim, é verdade! Mas é um trabalho muito difícil. Antes vivíamos
lá no monte da Salúquia. Tínhamos um bom tecto, comida e roupa lavada,
mas depois o João foi despedido, por ter andado a fazer disparates.

57
Perante o olhar inquiridor de Isabel, a mulher dispôs‑se a contar os
pormenores:
– Os colegas apanharam‑no a roubar sacas de cereais para vender às
escondidas e foram contar tudo ao patrão. Eu bem o avisei para ter cuidado,
mas ele nunca me dá ouvidos. Mete‑se na bebida e depois faz é disparates.
– E o que aconteceu? – indagou Isabel, sem receio de ser indiscreta,
pois ali estava diante de si a mulher do camponês agredido por Eduardo.
– Depois, para piorar as coisas, resolveu vingar‑se. Foi buscar uma
foice e pôs‑se a cortar as vinhas do patrão. Chegou a casa parecia eu sei lá
o quê. Cheio de nódoas negras na cara e o nariz sagrando. Eu disse‑lhe:
«Ó, homem, que andaste tu a fazer?!» e ele só me chamava nomes, furioso
que estava. Depois disse‑lhe: «Bem feito!» e ele caiu ao chão a choramingar.
Pobre homem! É um pateta.
– Mas é certo que roubou os tais sacos?
– Ele diz‑se inocente, mas os colegas viram tudo. E eu cá não me
admira, porque ele já tinha feito das suas antes! O patrão foi bonzinho e
deixou‑o ficar. Agora abusou e o doutor Eduardo escorraçou‑o, ora, pois
com toda a razão. Só tenho de dar graças é por a família não o ter denun‑
ciado à polícia! Pois aí teria sido a nossa desgraça! Temos quatro filhos para
criar e ele ia‑me para a prisão! Graças a Deus que o patrão foi caridoso.
– E o que vai fazer agora o seu marido?
Ernestina inspirou do fundo dos pulmões, torcendo um pano entre
as mãos roliças.
– Eu cá não sei, menina. Tenho medo de que resolva ir trabalhar
para as minas, sabe? Não queria nada que ele se metesse nisso. Tinha um
trabalho tão bom no monte e agora desgraçou‑nos as vidas com os seus
disparates.
– E os vossos filhos?
– Olhe, os mais novos tive de os tirar da escola da Salúquia e tentar
pô‑los na vila! Mas já estamos a meio do ano lectivo, sabe como é. Não os
aceitaram, tinham muita criançada já.
– O doutor Eduardo não os deixou ficar na herdade?
– Ó, não! Pois se tivemos de nos mudar, como podiam continuar a
ir lá à escola?
– Faziam algum arranjo. Eles precisam de instrução! – declarou
Isabel, revoltada.
– Eu sei, menina! Mas o que é que eu posso fazer? Falta‑me a co‑
ragem de ir falar com o doutor, depois de tanta coisa que fez por nós. Seria
pedir‑lhe muito já.
– Não quando se trata do futuro dos seus filhos, Ernestina! Mas não
se preocupe! Eu própria falarei com ele! – disse ela, determinada.

58
Ernestina mirou‑a, os olhos rasos de água.
– Por favor, menina! Não precisa de se incomodar. A menina mal
me conhece! Também… coitados dos pobrezinhos, que futuro poderão
eles ter?!
Ela aproximou‑se da criada, muito serenamente.
– Terei todo o gosto em ajudar. E se o senhor Eduardo recusar, eu
própria me encarregarei de ensinar os seus filhos. Eu era professora lá onde
vivia.
A mulher não pôde conter as lágrimas. Ergueu o olhar para o céu,
benzendo‑se e rezando pela graça de Deus, após o que esticou os braços re‑
chonchudos para a abraçar. Estava‑lhe muito agradecida, nenhum estranho
tinha feito tanto por ela e pelos seus pobres filhos, ficaria a dever‑lhe para o
resto da vida. Nada disso, por favor, peço‑lhe que não fique em dívida para
comigo, fui eu que me ofereci, por favor, pare com isso. Mas a mulher estava
em lágrimas, genuinamente comovida. Não queria que ela a dispensasse da
sua dívida, um dia haveria de fazer pela menina Isabel o bem que a menina
estava a fazer pelos seus miúdos. À outra restou resignar‑se, porque de ou‑
tra forma poderia ofendê‑la e isso era a última coisa que queria fazer.
No domingo, a meio da manhã, António recolheu‑se no escritório,
a escrever as suas cartas, enquanto as mulheres se prepararam para a missa.
Poucos sabiam que ele era ateu, apenas a família e os amigos íntimos, pois
de outro modo arriscar‑se‑ia a ser muito mal visto na sociedade se assu‑
misse publicamente ser contra a Igreja. Ana Maria apavorava‑se com a sua
falta de fé, mas ajudava‑o a ocultá‑la dos outros, sempre disposta a mudar
de conversa, caso se desviasse perigosamente para esse tema, quando se
encontravam entre estranhos.
Isabel observava o seu reflexo na superfície polida do espelho. Fo‑
cou por momentos a cruz pendurada no meio da parede, por cima da cama.
Sempre a persegui‑la, a lembrá‑la da fé que lentamente ela própria abando‑
nava. Ainda assim, colocou um véu sobre os cabelos, acompanhando a mãe
e a irmã à igreja. Desde cedo olhava a religião com um sentido crítico que
muito aborrecia a mãezinha, porque volta e meia a filha punha‑lhe ques‑
tões embaraçosas que ela tinha dificuldade em responder. A culpa era das
visitas que a pequena fazia ao escritório do pai, onde se entretinha a ler as
barbaridades escritas por filósofos ateus, para quem Deus era apenas a cria‑
ção imaginária do Homem. Crescer no seio de uma família dividida entre
um firme ateísmo e uma abnegada religiosidade despoletara em Isabel a
vontade de descobrir quem tinha, afinal, razão: se o pai ou a mãe. Enquanto
crescia, a procura da verdade transformou‑se numa obsessão pouco sau‑
dável. Se por um lado torcia pelo pai, por outro, temia deitar por terra to‑
das as histórias fantásticas aprendidas na catequese, nas quais suportava as

59
suas crenças, o seu respeito pelo divino, o seu pilar de moralidade. Esta luta
tomou tal proporção que chegou a envolver‑se em discussões fervorosas
com o catequista sobre teologia e outros assuntos tabus. Às tantas, o padre
chegou mesmo a pedir a Ana Maria que deixasse de levar a miúda à sua
paróquia. Logo aos treze anos, Isabel concluíra ser tudo uma questão de ar‑
bitrariedade: Deus existe se se quiser que exista. Talvez não tivesse existido
durante a Segunda Guerra Mundial, altura em que ela se recordava de ver a
mãe sair disparada de casa para a Igreja todos os dias, rezar a Deus para que
Portugal não se envolvesse directamente no conflito, enquanto o pai ficava
no escritório, de orelha colada à telefonia, a ouvir os relatos do Fernando
Pessa, na Rádio BBC, a partir de Londres. Isabel ajoelhava‑se à beira da
cama, pedindo aos anjos que não deixassem faltar a comida, em perigo de
escassear devido à especulação, à subida exagerada dos preços e depois ao
racionamento. Deus voltou a aparecer convenientemente no fim da guerra,
mas enquanto os judeus eram chacinados nos campos de concentração a
sua presença nem se tinha feito notar. E o pai citava um dos seus autores fa‑
voritos, tentando dar a Isabel um pouco da sua luz: «Em verdade, os homens
deram a si próprios todo o bem e todo o mal.»
Apesar de tudo, nunca se tornou ateia como o pai. Já não assistia, é
certo, à missa com a mesma devoção de outrora e a imagem de Cristo na
cruz há muito deixara de a emocionar. Pelo contrário, enchia‑a de angústia.
Jesus poderia ter sido apenas um homem inteligente com ambições políti‑
cas. Mereceria ele toda esta devoção? Ela não sabia responder. Talvez a sua
fé estivesse mal direccionada.

Um perfume a cera derretida e a sabão alastrava pela nave da igreja de S.


João Baptista. Num plano mais elevado, derramava‑se a luz baça dos vitrais
sobre o rosto sofrido da imagem de Jesus. O olhar de Isabel vagueou ao
longo do templo e cruzou‑se com o de Eduardo, acabado de entrar com a
família. Ela voltou‑se e fitou fixamente o altar.
Pouco depois, a voz monocórdica do padre ecoou entre o sosse‑
go reverente dos fiéis. O rumor das orações enchia a capela de vozes em
uníssono. Por vezes, Isabel acompanhava, noutras remetia‑se ao silêncio.
Talvez fosse melhor deixar de ir à missa, pois o seu respeito pelo templo era
demasiado grande para o profanar com as suas atribulações. Podia escolher
não acreditar em Deus e, nessa altura, ficaria sozinha, responsável por si
própria, culpada. O certo é que não fazia sentido continuar a ir à Igreja se
a sua fé se dissipara. Esperou pelo fim da liturgia e, respirando de alívio,
seguiu a mãe e a irmã até ao exterior. Invejava‑lhes a consciência tranquila,
o conforto que deviam sentir na certeza de que Deus existia para o melhor e
para o pior. À porta, os conhecidos cumprimentavam‑se. Ana Maria agar‑

60
rou na mão de Inês e as duas foram ao encontro dos Leôncio Teles, como
se tivessem uma coisa muito importante para lhes dizer. A irmã mal con‑
seguia esconder o entusiasmo de reencontrar Pedro. Este correspondia‑lhe,
dedicando‑lhe toda a sua atenção.
Caminharam todos juntos no regresso a casa e Isabel vigiava Eduar-
do com a respiração entrecortada, porque tinha uma missão a cumprir e
isso deixava‑a nervosa, tendo em conta a pessoa que era e o tipo de pedido.
Se deixasse escapar esta oportunidade, talvez nunca mais se voltasse a pro‑
porcionar, no entanto, ele parecia concentrado a conversar com os amigos,
pelo que achou melhor não interrompê‑los. Entretanto, Catarina Carras‑
queira, com quem Isabel travara conhecimento no jantar da dona Ercília,
juntou‑se‑lhe, querendo saber se estava a gostar de Moura.
– Acho que estou aqui há pouco tempo para formar uma opinião
merecedora de crédito. Por enquanto ainda nos estamos a adaptar. A vida
aqui é muito diferente.
– Eu sei! Eu também vivia na capital – contou Catarina. – Quando
o Afonso foi transferido para cá, custou muito separar‑me da minha famí‑
lia, mas vim e fiz boas amizades.
Isabel espreitou a barriga volumosa da jovem e perguntou para
quando era o nascimento do pequeno.
– Março! – respondeu ela, acariciando o ventre. – Quer sentir? Está
a dar pontapés! Fica sempre ansioso ou ansiosa antes do almoço.
Para sua surpresa, Catarina agarrou‑lhe numa das mãos e colo‑
cou‑a sobre o colo da barriga. Isabel corou de embaraço, mas quando sen‑
tiu o chuto fez uma expressão de reconhecimento. Parecia que guardava
uma cobra dentro da barriga e só podia imaginar quão estranho seria ter
um ser vivo a deslizar‑lhe nas entranhas para depois sair dali entre gritos
excruciantes de dor e odores estranhos de hospital. Era essa a recordação
vaga que tinha, pelo menos, do nascimento da irmã. Ainda hoje sentia uma
náusea forte quando se recordava desse episódio. Ao tomar consciência da
presença de Eduardo e Afonso, deu um pulo e recuou, dando os parabéns
ao jovem casal. Ele agradeceu e depositou um beijo carinhoso no rosto da
esposa, cuja pele luzia sob o Sol coado do meio‑dia.
Retomaram então a andadura. Antes que Eduardo se afastasse de‑
masiado, Isabel acelerou a marcha e pôs‑se ao seu lado. Ele reduziu o tama‑
nho das passadas e os dois caminharam lado a lado, em silêncio, por algum
tempo. Isabel reuniu todo o fôlego que conseguiu e disse:
– Eu sei que não tenho nada a ver com o que o senhor faz na sua
propriedade, mas há um assunto que preciso mesmo de discutir consigo.
O modo como as sobrancelhas do homem se alçaram, indicou‑lhe
que estava disposto a ouvi‑la.

61
– Por ironia do destino – continuou ela, mais calma –, a mulher do
camponês que você dispensou no outro dia, veio trabalhar para a nossa casa
e ela contou‑me que devido ao caso do marido, teve de tirar os filhos da
escola da sua herdade.
Pausou a voz, espreitando‑lhe o semblante. Ele continuava atento, à
espera que ela terminasse. Quando ficaram frente a frente, Isabel encarou‑o.
– Gostava de entender porque não deixou as crianças continuarem
na sua escola.
– A Ernestina quis levá‑los com ela, pois tiveram de se mudar para
uma casa que fica a sul da vila, segundo me disseram.
– Compreendo, mas… podiam ter feito algum acordo para eles não
ficarem sem instrução.
– As vagas da escola são para os filhos dos meus empregados.
A partir do momento em que deixam de lá trabalhar…
– Manda‑lhes as crianças embora – completou ela, incisivamente.
– Não! – disse ele, num tom arrastado, evitando revirar os olhos.
– Os pais levam‑nas com eles para onde quer que vão viver! Eu não sou o
Ministério da Educação Nacional!
– Mas o que vai ser destas crianças?
– Não sei.
– Podia deixá‑las lá ficar, pelo menos até ao final do ano lectivo.
– Entretanto já contratei novos trabalhadores, cujos filhos ocupa‑
ram as últimas vagas. Só porque lhes ofereço uma escola, isso não me dá
o direito, muito menos o dever, de controlar o que os meus empregados
fazem com os seus filhos. Cabe a eles decidir sobre isso. Por mais que eu
gostasse de desempenhar o papel de patrão omnipotente, isto é o máximo
que posso fazer por eles.
Isabel suspirou ruidosamente.
– Parece decepcionada! – constatou o homem, com suavidade.
– Estou, sim, mas… Os seus argumentos foram muito convincen‑
tes. Terei de pensar noutra coisa.
– Não é a si que cabe essa responsabilidade.
Ela ergueu a cabeça, muito convicta.
– Sinto‑me no dever de ajudar. Fiz uma promessa e tenciono cum‑
pri‑la. Com licença.
Isabel estava agora convencida de que não podia contar com a be‑
nevolência de um lavrador. No entanto, teve de admitir que ele expusera
o seu ponto vista de maneira bastante persuasiva. Ao reflectir sobre como
resolver o problema, ponderou a hipótese de ela própria ensinar os filhos
de Ernestina. Parecia‑lhe a única solução viável, perante um cenário tão
desanimador.

62
Eduardo ficara parado, a vê‑la desaparecer ao virar da esquina, an‑
tes de também ele entrar na sua casa. Sentira‑se cativado pela determinação
de Isabel, embora a considerasse orgulhosa e arrogante, típica rapariga de
cidade. Uma mulher como ela jamais se adaptaria à vida do campo e muitas
vezes dava por si a indagar porque teria António do Couto Maia resolvido
sair da capital. Ele fora muito vago nas suas explicações, e sempre que por
alguma razão o tema surgia numa conversa, apressava‑se a mudar de as‑
sunto, como que para o evitar. Segundo Joaquim Cunha Cabral que fora
quem lhe dera o seu contacto, era um homem íntegro, merecedor da sua
confiança e muito leal e isso bastara‑lhe para confiar a António o cargo de
administrador, apesar de subsistirem dúvidas quanto às suas verdadeiras
capacidades, facilmente testáveis nos primeiros tempos. Todavia, Eduardo
simpatizara bastante com ele, não só por causa da sua imensa sabedoria,
mas também da sua maneira de estar na vida que muito lhe fazia lembrar
o tio falecido. Na realidade, há muito tempo não se entretinha tanto a con‑
versar com alguém horas a fio, como acontecia com ele, talvez porque, na
realidade, mais ninguém ali se interessava por outras coisas que não fossem
mexericos e picardias provincianas.
A esposa, Ana Maria, achava‑a uma mulher vulgar. Já a Inês, fal‑
tava‑lhe o juízo e o jeito delicado que cada vez mais admirava em Isabel.
E todas as vezes que a via, descobria nela um novo motivo para a observar,
o que o deixava desconcertado, pois aos poucos foi‑lhe detectando caracte‑
rísticas invulgares, as quais não estava habituado a encontrar numa mulher
e que a tornavam atraente e interessante aos seus olhos. O seu viço era, sem
dúvida, encantador e a forma como ela enfrentava meio mundo com a sua
expressão compenetrada, como se tivesse já uma opinião formada sobre
todas as coisas, irritava‑o ao mesmo tempo que o fazia querer conhecê‑la
melhor. A tia apareceu de súbito ao seu lado, querendo saber porque estava
tão silencioso. Ele franziu o sobrolho, sem lhe responder. Ainda demorou
algum tempo a despertar dos seus agitados pensamentos. Estava só aqui a
pensar com os meus botões, disse, por fim.
– Aquele menino é que me está a preocupar – disse ela, apontando
o queixo para o Pedro.
– Sim, eu sei. A Inês Maia…
– Demasiado expansiva para o meu gosto. E o Pedro adora‑a! Ra‑
paz tolo! Com tantas raparigas decentes por aí, foi‑se logo engraçar por
uma estroina.
– Eu falo com ele.
A dona Ercília virou‑se para o sobrinho, com um sorriso de missão
cumprida estampado no rosto.
– Eu sabia que podia contar contigo.

63
Aquele comentário não fora inocente, Eduardo conhecia muito
bem a tia para saber que o seu discurso fora premeditado. Mas como ele
também via com maus olhos o entusiasmo do irmão, não lhe causou ne‑
nhum problema satisfazê‑la. Na verdade, havia qualquer coisa de suspeito
naqueles recém‑chegados, e apesar de nutrir uma grande simpatia por An‑
tónio, preferia evitar um envolvimento mais íntimo com a família. O facto
de virem da sociedade lisboeta, da qual tinha más recordações, promovia
esse sentimento. No entanto, a vontade abalava‑se‑lhe quando, involunta‑
riamente, dava por si a pensar em Isabel.

64
Capítulo VIII

I
ndiferente ao que se passava na casa dos Leôncio Teles, Isabel arrega‑
çou as mangas e pôs‑se a trabalhar. Faltava saber em que classe estava
afinal cada um dos filhos da Ernestina, mas precisava de agir e achou
melhor não perder mais tempo, começando a preparar alguns exercícios e
delineando um plano, somente para ter por onde começar. Entregou‑se de
tal forma ao trabalho que passado uma hora já os pulsos lhe estalavam do‑
lorosamente. Os olhos doíam‑lhe, tinha de pestanejar repetidamente para
conseguir focar as letras. Estas preenchiam páginas e páginas de coisa ne‑
nhuma. O que estava ela a fazer? Que loucura a levara a sentar‑se à secretá‑
ria e a pusera a escrever desenfreadamente como se quisesse preencher um
vazio dentro de si? A responsabilidade não era dela, mas tomara‑a como
sua. Prometera. E a promessa é como um contrato, destinado a dar à pri‑
meira pessoa, a quem a promessa é feita, a confiança de que precisa para se
poder apoiar na segunda, enquanto esta actua em conformidade com o que
ficou acordado entre ambas. A seu ver era um contrato sagrado, portanto
fazia‑lhe confusão que tanta gente gastasse a saliva com promessas para
depois escapulir à responsabilidade de as cumprir, como se o acordo verbal
fosse uma coisa efémera, sem nenhuma obrigação incluída. Já não se dava
valor à palavra de honra. Tinha de ser tudo escrito em papel. A maioria das
pessoas chamaria a isto ingenuidade, mas para ela era uma questão muito
séria e merecedora de um profundo debate. Estaria a tomar a decisão certa?
Só Ernestina lhe poderia responder.
A meio da tarde, António apareceu no quarto. Puxou de uma ca‑
deira, na qual se sentou, com ar contemplativo. Isabel levantou a cabeça,
observando‑o.
– Porque estás a fazer isto? – perguntou‑lhe o pai, interrompendo a
paz que se instalara no quarto, escassamente iluminado.
– Isto o quê?

65
– Tu entendeste‑me. Porquê ajudares estas crianças? Mal conheces
a Ernestina…
– Isso quer dizer que só ajudaria uma pessoa se a conhecesse bem?
Nem parece seu, pai!
– Não era isso que eu queria dizer – rectificou António. – O facto é
que me parece haver um outro objectivo por trás dessa tua decisão.
– Faço isto por necessidade – desabafou, abaixando a cabeça.
A voz soou‑lhe trémula, abafada. Mil coisas lhe surgiam ao mesmo tempo
na cabeça, difíceis de organizar ou de serem expressas em palavras. – Se
continuar aqui, sem fazer nada… Tem sido difícil! O pai trabalha, mas
nós… O que temos mais? A mãe arranja sempre qualquer coisa para fazer
em casa, a Inês entretém‑se como só ela sabe. E eu… que faço eu? Leio li‑
vros o dia todo? Faço croché, coso, como uma boa mulher? Preciso de fazer
algo realmente útil.
– Sim, eu sei… Talvez devesses ter ficado em Lisboa com a tua tia…
– Ó, pai! Eu vim, porque quis – interrompeu‑o ela. – Foi uma esco‑
lha minha. Não estou arrependida, nada disso. Apenas quero encontrar um
novo rumo para mim, só isso.
– Então do que se trata afinal? O que motiva essa tua determinação
toda?
– Não estou a entender. O que mais poderia ser? – inquiriu ela,
enervada.
Ele afagou o queixo, como fazia sempre quando estava prestes a
dizer algo muito sério.
– Eu reparei que tu e o Eduardo não se deram muito bem…
– E depois? Nem todos têm de se dar bem, se tiverem personali‑
dades diferentes, desde que sejam, pelo menos, civilizados! – apressou‑se
Isabel a dizer, acrescentando: – Infelizmente, neste caso, a civilidade de um
deixou muito a desejar.
– Por isso me pergunto, se não terás acolhido estas crianças para o
enfrentares. Eu sei como tu és, filha. És incapaz de resistir a um desafio. Se
te pisam os calcanhares, tens logo de retaliar!
Isabel abriu a boca e voltou a fechá‑la, detida pela mão hirta de
António.
– Tenho a certeza de que és guiada pelos motivos mais nobres e
esses se sobrepõem à tua antipatia pelo Eduardo. Eu sei que é difícil conhe‑
cer alguém de temperamento rígido, aparentemente inflexível, como o dele.
No entanto, queria pedir‑te que tentasses compreender estas pessoas. Elas
são boas, têm também os seus problemas e agem da forma como sabem.
Numa situação como a nossa ou em qualquer outra, aliás, é sempre bom
olhar as coisas sob uma perspectiva diferente.

66
– Como a da violência? É isso, pai? Está‑me a dizer para aceitar a
violência como uma forma legítima de dispensar alguém? Porque foi isso
que ele fez, eu vi com os meus próprios olhos.
– Nada disso! – retorquiu António, fazendo um gesto negativo
com a mão. – Eu soube o que aconteceu. O próprio Eduardo contou‑me
tudo e expressou o seu constrangimento pelo facto de teres assistido a essa
cena triste. Às vezes as pessoas fazem coisas sem pensar, sem tomar uma
consciência imediata dos seus actos.
– Ele não me pareceu nada arrependido! – cortou Isabel. – E a ma‑
neira como me tratou quando me viu a primeira vez? Como se eu fosse um
reles ser humano. E só pediu desculpa muito mais tarde, quando o mal já
estava feito e longe de merecer o meu perdão.
– Sim, é verdade, isso foi um grande mal-entendido. Acredito que
ele tenha ficado embaraçado na altura e preferido desculpar‑se mais tarde
em privado contigo, para não nos deixar a todos pouco à vontade, tendo
acabado de me conhecer. Nesse aspecto, acho que teve algum tacto.
– Ó, pai! Não o defenda! Faz‑me parecer rancorosa e mesquinha!
– Tens todo o direito de te sentir ofendida. Não estou a querer di‑
minuir a tua revolta. Conheço‑o muito pouco, é verdade, mas já estive com
ele algumas horas e considero‑o um homem íntegro, com uma grande res‑
ponsabilidade sobre os ombros e que lhe pesa na juventude. Perdeu as pes‑
soas que mais amava em pouco tempo e ainda assim conseguiu manter a
sanidade mental e sustentar a família.
– A falar assim até parece que o admira! – exclamou ela, mortifi‑
cada.
– Talvez daqui a tempos te possa responder com clareza, mas tenho
por ele um grande respeito, se é isso que queres saber. Tenta vê‑lo com ou‑
tros olhos. Não o julgues tão depressa.
Isabel mordeu os lábios. Levantou‑se e andou de um lado para o
outro, afundando as mãos nos bolsos, incapaz de pronunciar palavra.
– Pensa nisso, filha! Pensa nisso! – murmurou António, preparan‑
do‑se para abandonar o quarto.
– Paizinho…
– Hum? – Ele virou‑se, meio curvado e uma sombra crepuscular
tapou‑lhe metade do rosto. A outra, exposta, contraíra‑se, de expectativa.
– Já faz uma semana que estamos em Moura…
– Eu sei! – disse ele, a voz pesada. – Ainda não estou preparado
para falar. É muito cedo. Quando chegar o momento certo, saberemos.
Resignada, Isabel deixou‑se cair na cama, perdida numa confusão
de sentimentos indistintos. As palavras do pai desassossegaram‑na, porque,
na realidade, já não era capaz de distinguir claramente os motivos que a ti‑

67
nham feito decidir ensinar os filhos da Ernestina. Quanto ao resto, nem pôs
a hipótese de estar errada em relação a Eduardo ou à família Leôncio Teles.
Confiava nas primeiras impressões e até àquele momento não lhes tinham
sido de todo favoráveis.
Após o lanche, a família resolveu dar um passeio no jardim público
da vila. Num passo lânguido, percorreram a rua Serpa Pinto, já recolhida na
sombra. Penetraram noutra rua mais estreita e alcançaram a praça Sacadu‑
ra Cabral, onde ficava o Mercado Municipal. Pelo caminho foram encon‑
trando os habitantes da vila, os homens protegidos por peliças ou capotes
e as mulheres trajadas com os seus melhores vestidos, ainda assim muito
simples e tristonhos. Todos seguiam a mesma rota em direcção ao jardim.
Por fim, chegaram ao Fontanário das Três Bicas, à volta do qual se acoto‑
velavam crianças a brincar com a água gelada, as mães ralhando‑lhes para
não se molharem. Do lado esquerdo do chafariz ficava a Câmara e, no ou‑
tro extremo, as arcadas que assinalavam a entrada para o jardim público.
Passada a primeira arcada, penetraram por um caminho ladrilha‑
do, coroado com um tecto de plantas trepadeiras. A passagem desembocava
num imenso jardim florido, muito bem tratado, onde as famílias passeavam
descontraidamente, cumprimentando‑se uns aos outros e pondo‑se à con‑
versa. Atravessaram toda a extensão do jardim, ansiosos por ver a paisagem
da Serra de Portel que se lhes revelou ao fundo, singela, bordejada de sobrei‑
ros e oliveiras.
As feições de Ana Maria retesaram‑se diante desta visão. Nada da‑
quilo era comparável com a paisagem luxuriante do Minho. «Como podem
achar isto bonito?», murmurava ela, baixinho. Isabel visitara o Minho quan‑
do era muito pequena, pelo que as suas lembranças do lugar eram muito
vagas, mas podia compreender a decepção da mãe. O solo varrido do Alen‑
tejo, polvilhado de árvores dispostas num alinhamento calculado e com
tufos lilases e amarelos de flores aqui e ali, nada tinha de esplendoroso se
comparado com o Norte. No entanto, do ponto alto onde se encontravam,
a vastidão do alcance da vista era soberba. Ali, de pé, à beira da ilha de
Moura, Isabel sentiu a brisa perfumada dos montados bafejar‑lhe o rosto.
Havia beleza, sim. Tinha era de se olhar para ela com os pés bem assentes
no chão.
– Vista espectacular, não é? – comentou uma voz vagamente co‑
nhecida.
Ao volverem, depararam com Horácio Cardoso e a esposa. Trata‑
va‑se de um casal pitoresco, simples e descontraído. O senhor era obeso,
usava um bigode farto sobre os beiços carnudos, entre os quais havia sempre
um charuto aceso a fumegar. A dona Idalina era muito pequenina, mas de
feições graciosas e olhar vivaz. António cumprimentou‑os calorosamente.

68
Ficaram durante algum tempo a apreciar a vista, depois prosseguiram todos
juntos pelo jardim até chegarem a um coreto, à volta do qual homens em
colete dispunham várias cadeiras em filas.
– O que se vai acontecer aqui?
– Todos os domingos à tarde temos uma banda filarmónica a tocar
no jardim! – contou Horácio. – É muito agradável!
Estavam todos entretidos a conversar, quando apareceu uma ou‑
tra família, com quem Horácio e dona Idalina não pareciam simpatizar,
embora os tivessem saudado. Tratava‑se dos Távoras, proprietários de uma
conhecida herdade das cercanias de Moura. O senhor Gregório Távora era
o dono do banco local e Amanda a sua esposa. Tinham três filhos, todos
eles já adultos. O primogénito, de quase trinta anos, ainda era solteiro, mas
Francisca e Margarida eram casadas e uma delas trazia os seus filhos, duas
criaturas de pequena estatura, vestidas a preceito, com os colarinhos aboto‑
ados até ao pescoço e as carinhas vermelhuscas, como se não conseguissem
respirar debaixo daquela roupa toda apertada.
Sucedeu‑se um corrupio de apresentações e o travar de novos co‑
nhecimentos. Gregório Filho cumprimentava as irmãs Maia, cheio de ce‑
rimónias. Os olhos grandes e sobressaídos atribuíam uma expressão astuta
ao seu rosto. As íris rebrilhavam, como se conhecer cada um deles fosse
uma descoberta maravilhosa e motivo de entretenimento para as sema‑
nas seguintes. Tinha as orelhas grandes e o pescoço comprido, como o de
uma avestruz, constantemente atenta, à escuta. Isto incomodou Isabel que a
princípio não gostou muito dele, talvez devido às suas maneiras exageradas,
tão ansioso que parecia em querer agradar a toda a gente. Para seu azar, foi
a ela que ele dirigiu as suas atenções.
– A vila ganhou muito com a vossa chegada. Nunca vi tanta beleza
chegar de uma só vez a este cantinho de Portugal! – disse ele, com malícia.
Inês reprimiu uma risada ao lado de Isabel que fez um esforço para
se conter.
– A vossa candura só é abafada pela das minhas irmãs.
A esta altura já Inês soltava um soluço ruidoso, incapaz de resistir
às gargalhadas que se lhe acumulavam no peito. Na verdade, Francisca e
Margarida não eram muito bonitas. Ao contrário do irmão, as suas cabeças
quadradas enterravam‑se nos ombros hirtos. Tinham ambas os dentes da
frente encavalitados e a pele do rosto excessivamente sardenta. Isabel, con‑
tudo, ao contrário da irmã, fez por acreditar na honestidade do seu elogio.
O melhor a fazer era seguir o conselho do pai e deixar‑se ir na correnteza,
em vez de sujeitar cada novo conhecido aos seus juízos escrutinadores. Afi‑
nal de contas, encontrava‑se num meio desconhecido, com pessoas bem
diferentes das que estava habituada a conhecer, corria sério risco de o seu

69
discernimento ser afectado pelo preconceito. E essa era uma fraqueza que
ela jamais reconheceria como sua.
– Conhecia a vila? – perguntou‑lhe Gregório.
– Só de nome…
– Pitoresca, não é?
Ela fez que sim com a cabeça, aproveitando para lhe perguntar se
sempre vivera em Moura ao que ele respondeu que não, apenas fora para
ali poucos anos antes.
– A minha mãe quis que eu fosse educado em Lisboa. Assim que
acabei os estudos, vim para cá e agora ajudo‑os a administrar a propriedade.
Produzimos várias coisas e temos vindo a crescer. Um dia poderei mostrar‑lha
se tiver curiosidade em conhecer uma das maiores herdades do Alentejo.
– Há pouco tempo visitei a Salúquia…
– Ah, sim, pois claro, o seu pai está lá a trabalhar! E conhece bem o
proprietário? – perguntou ele, com estranha ansiedade.
– Tanto quanto me foi possível conhecer em uma semana.
Ele sorriu e pôs o chapéu na cabeça, começando a andar.
– Sabe, já tentei fazer negócio com ele, mas o homem não quis. É
demasiado orgulhoso para se dar ao luxo de me ouvir. Falta‑lhe visão, se
me entende. Mas o Eduardo sempre foi um rufia! – continuou ele, fazendo
um trejeito com a boca. – Andámos juntos no colégio em Lisboa e quando
se juntava aos amigos, entretinha‑se a aterrorizar os colegas, incluindo eu.
Sofri muito nas suas mãos!
– Claro – soou uma voz tranquila, logo atrás. – Eras uma raposa
ardilosa! Aliás, continuas a ser. Depois de tantos anos, ainda não perdeste
a manha.
André Toledo, o médico, juntava‑se a eles. Acenou cortesmente a
Isabel e deitou um olhar desafiador a Gregório que se riu aos soluços.
– E o doutor nunca perde o sentido de humor!
– Tu és sempre motivo para uma boa risada, Távora!
– Estava aqui a contar à menina Isabel dos nossos tempos de rapa‑
zes. Ah! Confessa lá que também fazias parte desse grupo de rufiões! – disse
Gregório, dando‑lhe uma leve palmada no ombro. – Quase foram expulsos
do colégio. Não fossem os paizinhos e os tios influentes, nem teriam passa‑
do do sexto ano.
– Pois, porque com a tua ajuda, nem sequer tínhamos entrado no
colégio!
– Cada um escreve o seu destino, doutor! Eu apenas me limitava a
exercer o meu papel de bom cidadão.
– Tal como agora, não é verdade? E um bom cidadão é aquele que
está ao serviço do Estado!

70
– Vai dizer que discorda de mim? – inquiriu Gregório, cujo sem‑
blante tomara uma expressão sombria.
O ar pareceu espessar‑se em torno dos dois homens que se entreo‑
lhavam num desafio reprimido. Nesse instante, as feições de Gregório rete‑
saram‑se, após o que se despediu, afastando‑se de um modo aparatoso.
– Já estava a queixar‑se dos tempos do liceu, aposto! – disse Eduar‑
do, ao juntar-se-lhes.
André gracejou.
– Aquele tipo tem memória de elefante. É rancoroso como tudo!
Não vai descansar enquanto não se tiver vingado à altura. Sempre viveu na
sombra do pai e agora tudo faz para se destacar. É um pobre coitado.
– A vossa piedade só o fará sentir‑se mais humilhado – precipi‑
tou‑se Isabel. – Os homens em geral não gostam de quem tenha pena deles,
porque fá‑los parecer fracos. E para aqueles que o são, de facto, e têm cons‑
ciência disso, pior ainda. Por isso talvez ele merecesse um pouco mais de
compreensão da vossa parte e menos hostilidade.
André tomou as suas palavras em consideração, enquanto Eduardo
se deixava fascinar com a facilidade com que ela discursava sobre as coisas,
por menor que fosse o seu conhecimento acerca delas. A tia entretanto apa‑
receu, enlaçando o braço do sobrinho.
– Ora, boa tarde, menina Isabel! Ouvi dizer que vai ensinar os fi‑
lhos da Ernestina.
Eduardo fitou‑a, surpreendido.
– É o mínimo que posso fazer – retorquiu Isabel, devolvendo o
olhar mordaz a dona Ercília. – Pelo menos até arranjarem uma vaga na
escola da vila.
– Tudo o que a distrair das lides da casa ou do resto, já é muito bom.
Luta com unhas e dentes para manter a sua profissão e desleixa‑se doutras
coisas mais importantes, como aprender a gerir uma casa. Você será uma
esposa muito pouco útil, realmente.
Os ombros de Isabel descaíram.
– Não vejo em que é que isso possa ser relevante na minha forma‑
ção como mulher!
– Uma rapariga prendada sabe fazer de tudo um pouco! E isso é
de relevância suprema! Um homem nunca se interessará por você se não
se mostrar apta para a vida doméstica. Mas já percebi que o casamento é a
última coisa a passar‑lhe pela cabeça. Prefere ser como aquelas feministas
empertigadas que acham possível sobreviver sem os homens. Se a humani‑
dade dependesse dessas mulheres estávamos todos condenados.
Isabel arfou, indignada. Antes que pudesse responder, a banda filar‑
mónica, que já se encontrava no coreto a preparar os instrumentos, anun‑

71
ciou o início do concerto. Assim, afastou‑se e reuniu‑se aos pais e irmã,
sentando‑se nas filas da frente, onde esperava não ter de tornar a cruzar a
vista com a insuportável mulher. Praticamente a acusara de ser uma espécie
de feminista radical, como se as suas motivações fossem puramente contes‑
tatárias, sem causa verdadeira. Ora esta, era só o que lhe faltava! Nunca vira
tanta ignorância num só lugar! O concerto então começou, arrepiando‑lhe
os braços, de agradável surpresa. Ao seu lado, Ana Maria dava um pulo na
cadeira, surpreendida com o ritmo alegre da música. Inês tremelicava de
excitação, voltando‑se constantemente de costas, à procura de Pedro, pou‑
co se incomodando com os olhares reprovadores da irmã.
Isabel também não resistiu a espreitar Gregório, cujo olhar volta e
meia se fixava noutra cadeira, um pouco atrás da sua. O ressentimento que
sentia contra Eduardo era indisfarçável. Porém, se de um lado havia uma
vontade constante de desafio e provocação, do outro predominava uma in‑
diferença insultuosa que só excitava o rival. Gregório pareceu contrafeito
com a tranquilidade de Eduardo e voltou‑se de novo para a frente. Trocou
um cumprimento com Isabel que acabou por assistir ao concerto, a ferver
de curiosidade sobre o que motivaria tanta hostilidade.
No fim, a banda foi brindada com uma explosão de aplausos calo‑
rosos. Correu um burburinho pela zona das cadeiras e todos se levantaram,
satisfeitos com o espectáculo. António retomou a conversa com o senhor
Horácio que o apresentou a um indivíduo sisudo, bem vestido, de farto bi‑
gode cinzento, contrastando com o pouco cabelo que lhe restava na careca
saliente. Era o Presidente da Câmara de Moura. Ao seu lado encontrava‑se
a esposa e um outro senhor, o tenente Mendonça, da Guarda Nacional Re‑
publicana, um tipo alto, desengonçado, de queixo proeminente.
– Que tal está a achar a vila de Moura?
– A população é amistosa e a comida excelente! – respondeu o pai,
deleitado.
Todos riram em uníssono, satisfeitos com os elogios rasgados de
António, pois não havia nada melhor do que ouvir um lisboeta a enaltecer
as virtudes do Baixo Alentejo.
Ao olhar em volta, Isabel avistou Inês a esgueirar‑se para o pé de
Pedro, atraída para ele como um íman. Parecia conhecê‑lo há anos, con‑
versando e rindo com todos os seus amigos, sem qualquer cerimónia. Isa‑
bel era mais desconfiada e introspectiva, pelo que resolveu permanecer no
seu canto, entretida a observar e a participar ocasionalmente nas conver‑
sas. Além disso, queria manter‑se a uma certa distância dos Leôncio Te‑
les, ocupados a cumprimentar outras famílias. Porém, pouco depois eles
aproximaram‑se e não pôde evitar que se lhes juntassem. Por sorte, vinham
acompanhados pelo casal jovem.

72
– É verdade que era professora lá em Lisboa? – perguntou Catari‑
na.
Isabel confirmou com um aceno de cabeça.
– Eu estava a estudar Biologia na Faculdade de Ciências. Foi num
baile de final de ano que conheci o Afonso. Depois, quando ficámos noivos,
deixei o curso.
– Porquê?! – perguntou Isabel, horrorizada. Catarina mirou-a, sur‑
presa com o modo contundente como reagira. Ela tossicou, embaraçada, e
acrescentou: – Quero dizer… Pelo modo como falou, fiquei com a ideia de
que desistiu de completar os estudos por causa do noivado.
– Exacto! – confirmou Catarina, agravando o constrangimento da
outra. – Em breve iria casar e depois ter filhos. Como poderia conciliar a
maternidade com uma profissão? Não, não. Jamais sacrificaria o bem‑estar
dos meus filhos em prol de uma carreira! Quem fica a cuidar das crianças
enquanto a mulher está fora de casa? Uma ama qualquer que mal conhece
os valores da família? Não! Nem pensar! A minha mãe era dona de casa
e cuidou de mim e das minhas irmãs desde que nascemos. Fomos muito
felizes! Quero proporcionar essa mesma estabilidade aos meus filhos.
Isabel ia argumentar, mas conteve‑se. Catarina expressara‑se com
uma certeza que a deixou, de certa forma, amargurada. Pois se toda a vida
lutara a favor da libertação da mulher da sua condição exclusiva de dona
de casa, agora aparecia diante de si alguém, pouco mais velha do que ela, a
escolher a vida doméstica, de livre e espontânea vontade.
– Tenho a certeza de que será muito feliz – acabou por dizer. – E
que vai ser uma boa mãe!
O ar tranquilo de Catarina esmoreceu‑lhe a vontade de a censurar,
embora as suas convicções permanecessem inalteradas.
Chegaram a casa pouco depois, com a perspectiva de um novo jan‑
tar, desta vez na residência da dona Idalina, lá para o final da semana. Ana
Maria estava entusiasmadíssima. Achava a senhora um poço de afabilida‑
de, nada parecida com a matriarca dos Leôncio Teles. Parecia‑lhe extra‑
ordinário serem amigas de longa data, pois se tinham personalidades tão
diferentes. A dona Idalina devia estar muito enganada a seu respeito.
– Já se conhecem há muitos anos – disse o pai, pacientemente.
– Tempo suficiente para fazer sobressair os defeitos de cada uma. A dona
Idalina terá aprendido a lidar com o génio da amiga e a não levar a peito
os seus comentários. Atrevo‑me mesmo a dizer que a dona Ercília é mais
branda com ela do que com a maioria dos seus amigos. Talvez a sua nature‑
za afectuosa se desperte apenas entre os mais íntimos.
– Natureza afectuosa! – escarneceu a esposa. Depois prometeu:
– Se aquela mulher for alguma vez afectuosa com alguém que eu conheça,

73
dar‑lhe‑ei o benefício da dúvida. Até lá, estou convicta de que é a pessoa
mais desagradável que alguma vez conheci.
– Ela é bastante carinhosa com o Pedro! – apontou Inês, com ener‑
gia.
Ana Maria encolheu os ombros.
– Só se fosse um monstro é que não sentiria afeição pelos sobri‑
nhos, tendo‑os criado desde pequenos.
Inês passeou pela sala, suspirando ruidosamente.
– Pai, porque não instala um telefone? Estou aborrecida. Queria
falar com os meus amigos de Lisboa.
– Preferia que não os contactasses, pelo menos por enquanto.
Hei‑de instalar um só para ser usado em caso de urgência ou entre os nos‑
sos conhecidos daqui. Não quero contactos com Lisboa.
– O pai está a ser um tirano – queixou‑se a rapariga, amuada.
– Antes isso do que outra coisa. Detestaria ser chamado de «con‑
descendente» ou «inconstante». Portanto, de nada vale gastares os teus
amuos comigo.

À noite, Isabel estendeu‑se na cama a ler um livro, enquanto Inês canta‑


rolava no quarto ao lado. Depois irrompeu entre os reposteiros de repes
vermelho que separavam as duas divisões e saltou para cima do colchão,
de olhos fitos na irmã. Ficaram assim, em silêncio, durante vários minutos.
Isabel fechou o livro e fez‑lhe uma careta.
– Acho que estás a ficar demasiado entusiasmada com esse Pedro.
Mal o conheces. Não fazemos ideia de como ele é de verdade e pelo que
pude concluir estas pessoas não são as mais acessíveis do mundo. Têm uma
maneira de pensar muito diferente da nossa.
– Eu gosto dele! – declarou Inês, num tom de voz profundo. – Por
favor, não faças essa cara. Será que não és capaz de confiar na minha capa‑
cidade de avaliar as pessoas? Tenho a certeza de que o Pedro é boa pessoa.
De qualquer maneira, porque haveria ele de passar por bonzinho, estando
entre velhos conhecidos que facilmente o desmascarariam? Parece‑me um
esforço demasiado perverso e que não tem nada a ver com o que eu já co‑
nheço dele. Acho‑o maravilhoso. Nunca me senti assim por ninguém.
– Já ouvi isso duas ou três vezes!
– Mas agora é verdade! Acredita em mim! Às vezes parece que
vou explodir de felicidade. Tu fazes essas caretas porque nunca te apaixo‑
naste.
– Ora! – exclamou Isabel, reprimindo uma gargalhada. – Que sabes
tu disso?
Inês encostou‑se à parede, inclinando a cabeça para trás. Sorriu,

74
com os olhos entreabertos de sonho, enquanto descrevia o seu conceito
de amor, qual poema rebuscado das muitas histórias de cordel que lera na
adolescência, onde não faltavam os adjectivos viscerais, o sentimento puro,
o flagelo dos desencontros, a transcendência das almas siamesas que se re‑
conhecem século após século, e, por fim, o fatalismo em que os amantes
caíam, na busca da felicidade, ao toque da última badalada. Aquela pintura
enfática do que era para ela o amor assustou Isabel. Um laivo de loucura
cintilou‑lhe nas pupilas dilatadas, e o rosto enrubescia. Parecia que o espí‑
rito, em estado de êxtase total, lhe ia sair pelos poros. Louca! Pareces uma
louca a falar assim!
– Mas paixão é loucura! – clamou Inês, quase sem fôlego.
– Eu não vejo as coisas assim. As pessoas amam de maneiras dife‑
rentes e isso não significa que umas amem mais ou menos do que outras.
Apenas o expressam de maneira diferente. O importante é senti‑lo de ver‑
dade e ser‑se honesto consigo próprio.
– Foi por isso que recusaste o Ricardo?
Fez‑se silêncio. Isabel susteve a respiração, apanhada de surpresa
pela pergunta.
– Então é verdade, ele declarou‑se! – deduziu a outra. – Ora, eu
reparei logo nas vossas caras sérias quando eu e a mãe chegámos a casa na
véspera de virmos para cá. O Ricardo estava tão abalado que nem conse‑
guiu articular uma palavra. E tu! Se te tivesses visto ao espelho…
Durante algum tempo apenas se ouviu o ciciar do petromax. A luz
tinha vindo abaixo pelo que foi necessário acender o candeeiro a petróleo
para enganar a escuridão cerrada. Não sabiam se estas falhas eram frequen‑
tes ou não, mas o facto é que os candeeiros lá estavam enfiados na des‑
pensa, com sinais de uso frequente, à beira da prateleira. Por fim, as duas
deitaram‑se lado a lado, ensimesmadas. Isabel mirou o patamar e o alçapão
veio‑lhe de novo à memória. Olhou a irmã, cujas pálpebras descaíam len‑
tamente sobre os olhos, e perguntou‑lhe se já tinha reparado na portinhola
do sótão.
– Sim, claro. O pai disse para ignorá‑lo. É o que eu tenho feito.
– Custa‑me saber que temos tanto espaço lá em cima e não pode‑
mos aproveitá‑lo. Não que me esteja a queixar. O facto é que a casa é peque‑
na. Talvez o sótão nos possa ser útil.
Inês fitou‑a, cheia de intensidade.
– Achas mesmo que o sótão está vazio?
– Talvez não – admitiu ela.
– Deve estar cheio de velharias inúteis – conjecturou a irmã, após
soltar um longo bocejo. – Um dia havemos de ir lá acima espreitar, quando
os pais não estiverem em casa. Se formos cuidadosas, ninguém há‑de des‑

75
cobrir. Quem sabe se não tropeçamos num tesouro valiosíssimo ou num
segredo tenebroso acerca dos Leôncio Teles. Isso então confirmaria de uma
vez por todas a tua má impressão sobre eles. Seria a minha desgraça…

76
Capítulo IX

D
e manhã cedo, Isabel deu a boa nova a Ernestina. Encarregar‑se‑ia
de dar aulas aos seus filhos se ela assim o permitisse. Nem foi pre‑
ciso dizer mais nada. A empregada desfez‑se em agradecimentos,
com os olhos perlados de lágrimas. Mas apesar de tanta alegria, persistia‑lhe
no rosto uma expressão de angústia que intrigou Isabel. Afinal, o marido, o
João Mota, estava em dificuldades desde que fora despedido e parecia não
haver solução possível para o seu problema.
– Por causa da má fama que ganhou com esta história toda, agora
ninguém lhe quer dar emprego – contou ela, pesarosa. – E depois passa o
dia a vagabundar por aí, perdido nas estevas, a jurar vingança e a meter‑se
na bebida… Estou tão preocupada! Tenho medo que se meta em sarilhos!
O meu homem teria salvação se enfiasse algum juízo naquela cabeça oca.
– Que sabe ele fazer?
A mulher coçou a testa e terminou a sua breve meditação com um
suspiro.
– Ele só conhece a vida do campo! Nunca aprendeu a fazer mais
nada, nem sequer a ler e a escrever como deve ser. Sabe umas letras e fazer
umas contitas simples e fica‑se por aí. Ele era o mais velho dos irmãos, teve
de deixar a escola cedo para ajudar o pai na lavoura. Chegámos a pensar em
abrir uma venda aqui há muitos anos, quando a vida estava melhor, mas
como nos faltava a escola, tivemos de desistir.
– Estou a ver. É uma pena.
A empregada pegou num pano seco e limpou a loiça. Os seus de‑
dos roliços, lapidados pelos anos de trabalho doméstico, pegavam nos pra‑
tos com graciosidade e arrumavam‑nos uns sobre os outros no armário.
Tratava‑se de um acto corriqueiro, como outro qualquer, mas que fascinou
Isabel, pelo cuidado com que ela dedicava o seu tempo a deixar tudo limpo
e perfumado. A voz abatida da empregada então despertou‑a.

77
– Nós os pobres não nos podemos dar ao luxo de sonhar. Porque
se nos atrevemos a tirar os pés do chão, corremos o risco de ser apanhados
pelo pescoço. Muita gente foi para a cidade à procura de uma vida melhor.
Eu, se não me faltasse a coragem, também abalava daqui. Mas oiço falar
em tanta coisa má. A cidade grande mete‑me medo. Vou ficar aqui até
morrer!
Isabel deixou‑a falar. Ernestina tivera uma infância difícil, marcada
pela instabilidade da vida no campo, sujeita à vontade dos ricos sobre os
pobres, às quezílias entre trabalhador e patrão, das quais raramente o pri‑
meiro saía vencedor. A família vivia da agricultura, desde quando ela não
se lembrava, como aliás acontecia por todo o país, de norte a sul. Um dos
irmãos tornara‑se padre. Era o orgulho da família, pois com a ajuda de um
benfeitor prosseguira os estudos e agora estava numa paróquia, no Norte.
O segundo irmão morrera cedo, de tuberculose. A irmã trabalhava no
monte da Salúquia e o irmão mais novo estava na tropa, já não recebia no‑
tícias dele há muito tempo. O pai havia falecido um ano antes e a mãe era
cozinheira na residência da dona Ercília, ao mesmo tempo que ajudava a
filha a cuidar dos netos.

Ao final da manhã, Ana Maria retornou chocadíssima das compras, mas


Inês ria‑se a bandeiras despregadas.
– Dois homens a lutar por causa de uma mula! Que piada! E de‑
pois a mula fugiu e tiveram de correr atrás dela estrada abaixo! Uma mula!
Vejam só! – contou ela, enquanto se deixava cair numa cadeira, hilariante.
– Ainda se fosse um rolls‑royce!
Desorientada, Ernestina olhava para elas, esforçando‑se por
acompanhar a história, embora não percebesse qual era a piada. Perder
uma mula era um assunto sério e o escárnio da rapariga começou a pare‑
cer‑lhe ofensivo. Isabel achou por bem refrear os ânimos da irmã e mudar
de assunto.
– A mãezinha encontrou os tecidos para fazer as colchas novas?
– Sim – respondeu ela, enterrando as mãos delgadas no saco, de
onde tirou três amostras de tecido, às quais deitou um olhar pouco satisfei‑
to. – Não havia a variedade que há na capital, mas servem. Hei‑de perguntar
à dona Ercília onde arranjou aqueles lindos reposteiros, se tiver a bondade
de me responder. Por enquanto, estes terão de servir.
Na terça‑feira, Isabel recebeu em casa, logo pela alvorada, os qua‑
tro filhos da Ernestina, todos de tenra idade. A mais nova, a Rita, tinha
seis anos e a mais velha, a Francisca, catorze. Os do meio eram o Jorge, de
doze, e o Manuel, com nove. Eram crianças franzinas, de olhos escuros,
redondos, os rostos afilados, emoldurados por cabelos pretos escorridos.

78
Embora intimidados por se encontrarem num ambiente estranho, admi‑
raram a casa, as suas cabeças girando em várias direcções, a absorver tudo
o que viam. Isabel ofereceu‑lhes um pequeno‑almoço bem composto que
lhes confortou as barrigas e os deixou à vontade.
Ana Maria, que os olhava de viés, permaneceu a manhã inteira na
sala de estar, evitando a cozinha, onde Isabel deu a primeira aula. As crian‑
ças eram tímidas, educadas e curiosas, mas também eram desconfiadas, e
distraíam‑se com facilidade. Daí a pouco os mais novos estavam a provo‑
car‑se uns aos outros, espetando‑se com os lápis, querendo aprender a fazer
aviõezinhos de papel como fazia o senhor Martinho. Quando ela conseguia
captar‑lhes a atenção, Manuel até dizia que quando crescesse queria ser mé‑
dico, mas Jorge já não parecia tão interessado.
– Estudar para quê? – disse ele, cruzando os braços.
Isabel emudeceu, sem saber o que dizer.
– Não há nada que gostasses de ser?
– Não – respondeu ele, num tom azedo. Os seus lábios comprimi‑
ram‑se num beiço amuado, depois lá disse: – Talvez jogador de futebol!
– Gostas muito de jogar, é?
Ele anuiu com a cabeça.
– Mas sabes – continuou ela, com uma ideia a desenhar‑se‑lhe na
mente –, para se ser um bom jogador tem de se ter cabeça e para se ter uma
boa cabeça é preciso estudar.
Ele sorriu mordazmente.
– Que eu saiba para se marcar um golo é só correr com a bola de
um lado para o outro, desviar‑se dos adversários e atirá‑la para o fundo da
baliza. Não tem nada de complicado nisso.
– Pois aí é que te enganas! Quantos golos costumas marcar em cada
jogo?
– Pelo menos um! Às vezes…
– Se fosse assim tão simples marcarias muitos de uma vez. Um trei‑
nador combina estratégias com os seus jogadores para derrotar a equipa
adversária e nem sempre se trata de marcar mais golos, mas de impedir que
os outros marquem na nossa baliza. E para isso é preciso estudar as equipas
com quem se vai jogar para conhecer as suas fraquezas e os seus pontos
fortes!
O rapaz olhou‑a, espantado. Ali estava uma mulher a falar de fute‑
bol como se fosse experiente na matéria. Convencido, Jorge pegou no lápis
e começou a fazer os exercícios. Isabel suspirou, de alívio. Passara a adoles‑
cência inteira a ouvir os primos a falar de futebol. Como nunca se interes‑
sara muito por bonecas, passara a entrar nos debates dos primos, o que lhe
valeu o título de «Maria Futebolina», a rapariga que sabia mais de futebol

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do que todos os rapazes juntos. Em criança ostentara este título com imen‑
so orgulho até a idade despertar a sua feminilidade e a alcunha passar a ser
um empecilho à sua afirmação como rapariga, obstáculo que rapidamente
foi ultrapassado assim que o peito e as ancas tomaram forma, e se tornou
impossível para qualquer rapaz estar ao pé dela sem que os olhares descaís‑
sem para as suas formas tão tentadoramente curvilíneas.
O resto da semana passou a grande velocidade. Voltar a ensinar
encheu Isabel de vigor e esperança. À mãe desagradava‑lhe imenso receber
os pequenos todos os dias, pois impediam‑na de se movimentar à vonta‑
de pela casa. À noite, queixou‑se a António o quanto isso a incomodava e
não se coibiu de salientar que Ernestina devia ter recusado educadamente
a oferta de Isabel, pois se era de bom‑tom a filha fazê‑la, mesmo conhecen‑
do-a há tão pouco tempo, fazia parte do costume declinar.
– Não me ofereci por mera boa educação! – replicou Isabel, irritada.
– Uma pessoa não precisa de fazer promessas, se não tenciona cumpri‑las.
Essa mania de se oferecer para ajudar quando não pretende fazê‑lo é repug‑
nante. Jamais faria uma coisa dessas!
António subscreveu as palavras da filha e o assunto morreu ali, pelo
menos por alguns minutos, porque logo de seguida Ana Maria desenterrou
outras razões para as aulas em casa lhe serem tão inconvenientes.
– O que vão dizer as pessoas?
– Desde quando a mãe se interessa pelo que estas pessoas dizem?
– Nós vivemos numa comunidade pequena. Aqui tudo se sabe,
tudo se comenta! Vocês nem fazem ideia do que ouvimos no mercado hoje
de manhã! Ficariam com os cabelos em pé!
Como ninguém se pronunciou, Ana Maria sentiu‑se encorajada a
continuar. Aparentemente, o vereador da câmara, um tal de senhor Chaves,
mantinha relações extraconjugais com a mulher do farmacêutico.
– E este – prosseguiu ela, escandalizada –, acreditando no «diz que
disse», não fez mais nada, pegou na caçadeira e foi atrás do vereador! An‑
dou aos tiros a perseguir o homem até a polícia se resolver a fazer alguma
coisa. Entretanto, parece que o vereador foi atingido no traseiro e levado
para o hospital!
Inês ria‑se baixinho, com a mão sobre a boca. Foi difícil para todos
reprimir as gargalhadas, porque o rosto da mãe tomava um arco‑íris de
cores, enquanto contava a história. Ficara de tal modo mortificada que já os
imaginava a eles envolvidos num acontecimento igualmente aparatoso.
– Acho que não precisas de te preocupar com isso – disse o pai,
dobrando o jornal e tirando os óculos da cana-do-nariz. – Podemos contar
com o teu excesso de zelo para nos salvar de uma aventura desse tipo. Por
mim, não tenho qualquer desejo de me envolver com a mulher de nenhum

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dos nossos novos conhecidos e tu, se te encantares pelo vereador ou pelo
presidente da câmara ou seja lá quem for, asseguro‑te desde já, minha que‑
rida esposa, que detesto armas de fogo. E vocês, filhas, qualquer atrapalha‑
ção em que se envolvam, já sabem a quem recorrer, pois a vossa mãe é a
discrição em pessoa.
Os olhos piscos de Ana Maria arredondaram de despeito. António
soergueu‑se com um pulo rápido e foi para junto da telefonia. Isabel nunca
o vira tão irritado com a mãe que emudeceu, cruzando as pernas, e baloi‑
çando‑as vigorosamente enquanto descarregava a frustração na malha.

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