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Jéssica Malvestuto
Copyright © 2021 de Jéssica Malvestuto
Audre Lorde
Contos
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- Aynne! Aynne! - Miranda parecia exultante quando entrou no
quarto da irmã que lia sem muita atenção. - Você... Ah irmã! O que
eu faria sem você?
A mais velha arregalou os olhos quando - com risco de
tropeçar na própria camisola - ela se jogou nos seus braços e deu
beijos por todo seu rosto. Diante de sua surpresa simplesmente se
deitou ao lado dela e deu uma gargalhada infantil olhando para o
teto. Os pés se agitando por sobre as cobertas.
- Sem mim... - disse deixando o livro de lado certa que não
teria mais sossego para ler diante da áurea de excitação que tomara
Miranda. - Você inventaria uma gravidez sozinha, é claro.
- Ah Aynne! - voltou a rir e suspirou. - Mas sabe... Eu beijei
Anthony uma vez. Acha que posso mesmo...
- Miranda... Não é assim que... - ela negou sorrindo diante de
sua inocência. - Não importa. Você descobrirá logo, eu creio.
- Minha irmã, eu juro de todo o meu coração... - disse
pegando em suas mãos com agitação e chamando seu olhar. - Não
importa quem escolha para matrimônio, eu farei de tudo para que
tenha seu final feliz em retribuição ao que fez por mim.
O rosto belo de Lady Marvie traiu seus pensamentos. Aquele
sorriso doce e ao mesmo tempo sensual passou pela sua mente
como um clarão sem pedir licença.
- Essa promessa pode ser mais perigosa do que aparenta,
meu bem. - advertiu mesmo diante de sua incompreensão que não
tardou a vir. - Mas você poderia me entreter com uma fofoca...
A menção da palavra já fez Miranda se agitar com
empolgação. Embora fosse inofensiva, ela adorava tagarelar sobre a
vida alheia. Quem poderia culpá-la? Era afinal, um dos poucos
divertimentos toleráveis para uma dama bem nascida.
- O que soube de Lady Marvie? - perguntou com um sorriso.
Seus olhos se iluminaram como sempre quando tinha uma
boa história para contar.
- Dizem que passou os últimos anos em um convento e que
essa foi a última tentativa do falecido marquês de endireitá-la. - disse
em sussurros, ainda que estivessem sozinhas e já fosse tarde da
noite. - Mas como sabe o homem morreu em circunstâncias um tanto
obscuras e o irmão a tirou de lá.
- As mulheres disseram que ela estava doente e por isso teve
que ir ao convento. - Aynne parecia ainda mais curiosa acerca da
"doença" de Lady Marvie já que fora acusada de padecer do mesmo
mal. - Você ouviu o que ela tem?
Para sua decepção, negou com a cabeça.
- Não me disseram nada. - Deu um sorriso. - Mas eu soube
que foi Madame Treit que fez aquela roupa obscena para ela. - Deu
uma mordida em seus lábios como quem armava algo. - Quem sabe
não descobrimos alguma coisa quando formos à costureira amanhã?
A perspectiva fez Aynne sorrir.
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Palavras têm um poder extraordinário, porque antes que se
dessem conta o encontro estranho na costureira havia se convertido
em um chá de agradecimento.
- Eu peço desculpas pela curiosidade dos criados. - disse a
Lady após uma das serviçais quase derramar chá na mesa por estar
olhando para Aynne. - O marquês não costumava receber muitas
visitas e eu voltei a pouco para cá.
O fato dela não ter se referido ao falecido nobre como "pai"
não passou despercebido a Aynne. Havia uma frieza distante na bela
morena quando se referia a ele. Escondida sob uma boa postura e
um vestido que não parecia pertencer a ela. Embora o modelo verde
claro modelasse seu corpo à perfeição, parecia comum demais.
Muito diferente do que usará no baile de abertura.
- Desculpe, Lady Marvie. - disse Miranda com semblante
entristecido. - Creio que não lhe demos os pêsames. Sinto pelo seu
pai.
Ela deu um sorriso sincero, porém com um toque de tristeza
que só a mais velha das irmãs pôde identificar.
- Podem me chamar de Jaqueline. - limitou-se a responder. -
Por que não toca algo para nos animar, Srta. Fellus? - tentou
direcionar a conversa para algo mais alegre. - Soube que é uma
exímia pianista e quem sabe quanto tempo terá depois que se casar
para momentos como esse?
A menção das núpcias deixou a irmã subitamente animada.
Nada lhe fazia mais feliz do que se lembrar que muito em breve seria
esposa de Kurt. A canção que tocou refletia essa felicidade é
também o seu talento. No entanto, Jaqueline parecia preocupada.
- Você está bem? - Aynne descartou as formalidades, pois o
momento parecia estar além delas.
- Diga-me que ela não está sendo forçada a se casar ou que
tem ilusões absurdas quanto ao casamento. - pediu em tom de
súplica como se conhecesse Miranda há muitos anos como uma
irmã.
- Ela o ama de verdade. - sorriu diante da alegria de poder
afirmar aquilo. - Já enumerei todos os defeitos que pude encontrar
nele para que ela não se iluda, mas ela parece amá-lo cada dia mais
e Anthony também a ama. - deu de ombros com resignação. - Ele é
um bom homem. Eu jamais permitiria a união deles se não fosse
assim.
- Fico aliviada em saber. - disse olhando para a jovem
concentrada nas teclas do instrumento. - Não é agradável ser
forçada a se casar.
- Você já foi? - questionou com as sobrancelhas franzidas em
uma preocupação melancólica. - Forçada eu digo...
- Meu pai tentou algumas vezes. - disse com um suspiro
fundo. - Eu quase cedi na última para escapar do inferno que vivia no
convento, mas me agarrei a lembrança de que me afogaria em um
inferno ainda pior.
- Eu sinto muito. - Aynne disse com sinceridade e buscou a
mão de Jaqueline.
Então aconteceu. Embora o tempo não houvesse se alterado,
a música continuasse a tocar e tudo ainda estivesse como antes,
tudo havia mudado à sua maneira. Seu estômago borbulhou em
ansiedade e ela arregalou os olhos enquanto sentia seu coração
bater contra as costelas. Estava ali. Tudo que ela buscava por anos,
sentir por um homem, o que buscou naqueles beijos infrutíferos e
não conseguiu dizer nada a respeito.
Jaqueline sorriu com compreensão. Como se nenhuma
palavra fosse necessária.
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Miranda estava linda. Transbordava juventude, beleza e
felicidade ao lado de seu cunhado. Anthony não cabia em si de tanta
euforia como se tivesse desposado a própria rainha. Poderia passar
a noite observando o amor dos dois, se ela não tivesse capturado
seu olhar.
Jaqueline rodopiava nos braços do Conde de West usando
um vestido de decote ousado no tom de azul claro. Ela ria junto com
ele e isso a fez sorrir. Desde que a amizade das duas ficara mais
estreita, seu pai adotara Jaqueline como se fosse uma terceira filha e
conversava com John, o pequeno Marquês de Marvie como se fosse
um adulto.
Quanto mais os dias corriam mais certeza ela tinha acerca de
seus sentimentos por Jaqueline. Ainda lhe causava confusão o fato
de estar desejando uma mulher, mas parecia tão certo quanto o
verão era quente que ela era seu destino. Então esse era o desvio
de caráter de Jaqueline e também o dela? Desejar outra mulher? Ter
um jeito diferente de amar?
Todos os dias ela se perguntava se seria ousada o bastante
para ir a diante com aquilo. Se não contasse a ninguém sabia que
Jaqueline não o faria, apesar de já saber, de ter descoberto antes
mesmo dela. Seria uma solteirona de moral impecável, mas ao
mesmo tempo... Completamente infeliz. Porque era o tempo que
passava ao lado dela que a fazia se sentir feliz, se sentir completa.
Mas será que era mesmo amor? Será que não era somente
uma amizade intensa demais para ser identificada como tal? Um
encontro de almas fraterno?
- Sabia que Jaqueline achou bem engraçada a piada que lhe
contei? - disse o nobre se aproximando da filha.
- Oh não, papai! - ela o olhou com uma mistura de bom humor
e desespero. - Não me diga que contou a ela aquela história obscena
sobre a esposa do taverneiro.
- Ela não ficou chocada como você e sua irmã. - se defendeu.
- É preciso muito para me deixar chocada. - a jovem gracejou
soltando do braço do Conde para ficar junto a Aynne.
- Gosto dessa garota. - ele confirmou com um sorriso
carinhoso e se juntou a seus pares do outro lado do salão.
- Não dê tanta ousadia a ele. - Aynne a advertiu sem parar de
sorrir. - Ele sabe ser inconveniente.
- Ele é adorável, Aynne. - disse com sinceridade. - Você tem
muita sorte por ter um pai como ele.
A preocupação a tomou novamente. Jaqueline era quase
sempre alegre, mas Aynne sentia que havia mais nela do que a
fachada plácida e confiante. A menção às figuras paternas sempre a
deixava um tanto perturbada e queria mesmo saber o que a
afligia.
- Lady Marvie, Srta. Fellus. - uma senhora miúda as
cumprimentou com postura e pouca simpatia. - Poderia me ceder
seu tempo, Milady? - se voltou para Jaqueline que parecia ter se
blindado para o mundo ao ver a mulher.
- O que tiver que dizer, Sra. Jokins, certamente poderá ser dito
diante da Srta. Fellus. - a tensão a corroía quando a respondeu. O
semblante confuso e apreensivo de Aynne quase a fez se arrepender
disso.
- Seu pai me confiou algo para que desse a você no caso dele
vir a faltar. - disse a entregando o que parecia um pedaço de tecido
dobrado. - Espero que se lembre do quanto ele se preocupava com a
senhorita.
- Eu lembro de muitas coisas sobre ele, realmente. - disse
aceitando o embrulho com o rosto sério.
Ao ver que não lhe arrancaria nenhuma palavra mais e
nenhum gesto além de seu olhar firme, a senhora seguiu seus
desejos e se afastou contrariada.
- Você está bem? – questionou, embora a resposta estivesse
nítida no rosto de Lady Marvie.
Ela assentiu evitando encará-la. A sensação do tecido nos
dedos já lhe dava pistas do que era e não tinha a menor vontade de
abrir e desabar no meio do salão de West, cheio de
convidados.
- Preciso de um momento. - a voz ainda era firme, mas suas
pernas oscilaram enquanto Aynne a guiava para sua sala privada no
andar de cima.
Jaqueline deixou-se cair em um dos sofás e abriu o pequeno e
terrível embrulho nas mãos. Havia uma cruz bordada. A cruz do
convento Santa Carolina onde ficaria todos aqueles anos. De onde
seu irmão a salvara. Mesmo sendo jovem ele sabia bem o quanto ela
odiava aquele lugar.
Sentiu-se subitamente cansada. Cansada de resistir. Então
fechou os olhos e a lembrança veio como a dor aguda de uma
punhalada.
“- Nossa irmã Jaqueline se desviou do caminho do Senhor... -
as freiras diziam em conjunto, ao menos quatro de cada vez. -
Pedimos por misericórdia que a dor exorcize os desejos de satanás
de seu coração e pensamentos.”
E vinham as chibatadas, enquanto elas repetiam a estranha
oração como um mantra.
- Jaqueline... Fale comigo. - Aynne pediu pegando em suas
mãos e vendo suas lágrimas. Ela negou. - Por acaso não confia em
mim? Sua afeição não é suficiente para comigo?
- É porque te amo que não quero que saiba. - ela engoliu em
seco secando as lágrimas com as luvas. - Dividir meu sofrimento a
faria sofrer.
- É para isso que estou aqui. - garantiu passando a mão por
seu rosto. - O que fizeram com você? Não eram só rezas e um
mingau sem graça como me contou, disso eu tenho certeza.
- Elas me torturaram. - respirou profundamente tentando
conter os soluços. - Para que eu deixasse de pensar em outras
mulheres.
Aynne sentiu as mãos tremerem e lágrimas escorreram por
seu rosto. Tentou ser forte, mas não conseguia. Jaqueline tocou o
rosto dela, triste por vê-la chorar.
- Não chore... - negou com a cabeça. - Não suporto vê-la
chorar.
- Como pôde me esconder isso? Somos... Somos... - ela quis
dizer amigas, mas a palavra não parecia mais caber. - O que nós
somos Jaque?
- Não quero confundir você. - de fato era a última coisa que
queria. Porque agora Aynne não era só o desejo de seu corpo. Ela
era o desejo de seu coração.
Como se lesse sua mente puxou a mão dela acima de seu
seio, sobre o coração. Jaqueline o sentiu pulsar e seu peito subir e
descer em uma respiração ritmada.
- Ele tem batido por você desde que a conheci...
Você me acusou de querer beijá-la uma vez. - lembrou
carinhosamente.
- Foi arrogante da minha parte. - o tom era esperançoso,
porém mais tímido do que se lembrava.
- Talvez um pouco. - cedeu com um sorriso. - Mas estava
certa. Eu queria beijá-la naquele dia e ainda quero beijá-la agora.
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- Bom... Parece que você terá que se casar com a minha filha
Jaqueline ou a desafiarei para um duelo. - o Conde disse com um
toque de bom humor. - Se bem que nesse caso talvez eu devesse
perguntar quem desonrou quem...
- West! Não é hora para piadas! - a condessa parecia muito mais
preocupada do que já tinha visto e elas não ousaram rir. - Se houver
provas consistentes, um juiz mais tradicional poderia prendê-las.
- Pois que ele tente. - disse o Conde sisudo. - E não temos provas ou
testemunhas de que nada irregular aconteceu aqui... - ele olhou em
tom grave para o genro. - Ou temos?
- O que eu vi foram duas amigas se abraçando e consolando uma à
outra. - disse Lorde Kurt mantendo o semblante tranquilo. - Não vejo
como isso pode ser um problema.
A versão de Anthony da história pareceu ter deixado o sogro
satisfeito.
- Obrigada, Anthony. - Aynne o agradeceu o olhando, mas ele não
ousou retribuir. Claramente envergonhado.
- Não me compete o que faz, Srta. Fellus, mas creio que até meu
sogro entenderá quando digo, pelo bem de minha esposa e dos
futuros filhos que venhamos a ter que tome cuidado. - a voz dele era
tranquila, porém firme. - Poderia ser outra pessoa a abrir essa porta
e isso afundaria nós todos na ruína, incluindo nossos herdeiros.
Imploro para que não permita que isso aconteça.
- Como bem disse, Kurt... - o Conde estava sério. - Não lhe compete
o que minha filha faz.
- West! - a esposa o repreendeu.
- Ele está certo. - a voz de Lady Marvie irrompeu na sala. - Será
melhor para todos que eu me afaste.
- Não. - Aynne segurou suas mãos com um toque de desespero. -
Não pode fazer isso, não agora. Não depois de tudo...
- Tudo que eu lhe contei, tudo que passei... - disse agora para os
olhos dela. - Jamais me perdoaria se algo assim acontecesse com
você.
- Mas não vai acontecer. Meus pais não são assim...
- Mas a sociedade é cruel, querida Aynne. - sorriu acomodando
suas mãos nas suas. - Não há espaço nela para alguém como eu.
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Anos depois...
Poucas coisas na vida eram mais prazerosas do que acordar nos
braços de Jaqueline. Ela gostava de deslizar sua mão pelo corpo
moreno e se encantar com o contraste entre seus tons de pele. Ao
seu toque, viu o corpo dela se arrepiar e seus mamilos endurecerem
em desejo. Nos lábios grossos, brotou-se um sorriso.
- Não me tente, Aynne. – disse retribuindo o beijo nos lábios em
seguida. - Sabe que sou preguiçosa pela manhã.
- Então durma, preguiçosa. – gracejou tocando seu nariz
arredondado com o indicador. – Vou ler a correspondência enquanto
decide se levantar.
Só que a curiosidade falou mais alto e quando Aynne se sentou,
Jaqueline a abraçou pelas costas. Ambas completamente nuas e
confortáveis em sua cama na propriedade de Marvie no interior, onde
acordavam todos os dias do outono, reservando Greichill para os
meses mais quentes. Ambas deixaram os olhos deslisarem pelo
papel com um sorriso, cientes da sorte que tinham por terem uma à
outra.
Querida irmã,