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As cores do amor

Um conto de "As Collins"

Jéssica Malvestuto
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reproduzido ou usado de forma alguma sem autorização expressa,
por escrito, do autor ou editor, exceto pelo uso de citações breves em
uma resenha do livro.

Autora: Jéssica Malvestuto


Diagramação: Jéssica Malvestuto
Arte da capa: Jéssica Malvestuto

Primeira edição, 2021


www.jehmalvestuto.com.br
Dedicatória
Para todos que acreditam que “amor é amor”.

ATENÇÃO: Contém relatos sutis de agressão. Caso seja sensível a


esse tema sugiro que leia acompanhado de alguém de sua
confiança.
Prefácio
“Quando falamos temos medo de que as nossas palavras não
vão ser ouvidas ou bem-vindas. Mas quando estamos em silêncio,
ainda temos medo. Por isso é melhor falar.”

Audre Lorde

Diversos motivos me levaram a escrever esse conto.


Casamento e relacionamento entre pessoas do mesmo sexo ainda
são um tabu na sociedade atual, que dirá no século XIX. Quando
escrevi “O desabrochar de Alice” e criei as personagens Jaqueline e
Aynne, o romance delas foi citado de forma sutil, pois a obra tinha
como foco Alice e Robert.
No entanto, me apaixonei pela história dessas personagens e
queria contar mais um pouco dela nesse conto. Espero sinceramente
que poucas páginas sejam o suficiente para que entendam a
dimensão do amor do qual esse conto trata, ainda que mesmo um
livro completo não esgotaria as diversas provas e momentos dessas
duas fortes mulheres.
Acima de tudo, o que quis com “As cores do amor” foi almejar
abrir seus olhos e também os meus, caro leitor, para as diversas
cores e nuances que o amor pode ter. Fazendo votos de que algum
dia todas elas sejam aceitas e amadas pela sociedade.
Conheça outros títulos da série
"As Collins"
Sussurros de uma paixão - As Collins I
Perdoe-me, mas o amo - As Collins II
Da vingança ao desejo - As Collins III
Para sempre seu - As Collins IV
Uma trégua para o amor - As Collins V
Eu aceito - As Collins VI - EM BREVE

Outras obras da série

O desabrochar de Alice - Um Spin-Off de "As Collins"

Contos

Um presente inusitado - Especial de natal


O prometido - Especial dia das mães
As Cores do amor
Você é meu lar - EM BREVE
As cores do amor

- Estou lhe dizendo, Nicolas. – a Condessa parecia de fato fora de


si enquanto gesticulava para o marido. – Há algo errado com essa
menina. É a segunda proposta de casamento decente que recusa.
Um Visconde! Por Deus!
A “menina” em questão deixou o ar sair de seus pulmões tão
rápido que sentiu vertigem. Ou talvez, o motivo verdadeiro de sua
tontura fosse meramente o diálogo entre seus pais. Principalmente
porque sabia que não era a primeira vez que ocorria. Estava de fato,
bem longe de ser.
- Um Visconde um tanto insípido não acha? – ele respondeu
com ar de bom humor que fez Aynne sorrir, ainda escondida, ouvindo
perto da porta. – Eu a acho bastante inteligente se quer saber. Ela
merece mais que um Visconde com cara de fuinha.
- Lorde Darius é belíssimo! – Lady West parecia afrontada
com a teimosia do marido. – O senhor é que está cego com o ciúme
que tem de suas filhas. Elas precisam deixar o ninho e temo que
Aynne estrague todas as chances de Miranda.
A menção da irmã mais nova deu um nó em seu estômago.
Se havia alguém no mundo que ela amava era ela. Miranda era
doce, inocente e sonhadora. Almejava encontrar um marido nobre e
romântico e ela... Bom, não planejava nada do gênero, mas
esperava ao menos casar com alguém que a fizesse sentir alguma
coisa. Qualquer coisa!
- Sinto desapontá-la, querida. – Lorde West, um belo homem
de cabelos escuros e olhos verdes que havia passado à filha mais
velha, verificou o relógio de bolso com certa tranquilidade. – Mas
temo que tenhamos que continuar essa conversa em outra ocasião.
Tenho um compromisso.
- Sim, vá... – ela gesticulou com a mão para a porta com certa
irritação. – Suas francesas estão esperando.
O conde não se defendeu, tampouco a contradisse. Somente
se inclinou para um beijo no rosto antes de sair da sala a passos
decididos.
Sorriu ao encontrar sua primogênita na porta do cômodo e lhe
deu uma piscada conspiratória. Aynne retribuiu o sorriso. Ela amava
o pai. Ele parecia ser uma das poucas criaturas que entendia que ela
não era obrigada a se casar com o primeiro homem que se
apresentasse. No entanto, mentiria se dissesse que concordava com
a relação que o conde e a condessa levavam.
Maldita fosse se acabasse como a mãe, sentada na cadeira
de uma mansão riquíssima, com a mão na testa, dando um suspiro
fundo e tentando engolir a ideia de que seu marido se deitava com
outras mulheres e sequer se dava ao trabalho de esconder o fato.
Foi o sentimento de pena que a fez entrar na sala e se
aproximar da condessa. Embora, preferisse morrer a admitir que
sentia pena da mãe. A família Fellus era orgulhosa demais para
permitir de bom grado gerar sentimentos nos outros como piedade.
Prova disso era que ao vê-la, a mãe retomou a postura como
se nunca sequer na vida tivesse sido acometida por qualquer
perturbação que fosse. Seu olhar para Aynne, para a filha, que se
vestia conforme a época com cores claras, fitas e rendas... Era uma
mistura de ternura e severidade, se é que era possível.
- Foi bom que veio, querida. – disse em tom controlado. –
Precisamos conversar.
- Por que aceita isso? – a pergunta saiu antes que se desse
conta. Ela mexeu nos cachos escuros modelados em nervosismo,
mas terminaria já que havia erroneamente começado. – Sabe há
anos que ele tem amantes.
- Porque preciso dele e ele precisa de mim. – se havia algo a
dizer sobre Lady West era que esta era realmente prática. No
entanto, o argumento não convencia a filha, mesmo sendo tão
prática quanto.
- A senhora o ama. – disse sem rodeios, mantendo contato
visual.
Ela podia ter somente vinte e um anos, mas não tinha a
ingenuidade das jovens de mesma idade. Não porque algo havia
acontecido. Aynne era virgem como toda mulher solteira que se
prezasse – muito embora tivesse sérias ressalvas a essa forma
medieval de pensamento. No entanto, ela havia beijado os homens
que a pediram em casamento. Justamente para descobrir se deveria
aceitar suas propostas.
Ambos os resultados foram alarmantes. O primeiro, um filho
de baronete muito respeitado a beijou com o que tinha certeza era
um talento exímio, mas ele a trouxe demais para perto e sua língua
parecia um tanto pastosa contra a dela. Já Lorde Darius... Não havia
muitas críticas a fazer sobre o beijo dele. Ele cheirava bem e o beijo
era aceitável, mas tudo que Aynne sentiu foi um aperto no peito e
vontade de empurrá-lo.
Na primeira vez que recusara um pretendente ela imaginou
que ele deveria ter algo de errado, agora, no entanto, temia que
fosse ela que tivesse algo de errado - como a mãe havia dito ao
conde. E não parecia nem remotamente arrependida disso. Menos
ainda intimidada ou disposta a mentir diante da afirmação da filha.
- É claro que amo. – disse séria, mas absolutamente
verdadeira. – E ele também me ama, apesar de ter uma séria
dificuldade de se controlar quando o assunto são mulheres.
- Prefiro morrer solteira a tolerar que meu marido se deite com
outras mulheres. – somente depois que disse teve noção do impacto
que aquilo teria sobre a mãe.
A condessa engoliu em seco e seus olhos adquiriam um brilho
lacrimoso de quem não estava muito contente em certos momentos
também, mas tão rápido quanto a fraqueza apareceu se dissipou
dando origem a um semblante severo e determinado.
- Muito bem, Aynne Fellus, eu serei direta, já que claramente
isso não a preocupa. – sim, afinal ela havia sido bastante direta e a
mulher magra e pequena de cabelos escuros e olhos cor de âmbar
não parecia ter gostado nem um pouco. – Apesar de termos feito o
possível, eu e seu pai não tivemos nenhum filho homem, portanto, a
única esperança para a continuação da linhagem dos Fellus é você
ou Miranda darem à luz ao futuro Conde e eu vou garantir que
aconteça.
- Eu juro, minha mãe... – ela manteve os olhos nos de sua
progenitora que tinha pequenas marcas de expressão. – Que estou
tentando.
Se beijar dois homens pelos quais não tinha qualquer atração
não era tentar, ela não sabia o que era. Sabia muito vagamente o
que acontecia na noite de núpcias de um casal e não se submeteria
àquilo sendo que sequer gostara do beijo do homem. Não poderia e
tinha certeza que mesmo sua mãe em algum lugar dela, concordaria.
- Eu espero que tente com mais empenho, querida. – então
deu um suspiro e se levantou indo até a poltrona que a filha ocupava.
Passo a mão pelo queixo de Aynne, como se percebesse estar
sendo muito dura. – A linhagem dos Fellus depende disso.

...

Ela não demorou muito no próximo baile para decidir que


queria mandar a linhagem dos Fellus para o inferno. Quem dera o
espartilho apertado fosse o culpado por aquilo, mas de fato parecia
haver mais na sociedade que a impedia de respirar. Como a
arrogância dos anfitriões de tal ocasião.
O duque de Dachmour era um tão esnobe quanto a irmã, Lady
Carffort. Ela repudiava a maneira como ela a olhava. Sobretudo no
dia que dissera a sua mãe que Aynne já estava atrasada no mercado
casamenteiro. Com apenas dezenove anos na ocasião. Ela gostaria
de perguntar o que ela achava agora só para ver seu rosto
presunçoso franzido em desagrado.
Muito embora, Aynne tivesse esperanças no futuro do Ducado
de Dachmour, afinal Edward Carffort parecia ser um homem bastante
sério, mas gentil. Um perfeito cavalheiro, diferente da esposa.
Alexandra era uma mulher desagradável e esnobe que havia
inclusive humilhado sua irmã Miranda em uma ocasião. Ocasião na
qual Aynne quase foi enviada ao ostracismo por querer agredir uma
debutante aparentemente inocente.
- Acha que ele me chamará para dançar? - Miranda
questionou ao lado dela.
A irmã era alguns centímetros mais baixa, mais magra e
delicada que ela. Muito embora, as curvas de Aynne fossem
discretas. Os olhos escuros que herdara de seus avós estavam fixos
na irmã mais velha em clemência por sua sabedoria.
Aynne deu um sorriso na direção de Lorde Anthony Kurt. Um
rapaz alto, de cabelos e olhos escuros excessivamente sisudo que
por razões desconhecidas havia conquistado o afeto de sua irmã
caçula. Ao menos, ele lhe parecia um homem decente e aparentava
gostar dela, porque olhava na direção das duas e na do Conde de
West suando frio. Não culpava o pobre rapaz. Seu pai tinha um olhar
amedrontador, provavelmente porque presumia ter roubado o
coração de uma de suas preciosas filhas.
- Kurt seria um completo idiota se não o fizesse. - ela deu um
sorriso para a perfeita dama ao seu lado que corou com uma
risadinha. - E se ele fosse um idiota eu não o aprovaria.
- Ora, Aynne... - os olhos de Miranda começaram a lacrimejar
e a outra negou com a cabeça para se recompor.
- Ele vem aí. - avisou em tom baixo com os olhos fixos no
rapaz que andava até elas.
- Miladys! - ele se curvou como mandava o protocolo.
Ambas retribuíram com uma mesura enquanto a mais velha
tentava encontrar em Anthony algo que poderia tombar uma jovem
como acontecera com Miranda. Mas ele parecia... Comum? Comum
demais talvez. Não que pudesse culpar o pobre homem por isso.
- Srta. Fellus, me acompanharia na próxima dança?
Apesar de ambas terem o mesmo sobrenome, o olhar
fascinado para Miranda não dava dúvidas a qual senhorita o rapaz
se referia. A caçula olhou para Aynne buscando aprovação como se
estivesse com pena de deixá-la sem companhia.
- Vá e divirta-se. - deu um sorriso reconfortante. - Eu ficarei
bem.
Sentiu o coração se aquecer ao vê-la sorrir de braços dados
com o rapaz. Ao menos, Miranda teria seu final feliz já que ela
evidentemente estivesse quase desistindo do seu próprio. Ao menos
agora ela poderia observar o salão com tranquilidade sem se
preocupar com...
- Concede-me a próxima dança, senhorita? - ouviu uma voz
grave imponente e sorriu ao se deparar com Edward Carffort.
Não era nenhuma surpresa ele estar casado. Era um homem
bonito de fato. Cabelos castanhos, olhos escuros, nariz aristocrático
e um corpo atlético que começara a criar forma, mas não era bem a
aparência que lhe agradava em Lorde Carffort. Era a certeza que ele
era do tipo com o qual poderia falar livremente sem ser tratada com
desdém por isso.
- Seria uma honra, Milorde. - respondeu aceitando seu braço e
o acompanhando com um sorriso.
A música começou a tocar com o primor esperado dos bailes
ducais. Como se os músicos não fizessem mais nada da vida a não
ser praticar. Comer e dormir eram atividades irrelevantes para o
talentoso grupo que os presenteava com a melodia celestial.
No entanto, o rapaz diante dela, apesar de dançar
divinamente, não parecia tocado com a música e sim bastante
nervoso. Olhando para algo ou alguém atrás de Aynne.
- De quem está fugindo, Lorde Carffort? - não resistiu ao
gracejo mesmo sabendo que este era filho de um duque.
- De minha esposa. - seu rosto tinha bom humor mas seus
lábios permaneceram sem sorrir. - Ela tem sua personalidade
acentuada em bailes. - era evidente que não se tratava de um elogio.
- Imaginei que recém casados fossem cegos aos defeitos de
seu cônjuge. - não conteve o gracejo mesmo sabendo que estava
sendo abusada.
- Minha visão está acima da média, eu receio. - disse como se
lamentasse, mas a fez sorrir.
Pensou em algo espirituoso para dizer, mas um tumulto
recente na entrada do salão a deteve. Para ser mais precisa, deteve
todos os convidados e mesmo a música havia parado de soar. Lady
Carffort e Lady Alexandra andaram apressadamente para a entrada
e Edward as seguiu com Aynne ao seu encalço. Ele não havia
exatamente a encorajado para segui-lo, mas quem se importava?
Poucas coisas interrompiam o baile de um duque e ela não
era uma santa a ponto de fingir não estar interessada. Miranda já
havia garantido seu lugar à frente da multidão. Era impressionante o
faro que sua irmã tinha para fofoca e com seu rosto inocente
ninguém desconfiaria de que seus olhos escuros atentos captavam
cada imagem.
Logo ficou claro o motivo de tanto tumulto. Uma mulher e um
menino haviam irrompido no salão com tanta graça e postura que se
não fossem tão peculiares poderiam confundi-los com os anfitriões.
O garoto devia ter cerca de seis para sete anos, a pele negra e o
cabelo cacheado curto. Vestia-se como um nobre e portava-se como
tal, com a cabeça erguida para a multidão curiosa apesar da pouca
altura.
Evidentemente, muito embora o garoto fosse jovem para
entrar em um baile, a atenção de todos estava na mulher. A pele tão
negra quanto a do garoto, os olhos risonhos e escuros e um sorriso
nos lábios grossos. Os cabelos cacheados em um penteado alto que
não tinha qualquer intensão de domá-los. O vestido bege claro que
usava - se é que assim podia ser chamado - seguia o modelo
habitual de corpete e tinha uma saia fluida a iniciar em baixo de seu
busto, porém havia uma abertura na frente que revelava um belo par
de calças largas da mesma cor. O motivo do choque estava evidente
e a jovem desafiava com um olhar quem ousasse comentar sobre.
- Senhorita, receio não me recordar de estar na lista de
convidados. - Lorde Dachmour disse com tom de voz arrogante,
nada feliz com a interrupção em seu baile.
- Lady. - o menino corrigiu com voz irritada. - Minha irmã é
uma Lady e com certeza está na lista de convidados.
- Não se preocupe, John. - ela disse com voz doce, sorrindo
para o irmão. – Logo todos perceberão que estão diante do novo
Marquês de Marvie.
À menção do título em tom audível, um som de espanto se
espalhou pelo salão. O burburinho se propagava e o Duque deu um
breve olhar de pânico para a irmã enquanto os convidados tentavam
compreender o que estava acontecendo.
- Sinto muito, Milorde. - Lady Carffort se desculpou com o
menino, mas absolutamente constrangida. - A triste notícia da morte
de seu pai ainda não havia chegado à capital de Figior. Por favor,
aceite nossas condolências.
Os convidados as repetiram, com exceção de Aynne. Ela
estava fascinada demais pela dama diante dela para prestar atenção
àquele circo. A filha de um marquês? Mas ela parecia tão livre...
Tão...
A multidão foi se dissipando e Lady Marvie piscou para ela
com um sorriso antes de ir para a mesa de bebidas, como se tivesse
percebido sua atenção. Corou e mirou os próprios pés se sentindo
estúpida. Talvez ela precisasse de alguns minutos na toalete para se
recompor.
...

Quatro mulheres, três bem mais velhas que Aynne discutiam


os últimos acontecimentos enquanto suas criadas retocavam suas
maquiagens. Embora ela não tivesse ido até ali com essa firme
intenção, permitira que Frederica também melhorasse a dela
enquanto escutava ao falatório.
- Não me admira que ninguém a conheça. - uma senhora de
meia idade comentou. - Passou os últimos anos em um convento e
não acho que tenha adiantado em nada se quer saber.
- Pobre Marquês. - outra delas lamentou. - Ele tinha
esperança de curar a menina.
- Ela estava doente? - Aynne verbalizou antes mesmo de se
dar conta roubando a atenção para si.
A surpresa das mulheres com a intromissão a fez corar, mas
não resistiu. Se havia alguém que não parecia doente naquele salão,
esse alguém era a dama em questão. Ela parecia vender saúde,
beleza e vitalidade. Portanto, não entendia do que estavam falando.
- A doença dela não é do tipo que se trata em um hospital,
Srta. Fellus. - uma dama mais jovem que ainda não havia se
pronunciado resolveu dizer algo, já que as senhoras estavam
contrariadas diante de sua intromissão pouco educada. - É um
desvio de caráter que só pode ser curado por Nosso Senhor.
Aynne assentiu como se compreendesse e deixou o ambiente
murmurando algo sobre ter que voltar para a mãe e a irmã. Ainda
mais confusa do que antes. O que elas queriam dizer com desvio de
caráter? Será que a jovem cometera algum crime ou simplesmente a
julgavam por ser um tanto peculiar?
Quase de volta ao salão viu a mãe a procurando com um
rapaz a tiracolo. Certamente na intenção de firmar um compromisso.
Com um gemido retornou ao corredor de onde veio e orientou a
criada que não a seguisse e dissesse que fora tomar um ar se
questionada.
Não estava com cabeça para aquilo naquele baile. A última
coisa que queria era ser empurrada para outro homem e ter que
beijá-lo para descobrir se podia sentir algo pelo infeliz. Duas vezes
pareceu-lhe muito mais que o suficiente, de fato.
Seu suspiro fundo soou pelo corredor escuro quando
percebeu que havia ido muito mais longe do que pretendera,
encontrava-se em um lugar um tanto deserto da mansão ducal. Sons
estranhos chegaram a seus ouvidos chamando a atenção dela para
uma porta onde havia um casal inegavelmente envolvido.
Aynne não tinha a intenção de ser intrometida, mas sempre
teve a curiosidade de saber exatamente o que acontecia entre um
homem e uma mulher, então mordendo o lábio inferior espiou pela
porta. O homem com as calças arriadas impelia seu corpo a uma
mulher que de olhos fechados soltava gemidos de prazer. Aynne só
queria entender...
- Você não entende como ela pode gostar disso, não é? - uma
voz feminina jovial soou em seus ouvidos e a fez se afastar da porta
rapidamente.
A dama de calças, a mesma que causará um tumulto na
entrada do baile agora a olhava com um sorriso conspiratória e
compreensivo. Sem nenhum julgamento.
- Não sei do que fala, Milady. - disse um tanto envergonhada
com a situação.
- Perdoe-me, eu não tive a intenção de apressar nada. - seu
sorriso agora era um tanto constrangido também. - Eu realmente
presumi que já soubesse.
- Que eu soubesse do quê? - Aynne franziu o cenho em
confusão diante da estranha que apesar de aparentar ser mais nova
que ela, parecia entendê-la melhor do que ela mesma.
- Do porquê ainda está solteira. - deu de ombros com
resignação com um suspiro fundo. - Do porquê nós duas estamos.
Como ela sabia que estava solteira?
- As mulheres estão dizendo que está doente... - disse irritada
por ter mencionado sua solteirice. Querendo tocar em algo que a
incomodasse também. - Talvez seja essa a sua doença. Erro de
julgamento de achar que sabe das coisas.
Seu olhar agora não era nada amigável. Ele oscilava entre
triste e irritado e se voltou para Aynne de cabeça erguida. Sem
sequer titubear.
- Não sei o que andou ouvindo, senhorita, mas realmente sinto
em informá-la que se considera que estou doente... Então receio ser
a pessoa que te contará que sofre da mesma doença que eu. - e por
mais rancoroso que fosse seu tom realmente parecia lamentar.
- Eu não estou doente. - disse séria e irritada. Seu coração
disparando no peito sem controle a vendo se aproximar.
- Eu também acho que não, senhorita. - ela baixou os olhos
para os lábios dela e sorriu amigavelmente novamente. - Mas não
conte a ninguém que sente vontade de me beijar... - tocou seus
lábios com o indicador sentindo sua respiração em seu dedo. - Ou a
acusarão de estar.

...

"Não conte a ninguém que sente vontade de me beijar", "Eu


realmente presumi que já soubesse". As frases ditas por Lady Marvie
nadavam em sua cabeça repetidas vezes, enquanto ela tentava
conter o pânico. Dividindo a sala de visita com sua mãe e irmã
bordando. Ela, apesar de ser um tanto incontida era exímia na arte
de bordar, mas no momento seu trabalho estava um perfeito
desastre.
- Por Deus, minha filha! - a condessa exclamou horrorizada. -
Está assassinando o pobre tecido.
Miranda ergueu instantaneamente o olhar para a mãe
achando que a crítica era para ela já que não era um de seus
maiores talentos. Para a sua surpresa, era Aynne que estava sendo
chamada à atenção dessa vez e sequer tentou negar o desastre que
estava fazendo com agulha e linha.
- Não estou com cabeça para isso. - bufou colocando de lado
e jogando suas costas contra o assento. - Tenho mais no que pensar.
E realmente tinha. Não porque fora acusada de querer beijar
uma mulher, mas porque naquele momento, de fato, sentirá algo
completamente diferente do que quando tentara se entender com
seus pretendes. Fora intenso. O simples toque da bela morena a
arrepiara nos pés à cabeça e sua voz transformou seu cérebro em
geleia. Certamente, estava confusa.
- Avise-me se estiver pensando em casamento a sério. - Lady
West respondeu com os olhos fixos em sua primogênita. - Para que
eu agradeça ao senhor por isso.
Aynne abriu a boca para dizer algo, mas pareceu pensar
melhor. Será que se dissesse o que estava pensando ela acabaria
em um convento ou em um hospital? Será que sua mãe a trataria
como se ela tivesse... Como disseram as mulheres? Desvio de
caráter?
- Lady West. - o mordomo entrou na sala com uma mesura. -
Lorde Kurt está aqui para vê-la.
Miranda se sentou mais ereta rapidamente e deu pequenos
apertões em suas bochechas para deixá-las coradas. Mordia os
lábios em nervosismo e estava radiante. Quando o Lorde entrou, era
certo que nada poderia estragar o dia dela, ou quase nada...

...

- Eu vou repetir. - disse o Conde com uma falsa calma. - Nem


por cima do meu cadáver!
- Papai! - Miranda suplicou com um tanto de choro na voz. O
olhar para Anthony em desespero, temendo que ele retirasse sua
proposta de casamento por se sentir afrontado.
- Milorde, seja razoável. - pediu a esposa com o semblante
sério.
- Razoável?! - ele elevou a voz com o semblante sisudo. - Não
é porque está desesperada para casar nossas filhas que vamos
aceitar o primeiro infeliz que aparece...
- Ora por Deus! Eu sinto muito, Lorde Kurt. - disse se voltando
para o rapaz que parecia querer pular pela janela na primeira
oportunidade. - É certo que meu marido não está bom da cabeça.
- Eu estou completamente são, mulher! - ele berrou indignado.
Aynne desejou não ter cedido ao olhar de súplica de sua irmã
e estar em seu quarto lendo um livro ou pensando em mulheres que
não deveria querer beijar. Qualquer coisa ia ser melhor do que
aquele inferno. No entanto, Miranda precisava dela e eram leais uma
à outra. Ela amava aquele rapaz e não permitiria que o pai impedisse
sua felicidade.
- Não há nada que desabone Lorde Kurt e é certo que nossa
filha nutre uma afeição por ele. - a condessa parecia mais firme do
que nunca em seus ideais e a filha caçula tinha fortes esperanças
nisso.
No entanto, Aynne como era a mais apegada ao pai sabia
muito bem que o homem tinha uma vontade de ferro e não cederia
tão fácil. Por algum motivo que ninguém tinha conhecimento, ele
decidiu não aprovar o pobre homem e agora ele sofreria por isso.
- Milorde, eu lhe asseguro que todas as minhas intenções com
Miranda são completamente honradas. - o aspirante a noivo se
manifestou, pensando ter se omitido tempo suficiente para quem era
o maior interessado naquela discussão.
- Eu lhe digo onde pode enfiar as suas intenções, seu...
- West! - a condessa berrou em um grito estridente.
- Ora, já chega! - Aynne disse em tom alto e decidido. - Se
você não contar a eles eu conto. - disse olhando para a irmã.
Miranda arregalou os olhos em surpresa, como se estivesse
temerosa, mas a verdade é que não sabia do que ela estava falando.
- Papai, é melhor que aceite esse casamento o quanto antes. -
disse olhando seriamente para o chefe da família. - Ou podem
haver... - ela buscou a palavra. - Complicações.
- Complicações? - o Conde questionou ainda olhando para
Lorde Kurt que merecia o crédito por não se encolher.
- Sim. - a jovem disse com firmeza. - E toda essa agitação não
faz bem para Miranda ou para o bebê que ela pode estar esperando.
- O bebê? Ah seu... - o Conde fechou os punhos com irritação.
- O senhor não quer fazer mal ao seu neto ou afastá-lo do
pai... Ou quer? - Aynne questionou.
Lorde Kurt escondia seu desconcerto muito bem. Miranda
olhava para o pai com esperança, com a mão na barriga que tinha
tanta chance de estar grávida quanto de chover fogo e a condessa
estava sorrindo discretamente diante da filha perspicaz.
- Não. - ele negou com a cabeça, mas olhava para o futuro
genro de forma nada carinhosa. - Claro que não.
Eles foram saindo lentamente da sala. Até restar apenas
Lorde Kurt e Aynne. Ele olhou com gratidão para a jovem e estava
certo que amava a irmã dela.
- Obrigada por isso. - disse em voz baixa.
- Trate-a bem, Anthony. - ela deu um sorriso. - Ou vou fazer
desejar nunca ter feito esse pedido de casamento.

...
- Aynne! Aynne! - Miranda parecia exultante quando entrou no
quarto da irmã que lia sem muita atenção. - Você... Ah irmã! O que
eu faria sem você?
A mais velha arregalou os olhos quando - com risco de
tropeçar na própria camisola - ela se jogou nos seus braços e deu
beijos por todo seu rosto. Diante de sua surpresa simplesmente se
deitou ao lado dela e deu uma gargalhada infantil olhando para o
teto. Os pés se agitando por sobre as cobertas.
- Sem mim... - disse deixando o livro de lado certa que não
teria mais sossego para ler diante da áurea de excitação que tomara
Miranda. - Você inventaria uma gravidez sozinha, é claro.
- Ah Aynne! - voltou a rir e suspirou. - Mas sabe... Eu beijei
Anthony uma vez. Acha que posso mesmo...
- Miranda... Não é assim que... - ela negou sorrindo diante de
sua inocência. - Não importa. Você descobrirá logo, eu creio.
- Minha irmã, eu juro de todo o meu coração... - disse
pegando em suas mãos com agitação e chamando seu olhar. - Não
importa quem escolha para matrimônio, eu farei de tudo para que
tenha seu final feliz em retribuição ao que fez por mim.
O rosto belo de Lady Marvie traiu seus pensamentos. Aquele
sorriso doce e ao mesmo tempo sensual passou pela sua mente
como um clarão sem pedir licença.
- Essa promessa pode ser mais perigosa do que aparenta,
meu bem. - advertiu mesmo diante de sua incompreensão que não
tardou a vir. - Mas você poderia me entreter com uma fofoca...
A menção da palavra já fez Miranda se agitar com
empolgação. Embora fosse inofensiva, ela adorava tagarelar sobre a
vida alheia. Quem poderia culpá-la? Era afinal, um dos poucos
divertimentos toleráveis para uma dama bem nascida.
- O que soube de Lady Marvie? - perguntou com um sorriso.
Seus olhos se iluminaram como sempre quando tinha uma
boa história para contar.
- Dizem que passou os últimos anos em um convento e que
essa foi a última tentativa do falecido marquês de endireitá-la. - disse
em sussurros, ainda que estivessem sozinhas e já fosse tarde da
noite. - Mas como sabe o homem morreu em circunstâncias um tanto
obscuras e o irmão a tirou de lá.
- As mulheres disseram que ela estava doente e por isso teve
que ir ao convento. - Aynne parecia ainda mais curiosa acerca da
"doença" de Lady Marvie já que fora acusada de padecer do mesmo
mal. - Você ouviu o que ela tem?
Para sua decepção, negou com a cabeça.
- Não me disseram nada. - Deu um sorriso. - Mas eu soube
que foi Madame Treit que fez aquela roupa obscena para ela. - Deu
uma mordida em seus lábios como quem armava algo. - Quem sabe
não descobrimos alguma coisa quando formos à costureira amanhã?
A perspectiva fez Aynne sorrir.

...

- Ora, Lady Fellus... - a costureira que sempre as atendia


resmungou apertando seu espartilho. - Sua cintura engrossou um
pouco. Anda comendo mais doces?
- Não vejo como isso possa ser da sua conta, Emanuelle. - ela
disse com um sorriso sutil para a irmã que soltou uma risadinha.
Havia sido difícil convencer a mãe a irem à costureira
sozinhas. Ela fez um drama digno sobre ser um verdadeiro absurdo
não poder participar do momento mais lindo da própria filha.
Somente cedeu quando seu pai disse que deveria deixá-las se
divertirem e ainda teríamos muitas visitas à costureira.
Havia válido a pena apesar de tudo. Estava sendo realmente
divertido e elas dividiam uma cabine para as medidas já que todas as
mulheres do reino pareciam ter tido a mesma ideia. Como se todo o
tecido do mundo pudesse acabar a qualquer momento, elas se
espremeram em busca não de bons vestidos, mas de boas fofocas
sobre a recente dama que fez suas vestes escandalosas em tal
estabelecimento.
- A cintura de Miranda continua impecável como sempre. -
disse com tom de superioridade como se quisesse atingi-la.
- Deve ser por isso que ela está prestes a se casar e eu a virar
uma solteirona. - disse em um tom que deixara claro que havia
falhado miseravelmente.
Emanuelle pareceu ter desistido, embora pensasse ter ouvido
resmungar "teimosa como o pai". Não a culpava. As poucas vezes
que tivera que lidar com o Conde não foram boas experiências.
Antes que pudesse pôr fim a reclamação, a costureira chefe entrou
parecendo exausta.
- Diante disso o exílio social me pareceria uma benção. - levou
a mão sem muita precisão aos cabelos. - Está tudo caótico lá fora!
Todas querendo saber sobre a pobre Lady Marvie. - negou com a
cabeça. - Por tudo que é mais sagrado minhas meninas...- ela olhou
para as jovens em súplica genuína. - Digam que estão aqui pelos
vestidos.
- Precisamos de um enxoval para a minha irmã. - explicou
Aynne sem ser necessário mentir.
- Ora! Graças a Deus! - exclamou aliviada. - Então vamos
começar.
- Madame Treit! - uma versão seminua e desesperada de
Lady Marvie entrou na cabine agora mais cheia do que deveria. - Por
Deus! Salve-me!
- Lady Marvie! - Madame se virou para ela, escandalizada.
Jaqueline estava tão desesperada que sequer reparou em quais
eram as jovens das quais havia invadido a privacidade.
- Há um bando de solteironas espiando a minha cabine. - ela
tinha os olhos escuros arregalados. - Uma delas me perguntou se eu
tinha o que as mulheres tem embaixo das calçolas!
- Pela Virgem, Milady! - ela parecia devidamente exasperada,
mas por mais de uma razão além do atrevimento de suas outras
clientes. - Eu peço mil perdões, mas não pode invadir assim uma
cabine...- ela ouviu uma risadinha de Miranda que parecia achar tudo
muito divertido. Aquilo fez Jaqueline sorrir. - Eu estou com clientes
aqui... - disse baixo para a irmã do marquês que claramente não
percebera até então ou não se importara o bastante.
- Tudo bem. - a jovem até então oculta pela costureira disse
em tom firme chamando à atenção. - Somos amigas.
- São?
- Somos?
Madame Treit e Jaqueline perguntaram ao mesmo tempo.
Aynne não negou, pelo contrário, confirmou com a cabeça.

...
Palavras têm um poder extraordinário, porque antes que se
dessem conta o encontro estranho na costureira havia se convertido
em um chá de agradecimento.
- Eu peço desculpas pela curiosidade dos criados. - disse a
Lady após uma das serviçais quase derramar chá na mesa por estar
olhando para Aynne. - O marquês não costumava receber muitas
visitas e eu voltei a pouco para cá.
O fato dela não ter se referido ao falecido nobre como "pai"
não passou despercebido a Aynne. Havia uma frieza distante na bela
morena quando se referia a ele. Escondida sob uma boa postura e
um vestido que não parecia pertencer a ela. Embora o modelo verde
claro modelasse seu corpo à perfeição, parecia comum demais.
Muito diferente do que usará no baile de abertura.
- Desculpe, Lady Marvie. - disse Miranda com semblante
entristecido. - Creio que não lhe demos os pêsames. Sinto pelo seu
pai.
Ela deu um sorriso sincero, porém com um toque de tristeza
que só a mais velha das irmãs pôde identificar.
- Podem me chamar de Jaqueline. - limitou-se a responder. -
Por que não toca algo para nos animar, Srta. Fellus? - tentou
direcionar a conversa para algo mais alegre. - Soube que é uma
exímia pianista e quem sabe quanto tempo terá depois que se casar
para momentos como esse?
A menção das núpcias deixou a irmã subitamente animada.
Nada lhe fazia mais feliz do que se lembrar que muito em breve seria
esposa de Kurt. A canção que tocou refletia essa felicidade é
também o seu talento. No entanto, Jaqueline parecia preocupada.
- Você está bem? - Aynne descartou as formalidades, pois o
momento parecia estar além delas.
- Diga-me que ela não está sendo forçada a se casar ou que
tem ilusões absurdas quanto ao casamento. - pediu em tom de
súplica como se conhecesse Miranda há muitos anos como uma
irmã.
- Ela o ama de verdade. - sorriu diante da alegria de poder
afirmar aquilo. - Já enumerei todos os defeitos que pude encontrar
nele para que ela não se iluda, mas ela parece amá-lo cada dia mais
e Anthony também a ama. - deu de ombros com resignação. - Ele é
um bom homem. Eu jamais permitiria a união deles se não fosse
assim.
- Fico aliviada em saber. - disse olhando para a jovem
concentrada nas teclas do instrumento. - Não é agradável ser
forçada a se casar.
- Você já foi? - questionou com as sobrancelhas franzidas em
uma preocupação melancólica. - Forçada eu digo...
- Meu pai tentou algumas vezes. - disse com um suspiro
fundo. - Eu quase cedi na última para escapar do inferno que vivia no
convento, mas me agarrei a lembrança de que me afogaria em um
inferno ainda pior.
- Eu sinto muito. - Aynne disse com sinceridade e buscou a
mão de Jaqueline.
Então aconteceu. Embora o tempo não houvesse se alterado,
a música continuasse a tocar e tudo ainda estivesse como antes,
tudo havia mudado à sua maneira. Seu estômago borbulhou em
ansiedade e ela arregalou os olhos enquanto sentia seu coração
bater contra as costelas. Estava ali. Tudo que ela buscava por anos,
sentir por um homem, o que buscou naqueles beijos infrutíferos e
não conseguiu dizer nada a respeito.
Jaqueline sorriu com compreensão. Como se nenhuma
palavra fosse necessária.

...

O Conde de West não era um homem muito rígido ou metódico.


Só que um aristocrata tinha direito a um capricho ou dois ao menos,
e ele esperava não ser incomodado quando se refugiava em seu
escritório depois das oito horas da noite a menos que a casa
estivesse pegando fogo.
Quando ouviu batidas na porta, em um misto de apreensão e
esperança, respirou fundo e não sentiu nenhum cheiro de fumaça.

- Preciso de você. - disse a condessa colocando só a cabeça


para dentro. - A casa não está pegando fogo meu marido, mas a
futura sogra de sua filha parece um dragão pronto para reverter isso.
- acrescentou diante de seu semblante contrariado.
De fato, a mulher parecia transtornada. Andando de um lado
para outro, mal percebendo que as duas irmãs espiavam pela porta
da sala, entreaberta.
Corpulenta e irritada, Lady Kurt não estava para brincadeira e
não se intimidou ao ver o Conde. Pelo contrário. Se sentiu ainda
mais confiante de seus direitos ao vir ali. Mesmo ele não estando
nada feliz em vê-la. Definitivamente.
- Boa noite, Milorde. - disse sisuda. - Talvez tenha a bondade
de me explicar porque correm boatos de que sua filha esteve na
casa de uma desviada.
- Não sei do que está falando, Lady Kurt. - ele permanecia
impassível, mas Aynne percebeu um leve toque de divertimento.

Seu pai amava chocar as pessoas e definitivamente não se


importava que suas filhas tivessem feito o mesmo. Sua mãe não
pareceu feliz quando relataram onde haviam ido e sim preocupada,
já o Conde confiava no julgamento de suas filhas e não dava a
mínima para as fofocas. Os boatos o divertiam.
- Lady Marvie, aquela desviada. - fechou os lábios finos com
força até eles desaparecerem. - Não permitirei que Miranda a veja de
novo.
- E quem a senhora acha que é para permitir alguma coisa? -
mesmo a condessa fez um esforço para não rir do modo plácido com
que ele disse isso. Como se fosse uma questão corriqueira e não um
ataque.
- Sabem o que dizem daquela menina. - ela fugiu da questão.
- Não quero que julguem a noiva de meu filho de ser igual. Ou... ou...
- ergueu o queixo em ameaça. - Cancelarei o casamento!
Miranda arregalou os olhos e quase entregou a posição delas
com um grito de pânico. "Papai tem tudo sob controle, fique calma."
Assegurou a mais velha a acalmando.
- Nada me faria mais feliz, acredite. - não havia como não
acreditar. - Mas seu filho desonrou a minha filha e se esse
casamento for cancelado eu o desafiarei para um duelo. - abriu um
sorriso doce e cordial. - E devo precavê-la Milady... Nunca erro um
tiro.
- Como ousa?! - disse exasperado.
- Como a senhora ousa? - a condessa devolveu a pergunta. -
Quando Miranda se casar então caberá a Lorde Kurt decidir qual
amizade não lhe agrada Miranda manter, até lá quem decide isso
somos nós!
O mordomo entrou apressadamente tentando anunciar
Anthony que parecia ter vindo literalmente correndo, mas não houve
tempo. O lorde afastou os cabelos úmidos de suor e tentou controlar
a respiração.
- Perdoem-me a intromissão... - ele olhou para sua
progenitora e achou por bem corrigir. - As intromissões. Eu soube do
propósito de minha mãe há pouco e vim o mais rápido que pude. Eu
queria dizer que não me importo com os boatos, conheço a Srta.
Fellus e a considero plenamente capaz de escolher as próprias
amizades. Não se cancela um casamento por tamanha
tolice.
- Creio que essa é a primeira e provavelmente a última vez
que concordarmos com algo, rapaz. - o Conde foi cirúrgico em sua
resposta.
- Não o incomodaremos mais senhor. - ele se voltou agora
para a condessa. - Senhora. - Então se virou para sair e quando viu
que a mãe não o seguia e murmurava um "Mas, mas..." insistiu. -
Não os incomodaremos mais, não é mamãe?
Ela não ousou discordar e logo somente o casal estava no
meio da sala. Desfrutando da preciosa paz que lhes fora roubada
temporariamente, ainda espionados pelas filhas.
- O que faremos a respeito dessa amizade das meninas? -
questionou a condessa para o marido, sondando sua opinião.
- Ah sim. - ele deu de ombros. - Sobre isso... Acho que
deveríamos convidar o marquês e sua irmã para um jantar.
A condessa sorriu calorosamente para ele que a retribuiu.
- Se não tiver nenhum compromisso essa noite com suas
francesas, meu marido... - ela pareceu sedutora quando disse aquilo.
O que despertou seu lado canalha. - Acho que tenho alguns minutos
para o senhor.
- Que sorte a minha. - ele sorriu com a mão na cintura dela a
guiando escada acima.

...
Miranda estava linda. Transbordava juventude, beleza e
felicidade ao lado de seu cunhado. Anthony não cabia em si de tanta
euforia como se tivesse desposado a própria rainha. Poderia passar
a noite observando o amor dos dois, se ela não tivesse capturado
seu olhar.
Jaqueline rodopiava nos braços do Conde de West usando
um vestido de decote ousado no tom de azul claro. Ela ria junto com
ele e isso a fez sorrir. Desde que a amizade das duas ficara mais
estreita, seu pai adotara Jaqueline como se fosse uma terceira filha e
conversava com John, o pequeno Marquês de Marvie como se fosse
um adulto.
Quanto mais os dias corriam mais certeza ela tinha acerca de
seus sentimentos por Jaqueline. Ainda lhe causava confusão o fato
de estar desejando uma mulher, mas parecia tão certo quanto o
verão era quente que ela era seu destino. Então esse era o desvio
de caráter de Jaqueline e também o dela? Desejar outra mulher? Ter
um jeito diferente de amar?
Todos os dias ela se perguntava se seria ousada o bastante
para ir a diante com aquilo. Se não contasse a ninguém sabia que
Jaqueline não o faria, apesar de já saber, de ter descoberto antes
mesmo dela. Seria uma solteirona de moral impecável, mas ao
mesmo tempo... Completamente infeliz. Porque era o tempo que
passava ao lado dela que a fazia se sentir feliz, se sentir completa.
Mas será que era mesmo amor? Será que não era somente
uma amizade intensa demais para ser identificada como tal? Um
encontro de almas fraterno?
- Sabia que Jaqueline achou bem engraçada a piada que lhe
contei? - disse o nobre se aproximando da filha.
- Oh não, papai! - ela o olhou com uma mistura de bom humor
e desespero. - Não me diga que contou a ela aquela história obscena
sobre a esposa do taverneiro.
- Ela não ficou chocada como você e sua irmã. - se defendeu.
- É preciso muito para me deixar chocada. - a jovem gracejou
soltando do braço do Conde para ficar junto a Aynne.
- Gosto dessa garota. - ele confirmou com um sorriso
carinhoso e se juntou a seus pares do outro lado do salão.
- Não dê tanta ousadia a ele. - Aynne a advertiu sem parar de
sorrir. - Ele sabe ser inconveniente.
- Ele é adorável, Aynne. - disse com sinceridade. - Você tem
muita sorte por ter um pai como ele.
A preocupação a tomou novamente. Jaqueline era quase
sempre alegre, mas Aynne sentia que havia mais nela do que a
fachada plácida e confiante. A menção às figuras paternas sempre a
deixava um tanto perturbada e queria mesmo saber o que a
afligia.
- Lady Marvie, Srta. Fellus. - uma senhora miúda as
cumprimentou com postura e pouca simpatia. - Poderia me ceder
seu tempo, Milady? - se voltou para Jaqueline que parecia ter se
blindado para o mundo ao ver a mulher.
- O que tiver que dizer, Sra. Jokins, certamente poderá ser dito
diante da Srta. Fellus. - a tensão a corroía quando a respondeu. O
semblante confuso e apreensivo de Aynne quase a fez se arrepender
disso.
- Seu pai me confiou algo para que desse a você no caso dele
vir a faltar. - disse a entregando o que parecia um pedaço de tecido
dobrado. - Espero que se lembre do quanto ele se preocupava com a
senhorita.
- Eu lembro de muitas coisas sobre ele, realmente. - disse
aceitando o embrulho com o rosto sério.
Ao ver que não lhe arrancaria nenhuma palavra mais e
nenhum gesto além de seu olhar firme, a senhora seguiu seus
desejos e se afastou contrariada.
- Você está bem? – questionou, embora a resposta estivesse
nítida no rosto de Lady Marvie.
Ela assentiu evitando encará-la. A sensação do tecido nos
dedos já lhe dava pistas do que era e não tinha a menor vontade de
abrir e desabar no meio do salão de West, cheio de
convidados.
- Preciso de um momento. - a voz ainda era firme, mas suas
pernas oscilaram enquanto Aynne a guiava para sua sala privada no
andar de cima.
Jaqueline deixou-se cair em um dos sofás e abriu o pequeno e
terrível embrulho nas mãos. Havia uma cruz bordada. A cruz do
convento Santa Carolina onde ficaria todos aqueles anos. De onde
seu irmão a salvara. Mesmo sendo jovem ele sabia bem o quanto ela
odiava aquele lugar.
Sentiu-se subitamente cansada. Cansada de resistir. Então
fechou os olhos e a lembrança veio como a dor aguda de uma
punhalada.
“- Nossa irmã Jaqueline se desviou do caminho do Senhor... -
as freiras diziam em conjunto, ao menos quatro de cada vez. -
Pedimos por misericórdia que a dor exorcize os desejos de satanás
de seu coração e pensamentos.”
E vinham as chibatadas, enquanto elas repetiam a estranha
oração como um mantra.
- Jaqueline... Fale comigo. - Aynne pediu pegando em suas
mãos e vendo suas lágrimas. Ela negou. - Por acaso não confia em
mim? Sua afeição não é suficiente para comigo?
- É porque te amo que não quero que saiba. - ela engoliu em
seco secando as lágrimas com as luvas. - Dividir meu sofrimento a
faria sofrer.
- É para isso que estou aqui. - garantiu passando a mão por
seu rosto. - O que fizeram com você? Não eram só rezas e um
mingau sem graça como me contou, disso eu tenho certeza.
- Elas me torturaram. - respirou profundamente tentando
conter os soluços. - Para que eu deixasse de pensar em outras
mulheres.
Aynne sentiu as mãos tremerem e lágrimas escorreram por
seu rosto. Tentou ser forte, mas não conseguia. Jaqueline tocou o
rosto dela, triste por vê-la chorar.
- Não chore... - negou com a cabeça. - Não suporto vê-la
chorar.
- Como pôde me esconder isso? Somos... Somos... - ela quis
dizer amigas, mas a palavra não parecia mais caber. - O que nós
somos Jaque?
- Não quero confundir você. - de fato era a última coisa que
queria. Porque agora Aynne não era só o desejo de seu corpo. Ela
era o desejo de seu coração.
Como se lesse sua mente puxou a mão dela acima de seu
seio, sobre o coração. Jaqueline o sentiu pulsar e seu peito subir e
descer em uma respiração ritmada.
- Ele tem batido por você desde que a conheci...
Você me acusou de querer beijá-la uma vez. - lembrou
carinhosamente.
- Foi arrogante da minha parte. - o tom era esperançoso,
porém mais tímido do que se lembrava.
- Talvez um pouco. - cedeu com um sorriso. - Mas estava
certa. Eu queria beijá-la naquele dia e ainda quero beijá-la agora.

Não eram necessários maiores encorajamentos. Tão afoita


quanto Aynne em palavras, Jaqueline o foi com atitudes e buscou os
lábios dela com desejo amoroso que nenhuma das duas tinham
experimentado com tamanha intensidade.
Tudo se encaixava. Parecia certo. As línguas se moviam em
uma dança sincronizada, os lábios tinham um encaixe perfeito e o
roçar dos seios as faziam ofegar de luxúria.
Só que havia mais do que desejo. A pele morena do rosto de
Lady Marvie banhada de lágrimas deixava isso claro. Havia sido uma
jornada para ambas até ali. Aynne fora privada de autoconhecimento
e Jaqueline castigada pelo mesmo. Agora havia compreensão e
amor. Havia muito amor.
- É estranho. - disse Aynne ainda tocando o rosto da amante. -
Porque passamos a vida aprendendo como é o amor, que só é certo
de uma forma, mas isso, nós... - ela sorriu. - Parece tão certo.
- Aprendemos que o céu é azul, querida Aynne, porém basta
um pouco de paciência para aguardar o alvorecer e vê-lo tingido de
tantas outras cores. - ela sorriu por entre lágrimas. - Um belo rosa,
roxo ou laranja intenso... - ela levou sua mão aos lábios. - Isso, nós,
nunca será o típico azul que todos acreditam ser o certo, mas talvez
seja mais lindo exatamente por isso.
- Eu me perguntei diversas vezes se poderia ser somente
amizade, se estava enlouquecendo, mas meu corpo arde pelo seu
Jaqueline. - sua respiração se fundia a dela. - De uma forma que
jamais ardeu por um homem e Deus sabe que eu tentei, mas meu
céu jamais será azul como os outros. - com os olhos verdes intensos
fixos no dela, implorou: - Nunca mais esconda algo de mim.
Então percebeu que era hora. Era hora de retirar suas luvas e
lhe mostrar o que seus pulsos escondiam. As marcas claras
destacadas na pele negra que pela primeira vez estavam sendo
mostradas à luz por vontade própria.
- O que é isso? - seus dedos delicados da mão enluvada
passaram pela cicatriz com tanta suavidade que poderia ser
facilmente confundido com uma pena.
- Um presente do falecido marquês. - a palavra pai não cabia
ali. Nunca caberia.
- Ele tentou matá-la? - a cada minuto ela sentia e lamentava
por seu sofrimento, queria arrancá-lo dela a todo custo.
- Não. - negou também com a cabeça para enfatizar. Talvez se
ele o tivesse feito seria um ato misericordioso. O mais misericordioso
que já teve com ela. - Eu tentei me matar e me arrependi a cada dia
por não conseguir. - ensaiou um sorriso. - Até te conhecer.
- Deus! - exclamou com o choro prestes a tomá-la novamente.
- O que fizeram com você?
- O homem que me gerou tentou me ensinar a ser uma mulher
de verdade do jeito dele, já que nada mais havia funcionado. - nunca
havia falado sobre aquilo com ninguém e havia uma mistura de
sentimentos. Havia a dor da lembrança, a vergonha e também o
sofrimento por ver a tristeza nos olhos de Aynne. - Quando ele
terminou eu decidi que preferia morrer do que ser possuída por um
homem de novo. Por sorte os criados me encontraram ainda com
vida.
Ficou sem palavras. Aquilo era de uma crueldade grande
demais para se traduzir. Naquele momento ela se arrependeu por
cada momento que tinha julgado seu próprio pai com severidade.
Não. O Conde não era perfeito e o inferno congelaria antes dela
considerar suas traições à esposa como algo natural, mas ele era um
bom homem e um bom pai. Não poderia jamais negar isso.
- Eu sinto muito. - foi a única maneira torpe que encontrou em
traduzir em como seu coração doía ao imaginar pelo que ela havia
passado.
- Não sinta. - sabe-se como encontrou forças para sorrir e
agora tocava o rosto de sua amada com as palmas das mãos nuas. -
Eu não fui a primeira e infelizmente não serei a última a ser
incompreendida pelo jeito de amar e ele já não pode me atingir. E
agora que conheci você e não poderia estar mais feliz.
Elas se juntaram novamente em um beijo quente por entre
suspiros e ofegos. As mãos de Jaqueline exploraram suas costas até
a curva do quadril, enquanto Aynne tocava os botões de seu vestido,
claramente tentada. Estava sendo como um sonho.
Então a porta se abriu em um despertar nada suave.
Revelando os pais de Aynne e o mais novo casal do dia.

...

- Bom... Parece que você terá que se casar com a minha filha
Jaqueline ou a desafiarei para um duelo. - o Conde disse com um
toque de bom humor. - Se bem que nesse caso talvez eu devesse
perguntar quem desonrou quem...
- West! Não é hora para piadas! - a condessa parecia muito mais
preocupada do que já tinha visto e elas não ousaram rir. - Se houver
provas consistentes, um juiz mais tradicional poderia prendê-las.
- Pois que ele tente. - disse o Conde sisudo. - E não temos provas ou
testemunhas de que nada irregular aconteceu aqui... - ele olhou em
tom grave para o genro. - Ou temos?
- O que eu vi foram duas amigas se abraçando e consolando uma à
outra. - disse Lorde Kurt mantendo o semblante tranquilo. - Não vejo
como isso pode ser um problema.
A versão de Anthony da história pareceu ter deixado o sogro
satisfeito.
- Obrigada, Anthony. - Aynne o agradeceu o olhando, mas ele não
ousou retribuir. Claramente envergonhado.
- Não me compete o que faz, Srta. Fellus, mas creio que até meu
sogro entenderá quando digo, pelo bem de minha esposa e dos
futuros filhos que venhamos a ter que tome cuidado. - a voz dele era
tranquila, porém firme. - Poderia ser outra pessoa a abrir essa porta
e isso afundaria nós todos na ruína, incluindo nossos herdeiros.
Imploro para que não permita que isso aconteça.
- Como bem disse, Kurt... - o Conde estava sério. - Não lhe compete
o que minha filha faz.
- West! - a esposa o repreendeu.
- Ele está certo. - a voz de Lady Marvie irrompeu na sala. - Será
melhor para todos que eu me afaste.
- Não. - Aynne segurou suas mãos com um toque de desespero. -
Não pode fazer isso, não agora. Não depois de tudo...
- Tudo que eu lhe contei, tudo que passei... - disse agora para os
olhos dela. - Jamais me perdoaria se algo assim acontecesse com
você.
- Mas não vai acontecer. Meus pais não são assim...
- Mas a sociedade é cruel, querida Aynne. - sorriu acomodando
suas mãos nas suas. - Não há espaço nela para alguém como eu.

- Jaqueline... - balbuciou mais uma vez com um sussurro.


Ela deixou a sala.
Aynne afogou seu choro nos braços de Miranda.

...

- Você está infeliz. – não era bem uma pergunta, Miranda a


conhecia o suficiente para saber que sim.
Aynne deu um sorriso parando de tricotar a manta por um
momento. Então tocou a barriga arredondada da irmã
carinhosamente. Já fazia meses que não tinha notícias de Jaqueline.
As duas evitavam até se olhar nos bailes, até que depois de outros
pedidos de casamento, Aynne decidisse não mais comparecer a
eles. Muito havia mudado e pouco havia mudado.
Seu coração ainda era o mesmo. Ainda a amava
profundamente e tinha para com ela que sempre amaria. O mais
doloroso, era que via esse mesmo amor nos olhos escuros de Lady
Marvie quando ousavam se olhar por alguns meros instantes nos
eventos públicos, mas uma escolha havia sido feita. Jaqueline havia
escolhido se afastar para o bem de sua família e Aynne decidira não
insistir pelo mesmo motivo.
Agora que Miranda estava esperando o primeiro filho as
coisas só haviam se complicado. Sobretudo, se fosse uma menina,
tudo que esta não precisava era de uma tia envolvida em
escândalos. Ela estava linda, radiante, feliz e... A única coisa entre
ela e a felicidade plena era a falta do mesmo brilho nos olhos da
irmã.
- Claro que não, irmã. – garantiu, mas mesmo sendo uma boa
mentirosa não a convenceu. – Como poderia estar quando está
esperando meu sobrinho?
- Isso não é justo, Aynne. – ela parecia prestes a chorar ou
esganar alguém, ou ambos para ser mais exata. Deveriam ser os
hormônios da gravidez. – Cada indivíduo dessa sociedade hipócrita
tem algo a esconder e você seria julgada por... Amor?
- Miranda, querida. – disse em voz controlada, mais ainda
agora diante de sua sensibilidade. – Nós já lhe aconselhamos a não
mencionar mais isso. Eu ficarei bem. Não preciso me casar.
- Mas deveria! – disse com irritação. – Deveria poder se casar
com ela! Eu disse isso a papai e mamãe mais de uma vez!
- Oh, meu bem... – soltou um riso com pouco humor. – Creio
que se passarão muitos anos até que a humanidade comece a
aceitar esse tipo de coisa. Até lá estarei morta e enterrada.
- Eu estive pesquisando. – ela deixou o bastidor no qual
bordava um pequeno elefante para uma almofada do bebê. Estava
terrível, era uma sorte os bebês não serem muito exigentes quanto a
isso. – Você acredita que em outros reinos e países eles enforcam as
pessoas por isso? – parecia devidamente inconformada. – Enforcam!
Como assassinos! E que mal essas pessoas fizeram afinal?
- Irmã... - suspirou profundamente, então se voltou para uma
criada que passava. – Pode trazer um chá de camomila, por favor?
Ela precisa se acalmar.
- Não é justo. – o tom era choroso.
- Eu sei, querida. – disse a abraçando, não sabendo ao certo
se para consolá-la ou a si própria. – Infelizmente a vida nem sempre
é justa. Mas não deve...
- Aynne. – seu pai lhe chamou com voz firme, porém
carinhosa, da porta da sala com um semblante um tanto preocupado.
– Pode vir aqui, por favor?
Quanto esta se levantou após um sorriso para a irmã mais
nova, o Conde notou lágrimas em seus olhos e seu semblante aflito.
- Devo pedir uma carruagem para que volte para casa, meu
bem? – questionou, embora lhe agradasse a ideia de que ela ficasse
lá pelo tempo que desejasse.
Aquela, em sua opinião era a casa dela. A casa da qual não
deveria ter saído a propósito. Muito embora, não tivesse motivo
algum para se queixar do genro, o fato era que gostaria de tê-los.
Agradar-lhe-ia e muito ter todas as filhas sob suas asas pelo tempo
que conseguisse.
- Não, papai. – negou, fungando profundamente. – Eu ficarei
bem.
- Ótimo. – assentiu e seguiu com sua mais velha até o
escritório.
Esta o observava sem dizer uma única palavra, mas parecia
apreensiva, afinal, desde o ocorrido com Lady Marvie eles não
voltaram a mencionar o assunto.
- Eu a chamei aqui, Aynne, para lhe dizer que quero que saia
da minha casa.
Ela arregalou os olhos e sentiu o chão fugir de seus pés.
Ficou absolutamente sem nenhuma palavra mais para dizer. Não lhe
dera nenhum indício de que aquilo poderia acontecer. O que viria
depois? Convento? Tortura?
- Não é apropriado que continue morando sob meu teto como
uma solteirona. – ele continuava completamente sério. – O melhor é
que se mude para Greichil, nossa propriedade do interior com outra
jovem solteirona para lhe fazer companhia, ou talvez para Marvie se
ela preferir. – ele se virou e pegou uma caixinha em um dos
armários. – Aproveite e leve o anel de noivado de sua avó. Tenho
certeza que fará bom uso dele e...
- Ah papai! – correu sem pensar para seus braços e o
espremeu contra o corpo. Sentindo que este já chorava e soluçava
junto com ela. – Obrigada.
- Não me agradeça, menina! – disse com severidade.
Tentando fazer com que a voz não saísse embargada. – Estou te
expulsando de casa.
- É o que dirá a todos? – ela sorriu por entre lágrimas o
olhando. – Que me expulsou de casa?
- Direi que perdemos qualquer esperança de casá-la e então a
mandamos para o interior com uma jovem igualmente sem
esperanças disso, para uma vida no campo dedicada à santidade ou
algo do tipo... – deu de ombros. – Logo a sociedade terá mais o que
comentar.
- Papai eu...
- Vá logo, sim? – questionou se virando para ocultar seu
semblante ainda choroso. – E se contar a alguém que me viu chorar
eu juro que vou pessoalmente lhe buscar em Greichill.
- É claro, papai. – assentiu sorrindo e saiu pela porta. Rumo a
mulher que amava.

...

- Coloquem na segunda carruagem, sim? – ouviu seu


mordomo ordenar enquanto olhava pela janela, esperando Deus
sabia por quem.
- Está pronta, irmã? – John perguntou a observando do lado
de fora da casa.
- Sim, eu... – ela tentou sorrir para a pequena figura do
marquês, que tão jovem já se portava como um, foi quando a viu.
Aynne corria como louca, os cabelos negros escapando do
penteado, o rosto suado, os olhos verdes determinados e nas mãos
uma pequena caixa. O vestido desconfortável havia sido erguido
acima dos tornozelos revelando velhas botas de caminhada.
- Perdoem-me. – disse ofegante e John fez um gesto para que
entrasse e a seguiu.
- A senhorita está bem? – questionou verdadeiramente
preocupado apesar da pouca idade.
- Estou... Quer dizer... Não. – respondeu com os olhos fixos
em Jaqueline. – Ainda não.
- Aynne, nós concordamos... – ela disse com um toque de
pânico.
- Tecnicamente... Eu nunca concordei com nada e... – ela se
voltou para o marquês com semblante sério. – Lorde Marvie, preciso
de uma audiência com o senhor, só vai levar alguns minutos.
- O que você está fazendo? – a outra jovem perguntou um
tanto aflita.
- É claro. – o menino assentiu, orgulhoso por ter sido
solicitado e se voltou para o mordomo. – Barnie, garanta que não
sejamos incomodados.
- Sim, Milorde. – o servo assentiu como se estivesse diante de
um homem experiente com anos de marquesado. Devia ter a ver
com o fato de que secretamente a criadagem apreciava muito mais
seu senhor atual ao anterior.
- Suponho que essa audiência inclua minha irmã? –
questionou sério e Aynne percebeu que o tinha subestimado. Era
muito inteligente apesar de sua pouca idade.
- Sim, senhor. Ela pode vir. – disse com um discreto sorriso.
Lady Marvie não sabia o que pensar. Estava inundando em
felicidade em ver Aynne, mas se tratando dela, delas, sempre seria
uma felicidade um tanto agridoce.
- Eu gostaria, Milorde... – a desalinhada lady parecia muito
séria ao dizer. – De pedir a mão de sua irmã em casamento.
- O quê? – ela perguntou antes que o marquês tivesse a
chance de dizer algo. – Nós não podemos, Aynne. Sabe que não
podemos nos casar.
- Um padre não nos casaria certamente, mas com a benção
de seu irmão podemos selar nossa união aqui mesmo nessa sala... –
ela abriu a caixa com o anel de sua família e viu os olhos dela
brilharem em lágrimas quando se ajoelhou. – O senhor abençoaria
essa união, Milorde?
- Jaqueline, você quer casar com ela, irmã? – a voz ainda
infantil perguntou e a viu assentiu com lágrimas escorrendo pelo
rosto. – Então está feito. – disse assentindo com a cabeça.
Aynne deslizou o anel pelo dedo de Jaqueline e se levantando
deixou seus lábios se unirem aos dela.
- Há um motivo para só os homens se ajoelharem... – a Srta.
Fellus disse rindo. – Isso é muito desconfortável usando anáguas.
Jaqueline e John se juntaram a ela em uma gargalhada.

...

Anos depois...
Poucas coisas na vida eram mais prazerosas do que acordar nos
braços de Jaqueline. Ela gostava de deslizar sua mão pelo corpo
moreno e se encantar com o contraste entre seus tons de pele. Ao
seu toque, viu o corpo dela se arrepiar e seus mamilos endurecerem
em desejo. Nos lábios grossos, brotou-se um sorriso.
- Não me tente, Aynne. – disse retribuindo o beijo nos lábios em
seguida. - Sabe que sou preguiçosa pela manhã.
- Então durma, preguiçosa. – gracejou tocando seu nariz
arredondado com o indicador. – Vou ler a correspondência enquanto
decide se levantar.
Só que a curiosidade falou mais alto e quando Aynne se sentou,
Jaqueline a abraçou pelas costas. Ambas completamente nuas e
confortáveis em sua cama na propriedade de Marvie no interior, onde
acordavam todos os dias do outono, reservando Greichill para os
meses mais quentes. Ambas deixaram os olhos deslisarem pelo
papel com um sorriso, cientes da sorte que tinham por terem uma à
outra.

Querida irmã,

Espero que ambas estejam bem. Queria lhe contar em primeira


mão de minhas suspeitas... Vou ter um menino. Minha sogra jura que
será outra menina, mas por Deus! Sou eu que estou carregando a
criança, acho que sei uma ou duas coisas sobre ela não?
Diferente de Alice, esse bebê é agitado e sequer me deixa dormir
a noite. Temo ter que contratar o dobro de amas antes que ele deixe
meu ventre. Anthony jura não acreditar em minhas suposições, mas
está secretamente comemorando que terá seu herdeiro. Penso em
chamá-lo de David, pois era o nome do meu sogro. Não o conheci,
mas era um bom homem pelo que contam. Para aguentar minha
sogra deveria ser um santo, realmente.
Alice continua uma linda menina e está ansiosa pela chegada do
irmão. Ela tem as suas bochechas redondas, Aynne. Não vejo a hora
de podermos nos rever novamente, mesmo sabendo que
combinamos fazê-lo o mínimo possível...
Mas não cederei a melancolia e sim me aterei aos fatos
importantes. Deve estar curiosíssima com os últimos acontecimentos
da temporada, estando tão distante da capital... Sabia que o
primogênito do Barão de Nadall é um bastardo? Estamos todos
completamente chocados, parece que a esposa dele...

Início da carta de Lady Kurt, já a mais notória fofoqueira de


Figior, à irmã e à Lady Marvie que sempre sorriam ao recebê-las,
mesmo não tendo qualquer interesse pelas fofocas da sociedade.
Sobre o autor
Jéssica Malvestuto nasceu e mora atualmente em São Paulo capital
com seu marido e seu gato Tomas, batizado em homenagem às
Collins. Nutricionista formada pela USP, pós graduada em psicologia,
sempre foi apaixonada por romances de época e contos de fada. Até
que depois de tanto lê-los resolveu criar suas próprias histórias.

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