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As Collins 6
Jéssica Malvestuto
Copyright © 2021 de Jéssica Malvestuto
ISBN: 978-65-00-34084-6
...
Capítulo 1
A burguesa de coração de gelo
“Querida mamãe,
Sabe que não há nada que eu deteste mais que decepcioná-la, a não ser, é
claro, mentir para a senhora. Portanto, serei sincero ainda que me doa e
suponho que deva lhe pedir desculpas antecipadamente. Perdoe-me, mas
não existe a mais remota e mínima possibilidade de eu comparecer a este
casamento amanhã. A menos que aconteça um milagre.
Seu filho mais adorado, bonito e sem título,
Nathan Carffort.”
...
Tristan Solluin
...
Companhia Naval Solluin
Rua Blacking, 793
...
...
...
O consolo – talvez o único consolo – era que não era o único homem
estúpido naquela sala. Allan também ficou fascinado pela menina. Era
bastante evidente que a pequena tinha o mesmo melado da mãe. Esse era o
menor dos problemas. Por outro lado, ela tinha uma filha. Maldição! Ela
tinha uma filha e naquela sedução toda de “Vamos nos casar” não
mencionara a criança nem uma vez. Será que ela tinha noção do quanto
aquilo era importante?
- Peço perdão por não recebê-las mais adequadamente. – disse a duquesa
com o típico semblante afável. – Meu filho me avisou que tínhamos visitas
na última hora.
Helena Carffort olhou para o filho com um toque de censura que o fez
sorrir. Era impressionante como sua mãe havia envelhecido bem. Sim,
haviam rugas de expressão, boa parte delas derivadas de muitos sorrisos – o
que era maravilhoso – e ela já pintava os cabelos loiros para ocultar os fios
brancos. E obviamente, o Duque ainda ficava de joelhos por ela.
Aquilo fora sua perdição. Seu pai e irmãos ficavam de joelhos pelas
esposas, os gêmeos Harry e Henry ficavam de quatro por Isabelle e
Cassandra, respectivamente, e Kurt comia na mão de Meredith. Para ele
aquilo era tão certo, aquele amor desenfreado e cuidadoso, que só esperava o
mesmo para ele. Ele teria comido na mão de Emily com prazer e fora aquele
pensamento que o levara a ruína.
Agora estava ele ali, sentado na sala de chá de sua mãe, diante da mulher
mais irritante que havia conhecido e da filha dela, que até então não sabia
que existia. Aquela mulher queria casar com ele, pelos motivos errados, mas
ele havia tentado casar pelos motivos certos e tudo havia rolado ladeira
abaixo. Casar por amor seria a última coisa que Nathan almejaria na vida. A
última coisa.
- Acredite, mamãe, a senhora não é a única que está surpresa.
Lavínia deixou um sorriso – daqueles devastadores – escapar de seus
lábios. Estava falando da filha dela com toda certeza. Sabia que não havia
lhe dito que tinha uma filha, mas isso não era errado, afinal ele não havia,
em momento algum, perguntado. Errado era ter omitido o fato
deliberadamente, mas isso era outra história.
- Eu é que peço perdão, Milady. – se voltou para Lady Dachmour. – Não
era minha intenção ser um inconveniente.
- De forma alguma. Qualquer amiga do meu filho é também amiga.
Amiga não era bem um adjetivo que usaria para se referir a ela. Não
estava pensando em amizade. Seus pensamentos estavam mais relacionados
a cabelos ruivos espalhados em seus travesseiros, sussurros baixos seguidos
de gemidos escandalosos. Jamais esperaria isso de uma amiga.
- Então... Eu soube que comanda uma companhia naval. – iniciou a
anfitriã.
Sua mãe também havia ficado encantada com a menina e trocado algumas
palavras com ela, mas diante de uma viúva jovem que havia sido convidada
de seu filho solteiro, era pedir demais que ela pensasse em outra coisa. Toda
sua atenção estava voltada para Lavínia.
Enquanto a história enfadonha se desenrolava, a atenção volúvel de
Nathan foi parar novamente na criança, a qual interagia com uma criada
pronta para servi-la.
- Chá, Srta. Solluin? – questionou já com o bule fumegante na mão.
A menina olhava para o recipiente como se este abrigasse uma mistura
diabólica. Como o caldeirão de uma bruxa. Sendo filha de quem era, era
esperado, porém louvável o modo como escondeu seu asco pelo cheiro das
ervas atrás de uma feição meramente educada.
- Não, obrigada. – respondeu rapidamente.
- Luísa... – uma voz firme e feminina a censurou.
Achou que a atenção de Lavínia estava voltada para a conversa com a
duquesa, mas as mulheres eram assim mesmo. Chegava ser assustadora a
capacidade de fazer cinco coisas ao mesmo tempo.
- Com muito açúcar por favor. – corrigiu.
Pelos céus! Como ele entendia aquela criança. Chá foi algo que ele não
nasceu gostando. Para ser mais preciso ele não suportava. A sensação era
que seu estômago sairia pela boca a qualquer minuto.
Aprendera que sem açúcar este ficava menos intragável. Era como beber
remédio. Com o tempo, a bebida passou de horrível para indiferente. Não
passou a gostar de chá, mas se acostumou com ele. Como se acostumaria
com Lavínia.
Ela era a mulher perfeita. Fria e calculista. Ousada o bastante para lhe
oferecer sexo prazeroso; e mesquinha o bastante para não amá-lo e não
exigir amor dele. Mas tinha que voltar ao ponto inicial. A criança que torcia
o nariz pequeno para a bebida quente e o cheiro que exalava ao deslizar do
bule para a xícara de porcelana.
A criada colocou um, dois, três cubos de açúcar e no quarto, finalmente
Vossa Majestade parecia estar satisfeita. A colher remexeu o líquido e uma
quantia generosa de açúcar sedimentou no fundo. Nathan, como especialista
em ser “odiador” de chás, sabia que aquilo em nada adiantaria.
- Santo Deus! – este exclamou com muito vigor.
Todos os olhos foram parar nele, demonstrando o mesmo espanto que este
encenava.
- O que foi? – seu irmão questionou e tinha certeza que se não estivessem
na presença de damas teria acrescentado um “diabos” a pergunta.
- Uma mosca! – respondeu ainda de forma exagerada olhando para a
xícara de Luísa.
Essa se voltou para o objeto um tanto espantada.
- Uma mosca? – a criada questionou levantando a xícara nas mãos.
- Sim mulher, não está vendo?
Quem sabe, se a mosca de fato existisse, ela a enxergaria. Um olhar rápido
e notou que esta havia entendido sua intenção. De certo tinha percebido a
aversão da menina tanto quanto ele.
- Santo Deus! – levou a mão ao peito exasperada.
Uma atriz nata que deveria ser recompensada por seu talento. Merecia um
agrado no salário.
- Oh! – Helena exclamou. – Eu peço perdão, querida.
- Troque a xícara da Srta. Solluin imediatamente e traga uma com
chocolate quente. – ordenou o lorde parecendo devidamente ultrajado como
se alguém tivesse culpa pela mosca inexistente.
A menina olhou para ele, os olhos vidrados de espanto. Nathan piscou.
Então, esta também entendeu e deu um sorriso doce que por si só valerá todo
aquele alvoroço teatral.
- Todas as moscas já estão detidas, Milorde? – desconfiada, seria a palavra
que definiria a Sra. Solluin.
- Eu acredito que sim. – respondeu com o melhor rosto de inocente.
- O que seria de nós sem o senhor, meu lorde? – deu um sorriso doce.
Qualquer um, mesmo sua mãe e Allan juraria de pé junto que Lavínia
estava perdidamente apaixonada por ele. Entretanto, ele sabia a verdade.
Sabia o quanto estava sendo irônica e aquilo o divertiu. Aquilo e o olhar de
orgulho de sua mãe.
- Voltando ao assunto, Alteza... – tornou a olhar para Lady Dachmour. -
Não tem sido fácil administrar os negócios de meu marido após sua morte.
A duquesa deu um sorriso compreensivo e segurou a mão da jovem por
alguns segundos. Dando um suspiro fundo.
- Eu, mais do que ninguém, sei o quanto é desafiador para uma mulher
manter a casa sozinha. Sobretudo com filhos.
Sabia. Era o que fazia dela uma mulher da qual os filhos tinham imenso
orgulho. Depois que o Sr. Collins havia falecido ela enfrentara privações,
fofocas e exclusão social. Contando com a ajuda financeira do benfeitor das
meninas, o Duque de Dachmour, amigo de seu falecido marido, ouviu
enxames de burburinhos que diziam que eram amantes e sempre haviam
sido.
Seu orgulho a impedia de aceitar do Duque mais do que o necessário para
a sobrevivência e com isso trabalhava dia e noite como costureira,
dispensara os criados e limpava a própria casa.
Os móveis começaram a ficar velhos, as cortinas e tapetes desbotados e
rotos, até Isabelle se casar com Harry. O Santo filho mais novo do marquês
que assumiu a família dela como se fosse dele. Até Helena se casar com o
Duque, Harry pagou cada vestido, almoço e jantar das Collins e todo o resto
que precisaram, incluindo a educação das meninas. Era uma situação
bastante confortável, mas ela se descobriu apaixonada por Lorde Dachmour
e ambos se casaram por amor.
- Isso é porque a sociedade coloca empecilhos em tudo o que precisamos
fazer. – a Sra. Solluin acrescentou.
- De fato. – a anfitriã assentiu. - Mas deveria se casar novamente, Sra.
Solluin. Pelo conforto e, principalmente, porque é muito jovem para ficar
solteira.
Sutil, porém não tanto. O estilo único de sua mãe. Como havia previsto, a
duquesa a havia aprovado e agora estava desesperadamente tentando juntar
os dois.
- É o que digo também a Nathan. Está desperdiçando a vida fugindo do
altar.
Nada, nada sutil desta vez. Mais clara que isto só se ela começasse a
planejar a festa, comprasse um anel para a noiva e só então os informasse.
- Ou apreciando a vida. – murmurou baixo, mas Lavínia o ouviu. Ficou
evidente no rosto dela quando lhe deu um sorriso zombeteiro.
Por mais que Lady Dachmour estivesse desesperada para casar o filho,
nunca havia aprovado alguém tão rápido. Havia precisado de um mês para se
acostumar com Emily e mesmo depois a tratava com uma educação
ensaiada. Completamente diferente da maneira que tratava seus genros.
Nathan achava que era devido ao fato de ele ser homem e o caçula, mas
nunca tinha perguntado.
Não fazia ideia do porque ela encantara sua mãe tão rapidamente.
Maldição! Não podia mentir para si mesmo, sabia sim. Havia aquele sorriso
devastador, a confiança ao falar e o fato de terem muito em comum. Ambas
haviam ficado viúvas, ambas sabiam do valor do dinheiro porque este não
havia caído em seus colos, muito embora, sua mãe ao perder o primeiro
marido não tinha nem um milésimo da fortuna de Lavínia. Em resumo, ela
era a mulher perfeita.
- Boa sorte. – leu nos lábios do irmão conteve o riso.
- Já faz quase dois anos, Milady. – ela deu um suspiro melancólico. – Não
vou negar que meu coração está aberto.
Coração. Como se aquela criatura ruiva, perversa e perigosamente linda
tivesse um coração cuja a função não fosse unicamente bombear sangue. Por
Deus! Aquilo era uma lágrima escorrendo pelo rosto dela? A burguesa de
coração de gelo não tinha limites.
- Perdoe-me. – pediu em tom baixo.
Aquela mulher era uma excelente atriz. Das melhores mesmo. Tanto que,
em um passe de mágica, o lenço de seu irmão foi parar nas mãos dela e sua
mãe a olhava com preocupação.
- Obrigada, Milorde. – agradeceu o herdeiro do ducado com um sorriso.
Nathan sentiu um calor desconfortável se espalhar pelo corpo e se
remexeu no sofá. Era, concluiu, bastante desconfortável vê-la sorrindo para
outro homem. Não que ele estivesse com ciúmes. Aquilo era ridículo ele
só... Maldição! Aquilo já havia ido longe demais.
- Gosta de pássaros, Srta. Solluin? – questionou para a menina que já
tomava sua xícara de chocolate quente. Tentando mudar o rumo da conversa,
o clima da sala.
- De que pássaros estamos falando, Milorde? – a menina questionou
pousando a xícara e cruzando as mãos no colo em seguida. – Seria um
pardal, um pintassilgo ou um dom-fafe?
Que Deus o ajudasse! Estava diante de uma enciclopédia ambulante da
fauna de Figior. Ela e Jenny, aquela rata de biblioteca se entenderiam
otimamente bem.
- Eu não faço a menor ideia. – e sequer teve o trabalho de esconder isso. –
O fato é que um animalzinho com asas resolveu fazer um ninho em uma
árvore no jardim.
Os olhos dela adquiriram um doce brilho curioso.
- A senhorita parece uma especialista em pássaros. – ela sorriu com a
presunção da mãe. – Quem sabe não possa vir comigo e me dizer do que se
trata?
Luísa olhou para a mãe, que assentiu um sorriso. Como se tudo aquilo
fosse perfeitamente ensaiado. O que não era uma surpresa, considerando que
sempre parecia se comportar como se o universo estivesse sob seu controle.
Até o momento, ele de fato estava.
- Eu adoraria, Milorde.
Nathan sorriu e a acompanhou até a janela. Sim, ele era o caçula da
família, mas sabia lidar com crianças. Sua família era imensa, suas irmãs
levavam muito a sério a parte bíblica do “Cresceis e multiplicai-vos.” e ele
tinha uma quantidade generosa de sobrinhos.
Isabelle tinha cinco, Cassandra três, Meredith e Jenny eram as mais
controladas com dois cada uma. Além disso, Sara, sua sobrinha que era um
ano mais velha que ele tinha um filho de seis anos e havia dado à luz a
gêmeos no ano passado. Era de se esperar que ele soubesse lidar com uma
menininha inocente de no máximo oito anos, mas Luísa Solluin era tão
desconcertante quanto a mãe.
- É um Tentilhão. – a voz infantil soou ao lado dele.
- Perdão? – questionou alheio ao que falava.
Desviou o olhar para Luísa que na ponta dos pés, com as mãos apoiadas
no batente da janela, analisava o ninho na árvore alta do jardim. Ela o olhou
confusa.
- O pássaro. – explicou.
Havia reconhecido pela cabeça coberta de pequenas penas azuis com um
marrom dourado na região dos olhos. Ele estava parado no galho cuidando
da esposa de cor marrom pálido, aconchegada no ninho.
- É um tentilhão.
- Ah! Ótimo! – sorriu. – Eu...
- Eu não estou aqui com o senhor por causa do pássaro, não é?
Nathan riu. Apoiou as mãos no batente da janela e inclinou as costas sem
conter a gargalhada espontânea que subiu por sua garganta.
- Você é tão inteligente quanto a sua mãe. – comentou a fazendo sorrir,
reconhecendo que era um maravilhoso elogio. – Eu tenho algo para te
perguntar.
- É sobre o chá?
Os olhos azuis eram doces, inocentes, assustados e preocupados. Como se
fosse um crime não gostar de chá. Para a nobreza, de fato, era um crime,
senão um crime, uma aberração.
- Não. – deu um sorriso reconfortante. – É sobre sua mãe.
- Eu não sei porque ela está chorando. – virou a cabeça para vê-la. –
Mamãe não chora com frequência.
- Na verdade a pergunta é um pouco mais complicada que isso.
Sabia porque Lavínia estava chorando. Estava chorando porque era uma
pilantra manipuladora que queria amarrá-lo para todo sempre. Queria saber
outra coisa.
- Como se sentiria se sua mãe se cassasse de novo?
Luísa pareceu pensar pelo período de uma eternidade, mas não importava.
Se ele estivesse no lugar dela queria que alguém perguntasse isso a ele. Não
tinha a intenção de entrar na vida dela e bagunçar tudo, não tinha esse
direito. Teria prazer em bagunçar a vida da mãe dela, mas quando isso
envolvia uma criança, tudo mudava.
- Isso depende. – concluiu seu raciocínio.
- Depende... – instigou.
- De com quem ela se casar. – acrescentou colocando alguns fios ruivos
atrás da orelha.
- Se for... – as coisas estavam ficando difíceis, cada vez mais. – Se for eu,
por exemplo.
Desta vez a resposta foi mais rápida. Abençoadamente mais rápida.
- Gosto do senhor, Lorde Carffort. – assentiu com veemência. – Não
parece ser malvado e gosta de pássaros.
- E odeio chá.
A alegação pareceu tê-la deixado espantada.
- Odeia mesmo?
- Ah sim! Com todas as minhas forças.
- Gosto ainda mais do senhor por isso.
Riu novamente, mas em seguida a seriedade o tomou.
- Eu gostaria de pedir a mão de sua mãe em casamento. – engoliu em
seco, o tanto que aquilo era verdade o perturbou. - Entenda, eu não quero
substituir seu pai nem nada disso eu só...
- Tudo bem. – interrompeu para seu alívio. - Seremos bons amigos que
não tomam chá.
Nathan a olhou por um momento e um sorriso melancólico surgiu em seu
rosto. Que os céus o ajudasse! Corria sérios riscos de passar a amar aquela
criança.
- Seremos sim. – afirmou.
...
Capítulo 3
Contrato de casamento
Até o momento tudo havia ocorrido conforme o planejado. Sua filha havia
encantado Lorde Nathan e por que não encantaria? Luísa era encantadora
sem precisar de qualquer estímulo. A Sra. Solluin sabia que bastava colocá-
la na sala e ela ganharia o apreço das pessoas, mesmo que essas pessoas
fossem as mais poderosas de Figior. A menina tinha esse poder e que Deus a
perdoasse por aproveitar.
E fora assim. Sem ensaios ou orientações. Simplesmente convidara a
pequena para um chá com a duquesa e os olhos azuis brilharam. Sua
pequena ambiciosa. Graças a ela estava caminhando no jardim a sós com
Lorde Nathan. Apreciando os aromas da primavera e esperando... Esperando
aquela pergunta.
- Quando pretendia me contar que tinha uma filha? – atendeu a sua
expectativa.
- Não coloque como se eu a tivesse escondido. – retrucou marota. Os
cabelos mais avermelhados pela luz solar.
- A senhora a escondeu. – acusou com o semblante sisudo, aristocrático e
profundamente desconcertante.
Lavínia puxou o ar fundo em seus pulmões almejando parar de ser idiota.
O tiro saiu pela culatra. Junto com os aromas adocicados vinha o cheiro
masculino. O cheiro dele misturado ao de tabaco lhe deu um arrepio na
espinha. Ela não podia desejar aquele homem.
Longe dela querer ser uma puritana, não era com o desejo em si que
estava preocupada e sim com a intensidade. Desejá-lo daquela maneira
tornaria as coisas complicadas, a faria perder o controle que a mantinha tão
firme.
- Eu jamais esconderia Luísa. – respondeu com certo ultraje por ele sequer
ter sugerido isso. - O caso é que o senhor não perguntou.
- Não perguntei! – exclamou exasperado parando de andar. - Ora mil
perdões, Vossa Majestade. Que cabeça a minha. – destilou ironia sem
moderação para cima daquela mulher tão, tão, difícil, diabos! - Sempre
costumo ter esse tipo de conversa com mulheres estranhas que invadem a
minha casa.
- O senhor me permitiu entrar. – corrigiu a tempo.
Lembrava-se muito bem dessa parte. Entregara o cartão para o mordomo,
esperara pelo que parecia uma eternidade e quando achou que seria mandada
embora com um pedido de desculpas, ele a recebeu. Ele a recebeu por livre e
espontânea vontade!
- Mas que deslize o meu, essa é uma pergunta corriqueira afinal. –
continuou parecendo sério e ainda assim provocativo. O filho do Duque era
bom em ser as duas coisas. - Qual o seu nome, Milady? Ah que nome lindo!
A propósito a senhora não teria uma filha?
- Eu não a escondi. – insistiu já um pouco irritada com a situação. Àquela
altura eles deveriam estar flertando um com o outro segundo seus planos,
não discutindo quem escondeu o que. - Eu a amo.
- Era de se esperar que se alguma criatura em todo mundo tivesse a chance
de conseguir entrar nesse coração gelado, seria ela.
Uma sobrancelha dele se ergueu, o semblante provocativo mais claro
agora. Claro como os cabelos acobreados de Lavínia. Ele tinha muitas,
muitas ideias a respeito do que poderia fazer com aquele cabelo, com ela.
Nenhum muito decente.
- Luísa é o meu mundo. – disse, espontânea.
A declaração sincera o comoveu e o silêncio reinou por algum tempo.
Nathan já ouvira aquilo algumas vezes. Anos atrás, nas noites de tempestade
que ele tremia e suava frio, com pavor, Helena o aconchegava no colo e
dizia aquelas mesma palavras. “Você é o meu mundo, querido. Nada vai te
acontecer enquanto eu estiver aqui.”
Aquela criança que entrara em sua cabeça para ficar tinha uma mãe tão
amorosa quanto a dele. Mãe! Lavínia era mãe. Como podia ser?
- Quantos anos ela tem? – questionou com o cenho franzido,
compenetrado em seu próprio raciocínio, com medo das conclusões que
tomava.
- Oito. – respondeu sem emoção.
- E quantos anos você tem?
Sabia onde ele queria chegar e não gostava da direção. Tinha que impedi-
lo de continuar ou tudo rolaria ladeira abaixo.
- Isso não é pergunta que se faça a uma mulher, Milorde. – repreendeu
com veemência. – O senhor deve saber disso mais que ninguém.
- Dados os últimos acontecimentos eu farei todas as perguntas que me
vierem à cabeça e, se ainda insiste nessa loucura de casamento, é melhor
responder.
A firmeza na voz dele e no olhar fora perturbadora. Era mesmo um
Carffort, o filho do Duque de Dachmour. Com a firmeza e o tom de voz para
comandar um exército desordenado e transformá-lo em imaculado. Para sua
vergonha, não era imune a tal poder.
- Vinte e quatro. – cedeu, contendo o rubor para que não se tornasse
aparente em seu rosto.
- Vinte e quatro. – demorou alguns instantes para ficar assustado. –
Maldição! Eu estou fazendo contas, Lavínia e não gosto dos resultados.
- Fala das suas finanças, meu lorde? – desviou o assunto de forma
ineficiente porque foi ignorada.
- Minhas finanças estão em ordem. – respondeu sem se desviar da questão
inicial. - A senhora engravidou com apenas quinze anos?
- Vejo que é bom em aritmética. – ironizou sem superestimar a afirmação
daquele que a ouvia.
- Maldição! – praguejou passando a mão pelos cabelos castanhos. -
Como você pôde... Como pôde...
- Não termine a frase, eu o advirto. – interrompeu com firmeza.
“Por favor, não termine a frase. Por favor, não estrague tudo. Por favor,
Deus, não permita.”
- Como pôde se...
- Pare. – cortou firmemente.
- Você se deitou com aquele velho com apenas quinze anos, sua
desvairada?
A pergunta havia sido furiosa e a atingido como uma bala. “Oh não!”
Sim. Ele havia estragado tudo. Tudo mesmo. Ele deu o primeiro tiro, Lavínia
acendeu os canhões dela.
- Nunca, nunca mais se refira a ele dessa maneira. – chegou mais perto e o
encarou nos olhos, furiosa. - Eu não ligo se me ofender, Milorde, mas não
ouse ofender meu falecido marido. Peço perdão se a ideia é chocante demais
para sua mente casta, mas o que eu direi será ainda pior para que entenda. –
as palavras tinham um gosto amargo e um som amargo. - Se ele ainda
estivesse vivo eu iria com prazer para cama com ele por quantas noites ele
desejasse. Eu o amava de um jeito que as pessoas como o senhor não
entendem, portanto sugiro que jamais abra a boca para ofendê-lo novamente,
se o meu respeito representa algo para Vossa Senhoria.
O silêncio, e então o inesperado. Já contava com o momento que ela iria
embora. Que sairia da casa da duquesa solteira e com menos prestígio social
do que quando entrara, mas parecia que o universo conspirava em seu favor.
Nathan parecia surpreso, mas nem um pouco irritado.
- Perdoe-me. – disse em tom baixo e percebeu o choque no rosto dela.
Homens como ele não costumavam pedir perdão, menos ainda para
alguém considerado inferior da escala social. Sobretudo os Carffort não
tinham o costume de ceder. Exceto quando estavam apaixonados, mas aquele
não era o caso, convenceu a si mesmo.
- Eu não tinha ideia de que o amava. – e não sabia se a informação havia
sido um alívio ou não. - É que você é tão... Você é tão...
- Jovem? – sugeriu.
Havia ouvido a mesma coisa milhares de vezes e já imaginava que era o
que viria. Muito jovem para se casar com um homem de mais de três vezes a
sua idade, muito jovem para ser mãe. Só que a idade não importava e sim o
conforto. Só o conforto.
Ainda se lembrava daquela garota assustada e molhada invadindo a
propriedade de Solluin, implorando por ajuda. Parte dela ainda era aquela
garota. Fora essa parte, infantil e tola que se chocou com a resposta dele.
- Linda. – corrigiu.
A resposta pareceu sugar todo ar de seus pulmões. Não que ela duvidasse
de sua beleza, recebia cartas e mais cartas com propostas indecentes de
homens que, apesar de não querê-la em sua vida, a queriam em sua cama. O
espanto fora por outro motivo. Nathan a olhou de um jeito quando proferiu a
pequena e aparentemente inofensiva palavra que fez seus joelhos
fraquejarem.
Seu rosto era puro espanto. Os olhos azuis, quase cinzas pela luz do sol, se
arregalaram. Deus! E ele sempre achara Emily a mais interessante das
criaturas, que tolo. Então os lábios rosados se curvaram em um sorriso
provocante.
Estavam em um ponto do jardim de onde teriam uma visita privilegiada da
sala de visitas. Parte dele sabia que sua mãe poderia estar naquela janela,
pior, Luísa poderia estar naquela janela. Só que essa parte sensata foi
ignorada e ele a beijou para quem quisesse ver.
Uma moça casta o empurraria na altura do peito e impediria o escândalo.
Só que Lavínia não era uma mocinha, ela era uma mulher adulta e decidida.
Havia decidido beijar Lorde Nathan e nem a mais neurótica das beatas
conseguiria impedi-la. Retribuiu, sem pudores ou fingimentos. Talvez fosse
o que de mais honesto houvesse nela, o desejo por ele.
Quando ele se afastou levantou a cabeça e olhou para a janela. Inútil, não
conseguia enxergar nada devido ao sol ofuscante. Então se voltou para a
mulher a sua frente. A burguesa de coração de gelo ainda com a postura
perfeita e o cabelo arrumado enquanto ele perdia o fôlego. Franziu o cenho e
a segurou pelos ombros.
- Você é irritante mulher, você é impossível, você... Você... – não havia
uma palavra apropriada para descrevê-la. - Por Deus! Case comigo.
- É um pedido, Milorde? – o sorriso tentador voltou a seu rosto.
- Sim, é um pedido. – afirmou com tom determinado, mas ainda assim um
pouco irritado. Se ele acreditasse em magia negra, juraria que era alvo de
algum feitiço daquela mulher.
- Serei útil. – pontuou com segurança.
- É bom que seja. – saiu mais ríspido do que ele gostaria, Lavínia não se
importou.
- Deixarei Lady Emily de joelhos. – prometeu.
Nathan não queria Emily de joelhos. Queria Lavínia de joelhos diante
dele, não para implorar perdão ou qualquer imbecilidade medieval. Ele só a
queria de joelhos para abrir as calças dele e...
- Está fantasiando comigo, Milorde? - foi uma brincadeira, mas ao que
parecia, ela fora mais precisa do que o normal nas brincadeiras.
Nathan sorriu. Um sorriso malicioso que fez o rubor causado pelo calor se
intensificar no rosto dela. As belas maçãs destacadas.
- Eu fantasio com mulheres com frequência.
- Que doce. – ironizou tentando esconder o calor desconfortável que a
percorreu.
- Ah! Estão muito longe de serem fantasias angelicais. É bom que saiba.
Um predador perigoso era o que ele parecia. Passando os dedos
essencialmente masculinos da mão direita em seu pescoço. A atenção focada
na pele macia e deliciosa de Lavínia.
- Você estará no baile esta noite, com um vestido de cair o queixo e o meu
anel de noivado no dedo.
Lá estava de novo a voz da autoridade, do poder, da sensação de
onipotência das quais padeciam os seres da espécie dele.
- Será um prazer, meu lorde. – sorriu com disposição. – Depois, é claro,
que assinar o contrato.
Contrato? Que diabos...
...
Bilhete da Sra. Lavínia Solluin escrito para seu advogado, dias antes, para
que formulasse o contrato nupcial.
...
Capítulo 4
Livro dos pássaros
“Sei que sempre quer ser a primeira a receber as grandes notícias, meu
bem. Então, se prepare para essa.
Seu irmão veio me apresentar uma jovem essa tarde, foi até uma joalheria
assim que ela saiu e deve estar, nesse momento, a buscando para o
casamento da condessa. Nathan está noivo. Minhas preces foram
atendidas.”
“Por Deus mamãe! Esse não é o momento para utilizar seu poder de
síntese. Como ela é? Quem é ela? É mais bonita que a jararaca? Conte-me
tudo!”
“Não tive tempo para descobrir muito. Trata-se de Lavínia Solluin. Viúva,
determinada, rica, cabelos ruivos, olhos azuis, muito bonita e educada. Tem
uma filha adorável.
Em resumo, o tipo de mulher que mata jararacas na primeira paulada –
que Deus me perdoe a ofensa.
Meu único medo, querida, é que os jornais e a corte suponham que o
casamento da condessa é o único motivo deste noivado ter acontecido.”
A contra resposta.
...
Ela deixaria Emily de joelhos. Assim que colocou os pés na mansão dos
Solluins e o mordomo chamou a patroa teve a mais absoluta certeza disso.
Lavínia estava estonteante.
Aquela não era uma beleza vulgar, tão pouco clássica e muito menos
comum. Esta usava um vestido prateado com corpete justo e decote baixo –
no limite do decoro. Luvas de seda da mesma cor cobriam seus braços e em
suas costas um tule bordado dava a ilusão de uma capa que encontrava a
barra do vestido. O penteado elaborado deixava escapar cachos modelados
que caiam por seu pescoço, tentando cada homem a desejar beijá-lo.
Ele vira Emily pela manhã, a beleza clássica e pálida, loira de olhos
verdes. Dentro do vestido elaborado de noiva que deveria ter custado uma
fortuna para o barão – esperava mesmo que ela esvaziasse os bolsos dele.
Jurou que ninguém naquele dia poderia superar aquela beleza, então viu a
jovem viúva dando aquele sorriso perturbador. Levantando-se do sofá.
- Geralmente as mulheres nos fazem esperar. – foi a primeira estupidez
que viera a sua cabeça e saíra de seus lábios.
- Não sou uma mulher comum. – declarou caminhando até ele. O barulho
do salto alto mal era ouvido. Era como se flutuasse.
- Não. – enfatizou deslizando o olhar pelo corpo dela.
- Eu recebi o contrato por seu criado.
Lá estava ela parando seus devaneios e fazendo com que voltasse a
realidade. A frieza em sua voz fez com que parasse de fantasiar com ela.
Aquilo, aquilo tudo era uma transação de negócios conveniente para ambos.
O interesse dela nele ia muito além do interesse comum de uma mulher por
um homem. Ela o queria para seus negócios e talvez – se tivesse sorte – para
sua cama também.
- Achei um tanto exagerado, Sra. Solluin, mesmo vindo da senhora.
Levou a mão dela aos lábios em um cumprimento. O cheiro o deixando
tonto, embriagado.
- Uma mulher deve se proteger, meu lorde. – curvou os lábios bem
desenhados em um sorriso.
Só que naquele momento nada a protegeria. Pela manhã tudo que queria
era exibi-la naquele baile, no momento sequer queria ir para ele. Sua vontade
era arrastá-la para um daqueles sofás e deixá-la ofegante de luxúria.
Que se danassem Emily, o barão e a sociedade que o tomaria como
covarde. Seria um covarde feliz se passasse a noite na cama com Lavínia. A
mulher que colocava seu lado cavalheiro para dormir.
- Lavínia... – chamou.
A mão em sua nuca e os lábios prontos para encontrarem os dela.
- Senhora? – uma voz hesitante os barrou.
Lavínia pareceu ter levado um susto. Deu um pequeno salto se afastando
dele rapidamente. Virando-se para encarar sua criada. Por Deus! Onde ela
estava com a cabeça?
- Sim?
- É a Srta. Solluin. – a criada morena de olhos grandes informou.
A preocupação tomou o rosto da patroa. Luísa. O que teria acontecido
com Luísa?
- Ela está bem?
- Sim senhora. – concordou rapidamente. – Já está na cama. Mas ela está
chamando...
Deu um sorriso de puro alívio.
- Claro, eu irei até ela. – se voltou para Nathan. – Não levará muito tempo,
tenho certeza.
- Está chamando Lorde Carffort, senhora. – a criada parecia um tanto
envergonhada ao corrigir.
Nathan arregalou os olhos ao mesmo tempo que a noiva. Luísa queria
falar com ele? Havia chamado por ele depois de uma conversa breve e um
chocolate quente?
- Eu volto logo. – respondeu com um leve sorriso que era mais feliz que
presunçoso. Um sorriso honesto e raro. Leve e sem esforço.
Lavínia assentiu e então deu um olhar de advertência para a jovem criada
que só Deus sabia o que significava. Deus e a jovem, porque assentiu e o
guiou até o andar de cima.
A casa de sua noiva não era nada modesta. Era confortável, exuberante e
ampla. Com mais extravagâncias do que muitas casas nobres. Isso era uma
característica da burguesia, ou dos novos ricos, não terem vergonha ou
moderação de demonstrar o quanto eram ricos.
- Aqui está. – a moça indicou uma porta de cor creme fechada. – O quarto
da Srta. Solluin.
Nathan assentiu e bateu duas vezes na porta.
- Se você não for Lorde Carffort, então nem entre. – uma voz infantil soou
do outro lado.
Nathan riu, girando a maçaneta. Abriu só o suficiente para revelar seu
rosto e sorriso.
- Eu posso entrar, senhorita? – questionou para a menina.
A imagem era encantadora. Luísa estava deitada com cobertores até os
ombros. Os bracinhos descobertos e os olhos grandes fixos na porta. No
rosto dele.
- Entre e feche a porta, Milorde. – disse parecendo uma adulta em
miniatura.
- Milorde... – a criada o chamou e só aí reparou que permanecia parada
diante da porta. O rosto ruborizado quando ganhou a atenção dele. – Se
importa se eu ficar aqui? É que minha senhora é muito protetora.
Nathan deu um sorriso e assentiu em aprovação.
- Deixarei a porta encostada. – respondeu para total alívio e gratidão dela.
Luísa não ligava para o que estava acontecendo fora do quarto, ou para as
preocupações dos adultos. Como a mãe, ela só se importava em ter o que
queria. Quando Nathan entrou e sentou em uma poltrona ao lado da cama,
pareceu deveras satisfeita.
Olhou para a porta por um instante como que para comprovar que
ninguém podia vê-los ou ouvi-los, então sentou na cama sobre os tornozelos
e levantou o travesseiro, revelando um livro. Com outra olhada para a porta
pegou o livro fino antes escondido e entregou para ele. Os olhos brilhando
em expectativa.
Nathan piscou algumas vezes, confuso, olhando para o livro em suas
mãos.
- É meu livro de pássaros. – disse ela o abrindo em uma página aleatória.
– Agora é seu.
O lorde subiu o olhar da página que continha uma bela pintura de um
dom-fafe seguida de detalhadas descrições, para Luísa. A doce criança de
cabelos vermelhos, olhos azuis vivos e uma camisola amarela que a cobria
até os tornozelos.
- Não posso aceitar, querida. – negou com a cabeça.
A criaturinha geniosa franziu o cenho. As mãos pequenas empurrando o
presente na direção dele.
- O senhor tem que aceitar. – insistiu, decidida.
- Mas sentirá falta dele. – argumentou.
Luísa deu de ombros voltando a se deitar sob as cobertas.
- Quando se casar com a minha mãe estará por perto, então o livro
também estará. – disse para ele com um sorriso.
Nathan fechou o livro também sorrindo. Quem, em Nome do Todo
Poderoso, poderia resistir a tanta doçura?
- Obrigado. – disse se levantando.
Pousou os lábios na testa dela e puxou os cobertores até seu pescoço a
fazendo rir.
- Vai ficar bem sozinha? – questionou, surpreso por se preocupar, por se
sentir responsável.
- Eu sempre durmo sozinha. – contou, orgulhosa.
- Nunca dorme com sua mãe? – indagou desconfiado, até ele já havia
dormido com os pais quando criança.
- Mamãe não me deixa dormir com ela. – respondeu.
Nathan franziu o cenho diante da afirmação. Aquilo era o tipo de coisa
que fazia Lavínia fazer jus ao apelido que lhe davam. A menina pareceu
sentir seu desconforto e decidiu explicar.
- Ela não gosta que ninguém durma com ela. – se aconchegou no
travesseiro. – Ela tem pesadelos, chora e grita a noite. Não quer que ninguém
saiba.
Nathan arregalou os olhos diante das palavras da menina. Não era
verdade. Uma mulher não poderia ser tão atormentada a ponto de ter
pesadelos perturbadores todas as noites. Não uma mulher como Lavínia,
firme e fria como gelo. Era só uma desculpa para que a menina não dormisse
com ela, um meio para garantir sua liberdade, convenceu a si mesmo.
- E você? – perguntou olhando para o rosto redondo. - Não tem pesadelos?
- Às vezes. – confessou com naturalidade. – Mas aí eu penso em um céu
azul cheio de pássaros e o medo passa.
Ele passou a mão grande pelos cabelos de Luísa e beijou sua testa mais
uma vez. A menina corajosa que gostava de pássaros e detestava chá tanto
quanto ele.
- Boa noite, querida.
- Boa noite, Lorde Carffort. – respondeu se virando já com os olhos
fechados.
Sem fazer um ruído sequer, Nathan deixou o quarto.
...
...
Capítulo 5
Jararaca de olhos verdes
...
Mas que droga! Quanto tempo aqueles dois ainda iam demorar para trazê-
la? Quanto assunto eles achavam que ela tinha com a jararaca de olhos
verdes? Jararaca essa que parecia lindamente hipnotizada pelo casal belo que
parou o salão de baile. A vingança era doce e calorosa como chocolate
quente.
- Seu irmão veio com uma amiga? – a voz doce e irritante soou ao lado da
condessa.
Meri deu um sorriso maroto. Emily podia ter virado uma baronesa, Lady
Petergille, mas algumas coisas não mudavam. Continuava estúpida e Lady
West continuava a adorar achar um motivo para zombar dela.
Naquele momento o motivo vinha em sua direção. E que motivo!
Meredith, como uma mulher determinada, sabia reconhecer outra mulher
determinada. Aquela ruiva era muito mais do que ela esperava. Finalmente,
seu irmão teve a decência de se redimir após a beleza insípida da ex-noiva.
- Lavínia! – Meri exclamou com os braços abertos. – Minha irmã querida!
Há quanto tempo!
- Meri? – questionou tentando entender que criatura dócil havia possuído
seu corpo.
Se Nathan já estava surpreso pela reação nada moderada de sua irmã, não
sabia descrever como ficou com a de sua noiva. Havia um grau acima do
total e absoluto choque?
- Meri! – ela a abraçou como se tivessem dividido os brinquedos quando
crianças. – Como tem passado, meu bem?
A condessa não deu um, mas três, três beijos no rosto da futura cunhada.
Da futura cunhada desconhecida. Todos os das proximidades apuravam as
orelhas e os olhos de caninana de Lady Carnuil – sua ex-sogra – pairavam
sobre o escândalo. Só que eles eram membros da família mais popular e
poderosa de Figior, se eles dançassem nus no baile, em poucos dias o
escândalo seria esquecido. Aliás, sua irmã, que se empenhava naquele teatro,
já havia sido pega completamente nua com o marido no lago, mas Nathan
não queria pensar nisso.
- Estou melhor agora, que finalmente posso chamá-la de irmã em público.
– deu um sorriso segurando nas mãos dela.
Por um momento ele se perguntou se as duas não se conheciam
previamente. Aquela parecia uma coincidência cruel demais, mas aquela
encenação...
- A propósito, essa é Lady Petergille, a nova baronesa. – apresentou como
se dissesse “Esse é José o novo lacaio”, talvez com um pouco menos de
respeito. Ela respeitava muito os criados.
- Milady. – Lavínia acenou com a cabeça para a jovem que assentiu
contrariada. – Peço perdão por ter aparecido sem convite.
- Bobagem. – Lady West dispensou o gesto com uma das mãos. – Ela
convidou nossa família e você é da família.
- Nathan. – Emily olhou para ele como se pedisse socorro.
Só que Nathan não queria socorrê-la. Ela não o havia socorrido quando
sofreu sua humilhação e, além disso, quando Meri resolvia fazer algo, nem o
próprio diabo conseguia fazê-la parar. Não tinha escrúpulos, limites e
definitivamente não era discreta.
- Lady Petergille. – cumprimentou sério. Ela não era mais Emily, não
mais. - Já conhece a minha noiva? – a pergunta saiu de seus lábios quase que
de forma involuntária.
Seu corpo permanecia firme e ereto, mas a vontade que tinha era de sair
dançando pelo salão de felicidade. Dançando a música que atrapalhava a
missão dos fofoqueiros de não perderem um detalhe.
- Oh!
Os lábios rosas de Lady Petergille se moldaram a uma forma oval perfeita.
Aquele era o tipo de coisa que o fazia querer beijá-la um tempo atrás, mas
agora...
- Nathan conte a ela como se conheceram.
A irmã deu um sorriso para ele, sentindo a mão de Lorde West – que havia
se aproximado – em suas costas.
- Lady Petergille, você que é tão romântica vai querer ouvir essa. –
acrescentou para seu espanto.
Lavínia lhe deu um sorriso tranquilo, o que o fez se perguntar como em
nome de Deus ela podia estar tão calma? O que ele iria contar? Sua irmã
parecia esperar algo muito específico e ele não sabia o que era.
- Bom... – limpou a garganta, um gesto característico dos Carfforts. – Por
onde eu começo?
- Pelo baile, é claro. – respondeu sua irmã como se fosse óbvio. Não havia
nada de óbvio desde que pisara naquele salão.
- Aquele baile, querido, em que eu usei o vestido azul. – Lavínia ajudou, o
olhar pedindo para que entrasse no jogo.
Elas haviam ensaiado aquilo com antecedência?
- Ah! – exclamou como se lembrasse de repente. – É deste baile que
estamos falando!
- Por Deus! Sua memória é péssima. – pontuou Meri aparentemente
incrédula. – Eu vou contar.
Que Deus o ajudasse! Ela ia mesmo!
- Simplesmente adoro essa história. – se voltou para a baronesa ainda
espantada com um sorriso. – Nathan conheceu Lavínia em um baile
oferecido na residência dos Solluin há cinco anos atrás.
- Ele estava interessado nos negócios de meu falecido marido. –
interrompeu caso aquela cabecinha oca resolvesse pensar, para variar.
A cunhada lhe presenteou com um sorriso em agradecimento. Ninguém
pararia aquelas duas. Elas eram terríveis juntas.
- Eu nunca ouvi falar desse baile. – a anfitriã interviu um pouco
desconfiada.
- É evidente que não, Milady. – o conde respondeu quando percebeu que
já havia ficado calado por muito tempo e corria o risco de ser acusado de
abstenção. – Trata-se de um baile da burguesia. Se só pensasse nele, a
viscondessa... – se referiu a mãe dela. - Cortaria seu pescoço. Felizmente,
nem todos são tão radicais.
Pelo olhar da esposa ele já havia ganhado acesso ao leito dela e bem... A
outras coisas. Por isso, resolveu pedir licença para tomar uma bebida.
Nathan queria ir com ele. Desesperadamente.
- Como eu estava dizendo... – ela continuou bastante animada.
Nathan sentiu os dedos de Lavínia tocarem na mão dele e depois
segurarem nela com firmeza. Ajudou um pouco, tinha que admitir.
- Eles trocaram poucas palavras no baile, mas anos depois, quando o Sr.
Solluin se foi, meu irmão mandou a viúva as devidas condolências. – deu um
suspiro afetado que não instigou Emily nem um pouco ao romantismo. –
Eles trocaram cartas desde então.
- Já era para termos assumido nosso relacionamento, mas parte de mim
ainda estava de luto por meu marido. – outra vez os olhos lacrimejados que
dariam inveja às melhores atrizes parisienses.
Como previsto, a cabecinha loira da baronesa começou a ligar os fatos e
ter ideias, fazer contas. Demorou mais que o que se esperaria, mas ainda
assim...
- Desde quando exatamente vocês têm esse relacionamento escondido? –
havia certa mágoa na voz dela.
- Desde quando você humilhou meu irmão publicamente. – respondeu,
sem papas na língua. Como sempre.
- Meredith! – ele a censurou escandalizado.
Quarenta anos e dois filhos não a haviam mudado em absolutamente nada.
Sempre fora assim, com o dom de dizer a coisa errada na hora errada.
- O que foi Nathan? – ela fechou o rosto e empertigou a coluna. – Ela
perguntou. Quem pergunta, quer respostas!
Nathan abriu a boca sem saber o que responder. Sua aparentemente doce
irmãzinha tinha esse poder. Os cabelos loiros e os olhos azuis de anjos
enganavam e muito.
A questão é que algo desviou sua atenção da conversa. De repente a
coluna de Lavínia ficou mais ereta e o rosto sério. Não era visível, mas ele
sentiu a tensão e pousou a mão nas costas dela para ajudar com que
mantivesse a firmeza. Se Meredith fosse a culpada ele...
- Ora, ora, ora... – uma voz grave, debochada e um tanto repugnante soou.
– O que temos aqui...
O barão de Petergille havia se aproximado. Vestido de preto e branco, o
noivo tinha cabelos e olhos escuros, uma péssima reputação e a tendência de
acabar com o bom humor de Nathan.
Ele analisou o grupo com o olhar e sorriu.
- Minha bela esposa, Carffort, Lady West e... – ele parou o olhar na bela
ruiva e analisou seu corpo de um jeito que despertou o lado assassino de
Nathan. – Lavínia, há quanto tempo.
- Uma vida, Lorde Petergille. Graças ao Todo Poderoso. – respondeu
ríspida e seca.
- Aproveite que está em sua casa, Petergille. – Nathan praticamente
rosnou com um tom de voz que mal reconheceu. – Se ousar chamar minha
noiva pelo primeiro nome outra vez, eu vou impedi-lo de falar novamente.
O outro explodiu em uma gargalhada irritante.
- Noiva é? – questionou provocativo. – Sempre achei encantadora a
tendência de sua família à caridade, Carffort.
Nathan deu um sorriso maroto e repentinamente calmo.
- A família de sua esposa também, Petergille. – disse e viu Emily ficar
confusa e este um tanto desorientado, engolindo em seco. – Perdão. Achei
que a essa altura ela já soubesse.
- Soubesse do que, querido? – a baronesa questionou tocando no braço do
marido.
Meredith estava se divertindo em um baile como há muito não se
lembrava.
- Nada. – disse sisudo. – Carffort está desesperado.
- Você está desesperado. – devolveu a acusação. - Seu marido não está
falido, Lady Petergille. – retrucou este, sério. – É um pouco pior que isso.
Emily arregalou os olhos.
- Ele está devendo. – Nathan deu um sorriso diante do desespero do
homem. – Se nos derem licença.
Ele beberia aquela noite. Até trançar as pernas.
Capítulo 6
Um pouco sobre mim
Não precisava ser um grande psicanalista para deduzir que havia algo
errado com Nathan. Era uma verdade bastante óbvia. Lavínia teria certeza,
se não houvesse algo errado com ela também. O fato era que rever Lorde
Petergille havia sugado cada energia de seu corpo e tudo em que conseguia
pensar naquela carruagem era que não era para a noite terminar daquela
maneira.
Estava exaurida. Esperava mais de sua resistência e pela expressão de
Lorde Carffort, ele também. Simplesmente odiava parecer fraca, mas ao
menos eles só demonstraram fraqueza quando a porta do veículo havia sido
fechada. No baile eles eram apenas o casal mais apaixonado da temporada.
Ela admirava isso nele. Imaginou que fosse um homem imaturo, apesar de
inteligente, mas ele não era. Sabia vestir máscaras tanto quanto ela, ainda
que tivesse uma natureza mais esquentada comparada a sua frieza. Naquele
momento, no entanto, tal como uma beldade exausta após um baile de
máscaras, haviam as deixado de lado.
- Você não está bem.
O comentário desviou a atenção de Nathan de uma mancha minúscula no
vidro da carruagem. Quanto tempo ele estava olhando para aquela coisinha
insignificante?
- Eu acabei com um casamento que mal havia começado. – olhou com
feições graves para a noiva. - É claro que não estou bem. – como se ela
tivesse culpa naquilo.
- Ele ofendeu sua família, era esperado que reagisse. – respondeu,
ignorando a expressão dele. Com a frieza de uma geleira em pleno inverno.
Soltou uma risada curta sem humor algum.
- Quem dera fosse isso que tivesse feito com que minha razão
desaparecesse.
- E não foi? – nem mesmo ela conseguiu esconder o interesse e a
curiosidade. Quem era aquele homem?
- O modo. – disse quase por entre dentes. - O modo como ele olhou para
você Lavínia... – deu um suspiro fundo como se a raiva o sufocasse. - Era
como se a tivesse visto nua a poucos minutos. Maldição! Eu poderia matá-lo.
Houve uma mudança sutil no corpo dela. A coluna ficou mais ereta e a
cabeça mais altiva. Um furacão não a derrubaria. Se a carruagem virasse, ela
ficaria onde estava.
- Se o barão é um porco imoral, isso não faz de mim a prostituta dele.
- É claro que não. – disparou com o balde de água fria que ela havia
jogado em sua cabeça fervendo. O que havia de errado com ele? - Eu só sou
um imbecil.
- Não é um imbecil, Milorde. – negou com um leve sorriso que parecia
dizer o contrário. - Só um homem curioso.
- Curioso. – repetiu como se se acostumasse com a palavra.
Já havia sido chamado de lindo, poderoso, sedutor, cativante e também
fora chamado de tolo, estúpido e idiota por suas irmãs – especificamente por
Meredith, depois que firmou compromisso com Emily. Mas nunca, nunca
mesmo fora chamado de curioso. Era algo novo a ser analisado. Melhor que
imbecil, certamente.
- Sim.
- O que exatamente faz de mim um homem curioso? – instigou se
inclinando na direção dela.
Os poderosos ombros esticando o tecido do casaco e fazendo um calor
desconfortável perpassar o corpo dela. Estava perdendo o jogo. Nathan a
atacava com ciúmes e agora com sensualidade. Estava na hora de colocá-lo
novamente na defensiva.
- É bastante curioso que sua ex-noiva esteja erguendo as saias para o
barão de Petergille nesse momento, e o senhor esteja preocupado com o
modo com que ele olhou para mim. – houve um discreto “arregalar de olhos”
da parte dele. Lordes não estavam acostumados com mulheres tão francas. -
Achei que fosse dela que sentiria ciúmes. Afinal, nossa relação é uma
relação de negócios, Lorde Carffort. Não seria tolo a ponto de ter
sentimentos por mim.
Maldição! Ela estava tendo sentimentos por ele! “Que inferno de
complicações!” era uma frase que o Sr. Solluin costumava dizer com
frequência e agora a repetia mentalmente.
- Sentimentos... -forçou um sorriso despreocupado e preguiçoso
encostando novamente no banco. - Está indo longe demais, madame.
- Melhor que eu esteja. – respondeu. Por que aquele espartilho em especial
estava machucando o lado esquerdo de seu peito? Seria um novo modelo?
- Você está. – reforçou completamente na defensiva. - Mas se esconde
algo de mim, eu vou exigir que me diga. Quero um casamento transparente.
- Vai acabar enxergando o que não quer ver, meu lorde. – advertiu.
Homens como ele não gostavam de casamentos transparentes.
Gostavam de pequenas mulheres perfeitas que se comportavam
exatamente como mandava o rigor da sociedade e não eram nem
remotamente sinceras com ele, com o mundo, com elas mesmas. Mas com o
tempo ia descobrindo que Nathan não podia ser enquadrado facilmente na
classe em que havia nascido. Talvez tivesse a ver com o sangue plebeu, o
lado “Collins” a família. Graças a Deus por aquele lado existir!
- O que eu quero ver ou não sou eu quem decido.
E lá estava o lado “Carffort”. Arrogante. Autoritário. Possessivo. Com a
vaga ilusão de que o mundo girava ao redor deles. Muito parecido com ela,
na verdade. Muito irritante também.
- De onde você e Petergille se conhecem?
A mansão dos Solluins já apontava pela janela. A construção nova que
Tristan conquistara com seu próprio esforço e suor. Com um sorriso
originário da lembrança dele, deu um suspiro fundo. Renovada.
- Entre e tome uma bebida comigo. – convidou como se fosse uma noite
quente comum. Não havia sedução, só um convite entre amigos, entre sócios
da mesma empresa. - É uma história longa demais para se ter em uma
carruagem e desconfortável para se ter sóbrio.
- Que seja.
Ele estava mesmo precisando beber algo. De novo.
...
Lavínia teve o cuidado de esperar até que Nathan tomasse os dois dedos
de Whisky antes que contar o que deveria.
O tanto que este estava à vontade sentado na poltrona mais confortável da
sala de estar dela era desconcertante. Deixara o casaco com o mordomo, a
gravata pendia frouxa no pescoço revelando pelos escuros no colarinho
aberto e havia o modo dele se sentar. Como um rei que espera com
indiferença seus súditos se aproximarem.
Sem incentivo, encheu o copo com a segunda dose de Whisky. Muito
bem. Não haveria momento melhor que aquele.
- Há uma história longa por trás da viúva rica com o coração de gelo.
O copo parou a meio caminho da boca dele. Daqueles lábios carnudos que
ainda se lembrava da sensação nos dela. Droga! Ele não podia ter ao menos
uma cicatriz ou outra deformidade que o deixasse menos intimidador? Mas
que tolice! Era pecar contra a natureza desejar algo assim. Um crime! Afinal,
ela havia feito um excelente trabalho.
- Fascinante, eu espero.
- Irá entretê-lo por alguns minutos.
Lavínia deixou os dedos longos passearem pelo braço do sofá. Seguindo
os bordados de tom dourado que tinham sua própria lógica. Lógica essa que
se tornou inexistente quando Nathan esticou a mão e tocou a dela.
- Conte-me. – pediu com mais carinho que autoridade.
Ela se viu contando até o que não pretendia. O que não havia contado a
ninguém mais.
- Eu nem sempre fui rica. Nasci em uma casinha apertada, sem luxo ou
fartura. Meu pai era um empregado do Sr. Solluin que apesar de ser um
homem generoso não podia pagar muito para um carregador de caixas.
Tínhamos pouco mais que o suficiente para viver.
Não esperava que ele entendesse. Um homem que nasceu envolto em
tanto luxo não entenderia, mas ao menos ele a ouvia. E Deus! Ele era um
magnífico ouvinte. Os olhos azuis fixos nela a envolvendo em um conforto,
em um abraço quente que a forçava a revelar tudo. Queria abrir seu coração
para ele.
Mas não se abre um coração de gelo com tanta facilidade. Não sem que
ele vire milhares de caquinhos minúsculos.
- Eu ganhava uma roupa a cada natal. Os sapatos eram comprados quando
já estavam furados. Geralmente, eles eram muito maiores que o meu pé, o
que formava bolhas e machucados.
As imagens que vinham na cabeça de Lorde Carffort lhe deram um
arrepio violento. Pés brancos e pequenos sangrando e com bolhas sendo
enfiados na água morna. Uma criança ruiva de olhos incrivelmente azuis
franzindo o cenho de dor. Talvez uma ou duas lágrimas escorrendo. Era
tortura.
- Deve ter sido uma infância difícil.
Que frase tola e simples para explicar o que ele tinha sentido. Que
eufemismo mal empregado. Ele queria puxar aquela criança doce para o
colo, abraçá-la e fazê-la dormir com canções reconfortantes. Só que aquela
criança não existia mais. A vida difícil a havia matado impiedosamente.
- Foi maravilhosa. – respondeu para sua surpresa. - Difícil ficou quando
ele se foi.
Esforçou-se para não pensar em algo mais horrível que aquilo, mas tinha
que saber. Tinha que perguntar porque ele já amava aquela criancinha e que
Deus o protegesse de amar a mulher que ela havia se tornado.
- O que aconteceu?
- Eu tinha quatorze anos quando ele contraiu meningite e partiu. – havia
uma habilidade louvável de esconder emoções. Mesmo ali. - Meu pai era tão
tolo quanto era bom, ou seja, extremamente tolo.
Mesmo assim havia um carinho genuíno nela ao falar dele. Como se
houvesse perdoado cada pecado cometido por este.
- Acreditou que deixar sua filha como tutela de seu irmão caçula era uma
boa ideia e havia economizado uma soma boa em dinheiro para que eu não
fosse um inconveniente, mas eu fui, mesmo assim.
O polegar de Nathan deslizou pelas costas da mão macia e delicada.
Temeu interromper a onda de coragem dela, mas não pôde se conter. Lavínia
não era um inconveniente, não de um jeito ruim, nunca seria.
- Meu tio era um desgraçado que não tinha amor nem pelos próprios
filhos. – deu um riso triste. – Em um mês ele gastou o dinheiro que meu pai
levara uma vida para poupar. – fez uma expressão enojada. - Com bebidas,
jogos e meretrizes. Havia noites...
Fechou os olhos rapidamente tentando se acalmar, manter as feições
firmes.
- Havia noites em que eu dormia com travesseiros apertados contra as
orelhas para não ouvir os sons que vinham do quarto dele. – deu um sorriso
fraco. – Eu era só uma criança boba. Eu não entendia, só não queria ouvir.
- Você era uma criança, Lavínia. – reforçou enfatizando que não havia a
parte do “boba”, não era o adjetivo que combinava com ela. – Uma criança
que caiu nas mãos do homem errado.
A Sra. Solluin se levantou e caminhou até uma janela. Aquilo estava indo
longe demais, precisava desesperadamente de ar. Não pararia. Não podia.
Havia sido muitas coisas na vida, ingênua, tola e até mesmo tímida, mas
nunca, nunca fora uma covarde. Aquela não seria a primeira vez.
- Eu lembro que em uma semana as noites foram estranhamente
silenciosas. – inspirou o ar fresco na noite escura. – Em um domingo à tarde
meu tio me chamou ao escritório dele. Disse sem delongas que eu estava
dando muitas despesas e se não passasse a trabalhar me jogaria na rua.
- Ele o quê?!
A voz de Nathan soou mais próxima do que ela esperava. Fez um gesto
com a mão descartando o espanto dele, como se não fosse nada digno disso.
- Eu virei uma criada. – engoliu em seco. – Na casa de Petergille.
Lorde Carffort parou há poucos centímetros dela. Paralisado pelo choque.
Ela sentiu a presença dele em suas costas e esperou pelos gritos de revolta.
Ele era bom em surpreendê-la.
- Nunca mais. – sussurrou aquela promessa no ouvido dela.
Lavínia se virou para ele. Os olhos adquirindo um tom perolado devido às
lágrimas reprimidas que não cairiam tão cedo. Nunca, de preferência.
As mãos grandes de Nathan deslizaram dos ombros dela até seu rosto que
ele segurou. Para capturar cada gota de atenção daquele olhar azul.
- Nunca mais você terá que fazer algo que não quer, nunca mais irá se
sentir indesejada, nunca mais vai ter algo menos do que o mais pleno e
estúpido luxo. – as palavras eram pequenos facões penetrando no coração
dela. – Eu quero que vá pro inferno o seu conceito de que isso é um maldito
acordo de negócios. Enquanto for minha esposa você terá tudo que eu puder
dar. Absolutamente tudo.
Ela queria tudo. Ela queria absolutamente tudo. Queria inclusive o beijo
violento e desesperado que passaram a dar naquele instante.
Fazia quanto tempo desde sua última mulher? Cinco, três dias? Parecia
uma tenebrosa eternidade. Uma terrível eternidade desejando uma mulher,
desejando Lavínia.
Suas mãos a puxaram para si, deslizando em círculos lascivos por seu
quadril carnudo. As bocas se entrelaçavam com uma sincronia própria de um
beijo urgente. E o cheiro... O cheiro perfeito dela.
Ela era perfeita. Do tamanho perfeito. Alta o bastante para não precisar
deixá-la levitando para que seu membro latejante encontrasse seu destino.
Doce, irritantemente coberto por saias e anáguas.
- Lavínia... – soltou o nome dela como se fosse um impropério.
O toque úmido e quente dos lábios dele junto com a respiração em seu
pescoço arrepiaram sua pele. Seu corpo se aproximou mais do dele, suas
mãos agarrando o tecido grosso do casaco, seu nariz buscando seu cheiro
masculino. O desejo que sentia por ele descia dos seios espremidos no
espartilho até o ponto em que a ereção dele a provocava, insistindo. Havia
ficado impossível respirar.
Havia algo sobre esperar até a noite de núpcias para se consumar o
casamento. Havia regras claras sobre isso. O problema era que a única coisa
que estava clara no momento era que ele era um homem cheio de desejo e
ela uma mulher cheia de desejo, ambos com corpos incríveis e mais que
dispostos para se unirem ali mesmo naquela sala empetecada e burguesa.
Se havia alguma dúvida ou decoro que o impedisse de possuí-la, ele as
esquecera quando envolveu um dos seios redondos com a mãos. Sua noiva
resfolegou, gemeu e seu mamilo ficou teso ao toque dele.
Não precisava de mais encorajamento. Sua mão desceu até o joelho dela,
dobrando a perna torneada que apoiou em seu quadril. Iniciou-se uma luta
intensa subindo a saia dela, explorando seu decote, alisando sua coxa e
então...
Lavínia o empurrou.
Nathan arregalou os olhos para o rosto dela. Parecia estar olhando para o
próprio reflexo, ela estava tão espantada quanto. Olhando para as mãos
espalmadas no peito dele como se não acreditasse na própria atitude.
- O que foi isso? – questionou este quando as mãos dela deixaram seu
peito.
- Nada. – respondeu ainda contendo a respiração ofegante.
- Lavínia. – tocou os dedos no queixo dela para que não desviasse o olhar.
– Isso foi alguma coisa. O que aconteceu?
- Nada. – repetiu o beijando.
Droga! Ela o estava beijando de uma forma que fazia todo seu corpo
latejar. Mas aquela reação, aquela reação não era normal e maldita fosse sua
natureza de cavalheiro, porque ele parou.
- Droga! – xingou encostando a testa na dela. A respiração ofegante. –
Droga, droga, droga.
- Milorde? – perguntou como se não compreendesse.
Nathan a soltou delicadamente e a ajudou a se recompor, mas a confusão
permanecia.
- Luísa está há alguns quartos daqui. – só há pouco se lembrara de sua
existência. - O que eu estava pensando? – a resposta era óbvia. Não estava.
A anfitriã estava confusa e para sua vergonha, enquanto verificava a
situação de seu penteado, disse a primeira coisa que veio à cabeça.
- Luísa está dormindo.
Santo Deus! Aquilo era um convite que a fez corar violentamente. A
surpresa ficou estampada no rosto dele e o constrangimento no dela.
- Senhora? – uma voz questionou do lado de fora da porta.
Abençoados fossem todos os seus empregados, amém.
- Sim?
- Abigail está aqui. – respondeu o ser benevolente ainda oculto.
- Abigail? – Nathan questionou erguendo uma sobrancelha e depois
negou. Não importava quem era. – Eu devo ir embora. Será um escândalo
se...
Lavínia deu um sorriso, achando graça.
- Oh querido! – soltou uma risadinha. – Abigail é o escândalo.
De fato.
Quando movido pela curiosidade caminhou até a sala de visitas, havia
nada menos que uma meretriz. Confortável no sofá.
...
Capítulo 7
Abigail
Não sabia que pecados infinitamente tenebrosos havia cometido para ser
sujeito àquele tipo de castigo, mas lá estava ele. Em algum tipo de pesadelo
assustadoramente real em que ele e sua noiva perturbadora dividiam a
mesma sala de estar com uma meretriz. Com uma meretriz com a qual ele já
havia dormido. Se havia algo parecido com a mais absoluta estranheza era
aquilo.
Abigail havia cumprimentado a ele com um aceno neutro que
correspondeu, fingindo que sequer se lembrava da ocasião em que a havia
levado para cama. Era óbvio que ela lembrava. Ninguém se esquecia sem
mais nem menos que o filho de um Duque já esteve entre suas pernas. Mas
os dois se comportavam como duas criaturas infelizes acometidas por uma
dose cavalar de amnésia. E Lavínia... Maldição! Ela... Elas se comportavam
como se fossem amigas intimas.
Só queria ser menos curioso, porque não tinha outro motivo para estar ali.
Preso naquela situação completamente estranha.
- Oh Abby, você tem que parar com isso. – disse verdadeiramente
preocupada se inclinando para tocar seu olho.
Os lábios vermelhos se curvaram em um sorriso experiente. O contraste
com a pele pálida tornava-os ainda mais sedutores e os cachos negros caíam
sobre seus ombros de forma irreverente como ela. O rosto bonito parecia ter
sido esculpido para a perdição dos homens e ela se aproveitava disso.
Abigail era provavelmente a prostituta que mais teve nobres entres suas
pernas, ela sabia enlouquecê-los e ele não fora exceção.
Parecia que há poucos minutos ele se tornara uma ridícula e risível
exceção de homem que não queria ir para cama com Abby. Que ao invés dos
magníficos seios fartos que pulavam de seu decote, estava com a atenção
voltada para onde estava a de Lavínia. A mancha roxa suave ao redor do
olho da meretriz.
- Não, ruiva. – ela tirou um espelhinho do bolso e avaliou o estrago. – Eu
só preciso de mais pó de arroz.
- Se continuar com isso poderá se machucar feio. – a Sra. Solluin insistiu.
– Enquanto estiver no ramo eu não posso proteger você.
Guardando novamente o objeto de sua vaidade no bolso, estendeu a mão
para tocar o rosto da amiga. Um sorriso sincero escapava de seus lábios.
- Eu sei que é difícil para você acreditar, mas eu gosto do meu trabalho. –
como das outras vezes, a tentativa de convencê-la da verdade fora inútil. –
Os homens são criaturas divertidas. – ela se lembrou que havia um daqueles
seres na sala. - Sem ofensa, Milorde.
- Não estou em posição de me sentir ofendido. – disse sério, com os
braços cruzados.
Não estava em posição de nada no momento. Exceto, talvez, dar um tiro
na própria cabeça.
Lavínia poderia não estar convencida, mas ele estava. Sabia o quanto a
convidada gostava de seu trabalho. Era por isso que aquela reunião era tão
estranha. Abby não era uma mulher desafortunada que buscava ajuda. Ela só
estava ali meramente para conversar. Que ridículo!
- E também podem ser violentos. – respondeu parecendo bastante
inconformada. – O que aconteceu?
Abby deu uma olhada para Nathan e então novamente para ela. As
sobrancelhas pintadas arqueadas em insinuação.
- Tudo bem. Ele pode ouvir. – Lavínia autorizou.
Lorde Carffort franziu o cenho. Havia realmente tentado. Tentara ficar
calado, mas falhou. Aquilo estava passando dos limites. Ela recebia uma
prostituta em casa e agora as duas tentavam decidir se ele poderia ouvir ou
não a conversa? Ele era o convidado indesejado? Agora estava com certeza
ofendido.
- Alguém pode me dizer o que diabos está acontecendo? – questionou
bastante irritado.
- Lorde Carffort é meu noivo e é de extrema confiança. – soou a voz
firme. - Ele pode ouvir o que quer que tenha a dizer.
Bom Deus! Ela tinha transformado toda sua raiva em geleia com aquela
frase aparentemente inocente. Não sabia de qual parte gostara mais do “meu
noivo” ou do “extrema confiança”. Talvez o que gostara mesmo fora da
sinceridade de ambas. Passou a mão pelo cabelo com um suspiro fundo.
- Lorde Haroj. Você queria minha opinião sobre ele. – Abby começou
ainda com alguma hesitação. – Não faça negócios com ele.
- Foi ele que a machucou?
Lavínia parecia disposta a se levantar e ir ela mesma atrás de Haroj.
Esganar o pescoço do homem alto e magro até que prometesse jamais tocar
em uma mulher novamente.
- Ah não! Pobre rapaz. – ela riu. – Ele é adorável, Lavínia, mas está falido.
Falido a ponto de não poder pagar a mim pelo trabalho.
- Céus! – exclamou chocada. - Quem imaginaria?! Um Haroj? Falido? –
deu um sorriso maroto.
- Como você diz, ruiva, a nobreza é uma classe fadada a extinção. –
zombou e então se voltou para Nathan. – Perdão, meu lorde.
Nenhuma das duas parecia arrependida da ofensa, então não se deu o
trabalho de responder. Não podia culpá-las. Diversos homens tinham a
mesma teoria, incluindo ele.
Não, Nathan não acreditava que seu pai, seu irmão ou mesmo seu
sobrinho Travis fossem acabar em algum beco sujo mendigando. Era a
nobreza preguiçosa, irresponsável e arrogante que corria esse risco. A
nobreza que se recusava a trabalhar, a investir, a se aliar aos novos ricos. Lá
estava ele, se aliando aos novos ricos. A uma encantadora, sedutora e
deveras excitante nova rica. E ambiciosa, ah! Como aquela criatura era
ambiciosa!
- O que eu faria sem suas informações? – indagou a Sra. Solluin para sua
amiga e convidada.
A naturalidade dela ainda o espantava. Realmente não dava a mínima para
os padrões esperados para a noiva de um nobre. Não ali entre quatro paredes.
Ele só imaginou o que mais ela poderia fazer entre quatro paredes.
- Faria amizade com Sisi. – gracejou com uma gargalhada escandalosa.
Sisi era outra meretriz muito popular entre os nobres. Ela certamente
conseguiria boas informações, mas não era tão confiável. Abby era sua
amiga desde os cinco anos, haviam praticamente crescido juntas até
tomarem rumos diferentes na vida. Só se reencontraram poucos anos atrás.
Ela havia sido uma amiga leal desde então.
- Eu tentei defendê-lo da raiva dos meninos, eles não gostam que ninguém
faça caridade. – os meninos tinham certamente mais que 1,80m de altura e
muita disposição para socar quem ousasse não seguir as regras da casa.
Disposição e músculos. - Entrei no meio da briga e fui atingida por engano.
- Abby. – soltou em tom de censura. - Agora está sem pagamento e
machucada.
- Eu não diria sem pagamento. – um sorriso que delatava sua profissão
apareceu nos lábios dela. - Ele era bem interessante na cama. Um homem
carinhoso com prostitutas não é algo muito comum.
- Não, eu imagino que não. – riu, não se conteve.
Nathan ficou fascinado pela forma como a risada escapou daqueles lábios
rosados. Aquela mulher não tinha limites. Havia se aliado a uma prostituta a
troco de informações sobre nobres e sócios em potencial. Não havia nada
que ela não faria para conseguir sucesso. Até mesmo se casar com ele.
A ideia foi como uma facada no peito. Que tipo de estúpido ele havia se
tornado?
Não, aquilo não era estupidez. Ela sentia algo por ele. Ainda que fosse o
mero desejo carnal, ele despertava alguma coisa nela e o modo como ela
havia aberto seu coração para ele minutos antes... Não havia como negar. Ela
e ele tinham uma ligação. De um tipo bem esquisito, mas tinham.
Ainda assim não poderia passar nem mais um minuto ali. Sua cabeça doía
devido a bebida e seu corpo doía por culpa de Lavínia. Desejo não saciado
podia fazer tanto mal para um homem quanto a mais terríveis enfermidades.
- Eu já vou. – declarou, se levantando.
Não que ele não pudesse sair sem aviso, mas não seria educado. Não seria
certo. Ainda que, levando em conta que sua noiva estava recebendo uma
prostituta em casa que contava a ela como era seu último cliente, não parecia
haver muito certo ou errado naquela noite.
- Espere um momento para que eu pegue seus pertences, meu lorde. –
disse a Sra. Solluin.
Levantando-se ereta, caminhando como uma rainha que parecia deixar
marcas no assoalho por onde passava. Fora pegar os pertences dele. Não
precisava ter feito isso. Ainda que fossem quatro da madrugada tinha certeza
de que se estalasse o dedo, ao menos meia dúzia de criados estariam prontos
para atendê-la, mas não. A própria Lavínia foi atendê-lo.
Ela o deixara sozinho com uma prostituta. Ou era louca, ou confiante ao
extremo, ou ingênua, mas essa última hipótese não o convencia. Ingenuidade
não combinava com uma jovem tão inteligente e determinada.
- Milorde. – uma voz naturalmente sensual o chamou.
Olhou para Abigail. Com o terrível anseio de que ela despertasse nele
alguma excitação para demonstrar que ainda era o mesmo. Nada aconteceu.
Seu amigo parecia adormecido dentro das calças, ou simplesmente decidido
a tirar o restante do dia de folga porque estava irritado pelo encontro
frustrado com sua noiva.
- Eu espero que saiba a importância que tem para ela. – se houve algum
momento em que Abigail falou sério na vida, foi aquele.
- Do que está falando? – questionou franzindo o cenho em estranheza.
Tentando se convencer de que seus ouvidos o estavam enganando.
- Significa muito para ela se casar novamente.
Deus! Ele havia ouvido certo e ainda havia mais.
- Lavínia sempre teve dificuldades de confiar nos homens. – se aproximou
dele, o rosto sério e até mesmo preocupado. - Mesmo o pai dela a
decepcionou.
Lorde Carffort abriu os lábios, mas as palavras não saíram. Fazia total
sentido. Um pai que a deixava a mercê de um canalha como o tio dela,
certamente a tinha decepcionado. Não era nenhuma surpresa que não
confiasse nos homens, que amasse tanto o falecido marido.
- Depois de Solluin ela não confiou mais em ninguém. – mencionou como
se lesse seus pensamentos. - Por isso se importa tanto com a minha opinião.
Olhando nos olhos castanhos de Abby uma compreensão se fez.
- Você falou a meu favor. – nem se deu ao trabalho de acrescentar o ponto
de interrogação.
- Certamente, mas foi ela que escolheu confiar no senhor.
Aquilo, supunha, devia valer de alguma coisa. O sangue quente que
pulsou em seu coração pareceu achar o mesmo.
- Fiz uma descrição minuciosa a seu respeito. – contou a meretriz.
- De minhas finanças?
O sorriso pecaminoso voltou aos lábios dela.
- Não. – respondeu sucinta. - De outras qualidades. – deu um olhar
sugestivo até a frente das calças dele.
Nathan arregalou os olhos. Abby pareceu achar encantadora sua reação,
mas aquilo não a tirou do foco. Até porque ele não era nenhuma mocinha
inocente diante da qual tinha que poupar palavras.
- Tenha em mente que ela não é tão forte quanto parece. – acrescentou.
Não, ela não era, mas ainda assim parecia. Quando estava prestes a
responder, a prolongar o assunto e descobrir mais sobre a mulher que
desposaria, Lavínia voltou empossada de seu casaco impecável e cartola.
- Está aqui. – disse entregando os dois objetos aristocráticos a ele. Um de
cada vez.
Sem o casaco Nathan era tentador, com o casaco era irresistível e com a
cartola... Misericórdia! Não havia qualquer esperança para a lucidez dela.
- Nos casaremos no final dessa semana. – declarou decidido.
- Em seis dias? – espantou-se.
- Ficaria surpresa com o que o filho de um Duque consegue em seis dias.
– deu um sorriso.
Virgem Mãe! Aquele sorriso!
- Comece pelo vestido amanhã. Roupas para você e Luísa. – o tom de
autoridade não a ofendeu. - Por minha conta. – já essa parte a incomodou em
demasia.
- Mas eu posso pa...
- Por minha conta. – insistiu em um tom de extrema autoridade.
- Certo. – era mesmo inútil insistir. Era teimoso como uma mula
empacada.
- Sra. Solluin. Abigail.
Cumprimentou tocando a ponta da cartola e então saiu.
Era estúpido, concluiu, mas não tão estúpido quando percebeu que a
mulher mais experiente de Figior fazia a mesmíssima coisa. Observava
fascinada a forma como o casaco batia nas pernas musculosas enquanto ele
andava. O modo como o ar parecia abrir e lhe dar passagem, carregando
apenas o cheiro inebriante. Um calor lhe subiu pelo corpo e não conseguia
fechar a porta. Nem queria.
- Peço que me perdoe por confessar amiga. – pediu Abby. - Não conheço
um homem tão charmoso quanto ele.
- Eu jamais a culparia por dizer a verdade, Abby. – respondeu ainda
fascinada ao vê-lo subir na carruagem. - Não é de você que tenho medo e
sim das outras.
Ah! As outras iam querê-lo. Todas elas iam querê-lo. Embrulhado para
presente.
- Vou ensiná-la coisas que ainda não a ensinei, ruiva. – prometeu com um
risinho pecaminoso. - Esse homem não irá querer sair da cama enquanto
estiver lá.
...
Capítulo 8
Sobrinha enxerida
...
Ela continuava com a mesma soma na conta bancária que há três dias,
aliás se seus cálculos estivessem corretos deveria ter alguns garidos a mais
desde então, mas o tratamento na costureira fora outro, absolutamente
diferente. Ser noiva de um lorde realmente mudava as coisas, a sociedade era
mesmo muito fútil.
Não fora o tratamento das costureiras ou o de Madame Suzanne que havia
mudado, mas as clientes já não olhavam torto para ela e algumas até tinham
arriscado um sorriso. Agora, elas gozavam de uma abençoada paz em um
local que contemplava dois provadores e dois pódios. Um lugar privativo
onde estavam longe das cobras e, como de costume, Luísa estava sendo
mimada.
Frederica, a mais jovem das costureiras e a preferida da menina, ajoelhada
aos pés dela, ajustava a barra do vestido que experimentava. A mesma se
olhava no espelho dentro do vestido lilás e se avaliava como uma adulta.
A visão a prendera e a fizera sorrir. Estivera absorta de tal modo que ainda
não havia reparado que não estavam mais tão sozinhas.
- Ela é minha, não é?
Lavínia por pouco conteve o susto diante da voz grave e repugnante.
Olhou para o lado oposto e visualizou Lady Petergille passando pelas
cortinas vermelhas com uma das costureiras, resmungando alguma coisa
sobre ter esperado demais para ser atendida.
Não precisava olhar para a esquerda. Infelizmente reconhecia aquela voz
como a dela própria e algo muito parecido com pânico tomou o corpo dela.
Séria, voltou seu olhar para a filha.
- Como se um monstro como você pudesse gerar uma criança tão linda. –
respondeu sem elevar a voz. Mantendo com muito esforço o controle.
O barão riu. Uma risada rouca que parecia ter vindo das profundezas do
inferno, pronta para despertar o medo.
- Seu noivo sabe que já esteve na minha cama? – provocou novamente.
Ele não estava disposto a deixá-la em paz e sua garganta passou a queimar
com o esforço de manter a calma. O choro ameaçou tomá-la.
- Por que ele saberia? – indagou demonstrando indiferença.
- Achei que um homem teria o direito de saber que está se casando com
uma vagabunda.
Lavínia chegou a fechar o punho. Sua mão tremia com a vontade de
acertar o rosto dele. Quebrar aquele maldito nariz fino para que toda vez que
olhasse no espelho se lembrasse dela. Da mulher que havia deformado seu
rosto.
- Se pensar em mim nessa maneira alivia sua vil consciência, fique à
vontade. – ergueu um pouco mais o queixo. - Isso não muda os fatos.
Finalmente o encarou com a testa franzida. O ódio faiscando no olhar
dela. O sorriso do rosto dele sumiu. Talvez o grande prazer dele seria vê-la
desestabilizada. O que não aconteceu.
- Mamãe! – Luísa gritou chamando sua atenção.
- Sim, meu amor. – respondeu já indo ao seu socorro. Ansiosa para se
livrar da companhia desagradável. - O que há?
A menina franziu a pequena testa e olhou para a mãe que agora tocava seu
rosto. A salvação dela era Luísa. O que a mantinha firme na vida e também
naquele momento. A ideia de que não poderia fraquejar, pois alguém
precisava desesperadamente dela.
- Não sei qual escolher. – lamentou como se fosse uma decisão de suma
importância para sua vida. - O rosa ou o lilás?
Lavínia chegou a abrir os lábios, a voz que soou foi muito diferente da
dela. Ainda assim muito familiar e reconfortante, de uma maneira que
causou um estremecimento no corpo dela.
- Vamos ficar com os dois. – a voz profunda e grave foi acompanhada por
um toque em seu ombro que por pouco, por muito pouco não a fez chorar.
- Lorde Nathan! – a pequena exclamou.
O modo como os olhos de Luísa brilhavam quando encontraram os dele,
não auxiliou em nada sua resistência a sentimentalismos. Ela queria chorar.
Tudo o que queria era se aninhar nos braços daquele homem e colocar para
fora toda raiva e frustração que estava sentindo.
- Milady. – fez uma mesura profunda para a menina como se estivesse
diante da própria rainha.
Lavínia não se atreveu a juntar-se a filha na risadinha doce que deu. A
sensação era que se abrisse os lábios sairia um soluço vergonhoso deles. A
presença dele a transformara na mais vulnerável das criaturas. Em uma
mocinha em perigo que encontrou seu herói. Ela não era nada daquilo,
repreendeu-se, mas no momento queria ser. Precisava ser.
- Agora que já sabemos que a adorável dama irá levar ambos os vestidos,
gostaria de convidá-las para comer um bolo ou algo igualmente doce e
exagerado. – ele se inclinou para sussurrar algo para Luísa em um tom que
Lavínia também ouvisse. – A não ser que queira comprar este vestido em
todas as cores já existentes.
- Não. – respondeu com uma risadinha igualmente adorável.
- Ótimo. – deu um sorriso. - Então vá se trocar e nós vamos.
Luísa não precisou de mais encorajamento para sumir por trás das cortinas
do provador. Frederica se colocou de pé e com uma mesura se dirigiu ao
nobre.
- Devo preparar os dois vestidos, Milorde?
- Sim. – assentiu com firmeza. – E tudo mais o que ela tiver escolhido ou
venha a escolher.
Lavínia não conteve o sorriso ao ver a jovem corar e se retirar com um
sorriso e uma mesura. Presumia que deveria acontecer sempre, em alguns
minutos ele havia feito a jovem se apaixonar ou ao menos se encantar por
ele.
Por sorte ela não era tão influenciável, ou talvez...
- Está tudo bem? – questionou com a mão em seu ombro. O olhar azul
profundo fixo no dela com uma preocupação doce.
Lá estava ela querendo chorar novamente e cair nos braços dele. Sim.
Quando se tratava de Lorde Nathan ela era total e estupidamente
influenciável.
Assentiu, tentando um sorriso que não o convenceu.
- Eu vou ver se Luísa precisa de ajuda. – conseguir pronunciar uma frase
completa era uma vitória grandiosa.
Nathan assentiu e a seguiu com o olhar até desaparecer atrás da mesma
cortina. Então se voltou para a baronesa.
Emily usava um vestido alaranjado que não destacava em nada sua beleza
clássica. Suas irmãs não considerariam uma surpresa, elas sempre disseram
que a mesma tinha um gosto horroroso para se vestir que só ele não
enxergava.
- Lady Petergille. – cumprimentou ao notar que não tirava o olho dele
desde que entrara no salão.
- Milorde. – acenou de volta.
- Carffort. – o barão cumprimentou com um aceno sério pouco tempo
depois, não admitindo ser ignorado.
O jovem caminhou até ele lentamente e então parou a poucos centímetros
deste. Próximo o suficiente para falar e só ser ouvido por ele.
- Cuidado Petergille. – advertiu com o olhar frio e severo dos Carfforts. –
Você pode ser um barão, mas eu sou filho de um duque. Não precisaria de
muito para acabar com você.
O encarou por tempo suficiente para ver sua garganta oscilar quando
engoliu em seco.
- As damas estão prontas, Milorde. – anunciou Frederica.
Ele franziu ainda mais o cenho para Petergille.
- Lembre-se disso. – completou antes de se virar para o que realmente
importava.
Lavínia e Luísa.
Capítulo 9
Bolo de morango
...
...
Capítulo 10
Uma visita inesperada
“Caros leitores,
...
Ninguém esperaria uma noite fria em pleno verão, mas uma chuva que
acabara de cessar diminuíra a temperatura no mínimo dez graus. Valério
havia ido se deitar merecidamente depois de horas de insistência e uma
ameaça do tipo “Se não for para cama agora, homem... Vou demiti-lo por
insubordinação.”
Agora ele estava lá. Um homem solitário sentado diante da lareira acesa.
A solidão, na verdade, era uma benção para quem tinha uma família tão
grande, mas naquela noite não surtira o resultado esperado.
Não havia nada que Nathan quisesse mais que esvaziar a mente enquanto
deixava seu olhar imerso nas chamas da lareira, mas sua cabeça não ficava
completamente vazia. Lavínia ia e via em seus pensamentos em uma
velocidade que o deixou tonto.
Com um suspiro resignado voltou o olhar para o relógio. Meia noite.
Devia ter aceitado o convite de seus amigos e ter ido para o clube. Devia ter
procurado outra mulher. Devia...
- Inferno! – praguejou com certa irritação.
Passando a mão pelo rosto constatou que, por mais cansado que estivesse,
se fosse para cama não conseguiria dormir. Decidido, se levantou e colocou
o casaco que lhe garantiria abrigo do frio não esperado. Como um resquício
de covardia olhou pela janela que dava para rua buscando indícios de chuva.
Foi quando ele parou.
Havia uma carruagem escura parada em frente à casa. Se era de algum
conhecido, não conseguia se lembrar. De dentro dela saiu uma mulher toda
vestida de preto com uma touca escondendo seus cabelos. Seu coração
passou a bater descompensado no peito sem motivo aparente.
Quem diabos podia ser? Tinha quase certeza de que não havia requisitado
nenhuma prostituta naquela noite. Será que havia se esquecido de alguma
amante quando cortara relações com todas há alguns meses? Mas que
importava! Era uma mulher que ele queria para espantar o tédio e lá estava
uma. Bastante atraente ao que parecia.
Claro que sempre havia a hipótese de estar imaginado coisas. Deveria ser
a bebida, mas espere... Ele não havia bebido. Não, aquela mulher era muito
real e acabara de bater a aldraba na porta.
Desceu rapidamente as escadas temendo que seu criado acordasse do
merecido sono profundo. Se aquela fosse o tipo de mulher que ele estava
pensando, não queria ninguém acordado na casa. Ao abrir a porta, porém...
- Eu posso entrar?
Deus! Ele reconheceria aqueles olhos azuis em qualquer lugar que os
visse. Não, não era aquele tipo de mulher que esperava, mas ao invés da
decepção esperada houve um alívio e uma ansiedade que só havia sentido
antes em seus quinze anos.
Lavínia. Ela estava ali. Estava ali e - Pelos céus! – no frio, apertando o
casaco contra o corpo, enquanto ele se encontrava paralisado e sem ação.
- Claro. – afastou o corpo e lhe deu passagem.
O que um anfitrião faria? Maldição! Encontrava-se notavelmente
desconcertado. Sem pensar muito subiu as escadas e a conduziu até a sala de
onde havia saído.
- Bebida? – ofereceu com um gesto para o aparador com uma infinidade
delas.
- Obrigada, mas eu não costumo beber. – fez um gesto com a mão.- Não
faz bem para o intelecto.
- Deve ser por isso que não sou a pessoa com a mente mais sã. – gracejou
ponderando.
- É uma possibilidade, Milorde. – deu um sorriso.
Poderia passar um longo tempo admirando aquele sorriso que curvava os
lábios rosados, até se dar conta de que seria um péssimo mordomo e era um
péssimo anfitrião.
- Seu casaco. – expressou sua lembrança caminhando até ela e a ajudando
a tirá-lo.
- Obrigada. – deu uma olhada para a lareira, seu calor lhe oferecendo um
prazer genuíno. – Está agradável aqui.
Então tirou a touca revelando os belos cabelos vermelhos ressaltados pelo
fogo. Presos em duas tranças grossas que formavam um arco gracioso fixo
com grampos próximo da nuca.
Os fios que se soltaram pelo atrito da touca deram a ela ainda mais beleza
do que tinha. Eram as imperfeições que a faziam tão linda. A prova de que
era real e não a deusa que parecia ser.
- O senhor estava de saída? – perguntou notando o casaco dele.
Nathan o despiu rapidamente e colocou ao lado do dela.
- Sim. Não. – disse sem pensar e então se corrigiu com um sorriso. – Não
mais.
- Se estou atrapalhando algo... – hesitou pousar a touca em um dos
cabides.
- Claro que não. Sente. – disse indicando o sofá confortável.
Lavínia assentiu se livrando do acessório e se acomodando. Alisou as
saias um tanto inquieta, o modo como Nathan parecia confortável, poderoso
e lindo naquela poltrona não ajudou em nada.
Era na verdade algo novo para ela e nada fácil. Há anos não sabia o que
era estar em uma posição de desvantagem e já estava desacostumada. Não
era nem um pouco confortável. Não mesmo.
– A que devo o prazer? – perguntou.
Claro que ele iria perguntar. Era justo já que ninguém aparecia na porta de
um homem a meia noite sem ter um bom motivo. E ela tinha. Era o que
dificultava as coisas.
- Eu te devo desculpas. – e não era fácil admitir, principalmente sendo
alguém tão orgulhosa. - Tinha razão. Eu tenho dificuldade de confiar nos
homens. – fechou os olhos e negou tentando ignorar o tempo que havia
negado aquilo para si mesma. - De confiar nas pessoas em geral.
Lorde Carffort assentiu, servindo dois dedos de Whisky para si mesmo.
Finalmente a nua e crua sinceridade. Já passava da hora de serem honestos
um com o outro.
- Para mim também foi, de certa forma, difícil depois de Emily. –
confessou e tomou um gole da bebida. O rosto surpreso dela não era nada
encorajador. – Já não acredito mais em algumas coisas.
- Não acredita mais no amor. – disse como se o compreendesse.
E compreendia. Sra. Solluin mesmo não acreditava. Acreditava no amor
fraternal como o incondicional que sentia por Luísa e no amor terno como o
dela e do falecido, mas não no amor romântico. O amor romântico, aquela
paixão avassaladora era só uma desculpa que os fracos usavam para perder a
razão.
- Ao contrário. – girou o líquido escuro no copo e sorriu languidamente. –
Acredito cegamente no amor. Com a família que tenho é impossível não
acreditar. – de fato, aqueles casais eram a representação do amor. – Eu só
acho que o amor não foi feito pra mim. – deu de ombros como se não
ligasse. - Parece que somos dois desafortunados Milady.
Não tinha a aparência de um menino indefeso, mas a reação dela fora
similar à quando via um. Seu coração apertou e teve a vontade de abraçá-lo e
convencê-lo de que o amor existia sim e que ele tinha o direito de vivenciar
um. O problema, era que não acreditava nisso. Nenhum pouco.
- Embora fortuna não nos falte. – foi o jeito dela de o fazer rir. Por sorte
surtiu efeito.
- De fato. – disse ainda exibindo os dentes perfeitamente brancos. – Só
espero que isso não a faça desistir do casamento.
- Nunca desisti de nada na minha vida. – respondeu com determinação. A
coluna tão ereta que mal tocava no encosto do sofá. Em um momento, porém
a firmeza a deixou ao concluir: - Mas já fugi.
- De quem?
Ah! Se ele soubesse o impacto daquela pergunta não a teria feito. Teve
que desviar o olhar para o papel de parede para conter o choro. Sua garganta
queimava.
- Da vida que levava na mansão Petergille. – foi a melhor forma de
responder com a verdade. - Não era forte o bastante.
- Difícil de acreditar. – a voz dele parecia distante e ainda assim
profundamente reconfortante.
- A mulher de agora não é a menina de ontem, Lorde Carffort. Eu mudei.
Me fortaleci.
- Você foi corajosa o bastante para fugir. Para se casar com um homem
com o dobro da sua idade.
- Solluin não foi meu algoz como pensam, Milorde.
Um sorriso saudoso surgiu nos lábios dela. O tipo de sorriso que fazia um
desconforto terrível tomar o corpo de Lorde Carffort. Como uma faca que
lhe rasgava a barriga.
- Eu jamais me sentaria à mesa, discutiria assuntos ou o receberia em
minha cama com lágrimas nos olhos. – havia uma verdade desconcertante
nas palavras dela. – Ele foi meu salvador. Meu anjo da guarda. Ele foi como
um...
Engoliu a palavra antes que escapasse e então arregalou os olhos. Quase,
fora quase. Quase colocara em risco todo seu presente e futuro por um
deslize. O futuro de Luísa.
- Um?
- Um anjo. – completou desviando o olhar novamente.
- Você já havia dito isso. – pontuou com certa desconfiança.
- Nunca é demais repetir.
Não insistiria mais, mas o sangue dos Carfforts que corria em suas veias o
impedia de desistir. Não podia simplesmente perder aquela mulher. Mesmo
que a perdesse para a lembrança de um homem morto.
- Só há lugar para um salvador em seu coração, Milady?
- Eu não sou mais uma garotinha assustada, meu lorde.
Não era. Era uma mulher magnífica que vestindo preto tinha os traços
sensuais do rosto e o corpo curvilíneo bem destacados. Uma mulher linda,
forte e generosa.
- Do que estaria me salvando?
- De si mesma.
A resposta certeira a deixou boquiaberta. Sim. Precisava
desesperadamente ser salva de si mesma. Havia uma parte dela que estava
doente há anos e que não acreditava que estava. Aquela parte só queria ficar
em um canto ignorada, mas às vezes tomava as decisões por ela.
Como quando afastava Nathan de Luísa.
- Ela precisa de um pai, Milorde. – sentiu as lágrimas nos olhos. – Mas
não ousaria pedir isso ao senhor. Eu tenho feito o melhor que posso, mas...
Quando deu por si já estava sentado ao lado dela, segurando sua mão entre
as dele. A mão delicada e pálida sumindo nas suas enormes e bronzeadas.
Segurança. Era o que queria transmitir. Era o que transmitia.
- Lavínia. – chamou e aguardou até que olhasse para ele. – Eu serei para
Luísa o que ela precisar que eu seja. Sem me importar com nome que tenha.
Vendo as lágrimas eminentes, surgiu dentro dele o comichão de fazê-la rir.
Era uma característica de sua personalidade. Quando alguém estava triste ou
melancólico, sentia-se na obrigação de despertar o riso.
Ali, não havia nada mais importante que restaurar o sorriso de Lavínia.
Mesmo que soubesse que seu choro não era de tristeza ou melancolia.
- Se ela quiser um malabarista eu vou jogar garrafas para o ar e
provavelmente ganhar um galo na cabeça.
Um riso abafado escapou dela, mas não parecia ser o suficiente.
- Se ela quiser um trovador, então terei que arrumar um alaúde, muito
embora... – pareceu um tanto sério e contemplativo, só pareceu. – Eu não me
responsabilize pelo mal temporário ou permanente que isso pode fazer aos
ouvidos da pobre criança. Ficaria traumatizada diante do meu talento
inexistente para música.
Finalmente sua risada soou alta e clara enquanto enxugava os olhos com o
lenço que lhe fora passado. Ansiosa por enxergar o homem que a fizera rir,
que a fazia tão bem.
Ele amava Luísa, embora não o tivesse dito em voz alta. Não havia nada
mais que ela poderia pedir. Talvez ele jamais chegasse a amá-la, talvez
jamais tivessem uma ternura confortável um com o outro como ela tinha
com o Sr. Solluin, mas já era o bastante. Se a criança, sua menina, fosse
amada da forma que merecia, então não precisava de mais nada.
- Obrigada. – deu um sorriso para ele, que o retribuiu. – Por me receber
e... Por todo o resto.
Nathan assentiu.
- Disponha.
- Eu devo ir agora.
Só que não se levantou. Nenhum dos dois se moveu. Apenas continuaram
com o olhar imerso um no outro.
- Passe a noite aqui.
- Não posso. – só a ideia lhe deu arrepios desconfortáveis pelo corpo. Não
podia. Em hipótese alguma.
- Ora, já estamos acima dos rumores.
- Não é por isso. Eu... – engoliu em seco. - Eu tenho problemas para
dormir. Não consigo dormir fora de casa.
- Passaremos a noite acordados então. – encostou no sofá como se tivesse
a intenção de fazer exatamente aquilo.
- Não seja tolo. – soltou uma risadinha nervosa. - O senhor tem que
dormir.
Tinha. Os últimos acontecimentos e também a falta de alguns, fizera
daquela semana a mais exaustiva de toda sua existência. Não física, mas
psicologicamente.
- Eu tenho insônia. – mentiu de forma descarada com um sorriso maroto
que o condenava. - Não consigo dormir quando desejo algo que não posso
ter.
- Ah! – a exclamação foi a única coisa que escapou dos lábios dela.
O olhar sedutor e malicioso de Lorde Carffort não deixava dúvidas do que
se referia. O modo como avaliou o corpo dela fez seu coração disparar e uma
ansiedade consumi-la. Desejava Nathan. Desesperadamente.
Em um gesto de pura proteção devolveu o lenço dele. Estava pronta para
correr em disparada. Como um cervo que pasta atento aos barulhos de
caçadores. Pronta para fugir sem olhar para trás.
- Não se preocupe. – guardou o lenço novamente no bolso com postura
descontraída. Bem diferente da dela. - Eu não vou tocar em você. Não agora.
Se este for o receio pode dormir em paz.
- É um pouco mais complicado do que parece.
“Um pouco” havia sido um violento eufemismo. Era “doses cavalares”
mais complicado do que parecia ou qualquer expressão que representasse o
mesmo.
- Você é mais complicada do que parece.
Assentiu em concordância enquanto um calor tomava seu peito de forma
reconfortante. Quanto tempo fazia desde que se sentia compreendida por
alguém? Meses... Anos, talvez.
Desde que Solluin se fora ela já não via aquele olhar. O olhar de quem
sabia, de quem conhecia a existência de suas aflições e compreendia, mesmo
que sem saber quais eram. Aquele olhar carinhoso quando ele levantava os
olhos dos papéis sobre a escrivaninha e com um “entre criança” permitia
que partilhasse suas dores e frustrações.
Até aquele momento não sabia o quanto sentira falta daquilo. Agora sentia
o coração mais leve e confortável. Muito embora, havia muito que ainda
doía, era bom saber que não estava sozinha.
Sem saber como expressar sua gratidão por algo de proporções tão
grandes, ela o agradeceu novamente antes de sair. Agradeceu ao homem que
segurou a mão dela.
Havia mentido. Precisava desesperadamente de um salvador. Precisava
desesperadamente ser salva.
...
“Nathan,
Não pude deixar de notar que está me evitando deliberadamente. Seja por
correspondência ou pessoalmente.
Desde que ficou noivo não tivemos a conversa que eu pretendia. Conversa
nenhuma na verdade.
Considerando que seria dramático demais ameaçar sua herança para que
me atendesse prontamente, estou pedindo que venha por livre vontade pelo
que parece a milionésima vez.
Há assuntos que devemos discutir.
Ainda esperando,
Lorde Edward Carffort,
“Prezados leitores,
Devo admitir que não me encontrava tão ansioso para um evento social
desde que Lorde Allan Carffort nos frustrou com um casamento às escuras
ou desde que Lady Sara Trian resolveu se casar no campo. Em resumo, o
casamento de Lorde Nathan Carffort tende a ser o maior e mais concorrido
da temporada.
Seria muito esperar que com Carfforts, Kurts, Solluins, Trians e Degards
no mesmo salão houvesse pelo menos um escândalo? Talvez, ingenuidade
mesmo fosse esperar pelo contrário...”
...
Capítulo 12
Eu aceito
“Querida mamãe,
“Emily,
Duplamente frustrada,
Lady Carnuil.
...
Com certeza amara Solluin, por ela e principalmente por causa de Luísa. E
seu futuro marido... Bom, sentia algo diferente perto dele. Sentia-se segura e
ao mesmo tempo desconfortável. Não se lembrava de desejar tanto um
homem na vida, mas claro que aquilo não poderia significar grande coisa.
Desejar Nathan na verdade era uma coisa boa – levou um tempo tentando
se convencer – e também inevitável – mais da metade das jovens que o
conheciam deviam se sentir da mesma forma. Só significava que seria muito
mais confortável realizar seus deveres conjugais.
O mero pensamento a respeito fez seu corpo estremecer e seu estômago
tentar expulsar o desjejum. O breve desjejum que havia tomado. Ótimo,
agora também estava tremendo e nauseada. Era um excelente presságio para
o que viria a seguir.
- Mamãe?
Virou-se tirando a mão da barriga e tentando se recompor. Não queria que
a filha sequer desconfiasse do quanto estava sendo difícil levar aquilo
adiante. Aliás, queria que Luísa acreditasse que nada era difícil demais a
ponto de fragilizá-la. Afinal, ela era o porto seguro dela.
- Mamãe! – exclamou levando a mão aos lábios boquiabertos.
- O que houve, meu bem?
Oh não! Ela havia percebido algo! Não seria uma surpresa. Era inteligente
além da sua idade.
- Está linda! Parece... Parece uma princesa! Não, não, uma fada!
Lavínia deu um sorriso e deixou o ar sair em um suspiro de alívio. Era
disso que se tratava então.
- Também está linda. – retribuiu o elogio.
Luísa girou, exibida, no vestido de cor verde claro e tocou o arranjo de
seus cabelos para verificar se havia sobrevivido. A coroa feita de pérolas
havia dado um ar da realeza a seus cabelos ruivos. Estava linda. Sua menina,
sua miniatura.
- Também está parecendo uma princesa.
Luísa deu alguns passos até alcançar uma posição que a deixou satisfeita e
então se avaliou no espelho. As sobrancelhas arqueadas e o cenho franzido, a
concepção da exigência.
- Não sei não.
- Uma rainha então? – sugeriu se divertindo pela primeira vez naquele dia.
- Uma fada bem pequena ou... ou...
- Um gnomo. – completou uma voz infantil que fez ambas se virarem para
a porta.
Richard, o filho de Lady Trian olhava para Luísa com as mãos nos quadris
e o semblante desafiador. Aproveitando os minutos de vantagem que tinha
da mãe e do pai que logo chegariam.
Luísa franziu o cenho, claramente indignada. A mãe só esperou pelos
gritos ou provocações infinitas – sabia que choro não era muito do feitio de
sua filha – mas então ao invés disso, simplesmente...
- Os meninos são tão tolos. – disse de forma afetada.
A Sra. Solluin sorriu para Lady Trian que havia chegado a tempo de ouvi-
la. Ambas trocaram olhares e expressões que só duas mães entenderiam.
- Boa sorte para lidar com isso. - zombou indicando a filha com a cabeça.
- Eu tenho lidado com coisas bem piores. – respondeu com olhar
reprovador para o filho.
Menino este que no momento tinha o olhar angelical. O rosto de uma
criança de que sequer tivera qualquer intenção de fazer uma estripulia que
fosse durante toda a vida. Um querubim.
- Venha Luísa, eu a levo até a carruagem.
O mesmo que a chamara de gnomo agora oferecia o braço a ela como um
adulto e ela o aceitou como se sequer se lembrasse da ofensa inocente. Se
sairia lindamente na sociedade, com toda certeza. A capacidade de não
guardar rancor – ou fingir não guardar – era essencial para sobreviver
naquele meio.
- Vá atrás dele querido e se assegure que não cometa nenhuma travessura
nos próximos cinco minutos. – disse a mesma ao Lorde Trian.
Este - que há pouco tinha cumprimentado a noiva - tinha todo o direito de
questionar o porquê estava sendo mandado para a carruagem da qual acabara
de sair há poucos minutos. Não aquele homem. Trian pareceu mais do que
pronto a atendê-la. Um poço de paciência seguindo o filho e a menina que
seria convidada em sua casa pelos próximos sete dias.
O estômago de Lavínia voltou a revirar fazendo–a se arrepender de sequer
ter tomado o desjejum.
- Tem certeza de que quer fazer isso, Milady? – questionou hesitante. –
Tenho certeza que Lorde Carffort não se importaria se Luísa ficasse conosco.
- Tolice. Vocês precisam de privacidade e Luísa não me dará trabalho
algum. – deu um dos sorrisos fáceis de seu pai. – Ela é adorável. Ah! E não
se preocupe com Richard, ele parece travesso e inconveniente, aliás, ele é
travesso e inconveniente, mas é um bom menino. Jamais a trataria mal de
propósito.
- Jamais pensaria nisso. – respondeu com sinceridade.
Sabia o que eram brincadeiras de criança e o que era crueldade.
Principalmente porque sua própria infância fora repleta da segunda
categoria.
- Só não quero que ela seja um inconveniente.
Havia sido um inconveniente por anos. Seu tio fazia questão de repetir
isso todos os dias. Não era uma boa experiência. Fazia poucas promessas na
vida, mas uma delas foi jamais deixaria que a filha passasse pelo mesmo.
Jamais.
Viu a sobrinha de seu noivo negar com um sorriso.
- Qualquer parente meu é bem-vindo em minha casa. – Sara acrescentou.
– Em breve será minha tia e Luísa é minha prima. Além disso... Eu amaria
qualquer filha de Nathan.
Filha de Nathan. Oh Deus! Por um momento ela desejou que ela fosse
mesmo – Que Deus a perdoasse! Não deveria desejar que Luísa fosse nada
além do que era. Era perfeita.
Tinha certeza que seu rosto era o de uma mulher desconcertada, embora
não tenha tido coragem de confirmar no espelho. No entanto, se sua
companhia notou sua reação, não comentou a respeito ou então – o mais
provável – interpretou de outra forma.
- Ansiosa?
- Um pouco. – admitiu.
- Não se preocupe. – a mão delicada pousou no ombro da noiva. – Ele será
um bom marido.
- Eu sei.
Era o que deveria dizer por educação, mas foi chocante perceber que não
era mentira. Sabia, de alguma maneira, que Lorde Carffort seria um marido
melhor do que ela merecia.
- Eu sei. – repetiu.
...
Obviamente seu criado havia feito um excelente trabalho com suas roupas
e – também obviamente – ele sentia a necessidade de dar seu toque. Era
sempre assim. Tinha que dar um jeito no colarinho, tirar uma mecha do
cabelo castanho do lugar onde deveria estar ou – como era o caso – cutucar a
gravata de modo que a posição dela parecesse um mero acidente e não fruto
de um trabalho minucioso.
Ouviu um farfalhar de saias. Deu um sorriso. Era de se esperar que já
estivesse ansiosa. Por mais que estivesse em uma das salas da catedral, bem
próxima do altar, estava em cima da hora. Não que alguém desconfiasse de
uma possível fuga, mas...
- Mãe, eu já estou... – quando virou, percebeu que não era bem a mulher
loira que esperava. - Emily?
O espanto o fez esquecer as formalidades.
- Sim, querido. – concordou timidamente, se aproximando. - Precisava
falar com você.
Naquele dia em especial como se o diabo estivesse disposto a tentá-lo, ela
estava particularmente bem vestida e arrumada. Usava um modelo bem
cortado em tom de azul claro e o cabelo loiro moldado de forma a evidenciar
o rosto em formato de coração. Só que assim como sua beleza clássica, havia
algo claro na cabeça dele.
Emily era de fato bonita, mas ela era só bonita. Não havia muito mais de
interessante nela, ela era vazia.
- Por que está fazendo isso? – questionou parecendo deveras preocupada.
- Isso o quê?
Não era ironia. Ele realmente não tinha entendido.
- Se casando.
- Como assim?
- Se for só uma forma de me mostrar que deixá-lo foi um erro, acredite, eu
já percebi.
Deu mais um passo e tocou a manga do casaco dele. Embora tenha feito
de forma inconsciente, Nathan recuou um pouco. Ela pareceu não notar.
- E muito embora agora não possamos ter um relacionamento às claras, há
outros tipos de relacionamento que podemos ter.
- Claro. – respondeu contendo o riso
Havia entendido direito? A mulher que parecia a exata representação do
recato e da inocência havia acabado de se oferecer como amante para ele?
- Ela não é a mulher certa pra você, querido. - parecia convencida de que
ele estava completamente interessado em sua proposta. Completamente
inclinado a corresponder a todos os desejos dela. - Não é como nós. Não
corresponde aos padrões estabelecidos. Não o merece.
Aquilo, aquelas últimas três palavras, foram a gota d’água para tirá-lo do
sério. Lavínia não o merecia?
Lavínia merecia tudo o quanto desejava porque lutava pelo que queria.
Havia sofrido na infância, se casado para escapar dos absurdos de sua
juventude e amava a criança que havia gerado com apenas dezesseis anos. E
era isso que Emily era ali... Uma criança. Uma criança que não entendia
sequer como o mundo funcionava, criticando uma mulher com a qual
deveria aprender.
- E você me merecia, Lady Petergille? – lançou a pergunta com o ar
severo dos Carfforts, que a fez recuar.
- Bem, sim...
- Sim, é claro. – concordou com sarcasmo. Era de se esperar que era assim
que ela enxergaria.
- Ainda há tempo para ir embora.
- Tem razão. – concordou ainda sério.
- Tenho?
- Sim. Eu preciso correr. – checou o relógio de bolso com certa urgência. -
Só faltam cinco minutos para a cerimônia e ai de mim deixar minha Lavínia
esperando.
- Mas...
- Se há alguém que me merece neste mundo é aquela mulher. – apontou
em direção da porta como se ela estivesse lá. - E se eu fosse você voltaria
para seu marido e tentaria ganhar a atenção dele, Milady. Se esperar a minha
pode acabar se tornando uma velha decrépita antes que perceba.
O rosto doce se converteu rapidamente em um rosto franzido de
desconforto.
- Como ousa...
- Não se preocupe. – respondeu com um sorriso, caminhando até a porta. -
Vou fingir que nunca tivemos essa conversa.
Afinal, ele tinha um casamento e o que era melhor, a mulher que esperaria
no altar em nada tinha a ver com aquela que deixara naquela sala.
...
Ainda que tivesse prometido fingir que a discussão naquela sala não
passara de fruto de sua imaginação fértil, ela não deixou sua cabeça tão
facilmente. Antes de conhecer Lavínia tudo que ele queria era aquilo. Queria
que Emily percebesse que cometera um erro e voltasse para ele. Agora,
percebeu que não importava mais. Não fazia diferença nenhuma.
Só o que o perturbava era a audácia daquela mulher ao criticar sua noiva.
Sua noiva que parecia disposta a fazê-lo esquecer da discussão, de Emily, de
seu reino de origem, seu sobrenome, o mês, o ano e até quantos anos tinha.
Quando entrou naquela igreja, nada mais importava.
Não esperava que Lavínia usasse branco, mas não esperava aquilo, aliás
não sabia o que esperava para ser honesto.
O vestido que havia escolhido compreendia um corpete prateado coberto
de pedrarias. Pedrarias essas que caiam pela saia como que por acidente,
parecendo estrelas no tecido azul meia noite. O tule escuro da saia dava um
ar de majestade, não que ela precisasse de mais.
O cabelo ruivo estava penteado deixando mechas brincarem em seu colo
pálido. Os olhos azuis determinados, a boca desenhada em uma linha séria
de concentração. O rosto naturalmente corado.
Fora um tolo ao imaginar que o maior risco que corria naquele casamento
era passar a amar Luísa. O verdadeiro perigo – e seu coração deu um salto
para comprovar – era amar a mãe dela.
...
Capítulo 13
"Verdinosas compridas"
“Sei que esperávamos que Lady e Lorde Nathan Carffort tivessem uma
exposição mais prolongada no baile desta noite. Onze e treze em ponto –
posso afirmar que isso foi checado em um relógio perfeitamente ajustado
com o da praça central – os dois deixaram de nos brindar com sua ilustre
presença.
O que para alguns foi um infortúnio, para nós foi um bom presságio.
Casais assim, apaixonados a ponto de criarem um escândalo no dia do
casamento, costumam ser fábricas de boas histórias. Mal posso esperar
para escrever a próxima.”
...
Nathan tinha quase certeza que não era daquela forma que as coisas
tinham que acontecer. Não que ele tivesse casado cinco vezes durante a vida
ou nada do tipo, mas pelo que ouvia dos amigos e do irmão a noite de
núpcias envolvia mais do que levar sua noiva - sonolenta e bêbada, para ficar
ainda pior - para a cama. Sem qualquer intenção que não fosse deixá-la
confortável para dormir.
Como uma mocinha, ele havia fantasiado aquela noite. Bom... Não
exatamente como uma mocinha. Uma mocinha sequer teria algo perto dos
pensamentos libidinosos que rondavam a cabeça dele, mas ainda assim
fizera planos para aquela noite e acabara não sendo nem de perto similar.
- Por que resolveu beber? - questionou colocando-a de pé no chão do
quarto. Não que fizesse diferença de fato.
Ela hesitou longamente e mesmo estando de costas para ele percebeu seu
receio.
- Lavínia... - chamou com um tom calmo, a voz dele era mais sensação
que som, bem próximo do ouvido dela. A pele arrepiada diante do calor da
respiração.
- Estava nervosa. - respondeu por fim.
- Nervosa. - repetiu como se assim fosse compreender melhor.
O pior é que não conseguia ficar zangado com ela. Até porque havia algo
incrivelmente estimulante em conseguir deixar uma mulher tão forte e
independente como Lavínia desconcertada e nervosa. Seu ego masculino não
conseguia resistir ao ímpeto de inflar.
- E por quê?
Provocá-la era demasiado divertido. Provocá-la bêbada era ainda melhor.
Não precisara de muito tempo para perceber que ela não conseguia controlar
o que falava tão bem em tais condições.
- Nove anos é muito tempo. – respondeu cabisbaixa. Nunca lhe ocorreu
vê-la assim.
- De fato. – concordou, embora não acreditasse nela.
Outra vez aquela história de nove anos. Será que o que havia ocorrido
com Solluin nos últimos nove anos fora tão ruim que ela quis apagar da
memória?
Aquilo era completamente inaceitável. Lavínia ter na cama algo além do
mais absoluto prazer era uma afronta à natureza, um desperdício de sua obra,
um...
Um tombo. Era o que ela iria levar se ele não estivesse logo atrás para
segurá-la. Suas costas penderam para trás como se não tivesse controle sobre
seu corpo e ele o amparou com o braço forte.
- Para cama, mocinha. – disse no melhor tom brincalhão que o momento o
permitiu.
- Nathan... Está tudo girando... – ela puxava o ar com dificuldade. – Não
con... sigo... respi... rar.
Praguejou alto ignorando que estava na presença de uma dama, sua
esposa. A etiqueta era algo secundário quando estava diante de uma mulher
que estava prestes a desmaiar.
Sua cabeça girava copiosamente, sentia frio e calor ao mesmo tempo. Foi
quando ele a pegou nos braços e a levou para cama. Os dedos hábeis abrindo
os botões de seu vestido enquanto os lábios soltavam impropérios que não
conseguia distinguir bem. Não que realmente importasse.
Tudo o que lhe ocorria era que precisava respirar. Precisava.
A pele de Lavínia estava coberta de suor quando este chegou ao
espartilho. Seus dedos escorregavam, dificultando o trabalho tão simples que
ele estava acostumado a fazer. Ou, talvez, o pavor fosse um quesito ainda
mais limitante. Seus olhos estavam desfocados e não enxergava direito.
Tinha que libertá-la.
Os pulmões se encheram bruscamente de ar quando o espartilho – também
conhecido como ferramenta clássica de tortura – ficou frouxo o suficiente.
Seu corpo reivindicava o ar que lhe fora negado por tanto tempo.
O silêncio caiu pesado no quarto, o único som que o preenchia era o som
de ambas respirações ofegantes. Lavínia sentiu o vestido sendo tirado de seu
corpo juntamente com as anáguas, mas dado o seu estado de torpor sequer
protestou. Depois, só se lembrava da sensação do colchão afundando e da
mão de Nathan massageando suas costas somente cobertas pelo tecido fino
da camisa sem alças.
O toque dele acalmou seu corpo e sua alma. O ar passou a fluir com
naturalidade de dentro para fora e de repente não havia preocupações. Ela se
sentiu acolhida, querida, amada. O bastante para mergulhar em sono
profundo, inconsciente do ambiente em volta dela.
...
Nathan deu um sorriso avaliando seu novo quarto. Era evidente que os
criados fizeram o possível para apagar as lembranças de seu antigo dono,
mas algumas coisas não são facilmente removidas.
Em cima da penteadeira estava um retrato muito bem pintado de Luísa.
Avaliando melhor com o objeto nas mãos, estimou que deveria ter cerca de
seis anos na ocasião.
- Eu peço perdão, Milorde. – disse o mordomo que viera com seu criado
avaliar se o quarto estava adequado para receber o patrão. – Não sei como
deixaram passar. – se referia ao quadro, ele percebeu. - Levaremos neste
instante.
- Não. – reprimiu o sorriso. O esforço para não perder o respeito diante
dos criados. – Deixe aqui.
Pousou exatamente onde estava e imaginou quantas vezes Solluin não
tinha feito a mesma coisa. Agindo como um tolo piegas diante daquela
criança linda. Como ele o entendia! Não, não era o pai biológico de Luísa e
nenhuma força cósmica mudaria isso, mas ele poderia amá-la como se fosse.
Maldição! Ele já a amava como se fosse.
“As coisas são diferentes quando envolvem uma terceira pessoa, filho.
Um dia você pode ser tudo o que essa menina tem, quer ou precisa e não
poderá ignorar a responsabilidade. Maldição! Não irá ignorar. Eu o
proíbo.” O discurso do Duque que tinha como objetivo ser ameaçador, fora
na verdade muito tocante. Ele sabia o que era casar com uma mulher com
filhos. Mais do que isso, sabia o que era acolher e amar uma criança que não
era dele ou, no caso, quatro.
- Meu lorde?
O tom do mordomo juntamente com sua expressão vagamente avaliativa o
fez deduzir que acabara de fazer uma pergunta. Uma pergunta que não fazia
a menor ideia de qual era porque estava com o pensamento voando em outra
direção.
- Sim? – questionou como se sua falta de atenção houvesse sido
deliberada.
- Se não precisar mais de mim, senhor...
- Sim, vá. – fez um gesto de dispensa com as mãos.
Com uma mesura sucinta, o senhor idoso deixou o quarto. Encostou a
porta da forma silenciosa que aprendera com os anos de profissão. Então se
voltou para o corredor agora escuro e vazio com um suspiro fundo de alívio.
Não por muito tempo.
- Mas que... – reprimiu o xingamento com a mão no peito devido ao
espanto. – Gerusa o que faz aqui? – sussurrou.
A senhora magra aproximou a vela do rosto. A testa franzida de
preocupação e reprovação. As rugas de expressão marcando os anos longos
de trabalho naquela casa.
- Temos que contar a ele. – disse franca e direta.
- Nem continue. – disse, caminhando em direção à ala dos criados sem
olhar para trás.
Obviamente, porque era uma criatura teimosa ao extremo e também sua
esposa, ela o seguiu com determinação. Disposta a tirar a paz dele. Como se
não estivesse agoniado o bastante.
- Ele tem o direito de saber com o que está lidando. – insistiu a senhora.
Apenas virou um pouco a cabeça, mas não chegou a olhá-la.
- Sr. Solluin também não sabia com o que estava lidando anos atrás.
- E, certamente, se lembra do quanto foi difícil para ele.
- Talvez Lorde Nathan tenha o sono pesado. Talvez nem note.
- Nem note? Ora, Gerald, é nisso que quer acreditar?
- Eu preciso acreditar em alguma coisa. – parou bruscamente e se virou
para encará-la. A angústia escondida em sua expressão.
- Está fugindo da responsabilidade.
- Eu não vou trair a minha senhora. – disse com firmeza, mas sem alterar a
voz.
- Ele também é seu senhor agora.
- Para mim ele não passa de um estranho.
- É mesmo? – desafiou, aproximando-se até encará-lo de uma forma que
era impossível quebrar a conexão. - Como a Sra. Solluin no dia que bateu à
porta dessa casa?
Havia sem dúvida atacado o ponto mais sensível que poderia. Anos atrás
ele quase deixara sua atual patroa no frio e na chuva e se envergonhava
disso. Ela era uma criança solitária e ele um homem que há pouco
conseguira o emprego. Ainda assim, não fora justo e nem certo, e apesar de
já ter se desculpado formalmente, era uma culpa que carregaria e só piorou o
que sentia naquela noite.
Com um semblante resignado se voltou para a esposa. Então manteve a
expressão séria.
- Deixe-o descobrir por si mesmo. Era o que Milady iria querer.
Seria. Ao menos esperava que sim.
...
Não havia sequer a mínima remota possibilidade de ele ter uma noite de
sono agradável. Aliás, era uma bela surpresa que ele tivesse tido uma noite
de sono, de qualquer forma.
Não bastara a castidade em sua noite de núpcias, também teve que ver
Lavínia seminua e dividir a cama com ela. Com ela e aquele corpo
voluptuoso e perfeito.
Lógico que sua mente entendera que ela estava bêbada, prestes a morrer e
dormindo, nessa sequência, mas seu corpo não era nem de perto tão
compreensivo. Nada compreensivo. Era mais uma força primitiva com o
objetivo de tirá-lo do sério.
Quando percebeu que ela havia adormecido, se esforçou para voltar o seu
quarto o mais rápido possível. O que não faria a menor diferença porque
mudar de cômodo era pouco para se ver livre dela. Ao menos era isso que
havia usado como desculpa para permanecer ali até que os sons no salão de
baile cessassem.
Quando finalmente se retirou, sua respiração ofegava e a visão dos
cabelos ruivos, das curvas sensuais cobertas por roupas de baixo arquitetadas
para levar um homem à loucura completa, perturbava seus pensamentos.
Em parte, fora por isso que chamara seu criado, com a intenção que a
companhia o distraísse. O mordomo acabara vindo junto.
Quando estes se retiraram, a ausência dela voltou a perturbá-lo tanto
quando a consciência de que estava a poucos passos de seu quarto. Certo de
que seria o bastante, foi ao quartinho se aliviar sozinho.
Isso não impediu seu sono de ser agitado. Não impediu que sonhasse com
ela. Linda e nua em sua cama, chamando o nome dele em desespero e de
repente...
- Não! – um grito ensurdecedor invadiu o quarto fazendo-o sobressaltar. –
Pare! Não! Não!
Sentou na cama com a boca amarga, a sensação que o coração pularia pela
boca a qualquer instante. Aquilo era um sonho. Tinha que ser um pesadelo.
Só que estava bem acordado e os gritos não paravam.
Era claramente a voz de Lavínia, sofrida e desesperada como nunca havia
ouvido, mas ainda a voz dela. Estava em apuros. Alguém devia ter entrado
em seu quarto, mas como? Não importava, ela estava em perigo.
Em uma velocidade sobre-humana ficou de pé, tateando a gaveta da
cômoda em busca da pistola. Assim que a encontrou correu até o quarto com
a respiração descompensada. Se alguém estivesse fazendo qualquer mal a
Lavínia, não sairia dali vivo. A porta bateu na parede em um baque e ele
olhou ao redor. A pistola armada e apontada para...
Ninguém.
Não havia ninguém além de Lavínia naquele quarto. Olhou embaixo da
cama, abriu as portas de cada maldito armário e vasculhou o quarto de vestir.
Nada.
E ela continuava gritando e se debatendo em desespero. Foi quando
percebeu. Ela estava sonhando. Tendo algum terrível e péssimo pesadelo e
prestes a se machucar com o quanto que estava agitada.
- Lavínia! – chamou pousando a arma na cômoda dela. – Lavínia acorde!
– chamou de novo.
- Pare! Pare, por favor! – continuou gritando e gritando.
- Lavínia! – tentou novamente segurando os pulsos dela. – Acorde! – sem
pensar ele a sacudiu. – É só um pesadelo! Acorde!
- Não!
Então ela abriu os olhos, mas ele percebeu que ainda não estava
consciente. Continuava a se debater e viver o sonho. O vilão só havia
mudado de rosto. Tudo o que lhe ocorria é que tinha que se salvar. Seus
olhos desviaram para o corpo dele, muito maior e mais forte do que o dela,
só vestindo calções e mais nada, depois olhou para seus pulsos presos pelas
mãos dele. De novo não. De novo não.
- Lavínia! Pare e me escute. – disse, o olhar azul e sério fixo nela.
- Não! Solte-me!
Não a obedeceu, mas o susto foi o suficiente para aliviar a pressão e uma
das mãos dela escapar. Com um grunhido ela o arranhou com força no rosto.
Finalmente, o choque pareceu acordá-la. Com os olhos azuis claros
arregalados fitou a marca vermelha no rosto forte e assustado.
- Saia daqui. – disse em tom de ordem.
- Não. – respondeu quase como um rugido grave.
- Saia. Eu não o chamei aqui. – gritou com o rosto franzido. – Saia do meu
quarto ou eu...
Engoliu o restante da frase quando este olhou para seu punho fechado.
- Vá em frente. – incentivou com o rosto sério. – Eu não saio daqui.
- Po-Por quê? – questionou em tom embargado em meio a soluços.
As lágrimas caiam em seu rosto sem controle algum. Velozes e teimosas,
ignorando que não eram bem vindas. Nathan a puxou para perto de si e ela
não resistiu. Não resistiu ao calor e ao toque. Não resistiu ao refúgio bem-
vindo.
- Por quê?
- Porque eu prefiro que me machuque do que a si mesma, sua mulher
louca. – respondeu em tom de repreensão, mas não a soltou.
Os braços antes tensos e as mãos fechadas se dissolveram o bastante para
retribuírem o abraço dele. Sentindo o calor de seu peito contra seu rosto
choroso.
- Fique calma. – pediu acariciando as costas dela. – Ninguém aqui quer
machucar você.
Pela primeira vez depois que Solluin havia partido sentiu que alguém se
importava com ela. Que queria seu bem e sua segurança. E ela o havia
agredido.
Afastou seu rosto e olhou para ele. O rosto demonstrando uma tristeza
profunda quando visualizou as marcas que sua violência havia criado. Ela as
acariciou com os dedos finos.
- Nathan, me perdoe. – pediu com um suspiro fundo. – Eu não quis...
- Não se preocupe. – deu um sorriso. – Tenho certeza que vou encontrar
uma boa desculpa para isso.
Um sorriso escapou dos lábios dela e foi um deleite para seus olhos.
- Por que é tão gentil comigo?
- Por que eu não seria? – questionou, deslizando a mão grande pelo rosto
dela.
O rosto dela afundou em seu pescoço, onde se deixou sentir seu cheiro.
Respirando pausadamente, mas cada vez de forma mais acelerada.
- Por que os criados não me contaram?
A mágoa na voz dele fez seu coração apertar.
- Eu fiz os que sabem jurarem silêncio. – soltou um suspiro fundo, as
mãos agarrando–o com mais força. – Eu não me orgulho disso. Não me
orgulho de mim mesma. Sou uma pessoa terrível por tê-lo arrastado para o
meu inferno de todas as noites. Eu não queria. Eu não devia.
Nathan se afastou e segurou seu queixo para olhá-la nos olhos. Tão
profundamente que sentiu que sua alma poderia ser lida.
- Lavínia...
Desviou o olhar para a mesa de cabeceira e quase perdeu o ar com o que
viu. Estava imaginando coisas?
- Uma pistola?
No primeiro instante, pareceu vagamente confuso, então seguiu seu olhar
e a compreendeu. A pistola. Até tinha se esquecido que a trouxera.
- Achei que alguém estava machucando você. – justificou de forma
franca. – Responda com sinceridade Lavínia, alguma vez você já se
machucou com esses pesadelos?
Após um longo período de hesitação ela assentiu.
- A pior vez foi quando caí e bati a cabeça.
Soltou um xingamento diante da resposta dela. Por isso Luísa não dormia
com a mãe, para sua própria proteção. Ela tinha medo de machucar a
menina.
- Não foi grave, Solluin chamou o doutor e eu fiquei bem.
Arregalou os olhos ao sentir as palmas das mãos dele em seu rosto.
Garantindo que estava capturado sua atenção.
- Um dia ainda vou entender você, mas duvido que seja esta noite. –
deixou os polegares secarem suas lágrimas. - De hoje em diante você não
dorme mais sozinha.
- Mas...
- Nunca mais. – reforçou.
Não tinha forças para discutir com ele, mais do que isso, não queria
discutir. Quando a puxou para que deitasse de frente para ele e a abraçou
soube que não havia porque contradizê-lo.
Aquele era o marido dela e naquele momento, não havia nada que a
deixasse mais feliz. Estava segura. Finalmente.
...
Capítulo 15
Como nos velhos tempos
...
- Peço desculpas por não recebê-lo com vestes mais adequadas, Milorde.
Nathan reprimiu o comentário de que ela nunca o havia recebido com
vestes adequadas. Não era momentos para brincadeiras e mesmo a jovem
parecia compreender isso.
Abby vestia um roupão azul marinho que ia até seus pés calçados pelos
tamancos. Não havia sequer um vestígio de maquiagem em seu rosto e foi
quando ele se deu conta de que ela era naturalmente bonita. Ousava dizer
que estava ainda mais bonita que o habitual.
- Não se preocupe com as formalidades.
Assentiu como se agradecesse, colocando os cabelos longos atrás da
orelha. Então pegou os dois copos e ofereceu um a ele.
Imaginava que beber não era uma atitude inteligente, mas sabia que para
ter aquela conversa nem todo álcool do mundo seria suficiente.
- Obrigada.
Abigail se sentou no sofá ao lado dele com a postura calma de uma dama,
embora a malícia que tinha no olhar dissesse o contrário. Tomando um gole
de sua bebida ela simplesmente esperou até que ele se manifestasse.
- Conhece Lavínia há muito tempo?
- Há alguns anos. – franziu o cenho diante das implicações que aquela
pergunta criava. – Há algo errado?
- Passei a noite com ela.
A compreensão que se fez entre os dois não deu margem para dúvida. Ela
sabia do que se tratava a preocupação dele ou, ao menos, onde teve origem.
Como presumida, fora uma decisão acertada procurá-la. Não conhecia
muitas outras que fossem amigas de sua esposa, ela não era do tipo que tinha
muitas.
- Como foi?
- Mais terrível do que posso descrever.
O que ele não havia dito seu rosto havia contado. Por trás das feições
másculas e belas, estava um homem cansado, de aparência adoentada.
- O médico disse que poderia piorar com o tempo. – disse, segurando o
copo com ambas as mãos. Contendo o ímpeto de tocar nas mãos dele.
- Ela viu um médico?
A surpresa dele era nítida e esperada. Não era do feitio de Lavínia buscar
ajuda. Assim que as crises noturnas começaram, ela se escondeu ao máximo
que podia. Da criadagem e de Luísa e teria se escondido do marido também,
se este permitisse.
- Sim. Solluin a forçou a ver quando bateu a cabeça. – deu um suspiro
fundo como se o assunto a perturbasse. - Percebeu que tudo estava saindo do
controle.
- Solluin. – repetiu o nome como se pensasse sobre. Não sobre sua origem
ou a sonoridade, tratava-se de algo mais complicado. - Abigail...
- Sim? – o fitou com um olhar distraído.
- Alguma vez Solluin a machucou?
Chegava a tremer com o medo da resposta. Ao mesmo tempo que queria
descobrir o que afligia sua esposa, estava receoso quanto ao fato. Mas
precisava ser forte.
Havia prometido honrar, respeitar e zelar por ela. E ainda que a maioria
dos homens fizesse os votos por meras formalidades, pretendia segui-los.
Bom Deus! Ele não suportava vê-la sofrer.
- Por Deus! Não! – respondeu rapidamente arregalando os olhos. - Ele
nunca levantaria a mão para Lavínia.
- Mas algum dia ele já a forçou a cumprir os deveres conjugais?
- Nunca, Milorde. – enfatizou negando com a cabeça. - Ele era um homem
bom que a amava. Não seria capaz disso.
- Quem então?
- Perdão? – franziu o cenho como se não tivesse compreendido.
Infelizmente, tinha compreendido até demais.
- Alguém a forçou Abby. – maldição! Ela achava que ele era um idiota? -
Quero saber quem foi.
- Ela não fala muito sobre isso.
Desviou o olhar, não suportando sustentá-lo. Era uma situação difícil, mas
ele não estava disposto a facilitar em nada.
- Abby. – a chamou pelo apelido e aguardou sua atenção. - Quem?
Hesitou por tempo suficiente para que ele passasse a acreditar que não
diria absolutamente nada. Estava no direito dela. Afinal, era o local de
trabalho dela. Ele era o intruso.
- O tio dela era um homem violento.
A resposta vaga foi mais que explicativa. Lorde Carffort cerrou os
punhos. Nitidamente furioso. Preparado para avançar no velho ou
simplesmente, na primeira pessoa que o irritasse.
- Eu vou matá-lo. – declarou com uma firmeza desconcertante.
- Isso seria impossível, Milorde.
A calma dela só conseguiu deixá-lo ainda mais furioso. Como podia estar
com aquele rosto impassível declarando em uma frase calma que ele não
teria direito a vingança merecida. Que não poderia fazê-lo pagar pelo que
fizera a Lavínia, que continuava fazendo.
- Por que, diabos?! – levantou a voz.
- Ele já está morto.
Quase lamentou tal fato. Quase. Uma onda incompreensível de
melancolia o invadiu. De impotência e terror.
- Ela tem outros parentes?
Não que fizesse diferença. Sequer entendia o porquê da pergunta.
- Os parentes desapareceram do mapa depois que Lavínia negou ajuda
financeira a eles.
Nathan bufou e passou a mão pelos cabelos. Que tipo de monstros haviam
criado e educado aquela mulher forte e magnífica que chamava de esposa?
- Se quer um conselho... – disse baixinho temendo interromper algo.
- Sim, por favor. – assentiu, mergulhado em um poço fervendo de
desespero.
- Intimidade de qualquer espécie sempre a deixou desconfortável. – desta
vez não se conteve e esticou a mão para pegar a dele. - Mostre a ela como
pode ser bom e acima de tudo deixe claro que ela pode confiar em você.
Por um momento ele ficou em silêncio. Somente segurando a mão dela e
tentando não desabar. A sensação era que se a soltasse, se saísse por aquela
porta, iria desmoronar.
- Obrigada Abby. – disse, finalmente se levantando.
- Disponha, Milorde. – assentiu com formalidade.
Com a postura impecável acompanhou seus passos até a porta. O coração
completamente sem compasso. Deu um suspiro fundo quando se viu sozinha
no cômodo. A culpa consumindo.
- Espero que um dia possa me perdoar. – murmurou aos ventos, mais para
aplacar a própria consciência.
...
Capítulo 16
Reunião de amigas
Lavínia de fato não era uma mulher que tinha um número alto de amigos,
mas tinha relações de negócios nas quais se dedicava com praticamente o
mesmo empenho. Afinal, ao contrário dos ricos de nascimento, ou ela se
dedicava ou não comia. Era simples assim.
Aos dezoito não era madura o bastante para entender o objetivo de se
sentar e tomar chá com aquelas mulheres. Era imatura e cru demais para
compreender. Sentia-se coagida, julgada e até mesmo excluída por ser tão
jovem, mas confiava no marido.
Solluin deixara claro que todos os eventos aparentemente fúteis tinham
um propósito. Os longos e cheios bailes, os chás solitários enquanto seu
marido fumava charutos e discutia assuntos verdadeiramente importantes
com os homens, tudo.
“- Eu não quero ir. – disse certa vez em tom melancólico. – Quero ficar
aqui com o senhor.
- Um dia você comandará essa companhia, criança. Será uma mulher de
sucesso que todos respeitarão. – sorriu com carinho. – Quando chegarmos
do baile passaremos um tempo juntos se é o que deseja.
- Então, por que não ficar com o senhor e os homens? – questionou
novamente, porque jamais ele a impedira de falar francamente. Sempre
incentivou tal hábito. – As mulheres não dizem nada de importante. Só
roupas, penteados e fofocas sobre os maridos...
- O homem é a cabeça, querida, e a mulher o pescoço. E o pescoço pode
virar a cabeça para onde quiser. – passou os dedos carinhosamente por seu
queixo como costumava fazer. – Essas mulheres são mais parecidas com
você do que imagina ou, ao menos, são parecidas com o que acabará se
tornando. Faz mais pela companhia com conversas sobre penteados que eu
com contratos. – deu um sorriso experiente. – Mulher feliz, marido feliz e
homens felizes... Mais dinheiro para o nosso negócio.”
Não entendera de pronto. Aliás, não entendera completamente nada que o
marido quisera dizer na época. Veio a entender um ano depois quando este
provou sua teoria.
Havia um homem contrariado a assinar os contratos. Para todos já era uma
transação perdida, então ela interviu. Falou com sua esposa muito
sutilmente, ganhou sua confiança e esta fez o diabo para o marido assinar
quantos papéis Sr. Solluin desejasse. Deu certo e ela mal pode conter a
alegria.
Havia algo incrivelmente excitante no poder de boas relações. Ela se
sentia capaz, invencível e desenvolveu uma capacidade no falar que faria um
homem que queria cabras comprar galinhas e sair ainda mais contente. A
Sra. Solluin sempre tinha o que queria.
Quanto às mulheres, com o tempo, mais que ferramentas de negócios elas
se tornaram companhias agradáveis. Solluin tinha razão, elas eram como ela.
Ambiciosas, determinadas, pouco desprovidas de decoro. Mulheres que se
vestiam tão bem quanto damas, mas pareciam ter como objetivo de vida
deixar claro que não eram uma.
Sentia-se à vontade com elas e com o respeito que haviam adquirido umas
pelas outras. Como dissera seu falecido marido, aquelas eram relações
valiosas. Os maridos não andavam lhe dando muito ouvidos desde que ficara
viúva, já as esposas pareciam ainda mais fiéis a ela. Como aquelas quatro
que haviam sentado com ela para o chá da tarde.
Giorgetta – a de cabelos e olhos escuros e magérrima, Laila – a loira de
olhos amendoados e semblante astuto, Gisele – com seus marcantes olhos
azuis e o cabelo escuro – e Antônia – a mais velha das quatro e também a
mais atrevida. Todas com línguas afiadas, mentes brilhantes e coração de
ouro. Eram boas esposas com um grande poder de persuasão.
Aliadas importantes e valiosas.
- Podemos contar com o apoio de seu marido para a compra de mais três
navios, Antônia? – Lavínia questionou.
O rosto impassível de quem tinha certeza da resposta afirmativa. O
interior apreensivo de quem após a morte do marido não tinha certeza de
mais nada.
- Claro, claro... – esta fez um gesto impaciente com as mãos. – Mas vamos
ao que interessa.
- Sim, não estamos aqui para discutirmos negócios. – disse Laila com um
sorrisinho.
- Não? – Giorgetta pareceu um tanto surpresa. - Eu pensei que esse era o
motivo do encontro.
- Ah! Até pode ser o seu motivo, meu bem. – Antônia deu uma risada. –
Mas nós estamos aqui para saber se os boatos são verdadeiros.
- Boatos? – a anfitriã arregalou os olhos.
Bom Deus! Havia uma infinidade de coisas que ela temia que viessem a
público. Uma mais apavorante que a outra. Do que elas ficaram sabendo,
afinal? Havia deixado escapar algo? Se fosse o caso, não conseguia se
lembrar do que e em qual ocasião.
- Sim, querida. – Gisele se inclinou na mesa como se quisesse confiar um
segredo a ela. – Ele é mesmo tudo o que dizem?
- Já ouvi dizer que ele tem lábios divinos. – Laila ajudou, achando a
reação da amiga deveras engraçada. – Conte-nos. Como ele é?
Então era disso que se tratava. O suspiro de alívio ficou entalado em sua
garganta. Mas o que diria? Que não fazia a menor ideia porque era uma
desequilibrada que não tivera a capacidade de consumar o próprio
casamento.
- Bom, ele é...
- Milady...
Lavínia virou a cabeça para encontrar seu mordomo. Com a sombra de um
sorriso nos lábios e um buque de rosas nos braços.
As esferas de pétalas vermelhas pareciam com veludo, eram grandes e
perfeitas, se destacavam ainda mais pelas folhas verdes que as entremeavam.
Aquelas rosas eram uma obra da natureza e não conseguiu entender o que
faziam com seu mordomo.
- Sim?
Sua voz saiu mais mirrada do que gostaria.
- Milorde lhe mandou isto. – lhe entregou as flores com cuidado.
- Oh! – exclamou sem saber o que mais deveria dizer. Deveria dizer algo?
- Ele está em casa?
A resposta do criado foi se afastar para que a patroa tivesse uma visão
privilegiada da porta.
Seu marido estava escorado no batente de forma descontraída. O casaco
cinza chumbo aberto, revelando um colete um pouco mais claro onde se
destacava a corrente dourada do relógio de bolso. Um lenço azul claro
perfeitamente dobrado no pescoço destacando seus olhos que a encaravam
com familiaridade. Uma mecha do cabelo castanho brincava em sua testa e
quando viu ter ganhado sua atenção, sorriu com um equilíbrio perfeito entre
a malícia e a doçura.
Lavínia ouviu o que parecia o barulho dos leques de suas convidadas se
agitando freneticamente. Um consolo bem-vindo já que imaginava ser a
única a perceber que a sala antes fresca parecia uma fornalha ardente.
Prendeu a respiração ao ver que ele se aproximava com passadas largas e
elegantes. Ainda olhando para ela.
- Achei que ainda estava com o Conde. – foi a primeira tolice que lhe veio
à cabeça.
- West mostrou ser uma criatura tediosa, Milady.
Sentiu o corpo retesar quando a mão do marido pousou no encosto de sua
cadeira. A mão grande e quente tocando a pequena parcela pele nua de suas
costas exposta pelo vestido. Sentiu seus pulmões gritarem por ar.
Aquilo era ridículo. Ele a havia abraçado noite passada. Estava seminu.
Existiram momentos mais íntimos do que aquele. O fato era que se tratava
da primeira vez que interagiam em público após o casamento e a noite de
núpcias. Tudo estava conspirando para tornar o momento mais excitante.
Sobretudo o perfume dele.
- Eu certamente não a deixaria por tanto tempo. – disse com o olhar firme
no dela.
- Bom Deus! – ouviu Laila sussurrar e sentiu as flores quase escorregarem
de sua mão.
O sussurro comedido chamou a atenção do dono da casa. Atenção esta
que foi o suficiente para que todas as quatro corarem. Mesmo Antônia que
era a mais experiente de todas. – Maldição! – Por que ele tinha que ser tão
irresistível?
- Perdoem-me, senhoras, a interrupção.
- Pode interromper sempre que desejar, Meu lorde. – respondeu Gisele
agitando seu leque com vigor.
- Obrigada. – deu um leve sorriso. – Vou me lembrar disso.
- Ah! – exclamou a dona da casa tentando falar de forma coerente. – Essas
são Giorgeta, Laila, Gisele e Antônia. – então se voltou para as mulheres em
questão. – Esse é meu marido, Lorde Nathan Carffort.
Ele fez uma reverência profunda.
- Sabemos quem ele é, meu bem. – Antônia disse contendo o sorriso. –
Como não saberíamos?
- O que houve com o seu rosto, Lorde Carffort? – questionou Giorgetta,
que parecia sempre pronta para dizer a coisa errada na hora errada. Com o
excesso de intimidade que não lhe fora conferido.
As costas de Lavínia ficaram mais eretas e a linha de seu maxilar mais
tensa. Será que ela achava mesmo que a difamaria? Ela não o conhecia
mesmo. Compreensível, já que estavam juntos há poucas horas.
- Dispensar os serviços de meu valete está fora de questão. – passou a mão
pelo queixo. – Sou péssimo em fazer a barba.
- Só um homem corajoso admitiria isso. – elogiou Antônia com bom
humor.
- Ou um homem visivelmente inexperiente com navalha. – gracejou de
volta.
- Ouvimos dizer que o senhor não é nada inexperiente em outras coisas. –
Laila gracejou irrompendo em uma gargalhada.
Aquelas mulheres não eram fáceis de lidar como as damas. Elas diziam o
que queriam quando queriam, mas com a família que tinha já estava
acostumado. Era cercado desde o nascimento por mulheres que não tinham
papas na língua.
- É verdade. Sei dar um laço na gravata como ninguém. – respondeu como
se não tivesse entendido a provocação e sorriu para elas, que voltaram a
soltar risadinhas.
- Vou deixá-las em paz. – deslizou a mão até o ombro da esposa. – Eu
estarei na biblioteca quando quiser se juntar a mim.
Lavínia assentiu com uma timidez que há anos não experimentava. Como
ele podia deixá-la tão desconcertada?
- Você só pode ter problemas, Lavínia. – Gisele a repreendeu assim que
Nathan saiu.
- Eu sei. – achou que falavam do fato de ter aceitado o convite dele tão
prontamente. – Mas eu só irei quando...
- Maldição! Eu não teria levantado da cama por semanas. – exclamou
Antônia compreendendo o espanto de sua colega. – Vá atrás dele.
- Isso é ridículo. – negou com a cabeça olhando para o bule de chá quente.
– Mal tomamos chá.
- Agora! – responderam as quatro ao mesmo tempo.
Lavínia arregalou os olhos.
...
Se as quatro, todas as quatro, disseram que deveria se juntar ao marido,
então deveria ser a coisa certa a se fazer. Isso não diminuiu seu receio e
ansiedade ao entrar na biblioteca após ser anunciada. O cômodo lhe pareceu
subitamente grande e escuro, prestes a engoli-la.
- Aí está você. – Nathan deu um sorriso inebriante, sentado em um dos
sofás. – Espero que tenha gostado das flores.
- Sim, obrigada. – respondeu, mas a tensão a impediu de sorrir.
Ele ergueu uma das sobrancelhas castanhas.
- Há algo errado?
- Não. – negou com vigor. – Absolutamente nada errado. Eu... – hesitou
com um suspiro. – Eu agradeço por não ter dito a elas o verdadeiro motivo
da cicatriz.
Nathan deslizou a mão pelo estofado do sofá lentamente. Havia algo
incrivelmente erótico no modo como seus dedos se intrometiam nas cerdas
do veludo. Ela se viu na situação estúpida de desejar ser um sofá. Aquele
sofá. Obviamente, havia tomado mesmo muito vinho na noite anterior.
Sentou ao lado dele no que acreditava ser uma distância segura. Dois
palmos lhe pareceram suficiente, mas quando ele a olhava, nada era.
- Temo não ter dito algo tão lisonjeiro para West. – disse com a postura
descontraída que a convencia que não se tratava de nada importante.
- O que disse a ele? – estava a um passo bem pequeno de gaguejar.
- Que você havia me arranhado, mas em outro contexto.
Encantador era um bom jeito de descrever a forma chocada com que sua
esposa o encarou. Os olhos piscando como se não houvesse compreendido.
As bochechas com um agradável tom rosado.
- Lavínia. – escorregou a mão até cobrir a dela. – Você confia em mim?
A resposta estava estampada no rosto dela. No semblante melancólico de
quem não confiava em ninguém e se ressentia disso. Queria poder confiar.
Queria mesmo.
- Está disposta a tentar? – questionou com calma.
Os olhos dela baixaram até as mãos de ambos entrelaçadas. O polegar
dele acariciava o dorso da mão dela fazendo com que um calor agradável a
invadisse. Então, olhou novamente nos olhos dele.
- Eu não sou boa nisso.
- Eu sei, querida. – levou a mão dela aos lábios e a beijou.
- Não. – soltou um riso sem humor. – Não sabe.
- Sei. – assentiu com firmeza. – Eu sei que não acredita que ir para cama
com alguém pode ser algo prazeroso.
As palavras francas a chocaram. Eram diretas demais para um cavalheiro
e invasivas demais para um marido. A sensação era que havia entrado em
um campo de combate e, antes de compreender a guerra, havia sido atingida.
- Não seja ridículo. – franziu o cenho. - Eu fui casada por nove anos.
Como pode pensar que eu...
- Você nunca sentiu, não é? – a interrompeu com um sorriso melancólico.
- O quê?
- Prazer.
Bom Deus! Ele a estava matando. Primeiro as flores, depois aquela
conversa. Com aquele olhar de profunda devoção que nunca havia sido
direcionado a ela. Devia ser imaginação dela. Só podia ser.
- Não é uma pergunta apropriada para...
- Deixe-me mostrar a você.
Então aquele convite. O golpe final em seu bom senso.
- Nathan... Eu não...
- Só vou consumar o casamento quando pedir que eu o faça.
Seu queixo finalmente caiu. Era de se esperar que acontecesse antes, mas
aquela alegação era a mais absurda de todas elas. Negou abismada com a
ideia.
Primeiro a promessa de lidar prazer e depois um voto de castidade.
Praticamente no mesmo minuto.
- Isso não faz nenhum sentido.
- Há outras formas de mostrá-la o paraíso, Lavínia. – o toque dele na mão
dela era um argumento mais do que válido. - Você só precisa querer subir no
navio.
- Não entende, Nathan. – havia um choro tentando subir por sua garganta,
mas não sabia ao certo o motivo. - Eu não sou como as outras. Talvez não
aconteça.
- Qual foi a última vez que apostou todas suas cartas em algo que não
sabia que daria certo, Lavínia?
Fez uma pausa e ele entendeu que estava considerando a proposta.
Nunca era a resposta. Estava acostumada a andar em terreno conhecido.
Não se lembrava da última vez que arriscara tanto. Deixar aquilo acontecer
era como pular em um lago sem conhecer a profundidade, mas era tudo o
que ela queria.
- E não consumará o casamento. – repetiu como que para testar sua
audição ou a memória dele.
- A menos que me peça. – reforçou com uma calma desconcertante.
Assentiu levemente e pareceu o suficiente. Fechou os olhos, se aproximou
dele e esperou pelo ataque violento de um homem privado de suas
necessidades, mas ele não veio.
Nathan a tocou de forma doce e gentil. As mãos em seu rosto seguidas por
seus lábios que acariciavam sua pele macia. Só duraria poucos minutos,
prometeu a si mesma, poucos minutos até as lembranças a afogarem e a
fazerem deter aquele homem. Então, por que não tinha a menor vontade de
fazê-lo?
Com habilidade e inegável sensualidade plantou beijos do caminho de seu
queixo até seu ouvido. Como pequenas rosas nascidas no inverno. Prontas
para tornar o ambiente mais quente e agradável.
- Oh meu Deus! Você é linda!
Qualquer resposta que esperasse receber foi detida pelo momento em que
ele tomou o lóbulo da orelha na boca e o mordiscou.
Estava perdida.
...
Capítulo 17
Lições de prazer
Se não fosse pela noite anterior, ele juraria que sua esposa jamais
conhecera nada além do mais completo prazer no leito de núpcias. Ela era a
própria paixão nos braços dele e exceto pela leve rigidez em sua nuca não
havia nada que dissesse o contrário.
Ele explorou aquela nuca com os dedos, fazendo uma leve pressão até
ouvir um suspiro de alívio dos lábios dela. Os lábios semiabertos que
combinavam tanto com os olhos semicerrados.
Aquela mulher seria a ruína dele. Anos sonhando se apaixonar de uma
forma arrebatadora e não fora agradável como parecia ser. Era muito
assustador para dizer a verdade. Lavínia não parecia se importar, perdida em
seu estado de torpor, imersa no carinho dele.
Podia-se dizer que ela estava se rendendo. Que estava se permitindo ter o
tão sonhado prazer que ele prometeu. Pela primeira vez na vida.
Não sabia o que esperar ou se deveria esperar por algo, mas seu toque era
gentil e arrebatador. Os dedos agora trabalhavam na árdua missão de tirar os
grampos de seu penteado. A respiração rápida e quente como o único indício
do nível do autocontrole que empregava.
As ondas ruivas que se desprendiam não eram sedutoras só pela cor
vermelho dourada ou pela notável graça com que se libertavam. Havia um
perfume, marcante e diferente de qualquer um que ele havia sentido. O
cheiro era único, ela era única.
Se soltar seus cabelos despertaram o mais profundo alívio em Lavínia, o
mesmo não podia ser dito dos laços de seu espartilho. Seu corpo enrijeceu a
perspectiva de se expor, de ficar nua diante dele.
- Nathan...
O modo ansioso com que disse seu nome precedia um sonoro não ou um
sonoro pare. Não queria que aquilo acabasse. Por ele e também -
principalmente – por ela. A ideia não era criar um novo trauma e sim
destruir aquele que já existia.
Os dedos antes desamarrando os laços agora acariciavam suas costas. A
outra mão se juntou àquela até que Lavínia se rendesse ao abraço com um
suspiro. A deixa para que ele a começasse novamente a despi-la.
Culpava a brisa fria que escapava da janela, mas estava mentindo para si
mesma. O fato de suas costas estarem arrepiadas não poderia ter a ver com
outra coisa que não ele. Seu marido, que tomou seus lábios com experiência
enquanto descia a manga de seu vestido.
Sua respiração se acelerou. As lembranças desagradáveis invadiam sua
cabeça em um vendaval violento. Como se pressentisse, Nathan interrompeu
o beijo e esperou. Esperou com Lavínia com a testa colada na dele, arfando
enquanto travava uma luta consigo mesma. Uma pergunta latejava em sua
cabeça: Devia parar aquele homem? E outra ainda pior: Queria pará-lo?
- Tente não entrar em pânico. – respondeu às suas aflições de uma forma
que a deixou assustada. – O controle está com você, não se esqueça disso.
Lavínia assentiu, engolindo em seco. De fato ele não parecia nem de longe
com um homem que queria machucá-la ou forçá-la a algo, mas era difícil de
acreditar que o controle estava com ela. Nunca havia se sentido tão
descontrolada na vida. Ele parecia no comando. Total e absolutamente.
Nathan sentiu os lábios secos quando expôs o ombro de Lavínia e
controlou com dificuldade uma reação primitiva ao revelar um de seus seios,
pálido, redondo e perfeito. Respirou fundo repetidas vezes enquanto
explorava seu pescoço, a linha de seu maxilar, a ondulação agradável do
osso da clavícula, com beijos suaves de um homem que tinha total controle
de seus desejos. Mal sabia ela que estava quilômetros de distância de um
pouco que fosse de desejo controlado.
Quando achou que havia sido castigo o bastante, segurou a base de seu
seio como se testasse seu peso e então o tomou na boca da forma mais
delicada que conseguiu. Os lábios grossos, a língua e os dentes se moviam
com a harmonia de uma orquestra para levá-la à loucura e o gemido baixo
que Lavínia deixou escapar deram indícios que estava sendo bem sucedido.
Sem perder o ritmo desceu a outra manga do vestido, deixando-a
amarrada e impaciente dentro da própria roupa. Era exatamente assim que
ele a queria naquele momento, só para minutos depois afogá-la em um mar
de prazer. Só esperava ter tempo e oportunidade para jogá-la na água.
- Você... – fez uma pausa para um resfolegar mais do que atraente. – Já
terminou?
Nathan reprimiu o riso, mas sorriu enquanto circulava um de seus
mamilos com a língua. Ela não aceitaria bem o deboche, mas aceitava muito
bem o que estava fazendo.
- Eu ainda nem comecei. – disse com um sorriso malicioso. O polegar
pressionando a área sensível de uma forma terrivelmente excitante.
- Oh meu Deus! – soltou ofegante, tentando se ajeitar no sofá. – Acho que
vou morrer antes de terminar.
- Eu vou matá-la de prazer, Lavínia.
A promessa confiante e maliciosa despertava um brilho pecaminoso
naqueles olhos azuis. Poderia passar a vida com ele acariciando seus seios,
mas não parecia ser suficiente para o filho do Duque. Ficou claro quando ele
se ajoelhou diante dela com intenções nada próximas de um pedido de
casamento. Estava mais para um pedido de luxúria.
- Você não tem ideia do quanto é linda. – disse tocando seus tornozelos
por baixo da barra do vestido. O rubor em seu rosto era uma prova de sua
alegação. – Ou ao menos não tem ideia do quanto eu a acho linda.
- Nathan... – foi a única resposta consciente que conseguiu dar. Quantas
vezes já havia dito o nome dele?
Os cabelos ruivos caídos em belas ondas longas, se intrometendo frente ao
olhar azul e sedutor. As suaves sardas salpicadas em seu nariz que só notou
pelo simples motivo de que sabia que estavam lá. A pele de porcelana, o
rosto em formato de coração. Tudo em conjunto fazia seu coração disparar e
suas calças parecerem objetos de tortura medieval.
Sempre adorara aquela sensação de sua mão contra meias de seda, mas
havia algo naquela que parecia muito mais erótico que o habitual. Subindo o
vestido dela até alcançarem os joelhos, percebeu que não se tratava das
meias, se tratava das pernas que elas cobriam. Longas, torneadas, lindas pura
e simplesmente. Nathan quase desejou não desejá-la tanto assim, quase.
Deixou seus lábios pousarem em seu joelho direito. Quase estremecendo
de prazer quando essa resfolegou ao sentir o toque da língua dele. Então os
dedos dela se entremearam em seus cabelos e induziram seu rosto a se voltar
para ela.
Havia algo além de desejo e sedução naqueles olhos azuis. Provavelmente
um homem excitado não repararia, mas ele havia feito de “dar prazer à sua
mulher” seu objetivo de vida. Havia tensão e receio nela. Indícios de que
fora machucada
- Eu não vou machucá-la, amor. – prometeu sem desviar o olhar.
Era verdade, mas o que ele fez a seguir doeu mesmo assim. Como uma
estaca cravada em seu coração. Impondo junto com a lâmina sentimentos
estranhos e desconfortáveis que não queria identificar. Não queria pensar a
respeito, por sorte, Lorde Carffort a impediu de pensar.
Os dedos dele subiram seu vestido até que ficasse amontoado na cintura.
Olhando em seus olhos deslizou a mão por suas coxas envoltas nas calçolas
e então encontrou a fenda dessas. Impelida por um pudor que não imaginava
possuir fechou os olhos e soltou um suspiro fundo.
O tanto que ela estava úmida o deixou louco, junto com a consciência que
havia decidido confiar nele. Nele entre todos os homens e a recompensaria
por isso.
Primeiro a recompensou com os dedos, tocando o botão de sua
feminilidade e a vendo se contorcer e cravar as unhas no tecido do sofá.
Então, guiado pelo som de seus gemidos a invadiu com os dedos lentamente
a estimulando com movimentos ritmados. Um suspiro desamparado foi o
suficiente para permitir que fosse além e quando deu por si estava provando
o gosto de Lavínia.
Quando suas amigas despudoradas descreviam tais experiências, dizia a si
mesma que aquilo não era para ela. Que deveria ser algo constrangedor e
desconfortável e talvez realmente fosse com um homem comum, mas com
seu marido era o paraíso.
Era como ser elevada ao céu, dançar nas nuvens e então ser invadida por
um êxtase tão profundo que começou a despencar ao som de um grito
desesperado de quem nunca havia passado por nada parecido. Despencar em
um mar de águas termais em que seus lábios e língua continuavam a
acariciar, mas não para excitá-la e sim para acalmá-la.
Com um último beijo ele se sentou ao lado dela e a abraçou. O som de sua
respiração ofegante era música para seus ouvidos e um martírio para o resto
de seu corpo. Com movimentos calmos e precisos alisou as saias de seu
vestido até cobrirem suas pernas novamente.
De alguma forma aquele abraço havia conseguido ser tão bom quanto o
resto. Repousou o rosto no ombro dele e sorveu o cheiro da curva de seu
pescoço. Por um momento, houve um silêncio calmo e confortável no
cômodo. Era como se ambos temessem o momento que aquilo acabaria.
Finalmente ela falou, provavelmente não era a coisa mais adequada que
poderia dizer.
- Obrigada. – sua voz era pouco mais que um sussurro.
- Shhhh... – tocou o lábio dela com o indicador e então pousou os dele em
sua testa. – Não vamos fingir que foi um sacrifício.
Lavínia sentiu os lábios se curvarem em um sorriso. Dominada pela
sensação de que acabara de experimentar o momento mais agradável junto
com um homem em toda a vida dela. Com os olhos fechados se deixou levar
pelas lembranças e pela ideia que seu falecido marido sempre quis o melhor
para ela. Mesmo quando não parecia.
“- Como pode sugerir uma coisa dessa, meu senhor? – lembrava de ter
questionado a Solluin certa vez.
- Você algum dia me impediu de ter amantes? – a calma dele enquanto
fumava seu cachimbo era desconcertante.
- É claro que não, mas...
- Então por que eu a impediria?
A pergunta havia pairado no ar pelo que pareceu uma eternidade. Lavínia
piscou os olhos, atônita.
- Não está permitindo, está incentivando.
Solluin deu um sorriso enviesado contemplando a criatura fascinante que
sua esposa havia se tornado. Alta, curvilínea, confiante e notavelmente
inteligente, ela se parecia muito pouco com a criança que havia batido à
porta dele. No momento, ela estava chocada com sua sugestão.
- Eu nunca fui dado a ciúmes. – estendeu a mão a ela, que a pegou. - Você
é uma mulher jovem e bonita. Longe de mim impedi-la de viver.
- Longe de mim trair você.
- Não é traição se a outra parte não se mostra incomodada. – soltou um
riso rouco. – Aproveite a vida criança. Permita a si mesma um pouco de
diversão.
- Queria metade de seu altruísmo. – retribuiu o sorriso dele com ternura.
- Não há ninguém que mereça a felicidade aos meus olhos mais doque
você.
Era uma tola por chorar na frente dele, mas não seria a primeira vez que
acontecia. Sentindo as lágrimas escorrerem por seu rosto se inclinou para
tocar seus lábios nos dele.
Fora o último beijo que havia lhe dado e também o primeiro.”
...
Estava casada há exatos seis dias, mas parecia fazer mais tempo. Aquela
foi sua primeira noite em muito tempo sem pesadelos. Sem ser perturbada
pelas lembranças escondidas nas profundezas de sua alma de modo a
convencê-la de que não estavam lá. Até atacá-la novamente.
Nathan não havia feito com que elas sumissem, assim sem mais nem
menos, fora um conjunto de repetidas noites lidando com elas. Quando tinha
seus momentos de desespero, ele a puxava contra o corpo e acariciava suas
costas até que se acalmasse. Sentia-se segura nos braços dele. Como naquele
momento.
Soltou um suspiro fundo e se aconchegou junto ao corpo forte. Uma
pontada de culpa a invadiu ao sentir sua excitação matinal. Sem ter a
intenção ela o estava torturando. Dias e mais dias a tocando e ela nunca o
havia retribuído, nunca havia permitido que consumassem o ato. Bom Deus!
Ela era uma covarde. Uma grande covarde!
Mas nada disso importava porque seu casamento era meramente um dos
muitos negócios regidos por sua vida, sobre os quais tinha total controle. O
único motivo de manter seu marido feliz e interessado era garantir que ele
cumprisse sua parte do acordo.
Precisava de um homem para comandar a companhia e este já tinha uma
reunião com seus sócios dali a três dias. Queria ter a certeza de que ele se
empenharia naquilo, adiar a reunião por uma semana usando o início do
casamento como desculpa já fora o suficiente para deixá-la de cabelo em pé.
Para seu espanto, cada homem envolvido parecia entendê-lo perfeitamente.
Provavelmente, porque na situação do mesmo gostou de ter um tempo com a
esposa ou lamentou não ter tido.
O relógio marcava sete horas. Era este o motivo que a impulsionara deixar
o marido na cama e não o resto, se convenceu. Amarrando o penhoar sobre a
camisola fina ela deu um sorriso avaliando o homem que ocupava sua cama.
Os traços masculinos, os músculos dos braços nus sobre as cobertas e ainda
assim o semblante de um menino que dormia em paz.
Queria poder ficar e absorver um pouco daquela paz, mas seus
compromissos não permitiam. Mesmo em lua de mel, sua vida não parava.
Prova disso era que sua criada a esperava com a banheira cheia de água
quente e uma bandeja de prata com correspondência empilhada. Uma
generosa correspondência.
- Devo ler enquanto se banha, sen... Milady.
A correção ainda fazia Lavínia rir. Tirando a camisola pela cabeça deixou
os pés mergulharem na banheira e então o restante do corpo. A temperatura
perfeita da água fez com que soltasse um suspiro de satisfação enquanto
apoiava a cabeça de forma a ficar confortável.
- Seria ótimo. – assentiu finalmente.
Bridget – sua criada pessoal há pelo menos três anos - ocupou um
banquinho ao lado da banheira e abriu a primeira carta. Tinha quase certeza
de que escolhera aleatoriamente, mas fora uma péssima escolha ainda assim.
“Cara Lavínia,
Em minha opinião de especialista não acho que esteja sendo egoísta ou o
torturando. Não deve se sentir culpada. Se caiu nas graças desse homem
não há porque não aproveitar.
Se algum dia, porém, se sentir à vontade e motivada a retribuir, escute os
meus conselhos.
1. Você pode usar as mãos ou os lábios para...”
...
Capítulo 18
Um par de calças
Passava da meia noite e ainda não havia conseguido dormir dez minutos
que fosse. Poderia convenientemente culpar a barulheira no andar de baixo,
mas o burburinho e as risadas não estavam altos o bastante.
Pela terceira vez, verificou o quarto de Luísa e a menina dormia como um
anjo. A respiração pausada elevando as cobertas de forma ritmada. Sua
menina estava em casa e em segurança, Nathan cuidava de seus negócios e
tudo parecia na mais perfeita paz, a não ser por aquele maldito convite que
haviam recebido de Petergille. Era como se a jararaca houvesse mandado o
convite com antecedência somente para deixá-la paranoica por dias seguidos
e noites como aquela.
Com a desculpa de verificar se o marido estava bem, desceu até a sala de
jogos. Sala esta, onde Lorde Carffort interagia com os sócios da companhia,
antes da reunião oficial que aconteceria em um dia. Em meio a charutos,
bebida e cartas de baralho, parecia estar se saindo muito bem.
Só alguns minutinhos de espiadela, prometeu a si mesma. Nunca havia
feito aquilo com Solluin, nunca tivera um impulso, mas que mal poderia
fazer?
- Bom charuto, boa bebida, só faltaram mesmo as mulheres. – um dos
convidados havia se pronunciado após um gole vigoroso em seu whisky.
- Talvez em outra ocasião a nobreza resolva partilhar suas centenas de
amantes com os reles mortais.
Lavínia se posicionou de modo a enxergar o alvo das provocações. Lorde
Carffort ocupava a confortável poltrona e tomava de forma preguiçosa um
copo de gim. Os olhos com um brilho malicioso de divertimento.
- Eu não tenho centenas de amantes, Arthur. – respondeu como se fossem
velhos amigos. - E se as tivesse, não partilharia com você.
O cômodo foi dominado pelo riso, provando que ninguém além dela
parecia remotamente desconfortável com o assunto. O rumo que a conversa
dos homens tomava era perigoso e fazia seu peito doer. O que deveria fazer
era dar meia volta e escolher a rota de fuga mais rápida para seu quarto. Só
que, por uma estranha razão, parecia ter seus pés grudados no chão, sem
capacidade alguma de se mover.
- Mas deve ter um bocado delas. – instigou um deles como se tivesse o
objetivo de enlouquecê-la. - Quantas?
- Já foram mais. – não era mentira.
Lavínia se segurou no batente na porta e suspirou fundo repetidas vezes.
Não havia motivo para pânico ou para aquela desagradável dor no peito que
sentiu. O que exatamente esperava? Que ele negasse de imediato e em
seguida demonstrasse todo seu amor por ela?
Não era uma mocinha. Era uma mulher experiente cujo falecido marido
havia procurado outras companhias, mas por alguma razão aquilo parecia
diferente. Se sentia magoada. Sentia-se traída.
Alheios ao desespero dela, os homens continuavam o diálogo. A conversa
entusiasmada sobre mulheres de má reputação.
- Maldição! Eu mal consigo bancar uma.
- Quem falou em pagar? Quando se é filho do duque as mulheres caem em
sua cama sem sequer dizer o preço. É uma questão de prestígio social.
O pior era que desconfiava que era senão assim, algo bem similar.
Infelizmente, a futilidade era uma epidemia social.
- Não é bem o meu dom de “oferecer prestígio social” que elas elogiam.
Outra vez os risos enquanto ela tinha um ataque de nervos. Tinha a exata
noção do que aquelas mulheres elogiavam porque ela – maldita fosse! –
tinha uma boa amostra dos talentos do marido. Uma dentre várias, ao que
parecia.
- Você é bem humorado, Carffort. Pode-se dizer que gostamos de você.
- Mesmo que não fosse o caso, já é bom saber que um par de calças irá
presidir a reunião de amanhã. Como deve ser.
Aquele foi o golpe de misericórdia em sua paciência. O Sr. Gordifrin, o
mais velho, mais conservador e também o mais estúpido, deixava bem claro
o que ele achava de mulheres no comando.
Subindo as escadas até seu quarto com determinação ela se lembrou que
fora exatamente aquele o motivo que a levara àquele casamento. Gordifrin
queria um par de calças para presidir a reunião do conselho e um par de
calças era o que teria.
...
Na noite anterior Nathan havia suspeitado que algo estava muito estranho
com Lavínia. Quando se juntara a ela em sua cama como de costume,
começou a beijá-la e acariciar seu corpo. Esta, por sua vez, murmurou algo
sobre impedimentos femininos e se virou de costas para ele. Decidida a
dormir.
As mulheres eram criaturas estranhas que ele deixara de tentar entender há
muito tempo. Mas se ela disse se tratar de impedimentos femininos, não
havia razão para não acreditar. Aprendera de formas pouco agradáveis que
esses períodos podiam transformar a mulher mais sensata em um demônio
de saia.
O fato era que se na noite passada desconfiou que havia algo errado com a
esposa, agora tinha certeza absoluta. Algo que havia acontecido nas últimas
dez horas havia virado a cabeça daquela mulher sensata do avesso.
Tinha tudo para ser uma manhã comum. Sentia-se seguro e calmo,
ocupando a cabeceira da mesa da sala de reuniões do escritório da
companhia marítima. Ocupando o lugar de Solluin. Na outra ponta, estava
Gordifrin, o sujeito de ideias medievais que aparentemente estava em seu
círculo de amigos agora.
Foi quando ela entrou. Com os belos cabelos ruivos domados em um
coque simples, o rosto sisudo e concentrado, trajando nada menos que calças
azul marinho, camisa e um casaco masculino largo. Caminhando decidida
até a ponta da mesa, mesmo sob o olhar de todos os homens boquiabertos.
Parando ao lado de Gordifrin, ergueu uma sobrancelha.
- Sr. Gordifrin, está no meu lugar. – disse séria com a voz e a postura de
uma imperatriz.
Nathan teve a vaga impressão de que uma mulher trajando apenas uma
meia de seda não o deixaria tão excitado. Ela – por Deus! – estava vestida
como um homem e desafiando o membro mais difícil da companhia.
- Perdão? – o sujeito calvo franziu a testa, confuso.
- Eu agradeço pela gentileza de ter guardado o meu lugar, James. –
empregou o primeiro nome como um indício de poder que só a líder da
companhia poderia usar. – Já pode se levantar.
O homem o fez, contrariado. Arrumando a gravata com irritação como se
de repente não conseguisse respirar. O corpo de Lady Carffort naquelas
vestes masculinas de fato tinha esse efeito.
- Não achei que tivesse sido convidada para esta reunião, Sra... –
pigarreou franzido mais o cenho. – Lady Carffort.
- Está companhia é minha, Gordifrin. – lembrou, ocupando a cadeira
agora vaga. Como uma rainha ocupando o trono dela por direito. Firmeza e
elegância em pessoa. – Eu sou a reunião.
- Pode me explicar o que diabos está acontecendo aqui, Carffort? –
resmungou olhando para a outra ponta da mesa.
Nathan sorriu. Um brilho de compreensão perpassando seus olhos. Tudo
havia ficado claro de repente. Olhando para a esposa ele deu um sorriso.
- Não está claro, Gordifrin? – olhou de volta para o homem em questão. –
Um par de calças vai presidir a reunião. Como deve ser.
...
...
...
Capítulo 20
Encontro às escuras
...
- Você não deveria estar com Lavínia? – Meri questionou com uma
sobrancelha erguida para o irmão caçula.
- Eu? – ele parecia estar ainda mais confuso. – Achei que ela estivesse
com você.
- Maldição! – praguejou, alto o suficiente para chamar atenção de um
bando de solteironas que quase tiveram um ataque apoplético. – Ela está em
apuros.
- O quê? – franziu o cenho inconformado.
Estava mais do que pronto para ir atrás dela. O que quer que havia
acontecido com sua esposa naquele baile infernal não poderia permitir durar
um minuto mais. Mas antes que tomasse uma atitude, ela surgiu.
Com a mesma postura imperial que o conquistou, adentrou o salão de
braços dados com o Duque de Dachmour. E seu pai tinha aquele brilho
carinhoso nos olhos azuis apesar da expressão severa.
- Está tudo bem? – perguntou para a esposa assim que o pai a entregou a
ele.
- Perfeitamente bem. – garantiu com um aceno sério.
A condessa parecia afoita para interferir.
- Mas você não...
- Meri, querida, você gostaria de dançar? – Lorde Dachmour a barrou com
um olhar de advertência.
Lavínia fez uma breve oração de agradecimento por seu sogro existir.
...
Capítulo 21
Um passeio nada calmo
Ela não dormia bem já fazia alguns dias, mas a presença de Nathan tinha
seu efeito calmante na maior parte do tempo. Como aquela manhã no parque
central.
Inspirou profundamente segurando o chapéu adornado de fitas cor de uva.
O ar era refrescante, o cheiro revigorante e o sol beijando seu rosto era um
presente. Só queria poder tirar aquele chapéu ridículo para aproveitar o
melhor do verão antes que este se fosse.
O outono iminente já havia colorido algumas folhas das árvores com seu
tom dourado, mas só conseguiu tornar a paisagem ainda mais encantadora. O
som da água do lago e do farfalhar das folhas se misturava ao gorjeio dos
patos e ao burburinho da multidão que caminhava.
O Parque Central era para ver e ser visto. As damas exibiam seus trajes
diurnos tão enfeitados como poderiam ser e os cavalheiros as
acompanhavam com as cartolas imponentes e um sorriso fácil no rosto.
Seria bom para elas serem vistas na sociedade, Lorde Carffort garantiu.
Lavínia, quando ia ao parque com Luísa, chegava às sete, logo depois de
abrirem, e ia embora as nove antes do maior tumulto começar. Ou
simplesmente, evitava a via principal para não ser vista. Isso era antes, pelo
visto.
Fazia algum sentido. Se pretendia conquistar poder sobre a nobreza como
tinha diante dos olhos da burguesia, tinha que ser vista por eles. Tinha que
conhecê-los e conviver com eles. Seu marido era um deles, pelo amor de
Deus! Muito embora, de uma espécie completamente diferente.
- Eu vou alcançá-las em um minuto, querida. – garantiu ao ser
interceptado por um de seus pares.
Lavínia acenou com graça silenciosa para o senhor grisalho que parecia
um velho conhecido deste, e se afastou com a filha. Esta olhava com
curiosidade para as pessoas que passavam e parecia tão alegre que chegava a
partir seu coração.
A multidão também a olhava com curiosidade. Uma curiosidade vil, cruel
e maliciosa com que olhavam para alguém que não pertencia ao mundo
deles. Esperando o passo em falso que ela daria. Querendo proteger suas
filhas de seus maus modos.
Lavínia negou balançou a cabeça perdida em pensamentos, sentando-se no
banco de madeira próximo do lago. Se eles soubessem o quanto ela era
especial, bem educada, carinhosa e doce, jamais a renegariam. Ela enxergava
isso e, abençoadamente, também Lorde Carffort.
A menina se inclinou para colher uma flor e então correu para a mãe. O
presente da natureza preso em seus dedos. Uma flor roxa e mirrada que
carregava com um sorriso.
- Veja mamãe, combina com o vestido. – comentou alegremente.
- É mesmo, meu amor. – concordou e inclinou a cabeça para frente. –
Você pode ajudar a mamãe a colocar no chapéu?
Luísa mordia o lábio inferior enquanto executava a difícil tarefa na ponta
dos pés. Então riu com espontaneidade quando uma borboleta pousou em
seu ombro.
- Como ela é linda. – comentou vendo o conjunto alaranjado de suas asas
que já batiam para longe.
- Dizem que traz muita sorte quando elas pousam assim.
- É mesmo?
- É sim. – concordou passando a mão pelo rosto corado mesmo sob a
proteção do chapéu. - Uma vez...
- Sua vagabunda!
Um grito esganiçado atravessou o parque até onde estava sentada. Ousava
dizer que até os patos se agitaram, batendo as assas na água diante do
barulho repentino.
Bom Deus! Lavínia deu um salto rezando mentalmente pela vítima do
escândalo. Se soubesse quem era, teria rezado o dobro. Teria rezado com
muito mais fervor.
- Sua desgraçada!
Emily, baronesa de Petergille, tinha um lenço esmagado nas mãos
trêmulas, os olhos marejados e o rosto vermelho de ódio. E o alvo de seus
ataques era ninguém menos que Lavínia. Que ainda atinava o que estava
acontecendo.
Quando esta parou, uma multidão substancial havia se reunido para
assistir o desenlace da tragédia. Chapéus e cartolas sem nenhum pudor se
aglomeravam e não fingiam desinteresse. Era por aquele tipo de coisa que
eles saíam de casa pela manhã. O tipo de coisa que tornava um passeio na
natureza insípido, interessante.
Luísa havia agarrado na saia da mãe com os olhos assustados e esta havia
passado o braço protetor por suas costas. Demonstrando a mais profunda
coragem e confiança.
- Meu marido me contou tudo. Não tente negar!
Ela parecia transtornada. Agitando o lenço no ar próximo do rosto do alvo
de suas afrontas. Faltava mesmo muito pouco para perder a linha de vez.
- Você foi amante dele!
A multidão soltou uma exclamação chocada. A sensação era que todas as
muralhas que havia construído durante a vida toda haviam acabado de
desmoronar sobre sua cabeça. A consciência de que sua filha estava ali e há
poucos metros, também seu marido, não ajudava em nada.
Havia anos que não se sentia tão humilhada, mas sua cabeça permanecia
erguida. O ar altivo, encarando a mulher desconcertada diante dela. Sua
firmeza parecia deixá-la ainda mais louca. O que ela esperava? Lágrimas e
súplicas de joelhos para que parasse? Pobrezinha, ela se reduziria a pó antes
de conseguir algo parecido.
- Eu bem desconfiava que essa criança não poderia ser de Solluin.
Apontou para Luísa soltando um som de desprezo. Lavínia não se atreveu
a olhar para a filha. Havia uma linha muito tênue entre seu estado centrado e
o mais completo desespero, bastaria uma olhada naqueles olhinhos azuis e
ela ultrapassaria aquela linha. Se ficasse com o olhar fixo na loira
perfeitamente penteada, mas notavelmente irada, no entanto...
- O velho mal aguentava em pé! – voltou a atacar. - Como ousou
engravidar de seu senhor? – como se ela tivesse alguma escolha. - Uma
criada imprestável, era o que você era!
Em algum lugar dentro dela conseguiu encontrar a coragem que precisava
para responder sem alterar a voz. Quando falou seu tom era firme, forte o
bastante para ser ouvido, mas baixo o bastante para não demonstrar um
pingo sequer de emoção. Era como se Lady Petergille a houvesse parado
para perguntar como estava seu cachorro ou outra coisa igualmente trivial.
Ali era a burguesa de coração de gelo e se orgulhava disso.
- Eu não sei o que vosso marido lhe contou, Milady, mas eu lhe asseguro
que filha dele, ela não é.
- De quem então? – soltou uma risada cruel.
O silêncio seria matador. Ela precisaria respirar algumas vezes olhando
para a víbora antes de responder. Precisaria se não quisesse perder a
compostura como ela. Os olhos verdes de Emily quase saltavam das órbitas
e as veias de seu pescoço estavam saltadas.
- De quem essa criança é filha?! – soltou um berro que fez a multidão
curiosa arregalar os olhos.
- Minha.
Uma voz grave e firme chamou a atenção de todos. Lorde Carffort, ainda
mais belo e sisudo foi até Luísa e a pegou no colo. A menina parecia a
completa representação do espanto sendo erguida por seus braços fortes e
reconfortantes. Como um reflexo, ela enterrou o rosto em seu ombro e
segurou em seu pescoço.
Não podia ter noção do quanto ele lembrava ao Duque quando se voltou
para a ex-noiva. Era mais que a altura, o corpo e o mesmo cabelo castanho,
tratava-se do semblante de autoridade e da segurança com que se movia. Os
olhos azuis furiosos encontraram uma Emily devidamente chocada.
- Não me olhe assim, Lady Petergille. – disse sério, ignorando
completamente a atenção da multidão que havia se voltado completamente
para ele. Podia ouvir os lápis dos jornalistas trabalhando naquela história. -
Nunca escondi meu passado de ninguém. Homens como eu começam cedo.
- Você era uma criança. – observou ainda mais chocada.
Oh! Ela sabia fazer contas! Que adorável. Sim, Luísa havia sido
concebida quando ele tinha dezessete anos, mas com essa idade ele já havia
perdido sua inocência há algum tempo.
- Você é uma criança.
Acusou se referindo a sua explosão em um lugar público. Colocando
muitas reputações em perigo. Incluindo a própria. Mulher tola. Na manhã
seguinte cada ser em Figior, pobre ou rico, saberia que o marido dela era um
devasso que ainda tinha maus hábitos e traía a esposa.
Mas não. Emily só via Lavínia e Luísa na frente dela e faria o diabo para
destruí-las. Não se ele pudesse evitar.
- Petergille nunca dividiu a cama com minha esposa. – afirmou com uma
certeza que mal possuía, mas o importante era que era assim que todos viam.
Um homem certo do que dizia. - Luísa é minha filha, eu posso lhe assegurar.
Minha.
Ele morreria sem entender as mulheres. Se Emily havia ficado furiosa
com a ideia que Petergille tinha uma filha com Lavínia, quando Nathan o
desmentiu não parecia aliviada. Aparentemente, a ideia de que ele havia
feito aquela criança ainda era pior para ela. Seu estado irritadiço não se
alterou.
- É só uma vagabunda como a mãe. – acusou franzindo o cenho como se
não pudesse evitar.
Como um cavalheiro, ele não poderia reagir da forma que gostaria, por
isso foi um alívio quando Lavínia o fez por ele. Sem um pingo de hesitação,
deu dois passos à frente e acertou um tapa em cheio no rosto da baronesa. O
semblante furioso de uma leoa.
- Nunca mais ofenda a minha filha. Nunca.
A lady não ousaria revidar. Não quando já perdia o apreço e a razão diante
da multidão que julgava o espetáculo. Tudo o que fez foi simular um choque
e expressão de quem teve a dignidade ferida. Provavelmente no momento
seguinte ela simularia um choro falso, mas ele não ficaria para ver.
Carregando Luísa no colo, com Lavínia ao seu lado, atravessou a multidão
por uma posição estratégia. De modo a passar ao lado de Lorde Petergille
que parecia sério e nada feliz com os últimos acontecimentos que
presenciou. Provavelmente ele esperava um desfecho diferente.
- Escolha seus padrinhos, Petergille. – desafiou com o cenho franzido pelo
ódio. - Eu o verei ao amanhecer.
...
Capítulo 22
Minha filha
Luísa estava tão silenciosa que chegava a dar medo, mas Lorde Carffort
podia apostar que havia uma porção de perguntas rodeando aquela cabecinha
ainda enterrada em seu pescoço. Havia passado todo o trajeto de carruagem
assim como se tivesse adormecido. Mas quem adormeceria depois de ouvir
as atrocidades que a Srta. Solluin havia ouvido?
Lavínia estava em pânico, olhando para a filha, mas de algum modo sabia
que palavras piorariam tudo. Além disso, não tinha ideia do que dizer para a
menina. Não tinha ideia do que dizer para a própria filha e essa era só uma
de suas muitas preocupações. O que diria para o marido? Para a família
dele?
Seu mundo havia oficialmente desmoronado, mas ele estava lá. Segurando
os destroços sobre as cabeças dela e de Luísa. Simulando Atlas segurando os
céus, mas o fazendo por vontade própria. Levando sua filha - que havia
assumido como dele – escada a cima, até o quarto desta. Lady Carffort,
queria e precisava chorar.
O pior era que tinha a exata noção de que sua filha tinha muitas perguntas
e que era ela quem deveria respondê-las. Só que, pela primeira vez, se sentiu
fraca e incapaz e estava grata por ter alguém para fazê-lo por ela. Mais do
que isso, sabia que ele o faria melhor do que ela. Era raro admitir algo assim,
mas era a verdade.
Nathan não parecia esperar que ela ficasse. Ao contrário, parecia esperar
que ela saísse. Provavelmente, suspeitando que toda a energia da esposa fora
sugada naquele maldito parque.
Lavínia se colocou na ponta dos pés e beijou os cabelos ruivos de sua
pequena.
- Meu amor, mamãe vai estar no quarto dela ser precisar. – acariciou as
costas com carinho.
Então olhou para o marido que assentiu com confiança. Deus! Ela não
deveria exigir tanto dele. Não deveria simplesmente partir quando era a filha
dela ali. Mas não tinha forças para ficar. Nenhuma. Então, se foi mesmo sem
uma resposta.
A atenção da Srta. Solluin foi desviada para a porta assim que ouviu o
clique que indicava que havia de fechado. De alguma forma ela buscava ter
certeza que a mãe havia saído. Tinha certeza que ambas queriam a
companhia uma da outra, mas também que no momento não suportariam.
Elas eram criaturas tão parecidas que era espantoso de ver.
Com cuidado ele a sentou na cama e arrastou uma cadeira para se sentar
diante dela. Esperando em silêncio até que essa estivesse pronta para falar.
Luísa o encarou, piscou os olhos azuis e coçou o nariz com o indicador.
Então, finalmente encontrou a voz que precisava dentro dela.
- É verdade? Você é meu pai?
Nathan teria dado qualquer coisa para que “sim” fosse a resposta correta e
verdadeira. Só que não era e por mais que mentir sempre fosse uma opção,
Luísa já padecia na ignorância por muito tempo. E ele, como vítima recente
dela, sabia quanto era horrível.
- Não, querida. – levou as mãos dela aos lábios. – Eu queria muito poder
dizer que sim, mas não posso mentir para você.
- Eu sou filha daquele homem?
Nathan fechou os olhos sentindo o que parecia uma faca afiada atravessar
seu peito. Ela era inteligente demais para o seu próprio bem e agora o havia
deixado sem resposta.
- Sim. Meu Deus! – aquilo na garganta dele era o início de um choro sem
precedentes? – Eu acho que sim.
Os olhos azuis foram parar na colcha que cobria a cama e ela seguiu sua
estampa com os dedos. Traçando as margaridas enquanto absorvia as
absurdas informações que estava recebendo naquela manhã.
- Então tudo que aquela mulher disse é verdade?
- Não. – negou sério, com veemência. – Nada do que a baronesa disse é
verdade. Ela só tem inveja da beleza de sua mãe, só isso.
Outro longo silêncio que o deixou muito tentado a sair, chamar Lavínia e
ir à casa Dachmour para admitir sua derrota. “Não posso fazer isso.”
Admitiria ao Duque de Dachmour e ele certamente entenderia. Em vinte e
seis anos de casamento mesmo ele, um dos homens mais poderosos de
Figior, deveria ter tido aquele momento com uma das filhas. Se não com
todas.
- Mas eu não quero.
A voz infantil soou decidida e o rosto dela estava franzido e resoluto
como o da mãe. Queria ele ter metade da segurança daquela pequena
menininha.
- Não quer o que, querida? – questionou, olhando-a com confusão e
paciência.
- Eu não quero ser filha daquele homem. – deu um soco na cama para
enfatizar sua posição. Ela já havia decidido. – Quero ser sua filha.
Deus! Aquilo escorrendo no rosto dele eram lágrimas ou havia começado
a chover e uma nuvem desavisada tinha entrado no quarto? Virgem
misericordiosa, ela era mesmo a filha da mãe dela.
- Sabe... – Nathan soltou um riso abafado e deu um beijo na pequena testa.
– Se eu descobrisse hoje que o meu pai não é meu pai, na verdade nada
mudaria. Era ele que estava comigo quando eu precisei e é isso o que
importa.
- Sim. – assentiu como se houvesse pensado exatamente naquilo minutos
atrás.
- No fundo querida, não importa quem é o seu pai. O que importa é quem
está com você quando precisa. – continuou, aconchegando uma das mãos
dela entre as dele. – O Sr. Solluin foi um bom pai e eu também quero ser.
Bom... – ele pigarreou, um traço de família de fato, que vinha à tona quando
estava constrangido. – Se você permitir que eu seja.
Luísa deu um sorriso e se esticou para dar um beijo no rosto dele. Aquilo
era mais do que uma resposta.
- E quanto ao resto das pessoas?
Sabia exatamente o que ela tentava dizer. As pessoas. Aquelas que haviam
se aglomerado no parque e ouviram tudo. As mesmas pessoas que
espalhariam o escândalo, mas uma mente infantil não ia tão longe.
- Eu disse que era minha filha e eles vão acreditar. – ai deles se não o
fizessem sendo ele filho de quem era. – É só guardarmos segredo.
Luísa fez um gesto que deveria simbolizar um juramento solene. Nathan o
repetiu porque parecia ser a coisa certa a se fazer.
- Você será um bom pai. – novamente assentiu com uma firmeza que
chegava a ser assustadora. - E é um bom marido.
Ele era? Maldição! Ele não havia trocado nem meia dúzia de palavras com
a esposa desde o incidente, sequer perguntara ser ela estava bem. Mas ele
faria isso, jurou a si mesmo. Depois de achar um padrinho, até porque
Lavínia também estaria ocupada.
- Vou pedir que sua mãe venha ver você.
...
O lado bom de estar envolvido em um escândalo de proporções épicas –
se é que existia algum – era que não precisou reunir a família na casa
Dachmour. Todos já haviam se reunido por conta própria e pareciam
somente aguardar a chegada dele. Como se tivessem marcado um encontro.
Sua mãe estava sentada no sofá da sala principal e parecia mais calma do
que ele ousaria supor. Seu pai estava sério, observando ao redor e estudando
a situação como Allan. Seus cunhados, mesmo West estavam calados e
contemplativos. Sua sobrinha Sara e suas irmãs pareciam um tanto agitadas,
mas Meri... Meri, como era de costume, estava dando um espetáculo à parte.
Andando de um lado para o outro da sala e praguejando em voz baixa.
- Um duelo! Um duelo como se estivéssemos na era medieval! –
resmungou e viu se alguém compartilhava de sua indignação. Não o
suficiente, pelo visto. Ninguém se manifestou. – Como podem estar tão
calmos? Ele pode morrer! Será que ninguém se importa com isso?
O Duque se agitou no assento diante da ofensa e sua esposa assumiu uma
expressão melancólica, era óbvio que eles se importavam. Embora não
fizessem distinção entre os filhos, Nathan era o único filho que os dois
haviam tido juntos. Estavam em pânico e o recente comentário não havia
ajudado. A condessa e a doce habilidade de tornar coisas difíceis ainda mais
difíceis.
Cassandra deu um suspiro fundo e passou a mão pelo rosto. Ela não era a
mais sensível de suas irmãs, mas Meri ultrapassava todos os limites.
- É claro que estamos preocupados, Meri. – disse séria para a irmã mais
nova e Isabelle assentiu em concordância. – Acontece que quando se anuncia
um duelo em praça pública não há nada a se fazer se não rezar.
- Bobagem! – exclamou agitando as mãos nada moderadamente. – Se ele
voltar atrás terá o orgulho masculino ferido, mas ao menos continuará vivo.
Vi-vo! – enfatizou.
Nathan pigarreou para sinalizar que havia chegado há algum tempo. Era
desconfortável ser o assunto de uma conversa e ser ignorado ao mesmo
tempo. Contraditoriamente, também era desconfortável ser o centro das
atenções, sobretudo quando sua irmã do meio o fuzilava com olhar mortífero
como se o culpasse por querer “brincar de duelo” com Petergille.
Como se ele achasse a ideia mais divertida que qualquer um ali. Ele tinha
uma esposa e uma filha! Uma filha pelo amor de Deus!
- Preciso de um padrinho. – disse somente. Poupando a todos de um longo
discurso. Eles já sabiam o suficiente.
Meredith franziu o cenho e se voltou para o marido com os braços
cruzados.
- Eu proíbo você.
Não queria ninguém incentivando aquela loucura. Menos ainda o marido
dela. Quando e se estivessem chorando sobre o caixão de Nathan – por mais
macabra que fosse a ideia – ela não queria ter nenhuma participação naquilo.
Nenhuma mesmo.
- Perdoe-me, minha tentação, mas não posso deixar de me voluntariar. –
West respondeu olhando para a esposa com os olhos verdes sérios.
Lorde Carffort não se lembrava da última vez que vira a irmã ser
contrariada. Sobretudo em público. Sobretudo pelo marido.
- David Kurt... – franziu mais a testa e caminhou até estar a um palmo
dele. – Eu o proíbo.
- Eu sinto, amor.
- Por quê? – questionou por entre os dentes.
Provavelmente – pelo olhar assassino da mulher - o Conde não teria
acesso ao leito conjugal no próximo mês. Isso, pressupondo que ele estivesse
vivo até lá.
- Você não entende. – permaneceu sério e irredutível.
- Por quê, West? – alterou o tom de voz ignorando a plateia.
- Porque se fosse você naquele maldito parque eu teria feito a mesma
coisa que seu irmão! – respondeu com certa energia, o tom alto como o dela.
O espanto de todos criou um silêncio desconfortável na sala, mas surtiu o
efeito esperado. Meri abriu os lábios e os fechou novamente. Não havia
argumentos contra aquilo. Simplesmente foi até o marido e espremeu seus
lábios contra os dele com força, ignorando que estavam diante da família,
então deu tapinhas em seus ombros e assentiu.
- Conte comigo, Carffort. – disse, finalmente passando a mão pela cintura
da criatura impossível que há anos chamava de esposa.
- E comigo. – Harry se manifestou.
- Comigo também. – concordou o marquês, irmão gêmeo deste.
- Eu não sou a favor dessas demonstrações de violência, Carffort. –
começou Lorde Trian. Como uma criatura pacífica daquela acabara casada
com a sobrinha dele? – Mas estou disposto a acompanhá-lo se desejar.
- Não. – o herdeiro do ducado se manifestou do canto da sala. Todas as
atenções da sala se voltaram para Allan – Sou eu quem deve ir. Ele é meu
irmão.
Nathan assentiu e murmurou um agradecimento. Sim, ele era irritante.
Provavelmente iria da casa Dachmour ao parque central lembrando-o de sua
imprudência. Lembrando que ele tinha uma filha e uma esposa e perder
aquele duelo não era uma opção. Ainda assim, ele o amava e mesmo diante
daquele olhar sério de futuro Duque, sabia que era recíproco.
- Se não se importarem, gostaria de um momento à sós com Nathan. – a
duquesa finalmente se manifestou.
Mesmo se alguém se importasse, jamais diriam. Ninguém ousaria
contradizer a matriarca da família. Não porque Helena Mei Carffort fosse
uma mulher severa – era na verdade muito doce, mas porque todos nutriam
um respeito muito grande por ela. Temiam desagradá-la.
A família saiu em uma fila coordenada como se tivessem ensaiado
previamente por meses seguidos. Quase tão coordenado quanto uma tropa
bem treinada.
- Nós estaremos lá, Carffort. – Harry garantiu com um aceno firme, que
ele retribuiu.
Todo o apoio dado por sua família havia sido tocante, mas a reação de seu
pai fora de longe a melhor de todas. Não houveram palavras, grandes
discursos ou largos sorrisos. Lorde Dachmour simplesmente tocou em seus
ombros, deu tapinhas em suas costas e assentiu com profundo orgulho. Era
mais do que ele ousaria pedir.
Quando se viu sozinho com a mãe, ocupou o lugar ao seu lado no sofá e
levou as mãos dela a seus lábios.
- Diga-me que isso é mentira. – pediu com os olhos azuis vivos fixos nele.
Não entendeu de pronto. – Engravidar uma mulher e abandoná-la não é do
feitio dos meus filhos.
Nathan deu um sorriso e ouviu sua mãe respirar em alívio antes mesmo de
responder. Como todas as mães, ela havia lido a resposta dele antes mesmo
de pensar em como a daria.
- Foi muito corajoso o que fez, meu filho. – abriu um sorriso quase
choroso. – Você é tão parecido com o seu pai. Tão honrado e bom.
- Papai sempre me disse que eu sou igual a senhora. – comentou em tom
risonho.
- Talvez. – deu tapinhas carinhosos nas mãos dele. – Mas eu sei que será
um pai como ele para aquela criança. Um ótimo pai como ele foi para suas
irmãs.
“Espero ter a chance de ser.” A frase ecoou dentro dele ao se lembrar de
que tudo seria decidido na manhã seguinte.
- Sua bênção, minha mãe. – pediu na esperança que aquelas palavras o
salvassem em momento de necessidade.
Com o sorriso doce no rosto acolhedor, passou a mão no rosto dele.
- Deus o abençoe, meu filho. – disse munida do poder sobrenatural que as
palavras de mãe tinham. - Deus o abençoe.
...
Capítulo 23
Revelações e um duelo
Após uma boa refeição na Mansão dos Dachmour, voltou ao lar com certa
insegurança. Não como um herói valente e intrépido que retornava para
reclamar sua princesa após matar um dragão, mas se sentindo o próprio
dragão morto.
Ele deveria estar radiante, disse a si mesmo. Deveria estar confiante que
Lavínia o receberia de braços abertos, o encheria de beijos e diria com vigor
que ele havia salvo sua vida. Só que ele conhecia a esposa o suficiente para
saber que não seguiria a lógica de uma mulher comum e ele não era um
homem que havia agido pela vaidade. Havia agido de forma impetuosa por
amor e no fundo não queria uma esposa que estivesse radiante de felicidade
quando o recebesse. Não quando ele corria o risco de morrer na manhã
seguinte.
Para sua sorte ou azar, não havia sequer vestígio de alegria no rosto de
Lavínia quando ele entrou no quarto desta. Estava agitada olhando pela
janela e, quando o viu, seu olhar acabou com ele. Não havia raiva, saberia
lidar com raiva. Era algo muito pior, melancolia pura e sólida.
- Como você está? – pergunta estúpida. Homem estúpido.
- Eu acabei de deixar Luísa no quarto dela. – soltou um riso sem nenhum
humor apontando na direção dos aposentos da filha. - Ela me disse que você
é o pai dela agora, mas amanhã a essa hora ela pode não ter mais um pai. –
levou a mão ao peito como se uma dor insuportável a tivesse acometido. -
Oh Nathan! Como acha que eu estou?
- Eu não tive escolha. – argumento fraco e imbecil, mas era a verdade.
- Que tal a escolha de não se arriscar no duelo? – sugeriu sem humor
algum no rosto ou no tom de voz.
- Essa não era uma escolha válida depois que Petergille resolveu pôr em
risco a sua reputação.
- Eu prefiro ser uma mulher casada com uma péssima reputação a uma
viúva de reputação imaculada, Milorde! – levantou a voz e o queixo para
encará-lo de igual para igual.
Bom Deus! Ela estava tão linda. O sol - que entrava pelas janelas -
iluminava seu rosto fazendo as sardas parecerem uma chuva de ouro
derramadas pelos deuses gregos, seus olhos pareciam dois lagos brilhantes e
os lábios rosados tensos pela irritação o tentavam ao pior.
- Sabe que essas não são as únicas opções existentes.
Não poderiam ser. Deveria haver no meio daquele inferno alguma opção
que permitisse que Lavínia tivesse sua reputação e ele. Não poderia
simplesmente deixá-la. Não agora que havia descoberto o amor de forma tão
intensa e espirituosa. Não agora que tinha uma filha. Uma filha linda e
adorável que contava com ele.
- Nathan, eu serei eternamente grata pelo que fez por mim e Luísa naquele
parque. – a honestidade saía em forma de palavras, emanava de seus poros.
Não ousaria duvidar dela. - Mas já tinha feito o bastante arriscando sua
honra por mim, não precisava arriscar também sua vida.
- Do que está falando?
Não era a honra dele que estava em risco ali e sim a dela. Sempre foi a
dela.
- Você disse em praça pública que me engravidou aos dezessete anos e me
abandonou com a criança no ventre. – lembrou bem, com a expressão
alarmada.
Ele deu de ombros como se não desse a mínima. Lady Carffort sabia que
estava longe de ser simples assim. Nathan amava sua família, prezava seu
bom nome e protegia aqueles que amava. Não era simples jogar o
sobrenome dele na lama.
- Sou homem e o filho do Duque. A imprensa e Figior me perdoarão em
pouco tempo.
- Mas...
- A memória deles é muito diferente para mulheres e mais ainda para
nascidas burguesas. – cortou rapidamente poupando-os do eufemismo. - É
cruel, mas é a verdade.
Ela sabia que sim. Sabia que estava certo. Ela poderia passar a vida sem se
recuperar. Ainda que o casamento lhe desse certa comodidade diante da
nobreza, bastaria virar as costas e todos sussurrariam coisas a respeito dela.
A companhia que Solluin deu a vida para manter estaria arruinada. Seria um
inferno em terra.
- Eu suportaria isso com um sorriso no rosto se pudesse ter certeza que
continuaria vivo.
Aquilo era quase tão bom de ouvir quanto um “Eu te amo” ou seria, se
não houvesse muita culpa envolvida. Só que havia um detalhe que sua bela
esposa fingia ignorar. Um detalhe que justificava completamente a atitude
dele. Sim, ela era forte para desafiar o reino inteiro, mas havia mais.
- E quanto a Luísa?
Lavínia soltou um suspiro fundo e resignado. Talvez Luísa suportasse.
Talvez ela fosse forte como a mãe, mas não queria descobrir. Não queria que
conhecesse o que era dor ou sofrimento. Havia passado os últimos minutos
pedindo perdão a ela pelo que havia se passado no parque e se culpando. Ver
sua filha perder qualquer chance de uma vida digna acabaria com ela.
Não sabia o que seria dela se Lorde Carffort não interferisse.
- Lavínia... – chamou sua atenção quando viu que estava desviada para a
janela. - Luísa foi concebida contra a sua vontade?
- Eu a tive porque quis. - respondeu com firmeza. – E eu a amo mais que a
própria vida.
- Não foi isso que eu perguntei e você sabe bem disso.
- Petergille era um jovem pervertido e eu uma criada descuidada. É só o
que tenho a dizer.
- Ele a forçou? – instigou, ignorando seu visível desconforto.
- Nathan, por favor... – balbuciou com os olhos fechados, o assunto a
destruindo por dentro.
- Não. – segurou em seus ombros de forma carinhosa e firme. - Não vou
permitir que me mantenha na ignorância por mais tempo.
- Que diferença isso faz? – havia um tom de súplica na pergunta dela.
Não me obrigue a contar, por favor. Não me obrigue a lembrar. Ele
parecia surdo para seu apelo.
- Daqui a algumas horas pretendo atirar no peito de um homem e quero
saber o quanto ele merece esse tiro.
Era uma razão válida demais para ser ignorada. Estava diante de um
homem de honra, mas que tinha uma consciência. Embora a estupidez de
Petergille fosse o suficiente para cogitar um duelo, se chegasse a matá-lo
talvez sua consciência não o perdoasse por isso. Tinha que lhe contar. Por
mais que doesse e doía.
- Só não me culpe se não gostar do que vai ouvir. – advertiu, pois mesmo
ela não gostava do que iria contar.
- Eu só a culparei se mentir pra mim.
Lavínia negou como uma promessa de que não o faria. Não naquela tarde,
nem nunca. Após um suspiro profundo ela começou a contar. Rezando por
poucas interrupções, porque não tinha certeza se conseguiria continuar se
interrompida.
- Petergille havia demonstrado sua preferência por mim desde que cheguei
à casa dos pais dele. Eu ficava com os serviços mais leves, mais fáceis e as
outras criadas me detestavam por isso. No começo eu achei que aquilo era
bom, mas quando percebi as intenções dele fiquei desconfortável. Ele ficava
sentado horas me vendo trabalhar. Fazia o diabo para que a governanta me
colocasse para arejar os quartos principais, o quarto dele.
“Um dia chegou uma joia no meu quarto e eu a recusei. Devolvi em mãos
e disse que agradecia, mas que não podia aceitar. Ele propôs um
relacionamento ilícito e quando eu recusei ficou devidamente furioso. Era
risível como disse, que uma criada, uma ninguém o recusasse. Na semana
seguinte, eu achei que tinha acabado.”
“Eu havia voltado aos trabalhos pesados e nunca estive tão feliz em me
esforçar tanto, ao menos estava segura ou era o que achava. Em uma terça-
feira chuvosa a governanta me orientou a voltar a arejar os quartos e as
outras criadas me garantiram que o filho do barão não estava em casa. Eu
tola, acreditei cegamente. Já era noite, eu subi, troquei a roupa de cama e ele
apareceu. Parecia possuído pela luxúria quando trancou a porta e me jogou
na cama. Segurando meus braços e dizendo repetidas vezes que eu queria
aquilo, que deveria parar de resistir.”
- Quantas vezes? – por algum motivo importava.
- Não fiquei para descobrir. Depois da primeira, eu fugi sem olhar para
trás. – ainda se lembrava da força e energia incomum que se apossaram do
corpo dela para escapar daquele inferno. - Fui para casa do Sr. Solluin. Não
podia voltar para o meu tio. Ele me mataria.
- O tio seu já a tinha machucado?
Era o que Abgail havia sugerido, mas pelo visto, havia muito que a
meretriz não havia contado. Ou ela também padecia na ignorância, ou achou
prudente que ele padecesse. Ao menos, até sua amiga resolver acabar com
aquilo.
- Ele me bateu uma vez, mas não foi ardiloso o suficiente para tocar em
mim de forma imprópria.
- Petergille foi o seu primeiro. – Maldito fosse!
- Sim e a prova viva de que a primeira vez de uma mulher é dolorosa. –
um nó em sua garganta quase a impediu de responder, mas era mais forte
que aquilo.
- Solluin a recebeu? – desviou o assunto ou ia enlouquecer. Estava
enlouquecendo. As imagens que sua cabeça formava eram perturbadoras.
Perturbadoras demais.
- Sim, mas eu não poderia ficar com ele. Meu tio reclamaria a minha
guarda, como reclamou. – lembrou com nitidez das ameaças que seu tio
havia feito se não a tivesse de volta. - Por isso ele teve que se casar comigo.
Quando meu tio chegou com a polícia não havia nada que ele pudesse fazer.
Eu já pertencia a Solluin e ele não tinha poder algum sobre mim.
- Maldição! Foi por isso então!
A baronesa de coração de gelo, a jovenzinha ambiciosa que havia
seduzido o patrão do pai só existia na cabeça dos desocupados. Lavínia era
na verdade uma vítima, uma menina assustada que por sorte – ou por Deus –
encontrou o homem certo na noite certa.
- Agora você compreende. – percebeu em seu olhar que sim. - Solluin foi
um anjo para mim. Depois de dois meses eu descobri que estava grávida e
pedi a anulação. Era demais esperar que ele assumisse duas crianças que não
eram problema dele. Solluin disse que se eu fosse embora iria atrás de mim,
acrescentou que sempre quis ter um filho. Que criaria a criança como se
fosse dele e criou.
- Solluin não podia ter filhos?
- Comigo? Não. – negou com a cabeça. - Meu casamento com ele foi um
relacionamento casto, de pai e filha. Ele nunca tocou em mim.
- Em anos de casamento ele nunca tocou em você?
O homem era um santo. Se o momento não fosse tão sério, iria naquele
instante até a Catedral de Figior pedir que construíssem um altar para aquele
homem, talvez uma estátua e alguns vitrais coloridos. Com certeza alguns
vitrais coloridos. Certamente os merecia.
- Nunca. – confirmou. - Mas por Deus não me julgue ao assumir que não
recusaria se ele quisesse. – não ousaria julgá-la, não depois de tudo que
havia ouvido. - Ele fez mais por mim que qualquer homem havia feito. Até...
– engoliu em seco.
- Até?
- Até você aparecer. – pousou a mão nos ombros dele em um gesto de
afeto e admiração. - Eu não sei se mesmo ele faria o que você fez hoje, meu
marido.
- Ele não seria tão imprudente. – a sombra de um sorriso brincou nos
lábios dele.
- Não, acho que não. - admitiu.
- Isso é porque ele não a amava como eu a amo.
Um arrepio delicioso e cruel ao mesmo tempo, amargo e doce, percorreu a
coluna de Lavínia. Aquilo foi a coisa mais impetuosa e adorável que alguém
havia lhe dito.
- Ah Nathan! – exclamou passando uma das mãos pelo rosto belo, o
maxilar forte e o queixo quadrado. - Isso é porque ele tinha juízo, meu
querido. O amor de Solluin e o meu sempre foi um amor racional. Ele sabia
que era tolice me amar de outra maneira. Eu sou, afinal... – sorriu de forma
depreciativa. - A burguesa de coração de gelo.
- Eu acho que seu coração já derreteu há muito tempo, meu amor. – havia
ele próprio cuidado disso, sem seu consentimento.
- Não. – negou desesperada para fazê-lo enxergar. - Veja. Eu destruí a vida
dos dois únicos homens que um dia me amaram. Impedi Solluin de ter um
relacionamento real com uma mulher e você... – passou os dedos das duas
mãos pelo rosto dele como se quisesse memorizar seus traços únicos. - Você
pode acabar morto amanhã por minha causa. Eu nunca deveria ter entrado
em seu apartamento. Nunca deveria ter insistido para que nos casássemos.
Nunca deveria...
Os lábios firmes a impediram de continuar, a língua atrevida lhe deu um
motivo para que jamais o fizesse e a mão que pressionava suas costas tirou o
ar de seus pulmões. Que beijo! Que homem!
- Às vezes você fala demais. – repreendeu. - Eu já lhe disse que não me
importo com o que pensa, Lavínia Harin Carffort, eu amo você. E se não
fosse até o meu apartamento e me atormentasse com todas aquelas ideias
idiotas sobre os nobres serem preguiçosos e cada garido que tinha em minha
conta, eu poderia ter um destino bem pior do que morrer em um duelo. –
segurou o rosto dela com as duas mãos e a olhou no fundo dos olhos. - Eu
poderia ter morrido aos 116 anos sem jamais ter amado uma mulher como
você.
Então ela o beijou. Total e completamente consciente das lágrimas
salgadas que escorriam de sua face e vinham se intrometer no sabor único
daquele beijo. Sim, amanhã, naquela hora tudo poderia ter mudado, ela
podia – Que os céus tivessem misericórdia dela! – perder aquele homem
maravilhoso que chamava de marido. Mas, naquele momento, ele estava ali.
Ao lado dela. Pedindo desesperadamente para ser beijado e para que ela
aproveitasse cada instante com ele.
- Eu quero que faça amor comigo. – sussurrou em seu ouvido e beijou seu
pescoço.
- Você não precisa pedir, meu amor. – Nathan respondeu segurando
apaixonadamente sua nuca.
- Não como andamos fazendo nas últimas noites. – explicou passando a
mão por suas costas, cravando as unhas em seu casaco. - Eu quero que faça
amor comigo sem regras, receio de me magoar ou pudores. Quero que o faça
como sempre quis.
- Pelos céus! – exclamou com um gemido inalando o cheiro do pescoço
dela. - Eu atravessaria o inferno para ter você.
Mas no momento, a ocasião era o paraíso. Um paraíso doce com um toque
de amargo que não o tornava menos especial e sim o contrário.
Nathan tomou as rédeas daquela vez e Lavínia permitiu que o fizesse. Ele
a despiu lentamente, explorou seu corpo com as mãos, com a boca, de todas
as formas que conhecia. Quando a deitou na cama e a penetrou, Lady
Carffort pensou ser incapaz de respirar.
Eles fizeram amor lentamente, então mais rápido e lentamente novamente
e quando Nathan levou Lavínia ao abandono, mostrou a ela que poderia
chegar lá mais uma vez em ainda menos tempo. Durante todo o tempo ele
dizia que a amava e Lavínia, a jovem a mulher que antes não conseguia
chorar, agora, não conseguia parar.
...
Havia dormido entre a filha e a esposa. Não poderia ter pedido por uma
noite melhor. Mesmo que nenhuma das duas tivesse dito aquilo em voz alta,
ele se sentiu amado por aquelas mulheres fortes que tinha na vida dele.
Só que pela manhã, sua esposa não estava ao lado dele. Encontrou seu
lado da cama frio e um bilhete na cabeceira. Claro e sucinto. Combinava
com ela.
“Eu simplesmente odeio despedidas, mas sei que irá voltar para casa.
Estarei rezando por você, meu marido.
Sua,
Lavínia.”
Com aquele bilhete ela tinha derrubado suas reservas e feito com que
quase desistisse daquela loucura toda de duelo. Acontece que aquilo, aquilo
tudo era por elas. Por ela e por Luísa que havia beijado ainda sonolenta pela
manhã, antes de partir.
Com um suspiro fundo, observou ao redor. A neblina tomava o parque,
tornando a ocasião quase etérea. Estava frio. Apesar de ainda ser madrugada,
um grupo substancial de homens haviam se reunido. Alguns muito
conhecidos, outros nem tanto. Boa parte deles – a parte que não se importava
de fato com o resultado – havia apostado bons garidos no possível vencedor.
À frente, Allan e o padrinho de Petergille reviam as regras com um
cavalheiro neutro que havia sido nomeado juiz. Seu oponente, lustrava sua
pistola com um sorriso de deboche no rosto. Os cabelos negros
perfeitamente penteados para trás e um brilho diabólico nos olhos escuros.
- Está pronto? – sua atenção foi desviada pela pergunta do irmão.
Nathan assentiu.
- Questionei o padrinho do barão sobre o acordo de atirar longe. –
acrescentou o herdeiro do Duque. – Mas parece que ele não tem essa
intenção.
- Eu também não e fico feliz de poder atirar sem remorso. – respondeu
quase como um resmungo. De onde Allan havia tirado aquela maldita ideia?
- Em suas posições, cavalheiros! – anunciou o juiz.
- Boa sorte. – o irmão desejou.
Lorde Carffort foi até Petergille e eles ficaram de costas um para o outro.
Era de se esperar que o barão não perderia a chance de provocá-lo.
- Não é irônico, Carffort, que depois de você amar duas mulheres você as
perca para o mesmo homem?
- Lavínia nunca será sua e eu não dou a mínima para o que faz com Emily.
– respondeu em voz baixa.
- É o que veremos. – ameaçou.
- Três passos largos à frente! – sinalizou o juiz e ao final deles havia
começado a contagem. – Um... – eles se viraram. – Dois... – apontaram as
pistolas e...
Bang. O barulho de um disparo seguido do baque de um corpo caído no
chão.
Nathan sentiu o grama fofa em suas costas e o braço esquerdo queimar, a
arma havia escapado de sua mão e não tinha tempo para pegá-la. Petergille
se preparava para o próximo tiro e não pretendia errar daquela vez.
O herdeiro do ducado se desesperou. Tudo havia acontecido tão rápido. O
desgraçado havia atirado antes da hora e estava pronto para o próximo.
Queria matá-lo. Não havia dúvida que sua intenção era essa desde o início.
Allan correu para socorrê-lo. Maldição! Nem que fosse para se colocar na
frente da bala e seus cunhados tiveram o mesmo impulso, mas então... Bang!
Curvou suas costas e caiu de joelhos como se a bala o tivesse atravessado.
Como se a dor emocional também fosse física. Era tarde. Havia perdido
Nathan.
Mas então ouviu burburinhos e em seguida sons de choque dos presentes.
Havia poucas coisas capazes de chocar um grupo de cavalheiros, mas aquela
era com certeza uma delas.
O tiro que ouviu não havia vindo da pistola de Petergille. Viera de uma
arma da multidão que havia acertado o barão no peito e o feito cair.
O dono da arma e do ato heroico havia disparado na direção de Lorde
Carffort, ainda vivo e respirando apesar de ferido. Havia ajoelhado ao lado
dele e... Maldição! O rapaz estava beijando seu irmão na boca.
Apaixonadamente.
...
“Caros leitores,
...
...
...
...
“Prezados leitores,
Há mulheres que realmente não nascem com sorte. Um mês após a morte
de Lorde Petergille, sua viúva se descobriu grávida deste. Muito
provavelmente você deve estar se perguntando, como eu, de onde veio esta
maré de tragédias para a baronesa.
Primeiro o escândalo, depois a viuvez e agora a gravidez que terá que
levar sozinha. Alguém deve ter passado na fila da boa sorte no lugar da
Lady. Façam suas apostas, eu aposto todas as minhas fichas em Lady
Lavínia Carffort.”
...
Sua aparição era realmente ousada, mas isso nunca impediu Lavínia de
fazer o que achava certo. De alguma forma ela soube que tinha que ir até ali.
Não era um apelo de sua consciência ou seu lado de boa samaritana. Era
apenas uma necessidade crua de dar àquela criança a mesma coisa que a dela
teve, a chance de ser amada.
Lady Petergille estava na sala de estar, mais linda do que ela se lembrava.
Os olhos verdes pareciam ter uma calma além do habitual apesar do rosto
sério e ela descansava a mão ternamente sobre a barriga. Os cachos do
cabelo loiro caíam sobre o rosto bem feito. Ela parecia serena, até ver
Lavínia. Então tudo mudou.
- Como ousa vir até a minha casa? – questionou parecendo um tanto
furiosa.
- Por que me deixou entrar se não queria me ver? – questionou com calma
parando no meio da sala.
- Talvez para ter o prazer de te mandar embora. – retrucou com a irritação
que a outra estava disposta a ignorar.
- Se fizer isso, nunca saberá o que eu tenho a dizer.
Atingiu o ponto que pretendia. A curiosidade dela foi afetada e quando se
voltou para Lady Carffort, esta notou algo por baixo de toda aquela raiva.
Ela estava prestes a chorar. Deus! Como a entendia.
- Você veio rir de mim? – a pergunta não tinha o mesmo tom de ódio que
as outras.
- Se me conhecesse saberia que eu não perco tempo com tão pouco. – com
postura impecável ela se juntou a anfitriã no sofá e a encarou com empatia. –
Eu vim lhe aconselhar, Lady Petergille. Vim ajudá-la.
- Ajudar-me? – levantou a voz, mas não se alterou de nenhuma outra
forma. – Você tem um marido e uma filha que a ama. Eu estou sozinha.
Graças a você. Como diabos consegue vir até a minha casa e dizer que quer
me ajudar?
- Eu não sou a vilã e no fundo você sabe disso. – se a ideia fosse intimidá-
la, teria que se esforçar mais que aquilo.
- Você tirou os dois homens que eu amei de mim. – acusou, mas era claro
que nem mesmo ela acreditava nisso.
- Não. – negou com a cabeça, com um sorriso quase maternal. – Você
nunca amou Nathan, não da forma que eu o amo. – não era ninguém para
julgar os sentimentos dos outros, mas aquilo ela podia afirmar. - E
Petergille... Seu homem ainda estaria vivo se não ameaçasse a vida do meu,
mas era isso mesmo que você queria?
A pergunta pairou no ar deixando-o mais denso. Emily engoliu em seco,
manteve o olhar sem foco atrás de Lavínia e mordeu o lábio inferior em
nervosismo. Não parecia confortável com a pergunta. Menos ainda com a
resposta que sabia ser a sincera.
- Eu tive momentos agradáveis com ele. Não posso mentir. Petergille
sabia ser agradável quando queria.
As mãos dela retorceram os laços que adornavam a saia de seu vestido.
Provavelmente algum castigo divino ou terreno a puniria pelo que estava
prestes a dizer. Não se falava mal dos mortos, mas se havia alguém que a
entenderia e não a julgaria, era aquela mulher. Naquele momento estava
diante de uma aliada improvável, de uma amiga ainda mais improvável e da
última chance de ser honesta consigo mesma. Não poderia deixar a chance
passar.
- O problema era que ele quase nunca queria ser agradável. – confessou
com um suspiro trêmulo. – Ele tinha um ciúme doentio de mim e não sei
porque, se nunca me amou. Ainda tenho as marcas das surras que ele me
dava. Em lugares onde ninguém jamais as vê, mas mesmo escondidas eu sei
que elas estão ali. – voltou seu olhar para a jovem ao lado dela. – Eu sei.
Lavínia não disse uma palavra. Somente aninhou as mãos da baronesa
entre as suas, porque havia desejado ter alguém para aninhar as dela anos
atrás. Sim, ela teve Solluin, mas não havia nada mais reconfortante do que
ter uma mulher ao lado que a compreendia tão completamente que era
espantoso. Por isso estava ali.
- Eu me sentia uma pessoa terrível quando ele me contava as atrocidades
que pretendia fazer. Ele me contou que havia subornado o médico para que
sumisse antes do fim do duelo. Tentou me convencer que seríamos mais
felizes sem você e Nathan por perto. Oh! Eu fui tão completamente estúpida!
– àquela altura o choro já vinha para ela sem qualquer pudor e aviso. –
Querendo agradar aquele homem perverso. Achando que se compartilhasse
seus ideais poderíamos ser felizes, mas nunca seríamos felizes. Nunca.
Em silêncio ela aceitou o lenço que Lady Carffort a oferecia. Fungou e
assoou de forma pouco adequada para uma dama e, então, tomou fôlego.
Fosse o que fosse o que tinha dentro de si ela ainda não havia dito tudo.
Havia muito mais a ser dito.
- Quando recebi a notícia da morte dele eu fiquei abalada, mas depois...
Oh meu Deus! – exclamou olhando para o teto. – Eu senti um alívio tão
grande como nunca havia sentido em toda a minha vida. Isso me faz uma
pessoa ruim?
- Não. – respondeu dando tapinhas na mão dela. – Isso só te faz humana.
Você foi vítima de circunstâncias infelizes, assim como a metade das
mulheres e não deve se culpar por isso.
- Eu fui terrível com você. – admitiu olhando-a com um novo olhar. Uma
fascinação que jamais havia nutrido por ninguém antes. – Por que veio aqui?
Por que se importa?
- Porque eu já estive em seu lugar e sei o que está passando. – deu um
sorriso discreto porque temia sua reação se fosse mais espontânea. – E
embora eu não lamente sua viuvez, Lady Petergille, eu sinto por essa
criança. – em um gesto audacioso ela esticou o braço e pousou a mão direita
na barriga que mal dava sinais de gravidez. Não ainda. – Eu sinto por ter de
tê-la sem apoio, mas talvez esses infelizes acontecimentos sejam na verdade
uma grande oportunidade.
Emily, que antes fixava o olhar na mão de Lavínia, voltou seus olhos
arregalados para ela e negou com a cabeça.
- Não vejo como.
- Você é jovem, é rica e bonita. Tem todos os meios para dar a essa criança
o pai que ela merece.
- Bom... – passou o lenço para secar as lágrimas novamente. Com
renovada esperança. – Talvez tenha razão. Não deve haver muitos
empecilhos para uma baronesa viúva e de fortuna de casar. Qualquer um irá
me querer.
- Ah! Mas você não deve querer qualquer um. – aconselhou tocando seus
ombros. – Deve querer alguém que ame essa criança como você ama.
Independente do pai que ela um dia teve. É por ela que eu vim aqui e é por
ela que eu peço que vá a meu baile daqui a duas semanas.
Emily olhou para o convite na mão de Lavínia com hesitação. Por um
momento, imaginou que ela recusaria prontamente, mas quando o “não” não
veio, ela sabia que estava há poucos segundos do sim.
...
- Você tem dez segundos para sair do salão comigo, ou eu vou tirar seu
vestido aqui mesmo, diante dessa multidão.
A ameaça sussurrada no ouvido de Lavínia lhe deu um arrepio que desceu
de sua nuca até lugares completamente indizíveis em público. Claro que
Nathan não pretendia cumprir a promessa na frente de centenas de
convidados. A duquesa, a própria duquesa estava há alguns passos dele.
- Não seja inconveniente, meu marido. – deu uma risadinha quando ele
colocou o corpo escandalosamente próximo de suas costas. – O baile mal
começou e seria rude sairmos... Oh!
Fora só a sensação ou um dos laços que prendiam seu vestido nas costas
havia sido misteriosamente arrancado? Olhando para o marido e
contemplando seu sorriso maroto, percebeu que não tão misteriosamente
assim
- Um... – começou a contar em tom zombeteiro. – Devo continuar?
Bom Deus! Aquele homem acabaria com ela antes de completar um ano
de casados. Ele era terrível, sedutor e dolorosamente atraente. Não conseguia
ficar zangada com ele. Simplesmente não conseguia.
Semanas atrás ele decretou enfaticamente que os exercícios em seu braço
estavam abolidos daquela casa. No mesmo quarto de hora ela havia
decretado que não falaria com ele até retomá-los. No quarto de hora seguinte
os dois estavam na cama com ela gritando escandalosamente o nome dele.
Certamente, aquele homem não tinha limites, mesmo com um membro a
menos. Até porque - como ele gostava de se gabar – o quinto membro nunca
esteve tão ativo.
Quando Lavínia deu por si eles estavam em uma sala escura, um anexo do
salão de baile que lhes dava uma visão privilegiada dele pela janela. Sem
nenhuma hesitação, Nathan voltou à tarefa de desamarrar o vestido dela, que
estava com a visão voltada para o salão.
Estava pronta para questionar como ele podia apenas com uma mão soltar
os laços com aquela velocidade espantosa. Foi quando ela viu.
- Nathan, veja! – anunciou com entusiasmo se colocando na ponta dos
pés.
- Uhum... – concordou evasivamente beijando o pescoço dela.
- Nathan! – censurou e com uma mão levantou o queixo dele para que
visse o que ela viu.
- Já vi. – afirmou despertando um olhar contrariado da esposa.
Não havia visto absolutamente nada. Sequer estava olhando para o lado
certo do salão.
- Então me diga o que você viu. – desafiou com os olhos semicerrados.
Nathan revirou os olhos com impaciência. Então finalmente visualizou ao
que a esposa se referia. Emily parecia radiante nos braços do mais novo
Visconde Fraill. Radiante mesmo e, se cara de bobo fosse uma indicação de
paixão, aquele homem era certamente vítima de uma completamente
avassaladora.
- Parece que além de inteligente, linda e completamente deliciosa, você
ainda é casamenteira.
Lavínia deu uma gargalhada descontrolada e se virou para ele, levando
seus lábios até os dele para um beijo de tirar o fôlego.
- Você tem um coração que não cabe no peito, amor. – Nathan a aninhou
em seus braços. – É a melhor pessoa que conheço.
Lavínia se deixou levar pelo elogio e pelo abraço. Colocou a cabeça no
peito de Nathan e deixou-se ali para ouvir seu coração. Semanas atrás ela
achava que teria uma terrível satisfação ao ver Emily sofrer por todo mal que
havia causado, mas a maior satisfação foi vê-la superar o estrago que
Petergille havia causado. Como havia sido com ela.
Soltou um suspiro fundo sentindo uma mão de Nathan em sua cintura e a
outra no fim de suas costas. Com a mão direita acariciava seu coro cabeludo
e com a esquerda... Esperem... Com a esquerda? Bom Deus misericordioso!
- Querido, você está me abraçando! – disse com os olhos arregalados de
espanto.
- Estou. – subiu uma sobrancelha não entendendo o espanto dela.
- Você está me abraçando, com os dois braços! – tentou ser mais explícita
e esperou o doce momento em que ele compreenderia.
Sim, ele havia jurado que não dava a mínima para aquele braço. Dizia que
isso não mudava quem era por dentro, mas quando percebeu que poderia
movê-lo deu o maior e mais lindo sorriso que Lavínia já tinha visto. Com
uma gargalhada ele a girou no ar e depois a abraçou novamente.
- Que saudade eu senti de abraçar você. – murmurou contra o cabelo dela.
Lavínia percebeu uma lágrima inconveniente rolar por seu rosto. As mãos
deslizando pelas costas dele.
- Podemos dizer que essa foi a noite dos milagres. – acrescentou com um
sorriso. – Meu braço voltou dos mortos e a baronesa fisgou o melhor homem
de Figior.
Lady Carffort subiu o olhar até encontrar aquele desconcertante azul dos
olhos do marido. Com um sorriso franco nos lábios levou as mãos até o rosto
dele.
- Não. – respondeu enfática. – Esse já é meu.
...
Epílogo
...
...
Agradecimentos
Devo confessar que temi que esse momento chegasse, embora esteja
imensamente grata a todos que me acompanharam até aqui. Ainda que esteja
longe de ser o último livro de minha carreira – Que será bem longa, se Deus
me permitir! – o último livro da série as Collins, me deixa com o coração
apertado.
É uma mistura de sentimento de perda com dever cumprido. Foi um
privilégio escrever sobre essa família incrível para vocês e estou com os
dedinhos cruzados para que meus próximos livros os encantem tanto quanto.
Deixo aqui meu agradecimento a minha família e amigos que me
apoiaram durante todo o processo de escrita e publicação. Vocês foram os
primeiros a dizer que era sim, possível.
Com o risco de parecer muito repetitiva, ao meu marido e parceiro de
jornada por me acompanhar em cada tombo e conquista. Incluindo, por me
acolher com o luto pelo fim dessa série.
Para Tomas, meu gato, que se tornou minha companhia constante
enquanto escrevo meus livros, seja ronronando no meu colo ou querendo
sapatear no teclado. Você foi um anjinho que minha finada gatinha Marie me
enviou para alegrar meus dias e claro, para me tirar da cama para trabalhar
pontualmente as 7hs da manhã, mesmo aos domingos e feriados. Afinal,
você quer garantir o seu sachê – não posso julgá-lo.
Aos meus parceiros e colegas de profissão, obrigada por encherem meus
dias de orgulho.
Aos meus leitores, que me mandam mensagens de surtos, pedidos de
spoiler ou simplesmente para me dar um feedback dos livros, muito obrigada
por tudo!
Talvez eu ainda escreva algo sobre as Collins, mas considero “Eu aceito”
um final digno para uma série que sempre terá um lugar especial em meu
coração. Mas não se enganem, terão que me aturar por muitos anos ainda.
Série “As Collins”
Títulos principais:
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