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Eu aceito

As Collins 6

Jéssica Malvestuto
Copyright © 2021 de Jéssica Malvestuto

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Brasileira do Livro. Este livro ou qualquer parte dele não pode ser
reproduzido ou usado de forma alguma sem autorização expressa, por
escrito, do autor ou editor, exceto pelo uso de citações breves em uma
resenha do livro.

Autora: Jéssica Malvestuto


Diagramação: Jéssica Malvestuto
Arte da capa: Jéssica Malvestuto
Revisão: Laura Assis

ISBN: 978-65-00-34084-6

Primeira edição, 2021


www.jehmalvestuto.com.br
Dedicatória
Para todos os que me acompanharam até aqui e fizeram da jornada
das Collins um presente.

ALERTA DE GATILHO: O breve trecho das págs. 189 e 220 contém


relato de violência sexual, se você é sensível a esses temas sugiro que pule o
trecho ou leia acompanhado de alguém de sua confiança.
Prefácio
Vou abrir o jogo com vocês, não sou médica. Muito embora, tenha
trabalhado por um tempo razoável na área da saúde, não sou nem de perto
uma grande conhecedora de medicina, então usei da licença poética para
escrever uma das cenas desse livro e também de alguns livros que li sobre
medicina no século XIX. Recomendo fortemente, inclusive, se você tiver
estômago forte.
No entanto, esse não é um livro sobre assuntos médicos, nem de longe. É
um livro sobre um jovem que cresceu em uma família cheia de amor (as
vezes até em excesso), mas está com dificuldades de encontrar o seu
verdadeiro amor e até de encontrar a si mesmo. Não o culpem caro leitor,
pois vocês mesmo me perguntaram bastante sobre as irmãs Collins e pouco
sobre Nathan Carffort, o filho temporão da Duquesa e do Duque de
Dachmour.
É um pouco difícil encontrar notoriedade no meio de tantas mulheres
poderosas, mas Nathan Carffort é, sem dúvida, o partido da temporada. Os
homens querem ser como ele e as mulheres o querem em suas camas e vidas.
No entanto, após uma tentativa frustrada de noivado ele não está lá muito
estimulado a se casar, pelo menos não por enquanto.
Além de conhecer a história de um homem que tem ambos sangues
fortes nas veias (Collins e Carfforts), “Eu aceito” é a oportunidade perfeita
para dar uma espiadinha na vida dos nossos casais favoritos depois de alguns
bons anos, ao mesmo tempo que conheceremos uma das protagonistas mais
fortes que já criei. Você não achou que o último irmão Carffort dessa
geração se casaria com uma dama sem graça, achou? Porque Lavínia está
bem longe disso.
Para finalizar esse prefácio, principalmente para meus leitores mais
detalhistas que não leram o conto “Você é meu lar”, um adendo importante é
necessário. Vocês sentirão falta de um personagem que é provavelmente um
dos meus preferidos. Há uma lacuna de quase vinte anos entre o quinto e
este livro, portanto, embora eu adoraria dizer o contrário, um gato não
poderia viver tanto. Mesmo um tão especial como Tomas!
No entanto, fico feliz em dizer que ele partiu de velhice fazendo sua
atividade favorita. Dormindo em frente a janela depois de uma caprichada
escovada de Jenny, banhado pelo sol da manhã como se os anjinhos felinos
viessem buscá-lo. Dito isso, respirem aliviados, porque ele teve uma vida
boa e plena, isso eu posso garantir.
Agora vamos ao objetivo principal... Dar uma boa espiadela na vida da
nossa família preferida de Figior, descrita em detalhes nas próximas
páginas...
Prólogo

Corria contra a própria resistência do corpo, contra a chuva, contra o bom


senso. Já não sentia suas pernas, só o contraste da água gelada com a pele
que ardia. Seus músculos queimavam, mas faltava pouco. Só mais dois
quarteirões e chegaria na Casa do Sr. Solluin. Era uma questão de
sobrevivência.
Fazia no mínimo oito anos que não o via. Desde o enterro do Sr. Harin, o
pai dela. Ainda assim, naquele momento de aflição, ele fora o único que lhe
viera à cabeça e era mesmo compreensível.
Vivera em um ninho de cobras nos últimos anos, quando seu pai fechou os
olhos perdeu o único amor que um dia teve e afundou em frieza. Se tornara
um incômodo e quando tudo fugiu de seu controle e ela tentou se lembrar do
último momento alegre que tivera com outra pessoa que não o pai...
Lembrou-se dele.
O Sr. Solluin vinha visitá-los todo início de mês. Uma menina de sete
anos não guardava detalhes tão precisos, mas sabia que eles discutiam
negócios. O senhor de cerca de quarenta anos era o patrão do Sr. Harin, rico
como Midas e ainda assim encontrava tempo para ser gentil com uma
garotinha que o recebia sempre com o mesmo vestido azul com bolinhas
brancas. Depois que descobrira que o empregado tinha uma filha, lhe trazia
guloseimas, chocolates e um dia quase fez seu coração parar com a boneca
mais linda que já tinha visto.
Para ser franca, os presentes foram o mínimo. O que a fizera correr para
ele com profunda esperança foram os minutos preciosos de seu tempo que
dedicava conversando de coisas tolas, como livro infantis, e vendo seus
desenhos ou rabiscos. Sim, ele iria ajudá-la e rezava a Deus para que sim
porque não se lembrava de ninguém mais.
Com lágrimas escorrendo pelos olhos, Lavínia espancou a porta da frente
da mansão com desespero. A roupa e os cabelos encharcados, os sapatos
escorregando de seus pés pelas meias molhadas, a dor no corpo e no
coração. A vergonha, raiva e o medo de ser pega antes de entrar. Não podia
voltar àquela casa. A nenhuma das duas.
- Por favor, por favor, por favor... – clamava baixinho não parando de
esmurrar a porta. O corpo parado, agora tremendo de frio.
Um mordomo mal humorado abriu e franziu o cenho para a figura
repulsiva do que parecia ser uma moça abandonada. Com seus quinze anos
era alta e magra, com um rosto apavorado e o corpo encharcado
com sinais recentes da juventude, com os seios vergonhosamente aparentes e
mamilos destacados pelo frio, que ocultou com os braços, com o rosto
corado. Ela era sem dúvida a pior visita que deve ter batido ali em anos.
- Não abrigamos crianças abandonadas. – disse seco, pronto para fechar a
porta.
Lavínia deixou de se cobrir e segurou a estrutura de madeira com urgência
no rosto.
- Senhor, preciso falar com o Sr. Solluin. – ele não parecia nem
meramente inclinado a deixá-la entrar. - É urgente!
O senhor franziu mais o cenho para ser ainda mais ameaçador em suas
palavras.
- Meu patrão é um homem ocupado, ele não tem tempo para brincadeiras.
– bronqueou com irritação. – Como eu já disse mocinha nós não...
- Quem está aí Gerald? – veio uma voz grave, quase imperial, do centro da
sala.
Um alívio percorreu o corpo e a alma dela ao vê-lo e reconhecê-lo sobre o
ombro do criado que fazia uma mesura perfeitamente ensaiada. Mais velho,
mas com certeza era ele e apesar dos anos de distância, também pareceu
reconhecê-la.
O senhor elegante caminhou até a porta e a analisou com curiosidade e
preocupação. Então sacudiu a cabeça parecendo tomado por uma dose de
lucidez.
- Por Deus! Entre. – convidou e fechou a porta em seguida.
Os olhos de Lavínia ficaram marejados ao vê-lo. Os cabelos grisalhos
cortados curtos, as camisas brancas impecáveis sob o casaco escuro, os olhos
azuis e ternos que a avaliavam, o cheiro de sabonete. Conforto. Há muito
tempo ela não sentia aquilo. Tinha a sensação de que estava segura e era
estranho senti-la com um homem que não via há oito anos.
- O senhor se lembra de mim? – questionou com a voz um tanto mirrada.
Ele avaliou a jovem mal vestida, o corpo ainda em formação, os cabelos
ruivos molhados... Não devia ter nada de familiar nela para ele, mas ainda
assim os olhos... Aqueles olhos azuis eram muito familiares.
- Não consigo me lembrar de onde a conheço. – disse rapidamente. – Eu
sinto muito. Ainda assim se quiser tomar um banho quente e...
O burguês estava pronto para ignorá-la e seguir com sua vida onde ganhar
dinheiro era o mais importante. Mesmo assim havia tido alguns minutos para
ela. Como sempre.
- Sou a filha de George Harin.
O nome chamou a atenção dele de imediato. Com olhos atentos se voltou
para ela e a segurou pelos ombros.
- Por Deus! – exclamou a avaliando com ainda mais preocupação. –
Lavínia! Como está crescida! Deus! Como pode estar nessas condições...
Fez uma pausa suspirando fundo quando percebeu que ela chorava. Não
tinha motivos para que lhe desse um lenço. Um nobre o daria, mas burgueses
eram criaturas práticas e não havia porque dar um lenço a uma mulher
completamente encharcada.
- Um banho quente e roupas limpas. – ordenou ao criado. – As melhores
que encontrar.
- Sim senhor. – este assentiu rapidamente.
A jovem estremeceu de frio e logo este se abrandou pelo calor do casaco
dele jogado em seus ombros.
- Quem está cuidando de você?
A pergunta fez um nó surgir em sua garganta. Ninguém estava cuidando
dela. Não de verdade.
- Onde está seu tio?
Ficara sabendo dias depois da morte do empregado que a filha iria para
seu irmão mais novo. Que este seria o responsável por sua tutela.
Nisso bateram na porta, como se com a pergunta Sr. Solluin o tivesse
invocado direto do inferno.
- Não. – ela disse em desespero.
O dono da casa espalmou a mão detendo o criado pronto para atender a
porta. Olhando para a estrutura de madeira completamente sério como se
mesmo ela fosse uma ameaça.
Sentindo o desespero a tomar por completo Lavínia se ajoelhou e segurou
nas calças de seu salvador. Os olhos vertendo lágrimas. O vestido úmido
arruinando o tapete caro.
- Por favor. – pediu baixinho, cada batida na porta a fazendo estremecer. –
Não me faça voltar com ele. Eu faço qualquer coisa. Qualquer coisa.
Ele se orgulhava de ser um homem descomplicado, desprovidos de
preocupações fora dos negócios e o que era Lavínia Harin, se não uma
complicação de proporções épicas? Pobre criança. Como ele podia ignorá-la
mesmo que quisesse?
- Se esconda. – disse também em tom baixo.
A jovem em uma fração de segundos desapareceu em meio a casa e com
toda calma do mundo ele mesmo abriu a porta. A concepção da
tranquilidade.
- Pois não?
- Minha sobrinha está aqui? – questionou um homem corpulento,
baixinho, careca e muito mal educado.
- Eu deveria saber quem é o senhor? – questionou com o rosto entediado
que usava com a nobreza.
Este soltou um som de ultraje como se fosse irmão da própria rainha,
quando não era absolutamente nada. Não valia o que comia no café da
manhã ou os copos de gim barato que bebia.
- Eu sei que aquela vadiazinha está com o senhor e não vou embora sem
ela. – disse determinado. – Ela tem negócios a resolver. É empregada na casa
do barão para pagar suas despesas.
- As dela ou as suas, senhor? – questionou com semblante intimidante.
- Devolva a maldita garota agora. – a raiva nítida por si só respondia à
pergunta.
- Sequer sei de que garota está falando. – mentiu e era algo que odiava
fazer, mas também odiava discutir com gente maluca e lá estava ele.
- Se a quer como prostituta então façamos um acordo, senhor. – deu um
sorriso sacana. – Metade do valor é meu.
Bastava! Mais um segundo e ele iria matá-lo. Como poderia sugerir que
ele... Como pode sugerir... Maldição!
- Saia da minha casa. – ordenou ignorando que este sequer estava dentro e
sim se molhando na chuva torrencial.
O Sr. Harin franziu o cenho.
- Eu voltarei com a polícia amanhã de manhã.
Foram as últimas palavras antes dele bater à porta sem esperar que o
visitante se afastasse. A jovem correu para ele, o afogando em um abraço
que apertou seu coração de forma espantosa. Estava encrencado.
- Obrigada Sr. Solluin. – disse, os olhos brilhantes fixos nele. – Oh! Muito
obrigada!
- Não me agradeça ainda, criança. – disse em tom afetuoso, embora
estivesse irritado. – Só há um modo de eu não ser obrigado a devolvê-la a
seu tio.
- Qualquer coisa. – prometeu ela com sinceridade.
- Vou ter que me casar com você.

...
Capítulo 1
A burguesa de coração de gelo
“Querida mamãe,

Sabe que não há nada que eu deteste mais que decepcioná-la, a não ser, é
claro, mentir para a senhora. Portanto, serei sincero ainda que me doa e
suponho que deva lhe pedir desculpas antecipadamente. Perdoe-me, mas
não existe a mais remota e mínima possibilidade de eu comparecer a este
casamento amanhã. A menos que aconteça um milagre.
Seu filho mais adorado, bonito e sem título,
Nathan Carffort.”

Bilhete do filho temporão do Duque e da Duquesa de Dachmour, enviada


à Lady Dachmour, no momento em sua casa da capital.

...

Milagre, milagre mesmo era receber a visita de um homem morto. Se não


milagre, algo tão surpreendente quanto. Por um momento, Nathan achou que
a dose de gim que tinha tomado o deixara ébrio. O que era obviamente
ridículo. Afinal, ele precisaria de ao menos cinco daquelas para imaginar que
recebia um cartão que pertencia a um defunto. Incrédulo, voltou a examinar
o que tinha nas mãos.

Tristan Solluin
...
Companhia Naval Solluin
Rua Blacking, 793

- Está dizendo que um defunto está aqui para me ver? – questionou


erguendo uma sobrancelha para o criado.
Já era ruim o bastante ser interrompido em seu escritório, ainda que não
estivesse fazendo absolutamente nada além de lutar contra a vontade de se
render a melancolia. Ser interrompido por algo que era inegavelmente uma
piada era muito pior.
- Não o defunto, Milorde. – Valério parecia igualmente intrigado apesar
disso. - A viúva dele está aqui.
Por um momento não teve reação. Ficou parado olhando para o homem
que devia ter pouco mais que um metro e sessenta. Apesar do tamanho e da
aparência cansada era sem dúvida um bom criado que mantinha a casa de
solteiro dele em ordem. Ou ao menos, o quanto era possível. Homens
solteiros não eram famosos por serem criaturas organizadas.
- Devo deixá-la entrar? – questionou quando notou que um incentivo era
necessário. Muito necessário.
Assentiu finalmente voltando à realidade. Realidade esta na qual ele
recebia a visita da mulher conhecida publicamente como “a burguesa do
coração de gelo”. Havia ouvido rumores, obviamente, mas deixara de
confiar em fofocas há muito tempo.
O que a nobreza dizia era que a agora viúva havia seduzido o patrão do
pai. Que fora ambiciosa desde muito nova e se casara com um homem velho,
vulnerável e escandalosamente rico. Enganara o pobre velho com sua
juventude.
E Deus! Que juventude!
Apesar de ter ouvido muito a respeito, nunca a vira de fato. No momento
em que entrou no escritório, entendeu de imediato o porquê o Sr. Solluin
caíra nos encantos dela.
Usava lilás claro, uma cor ainda do meio luto que destacava seu rosto bem
desenhado, os cabelos ruivos presos de um coque simples e os olhos azuis
como um céu aberto. O nariz era delicado e os lábios nem carnudos nem
finos, o perfeito equilíbrio. Aquela mulher com corpo de deusa cheirava a
perigo, prometia pecado e luxúria. Foi feita para corromper qualquer
homem, para arrastá-los à perdição.
Vindo de uma família de mulheres belas – incluindo sua mãe – era um
homem exigente que não se via atraído facilmente. Desde Emily não havia
prestado tanta atenção a uma mulher. Nenhuma havia prendido seu volúvel
interesse por tanto tempo, a não ser as que não estavam vestidas.
- Milorde. – acenou com a cabeça de maneira graciosa e formal, mas não
fez a mesura esperada. - Lavínia Solluin ao seu dispor.
Estendeu a mão e este estava pronto para beijá-la, quando ela a apertou e
sacudiu sutilmente em um cumprimento bastante masculino. Era de se
esperar que uma burguesa não conhecesse os costumes. Não sabia porque
estava surpreso.
- O que a traz aqui, Sra. Solluin? – questionou se sentando novamente e
indicando a cadeira à frente para ela.
Lavínia, como havia se apresentado, tinha a postura de uma imperatriz
cheia de poder e possuidora de um exército. Conquistaria o mundo se
quisesse e parecia determinada. Ereta e ameaçadora, se sentou observando-o.
- Lavínia. – corrigiu induzindo uma informalidade. - Eu esperava
encontrá-lo em casa.
- Esperava? – questionou com o cenho franzido em confusão.
Assentiu com um sorriso doce que não o convenceu de sua inocência.
Aquela mulher era perigosa. Muito perigosa, mesmo aparentando ou não.
- Os homens de sua espécie, se em sua situação, passariam a noite em uma
mesa de jogos, bebendo até cair ou em um bordel rodeado de prostitutas. –
começou a justificar. - Mas como eu já presumia, o senhor é um homem
mais inteligente que a maioria.
- Estou lisonjeado. – ironizou com um sorriso preguiçoso.
- Mas não inteligente o bastante para ir ao casamento de Lady Carnuil.
Emily. Ela tinha que mencionar Emily. A jovem dama que o havia
encantado, ganhado seu coração e então pisado nele com vontade.
Destruindo sua esperança, reputação e sobretudo seu orgulho. Depois de um
ano de noivado.
“Não quero magoá-lo, querido, mas se tenho que passar a vida ao lado
de um homem, quero fazê-lo com algum que possa cuidar de mim e não com
um que mal saiu da casa dos pais. Sei o quanto ama sua família, mas não
pode deixar de evoluir por conta deles. Já está na hora disso acabar. Não há
futuro para nós, mas eu lhe desejo toda felicidade do mundo.” A doce dama
havia dito com voz carinhosa como se não estivesse partindo seu coração.
O barão de Petergille era aquele homem, por isso os dois iriam se casar no
dia posterior e ele... Ele era um desgraçado que estava ouvindo exatamente
isso de uma completa estranha.
- Deve saber muito mais sobre mim do que estou disposto a suportar. –
disse sério e um tanto mal humorado.
Podia mandá-la embora. Havia o irritado o bastante para isso. Uma olhada
na bebida e no livro de letras miúdas e desistiu de expulsar a visita
indesejável. Sua noite prometia ser um tédio e ainda que de forma irritante
aquela criatura bela como Afrodite o estava divertindo. Ainda que não da
maneira que ele gostaria, porque envolveria menos roupa com toda certeza.
- Sei tudo sobre o senhor. – afirmou com presunção. - Ao menos, o
essencial.
- É mesmo? – instigou, encostando na poltrona e dedilhando sobre a mesa.
Uma postura relaxada de quem não se sentia nem um pouco ameaçado.
- É evidente. – deu um sorriso bastante sedutor o encarando. - Sei que
apesar de ser o sexto filho tem uma mesada de dar inveja a qualquer
baronete. Que, apesar disso, não é preguiçoso e faz investimentos mensais.
Nathan ergueu uma sobrancelha e inclinou o corpo na direção dela. Como
diabos sabia daquilo? Ninguém deveria saber daquilo.
- Levando em conta que tem empregado 80% do que ganha, presumo que
seus investimentos já tem dado lucros. – continuou concentrada em seu
raciocínio que mal percebeu o espanto dele.
Maldição!
- Como sabe de tudo isso? – questionou apesar de não ter certeza se queria
saber a verdade. Para ser franco tinha medo de descobrir.
Lavínia deu um sorriso maroto de quem era dona de todo conhecimento
do mundo. O sorriso de quem estava no controle e acostumada a estar.
- Sei também dos valores. – acrescentou perspicaz. - Devo dizê-los?
- Não. – passou a mão pelo queixo um tanto nervoso. - Isso me deixaria
ainda mais assustado.
- Tenho muitos contatos, Milorde. – esticou a mão e brincou com um lápis
jogado sobre a mesa. A mão pálida e delicada que prendeu a atenção dele de
forma ridícula. - Sou uma mulher peculiar.
- Eu achava que era uma mulher peculiar quando entrou aqui. – tirou os
olhos de sua mão e fixou nos olhos azuis. Nos astutos olhos azuis. - Agora
estou achando que é o demônio em pessoa para me atormentar.
Ela riu. Não um risinho afetado e discreto, mas uma gargalhada
espontânea que chamaria a atenção de todos os homens em um salão de baile
e deixariam suas calças apertadas. As dele estavam próximas disso. Maldita
fosse!
- Pode ser, mas tenho uma proposta para o senhor, que não será capaz de
recusar. – voltou a girar o lápis com habilidade pelos dedos.
Por um momento imaginou a Sra. Solluin sentada atrás de uma
escrivaninha cuidando da contabilidade de seus negócios. Ou simplesmente,
cuidando dos negócios dele. Imaginou o momento em que levava o lápis aos
lábios sedutores enquanto meditava em alguma questão difícil. Aqueles
lábios...
Estava enlouquecendo. Aquilo tinha a ver com Emily. Havia bebido, sua
ex-noiva iria se casar e estava melancólico. Não tinha nada a ver com a
mulher diante dele. Ela só estava no lugar errado, na hora errada.
- Uma vida de paz longe da senhora? – provocou voltando a questão dela.
- Não. – deixou o lápis repousar na mesa e voltou toda a atenção para ele.
Como se fosse o homem mais interessante do universo. Quase acreditou
nisso. - Casamento.
- Bom Deus! – exclamou com o cenho franzido. - Só pode estar louca.
- Estou completamente lúcida. – encostou na cadeira que ocupava de
maneira relaxada. Certa de que sairia de lá com um anel de noivado.
- Então deve estar bêbada. – disse com certo humor. Aquilo era risível. -
Sugiro que volte para casa, tome um banho quente e vá para cama como uma
boa menina.
- Eu não estou acostumada a receber ordens. – advertiu se inclinando na
direção dele. - Nem a não ter o que eu quero e no momento, eu quero o
senhor.
Havia algo de extremamente sedutor nos lábios dela quando formavam as
palavras. “Eu quero o senhor.” Não era a primeira vez que ouvira aquilo,
mas havia sido a primeira dita com tanta determinação.
- Só pode estar louca. – reforçou negando. Afastando a ideia da própria
cabeça. Como se ela o tivesse contaminado com suas convicções malucas.
- Está ficando repetitivo, Milorde. – pontuou levemente entediada. –
Esperava mais do senhor.
- O que exatamente esperava, Sra. Solluin? – se levantou um tanto sério.
Deus! Ela estava mexendo com ele de uma forma nada agradável.
- Lavínia. – corrigiu novamente também se levantando. A postura perfeita.
- Eu esperava que me ouvisse antes de chegar a uma conclusão.
- Que Deus me ajude! – exclamou passando as mãos pelo cabelo castanho
claro igual ao do pai. - Fale.
Os dois pares de olhos azuis estavam fixos um no outro de forma intensa.
Era como se nada nem ninguém pudesse impedir aquele contato, aquela
interação entre dois estranhos que sentiam um magnetismo assustador e
marcante.
- O senhor precisa de uma mulher. – se Lavínia tivesse quinze anos teria
batido o pé.
- Eu pareço o tipo de homem que precisa?
Caminhou até ela com as sobrancelhas erguidas. Parte dele queria
intimidá-la, mas não aconteceu. Era como se fosse imune a ele. Como se
tivesse o coração de gelo, de fato.
- Não essas mulheres. – corrigiu dando um passo em sua direção. - Tenho
certeza que prostitutas caem no seu colo.
Havia algo extremamente ousado na forma com que disse “prostitutas”.
Como se almoçasse e jantasse todos os dias com tais mulheres.
- Estou dizendo que precisa de uma mulher para provar à sua ex-noiva que
ela perdeu o homem mais interessante do reino.
Nathan estreitou os olhos e então engoliu em seco.
- Me acha o homem mais interessante do reino?
- Eu o farei o homem mais interessante do reino. – teve o prazer de
corrigir, com uma prepotência que o irritou.
- Sua humildade não tem limites. – transbordou sarcasmo se perguntando
porque ainda não a havia mandado embora.
- Confiança é tudo, Milorde. – acenou com a cabeça como que para
enfatizar. - Sobretudo para nós, reles mortais, que temos que correr atrás do
pão que comemos desde que nascemos.
- Isso deveria ser uma provocação? – deu um sorriso, surpreso por ainda
estar se divertindo.
- Deve admitir que sua espécie é um tanto preguiçosa, Milorde.
Como se eles não fossem da mesma maldita espécie!
- Com algumas exceções. – achou por bem pontuar, afinal alguns se
salvavam.
- Em poucos minutos já me tirou do sério.
Queria esticar as mãos, puxá-la para si e beijá-la até calar a boca, mas
aquilo seria impróprio. Impróprio demais considerando que mal se
conheciam e Lavínia Solluin era uma senhora distinta e não uma mulher
vulgar. Ainda que parecesse, pelo modo ousado que se portava.
- Já estou me sentindo casado. – observou com um sorriso.
- Ótimo, então temos um acordo. – anuiu com muita confiança.
- Ainda não sei o que a senhora ganha com isso.
- Não acreditaria se eu dissesse que é pelo seu charme?
Flertou com ele descaradamente e como um homem tolo se deixou levar.
Queria aquela mulher e queria mandar o resto às favas. Tinham razão. Era
uma mulher perigosa.
- Vindo de uma mulher que sabe cada moeda que tenho no banco... Não.
Eu nunca acreditaria.
Aquilo soaria agressivo para qualquer mulher, mas não para ela. Estava
acostumada a ser tomada como interesseira, mas se orgulhava de ser
ambiciosa. Se Lavínia queria algo, ela tinha. No momento, ela queria aquele
homem e agora estando frente a frente com ele, sentindo seu perfume
masculino misturado com o cheiro de gim, os cabelos castanhos caindo em
sua testa e os olhos azuis sedutores, o queria também por outros motivos.
Aprendera com o falecido marido que não devia sentir vergonha dos
próprios desejos, Solluin nunca a havia censurado por nada e lá estava ela
diante do rosto masculino, do queixo quadrado, do nariz imponente e dos
lábios grossos... Querendo desesperadamente levantar as saias por mais
pecaminoso que parecesse. Só que sua ambição e determinação eram
maiores que qualquer desejo que já sentira.
- Não quero seu dinheiro, Milorde. – até porque já tinha mais do que
poderia gastar em uma vida. - Só quero manter o meu. Preciso de sua
influência e nome para continuar os negócios de meu falecido marido.
Lorde Carffort arregalou os olhos.
- Quer entregar a companhia de seu falecido marido nas minhas mãos? –
aquilo com certeza o surpreendia.
- Não. – respondeu taxativamente. - A companhia será nossa, mas preciso
de um rosto masculino para lidar com os negócios. Mas pode ter certeza de
que eu vou continuar comandando o império que Solluin me deixou.
- Não ousaria duvidar disso. – ninguém duvidaria. - A senhora parece ter
pensado em tudo...
- Sempre penso. – disse sem perceber que ele não havia terminado.
- Exceto que está me propondo um casamento de conveniência quando
seres da minha espécie preguiçosa... – ironizou para provocá-la. – Tem um
dever a cumprir do qual não podem fugir. – a expressão de dúvida no rosto
dela o divertiu. - Procriar.
- Em momento algum eu disse que não dormiríamos juntos.
Ela esperava que não notasse sua tensão. Realmente esperava que não
notasse que o que disse evocou imagens nada puritanas na cabeça dela. Junto
com uma ansiedade fervilhando na boca de seu estômago.
- Suponho que não seja um problema para a senhora. – continuou com um
sorriso.
Era muito sutil. Uma inclinação mais definida do pescoço, um movimento
maior com os ombros devido a respiração, a garganta oscilando quando ela
engoliu em seco... Detalhes que o fizeram notar que o assunto mexia com
ela.
- Não. – deu de ombros de forma pouco elegante. - Milorde tem uma
aparência bastante razoável.
- Razoável?! – levantou a voz sentindo sua masculinidade ferida pelo que
ela disse.
- Eu disse bastante. – enfatizou agora também se divertindo com a reação
dele.
- Suponho que minha lucidez não sobreviveria a um casamento destes. –
comentou rindo. Aquilo, aquilo tudo só podia ser uma piada.
- Case com uma duquesa, Milorde, e terá uma esposa entediada. –
desafiou erguendo a cabeça. - Case comigo e terá uma mulher inteligente
que o colocará no topo do mundo diante de seus amigos, sua família e sua
amada.
- Eu não a amo. – o assunto o deixou com mal humor. Fechou o rosto e
desviou o olhar. – Não mais.
Ela o estava perdendo e não podia. Não podia perdê-lo. Sem pensar muito
ela tocou em seus poderosos ombros e ganhou sua atenção novamente.
- Sou uma mulher independente que só estaria com um homem realmente
interessante, todos ficarão cientes disso no baile de amanhã.
Ela era determinada e teimosa. Mesmo sua irmã do meio, que era famosa
por tirar qualquer criatura do sério, nunca o deixara tão consternado.
Conseguira superar Meredith Kurt, tal fato não era para qualquer uma.
- Lavínia Solluin, você é uma criatura irritante. – pontuou a fuzilando com
o olhar.
- Negócio fechado? – indagou sem levar em consideração a ofensa.
Negou com a cabeça.
- Eu vou levá-la até a porta, Sra. Solluin e esquecer que algum dia tivemos
essa conversa.
- Eu já conheço o caminho.
Lavínia não pensou muito a respeito. Quando tinha um objetivo só o
enxergava e mais nada além disso. Antes que desse por si estava com os
braços ao redor do pescoço do lorde e seus lábios estavam nos dele.
Não era o beijo de uma mulher comum, era furioso, febril e determinado.
Seduzia, reivindicava e o deixava louco com movimentos ousados. Sua
língua invadia a boca dele, seus dentes roubavam seus lábios e depois os
soltavam. Sua boca doce o estimulava a corresponder e não resistiu.
Nathan Carffort estava longe de ser um puritano. Mesmo quando
apaixonado por Emily não havia deixado de desejar outras mulheres e
desejava aquela. Quando sugou a língua de Lavínia e a ouviu soltar um
gemido, não resistiu a vontade de descer as mãos até seus quadris e puxá-la
para ele. Em um instante suas calças eram o mais grosso ferro, o desejo o
consumia e... E aquilo não passava de uma estratégia para levá-lo para o
altar. Era o negócio dela e estava caindo em seu jogo como um cachorrinho
obediente. Tinha que parar.
- Sua reputação não vai sobreviver a isto, madame. – disse após se
afastarem ofegantes.
- Não vivo de reputação, Milorde. – seus lábios tocaram os dele
novamente de forma rápida. Como se já fossem dela. – Já tem meu endereço,
estarei esperando sua resposta.
Sra. Solluin se desvencilhou dos braços dele e foi até a porta com a
mesma postura de Imperatriz com que entrou.
- A senhora morrerá esperando. – respondeu com certa irritação por ter
perdido o toque dela.
Lavínia sorriu.
- É o que veremos.

...

“Chá na mansão ducal dos Dachmour amanhã as quinze horas. Não se


atrase.
Lorde Nathan Carffort.”

Mensagem enviada à casa dos Solluin ainda naquela noite. Alcançando


seu destino quase que ao mesmo tempo em que a dona da casa, que sorriu
vitoriosa ao ler.
Capítulo 2
Moscas no chá

“Depois de um término de noivado traumático e conturbado, não


esperávamos tão ilustre convidado no casamento de Lady Carnuil ou a mais
nova Baronesa de Petergille. No entanto, já é bastante claro que os
Carfforts não obedecem ao senso comum e não são homens de fugir do que
os amedronta. Há até aqueles que dizem que aquela família desconhece o
significado da palavra medo. Verdade ou não, Lorde Nathan Carffort viu a
noiva pronunciar os votos e sair casada com um semblante nada abalado e
ligeiramente entediado. Uma pena, já que ouvimos que havia uma multidão
de solteiras prontas para consolá-lo. Nem sempre as coisas saem como
planejado.”

Notícias de Figior, escritas logo após a cerimônia matutina do casamento


de Lorde e Lady Petergille, para serem publicadas e chegar as portas da
nobreza na manhã seguinte.

...

- Da próxima vez experimente pensar com o que tem dentro da cabeça e


não com o que tem dentro das calças.
Aquilo era seu irmão mais velho, Allan, lhe passando um sermão. Com a
típica postura que envolvia braços cruzados, os quadris escorados na beira da
sacada e o semblante presunçoso. Os traços exatamente iguais os do pai, os
cabelos castanhos claros, os olhos castanhos que sorriam com mais
frequência que o homem em si e o nariz pronunciado da família que Nathan
não havia herdado.
Não havia mudado absolutamente nada, Allan Carffort ainda se achava o
centro do universo e o responsável pela educação e futuro do irmão,
ignorando que ele já era bem grandinho para cuidar de si.
- Você teria feito a mesma coisa. – argumentou e deu uma tragada no
charuto.
Quanto tempo fazia desde que fumara um charuto? A última vez que se
lembrava fora no dia que Emily o deixara com as palavras doces e suaves.
Às favas com isso. Depois de ver sua ex-noiva se casar e ouvir seu irmão
enquanto esperava para o chá uma mulher que queria levá-lo para o altar, se
sentia no direito de nadar nu, que dirá fumar um mísero charuto. Pior que
isso, só o fato que ele convidara tal mulher para o chá, voluntariamente.
- É uma coisa estranha de se dizer já que sou casado com a sua irmã. –
retrucou, o avaliando como se tentasse julgar sua alma. Ler seus
pensamentos.
Então ajeitou o cabelo na testa e Nathan ergueu uma sobrancelha. Aquele
era o tipo de coisa estúpida que fazia as mulheres caírem por ele. Sabia
porque ouvia mais sobre os encantos do irmão do que gostaria. Se não fosse
tão apaixonado pela esposa teria uma mulher diferente na cama por noite e
claro, pouco tempo de vida, já que Nathan o mataria pessoalmente se só
pensasse em trair Jenny.
- É duplamente estranho considerando que também é meu irmão.
Lorde Carffort sorriu, aquilo o fez parecer mais jovem do que os quarenta
anos que tinha.
Não, não eram uma família incestuosa, ainda que as más línguas já
tivessem sugerido o oposto. O fato era que Allan era seu irmão por parte de
pai e Jennifer sua irmã por parte de mãe e, como se a vida não fosse
complicada o bastante, se casaram. E agora ele estava lá, se intrometendo no
que não era chamado e acendendo o próprio charuto.
- Você sabe o que vem agora.
Fez uma pausa dramática como adorava, como se quisesse que quem o
ouvia perguntasse desesperadamente o que era. Só que Nathan também era
um Carffort e, como todo Carffort, era orgulhoso demais para demostrar
ansiedade, ainda que a tivesse.
- Reze para mamãe não gostar dela ou fará o possível e o impossível para
vê-los casados. – pontuou perspicaz.
O pior, o pior de tudo era que não tinha a menor dúvida de que a duquesa
aprovaria Lavínia. Não importava quanto as pessoas tentavam odiá-la,
parecia ter mel naquela mulher. Algo que atraía a atenção de tudo e todos,
mudava o eixo de rotação da terra e... Maldição! Allan tinha razão. Estava
pensando com o que tinha dentro das calças.
- Meri tem toda razão. – fez referência a uma das irmãs. – Você é irritante.
De todas as irmãs que tinham, da mais velha para a mais nova: Isabelle,
Cassandra, Meredith e Jennifer, a terceira era a que mais tinha problemas de
convivência com o herdeiro do ducado. Isso era porque os dois eram
irritantemente geniosos e teimosos. Obviamente, isso fora atenuado após o
casamento de ambos, porque Jenny controlava Allan e o Conde de West
tentava controlar a esposa. Tentava, que ficasse claro, porque em alguns
momentos – nada raros - nem um exército angelical controlaria Meri.
- Piada é Meredith achar alguém irritante. – o mais velho ponderou.
Certo outra vez. Nathan franziu o cenho.
- Papai vai apoiar mamãe como um bom marido e então em menos de um
mês você se verá casado com uma burguesa viúva.
- Está profetizando ou agourando? – não que fizesse diferença.
- Maldição, Nathan! – praguejou irritado subitamente. – Eu sei que está
magoado por causa de Emily, mas daí a se casar com uma burguesa...
Aquilo foi o suficiente para irritá-lo a ponto de cerrar um dos punhos. Será
que ninguém se cansava daquele assunto? Mas que inferno! Teve que
interrompê-lo ou iria socá-lo.
- Primeiro, eu não ligo se Emily decidir virar cortesã, casar ou dormir com
centenas de homens só por diversão. Ela não é mais problema meu. – falou
pausadamente, cada palavra irritada e dura. – Segundo, você entre todos os
homens deveria ser o último a questionar a origem de uma mulher como
qualificação para o altar.
A boca de Allan virou uma linha fina de tensão. Não, não poderia de fato.
Jennifer, sua amada esposa, tinha tanto sangue nobre quanto ele tinha sangue
plebeu, ou seja, nenhum. Ela, suas irmãs e amada mãe. Não tinha moral para
questionar aquilo, mas ainda assim não parecia certo.
- É diferente. – contra-argumentou com menos firmeza que antes. – Sabe
o que dizem sobre ela.
- Mandei os fofoqueiros para o inferno tão logo soube o que eles diziam
de mamãe. – percebeu que a resposta havia desarmado o irmão. –
Surpreende-me que não tenha feito o mesmo.
O que diziam da Duquesa anos atrás era que fora amante do Duque
quando ambos eram casados. Que ela havia separado a falecida duquesa do
marido ainda em vida e tido filhos bastardos com ele, sobretudo Cassandra, a
única de cabelos castanhos claros destoando das mulheres loiras de olhos
azuis da família. Tudo isso enquanto Helena Collins – como chamava – tinha
um relacionamento agradável com o marido e o Duque... Bom, ele tentava
ter um relacionamento suportável com a esposa, que não era nenhuma santa.
- É com ela que me preocupo. – o mais velho disse olhando pelas portas
com vidros para a figura bela sentada na poltrona, lendo. – Sabe porque ela
veio para casa. Teria ficado na festa da igreja ao fim do baile desta noite,
mas voltou por você. Porque sabia que precisava de um tempo.
Nathan sentiu o coração se apertar de culpa. Quando Lady Dachmour lhe
disse que estava velha demais para um dia inteiro de festa, acreditou nela.
Agora, no entanto, parecia disposta demais e até inquieta. Por culpa dele.
- Não dê à mamãe mais motivos para se preocupar, Nathan. – pediu o
irmão. – Diga que o bilhete foi uma brincadeira e despache essa mulher.
Quando o ouviu, a culpa virou fúria. Encarou o futuro Duque como se
fosse o próprio rei e franziu o cenho.
- Você se casou com a mulher que quis irmão. – disse com seriedade. –
Perdoe-me por querer fazer o mesmo. – completou com um humor seco.
Antes que Allan retrucasse – e tinha certeza que iria – o abençoado
mordomo anunciou que a visita esperada havia chegado. Não tinha a menor
ideia do porquê defendera Lavínia com tanto afinco, provavelmente ele não
deveria. Entretanto, ela parecia ser a mais determinada criatura e não
merecia a fachada de interesseira fútil que recebia. Não pôde permitir.
- Elas estão esperando na sala principal senhor. – explicou o criado.
- Elas? – Nathan indagou quando bem próximo de seu destino.
- Sim senhor. – afirmou.
Se este achava que “elas” englobavam Lavínia e a própria duquesa estava
enganado. Sim, as duas estavam lá, mas acompanhadas de uma miniatura de
Lavínia que o olhava com os encantadores e brilhantes olhos azuis e o
deixara hipnotizado.
Tratava-se de uma menina de cerca de sete anos, com os cabelos pouco
presos deixando as ondas ruivas caírem pelos ombros, os olhos azuis vivos e
meigos e o rosto redondo e corado de boneca. Portava-se com perfeição
dentro de um vestido violeta caro e bem cortado. E tudo o que Nathan queria
saber era quem era aquela criatura.
- Milordes. – Lavínia fez uma mesura perfeita. – Posso lhes apresentar
minha filha?
E foi isso. Meras palavras e a sensação de que a mansão Dachmour fora
reduzida a cinzas com a revelação.

...
O consolo – talvez o único consolo – era que não era o único homem
estúpido naquela sala. Allan também ficou fascinado pela menina. Era
bastante evidente que a pequena tinha o mesmo melado da mãe. Esse era o
menor dos problemas. Por outro lado, ela tinha uma filha. Maldição! Ela
tinha uma filha e naquela sedução toda de “Vamos nos casar” não
mencionara a criança nem uma vez. Será que ela tinha noção do quanto
aquilo era importante?
- Peço perdão por não recebê-las mais adequadamente. – disse a duquesa
com o típico semblante afável. – Meu filho me avisou que tínhamos visitas
na última hora.
Helena Carffort olhou para o filho com um toque de censura que o fez
sorrir. Era impressionante como sua mãe havia envelhecido bem. Sim,
haviam rugas de expressão, boa parte delas derivadas de muitos sorrisos – o
que era maravilhoso – e ela já pintava os cabelos loiros para ocultar os fios
brancos. E obviamente, o Duque ainda ficava de joelhos por ela.
Aquilo fora sua perdição. Seu pai e irmãos ficavam de joelhos pelas
esposas, os gêmeos Harry e Henry ficavam de quatro por Isabelle e
Cassandra, respectivamente, e Kurt comia na mão de Meredith. Para ele
aquilo era tão certo, aquele amor desenfreado e cuidadoso, que só esperava o
mesmo para ele. Ele teria comido na mão de Emily com prazer e fora aquele
pensamento que o levara a ruína.
Agora estava ele ali, sentado na sala de chá de sua mãe, diante da mulher
mais irritante que havia conhecido e da filha dela, que até então não sabia
que existia. Aquela mulher queria casar com ele, pelos motivos errados, mas
ele havia tentado casar pelos motivos certos e tudo havia rolado ladeira
abaixo. Casar por amor seria a última coisa que Nathan almejaria na vida. A
última coisa.
- Acredite, mamãe, a senhora não é a única que está surpresa.
Lavínia deixou um sorriso – daqueles devastadores – escapar de seus
lábios. Estava falando da filha dela com toda certeza. Sabia que não havia
lhe dito que tinha uma filha, mas isso não era errado, afinal ele não havia,
em momento algum, perguntado. Errado era ter omitido o fato
deliberadamente, mas isso era outra história.
- Eu é que peço perdão, Milady. – se voltou para Lady Dachmour. – Não
era minha intenção ser um inconveniente.
- De forma alguma. Qualquer amiga do meu filho é também amiga.
Amiga não era bem um adjetivo que usaria para se referir a ela. Não
estava pensando em amizade. Seus pensamentos estavam mais relacionados
a cabelos ruivos espalhados em seus travesseiros, sussurros baixos seguidos
de gemidos escandalosos. Jamais esperaria isso de uma amiga.
- Então... Eu soube que comanda uma companhia naval. – iniciou a
anfitriã.
Sua mãe também havia ficado encantada com a menina e trocado algumas
palavras com ela, mas diante de uma viúva jovem que havia sido convidada
de seu filho solteiro, era pedir demais que ela pensasse em outra coisa. Toda
sua atenção estava voltada para Lavínia.
Enquanto a história enfadonha se desenrolava, a atenção volúvel de
Nathan foi parar novamente na criança, a qual interagia com uma criada
pronta para servi-la.
- Chá, Srta. Solluin? – questionou já com o bule fumegante na mão.
A menina olhava para o recipiente como se este abrigasse uma mistura
diabólica. Como o caldeirão de uma bruxa. Sendo filha de quem era, era
esperado, porém louvável o modo como escondeu seu asco pelo cheiro das
ervas atrás de uma feição meramente educada.
- Não, obrigada. – respondeu rapidamente.
- Luísa... – uma voz firme e feminina a censurou.
Achou que a atenção de Lavínia estava voltada para a conversa com a
duquesa, mas as mulheres eram assim mesmo. Chegava ser assustadora a
capacidade de fazer cinco coisas ao mesmo tempo.
- Com muito açúcar por favor. – corrigiu.
Pelos céus! Como ele entendia aquela criança. Chá foi algo que ele não
nasceu gostando. Para ser mais preciso ele não suportava. A sensação era
que seu estômago sairia pela boca a qualquer minuto.
Aprendera que sem açúcar este ficava menos intragável. Era como beber
remédio. Com o tempo, a bebida passou de horrível para indiferente. Não
passou a gostar de chá, mas se acostumou com ele. Como se acostumaria
com Lavínia.
Ela era a mulher perfeita. Fria e calculista. Ousada o bastante para lhe
oferecer sexo prazeroso; e mesquinha o bastante para não amá-lo e não
exigir amor dele. Mas tinha que voltar ao ponto inicial. A criança que torcia
o nariz pequeno para a bebida quente e o cheiro que exalava ao deslizar do
bule para a xícara de porcelana.
A criada colocou um, dois, três cubos de açúcar e no quarto, finalmente
Vossa Majestade parecia estar satisfeita. A colher remexeu o líquido e uma
quantia generosa de açúcar sedimentou no fundo. Nathan, como especialista
em ser “odiador” de chás, sabia que aquilo em nada adiantaria.
- Santo Deus! – este exclamou com muito vigor.
Todos os olhos foram parar nele, demonstrando o mesmo espanto que este
encenava.
- O que foi? – seu irmão questionou e tinha certeza que se não estivessem
na presença de damas teria acrescentado um “diabos” a pergunta.
- Uma mosca! – respondeu ainda de forma exagerada olhando para a
xícara de Luísa.
Essa se voltou para o objeto um tanto espantada.
- Uma mosca? – a criada questionou levantando a xícara nas mãos.
- Sim mulher, não está vendo?
Quem sabe, se a mosca de fato existisse, ela a enxergaria. Um olhar rápido
e notou que esta havia entendido sua intenção. De certo tinha percebido a
aversão da menina tanto quanto ele.
- Santo Deus! – levou a mão ao peito exasperada.
Uma atriz nata que deveria ser recompensada por seu talento. Merecia um
agrado no salário.
- Oh! – Helena exclamou. – Eu peço perdão, querida.
- Troque a xícara da Srta. Solluin imediatamente e traga uma com
chocolate quente. – ordenou o lorde parecendo devidamente ultrajado como
se alguém tivesse culpa pela mosca inexistente.
A menina olhou para ele, os olhos vidrados de espanto. Nathan piscou.
Então, esta também entendeu e deu um sorriso doce que por si só valerá todo
aquele alvoroço teatral.
- Todas as moscas já estão detidas, Milorde? – desconfiada, seria a palavra
que definiria a Sra. Solluin.
- Eu acredito que sim. – respondeu com o melhor rosto de inocente.
- O que seria de nós sem o senhor, meu lorde? – deu um sorriso doce.
Qualquer um, mesmo sua mãe e Allan juraria de pé junto que Lavínia
estava perdidamente apaixonada por ele. Entretanto, ele sabia a verdade.
Sabia o quanto estava sendo irônica e aquilo o divertiu. Aquilo e o olhar de
orgulho de sua mãe.
- Voltando ao assunto, Alteza... – tornou a olhar para Lady Dachmour. -
Não tem sido fácil administrar os negócios de meu marido após sua morte.
A duquesa deu um sorriso compreensivo e segurou a mão da jovem por
alguns segundos. Dando um suspiro fundo.
- Eu, mais do que ninguém, sei o quanto é desafiador para uma mulher
manter a casa sozinha. Sobretudo com filhos.
Sabia. Era o que fazia dela uma mulher da qual os filhos tinham imenso
orgulho. Depois que o Sr. Collins havia falecido ela enfrentara privações,
fofocas e exclusão social. Contando com a ajuda financeira do benfeitor das
meninas, o Duque de Dachmour, amigo de seu falecido marido, ouviu
enxames de burburinhos que diziam que eram amantes e sempre haviam
sido.
Seu orgulho a impedia de aceitar do Duque mais do que o necessário para
a sobrevivência e com isso trabalhava dia e noite como costureira,
dispensara os criados e limpava a própria casa.
Os móveis começaram a ficar velhos, as cortinas e tapetes desbotados e
rotos, até Isabelle se casar com Harry. O Santo filho mais novo do marquês
que assumiu a família dela como se fosse dele. Até Helena se casar com o
Duque, Harry pagou cada vestido, almoço e jantar das Collins e todo o resto
que precisaram, incluindo a educação das meninas. Era uma situação
bastante confortável, mas ela se descobriu apaixonada por Lorde Dachmour
e ambos se casaram por amor.
- Isso é porque a sociedade coloca empecilhos em tudo o que precisamos
fazer. – a Sra. Solluin acrescentou.
- De fato. – a anfitriã assentiu. - Mas deveria se casar novamente, Sra.
Solluin. Pelo conforto e, principalmente, porque é muito jovem para ficar
solteira.
Sutil, porém não tanto. O estilo único de sua mãe. Como havia previsto, a
duquesa a havia aprovado e agora estava desesperadamente tentando juntar
os dois.
- É o que digo também a Nathan. Está desperdiçando a vida fugindo do
altar.
Nada, nada sutil desta vez. Mais clara que isto só se ela começasse a
planejar a festa, comprasse um anel para a noiva e só então os informasse.
- Ou apreciando a vida. – murmurou baixo, mas Lavínia o ouviu. Ficou
evidente no rosto dela quando lhe deu um sorriso zombeteiro.
Por mais que Lady Dachmour estivesse desesperada para casar o filho,
nunca havia aprovado alguém tão rápido. Havia precisado de um mês para se
acostumar com Emily e mesmo depois a tratava com uma educação
ensaiada. Completamente diferente da maneira que tratava seus genros.
Nathan achava que era devido ao fato de ele ser homem e o caçula, mas
nunca tinha perguntado.
Não fazia ideia do porque ela encantara sua mãe tão rapidamente.
Maldição! Não podia mentir para si mesmo, sabia sim. Havia aquele sorriso
devastador, a confiança ao falar e o fato de terem muito em comum. Ambas
haviam ficado viúvas, ambas sabiam do valor do dinheiro porque este não
havia caído em seus colos, muito embora, sua mãe ao perder o primeiro
marido não tinha nem um milésimo da fortuna de Lavínia. Em resumo, ela
era a mulher perfeita.
- Boa sorte. – leu nos lábios do irmão conteve o riso.
- Já faz quase dois anos, Milady. – ela deu um suspiro melancólico. – Não
vou negar que meu coração está aberto.
Coração. Como se aquela criatura ruiva, perversa e perigosamente linda
tivesse um coração cuja a função não fosse unicamente bombear sangue. Por
Deus! Aquilo era uma lágrima escorrendo pelo rosto dela? A burguesa de
coração de gelo não tinha limites.
- Perdoe-me. – pediu em tom baixo.
Aquela mulher era uma excelente atriz. Das melhores mesmo. Tanto que,
em um passe de mágica, o lenço de seu irmão foi parar nas mãos dela e sua
mãe a olhava com preocupação.
- Obrigada, Milorde. – agradeceu o herdeiro do ducado com um sorriso.
Nathan sentiu um calor desconfortável se espalhar pelo corpo e se
remexeu no sofá. Era, concluiu, bastante desconfortável vê-la sorrindo para
outro homem. Não que ele estivesse com ciúmes. Aquilo era ridículo ele
só... Maldição! Aquilo já havia ido longe demais.
- Gosta de pássaros, Srta. Solluin? – questionou para a menina que já
tomava sua xícara de chocolate quente. Tentando mudar o rumo da conversa,
o clima da sala.
- De que pássaros estamos falando, Milorde? – a menina questionou
pousando a xícara e cruzando as mãos no colo em seguida. – Seria um
pardal, um pintassilgo ou um dom-fafe?
Que Deus o ajudasse! Estava diante de uma enciclopédia ambulante da
fauna de Figior. Ela e Jenny, aquela rata de biblioteca se entenderiam
otimamente bem.
- Eu não faço a menor ideia. – e sequer teve o trabalho de esconder isso. –
O fato é que um animalzinho com asas resolveu fazer um ninho em uma
árvore no jardim.
Os olhos dela adquiriram um doce brilho curioso.
- A senhorita parece uma especialista em pássaros. – ela sorriu com a
presunção da mãe. – Quem sabe não possa vir comigo e me dizer do que se
trata?
Luísa olhou para a mãe, que assentiu um sorriso. Como se tudo aquilo
fosse perfeitamente ensaiado. O que não era uma surpresa, considerando que
sempre parecia se comportar como se o universo estivesse sob seu controle.
Até o momento, ele de fato estava.
- Eu adoraria, Milorde.
Nathan sorriu e a acompanhou até a janela. Sim, ele era o caçula da
família, mas sabia lidar com crianças. Sua família era imensa, suas irmãs
levavam muito a sério a parte bíblica do “Cresceis e multiplicai-vos.” e ele
tinha uma quantidade generosa de sobrinhos.
Isabelle tinha cinco, Cassandra três, Meredith e Jenny eram as mais
controladas com dois cada uma. Além disso, Sara, sua sobrinha que era um
ano mais velha que ele tinha um filho de seis anos e havia dado à luz a
gêmeos no ano passado. Era de se esperar que ele soubesse lidar com uma
menininha inocente de no máximo oito anos, mas Luísa Solluin era tão
desconcertante quanto a mãe.
- É um Tentilhão. – a voz infantil soou ao lado dele.
- Perdão? – questionou alheio ao que falava.
Desviou o olhar para Luísa que na ponta dos pés, com as mãos apoiadas
no batente da janela, analisava o ninho na árvore alta do jardim. Ela o olhou
confusa.
- O pássaro. – explicou.
Havia reconhecido pela cabeça coberta de pequenas penas azuis com um
marrom dourado na região dos olhos. Ele estava parado no galho cuidando
da esposa de cor marrom pálido, aconchegada no ninho.
- É um tentilhão.
- Ah! Ótimo! – sorriu. – Eu...
- Eu não estou aqui com o senhor por causa do pássaro, não é?
Nathan riu. Apoiou as mãos no batente da janela e inclinou as costas sem
conter a gargalhada espontânea que subiu por sua garganta.
- Você é tão inteligente quanto a sua mãe. – comentou a fazendo sorrir,
reconhecendo que era um maravilhoso elogio. – Eu tenho algo para te
perguntar.
- É sobre o chá?
Os olhos azuis eram doces, inocentes, assustados e preocupados. Como se
fosse um crime não gostar de chá. Para a nobreza, de fato, era um crime,
senão um crime, uma aberração.
- Não. – deu um sorriso reconfortante. – É sobre sua mãe.
- Eu não sei porque ela está chorando. – virou a cabeça para vê-la. –
Mamãe não chora com frequência.
- Na verdade a pergunta é um pouco mais complicada que isso.
Sabia porque Lavínia estava chorando. Estava chorando porque era uma
pilantra manipuladora que queria amarrá-lo para todo sempre. Queria saber
outra coisa.
- Como se sentiria se sua mãe se cassasse de novo?
Luísa pareceu pensar pelo período de uma eternidade, mas não importava.
Se ele estivesse no lugar dela queria que alguém perguntasse isso a ele. Não
tinha a intenção de entrar na vida dela e bagunçar tudo, não tinha esse
direito. Teria prazer em bagunçar a vida da mãe dela, mas quando isso
envolvia uma criança, tudo mudava.
- Isso depende. – concluiu seu raciocínio.
- Depende... – instigou.
- De com quem ela se casar. – acrescentou colocando alguns fios ruivos
atrás da orelha.
- Se for... – as coisas estavam ficando difíceis, cada vez mais. – Se for eu,
por exemplo.
Desta vez a resposta foi mais rápida. Abençoadamente mais rápida.
- Gosto do senhor, Lorde Carffort. – assentiu com veemência. – Não
parece ser malvado e gosta de pássaros.
- E odeio chá.
A alegação pareceu tê-la deixado espantada.
- Odeia mesmo?
- Ah sim! Com todas as minhas forças.
- Gosto ainda mais do senhor por isso.
Riu novamente, mas em seguida a seriedade o tomou.
- Eu gostaria de pedir a mão de sua mãe em casamento. – engoliu em
seco, o tanto que aquilo era verdade o perturbou. - Entenda, eu não quero
substituir seu pai nem nada disso eu só...
- Tudo bem. – interrompeu para seu alívio. - Seremos bons amigos que
não tomam chá.
Nathan a olhou por um momento e um sorriso melancólico surgiu em seu
rosto. Que os céus o ajudasse! Corria sérios riscos de passar a amar aquela
criança.
- Seremos sim. – afirmou.

...
Capítulo 3
Contrato de casamento

Até o momento tudo havia ocorrido conforme o planejado. Sua filha havia
encantado Lorde Nathan e por que não encantaria? Luísa era encantadora
sem precisar de qualquer estímulo. A Sra. Solluin sabia que bastava colocá-
la na sala e ela ganharia o apreço das pessoas, mesmo que essas pessoas
fossem as mais poderosas de Figior. A menina tinha esse poder e que Deus a
perdoasse por aproveitar.
E fora assim. Sem ensaios ou orientações. Simplesmente convidara a
pequena para um chá com a duquesa e os olhos azuis brilharam. Sua
pequena ambiciosa. Graças a ela estava caminhando no jardim a sós com
Lorde Nathan. Apreciando os aromas da primavera e esperando... Esperando
aquela pergunta.
- Quando pretendia me contar que tinha uma filha? – atendeu a sua
expectativa.
- Não coloque como se eu a tivesse escondido. – retrucou marota. Os
cabelos mais avermelhados pela luz solar.
- A senhora a escondeu. – acusou com o semblante sisudo, aristocrático e
profundamente desconcertante.
Lavínia puxou o ar fundo em seus pulmões almejando parar de ser idiota.
O tiro saiu pela culatra. Junto com os aromas adocicados vinha o cheiro
masculino. O cheiro dele misturado ao de tabaco lhe deu um arrepio na
espinha. Ela não podia desejar aquele homem.
Longe dela querer ser uma puritana, não era com o desejo em si que
estava preocupada e sim com a intensidade. Desejá-lo daquela maneira
tornaria as coisas complicadas, a faria perder o controle que a mantinha tão
firme.
- Eu jamais esconderia Luísa. – respondeu com certo ultraje por ele sequer
ter sugerido isso. - O caso é que o senhor não perguntou.
- Não perguntei! – exclamou exasperado parando de andar. - Ora mil
perdões, Vossa Majestade. Que cabeça a minha. – destilou ironia sem
moderação para cima daquela mulher tão, tão, difícil, diabos! - Sempre
costumo ter esse tipo de conversa com mulheres estranhas que invadem a
minha casa.
- O senhor me permitiu entrar. – corrigiu a tempo.
Lembrava-se muito bem dessa parte. Entregara o cartão para o mordomo,
esperara pelo que parecia uma eternidade e quando achou que seria mandada
embora com um pedido de desculpas, ele a recebeu. Ele a recebeu por livre e
espontânea vontade!
- Mas que deslize o meu, essa é uma pergunta corriqueira afinal. –
continuou parecendo sério e ainda assim provocativo. O filho do Duque era
bom em ser as duas coisas. - Qual o seu nome, Milady? Ah que nome lindo!
A propósito a senhora não teria uma filha?
- Eu não a escondi. – insistiu já um pouco irritada com a situação. Àquela
altura eles deveriam estar flertando um com o outro segundo seus planos,
não discutindo quem escondeu o que. - Eu a amo.
- Era de se esperar que se alguma criatura em todo mundo tivesse a chance
de conseguir entrar nesse coração gelado, seria ela.
Uma sobrancelha dele se ergueu, o semblante provocativo mais claro
agora. Claro como os cabelos acobreados de Lavínia. Ele tinha muitas,
muitas ideias a respeito do que poderia fazer com aquele cabelo, com ela.
Nenhum muito decente.
- Luísa é o meu mundo. – disse, espontânea.
A declaração sincera o comoveu e o silêncio reinou por algum tempo.
Nathan já ouvira aquilo algumas vezes. Anos atrás, nas noites de tempestade
que ele tremia e suava frio, com pavor, Helena o aconchegava no colo e
dizia aquelas mesma palavras. “Você é o meu mundo, querido. Nada vai te
acontecer enquanto eu estiver aqui.”
Aquela criança que entrara em sua cabeça para ficar tinha uma mãe tão
amorosa quanto a dele. Mãe! Lavínia era mãe. Como podia ser?
- Quantos anos ela tem? – questionou com o cenho franzido,
compenetrado em seu próprio raciocínio, com medo das conclusões que
tomava.
- Oito. – respondeu sem emoção.
- E quantos anos você tem?
Sabia onde ele queria chegar e não gostava da direção. Tinha que impedi-
lo de continuar ou tudo rolaria ladeira abaixo.
- Isso não é pergunta que se faça a uma mulher, Milorde. – repreendeu
com veemência. – O senhor deve saber disso mais que ninguém.
- Dados os últimos acontecimentos eu farei todas as perguntas que me
vierem à cabeça e, se ainda insiste nessa loucura de casamento, é melhor
responder.
A firmeza na voz dele e no olhar fora perturbadora. Era mesmo um
Carffort, o filho do Duque de Dachmour. Com a firmeza e o tom de voz para
comandar um exército desordenado e transformá-lo em imaculado. Para sua
vergonha, não era imune a tal poder.
- Vinte e quatro. – cedeu, contendo o rubor para que não se tornasse
aparente em seu rosto.
- Vinte e quatro. – demorou alguns instantes para ficar assustado. –
Maldição! Eu estou fazendo contas, Lavínia e não gosto dos resultados.
- Fala das suas finanças, meu lorde? – desviou o assunto de forma
ineficiente porque foi ignorada.
- Minhas finanças estão em ordem. – respondeu sem se desviar da questão
inicial. - A senhora engravidou com apenas quinze anos?
- Vejo que é bom em aritmética. – ironizou sem superestimar a afirmação
daquele que a ouvia.
- Maldição! – praguejou passando a mão pelos cabelos castanhos. -
Como você pôde... Como pôde...
- Não termine a frase, eu o advirto. – interrompeu com firmeza.
“Por favor, não termine a frase. Por favor, não estrague tudo. Por favor,
Deus, não permita.”
- Como pôde se...
- Pare. – cortou firmemente.
- Você se deitou com aquele velho com apenas quinze anos, sua
desvairada?
A pergunta havia sido furiosa e a atingido como uma bala. “Oh não!”
Sim. Ele havia estragado tudo. Tudo mesmo. Ele deu o primeiro tiro, Lavínia
acendeu os canhões dela.
- Nunca, nunca mais se refira a ele dessa maneira. – chegou mais perto e o
encarou nos olhos, furiosa. - Eu não ligo se me ofender, Milorde, mas não
ouse ofender meu falecido marido. Peço perdão se a ideia é chocante demais
para sua mente casta, mas o que eu direi será ainda pior para que entenda. –
as palavras tinham um gosto amargo e um som amargo. - Se ele ainda
estivesse vivo eu iria com prazer para cama com ele por quantas noites ele
desejasse. Eu o amava de um jeito que as pessoas como o senhor não
entendem, portanto sugiro que jamais abra a boca para ofendê-lo novamente,
se o meu respeito representa algo para Vossa Senhoria.
O silêncio, e então o inesperado. Já contava com o momento que ela iria
embora. Que sairia da casa da duquesa solteira e com menos prestígio social
do que quando entrara, mas parecia que o universo conspirava em seu favor.
Nathan parecia surpreso, mas nem um pouco irritado.
- Perdoe-me. – disse em tom baixo e percebeu o choque no rosto dela.
Homens como ele não costumavam pedir perdão, menos ainda para
alguém considerado inferior da escala social. Sobretudo os Carffort não
tinham o costume de ceder. Exceto quando estavam apaixonados, mas aquele
não era o caso, convenceu a si mesmo.
- Eu não tinha ideia de que o amava. – e não sabia se a informação havia
sido um alívio ou não. - É que você é tão... Você é tão...
- Jovem? – sugeriu.
Havia ouvido a mesma coisa milhares de vezes e já imaginava que era o
que viria. Muito jovem para se casar com um homem de mais de três vezes a
sua idade, muito jovem para ser mãe. Só que a idade não importava e sim o
conforto. Só o conforto.
Ainda se lembrava daquela garota assustada e molhada invadindo a
propriedade de Solluin, implorando por ajuda. Parte dela ainda era aquela
garota. Fora essa parte, infantil e tola que se chocou com a resposta dele.
- Linda. – corrigiu.
A resposta pareceu sugar todo ar de seus pulmões. Não que ela duvidasse
de sua beleza, recebia cartas e mais cartas com propostas indecentes de
homens que, apesar de não querê-la em sua vida, a queriam em sua cama. O
espanto fora por outro motivo. Nathan a olhou de um jeito quando proferiu a
pequena e aparentemente inofensiva palavra que fez seus joelhos
fraquejarem.
Seu rosto era puro espanto. Os olhos azuis, quase cinzas pela luz do sol, se
arregalaram. Deus! E ele sempre achara Emily a mais interessante das
criaturas, que tolo. Então os lábios rosados se curvaram em um sorriso
provocante.
Estavam em um ponto do jardim de onde teriam uma visita privilegiada da
sala de visitas. Parte dele sabia que sua mãe poderia estar naquela janela,
pior, Luísa poderia estar naquela janela. Só que essa parte sensata foi
ignorada e ele a beijou para quem quisesse ver.
Uma moça casta o empurraria na altura do peito e impediria o escândalo.
Só que Lavínia não era uma mocinha, ela era uma mulher adulta e decidida.
Havia decidido beijar Lorde Nathan e nem a mais neurótica das beatas
conseguiria impedi-la. Retribuiu, sem pudores ou fingimentos. Talvez fosse
o que de mais honesto houvesse nela, o desejo por ele.
Quando ele se afastou levantou a cabeça e olhou para a janela. Inútil, não
conseguia enxergar nada devido ao sol ofuscante. Então se voltou para a
mulher a sua frente. A burguesa de coração de gelo ainda com a postura
perfeita e o cabelo arrumado enquanto ele perdia o fôlego. Franziu o cenho e
a segurou pelos ombros.
- Você é irritante mulher, você é impossível, você... Você... – não havia
uma palavra apropriada para descrevê-la. - Por Deus! Case comigo.
- É um pedido, Milorde? – o sorriso tentador voltou a seu rosto.
- Sim, é um pedido. – afirmou com tom determinado, mas ainda assim um
pouco irritado. Se ele acreditasse em magia negra, juraria que era alvo de
algum feitiço daquela mulher.
- Serei útil. – pontuou com segurança.
- É bom que seja. – saiu mais ríspido do que ele gostaria, Lavínia não se
importou.
- Deixarei Lady Emily de joelhos. – prometeu.
Nathan não queria Emily de joelhos. Queria Lavínia de joelhos diante
dele, não para implorar perdão ou qualquer imbecilidade medieval. Ele só a
queria de joelhos para abrir as calças dele e...
- Está fantasiando comigo, Milorde? - foi uma brincadeira, mas ao que
parecia, ela fora mais precisa do que o normal nas brincadeiras.
Nathan sorriu. Um sorriso malicioso que fez o rubor causado pelo calor se
intensificar no rosto dela. As belas maçãs destacadas.
- Eu fantasio com mulheres com frequência.
- Que doce. – ironizou tentando esconder o calor desconfortável que a
percorreu.
- Ah! Estão muito longe de serem fantasias angelicais. É bom que saiba.
Um predador perigoso era o que ele parecia. Passando os dedos
essencialmente masculinos da mão direita em seu pescoço. A atenção focada
na pele macia e deliciosa de Lavínia.
- Você estará no baile esta noite, com um vestido de cair o queixo e o meu
anel de noivado no dedo.
Lá estava de novo a voz da autoridade, do poder, da sensação de
onipotência das quais padeciam os seres da espécie dele.
- Será um prazer, meu lorde. – sorriu com disposição. – Depois, é claro,
que assinar o contrato.
Contrato? Que diabos...

...

“Por ordem de prioridade:


- Luísa, assim como qualquer filha que venhamos a ter, terá direito a
partes iguais da herança e não só os herdeiros do sexo masculino.
- Qualquer lucro que a Companhia render será dividido em partes iguais.
- Nenhuma decisão será tomada na Companhia sem o meu consentimento
ou conhecimento.
- Terei o direito sobre o meu próprio dinheiro e de empregá-lo onde bem
entender. O mesmo vale para o de meu marido. Exclui-se aqui a
porcentagem mensal a ser investida na companhia cuja forma de empenho
se dará de comum acordo.
- Casos extraconjugais, se mantidos, devem ser levados de forma discreta
e jamais ultrapassar a porta de entrada de nossas residências. Seja qual for.
Na presença ou não do cônjuge.
...”

Bilhete da Sra. Lavínia Solluin escrito para seu advogado, dias antes, para
que formulasse o contrato nupcial.

...
Capítulo 4
Livro dos pássaros

“Sei que sempre quer ser a primeira a receber as grandes notícias, meu
bem. Então, se prepare para essa.
Seu irmão veio me apresentar uma jovem essa tarde, foi até uma joalheria
assim que ela saiu e deve estar, nesse momento, a buscando para o
casamento da condessa. Nathan está noivo. Minhas preces foram
atendidas.”

Bilhete da Duquesa de Dachmour para a filha do meio, a Condessa de


West, Meredith Kurt.

“Por Deus mamãe! Esse não é o momento para utilizar seu poder de
síntese. Como ela é? Quem é ela? É mais bonita que a jararaca? Conte-me
tudo!”

A resposta nada moderada da filha se referindo a ex-cunhada pelo apelido


carinhoso que ela e Cassandra criaram. A jararaca de olhos verdes.

“Não tive tempo para descobrir muito. Trata-se de Lavínia Solluin. Viúva,
determinada, rica, cabelos ruivos, olhos azuis, muito bonita e educada. Tem
uma filha adorável.
Em resumo, o tipo de mulher que mata jararacas na primeira paulada –
que Deus me perdoe a ofensa.
Meu único medo, querida, é que os jornais e a corte suponham que o
casamento da condessa é o único motivo deste noivado ter acontecido.”

A contra resposta.

“Não se preocupe mamãe, convenceremos cada mulher e homem daquele


salão do contrário.
Ótimo. Ela me parece o tipo que deixará a jararaca da joelhos.”
Último e mais determinado bilhete antes de Meri arquitetar um plano
louco e convencer o marido a participar dele. Não foi muito difícil. O Conde
gostava de uma agitação e, sobretudo, gostava de agradar a esposa.

...

Ela deixaria Emily de joelhos. Assim que colocou os pés na mansão dos
Solluins e o mordomo chamou a patroa teve a mais absoluta certeza disso.
Lavínia estava estonteante.
Aquela não era uma beleza vulgar, tão pouco clássica e muito menos
comum. Esta usava um vestido prateado com corpete justo e decote baixo –
no limite do decoro. Luvas de seda da mesma cor cobriam seus braços e em
suas costas um tule bordado dava a ilusão de uma capa que encontrava a
barra do vestido. O penteado elaborado deixava escapar cachos modelados
que caiam por seu pescoço, tentando cada homem a desejar beijá-lo.
Ele vira Emily pela manhã, a beleza clássica e pálida, loira de olhos
verdes. Dentro do vestido elaborado de noiva que deveria ter custado uma
fortuna para o barão – esperava mesmo que ela esvaziasse os bolsos dele.
Jurou que ninguém naquele dia poderia superar aquela beleza, então viu a
jovem viúva dando aquele sorriso perturbador. Levantando-se do sofá.
- Geralmente as mulheres nos fazem esperar. – foi a primeira estupidez
que viera a sua cabeça e saíra de seus lábios.
- Não sou uma mulher comum. – declarou caminhando até ele. O barulho
do salto alto mal era ouvido. Era como se flutuasse.
- Não. – enfatizou deslizando o olhar pelo corpo dela.
- Eu recebi o contrato por seu criado.
Lá estava ela parando seus devaneios e fazendo com que voltasse a
realidade. A frieza em sua voz fez com que parasse de fantasiar com ela.
Aquilo, aquilo tudo era uma transação de negócios conveniente para ambos.
O interesse dela nele ia muito além do interesse comum de uma mulher por
um homem. Ela o queria para seus negócios e talvez – se tivesse sorte – para
sua cama também.
- Achei um tanto exagerado, Sra. Solluin, mesmo vindo da senhora.
Levou a mão dela aos lábios em um cumprimento. O cheiro o deixando
tonto, embriagado.
- Uma mulher deve se proteger, meu lorde. – curvou os lábios bem
desenhados em um sorriso.
Só que naquele momento nada a protegeria. Pela manhã tudo que queria
era exibi-la naquele baile, no momento sequer queria ir para ele. Sua vontade
era arrastá-la para um daqueles sofás e deixá-la ofegante de luxúria.
Que se danassem Emily, o barão e a sociedade que o tomaria como
covarde. Seria um covarde feliz se passasse a noite na cama com Lavínia. A
mulher que colocava seu lado cavalheiro para dormir.
- Lavínia... – chamou.
A mão em sua nuca e os lábios prontos para encontrarem os dela.
- Senhora? – uma voz hesitante os barrou.
Lavínia pareceu ter levado um susto. Deu um pequeno salto se afastando
dele rapidamente. Virando-se para encarar sua criada. Por Deus! Onde ela
estava com a cabeça?
- Sim?
- É a Srta. Solluin. – a criada morena de olhos grandes informou.
A preocupação tomou o rosto da patroa. Luísa. O que teria acontecido
com Luísa?
- Ela está bem?
- Sim senhora. – concordou rapidamente. – Já está na cama. Mas ela está
chamando...
Deu um sorriso de puro alívio.
- Claro, eu irei até ela. – se voltou para Nathan. – Não levará muito tempo,
tenho certeza.
- Está chamando Lorde Carffort, senhora. – a criada parecia um tanto
envergonhada ao corrigir.
Nathan arregalou os olhos ao mesmo tempo que a noiva. Luísa queria
falar com ele? Havia chamado por ele depois de uma conversa breve e um
chocolate quente?
- Eu volto logo. – respondeu com um leve sorriso que era mais feliz que
presunçoso. Um sorriso honesto e raro. Leve e sem esforço.
Lavínia assentiu e então deu um olhar de advertência para a jovem criada
que só Deus sabia o que significava. Deus e a jovem, porque assentiu e o
guiou até o andar de cima.
A casa de sua noiva não era nada modesta. Era confortável, exuberante e
ampla. Com mais extravagâncias do que muitas casas nobres. Isso era uma
característica da burguesia, ou dos novos ricos, não terem vergonha ou
moderação de demonstrar o quanto eram ricos.
- Aqui está. – a moça indicou uma porta de cor creme fechada. – O quarto
da Srta. Solluin.
Nathan assentiu e bateu duas vezes na porta.
- Se você não for Lorde Carffort, então nem entre. – uma voz infantil soou
do outro lado.
Nathan riu, girando a maçaneta. Abriu só o suficiente para revelar seu
rosto e sorriso.
- Eu posso entrar, senhorita? – questionou para a menina.
A imagem era encantadora. Luísa estava deitada com cobertores até os
ombros. Os bracinhos descobertos e os olhos grandes fixos na porta. No
rosto dele.
- Entre e feche a porta, Milorde. – disse parecendo uma adulta em
miniatura.
- Milorde... – a criada o chamou e só aí reparou que permanecia parada
diante da porta. O rosto ruborizado quando ganhou a atenção dele. – Se
importa se eu ficar aqui? É que minha senhora é muito protetora.
Nathan deu um sorriso e assentiu em aprovação.
- Deixarei a porta encostada. – respondeu para total alívio e gratidão dela.
Luísa não ligava para o que estava acontecendo fora do quarto, ou para as
preocupações dos adultos. Como a mãe, ela só se importava em ter o que
queria. Quando Nathan entrou e sentou em uma poltrona ao lado da cama,
pareceu deveras satisfeita.
Olhou para a porta por um instante como que para comprovar que
ninguém podia vê-los ou ouvi-los, então sentou na cama sobre os tornozelos
e levantou o travesseiro, revelando um livro. Com outra olhada para a porta
pegou o livro fino antes escondido e entregou para ele. Os olhos brilhando
em expectativa.
Nathan piscou algumas vezes, confuso, olhando para o livro em suas
mãos.
- É meu livro de pássaros. – disse ela o abrindo em uma página aleatória.
– Agora é seu.
O lorde subiu o olhar da página que continha uma bela pintura de um
dom-fafe seguida de detalhadas descrições, para Luísa. A doce criança de
cabelos vermelhos, olhos azuis vivos e uma camisola amarela que a cobria
até os tornozelos.
- Não posso aceitar, querida. – negou com a cabeça.
A criaturinha geniosa franziu o cenho. As mãos pequenas empurrando o
presente na direção dele.
- O senhor tem que aceitar. – insistiu, decidida.
- Mas sentirá falta dele. – argumentou.
Luísa deu de ombros voltando a se deitar sob as cobertas.
- Quando se casar com a minha mãe estará por perto, então o livro
também estará. – disse para ele com um sorriso.
Nathan fechou o livro também sorrindo. Quem, em Nome do Todo
Poderoso, poderia resistir a tanta doçura?
- Obrigado. – disse se levantando.
Pousou os lábios na testa dela e puxou os cobertores até seu pescoço a
fazendo rir.
- Vai ficar bem sozinha? – questionou, surpreso por se preocupar, por se
sentir responsável.
- Eu sempre durmo sozinha. – contou, orgulhosa.
- Nunca dorme com sua mãe? – indagou desconfiado, até ele já havia
dormido com os pais quando criança.
- Mamãe não me deixa dormir com ela. – respondeu.
Nathan franziu o cenho diante da afirmação. Aquilo era o tipo de coisa
que fazia Lavínia fazer jus ao apelido que lhe davam. A menina pareceu
sentir seu desconforto e decidiu explicar.
- Ela não gosta que ninguém durma com ela. – se aconchegou no
travesseiro. – Ela tem pesadelos, chora e grita a noite. Não quer que ninguém
saiba.
Nathan arregalou os olhos diante das palavras da menina. Não era
verdade. Uma mulher não poderia ser tão atormentada a ponto de ter
pesadelos perturbadores todas as noites. Não uma mulher como Lavínia,
firme e fria como gelo. Era só uma desculpa para que a menina não dormisse
com ela, um meio para garantir sua liberdade, convenceu a si mesmo.
- E você? – perguntou olhando para o rosto redondo. - Não tem pesadelos?
- Às vezes. – confessou com naturalidade. – Mas aí eu penso em um céu
azul cheio de pássaros e o medo passa.
Ele passou a mão grande pelos cabelos de Luísa e beijou sua testa mais
uma vez. A menina corajosa que gostava de pássaros e detestava chá tanto
quanto ele.
- Boa noite, querida.
- Boa noite, Lorde Carffort. – respondeu se virando já com os olhos
fechados.
Sem fazer um ruído sequer, Nathan deixou o quarto.

...

Lavínia estava com o coração na mão. Tentando repetidas vezes


convencer-se de que não precisava se preocupar. Nathan era um bom
homem, de uma boa família. Nada aconteceria.
Mesmo assim quando o viu descendo a escada se levantou em um pulo.
Os olhos arregalados olhando para ele.
- E então? – questionou com ansiedade para a figura risonha.
- Ganhei um presente. – ali sim havia certa presunção.
Nathan se aproximou devagar com um sorriso e lhe mostrou o livro que
havia ganhado. A Sra. Solluin pareceu tão surpresa quanto ele diante da
atitude da menina. Deslizou os dedos pela capa do livro que ele segurava.
- Oh Meu Deus! – exclamou.
Luísa já havia se apegado a ele. Era o que temia. Só que Nathan também
havia se apegado a ela e o que era para ser uma mera transação de negócios,
havia se tornado bem mais que isso.
Uma culpa amarga tomou sua garganta e a deixou prestes a chorar.
- Milorde sobre Su ter ficado no andar de cima eu... – se referiu à criada.
- Eu sei. – interrompeu segurando um dos ombros dela, como se
percebesse que precisava de apoio. Como se soubesse da sensação de que ia
desabar.
- Eu sou paranoica e peço perdão. – disparou a falar com ansiedade. - É
que...
- Lavínia. – interrompeu novamente e negou. - Não precisa se explicar. Eu
sou um homem desconhecido e ela uma criança doce.
Desviou o olhar para o chão, inconformada com a própria atitude.
- Não queria ofendê-lo. – disse com sinceridade.
- Não estou ofendido. – tocou o queixo dela e a incentivou a olhá-lo. -
Mas deve saber que não sou esse tipo de homem.
- O fato é que eles nunca parecem ser.
Nathan franziu o cenho. Não diante da afirmação, mas das feições dela.
Não parecia a burguesa do coração de gelo, parecia uma menina assustada.
Preferia mil vezes a primeira opção.
- Eu sei. – deu um beijo leve nos lábios dela. - Se você não se
preocupasse, eu ficaria preocupado com a segurança dela. Só não precisa se
preocupar comigo.
- Eu sei. – assentiu com mais confiança que esperava ter.
Não confiava em um homem daquela maneira desde que o Sr. Solluin
fechou os olhos. Era um alívio sem dúvida poder confiar no homem que
colocaria sob o mesmo teto de sua filha, mas ao mesmo tempo isso a
amedrontava. Como poderia confiar em alguém que conhecia há apenas
algumas horas?
- Agora eu sei disso. – enfatizou apesar das recentes indagações.
Nathan franziu o cenho conforme a frase dita por Luísa voltava a sua
cabeça. “Ela tem pesadelos, chora e grita a noite.” Afastou os pensamentos
tão rápido quanto vieram. Não podia ser verdade e ele não deveria se
importar tanto se fosse. Eram meros estranhos, pelo amor de Deus!
Com um sorriso renovado ele pegou em sua mão e tirou um belo anel de
noivado do bolso. Com um rubi imenso rodeado de diamantes. Um anel para
ninguém botar defeito. Digno da esposa de um Duque.
Ela pareceu surpresa.
- Eu já assinei o contrato. – gracejou a fazendo rir e negar. – Há algo
errado? – parecia haver algo muito errado com ela. Muito, muito errado.
- Nada. – sua voz voltou a soar firme e formal. – Absolutamente nada
errado.
Conforme a joia deslizava por seu dedo, ela conteve o ímpeto de se levar
pela emoção. Não havia sido a primeira joia que ganhara. Seu falecido
marido a havia mimado além do que era considerado padrão, mas ali tudo
parecia diferente. Porque não esperava mais que um anel discreto dele. Nada
mais que isso. Aliás, ela sequer esperava um anel, para ser franca.
- Uma mulher como você não combina com algo discreto. – disse, e por
um momento ela jurou que havia pensado em voz alta.
Pensou em se oferecer para pagar o anel, ao menos para dividir o valor.
Aquilo havia sido absurdamente caro e ela não era uma mocinha fútil que se
achava no direito de esvaziar os bolsos do futuro marido. Ela tinha dinheiro
suficiente para pagar seu anel de noivado, mas de certa forma soube que
aquilo o mataria ou a seu orgulho. Então somente sorriu e assentiu em um
agradecimento silencioso.
Nathan lhe ofereceu o braço e tentou focar no que importava.
- Ao baile, Sra. Solluin?
Lavínia pousou a mão sobre o braço forte coberto pelo impecável casaco
azul escuro.
- Ao baile. – concordou decidida.

...
Capítulo 5
Jararaca de olhos verdes

O salão parecia um mar de cores claras em cetim e seda, pontuado pelas


vestes escuras dos cavalheiros. O burburinho se alastrava enquanto a
orquestra se preparava para a próxima música. Quando viram Nathan com
Lavínia, no entanto, o silêncio foi avassalador. Uma mosca seria ouvida
passeando pelo ar.
Lorde Carffort parecia ouvir as mentes trabalhando em diversas ideias
acerca do porque ele estava com uma bela ruiva a tira colo e não chorando
em um quarto escuro. Logo o burburinho voltou e não era preciso ser um
grande gênio para descobrir qual era o assunto abordado.
Olhou para Lavínia, mas essa parecia estar a cima de qualquer burburinho.
Olhava para as pessoas com a superioridade de uma imperatriz e a sombra
de um sorriso brincava em seus lábios avermelhados. Nem remotamente
amedrontada, achava divertido tal tumulto.
- Lavínia! – ouviram uma voz masculina exclamar. – Aí está você,
encantadora como sempre!
Nathan arregalou os olhos ao ver ninguém menos que seu cunhado, o
Conde de West se curvar sobre mão de Lavínia como se fossem velhos
amigos. Com uma intimidade desconcertante. Primeiro, ele era um Conde.
Um Conde não tinha qualquer obrigação de cumprimentar uma viscondessa
com mais que um aceno com a cabeça, que dirá uma burguesa. Só havia um
motivo para aquilo, o libertino estava de volta.
Antes de se casar com Meredith, West era incorrigível. Não se lembrava
de metade das mulheres com quem dormia e vivia a levar damas à perdição
com os olhos verdes esmeralda e os cabelos agora castanhos com fios
grisalhos. Após se casar com a irmã dele, jurou que estava regenerado.
Aquela não era a hora de voltar aos velhos hábitos. Não depois de anos.
Não com a noiva dele.
- Milorde. – a jovem viúva cumprimentou como se seu comportamento
fosse absolutamente natural.
- Maldição, West! – Carffort esbravejou em tom baixo tentando não piorar
o tumulto que sua presença havia causado.
Havia chegado atrasado para não ter de cumprimentar a ex-sogra – não
antes de estar caindo de bêbado. Tudo o que ele não queria era chamar a
atenção dela quando ainda não havia bebido sequer uma limonada.
- Aja naturalmente e não a apresente a ninguém da família. – West disse
em tom baixo ainda sem soltar as mãos da Sra. Solluin.
- Eu não deveria apresentá-la a todos da família? – questionou em um
misto de irritado e confuso.
- Não, segundo Meredith. – respondeu com um sorriso e finalmente
afastou suas irritantes mãos da futura Lady Nathan Carffort.
- Por Deus! – exclamou inconformado. - Você e sua devoção às ideias de
minha irmã. É como se fosse o lacaio dela.
- O que importa é que sou um lacaio feliz. - e não tinha qualquer vergonha
em relatar isso.
- Como ela o convenceu desta vez? – questionou, a mão indo parar na
cintura de Lavínia em um gesto involuntário e um bocado possessivo.
Ela deu um discreto sorriso.
- Ela me ameaçou com uma semana de celibato caso não a ajudasse.
Conteve bravamente o riso diante do Conde. Em qualquer outro ambiente
teria jogado a cabeça para trás e soltado uma gargalhada completamente
escandalosa. Só que aquele era um baile com a nata da sociedade, oferecido
em honra à mais nova baronesa e ex-noiva de Lorde Carffort. Ela tinha que
se mostrar digna.
- Uma semana? – indagou não escondendo o incômodo. - Bom Deus,
West! Vocês estão casados há dezesseis anos e ainda fazem essas coisas?
- Essas coisas, sua santidade? – provocou ironicamente após soltar uma
gargalhada. – Por quê? Você pretende fazer voto de castidade após o décimo
ano?
- Não, mas... – estava fora do sério, a família dele tinha esse poder,
mesmo os agregados. - Maldição West! Estamos falando da minha irmã.
- E da minha esposa.
Nathan desistiu. O argumento dele era válido. Mais que válido aliás. Até
porque, se ele tivesse uma esposa esperava que ninguém interferisse em
quantas vezes a levava para cama. Aliás, queria levar Lavínia para cama
naquele instante.
- Por que eu não devo apresentá-la a ninguém?
Sra. Solluin queria chacoalhar os braços e sinalizar que ela estava bem ali.
Era um ser humano pensante e tudo que não queria era dois homens
discutindo seu destino.
- Porque Meredith quis assim. – foi a resposta prepotente de Kurt.
- Ora, você é o culpado por ela achar que controla o mundo, afinal. –
acusou.
Passou a mão pela manga do casaco como se estivesse sujo. Ninguém
veria nada de errado com o casaco. Nem mesmo sua mãe que era uma ex-
costureira. Era mais por nervosismo que por necessidade.
- Vou falar com Isa que é uma criatura sensata. – pousou a mão na cintura
da noiva novamente e se voltou para o cunhado. - Onde ela está?
- Ela está no plano. – disse para profundo desespero dos envolvidos. –
Todos estão. Mesmo seu pai. – ergueu uma sobrancelha irônica. – Desista
Carffort.
- Mas...
Ele não era homem de desistir e Lavínia já estava cansada de encenar
aquela peça como a bonequinha de porcelana.
- Vamos seguir o plano. – disse de forma decidida.
O Conde deu um sorriso vitorioso e um tanto preguiçoso para os dois.
- Mulher inteligente. – elogiou. – Agora vamos até Meri, ela está bem ali.
Nathan seguiu o dedo do cunhado e tão rápido sua visão alcançou seu
destino, seus olhos se arregalaram. Meredith estava ao lado de ninguém
menos que Emily. Era como se fossem amigas íntimas. Maldição! Elas
nunca sequer gostaram uma da outra.

...

Mas que droga! Quanto tempo aqueles dois ainda iam demorar para trazê-
la? Quanto assunto eles achavam que ela tinha com a jararaca de olhos
verdes? Jararaca essa que parecia lindamente hipnotizada pelo casal belo que
parou o salão de baile. A vingança era doce e calorosa como chocolate
quente.
- Seu irmão veio com uma amiga? – a voz doce e irritante soou ao lado da
condessa.
Meri deu um sorriso maroto. Emily podia ter virado uma baronesa, Lady
Petergille, mas algumas coisas não mudavam. Continuava estúpida e Lady
West continuava a adorar achar um motivo para zombar dela.
Naquele momento o motivo vinha em sua direção. E que motivo!
Meredith, como uma mulher determinada, sabia reconhecer outra mulher
determinada. Aquela ruiva era muito mais do que ela esperava. Finalmente,
seu irmão teve a decência de se redimir após a beleza insípida da ex-noiva.
- Lavínia! – Meri exclamou com os braços abertos. – Minha irmã querida!
Há quanto tempo!
- Meri? – questionou tentando entender que criatura dócil havia possuído
seu corpo.
Se Nathan já estava surpreso pela reação nada moderada de sua irmã, não
sabia descrever como ficou com a de sua noiva. Havia um grau acima do
total e absoluto choque?
- Meri! – ela a abraçou como se tivessem dividido os brinquedos quando
crianças. – Como tem passado, meu bem?
A condessa não deu um, mas três, três beijos no rosto da futura cunhada.
Da futura cunhada desconhecida. Todos os das proximidades apuravam as
orelhas e os olhos de caninana de Lady Carnuil – sua ex-sogra – pairavam
sobre o escândalo. Só que eles eram membros da família mais popular e
poderosa de Figior, se eles dançassem nus no baile, em poucos dias o
escândalo seria esquecido. Aliás, sua irmã, que se empenhava naquele teatro,
já havia sido pega completamente nua com o marido no lago, mas Nathan
não queria pensar nisso.
- Estou melhor agora, que finalmente posso chamá-la de irmã em público.
– deu um sorriso segurando nas mãos dela.
Por um momento ele se perguntou se as duas não se conheciam
previamente. Aquela parecia uma coincidência cruel demais, mas aquela
encenação...
- A propósito, essa é Lady Petergille, a nova baronesa. – apresentou como
se dissesse “Esse é José o novo lacaio”, talvez com um pouco menos de
respeito. Ela respeitava muito os criados.
- Milady. – Lavínia acenou com a cabeça para a jovem que assentiu
contrariada. – Peço perdão por ter aparecido sem convite.
- Bobagem. – Lady West dispensou o gesto com uma das mãos. – Ela
convidou nossa família e você é da família.
- Nathan. – Emily olhou para ele como se pedisse socorro.
Só que Nathan não queria socorrê-la. Ela não o havia socorrido quando
sofreu sua humilhação e, além disso, quando Meri resolvia fazer algo, nem o
próprio diabo conseguia fazê-la parar. Não tinha escrúpulos, limites e
definitivamente não era discreta.
- Lady Petergille. – cumprimentou sério. Ela não era mais Emily, não
mais. - Já conhece a minha noiva? – a pergunta saiu de seus lábios quase que
de forma involuntária.
Seu corpo permanecia firme e ereto, mas a vontade que tinha era de sair
dançando pelo salão de felicidade. Dançando a música que atrapalhava a
missão dos fofoqueiros de não perderem um detalhe.
- Oh!
Os lábios rosas de Lady Petergille se moldaram a uma forma oval perfeita.
Aquele era o tipo de coisa que o fazia querer beijá-la um tempo atrás, mas
agora...
- Nathan conte a ela como se conheceram.
A irmã deu um sorriso para ele, sentindo a mão de Lorde West – que havia
se aproximado – em suas costas.
- Lady Petergille, você que é tão romântica vai querer ouvir essa. –
acrescentou para seu espanto.
Lavínia lhe deu um sorriso tranquilo, o que o fez se perguntar como em
nome de Deus ela podia estar tão calma? O que ele iria contar? Sua irmã
parecia esperar algo muito específico e ele não sabia o que era.
- Bom... – limpou a garganta, um gesto característico dos Carfforts. – Por
onde eu começo?
- Pelo baile, é claro. – respondeu sua irmã como se fosse óbvio. Não havia
nada de óbvio desde que pisara naquele salão.
- Aquele baile, querido, em que eu usei o vestido azul. – Lavínia ajudou, o
olhar pedindo para que entrasse no jogo.
Elas haviam ensaiado aquilo com antecedência?
- Ah! – exclamou como se lembrasse de repente. – É deste baile que
estamos falando!
- Por Deus! Sua memória é péssima. – pontuou Meri aparentemente
incrédula. – Eu vou contar.
Que Deus o ajudasse! Ela ia mesmo!
- Simplesmente adoro essa história. – se voltou para a baronesa ainda
espantada com um sorriso. – Nathan conheceu Lavínia em um baile
oferecido na residência dos Solluin há cinco anos atrás.
- Ele estava interessado nos negócios de meu falecido marido. –
interrompeu caso aquela cabecinha oca resolvesse pensar, para variar.
A cunhada lhe presenteou com um sorriso em agradecimento. Ninguém
pararia aquelas duas. Elas eram terríveis juntas.
- Eu nunca ouvi falar desse baile. – a anfitriã interviu um pouco
desconfiada.
- É evidente que não, Milady. – o conde respondeu quando percebeu que
já havia ficado calado por muito tempo e corria o risco de ser acusado de
abstenção. – Trata-se de um baile da burguesia. Se só pensasse nele, a
viscondessa... – se referiu a mãe dela. - Cortaria seu pescoço. Felizmente,
nem todos são tão radicais.
Pelo olhar da esposa ele já havia ganhado acesso ao leito dela e bem... A
outras coisas. Por isso, resolveu pedir licença para tomar uma bebida.
Nathan queria ir com ele. Desesperadamente.
- Como eu estava dizendo... – ela continuou bastante animada.
Nathan sentiu os dedos de Lavínia tocarem na mão dele e depois
segurarem nela com firmeza. Ajudou um pouco, tinha que admitir.
- Eles trocaram poucas palavras no baile, mas anos depois, quando o Sr.
Solluin se foi, meu irmão mandou a viúva as devidas condolências. – deu um
suspiro afetado que não instigou Emily nem um pouco ao romantismo. –
Eles trocaram cartas desde então.
- Já era para termos assumido nosso relacionamento, mas parte de mim
ainda estava de luto por meu marido. – outra vez os olhos lacrimejados que
dariam inveja às melhores atrizes parisienses.
Como previsto, a cabecinha loira da baronesa começou a ligar os fatos e
ter ideias, fazer contas. Demorou mais que o que se esperaria, mas ainda
assim...
- Desde quando exatamente vocês têm esse relacionamento escondido? –
havia certa mágoa na voz dela.
- Desde quando você humilhou meu irmão publicamente. – respondeu,
sem papas na língua. Como sempre.
- Meredith! – ele a censurou escandalizado.
Quarenta anos e dois filhos não a haviam mudado em absolutamente nada.
Sempre fora assim, com o dom de dizer a coisa errada na hora errada.
- O que foi Nathan? – ela fechou o rosto e empertigou a coluna. – Ela
perguntou. Quem pergunta, quer respostas!
Nathan abriu a boca sem saber o que responder. Sua aparentemente doce
irmãzinha tinha esse poder. Os cabelos loiros e os olhos azuis de anjos
enganavam e muito.
A questão é que algo desviou sua atenção da conversa. De repente a
coluna de Lavínia ficou mais ereta e o rosto sério. Não era visível, mas ele
sentiu a tensão e pousou a mão nas costas dela para ajudar com que
mantivesse a firmeza. Se Meredith fosse a culpada ele...
- Ora, ora, ora... – uma voz grave, debochada e um tanto repugnante soou.
– O que temos aqui...
O barão de Petergille havia se aproximado. Vestido de preto e branco, o
noivo tinha cabelos e olhos escuros, uma péssima reputação e a tendência de
acabar com o bom humor de Nathan.
Ele analisou o grupo com o olhar e sorriu.
- Minha bela esposa, Carffort, Lady West e... – ele parou o olhar na bela
ruiva e analisou seu corpo de um jeito que despertou o lado assassino de
Nathan. – Lavínia, há quanto tempo.
- Uma vida, Lorde Petergille. Graças ao Todo Poderoso. – respondeu
ríspida e seca.
- Aproveite que está em sua casa, Petergille. – Nathan praticamente
rosnou com um tom de voz que mal reconheceu. – Se ousar chamar minha
noiva pelo primeiro nome outra vez, eu vou impedi-lo de falar novamente.
O outro explodiu em uma gargalhada irritante.
- Noiva é? – questionou provocativo. – Sempre achei encantadora a
tendência de sua família à caridade, Carffort.
Nathan deu um sorriso maroto e repentinamente calmo.
- A família de sua esposa também, Petergille. – disse e viu Emily ficar
confusa e este um tanto desorientado, engolindo em seco. – Perdão. Achei
que a essa altura ela já soubesse.
- Soubesse do que, querido? – a baronesa questionou tocando no braço do
marido.
Meredith estava se divertindo em um baile como há muito não se
lembrava.
- Nada. – disse sisudo. – Carffort está desesperado.
- Você está desesperado. – devolveu a acusação. - Seu marido não está
falido, Lady Petergille. – retrucou este, sério. – É um pouco pior que isso.
Emily arregalou os olhos.
- Ele está devendo. – Nathan deu um sorriso diante do desespero do
homem. – Se nos derem licença.
Ele beberia aquela noite. Até trançar as pernas.
Capítulo 6
Um pouco sobre mim

Não precisava ser um grande psicanalista para deduzir que havia algo
errado com Nathan. Era uma verdade bastante óbvia. Lavínia teria certeza,
se não houvesse algo errado com ela também. O fato era que rever Lorde
Petergille havia sugado cada energia de seu corpo e tudo em que conseguia
pensar naquela carruagem era que não era para a noite terminar daquela
maneira.
Estava exaurida. Esperava mais de sua resistência e pela expressão de
Lorde Carffort, ele também. Simplesmente odiava parecer fraca, mas ao
menos eles só demonstraram fraqueza quando a porta do veículo havia sido
fechada. No baile eles eram apenas o casal mais apaixonado da temporada.
Ela admirava isso nele. Imaginou que fosse um homem imaturo, apesar de
inteligente, mas ele não era. Sabia vestir máscaras tanto quanto ela, ainda
que tivesse uma natureza mais esquentada comparada a sua frieza. Naquele
momento, no entanto, tal como uma beldade exausta após um baile de
máscaras, haviam as deixado de lado.
- Você não está bem.
O comentário desviou a atenção de Nathan de uma mancha minúscula no
vidro da carruagem. Quanto tempo ele estava olhando para aquela coisinha
insignificante?
- Eu acabei com um casamento que mal havia começado. – olhou com
feições graves para a noiva. - É claro que não estou bem. – como se ela
tivesse culpa naquilo.
- Ele ofendeu sua família, era esperado que reagisse. – respondeu,
ignorando a expressão dele. Com a frieza de uma geleira em pleno inverno.
Soltou uma risada curta sem humor algum.
- Quem dera fosse isso que tivesse feito com que minha razão
desaparecesse.
- E não foi? – nem mesmo ela conseguiu esconder o interesse e a
curiosidade. Quem era aquele homem?
- O modo. – disse quase por entre dentes. - O modo como ele olhou para
você Lavínia... – deu um suspiro fundo como se a raiva o sufocasse. - Era
como se a tivesse visto nua a poucos minutos. Maldição! Eu poderia matá-lo.
Houve uma mudança sutil no corpo dela. A coluna ficou mais ereta e a
cabeça mais altiva. Um furacão não a derrubaria. Se a carruagem virasse, ela
ficaria onde estava.
- Se o barão é um porco imoral, isso não faz de mim a prostituta dele.
- É claro que não. – disparou com o balde de água fria que ela havia
jogado em sua cabeça fervendo. O que havia de errado com ele? - Eu só sou
um imbecil.
- Não é um imbecil, Milorde. – negou com um leve sorriso que parecia
dizer o contrário. - Só um homem curioso.
- Curioso. – repetiu como se se acostumasse com a palavra.
Já havia sido chamado de lindo, poderoso, sedutor, cativante e também
fora chamado de tolo, estúpido e idiota por suas irmãs – especificamente por
Meredith, depois que firmou compromisso com Emily. Mas nunca, nunca
mesmo fora chamado de curioso. Era algo novo a ser analisado. Melhor que
imbecil, certamente.
- Sim.
- O que exatamente faz de mim um homem curioso? – instigou se
inclinando na direção dela.
Os poderosos ombros esticando o tecido do casaco e fazendo um calor
desconfortável perpassar o corpo dela. Estava perdendo o jogo. Nathan a
atacava com ciúmes e agora com sensualidade. Estava na hora de colocá-lo
novamente na defensiva.
- É bastante curioso que sua ex-noiva esteja erguendo as saias para o
barão de Petergille nesse momento, e o senhor esteja preocupado com o
modo com que ele olhou para mim. – houve um discreto “arregalar de olhos”
da parte dele. Lordes não estavam acostumados com mulheres tão francas. -
Achei que fosse dela que sentiria ciúmes. Afinal, nossa relação é uma
relação de negócios, Lorde Carffort. Não seria tolo a ponto de ter
sentimentos por mim.
Maldição! Ela estava tendo sentimentos por ele! “Que inferno de
complicações!” era uma frase que o Sr. Solluin costumava dizer com
frequência e agora a repetia mentalmente.
- Sentimentos... -forçou um sorriso despreocupado e preguiçoso
encostando novamente no banco. - Está indo longe demais, madame.
- Melhor que eu esteja. – respondeu. Por que aquele espartilho em especial
estava machucando o lado esquerdo de seu peito? Seria um novo modelo?
- Você está. – reforçou completamente na defensiva. - Mas se esconde
algo de mim, eu vou exigir que me diga. Quero um casamento transparente.
- Vai acabar enxergando o que não quer ver, meu lorde. – advertiu.
Homens como ele não gostavam de casamentos transparentes.
Gostavam de pequenas mulheres perfeitas que se comportavam
exatamente como mandava o rigor da sociedade e não eram nem
remotamente sinceras com ele, com o mundo, com elas mesmas. Mas com o
tempo ia descobrindo que Nathan não podia ser enquadrado facilmente na
classe em que havia nascido. Talvez tivesse a ver com o sangue plebeu, o
lado “Collins” a família. Graças a Deus por aquele lado existir!
- O que eu quero ver ou não sou eu quem decido.
E lá estava o lado “Carffort”. Arrogante. Autoritário. Possessivo. Com a
vaga ilusão de que o mundo girava ao redor deles. Muito parecido com ela,
na verdade. Muito irritante também.
- De onde você e Petergille se conhecem?
A mansão dos Solluins já apontava pela janela. A construção nova que
Tristan conquistara com seu próprio esforço e suor. Com um sorriso
originário da lembrança dele, deu um suspiro fundo. Renovada.
- Entre e tome uma bebida comigo. – convidou como se fosse uma noite
quente comum. Não havia sedução, só um convite entre amigos, entre sócios
da mesma empresa. - É uma história longa demais para se ter em uma
carruagem e desconfortável para se ter sóbrio.
- Que seja.
Ele estava mesmo precisando beber algo. De novo.

...

Lavínia teve o cuidado de esperar até que Nathan tomasse os dois dedos
de Whisky antes que contar o que deveria.
O tanto que este estava à vontade sentado na poltrona mais confortável da
sala de estar dela era desconcertante. Deixara o casaco com o mordomo, a
gravata pendia frouxa no pescoço revelando pelos escuros no colarinho
aberto e havia o modo dele se sentar. Como um rei que espera com
indiferença seus súditos se aproximarem.
Sem incentivo, encheu o copo com a segunda dose de Whisky. Muito
bem. Não haveria momento melhor que aquele.
- Há uma história longa por trás da viúva rica com o coração de gelo.
O copo parou a meio caminho da boca dele. Daqueles lábios carnudos que
ainda se lembrava da sensação nos dela. Droga! Ele não podia ter ao menos
uma cicatriz ou outra deformidade que o deixasse menos intimidador? Mas
que tolice! Era pecar contra a natureza desejar algo assim. Um crime! Afinal,
ela havia feito um excelente trabalho.
- Fascinante, eu espero.
- Irá entretê-lo por alguns minutos.
Lavínia deixou os dedos longos passearem pelo braço do sofá. Seguindo
os bordados de tom dourado que tinham sua própria lógica. Lógica essa que
se tornou inexistente quando Nathan esticou a mão e tocou a dela.
- Conte-me. – pediu com mais carinho que autoridade.
Ela se viu contando até o que não pretendia. O que não havia contado a
ninguém mais.
- Eu nem sempre fui rica. Nasci em uma casinha apertada, sem luxo ou
fartura. Meu pai era um empregado do Sr. Solluin que apesar de ser um
homem generoso não podia pagar muito para um carregador de caixas.
Tínhamos pouco mais que o suficiente para viver.
Não esperava que ele entendesse. Um homem que nasceu envolto em
tanto luxo não entenderia, mas ao menos ele a ouvia. E Deus! Ele era um
magnífico ouvinte. Os olhos azuis fixos nela a envolvendo em um conforto,
em um abraço quente que a forçava a revelar tudo. Queria abrir seu coração
para ele.
Mas não se abre um coração de gelo com tanta facilidade. Não sem que
ele vire milhares de caquinhos minúsculos.
- Eu ganhava uma roupa a cada natal. Os sapatos eram comprados quando
já estavam furados. Geralmente, eles eram muito maiores que o meu pé, o
que formava bolhas e machucados.
As imagens que vinham na cabeça de Lorde Carffort lhe deram um
arrepio violento. Pés brancos e pequenos sangrando e com bolhas sendo
enfiados na água morna. Uma criança ruiva de olhos incrivelmente azuis
franzindo o cenho de dor. Talvez uma ou duas lágrimas escorrendo. Era
tortura.
- Deve ter sido uma infância difícil.
Que frase tola e simples para explicar o que ele tinha sentido. Que
eufemismo mal empregado. Ele queria puxar aquela criança doce para o
colo, abraçá-la e fazê-la dormir com canções reconfortantes. Só que aquela
criança não existia mais. A vida difícil a havia matado impiedosamente.
- Foi maravilhosa. – respondeu para sua surpresa. - Difícil ficou quando
ele se foi.
Esforçou-se para não pensar em algo mais horrível que aquilo, mas tinha
que saber. Tinha que perguntar porque ele já amava aquela criancinha e que
Deus o protegesse de amar a mulher que ela havia se tornado.
- O que aconteceu?
- Eu tinha quatorze anos quando ele contraiu meningite e partiu. – havia
uma habilidade louvável de esconder emoções. Mesmo ali. - Meu pai era tão
tolo quanto era bom, ou seja, extremamente tolo.
Mesmo assim havia um carinho genuíno nela ao falar dele. Como se
houvesse perdoado cada pecado cometido por este.
- Acreditou que deixar sua filha como tutela de seu irmão caçula era uma
boa ideia e havia economizado uma soma boa em dinheiro para que eu não
fosse um inconveniente, mas eu fui, mesmo assim.
O polegar de Nathan deslizou pelas costas da mão macia e delicada.
Temeu interromper a onda de coragem dela, mas não pôde se conter. Lavínia
não era um inconveniente, não de um jeito ruim, nunca seria.
- Meu tio era um desgraçado que não tinha amor nem pelos próprios
filhos. – deu um riso triste. – Em um mês ele gastou o dinheiro que meu pai
levara uma vida para poupar. – fez uma expressão enojada. - Com bebidas,
jogos e meretrizes. Havia noites...
Fechou os olhos rapidamente tentando se acalmar, manter as feições
firmes.
- Havia noites em que eu dormia com travesseiros apertados contra as
orelhas para não ouvir os sons que vinham do quarto dele. – deu um sorriso
fraco. – Eu era só uma criança boba. Eu não entendia, só não queria ouvir.
- Você era uma criança, Lavínia. – reforçou enfatizando que não havia a
parte do “boba”, não era o adjetivo que combinava com ela. – Uma criança
que caiu nas mãos do homem errado.
A Sra. Solluin se levantou e caminhou até uma janela. Aquilo estava indo
longe demais, precisava desesperadamente de ar. Não pararia. Não podia.
Havia sido muitas coisas na vida, ingênua, tola e até mesmo tímida, mas
nunca, nunca fora uma covarde. Aquela não seria a primeira vez.
- Eu lembro que em uma semana as noites foram estranhamente
silenciosas. – inspirou o ar fresco na noite escura. – Em um domingo à tarde
meu tio me chamou ao escritório dele. Disse sem delongas que eu estava
dando muitas despesas e se não passasse a trabalhar me jogaria na rua.
- Ele o quê?!
A voz de Nathan soou mais próxima do que ela esperava. Fez um gesto
com a mão descartando o espanto dele, como se não fosse nada digno disso.
- Eu virei uma criada. – engoliu em seco. – Na casa de Petergille.
Lorde Carffort parou há poucos centímetros dela. Paralisado pelo choque.
Ela sentiu a presença dele em suas costas e esperou pelos gritos de revolta.
Ele era bom em surpreendê-la.
- Nunca mais. – sussurrou aquela promessa no ouvido dela.
Lavínia se virou para ele. Os olhos adquirindo um tom perolado devido às
lágrimas reprimidas que não cairiam tão cedo. Nunca, de preferência.
As mãos grandes de Nathan deslizaram dos ombros dela até seu rosto que
ele segurou. Para capturar cada gota de atenção daquele olhar azul.
- Nunca mais você terá que fazer algo que não quer, nunca mais irá se
sentir indesejada, nunca mais vai ter algo menos do que o mais pleno e
estúpido luxo. – as palavras eram pequenos facões penetrando no coração
dela. – Eu quero que vá pro inferno o seu conceito de que isso é um maldito
acordo de negócios. Enquanto for minha esposa você terá tudo que eu puder
dar. Absolutamente tudo.
Ela queria tudo. Ela queria absolutamente tudo. Queria inclusive o beijo
violento e desesperado que passaram a dar naquele instante.
Fazia quanto tempo desde sua última mulher? Cinco, três dias? Parecia
uma tenebrosa eternidade. Uma terrível eternidade desejando uma mulher,
desejando Lavínia.
Suas mãos a puxaram para si, deslizando em círculos lascivos por seu
quadril carnudo. As bocas se entrelaçavam com uma sincronia própria de um
beijo urgente. E o cheiro... O cheiro perfeito dela.
Ela era perfeita. Do tamanho perfeito. Alta o bastante para não precisar
deixá-la levitando para que seu membro latejante encontrasse seu destino.
Doce, irritantemente coberto por saias e anáguas.
- Lavínia... – soltou o nome dela como se fosse um impropério.
O toque úmido e quente dos lábios dele junto com a respiração em seu
pescoço arrepiaram sua pele. Seu corpo se aproximou mais do dele, suas
mãos agarrando o tecido grosso do casaco, seu nariz buscando seu cheiro
masculino. O desejo que sentia por ele descia dos seios espremidos no
espartilho até o ponto em que a ereção dele a provocava, insistindo. Havia
ficado impossível respirar.
Havia algo sobre esperar até a noite de núpcias para se consumar o
casamento. Havia regras claras sobre isso. O problema era que a única coisa
que estava clara no momento era que ele era um homem cheio de desejo e
ela uma mulher cheia de desejo, ambos com corpos incríveis e mais que
dispostos para se unirem ali mesmo naquela sala empetecada e burguesa.
Se havia alguma dúvida ou decoro que o impedisse de possuí-la, ele as
esquecera quando envolveu um dos seios redondos com a mãos. Sua noiva
resfolegou, gemeu e seu mamilo ficou teso ao toque dele.
Não precisava de mais encorajamento. Sua mão desceu até o joelho dela,
dobrando a perna torneada que apoiou em seu quadril. Iniciou-se uma luta
intensa subindo a saia dela, explorando seu decote, alisando sua coxa e
então...
Lavínia o empurrou.
Nathan arregalou os olhos para o rosto dela. Parecia estar olhando para o
próprio reflexo, ela estava tão espantada quanto. Olhando para as mãos
espalmadas no peito dele como se não acreditasse na própria atitude.
- O que foi isso? – questionou este quando as mãos dela deixaram seu
peito.
- Nada. – respondeu ainda contendo a respiração ofegante.
- Lavínia. – tocou os dedos no queixo dela para que não desviasse o olhar.
– Isso foi alguma coisa. O que aconteceu?
- Nada. – repetiu o beijando.
Droga! Ela o estava beijando de uma forma que fazia todo seu corpo
latejar. Mas aquela reação, aquela reação não era normal e maldita fosse sua
natureza de cavalheiro, porque ele parou.
- Droga! – xingou encostando a testa na dela. A respiração ofegante. –
Droga, droga, droga.
- Milorde? – perguntou como se não compreendesse.
Nathan a soltou delicadamente e a ajudou a se recompor, mas a confusão
permanecia.
- Luísa está há alguns quartos daqui. – só há pouco se lembrara de sua
existência. - O que eu estava pensando? – a resposta era óbvia. Não estava.
A anfitriã estava confusa e para sua vergonha, enquanto verificava a
situação de seu penteado, disse a primeira coisa que veio à cabeça.
- Luísa está dormindo.
Santo Deus! Aquilo era um convite que a fez corar violentamente. A
surpresa ficou estampada no rosto dele e o constrangimento no dela.
- Senhora? – uma voz questionou do lado de fora da porta.
Abençoados fossem todos os seus empregados, amém.
- Sim?
- Abigail está aqui. – respondeu o ser benevolente ainda oculto.
- Abigail? – Nathan questionou erguendo uma sobrancelha e depois
negou. Não importava quem era. – Eu devo ir embora. Será um escândalo
se...
Lavínia deu um sorriso, achando graça.
- Oh querido! – soltou uma risadinha. – Abigail é o escândalo.
De fato.
Quando movido pela curiosidade caminhou até a sala de visitas, havia
nada menos que uma meretriz. Confortável no sofá.

...
Capítulo 7
Abigail

Não sabia que pecados infinitamente tenebrosos havia cometido para ser
sujeito àquele tipo de castigo, mas lá estava ele. Em algum tipo de pesadelo
assustadoramente real em que ele e sua noiva perturbadora dividiam a
mesma sala de estar com uma meretriz. Com uma meretriz com a qual ele já
havia dormido. Se havia algo parecido com a mais absoluta estranheza era
aquilo.
Abigail havia cumprimentado a ele com um aceno neutro que
correspondeu, fingindo que sequer se lembrava da ocasião em que a havia
levado para cama. Era óbvio que ela lembrava. Ninguém se esquecia sem
mais nem menos que o filho de um Duque já esteve entre suas pernas. Mas
os dois se comportavam como duas criaturas infelizes acometidas por uma
dose cavalar de amnésia. E Lavínia... Maldição! Ela... Elas se comportavam
como se fossem amigas intimas.
Só queria ser menos curioso, porque não tinha outro motivo para estar ali.
Preso naquela situação completamente estranha.
- Oh Abby, você tem que parar com isso. – disse verdadeiramente
preocupada se inclinando para tocar seu olho.
Os lábios vermelhos se curvaram em um sorriso experiente. O contraste
com a pele pálida tornava-os ainda mais sedutores e os cachos negros caíam
sobre seus ombros de forma irreverente como ela. O rosto bonito parecia ter
sido esculpido para a perdição dos homens e ela se aproveitava disso.
Abigail era provavelmente a prostituta que mais teve nobres entres suas
pernas, ela sabia enlouquecê-los e ele não fora exceção.
Parecia que há poucos minutos ele se tornara uma ridícula e risível
exceção de homem que não queria ir para cama com Abby. Que ao invés dos
magníficos seios fartos que pulavam de seu decote, estava com a atenção
voltada para onde estava a de Lavínia. A mancha roxa suave ao redor do
olho da meretriz.
- Não, ruiva. – ela tirou um espelhinho do bolso e avaliou o estrago. – Eu
só preciso de mais pó de arroz.
- Se continuar com isso poderá se machucar feio. – a Sra. Solluin insistiu.
– Enquanto estiver no ramo eu não posso proteger você.
Guardando novamente o objeto de sua vaidade no bolso, estendeu a mão
para tocar o rosto da amiga. Um sorriso sincero escapava de seus lábios.
- Eu sei que é difícil para você acreditar, mas eu gosto do meu trabalho. –
como das outras vezes, a tentativa de convencê-la da verdade fora inútil. –
Os homens são criaturas divertidas. – ela se lembrou que havia um daqueles
seres na sala. - Sem ofensa, Milorde.
- Não estou em posição de me sentir ofendido. – disse sério, com os
braços cruzados.
Não estava em posição de nada no momento. Exceto, talvez, dar um tiro
na própria cabeça.
Lavínia poderia não estar convencida, mas ele estava. Sabia o quanto a
convidada gostava de seu trabalho. Era por isso que aquela reunião era tão
estranha. Abby não era uma mulher desafortunada que buscava ajuda. Ela só
estava ali meramente para conversar. Que ridículo!
- E também podem ser violentos. – respondeu parecendo bastante
inconformada. – O que aconteceu?
Abby deu uma olhada para Nathan e então novamente para ela. As
sobrancelhas pintadas arqueadas em insinuação.
- Tudo bem. Ele pode ouvir. – Lavínia autorizou.
Lorde Carffort franziu o cenho. Havia realmente tentado. Tentara ficar
calado, mas falhou. Aquilo estava passando dos limites. Ela recebia uma
prostituta em casa e agora as duas tentavam decidir se ele poderia ouvir ou
não a conversa? Ele era o convidado indesejado? Agora estava com certeza
ofendido.
- Alguém pode me dizer o que diabos está acontecendo? – questionou
bastante irritado.
- Lorde Carffort é meu noivo e é de extrema confiança. – soou a voz
firme. - Ele pode ouvir o que quer que tenha a dizer.
Bom Deus! Ela tinha transformado toda sua raiva em geleia com aquela
frase aparentemente inocente. Não sabia de qual parte gostara mais do “meu
noivo” ou do “extrema confiança”. Talvez o que gostara mesmo fora da
sinceridade de ambas. Passou a mão pelo cabelo com um suspiro fundo.
- Lorde Haroj. Você queria minha opinião sobre ele. – Abby começou
ainda com alguma hesitação. – Não faça negócios com ele.
- Foi ele que a machucou?
Lavínia parecia disposta a se levantar e ir ela mesma atrás de Haroj.
Esganar o pescoço do homem alto e magro até que prometesse jamais tocar
em uma mulher novamente.
- Ah não! Pobre rapaz. – ela riu. – Ele é adorável, Lavínia, mas está falido.
Falido a ponto de não poder pagar a mim pelo trabalho.
- Céus! – exclamou chocada. - Quem imaginaria?! Um Haroj? Falido? –
deu um sorriso maroto.
- Como você diz, ruiva, a nobreza é uma classe fadada a extinção. –
zombou e então se voltou para Nathan. – Perdão, meu lorde.
Nenhuma das duas parecia arrependida da ofensa, então não se deu o
trabalho de responder. Não podia culpá-las. Diversos homens tinham a
mesma teoria, incluindo ele.
Não, Nathan não acreditava que seu pai, seu irmão ou mesmo seu
sobrinho Travis fossem acabar em algum beco sujo mendigando. Era a
nobreza preguiçosa, irresponsável e arrogante que corria esse risco. A
nobreza que se recusava a trabalhar, a investir, a se aliar aos novos ricos. Lá
estava ele, se aliando aos novos ricos. A uma encantadora, sedutora e
deveras excitante nova rica. E ambiciosa, ah! Como aquela criatura era
ambiciosa!
- O que eu faria sem suas informações? – indagou a Sra. Solluin para sua
amiga e convidada.
A naturalidade dela ainda o espantava. Realmente não dava a mínima para
os padrões esperados para a noiva de um nobre. Não ali entre quatro paredes.
Ele só imaginou o que mais ela poderia fazer entre quatro paredes.
- Faria amizade com Sisi. – gracejou com uma gargalhada escandalosa.
Sisi era outra meretriz muito popular entre os nobres. Ela certamente
conseguiria boas informações, mas não era tão confiável. Abby era sua
amiga desde os cinco anos, haviam praticamente crescido juntas até
tomarem rumos diferentes na vida. Só se reencontraram poucos anos atrás.
Ela havia sido uma amiga leal desde então.
- Eu tentei defendê-lo da raiva dos meninos, eles não gostam que ninguém
faça caridade. – os meninos tinham certamente mais que 1,80m de altura e
muita disposição para socar quem ousasse não seguir as regras da casa.
Disposição e músculos. - Entrei no meio da briga e fui atingida por engano.
- Abby. – soltou em tom de censura. - Agora está sem pagamento e
machucada.
- Eu não diria sem pagamento. – um sorriso que delatava sua profissão
apareceu nos lábios dela. - Ele era bem interessante na cama. Um homem
carinhoso com prostitutas não é algo muito comum.
- Não, eu imagino que não. – riu, não se conteve.
Nathan ficou fascinado pela forma como a risada escapou daqueles lábios
rosados. Aquela mulher não tinha limites. Havia se aliado a uma prostituta a
troco de informações sobre nobres e sócios em potencial. Não havia nada
que ela não faria para conseguir sucesso. Até mesmo se casar com ele.
A ideia foi como uma facada no peito. Que tipo de estúpido ele havia se
tornado?
Não, aquilo não era estupidez. Ela sentia algo por ele. Ainda que fosse o
mero desejo carnal, ele despertava alguma coisa nela e o modo como ela
havia aberto seu coração para ele minutos antes... Não havia como negar. Ela
e ele tinham uma ligação. De um tipo bem esquisito, mas tinham.
Ainda assim não poderia passar nem mais um minuto ali. Sua cabeça doía
devido a bebida e seu corpo doía por culpa de Lavínia. Desejo não saciado
podia fazer tanto mal para um homem quanto a mais terríveis enfermidades.
- Eu já vou. – declarou, se levantando.
Não que ele não pudesse sair sem aviso, mas não seria educado. Não seria
certo. Ainda que, levando em conta que sua noiva estava recebendo uma
prostituta em casa que contava a ela como era seu último cliente, não parecia
haver muito certo ou errado naquela noite.
- Espere um momento para que eu pegue seus pertences, meu lorde. –
disse a Sra. Solluin.
Levantando-se ereta, caminhando como uma rainha que parecia deixar
marcas no assoalho por onde passava. Fora pegar os pertences dele. Não
precisava ter feito isso. Ainda que fossem quatro da madrugada tinha certeza
de que se estalasse o dedo, ao menos meia dúzia de criados estariam prontos
para atendê-la, mas não. A própria Lavínia foi atendê-lo.
Ela o deixara sozinho com uma prostituta. Ou era louca, ou confiante ao
extremo, ou ingênua, mas essa última hipótese não o convencia. Ingenuidade
não combinava com uma jovem tão inteligente e determinada.
- Milorde. – uma voz naturalmente sensual o chamou.
Olhou para Abigail. Com o terrível anseio de que ela despertasse nele
alguma excitação para demonstrar que ainda era o mesmo. Nada aconteceu.
Seu amigo parecia adormecido dentro das calças, ou simplesmente decidido
a tirar o restante do dia de folga porque estava irritado pelo encontro
frustrado com sua noiva.
- Eu espero que saiba a importância que tem para ela. – se houve algum
momento em que Abigail falou sério na vida, foi aquele.
- Do que está falando? – questionou franzindo o cenho em estranheza.
Tentando se convencer de que seus ouvidos o estavam enganando.
- Significa muito para ela se casar novamente.
Deus! Ele havia ouvido certo e ainda havia mais.
- Lavínia sempre teve dificuldades de confiar nos homens. – se aproximou
dele, o rosto sério e até mesmo preocupado. - Mesmo o pai dela a
decepcionou.
Lorde Carffort abriu os lábios, mas as palavras não saíram. Fazia total
sentido. Um pai que a deixava a mercê de um canalha como o tio dela,
certamente a tinha decepcionado. Não era nenhuma surpresa que não
confiasse nos homens, que amasse tanto o falecido marido.
- Depois de Solluin ela não confiou mais em ninguém. – mencionou como
se lesse seus pensamentos. - Por isso se importa tanto com a minha opinião.
Olhando nos olhos castanhos de Abby uma compreensão se fez.
- Você falou a meu favor. – nem se deu ao trabalho de acrescentar o ponto
de interrogação.
- Certamente, mas foi ela que escolheu confiar no senhor.
Aquilo, supunha, devia valer de alguma coisa. O sangue quente que
pulsou em seu coração pareceu achar o mesmo.
- Fiz uma descrição minuciosa a seu respeito. – contou a meretriz.
- De minhas finanças?
O sorriso pecaminoso voltou aos lábios dela.
- Não. – respondeu sucinta. - De outras qualidades. – deu um olhar
sugestivo até a frente das calças dele.
Nathan arregalou os olhos. Abby pareceu achar encantadora sua reação,
mas aquilo não a tirou do foco. Até porque ele não era nenhuma mocinha
inocente diante da qual tinha que poupar palavras.
- Tenha em mente que ela não é tão forte quanto parece. – acrescentou.
Não, ela não era, mas ainda assim parecia. Quando estava prestes a
responder, a prolongar o assunto e descobrir mais sobre a mulher que
desposaria, Lavínia voltou empossada de seu casaco impecável e cartola.
- Está aqui. – disse entregando os dois objetos aristocráticos a ele. Um de
cada vez.
Sem o casaco Nathan era tentador, com o casaco era irresistível e com a
cartola... Misericórdia! Não havia qualquer esperança para a lucidez dela.
- Nos casaremos no final dessa semana. – declarou decidido.
- Em seis dias? – espantou-se.
- Ficaria surpresa com o que o filho de um Duque consegue em seis dias.
– deu um sorriso.
Virgem Mãe! Aquele sorriso!
- Comece pelo vestido amanhã. Roupas para você e Luísa. – o tom de
autoridade não a ofendeu. - Por minha conta. – já essa parte a incomodou em
demasia.
- Mas eu posso pa...
- Por minha conta. – insistiu em um tom de extrema autoridade.
- Certo. – era mesmo inútil insistir. Era teimoso como uma mula
empacada.
- Sra. Solluin. Abigail.
Cumprimentou tocando a ponta da cartola e então saiu.
Era estúpido, concluiu, mas não tão estúpido quando percebeu que a
mulher mais experiente de Figior fazia a mesmíssima coisa. Observava
fascinada a forma como o casaco batia nas pernas musculosas enquanto ele
andava. O modo como o ar parecia abrir e lhe dar passagem, carregando
apenas o cheiro inebriante. Um calor lhe subiu pelo corpo e não conseguia
fechar a porta. Nem queria.
- Peço que me perdoe por confessar amiga. – pediu Abby. - Não conheço
um homem tão charmoso quanto ele.
- Eu jamais a culparia por dizer a verdade, Abby. – respondeu ainda
fascinada ao vê-lo subir na carruagem. - Não é de você que tenho medo e
sim das outras.
Ah! As outras iam querê-lo. Todas elas iam querê-lo. Embrulhado para
presente.
- Vou ensiná-la coisas que ainda não a ensinei, ruiva. – prometeu com um
risinho pecaminoso. - Esse homem não irá querer sair da cama enquanto
estiver lá.

...
Capítulo 8
Sobrinha enxerida

O raio do sol do meio dia se intrometia pela janela e aquecia o quarto


trazendo com ele o cheiro de pão assado de uma confeitaria próxima. Era um
dia convidativo para dar um passeio, para simplesmente ir até o parque ou
algo assim.
Nosso herói não estava disposto a nada a não ser dormir e estava
sonhando. Um sonho agradável e envolvente do qual não queria acordar.
Lavínia sentada na grama de uma imensa propriedade no campo, os olhos
azuis intensos, os lábios rosados soltando um riso enquanto três pequenas
criaturinhas corriam ao redor dela. Ao redor deles. Enquanto Luísa lia um
livro com a cabeça no colo dele, três meninos ruivos de no máximo sete anos
corriam um atrás do outro com olhos azuis que prometiam travessuras. E ele
estava feliz. Deus! Como ele estava feliz. Até, bem... As coisas ficarem bem
esquisitas.
Sem aviso um pássaro negro e imenso voou da árvore mais próxima e
passou a bicar sua cabeça com empenho. Toc, toc, toc... Era infernal de tão
doloroso.
Toc, toc, toc...
- Milorde? – uma voz masculina conhecida chamou.
Nathan abanou as mãos sobre a cabeça para espantar o pássaro. Até
perceber que ele era na verdade, seu criado. Batendo de forma irritante da
porta. Não havia pássaro algum, ninguém bicando sua cabeça, mas a
sensação era a mesma.
Sua resposta foi um gemido.
- Tem visitas, meu lorde. - Valério insistiu apesar de contrariado.
Como seu criado há dez anos, sabia que o patrão ficava com um humor
péssimo quando era despertado daquela maneira. Sobretudo depois de uma
noite longa em que ele havia bebido muito. Tudo que ele não queria era um
Carffort com mau humor. Eles tendiam a ser insuportáveis.
- Eu não estou em casa até meio dia. – respondeu com certa rispidez.
Maldição! Um homem não podia ter paz em sua própria casa? Em seu
próprio quarto?
- Já são duas horas da tarde... Meu lorde. – a voz aparentava certo
constrangimento.
Ele riu. O senso de humor venceu. Duas da tarde e ele com uma dor de
cabeça descomunal de quem estava há dias sem dormir. Como se fossem
ainda cinco da manhã e o sol mal houvesse nascido.
- Até meio dia de amanhã então. – gracejou com um sorriso.
- Ah! Deixe-me entrar! – ouviu uma voz feminina impaciente.
Ele reconheceria aquela voz em qualquer lugar. Sara Degard Trian. A
criatura mortalmente encantadora que tinha tanta energia quanto o pai. Tanta
que chegava a ser irritante. Como o sol que é maravilhoso se observado por
entre as montanhas, mas que causa cegueira em seu estupor.
Naquele momento Sara ou Lady Trian - como era agora chamada -estava
inegavelmente em seu estupor. Vestida divinamente em um vestido de
passeio fúcsia, com os grossos fios negros presos em um penteado elaborado
e o rosto com um olhar castanho de repreensão. Magnífica, sem dúvida.
Alguém deveria parar aquela criatura e certamente não seria o marido
dela. O Baronete de Trian era maior concepção da calma e da paciência. Se
visse a esposa naquela situação ergueria os olhos escuros do jornal que
parecia estar sempre lendo, daria um sorriso e diria algo como “Você não
quer convidar Lorde Carffort para tomar chá conosco um dia desses, meu
bem?” Deveria ser exatamente por isso que ainda estavam casados.
- Sara! Que diabos! – xingou, não se conteve. – Não pode entrar no quarto
de um homem assim. Eu poderia estar acompanhado.
Ela deu de ombros com irreverência e se sentou na beira da cama.
- Valério me garantiu que estava sozinho.
Nathan franziu o cenho, insatisfeito com a forma como estava perdendo a
discussão. Aquilo, devia admitir, era muito comum quando se tratava das
mulheres da família dele.
- Eu poderia estar nu. – voltou a argumentar.
- Você não está. – ela franziu a testa e olhou para os braços e ombros
despidos dele. Então arregalou os olhos quando não viu indícios de roupas. –
Está?
Os lábios do lorde se curvaram em um sorriso maroto.
- Seria bem feito se eu estivesse, não acha? – indagou e a viu corar. Um
rubor merecido. – Diga logo o que veio fazer aqui.
- É melhor mudar esse tom. – advertiu com semblante brincalhão. – Ou
vou chamá-lo de “tio Nathan” na frente de toda a sociedade no próximo
baile.
- Bom Deus! – soltou um gemido de desconforto. – Jamais comparecerei
em um baile que você estiver.
Sua reputação não sobreviveria a um desatino daqueles. Não que fosse um
segredo. Aquela informação não era a do tipo que alguém consegue
esconder, mas por algum motivo torná-la ainda mais pública era humilhante.
- Seu orgulho está ferido, meu tio querido? – indagou com semblante
inocente e o viu franzir o cenho.
Ah! Aquela Maldição de ser o caçula da família. Ter uma sobrinha um ano
mais velha que você. Pior que isso, ser tio avô antes mesmo de ser pai.
- Exato. Sou seu tio. – decidiu levar aquela discussão a outro nível. - Você
me deve respeito.
Ela se calou por um momento - a expressão contrariada - e ele sorriu.
Sempre funcionava.
- Vim oferecer minha ajuda. – remexeu o tecido da saia como se estivesse
amarrotado.
Alguns poderiam confundir a atitude com nervosismo, mas ele sabia que
nervosismo e timidez não faziam parte da personalidade dela. Provavelmente
era um indício de que havia passado dos limites e agora introduzia o assunto
aos poucos, com calma.
- A respeito de? – instigou até o olhar dela encontrar os dele.
- Quero ficar com Luísa por uma semana após o casamento de vocês. –
declarou sem mais delongas.
Nathan soltou um “ha” que era para ser o início de uma risada se ainda lhe
restasse humor. Só podia ser uma piada. Sua sobrinha esteve na propriedade
do marido até poucos dias, chegara naquela manhã ou na noite anterior. Não
era esperado que ela soubesse da existência de Luísa, menos ainda que
quisesse opinar algo sobre a menina. Era para ser uma surpresa.
Ah! Mas era tão típico dela! Tão típico delas.
- Acabou de voltar do campo e já está tumultuando. – provocou cruzando
os dedos atrás da cabeça. Os músculos dos braços expostos e ainda mais
poderosos pela posição.
- Sim e estou muito ofendida por você não ter me contado que estava
noivo. – parecia mesmo ofendida. Os lábios dela chegaram a se retorcerem
em um biquinho de insatisfação.
- Eu não estou noivo há muito tempo. – se é que consolava. – Eu só me
correspondia com minha noiva por carta há anos.
- Ah sim! – sacudiu a mão como se o adendo não fosse necessário. – O
plano de tia Meredith.
- Inteligente, devo admitir. – ainda que bastante desconcertante. – Não sei
como ela pensou naquilo sozinha. – na verdade, sabia. Suas irmãs, todas
elas, eram muito inteligentes.
- Não importa. – respondeu ainda focada em seu ponto inicial. - Eu vou
ficar com Luísa por uma semana.
- E por que você faria isso? – ergueu uma sobrancelha em desconfiança.
Sentia cheiro de encrenca.
- Minha mãe me disse que você precisa de privacidade.
Isabelle. Nathan soltou um resmungo. Mesmo Isa não conseguia ficar sem
interferir. Era mesmo um homem cercado de amor. Às vezes ele só queria
um pouquinho menos de atenção por mais irônico que pudesse parecer.
- Os quartos têm trancas. – disse como se fosse mais do que óbvio. -
Teremos privacidade.
- Bom Deus Nathan! Eu já fui recém-casada! – exclamou exasperada. Até
se virando na cama para estar de frente para ele o máximo que podia. - Eu
sei que essas coisas não acontecem só nos quartos e também sou mãe, eu sei
que dificulta ter uma criança transitando pela casa... Ou três.
- Sara... – tentou interromper com os olhos arregalados. Foi obviamente,
ignorado.
- Muitas vezes eu e Trian tivemos que parar o que estávamos fazendo
porque Richard resolveu...
- Sara, em nome de Deus! – praticamente gritou. Estava a ponto de tampar
os ouvidos. - Você é minha sobrinha eu prefiro conversar com você sobre
botânica a ouvi-la narrar o que faz o deixa de fazer com Trian.
- Ora, somos um casal feliz. – deu de ombros da típica forma descontraída
dos Degard. – Mas, enfim, Luísa fica comigo por uma semana.
Quantas vezes ele seria obrigado a ouvir aquela maldita frase?
- Não. Está louca? – era uma pergunta inútil, a resposta era clara. - A
menina sequer a conhece.
Sara franziu o cenho e ergueu uma das sobrancelhas. As mãos foram parar
nos quadris. Contrariada, certamente contrariada.
- Está insinuando que ela pode não gostar de mim? – questionou com os
olhos semicerrados.
- Mesmo que ela te ame. – não conteve um sorriso divertido. - Precisamos
do consentimento de Lavínia.
- E se eu disser que Luísa já me adora e que já tenho o consentimento de
Lavínia? – mordeu o lábio de uma forma suspeita.
Ali estava a prova de que havia passado dos limites.
- Não. – se negou a acreditar nela.
- Sim. – deu um sorriso.
- Não. – ele insistiu na esperança de que fosse um sonho tão maluco
quanto o corvo.
- Sim. – bateu palmas com animação. - Passeamos pelo parque juntas essa
manhã.
- Misericórdia! – exclamou negando com a cabeça. - Essa família não tem
limites.
- Não temos mesmo. – concordou sem um mero indício que fosse de
pudor. – Agora, levante-se.
- Depois dessa vou ficar aqui o dia todo. – afundou a cabeça no
travesseiro e fechou os olhos.
- Não vai não. – insistiu em perturbá-lo. - Porque sua noiva está na
costureira.
- E eu com isso? – abriu somente um olho para encará-la. - Pareço o tipo
de homem que aprecia uma visita à costureira?
- Não. – nem de longe. - Mas por um descuido eu vi Lady e Lorde
Petergille entrarem logo que saí.
- Inferno! – exclamou irritado.
Em segundos ele estava de pé e completamente vestido. Os ciúmes e a
preocupação podiam ser melhores que um balde de água fria para acordar
um homem, concluiu.

...

Ela continuava com a mesma soma na conta bancária que há três dias,
aliás se seus cálculos estivessem corretos deveria ter alguns garidos a mais
desde então, mas o tratamento na costureira fora outro, absolutamente
diferente. Ser noiva de um lorde realmente mudava as coisas, a sociedade era
mesmo muito fútil.
Não fora o tratamento das costureiras ou o de Madame Suzanne que havia
mudado, mas as clientes já não olhavam torto para ela e algumas até tinham
arriscado um sorriso. Agora, elas gozavam de uma abençoada paz em um
local que contemplava dois provadores e dois pódios. Um lugar privativo
onde estavam longe das cobras e, como de costume, Luísa estava sendo
mimada.
Frederica, a mais jovem das costureiras e a preferida da menina, ajoelhada
aos pés dela, ajustava a barra do vestido que experimentava. A mesma se
olhava no espelho dentro do vestido lilás e se avaliava como uma adulta.
A visão a prendera e a fizera sorrir. Estivera absorta de tal modo que ainda
não havia reparado que não estavam mais tão sozinhas.
- Ela é minha, não é?
Lavínia por pouco conteve o susto diante da voz grave e repugnante.
Olhou para o lado oposto e visualizou Lady Petergille passando pelas
cortinas vermelhas com uma das costureiras, resmungando alguma coisa
sobre ter esperado demais para ser atendida.
Não precisava olhar para a esquerda. Infelizmente reconhecia aquela voz
como a dela própria e algo muito parecido com pânico tomou o corpo dela.
Séria, voltou seu olhar para a filha.
- Como se um monstro como você pudesse gerar uma criança tão linda. –
respondeu sem elevar a voz. Mantendo com muito esforço o controle.
O barão riu. Uma risada rouca que parecia ter vindo das profundezas do
inferno, pronta para despertar o medo.
- Seu noivo sabe que já esteve na minha cama? – provocou novamente.
Ele não estava disposto a deixá-la em paz e sua garganta passou a queimar
com o esforço de manter a calma. O choro ameaçou tomá-la.
- Por que ele saberia? – indagou demonstrando indiferença.
- Achei que um homem teria o direito de saber que está se casando com
uma vagabunda.
Lavínia chegou a fechar o punho. Sua mão tremia com a vontade de
acertar o rosto dele. Quebrar aquele maldito nariz fino para que toda vez que
olhasse no espelho se lembrasse dela. Da mulher que havia deformado seu
rosto.
- Se pensar em mim nessa maneira alivia sua vil consciência, fique à
vontade. – ergueu um pouco mais o queixo. - Isso não muda os fatos.
Finalmente o encarou com a testa franzida. O ódio faiscando no olhar
dela. O sorriso do rosto dele sumiu. Talvez o grande prazer dele seria vê-la
desestabilizada. O que não aconteceu.
- Mamãe! – Luísa gritou chamando sua atenção.
- Sim, meu amor. – respondeu já indo ao seu socorro. Ansiosa para se
livrar da companhia desagradável. - O que há?
A menina franziu a pequena testa e olhou para a mãe que agora tocava seu
rosto. A salvação dela era Luísa. O que a mantinha firme na vida e também
naquele momento. A ideia de que não poderia fraquejar, pois alguém
precisava desesperadamente dela.
- Não sei qual escolher. – lamentou como se fosse uma decisão de suma
importância para sua vida. - O rosa ou o lilás?
Lavínia chegou a abrir os lábios, a voz que soou foi muito diferente da
dela. Ainda assim muito familiar e reconfortante, de uma maneira que
causou um estremecimento no corpo dela.
- Vamos ficar com os dois. – a voz profunda e grave foi acompanhada por
um toque em seu ombro que por pouco, por muito pouco não a fez chorar.
- Lorde Nathan! – a pequena exclamou.
O modo como os olhos de Luísa brilhavam quando encontraram os dele,
não auxiliou em nada sua resistência a sentimentalismos. Ela queria chorar.
Tudo o que queria era se aninhar nos braços daquele homem e colocar para
fora toda raiva e frustração que estava sentindo.
- Milady. – fez uma mesura profunda para a menina como se estivesse
diante da própria rainha.
Lavínia não se atreveu a juntar-se a filha na risadinha doce que deu. A
sensação era que se abrisse os lábios sairia um soluço vergonhoso deles. A
presença dele a transformara na mais vulnerável das criaturas. Em uma
mocinha em perigo que encontrou seu herói. Ela não era nada daquilo,
repreendeu-se, mas no momento queria ser. Precisava ser.
- Agora que já sabemos que a adorável dama irá levar ambos os vestidos,
gostaria de convidá-las para comer um bolo ou algo igualmente doce e
exagerado. – ele se inclinou para sussurrar algo para Luísa em um tom que
Lavínia também ouvisse. – A não ser que queira comprar este vestido em
todas as cores já existentes.
- Não. – respondeu com uma risadinha igualmente adorável.
- Ótimo. – deu um sorriso. - Então vá se trocar e nós vamos.
Luísa não precisou de mais encorajamento para sumir por trás das cortinas
do provador. Frederica se colocou de pé e com uma mesura se dirigiu ao
nobre.
- Devo preparar os dois vestidos, Milorde?
- Sim. – assentiu com firmeza. – E tudo mais o que ela tiver escolhido ou
venha a escolher.
Lavínia não conteve o sorriso ao ver a jovem corar e se retirar com um
sorriso e uma mesura. Presumia que deveria acontecer sempre, em alguns
minutos ele havia feito a jovem se apaixonar ou ao menos se encantar por
ele.
Por sorte ela não era tão influenciável, ou talvez...
- Está tudo bem? – questionou com a mão em seu ombro. O olhar azul
profundo fixo no dela com uma preocupação doce.
Lá estava ela querendo chorar novamente e cair nos braços dele. Sim.
Quando se tratava de Lorde Nathan ela era total e estupidamente
influenciável.
Assentiu, tentando um sorriso que não o convenceu.
- Eu vou ver se Luísa precisa de ajuda. – conseguir pronunciar uma frase
completa era uma vitória grandiosa.
Nathan assentiu e a seguiu com o olhar até desaparecer atrás da mesma
cortina. Então se voltou para a baronesa.
Emily usava um vestido alaranjado que não destacava em nada sua beleza
clássica. Suas irmãs não considerariam uma surpresa, elas sempre disseram
que a mesma tinha um gosto horroroso para se vestir que só ele não
enxergava.
- Lady Petergille. – cumprimentou ao notar que não tirava o olho dele
desde que entrara no salão.
- Milorde. – acenou de volta.
- Carffort. – o barão cumprimentou com um aceno sério pouco tempo
depois, não admitindo ser ignorado.
O jovem caminhou até ele lentamente e então parou a poucos centímetros
deste. Próximo o suficiente para falar e só ser ouvido por ele.
- Cuidado Petergille. – advertiu com o olhar frio e severo dos Carfforts. –
Você pode ser um barão, mas eu sou filho de um duque. Não precisaria de
muito para acabar com você.
O encarou por tempo suficiente para ver sua garganta oscilar quando
engoliu em seco.
- As damas estão prontas, Milorde. – anunciou Frederica.
Ele franziu ainda mais o cenho para Petergille.
- Lembre-se disso. – completou antes de se virar para o que realmente
importava.
Lavínia e Luísa.
Capítulo 9
Bolo de morango

Se havia uma coisa de que Nathan se orgulhava era de ser um homem


relativamente bem resolvido com seus sentimentos, mas as coisas vinham
fugindo do controle ultimamente. Não gostava nada disso, pensou enquanto
afundava a colher no merengue e o provava. Nada mesmo.
- Huuuuummmm...
Alguém havia tirado aquelas palavras – ou aquele ruído – da boca dele.
Claro que só poderia ter vindo de Luísa. A criatura doce e encantadora que
se deliciava com o pedaço de bolo de morango e balançava as perninhas
delicadas que permaneciam suspensas pela cadeira.
- Eu poderia lamber o prato. – comentou a menina.
A frase desprovida de pudor e boas maneiras fez Lavínia arregalar os
olhos e despertou em Nathan a vontade de rir. Não era o tipo de coisa que se
dizia em um lugar público. Não era o tipo de coisa que uma dama dizia em
hipótese alguma.
- Mas não vai. – disse com voz controlada.
Se estivessem em casa ela não se importaria se a filha o fizesse, mas ali
não, era uma questão de educação. Se testemunhassem a doce criança
enfiando a língua no pequeno prato ela estaria arruinada aos olhos da
sociedade. Ainda que desprezasse a opinião da classe mesquinha era
diferente quando se tratava de Luísa. Só a ideia de alguém a rejeitasse já a
arrepiava. Por mais que soubesse que aquilo iria acontecer uma hora ou
outra.
Nathan analisava a noiva enquanto ouvia o suspiro de decepção de sua
filha. Podia sentir a aflição dela. Podia prever o quanto se preocupava com a
aprovação de todos com a menina. Ainda que aparentasse não se preocupar
com absolutamente nada.
- Ora, mas ainda tem um pedaço. – disse a sério para a criança.
Os olhos azuis se arregalaram para o prato e depois para ele. Mais doces
que o bolo que havia comido.
- Onde? – questionou intrigada. A inocência estampada em seu rosto.
- Aqui. – respondeu.
Em uma fração de segundos o dedo indicador de Lorde Carffort
mergulhou no glacê do próprio bolo e lambuzou o pequeno nariz de Luísa.
A gargalhada dela preencheu a loja, seus ouvidos e sua alma. Que Deus
tivesse piedade dele se por algum motivo Lavínia desistisse da loucura
daquele casamento. Ele já amava aquela criança e partiria seu coração se
afastar dela.
- Deixe que eu faço isso querida. – disse tirando o lenço do bolso.
Luísa parou de tentar limpar o nariz com a mão e aguardou a ajuda dele.
Com um sorriso Nathan deslizou o lenço pelo nariz dela removendo o
merengue, então fez o mesmo com suas mãos enquanto ela ria.
Lavínia olhou ao redor. Não havia uma só pessoa que não estivesse
olhando. As damas o olhavam com fascinação, os homens com curiosidade e
este parecia não se importar nenhum pouco. Os Carfforts estavam
acostumados a chamar atenção e também as Collins. Era de se esperar que
ele não ligasse. Mas ela se importava.
Quando pensou em se casar novamente temia que o homem viesse a
desprezar sua filha e agora temia o extremo oposto. Ela saberia lidar com o
desdém e a indiferença, mas não estava acostumada a lidar com ternura. Seu
coração havia ganhado a consistência do merengue que atingira o pequeno
nariz de Luísa.
- Pronto, lindinha. – levou a pequena mão aos lábios. - Agora está limpa e
cheirando a merengue.
A risada dele sumiu ao ver o olhar de Lavínia. Era de novo aquele olhar
de apreensão que havia seguido um olhar de profunda admiração. Havia
muito por trás daquela mulher e queria descobrir ao menos uma pequena
parte para conseguir dormir em paz. Uma fração pequenina.
- Mamãe, posso comer mais um pedaço?
- Já chega, meu bem. – respondeu com a voz doce que só usava com a
filha. – Mamãe precisa ir para casa para trabalhar.
- Mas...
Não ousou continuar diante do erguer de sobrancelhas de sua progenitora,
mas sua insatisfação era nítida. Havia franzido a testa e cruzado os braços
em irritação. O rosto adquirindo o mesmo tom de vermelho do cabelo.
- É claro que mamãe pode esperar mais alguns minutos enquanto come
um pedaço de bolo com Su. – com dois dedos ele chamou a criada que
aguardava ser solicitada sentada em uma mesa afastada.
- Milorde...
Lavínia não parecia feliz com sua sugestão, ao contrário da criança. A
pequena arregalara os olhos e dera um sorriso aberto. A mudança de humor
nítida diante de ter conseguido o que queria.
- Eu preciso de alguns minutos com a senhora. – disse sério se levantando.
– Certamente não se importaria de dar uma volta pelo quarteirão enquanto a
bela dama come seu merecido segundo pedaço de bolo.
Luísa sorriu doce e fraternalmente diante da piscada que ele lhe deu.
Aqueles sorrisos teimavam em dilacerar seu coração. Aquilo estava indo
longe demais.
- Lorde Nathan, já vai embora?
Deus! Agora ela parecia decepcionada vendo que terminara de pagar a
dona da confeitaria e havia voltado à mesa.
- Nos veremos novamente logo, pequena. – pousou os lábios na testa dela
e apertou seu ombro direito.
- Amanhã? – indagou com ansiedade nítida.
- Lorde Nathan é um homem ocupado, meu amor. – a mãe interferiu. - Ele
não pode vê-la sempre, é...
- Amanhã. – afirmou enquanto colocava a cartola e as luvas nas mãos.
Lavínia sentiu que pernas trêmulas era tudo o que restava de sua confiança
no momento. Mas não devia reclamar, ao menos ainda estava de pé.

...

Pousando a mão no casaco azul escuro de Nathan, somente aguardava as


perguntas. Muitas delas envolvendo os termos “Lorde Petergille”,
“amantes”, “costureira” e – engoliu em seco – “vagabunda”.
No entanto, o cavalheiro não poderia estar mais silencioso,
cumprimentando seus pares pelas ruas movimentadas do centro da capital.
Será que não havia ouvido a conversa dela com Petergille? Ou simplesmente
havia decidido torturá-la exatamente por ter ouvido?
Comprimiu os lábios contendo o desejo de questionar a ele sobre o
assunto. O Sr. Solluin a havia ensinado que a ansiedade não levava ninguém
a lugar nenhum, mas a paciência tinha bons resultados.
“Não viva com pressa criança, você pode acabar criando problemas que
nunca existiriam”. Suspirou fundo e permaneceu em silêncio. Esperando.
Tão pacientemente quanto pôde.
- Então conheceu Sara. – foi o que ele disse. Nada sobre a costureira.
Nada sobre Petergille.
- Sim, Lady Trian. – afirmou após alguns segundos de surpresa. - É uma
dama adorável a vossa sobrinha, Milorde.
De fato. Como esposa de Sir Trian ela esperava que esta fosse tão
arrogante quanto o restante das damas, mas como o restante da família, ela
era muito distinta dos padrões. Ria quando tinha vontade. Zombava das
regras e dos mexericos. Incentivava a relação dos filhos com a filha de uma
burguesa. Fez mais do que esperaria aceitando Luísa como se fosse da
família. Como a avó desta havia feito.
- Shiiii... – Nathan levou o indicador aos lábios e olhou ao redor. - Não
diga isso alto.
- O quê? – questionou também, olhando ao redor um tanto confusa.
- Que ela é minha sobrinha. – sussurrou com certa urgência.
O rosto completamente sério, mas nos olhos um brilho bem humorado que
se mostrou uma característica dos Carfforts. Lady West a havia confirmado
no baile do casamento de Petergille.

“ -Todos já adoram você. – Meri afirmou com entusiasmo.


- O Duque não parece gostar de mim, Milady. – deu um leve sorriso. –
Mas jamais o culparia por isso.
- Bobagem. – descartou o comentário em um gesto nada elegante com as
mãos. – Não deve se deixar enganar pela cara de sério. Papai é como Allan,
raramente sorri com os lábios diante de um estranho, mas ele sorri com os
olhos. – a própria condessa sorriu. – É o que há de mais encantador neles.”

- E isso deveria ser um segredo? – lançou provocativa ao belo homem que


permanecia sério para o seu eterno desconcerto.
- Não, mas não custa nada tentar fazer com que todos esqueçam. –
respondeu de volta.
Deu um sorriso, contendo o riso. Havia uma sonora gargalhada que queria
deixar escapar pela garganta, mas a conteve. O nervosismo a travava.
- Seu bom humor é uma característica notável, Milorde. – elogiou sem
poder se conter.
- Sua beleza também, Sra. Solluin.
Aquele olhar penetrante poderia corromper a mais determinada das
mulheres. Sabia disso, porque se enquadrava naquele grupo e estava a um
passo da perdição
- Não estamos aqui para falar sobre a minha beleza. – disse séria, voltando
ao ponto inicial.
Ele disse que queria ter uma conversa com ela. Era por isso que estavam
transitando pelas ruas sem nenhum propósito aparente.
- Encontrou um vestido que lhe agradou? – mais uma vez a pergunta a
confundiu. O assunto não poderia ser aquele. Aquilo podia ser perguntado na
frente de Luísa e não exigia privacidade.
- Sim. – respondeu hesitante.
- De que cor é? – parecia realmente curioso acerca da informação.
Os olhos dela foram do rosto masculino de queixo quadrado para a rua
movimentada. Duas damas passaram por ela sussurrando algo nos ouvidos
uma da outra. Nenhum elogio, ela podia apostar.
- Esse não é o tipo de informação que posso dar a meu noivo.
“Meu noivo”, o noivo dela. Bom Deus! Não que duvidasse da capacidade
de conseguir um homem bonito, mas ela tinha que escolher logo um
Carffort? Devia saber que não seria fácil.
Os Carfforts eram poderosos a gerações e as Collins haviam conquistado
as famílias mais tradicionais de Figior. Os Degards, os Carfforts e os Kurts,
todos eles haviam se curvado àqueles olhos azuis. Não sabia onde estava
com a cabeça ao decidir que era capaz de dominar um homem que tinha
ambos os sangues nas veias.
A questão era que havia ultrapassado as cortinas do palco e agora tinha
que atuar. Havia ido longe demais, era uma estupidez voltar atrás, além de
ser inadmissível para seu orgulho.
- Ora, achei que estivesse acima dessas superstições tolas, Milady. –
gracejou tocando na mão dela sobre seu braço, com a desculpa de posicioná-
la de uma melhor forma. Parecia em uma posição bastante adequada, na
verdade.
- E eu que estivesse acima da curiosidade. – lançou empinando o nariz
como fazia ao se ver na defensiva.
- Jamais. – declarou ousado. O humor dando um toque agradável a voz
grave. - Quando se trata de curiosidade sou quase uma matrona entediada.
Ela riu, não se conteve, mas tão rápido quanto o riso surgiu, ele se foi.
Deixando a mesma aparência de arrogância estudada em seu rosto. O frescor
e a alegria desapareceram. Nathan não pôde deixar de notar.
- Por que faz isso? – questionou intrigado. Finalmente o assunto que os
trouxeram ali.
- O quê? – fingir ignorância não era o feitio dela, mas não viu escolha.
- Se fecha cada vez que parece estar se envolvendo. – acusou com um tom
suave, carinhoso. - Foi assim comigo e Luísa lá dentro.
- Apenas autopreservação. – a verdade saiu antes de pensar se era
prudente ou não dizê-la.
- Do que tem medo?
A rua fervilhava com pessoas indo e vindo sem propósito. Somente para
serem vistas e notadas. Não era a melhor hora para uma conversa daquela
natureza, mas para a verdade era uma hora tão boa como qualquer outra. Ou
uma hora ruim como qualquer outra.
- Luísa está se apegando ao senhor. – disse em voz baixa como se temesse
o efeito das próprias palavras sobre ele e sobre si mesma. - Temo que ela
espere mais de sua pessoa do que está disposto a dar.
- Sabe que eu jamais a magoaria. – a ofensa fez seu rosto franzir. - Não é
da expectativa de Luísa que está com medo e sim da sua.
- Eu não tenho expectativas. – respondeu rapidamente. O rosto fechado
em contraste com o céu aberto e sem nuvens.
- Tem sim, mas não esperava que admitisse.
O tom rígido dele não ajudou a fazer com que a Sra. Solluin se despisse da
armadura que usava. Ao contrário, a sensação era que ela jamais a tiraria,
como se sentisse em pleno campo de batalha no momento.
- Lavínia... – chamou com a mão sobre a dela. – Perdoe-me, fui tão...
- Você está certo. – assentiu com dificuldade como se o movimento
exigisse um esforço descomunal. - Tenho medo de criar expectativas.
- Eu não posso entrar na sua cabeça. – o olhar deste se mantinha sério e
longe dela, temendo magoá-la, mas tinha que lhe dizer. - Às vezes tenho
vontade, como agora. Mas se há qualquer coisa que precise, que a está
deixando angustiada, quero saber. Eu quero ajudar, Lavínia. Quero e posso.
Sabe disso.
Sua voz lhe transmitia preocupação e segurança. A pergunta era porquê.
Porque tudo aquilo.
- Por que se importa?
Deus sabia que ninguém jamais havia se importado.
- Eu a admiro. Desejo o melhor para você. – confessou e não havia
vergonha ou insegurança na voz dele. - Para as duas. Sempre.
A confeitaria já estava próxima novamente. Parecia fazer segundos desde
que a haviam deixado. Não estava pronta para terminar o passeio, para
deixá-lo. Ainda havia mais a ser dito, mas ela se ateve ao essencial.
- Você esteve aí hoje e não tenho dúvida que estará amanhã, mas até
quando? – se voltou para ele e o encarou. – Pessoas da sua classe social tem
sua atenção facilmente desviada, Milorde. Até quando seremos
interessantes?
Ela o havia ofendido e se arrependeu amargamente assim que viu a reação
estampada em seu rosto. Talvez fosse melhor assim. Manter uma distância
segura. Do próprio futuro marido, que irônico.
- É uma mulher curiosa, Sra. Solluin. – não era nem de longe um elogio. –
Você tem medo que eu não chegue a amar Luísa, mas tem feito o diabo para
me afastar dela com a desculpa de que não serei capaz de amar a menina.
Lavínia abriu os lábios, mas a mão dele espalmada a deteve.
- Você tem medo de vir a sentir algo por mim, Lavínia, e de eu não vir a
correspondê-la, então se afasta e me impede de me aproximar. – acusou e a
deixou sem palavras. – Você se afasta de todos que tentam se aproximar.
A verdade a atingiu como um violento golpe físico. Nathan franziu o
cenho e o encarou com intensidade.
- Não tem que se preocupar com a hipótese de eu abandonar Luísa. – deu
um suspiro fundo. – Se as coisas continuarem como estão você me mandará
embora antes mesmo que eu tenha o intuito de me afastar.
Tocando a aba da cartola, meneou com graça.
- Passar bem, Milady.
- Não pode me deixar depois de dizer isso. – respondeu zangada, tonta
pela intensidade do momento.
- Eu preciso. – esticou o braço para abrir a porta da confeitaria. – Precisa
ir para casa e pensar sobre o que realmente quer. Deus sabe que eu não faço
a menor ideia.

...
Capítulo 10
Uma visita inesperada

“Caros leitores,

Eu sei que esperavam um texto com uma análise minuciosa do casamento


de Lorde e Lady Petergille ou mesmo da lua de mel de ambos, mas nossa
família preferida acabou por roubar a atenção mais uma vez. O mais
incrível é que eles não parecem ter qualquer intenção de fazê-lo.
Como temos olhos e ouvidos em todos os lugares, vimos e ouvimos o que
parecia ser um adorável encontro em família. Lorde Nathan Carffort, a Sra.
Solluin e a Srta. Solluin apreciavam juntos os bolos da Jonne’s, a confeitaria
mais famosa da cidade.
Se esse mais novo enlace foi surpreendente para nossos estimados
leitores, imagine para nós. O que chegou a nossos ouvidos era que os
pombinhos trocavam cartas há anos em segredos.
Tenham certeza de duas coisas:
1- Se Lorde Nathan Carffort com seu charme, sedução, temperamento
adorável e talento com crianças recém-descoberto, não conseguir amolecer
a burguesa do coração de gelo, ninguém jamais conseguirá.
2- Não estamos nem remotamente felizes de descobrirmos uma
informação preciosa desta tão em cima da hora. Da próxima vez, peço a
Vossa Senhoria que seja menos discreto. A sociedade curiosa de Figior
agradece – e nossos bolsos também.”

Notícias de Figior, a serem entregues na manhã seguinte para cada


membro da sociedade de Figior ou, ao menos, para aqueles que podiam
pagar por elas.

...

Ninguém esperaria uma noite fria em pleno verão, mas uma chuva que
acabara de cessar diminuíra a temperatura no mínimo dez graus. Valério
havia ido se deitar merecidamente depois de horas de insistência e uma
ameaça do tipo “Se não for para cama agora, homem... Vou demiti-lo por
insubordinação.”
Agora ele estava lá. Um homem solitário sentado diante da lareira acesa.
A solidão, na verdade, era uma benção para quem tinha uma família tão
grande, mas naquela noite não surtira o resultado esperado.
Não havia nada que Nathan quisesse mais que esvaziar a mente enquanto
deixava seu olhar imerso nas chamas da lareira, mas sua cabeça não ficava
completamente vazia. Lavínia ia e via em seus pensamentos em uma
velocidade que o deixou tonto.
Com um suspiro resignado voltou o olhar para o relógio. Meia noite.
Devia ter aceitado o convite de seus amigos e ter ido para o clube. Devia ter
procurado outra mulher. Devia...
- Inferno! – praguejou com certa irritação.
Passando a mão pelo rosto constatou que, por mais cansado que estivesse,
se fosse para cama não conseguiria dormir. Decidido, se levantou e colocou
o casaco que lhe garantiria abrigo do frio não esperado. Como um resquício
de covardia olhou pela janela que dava para rua buscando indícios de chuva.
Foi quando ele parou.
Havia uma carruagem escura parada em frente à casa. Se era de algum
conhecido, não conseguia se lembrar. De dentro dela saiu uma mulher toda
vestida de preto com uma touca escondendo seus cabelos. Seu coração
passou a bater descompensado no peito sem motivo aparente.
Quem diabos podia ser? Tinha quase certeza de que não havia requisitado
nenhuma prostituta naquela noite. Será que havia se esquecido de alguma
amante quando cortara relações com todas há alguns meses? Mas que
importava! Era uma mulher que ele queria para espantar o tédio e lá estava
uma. Bastante atraente ao que parecia.
Claro que sempre havia a hipótese de estar imaginado coisas. Deveria ser
a bebida, mas espere... Ele não havia bebido. Não, aquela mulher era muito
real e acabara de bater a aldraba na porta.
Desceu rapidamente as escadas temendo que seu criado acordasse do
merecido sono profundo. Se aquela fosse o tipo de mulher que ele estava
pensando, não queria ninguém acordado na casa. Ao abrir a porta, porém...
- Eu posso entrar?
Deus! Ele reconheceria aqueles olhos azuis em qualquer lugar que os
visse. Não, não era aquele tipo de mulher que esperava, mas ao invés da
decepção esperada houve um alívio e uma ansiedade que só havia sentido
antes em seus quinze anos.
Lavínia. Ela estava ali. Estava ali e - Pelos céus! – no frio, apertando o
casaco contra o corpo, enquanto ele se encontrava paralisado e sem ação.
- Claro. – afastou o corpo e lhe deu passagem.
O que um anfitrião faria? Maldição! Encontrava-se notavelmente
desconcertado. Sem pensar muito subiu as escadas e a conduziu até a sala de
onde havia saído.
- Bebida? – ofereceu com um gesto para o aparador com uma infinidade
delas.
- Obrigada, mas eu não costumo beber. – fez um gesto com a mão.- Não
faz bem para o intelecto.
- Deve ser por isso que não sou a pessoa com a mente mais sã. – gracejou
ponderando.
- É uma possibilidade, Milorde. – deu um sorriso.
Poderia passar um longo tempo admirando aquele sorriso que curvava os
lábios rosados, até se dar conta de que seria um péssimo mordomo e era um
péssimo anfitrião.
- Seu casaco. – expressou sua lembrança caminhando até ela e a ajudando
a tirá-lo.
- Obrigada. – deu uma olhada para a lareira, seu calor lhe oferecendo um
prazer genuíno. – Está agradável aqui.
Então tirou a touca revelando os belos cabelos vermelhos ressaltados pelo
fogo. Presos em duas tranças grossas que formavam um arco gracioso fixo
com grampos próximo da nuca.
Os fios que se soltaram pelo atrito da touca deram a ela ainda mais beleza
do que tinha. Eram as imperfeições que a faziam tão linda. A prova de que
era real e não a deusa que parecia ser.
- O senhor estava de saída? – perguntou notando o casaco dele.
Nathan o despiu rapidamente e colocou ao lado do dela.
- Sim. Não. – disse sem pensar e então se corrigiu com um sorriso. – Não
mais.
- Se estou atrapalhando algo... – hesitou pousar a touca em um dos
cabides.
- Claro que não. Sente. – disse indicando o sofá confortável.
Lavínia assentiu se livrando do acessório e se acomodando. Alisou as
saias um tanto inquieta, o modo como Nathan parecia confortável, poderoso
e lindo naquela poltrona não ajudou em nada.
Era na verdade algo novo para ela e nada fácil. Há anos não sabia o que
era estar em uma posição de desvantagem e já estava desacostumada. Não
era nem um pouco confortável. Não mesmo.
– A que devo o prazer? – perguntou.
Claro que ele iria perguntar. Era justo já que ninguém aparecia na porta de
um homem a meia noite sem ter um bom motivo. E ela tinha. Era o que
dificultava as coisas.
- Eu te devo desculpas. – e não era fácil admitir, principalmente sendo
alguém tão orgulhosa. - Tinha razão. Eu tenho dificuldade de confiar nos
homens. – fechou os olhos e negou tentando ignorar o tempo que havia
negado aquilo para si mesma. - De confiar nas pessoas em geral.
Lorde Carffort assentiu, servindo dois dedos de Whisky para si mesmo.
Finalmente a nua e crua sinceridade. Já passava da hora de serem honestos
um com o outro.
- Para mim também foi, de certa forma, difícil depois de Emily. –
confessou e tomou um gole da bebida. O rosto surpreso dela não era nada
encorajador. – Já não acredito mais em algumas coisas.
- Não acredita mais no amor. – disse como se o compreendesse.
E compreendia. Sra. Solluin mesmo não acreditava. Acreditava no amor
fraternal como o incondicional que sentia por Luísa e no amor terno como o
dela e do falecido, mas não no amor romântico. O amor romântico, aquela
paixão avassaladora era só uma desculpa que os fracos usavam para perder a
razão.
- Ao contrário. – girou o líquido escuro no copo e sorriu languidamente. –
Acredito cegamente no amor. Com a família que tenho é impossível não
acreditar. – de fato, aqueles casais eram a representação do amor. – Eu só
acho que o amor não foi feito pra mim. – deu de ombros como se não
ligasse. - Parece que somos dois desafortunados Milady.
Não tinha a aparência de um menino indefeso, mas a reação dela fora
similar à quando via um. Seu coração apertou e teve a vontade de abraçá-lo e
convencê-lo de que o amor existia sim e que ele tinha o direito de vivenciar
um. O problema, era que não acreditava nisso. Nenhum pouco.
- Embora fortuna não nos falte. – foi o jeito dela de o fazer rir. Por sorte
surtiu efeito.
- De fato. – disse ainda exibindo os dentes perfeitamente brancos. – Só
espero que isso não a faça desistir do casamento.
- Nunca desisti de nada na minha vida. – respondeu com determinação. A
coluna tão ereta que mal tocava no encosto do sofá. Em um momento, porém
a firmeza a deixou ao concluir: - Mas já fugi.
- De quem?
Ah! Se ele soubesse o impacto daquela pergunta não a teria feito. Teve
que desviar o olhar para o papel de parede para conter o choro. Sua garganta
queimava.
- Da vida que levava na mansão Petergille. – foi a melhor forma de
responder com a verdade. - Não era forte o bastante.
- Difícil de acreditar. – a voz dele parecia distante e ainda assim
profundamente reconfortante.
- A mulher de agora não é a menina de ontem, Lorde Carffort. Eu mudei.
Me fortaleci.
- Você foi corajosa o bastante para fugir. Para se casar com um homem
com o dobro da sua idade.
- Solluin não foi meu algoz como pensam, Milorde.
Um sorriso saudoso surgiu nos lábios dela. O tipo de sorriso que fazia um
desconforto terrível tomar o corpo de Lorde Carffort. Como uma faca que
lhe rasgava a barriga.
- Eu jamais me sentaria à mesa, discutiria assuntos ou o receberia em
minha cama com lágrimas nos olhos. – havia uma verdade desconcertante
nas palavras dela. – Ele foi meu salvador. Meu anjo da guarda. Ele foi como
um...
Engoliu a palavra antes que escapasse e então arregalou os olhos. Quase,
fora quase. Quase colocara em risco todo seu presente e futuro por um
deslize. O futuro de Luísa.
- Um?
- Um anjo. – completou desviando o olhar novamente.
- Você já havia dito isso. – pontuou com certa desconfiança.
- Nunca é demais repetir.
Não insistiria mais, mas o sangue dos Carfforts que corria em suas veias o
impedia de desistir. Não podia simplesmente perder aquela mulher. Mesmo
que a perdesse para a lembrança de um homem morto.
- Só há lugar para um salvador em seu coração, Milady?
- Eu não sou mais uma garotinha assustada, meu lorde.
Não era. Era uma mulher magnífica que vestindo preto tinha os traços
sensuais do rosto e o corpo curvilíneo bem destacados. Uma mulher linda,
forte e generosa.
- Do que estaria me salvando?
- De si mesma.
A resposta certeira a deixou boquiaberta. Sim. Precisava
desesperadamente ser salva de si mesma. Havia uma parte dela que estava
doente há anos e que não acreditava que estava. Aquela parte só queria ficar
em um canto ignorada, mas às vezes tomava as decisões por ela.
Como quando afastava Nathan de Luísa.
- Ela precisa de um pai, Milorde. – sentiu as lágrimas nos olhos. – Mas
não ousaria pedir isso ao senhor. Eu tenho feito o melhor que posso, mas...
Quando deu por si já estava sentado ao lado dela, segurando sua mão entre
as dele. A mão delicada e pálida sumindo nas suas enormes e bronzeadas.
Segurança. Era o que queria transmitir. Era o que transmitia.
- Lavínia. – chamou e aguardou até que olhasse para ele. – Eu serei para
Luísa o que ela precisar que eu seja. Sem me importar com nome que tenha.
Vendo as lágrimas eminentes, surgiu dentro dele o comichão de fazê-la rir.
Era uma característica de sua personalidade. Quando alguém estava triste ou
melancólico, sentia-se na obrigação de despertar o riso.
Ali, não havia nada mais importante que restaurar o sorriso de Lavínia.
Mesmo que soubesse que seu choro não era de tristeza ou melancolia.
- Se ela quiser um malabarista eu vou jogar garrafas para o ar e
provavelmente ganhar um galo na cabeça.
Um riso abafado escapou dela, mas não parecia ser o suficiente.
- Se ela quiser um trovador, então terei que arrumar um alaúde, muito
embora... – pareceu um tanto sério e contemplativo, só pareceu. – Eu não me
responsabilize pelo mal temporário ou permanente que isso pode fazer aos
ouvidos da pobre criança. Ficaria traumatizada diante do meu talento
inexistente para música.
Finalmente sua risada soou alta e clara enquanto enxugava os olhos com o
lenço que lhe fora passado. Ansiosa por enxergar o homem que a fizera rir,
que a fazia tão bem.
Ele amava Luísa, embora não o tivesse dito em voz alta. Não havia nada
mais que ela poderia pedir. Talvez ele jamais chegasse a amá-la, talvez
jamais tivessem uma ternura confortável um com o outro como ela tinha
com o Sr. Solluin, mas já era o bastante. Se a criança, sua menina, fosse
amada da forma que merecia, então não precisava de mais nada.
- Obrigada. – deu um sorriso para ele, que o retribuiu. – Por me receber
e... Por todo o resto.
Nathan assentiu.
- Disponha.
- Eu devo ir agora.
Só que não se levantou. Nenhum dos dois se moveu. Apenas continuaram
com o olhar imerso um no outro.
- Passe a noite aqui.
- Não posso. – só a ideia lhe deu arrepios desconfortáveis pelo corpo. Não
podia. Em hipótese alguma.
- Ora, já estamos acima dos rumores.
- Não é por isso. Eu... – engoliu em seco. - Eu tenho problemas para
dormir. Não consigo dormir fora de casa.
- Passaremos a noite acordados então. – encostou no sofá como se tivesse
a intenção de fazer exatamente aquilo.
- Não seja tolo. – soltou uma risadinha nervosa. - O senhor tem que
dormir.
Tinha. Os últimos acontecimentos e também a falta de alguns, fizera
daquela semana a mais exaustiva de toda sua existência. Não física, mas
psicologicamente.
- Eu tenho insônia. – mentiu de forma descarada com um sorriso maroto
que o condenava. - Não consigo dormir quando desejo algo que não posso
ter.
- Ah! – a exclamação foi a única coisa que escapou dos lábios dela.
O olhar sedutor e malicioso de Lorde Carffort não deixava dúvidas do que
se referia. O modo como avaliou o corpo dela fez seu coração disparar e uma
ansiedade consumi-la. Desejava Nathan. Desesperadamente.
Em um gesto de pura proteção devolveu o lenço dele. Estava pronta para
correr em disparada. Como um cervo que pasta atento aos barulhos de
caçadores. Pronta para fugir sem olhar para trás.
- Não se preocupe. – guardou o lenço novamente no bolso com postura
descontraída. Bem diferente da dela. - Eu não vou tocar em você. Não agora.
Se este for o receio pode dormir em paz.
- É um pouco mais complicado do que parece.
“Um pouco” havia sido um violento eufemismo. Era “doses cavalares”
mais complicado do que parecia ou qualquer expressão que representasse o
mesmo.
- Você é mais complicada do que parece.
Assentiu em concordância enquanto um calor tomava seu peito de forma
reconfortante. Quanto tempo fazia desde que se sentia compreendida por
alguém? Meses... Anos, talvez.
Desde que Solluin se fora ela já não via aquele olhar. O olhar de quem
sabia, de quem conhecia a existência de suas aflições e compreendia, mesmo
que sem saber quais eram. Aquele olhar carinhoso quando ele levantava os
olhos dos papéis sobre a escrivaninha e com um “entre criança” permitia
que partilhasse suas dores e frustrações.
Até aquele momento não sabia o quanto sentira falta daquilo. Agora sentia
o coração mais leve e confortável. Muito embora, havia muito que ainda
doía, era bom saber que não estava sozinha.
Sem saber como expressar sua gratidão por algo de proporções tão
grandes, ela o agradeceu novamente antes de sair. Agradeceu ao homem que
segurou a mão dela.
Havia mentido. Precisava desesperadamente de um salvador. Precisava
desesperadamente ser salva.

...

“Nathan,

Não pude deixar de notar que está me evitando deliberadamente. Seja por
correspondência ou pessoalmente.
Desde que ficou noivo não tivemos a conversa que eu pretendia. Conversa
nenhuma na verdade.
Considerando que seria dramático demais ameaçar sua herança para que
me atendesse prontamente, estou pedindo que venha por livre vontade pelo
que parece a milionésima vez.
Há assuntos que devemos discutir.

Ainda esperando,
Lorde Edward Carffort,

6° Duque de Dachmour e Seu pai (caso tenha esquecido).”


Nathan sorriu ao ler a carta naquela manhã. Isso era porque decidira não
ser dramático. Se fosse, então, teria o levado às lágrimas. Sim, amava seu pai
e lhe devia uma visita. Uma satisfação. Mas isso... Bom, podia esperar até a
manhã seguinte. A manhã do casamento.
Capítulo 11
O homem mais lindo do reino

“Prezados leitores,

Devo admitir que não me encontrava tão ansioso para um evento social
desde que Lorde Allan Carffort nos frustrou com um casamento às escuras
ou desde que Lady Sara Trian resolveu se casar no campo. Em resumo, o
casamento de Lorde Nathan Carffort tende a ser o maior e mais concorrido
da temporada.
Seria muito esperar que com Carfforts, Kurts, Solluins, Trians e Degards
no mesmo salão houvesse pelo menos um escândalo? Talvez, ingenuidade
mesmo fosse esperar pelo contrário...”

A duquesa de Dachmour pousou o jornal na mesa com feições de quem


sequer tentava esconder a satisfação. Seu último filho. Seu último filho se
casando. Casando com uma mulher que era mais parecida com ela do que o
próprio casal enxergava. Agora poderia dormir em paz ou “morrer em paz”
como disse no dia anterior despertando um olhar de reprovação do marido e
um “Se o casamento de Nathan a deixar livre para morrer mamãe, melhor
que eu o mate antes que ele case.” do enteado que já havia anos que
chamava de filho. Ambas reações adoráveis.
A verdade era que a mulher doce e inocente com a aparência de anjo,
escondia uma dama, uma leoa determinada, com uma vontade férrea de
casar absolutamente todos os filhos. Anos atrás, por pouco não tivera um
ataque apoplético quando achou que sua Meredith ficaria solteirona.
Não, ela não se incomodaria de passar sua velhice rodeada pelos filhos,
mas queria a felicidade deles. Encontra um amigo em Gregory Collins e o
amor com Edward Carffort. Tudo, tudo que desejava a seus filhos era um
casamento parecido ao menos com um dos seus. Queria a plena felicidade
deles e de alguma maneira, daquela maneira que as mães sabem das coisas
ela sabia. Sabia que Nathan seria feliz com Lavínia. Como jamais o teria
sido com Emily.
- E os jornais não se cansam de nós. – declarou com um prazer que jamais
tivera com a fama que recebiam.
- E isso é algo ruim mamãe?
Jenny questionou enquanto passava geleia em um pedaço minúsculo de
pão. A concepção da doçura. A aparência de Helena anos atrás, mas com os
olhos azuis maiores do que os de qualquer Collins.
Só que ela não era só uma Collins. Era uma Carffort e a herdeira do
ducado de Dachmour. Ainda assim, ela rolaria na lama se isso fosse ajudar
os pobres porquinhos ou sairia na chuva se visse uma criança desabrigada.
Isso provavelmente justificava a devoção do marido por ela. Ainda assim,
Allan - o poderoso e sério Allan - era o alvo de comentários zombeteiros do
irmão e dos cunhados por esse amor incondicional. Não que o resto da
família fosse muito diferente.
- Já foi, não é mesmo, querida? – questionou com um suspiro
emocionado, mas ainda assim sentido. – Ainda assim agradeço por darem
tanta atenção a Nathan no grande dia dele.
- Por que não dariam? – o Duque parecia sério comendo seu peixe
defumado, mas havia um brilho perverso no olhar dele. – Ele é meu filho.
- A sua modéstia me emociona, querido. – ironizou com um sorriso
inegavelmente apaixonado.
Era de se esperar que depois de vinte e seis anos de casado já não existisse
paixão no relacionamento deles. Só um amor confortável e na maioria do
tempo era isso mesmo. Mas claro, havia aquelas noites em que a duquesa
estava particularmente espirituosa – como a anterior – e comprovava que
havia sim muita paixão entre eles. Como no início do casamento.
Se Jennifer e Allan notaram a troca de olhares não disseram uma palavra a
respeito e Josephine e Travis – filhos destes, bom... Eles estavam mais
concentrados no próprio desjejum.
- Vovô você pode me passar a geleia por favor? – a filha caçula de Allan
questionou olhando para o Duque que a atendeu sem hesitar.
- Você come geleia demais. – o irmão analisou com uma sobrancelha
erguida.
Era mesmo muito impressionante que aos quinze anos ele já tivesse
adquirido o dom de imitar as expressões do pai. Lá estava ele, com todo o ar
reprovador dos Carfforts.
- E você biscoitos demais. – retrucou a dona de cabelos castanhos e olhos
escuros. - Não que eu conte.
Lorde Carffort olhou de um filho para o outro e então para a esposa.
- Vocês eram assim tão implicantes? – Allan questionou a esposa.
Querendo – como na maior parte do tempo – culpá-la por qualquer traço
dos filhos que não fosse agradável à primeira vista. Aquele era um defeito
dos Carfforts, não enxergar suas próprias imperfeições.
- Não me culpe. – respondeu de pronto. - Estou vendo você e Meredith
conversando.
Então Nathan entrou na sala sem sequer ser anunciado. Era um hábito
dele. Não esperar que o mordomo o anunciasse porque como o mais querido
da família – era o que ele achava por mais que a duquesa afirmasse amar
todos os filhos igualmente – podia entrar a hora que quisesse e seria bem
recebido. Sempre. O pior é que jamais fora provado o contrário.
Dizer que a duquesa andou até ele seria ser literal demais. Lady
Dachmour flutuou até o caçula com um ar de deslumbramento. A prova de
que era a criatura mais querida de todo o universo. Que Deus os ajudassem
para lidar com o ego dele depois disso.
- Ai meu Deus! Como você está lindo! – exclamou a duquesa segurando o
rosto do filho com as duas mãos. – O homem mais lindo e encantador de
todo o reino.
O Duque ergueu uma sobrancelha. O único indicio que estava
incomodado. Não que ele fosse homem de armar um escândalo, mas aquilo
era...
- Ela não disse a mesma coisa a você no dia do seu casamento? –
questionou a seu primogênito. Incomodado por uma segunda vez perder o
título de “homem mais lindo e encantador de todo reino”.
- No meu noivado. – corrigiu com uma expressão bem parecida com a do
pai, mas um brilho zombeteiro nos olhos. – Disse. Com as palavras exatas,
posso jurar.
- Isso porque ele sequer está pronto para o noivado. – acrescentou Jenny
como se quisesse cutucar o marido.
Uma vingança justa por este ter culpado a ela pela implicância dos filhos.
Estranho era estar sendo vingativa. Aquele não era um comportamento
atribuído a ela com frequência.
- Alguns nascem naturalmente belos. – Nathan deu de ombros ocupando a
cadeira ao lado de Jenny. A postura mais arrogante que conseguia simular.
- Humildade é mesmo um traço de família. – Jenny deu um sorriso
sarcástico e então se voltou para a criada. - Pode levar as espinhas por favor?
– apontou para o prato do duque que já havia terminado de comer. - O cheiro
de peixe está prestes a me enjoar.
- Também. – Nathan desdobrou o guardanapo e o estendeu em seu colo. -
No seu estado. – escapou dos lábios dele antes que tivesse a intenção.
Jenny arregalou os olhos em pânico quando este a encarou.
Ele desviou o olhar e pareceu notar algo extraordinariamente interessante
no teto. Aquilo era uma aranha?
- O que quer dizer com “no seu estado”? – questionou Lorde Carffort e
este estava com os olhos semicerrados.
- Nada. – respondeu o irmão rapidamente.
Era o confidente da irmã. Esta lhe contava praticamente tudo e agora com
sua boca enorme havia criado um evento no desjejum. Meus parabéns
Nathan! Maravilhoso mesmo!
- Jenny... – voltou a instigar, desta vez olhando para a esposa.
- Estou gripada. – foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
Ah! Ela era uma péssima mentirosa. Principalmente quando todos à mesa
estavam com as atenções voltadas para ela. Todos menos Nathan que já
olhava ao redor pensando qual seria a rota de fuga mais prudente.
- Você parece muito bem, minha esposa. – observou Allan a encarando. O
desjejum em seu prato definitivamente esquecido.
- Eu pioro a noite.
- Eu durmo com você.
- Depois que você dorme.
- Eu tenho o sono muito, muito leve, Lady Carffort. – ergueu ambas as
sobrancelhas em posição perigosa.
- Nathan. – esta choramingou olhando para o irmão.
- Perdão, imaginei que ele já soubesse.
- Soubesse?
Maldição! Deveria manter a boca fechada. Com certeza deveria. Só estava
piorando as coisas.
- Do resfriado. – Jenny respondeu, a voz mais aguda. Quase um ganido.
- Não era uma gripe? – ele sabia perfeitamente o que ela dissera antes,
mas queria desconcertá-la. Não teria muito trabalho. Era uma péssima
mentirosa. Mesmo.
- Eu não sou médica. – se defendeu tentando voltar ao desjejum como se
nada tivesse sido dito desde o “bom dia” tradicional de todas as manhãs.
- Jennifer Mei Collins Carffort. – chamou bastante sisudo. - O que está
acontecendo?
- Ele disse os três sobrenomes? – Travis questionou em sussurros para a
irmã, Josephine.
- Disse.
- Isso vai ser interessante.
Josephine limitou-se a assentir. A atenção completamente focada nos pais.
- Eu ia lhes contar depois do casamento de Nathan. – deu um gemido
contrariado. - Vocês não podem esperar até...
- Não! – responderam todos em conjunto.
- Está bem. – sorriu. – Nathan, você me colocou nessa enrascada, agora
me tire dessa.
- O fato irmão... – fez uma pausa de mistério. Adorava fazer aquilo. Ver a
ansiedade se acumular. – É que sua falta de decoro teve consequências
novamente.
- Do que está falando, criatura? – questionou com o cenho franzido em
confusão.
- Jenny está grávida.
Allan arregalou os olhos e então se voltou para a esposa.
- Está?
Lady Carffort deu uma risada nervosa.
- Não é embaraçoso? – deu de ombros. – Eu achei que já não pudesse
acontecer.
E lá estava. O sorriso bobo no rosto do irmão como se ainda não tivesse
engravidado a mulher. Nenhuma vez.
- É maravilhoso, querida.
Allan sorriu ainda mais amplamente. Como não havia reparado? Ela
estava com o rosto mais cheio, mais corado e com uma língua mais ferina do
que se lembrava. O que, considerando que se tratava de Jenny, não queria
dizer muita coisa.
- Ah querida! Estamos tão felizes por vocês! – exclamou a duquesa com
alegria.
Pareciam mesmo felizes e era disso que Nathan gostava em sua família.
Eles adoravam novidades, reviravoltas e mais do que tudo se amavam de
forma incondicional.
A comemoração poderia se estender por aquele dia todo e finalmente ele
entendeu porque sua irmã disse que queria guardar segredo. “Não quero
roubar a atenção do seu casamento.” Com certeza era o que havia
acontecido, mas enquanto os irmãos do futuro bebê discutiam quem seria o
preferido, a linda e doce Jenny interferiu.
- Mas vamos voltar ao que interessa. – sorriu com a mão sobre a de
Nathan. – Está ansioso para se casar, irmãozinho?
Nathan deu um sorriso inebriante. Daqueles que só ele sabia dar.
- Eu nunca estive mais ansioso para uma coisa na vida. – respondeu, se
espantando ao constatar que era verdade e não só um gracejo para fazer rir.
Queria desesperadamente casar com Lavínia. Agora. Naquele minuto.
O Duque tirou o relógio do bolso e avaliou o horário com a calma de um
monge. Depois o guardou, olhou para o filho completamente sério e fez com
que este questionasse a própria idade. Parecia ter dez anos de novo.
- Daqui a exatos dez minutos Nathan Carffort, não haverá nada que queira
mais do que estar no meu escritório. – disse com o tom de voz que não se
alterava. – Com uma boa desculpa por postergar essa obrigação eu suponho.
- Certamente, meu pai. – disse parecendo sério e seguro.
Quando o Duque deixou a mesa, no entanto...
- Que Deus me ajude! – exclamou contendo o riso e o nervosismo.

...
Capítulo 12
Eu aceito

“Querida mamãe,

É pouco dizer que estou aborrecida com os últimos acontecimentos. Era


para meu casamento com Petergille ser o assunto por meses, anos, décadas
e na verdade, parece que perdemos a atenção para uma burguesa.
Não é preciso dizer que ela é totalmente desqualificada e inapropriada
para a corte. Deixou isso completamente claro essa noite cometendo um
escândalo devido à falta de refinamento.
Onze horas não é um horário adequado para os convidados deixarem o
baile, que dirá a noiva. Claro que Lorde Carffort teve que acompanhá-la
para que não passasse vergonha.
Sinto tanto por ele, mamãe. Não merecia tamanha adversidade. Ele é na
verdade um bom homem que pode ser facilmente iludido.
Agora o que ela ganhará pela falta de decoro é estar na primeira página
dos jornais. Enquanto eu, a maior concepção do recato ganho meia dúzia de
linhas nas páginas secundárias ou uma mera menção na coluna dela.
Não que eu a inveje. Eu na verdade estou completamente feliz em meu
casamento com Lorde Petergille.

Frustrada, porém bem,


Lady Emily Petergille.

Carta escrita às pressas após o casamento de Lorde Carffort na mansão


Dachmour e enviado a Lady Carnuil que se encontrava com os pés inchados
e um péssimo humor.

“Emily,

Isso é o que ganhou por trocar o filho do Duque de Dachmour por um


mísero barão.
Não venha choramingar. Eu a adverti e você, como sempre, me ignorou.
Quando ignoramos nossas mães algo muito terrível pode acontecer e o que
seria pior que acabar no canto dos salões de baile?
É claro que está com inveja dela. Até eu estou. Não é qualquer uma que
consegue se casar com o solteiro da temporada.

Duplamente frustrada,
Lady Carnuil.

Azeda e seca como uma laranja verde fora de época.

...

Observou seu reflexo no espelho com um suspiro fundo que parecia


querer expulsar todos os desconfortos junto com o ar. Não estava nada mal,
nada mal mesmo.
O vestido havia sido feito com a modista mais talentosa da capital e sua
criada havia feito um trabalho primoroso com suas madeixas ruivas que
caiam em cachos atrevidos por seu colo. Apesar de jamais ter se visto tão
linda, já esteve com certeza mais segura.
Preferia estar pavorosa e magnificamente segura, por mais que não
combinasse nada um critério com o outro.
Não importava na verdade. Ainda que estivesse tremendo dos pés à
cabeça – o que graças a Deus ainda não acontecia – não voltaria atrás com
aquilo. Jamais.
Porque como muitas coisas na vida – quase tudo na verdade, fazia aquilo
por sua filha.
Deus sabia que ela amava aquela criança e daria a vida por ela e também
era amada, tinha certeza. Se o amor um dia aparecera em sua vida fora o
amor de mãe.
Não que ela fosse incapaz de amar como a sociedade acreditava. Na
verdade, a vida tinha contribuído muito para que fosse uma pessoa fria, mas
ela tinha sim a capacidade de amar.
Pelas lembranças havia amado seu pai, ou ao menos sentido uma afeição
profunda por ele. Amara também, certamente, o Sr. Solluin. O amava por tê-
la acolhido na aflição e principalmente por Luísa.
Sem ele não teria experimentado algo tão sublime e maravilhoso quanto
ser mãe. Ele havia sido um pai melhor do que ela podia pedir. Era atencioso
e dedicado. Investiu em suas roupas e em sua educação. Fez com que
aprendesse latim, francês e italiano. Pagou aulas de dança e de piano. Gastou
o dinheiro que havia ganhado às custas de muito trabalho com questões que
a burguesia ignorava.
Era como se almejasse uma apresentação a sociedade aos dezoito anos.
Talvez agora – seu coração deu um salto com a perspectiva – ela pudesse
mesmo ser apresentada a sociedade.

“- Maldição Tristan! Ela é uma de nós. Não é a filha de um duque para


que gaste dinheiro com ela como se fosse capim.
Um colega de trabalho um dia zombara dele em um baile e cometera o
erro de fazê-lo diante de outros e de Lavínia. Se estivessem sozinhos, teria
respondido de forma mais incisiva, ou simplesmente ignorado o imbecil,
mas não era o caso.
- Não estamos discutindo a sua filha, nem o seu dinheiro, meu senhor. – a
expressão em seu rosto era severa. – Além disso, meu capim está bastante
alto ultimamente. - completou com ironia.”

Com certeza amara Solluin, por ela e principalmente por causa de Luísa. E
seu futuro marido... Bom, sentia algo diferente perto dele. Sentia-se segura e
ao mesmo tempo desconfortável. Não se lembrava de desejar tanto um
homem na vida, mas claro que aquilo não poderia significar grande coisa.
Desejar Nathan na verdade era uma coisa boa – levou um tempo tentando
se convencer – e também inevitável – mais da metade das jovens que o
conheciam deviam se sentir da mesma forma. Só significava que seria muito
mais confortável realizar seus deveres conjugais.
O mero pensamento a respeito fez seu corpo estremecer e seu estômago
tentar expulsar o desjejum. O breve desjejum que havia tomado. Ótimo,
agora também estava tremendo e nauseada. Era um excelente presságio para
o que viria a seguir.
- Mamãe?
Virou-se tirando a mão da barriga e tentando se recompor. Não queria que
a filha sequer desconfiasse do quanto estava sendo difícil levar aquilo
adiante. Aliás, queria que Luísa acreditasse que nada era difícil demais a
ponto de fragilizá-la. Afinal, ela era o porto seguro dela.
- Mamãe! – exclamou levando a mão aos lábios boquiabertos.
- O que houve, meu bem?
Oh não! Ela havia percebido algo! Não seria uma surpresa. Era inteligente
além da sua idade.
- Está linda! Parece... Parece uma princesa! Não, não, uma fada!
Lavínia deu um sorriso e deixou o ar sair em um suspiro de alívio. Era
disso que se tratava então.
- Também está linda. – retribuiu o elogio.
Luísa girou, exibida, no vestido de cor verde claro e tocou o arranjo de
seus cabelos para verificar se havia sobrevivido. A coroa feita de pérolas
havia dado um ar da realeza a seus cabelos ruivos. Estava linda. Sua menina,
sua miniatura.
- Também está parecendo uma princesa.
Luísa deu alguns passos até alcançar uma posição que a deixou satisfeita e
então se avaliou no espelho. As sobrancelhas arqueadas e o cenho franzido, a
concepção da exigência.
- Não sei não.
- Uma rainha então? – sugeriu se divertindo pela primeira vez naquele dia.
- Uma fada bem pequena ou... ou...
- Um gnomo. – completou uma voz infantil que fez ambas se virarem para
a porta.
Richard, o filho de Lady Trian olhava para Luísa com as mãos nos quadris
e o semblante desafiador. Aproveitando os minutos de vantagem que tinha
da mãe e do pai que logo chegariam.
Luísa franziu o cenho, claramente indignada. A mãe só esperou pelos
gritos ou provocações infinitas – sabia que choro não era muito do feitio de
sua filha – mas então ao invés disso, simplesmente...
- Os meninos são tão tolos. – disse de forma afetada.
A Sra. Solluin sorriu para Lady Trian que havia chegado a tempo de ouvi-
la. Ambas trocaram olhares e expressões que só duas mães entenderiam.
- Boa sorte para lidar com isso. - zombou indicando a filha com a cabeça.
- Eu tenho lidado com coisas bem piores. – respondeu com olhar
reprovador para o filho.
Menino este que no momento tinha o olhar angelical. O rosto de uma
criança de que sequer tivera qualquer intenção de fazer uma estripulia que
fosse durante toda a vida. Um querubim.
- Venha Luísa, eu a levo até a carruagem.
O mesmo que a chamara de gnomo agora oferecia o braço a ela como um
adulto e ela o aceitou como se sequer se lembrasse da ofensa inocente. Se
sairia lindamente na sociedade, com toda certeza. A capacidade de não
guardar rancor – ou fingir não guardar – era essencial para sobreviver
naquele meio.
- Vá atrás dele querido e se assegure que não cometa nenhuma travessura
nos próximos cinco minutos. – disse a mesma ao Lorde Trian.
Este - que há pouco tinha cumprimentado a noiva - tinha todo o direito de
questionar o porquê estava sendo mandado para a carruagem da qual acabara
de sair há poucos minutos. Não aquele homem. Trian pareceu mais do que
pronto a atendê-la. Um poço de paciência seguindo o filho e a menina que
seria convidada em sua casa pelos próximos sete dias.
O estômago de Lavínia voltou a revirar fazendo–a se arrepender de sequer
ter tomado o desjejum.
- Tem certeza de que quer fazer isso, Milady? – questionou hesitante. –
Tenho certeza que Lorde Carffort não se importaria se Luísa ficasse conosco.
- Tolice. Vocês precisam de privacidade e Luísa não me dará trabalho
algum. – deu um dos sorrisos fáceis de seu pai. – Ela é adorável. Ah! E não
se preocupe com Richard, ele parece travesso e inconveniente, aliás, ele é
travesso e inconveniente, mas é um bom menino. Jamais a trataria mal de
propósito.
- Jamais pensaria nisso. – respondeu com sinceridade.
Sabia o que eram brincadeiras de criança e o que era crueldade.
Principalmente porque sua própria infância fora repleta da segunda
categoria.
- Só não quero que ela seja um inconveniente.
Havia sido um inconveniente por anos. Seu tio fazia questão de repetir
isso todos os dias. Não era uma boa experiência. Fazia poucas promessas na
vida, mas uma delas foi jamais deixaria que a filha passasse pelo mesmo.
Jamais.
Viu a sobrinha de seu noivo negar com um sorriso.
- Qualquer parente meu é bem-vindo em minha casa. – Sara acrescentou.
– Em breve será minha tia e Luísa é minha prima. Além disso... Eu amaria
qualquer filha de Nathan.
Filha de Nathan. Oh Deus! Por um momento ela desejou que ela fosse
mesmo – Que Deus a perdoasse! Não deveria desejar que Luísa fosse nada
além do que era. Era perfeita.
Tinha certeza que seu rosto era o de uma mulher desconcertada, embora
não tenha tido coragem de confirmar no espelho. No entanto, se sua
companhia notou sua reação, não comentou a respeito ou então – o mais
provável – interpretou de outra forma.
- Ansiosa?
- Um pouco. – admitiu.
- Não se preocupe. – a mão delicada pousou no ombro da noiva. – Ele será
um bom marido.
- Eu sei.
Era o que deveria dizer por educação, mas foi chocante perceber que não
era mentira. Sabia, de alguma maneira, que Lorde Carffort seria um marido
melhor do que ela merecia.
- Eu sei. – repetiu.

...

Obviamente seu criado havia feito um excelente trabalho com suas roupas
e – também obviamente – ele sentia a necessidade de dar seu toque. Era
sempre assim. Tinha que dar um jeito no colarinho, tirar uma mecha do
cabelo castanho do lugar onde deveria estar ou – como era o caso – cutucar a
gravata de modo que a posição dela parecesse um mero acidente e não fruto
de um trabalho minucioso.
Ouviu um farfalhar de saias. Deu um sorriso. Era de se esperar que já
estivesse ansiosa. Por mais que estivesse em uma das salas da catedral, bem
próxima do altar, estava em cima da hora. Não que alguém desconfiasse de
uma possível fuga, mas...
- Mãe, eu já estou... – quando virou, percebeu que não era bem a mulher
loira que esperava. - Emily?
O espanto o fez esquecer as formalidades.
- Sim, querido. – concordou timidamente, se aproximando. - Precisava
falar com você.
Naquele dia em especial como se o diabo estivesse disposto a tentá-lo, ela
estava particularmente bem vestida e arrumada. Usava um modelo bem
cortado em tom de azul claro e o cabelo loiro moldado de forma a evidenciar
o rosto em formato de coração. Só que assim como sua beleza clássica, havia
algo claro na cabeça dele.
Emily era de fato bonita, mas ela era só bonita. Não havia muito mais de
interessante nela, ela era vazia.
- Por que está fazendo isso? – questionou parecendo deveras preocupada.
- Isso o quê?
Não era ironia. Ele realmente não tinha entendido.
- Se casando.
- Como assim?
- Se for só uma forma de me mostrar que deixá-lo foi um erro, acredite, eu
já percebi.
Deu mais um passo e tocou a manga do casaco dele. Embora tenha feito
de forma inconsciente, Nathan recuou um pouco. Ela pareceu não notar.
- E muito embora agora não possamos ter um relacionamento às claras, há
outros tipos de relacionamento que podemos ter.
- Claro. – respondeu contendo o riso
Havia entendido direito? A mulher que parecia a exata representação do
recato e da inocência havia acabado de se oferecer como amante para ele?
- Ela não é a mulher certa pra você, querido. - parecia convencida de que
ele estava completamente interessado em sua proposta. Completamente
inclinado a corresponder a todos os desejos dela. - Não é como nós. Não
corresponde aos padrões estabelecidos. Não o merece.
Aquilo, aquelas últimas três palavras, foram a gota d’água para tirá-lo do
sério. Lavínia não o merecia?
Lavínia merecia tudo o quanto desejava porque lutava pelo que queria.
Havia sofrido na infância, se casado para escapar dos absurdos de sua
juventude e amava a criança que havia gerado com apenas dezesseis anos. E
era isso que Emily era ali... Uma criança. Uma criança que não entendia
sequer como o mundo funcionava, criticando uma mulher com a qual
deveria aprender.
- E você me merecia, Lady Petergille? – lançou a pergunta com o ar
severo dos Carfforts, que a fez recuar.
- Bem, sim...
- Sim, é claro. – concordou com sarcasmo. Era de se esperar que era assim
que ela enxergaria.
- Ainda há tempo para ir embora.
- Tem razão. – concordou ainda sério.
- Tenho?
- Sim. Eu preciso correr. – checou o relógio de bolso com certa urgência. -
Só faltam cinco minutos para a cerimônia e ai de mim deixar minha Lavínia
esperando.
- Mas...
- Se há alguém que me merece neste mundo é aquela mulher. – apontou
em direção da porta como se ela estivesse lá. - E se eu fosse você voltaria
para seu marido e tentaria ganhar a atenção dele, Milady. Se esperar a minha
pode acabar se tornando uma velha decrépita antes que perceba.
O rosto doce se converteu rapidamente em um rosto franzido de
desconforto.
- Como ousa...
- Não se preocupe. – respondeu com um sorriso, caminhando até a porta. -
Vou fingir que nunca tivemos essa conversa.
Afinal, ele tinha um casamento e o que era melhor, a mulher que esperaria
no altar em nada tinha a ver com aquela que deixara naquela sala.

...

Ainda que tivesse prometido fingir que a discussão naquela sala não
passara de fruto de sua imaginação fértil, ela não deixou sua cabeça tão
facilmente. Antes de conhecer Lavínia tudo que ele queria era aquilo. Queria
que Emily percebesse que cometera um erro e voltasse para ele. Agora,
percebeu que não importava mais. Não fazia diferença nenhuma.
Só o que o perturbava era a audácia daquela mulher ao criticar sua noiva.
Sua noiva que parecia disposta a fazê-lo esquecer da discussão, de Emily, de
seu reino de origem, seu sobrenome, o mês, o ano e até quantos anos tinha.
Quando entrou naquela igreja, nada mais importava.
Não esperava que Lavínia usasse branco, mas não esperava aquilo, aliás
não sabia o que esperava para ser honesto.
O vestido que havia escolhido compreendia um corpete prateado coberto
de pedrarias. Pedrarias essas que caiam pela saia como que por acidente,
parecendo estrelas no tecido azul meia noite. O tule escuro da saia dava um
ar de majestade, não que ela precisasse de mais.
O cabelo ruivo estava penteado deixando mechas brincarem em seu colo
pálido. Os olhos azuis determinados, a boca desenhada em uma linha séria
de concentração. O rosto naturalmente corado.
Fora um tolo ao imaginar que o maior risco que corria naquele casamento
era passar a amar Luísa. O verdadeiro perigo – e seu coração deu um salto
para comprovar – era amar a mãe dela.

...
Capítulo 13
"Verdinosas compridas"

“Sei que esperávamos que Lady e Lorde Nathan Carffort tivessem uma
exposição mais prolongada no baile desta noite. Onze e treze em ponto –
posso afirmar que isso foi checado em um relógio perfeitamente ajustado
com o da praça central – os dois deixaram de nos brindar com sua ilustre
presença.
O que para alguns foi um infortúnio, para nós foi um bom presságio.
Casais assim, apaixonados a ponto de criarem um escândalo no dia do
casamento, costumam ser fábricas de boas histórias. Mal posso esperar
para escrever a próxima.”

Notícias de Figior, escritas na noite do baile de casamento. Ansiosas por


tornaram-se públicas na manhã seguinte.

...

- Como está, Allan?


Lorde Harry Degard - marido de Isabelle, sua irmã mais velha –
questionou com o típico sorriso fácil. Claramente interessado em zombar do
herdeiro do ducado assim que tivesse a oportunidade. Essa não era uma
oportunidade que se deixava passar.
- Com aquele sorriso bobo que aparece sempre que Jenny está grávida.
Contou com o bom humor compartilhado pelos gêmeos Degard que
observavam o homem em questão. O marquês não conteve o sorriso ao notar
que, de fato, este parecia muito mais sociável que o normal.
- Faltou carregar Jenny até a carruagem hoje. – abriu um sorriso alegre. –
Homem tolo.
- E você não, ex-solteiro mais cobiçado de Figior? – Harry o cutucou
como era típico.
O ar alegre o fazia parecer mais jovem do que era. Mesmo com os cabelos
de ondas negras com fios brancos entremeados e os três netos, ainda parecia
um adolescente vez ou outra. Geralmente quando estava perto da esposa. A
culpa, obviamente, era total e absolutamente dela.
- Pois é, Carffort. - o marquês incentivou com uma sobrancelha arqueada.
– Mal teve tempo de engravidar sua beldade e já está quase carregando-a no
colo.
Nathan não perdeu o bom humor. Alguém deveria proibir aqueles dois de
andarem juntos.
- Vocês não estariam?
- Certamente. – Harry assentiu e parecia um tanto pecaminoso quando o
fez. – Eu ainda seguro riqueza no colo, mas normalmente as circunstâncias
não são tão inocentes.
- Eu não deveria ter perguntado. Deveria saber que você diria mais do que
eu queria ouvir.
As intimidades de sua irmã com o marido era muito mais do que ele
queria ouvir. Do que suportava ouvir. Ainda mais se tratando de Isa que era
uma figura maternal para ele, como para a maioria das irmãs.
- É um mal hábito dele. – Lorde Sawch, o marquês gracejou. - Um dos
muitos.
- Nathan, querido. - chamou Isabelle, como que invocada pelos
pensamentos do irmão. Um rosto preocupado, alheia a conversa que havia se
desenvolvido em sua ausência.
- Ah Isa! Graças a Deus! – exclamou pousando as mãos em seus ombros. -
Precisava de alguém para me salvar desses dois.
- Harry está sendo inconveniente? – questionou como se este fosse uma
criança de cinco anos.
- Eu sou inconveniente, riqueza. – e não tinha, nem remotamente,
vergonha de admitir.
- É evidente. – respondeu, mas não estava muito atenta ao marido, muito
atípico. – Nathan há algo errado com Lavínia.
- Como assim? Ela está doente?
Bom Deus! Por que ele estava ficando tão mal só com a possibilidade dela
ter adoecido? Uma gripe se curaria em alguns dias, se fosse o caso.
- Não. Ela está... – hesitou, não havia forma certa de descrever. - Bom, é
melhor ver por si mesmo.
No momento, sua noiva estava com sua irmã do meio, Meri – que
continha o riso bravamente. Os olhos brilhando em divertimento, enquanto
Lavínia estava inclinada falando perto de um vaso de plantas.
Aquilo com absoluta certeza era pior que uma gripe. Uma gripe não
levava as pessoas a conversar com plantas ou outros seres inanimados.
- Com licença, sim? – pediu se afastando do grupo.
Fosse o que fosse, tinha de interferir. De algum modo ela parecia estar
precisando dele. Desesperadamente.
- Como se chama? – a ouviu indagar para as folhas largas e verdes que
brotavam da terra do vaso. - Ah não! Não me conte.
Talvez, estivesse sendo precipitado em julgar sua sanidade. Poderia estar
falando com Meri.
- Se ainda não tiver um nome eu vou dar. Que tal Verdinosas compridas...
– bateu o dedo no queixo como se ponderasse. - Não, não... Discretas
brilhantes.
Maldição! Ela estava falando com a planta como uma completa lunática.
Sua irmã parecia aborrecida por ele vir interromper seu divertimento, mas
alguém tinha que fazê-lo.
- Lavínia? – questionou como se quisesse entender que outra pessoa ou ser
místico estava de posse do corpo da esposa.
- Ah Milorde! – cantarolou alegremente. Cantarolou! - Como você acha
que se chama, nossa convidada?
Este piscou algumas vezes, então olhou dela para o arbusto por uma
eternidade estúpida.
- Está falando do mato?
- Mato. Simples e brilhante. – deu tapinhas no rosto dele com entusiasmo.
- Sabia que era inteligente.
- O que há com ela?
Meri deu de ombros de forma pouco elegante para uma condessa e deixou
escapar uma gargalhada ainda menos elegante.
Lady Carffort estalou a língua, negando com a cabeça. Imaginando que
censurava sua cunhada, deixou florescer certa esperança dentro dele a certa
de sua lucidez. Frustrada, evidentemente.
- Sua gravata está torta. Precisamos arrumar.
Antes que pudesse protestar, a louca – que não parecia em nada com
Lavínia Solluin e menos ainda com Lavínia Carffort– havia entrado em
ação. O alfinete saiu de seu lugar e voltou a ocupá-lo de forma pouco
delicada. Espetando em cheio seu peito.
Nathan somente franziu o cenho e deu um pequeno passo para trás. Esta
não percebeu nada de errado e se afastou para avaliar sua obra – ou sua
tentativa de assassinato.
- Agora está perfeito.
Nathan olhou para baixo e concluiu que sua gravata nunca esteve tão
torta. Havia um chumaço saliente de seda do lado direito, o esquerdo estava
mais liso que nunca e se fosse mais dramático poderia jurar que surgiria uma
mancha de sangue em sua camisa a qualquer momento.
- Se me der licença. – disse à irmã, puxando a esposa para uma sala
reservada e escura.
Longe do salão de baile e dos convidados curiosos que agora estavam
imaginando um encontro às escuras. Quem dera fosse isso.
Antes mesmo de se aproximar dele contra a parede já havia entendido as
implicações que levaram a toda aquela situação estapafúrdia. A respiração
de sua esposa tinha um cheiro adocicado, mas com certeza alcoólico.
- Você bebeu? – a entonação em uma pergunta era desnecessária.
- Um pouquinho assim. – disse fazendo um gesto com um espaço pequeno
entre o polegar e o indicador.
Nathan ergueu uma sobrancelha. Ela foi aumentando o espaço entre os
dedos até que não foi mais possível demostrar e esta deu de ombros
timidamente.
Ótimo! Ele tinha uma noiva embriagada. Uma noiva que negara ter
colocado álcool na boca recentemente e havia escolhido justamente aquele
dia para fazê-lo. Ele era o sujeito mais sortudo de toda Figior, para não dizer
o contrário.
- Eu não queria, mas o vinho está tão gostoso. – soltou um gemido de
satisfação que não fez nada bem para a pulsação dele. - Você provou? Você
tem que provar Milorde.
- Eu provei o vinho minha esposa, mas você fez mais do que provar, está
bem claro.
Conteve a vontade de agarrá-la naquela sala escura. Estava tão perto. Os
seios a um centímetro do peito dele. Os lábios entreabertos, a expressão
lasciva, tudo conspirando a favor da luxúria. Inclusive aqueles olhos azuis
que sempre o faziam.
O fato era que não era do tipo que levava mulheres embriagadas para a
cama – mesmo que tal mulher fosse sua esposa – e não queria passar a ser.
- Eu só provei algumas vezes. Três, quatro... – entortou a boca, pensativa.
- Não, não... Foram sete... Oito vezes.
- Meu Deus! – exclamou espantado. - Eu vou levá-la até seu quarto, onde
dormirá tranquilamente até o meio dia de amanhã.
- Dormir? Como assim dormir? Temos que consumar o casamento. Temos
que fazer, você sabe... – as bochechas dela adquiriram um tom de rosa que
deveria ser proibido. - Aquelas coisas que marido e mulher fazem.
- Aquelas coisas? – um sorriso simplesmente brotou dos lábios dele. -
Quanto tempo faz que não vai para cama com alguém?
- Nove anos.
- Nove anos. - repetiu com ironia. - Claro que sim.
Como se ela tivesse feito voto de castidade assim que engravidou de
Luísa. Como se Solluin fosse forte o bastante para não tocar nela em todos
aqueles anos. Deveria dar um desconto, ela estava bêbada, afinal.
- Está duvidando de mim? – estreitou os magníficos olhos azuis.
- Não, claro que não. - continuou com o tom zombeteiro. - Pra mim
também faz nove anos.
Lavínia já ficaria surpresa se faltassem nove dias.
- Está zombando de mim. – cutucou seu peito, indignada.
Nathan ignorou a ameaça contida naquele gesto. Estava ocupado com a
tarefa de buscar um meio de tirá-la dali, de perto dele principalmente.
Olhando ao redor as opções não pareciam boas e não conhecia a Casa
Solluin bem o suficiente para arriscar uma porta sem ajuda.
- Há um caminho para o seu quarto sem passar pelo salão principal?
A mais nova Lady Carffort deu de ombros como uma criança impotente.
- Não me lembro.
- Não. – repetiu com um suspiro resignado. – Claro que não.
- Mas talvez se passarmos rápido pelo salão ninguém nos note. – disse por
sussurros como se já estivessem tentando passar despercebidos.
Observou o vestido suntuoso e a beleza exuberante dela. Ergueu uma
sobrancelha logo em seguida.
- Poucas chances disso. – concluiu amargamente. – Mas se vamos fazer
isso então que seja com estilo. Minha família não é de fazer escândalos
pequenos.
- Como a... Ah! – exclamou ao se sentir levitando.
Não exatamente levitando. Havia dois braços poderosos entre o corpo dela
e o chão e de algum jeito os braços circundavam seu pescoço.
E ele era lindo. Os cabelos castanhos bem penteados, o cheiro de colônia
recendendo e chegando às suas narinas. E estava tão perto. Tão perto.
- Está sentindo o estômago revirar?
Piscou repetidas vezes. Não era isso que ela esperaria ouvir. Não na
primeira vez que era carregada no colo por um homem.
- Não. Estou bem.
- Ótimo. – deu um sorriso branco que a fez estremecer. - Eu gostei muito
dessa camisa. Ficaria arrasado se ela fosse arruinada.
Não pode deixar de retribuir o sorriso. Se a ideia era passar a imagem de
um casal apaixonado, o sorriso da noiva não poderia ser mais sincero.
Quando passaram em meio a centena de convidados que abriram caminho,
Nathan manteve o sorriso no rosto. O burburinho deu lugar ao silêncio para
ouvir o anúncio do noivo.
- Eu peço que apreciem a festa por nós, prezados amigos... Nós temos
outra a comparecer agora.
Capítulo 14
Para a cama

Nathan tinha quase certeza que não era daquela forma que as coisas
tinham que acontecer. Não que ele tivesse casado cinco vezes durante a vida
ou nada do tipo, mas pelo que ouvia dos amigos e do irmão a noite de
núpcias envolvia mais do que levar sua noiva - sonolenta e bêbada, para ficar
ainda pior - para a cama. Sem qualquer intenção que não fosse deixá-la
confortável para dormir.
Como uma mocinha, ele havia fantasiado aquela noite. Bom... Não
exatamente como uma mocinha. Uma mocinha sequer teria algo perto dos
pensamentos libidinosos que rondavam a cabeça dele, mas ainda assim
fizera planos para aquela noite e acabara não sendo nem de perto similar.
- Por que resolveu beber? - questionou colocando-a de pé no chão do
quarto. Não que fizesse diferença de fato.
Ela hesitou longamente e mesmo estando de costas para ele percebeu seu
receio.
- Lavínia... - chamou com um tom calmo, a voz dele era mais sensação
que som, bem próximo do ouvido dela. A pele arrepiada diante do calor da
respiração.
- Estava nervosa. - respondeu por fim.
- Nervosa. - repetiu como se assim fosse compreender melhor.
O pior é que não conseguia ficar zangado com ela. Até porque havia algo
incrivelmente estimulante em conseguir deixar uma mulher tão forte e
independente como Lavínia desconcertada e nervosa. Seu ego masculino não
conseguia resistir ao ímpeto de inflar.
- E por quê?
Provocá-la era demasiado divertido. Provocá-la bêbada era ainda melhor.
Não precisara de muito tempo para perceber que ela não conseguia controlar
o que falava tão bem em tais condições.
- Nove anos é muito tempo. – respondeu cabisbaixa. Nunca lhe ocorreu
vê-la assim.
- De fato. – concordou, embora não acreditasse nela.
Outra vez aquela história de nove anos. Será que o que havia ocorrido
com Solluin nos últimos nove anos fora tão ruim que ela quis apagar da
memória?
Aquilo era completamente inaceitável. Lavínia ter na cama algo além do
mais absoluto prazer era uma afronta à natureza, um desperdício de sua obra,
um...
Um tombo. Era o que ela iria levar se ele não estivesse logo atrás para
segurá-la. Suas costas penderam para trás como se não tivesse controle sobre
seu corpo e ele o amparou com o braço forte.
- Para cama, mocinha. – disse no melhor tom brincalhão que o momento o
permitiu.
- Nathan... Está tudo girando... – ela puxava o ar com dificuldade. – Não
con... sigo... respi... rar.
Praguejou alto ignorando que estava na presença de uma dama, sua
esposa. A etiqueta era algo secundário quando estava diante de uma mulher
que estava prestes a desmaiar.
Sua cabeça girava copiosamente, sentia frio e calor ao mesmo tempo. Foi
quando ele a pegou nos braços e a levou para cama. Os dedos hábeis abrindo
os botões de seu vestido enquanto os lábios soltavam impropérios que não
conseguia distinguir bem. Não que realmente importasse.
Tudo o que lhe ocorria era que precisava respirar. Precisava.
A pele de Lavínia estava coberta de suor quando este chegou ao
espartilho. Seus dedos escorregavam, dificultando o trabalho tão simples que
ele estava acostumado a fazer. Ou, talvez, o pavor fosse um quesito ainda
mais limitante. Seus olhos estavam desfocados e não enxergava direito.
Tinha que libertá-la.
Os pulmões se encheram bruscamente de ar quando o espartilho – também
conhecido como ferramenta clássica de tortura – ficou frouxo o suficiente.
Seu corpo reivindicava o ar que lhe fora negado por tanto tempo.
O silêncio caiu pesado no quarto, o único som que o preenchia era o som
de ambas respirações ofegantes. Lavínia sentiu o vestido sendo tirado de seu
corpo juntamente com as anáguas, mas dado o seu estado de torpor sequer
protestou. Depois, só se lembrava da sensação do colchão afundando e da
mão de Nathan massageando suas costas somente cobertas pelo tecido fino
da camisa sem alças.
O toque dele acalmou seu corpo e sua alma. O ar passou a fluir com
naturalidade de dentro para fora e de repente não havia preocupações. Ela se
sentiu acolhida, querida, amada. O bastante para mergulhar em sono
profundo, inconsciente do ambiente em volta dela.

...

Nathan deu um sorriso avaliando seu novo quarto. Era evidente que os
criados fizeram o possível para apagar as lembranças de seu antigo dono,
mas algumas coisas não são facilmente removidas.
Em cima da penteadeira estava um retrato muito bem pintado de Luísa.
Avaliando melhor com o objeto nas mãos, estimou que deveria ter cerca de
seis anos na ocasião.
- Eu peço perdão, Milorde. – disse o mordomo que viera com seu criado
avaliar se o quarto estava adequado para receber o patrão. – Não sei como
deixaram passar. – se referia ao quadro, ele percebeu. - Levaremos neste
instante.
- Não. – reprimiu o sorriso. O esforço para não perder o respeito diante
dos criados. – Deixe aqui.
Pousou exatamente onde estava e imaginou quantas vezes Solluin não
tinha feito a mesma coisa. Agindo como um tolo piegas diante daquela
criança linda. Como ele o entendia! Não, não era o pai biológico de Luísa e
nenhuma força cósmica mudaria isso, mas ele poderia amá-la como se fosse.
Maldição! Ele já a amava como se fosse.
“As coisas são diferentes quando envolvem uma terceira pessoa, filho.
Um dia você pode ser tudo o que essa menina tem, quer ou precisa e não
poderá ignorar a responsabilidade. Maldição! Não irá ignorar. Eu o
proíbo.” O discurso do Duque que tinha como objetivo ser ameaçador, fora
na verdade muito tocante. Ele sabia o que era casar com uma mulher com
filhos. Mais do que isso, sabia o que era acolher e amar uma criança que não
era dele ou, no caso, quatro.
- Meu lorde?
O tom do mordomo juntamente com sua expressão vagamente avaliativa o
fez deduzir que acabara de fazer uma pergunta. Uma pergunta que não fazia
a menor ideia de qual era porque estava com o pensamento voando em outra
direção.
- Sim? – questionou como se sua falta de atenção houvesse sido
deliberada.
- Se não precisar mais de mim, senhor...
- Sim, vá. – fez um gesto de dispensa com as mãos.
Com uma mesura sucinta, o senhor idoso deixou o quarto. Encostou a
porta da forma silenciosa que aprendera com os anos de profissão. Então se
voltou para o corredor agora escuro e vazio com um suspiro fundo de alívio.
Não por muito tempo.
- Mas que... – reprimiu o xingamento com a mão no peito devido ao
espanto. – Gerusa o que faz aqui? – sussurrou.
A senhora magra aproximou a vela do rosto. A testa franzida de
preocupação e reprovação. As rugas de expressão marcando os anos longos
de trabalho naquela casa.
- Temos que contar a ele. – disse franca e direta.
- Nem continue. – disse, caminhando em direção à ala dos criados sem
olhar para trás.
Obviamente, porque era uma criatura teimosa ao extremo e também sua
esposa, ela o seguiu com determinação. Disposta a tirar a paz dele. Como se
não estivesse agoniado o bastante.
- Ele tem o direito de saber com o que está lidando. – insistiu a senhora.
Apenas virou um pouco a cabeça, mas não chegou a olhá-la.
- Sr. Solluin também não sabia com o que estava lidando anos atrás.
- E, certamente, se lembra do quanto foi difícil para ele.
- Talvez Lorde Nathan tenha o sono pesado. Talvez nem note.
- Nem note? Ora, Gerald, é nisso que quer acreditar?
- Eu preciso acreditar em alguma coisa. – parou bruscamente e se virou
para encará-la. A angústia escondida em sua expressão.
- Está fugindo da responsabilidade.
- Eu não vou trair a minha senhora. – disse com firmeza, mas sem alterar a
voz.
- Ele também é seu senhor agora.
- Para mim ele não passa de um estranho.
- É mesmo? – desafiou, aproximando-se até encará-lo de uma forma que
era impossível quebrar a conexão. - Como a Sra. Solluin no dia que bateu à
porta dessa casa?
Havia sem dúvida atacado o ponto mais sensível que poderia. Anos atrás
ele quase deixara sua atual patroa no frio e na chuva e se envergonhava
disso. Ela era uma criança solitária e ele um homem que há pouco
conseguira o emprego. Ainda assim, não fora justo e nem certo, e apesar de
já ter se desculpado formalmente, era uma culpa que carregaria e só piorou o
que sentia naquela noite.
Com um semblante resignado se voltou para a esposa. Então manteve a
expressão séria.
- Deixe-o descobrir por si mesmo. Era o que Milady iria querer.
Seria. Ao menos esperava que sim.

...

Não havia sequer a mínima remota possibilidade de ele ter uma noite de
sono agradável. Aliás, era uma bela surpresa que ele tivesse tido uma noite
de sono, de qualquer forma.
Não bastara a castidade em sua noite de núpcias, também teve que ver
Lavínia seminua e dividir a cama com ela. Com ela e aquele corpo
voluptuoso e perfeito.
Lógico que sua mente entendera que ela estava bêbada, prestes a morrer e
dormindo, nessa sequência, mas seu corpo não era nem de perto tão
compreensivo. Nada compreensivo. Era mais uma força primitiva com o
objetivo de tirá-lo do sério.
Quando percebeu que ela havia adormecido, se esforçou para voltar o seu
quarto o mais rápido possível. O que não faria a menor diferença porque
mudar de cômodo era pouco para se ver livre dela. Ao menos era isso que
havia usado como desculpa para permanecer ali até que os sons no salão de
baile cessassem.
Quando finalmente se retirou, sua respiração ofegava e a visão dos
cabelos ruivos, das curvas sensuais cobertas por roupas de baixo arquitetadas
para levar um homem à loucura completa, perturbava seus pensamentos.
Em parte, fora por isso que chamara seu criado, com a intenção que a
companhia o distraísse. O mordomo acabara vindo junto.
Quando estes se retiraram, a ausência dela voltou a perturbá-lo tanto
quando a consciência de que estava a poucos passos de seu quarto. Certo de
que seria o bastante, foi ao quartinho se aliviar sozinho.
Isso não impediu seu sono de ser agitado. Não impediu que sonhasse com
ela. Linda e nua em sua cama, chamando o nome dele em desespero e de
repente...
- Não! – um grito ensurdecedor invadiu o quarto fazendo-o sobressaltar. –
Pare! Não! Não!
Sentou na cama com a boca amarga, a sensação que o coração pularia pela
boca a qualquer instante. Aquilo era um sonho. Tinha que ser um pesadelo.
Só que estava bem acordado e os gritos não paravam.
Era claramente a voz de Lavínia, sofrida e desesperada como nunca havia
ouvido, mas ainda a voz dela. Estava em apuros. Alguém devia ter entrado
em seu quarto, mas como? Não importava, ela estava em perigo.
Em uma velocidade sobre-humana ficou de pé, tateando a gaveta da
cômoda em busca da pistola. Assim que a encontrou correu até o quarto com
a respiração descompensada. Se alguém estivesse fazendo qualquer mal a
Lavínia, não sairia dali vivo. A porta bateu na parede em um baque e ele
olhou ao redor. A pistola armada e apontada para...
Ninguém.
Não havia ninguém além de Lavínia naquele quarto. Olhou embaixo da
cama, abriu as portas de cada maldito armário e vasculhou o quarto de vestir.
Nada.
E ela continuava gritando e se debatendo em desespero. Foi quando
percebeu. Ela estava sonhando. Tendo algum terrível e péssimo pesadelo e
prestes a se machucar com o quanto que estava agitada.
- Lavínia! – chamou pousando a arma na cômoda dela. – Lavínia acorde!
– chamou de novo.
- Pare! Pare, por favor! – continuou gritando e gritando.
- Lavínia! – tentou novamente segurando os pulsos dela. – Acorde! – sem
pensar ele a sacudiu. – É só um pesadelo! Acorde!
- Não!
Então ela abriu os olhos, mas ele percebeu que ainda não estava
consciente. Continuava a se debater e viver o sonho. O vilão só havia
mudado de rosto. Tudo o que lhe ocorria é que tinha que se salvar. Seus
olhos desviaram para o corpo dele, muito maior e mais forte do que o dela,
só vestindo calções e mais nada, depois olhou para seus pulsos presos pelas
mãos dele. De novo não. De novo não.
- Lavínia! Pare e me escute. – disse, o olhar azul e sério fixo nela.
- Não! Solte-me!
Não a obedeceu, mas o susto foi o suficiente para aliviar a pressão e uma
das mãos dela escapar. Com um grunhido ela o arranhou com força no rosto.
Finalmente, o choque pareceu acordá-la. Com os olhos azuis claros
arregalados fitou a marca vermelha no rosto forte e assustado.
- Saia daqui. – disse em tom de ordem.
- Não. – respondeu quase como um rugido grave.
- Saia. Eu não o chamei aqui. – gritou com o rosto franzido. – Saia do meu
quarto ou eu...
Engoliu o restante da frase quando este olhou para seu punho fechado.
- Vá em frente. – incentivou com o rosto sério. – Eu não saio daqui.
- Po-Por quê? – questionou em tom embargado em meio a soluços.
As lágrimas caiam em seu rosto sem controle algum. Velozes e teimosas,
ignorando que não eram bem vindas. Nathan a puxou para perto de si e ela
não resistiu. Não resistiu ao calor e ao toque. Não resistiu ao refúgio bem-
vindo.
- Por quê?
- Porque eu prefiro que me machuque do que a si mesma, sua mulher
louca. – respondeu em tom de repreensão, mas não a soltou.
Os braços antes tensos e as mãos fechadas se dissolveram o bastante para
retribuírem o abraço dele. Sentindo o calor de seu peito contra seu rosto
choroso.
- Fique calma. – pediu acariciando as costas dela. – Ninguém aqui quer
machucar você.
Pela primeira vez depois que Solluin havia partido sentiu que alguém se
importava com ela. Que queria seu bem e sua segurança. E ela o havia
agredido.
Afastou seu rosto e olhou para ele. O rosto demonstrando uma tristeza
profunda quando visualizou as marcas que sua violência havia criado. Ela as
acariciou com os dedos finos.
- Nathan, me perdoe. – pediu com um suspiro fundo. – Eu não quis...
- Não se preocupe. – deu um sorriso. – Tenho certeza que vou encontrar
uma boa desculpa para isso.
Um sorriso escapou dos lábios dela e foi um deleite para seus olhos.
- Por que é tão gentil comigo?
- Por que eu não seria? – questionou, deslizando a mão grande pelo rosto
dela.
O rosto dela afundou em seu pescoço, onde se deixou sentir seu cheiro.
Respirando pausadamente, mas cada vez de forma mais acelerada.
- Por que os criados não me contaram?
A mágoa na voz dele fez seu coração apertar.
- Eu fiz os que sabem jurarem silêncio. – soltou um suspiro fundo, as
mãos agarrando–o com mais força. – Eu não me orgulho disso. Não me
orgulho de mim mesma. Sou uma pessoa terrível por tê-lo arrastado para o
meu inferno de todas as noites. Eu não queria. Eu não devia.
Nathan se afastou e segurou seu queixo para olhá-la nos olhos. Tão
profundamente que sentiu que sua alma poderia ser lida.
- Lavínia...
Desviou o olhar para a mesa de cabeceira e quase perdeu o ar com o que
viu. Estava imaginando coisas?
- Uma pistola?
No primeiro instante, pareceu vagamente confuso, então seguiu seu olhar
e a compreendeu. A pistola. Até tinha se esquecido que a trouxera.
- Achei que alguém estava machucando você. – justificou de forma
franca. – Responda com sinceridade Lavínia, alguma vez você já se
machucou com esses pesadelos?
Após um longo período de hesitação ela assentiu.
- A pior vez foi quando caí e bati a cabeça.
Soltou um xingamento diante da resposta dela. Por isso Luísa não dormia
com a mãe, para sua própria proteção. Ela tinha medo de machucar a
menina.
- Não foi grave, Solluin chamou o doutor e eu fiquei bem.
Arregalou os olhos ao sentir as palmas das mãos dele em seu rosto.
Garantindo que estava capturado sua atenção.
- Um dia ainda vou entender você, mas duvido que seja esta noite. –
deixou os polegares secarem suas lágrimas. - De hoje em diante você não
dorme mais sozinha.
- Mas...
- Nunca mais. – reforçou.
Não tinha forças para discutir com ele, mais do que isso, não queria
discutir. Quando a puxou para que deitasse de frente para ele e a abraçou
soube que não havia porque contradizê-lo.
Aquele era o marido dela e naquele momento, não havia nada que a
deixasse mais feliz. Estava segura. Finalmente.

...
Capítulo 15
Como nos velhos tempos

- O que houve com o seu rosto, Carffort?


Nathan avaliou a expressão do Conde de West, ele não parecia nem perto
de se preocupar. O desgraçado estava se divertindo e bastante curioso acerca
do motivo pelo qual seu cunhado tinha uma marca no rosto.
Anos tentando descobrir o que aquela criatura devassa e sua irmã tinham
em comum e a resposta estava ali, bem diante dos olhos dele. Ambos
adoravam escândalos. Segundo West, a semelhança era que Meri também
era uma devassa, mas ele se recusava a acreditar nisso. A mera ideia de sua
irmã sequer próxima da mesma cama do marido era o suficiente para lhe dar
arrepios.
Voltando ao ponto inicial, aquele cretino queria respostas e não aceitaria
qualquer uma. Certamente, ele sabia que aquilo fora uma unhada, era
especialista em marcas femininas de todos os tipos, pois fizera um estudo
intensivo disso em sua juventude.
Sempre existia, claro, a opção de mandá-lo pro inferno, mas não naquela
manhã. Naquela manhã ele precisava do cunhado porque era a única pessoa
que conhecia que seria louca o bastante para o que pretendia. Precisava de
um canalha sem escrúpulos ou um ex-canalha sem escrúpulos.
- Precisa ver como ficaram as minhas costas. – respondeu tamborilando os
dedos no tampo da mesa com postura descontraída.
West soltou uma risada diante do sorriso do cunhado.
- Noite boa, não é? – provocou descaradamente.
- A de hoje vai ser melhor. – rezava para que sim.
A anterior não fora nem de perto boa, mas ficou feliz com seu poder de
encenar o contrário. Não porque fora casta, esse era na verdade o menor dos
problemas. A grande questão era que o rosto desesperado de Lavínia ainda
estava na cabeça dele. Havia sido um pesadelo vê-la sofrer.
- Isso mesmo, Carffort, confiança é tudo. Ainda mais para um homem que
não é tão bonito quanto eu.
Ah aquela opção! Aquela opção tão tentadora!
- Vá pro inferno, West!
Um sorriso que só podia vir da satisfação de atormentar alguém surgiu nos
lábios do conde.
- Quanto mal humor. – brincou despretensiosamente com uma caneta
sobre a mesa. – Tem certeza que a noite foi satisfatória?
Abriu a boca para xingá-lo novamente, mas percebeu que isso só o
deixaria mais atentado. Então suspirou fundo e voltou para o motivo da
visita.
- Preciso ir a um bordel.
- Ora Carffort. – disse com certo divertimento. - Também não é assim.
Não são necessárias medidas tão drásticas.
- Quero que vá comigo. – emendou e o viu um tanto chocado.
Deveriam pintar um quadro daquilo. “O Conde ex-libertino, chocado”.
Deviam emoldurar de tão rara que era a situação. Aliás, Meredith deveria ser
responsável por isso, já que era a única que conseguia se igualar aos talentos
do Conde com a tela e pincel. Estes faziam um sucesso colossal no museu
real, mas o fato era que tinha certeza de que West chocado atrairia mais
clientes do que qualquer quadro épico já pintado.
- Você quer que sua irmã me mate. – resumiu bem seu destino.
- Ela sabe que eu vou levá-lo.
Várias emoções passaram pelo rosto do Conde. Descrença, desconfiança e
então o mais cru espanto, que seria engraçado se a situação fosse outra.
- Meri quer que eu vá para um bordel? – questionou com o corpo
inclinado na direção da mesa e os olhos semicerrados.
- Eu não estou indo pelos motivos usuais. – explicou para seu mais
completo alívio. Embora achasse que ele merecia mais alguns minutos de
tortura.
- Graças a Deus! – exclamou levando a mão ao peito. - Achei que ela
tinha perdido o juízo. – deu um sorriso, curioso novamente. - O que vamos
fazer lá então?
- Ver uma prostituta.
...

Nathan avaliou a construção nada discreta a sua frente com curiosidade.


Estava aí uma coisa que nunca fizera, entrar em um bordel à luz do dia. Mal
reparara no quanto a porta de ferro dos fundos estava gasta e amassada.
Ficou imaginando que história aquelas marcas tinham e, certamente, não se
tratavam de ocorrências inocentes.
Virou para sua direita para comentar suas recém-descobertas com o
cunhado. Até reparar que este com as mãos nos bolsos do casaco escuro
avaliava o local com um sorrisinho no rosto.
- Tire esse semblante nostálgico da cara, West. – disse em tom sério e
firme. - Ou eu vou arrancá-lo à força.
- Ora, um homem não pode lembrar com carinho de sua juventude? – deu
um sorriso de quem não se sentia nem um pouco ameaçado.
- Não quando essa juventude foi a mais maculada de todo o reino e menos
ainda quando esse homem é casado com a minha irmã.
- Eu amo a sua irmã, Carffort.
A declaração franca o espantou. Ele deu de ombros. Por um momento
ficou sem saber o que responder. Não que fosse um segredo o amor dos dois,
mas não era qualquer dia que se ouvia isso da lenda que era o Conde,
sobretudo diante de um bordel.
Por sorte, não teve que pensar muito. Um homem surgiu praticamente
empurrado da porta do bordel desviando a atenção de ambos. Aos tropeços.
Por baixo das roupas levemente desalinhadas e do semblante certamente
frustrado, conseguiram distinguir o filho caçula do Barão de Nille.
Com movimentos bruscos de irritação ajeitou o casaco e os cabelos, antes
de se voltar para os dois homens que assistiam a porta fechar com um baque
forte. O suficiente para garantir que o homem que irritara Nille estava ainda
mais irritado que este.
- Nem tentem entrar aí se não quiserem ser enxotados. – deu uma batida
na manga do casaco, agora com toda classe que se esperaria de um
cavalheiro. O tom voltando a ser formal.
West deu um sorriso maroto. Então um passo à frente. Nathan queria
perguntar se ele havia perdido o pouco que restava de seu juízo.
- Com licença. – pediu batendo a porta.
Um grandalhão - que se não tivesse dois metros estava bem próximo desse
número – abriu a porta novamente com um semblante irritadiço. O rosto
marcado por cicatrizes que o faziam ainda mais ameaçador.
- Temos outro espertinho, senhora. – disse este, olhando vagamente para
trás.
- Para fora! – ela acenou de costas com a mão direita. Em um claro gesto
de dispensa. - Minhas meninas estão dormindo.
A atenção do Conde foi desviada para a fonte da voz. Já fazia um tempo,
mas ele conheceria aquela voz feminina e aquele cabelo cor de fogo em
qualquer lugar.
- Ora, ora... – gracejou, tentando se mostrar calmo mesmo com um
brutamonte pronto para esfolá-lo vivo. - Você já foi mais divertida ruivinha.
A pronúncia do apelido chamou a atenção dela. A ponto de se virar.
- Kurt?
O nome de solteiro deixou Nathan em alerta. Certamente, antes de ser
dona do bordel aquela mulher fora uma de suas funcionárias e, certamente,
tinha dormido com West, na ocasião, ainda Kurt.
- Eu. – deu um sorriso torto.
- Uma bebida. Agora.
A ruiva de corpo escultural e um belo rosto gesticulou para o segurança
que fechou a porta diante do semblante estupefato do filho do barão,
deixando apenas os convidados interessantes entrarem.
- Agradeço a cortesia ruivinha, mas não viemos beber. – deu outro sorriso
indo até ela para beijar-lhe a mão. – Meu cunhado veio ver... – franziu o
cenho, se detendo para olhar para o homem em questão. – Quem mesmo?
- Abigail.
- Claro. – a senhora bela assentiu com um sorriso. – Eu mostrarei o
quarto.

...

- Peço desculpas por não recebê-lo com vestes mais adequadas, Milorde.
Nathan reprimiu o comentário de que ela nunca o havia recebido com
vestes adequadas. Não era momentos para brincadeiras e mesmo a jovem
parecia compreender isso.
Abby vestia um roupão azul marinho que ia até seus pés calçados pelos
tamancos. Não havia sequer um vestígio de maquiagem em seu rosto e foi
quando ele se deu conta de que ela era naturalmente bonita. Ousava dizer
que estava ainda mais bonita que o habitual.
- Não se preocupe com as formalidades.
Assentiu como se agradecesse, colocando os cabelos longos atrás da
orelha. Então pegou os dois copos e ofereceu um a ele.
Imaginava que beber não era uma atitude inteligente, mas sabia que para
ter aquela conversa nem todo álcool do mundo seria suficiente.
- Obrigada.
Abigail se sentou no sofá ao lado dele com a postura calma de uma dama,
embora a malícia que tinha no olhar dissesse o contrário. Tomando um gole
de sua bebida ela simplesmente esperou até que ele se manifestasse.
- Conhece Lavínia há muito tempo?
- Há alguns anos. – franziu o cenho diante das implicações que aquela
pergunta criava. – Há algo errado?
- Passei a noite com ela.
A compreensão que se fez entre os dois não deu margem para dúvida. Ela
sabia do que se tratava a preocupação dele ou, ao menos, onde teve origem.
Como presumida, fora uma decisão acertada procurá-la. Não conhecia
muitas outras que fossem amigas de sua esposa, ela não era do tipo que tinha
muitas.
- Como foi?
- Mais terrível do que posso descrever.
O que ele não havia dito seu rosto havia contado. Por trás das feições
másculas e belas, estava um homem cansado, de aparência adoentada.
- O médico disse que poderia piorar com o tempo. – disse, segurando o
copo com ambas as mãos. Contendo o ímpeto de tocar nas mãos dele.
- Ela viu um médico?
A surpresa dele era nítida e esperada. Não era do feitio de Lavínia buscar
ajuda. Assim que as crises noturnas começaram, ela se escondeu ao máximo
que podia. Da criadagem e de Luísa e teria se escondido do marido também,
se este permitisse.
- Sim. Solluin a forçou a ver quando bateu a cabeça. – deu um suspiro
fundo como se o assunto a perturbasse. - Percebeu que tudo estava saindo do
controle.
- Solluin. – repetiu o nome como se pensasse sobre. Não sobre sua origem
ou a sonoridade, tratava-se de algo mais complicado. - Abigail...
- Sim? – o fitou com um olhar distraído.
- Alguma vez Solluin a machucou?
Chegava a tremer com o medo da resposta. Ao mesmo tempo que queria
descobrir o que afligia sua esposa, estava receoso quanto ao fato. Mas
precisava ser forte.
Havia prometido honrar, respeitar e zelar por ela. E ainda que a maioria
dos homens fizesse os votos por meras formalidades, pretendia segui-los.
Bom Deus! Ele não suportava vê-la sofrer.
- Por Deus! Não! – respondeu rapidamente arregalando os olhos. - Ele
nunca levantaria a mão para Lavínia.
- Mas algum dia ele já a forçou a cumprir os deveres conjugais?
- Nunca, Milorde. – enfatizou negando com a cabeça. - Ele era um homem
bom que a amava. Não seria capaz disso.
- Quem então?
- Perdão? – franziu o cenho como se não tivesse compreendido.
Infelizmente, tinha compreendido até demais.
- Alguém a forçou Abby. – maldição! Ela achava que ele era um idiota? -
Quero saber quem foi.
- Ela não fala muito sobre isso.
Desviou o olhar, não suportando sustentá-lo. Era uma situação difícil, mas
ele não estava disposto a facilitar em nada.
- Abby. – a chamou pelo apelido e aguardou sua atenção. - Quem?
Hesitou por tempo suficiente para que ele passasse a acreditar que não
diria absolutamente nada. Estava no direito dela. Afinal, era o local de
trabalho dela. Ele era o intruso.
- O tio dela era um homem violento.
A resposta vaga foi mais que explicativa. Lorde Carffort cerrou os
punhos. Nitidamente furioso. Preparado para avançar no velho ou
simplesmente, na primeira pessoa que o irritasse.
- Eu vou matá-lo. – declarou com uma firmeza desconcertante.
- Isso seria impossível, Milorde.
A calma dela só conseguiu deixá-lo ainda mais furioso. Como podia estar
com aquele rosto impassível declarando em uma frase calma que ele não
teria direito a vingança merecida. Que não poderia fazê-lo pagar pelo que
fizera a Lavínia, que continuava fazendo.
- Por que, diabos?! – levantou a voz.
- Ele já está morto.
Quase lamentou tal fato. Quase. Uma onda incompreensível de
melancolia o invadiu. De impotência e terror.
- Ela tem outros parentes?
Não que fizesse diferença. Sequer entendia o porquê da pergunta.
- Os parentes desapareceram do mapa depois que Lavínia negou ajuda
financeira a eles.
Nathan bufou e passou a mão pelos cabelos. Que tipo de monstros haviam
criado e educado aquela mulher forte e magnífica que chamava de esposa?
- Se quer um conselho... – disse baixinho temendo interromper algo.
- Sim, por favor. – assentiu, mergulhado em um poço fervendo de
desespero.
- Intimidade de qualquer espécie sempre a deixou desconfortável. – desta
vez não se conteve e esticou a mão para pegar a dele. - Mostre a ela como
pode ser bom e acima de tudo deixe claro que ela pode confiar em você.
Por um momento ele ficou em silêncio. Somente segurando a mão dela e
tentando não desabar. A sensação era que se a soltasse, se saísse por aquela
porta, iria desmoronar.
- Obrigada Abby. – disse, finalmente se levantando.
- Disponha, Milorde. – assentiu com formalidade.
Com a postura impecável acompanhou seus passos até a porta. O coração
completamente sem compasso. Deu um suspiro fundo quando se viu sozinha
no cômodo. A culpa consumindo.
- Espero que um dia possa me perdoar. – murmurou aos ventos, mais para
aplacar a própria consciência.

...
Capítulo 16
Reunião de amigas

Lavínia de fato não era uma mulher que tinha um número alto de amigos,
mas tinha relações de negócios nas quais se dedicava com praticamente o
mesmo empenho. Afinal, ao contrário dos ricos de nascimento, ou ela se
dedicava ou não comia. Era simples assim.
Aos dezoito não era madura o bastante para entender o objetivo de se
sentar e tomar chá com aquelas mulheres. Era imatura e cru demais para
compreender. Sentia-se coagida, julgada e até mesmo excluída por ser tão
jovem, mas confiava no marido.
Solluin deixara claro que todos os eventos aparentemente fúteis tinham
um propósito. Os longos e cheios bailes, os chás solitários enquanto seu
marido fumava charutos e discutia assuntos verdadeiramente importantes
com os homens, tudo.

“- Eu não quero ir. – disse certa vez em tom melancólico. – Quero ficar
aqui com o senhor.
- Um dia você comandará essa companhia, criança. Será uma mulher de
sucesso que todos respeitarão. – sorriu com carinho. – Quando chegarmos
do baile passaremos um tempo juntos se é o que deseja.
- Então, por que não ficar com o senhor e os homens? – questionou
novamente, porque jamais ele a impedira de falar francamente. Sempre
incentivou tal hábito. – As mulheres não dizem nada de importante. Só
roupas, penteados e fofocas sobre os maridos...
- O homem é a cabeça, querida, e a mulher o pescoço. E o pescoço pode
virar a cabeça para onde quiser. – passou os dedos carinhosamente por seu
queixo como costumava fazer. – Essas mulheres são mais parecidas com
você do que imagina ou, ao menos, são parecidas com o que acabará se
tornando. Faz mais pela companhia com conversas sobre penteados que eu
com contratos. – deu um sorriso experiente. – Mulher feliz, marido feliz e
homens felizes... Mais dinheiro para o nosso negócio.”
Não entendera de pronto. Aliás, não entendera completamente nada que o
marido quisera dizer na época. Veio a entender um ano depois quando este
provou sua teoria.
Havia um homem contrariado a assinar os contratos. Para todos já era uma
transação perdida, então ela interviu. Falou com sua esposa muito
sutilmente, ganhou sua confiança e esta fez o diabo para o marido assinar
quantos papéis Sr. Solluin desejasse. Deu certo e ela mal pode conter a
alegria.
Havia algo incrivelmente excitante no poder de boas relações. Ela se
sentia capaz, invencível e desenvolveu uma capacidade no falar que faria um
homem que queria cabras comprar galinhas e sair ainda mais contente. A
Sra. Solluin sempre tinha o que queria.
Quanto às mulheres, com o tempo, mais que ferramentas de negócios elas
se tornaram companhias agradáveis. Solluin tinha razão, elas eram como ela.
Ambiciosas, determinadas, pouco desprovidas de decoro. Mulheres que se
vestiam tão bem quanto damas, mas pareciam ter como objetivo de vida
deixar claro que não eram uma.
Sentia-se à vontade com elas e com o respeito que haviam adquirido umas
pelas outras. Como dissera seu falecido marido, aquelas eram relações
valiosas. Os maridos não andavam lhe dando muito ouvidos desde que ficara
viúva, já as esposas pareciam ainda mais fiéis a ela. Como aquelas quatro
que haviam sentado com ela para o chá da tarde.
Giorgetta – a de cabelos e olhos escuros e magérrima, Laila – a loira de
olhos amendoados e semblante astuto, Gisele – com seus marcantes olhos
azuis e o cabelo escuro – e Antônia – a mais velha das quatro e também a
mais atrevida. Todas com línguas afiadas, mentes brilhantes e coração de
ouro. Eram boas esposas com um grande poder de persuasão.
Aliadas importantes e valiosas.
- Podemos contar com o apoio de seu marido para a compra de mais três
navios, Antônia? – Lavínia questionou.
O rosto impassível de quem tinha certeza da resposta afirmativa. O
interior apreensivo de quem após a morte do marido não tinha certeza de
mais nada.
- Claro, claro... – esta fez um gesto impaciente com as mãos. – Mas vamos
ao que interessa.
- Sim, não estamos aqui para discutirmos negócios. – disse Laila com um
sorrisinho.
- Não? – Giorgetta pareceu um tanto surpresa. - Eu pensei que esse era o
motivo do encontro.
- Ah! Até pode ser o seu motivo, meu bem. – Antônia deu uma risada. –
Mas nós estamos aqui para saber se os boatos são verdadeiros.
- Boatos? – a anfitriã arregalou os olhos.
Bom Deus! Havia uma infinidade de coisas que ela temia que viessem a
público. Uma mais apavorante que a outra. Do que elas ficaram sabendo,
afinal? Havia deixado escapar algo? Se fosse o caso, não conseguia se
lembrar do que e em qual ocasião.
- Sim, querida. – Gisele se inclinou na mesa como se quisesse confiar um
segredo a ela. – Ele é mesmo tudo o que dizem?
- Já ouvi dizer que ele tem lábios divinos. – Laila ajudou, achando a
reação da amiga deveras engraçada. – Conte-nos. Como ele é?
Então era disso que se tratava. O suspiro de alívio ficou entalado em sua
garganta. Mas o que diria? Que não fazia a menor ideia porque era uma
desequilibrada que não tivera a capacidade de consumar o próprio
casamento.
- Bom, ele é...
- Milady...
Lavínia virou a cabeça para encontrar seu mordomo. Com a sombra de um
sorriso nos lábios e um buque de rosas nos braços.
As esferas de pétalas vermelhas pareciam com veludo, eram grandes e
perfeitas, se destacavam ainda mais pelas folhas verdes que as entremeavam.
Aquelas rosas eram uma obra da natureza e não conseguiu entender o que
faziam com seu mordomo.
- Sim?
Sua voz saiu mais mirrada do que gostaria.
- Milorde lhe mandou isto. – lhe entregou as flores com cuidado.
- Oh! – exclamou sem saber o que mais deveria dizer. Deveria dizer algo?
- Ele está em casa?
A resposta do criado foi se afastar para que a patroa tivesse uma visão
privilegiada da porta.
Seu marido estava escorado no batente de forma descontraída. O casaco
cinza chumbo aberto, revelando um colete um pouco mais claro onde se
destacava a corrente dourada do relógio de bolso. Um lenço azul claro
perfeitamente dobrado no pescoço destacando seus olhos que a encaravam
com familiaridade. Uma mecha do cabelo castanho brincava em sua testa e
quando viu ter ganhado sua atenção, sorriu com um equilíbrio perfeito entre
a malícia e a doçura.
Lavínia ouviu o que parecia o barulho dos leques de suas convidadas se
agitando freneticamente. Um consolo bem-vindo já que imaginava ser a
única a perceber que a sala antes fresca parecia uma fornalha ardente.
Prendeu a respiração ao ver que ele se aproximava com passadas largas e
elegantes. Ainda olhando para ela.
- Achei que ainda estava com o Conde. – foi a primeira tolice que lhe veio
à cabeça.
- West mostrou ser uma criatura tediosa, Milady.
Sentiu o corpo retesar quando a mão do marido pousou no encosto de sua
cadeira. A mão grande e quente tocando a pequena parcela pele nua de suas
costas exposta pelo vestido. Sentiu seus pulmões gritarem por ar.
Aquilo era ridículo. Ele a havia abraçado noite passada. Estava seminu.
Existiram momentos mais íntimos do que aquele. O fato era que se tratava
da primeira vez que interagiam em público após o casamento e a noite de
núpcias. Tudo estava conspirando para tornar o momento mais excitante.
Sobretudo o perfume dele.
- Eu certamente não a deixaria por tanto tempo. – disse com o olhar firme
no dela.
- Bom Deus! – ouviu Laila sussurrar e sentiu as flores quase escorregarem
de sua mão.
O sussurro comedido chamou a atenção do dono da casa. Atenção esta
que foi o suficiente para que todas as quatro corarem. Mesmo Antônia que
era a mais experiente de todas. – Maldição! – Por que ele tinha que ser tão
irresistível?
- Perdoem-me, senhoras, a interrupção.
- Pode interromper sempre que desejar, Meu lorde. – respondeu Gisele
agitando seu leque com vigor.
- Obrigada. – deu um leve sorriso. – Vou me lembrar disso.
- Ah! – exclamou a dona da casa tentando falar de forma coerente. – Essas
são Giorgeta, Laila, Gisele e Antônia. – então se voltou para as mulheres em
questão. – Esse é meu marido, Lorde Nathan Carffort.
Ele fez uma reverência profunda.
- Sabemos quem ele é, meu bem. – Antônia disse contendo o sorriso. –
Como não saberíamos?
- O que houve com o seu rosto, Lorde Carffort? – questionou Giorgetta,
que parecia sempre pronta para dizer a coisa errada na hora errada. Com o
excesso de intimidade que não lhe fora conferido.
As costas de Lavínia ficaram mais eretas e a linha de seu maxilar mais
tensa. Será que ela achava mesmo que a difamaria? Ela não o conhecia
mesmo. Compreensível, já que estavam juntos há poucas horas.
- Dispensar os serviços de meu valete está fora de questão. – passou a mão
pelo queixo. – Sou péssimo em fazer a barba.
- Só um homem corajoso admitiria isso. – elogiou Antônia com bom
humor.
- Ou um homem visivelmente inexperiente com navalha. – gracejou de
volta.
- Ouvimos dizer que o senhor não é nada inexperiente em outras coisas. –
Laila gracejou irrompendo em uma gargalhada.
Aquelas mulheres não eram fáceis de lidar como as damas. Elas diziam o
que queriam quando queriam, mas com a família que tinha já estava
acostumado. Era cercado desde o nascimento por mulheres que não tinham
papas na língua.
- É verdade. Sei dar um laço na gravata como ninguém. – respondeu como
se não tivesse entendido a provocação e sorriu para elas, que voltaram a
soltar risadinhas.
- Vou deixá-las em paz. – deslizou a mão até o ombro da esposa. – Eu
estarei na biblioteca quando quiser se juntar a mim.
Lavínia assentiu com uma timidez que há anos não experimentava. Como
ele podia deixá-la tão desconcertada?
- Você só pode ter problemas, Lavínia. – Gisele a repreendeu assim que
Nathan saiu.
- Eu sei. – achou que falavam do fato de ter aceitado o convite dele tão
prontamente. – Mas eu só irei quando...
- Maldição! Eu não teria levantado da cama por semanas. – exclamou
Antônia compreendendo o espanto de sua colega. – Vá atrás dele.
- Isso é ridículo. – negou com a cabeça olhando para o bule de chá quente.
– Mal tomamos chá.
- Agora! – responderam as quatro ao mesmo tempo.
Lavínia arregalou os olhos.

...
Se as quatro, todas as quatro, disseram que deveria se juntar ao marido,
então deveria ser a coisa certa a se fazer. Isso não diminuiu seu receio e
ansiedade ao entrar na biblioteca após ser anunciada. O cômodo lhe pareceu
subitamente grande e escuro, prestes a engoli-la.
- Aí está você. – Nathan deu um sorriso inebriante, sentado em um dos
sofás. – Espero que tenha gostado das flores.
- Sim, obrigada. – respondeu, mas a tensão a impediu de sorrir.
Ele ergueu uma das sobrancelhas castanhas.
- Há algo errado?
- Não. – negou com vigor. – Absolutamente nada errado. Eu... – hesitou
com um suspiro. – Eu agradeço por não ter dito a elas o verdadeiro motivo
da cicatriz.
Nathan deslizou a mão pelo estofado do sofá lentamente. Havia algo
incrivelmente erótico no modo como seus dedos se intrometiam nas cerdas
do veludo. Ela se viu na situação estúpida de desejar ser um sofá. Aquele
sofá. Obviamente, havia tomado mesmo muito vinho na noite anterior.
Sentou ao lado dele no que acreditava ser uma distância segura. Dois
palmos lhe pareceram suficiente, mas quando ele a olhava, nada era.
- Temo não ter dito algo tão lisonjeiro para West. – disse com a postura
descontraída que a convencia que não se tratava de nada importante.
- O que disse a ele? – estava a um passo bem pequeno de gaguejar.
- Que você havia me arranhado, mas em outro contexto.
Encantador era um bom jeito de descrever a forma chocada com que sua
esposa o encarou. Os olhos piscando como se não houvesse compreendido.
As bochechas com um agradável tom rosado.
- Lavínia. – escorregou a mão até cobrir a dela. – Você confia em mim?
A resposta estava estampada no rosto dela. No semblante melancólico de
quem não confiava em ninguém e se ressentia disso. Queria poder confiar.
Queria mesmo.
- Está disposta a tentar? – questionou com calma.
Os olhos dela baixaram até as mãos de ambos entrelaçadas. O polegar
dele acariciava o dorso da mão dela fazendo com que um calor agradável a
invadisse. Então, olhou novamente nos olhos dele.
- Eu não sou boa nisso.
- Eu sei, querida. – levou a mão dela aos lábios e a beijou.
- Não. – soltou um riso sem humor. – Não sabe.
- Sei. – assentiu com firmeza. – Eu sei que não acredita que ir para cama
com alguém pode ser algo prazeroso.
As palavras francas a chocaram. Eram diretas demais para um cavalheiro
e invasivas demais para um marido. A sensação era que havia entrado em
um campo de combate e, antes de compreender a guerra, havia sido atingida.
- Não seja ridículo. – franziu o cenho. - Eu fui casada por nove anos.
Como pode pensar que eu...
- Você nunca sentiu, não é? – a interrompeu com um sorriso melancólico.
- O quê?
- Prazer.
Bom Deus! Ele a estava matando. Primeiro as flores, depois aquela
conversa. Com aquele olhar de profunda devoção que nunca havia sido
direcionado a ela. Devia ser imaginação dela. Só podia ser.
- Não é uma pergunta apropriada para...
- Deixe-me mostrar a você.
Então aquele convite. O golpe final em seu bom senso.
- Nathan... Eu não...
- Só vou consumar o casamento quando pedir que eu o faça.
Seu queixo finalmente caiu. Era de se esperar que acontecesse antes, mas
aquela alegação era a mais absurda de todas elas. Negou abismada com a
ideia.
Primeiro a promessa de lidar prazer e depois um voto de castidade.
Praticamente no mesmo minuto.
- Isso não faz nenhum sentido.
- Há outras formas de mostrá-la o paraíso, Lavínia. – o toque dele na mão
dela era um argumento mais do que válido. - Você só precisa querer subir no
navio.
- Não entende, Nathan. – havia um choro tentando subir por sua garganta,
mas não sabia ao certo o motivo. - Eu não sou como as outras. Talvez não
aconteça.
- Qual foi a última vez que apostou todas suas cartas em algo que não
sabia que daria certo, Lavínia?
Fez uma pausa e ele entendeu que estava considerando a proposta.
Nunca era a resposta. Estava acostumada a andar em terreno conhecido.
Não se lembrava da última vez que arriscara tanto. Deixar aquilo acontecer
era como pular em um lago sem conhecer a profundidade, mas era tudo o
que ela queria.
- E não consumará o casamento. – repetiu como que para testar sua
audição ou a memória dele.
- A menos que me peça. – reforçou com uma calma desconcertante.
Assentiu levemente e pareceu o suficiente. Fechou os olhos, se aproximou
dele e esperou pelo ataque violento de um homem privado de suas
necessidades, mas ele não veio.
Nathan a tocou de forma doce e gentil. As mãos em seu rosto seguidas por
seus lábios que acariciavam sua pele macia. Só duraria poucos minutos,
prometeu a si mesma, poucos minutos até as lembranças a afogarem e a
fazerem deter aquele homem. Então, por que não tinha a menor vontade de
fazê-lo?
Com habilidade e inegável sensualidade plantou beijos do caminho de seu
queixo até seu ouvido. Como pequenas rosas nascidas no inverno. Prontas
para tornar o ambiente mais quente e agradável.
- Oh meu Deus! Você é linda!
Qualquer resposta que esperasse receber foi detida pelo momento em que
ele tomou o lóbulo da orelha na boca e o mordiscou.
Estava perdida.

...
Capítulo 17
Lições de prazer

Se não fosse pela noite anterior, ele juraria que sua esposa jamais
conhecera nada além do mais completo prazer no leito de núpcias. Ela era a
própria paixão nos braços dele e exceto pela leve rigidez em sua nuca não
havia nada que dissesse o contrário.
Ele explorou aquela nuca com os dedos, fazendo uma leve pressão até
ouvir um suspiro de alívio dos lábios dela. Os lábios semiabertos que
combinavam tanto com os olhos semicerrados.
Aquela mulher seria a ruína dele. Anos sonhando se apaixonar de uma
forma arrebatadora e não fora agradável como parecia ser. Era muito
assustador para dizer a verdade. Lavínia não parecia se importar, perdida em
seu estado de torpor, imersa no carinho dele.
Podia-se dizer que ela estava se rendendo. Que estava se permitindo ter o
tão sonhado prazer que ele prometeu. Pela primeira vez na vida.
Não sabia o que esperar ou se deveria esperar por algo, mas seu toque era
gentil e arrebatador. Os dedos agora trabalhavam na árdua missão de tirar os
grampos de seu penteado. A respiração rápida e quente como o único indício
do nível do autocontrole que empregava.
As ondas ruivas que se desprendiam não eram sedutoras só pela cor
vermelho dourada ou pela notável graça com que se libertavam. Havia um
perfume, marcante e diferente de qualquer um que ele havia sentido. O
cheiro era único, ela era única.
Se soltar seus cabelos despertaram o mais profundo alívio em Lavínia, o
mesmo não podia ser dito dos laços de seu espartilho. Seu corpo enrijeceu a
perspectiva de se expor, de ficar nua diante dele.
- Nathan...
O modo ansioso com que disse seu nome precedia um sonoro não ou um
sonoro pare. Não queria que aquilo acabasse. Por ele e também -
principalmente – por ela. A ideia não era criar um novo trauma e sim
destruir aquele que já existia.
Os dedos antes desamarrando os laços agora acariciavam suas costas. A
outra mão se juntou àquela até que Lavínia se rendesse ao abraço com um
suspiro. A deixa para que ele a começasse novamente a despi-la.
Culpava a brisa fria que escapava da janela, mas estava mentindo para si
mesma. O fato de suas costas estarem arrepiadas não poderia ter a ver com
outra coisa que não ele. Seu marido, que tomou seus lábios com experiência
enquanto descia a manga de seu vestido.
Sua respiração se acelerou. As lembranças desagradáveis invadiam sua
cabeça em um vendaval violento. Como se pressentisse, Nathan interrompeu
o beijo e esperou. Esperou com Lavínia com a testa colada na dele, arfando
enquanto travava uma luta consigo mesma. Uma pergunta latejava em sua
cabeça: Devia parar aquele homem? E outra ainda pior: Queria pará-lo?
- Tente não entrar em pânico. – respondeu às suas aflições de uma forma
que a deixou assustada. – O controle está com você, não se esqueça disso.
Lavínia assentiu, engolindo em seco. De fato ele não parecia nem de longe
com um homem que queria machucá-la ou forçá-la a algo, mas era difícil de
acreditar que o controle estava com ela. Nunca havia se sentido tão
descontrolada na vida. Ele parecia no comando. Total e absolutamente.
Nathan sentiu os lábios secos quando expôs o ombro de Lavínia e
controlou com dificuldade uma reação primitiva ao revelar um de seus seios,
pálido, redondo e perfeito. Respirou fundo repetidas vezes enquanto
explorava seu pescoço, a linha de seu maxilar, a ondulação agradável do
osso da clavícula, com beijos suaves de um homem que tinha total controle
de seus desejos. Mal sabia ela que estava quilômetros de distância de um
pouco que fosse de desejo controlado.
Quando achou que havia sido castigo o bastante, segurou a base de seu
seio como se testasse seu peso e então o tomou na boca da forma mais
delicada que conseguiu. Os lábios grossos, a língua e os dentes se moviam
com a harmonia de uma orquestra para levá-la à loucura e o gemido baixo
que Lavínia deixou escapar deram indícios que estava sendo bem sucedido.
Sem perder o ritmo desceu a outra manga do vestido, deixando-a
amarrada e impaciente dentro da própria roupa. Era exatamente assim que
ele a queria naquele momento, só para minutos depois afogá-la em um mar
de prazer. Só esperava ter tempo e oportunidade para jogá-la na água.
- Você... – fez uma pausa para um resfolegar mais do que atraente. – Já
terminou?
Nathan reprimiu o riso, mas sorriu enquanto circulava um de seus
mamilos com a língua. Ela não aceitaria bem o deboche, mas aceitava muito
bem o que estava fazendo.
- Eu ainda nem comecei. – disse com um sorriso malicioso. O polegar
pressionando a área sensível de uma forma terrivelmente excitante.
- Oh meu Deus! – soltou ofegante, tentando se ajeitar no sofá. – Acho que
vou morrer antes de terminar.
- Eu vou matá-la de prazer, Lavínia.
A promessa confiante e maliciosa despertava um brilho pecaminoso
naqueles olhos azuis. Poderia passar a vida com ele acariciando seus seios,
mas não parecia ser suficiente para o filho do Duque. Ficou claro quando ele
se ajoelhou diante dela com intenções nada próximas de um pedido de
casamento. Estava mais para um pedido de luxúria.
- Você não tem ideia do quanto é linda. – disse tocando seus tornozelos
por baixo da barra do vestido. O rubor em seu rosto era uma prova de sua
alegação. – Ou ao menos não tem ideia do quanto eu a acho linda.
- Nathan... – foi a única resposta consciente que conseguiu dar. Quantas
vezes já havia dito o nome dele?
Os cabelos ruivos caídos em belas ondas longas, se intrometendo frente ao
olhar azul e sedutor. As suaves sardas salpicadas em seu nariz que só notou
pelo simples motivo de que sabia que estavam lá. A pele de porcelana, o
rosto em formato de coração. Tudo em conjunto fazia seu coração disparar e
suas calças parecerem objetos de tortura medieval.
Sempre adorara aquela sensação de sua mão contra meias de seda, mas
havia algo naquela que parecia muito mais erótico que o habitual. Subindo o
vestido dela até alcançarem os joelhos, percebeu que não se tratava das
meias, se tratava das pernas que elas cobriam. Longas, torneadas, lindas pura
e simplesmente. Nathan quase desejou não desejá-la tanto assim, quase.
Deixou seus lábios pousarem em seu joelho direito. Quase estremecendo
de prazer quando essa resfolegou ao sentir o toque da língua dele. Então os
dedos dela se entremearam em seus cabelos e induziram seu rosto a se voltar
para ela.
Havia algo além de desejo e sedução naqueles olhos azuis. Provavelmente
um homem excitado não repararia, mas ele havia feito de “dar prazer à sua
mulher” seu objetivo de vida. Havia tensão e receio nela. Indícios de que
fora machucada
- Eu não vou machucá-la, amor. – prometeu sem desviar o olhar.
Era verdade, mas o que ele fez a seguir doeu mesmo assim. Como uma
estaca cravada em seu coração. Impondo junto com a lâmina sentimentos
estranhos e desconfortáveis que não queria identificar. Não queria pensar a
respeito, por sorte, Lorde Carffort a impediu de pensar.
Os dedos dele subiram seu vestido até que ficasse amontoado na cintura.
Olhando em seus olhos deslizou a mão por suas coxas envoltas nas calçolas
e então encontrou a fenda dessas. Impelida por um pudor que não imaginava
possuir fechou os olhos e soltou um suspiro fundo.
O tanto que ela estava úmida o deixou louco, junto com a consciência que
havia decidido confiar nele. Nele entre todos os homens e a recompensaria
por isso.
Primeiro a recompensou com os dedos, tocando o botão de sua
feminilidade e a vendo se contorcer e cravar as unhas no tecido do sofá.
Então, guiado pelo som de seus gemidos a invadiu com os dedos lentamente
a estimulando com movimentos ritmados. Um suspiro desamparado foi o
suficiente para permitir que fosse além e quando deu por si estava provando
o gosto de Lavínia.
Quando suas amigas despudoradas descreviam tais experiências, dizia a si
mesma que aquilo não era para ela. Que deveria ser algo constrangedor e
desconfortável e talvez realmente fosse com um homem comum, mas com
seu marido era o paraíso.
Era como ser elevada ao céu, dançar nas nuvens e então ser invadida por
um êxtase tão profundo que começou a despencar ao som de um grito
desesperado de quem nunca havia passado por nada parecido. Despencar em
um mar de águas termais em que seus lábios e língua continuavam a
acariciar, mas não para excitá-la e sim para acalmá-la.
Com um último beijo ele se sentou ao lado dela e a abraçou. O som de sua
respiração ofegante era música para seus ouvidos e um martírio para o resto
de seu corpo. Com movimentos calmos e precisos alisou as saias de seu
vestido até cobrirem suas pernas novamente.
De alguma forma aquele abraço havia conseguido ser tão bom quanto o
resto. Repousou o rosto no ombro dele e sorveu o cheiro da curva de seu
pescoço. Por um momento, houve um silêncio calmo e confortável no
cômodo. Era como se ambos temessem o momento que aquilo acabaria.
Finalmente ela falou, provavelmente não era a coisa mais adequada que
poderia dizer.
- Obrigada. – sua voz era pouco mais que um sussurro.
- Shhhh... – tocou o lábio dela com o indicador e então pousou os dele em
sua testa. – Não vamos fingir que foi um sacrifício.
Lavínia sentiu os lábios se curvarem em um sorriso. Dominada pela
sensação de que acabara de experimentar o momento mais agradável junto
com um homem em toda a vida dela. Com os olhos fechados se deixou levar
pelas lembranças e pela ideia que seu falecido marido sempre quis o melhor
para ela. Mesmo quando não parecia.

“- Como pode sugerir uma coisa dessa, meu senhor? – lembrava de ter
questionado a Solluin certa vez.
- Você algum dia me impediu de ter amantes? – a calma dele enquanto
fumava seu cachimbo era desconcertante.
- É claro que não, mas...
- Então por que eu a impediria?
A pergunta havia pairado no ar pelo que pareceu uma eternidade. Lavínia
piscou os olhos, atônita.
- Não está permitindo, está incentivando.
Solluin deu um sorriso enviesado contemplando a criatura fascinante que
sua esposa havia se tornado. Alta, curvilínea, confiante e notavelmente
inteligente, ela se parecia muito pouco com a criança que havia batido à
porta dele. No momento, ela estava chocada com sua sugestão.
- Eu nunca fui dado a ciúmes. – estendeu a mão a ela, que a pegou. - Você
é uma mulher jovem e bonita. Longe de mim impedi-la de viver.
- Longe de mim trair você.
- Não é traição se a outra parte não se mostra incomodada. – soltou um
riso rouco. – Aproveite a vida criança. Permita a si mesma um pouco de
diversão.
- Queria metade de seu altruísmo. – retribuiu o sorriso dele com ternura.
- Não há ninguém que mereça a felicidade aos meus olhos mais doque
você.
Era uma tola por chorar na frente dele, mas não seria a primeira vez que
acontecia. Sentindo as lágrimas escorrerem por seu rosto se inclinou para
tocar seus lábios nos dele.
Fora o último beijo que havia lhe dado e também o primeiro.”

...

Estava casada há exatos seis dias, mas parecia fazer mais tempo. Aquela
foi sua primeira noite em muito tempo sem pesadelos. Sem ser perturbada
pelas lembranças escondidas nas profundezas de sua alma de modo a
convencê-la de que não estavam lá. Até atacá-la novamente.
Nathan não havia feito com que elas sumissem, assim sem mais nem
menos, fora um conjunto de repetidas noites lidando com elas. Quando tinha
seus momentos de desespero, ele a puxava contra o corpo e acariciava suas
costas até que se acalmasse. Sentia-se segura nos braços dele. Como naquele
momento.
Soltou um suspiro fundo e se aconchegou junto ao corpo forte. Uma
pontada de culpa a invadiu ao sentir sua excitação matinal. Sem ter a
intenção ela o estava torturando. Dias e mais dias a tocando e ela nunca o
havia retribuído, nunca havia permitido que consumassem o ato. Bom Deus!
Ela era uma covarde. Uma grande covarde!
Mas nada disso importava porque seu casamento era meramente um dos
muitos negócios regidos por sua vida, sobre os quais tinha total controle. O
único motivo de manter seu marido feliz e interessado era garantir que ele
cumprisse sua parte do acordo.
Precisava de um homem para comandar a companhia e este já tinha uma
reunião com seus sócios dali a três dias. Queria ter a certeza de que ele se
empenharia naquilo, adiar a reunião por uma semana usando o início do
casamento como desculpa já fora o suficiente para deixá-la de cabelo em pé.
Para seu espanto, cada homem envolvido parecia entendê-lo perfeitamente.
Provavelmente, porque na situação do mesmo gostou de ter um tempo com a
esposa ou lamentou não ter tido.
O relógio marcava sete horas. Era este o motivo que a impulsionara deixar
o marido na cama e não o resto, se convenceu. Amarrando o penhoar sobre a
camisola fina ela deu um sorriso avaliando o homem que ocupava sua cama.
Os traços masculinos, os músculos dos braços nus sobre as cobertas e ainda
assim o semblante de um menino que dormia em paz.
Queria poder ficar e absorver um pouco daquela paz, mas seus
compromissos não permitiam. Mesmo em lua de mel, sua vida não parava.
Prova disso era que sua criada a esperava com a banheira cheia de água
quente e uma bandeja de prata com correspondência empilhada. Uma
generosa correspondência.
- Devo ler enquanto se banha, sen... Milady.
A correção ainda fazia Lavínia rir. Tirando a camisola pela cabeça deixou
os pés mergulharem na banheira e então o restante do corpo. A temperatura
perfeita da água fez com que soltasse um suspiro de satisfação enquanto
apoiava a cabeça de forma a ficar confortável.
- Seria ótimo. – assentiu finalmente.
Bridget – sua criada pessoal há pelo menos três anos - ocupou um
banquinho ao lado da banheira e abriu a primeira carta. Tinha quase certeza
de que escolhera aleatoriamente, mas fora uma péssima escolha ainda assim.

“Cara Lavínia,
Em minha opinião de especialista não acho que esteja sendo egoísta ou o
torturando. Não deve se sentir culpada. Se caiu nas graças desse homem
não há porque não aproveitar.
Se algum dia, porém, se sentir à vontade e motivada a retribuir, escute os
meus conselhos.
1. Você pode usar as mãos ou os lábios para...”

- Acho que eu posso ler essa mais tarde, Bridget. Obrigada.


O suspiro de alívio da criada foi audível. Compreensível, já que as
correspondências de Abigail não eram nada castas. Nada mesmo.
- O que mais temos aí? – questionou para a criada com o rosto em chamas.
- O contrato que estava aguardando...
- Maravilhoso. – assentiu em aprovação.
- Cartas de pedidos de doações, felicitações pelo casamento e... – a jovem
parou de vasculhar o monte com uma carta de envelope marfim nas mãos.
- E?
- Um convite para um baile. – baixou o olhar como se fosse muito mais
que isso. – Deve ocorrer dentro de um mês.
- E? – insistiu sabendo bem que havia mais.
- Os anfitriões são Lady e Lorde Petergille, Milady.
Só os nomes já fizeram o sangue de Lavínia gelar. Era como se a
temperatura da água até tivesse mudado.
- Posso pensar em uma boa desculpa para sua ausência se desejar, minha
Lady.
- Não, eu...
- Iremos. – uma voz grave chamou a atenção de ambas.
Lá estava o dono da casa. Vestindo apenas um roupão que revelava as
poderosas pernas e um triângulo de pelos castanhos no peito, encostado no
batente da porta. Com o que parecia um leve ar de divertimento.
- É evidente que Lady Petergille está desesperada para anunciar seu baile
anual com tanta antecedência. – ergueu uma sobrancelha encarando a esposa
deliciosamente coberta somente por água e sabonete. – Não vou perder por
nada a chance de ver o rosto dela quando perceber que não é a mais linda do
salão.
Lavínia sentiu as bochechas corarem diante da sedução óbvia. Ainda mais
bonita agora que ele sabia como essa ficava excitada, ofegante, suada, se
contorcendo de paixão. Aquela mulher iria enlouquecê-lo em instantes. Sua
linda Lavínia, com sua mente brilhante que rivalizava com os belos e
perfeitos seios redondos e o traseiro arrebitado. Mulher nenhuma teria
chance contra ela.
- Iremos, claro. – afirmou tentando se manter firme, embora ele não
estivesse facilitando.
Nathan assentiu em aprovação com um sorriso. Com a certeza de que
mexia o bastante com ela.
Sua esposa só conseguia agradecer aos céus porque barrou a leitura da
carta de Abby a tempo. Bem a tempo.

...
Capítulo 18
Um par de calças

Passava da meia noite e ainda não havia conseguido dormir dez minutos
que fosse. Poderia convenientemente culpar a barulheira no andar de baixo,
mas o burburinho e as risadas não estavam altos o bastante.
Pela terceira vez, verificou o quarto de Luísa e a menina dormia como um
anjo. A respiração pausada elevando as cobertas de forma ritmada. Sua
menina estava em casa e em segurança, Nathan cuidava de seus negócios e
tudo parecia na mais perfeita paz, a não ser por aquele maldito convite que
haviam recebido de Petergille. Era como se a jararaca houvesse mandado o
convite com antecedência somente para deixá-la paranoica por dias seguidos
e noites como aquela.
Com a desculpa de verificar se o marido estava bem, desceu até a sala de
jogos. Sala esta, onde Lorde Carffort interagia com os sócios da companhia,
antes da reunião oficial que aconteceria em um dia. Em meio a charutos,
bebida e cartas de baralho, parecia estar se saindo muito bem.
Só alguns minutinhos de espiadela, prometeu a si mesma. Nunca havia
feito aquilo com Solluin, nunca tivera um impulso, mas que mal poderia
fazer?
- Bom charuto, boa bebida, só faltaram mesmo as mulheres. – um dos
convidados havia se pronunciado após um gole vigoroso em seu whisky.
- Talvez em outra ocasião a nobreza resolva partilhar suas centenas de
amantes com os reles mortais.
Lavínia se posicionou de modo a enxergar o alvo das provocações. Lorde
Carffort ocupava a confortável poltrona e tomava de forma preguiçosa um
copo de gim. Os olhos com um brilho malicioso de divertimento.
- Eu não tenho centenas de amantes, Arthur. – respondeu como se fossem
velhos amigos. - E se as tivesse, não partilharia com você.
O cômodo foi dominado pelo riso, provando que ninguém além dela
parecia remotamente desconfortável com o assunto. O rumo que a conversa
dos homens tomava era perigoso e fazia seu peito doer. O que deveria fazer
era dar meia volta e escolher a rota de fuga mais rápida para seu quarto. Só
que, por uma estranha razão, parecia ter seus pés grudados no chão, sem
capacidade alguma de se mover.
- Mas deve ter um bocado delas. – instigou um deles como se tivesse o
objetivo de enlouquecê-la. - Quantas?
- Já foram mais. – não era mentira.
Lavínia se segurou no batente na porta e suspirou fundo repetidas vezes.
Não havia motivo para pânico ou para aquela desagradável dor no peito que
sentiu. O que exatamente esperava? Que ele negasse de imediato e em
seguida demonstrasse todo seu amor por ela?
Não era uma mocinha. Era uma mulher experiente cujo falecido marido
havia procurado outras companhias, mas por alguma razão aquilo parecia
diferente. Se sentia magoada. Sentia-se traída.
Alheios ao desespero dela, os homens continuavam o diálogo. A conversa
entusiasmada sobre mulheres de má reputação.
- Maldição! Eu mal consigo bancar uma.
- Quem falou em pagar? Quando se é filho do duque as mulheres caem em
sua cama sem sequer dizer o preço. É uma questão de prestígio social.
O pior era que desconfiava que era senão assim, algo bem similar.
Infelizmente, a futilidade era uma epidemia social.
- Não é bem o meu dom de “oferecer prestígio social” que elas elogiam.
Outra vez os risos enquanto ela tinha um ataque de nervos. Tinha a exata
noção do que aquelas mulheres elogiavam porque ela – maldita fosse! –
tinha uma boa amostra dos talentos do marido. Uma dentre várias, ao que
parecia.
- Você é bem humorado, Carffort. Pode-se dizer que gostamos de você.
- Mesmo que não fosse o caso, já é bom saber que um par de calças irá
presidir a reunião de amanhã. Como deve ser.
Aquele foi o golpe de misericórdia em sua paciência. O Sr. Gordifrin, o
mais velho, mais conservador e também o mais estúpido, deixava bem claro
o que ele achava de mulheres no comando.
Subindo as escadas até seu quarto com determinação ela se lembrou que
fora exatamente aquele o motivo que a levara àquele casamento. Gordifrin
queria um par de calças para presidir a reunião do conselho e um par de
calças era o que teria.

...
Na noite anterior Nathan havia suspeitado que algo estava muito estranho
com Lavínia. Quando se juntara a ela em sua cama como de costume,
começou a beijá-la e acariciar seu corpo. Esta, por sua vez, murmurou algo
sobre impedimentos femininos e se virou de costas para ele. Decidida a
dormir.
As mulheres eram criaturas estranhas que ele deixara de tentar entender há
muito tempo. Mas se ela disse se tratar de impedimentos femininos, não
havia razão para não acreditar. Aprendera de formas pouco agradáveis que
esses períodos podiam transformar a mulher mais sensata em um demônio
de saia.
O fato era que se na noite passada desconfiou que havia algo errado com a
esposa, agora tinha certeza absoluta. Algo que havia acontecido nas últimas
dez horas havia virado a cabeça daquela mulher sensata do avesso.
Tinha tudo para ser uma manhã comum. Sentia-se seguro e calmo,
ocupando a cabeceira da mesa da sala de reuniões do escritório da
companhia marítima. Ocupando o lugar de Solluin. Na outra ponta, estava
Gordifrin, o sujeito de ideias medievais que aparentemente estava em seu
círculo de amigos agora.
Foi quando ela entrou. Com os belos cabelos ruivos domados em um
coque simples, o rosto sisudo e concentrado, trajando nada menos que calças
azul marinho, camisa e um casaco masculino largo. Caminhando decidida
até a ponta da mesa, mesmo sob o olhar de todos os homens boquiabertos.
Parando ao lado de Gordifrin, ergueu uma sobrancelha.
- Sr. Gordifrin, está no meu lugar. – disse séria com a voz e a postura de
uma imperatriz.
Nathan teve a vaga impressão de que uma mulher trajando apenas uma
meia de seda não o deixaria tão excitado. Ela – por Deus! – estava vestida
como um homem e desafiando o membro mais difícil da companhia.
- Perdão? – o sujeito calvo franziu a testa, confuso.
- Eu agradeço pela gentileza de ter guardado o meu lugar, James. –
empregou o primeiro nome como um indício de poder que só a líder da
companhia poderia usar. – Já pode se levantar.
O homem o fez, contrariado. Arrumando a gravata com irritação como se
de repente não conseguisse respirar. O corpo de Lady Carffort naquelas
vestes masculinas de fato tinha esse efeito.
- Não achei que tivesse sido convidada para esta reunião, Sra... –
pigarreou franzido mais o cenho. – Lady Carffort.
- Está companhia é minha, Gordifrin. – lembrou, ocupando a cadeira
agora vaga. Como uma rainha ocupando o trono dela por direito. Firmeza e
elegância em pessoa. – Eu sou a reunião.
- Pode me explicar o que diabos está acontecendo aqui, Carffort? –
resmungou olhando para a outra ponta da mesa.
Nathan sorriu. Um brilho de compreensão perpassando seus olhos. Tudo
havia ficado claro de repente. Olhando para a esposa ele deu um sorriso.
- Não está claro, Gordifrin? – olhou de volta para o homem em questão. –
Um par de calças vai presidir a reunião. Como deve ser.

...

Empilhou os livros de contabilidade, compenetrada na tarefa. Com um


suspiro cansado contemplou o quadro do Sr. Solluin, adornando a parede da
sala de reunião e sorrindo para ela. Era como se ele a aprovasse. Certamente,
se a visse em tal situação, enfrentando os sócios, ele aprovaria.
“Você se tornou a mulher que eu sabia que se tornaria, criança.” Sorriu
para o quadro que parecia emitir a frase com a mesma voz grave que
continha tanto bondade, quanto autoridade. Ou ele diria algo como:
- Foi muito bem, Lady Carffort.
Antes que pudesse controlar a reação, se sobressaltou e virou para a porta.
Aquela não era a voz de Solluin e sua imaginação não era tão fértil.
- Achei que já tivesse ido embora. – disse com a voz mais suave que de
costume.
Olhando quase que hipnotizada para o marido agora sem o casaco e a
gravata, com o colarinho aberto como que para tentá-la. Caminhando
lentamente até ela. O solado de sua bota fazendo um som agradável no
assoalho de madeira. A mecha do cabelo castanho brincando naqueles olhos
azuis.
- Estava estudando os livros antigos de contabilidade.
Apoiou a mão ao lado do quadril dela. Frente a frente com a esposa, perto
o bastante para fazer sua respiração perder o compasso. A pegou observando
- sem ter a intenção - sua mão grande e levemente bronzeada, despida das
luvas e das inibições impostas pela sociedade.
- A alegação de Gordifrin é ridícula. – comentou, se referindo ao
comentário que sugeria declínio nos lucros após Lavínia assumir.
- Gordifrin é ridículo.
A forma natural com que disse aquilo o fez soltar uma gargalhada
escandalosa. O som divertido e espontâneo despertou um breve sorriso nela.
Apenas detido pela lembrança de que estava zangada com ele. As palavras
ditas na noite anterior ainda espancavam seu coração por dentro de forma
agressiva.
Franzindo o cenho, desviou o olhar para o tapete extravagante. Nathan
notou a mudança, mas não se intimidou. Já havia se acostumado com as
mudanças dela. As muralhas se refaziam em uma velocidade espantosa em
Lavínia.
- Você estava lá ontem à noite. – a acusação ganhou a atenção dela, mas
não havia censura nela. – Ouviu o que o imbecil do Gordifrin disse. Por isso
se vestiu assim.
Lavínia não negou. Somente ergueu o queixo e deixou que ele a
admirasse. A camisa marcando levemente seus seios redondos e a calça
destacando a curva sutil de seu quadril. Por Deus! Ninguém poderia vê-la
daquela maneira. Só ele. Ele com certeza poderia vê-la.
- O que mais você ouviu, Lavínia? – indagou com um sorriso maroto.
- Nada digno de nota. – respondeu sisuda.
Então se virou novamente para a mesa e voltou a atenção para os livros.
Não deveria ter feito isso. Aquele traseiro e a curva de suas costas eram
tentadores demais para resistir. Enlaçando sua cintura com o braço direito,
colou seu corpo no dela. A sensação de sua excitação no quadril dela fez sua
esposa perder o ar. Sua respiração parou de uma forma brusca e atraente.
Inclinando a cabeça beijou o pescoço dela. A curva pálida e perfeita
exposta pelos cabelos presos, pedindo para ser beijada. Sorveu o cheiro dela,
floral, inebriante, antes de buscar sua orelha para sussurrar:
- Você ouviu sobre as amantes?
Os olhos dela se fecharam, dividida entre o desejo e a raiva. Entre a
vontade de agarrar seu marido e beijá-lo e socá-lo até que ficasse
inconsciente ou que esquecesse de cada mulher que já rolou em sua cama.
Das centenas de mulheres.
- Suas amantes não são problema meu. – disse decidida, tentando impor as
palavras a si mesma. – Desde que elas não entrem em nossa casa, eu não me
importo com o que faz com elas.
- Não. – enfatizou. Soltando os grampos de seu cabelo. – Até porque eu
não as tenho.
Lady Carffort franziu o cenho. Tinha cara de estúpida?
- Mas você disse...
- Você me propôs esse casamento para que eu a fizesse recuperar o
respeito de seus sócios, meu amor. – sorriu contra o pescoço dela. – Que
respeito teria um homem que assume ser apaixonado pela esposa a ponto de
não ter mais amantes?
- Ah! – soltou um som de surpresa e se virou para ele de olhos
arregalados. – Você não está.
- Estou. – deu um sorriso acariciando a curva da cintura dela.
- Não está não. – repetiu com ainda mais firmeza. Só uma parte dos
cabelos solta e selvagem.
- Ah! Eu com certeza estou. – enfatizou colando seu corpo no dela contra
a mesa.
- Nathan! – exclamou tentando mascarar o desconcerto, as mãos no tampo
da mesa. Como se buscasse alguma segurança em algo. – Tínhamos um
acordo. Sem sentimentos, se lembra?
Aquele homem horrível e perverso abriu um sorriso branco e brilhante e a
encarou como se de fato aquilo fosse verdade. Como se estivesse
perdidamente apaixonado por ela. Maldição! Ela estava acreditando! Estava
gostando!
- Você tem essa ridícula mania de controlar tudo, Lady Carffort. – acusou
com malícia e sedução. – Você controla os criados, a educação de Luísa, os
membros da companhia e suas respectivas esposas e até pode controlar a
mim. Mas não pode controlar o que tem no meu coração.
Afastou os livros bruscamente com um braço e segurando em sua cintura
com firmeza, fez com que se sentasse sobre a mesa. Colando seu corpo no
dela de forma indecente e vergonhosamente agradável.
- Mesmo sem ter a intenção fez com que eu me apaixonasse por você sua
mulher terrível. – roubou um beijo profundo dela, antes mesmo de saber se
ela o queria. – Talvez exatamente por ser tão terrível.
- Ah Nathan! – murmurou com certo desespero. – Não sei o que dizer a
não ser que está cometendo um grande erro. Eu não sou esse tipo de mulher
e...
Tocou seu indicador nos lábios dela com carinho e devoção.
- Você Lavínia Harin Carffort, é o meu tipo de mulher.
Não havia argumentos contra aquilo. Mesmo que houvesse, ele não lhe
dera tempo para encontrá-los.
Com sedução e desejo provou aqueles lábios soltando o restante de seus
cabelos. Havia algo diferente ali, mais fogo e paixão na forma com que se
tocavam.
Lavínia buscava os fios grossos de seus cabelos, enquanto ele abria os
botões de sua camisa com rapidez, desbravando seu colo com beijos e então
seus seios.
Movida pelo sentimento quente e doce que invadia seu peito e também
pelo desejo que corria desenfreado em suas veias, retribuiu o favor. Libertou
da camisa aquele peito másculo e deslizou os dedos pela barriga dura. Não
soube descrever o olhar de Nathan ao constatar que não havia nada além de
sedução nela, que os pesadelos não a haviam perturbado ainda. Nenhuma
vez.
- Devo admitir... – disse abrindo os botões de sua calça masculina. Onde
ela havia arrumado aquela calça? – Que isso é novidade pra mim. Nunca abri
calças.
Lavínia deixou escapar uma gargalhada, deixando a cabeça cair para trás.
O pescoço lindamente inclinado.
- É um alívio saber. – comentou em tom zombeteiro.
- Está sendo um prazer. – achou por bem acrescentar antes de seus lábios
tomarem os dela novamente.
Lavínia fechou os olhos e permitiu ser guiada pela sensação. Pelo prazer.
Passou a abrir as calças dele com certa urgência. Então... Um trovão e outro,
e quando achou que eram fruto de sua imaginação, mais outro. O desejo foi
obscurecido por algo ainda mais forte. O instinto maternal.
- Está chovendo. – murmurou ofegante.
- Está sim. – concordou beijando o pescoço dela.
- Nathan. – chamou com urgência segurando em seus ombros.
Este a olhou, ficando alerta novamente. Lentamente voltando à realidade.
- Luísa tem pavor de tempestades. – disse e tom quase choroso. – Vai além
do que os criados conseguem controlar.
O rosto surpreso dele partiu seu coração.
- Perdoe-me. – pediu com a voz embargada.
Engolindo uma série de impropérios ele tentou se lembrar da criança. Um
desafio quando sua esposa estava prestes a – um minuto atrás – tirar as suas
calças. Mas havia Luísa e só de imaginar aqueles olhos azuis redondos
repletos de medo, seu peito apertava.
Quando achou que ele perderia a cabeça, Nathan se inclinou e a beijou
brevemente. Uma benção saindo de seus lábios.
- Vamos pra casa.
Capítulo 19
Tempestade no céu e na cama

Quando chegaram às portas da mansão Solluin, a tempestade só havia


piorado. A chuva martelava contra as janelas, os raios açoitavam o céu e os
trovões eram de ensurdecer.
Lavínia havia subido as escadas com uma velocidade que ele jurou que a
faria cair e quebrar o pescoço, mas graças aos céus não aconteceu. Os
criados sequer questionaram o desespero da patroa ou pareciam surpresos.
Aparentemente, era de conhecimento geral que a Srta. Solluin tinha pavor de
tempestades. Tampouco, repararam nas calças.
Como alguém conseguia não reparar naquelas calças masculinas em uma
senhora distinta? Sobretudo, quem conseguia ignorar aquele corpo
maravilhoso dentro das calças? Que Deus o ajudasse! Estava cercado por um
bando de lunáticos.
Entrando no quarto da menina eles vasculharam tudo. A mãe desesperada
olhou o armário, embaixo da cama e até das almofadas. Não havia sequer
indício dela. Lavínia já estava ofegante e prestes a arrancar os cabelos.
- Vou procurar na ala principal. – sugeriu Lorde Carffort notando seu
desespero.
Ela assentiu com gratidão.
- Estarei na ala dos criados. – comunicou, desaparecendo como um
furacão pelo corredor.
Nathan admirava isso nela. O amor puro e incondicional que sentia pela
filha. Tinha certeza de que até aguentaria provações calada, mas ninguém,
ninguém mesmo podia sequer pensar em ofender aquela criança.
Começou pelo quarto de Lavínia, então vasculhou três quartos de
hóspedes, nada. Aquilo já havia se tornado frustrante. Ela poderia estar em
qualquer lugar. Foi quando algo lhe ocorreu.
- Luísa? – questionou entrando em seu próprio quarto.
O quarto dele era o maior da casa. Se fosse uma criança com medo, era lá
que ele se esconderia. Além disso, os criados raramente entravam ali sem um
bom motivo, o que tornava o esconderijo ainda melhor.
Luísa não queria ser encontrada, mas não estava com sorte naquela noite.
Nathan deu um sorriso ao vislumbrar uma fita de cetim rosa escapando
pela porta de seu guarda roupa. Não tinha uma relação mental de todas as
roupas que possuía, mas tinha certeza que “cetim rosa” não estava na lista.
Bateu duas vezes na porta do armário e o silêncio foi absoluto. Murmurou
para um criado que passava: “encontrei”. Este foi brevemente avisar a
patroa. Veloz como um dos raios que atravessavam o céu.
- Querida, eu vou abrir a porta. – avisou e esperou alguns instantes para
uma possível resposta. Nada. – Vou abrir porque quero que enfrentar essa
tempestade junto com você.
Um trovão - pior do que os demais - ecoou e Nathan ouviu um gritinho
agudo que denunciaria sua localização se o laço já não o tivesse feito.
Abrindo lentamente a porta, a viu. Encolhida no canto do armário, tremendo
dos pés à cabeça.
Sem dizer uma palavra ele sentou no chão e abriu os braços para ela. Os
olhos azuis o avaliavam hesitantes, mas ao som de outro trovão essa pulou
de seu esconderijo e agarrou seu pescoço.
- Calma, querida. – disse a ajeitando no colo e passando a mão por seu
braço.
Por um tempo a deixou chorar, somente controlando seu desespero com o
abraço e beijos em sua testa.
- É mais fácil quando não está sozinha, não é?
Assentiu com a cabeça, parecendo mais calma até outro trovão fazê-la
gritar.
- Esse trovão não tem modos. – disse sério como se fossem velhos
amigos. – Eu já disse a ele que não precisa gritar para avisar que está
chovendo.
A sombra de um sorriso passou pelos lábios pequenos. No próximo
estrondo ela somente franziu o cenho e abraçou o pescoço do padrasto com
mais força, mas o pior do pânico parecia ter se dissipado. Graças aos céus
por isso!
Um sentimento estranho havia tomado conta dele. O medo havia se
juntado ao mesmo assim que apareceu. Sentia-se o responsável por aquele
ser pequeno e indefeso nos braços dele. Era como – maldição! – era como se
ele a tivesse gerado.
Aquele alívio ao perceber sua respiração mais calma. O modo com que
seu coração apertava cada vez que um trovão ressoava, como se ele também
tivesse pânico de tempestades. O que poderia ser aquilo se não um
sentimento paternal.
“Um dia você vai ser tudo para aquela criança.” A voz sábia de seu pai
parecia repetir e o fez sorrir. Era como se de repente ele soubesse o que
fazer. Como agir. Porque na realidade, ninguém nascia pai, você aprende a
ser. A diferença era que ele não havia tido nove meses para se preparar.
- Pense assim, poderia ser pior.
- Poderia? – para ela parecia bem ruim. Muito, muito ruim.
- É claro. – respondeu sério. – Poderia estar chovendo chá.
A reação da menina ultrapassou sua imaginação. Luísa explodiu em uma
gargalhada estrondosa que lavou a alma dele e só aí notou a bela mulher que
contemplava os dois. Lavínia sorriu com os olhos marejados e ele retribuiu
com um aceno.
- Você fica, Milorde? – questionou o par de olhos azuis que pareciam
depender totalmente dele. – Até a chuva passar.
- O tempo que precisar, Milady. – garantiu com um sorriso, passando a
mão no rosto pequeno de boneca.
Quando se voltou para porta, Lavínia havia sumido. Mais do que isso ela
saiu e havia fechado a porta.
Lembrou-se de seu receio de deixar Luísa sozinha com qualquer homem.
Aquilo só poderia significar uma coisa. Havia ganhado sua confiança e faria
de tudo para mantê-la.
- Obrigada, papai.
As duas palavras vindas de Luísa fizeram com que seus olhos quase
saltassem das órbitas em surpresa. A menina parecia igualmente surpresa
com sua frase espontânea e deixou isso claro quando levou as duas mãos aos
lábios e arregalou os olhos azuis.
- O que você disse, querida? – instigou com um sorriso de lado que
transbordava o mais profundo orgulho.
- Nada. – respondeu com as bochechas coradas negando com a cabeça.
Era a perfeita miniatura de Lavínia naquele momento. Negando os
próprios sentimentos. Se escondendo atrás de uma máscara de segurança que
a mãe havia criado para ela.
Uma pequena e doce Lavínia envolta em musselina branca e rosa, cores
que não conseguia imaginar sua esposa usando. E ele a amava. Se viu
amando aquela criança com tanta intensidade que chegou a doer.
O mesmo havia acontecido naquele maldito escritório naquela tarde. De
forma completamente diferente se vira amando a esposa. Aquela mulher de
gênio abominável usando calças e desafiando cada homem ali a comentar a
respeito disso. Fazendo o que ele sentiu por Emily parecer trivial, fraco e
superestimado. Aquilo era amor e maldito fosse se sua covardia o impedisse
de aproveitar.
- Você... – ele apertou o nariz de Luísa a fazendo rir. – Pode me chamar
como quiser, garotinha. – pousou os lábios em sua testa.
Continuaram abraçados, no chão do quarto até a chuva parar. Até que
cansada pelo choro e tomada pelo alívio de se sentir segura ela dormiu.

...

Lavínia não usava mais as escandalosas calças. As vestimentas masculinas


foram substituídas por um penhoar de seda violeta que ia até seus pés. Uma
peça de roupa adornada em renda da mesma cor, feita para os homens serem
corrompidos.
Por um momento, se sentiu incapaz de se mover, hipnotizado pela visão
sedutora dela. De costas para ele e de frente para a janela. As madeixas
ruivas caídas como uma cascata de fogo por suas costas.
Queria desesperadamente possui-la. Jogá-la na cama, abrir aquele penhoar
e se livrar do que mais houvesse na frente. Para ser mais exato, queria
primeiramente seduzi-la com palavras envolventes para que ela deitasse na
cama e se despisse para ele. Sim, isso seria melhor.
- Como ela está? – a voz séria e imperial funcionou como um corte bem
vindo em seus devaneios.
- Dormiu. – contou com um sorriso afetuoso, ainda que a esposa não
pudesse vê-lo. - Eu a deixei no quarto dela, coberta até o pescoço.
Lavínia assentiu em um movimento régio. Olhando de longe sua esposa
parecia uma escultura de gelo desprovida de sentimentos, mas ele enxergava
mais do que a maioria das pessoas. Conhecia aquela curva tensa da coluna,
aquela rigidez no pescoço que demonstrava nervosismo. Mais do que isso,
ele já a havia visto arder. Já a vira gemer e resfolegar de desejo. Não havia
nada de frio naquela mulher. Não com ele.
- Feche a porta, Milorde. – pediu.
Nathan não hesitou. Era aquela atitude autoritária que a estava
protegendo. Que estava mascarando seu medo e lhe dando coragem para não
recuar. Longe dele interferir no confronto interno e nada simples que a
esposa enfrentava.
Deixou o penhoar deslizar pelos ombros assim que ouviu os passos dele,
que seguiram o clique da porta se fechando.
Nathan não soube dizer se fora a coragem ou a ousadia que o incendiaram
mais. O fato era que ver que estava despida sob a peça de roupa,
completamente nua, despertou nele uma ereção quase que dolorosa.
- Tome o que é seu por direito. – a voz dela tinha uma firmeza ensaiada
como se tivesse repetido aquilo algumas vezes diante do espelho até ter
coragem de dizer a ele.
- Tente de novo. – pediu, se aproximando a passos lentos.
- Leve-me para cama.
- De novo.
Lavínia deu um suspiro fundo. Sentia a respiração de Nathan próxima de
sua nuca, seu cheiro a envolvendo como um abraço afetuoso. Sabia o que
tinha que dizer. O que precisava dizer.
- Faça amor comigo. – sussurrou, como uma súplica que sabia que ele
atenderia.
- Sim, Milady. – tocou lentamente em seus cabelos e os afastou do
pescoço. - Tudo o que desejar.
A tensão a havia dominado por inteiro. Ela não a deixou quando seus
lábios tocaram seu pescoço ou quando Lorde Carffort deslizou os dedos por
sua coluna até acariciar suas nádegas. Aquele trauma a estava consumindo e
ele não queria. Não a queria assim.
- O que a assusta, meu amor? – sussurrou no ouvido dela.
Fechou os olhos com a pergunta. Sua mente se encheu de lembranças
dolorosas. Punhos presos por mãos infinitamente mais fortes, seu vestido
sendo rasgado, uma dor cortante em seu baixo ventre enquanto uma voz
sórdida acusava: “Pare de resistir, eu sei que é isso que você quer.” A dor
não parava e era tão violenta que criava cicatrizes na alma, além do corpo.
Cicatrizes que ela ainda tinha.
Mas era disso mesmo que ela tinha medo? Não havia sido provado de
muitas maneiras que seu marido não era nem de perto capaz de machucá-la
daquela forma? Talvez não fosse a perspectiva da dor física que a assustasse
e sim o sentimento que havia crescido em seu peito sem seu consentimento.
Então na verdade o que a assustava?
- Você. – respondeu se virando para ele.
Nathan fez menção de tocá-la, mas hesitou quando ela disse seu nome em
forma de advertência. Com um sorriso ele se voltou para as velas do quarto,
imaginando que a nudez a deixaria constrangida.
- Não. – pediu segurando em seu braço. – Eu preciso ver você.
“Eu preciso” ela disse. Como se a certeza de que era ele o homem que
estava com ela fosse a única coisa que a impedisse de desistir. Após ouvir
seu nome novamente dos lábios dela, percebeu o que queria, ainda que nem
mesmo ela tivesse certeza.
Com movimentos controlados, ele a guiou até a cama e se sentou.
Esperando pacientemente que ela tomasse o controle para si. Apenas
observando seu corpo de deusa e acariciando sua mão, que beijou
longamente com reverência no olhar.
Lavínia deslizou os dedos pelos fios grossos e castanhos de seus cabelos,
então se inclinou para tomar aqueles lábios e ele permitiu que o fizesse. Da
maneira que achasse mais agradável e conveniente. Na velocidade que lhe
apetecia.
Sim, ele tinha força o suficiente para dominá-la em menos de um minuto e
também energia. Podia sentir a pulsação de suas veias pelas quais o sangue
quente corria. Não faltava nele desejo para tomá-la. Ainda assim, permitiu
que ela o fizesse.
A visão de seus seios despidos, dos mamilos rosados e das coxas
essencialmente femininas o tentaram além do limite. Com os dedos cravados
na colcha, observou os dedos longos e delicados abrindo sua camisa úmida.
Então, ela cuidou dos botões presos em casas esticadas de suas calças e
despiu com agilidade inclusive seus calções.
A visão era dolorosa demais, por isso fechou os olhos. A ideia que aquela
mulher completamente linda o estava despindo parecia ser o suficiente para
levá-lo à loucura, mas ainda pioraria.
Sentiu os dedos de Lavínia subindo por suas coxas, desafiando seus pelos
e então agarrando seu membro com um movimento suave e preciso. Ao
sentir os lábios dela no local mais sensível que poderia, não conteve um
gemido rouco.
- Não faça isso. – pediu, praticamente uma súplica com um toque de
irritação. O protesto de seu corpo ao pará-la.
Ao abrir os olhos encontrou uma bela Lavínia, notavelmente confusa,
olhando para ele sem entender o que havia feito de errado. Piscando os
encantadores olhos azuis, fixos nele.
- Não é agradável? – questionou ainda sem tirar as mãos de onde estavam.
Ele soltou uma risada rouca.
- Tão agradável que se continuar temo que isso acabe muito antes do que
nós dois gostaríamos.
Lady Carffort sorriu. Colocando-se de pé ela deixou claro que queria que
aquilo durasse tanto quanto dele. Tocando seus ombros empurrou seu corpo
para que repousasse sobre o colchão. Sem força suficiente para ter sucesso,
mas seu marido não lhe ofereceu nenhuma resistência.
O conjunto de músculos magnificamente esculpidos, subiam e desciam
em uma rapidez urgente. Céus! Como ela o entendia. Queria
desesperadamente o corpo dele, ele. Queria saciar o desejo crescente que só
havia aumentado em todas as noites com o toque dele.
Sempre apreciou a posição de dominante na cama. Gostava de ter as
rédeas, de estar no controle e naquele momento sentiu que havia
desperdiçado boa parte de sua vida. Não só por não ter permitido às
mulheres o comando, mas pelas mulheres em si. Vendo sua esposa subindo
na cama e se sentando na barriga dele, percebeu que sua vida sexual estava
apenas começando. Tudo que aconteceu antes dela fora apenas um jeito de
se preparar para ela. Nada mais que isso.
Deslizou sua mão pelo peito duro e peludo. Então subiu até tocar seu
maxilar e se inclinou para beijá-lo. Um beijo profundo e decidido, a língua
ousada e provocante que instigava a dele a retribuir.
Antes que sua coragem se fosse aquecida pelo momento, ergueu os
quadris e se uniu a ele. Por um momento se sentiu incapaz de recebê-lo
completamente, então ele a tocou próximo de onde se uniam tornando isso
possível.
Abençoada seja a natureza, porque com seu toque os músculos dela
relaxaram até o abraçarem por completo. Era como ter uma virgem, por mais
estranho que pudesse parecer.
“Quanto tempo faz que não vai para cama com alguém?” “Nove anos.”
Negou para si mesmo. Não podia ser. Ninguém ficava casado por tanto
tempo sem tocar na esposa. Mesmo Solluin. Sobretudo, quando se está
casado com aquela mulher.
Uma investida dela e se esqueceu completamente do que estava pensando.
Deslizou as mãos por suas costas macias enquanto apreciava o toque dela em
seus cabelos e seus movimentos hesitantes com os quadris. Os lábios rosados
beijaram seu rosto com a barba por fazer e deixaram um suspiro de prazer
escapar. Lorde Carffort o respondeu com um grunhido enquanto a puxava
mais para perto.
- Eu amo você. – sussurrou no ouvido dela antes de pensar se aquilo era
prudente.
Lavínia não queria escutá-lo. Não queria acreditar nele. Não queria que
aquela declaração penetrasse nela. Apenas o corpo dele penetraria nela,
jurou enquanto investia os quadris contra o corpo dele. Apenas isso.
- Eu amo você. – repetiu agora de forma mais urgente. A voz quase um
gemido.
O olhar inflamado de desejo, inebriante por si só. Tentou afastar aquele
azul quente e aconchegante de sua cabeça. Passou a se movimentar com
mais rapidez, buscando ficar cega em busca do próprio prazer. Torcendo
para que seu desejo obscurecesse tudo, mas mesmo com o corpo se
regozijando de prazer sua audição continuava intacta.
- Eu amo você. – ele repetia.
Aquela frase tão poderosa quanto o clímax que a tomou, vibrou em cada
músculo e osso de corpo. Um grito gutural e pouco contido escapou dos
lábios dela e dos dele.
Lavínia havia se tornado um peso inerte, caído nos braços dele. Deixando
ser levada para cima e para baixo por sua respiração que retomava o ritmo.
Os braços fortes a envolveram e uma lágrima escapou de seus olhos quando
ele repetiu pelo que pareceu a décima vez.
- Eu amo você.

...
Capítulo 20
Encontro às escuras

- Estou tão orgulhosa de você.


Lavínia arregalou os olhou diante do elogio repentino da Condessa de
West. Divina dentro do vestido esmeralda, confortável no antro do perigo
que era o baile de Petergille. Ela não estava nem perto de estar tão
confortável. Aquele não era o lugar dela. A gente dela. Sobretudo, só o
anfitrião já lhe dava asco e lá estava ele. No centro do salão com um de seus
sorrisos fáceis entre os convidados. Ignorando por completo a esposa.
- Perdão? – questionou, confusa.
- Oh querida! – deu um tapinha amigável na mão dela. – Nathan me
contou tudo sobre ontem. Sobre como você foi incrivelmente magnífica.
Era como se todo e qualquer vestígio de sangue de seu corpo fosse parar
no rosto. Suas bochechas queimavam em constrangimento. Sim, eles não
eram uma família tradicional, mas daí a detalhar o que ocorria no leito
conjugal para a irmã mais velha, já ultrapassava seu entendimento.
As lembranças da noite anterior a inundaram deixando-a ainda mais
envergonhada. Meri não pareceu notar. Bom Deus! O que exatamente ele
havia contado?
- Eu só queria estar lá para ver. – ela parecia extasiada. – Desafiar aquele
bando de velhos vestindo calças. Nem eu faria melhor.
Lady Carffort soltou a respiração, somente naquele momento notando que
a havia prendido. Então era disso que se tratava. Nada sobre beijos, toques e
gemidos e sim o que havia acontecido no escritório da companhia.
- É óbvio que teria feito melhor. – devolveu o elogio e viu a cunhada fazer
um gesto de modéstia com a mão. – Todas sabemos a história de como
desafiou o museu real para expor e como Cassandra desafiou toda a
sociedade para cavalgar. Vocês são mulheres notáveis.
- Quando se é uma mulher rodeada de selvagens precisamos desafiar as
convenções. – deu um sorriso aceitando uma taça de vinho tinto. – Eu fico
feliz que meu irmão seja inteligente o bastante para admitir que você foi
incrível. “Uma imperatriz de negócios” nas palavras dele.
Não conseguiu uma resposta melhor que o sorriso que não escondia o
quão agradável era saber que o marido a admirava. Mulheres matariam para
ter um homem que as valorizassem e ela havia tido dois. Era mesmo uma
afortunada e não se tratava de dinheiro.
- Milady...
Um criado com uma bandeja se aproximou de seu ombro esquerdo.
- Não, obrigada. – dispensou a bebida como era de costume.
Já havia tido a experiência de beber e não havia sido em nada boa ou
estimulante. Lembrando que fizera papel de tola diante de milhares de
pessoas, refazia dentro de si o voto de se abster de álcool até o fim da vida.
Olhou para Lady West e esta indicou a bandeja do criado com a cabeça. O
que poderia ter naquele recipiente que exigisse sua atenção? Maldição!
Havia um bilhete. Um envelope que abrigava um papel caro perfeitamente
dobrado.
- Obrigada. – acenou com a cabeça para o rapaz, dispensando-o antes de
abrir.
Se o jovem não pareceu ter nenhuma objeção em lhe dar privacidade, com
a condessa ela não estava nem perto de ter a mesma sorte. A bela mulher a
contemplava com uma curiosidade desconcertante. Típico dela.

“A sala de chá ao final do corredor. Estou à sua espera.”


N.”

Deu um sorriso discreto não querendo revelar o conteúdo do bilhete ou a


forma com que ele havia mexido com ela. Seu coração disparou no peito em
expectativa, mas tentou se mostrar impassível ao encarar a condessa. Um
erro, porque seus olhos astutos demonstravam que já havia compreendido
tudo.
- Adorável da parte dele mandar um bilhete. – deu um gole demorado no
vinho. – Vossa Graça geralmente só me arrasta para um canto escuro sem
antes perguntar o que eu penso a respeito.
Lavínia não conteve o riso. Até porque pela expressão marota da mulher
diante dela, estava claro que ela não se importava nem um pouco de se
esgueirar por cantos escuros, desde que Lorde West fosse a companhia. Os
dois continuavam escandalosos e apaixonados como no início, ao menos, era
o que diziam os jornais.
- Ora, mas por que ainda estamos conversando? – deu uma piscadela
como se fossem cúmplices. – Vá logo, querida.
- Com licença. – assentiu educadamente antes de obedecê-la.
Longe dela questionar as ordens de uma condessa, sobretudo quando se
tratavam de ordens que ela queria prontamente cumprir.
Cada som de seu salto no assoalho era uma batida forte e vigorosa de seu
coração. Era um sonoro sim para Nathan e para aquilo que viviam, qualquer
que fosse o nome. Para tudo que a noite anterior havia trazido.
Girou a maçaneta com ansiedade e encontrou um cômodo escuro. Havia
apenas uma vela acesa no cômodo amplo e pouco se enxergava ali dentro.
Ao fechar a porta, o burburinho vindo do salão cessou.
- Muito bem, Milorde. – disse com o tom de voz maroto. Pronta para o
joguinho dele. – Estou aqui.
Silêncio. Lavínia ergueu uma sobrancelha e deu alguns passos até o centro
da sala.
Será que fora ansiosa demais? Talvez seu marido tivesse contado com
alguns minutos de hesitação e ela estivesse adiantada. Ou talvez... Fosse só
parte de seu joguinho de sedução.
- Quanto tempo ainda pretende me fazer esperar? – indagou com um
sorriso na voz. Vergonhosamente se divertindo.
Então, sentiu os botões de seu vestido sendo tirados das casas com mais
pressa do que se lembrava. Primeiro, a surpresa e então quando uma mão
masculina enluvada deslizou a manga por seu ombro, o estranhamento.
Em um salto, se afastou. Virando para o que era apenas um vulto,
segurando seu vestido na região dos seios com firmeza.
- Quem está aí?
Não sabia quem era, mas não era seu marido. Disso ela tinha certeza.
Seria algum amante confuso e desavisado que marcara um encontro no
mesmo lugar que eles? Uma infeliz coincidência?
Maldita ausência de luz que a impedia ver o que fosse. Estava cega como
um morcego.
Em um lapso de lucidez diante do pânico, caminhou de costas até a vela.
O estranho a seguiria e seguiu. Assombrada, constatou que não havia
nenhuma coincidência feliz ou infeliz ali. Petergille, com seu sorriso sórdido
caminhava até ela. Como se se tratasse de um encontro casual e não de uma
armadilha ardilosa.
- Vejo que meu toque ainda mexe com você. – provocou com malícia e
viu o corpo dela se retesar.
- Vá pro inferno! – xingou antes de pensar em uma resposta mais
adequada.
Sua baixaria o fez soltar uma risada vil. Raramente ele conseguia tirá-la
tanto do sério. Era divertido vê-la perder a cabeça.
- Ora, é assim que agradece o meu convite depois de aceitá-lo por vontade
própria?
- Se ao menos desconfiasse que o convite fosse seu, jamais o aceitaria. –
tentou conter o tremor em sua voz. Fruto do choro represado. Da mágoa
adormecida acordando bruscamente.
- Você me quer, querida.
O sorriso branco dele brilhou de uma forma que lhe deu asco conforme se
deslocava até uma saída alternativa. Não poderia voltar ao salão de baile.
Não naquelas condições. Estava com o vestido aberto! Pelo amor de Deus!
- Fui o seu primeiro homem, você não para de pensar em mim. – acusou
com a familiar arrogância com a qual ela havia convivido naqueles infelizes
meses.
Estava com a mão na maçaneta, pronta para girá-la, mas sua língua era
grande demais para caber na boca. Não poderia simplesmente deixá-lo sem
resposta. Não ali, não agora.
- Você não foi meu primeiro homem, Petergille. – virou sisuda para seu
rosto frio e repulsivo. – Eu não sei que nome dão a criaturas monstruosas
como você, mas “homem” não me parece apropriado. – por aí bastava, seu
senso de razão dizia, mas havia mais que a emoção tinha a dizer. – Hoje eu
sei disso porque tenho um homem de verdade na cama.
Se aquela criatura era perigosa sem ser provocada, com o orgulho ferido
não tinha ideia do que seria capaz de fazer.
- Se não for minha, irá se arrepender. – ameaçou por entre dentes. – Eu
juro, Lavínia. Se não mudar de ideia nesse instante e se abrir para mim de
bom grado eu irei destruir você.
- Eu não sou mais uma criada assustada, barão. – retrucou, sua raiva a
impedindo de ir embora.
Havia tanto. Tanto entalado dentro dela que queria sair que não conseguia
se calar.
- Sou Lady Lavínia Harin Carffort, esposa do herdeiro do Duque, que vai
mandá-lo para o inferno antes que só pense em tocar em mim. – garantiu se
virando para a porta. – Não sou eu que devo tomar cuidado.
- Você ama a sua filha, Lavínia? – aquela pergunta continha uma ameaça
que ela era incapaz de ignorar, mas não se virou novamente. Não lhe daria o
gostinho. – Ou devo dizer... Nossa filha?
O choro já a impedia de responder sem ser patética, por isso deixou a sala
e fechou a porta em um baque violento.
Apoiando suas costas na estrutura de madeira tentou recuperar o fôlego
com os olhos fechados. Até perdê-lo novamente ao abri-los.
Diante dela um belo homem a fitava com o rosto sisudo, a testa franzida.
As pernas de Lavínia fraquejaram. O que ele havia ouvido? O que em Nome
do Todo Poderoso estava pensando vendo-a em seu desalinho?
- Lorde Dachmour. – fez uma mesura pouco adequada a ponto de chorar.
O Duque. O próprio Duque estava ali, vendo sua ruína. O que ele sabia de
seu passado ou adivinhara de seu presente a destruiu por dentro. Mas havia
algo que ele precisava desesperadamente saber. Desesperadamente.
- O que aconteceu? – era o tom enérgico que se empregava a uma criança.
- Eu sei que meu desalinho o preocupa meu lorde, mas eu juro por tudo
que me é sagrado que não é o que parece. – o pranto já tomava sua voz
trêmula. – Eu não traí Lorde Carffort e jamais o trairia, eu imploro que
acredite em mim.
Aquele homem que sempre a intimidara não parecia inclinado a acreditar
em nada. Antes que Lavínia entendesse o que estava acontecendo o Duque a
puxou para seus braços e abriu a porta atrás dela. Avaliando com a testa
franzida o ambiente do qual havia saído. Apurando os ouvidos para ouvir um
ruído sequer. Insatisfeito por não encontrar nada, a fechou novamente.
- Alguém a machucou, Milady? – questionou ainda a segurando contra si.
Lavínia soluçava e parecia incapaz de ouvir ou assimilar o que fosse. Há
tempos não via uma mulher chorar com tanto sentimento, com tanta paixão.
Havia algo errado. Ele podia sentir.
- Eu não o traí, Milorde. Tem que acreditar em mim. – disse por entre
lágrimas. – Jamais trairia a confiança de meu marido. Foi tudo um mal
entendido.
- Lady Carffort.
O tom autoritário e sério ganhou sua atenção. Sobretudo, vê-lo usando o
honorífico que pertencia a sua família há anos com uma mísera burguesa,
ganhara sua atenção.
- Eu não sou de acusar mulheres de adultério sem as devidas provas e eu
sequer suspeitei que havia traído meu filho. – disse com a devida certeza e
seriedade que se esperaria de um Duque. - O que eu quero saber é o que
aconteceu naquela maldita sala para deixá-la tão desnorteada. – ela arregalou
os olhos marejados. - Alguém a machucou?
Lavínia negou com a cabeça. O corpo trêmulo e tenso.
- Alguém tentou machucá-la? – certas perguntas exigiam o devido
cuidado e todas as entonações.
- Quem tentou jamais tentará de novo. – respondeu levantando o queixo.
Bom Deus! Como ela queria ter tanta certeza quanto aparentava!
- Acho bom. – respondeu com uma rispidez protetora. – Ou seria obrigado
a acabar com ele.

...

- Você não deveria estar com Lavínia? – Meri questionou com uma
sobrancelha erguida para o irmão caçula.
- Eu? – ele parecia estar ainda mais confuso. – Achei que ela estivesse
com você.
- Maldição! – praguejou, alto o suficiente para chamar atenção de um
bando de solteironas que quase tiveram um ataque apoplético. – Ela está em
apuros.
- O quê? – franziu o cenho inconformado.
Estava mais do que pronto para ir atrás dela. O que quer que havia
acontecido com sua esposa naquele baile infernal não poderia permitir durar
um minuto mais. Mas antes que tomasse uma atitude, ela surgiu.
Com a mesma postura imperial que o conquistou, adentrou o salão de
braços dados com o Duque de Dachmour. E seu pai tinha aquele brilho
carinhoso nos olhos azuis apesar da expressão severa.
- Está tudo bem? – perguntou para a esposa assim que o pai a entregou a
ele.
- Perfeitamente bem. – garantiu com um aceno sério.
A condessa parecia afoita para interferir.
- Mas você não...
- Meri, querida, você gostaria de dançar? – Lorde Dachmour a barrou com
um olhar de advertência.
Lavínia fez uma breve oração de agradecimento por seu sogro existir.
...
Capítulo 21
Um passeio nada calmo

Ela não dormia bem já fazia alguns dias, mas a presença de Nathan tinha
seu efeito calmante na maior parte do tempo. Como aquela manhã no parque
central.
Inspirou profundamente segurando o chapéu adornado de fitas cor de uva.
O ar era refrescante, o cheiro revigorante e o sol beijando seu rosto era um
presente. Só queria poder tirar aquele chapéu ridículo para aproveitar o
melhor do verão antes que este se fosse.
O outono iminente já havia colorido algumas folhas das árvores com seu
tom dourado, mas só conseguiu tornar a paisagem ainda mais encantadora. O
som da água do lago e do farfalhar das folhas se misturava ao gorjeio dos
patos e ao burburinho da multidão que caminhava.
O Parque Central era para ver e ser visto. As damas exibiam seus trajes
diurnos tão enfeitados como poderiam ser e os cavalheiros as
acompanhavam com as cartolas imponentes e um sorriso fácil no rosto.
Seria bom para elas serem vistas na sociedade, Lorde Carffort garantiu.
Lavínia, quando ia ao parque com Luísa, chegava às sete, logo depois de
abrirem, e ia embora as nove antes do maior tumulto começar. Ou
simplesmente, evitava a via principal para não ser vista. Isso era antes, pelo
visto.
Fazia algum sentido. Se pretendia conquistar poder sobre a nobreza como
tinha diante dos olhos da burguesia, tinha que ser vista por eles. Tinha que
conhecê-los e conviver com eles. Seu marido era um deles, pelo amor de
Deus! Muito embora, de uma espécie completamente diferente.
- Eu vou alcançá-las em um minuto, querida. – garantiu ao ser
interceptado por um de seus pares.
Lavínia acenou com graça silenciosa para o senhor grisalho que parecia
um velho conhecido deste, e se afastou com a filha. Esta olhava com
curiosidade para as pessoas que passavam e parecia tão alegre que chegava a
partir seu coração.
A multidão também a olhava com curiosidade. Uma curiosidade vil, cruel
e maliciosa com que olhavam para alguém que não pertencia ao mundo
deles. Esperando o passo em falso que ela daria. Querendo proteger suas
filhas de seus maus modos.
Lavínia negou balançou a cabeça perdida em pensamentos, sentando-se no
banco de madeira próximo do lago. Se eles soubessem o quanto ela era
especial, bem educada, carinhosa e doce, jamais a renegariam. Ela enxergava
isso e, abençoadamente, também Lorde Carffort.
A menina se inclinou para colher uma flor e então correu para a mãe. O
presente da natureza preso em seus dedos. Uma flor roxa e mirrada que
carregava com um sorriso.
- Veja mamãe, combina com o vestido. – comentou alegremente.
- É mesmo, meu amor. – concordou e inclinou a cabeça para frente. –
Você pode ajudar a mamãe a colocar no chapéu?
Luísa mordia o lábio inferior enquanto executava a difícil tarefa na ponta
dos pés. Então riu com espontaneidade quando uma borboleta pousou em
seu ombro.
- Como ela é linda. – comentou vendo o conjunto alaranjado de suas asas
que já batiam para longe.
- Dizem que traz muita sorte quando elas pousam assim.
- É mesmo?
- É sim. – concordou passando a mão pelo rosto corado mesmo sob a
proteção do chapéu. - Uma vez...
- Sua vagabunda!
Um grito esganiçado atravessou o parque até onde estava sentada. Ousava
dizer que até os patos se agitaram, batendo as assas na água diante do
barulho repentino.
Bom Deus! Lavínia deu um salto rezando mentalmente pela vítima do
escândalo. Se soubesse quem era, teria rezado o dobro. Teria rezado com
muito mais fervor.
- Sua desgraçada!
Emily, baronesa de Petergille, tinha um lenço esmagado nas mãos
trêmulas, os olhos marejados e o rosto vermelho de ódio. E o alvo de seus
ataques era ninguém menos que Lavínia. Que ainda atinava o que estava
acontecendo.
Quando esta parou, uma multidão substancial havia se reunido para
assistir o desenlace da tragédia. Chapéus e cartolas sem nenhum pudor se
aglomeravam e não fingiam desinteresse. Era por aquele tipo de coisa que
eles saíam de casa pela manhã. O tipo de coisa que tornava um passeio na
natureza insípido, interessante.
Luísa havia agarrado na saia da mãe com os olhos assustados e esta havia
passado o braço protetor por suas costas. Demonstrando a mais profunda
coragem e confiança.
- Meu marido me contou tudo. Não tente negar!
Ela parecia transtornada. Agitando o lenço no ar próximo do rosto do alvo
de suas afrontas. Faltava mesmo muito pouco para perder a linha de vez.
- Você foi amante dele!
A multidão soltou uma exclamação chocada. A sensação era que todas as
muralhas que havia construído durante a vida toda haviam acabado de
desmoronar sobre sua cabeça. A consciência de que sua filha estava ali e há
poucos metros, também seu marido, não ajudava em nada.
Havia anos que não se sentia tão humilhada, mas sua cabeça permanecia
erguida. O ar altivo, encarando a mulher desconcertada diante dela. Sua
firmeza parecia deixá-la ainda mais louca. O que ela esperava? Lágrimas e
súplicas de joelhos para que parasse? Pobrezinha, ela se reduziria a pó antes
de conseguir algo parecido.
- Eu bem desconfiava que essa criança não poderia ser de Solluin.
Apontou para Luísa soltando um som de desprezo. Lavínia não se atreveu
a olhar para a filha. Havia uma linha muito tênue entre seu estado centrado e
o mais completo desespero, bastaria uma olhada naqueles olhinhos azuis e
ela ultrapassaria aquela linha. Se ficasse com o olhar fixo na loira
perfeitamente penteada, mas notavelmente irada, no entanto...
- O velho mal aguentava em pé! – voltou a atacar. - Como ousou
engravidar de seu senhor? – como se ela tivesse alguma escolha. - Uma
criada imprestável, era o que você era!
Em algum lugar dentro dela conseguiu encontrar a coragem que precisava
para responder sem alterar a voz. Quando falou seu tom era firme, forte o
bastante para ser ouvido, mas baixo o bastante para não demonstrar um
pingo sequer de emoção. Era como se Lady Petergille a houvesse parado
para perguntar como estava seu cachorro ou outra coisa igualmente trivial.
Ali era a burguesa de coração de gelo e se orgulhava disso.
- Eu não sei o que vosso marido lhe contou, Milady, mas eu lhe asseguro
que filha dele, ela não é.
- De quem então? – soltou uma risada cruel.
O silêncio seria matador. Ela precisaria respirar algumas vezes olhando
para a víbora antes de responder. Precisaria se não quisesse perder a
compostura como ela. Os olhos verdes de Emily quase saltavam das órbitas
e as veias de seu pescoço estavam saltadas.
- De quem essa criança é filha?! – soltou um berro que fez a multidão
curiosa arregalar os olhos.
- Minha.
Uma voz grave e firme chamou a atenção de todos. Lorde Carffort, ainda
mais belo e sisudo foi até Luísa e a pegou no colo. A menina parecia a
completa representação do espanto sendo erguida por seus braços fortes e
reconfortantes. Como um reflexo, ela enterrou o rosto em seu ombro e
segurou em seu pescoço.
Não podia ter noção do quanto ele lembrava ao Duque quando se voltou
para a ex-noiva. Era mais que a altura, o corpo e o mesmo cabelo castanho,
tratava-se do semblante de autoridade e da segurança com que se movia. Os
olhos azuis furiosos encontraram uma Emily devidamente chocada.
- Não me olhe assim, Lady Petergille. – disse sério, ignorando
completamente a atenção da multidão que havia se voltado completamente
para ele. Podia ouvir os lápis dos jornalistas trabalhando naquela história. -
Nunca escondi meu passado de ninguém. Homens como eu começam cedo.
- Você era uma criança. – observou ainda mais chocada.
Oh! Ela sabia fazer contas! Que adorável. Sim, Luísa havia sido
concebida quando ele tinha dezessete anos, mas com essa idade ele já havia
perdido sua inocência há algum tempo.
- Você é uma criança.
Acusou se referindo a sua explosão em um lugar público. Colocando
muitas reputações em perigo. Incluindo a própria. Mulher tola. Na manhã
seguinte cada ser em Figior, pobre ou rico, saberia que o marido dela era um
devasso que ainda tinha maus hábitos e traía a esposa.
Mas não. Emily só via Lavínia e Luísa na frente dela e faria o diabo para
destruí-las. Não se ele pudesse evitar.
- Petergille nunca dividiu a cama com minha esposa. – afirmou com uma
certeza que mal possuía, mas o importante era que era assim que todos viam.
Um homem certo do que dizia. - Luísa é minha filha, eu posso lhe assegurar.
Minha.
Ele morreria sem entender as mulheres. Se Emily havia ficado furiosa
com a ideia que Petergille tinha uma filha com Lavínia, quando Nathan o
desmentiu não parecia aliviada. Aparentemente, a ideia de que ele havia
feito aquela criança ainda era pior para ela. Seu estado irritadiço não se
alterou.
- É só uma vagabunda como a mãe. – acusou franzindo o cenho como se
não pudesse evitar.
Como um cavalheiro, ele não poderia reagir da forma que gostaria, por
isso foi um alívio quando Lavínia o fez por ele. Sem um pingo de hesitação,
deu dois passos à frente e acertou um tapa em cheio no rosto da baronesa. O
semblante furioso de uma leoa.
- Nunca mais ofenda a minha filha. Nunca.
A lady não ousaria revidar. Não quando já perdia o apreço e a razão diante
da multidão que julgava o espetáculo. Tudo o que fez foi simular um choque
e expressão de quem teve a dignidade ferida. Provavelmente no momento
seguinte ela simularia um choro falso, mas ele não ficaria para ver.
Carregando Luísa no colo, com Lavínia ao seu lado, atravessou a multidão
por uma posição estratégia. De modo a passar ao lado de Lorde Petergille
que parecia sério e nada feliz com os últimos acontecimentos que
presenciou. Provavelmente ele esperava um desfecho diferente.
- Escolha seus padrinhos, Petergille. – desafiou com o cenho franzido pelo
ódio. - Eu o verei ao amanhecer.

...
Capítulo 22
Minha filha

Luísa estava tão silenciosa que chegava a dar medo, mas Lorde Carffort
podia apostar que havia uma porção de perguntas rodeando aquela cabecinha
ainda enterrada em seu pescoço. Havia passado todo o trajeto de carruagem
assim como se tivesse adormecido. Mas quem adormeceria depois de ouvir
as atrocidades que a Srta. Solluin havia ouvido?
Lavínia estava em pânico, olhando para a filha, mas de algum modo sabia
que palavras piorariam tudo. Além disso, não tinha ideia do que dizer para a
menina. Não tinha ideia do que dizer para a própria filha e essa era só uma
de suas muitas preocupações. O que diria para o marido? Para a família
dele?
Seu mundo havia oficialmente desmoronado, mas ele estava lá. Segurando
os destroços sobre as cabeças dela e de Luísa. Simulando Atlas segurando os
céus, mas o fazendo por vontade própria. Levando sua filha - que havia
assumido como dele – escada a cima, até o quarto desta. Lady Carffort,
queria e precisava chorar.
O pior era que tinha a exata noção de que sua filha tinha muitas perguntas
e que era ela quem deveria respondê-las. Só que, pela primeira vez, se sentiu
fraca e incapaz e estava grata por ter alguém para fazê-lo por ela. Mais do
que isso, sabia que ele o faria melhor do que ela. Era raro admitir algo assim,
mas era a verdade.
Nathan não parecia esperar que ela ficasse. Ao contrário, parecia esperar
que ela saísse. Provavelmente, suspeitando que toda a energia da esposa fora
sugada naquele maldito parque.
Lavínia se colocou na ponta dos pés e beijou os cabelos ruivos de sua
pequena.
- Meu amor, mamãe vai estar no quarto dela ser precisar. – acariciou as
costas com carinho.
Então olhou para o marido que assentiu com confiança. Deus! Ela não
deveria exigir tanto dele. Não deveria simplesmente partir quando era a filha
dela ali. Mas não tinha forças para ficar. Nenhuma. Então, se foi mesmo sem
uma resposta.
A atenção da Srta. Solluin foi desviada para a porta assim que ouviu o
clique que indicava que havia de fechado. De alguma forma ela buscava ter
certeza que a mãe havia saído. Tinha certeza que ambas queriam a
companhia uma da outra, mas também que no momento não suportariam.
Elas eram criaturas tão parecidas que era espantoso de ver.
Com cuidado ele a sentou na cama e arrastou uma cadeira para se sentar
diante dela. Esperando em silêncio até que essa estivesse pronta para falar.
Luísa o encarou, piscou os olhos azuis e coçou o nariz com o indicador.
Então, finalmente encontrou a voz que precisava dentro dela.
- É verdade? Você é meu pai?
Nathan teria dado qualquer coisa para que “sim” fosse a resposta correta e
verdadeira. Só que não era e por mais que mentir sempre fosse uma opção,
Luísa já padecia na ignorância por muito tempo. E ele, como vítima recente
dela, sabia quanto era horrível.
- Não, querida. – levou as mãos dela aos lábios. – Eu queria muito poder
dizer que sim, mas não posso mentir para você.
- Eu sou filha daquele homem?
Nathan fechou os olhos sentindo o que parecia uma faca afiada atravessar
seu peito. Ela era inteligente demais para o seu próprio bem e agora o havia
deixado sem resposta.
- Sim. Meu Deus! – aquilo na garganta dele era o início de um choro sem
precedentes? – Eu acho que sim.
Os olhos azuis foram parar na colcha que cobria a cama e ela seguiu sua
estampa com os dedos. Traçando as margaridas enquanto absorvia as
absurdas informações que estava recebendo naquela manhã.
- Então tudo que aquela mulher disse é verdade?
- Não. – negou sério, com veemência. – Nada do que a baronesa disse é
verdade. Ela só tem inveja da beleza de sua mãe, só isso.
Outro longo silêncio que o deixou muito tentado a sair, chamar Lavínia e
ir à casa Dachmour para admitir sua derrota. “Não posso fazer isso.”
Admitiria ao Duque de Dachmour e ele certamente entenderia. Em vinte e
seis anos de casamento mesmo ele, um dos homens mais poderosos de
Figior, deveria ter tido aquele momento com uma das filhas. Se não com
todas.
- Mas eu não quero.
A voz infantil soou decidida e o rosto dela estava franzido e resoluto
como o da mãe. Queria ele ter metade da segurança daquela pequena
menininha.
- Não quer o que, querida? – questionou, olhando-a com confusão e
paciência.
- Eu não quero ser filha daquele homem. – deu um soco na cama para
enfatizar sua posição. Ela já havia decidido. – Quero ser sua filha.
Deus! Aquilo escorrendo no rosto dele eram lágrimas ou havia começado
a chover e uma nuvem desavisada tinha entrado no quarto? Virgem
misericordiosa, ela era mesmo a filha da mãe dela.
- Sabe... – Nathan soltou um riso abafado e deu um beijo na pequena testa.
– Se eu descobrisse hoje que o meu pai não é meu pai, na verdade nada
mudaria. Era ele que estava comigo quando eu precisei e é isso o que
importa.
- Sim. – assentiu como se houvesse pensado exatamente naquilo minutos
atrás.
- No fundo querida, não importa quem é o seu pai. O que importa é quem
está com você quando precisa. – continuou, aconchegando uma das mãos
dela entre as dele. – O Sr. Solluin foi um bom pai e eu também quero ser.
Bom... – ele pigarreou, um traço de família de fato, que vinha à tona quando
estava constrangido. – Se você permitir que eu seja.
Luísa deu um sorriso e se esticou para dar um beijo no rosto dele. Aquilo
era mais do que uma resposta.
- E quanto ao resto das pessoas?
Sabia exatamente o que ela tentava dizer. As pessoas. Aquelas que haviam
se aglomerado no parque e ouviram tudo. As mesmas pessoas que
espalhariam o escândalo, mas uma mente infantil não ia tão longe.
- Eu disse que era minha filha e eles vão acreditar. – ai deles se não o
fizessem sendo ele filho de quem era. – É só guardarmos segredo.
Luísa fez um gesto que deveria simbolizar um juramento solene. Nathan o
repetiu porque parecia ser a coisa certa a se fazer.
- Você será um bom pai. – novamente assentiu com uma firmeza que
chegava a ser assustadora. - E é um bom marido.
Ele era? Maldição! Ele não havia trocado nem meia dúzia de palavras com
a esposa desde o incidente, sequer perguntara ser ela estava bem. Mas ele
faria isso, jurou a si mesmo. Depois de achar um padrinho, até porque
Lavínia também estaria ocupada.
- Vou pedir que sua mãe venha ver você.

...
O lado bom de estar envolvido em um escândalo de proporções épicas –
se é que existia algum – era que não precisou reunir a família na casa
Dachmour. Todos já haviam se reunido por conta própria e pareciam
somente aguardar a chegada dele. Como se tivessem marcado um encontro.
Sua mãe estava sentada no sofá da sala principal e parecia mais calma do
que ele ousaria supor. Seu pai estava sério, observando ao redor e estudando
a situação como Allan. Seus cunhados, mesmo West estavam calados e
contemplativos. Sua sobrinha Sara e suas irmãs pareciam um tanto agitadas,
mas Meri... Meri, como era de costume, estava dando um espetáculo à parte.
Andando de um lado para o outro da sala e praguejando em voz baixa.
- Um duelo! Um duelo como se estivéssemos na era medieval! –
resmungou e viu se alguém compartilhava de sua indignação. Não o
suficiente, pelo visto. Ninguém se manifestou. – Como podem estar tão
calmos? Ele pode morrer! Será que ninguém se importa com isso?
O Duque se agitou no assento diante da ofensa e sua esposa assumiu uma
expressão melancólica, era óbvio que eles se importavam. Embora não
fizessem distinção entre os filhos, Nathan era o único filho que os dois
haviam tido juntos. Estavam em pânico e o recente comentário não havia
ajudado. A condessa e a doce habilidade de tornar coisas difíceis ainda mais
difíceis.
Cassandra deu um suspiro fundo e passou a mão pelo rosto. Ela não era a
mais sensível de suas irmãs, mas Meri ultrapassava todos os limites.
- É claro que estamos preocupados, Meri. – disse séria para a irmã mais
nova e Isabelle assentiu em concordância. – Acontece que quando se anuncia
um duelo em praça pública não há nada a se fazer se não rezar.
- Bobagem! – exclamou agitando as mãos nada moderadamente. – Se ele
voltar atrás terá o orgulho masculino ferido, mas ao menos continuará vivo.
Vi-vo! – enfatizou.
Nathan pigarreou para sinalizar que havia chegado há algum tempo. Era
desconfortável ser o assunto de uma conversa e ser ignorado ao mesmo
tempo. Contraditoriamente, também era desconfortável ser o centro das
atenções, sobretudo quando sua irmã do meio o fuzilava com olhar mortífero
como se o culpasse por querer “brincar de duelo” com Petergille.
Como se ele achasse a ideia mais divertida que qualquer um ali. Ele tinha
uma esposa e uma filha! Uma filha pelo amor de Deus!
- Preciso de um padrinho. – disse somente. Poupando a todos de um longo
discurso. Eles já sabiam o suficiente.
Meredith franziu o cenho e se voltou para o marido com os braços
cruzados.
- Eu proíbo você.
Não queria ninguém incentivando aquela loucura. Menos ainda o marido
dela. Quando e se estivessem chorando sobre o caixão de Nathan – por mais
macabra que fosse a ideia – ela não queria ter nenhuma participação naquilo.
Nenhuma mesmo.
- Perdoe-me, minha tentação, mas não posso deixar de me voluntariar. –
West respondeu olhando para a esposa com os olhos verdes sérios.
Lorde Carffort não se lembrava da última vez que vira a irmã ser
contrariada. Sobretudo em público. Sobretudo pelo marido.
- David Kurt... – franziu mais a testa e caminhou até estar a um palmo
dele. – Eu o proíbo.
- Eu sinto, amor.
- Por quê? – questionou por entre os dentes.
Provavelmente – pelo olhar assassino da mulher - o Conde não teria
acesso ao leito conjugal no próximo mês. Isso, pressupondo que ele estivesse
vivo até lá.
- Você não entende. – permaneceu sério e irredutível.
- Por quê, West? – alterou o tom de voz ignorando a plateia.
- Porque se fosse você naquele maldito parque eu teria feito a mesma
coisa que seu irmão! – respondeu com certa energia, o tom alto como o dela.
O espanto de todos criou um silêncio desconfortável na sala, mas surtiu o
efeito esperado. Meri abriu os lábios e os fechou novamente. Não havia
argumentos contra aquilo. Simplesmente foi até o marido e espremeu seus
lábios contra os dele com força, ignorando que estavam diante da família,
então deu tapinhas em seus ombros e assentiu.
- Conte comigo, Carffort. – disse, finalmente passando a mão pela cintura
da criatura impossível que há anos chamava de esposa.
- E comigo. – Harry se manifestou.
- Comigo também. – concordou o marquês, irmão gêmeo deste.
- Eu não sou a favor dessas demonstrações de violência, Carffort. –
começou Lorde Trian. Como uma criatura pacífica daquela acabara casada
com a sobrinha dele? – Mas estou disposto a acompanhá-lo se desejar.
- Não. – o herdeiro do ducado se manifestou do canto da sala. Todas as
atenções da sala se voltaram para Allan – Sou eu quem deve ir. Ele é meu
irmão.
Nathan assentiu e murmurou um agradecimento. Sim, ele era irritante.
Provavelmente iria da casa Dachmour ao parque central lembrando-o de sua
imprudência. Lembrando que ele tinha uma filha e uma esposa e perder
aquele duelo não era uma opção. Ainda assim, ele o amava e mesmo diante
daquele olhar sério de futuro Duque, sabia que era recíproco.
- Se não se importarem, gostaria de um momento à sós com Nathan. – a
duquesa finalmente se manifestou.
Mesmo se alguém se importasse, jamais diriam. Ninguém ousaria
contradizer a matriarca da família. Não porque Helena Mei Carffort fosse
uma mulher severa – era na verdade muito doce, mas porque todos nutriam
um respeito muito grande por ela. Temiam desagradá-la.
A família saiu em uma fila coordenada como se tivessem ensaiado
previamente por meses seguidos. Quase tão coordenado quanto uma tropa
bem treinada.
- Nós estaremos lá, Carffort. – Harry garantiu com um aceno firme, que
ele retribuiu.
Todo o apoio dado por sua família havia sido tocante, mas a reação de seu
pai fora de longe a melhor de todas. Não houveram palavras, grandes
discursos ou largos sorrisos. Lorde Dachmour simplesmente tocou em seus
ombros, deu tapinhas em suas costas e assentiu com profundo orgulho. Era
mais do que ele ousaria pedir.
Quando se viu sozinho com a mãe, ocupou o lugar ao seu lado no sofá e
levou as mãos dela a seus lábios.
- Diga-me que isso é mentira. – pediu com os olhos azuis vivos fixos nele.
Não entendeu de pronto. – Engravidar uma mulher e abandoná-la não é do
feitio dos meus filhos.
Nathan deu um sorriso e ouviu sua mãe respirar em alívio antes mesmo de
responder. Como todas as mães, ela havia lido a resposta dele antes mesmo
de pensar em como a daria.
- Foi muito corajoso o que fez, meu filho. – abriu um sorriso quase
choroso. – Você é tão parecido com o seu pai. Tão honrado e bom.
- Papai sempre me disse que eu sou igual a senhora. – comentou em tom
risonho.
- Talvez. – deu tapinhas carinhosos nas mãos dele. – Mas eu sei que será
um pai como ele para aquela criança. Um ótimo pai como ele foi para suas
irmãs.
“Espero ter a chance de ser.” A frase ecoou dentro dele ao se lembrar de
que tudo seria decidido na manhã seguinte.
- Sua bênção, minha mãe. – pediu na esperança que aquelas palavras o
salvassem em momento de necessidade.
Com o sorriso doce no rosto acolhedor, passou a mão no rosto dele.
- Deus o abençoe, meu filho. – disse munida do poder sobrenatural que as
palavras de mãe tinham. - Deus o abençoe.

...
Capítulo 23
Revelações e um duelo

Após uma boa refeição na Mansão dos Dachmour, voltou ao lar com certa
insegurança. Não como um herói valente e intrépido que retornava para
reclamar sua princesa após matar um dragão, mas se sentindo o próprio
dragão morto.
Ele deveria estar radiante, disse a si mesmo. Deveria estar confiante que
Lavínia o receberia de braços abertos, o encheria de beijos e diria com vigor
que ele havia salvo sua vida. Só que ele conhecia a esposa o suficiente para
saber que não seguiria a lógica de uma mulher comum e ele não era um
homem que havia agido pela vaidade. Havia agido de forma impetuosa por
amor e no fundo não queria uma esposa que estivesse radiante de felicidade
quando o recebesse. Não quando ele corria o risco de morrer na manhã
seguinte.
Para sua sorte ou azar, não havia sequer vestígio de alegria no rosto de
Lavínia quando ele entrou no quarto desta. Estava agitada olhando pela
janela e, quando o viu, seu olhar acabou com ele. Não havia raiva, saberia
lidar com raiva. Era algo muito pior, melancolia pura e sólida.
- Como você está? – pergunta estúpida. Homem estúpido.
- Eu acabei de deixar Luísa no quarto dela. – soltou um riso sem nenhum
humor apontando na direção dos aposentos da filha. - Ela me disse que você
é o pai dela agora, mas amanhã a essa hora ela pode não ter mais um pai. –
levou a mão ao peito como se uma dor insuportável a tivesse acometido. -
Oh Nathan! Como acha que eu estou?
- Eu não tive escolha. – argumento fraco e imbecil, mas era a verdade.
- Que tal a escolha de não se arriscar no duelo? – sugeriu sem humor
algum no rosto ou no tom de voz.
- Essa não era uma escolha válida depois que Petergille resolveu pôr em
risco a sua reputação.
- Eu prefiro ser uma mulher casada com uma péssima reputação a uma
viúva de reputação imaculada, Milorde! – levantou a voz e o queixo para
encará-lo de igual para igual.
Bom Deus! Ela estava tão linda. O sol - que entrava pelas janelas -
iluminava seu rosto fazendo as sardas parecerem uma chuva de ouro
derramadas pelos deuses gregos, seus olhos pareciam dois lagos brilhantes e
os lábios rosados tensos pela irritação o tentavam ao pior.
- Sabe que essas não são as únicas opções existentes.
Não poderiam ser. Deveria haver no meio daquele inferno alguma opção
que permitisse que Lavínia tivesse sua reputação e ele. Não poderia
simplesmente deixá-la. Não agora que havia descoberto o amor de forma tão
intensa e espirituosa. Não agora que tinha uma filha. Uma filha linda e
adorável que contava com ele.
- Nathan, eu serei eternamente grata pelo que fez por mim e Luísa naquele
parque. – a honestidade saía em forma de palavras, emanava de seus poros.
Não ousaria duvidar dela. - Mas já tinha feito o bastante arriscando sua
honra por mim, não precisava arriscar também sua vida.
- Do que está falando?
Não era a honra dele que estava em risco ali e sim a dela. Sempre foi a
dela.
- Você disse em praça pública que me engravidou aos dezessete anos e me
abandonou com a criança no ventre. – lembrou bem, com a expressão
alarmada.
Ele deu de ombros como se não desse a mínima. Lady Carffort sabia que
estava longe de ser simples assim. Nathan amava sua família, prezava seu
bom nome e protegia aqueles que amava. Não era simples jogar o
sobrenome dele na lama.
- Sou homem e o filho do Duque. A imprensa e Figior me perdoarão em
pouco tempo.
- Mas...
- A memória deles é muito diferente para mulheres e mais ainda para
nascidas burguesas. – cortou rapidamente poupando-os do eufemismo. - É
cruel, mas é a verdade.
Ela sabia que sim. Sabia que estava certo. Ela poderia passar a vida sem se
recuperar. Ainda que o casamento lhe desse certa comodidade diante da
nobreza, bastaria virar as costas e todos sussurrariam coisas a respeito dela.
A companhia que Solluin deu a vida para manter estaria arruinada. Seria um
inferno em terra.
- Eu suportaria isso com um sorriso no rosto se pudesse ter certeza que
continuaria vivo.
Aquilo era quase tão bom de ouvir quanto um “Eu te amo” ou seria, se
não houvesse muita culpa envolvida. Só que havia um detalhe que sua bela
esposa fingia ignorar. Um detalhe que justificava completamente a atitude
dele. Sim, ela era forte para desafiar o reino inteiro, mas havia mais.
- E quanto a Luísa?
Lavínia soltou um suspiro fundo e resignado. Talvez Luísa suportasse.
Talvez ela fosse forte como a mãe, mas não queria descobrir. Não queria que
conhecesse o que era dor ou sofrimento. Havia passado os últimos minutos
pedindo perdão a ela pelo que havia se passado no parque e se culpando. Ver
sua filha perder qualquer chance de uma vida digna acabaria com ela.
Não sabia o que seria dela se Lorde Carffort não interferisse.
- Lavínia... – chamou sua atenção quando viu que estava desviada para a
janela. - Luísa foi concebida contra a sua vontade?
- Eu a tive porque quis. - respondeu com firmeza. – E eu a amo mais que a
própria vida.
- Não foi isso que eu perguntei e você sabe bem disso.
- Petergille era um jovem pervertido e eu uma criada descuidada. É só o
que tenho a dizer.
- Ele a forçou? – instigou, ignorando seu visível desconforto.
- Nathan, por favor... – balbuciou com os olhos fechados, o assunto a
destruindo por dentro.
- Não. – segurou em seus ombros de forma carinhosa e firme. - Não vou
permitir que me mantenha na ignorância por mais tempo.
- Que diferença isso faz? – havia um tom de súplica na pergunta dela.
Não me obrigue a contar, por favor. Não me obrigue a lembrar. Ele
parecia surdo para seu apelo.
- Daqui a algumas horas pretendo atirar no peito de um homem e quero
saber o quanto ele merece esse tiro.
Era uma razão válida demais para ser ignorada. Estava diante de um
homem de honra, mas que tinha uma consciência. Embora a estupidez de
Petergille fosse o suficiente para cogitar um duelo, se chegasse a matá-lo
talvez sua consciência não o perdoasse por isso. Tinha que lhe contar. Por
mais que doesse e doía.
- Só não me culpe se não gostar do que vai ouvir. – advertiu, pois mesmo
ela não gostava do que iria contar.
- Eu só a culparei se mentir pra mim.
Lavínia negou como uma promessa de que não o faria. Não naquela tarde,
nem nunca. Após um suspiro profundo ela começou a contar. Rezando por
poucas interrupções, porque não tinha certeza se conseguiria continuar se
interrompida.
- Petergille havia demonstrado sua preferência por mim desde que cheguei
à casa dos pais dele. Eu ficava com os serviços mais leves, mais fáceis e as
outras criadas me detestavam por isso. No começo eu achei que aquilo era
bom, mas quando percebi as intenções dele fiquei desconfortável. Ele ficava
sentado horas me vendo trabalhar. Fazia o diabo para que a governanta me
colocasse para arejar os quartos principais, o quarto dele.
“Um dia chegou uma joia no meu quarto e eu a recusei. Devolvi em mãos
e disse que agradecia, mas que não podia aceitar. Ele propôs um
relacionamento ilícito e quando eu recusei ficou devidamente furioso. Era
risível como disse, que uma criada, uma ninguém o recusasse. Na semana
seguinte, eu achei que tinha acabado.”
“Eu havia voltado aos trabalhos pesados e nunca estive tão feliz em me
esforçar tanto, ao menos estava segura ou era o que achava. Em uma terça-
feira chuvosa a governanta me orientou a voltar a arejar os quartos e as
outras criadas me garantiram que o filho do barão não estava em casa. Eu
tola, acreditei cegamente. Já era noite, eu subi, troquei a roupa de cama e ele
apareceu. Parecia possuído pela luxúria quando trancou a porta e me jogou
na cama. Segurando meus braços e dizendo repetidas vezes que eu queria
aquilo, que deveria parar de resistir.”
- Quantas vezes? – por algum motivo importava.
- Não fiquei para descobrir. Depois da primeira, eu fugi sem olhar para
trás. – ainda se lembrava da força e energia incomum que se apossaram do
corpo dela para escapar daquele inferno. - Fui para casa do Sr. Solluin. Não
podia voltar para o meu tio. Ele me mataria.
- O tio seu já a tinha machucado?
Era o que Abgail havia sugerido, mas pelo visto, havia muito que a
meretriz não havia contado. Ou ela também padecia na ignorância, ou achou
prudente que ele padecesse. Ao menos, até sua amiga resolver acabar com
aquilo.
- Ele me bateu uma vez, mas não foi ardiloso o suficiente para tocar em
mim de forma imprópria.
- Petergille foi o seu primeiro. – Maldito fosse!
- Sim e a prova viva de que a primeira vez de uma mulher é dolorosa. –
um nó em sua garganta quase a impediu de responder, mas era mais forte
que aquilo.
- Solluin a recebeu? – desviou o assunto ou ia enlouquecer. Estava
enlouquecendo. As imagens que sua cabeça formava eram perturbadoras.
Perturbadoras demais.
- Sim, mas eu não poderia ficar com ele. Meu tio reclamaria a minha
guarda, como reclamou. – lembrou com nitidez das ameaças que seu tio
havia feito se não a tivesse de volta. - Por isso ele teve que se casar comigo.
Quando meu tio chegou com a polícia não havia nada que ele pudesse fazer.
Eu já pertencia a Solluin e ele não tinha poder algum sobre mim.
- Maldição! Foi por isso então!
A baronesa de coração de gelo, a jovenzinha ambiciosa que havia
seduzido o patrão do pai só existia na cabeça dos desocupados. Lavínia era
na verdade uma vítima, uma menina assustada que por sorte – ou por Deus –
encontrou o homem certo na noite certa.
- Agora você compreende. – percebeu em seu olhar que sim. - Solluin foi
um anjo para mim. Depois de dois meses eu descobri que estava grávida e
pedi a anulação. Era demais esperar que ele assumisse duas crianças que não
eram problema dele. Solluin disse que se eu fosse embora iria atrás de mim,
acrescentou que sempre quis ter um filho. Que criaria a criança como se
fosse dele e criou.
- Solluin não podia ter filhos?
- Comigo? Não. – negou com a cabeça. - Meu casamento com ele foi um
relacionamento casto, de pai e filha. Ele nunca tocou em mim.
- Em anos de casamento ele nunca tocou em você?
O homem era um santo. Se o momento não fosse tão sério, iria naquele
instante até a Catedral de Figior pedir que construíssem um altar para aquele
homem, talvez uma estátua e alguns vitrais coloridos. Com certeza alguns
vitrais coloridos. Certamente os merecia.
- Nunca. – confirmou. - Mas por Deus não me julgue ao assumir que não
recusaria se ele quisesse. – não ousaria julgá-la, não depois de tudo que
havia ouvido. - Ele fez mais por mim que qualquer homem havia feito. Até...
– engoliu em seco.
- Até?
- Até você aparecer. – pousou a mão nos ombros dele em um gesto de
afeto e admiração. - Eu não sei se mesmo ele faria o que você fez hoje, meu
marido.
- Ele não seria tão imprudente. – a sombra de um sorriso brincou nos
lábios dele.
- Não, acho que não. - admitiu.
- Isso é porque ele não a amava como eu a amo.
Um arrepio delicioso e cruel ao mesmo tempo, amargo e doce, percorreu a
coluna de Lavínia. Aquilo foi a coisa mais impetuosa e adorável que alguém
havia lhe dito.
- Ah Nathan! – exclamou passando uma das mãos pelo rosto belo, o
maxilar forte e o queixo quadrado. - Isso é porque ele tinha juízo, meu
querido. O amor de Solluin e o meu sempre foi um amor racional. Ele sabia
que era tolice me amar de outra maneira. Eu sou, afinal... – sorriu de forma
depreciativa. - A burguesa de coração de gelo.
- Eu acho que seu coração já derreteu há muito tempo, meu amor. – havia
ele próprio cuidado disso, sem seu consentimento.
- Não. – negou desesperada para fazê-lo enxergar. - Veja. Eu destruí a vida
dos dois únicos homens que um dia me amaram. Impedi Solluin de ter um
relacionamento real com uma mulher e você... – passou os dedos das duas
mãos pelo rosto dele como se quisesse memorizar seus traços únicos. - Você
pode acabar morto amanhã por minha causa. Eu nunca deveria ter entrado
em seu apartamento. Nunca deveria ter insistido para que nos casássemos.
Nunca deveria...
Os lábios firmes a impediram de continuar, a língua atrevida lhe deu um
motivo para que jamais o fizesse e a mão que pressionava suas costas tirou o
ar de seus pulmões. Que beijo! Que homem!
- Às vezes você fala demais. – repreendeu. - Eu já lhe disse que não me
importo com o que pensa, Lavínia Harin Carffort, eu amo você. E se não
fosse até o meu apartamento e me atormentasse com todas aquelas ideias
idiotas sobre os nobres serem preguiçosos e cada garido que tinha em minha
conta, eu poderia ter um destino bem pior do que morrer em um duelo. –
segurou o rosto dela com as duas mãos e a olhou no fundo dos olhos. - Eu
poderia ter morrido aos 116 anos sem jamais ter amado uma mulher como
você.
Então ela o beijou. Total e completamente consciente das lágrimas
salgadas que escorriam de sua face e vinham se intrometer no sabor único
daquele beijo. Sim, amanhã, naquela hora tudo poderia ter mudado, ela
podia – Que os céus tivessem misericórdia dela! – perder aquele homem
maravilhoso que chamava de marido. Mas, naquele momento, ele estava ali.
Ao lado dela. Pedindo desesperadamente para ser beijado e para que ela
aproveitasse cada instante com ele.
- Eu quero que faça amor comigo. – sussurrou em seu ouvido e beijou seu
pescoço.
- Você não precisa pedir, meu amor. – Nathan respondeu segurando
apaixonadamente sua nuca.
- Não como andamos fazendo nas últimas noites. – explicou passando a
mão por suas costas, cravando as unhas em seu casaco. - Eu quero que faça
amor comigo sem regras, receio de me magoar ou pudores. Quero que o faça
como sempre quis.
- Pelos céus! – exclamou com um gemido inalando o cheiro do pescoço
dela. - Eu atravessaria o inferno para ter você.
Mas no momento, a ocasião era o paraíso. Um paraíso doce com um toque
de amargo que não o tornava menos especial e sim o contrário.
Nathan tomou as rédeas daquela vez e Lavínia permitiu que o fizesse. Ele
a despiu lentamente, explorou seu corpo com as mãos, com a boca, de todas
as formas que conhecia. Quando a deitou na cama e a penetrou, Lady
Carffort pensou ser incapaz de respirar.
Eles fizeram amor lentamente, então mais rápido e lentamente novamente
e quando Nathan levou Lavínia ao abandono, mostrou a ela que poderia
chegar lá mais uma vez em ainda menos tempo. Durante todo o tempo ele
dizia que a amava e Lavínia, a jovem a mulher que antes não conseguia
chorar, agora, não conseguia parar.

...

Havia dormido entre a filha e a esposa. Não poderia ter pedido por uma
noite melhor. Mesmo que nenhuma das duas tivesse dito aquilo em voz alta,
ele se sentiu amado por aquelas mulheres fortes que tinha na vida dele.
Só que pela manhã, sua esposa não estava ao lado dele. Encontrou seu
lado da cama frio e um bilhete na cabeceira. Claro e sucinto. Combinava
com ela.

“Eu simplesmente odeio despedidas, mas sei que irá voltar para casa.
Estarei rezando por você, meu marido.

Sua,
Lavínia.”

Com aquele bilhete ela tinha derrubado suas reservas e feito com que
quase desistisse daquela loucura toda de duelo. Acontece que aquilo, aquilo
tudo era por elas. Por ela e por Luísa que havia beijado ainda sonolenta pela
manhã, antes de partir.
Com um suspiro fundo, observou ao redor. A neblina tomava o parque,
tornando a ocasião quase etérea. Estava frio. Apesar de ainda ser madrugada,
um grupo substancial de homens haviam se reunido. Alguns muito
conhecidos, outros nem tanto. Boa parte deles – a parte que não se importava
de fato com o resultado – havia apostado bons garidos no possível vencedor.
À frente, Allan e o padrinho de Petergille reviam as regras com um
cavalheiro neutro que havia sido nomeado juiz. Seu oponente, lustrava sua
pistola com um sorriso de deboche no rosto. Os cabelos negros
perfeitamente penteados para trás e um brilho diabólico nos olhos escuros.
- Está pronto? – sua atenção foi desviada pela pergunta do irmão.
Nathan assentiu.
- Questionei o padrinho do barão sobre o acordo de atirar longe. –
acrescentou o herdeiro do Duque. – Mas parece que ele não tem essa
intenção.
- Eu também não e fico feliz de poder atirar sem remorso. – respondeu
quase como um resmungo. De onde Allan havia tirado aquela maldita ideia?
- Em suas posições, cavalheiros! – anunciou o juiz.
- Boa sorte. – o irmão desejou.
Lorde Carffort foi até Petergille e eles ficaram de costas um para o outro.
Era de se esperar que o barão não perderia a chance de provocá-lo.
- Não é irônico, Carffort, que depois de você amar duas mulheres você as
perca para o mesmo homem?
- Lavínia nunca será sua e eu não dou a mínima para o que faz com Emily.
– respondeu em voz baixa.
- É o que veremos. – ameaçou.
- Três passos largos à frente! – sinalizou o juiz e ao final deles havia
começado a contagem. – Um... – eles se viraram. – Dois... – apontaram as
pistolas e...
Bang. O barulho de um disparo seguido do baque de um corpo caído no
chão.
Nathan sentiu o grama fofa em suas costas e o braço esquerdo queimar, a
arma havia escapado de sua mão e não tinha tempo para pegá-la. Petergille
se preparava para o próximo tiro e não pretendia errar daquela vez.
O herdeiro do ducado se desesperou. Tudo havia acontecido tão rápido. O
desgraçado havia atirado antes da hora e estava pronto para o próximo.
Queria matá-lo. Não havia dúvida que sua intenção era essa desde o início.
Allan correu para socorrê-lo. Maldição! Nem que fosse para se colocar na
frente da bala e seus cunhados tiveram o mesmo impulso, mas então... Bang!
Curvou suas costas e caiu de joelhos como se a bala o tivesse atravessado.
Como se a dor emocional também fosse física. Era tarde. Havia perdido
Nathan.
Mas então ouviu burburinhos e em seguida sons de choque dos presentes.
Havia poucas coisas capazes de chocar um grupo de cavalheiros, mas aquela
era com certeza uma delas.
O tiro que ouviu não havia vindo da pistola de Petergille. Viera de uma
arma da multidão que havia acertado o barão no peito e o feito cair.
O dono da arma e do ato heroico havia disparado na direção de Lorde
Carffort, ainda vivo e respirando apesar de ferido. Havia ajoelhado ao lado
dele e... Maldição! O rapaz estava beijando seu irmão na boca.
Apaixonadamente.

...

“Caros leitores,

Já levamos as mais encantadoras, tristes e picantes notícias às suas mãos,


mas essa é diferente de todas. Nenhum escândalo chega aos pés deste. Este
escândalo é de abalar a toda a estrutura da terra.
Depois de gerações de homens viris e másculos, eis que o mais novo dos
Carfforts - preparem-se para a revelação – terminou seu duelo sendo
apaixonadamente beijado por um rapaz – isso mesmo um rapaz – que
salvou sua vida.
Mas as matronas acalmem seus corações frágeis, os homens levantem o
queixo caído e as jovens esperançosas não rasguem suas cartinhas
perfumadas ainda. Porque nem tudo é o que parece ser...

Notícias de Figior, cuja leitura a nobreza começou com o queixo caído e


terminou... Com ele mais caído ainda.
Capítulo 24
Um rapaz?

Por alguns instantes deveras desconfortáveis, ele acreditou mesmo que


estava sendo beijado por um homem. Os pelos de um bigode sobre os lábios
não ajudavam em nada a melhorar sua conclusão. Pelo que tinha entendido,
o “cavalheiro” havia sido o responsável por salvar sua vida, então não
poderia simplesmente empurrá-lo e mandá-lo para o inferno. Até porque no
momento, não tinha forças para uma coisa, nem outra. Seu braço queimava
como o diabo e sentia suas forças jorrarem junto com o sangue da ferida.
Quando o rapaz se afastou, no entanto, e finalmente abriu os olhos,
Nathan percebeu seu engano. Reconheceu aquela íris azul magnífica e o
rosto angelical mesmo embaixo do bigode falso. Então esboçou um sorriso
ao ver que seu herói tirava a gravata de forma desajeitada para improvisar
um torniquete em seu braço e conter a hemorragia que o doloroso tiro havia
causado. Deu-se conta de que nunca havia admirado tanto alguém na vida.
Seu coração chegou a doer, até outra dor roubar a atenção.
Franziu o rosto em profundo desconforto quando um nó foi dado com
força próximo de sua axila. Então o estranho voltou a beijar seus lábios e
passou a mão por seu rosto suado com preocupação. Ele estava pingando a
suor.
- Você está vestida como homem, amor. – observou com certa dificuldade
em falar e um riso fraco.
- É claro que estou, de qual outra forma eu poderia... – foi quando ela
entendeu o que ele havia dito. – Santo Deus!
Passou os olhos pela multidão que estava imóvel. Os olhos arregalados em
espanto. Não era de se admirar. Lorde Nathan Carffort, o solteiro mais
cobiçado, o conhecido amante especialista em mulheres, havia acabado de
ser beijado por um rapaz em praça pública. A cabeça de todos aqueles
cavalheiros parecia ter dado um nó, incluindo aos que pertenciam à família
dele. Questionando se os relatos sobre a primazia de suas habilidades na
cama, seus talentos e também os atributos impossíveis de se ignorar.
Allan estava tomado pelo mais completo choque. Ainda ajoelhado,
contemplava a cena diante de seus olhos. Tentando se recordar se alguma
vez seu irmão havia dado indícios de que tinha gostos diferentes dos
habituais e um amante ou se aquilo era uma brincadeira de péssimo gosto.
Parte dele escandalosamente feliz por ele estar vivo. Independente das
circunstâncias. Nathan estava vivo e respirando, quem ligava se ele gostava
de abrir calças ou levantar saias? Deus sabia que jamais imaginou tal coisa,
mas o importante era que se Nathan conseguia beijar e sorrir, então que se
danasse o resto.
Foi quando para o espanto de todos o rapaz, dono do tiro milagroso, tirou
o bigode, o chapéu e em seguida a peruca castanha que batia em seu
colarinho. Após se livrar de alguns grampos, cabelos brilhantes e longos da
cor de fogo caíram em cascatas por suas costas. E Lavínia Harin Carffort,
aquela mulher de beleza estonteante e coragem espetacular, deu um sorriso
para a multidão antes de se voltar para o marido.
Não. Nathan Carffort não tinha um gosto diferente ou inventado uma
reputação de garanhão, ele só tinha a mulher mais corajosa, apaixonada e
louca de toda a Figior. Uma mulher disposta a se disfarçar, entrar em um
duelo e disparar precisamente com uma pistola diante da mera ameaça à sua
vida. Sim, ela merecia todos os beijos que quisesse, mesmo que vestindo
calças e – Santo Deus! – com um bigode castanho falso sobre os lábios
femininos.
- Você quase acabou com a minha reputação. – murmurou em tom fraco e
zombeteiro. A perda do sangue o tentando a um desmaio que não queria
permitir. Não poderia permitir. Tinha que se mostrar forte. Foi por isso que
sua esposa arriscara tudo por ele. Para vê-lo forte.
- Isso é por quase ter morrido, seu homem tolo. – censurou com carinho.
Uma lágrima solitária escorria por seu rosto enquanto afastava uma mecha
do cabelo castanho de sua testa, empanada de suor. Os dedos tremendo com
violência devido aos últimos acontecimentos. Tudo nela tremia, incapaz de
uma reação mais coerente.
- Salvou a minha vida. – externou o óbvio ainda sorrindo fracamente.
Como ela era linda. Ali mesmo. O casaco largo azul escuro, a camisa
masculina branca, os belos seios que deveriam estar contidos de alguma
forma e as calças. As desavergonhadas calças.
As mãos de Lavínia em seus ombros e peito eram como uma cura
angelical. Seu toque o aquecia por dentro o bastante para se mostrar bem por
fora. Mesmo com seu braço doendo tanto que sentia que em breve fosse cair.
O carinho dela era o bastante.
Homem tolo! Havia feito o diabo para salvar a reputação da esposa e no
final ela salvara a vida dele. Lavínia não precisava de um herói de fato. Ela
era a heroína de sua própria história, mas mesmo assim o queria ao lado
dela. De onde ele nunca, jamais sairia.
- É claro que salvei, eu amo você. – a voz soou suave, porém decidida.
Agora, ele poderia morrer. Macabro, mas foi o pensamento que lhe
ocorreu diante daquela benção murmurada pelos lábios dela. Aquela criatura
teimosa, obstinada e completamente avessa a falar dos próprios sentimentos
tinha acabado de confessar que o amava. Bom Deus! Se não fosse pela dor
excruciante poderia facilmente acreditar que já estava morto e aquele era o
paraíso. Um paraíso doce e melhor do que ele merecia.
- O que você disse? – mesmo fraco ainda havia energia suficiente para
provocá-la.
Seu esforço ganhou um sorriso.
- Eu disse que amo você, seu homem irritante. – disse passando a mão por
seu rosto com delicadeza. - Maldição! Está suando frio. – ela parecia
alarmada e eroticamente protetora. - O tiro deve ter feito um estrago e tanto.
- Ah isso? – tentou se levantar e soltou um urro de dor. - Bobagem! Não
fez nem cócegas.
- Alguém me ajude aqui! – o grito dela mobilizou a multidão estupefata. –
Aguente firme, amor. – a ouviu balbuciar, vendo seu rosto através dos cílios.
Seus olhos prestes a se fecharem. - Aguente firme.

...

Além dos últimos acontecimentos que envolviam o ferimento de Lorde


Carffort, a covardia de Petergille e o duelo propriamente dito, ainda
contavam com a presença de um oficial da lei e a ausência de um médico.
Tratando-se da capital, ele poderia ter um médico em cinco minutos,
porém era justo dizer que não seria um médico adequado. A maioria deles
vinha munida de bisturis e sanguessugas e só a ideia já lhes davam arrepios.
Então o jeito era aguardar o Dr. Feitz que parecia estar demorando uma
eternidade.
- Vamos repassar os fatos. – disse o sargento, sujeito alto e corpulento.
Ditando os recentes acontecimentos a seu subordinado que anotava cada
palavra. - Estava ocorrendo um duelo. Então Lady Carffort, vestida de
homem atirou no Barão de Petergille direto no peito e tirou sua vida.
Houve uma agitação palpável na sala, mas Allan parecia de longe o mais
incomodado. Provavelmente, porque era o que estava mais perto quando o
pior poderia acontecer.
- Quando meu irmão estava prestes a ser morto pela arma do covarde que
atirou antes da hora. – observou furioso. - Você anotou essa maldita parte? –
indagou para o rapaz silencioso que arregalou os olhos.
- Já chegamos lá, Milorde. – garantiu o sargento com a calma de que
ninguém compartilhava.
- O inferno que chegarão! – Lady West, a condessa manifestou. O olhar de
quem poderia matar um homem, ou precisamente dois. - Por que este
homem está aqui? – questionou para ninguém em especial. - Nathan está
agonizando no quarto ao lado, pelo amor de Deus! E o maldito está tentando
condenar a responsável por ele ter a chance de agonizar.
- Estou investigando um crime, Condessa. – explicou calmamente,
deixando a postura ainda mais ereta. - Esse é o meu trabalho.
- Crime foi sua mãe ter parido você, seu...... – West se exaltou, como
quase sempre acontecia quando ousavam insultar sua esposa, mas foi
interrompido.
- Acalmem-se todos. – o Duque ser levantou com o semblante de um
monge após anos de meditação em uma caverna isolada. – Como o sargento
disse, ele está fazendo o trabalho dele.
- Perfeitamente, senhor. – a sombra de um sorriso convencido apareceu no
rosto dele quando assentiu em concordância.
- E o fará em outro continente se não sair da casa do meu filho neste
instante com um pedido de desculpas e a promessa de que tomará esse caso
por encerrado.
- Mas, Milorde... – tentou argumentar significativamente na defensiva.
- Dizem que a Ásia é linda nessa época do ano. – acrescentou.
O sujeito engoliu em seco. A ameaça não era vazia. Se o duque quisesse
que ele saísse do continente, então acabaria pegando o próximo navio que
partisse por intimação do príncipe regente. Sem direito a defesa.
- É evidente que tudo não passou de um mero engano. Um caso de
legítima defesa. – emendou. Seu assistente pareceu confuso com a mudança
repentina de atitude. Pobre rapaz.
A família o encarava, furiosa. Todos ameaçadores com os braços
cruzados. Os cavalheiros fortes, as damas decididas. Difícil era saber quem
botava mais medo.
- Eu peço desculpas. – disse com uma reverência e então se voltou para o
rapaz que aguardava instruções. – Está na hora de irmos.
- Graças a Deus! – comemorou Lorde Harry Degard, como todos os
outros, sem paciência alguma.
- Milorde... – o mordomo chamou, voltando-se para o Duque.
- Maldição! – praguejou Lorde Degard. – Quem é agora?
- O doutor, Milorde.
A sala de estar se dissolveu em um aglomerado de graças ao divino. A
espera tinha acabado. Ainda que a agonia estivesse apenas começando.

...

- Eu quero só os homens no quarto.


O Dr. Feitz mal entrou nos aposentos do paciente e já passou a dar ordens,
mas quem poderia culpá-lo? A família era grande e dedicada, o que por si só
era o prelúdio de um caos. Ele tinha um diploma de medicina, não precisava
de mais seis mulheres e cinco homens para lhe ensinar o que fazer. Isso só
atrapalharia seu trabalho e prolongaria o sofrimento de Lorde Carffort, que
estava estranhamente silencioso.
Passou o olhar pela multidão que não estava sequer inclinada a se mover.
- Só homens que tiverem estômago forte. – acrescentou como um
ultimato.
As mulheres foram saindo uma por uma. Jenny e a duquesa disseram algo
sobre acalmar Luísa. Cassy reclamou algo com Isabelle sobre os homens se
sentirem superiores e serem ridículos. E Meredith e Lavínia continuaram
exatamente onde estavam, sem sequer intenção de sair.
- Lady West... – começou o doutor ajeitando suas ferramentas. – Pensei ter
sido claro...
- O senhor foi, mas eu escolhi ignorá-lo. – respondeu prontamente.
- Lady Carffort... – se voltou para a outra mulher no aposento, na
esperança que tivesse mais juízo. Tolo.
- Nem tente. – alertou o Conde. Meio irritado, meio orgulhoso. – Ela
consegue ser ainda mais teimosa que minha mulher.
O médico soltou o que parecia um impropério em voz baixa enquanto
terminava de ajeitar a mesa de apoio.
- Lady West, peça que os criados tragam toalhas limpas. – deu outra
olhada para o quarto. – Ainda tem muita gente aqui.
- West, Allan, vamos tomar uma bebida. – convidou Lorde Dachmour.
Apesar da preocupação, não recusaram. Todos ali precisavam beber e
certamente beber com o sogro seria muito mais agradável do que o que se
passaria naquela sala. Talvez Harry e Henry fossem mesmo os mais
indicados para a tarefa. Harry era calmo e o marquês deveras centrado,
fariam um bom trabalho. Fosse qual fosse.
- Ele está gemendo de dor? – questionou à esposa que segurava a mão
oposta à do ferimento com empenho.
- Está oscilando. Às vezes consciente e as vezes não. – passou a mão por
seu rosto. – Mas está sentindo muita dor.
O médico ajeitou os óculos por cima do nariz afilado e deu um leve
apertão no braço ferido. Nathan soltou um gemido de dor. Ótimo. Ao menos
ele sentia o braço. Isso era um bom sinal.
- Lady Carffort, pode administrar o opiáceo? – questionou estendendo um
frasco.
Ela o aceitou sem hesitação. Não era a primeira vez que bancava a
enfermeira. Fora assim com o pai dela, como responsável de administrar
cada gota de medicamento que ele precisasse. Na época, era pouco mais que
uma criança e agora mais do que ajudar aquele homem a salvar seu marido,
era uma maneira de se redimir pelos cuidados crus de tempos passados.
- Sinto muito, querido. – disse levantando a cabeça dele com cuidado e
levando a colher à boca. – Eu sei que o gosto é ruim, mas você precisa. Por
mim...
Nathan engoliu o que parecia o pior chá de toda a vida dele,
obedientemente. Seu estômago revolveu, mas o desconforto não estava nem
perto do que sentia com a bala. A sensação era de que centenas de balas
continuavam acertando seu braço sem um segundo de trégua sequer.
- Muito bem... – o médico checou relógio de bolso com calma.
- Muito bem o quê?! – Meri se exaltou com as toalhas brancas nas mãos e
os olhos arregalados. – Tem certeza que o senhor tem diploma de medicina?
- Eu sou formado, Vossa Graça. – comentou abrindo o que parecia um
canivete. – Mas receio ter faltado na aula que ensina a diminuir o tempo de
efeito do ópio.
Meredith abriu a boca para retrucar. Era o que sempre fazia, mas então
Henry olhou para ela e negou com a cabeça. “Pode não parecer, mas ele
sabe o que está fazendo.” Parecia dizer enquanto este rasgava a camisa de
Nathan.
- Milordes. – olhou para os gêmeos Degard visivelmente confuso. Nunca
sabia quem era quem, desistira de tentar adivinhar. – Segurem os braços e as
pernas. – então olhou para as damas. – Não será uma cena agradável.
A condessa cruzou os braços e ergueu as sobrancelhas. Lavínia
permaneceu firme segurando a mão de Nathan. Não sairia dali. Nem
amarrada.
Só que o doutor estava certo. Não foi uma cena agradável. Inclinando a
cabeça próximo de seu ouvido ela murmurou palavras de conforto e
acariciou seus cabelos mesmo quando este se agitava fazendo com que os
cunhados empregassem mais força para sua própria segurança.
Achou que ver o médico tirar a bala com uma pinça que parecia um
instrumento de tortura medieval fosse o pior. Ou vê-lo costurar a pele e
conter o sangramento. Acontece que o pior ainda estava por vir. Quando
Nathan parecia ter sido dominado pelo efeito do ópio quase que totalmente e
o médico já havia arrumado suas coisas para deixar a mansão, suas palavras
a destruíram.
- Eu voltarei amanhã, Lady Carffort. – garantiu com a mão no ombro dela.
– Milady precisará ser forte. Embora a hemorragia não ofereça mais perigo,
ele provavelmente terá dias de febre alta. – olhou para Nathan e engoliu em
seco. – E talvez...
- Talvez? – seus olhos criaram um brilho marejado.
- Talvez ele não recupere os movimentos do braço. A bala estava em uma
região delicada. – percebeu o choque no rosto dela. – Não há como prever
como o corpo irá reagir, mas ele é jovem e forte. – encorajou.
Sim, ele era jovem e forte. Isso era o que preocupava Lavínia. Embora
fosse maravilhoso tê-lo vivo independente das circunstâncias, perder os
movimentos do braço acabaria com ele. Logo ele que era tão ativo.
Tentou conter o choro e não pensar em todas as coisas que ele não poderia
fazer se o pior acontecesse.
- Não vai acontecer. – respondeu decidida. – Eu não vou permitir.
Ninguém naquele quarto ousou duvidar dela. Embora todos soubessem
que não tinha poder algum de mudar a natureza.

...

O doutor estava certo quanto à febre. Os dias passavam e só parecia


piorar. A vigília de Lavínia era insistente, praticamente constante e se
consolava com os breves períodos de lucidez do marido.
Nathan não havia chegado a retomar a consciência, mas cada abertura
ocular, cada movimento e respiração mais forte lhe davam esperança.
Em uma noite a febre finalmente cedeu. Com um suspiro exausto, ela
prendeu em um coque o cabelo oleoso por sua negligência. Não havia tempo
para ela mesma. Cada minuto fora daquele quarto era dedicado à filha e cada
minuto dentro, a ele. Levava cada vez menos tempo no banho e os cochilos
eram cada vez mais breves, intercalados com orações. Suas costas doíam por
passar tanto tempo na mesma poltrona. Mas nada daquilo importava. Só
queria que Nathan acordasse. Só isso.
- Lavínia... – ele chamou com voz fraca.
- Sim, querido. – inclinou-se segurando a mão dele. Os olhos ficando
marejados ao notar que estava consciente. Finalmente. – Estou aqui.
- Quanto tempo eu dormi? – perguntou com o cenho franzido em
incômodo.
- Tempo suficiente para me deixar louca. – foi sua resposta rouca.
Inclinou-se para tocar seus lábios com os dela. Irritada por estarem
ressecados mesmo com o esforço de dar-lhe água para beber e umedecê-los
com um pano. Então, com o coração na boca fez a pergunta que esteve
entalada na garganta todo aquele tempo. Consumindo-a de medo e
ansiedade.
- Consegue mexer o braço, amor?
Lorde Carffort olhou para ela, então para o membro em questão. Então
voltou a esposa. Os olhos azuis intensos e brilhantes o suficiente para saber a
resposta antes mesmo de dizê-la.
- Não.
...
Capítulo 25
O quinto membro

- Vinte e dois, vinte e três, vinte e...


- Já chega. – cortou de forma ríspida, parecendo visivelmente irritado.
Lavínia manteve uma mão no cotovelo do braço esquerdo do marido e
outra em seu pulso. Como em todas as manhãs ela fazia os exercícios
periódicos que envolviam extensão e flexão dos músculos. Três vezes ao dia
como orientado, sentava ao lado do marido e praticava. Cada vez ele parecia
mais impaciente e frustrado.
- Você quer fazer uma pausa, querido? – questionou com paciência.
Seu estresse era compreensível. Já fazia um mês. Um maldito mês que seu
braço era um peso inerte que ele não conseguia mover. Ao menos, ele
conseguia se sentir melhor desde o acidente, mas fora isso...
- Que tal uma pausa permanente? – questionou passando a mão pelo
cabelo em um gesto brusco e raivoso.
- Nathan... – chamou soltando seu braço com delicadeza. – Não está
facilitando as coisas. Precisamos ter paciência.
- Eu tive paciência! – esbravejou com os olhos azuis faiscando. – Eu tive
paciência por um maldito mês inteiro.
- Mas você ouviu o doutor. – o tom dela se tornou mais incisivo. – Essas
coisas levam tempo e não podemos parar com os exercícios. Se não
exercitarmos o braço pode atrofiar e então não voltará a se mexer.
- Você não enxerga o quanto isso é humilhante, Lavínia? – questionou, os
olhos fixos nela. – Um homem adulto sentado ao lado da esposa deixando
que ela movimente seu braço por ser um incapaz?
- Não! Eu realmente não enxergo, Lorde Carffort! – respondeu com o
cenho franzido. – Não é porque se tornou um tolo teimoso que vou desistir
de você.
- De quanto tempo você precisa para enxergar? – soltou um riso sem
humor. – Não vai acontecer. Vamos simplesmente colocar esse braço em
uma tipoia permanentemente e esquecer que ele existe. Será melhor para
todos.
- Eu não vou desistir. – bateu o pé com firmeza no chão.
- Pare de ser tão teimosa. Às vezes temos que aceitar a derrota, pura e
simplesmente.
- Eu não vou desistir de você, Milorde!
- Por quê? – desafiou se sentindo acuado. – Serei menos homem aos seus
olhos com um braço a menos?
A pergunta havia silenciado o mundo de Lady Carffort. Ela não ouvia o
barulho de passos dos criados pela casa, nem o som dos pássaros e das
folhas das árvores se movendo contra o vento. Nada além daquela pergunta
que pairava em seus ouvidos.
Sentindo a garganta fechar ela segurou o rosto dele com as duas mãos e o
virou para ela. Encarou com seriedade aqueles olhos cor de turquesa e tentou
não desabar antes de responder à questão que parecia ser tão importante para
ele quanto era para ela.
- Meu amor e admiração por você não diminuiriam mesmo que perdesse
os quatro membros, meu marido. – o tom de reverência que trazia não dava
margem para dúvida.
Nathan aninhou a cabeça na mão dela, sorveu seu aroma feminino e então
beijou a palma de sua mão com carinho. Ao olhar novamente para ela, Lady
Carffort reconheceu um brilho zombeteiro em seus olhos. Ficou aliviada por
seu humor parecer estar melhorando e a prova de que sua teoria e percepção
estavam corretas veio na forma de uma simples frase.
- Desde que o quinto membro esteja em ordem, não é malandrinha?
Lavínia não conteve a gargalhada impetuosa antes de beijá-lo.
- Safardana. – acusou próximo do ouvido dele.
Nathan passou a beijar seu pescoço com destreza. Era assim. Ela podia ser
determinada e corajosa, mas suas defesas eram mínimas quando ele a tocava.
Só havia ele e o prazer incomensurável que a fazia sentir. Não importava se
aquele braço voltaria a se mover ou não.
- Milorde.
O mordomo chamou fingindo não ter notado a troca de carinho dos dois.
Como se pudesse passar completamente despercebido, sequer ousou olhar na
direção de seus senhores. Aquela tapeçaria de pavão era mesmo muito
fascinante.
- O jornal. – pousou o impresso em uma mesa de apoio e se retirou com
uma reverência breve.
Apesar de não ser o homem da casa, Lavínia era mais fanática pelo jornal
do que Lorde Carffort um dia seria, então, sequer tentava disputar com a
esposa o impresso quando este chegava. Com uma velocidade espantosa ela
passou os olhos pela página de escândalos. Estranho, ela sempre ignorou
aquela parte. Achava completamente desprezível a vida privada das pessoas
render dinheiro, embora não condenasse nenhuma forma de ganhar dinheiro.
Mesmo a de sua amiga Abby.
- Luísa, meu amor... – esta chamou quando viu sua filha passar pelo
corredor.
Muito conveniente. Muito conveniente mesmo. Sua princesinha sempre
sabia onde estar.
- Sim, mamãe. – respondeu, aproximando-se de ambos.
Com os cabelos presos em uma trança e seu vestido verde claro de
musseline, agitando-se graciosamente conforme ela andava.
- Pode, por favor, continuar com os exercícios do seu pai? – questionou
ainda com o olhar no jornal. – Mamãe vai dar uma saidinha.
Lorde Carffort suspirou com resignação. Como diabos ia recusar aqueles
exercícios estapafúrdio, agora, quando sua querida enteada era a responsável
por eles? Teve tempo suficiente para murmurar um “pilantra” para a esposa e
ganhar um sorriso antes que essa saísse.
Lorde Carffort se inclinou e deu um beijo na testa de Luísa, agora sentada
no lugar que sua esposa havia ocupado. Com a língua de fora ela se
esforçava para manejar o braço pesado o melhor que podia. Imitando os
movimentos que observava quase todos os dias. Ansiosa pela companhia dos
pais.
- O senhor sabe onde mamãe foi, papai? – questionou vendo que este
começava a ler o jornal.
- A sua mãe, meu amor, foi procurar encrenca. – concluiu em apenas
algumas linhas do que esta andou lendo.
Sim, ele poderia e provavelmente deveria ir atrás dela. Acontece que, por
experiência própria, ele sabia que nem o próprio diabo tirava uma ideia da
cabeça de Lavínia quando ela a tinha. Além disso, morreria negando, mas
parte dele estava bastante curioso com o que ia resultar da loucura dela.

...

“Prezados leitores,

Há mulheres que realmente não nascem com sorte. Um mês após a morte
de Lorde Petergille, sua viúva se descobriu grávida deste. Muito
provavelmente você deve estar se perguntando, como eu, de onde veio esta
maré de tragédias para a baronesa.
Primeiro o escândalo, depois a viuvez e agora a gravidez que terá que
levar sozinha. Alguém deve ter passado na fila da boa sorte no lugar da
Lady. Façam suas apostas, eu aposto todas as minhas fichas em Lady
Lavínia Carffort.”

...

Sua aparição era realmente ousada, mas isso nunca impediu Lavínia de
fazer o que achava certo. De alguma forma ela soube que tinha que ir até ali.
Não era um apelo de sua consciência ou seu lado de boa samaritana. Era
apenas uma necessidade crua de dar àquela criança a mesma coisa que a dela
teve, a chance de ser amada.
Lady Petergille estava na sala de estar, mais linda do que ela se lembrava.
Os olhos verdes pareciam ter uma calma além do habitual apesar do rosto
sério e ela descansava a mão ternamente sobre a barriga. Os cachos do
cabelo loiro caíam sobre o rosto bem feito. Ela parecia serena, até ver
Lavínia. Então tudo mudou.
- Como ousa vir até a minha casa? – questionou parecendo um tanto
furiosa.
- Por que me deixou entrar se não queria me ver? – questionou com calma
parando no meio da sala.
- Talvez para ter o prazer de te mandar embora. – retrucou com a irritação
que a outra estava disposta a ignorar.
- Se fizer isso, nunca saberá o que eu tenho a dizer.
Atingiu o ponto que pretendia. A curiosidade dela foi afetada e quando se
voltou para Lady Carffort, esta notou algo por baixo de toda aquela raiva.
Ela estava prestes a chorar. Deus! Como a entendia.
- Você veio rir de mim? – a pergunta não tinha o mesmo tom de ódio que
as outras.
- Se me conhecesse saberia que eu não perco tempo com tão pouco. – com
postura impecável ela se juntou a anfitriã no sofá e a encarou com empatia. –
Eu vim lhe aconselhar, Lady Petergille. Vim ajudá-la.
- Ajudar-me? – levantou a voz, mas não se alterou de nenhuma outra
forma. – Você tem um marido e uma filha que a ama. Eu estou sozinha.
Graças a você. Como diabos consegue vir até a minha casa e dizer que quer
me ajudar?
- Eu não sou a vilã e no fundo você sabe disso. – se a ideia fosse intimidá-
la, teria que se esforçar mais que aquilo.
- Você tirou os dois homens que eu amei de mim. – acusou, mas era claro
que nem mesmo ela acreditava nisso.
- Não. – negou com a cabeça, com um sorriso quase maternal. – Você
nunca amou Nathan, não da forma que eu o amo. – não era ninguém para
julgar os sentimentos dos outros, mas aquilo ela podia afirmar. - E
Petergille... Seu homem ainda estaria vivo se não ameaçasse a vida do meu,
mas era isso mesmo que você queria?
A pergunta pairou no ar deixando-o mais denso. Emily engoliu em seco,
manteve o olhar sem foco atrás de Lavínia e mordeu o lábio inferior em
nervosismo. Não parecia confortável com a pergunta. Menos ainda com a
resposta que sabia ser a sincera.
- Eu tive momentos agradáveis com ele. Não posso mentir. Petergille
sabia ser agradável quando queria.
As mãos dela retorceram os laços que adornavam a saia de seu vestido.
Provavelmente algum castigo divino ou terreno a puniria pelo que estava
prestes a dizer. Não se falava mal dos mortos, mas se havia alguém que a
entenderia e não a julgaria, era aquela mulher. Naquele momento estava
diante de uma aliada improvável, de uma amiga ainda mais improvável e da
última chance de ser honesta consigo mesma. Não poderia deixar a chance
passar.
- O problema era que ele quase nunca queria ser agradável. – confessou
com um suspiro trêmulo. – Ele tinha um ciúme doentio de mim e não sei
porque, se nunca me amou. Ainda tenho as marcas das surras que ele me
dava. Em lugares onde ninguém jamais as vê, mas mesmo escondidas eu sei
que elas estão ali. – voltou seu olhar para a jovem ao lado dela. – Eu sei.
Lavínia não disse uma palavra. Somente aninhou as mãos da baronesa
entre as suas, porque havia desejado ter alguém para aninhar as dela anos
atrás. Sim, ela teve Solluin, mas não havia nada mais reconfortante do que
ter uma mulher ao lado que a compreendia tão completamente que era
espantoso. Por isso estava ali.
- Eu me sentia uma pessoa terrível quando ele me contava as atrocidades
que pretendia fazer. Ele me contou que havia subornado o médico para que
sumisse antes do fim do duelo. Tentou me convencer que seríamos mais
felizes sem você e Nathan por perto. Oh! Eu fui tão completamente estúpida!
– àquela altura o choro já vinha para ela sem qualquer pudor e aviso. –
Querendo agradar aquele homem perverso. Achando que se compartilhasse
seus ideais poderíamos ser felizes, mas nunca seríamos felizes. Nunca.
Em silêncio ela aceitou o lenço que Lady Carffort a oferecia. Fungou e
assoou de forma pouco adequada para uma dama e, então, tomou fôlego.
Fosse o que fosse o que tinha dentro de si ela ainda não havia dito tudo.
Havia muito mais a ser dito.
- Quando recebi a notícia da morte dele eu fiquei abalada, mas depois...
Oh meu Deus! – exclamou olhando para o teto. – Eu senti um alívio tão
grande como nunca havia sentido em toda a minha vida. Isso me faz uma
pessoa ruim?
- Não. – respondeu dando tapinhas na mão dela. – Isso só te faz humana.
Você foi vítima de circunstâncias infelizes, assim como a metade das
mulheres e não deve se culpar por isso.
- Eu fui terrível com você. – admitiu olhando-a com um novo olhar. Uma
fascinação que jamais havia nutrido por ninguém antes. – Por que veio aqui?
Por que se importa?
- Porque eu já estive em seu lugar e sei o que está passando. – deu um
sorriso discreto porque temia sua reação se fosse mais espontânea. – E
embora eu não lamente sua viuvez, Lady Petergille, eu sinto por essa
criança. – em um gesto audacioso ela esticou o braço e pousou a mão direita
na barriga que mal dava sinais de gravidez. Não ainda. – Eu sinto por ter de
tê-la sem apoio, mas talvez esses infelizes acontecimentos sejam na verdade
uma grande oportunidade.
Emily, que antes fixava o olhar na mão de Lavínia, voltou seus olhos
arregalados para ela e negou com a cabeça.
- Não vejo como.
- Você é jovem, é rica e bonita. Tem todos os meios para dar a essa criança
o pai que ela merece.
- Bom... – passou o lenço para secar as lágrimas novamente. Com
renovada esperança. – Talvez tenha razão. Não deve haver muitos
empecilhos para uma baronesa viúva e de fortuna de casar. Qualquer um irá
me querer.
- Ah! Mas você não deve querer qualquer um. – aconselhou tocando seus
ombros. – Deve querer alguém que ame essa criança como você ama.
Independente do pai que ela um dia teve. É por ela que eu vim aqui e é por
ela que eu peço que vá a meu baile daqui a duas semanas.
Emily olhou para o convite na mão de Lavínia com hesitação. Por um
momento, imaginou que ela recusaria prontamente, mas quando o “não” não
veio, ela sabia que estava há poucos segundos do sim.

...

- Você tem dez segundos para sair do salão comigo, ou eu vou tirar seu
vestido aqui mesmo, diante dessa multidão.
A ameaça sussurrada no ouvido de Lavínia lhe deu um arrepio que desceu
de sua nuca até lugares completamente indizíveis em público. Claro que
Nathan não pretendia cumprir a promessa na frente de centenas de
convidados. A duquesa, a própria duquesa estava há alguns passos dele.
- Não seja inconveniente, meu marido. – deu uma risadinha quando ele
colocou o corpo escandalosamente próximo de suas costas. – O baile mal
começou e seria rude sairmos... Oh!
Fora só a sensação ou um dos laços que prendiam seu vestido nas costas
havia sido misteriosamente arrancado? Olhando para o marido e
contemplando seu sorriso maroto, percebeu que não tão misteriosamente
assim
- Um... – começou a contar em tom zombeteiro. – Devo continuar?
Bom Deus! Aquele homem acabaria com ela antes de completar um ano
de casados. Ele era terrível, sedutor e dolorosamente atraente. Não conseguia
ficar zangada com ele. Simplesmente não conseguia.
Semanas atrás ele decretou enfaticamente que os exercícios em seu braço
estavam abolidos daquela casa. No mesmo quarto de hora ela havia
decretado que não falaria com ele até retomá-los. No quarto de hora seguinte
os dois estavam na cama com ela gritando escandalosamente o nome dele.
Certamente, aquele homem não tinha limites, mesmo com um membro a
menos. Até porque - como ele gostava de se gabar – o quinto membro nunca
esteve tão ativo.
Quando Lavínia deu por si eles estavam em uma sala escura, um anexo do
salão de baile que lhes dava uma visão privilegiada dele pela janela. Sem
nenhuma hesitação, Nathan voltou à tarefa de desamarrar o vestido dela, que
estava com a visão voltada para o salão.
Estava pronta para questionar como ele podia apenas com uma mão soltar
os laços com aquela velocidade espantosa. Foi quando ela viu.
- Nathan, veja! – anunciou com entusiasmo se colocando na ponta dos
pés.
- Uhum... – concordou evasivamente beijando o pescoço dela.
- Nathan! – censurou e com uma mão levantou o queixo dele para que
visse o que ela viu.
- Já vi. – afirmou despertando um olhar contrariado da esposa.
Não havia visto absolutamente nada. Sequer estava olhando para o lado
certo do salão.
- Então me diga o que você viu. – desafiou com os olhos semicerrados.
Nathan revirou os olhos com impaciência. Então finalmente visualizou ao
que a esposa se referia. Emily parecia radiante nos braços do mais novo
Visconde Fraill. Radiante mesmo e, se cara de bobo fosse uma indicação de
paixão, aquele homem era certamente vítima de uma completamente
avassaladora.
- Parece que além de inteligente, linda e completamente deliciosa, você
ainda é casamenteira.
Lavínia deu uma gargalhada descontrolada e se virou para ele, levando
seus lábios até os dele para um beijo de tirar o fôlego.
- Você tem um coração que não cabe no peito, amor. – Nathan a aninhou
em seus braços. – É a melhor pessoa que conheço.
Lavínia se deixou levar pelo elogio e pelo abraço. Colocou a cabeça no
peito de Nathan e deixou-se ali para ouvir seu coração. Semanas atrás ela
achava que teria uma terrível satisfação ao ver Emily sofrer por todo mal que
havia causado, mas a maior satisfação foi vê-la superar o estrago que
Petergille havia causado. Como havia sido com ela.
Soltou um suspiro fundo sentindo uma mão de Nathan em sua cintura e a
outra no fim de suas costas. Com a mão direita acariciava seu coro cabeludo
e com a esquerda... Esperem... Com a esquerda? Bom Deus misericordioso!
- Querido, você está me abraçando! – disse com os olhos arregalados de
espanto.
- Estou. – subiu uma sobrancelha não entendendo o espanto dela.
- Você está me abraçando, com os dois braços! – tentou ser mais explícita
e esperou o doce momento em que ele compreenderia.
Sim, ele havia jurado que não dava a mínima para aquele braço. Dizia que
isso não mudava quem era por dentro, mas quando percebeu que poderia
movê-lo deu o maior e mais lindo sorriso que Lavínia já tinha visto. Com
uma gargalhada ele a girou no ar e depois a abraçou novamente.
- Que saudade eu senti de abraçar você. – murmurou contra o cabelo dela.
Lavínia percebeu uma lágrima inconveniente rolar por seu rosto. As mãos
deslizando pelas costas dele.
- Podemos dizer que essa foi a noite dos milagres. – acrescentou com um
sorriso. – Meu braço voltou dos mortos e a baronesa fisgou o melhor homem
de Figior.
Lady Carffort subiu o olhar até encontrar aquele desconcertante azul dos
olhos do marido. Com um sorriso franco nos lábios levou as mãos até o rosto
dele.
- Não. – respondeu enfática. – Esse já é meu.

...
Epílogo

- Harry está insuportável. – pontuou Isabelle, mas mesmo com o suspiro


impaciente não escondeu seu carinho e bom humor.
Mesmo antes dos anfitriões aparecerem, a agitação já fervilhava na
Mansão. Isso porque era possível juntar no máximo três Collins – desde que
uma delas não fosse Meredith - e manter a ordem, mas todas as cinco
estavam reunidas na sala de estar. Incluindo a duquesa.
Os homens haviam se juntado no andar de cima para discutir o que quer
que os homens discutiam e Lavínia... Bem, bastava dizer que ela andava
bastante ocupada nos últimos anos.
- É claro que Harry está agitado. – ponderou Cassy, ajeitando as saias do
magnífico vestido fúcsia. – Agora que Nathan teve os gêmeos e está
esperando mais um, ele não é mais o campeão da família.
- Campeão da família? – a palavra soou um tanto estranha para Jenny.
Não se lembrava de nenhum campeonato em que aquela família estava
envolvida. Tão pouco via correlação com qualquer um possível e o fato de
seu irmão ter tido ao todo seis crianças – sete se contasse com Luísa, que
havia assumido como dele. Cinco meninos e uma menina, que eram a
representação do caos em miniatura – segundo o pai carinhosamente dizia.
- Ora, querida, eles sempre competiram para ver quem tinha mais filhos. –
Cassy se explicou com um sorriso perspicaz. – Trata-se de algo estúpido
como a vaidade masculina.
- Eles estão é disputando para ver quem é o mais desavergonhado. –
Meredith e sua habilidade de ser mais direta e desbocada que todas as irmãs
juntas. - Mas não se preocupe Isa, Harry já é um desavergonhado por ter
cinco filhos.
- Mamãe teve cinco filhos.
O comentário da marquesa de Sawch, também conhecida como Cassandra
Degard, fez a até então silenciosa duquesa erguer uma sobrancelha. Sua
linda e encantadora filha havia mesmo sugerido o que parecia que tinha
sugerido? Pelo sorriso maroto em sua direção a resposta era clara. Havia
sim.
- Foi diferente. – Jenny, sempre a mais doce e também ingênua, resolveu
saltar em socorro da mãe – Mamãe teve cinco filhos, mas com dois homens
diferentes.
Era a verdade, claro. Depois de ter quatro doces filhas – em alguns
momentos não tão doces – com o Sr. Collins, casou com Lorde Dachmour e
Nathan havia chego sem aviso. Ela e Edward sequer haviam se precavido
por não acreditarem que aquilo era possível. Ou melhor, ela não acreditava.
Seu marido estava louco de vontade de ter um filho e foi negligente de
propósito.
- Isso não a torna mais desavergonhada?
Lady Dachmour tentou esconder o rosto corado com um olhar ferino para
Meri - que, como as irmãs, se contorcia em risos.
- Uma pena que esteja casada, Meredith Mei, ou iria lhe dar umas
palmadas.
Diante das ameaças completamente sem fundamento – elas não haviam
apanhado uma vez sequer da mãe – a Condessa de West apenas sorriu.
Pronta para retrucar de forma divertida.
- Perdeu sua chance, minha mãe.
- Uma surpresa é Meri ter só dois filhos, sendo casada com West. –
provocou Isabelle.
Lady Dachmour sentiu o sabor doce da vitória ao notar que o foco das
provocações havia se transferido para a que adorava provocar. No entanto,
Meredith estava longe de sentir incômodo, ela simplesmente adorava um
bom combate, ser o centro das atenções e, sobretudo, adorava que
provocassem sua boca para dizer o que pensava. Mais do que seria decente.
- Acontece que meus filhos não são crianças comuns. São arteiros,
inteligentes e precoces e quase nos pegaram em atividades vigorosas mais de
uma vez. – ela ergueu uma sobrancelha como quem diz “aguentem, vocês
cutucaram a onça aqui com uma vareta” – Mais filhos tornariam a atividade
preferida do pai um tanto difícil, então... Paramos no segundo.
- “Atividade preferida do pai”. – Cassy deu um sorriso enviesado para a
irmã. – Como se não fosse a sua.
- Cassy... – a duquesa a advertiu.
- Por Deus, Cassy, não a provoque. – implorou Isa. – Muito em breve ela
estará nos contando todos os detalhes sórdidos e acho que até eu ficaria
chocada.
- Eu não ficaria. – Jenny deu de ombros com coragem. – Espero
absolutamente tudo dessa daí. – indicou a irmã, que lhe era a mais próxima,
com a cabeça.
Meri abriu os lábios, possivelmente com algo nada moderado para dizer.
Por sorte o poder divino interviu e a porta abriu revelando a anfitriã.
Lavínia nunca esteve tão linda. Ela parecia ficar mais bela a cada
gravidez. O rosto estava mais cheio, a barriga redonda e os seios inchados.
Ela era a representação da felicidade maternal. Meredith queria sentar e
pintar aquele quadro.
- Por Deus! Você terá que permitir dessa vez. – choramingou. – Eu não
posso perder esse quadro.
- Nathan já disse que só sobre o cadáver dele. – Isabelle interviu. – Ele diz
que o cheiro de tinta pode fazer mal ao bebê.
- Nathan é paranoico. – a condessa retrucou um tanto sisuda e então deu
um sorriso dando de ombros. – Vou pintá-la em um campo aberto então.
- Não sei se eu valeria algum dinheiro para você, Meri. – comentou a
cunhada com um sorriso enquanto repousava a mão na barriga de oito
meses.
- Ah! Você me renderia muito dinheiro, mas isso seria pela arte.
Cassandra bufou com impaciência. Quantas vezes mais ela ia ter que ouvir
aquela conversa? Quantas vezes Nathan engravidasse a esposa, pelo visto. E
aquela história de “pela arte”? Por favor! Sua irmã amava a arte, mas
adorava ser a pintora mais famosa de Figior ao lado do marido. O prestígio
era o que a alimentava no desjejum, almoço e jantar. Meredith sobreviveria
sem ovos e açúcar, mas a marquesa suspeitava que ela definharia sem a
fama.
- Está deslumbrante. – Lady Dachmour elogiou com um sorriso largo e
orgulhoso.
- Oh Alteza! – deu um sorriso lisonjeado - Se dor nas costas, pés inchados
e humor oscilando significa deslumbrante, então eu estou mesmo.
Mas ela adorava ficar assim. Adorava os pés inchados, o enjoo matinal e
as dores nas costas porque, na verdade, o que ela adorava mesmo era a ideia
de que um pedaço de Nathan estava crescendo dentro dela. Que eles haviam
transformado o amor em uma prova concreta. Ou no caso, na sétima
evidência. Isso se não fossem outros gêmeos – Santo Deus!
- Onde estão as crianças? – perguntou Jenny com ansiedade de ver os
sobrinhos.
- Com Nathan e os rapazes. – Lavínia olhou para a porta e então ergueu
uma sobrancelha. - Devo ficar preocupada?
- Não. Eles são bons pais. – Isabelle garantiu orgulhosa. - Sabem se virar.
Tenho certeza que tudo está sob controle.

...

Aquilo estava o caos. Era naqueles momentos que Nathan questionava


onde estava com a cabeça quando decidiu procriar com tanto empenho. Bom
Deus! Eles eram terríveis, mas eram também terrivelmente amados.
Aquela sala de jogos parecia tudo, menos um lugar calmo que um homem
usaria para relaxar. Exceto por sua estrutura e pela presença de seis homens
– ele, seu pai, Allan, os gêmeos Degard e West, todos visivelmente chocados
– não havia nada que sequer remetesse a sua função original.
Luísa – agora com seus vinte anos - era a única de sua prole que não
estava espalhando o terror e sim lendo calmamente um livro em uma das
poltronas. Eram os irmãos de Luísa que o preocupavam. O que só podia
significar que o gosto pela desordem vinha do lado paterno. Era duplamente
culpado.
Os dois mais velhos haviam se munido dos tacos de bilhar e os
transformado em espadas que batiam uma contra a outra em ritmo frenético.
Um deles havia subido na mesa de baralho só de meias e estava brincando de
escorregar e dançar nas cartas espalhadas. Dois acharam divertido
arremessar as bolas de bilhar. Sua caçula de quatro anos estava aos berros
porque uma das bolas havia acertado sua cabeça. E o pai... Não fazia a
menor ideia de quando e como a situação fugira do controle.
Nathan só queria que a esposa chegasse e dissesse as cinco palavras
mágicas.
- Os. Sete. Em. Fila. Já! – a voz imperial de Lavínia soou na porta firme e
decidida.
As crianças entraram em formação. Do mais velho para o mais novo,
começando por Luísa que continuava com o livro aberto. Uma leitora voraz.
A única ali com a consciência tranquila.
- Bom Deus! Quase me junto a eles por impulso. – comentou West em
tom baixo, com os olhos arregalados para o cunhado.
- É uma megera. – explicou Nathan com um sorriso provocativo para a
esposa.
Esta ergueu uma sobrancelha e deu um leve sorriso como prova de que
havia ouvido. Cada palavra. Só que o sorriso não durou muito e nem podia.
Ela tinha uma missão importante no momento que envolvia seis criaturinhas
arteiras.
Todos receberam um olhar de advertência conforme a mãe passava por
eles. Ajeitou o lenço do primeiro. Para o segundo ela estendeu a mão e este
contrariado lhe entregou o taco de bilhar. Ao olhar o terceiro de cima a
baixo, ergueu uma sobrancelha ao constatar a ausência de sapatos. O quarto
sofreu uma reviravolta na lapela de seu casaco amarrotado, que foi
arrumado. O quinto, por sua vez foi obrigado a entregar as duas bolas de
bilhar ainda em sua posse, diante do olhar da mãe deu um sorriso aberto. A
caçula foi inspecionada e parecia ilesa.
Lady Carffort deu um suspiro satisfeito.
- Agora todos vão ensaiar um pedido de desculpas para seu avô e seus
tios. – três boquinhas se abriram prontas para protestar, até ela erguer
novamente a sobrancelha. – Enquanto acompanham nossos convidados até a
sala sem uma travessura sequer. Se não...
- Se não? – indagou o mais velho e mais ousado.
- Se não teremos chá para todos no chá da tarde.
Os filhos soltaram um “ugh” coletivo com as línguas de fora. Os rostos
demonstrando a mais completa aversão. Sem precisar de maiores
encorajamentos, viu um por um sair. Misericordiosamente silenciosos. Até
ela se ver sozinha com o marido.
Nathan abriu um sorriso diante do rosto de repreensão da esposa. O
mesmo rosto que ela fez para os filhos. Em resumo, se sentiu uma criança,
mas uma que era absurdamente feliz e amada.
- Chá? – se aproximou dela com aquele jeito de andar despreocupado e
absolutamente sedutor. – Não acha muita crueldade?
- Não é crueldade. É disciplina meu marido. – defendeu-se ao colocar os
objetos das artes de seus filhos na mesa de bilhar. Onde era seu lugar. –
Conceito que, pelo visto, o senhor não conhece.
- Eu? – indagou inocente. – Mas que calúnia!
- Calúnia, é?
Apoiou as mãos na mesa de bilhar e soltou um suspiro fundo. Por um
momento o coração de Nathan apertou pensando que estava passando mal,
mas então... Lavínia explodiu em uma alta gargalhada. Uma que estava
segurando desde que entrou.
- Por Deus! Eles são tão arteiros, Nathan. E aquela... Aquela dança na
mesa de baralho. – secou as lágrimas que o riso criava. – Oh! Eu os amo
tanto.
- E eu amo você. – ele sussurrou próximo do ouvido dela e a abraçou
pousando as mãos em sua barriga. – Vocês.
- Também amamos você. – agora era mais que fácil para ela dizer. – Mas
eu juro Nathan, esse é o último. Já chega querido. Temos filhos o suficiente.
Você não vai me persuadir a...
Sem aviso Nathan cobriu sua boca com um beijo. Um beijo de esquentar o
sangue nas veias, mudar a atmosfera do ambiente e fazer ambos os corações
baterem no mesmo ritmo. No ritmo que só dois amantes apaixonados podem
vivenciar.
Depois de um ano Lavínia estava grávida novamente de uma menina que
batizou de Helena em homenagem a duquesa. Depois de meses de
insistência Meredith eternizou a última gravidez da cunhada em um quadro
que chamou de “O florescer de Helena”.

...
Agradecimentos

Devo confessar que temi que esse momento chegasse, embora esteja
imensamente grata a todos que me acompanharam até aqui. Ainda que esteja
longe de ser o último livro de minha carreira – Que será bem longa, se Deus
me permitir! – o último livro da série as Collins, me deixa com o coração
apertado.
É uma mistura de sentimento de perda com dever cumprido. Foi um
privilégio escrever sobre essa família incrível para vocês e estou com os
dedinhos cruzados para que meus próximos livros os encantem tanto quanto.
Deixo aqui meu agradecimento a minha família e amigos que me
apoiaram durante todo o processo de escrita e publicação. Vocês foram os
primeiros a dizer que era sim, possível.
Com o risco de parecer muito repetitiva, ao meu marido e parceiro de
jornada por me acompanhar em cada tombo e conquista. Incluindo, por me
acolher com o luto pelo fim dessa série.
Para Tomas, meu gato, que se tornou minha companhia constante
enquanto escrevo meus livros, seja ronronando no meu colo ou querendo
sapatear no teclado. Você foi um anjinho que minha finada gatinha Marie me
enviou para alegrar meus dias e claro, para me tirar da cama para trabalhar
pontualmente as 7hs da manhã, mesmo aos domingos e feriados. Afinal,
você quer garantir o seu sachê – não posso julgá-lo.
Aos meus parceiros e colegas de profissão, obrigada por encherem meus
dias de orgulho.
Aos meus leitores, que me mandam mensagens de surtos, pedidos de
spoiler ou simplesmente para me dar um feedback dos livros, muito obrigada
por tudo!
Talvez eu ainda escreva algo sobre as Collins, mas considero “Eu aceito”
um final digno para uma série que sempre terá um lugar especial em meu
coração. Mas não se enganem, terão que me aturar por muitos anos ainda.
Série “As Collins”

Títulos principais:

Sussurros de uma paixão - As Collins I


Perdoe-me, mas o amo - As Collins II
Da vingança ao desejo - As Collins III
Para sempre seu - As Collins IV
Uma trégua para o amor - As Collins V
Eu aceito - As Collins VI

Outras obras da série

O desabrochar de Alice - Um Spin-Off de "As Collins"

Contos

Um presente inusitado - Especial de natal


O prometido - Especial dia das mães
As Cores do amor
Você é meu lar
Sobre o autor
Jéssica Malvestuto nasceu e mora atualmente em São Paulo capital com
seu marido e seu gato Tomas, batizado em homenagem às Collins.
Nutricionista formada pela USP, pós graduada em psicologia, sempre foi
apaixonada por romances de época e contos de fada. Até que depois de tanto
lê-los resolveu criar suas próprias histórias.
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