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Rendido pela Tentação

Lordes Perdidos de Pembrook ― 3

Lorraine Heath
SINOPSE

Três jovens herdeiros, presos por um tio sem escrúpulos,


fugiram para o mar, para as ruas, para uma longa batalha,
aguardando o dia em que retornariam para recuperar seu
direito de nascença.
Lorde Rafe Easton pode ser de sangue nobre, mas a
sobrevivência ensinou-o a confiar apenas em si mesmo e a
não amar ninguém. No entanto, quando ele coloca os olhos na
senhorita Evelyn Chambers, a filha ilegítima de um conde, ele
está decidido a tê-la, apenas como sua amante.
Após a morte de seu pai, Evelyn Chambers nunca
imaginou que seria vendida pelo melhor preço, mas as
circunstâncias lhe dão pouca escolha, exceto aceitar a
proposta indecente do senhor Rafe, ele é tão rico, quanto
implacável. No entanto, sua frieza desmente uma profunda
paixão e contém segredos ainda mais profundos. Se ela deve
ser dele, Evelyn pretende descobrir tudo o que o Senhor de
Pembrook está escondendo. Mas as descobertas sombrias
ameaçam destruí-los, até que um amor inesperado, guie o
Lorde perdido para casa.
Este livro está dedicado em nome de Sharon R. para
Kandy T.
Sua generosidade, seus sorrisos e o presente de sua
amizade enriqueceu minha vida. Obrigada por poder contar
sempre contigo.
Prólogo

Yorkshire
Inverno de 1854

Lorde Rafe Easton aguardava imóvel.


Sentado sobre uma pedra no centro das ruínas da
abadia, mostrava-se indiferente à incômoda dureza da rocha.
O vento gélido uivava a seu redor e os flocos de neve caíam
com suavidade do céu. Mas ele continuava imóvel. Não
permitia que nenhuma lembrança de tempos mais felizes
povoasse sua mente. Não aguardava espectador a volta de
seus irmãos. Negava-se a isso. Simplesmente esperava a
aparição.
Fazia exatamente dez anos que o haviam abandonado.
Como se ele não fosse mais que um despojo, como se não
fossem irmãos, como se por suas veias não corresse o mesmo
sangue. Eles o abandonaram com a promessa de reunirem-se
de novo nessa mesma noite com a finalidade de poderem se
vingar de seu tio, que tentara machucá-los, o mesmo que
ansiava possuir o ducado de Keswick. O mesmo que havia
planejado o assassinato deles.
Ao longo dos anos transcorridos Rafe tivera inúmeras
oportunidades para levar a cabo, ele, sozinho, a vingança.
Escondido nas sombras, espionara lorde David enquanto ele
se divertia e desfrutava dos frutos de seu maquiavélico plano.
Deveria sentir uma ira desmedida contra aquele imbecil, e,
entretanto, eram seus irmãos o objeto de sua fúria.
Sobretudo Tristan, que o chamara de bebê. E Sebastian,
por não tentar sequer consolá-lo, assegurar-lhe que tudo
sairia bem.
Rafe nem havia contado dez anos e já havia se sentido
aterrorizado além do imaginável. Seus irmãos tinham quatro
anos mais, os malditos gêmeos, sempre conscientes do
pensamento um do outro, dos temores um do outro, das
ambições um do outro. Não tornara a ter notícias de nenhum
deles desde que o abandonaram no orfanato antes de
partirem, juntos, rapidamente. Certamente ele havia chorado,
suplicado, gritado…
Recordando o momento, envergonhava-se de seu
comportamento naquela horrível noite. Desde aquele dia ele
suprimira toda lágrima, toda emoção do coração, até deixar
de sentir.
O intumescimento que lhe atravessava o corpo, até
igualar-se com o de sua alma, resultava-lhe reconfortante, e
não se incomodou em estender as mãos enluvadas para as
chamas da pequena fogueira. Nem sequer lhe ocorria a
possibilidade de que seus irmãos não estivessem ali, que
tivessem morrido. Precisavam ver como ele se dera bem na
vida. Não precisara deles para nada. No transcurso dos anos,
não precisara da ajuda deles para sobreviver. E, certamente,
não precisava nada deles naquele momento.
No orfanato a comida era escassa e os castigos
abundantes, sobretudo para um menino um pouco torpe.
Certo que por aquela época ele era um pouco gorducho.
Adorava os doces, e continuavam sendo seu vício secreto,
embora não o praticava com muita frequência. Jamais
voltaria a ser lento. Não poucos homens, comprovaram o quão
rápido ele podia ser… e o quão mortífero.
Depois de escapar do orfanato, ele conseguira chegar a
Londres. Ali, Havia vivido na rua, rebuscando entre o lixo, até
que conhecera um tipo que conhecia até os mais obscuros
segredos da cidade. Segredos que, nesse momento,
pertenciam a ele.
O fogo se converteu virtualmente em brasas coincidindo
com o amanhecer, e Rafe sentia o frio lhe impregnar até os
ossos. Ao fim decidiu levantar e cruzar as ruínas até chegar
aos restos de uma janela.
Não compareceram ao encontro.
Ele deveria ter imaginado. Negou a desilusão que sentia
e que ameaçava transformar-se em ira e dor, e em algo muito
parecido à solidão. Eles já não significavam nada para ele.
Não permitiria que lhe significassem algo.
De todo coração, esperava que estivessem apodrecendo
no inferno.
O rosto mudado em uma estóica máscara, afastou-se da
janela. O vento lançava a bainha da capa contra suas pernas.
Com fúria, ajustou as luvas de couro fino, apesar de que já
estavam perfeitamente encaixadas.
— Esperarei até que apareçam.
— Durante quanto tempo, senhor? — Perguntou o lacaio
do canto em que havia montado guarda durante toda a noite.
Quanto tempo? Quanto tempo seria bastante tempo?
— Até que apareçam — repetiu ele.
— E se não aparecerem?
Rafe não podia contemplar essa possibilidade. Negava-se
a considerar que pudessem estar mortos, que o tivessem
deixado total e completamente sozinho. Que lhe fossem negar
o prazer final de lhes dizer que já não precisa deles, que para
ele não eram nada. Lixo, a mesma coisa que ele havia sido
para eles em uma ocasião.
— Virão.
Rafe se encaminhou para o cavalo, sobre o qual montou
de um ágil salto. Lançando o animal a galope estendido, o
rítmico de barulho dos cascos contra o chão fazia vibrar as
palavras em sua mente:
“Está sozinho. Está sozinho. Sempre esteve sozinho.
Merece estar sozinho. Por isso o abandonaram”.
Capítulo 1

Londres Abril de 1859

“Por favor não vá. Por favor, não me deixe”.


Evelyn Chambers se limitou a pensar. Não pronunciou
as palavras. Fazê-lo teria sido extremamente cruel. Seu pai
levava tempo agonizando entre terríveis dores, até ter se
convertido em uma sombra do robusto e alegre conde de
Wortham a quem ela amava com loucura. Sentada em uma
cadeira junto à cama, segurou-lhe a pálida mão, muito fraca
para poder apertar a dela. De modo que foi ela quem apertou
em um intento de lhe explicar com o gesto, o que não era
capaz de pronunciar com palavras: “está tudo bem, pode
partir”.
Porque quando ele o fizesse, não sabia o que seria dela.
Decidida, ignorou a horrível realidade, pois não queria que a
partida de seu pai resultasse mais difícil ainda. Entretanto, o
certo era que não fazia nem idéia de como sobreviveria sem
ele. Precisaria enfrentar o incerto futuro da melhor maneira
possível. De momento, sua única preocupação era levar
consolo a esse homem.
Fazia pouco mais que olhá-la fixamente durante horas.
Já era bem entrada a noite e a agitação da cidade se acalmou.
Unicamente o mais veterano dos serventes vigiava junto à
porta, esperando ordens. Um abajur ardia sobre a mesinha de
noite e iluminava o rosto cítrico, os olhos afundados.
Com uma lenta piscada, girou a cabeça ligeiramente,
centrando sua atenção em algum ponto junto aos pés da
cama.
— Geoffrey?
Foi apenas um sussurro, rouco e brusco, como se tivesse
necessitado de todas suas forças para formular as palavras.
— Sim, pai.
Ali estava seu filho, apoiado contra o poste da cama, os
braços cruzados sobre o peito, o espetacularmente atraente
rosto desprovido de toda emoção. Poderia ter se passado por
uma das bonecas de porcelana que o conde dera para Evelyn
quando menina.
— Prometa-me… que… cuidará dela.
— Dou minha palavra de que ela terá tudo o que merece.
Por algum motivo que não soube decifrar, um calafrio
percorreu a coluna de Evelyn. Geoffrey Litton, o visconde
Litton, nunca se mostrara cruel com ela, mas tampouco
amável. Em geral se limitava a ignorá-la. Era uma lástima que
se conhecessem tão pouco visto que muito em breve teriam
somente um ao outro.
O conde assentiu uma vez antes de sorrir fracamente
para sua filha. Seus olhos já não brilhavam com o habitual
orgulho e alegria cada vez que a olhava. Simplesmente
parecia tremendamente cansado.
— É tão formosa… como sua mãe.
— Logo estará com ela — as lágrimas ardiam nos olhos
de Evelyn e ameaçavam rolar por suas bochechas. — Ela o
está esperando. Sabe, não é verdade?
— É a única coisa que faz com que abandonar você não
resulte tão doloroso… vê-la de novo — o olhar do conde se
fixou na parte superior do dossel e o sorriso se adoçou
enquanto um olhar de esperança tingia seus olhos cor violeta,
os mesmos olhos que sua filha herdara. — Como ela me fazia
rir. Esse é o segredo do amor, Evelyn. A risada. Não se
esqueça.
As palavras pareceram tê-lo feito recuperar as forças e
ela pensou que possivelmente o médico se equivocara, que o
final não chegaria naquela mesma noite. Não podia lhe
explicar o muito que aquilo significava para ela. Ele teria
estado em seu direito de fingir que não havia nenhuma filha.
Mas ao contrário ele a fizera se sentir como uma princesa.
— Recordarei cada uma de suas palavras, cada sorriso
que me dedicou, cada risada compartilhada, tudo sobre o
senhor. Amo-o muitíssimo, papai.
— Você sempre foi a luz de meus olhos, — o olhar
carregado de cansaço pousou novamente nela.
— E você a minha.
E de repente a luz se extinguiu. Um segundo estava ali e
no seguinte já não.
— Papai? — Evelyn elevou a mão de seu pai aos lábios,
permitindo as lágrimas que estivera contendo para não o
alterar, queimassem silenciosamente suas bochechas.
Sobre o peito sentia a sensação de uma pesada pedra
esmagando-a.
— Retire-se para seus aposentos, Evelyn.
Ela elevou bruscamente a cabeça e se voltou para
Geoffrey. Seu irmão não havia movido um músculo.
Apresentava o mesmo aspecto de sempre, como se nada
tivesse acontecido. Como se a morte não lhes tivesse feito
uma visita, como se suas vidas não tivessem mudado de
repente, para pior. O relógio sobre o suporte da lareira
continuou com seu tic...tac. Alguém deveria detê-lo. Todos os
relógios deveriam parar. De repente, de um modo irracional,
era muito importante que os malditos relógios detivessem seu
infernal tic...tac.
— Retire-se para seus aposentos — repetiu ele com uma
voz desprovida de toda emoção, — e espere que eu vá buscá-
la.
— Eu gostaria de ajudar a prepará-lo, — lavá-lo, vesti-lo
com suas melhores roupas, pentear seus cabelos, devolver-lhe
na morte a dignidade que a enfermidade havia arrebatado
durante os últimos dias de sua vida.
— Os serventes se ocuparão disso.
— Então eu gostaria de um momento mais com…
— Não.
— Geoffrey…
— Para você, a partir de agora sou Wortham, e você fará
o que eu ordenar. Se não se dirigir voluntariamente a seus
aposentos, farei que alguém a arraste até lá.
Evelyn quis perguntar por que ele se mostrava tão hostil,
perguntar o que ela fizera para ganhar tanta antipatia
naquele desolador instante, mas já conhecia a resposta. Ela
havia nascido.
Olhou de novo para seu pai, tão pálido, tão pequeno, tão
frágil. Sua mão descansava na dela. Soltando-a, levantou-se e
estudou os traços tranqüilos. Quase não o reconhecia. Mas
esperava que sua mãe sim o fizesse.
— Evelyn, está pondo a prova minha paciência.
Com um diminuto pingo de rebeldia, ela atrasou sua
saída, decidida a desfrutar dos poucos segundos que pedira a
seu irmão. Deslizou os dedos pelos grisalhos cabelos de seu
pai e se inclinou para beijar as rugas que, há pouco,
sulcavam sua fronte.
— Adeus, pai. Descanse em paz.
“Duvido muito que eu consiga agora que você já não
está. Você foi meu porto seguro e, de repente, sinto-me
jogada, à deriva, no mar”.

Passou uma semana. Evelyn logo havia descoberto que


abandonar seus aposentos não era uma opção. Seu irmão a
encerrara com chave.
Não gritou, não chorou, nem sequer golpeou a maldita
porta de madeira com os punhos, nem a chutou, por mais
que gostasse de fazê-lo. Manteve sua dignidade. Limitou-se a
sentar e esperar, olhar pela janela para o precioso jardim que
continuava florescendo. Não deveria estar coberto por uma
lona negra? Resultava quase desrespeitoso vê-lo tão colorido.
Por outro lado, supôs, aquilo demonstrava que a vida seguia.
As lágrimas secavam e os corações saravam. As coisas jamais
voltariam a ser iguais, mas aquilo não significava que
algumas não pudessem ser boas.
Geoffrey prometera cuidar dela. Evelyn nem sequer
estava preocupada, pois as promessas não podiam ser
quebradas, sobretudo as que eram feitas no leito de morte de
uma pessoa. Apesar do fato de que seu irmão não parecia
sentir o menor apreço por ela, ele se ocuparia do seu bem-
estar.
E certamente não pretendia fazê-lo, mantendo-a
prisioneira o resto de sua vida. Possivelmente ele só queria
evitar que ela testemunhasse seu luto. Era um homem muito
orgulhoso e reservado. Igual a mãe dele, que nunca mostrava
seus sentimentos.
Hazel, a donzela, ocupava-se de lhe fazer chegar à
comida, mas quase nem falava. Sim, informou a sua senhora
de que o conde havia sido enterrado. Ela desejou que o
herdeiro lhe tivesse permitido vê-lo uma última vez. Que dano
ela poderia ter feito?
Entretanto, perdoou-lhe sua falta de consideração
porque sabia quão difícil devia resultar enterrar a seu pai,
vestir o manto de conde, e encontrar-se a cargo do bem-estar
de sua irmã, assim como de todas as propriedades. Além
disso, com essa falta de consideração, ele lhe fizera um
imenso favor, pois lhe permitira recriar as lembranças de seu
pai vivo, em vez de recordar-se dele morto e metido em um
caixão. Para ela, ele sempre permaneceria vívido e vibrante.
Sempre se recordaria dele lançando-a pelos ares, rindo até as
gargalhadas, tomando-a pela mão. Ajoelhado diante dela
depois da morte de sua mãe, assegurando-lhe que tudo ficaria
bem. Naquele momento ela o amara mais do que acreditava
ser possível amar a alguém.
A primeira hora da tarde do sétimo dia, ela ouviu a chave
girar na fechadura. Muito cedo para o chá. Evelyn se levantou
da cadeira estofada em veludo rosa e viu Geoffrey entrar na
habitação onde preponderavam as rendas e os babados rosas.
Diferente dela, seu irmão não parecia ter perdido peso
durante o luto. Os olhos cinzentos não estavam rodeados de
uma sombra de dor. Os cabelos loiros, penteados para trás,
luziam impecáveis. Usava uma jaqueta negra, colete e calças,
tudo perfeitamente engomado. A camisa e o lenço brancos,
imaculados. Unicamente o bracelete negro evidenciava que ele
havia perdido um membro de sua família.
— Esta noite convidei alguns amigos — Geoffrey se
dirigiu ao armário de sua irmã, abriu-o e começou a remexer
entre os vestidos como se fossem seus. — Espero que os
receba como corresponde.
— Estamos de luto, — recordou-lhe ela, horrorizada ao
ver como ele se comportava, como se não tivessem sofrido
uma recente perda.
Seu irmão escolheu um vestido de seda vermelha e o
sustentou no alto enquanto o inspecionava. Evelyn quis
arrancá-lo de suas mãos. Esse homem não podia entrar sem
mais em seus aposentos e começar a manusear suas coisas.
Nem sequer sendo o novo conde.
— Este deve servir.
Jogou o vestido com desdém sobre a cama antes de se
voltar para a porta.
— Esteja preparada às nove.
Espantada diante da atitude de seu irmão, Evelyn ajeitou
os ombros.
— Geoffrey, não vou me fazer de anfitriã — ela assegurou
com a voz mais firme de que foi capaz. O conde se deteve
bruscamente, embora não se voltou. O olhar permanecia fixo
no corredor.
— Já lhe disse isso, a partir de agora, para você, sou
Wortham. Não volte a cometer o mesmo engano.
— Não entendo por que se comporta tão…
— Tão o quê? — Ele se voltou bruscamente, oferecendo-
lhe a ira que obscurecia seu olhar, a rigidez da mandíbula.
Evelyn necessitou de todo seu controle para não dar um
passo atrás, para não mostrar quão assustada ela estava.
— É a bastarda dele. Ele a trouxe para esta casa, diante
da minha mãe, e alardeou amar a outra mulher. Você
acredita que ela morreu tão jovem por culpa de uma
enfermidade? Não, morreu porque ele lhe rompeu o coração.
Você é o constante aviso do muito que ela sofreu. Do que eu
sofri. Ele tampouco me amava. Jamais, nenhuma só vez me
disse que me amava. Entretanto a cobria de doces palavras,
enjoativas como o mel.
O coração de Evelyn se encolheu diante da dor de seu
irmão. Instintivamente deu um passo para ele antes de
compreender, pela ira que destilavam seus olhos, que seu
contato só pioraria tudo. Portanto se limitou a carregar suas
palavras de toda a empatia de que foi capaz.
— Sinto muitíssimo tudo o que tenha podido sofrer por
culpa da falta de consideração dele.
— Não quero suas desculpas, nem sua simpatia. Dei
minha palavra de que me ocuparia de você. E, o primeiro
passo para fazê-lo é apresentá-la a alguns lordes. Esta noite.
De modo que, por favor, arrume-se um pouco. Mostre-se
encantadora. Flerte. Que vejam que é feita de um material
resistente, embora esteja de luto. Convença-os de que seria
uma companheira aceitável.
— Tem intenção de me casar tão cedo, embora eu
continue de luto? Isso não é apropriado.
— Apropriado? Minha querida menina, considera-se
apropriada. Não acredito que a levem em conta. Tente ser um
pouco pormenorizada. Se não o fizer por mim, ao menos faça
pelo papai. Se ele puder nos ver lá de cima, estará encantado
de ver que nunca lhe faltará nada.
E sem mais, o conde saiu da habitação e fechou a porta
com uma batida. A seguir se ouviu a chave girar na
fechadura. Evelyn se deixou cair na cadeira. Doía-lhe o peito,
e a garganta estava tão obstruída por um nó de lágrimas que
pensou que se afogaria. Havia vivido uma boa vida, mimada e
bem criada. Era muito consciente de que nem todos os
bastardos tiveram a sorte de serem tratados com o carinho e
a amabilidade que seu pai a havia tratado.
No fundo não podia culpar Geoffrey, ela ainda não era
capaz de pensar nele como Wortham, aquele nome pertencia
a seu pai, e ele queria desfazer-se da carga que supunha
ocupar-se dela. Logo ele procuraria sua própria esposa e o
melhor era casar à filha de seu pai, primeiro, e assim
desfazer-se dela. Evelyn suspeitava que, assim que ela tivesse
ido, demoraria a voltar a vê-lo, se é que o veria alguma vez.
Em uma coisa ela devia lhe dar a razão. Ela não era
apropriada. Não celebrara seu debut, não desfrutara da
temporada de bailes e, certamente, não fora apresentada à
rainha. Jamais comparecera a um baile, embora
frequentemente houvesse fantasiado sobre isso e sobre
conquistar um lorde atraente. Entretanto, a falta de vida
social tampouco a havia entristecido, pois seu pai sempre
conseguira fazê-la esquecer.
Mas nesse momento era Geoffrey quem carregava sobre
seus ombros o peso da falta de lugar dela, na sociedade. Ao
menos não manifestava desejos de entregá-la a algum plebeu,
um comerciante, um lojista ou mesmo um servente. Pretendia
encontrar um lorde para ela. Tentava lhe assegurar aquilo
que seu pai não havia conseguido: um lugar na sociedade.
Certo que o fazia muito cedo, mas nem por isso devia
deixar de agradecer. Não se via capaz de flertar aquela noite,
mas sim, de mostrar-se encantadora.
Para honrar a memória de seu pai, o muito que ele a
amara, ajudaria Geoffrey com tudo que fosse possível para
conseguir um bom marido.
Capítulo 2

O convite lhe havia chegado por causa de uma dívida.


Uma dívida que devia a ele. Sempre lhe deviam, enquanto ele
não devia nada a ninguém. Nem amizade, nem lealdade, nem
amabilidade. E, certamente, nem um centavo da fortuna
ganha com seu esforço.
Mas o conde de Wortham, um homem sem muita valia
na opinião de Rafe Easton, devia-lhe muito dinheiro, e por
isso lhe era permitida a entrada na magnífica biblioteca do
conde. Perguntou-se quanto tempo passaria antes de que ela
estivesse desprovida das magníficas posses do anterior
proprietário.
Não deixara grande coisa para seu filho, e o pouco que
deixara havia desaparecido rapidamente no clube de Rafe.
O homem queria uma ampliação de seu crédito e por
isso fingia, ao menos por uma noite, ter amizade com o dono
do clube Rakehell.
Enquanto bebia um excepcional uísque que o conde sem
dúvida logo não poderia permitir-se, Rafe se sentou com
insolência em uma cadeira junto à lareira enquanto os outros
lordes alternavam, risos, conversas e bebiam em excesso.
Estavam todos bastante excitados. A ansiedade e antecipação
sobrevoava a estadia.
O jovem conde possuía uma irmã, embora ele não a
reconhecesse como tal. Na realidade era a filha de seu pai,
nascida de uma relação ilegítima. Mas ele havia prometido ao
ancião, em seu leito de morte, que cuidaria dela e disso se
tratava aquela noite.
De encontrar a alguém disposto a encarregar-se da
garota.
Wortham jurava que ela era virgem, o que havia atraído
não poucos lordes, enquanto outros desculparam sua
ausência. Rafe viera sem interesses. Ter amantes não era o
seu caso, pois elas tinham a mania de se grudar, pedir
presentes, levar pelo caminho da felicidade até que se
aborreciam da cama em que dormiam e começavam a
procurar outra.
Ele fugia de tudo o que cheirava a permanente porque
algo perdurável ou lhe era tirada ou o abandonava. Nem
sequer se orgulhava de seu salão de jogos. Não era mais que
um meio para encher seus bolsos de moedas. Se o perdesse,
partiria sem olhar para trás, sem se arrepender. Em sua vida
não possuía nada que significasse algo para ele, que pudesse
lhe causar a menor dor se o perdesse. Suas emoções estavam
perfeitamente controladas, e assim gostava que fosse. Cada
decisão que tomava se apoiava em frios cálculos.
E naquela noite estava ali para ver como os lordes faziam
ridículo para chamar a atenção da dama, para avaliar suas
debilidades e para descobrir algum meio para explorá-los.
Ao que parecia, seus irmãos também haviam sido
convidados. Uma perda de tempo. Ambos estavam casados e
eram asquerosamente devotos de suas esposas. Não os
imaginava sendo infiéis. Claro que, na realidade o que ele
sabia de seus irmãos?
Ao fim eles haviam retornado a Inglaterra, dois anos
depois do prometido. Tristan alguns poucos meses antes que
Sebastian. O lacaio de Rafe havia permanecido em seu posto e
se assegurou de que chegassem até o salão de jogos. A
recepção que lhes ofereceu não fora além de um gole de
uísque. Tinha-lhes proporcionado comida e alojamento, até
que Sebastian recuperasse o ducado. Depois daquilo, apenas
se avistaram.
Por escolha própria. Haviam-no convidado em
numerosas ocasiões para jantar, para passar temporadas no
campo, e para o Natal. Mas ele sempre recusava os convites.
Não precisava que eles enchessem sua vida. Gostava das
coisas tal e como eram. Era dono de sua pessoa, responsável
unicamente por si próprio.
De algum ponto do corredor se ouviu um relógio marcar
as nove. As conversações cessaram. Os lordes permaneceram
imóveis, olhando fixamente à porta. Bebendo o uísque em
goles, Rafe viu com os olhos entreabertos a porta ser aberta.
Viu uma sombra vermelha e depois…
Esteve a ponto de engasgar-se com a bebida enquanto
lutava com todas suas forças por não mostrar nenhuma
reação.
E de repente compreendeu por que Adão se lançou de
cabeça ao inferno ao se ver cara a cara com a tentação de
Eva. A irmã de Wortham era a criatura mais deliciosa que ele
jamais vira. Seus cabelos eram de uma cor que rivalizava com
o brilho do sol. Estavam recolhidos, revelando um esbelto
pescoço que terminava em ombros de marfim que pediam a
gritos que um homem os convertesse em seu refúgio. Não era
nem alta, nem baixa, mas de estatura média. Rafe não estava
seguro de onde ela lhe chegaria. Possivelmente nos ombros.
Não era especialmente voluptuosa, mas possuía uma
elegância que chamava a atenção e falava de águas calmas
nas quais um homem poderia muito bem se afogar se
decidisse explorar suas profundidades.
O que não era seu caso. Ele se contentava apreciando a
superfície. Proporcionava-lhe toda a informação que
necessitava, e que ele queria.
A jovem olhava a seu redor, confusa, o sorriso inseguro,
até que Wortham finalmente atravessou o ambiente para
situar-se ao lado dela, embora não mostrasse a sensação de
estar com ela. Não podia haver duas pessoas mais díspares.
Wortham estava rígido, enquanto ela guardava a compostura
sem deixar de destilar um toque de doçura. Despertava o
desejo de tocá-la, abraçá-la e consolá-la. Rafe sentiu um
calafrio ao ser consciente disso.
— Cavalheiros, a senhorita Evelyn Chambers.
— Milordes, — a jovem fez uma pequena e elegante
reverência.
Rafe estava esperando uma voz doce, em conjunto com o
sorriso, mas resultou ser grave, intensa, carregada de
cadência e travessura. E, sem poder evitar, imaginou aquela
voz sussurrando, falando-lhe de perversos prazeres,
envolvendo sua orelha, invadindo seu sangue. Imaginou a
profunda e gutural risada, os olhos de expressão tórrida,
perdida na ardente paixão.
— Atenda os cavalheiros, — ordenou Wortham.
De novo apareceu no rosto dela a expressão confusa,
embora em um segundo endireitou os bonitos ombros e
começou a saudar um homem atrás de outro, qual mariposa
tentando decidir sobre que pétala pousar, qual seria o
suficientemente sólido para lhe permitir viver do modo em que
estava acostumada.
Enquanto falava com um grupo de uns doze homens,
Rafe estudou o rosto dela. Alternava sorrisos tímidos com
outros mais atrevidos. Franzia o cenho quando um dos
cavalheiros posava uma mão sobre seu ombro ou o braço.
Batia as pestanas enquanto analisava com olho perito a cada
um, sem ofender a ninguém. Ele se perguntou se ela
realmente entendia as regras do jogo ao qual estava jogando.
Ela poderia ser tão inocente?
A mãe dela havia sido a amante do antigo conde. Sem
dúvida ela era consciente de que a função daquela mulher
fora lhe esquentar a cama, produzir-lhe agrado, mantê-lo
satisfeito.
Em ocasiões ela parecia refletir confiança, parecia saber
exatamente o que fazia. E de repente ele a via desconcertada
pela conversa. Mesmo assim, dava a sensação de estar
fazendo uma lista.
Depois de falar alguns instantes com um homem,
passava ao seguinte. Jamais retornava a um ao qual já
tivesse sido apresentada.
“Aproxime-se de mim”, pensou Rafe. “Aproxime-se de
mim”. Mas em seguida desprezou a idéia. O que lhe importava
se ela não se fixava nele? Estava acostumado a viver na
sombra, a não ser visto. A teia de aranha oferecia tanto
amparo como a mais forte das armaduras. Ninguém o
incomodava se ele não desejava ser incomodado.
E não desejava aquela jovem, embora não conseguisse
evitar perguntar-se como seria a pele dela se ele a roçasse
com a ponta dos dedos. Suave. Sedosa. Cálida. Fazia muito
tempo que não sentia calidez. Nem sequer o fogo junto ao
qual estava sentado era capaz de derreter seu gélido coração.
Assim gostava que fosse. Assim o preferia.
Nada o comovia, nada o incomodava. Nada importava.
“Ela importava”.
Não, não era verdade. Era a filha ilegítima de um conde,
a ponto de converter-se no troféu de algum homem. Um
troféu muito bonito, certamente. Delicioso. Mas sem dúvida
ficaria relegada ao mesmo posto que uma obra de arte, algo
para ser cuidado, tocado, para proporcionar prazer quando se
buscava prazer.
Evelyn olhou a seu redor, aparentemente perdida em
uma sala que deveria lhe resultar familiar. E de repente fixou
seu olhar nele. O corpo de Rafe se tensionou com tal
brutalidade que durante um instante se sentiu enjoado.
Deveria ter-lhe virado as costas, ter-lhe dito com um gesto
que ela não significava nada para ele, que não estava
interessado nela. Mas parecia incapaz de outra coisa que não
fosse olhá-la, enquanto ela se aproximava indecisa.
Até deter-se em frente a ele, as pequenas mãos
enluvadas firmemente entrelaçadas. De tão curta distância,
Rafe pôde apreciar o belo tom azul de seus olhos. Não, mais
que azuis... eram de cor violeta. Jamais havia visto nada
parecido. Imaginou aqueles olhos ardentes de paixão,
escuros, olhando-o maravilhados enquanto lhe proporcionava
um prazer jamais experimentado. Uma simples tarefa se essa
mulher jamais houvesse conhecido a carícia de um homem.
Mas, do mesmo modo que não procurava uma amante,
tampouco procurava uma virgem. Fazia muito tempo que ele
havia perdido a inocência, e a inocência não lhe interessava.
Era uma fraqueza, um convite a ser explorado, um caminho
rápido para a ruína. Não o atraía.
Não o atraía.
Reformulou seus pensamentos com a intenção de se
convencer de sua veracidade. Entretanto, ao sentir-se
transpassado pelos olhos cor violeta, soube que aquela
mulher não só era inocente, mas era muito, muito perigosa.
Seria muita estupidez.
Poderia destroçá-la com um olhar, uma palavra, uma
risada cáustica. E, ao destroçá-la, o diminuto fragmento de
alma que ela ainda conservava murcharia e morreria.
Uma noção inquietante que ele não gostou.
O delicado pescoço se moveu enquanto a jovem engolia
nervosamente e o peito subiu ao tomar ar, como se ela
estivesse se armando de coragem.
— Acredito que não nos falamos, — observou ela
finalmente.
— Não.
— Posso lhe perguntar seu nome? Os outros cavalheiros
foram muito amáveis e se apresentaram eles mesmos.
— Mas eu não sou amável.
— E por que diz isso? — Duas pequenas dobras
apareceram entre suas sobrancelhas.
— Porque, pelo menos, sou sincero.
— De todos os modos deve ter um nome. É um segredo?
Rouba meninos enquanto dormem em suas caminhas?
Possivelmente é o próprio Rumpelstiltskin? Certamente não
acredito que seja o príncipe Encantado.
Contos de fadas. Aquela mulher havia sido criada com
contos de fadas, e não parecia ter consciência de que estava
se movendo entre uma matilha de ogros.
— Vamos. Não pode ser um nome tão horrível. Eu
gostaria de poder chamá-lo de algo.
Rafe considerou Belzebu, algo para inquietá-la, para
fazê-la fugir, mas, por algum motivo que não conseguiu
entender, simplesmente respondeu:
— Rafe.
— Rafe — repetiu ela com sua voz aveludada. — É esse
seu título?
— Não — ele se sentiu inundado de um feroz desejo,
quase doloroso.
— Possui algum título?
Possivelmente não era tão inocente como ele havia
suposto. A jovenzinha queria assegurar o futuro, queria
escolher bem a cama que ia esquentar. Rafe decidiu que não
podia reprová-la. Ela precisava encontrar um homem a quem
agradar e que lhe servisse de amparo. Possuía o direito de
escolher bem.
— Não, — respondeu ele.
— Vejo que é um homem parco em palavras — Evelyn
mordiscou o lábio inferior, intensificando a cor vermelha.
Rafe não conseguiu evitar de se perguntar — quantas
vezes a teriam beijado. Alguma vez ela havia permitido que
um homem fundisse seus lábios com os dela? Alguma vez um
homem havia acariciado a sua pele, deslizado os dedos por
suas maçãs do rosto, segurado sua nuca, atraindo-a para si?
— Que afeições tem?
— Nenhuma que possa lhe resultar divertida.
— Surpreenderia você.
— Duvido. Sou bastante bom julgando as pessoas.
— E muito rápido, ao que parece. Tenho a impressão de
que não tem muito boa opinião de mim.
Rafe percorreu o corpo da jovem com o olhar. Admirou
as curvas, protuberâncias e planícies. Não podia negar que
era um bonito exemplar, mas sem dúvida requereria certa…
delicadeza e cuidado, a qual não entrava em seu repertório
habitual.
— Ainda não decidi.
— Desgraçadamente, eu temo que eu sim. Não acredito
que nos encaixemos. Espero não o ter ofendido.
— Teria que me importar com o que você pensa para me
ofender. E não é assim.
Ela abriu a boca…
— Evelyn, já terminou aqui. — Wortham a agarrou pelo
braço e começou a puxá-la furioso, arrastando-a para a porta.
A ponto de tropeçar com os pés encerrados em sapatos
de cetim, Evelyn parecia disposta a tirar o conde de cima de
si, enquanto se afastava olhando Rafe por cima do ombro,
como se quisesse ter a última palavra. Entretanto, não era
rival para a força de Wortham e ambos desapareceram pela
porta. Passaram-se alguns minutos antes que o conde
retornasse. Rafe se surpreendeu de não ver a senhorita
Chambers irromper atrás dele. Sem dúvida ele a dissuadira,
convencido de que não se fizesse notar em excesso para não
desanimar a nenhum lorde que estivesse interessado nela.
— Muito bem cavalheiros — anunciou Wortham
enquanto esfregava as mãos. — Alguém quer dar um lance
por ela?
De modo que era assim que ele dirigiria a situação. Rafe
havia se perguntado e, por algum motivo inexplicável, o
proceder de Wortham lhe provocou um calafrio que lhe
chegou até a medula. Aquela garota não significava nada para
ele. Poderia ser interessante comprovar que valor lhe
outorgavam os outros cavalheiros presentes. Sobretudo se
pudesse utilizar essa informação em seu próprio benefício.
— Uma coisa, Wortham — falou lorde Ekroth. — Eu lhe
dou quinhentas libras por ela, mas tenho intenção de
examiná-la primeiro e me assegurar de que ela é virgem, tal e
como você assegura.
Uma gargalhada geral explodiu depois da obscena
sugestão. Rafe suspeitava que quem ria mais alto não era
precisamente os que se sentiam mais incômodos com o
caminho pelo qual transcorria o encontro.
— É obvio, todos poderão examiná-la, — respondeu
Wortham sem piedade como se estivesse falando de vender
uma égua. — Depois aceitarei mais ofertas.
— Excelente. Eu primeiro, de acordo? — Ekroth e
Wortham se dirigiram para a porta.
Rafe imaginou os dedos macios e rechonchudo de Ekroth
deslizando sobre as sedosas coxas, arrancando a roupa
interior dela, afundando-se em…
— Eu fico com ela.
Rafe quase não podia acreditar nas palavras que
acabavam de sair de sua boca com tal autoridade, que tanto
Ekroth quanto Wortham se detiveram em seco, enquanto
outros lordes o olhavam, boquiabertos. Era evidente que ele
havia bebido mais do que pretendia, mas isso já não
importava. O desafio estava lançado e ele nunca voltava atrás.
— Se algum dos presentes tocá-la, — ele anunciou
enquanto abria o colete negro que, de repente, apertava
muito, — arrancarei a parte do corpo que tenha estado em
contato com ela. Wortham assegurou que ela é pura. Não
quero vê-la manchada por suas suarentas mãos, ou qualquer
outra parte de seus corpos. Fui claro?
— Mas você devia estar presente como observador, para
assegurar-se de que… — Wortham se interrompeu antes de se
aproximar de Rafe e continuar em um tom mais baixo — para
assegurar-se de que serei capaz de cobrir minha dívida.
— E quando lhe confiei meus planos?
— Então você está disposto a pagar as quinhentas libras
que Ekroth ofereceu?
— O que farei será permitir que você continue vivo. Com
isso estaremos em paz. De acordo?
— Mas o acordo era que ela fosse para quem oferecesse
mais.
— E em quanto valora sua vida? Acredita que algum dos
pressente poderá igualar essa cifra? — Rafe esperou um
segundo. — Eu diria que não.
Depois de apurar a taça, dirigiu-se para o escritório.
Outros lordes se afastaram de um salto a sua passagem.
Se não fosse tão parco em gargalhadas, Rafe teria rido
diante das reações deles. Encontrou uma folha de papel,
molhou uma pluma no tinteiro e rabiscou o endereço de sua
residência. Depois se voltou e se dirigiu para a porta.
— Aí tem meu endereço. Que ela seja levada lá, amanhã,
às quatro. Boa noite, cavalheiros. Como sempre, foi um prazer
estar em tão estimada companhia.
Estava já sentado em sua carruagem, atravessando as
ruas de Londres quando compreendeu o que acabava de
fazer.
— Por Deus santo! — Ele murmurou, embora não
houvesse ninguém perto que pudesse ouvir. Em que
demônios ele estivera pensando? Era evidente que não
pensara, absolutamente.
Contemplou através da janela a nebulosa noite. Não a
tomara porque ela seria abandonada, porque não era assim.
Ela seria entregue a alguém para se encarregar dela. Não
passaria fome, não seria golpeada, não teria que trabalhar até
lhe sangrarem os dedos e lhe doesse tanto as costas que
chegasse a temer que jamais poderia erguer-se. Jazeria entre
lençóis de seda e sobre fofas almofadas, esperando a chegada
de um homem para lhe separar as pernas. Comeria bombons
e franziria os lábios. E umedeceria esses lábios enquanto
olhava, com os olhos entreabertos para seu benfeitor.
E ele era aquele benfeitor. Maldição.
Deveria ter deixado que Ekroth a levasse. Seus dedos
não eram tão repulsivos. Poderia enviar uma mensagem à
manhã seguinte, negociar com ele, cedê-la. Mas então ele
pareceria um homem que não sabia o que queria.
De modo que, ao menos durante um tempo, estava
condenado a ficar com ela e as possibilidades começaram a
resultar atrativas. Rafe não teria que sentir nada por ela. Não
sentiria nada por ela.
Ao menos ela não era tão horrível. Ela não conhecia
homem. Poderia ensiná-la a agradá-lo como ele mais gostava.
Ao não ter nenhuma outra experiência, ela não poderia
comparar e, portanto, não se sentiria decepcionada.
Mas o que sim, ele faria, seria desfrutar dela.
Capítulo 3

Evelyn nunca tivera mau gênio, mas Geoffrey estava


pondo a prova sua paciência além do imaginável. Apesar de
seus protestos, ele a arrastara até seus aposentos,
encerrando-a de novo sob chave. Ela ficou com vontade de
dizer aquele tipo, Rafe, que ele era um grosseiro. Por que ele
havia dito algo tão horrível? Por que se esforçou
deliberadamente para fazê-la sentir que não valia nada?
Sentada junto à janela contemplou o jardim e se
perguntou se os cavalheiros continuavam em sua casa.
Considerou fabricar uma corda com tiras de lençóis para
poder escapar pela janela. Irromperia na biblioteca, plantar-
se-ia frente a Rafe e… e o que ela diria exatamente?
Diria que ele era o homem mais sincero de todos os
presentes?
Essa era a questão. Outros convidados se comportaram
de um modo… estranho. É obvio, não tendo assistido a
nenhuma reunião formal, nem informal na realidade, em que
os lordes presentes tentavam impressionar a uma dama, não
estava muito segura de como deveriam se comportar. Havia
esperado que fossem mais aduladores, mais insinuantes, que
tentassem seduzi-la. Entretanto, deram-lhe a impressão de
esperar que fosse ela que os adulasse, elogiasse-os, fizesse-os
se sentirem bem.
Todos, exceto Rafe. Aquele homem parecia não se
interessar por ela. Possivelmente não teria ido até ali em
busca de esposa. Certamente não fizera o menor esforço por
abordá-la. Possivelmente não fosse mais que um amigo de
Geoffrey e se encontrava ali por algum outro motivo.
Mas, se fosse este o caso, por que ela havia sentido seu
olhar no instante em que havia entrado na sala? Saber-se
observada enquanto se apresentava diante de um homem e
outro a fizera se sentir inquieta. Ele estivera julgando-a,
avaliando-a? Ele se sentira intrigado por ela?
Era algo que não podia saber. O que sim sabia era que
ele era o demônio mais atraente sobre o qual ela pousara seus
olhos. Os cabelos, negros como a meia-noite, eram
excessivamente longos, mas que emolduravam seu rosto e
ressaltavam seus tremendamente pálidos olhos azuis.
Recordavam-lhe um lago gelado pelo qual ela havia
caminhado quando pequena. A água, tão azul no verão, via-se
descolorida sob a placa de gelo. De pé na borda, ela
estremeceu, do mesmo modo que estremeceu de pé em frente
a Rafe.
Não havia descoberto nenhuma doçura em seus traços,
nenhuma delicadeza em suas maneiras. No fundo ela se
alegrava de não ter resultado atraente para ele. Não queria
que lhe enviasse flores, recitasse poesia ou a levasse em
passeio pelo parque.
Embora, se fosse sincera consigo mesma, não estava
segura de desejar nada daquilo com nenhum dos cavalheiros
que ela conhecera na noite. Eles a fizeram se sentir como uma
égua de exposição que estivessem considerando adquirir, em
vez de uma mulher a que desejassem levar ao altar.
Possivelmente era assim que começavam os cortejos.
Havia tão pouca formação a esse respeito… Ela fora educada
por tutores em vez de ir a uma escola feminina. Suas únicas
amizades foram seu pai e algumas das donzelas mais jovens.
Estava muito pouco familiarizada com o mundo além dos
muros da residência. Sabia somente que seu pai se esforçou
muito por protegê-la de tudo aquilo, apesar de tê-la instruído
para saber comportar-se em sociedade. Compreendia toda a
parte teórica, mas muito pouco da prática. Não lhe reprovava
nada, mas desejou estar comprometida antes que ele
morresse.
Suspeitava que Geoffrey a entregaria ao primeiro homem
que pedisse sua mão, sem decidir se era o que poderia fazê-la
mais feliz.
Claro que a felicidade era algo relativo. Sair de seus
aposentos já seria fonte de felicidade, embora aquilo
implicasse casar-se com um homem ao qual não conhecia.
Suspirou e apoiou um cotovelo no batente da janela, a
bochecha sobre a palma da mão, e tentou recordar os rostos
de outros cavalheiros. Entretanto, todos se transformavam
em um ser de negros cabelos e olhos azuis gelo.
A última hora da tarde do dia seguinte, liberada de sua
encantadora prisão, Evelyn não foi capaz de recordar uma só
vez em que tivesse viajado na carruagem com Geoffrey.
Resultava-lhe muito estranho vê-lo sentado diante dela,
olhando pela janela, o céu que começava a obscurecer. Sem
dúvida choveria aquela noite. O ar estava úmido e denso,
como se estivesse aguardando o momento oportuno para
descarregar. Não fazia nem idéia de para onde se dirigiam,
embora reconhecesse a zona, pois não se afastaram muito da
residência.
Quando seu irmão fora aos seus aposentos e ordenara
que ela se arrumasse para sair de carruagem, esteve a ponto
de mandá-lo ao inferno. Ele a deixara ali encerrada toda a
noite, perguntando-se se algum dos cavalheiros havia
mostrado algum interesse por ela. Mas estava tão
desesperada por abandonar aquelas quatro paredes que
preferira não correr o risco de enfurecê-lo ao lhe revelar o que
sentia diante daquele comportamento e falta de consideração
com ela. De modo que colocara um vestido negro de passeio,
capa em conjunto e chapéu. Não gostava de parecer tão dócil,
até o ponto de dar a impressão de que não era mais que um
tapete felpudo sobre o qual Geoffrey podia limpar o barro de
suas botas, mas a verdade era que ela não possuía muitas
opções.
Não dispunha de dinheiro próprio. Certamente poderia
vender as jóias que seu pai lhe dera, mas desconhecia seu
valor ou quanto tempo o dinheiro poderia durar. Começava a
se dar conta de que seu pai, que Deus o tivesse em sua glória,
fizera um fraco favor ao não a preparar adequadamente ante
a eventualidade de sua morte, ao deixá-la à mercê da
amabilidade de seu irmão, amabilidade que ele claramente
não possuía.
Sem saber muito bem como abordar o tema da reunião
da noite anterior, clareou garganta e lançou.
— Seus amigos se divertiram ontem à noite?
Geoffrey apertou a mandíbula, entreabriu os olhos
cinzentos e adotou uma expressão que ela supunha que
assustaria a mais de um que se cruzasse com eles, naquele
momento.
— Sim.
Sim? Isso era tudo? Evelyn sentiu um irrefreável desejo
de lhe beliscar o nariz, de lhe ordenar que elaborasse mais
sua resposta. Apertou as mãos com força.
— Alguém manifestou em particular interesse por mim?
— Rafe Easton. Dirigimo-nos a residência dele.
De modo que o sobrenome era Easton? Era decepção o
que ela via nos olhos de seu irmão?
— É um bom amigo? — Ela perguntou.
— Não é meu amigo. É dono de um estabelecimento de
jogo. Devo-lhe dinheiro.
— Entendo, — exceto que ela não o entendia.
Casar-se com o proprietário de um antro de apostas
seria muito pior que fazê-lo com um lojista. Na realidade,
seria um escândalo. Evelyn estranhava que fosse permitida a
entrada dele nos círculos mais decentes.
— Mencionou que não possui título algum.
— É o terceiro filho de um duque, embora quase nunca
admita.
— De modo que é um lorde — murmurou ela. Aquilo
devia explicar sua presença na reunião.
— Não gosta que se dirijam a ele desse modo.
Certamente você deveria chamá-lo simplesmente de “senhor
Easton”. Ao menos até que ele lhe diga outra coisa.
Aquilo continuava sem ter sentido. Aquele homem não
poderia ter mostrado menos interesse por ela na noite
anterior. Para que desejaria passar mais tempo em sua
companhia?
— É um pouco cedo para jantar. Vamos dar um passeio
pelo parque? Significa o começo do cortejo? — Geoffrey a
escrutinou com o olhar, piscou, e voltou a entreabrir os olhos
como se sua mente fosse incapaz de processar as palavras
que ela acabava de pronunciar. De novo dirigiu seu olhar à
janela.
— Duvido muito que ele tenha intenção de cortejá-la.
— Então não compreendo para que vamos visitar…
— Você… vai cuidar dele.
Um estranho giro na conversa. Até que, de repente, ela
compreendeu. — Quer dizer que ele me contratou para que
me ocupe dos assuntos de sua casa?
— Não estou seguro de quais serão seus encargos, mas
ele responderá a suas necessidades.
Por que ele não a olhava? Por que ele evitava seus olhos?
Por que ele se mostrava tão malditamente misterioso sobre o
propósito de tudo aquilo? Envergonhava-se de ter encontrado
um emprego para ela, em vez de um marido, de que sua
própria posição na sociedade não lhe tivesse permitido fazer
mais por ela? Evelyn não queria que seu irmão tivesse a
sensação de haver falhado com seu finado pai, mas
certamente seu proceder era muito estranho.
A carruagem girou por uma rua pavimentada. Apesar de
suas melhores intenções, ela se inclinou para olhar pela
janela. Uma enorme residência, maior que a de Geoffrey,
surgiu diante deles e ela não conseguiu sentir-se menos
impressionada.
— Deve ser incrivelmente rico para viver aqui.
— Obscenamente rico.
O ressentimento, seguido de ira, estava evidente na voz
de seu irmão. Geoffrey havia dito que devia dinheiro a ele. Ela
teria que trabalhar para Rafe Easton para pagar as dívidas de
seu irmão? Sem dúvida seria um acerto temporário, até que
alguém manifestasse desejo de cortejá-la.
— Durante quanto tempo vou trabalhar aqui?
— Enquanto ele a desejar.
A carruagem se deteve e um lacaio abriu a portinhola.
Geoffrey saiu de um salto, como se o assento de repente
queimasse. O servente ofereceu uma mão a Evelyn.
— Geoffrey, não estou muito segura de ter
compreendido.
— Já entenderá. Vamos, — ele subiu rápido pelas longas
escadas.
Evelyn considerou retornar à carruagem, mas, se fossem
pagar por seus serviços, possivelmente conseguiria se manter
até encontrar um marido adequado. Poderia pelo menos ouvir
os termos do acordo. Levantando ligeiramente a saia, ela
subiu os degraus. O início e o final estavam marcados por
horríveis gárgulas de pedra. Certamente se encaixavam com o
dono. Depois do breve encontro que eles mantiveram, não lhe
dava a impressão de ser aqueles que suportavam a presença
de querubins dançarinos.
Assim que pisou no último degrau, onde Geoffrey a
esperava, um mordomo abriu a porta e ela entrou, seguida de
perto por seu irmão. O interior era ainda mais
impressionante, com os tetos cobertos de afrescos, lindas
obras de arte e numerosas estátuas. Entretanto, não havia
nada pessoal. Não havia retratos. Todos os quadros eram de
paisagens: mares tormentosos e bosques escuros. Tudo
estava perfeitamente colocado, muito perfeito, como se se
tratasse de uma exposição.
— A senhorita Evelyn Chambers solicita ver o senhor
Rafe Easton, — anunciou Geoffrey. — Ele está esperando-a.
— Sim, milorde, estou à par. Recebi instruções de
atender à senhorita Chambers até que o senhor retorne.
Senhorita, pode de me seguir até o salão…
Logo que havia dado meia dúzia de passos compreendeu
que seu irmão não a seguia.
— Geoffrey, você não vem? — Ela perguntou enquanto se
voltava para ele.
— Não.
— Você vai me deixar aqui?
— Sim.
— Mas, voltará para me buscar?
— Easton lhe explicará tudo, — e sem mais, colocou o
chapéu, deu meia volta e saiu pela porta.
Impulsivamente, Evelyn deu um passo para segui-lo e
lhe interrogar por seu estranho comportamento, mas o
mordomo lhe roçou brandamente o braço para detê-la.
— Tudo ficará bem, senhorita.
O homem teria uns trinta e tantos anos, cabelos escuros
e doces olhos marrons. A roupa que ele usava, como tudo o
que os rodeava, era impecável.
— Temo que Geoffrey não me contou grande coisa. Se eu
entendi bem, vou dirigir esta casa.
— Não me resta dúvida de que os serventes cumprirão
todos seus desejos.
— Como se chama?
— Sou conhecido como Laurence, — ele fez uma ligeira
reverência e estendeu uma mão. — Por favor, permita-me
acompanhá-la até o salão.
— Quantos serventes há aqui? — Ela perguntou e o
seguiu de perto.
— Vinte e cinco.
Entraram em um ambiente de tons bordô e painéis
escuros nas paredes. Ao que parecia, Rafe Easton não gostava
das cores alegres. Um enorme globo terrestre descansava
sobre um pedestal em um canto. Na lareira o fogo ardia.
Sentindo um repentino frio, Evelyn se aproximou e estendeu
as mãos enluvadas para as pequenas chamas.
— Permita-me pegar sua capa? — Perguntou Laurence.
— Ainda não, obrigada, — ela esfregou os braços com as
mãos quentes.
— Farei com que lhe tragam chá com bolachas.
— Obrigada — ela se voltou, sentindo-se muito inquieta
a seu pesar. — Quando o senhor Easton retornará para casa?
— Sinto muito, senhorita, mas não sei dizer.
O mordomo a deixou sozinha e, por algum inexplicável
motivo, Evelyn desejou ter continuado encerrada em seus
aposentos. De repente lhe pareceu uma alternativa muito
mais segura e acolhedora.

Lorde Tristan Easton estava de pé diante da porta que


conduzia ao escritório de seu irmão, no salão de jogos. Não se
lembrava de ter visto essa porta fechada, jamais. Sentado no
escritório, seu irmão trabalhava em excesso sobre os livros de
contas, a escura cabeça inclinada, concentrado, como a
primeira vez que o vira depois dos doze longos anos de
separação. O corpulento lacaio de Rafe que esperava nas
ruínas da abadia havia levado Tristan até essa mesma porta.
Segurou com mais força o pacote que levava nas mãos e
elevou a vista até as estantes onde Rafe guardava sua coleção
de globos terrestres. Em uma ocasião ele confessara que lhe
davam a esperança de que, algum dia, ele pudesse se
encontrar em um lugar melhor. Tristan se entristeceu ao ver
que havia um novo. Depois de ajudá-lo a emendar um engano
cometido com Anne antes de convertê-la em sua esposa,
quando não havia nenhuma esperança de que algum dia ela
pudesse ser sua esposa, ele pensara que possivelmente
tivessem dado um primeiro passo para fechar o abismo que
os separava. Entretanto, ao que parecia Rafe não era da
mesma opinião.
— Ouvi dizer que você tem uma amante.
Rafe levantou bruscamente a cabeça e contemplou seu
irmão com idênticos olhos azul gelo, a expressão severa, os
lábios apertados formando uma fina linha.
— Faz meses que não o vejo, e é assim como me saúda?
Tristan esteve a ponto de balbuciar que ele merecia.
Depois de não saber nada dele por doze anos, Rafe apenas se
limitou a lhe oferecer uma taça de uísque. O rosto dele não
havia mostrado nenhuma emoção, seu olhar conservara a
calma do mar antes de uma tormenta. Não houve surpresa,
não se levantara da poltrona, não o abraçara. E suas
primeiras palavras foram: “Sebastian ainda não apareceu”.
— Acreditei que você já teria se dado conta de que eu
gosto de ir ao ponto. — Tristan dedicou a seu irmão o famoso
sorriso diabólico que sabia o quanto o irritava. — Quem é ela?
Rafe pegou dois copos e uma garrafa de uísque e serviu
duas taças enquanto seu irmão se sentava em uma cadeira.
— Não acredito que isso seja assunto seu. — Ele
respondeu enquanto deslizava um copo para ele.
Tristan sustentou a taça ao alto, aspirou o aroma e
tomou um pequeno gole. Seu irmão tinha muito bom gosto
para o uísque.
— É bonita?
— Está pensando em tomá-la quando eu tiver me fartado
dela? — Rafe entreabriu os olhos.
— Não, por Deus — Tristan soltou uma gargalhada. —
Anne quase me mata com seu desejo. Logo eu não seria capaz
de satisfazer outra dama, — tomou um novo gole. — Além
disso, Anne é tudo para mim. E quando se tem tudo não se
necessita, nem se deseja, nada mais.
— Fala como um apaixonado.
— Não acredita no amor?
Rafe se reclinou no assento e bebeu um bom gole.
“Ele não vai responder”, pensou Tristan. Na realidade
não havia esperado que ele o fizesse. Sabia que Rafe ainda
não havia perdoado Sebastian e a ele por deixá-lo para trás.
Não tiveram escolha. A separação fora a melhor maneira de se
assegurarem que, ao menos, um deles chegasse à idade
adulta para poder reclamar o ducado.
— Não o culpo. Eu tampouco acreditava no amor até que
Anne entrou em minha vida.
— Parta antes de começar a recitar poesia. Não tenho
estômago para isso.
Tristan não gostava que Rafe fosse cada vez mais
distante e hermético, ao menos com Sebastian e com ele.
Jamais aceitava um convite deles. Entretanto, não estava
disposto a render-se com seu irmão mais novo.
— Direi uma coisa, — começou Tristan, ansioso por
mudar de assunto, — a maioria dos homens sentiria, no
mínimo, curiosidade ao ver alguém entrar em seu escritório
com uma enorme caixa na mão.
— Para perguntar por ela primeiro eu precisaria me
importar, — Rafe lhe dedicou uma olhada. — E não me
importa. É sua caixa.
— Na realidade, não é minha, — ele deixou o pacote no
centro do escritório. — É sua. Bom, a caixa não. O que há
dentro. De toda maneira, pode ficar com a caixa se a quiser
também.
Tristan não sabia por que estava soltando todas aquelas
idiotices. Importava-se muito pouco o que Rafe opinasse de
seu presente. Havia sulcado mares, lutado contra
tempestades e tubarões. O resto não tinha importância.
Mesmo assim, fixou-se em como Rafe contemplava o pacote,
como se estivesse a ponto de atacá-lo.
— O que quer dizer com que ele é meu?
Tristan se perguntou de novo, como fazia
frequentemente, que tipo de vida seu irmão vivera desde a
noite em que eles escaparam de Pembrook. Nenhum dos três
falava dos anos que estiveram separados. Sebastian deixara a
metade do rosto em um maldito campo de batalha na
Crimeia. Tristan tinha as costas sulcadas de cicatrizes
produzidas por chicotadas. Suspeitava, sempre suspeitava,
que Rafe também possuísse suas próprias cicatrizes, mas que
no caso dele eram muito mais profundas e, não restava
dúvida, muito mais difíceis de sanar.
— É um presente.
— Por quê?
— Por nenhum motivo em particular, — ele deveria ter
respondido “porque você é meu irmão e eu o amo”, mas as
palavras lhe resultavam tão difíceis de pronunciar como,
suspeitava, resultariam difíceis para Rafe ouvir.
Rafe deixou a taça a um lado e pegou o presente. Depois
de levantar a tampa, inclinou a caixa para ele.
E, de repente, levantou a vista bruscamente para
Tristan.
— Sei que não é perfeito, — Tristan se sentiu incômodo.
— Estive esculpindo durante os dois anos que fiquei no mar,
depois que Sebastian recuperou seu título.
Rafe ficou lentamente de pé e tirou o globo terrestre de
madeira da caixa. O globo estava fixado a um pedestal que lhe
permitiria girá-lo a seu desejo.
— Embora eu não seja muito hábil com os pincéis, eu
pensei em pintar a terra de verde e os mares de azul…
— Eu gosto do singelo, — Rafe deslizava o dedo sobre
cada relevo, cada sulco, estudando-os como se fossem de
suma importância.
— Sério? Quero dizer, você gosta assim? — Perguntou
Tristan.
— Não sabia que você sabia esculpir madeira, — seu
irmão assentiu.
“Há muitas coisas que você não sabe de mim, irmão, e
suspeito que ainda são mais as que eu desconheço de você”.
— É tedioso demais a bordo de um navio. Justamente o
contrário que trabalhar aqui, em um antro de jogo.
— Também acabamos nos aborrecendo. Todo o dia
revisando livros de contas e essas coisas.
— E o que você faz quando se aborrece? — Tristan
sorriu.
— Sigo trabalhando. — Rafe o olhou perplexo ante a
obviedade. — O aborrecimento não é desculpa para não
trabalhar.
— Algumas vezes sai para navegar?
— Não, — seu irmão devolveu a atenção à pequena
esfera.
— Tenho um negócio de desenho e construção de iates.
O primeiro, recentemente terminado, é meu, é obvio, mas
pensei que o segundo poderia ser para você.
— Não preciso de um navio.
Tristan se esforçou por não travar a mandíbula. Um iate
não era um navio. Sobretudo os que ele desenhava. Por Deus,
que o luxo que ele exibia em seu iate era esmagador.
— Você se surpreenderia. O mar pode apaziguar a alma.
— Isso, caso se tenha alma. De todos os modos, não é
algo no que deseje gastar meu bem ganho dinheiro.
— Eu não estava pensando fazer pagá-lo por ele. Seria
outro presente. Deus sabe que não preciso do dinheiro, e eu
gosto de desenhar algo que se parece tanto com um navio.
— O que você faz aqui, Tristan? — Rafe o olhou
atentamente. — Não somos amigos, nem conhecidos. Na
realidade, nem sequer somos irmãos.
— Sim somos irmãos. — Tristan se levantou de um salto.
— Por quê? Somente porque nascemos da mesma mãe e
tivemos o mesmo pai? Ser irmão é mais que isso.
— Por que você não deixa o passado para trás?
Sebastian está destroçado porque você ainda não o perdoou
por termos deixado-o naquele maldito orfanato. De verdade
você acredita que havia outra escolha?
— Todos, temos escolhas.
Tristan sabia que não fazia nenhum sentido continuar.
Rafe nem sequer escutava. Ao menos ele não havia jogado o
globo terrestre contra a parede.
— Dentro de duas semanas vou inaugurar meu novo
iate. — Tristan suspirou. — Pensei que você gostaria de sair
para navegar conosco.
— Estarei muito ocupado.
— Desfrutando de sua nova amante?
— Ela não é assunto seu.
— Leve-a com você.
— Deve estar de brincadeira, — Rafe franziu o cenho. —
É a filha ilegítima de um conde. Estou seguro de que sua
presença ofenderia a sensibilidade de sua esposa.
— Se você pensa isso, é por que não conhece minha
Anne. E quem dera conhecesse. É uma mulher
extraordinária. Você gostaria. De todos os modos… — ele
deixou o copo vazio sobre a mesa, — o convite segue em pé,
caso mude de idéia. Dentro de duas semanas a contar a partir
da sexta-feira, às onze na Easton House.
— Sebastian também está convidado?
— É obvio que está. Ele, sua esposa e seu herdeiro.
— Minha agenda está completa.
— Você perderá isso.
Tristan deu meia volta e saiu do escritório. Não se
renderia a seu irmão, ainda não.
Rafe jamais teria esperado alegrar-se com a visita de seu
irmão, mas, durante alguns instantes, ele lhe permitira tirar
Evelyn Chambers da cabeça. A lembrança daquela mulher
estivera atormentando-o por todo o dia. Se Wortham fosse
pontual, faria exatamente vinte e dois minutos que ela estaria
em sua casa. Laurence sem dúvida lhe teria mostrado seus
aposentos, apresentado à donzela Lilás, que a estaria
vestindo, penteando, e o que quer que fosse que fizessem as
donzelas de uma dama. Os serventes a ajudariam a desfazer a
bagagem. Todos procurariam que estivesse o mais cômoda
possível enquanto aguardava sua chegada.
Fazendo girar o globo, de repente desejou encontrar-se
em outro lugar, em qualquer outro lugar. Se seus irmãos
averiguassem o tipo de homem que era realmente, não
quereriam saber muito dele.
Decidido, desprezou os rançosos pensamentos de sua
mente.
Mick, seu ajudante principal, entrou no escritório. Sua
magra figura escondia um corpo atlético que frequentemente
servira bem a Rafe quando ele precisava desafogar-se, na sala
de boxe que estava escondia no porão.
— Pensei que você gostaria de saber que lorde Wortham
saldou sua dívida.
— E de onde ele tirou o dinheiro? — Rafe se esforçou por
não mostrar quão surpreso estava.
— Posso fazer algumas averiguações.
— Não será necessário. Não tem importância, — pelo
modo como aquele homem estava acostumado a jogar cartas,
logo voltaria a lhe dever dinheiro. — Ekroth apareceu por
aqui?
— Faz uma hora.
Como norma geral, Rafe não permitia as falcatruas em
seu estabelecimento. Não as de seus clientes e, certamente,
não as dos empregados contratados para fiscalizar o jogo.
Mas em certas ocasiões fazia uma exceção.
— Procura fazer com que o jogo não lhe resulte favorável
esta noite.
Mick arqueou uma escura sobrancelha. Embora
certamente tivesse gostado de receber uma explicação, era
muito consciente de que não deveria insistir.
— Eu me encarregarei disto.
— E já de passagem lhe comunique que as garotas lhe
estão proibidas.
— Se ele não sair satisfeito daqui, levará seu dinheiro
para outro clube.
— Eu me assegurarei de que nenhum outro o admita.
Depois que Mick partiu, Rafe deixou o globo em um
canto do escritório e o fez girar uma última vez. Não pensava
relegá-lo a nenhuma estante, embora não estivesse muito
seguro de como se sentia a respeito. Agradecido, mas não
confortável com sua gratidão.
Passaram quase quatro horas até que ele abandonasse o
escritório e descesse as escadas da parte de atrás para sair
pela porta traseira do edifício. Jamais havia hospedado
alguém, em sua residência, e muito poucas pessoas sabiam
onde ele vivia. Ainda não sabia por que dera seu endereço
para Wortham em lugar de limitar-se a fazer com que alguém
recolhesse à garota. Por algum motivo, na noite anterior, toda
capacidade de pensamento lógico o havia abandonado.
Felizmente era uma situação passageira.
Decidido, montou na carruagem. Não evitaria confrontar
o que lhe esperava em sua casa. Simplesmente se atrasara
pela quantidade de assuntos que requeriam sua atenção no
clube: faturas, pedidos, estelionatários.
Já era noite, e uma ligeira garoa caía incessante, quando
a carruagem se deteve em frente a sua enorme propriedade.
Ainda não sabia por que aceitara a propriedade como
pagamento de uma dívida, exceto que, em determinado
momento, desejara possuí-la e pensava que um homem de
sua fortuna devia ter uma residência. Embora quase nunca
passasse algum tempo ali.
Preferia os apartamentos do clube. Não eram tão
tranquilos, pois as paredes vibravam com a atividade que
agitava a planta inferior, mas, embora estivesse sozinho em
sua habitação, não se sentia sozinho. Ao contrário, em sua
residência, os malditos serventes eram tão silenciosos que
poderiam passar por fantasmas.
Como um escuro presságio de maus ventos, um raio
iluminou a noite enquanto ele descia da carruagem e subia as
escadas até a porta. A noite era fria, mas ao menos teria uma
mulher para esquentá-lo. Já começava a mudar de ideia
sobre o acordo. Ao final poderia lhe resultar muito
conveniente.
Antes dele chegar à entrada, Laurence abriu a porta.
Rafe suspeitava que o mordomo passava o dia junto à porta
para abri-la assim que ele aparecesse. Entregou-lhe o chapéu
e o casaco, e começou a tirar as luvas. O que mais queria era
de se dirigir a sua habitação e tirar toda a roupa, mas isso
teria que esperar.
— Está ela aqui?
— Sim, senhor. Espera no salão, mas não estou seguro…
— Do quê? — Rafe o olhou irritado ante a interrupção. —
Diga já.
— Não estou seguro de que ela compreenda o motivo de
sua presença aqui. Parece acreditar que foi contratada como
ama de chaves.
— Se ela gosta de exercer tal função, que o faça. — Ele
encolheu de ombros.
— Tenho a impressão de que acredita que essa será sua
única tarefa, — Laurence franziu o cenho. Rafe soltou um
juramento. O muito imbecil do Wortham não se incomodou
em lhe explicar a situação. Era a mesma covardia a que o
fazia perder no salão de jogos. O que a mulher pensava que
havia acontecido a noite anterior?
— Ela trouxe suas coisas, não? — Ele perguntou
impaciente enquanto entregava as luvas ao mordomo.
— Temo que não, senhor. Não trouxe nada. Lorde
Wortham partiu apressadamente, deixando-a bastante
aturdida.
— Pouco me importa igual. Estou seguro de que ela
compreende por que está aqui — e que ele cobriria todas as
suas necessidades. Rafe se dirigiu para o salão.
— A que hora deseja jantar, senhor? — Perguntou
Laurence.
— Preciso de meia hora. — Sim meia hora bastaria para
esclarecer as coisas com a jovem, explicar-lhe seus deveres, o
que ele esperava dela.
Abriu as portas do salão e entrou… parando em seco.
Ela estava de pé junto à janela, mostrando-lhe seu perfil,
contemplando a chuva, com o mesmo aspecto desolado que o
tempo. Ela se voltou ligeiramente ao ouvi-lo entrar. Estava
vestida de negro, uma cor horrenda que a fazia parecer
doente. Rafe desejava vê-la vestida de azul, um azul intenso
que iluminasse o tom de seus olhos. O vestido, abotoado até o
queixo, parecia não deixar ver muita pele, mas tampouco
estava seguro, pois em cima do vestido ela usava uma capa.
— Eu vejo que Laurence não se ocupou
convenientemente de suas necessidades, pois nem sequer se
encarregou da sua capa.
— Não, — ela a ajustou ainda mais ao corpo, — ele se
ofereceu para levá-la, mas estou gelada, inclusive de pé junto
ao fogo.
— Um pouco de uísque deverá ajudar com isso.
Rafe se aproximou de uma mesa do canto e serviu duas
generosas taças, concentrando-se em sua tarefa porque, por
alguma maldita razão, tremiam-lhe as mãos. Certamente não
teria nada a ver com a ideia de que logo estaria tocando a
mulher, despindo-a, ordenando que ela se deitasse sobre a
cama…
Mas aquilo seria mais tarde. Durante todo o dia se
esforçou por não pensar nisso. Luxúria. Não era mais que
luxúria animal, uma necessidade bárbara e primitiva que o
consumia. Anulou todo pensamento sobre quantos segredos
ela poderia estar ocultando sob a roupa, pegou as duas taças
e se aproximou dela, que o esperava junto a uma cadeira em
frente ao fogo. Ao menos se afastou da janela. Não lhe
escapou a desconfiança que o olhar dela refletia ao aceitar a
taça de sua mão. Ela tinha direito de sentir medo. Rafe jamais
abusaria dela, nem lhe faria mal a propósito, mas não lhe
restava a menor dúvida de que ao final lhe causaria dor.
Inclusive as mulheres às quais pagava em troca de prazer
sofriam porque ele não lhes dava nada mais do meramente
físico. E as mulheres, benditas fossem, pareciam necessitar
algo mais que isso.
Simplesmente, ele não possuía nada para lhes dar. E
esse era o motivo pelo qual ele evitava as relações femininas
durante muito tempo. Porque não suportava a desilusão que
sempre parecia provocar em sua partida. Não as abraçava,
não se aconchegava, não lhes permitia abraçá-lo.
Pegou uma cadeira e lhe assinalou a outra. Lenta e
elegantemente, ela se sentou. Segurava a taça com ambas, as
mãos, ainda enluvadas. Umas mãos muito pequenas que ele
imaginou tocando-o. Apenas as sentiria. Possivelmente…
Imediatamente desprezou os pensamentos porque seu
corpo começava a reagir, e a última coisa que desejava era
assustá-la. Lentamente sorveu o uísque enquanto ela
observava o fogo. Ao fim ela levantou o olhar para ele.
— Geoffrey… — ela começou.
— Geoffrey?
— Lorde Wortham. — Evelyn sorriu timidamente. — Eu
temo que ainda não consegui assimilar totalmente a morte de
meu pai. Em qualquer caso, ele me disse que eu estou aqui
para dirigir a casa embora, sinceramente, parece que tudo
funciona muito bem, de modo que não estou segura de qual
poderia ser minha contribuição.
— Estou seguro de que você vai contribuir bastante, —
Rafe tomou outro gole. — O que exatamente ele lhe disse?
— Que eu devo responder a suas necessidades, — ela
franziu o cenho e devolveu o olhar ao fogo.
— Minhas necessidades, — particularizou ele, — não as
da casa.
— Não estou segura de ter compreendido, — ela devolveu
bruscamente o olhar ao rosto dele. O cenho ainda mais
franzido. — Não tem um mordomo que atenda às suas
necessidades?
— Tenho mordomo.
— Então não sei que mais eu poderia fazer.
Essa mulher era muito inocente, muito para o gosto dele.
Deveria enviá-la de retorno junto a seu irmão, mas,
desgraçadamente para Evelyn, ele havia decidido que a
desejava. Não estava muito seguro de quando compreendera
aquilo, possivelmente ao abrir a porta do salão e vê-la ali
esperando. Esperando por ele. Quando alguém estivera
esperando por ele?
— E qual você pensou que era o propósito da… reunião
de ontem à noite?
— Encontrar um marido.
Rafe esteve a ponto de engasgar com o uísque. A última
coisa que lhe passaria pela mente seria casar. Se ela o
conhecesse, teria sabido. Mas aí residia parte do problema:
ela não o conhecia, e o melhor seria que as coisas
permanecessem assim.
— Surpreendeu-me muito, — continuou a jovem, — ser
trazida a sua residência quando a impressão que percebi foi
de que nem me considerava digna de me dedicar um
pensamento.
Digna de um pensamento dele? Quem dera fosse
verdade. Havia sido incapaz de pensar em outra coisa desde o
instante em que a viu. Ela invadira seus sonhos, habitara
seus pensamentos, ocupara sua mente.
— Para lhe ser justa, — continuou ela, — suspeito que
não passará muito tempo antes que receba um pedido de
minha mão. Duvido que valha a pena me contratar como
empregada.
Embora não lhe divertisse a idéia de esmagar tanta
ingenuidade, tampouco gostava de mantê-la no engano. O
melhor seria esclarecer o quanto antes.
— Você não está aqui para trabalhar em minha casa.
Está aqui para trabalhar em minha cama.
Evelyn piscou, uma e outra vez. Abriu a boca. Fechou-a.
Voltou a piscar.
— Desculpe?
— Ontem à noite o que seu irmão procurava era um
homem que a tomasse como amante, não como esposa.
Ela sacudiu a cabeça, quase paralisada pela
incredulidade, como se assimilar as palavras de Rafe
requeresse toda sua energia.
— Não pode ser. Ele prometeu a pai que se ocuparia de
que não me faltasse de nada.
— As amantes frequentemente são melhores tratadas
que as espoas. Ao menos eu não tenho esposa, o que é mais
do que posso dizer de alguns dos outros cavalheiros que
compareceram ontem à noite à reunião. Como minha
amante…
— Não é possível que me deseje como amante. Nem
sequer gosta de mim.
— Não preciso gostar para que nos deitemos. A verdade é
que será melhor que não haja nenhum sentimento entre nós.
Evelyn se levantou tão bruscamente da cadeira que
esteve a ponto de cair. Entretanto, sim lhe caiu o copo das
mãos. O extremamente caro uísque empapou o tapete.
— Equivoca-se sobre ontem à noite, — assegurou ela
com os olhos alagados de lágrimas. — Sobre as intenções de
Geoffrey. Ele não teria me trazido aqui se soubesse quais são
seus planos. Prometeu. Ele prometeu a pai…
Saiu do salão correndo. Rafe ouviu a batida da porta
principal, quase sentiu tremerem os muros diante do
impacto. Soltando um juramento, apurou a taça.
Certamente poderia ter dirigido a situação com um
pouco mais de delicadeza.
Capítulo 4

Evelyn correu. Correu. E correu.


As pernas tremiam e lhe doía o peito enquanto lutava
para encher os pulmões de ar e as lágrimas lhe nublavam a
visão. A chuva lhe golpeava o rosto e lhe empapava a roupa.
Em algum momento ela havia perdido o chapéu e os grampos,
e seus cabelos se espalhavam soltos sobre os ombros,
absorvendo a água, aumentando o peso.
Tudo era mentira. Mentira. Geoffrey não seria tão cruel.
Apesar do fato de que nunca lhe dera motivos para pensar
que tivesse carinho, nesse assunto era inocente. Certamente
ele não conhecia os horríveis planos de Rafe Easton. Quando
explicasse a seu irmão o que aquele homem lhe havia dito,
sem dúvida ele o desafiaria. As pistolas reluzirão ao
amanhecer. Pela honra de seu pai, Geoffrey salvaria a
reputação de sua irmã. Não permitiria que lhe arruinassem a
vida.
Embora nunca tivera motivos para pensar que o novo
conde fosse protegê-la, era o suficientemente cavalheiro para
não suportar que alguém se aproveitasse dela.
A única coisa que precisava fazer era chegar em casa.
Felizmente não estava longe, e recordava bem o caminho.
Uma rua, outra mais, e outra mais, e estaria lá. As poucas
pessoas com as quais cruzou no caminho, olhavam-na como
se estivesse louca. Entretanto, era Rafe Easton quem deveria
ser ingressado em um instituto psiquiátrico.
Geoffrey se desculparia pelo mal-entendido e logo
arrumaria tudo. Quando fossem velhos, ririam ao recordar
aquilo. Quando estivesse casada com um marido que a
adorasse, e com filhos. Porque seu marido a adoraria. Talvez
não ao princípio, mas sim com o tempo.
O que Rafe Easton havia proposto era asqueroso. Como
podia ser tão frio, brusco e desconsiderado? Como pudera
pensar que ela aceitaria seu contato?
Não o faria. Antes morreria. Esfregaria chãos, faria…
faria…
Ensopada até os ossos, chegou ao caminho que conduzia
a sua casa. As luzes estavam acesas, guiando-a até a porta.
Doía-lhe todo o corpo e cada vez lhe resultava mais difícil
respirar. Tropeçou, caiu sobre os joelhos, fazendo com que os
dentes rangessem. Obrigando-se a ficar de novo em pé,
cambaleou escada acima.
Esperava que a porta se abrisse. Sempre havia um
mordomo preparado. Claro que ninguém a esperava, não era
verdade? Segurou o trinco com força enquanto empurrava a
porta e…
A porta não se abriu. Estava fechada com chave!
Golpeou com a aldraba. Com todas suas forças. Uma e
outra vez, cada vez mais forte. Ninguém acudiu.
— Geoffrey! — Em um momento como aquele ele não
podia incomodar-se pelo tratamento. — Wortham! Wortham!
Milorde…
Ouviu um clique e a porta se entreabriu. O rosto do
mordomo surgiu, impedindo-lhe o acesso à casa.
— Sinto muito, senhorita. O senhor me proibiu que lhe
permita a entrada à residência.
— Como? Não, você está equivocado. Ele jamais…
— Sinto muito, senhorita. Mas temos ordens.
Com uma expressão anódina no rosto, o homem fechou
a porta. Quando ela tentou empurrá-la, encontrou-a
novamente fechada com chave.
Golpeou, chutou e gritou até ficar afônica. Os nódulos
esfolados e os dedos dos pés doloridos. Rechaçada,
horrorizada, aterrorizada, deixou-se cair ao chão. Não
restavam mais forças. A chuva a açoitava sem misericórdia,
mas, se ficasse ali o tempo suficiente, certamente alguém
terminaria por lhe abrir a porta. O mordomo havia
interpretado mal as ordens do conde. Era isso.
Foi vagamente consciente de que alguém se agachava
junto a ela. Ao levantar a vista viu Rafe Easton através da
cortina de lágrimas. Estava com os negros cabelos pegos à
cabeça e parecia tão ensopado quanto ela.
— Acompanhe-me, Evelyn, — ele lhe ordenou com voz
tranquila, inclusive suave.
— Não me deixam entrar — ela sacudiu a cabeça. —
Houve um engano. Ele não faria isto. Ele prometeu ao papai.
Prometeu.
— Você está ensopada. Ficará doente e morrerá.
— Não me importa. Ele não pode ser tão cruel para me
expulsar deste modo, — por que ela se incomodava sequer em
falar com esse descarado? Um homem que não se preocupava
com ela. O estômago da Evelyn se encolheu e ela suspeitou
que poderia ter adoecido. Repentinos calafrios a sacudiram.
Não sabia se era o frio ou os soluços que lhe provocaram
aquelas sacudidas. Jamais havia se sentido tão rechaçada em
sua vida.
Uma névoa de tristeza a envolveu. Tremia tão
violentamente e os dentes tocavam castanholas com tanta
força que ela era incapaz de pensar. Aonde iria? Não possuía
amigos, ninguém lhe ofereceria alojamento até que
conseguisse resolver aquele dilema. Não possuía dinheiro.
Tudo estava em seus aposentos. O que seu irmão lhe dissera?
“Vamos dar um passeio”. E ela se sentiu tão agradecida que
sequer o havia questionado. E de repente não tinha nada,
nem ninguém. Ela rodeou a própria cintura com os braços e
tentou conter a dor.
— Maldita seja! — Exclamou Rafe Easton.
Ali estava a prova do pouco que significava para esse
homem. Ele se atreveu a soltar um juramento em sua
presença. Considerava-a tola. Uma fulana. Alguém a quem
ninguém queria. E na realidade era assim. Ela queria se
encolher até formar uma bola.
Os fortes braços a rodearam. Evelyn foi vagamente
consciente de que a segurava contra seu largo torso e a
levantava, como se ela não pesasse mais que um travesseiro
de plumas. Ela sentiu uma forte necessidade de protestar, de
soltar um grito que despertasse os mortos, mas a única coisa
da qual foi capaz, foi encolher-se contra ele. Quem dera fosse
um homem amável. Quem dera ele tivesse pedido sua mão,
pretendido casar com ela. Quem dera suas intenções para ela
não fossem tão malévolas.
Esse homem procurava sua ruína, desapropriá-la de sua
única possibilidade de ser feliz, de encontrar um bom marido,
de ter filhos. O que queria era divertir-se com ela, arruinar
sua reputação e depois se desfazer dela. Não era isso o que
faziam os homens com suas amantes? Seu pai certamente
teria feito aquilo mesmo com sua mãe, se ela não tivesse
morrido tão jovem.
Sempre soube o que sua mãe era: bastante boa para
uma cama, mas não para o altar. Seu pai sempre a fizera se
sentir que ela era melhor que isso. Seu irmão sempre lhe
deixara claro que ela não era.
Sob o rugir da chuva, foi consciente da voz do Rafe
Easton.
— Um pouco mais, um passo mais. Já quase chegamos.
Não sabia por que ele lhe falava daquele modo. Ela não
estava dando os passos. Possivelmente pensasse que suas
palavras resultavam tranquilizadoras, mas ela sabia o que
aconteceria quando finalmente chegassem.
Esse homem lhe arrebataria a única coisa de
importância que restava, a única coisa de valor. Não podia
permitir que isso acontecesse, e tampouco podia vagar pelas
ruas. Encontraria forças para lutar contra ele. Encontraria o
modo de negociar, regatear, recuperar um pouco de orgulho e
dignidade. Foi vagamente consciente de que subiam algumas
escadas, de uma porta que se abria, da luz que inundava
tudo.
— Por Deus santo! — Exclamou uma voz que ela
reconheceu como pertencente a Laurence.
— Que lhe preparem um banho quente. Chame às
donzelas para que se ocupem dela. Está congelada. Não
moveu um músculo desde que a recolhi.
Sério? Evelyn estava segura de ter brigado todo o tempo,
embora possivelmente fosse só em sua imaginação. Foi
novamente consciente de que subiam escadas, aquela que
tanto a impressionara a primeira vez que ela entrara na
residência, antes de saber por que se encontrava ali.
Ouviu pisadas aceleradas ao seu redor, possivelmente
dos serventes. Chegaram ao primeiro andar. Uma porta se
abriu. Atravessaram uma soleira, os passos amortecidos por
grossos tapetes. Depois sentiu que ele a deixava sobre a cama
e lhe soltava as mãos que se agarravam a nuca dele.
Quando ela se agarrara a nuca dele? Por que o agarrara?
Rafe deu um passo atrás. Nenhuma carícia, nenhuma
palavra amável, nem um sussurro de consolo.
— Que seja aquecida, — rugiu ele. — Encontre roupa
seca para ela.
E de repente mãos suaves se apressaram a cuidar dela,
exortando-a a ignorar o fato de que o resto de sua vida
transcorreria nas próprias entranhas do inferno.
Maldição!
Assim que Rafe chegou a seus aposentos, fechou-a com
uma batida e começou a arrancar a roupa que o asfixiava. Os
botões saltaram e o fino tecido se rasgou. Precisava se
esforçar para respirar, e assim lamentar o momento em que
havia tomado a funesta decisão de trazer esta mulher de volta
para sua casa. Soube que era um engano no instante em que
ela lhe rodeara o pescoço com os braços, agarrando-se a ele
com força.
Mas naquele momento não podia abandoná-la, por mais
desesperadamente que tivesse desejado livrar-se daqueles
braços. De modo que continuara adiante sem deixar de
recitar seu mantra. “Um passo mais, um passo mais. Já
quase chegamos”.
Não obstante, em todo momento ele estivera
perfeitamente consciente de que estava mentindo a si próprio,
que restava muito caminho a percorrer. Por que demônios
não teve tempo de preparar a carruagem? Tinha certeza para
onde se dirigia a jovem ao fugir de sua casa.
Mas, como um idiota, correra atrás dela sob a chuva
para assegurar-se de que ela chegaria a seu destino sem ser
incomodada.
Havia contado com que aquele canalha inútil do
Wortham lhe explicasse com detalhe os planos que havia
urdido para ela, que decidira arruinar sua vida de propósito,
convertê-la no que sua mãe fora. Rafe tivera intenção de levá-
la de retorno a sua residência, assegurando-a que perdoaria
seu inadmissível comportamento por essa vez, mas que não
voltaria a tolerá-lo nunca mais.
Mas ele a vira golpear a porta fechada com chave, ele a
ouvira intercambiar algumas palavras com o mordomo que
finalmente aparecera, e depois a vira se deixar cair,
enfraquecida, rente a porta.
Maldito Wortham por ser tão covarde!
Depois de espalhar a roupa por toda a habitação, Rafe
finalmente se aproximou da lareira e lhe aplicou um fósforo
aceso. Quando o fogo finalmente esteve a seu gosto, ergueu-
se. As chamas chispavam no ar, mas ele quase não sentia o
calor. Com as pernas separadas e a cabeça agachada, apoiou
as mãos sobre o suporte da lareira e contemplou o fogo.
Finalmente capaz de respirar de novo, puxou o ar com
profundas e agitadas baforadas.
Estava furioso. Furioso com Wortham por seu insípido
manejo da situação. Furioso com a mulher por tê-lo tratado
daquele modo, com semelhante desespero. Imagens de seus
próprios uivos aos dez anos invadiram sua mente. Resultava
desconcertante sentir-se tão desesperado, não saber como
ajudar Evelyn. Havia sentido desejos de lhe gritar que parasse
de chorar, que se esforçasse, que fosse forte, que deixasse de
se comportar como um bebê.
Rafe apoiou a cabeça sobre o suporte da lareira e
agradeceu a dor que sentiu quando o mármore lhe cravou no
sobrecenho. Por isso Tristan gritara com ele assim quando ele
era pequeno, por isso ele o chamara de “bebê” todos aqueles
anos atrás? Seu irmão também se sentiu impotente, talvez
mesmo aterrorizado, com medo de estar à beira das lágrimas?
Rafe ficara irritado ao ver a jovem enfraquecida no chão,
sobretudo quando na noite anterior ela se mostrara ousada
em lhe anunciar que não se encaixavam, como se pudesse lhe
importar um mínimo.
Deveria tê-la deixado em frente à porta de seu irmão,
mas, por Deus que essa mulher lhe pertencia. Ele a
reclamara, gostasse ela ou não. Gostasse ele ou não. Ele se
esforçara muito por criar uma reputação de pessoa perigosa,
alguém que se saía com a sua, à custa do que fosse, alguém
com quem não era aconselhável brincar. O que aconteceria
com aquela reputação se soubessem que ele permitira que
uma mulher escapasse de sua casa?
A aristocracia possuía uma insaciável sede de fofocas.
Que seus irmãos e ele fossem frequentemente o centro dessas
fofocas era o cúmulo. Por que lhes interessavam as aventuras
deles, sempre escapava a sua compreensão, mas ao que
parecia se interessavam e muito, pelo desaparecimento dos
irmãos naquela fria noite de 1844. Os rumores sobre o
acontecido então devem ter sido abundantes. E, ao
retornarem à vida social, tudo piorara. Foram pontuados de
bárbaros somente porque ele próprio apontara uma pistola a
um servente, que se negou a anunciar a chegada deles ao
baile de seu tio, e Sebastian quase estrangulara o tio deles ao
vê-lo aparecer. Pouco Havia ajudado que alguns meses mais
tarde seu tio morresse misteriosamente.
De modo que, certamente, Rafe conhecia não poucas
pessoas que a essas horas já saberiam que ele tinha uma
amante. E isso significava, por Deus, que aquela mulher se
comportaria como sua amante. Gostasse ou não. Desejasse-a
ele, ou não.
Não era homem famoso por voltar atrás uma vez tomada
uma decisão. Fixava uma meta, decidia o caminho para
chegar a ela, percorria-o, e que o Senhor tivesse piedade de
qualquer um que tentasse bloqueá-lo ou impedi-lo de
alcançar seu destino.
Não soube quanto tempo esteve em frente ao fogo,
discutindo consigo mesmo, convencendo-se de que o assunto
de Evelyn, um nome que lhe custava pronunciar, estava
decidido e que seguiria adiante, custasse o que custasse,
quando um golpe de nódulos o sobressaltou.
— Sim?
— A dama terminou o banho, senhor. Agora mesmo ela
está tomando um chá — anunciou Laurence através da porta
fechada.
Os serventes sabiam que ninguém podia entrar nos
aposentos de Rafe. Ninguém. Pensavam que se tratava de
uma excentricidade. Se soubessem a verdade, acreditariam
que ele estava louco.
— Muito bem, isso é tudo — respondeu ele antes de se
afastar da lareira.
Doía-lhe muitíssimo a cabeça. Remexeu os cabelos, que
já estavam secos, por isso devia estar bastante tempo ali
parado esperando que ela estivesse preparada para recebê-lo.
Quando se perdia em seus pensamentos, os minutos
passavam sem que ele se desse conta. Jamais permitia que os
relógios governassem sua vida. Fazia o que precisava fazer, e
quando precisava fazer.
E nesse momento o que precisava fazer era falar com ela,
assegurar-se de que ela compreendia qual era a situação e
chegar a um acordo a respeito.
Nem sequer se incomodou em avisar a camareiro. Não
seria necessário se vestir formalmente. Calças e uma camisa
solta bastariam.
Contemplou a porta que separava seus aposentos dos
dela. Não a utilizaria essa noite. Entraria pela porta do
corredor, mas, depois de ter falado, ela compreenderia que
nenhuma barreira teria o poder de afastá-lo dela.
A habitação estava quente, o fogo chispava e, apesar de
estar sentada em frente à lareira, Evelyn estava congelada.
Suas roupas molhadas foram substituídas pelas de uma das
donzelas. O banho quente lhe parecera durar horas. Os
cabelos estavam lavados e presos. Ela esfregou um pé
descalço com o outro enquanto refletia sobre a urgência de
decidir o que fazer a respeito da desafortunada circunstância,
mas parecia incapaz de pouco mais que contemplar as
chamas amarelas e alaranjadas.
O estranho comportamento de Geoffrey na carruagem,
suas críticas palavras… inclusive lhe surpreendera que seu
irmão tivesse sido capaz de olhá-la nos olhos, ao menos uma
vez. Se ela tivesse decidido destroçar cada fibra de seu ser,
não teria sido capaz de olhá-lo à cara.
Amante, não esposa. Nisso ela se converteria, isso era o
que se esperava dela no futuro, o que seu irmão decidira
oferecer-lhe. Não amor, nenhuma família, nem um lugar na
sociedade. Isso ela não podia tolerar.
Que opções havia? Literalmente, suas únicas posses
eram a roupa que estava usando. Bem, a roupa que usara até
fazia pouco. A roupa que levava nesse momento nem sequer
era dela. E se dispunha dela era, unicamente, graças à
amabilidade de uma faxineira.
A porta se abriu, sem que ninguém chamasse, sem uma
advertência. Poderia ter suposto que se tratava de um
servente, mas o ar da habitação mudou, como se um forte
vendaval tivesse, de repente, varrido a estadia. O pelo da nuca
e dos braços lhe arrepiou. Não teve a menor dúvida sobre
quem era o proprietário das passadas, apesar de serem quase
silenciosas. Respirar se converteu em uma tarefa quase
impossível, mas se obrigou a fazê-lo porque se negava a
desmaiar. Já era bastante ruim que ele a tivesse visto em
uma situação tão lamentável.
Optou por centrar sua atenção no fogo, um fogo que
parecia ter diminuído subitamente.
— Tome, isto a esquentará mais que o chá.
Uma enorme mão, de compridos e fortes dedos, que
segurava um copo se introduziu em seu campo de visão,
quase lhe roçando o nariz. Ela imaginou aqueles dedos lhe
rodeando o pescoço e asfixiando-a até a morte. Respirou
fundo, reconhecendo o aroma.
— Em sua opinião o uísque é o remédio para todos os
males?
— Surpreender-se-ia com as respostas que podemos
encontrar no fundo de uma garrafa. Tome. — Mais que um
convite era uma ordem. E, por muito que a Evelyn tivesse
gostado de recusar a taça, precisava ir com cuidado.
Controlou o tremor das mãos, deixou a xícara de chá e o pires
sobre a mesinha junto à cadeira e pegou a taça que ele
oferecia.
Horas antes ela ignorara essa mesma taça que ele lhe
oferecera, mas, nesse momento, tomou um pequeno gole.
Queimava, mas Rafe Easton tinha razão, pois também a
esquentou em seu caminho para o estômago, estendendo o
calor até a ponta dos dedos.
Rafe se afastou e se situou junto à lareira, descansando
o braço sobre o suporte. Evelyn se perguntou se estava com
tanto frio quanto ela depois da corrida sob a chuva. Seus
cabelos pareciam muito mais rebeldes, mas ele não se
incomodou em pentear. A camisa branca e solta estava
abotoada somente até o peito. Calças negras se ajustavam às
largas pernas e as botas brilhavam tanto que estava segura
de que poderia se ver refletida nelas se olhasse para baixo.
O olhar de Rafe, entretanto, estava fixo nela. Ele também
levava uma taça na mão e, quando ela tomou outro gole,
imitou-a sem afastar o olhar. Era um homem corpulento. Já
havia sentido os atléticos músculos ao apoiar as mãos sobre
seu corpo, enquanto a levava nos braços. Nem uma vez ele
diminuíra o ritmo de seus passos. Nem uma vez ele respirara
com dificuldade. Ao que parecera, a incessante chuva nem
sequer o incomodava.
Suspeitava que ele fosse um homem habituado a se dar
bem. E intencionava se dar bem com ela também.
— Vou brigar, — ela anunciou. — Chutarei e gritarei, e
lhe arrancarei os olhos.
Pareceu-lhe ver um brilho de humor naqueles olhos que
sentiriam suas unhas, mas tudo aconteceu tão rápido que
não conseguiu ter certeza. Viu ele mover a garganta enquanto
tomava outro gole de uísque. Evelyn não recordava ter visto
tanto do corpo de um homem: o pescoço e o torso estavam
expostos. Refletia força, uma solidez da qual Geoffrey carecia.
Tampouco seu pai possuira. Antes de cair doente ele havia
sido um homem robusto, mas não atlético. A comida, mais
que qualquer tipo de exercício, dera forma a seu corpo. Era
evidente que Rafe Easton não passava o dia inativo, sem
outra coisa a fazer do que dar ordens aos serventes.
— Não tenho por costume forçar às mulheres, Evelyn —
ele observou finamente. — Mas sou pragmático. Se não se
converter em minha amante, que opções você tem?
Esse era o cerne da questão, ele sabia. Evelyn se
esforçou por não deixar cair os ombros de desespero.
— Ele não me permitiu trazer nada, nem sequer as joias
que meu pai me deu de presente. Poderia tê-las vendido…
— E até onde acredita que a teriam levado?
— Nem sequer teria sabido onde vendê-las, — admitiu
ela a contra gosto.
— Comigo, — continuou ele, — você terá um teto sobre a
cabeça, comida no estômago, dinheiro para comprar roupas
que rivalizarão com o vestuário da rainha, além de joias,
bagatelas, quinquilharias. Jamais carecerá de nada que eu
possa comprar.
— Mas em troca deverei entregar meu corpo.
Outro gole de uísque, um lento assentimento, um olhar
de reconhecimento com os olhos entreabertos.
— Quero um marido, uma família, — de repente, Evelyn
voltou a sentir um frio insuportável. Tomou um bom gole de
uísque, mas, nessa ocasião, não conseguiu que a
esquentasse.
— E como espera conseguir? Sentada na rua com aquele
horrível vestido negro, até que alguém passe e lhe ocorra que
gostaria de ter esta encantadora jovenzinha por esposa? O
que você comerá? Onde encontrará abrigo? Seja realista,
Evelyn. Não tem nada. Não tem ninguém. Não tem opções.
— Eu poderia trabalhar para você. Administrar a casa,
tal e como pensei…
— Já tenho alguém que se ocupa disso. Deveria despedi-
la, jogá-la na rua porque você se nega a esquentar minha
cama?
Evelyn sacudiu a cabeça e desejou ter uma veia egoísta,
pensar somente em si.
— Não, você tem razão. Isso não seria justo.
Possivelmente seria gentil de me permitir me alojar aqui
alguns dias, até que eu encontre um emprego.
— Que habilidades você possui?
Ela quis dizer algo, o que fosse, mas o certo era que nem
sequer estava segura de saber administrar uma casa. Nunca
havia ajudado os serventes. A única coisa que sabia era que
as mesas não acumulavam pó, que os fogos estavam sempre
preparados para serem acesos, o chão sempre brilhante, sua
roupa sempre engomada. Costurar lhe era fatal, a caligrafia
não era o seu forte e os números lhe eram alheios. Nunca
somavam o que deveriam somar. Sabia ler, muito bem, mas
quem a contrataria para ler?
Ao que parecia também se dava bem em beber uísque.
Esvaziou a taça e a deixou a um lado. Com movimentos
suaves e tranquilos, Rafe trocou a taça dela pela sua. Por que
ele precisava ser tão elegante, masculino e espetacularmente
bonito?
— Geoffrey me contou que você é o proprietário de um
salão de jogos. Possivelmente eu poderia trabalhar lá.
— As mulheres que trabalham lá usam muito pouca
roupa e passam a maior parte do tempo, sentadas, no colo
dos cavalheiros. Prefere abrir as pernas para muitos homens
em vez de somente para um?
Ela abriu a boca, os olhos exagerados. Se ela fosse uma
dama de verdade, ele jamais lhe falaria de uma maneira tão
direta de questões carnais. Claro que, se ela fosse uma dama
de verdade, não estaria nesse apuro.
Lorde Easton se agachou para acrescentar outra lenha
ao fogo. As calças marcaram os fortes músculos das pernas e
o firme traseiro. Evelyn se imaginou deslizando as mãos por
aquele traseiro. Seria esse seu encargo se fosse amante dele?
Tocá-lo, acariciá-lo, dizer-lhe quão maravilhoso era, embora
nesse instante o odiasse com toda sua alma?
Pegou a taça, quase cheia de uísque e bebeu a metade de
um gole. Logo conseguiu esquentá-la, mas fez que sentisse
como se as pernas já não lhe pertencessem. Se bebesse o
suficiente, seria capaz de ficar deitada debaixo desse homem
e fingir que não se encontrava realmente ali?
— Evelyn, eu sei muito bem o que é não ter nenhuma
opção — ele continuava junto ao fogo e falava sem a olhar. —
Sei o que é pensar: “esta não pode ser minha vida. Eu não me
dirigia para isto e, mesmo assim, cheguei aqui”. Para você
sobreviver deve aprender a tirar o maior partido da situação.
Não é fácil. Não é o que você quer, mas continua sendo
proprietária de sua vida, pode se arrumar com ela.
Rafe se ergueu em toda sua magnífica envergadura,
apoiou um braço sobre o suporte da lareira e a olhou com os
olhos azul gelo.
— Seu irmão se propôs humilhar você, degradá-la,
conceder um lugar na sociedade que não é nenhum lugar,
onde você jamais seria reconhecida, onde ninguém a veria.
Que melhor vingança que se converter na mais famosa
cortesã de toda Londres? Eu não a manterei oculta. Farei
ostentação de você. Ensinarei a administrar seu dinheiro.
Quando nosso tempo tiver chegado ao fim, sempre que esse
momento for ditado por mim, poderá ficar com a residência e
tudo o que contenha. Não se verá obrigada a se converter na
amante de outro. Poderá escolher suas companhias, mostrar-
se caprichosa. Parece um trato justo.
— Justo? Minha reputação ficaria arruinada.
— Sua reputação já estava arruinada no instante em que
você nasceu.
O estômago de Evelyn deu um tombo diante da enorme
verdade que acabava de escutar. Seu pai a protegera de
fofocas e rumores e, ao fazê-lo, concedera-lhe falsas
expectativas. Havia chegado a pensar que poderia se casar
com um lorde, e de repente descobria que não era bastante
boa nem para um plebeu.
Estudou atentamente o homem que estava em sua
frente. Não havia amabilidade em seus traços, nem
compaixão ou simpatia. Mesmo assim, ele fora atrás dela,
levara-a nos braços sob a chuva. Fizera aquilo porque a
considerava sua propriedade ou porque, tal e como havia dito,
ele sabia o que era estar na mesma posição em que ela se
encontrava? Mas como era isso possível sendo o terceiro filho
de um duque?
— Quero uma resposta já, — apressou Rafe.
— Nem sequer vai conceder a amabilidade de permitir
consultar o travesseiro?
— Já lhe disse ontem à noite que eu não sou amável.
O que sim era, saltava à vista, era forte, implacável,
crédulo. Se pudesse aprender com esse homem a se
comportar do mesmo modo, possivelmente ninguém voltaria a
se aproveitar dela, nunca mais. O estômago lhe encolheu ao
compreender que todos os homens que compareceram à
reunião da noite anterior estiveram pensando em se divertir
com ela. Os olhares lascivos começavam a ter mais sentido.
Suspeitava que um ou dois deles já a teriam em posição
horizontal.
— E se disser que não?
— Farei com que os serventes lhe devolvam as roupas
molhadas para que possa partir.
“Para ir aonde? Para fazer o quê?”.
— A única coisa que me oferece é a ilusão de uma
escolha.
— Eu sabia que você era uma mulher inteligente — ele a
olhou com um inconfundível brilho de avaliação no olhar.
— Prometa-me que Geoffrey lamentará o que fez?
— Tenho um dom para fazer com que os homens
lamentem suas ações.
Evelyn não estava segura de que se tratasse de um
talento que alguém pudesse alardear, mas não duvidava de
que ele fosse um homem de palavra. Já poderia tê-la tomado.
Poderia ter irrompido na estadia e ter se aliviado com ela.
Apesar de sua ameaça de brigar, era muito consciente de que
seria capaz de conquistá-la com facilidade se se propusesse.
Que ele não tivesse feito ainda lhe dizia muitas coisas sobre
seu caráter, ao menos no que dizia respeito às mulheres.
— Suponho que nosso “acordo”, começará esta mesma
noite.
— Esta noite não. É tarde e, sem dúvida, deve estar
cansada. Darei alguns dias para que se acostume à ideia,
para que se sinta mais íntima comigo. Não quero que tema o
que vai acontecer entre nós. Mas não se equivoque: se passar
esta noite aqui, passará as outras noites em minha cama.
O tom de sua voz era frio e desumano. Era o proprietário
de uma casa de jogo clandestino de apostas, um homem ao
qual Geoffrey devia dinheiro. Um homem que se manteve
afastado do resto dos lordes a noite anterior, lordes que o
contemplavam com desconfiança.
— Tem uma moeda? — Perguntou ela.
— Uma moeda? — Rafe a olhou estranhando.
— Meu pai me ensinou isto, — Evelyn assentiu com o
estômago cada vez mais encolhido. — Cada vez que tenho
uma decisão difícil para tomar, e não sei o que fazer, lanço
uma moeda ao ar.
Pareceu-lhe ver por um instante os lábios de lorde
Easton desenharem uma careta, quase um sorriso.
— Vai permitir que o azar dite sobre uma questão tão
séria?
— Deveria resultar de seu agrado, sendo o proprietário
de um salão de jogos.
— O azar não costuma ser um bom aliado.
— Neste momento, pode ser que seja o único aliado que
eu tenha. A moeda?
Rafe respirou fundo, contemplou-a atentamente, como se
estivesse a ponto de acrescentar algo mais, mas ao final
afundou a mão no pequeno bolso da calça, tirou uma moeda
de prata e a ofereceu.
Ela a aceitou e acariciou com o polegar o perfil da rainha
Vitória. Depois de respirar fundo, lançou-a ao ar e permitiu
que caísse sobre o tapete.
— Cara, — ela anunciou com calma. — Fico.
— Supõe-se que, antes de lançar a moeda, deve
especificar que decisão vai ligada a cada lado — ele a olhou
com os olhos entreabertos.
— Meu pai me ensinou que não precisava fazer assim.
— Não devia ser um grande jogador, seu pai.
— Não, — ela sacudiu a cabeça, — pois apostou que meu
irmão se ocuparia de meu bem-estar. Uma aposta bastante
desafortunada.
— Isso ainda está por vir, — Rafe se agachou, recuperou
a moeda e a guardou no bolso. — Encontra-se em posição de
ganhar muito.
— Mas a um preço inadmissível.
— Mesmo assim, aceita os termos?
Por mais que desejasse fazer o contrário, Evelyn
assentiu. Acabava de decidir seu destino e o seguiria até o
final.
Rafe deu um passo à frente, colocou-se diante de sua
nova amante e lhe estendeu uma mão. Uma mão grande, de
dedos compridos, sem luva.
Evelyn pensava que engolira um pássaro, pois o interior
de seu peito vibrava como se estivesse produzindo-se um
bater de asas.
— Assegurou-me de que esta noite não se deitaria
comigo — ela protestou com voz débil, temerosa. Como odiava
mostrar tanta fragilidade.
— E não o farei. Somente queria ajudá-la a ficar em pé.
Ela posou sua mão na dele e a viu desaparecer,
diminuta, quando ele a envolveu com seus dedos. Se
quisesse, esse homem poderia rompê-la com grande
facilidade. Surpreendeu-lhe a rugosidade de sua pele. Essas
não eram mãos de um cavalheiro. Puxou-a e, com habilidade,
colocou-lhe o braço atrás das costas, agarrando-lhe o outro
pulso, segurando as duas mãos com firmeza. Com a mão que
ficava livre, acariciou-lhe a bochecha com o polegar. — Você
aprenderá a fazer as coisas como eu gosto, — ele sussurrou
com uma voz que pressagiava muitos prazeres. Seus olhares
colidiram e ela foi consciente de que, embora não a estivesse
olhando fixamente, teria sido incapaz de se afastar dele. —
Tenho normas muito concretas. A primeira, que jamais me
envolva com seus braços.
— Por que não? — Ela perguntou quase em um
sussurro.
— Porque assim eu quero que seja — Rafe se agachou e
aproximou os lábios da boca dela.
Evelyn soube que, se não estivesse presa pelos pulsos,
instintivamente seus braços o teriam rodeado, embora fosse
somente para se manter de pé, pois seus joelhos estavam a
ponto de ceder.
A língua de lorde Easton se deslizou pela boca de Evelyn,
como se a estivesse desenhando, como se desejasse se
familiarizar intimamente com ela. E de repente a obrigou a
separar os lábios e se afundou no interior de sua boca com
uma urgência que a surpreendeu. Possivelmente ela não fosse
do agrado dele, mas cada vez era mais evidente que ele
adorava sua boca. Rafe explorou cada canto, cada fenda. E
quando ela se atreveu a imitá-lo com um movimento de sua
própria língua, ele gemeu e a apertou contra seu peito.
Através da roupa que os separava, ela sentiu o acelerado
pulsar do coração dele, o crescente ritmo.
Quando tentou se soltar, Rafe a agarrou com mais força
pelos punhos, a ponto de lhe causar dor. Evelyn relaxou os
ombros, os braços. Por que ele não lhe permitia abraçá-lo? Já
o abraçara sob a chuva enquanto ele a levava a sua casa.
Havia feito mal? Pesava mais do que pensava? O resultado
fora desagradável?
Não sabia o que pensar daquela regra, de suas
exigências, e se perguntou se ele teria outras. Suspeitava que
sim. Havia aceitado permitir que ele fizesse o que quisesse
com ela e, se o beijo fosse uma amostra dos prazeres que
encontraria com ele, possivelmente Rafe tivesse razão, e o
trato resultaria ser melhor do que o esperado.
O beijo se fez mais intenso, mais ardente. Os gemidos de
Rafe começaram a misturar-se com os suspiros de Evelyn,
que se sentia culpada por desfrutar com o modo como ele
brincava com sua boca. Deveria estar envergonhada, mas
possivelmente se parecia mais com sua mãe do que
acreditava. Sua mãe não precisara se casar para se deitar
com o conde. E ela começava a compreender que os pontos
contra do acordo possivelmente fossem menores do que os
benefícios.
Afastando-se, ele a olhou, os olhos azuis um pouco
menos gélidos, com um ardor que surpreendeu a jovem.
— Acredito que você fará o trabalho muito bem —
observou Rafe enquanto a soltava e saía da habitação antes
que ela conseguisse reunir coragem suficiente para
responder.
Evelyn se deixou cair na cadeira, encolheu as pernas e
as rodeou fortemente com os braços. O comentário de Rafe
lhe provocara uma sensação de vazio. De repente, seu irmão
não era o único que ela queria ver lamentar por como a
tratara.
Também desejava que Rafe Easton lamentasse tê-la
tomado como amante em vez de esposa.
Capítulo 5

Beijá-la fora um colossal engano de julgamento. Seus


lábios eram de seda. A boca, com um gosto a uísque,
resultara-lhe especialmente atrativa. Os suspiros de Evelyn
foram tão guturais e profundos quanto sua voz. Sons que lhe
dispararam o desejo.
Como regra geral, não estava acostumado a cometer
enganos de julgamento, mas, desde o instante em que essa
mulher entrara em sua vida, resultara-lhe difícil tomar
decisões racionais.
Ele a reclamara como amante.
Correra atrás dela sob a chuva como um idiota.
Ele a levara nos braços até em casa, sabendo o inferno
que ia desencadear.
Prometera lhe dar tempo, em vez de se afundar em seu
úmido calor naquela mesma noite, como desejava
desesperadamente fazer.
E a beijara.
E nesse preciso instante se dirigia para a residência de
Wortham.
Ao menos nessa ocasião tivera o bom senso de ir de
carruagem. Abotoou o colete. Odiava ter que se vestir
adequadamente para ser levado a sério. A roupa sempre o
fazia se sentir à beira da asfixia. Sem dúvida poderia rastrear
sua aversão às experiências vividas no orfanato.
A chegada à residência de Wortham lhe liberou de
precisar reviver aquelas lembranças. Não lhe resultava
agradável, e não pensava naquilo fazia anos. Havia esquecido
aquela época no fundo de sua memória, como fazia com tudo
aquilo no que não desejava recrear-se. Não faria nenhum bem
trazê-las a luz e examiná-las mais atentamente, mas sim
remexeria em todo o ressentimento que sentia por seus
irmãos, pôr o terem abandonado.
Desceu da carruagem, subiu as escadas e golpeou a
porta com a aldraba uma, duas, três vezes. O mordomo
respondeu com uma lentidão que, se fosse empregado dele,
ter-lhe-ia suposto a demissão. E não era desculpa que fosse
mais de meia-noite.
Assim que a porta se abriu uma fresta, Rafe irrompeu na
residência, empurrando o mordomo a um lado. Evelyn deveria
ter feito o mesmo. Não deveria ter permitido que ele lhe
bloqueasse a entrada.
Havia sido excessivamente educada. Possivelmente não
possuísse o título de dama, mas por Deus que o era. Muito
boa para essa gente, embora isso não o fizesse desejá-la nem
um ápice menos.
— Onde está Wortham? — Ele rugiu.
— Não se encontra em…
Rafe se voltou e cravou um duro olhar no homem. Um
olhar que havia aperfeiçoado ao longo dos anos em que
trabalhara como cobrador de dívidas para alguém que se
movia na zona obscura da lei. Sabia que esse olhar falava de
castigo e retaliação. E aterrorizava até aos homens mais
fornidos.
— No escritório, senhor — o adoentado mordomo apenas
conseguiu balbuciar.
Ele estivera ali na noite anterior, de modo que não lhe
custou encontrá-lo. Nem sequer se incomodou em amortecer
as pisadas de seus enormes pés. Queria que Wortham tivesse
consciência de que o inferno estava a ponto de desatar sobre
sua cabeça.
Rafe abriu a porta de repente e Wortham ficou de pé de
um salto. Estava sentado atrás da escrivaninha, absorto em
algo. Livros de contas, possivelmente. Tanto fazia.
— Já mudou de ideia sobre ela? — Perguntou o conde
com um bufo. — Sabia que ela não estaria à altura.
— Seu pai lhe deu de presente algumas joias. Quero-as.
— Isso não fazia parte do trato — Wortham adotou a
expressão de alguém a quem acabaram de golpear.
— Abandonou-a em minha residência sem nada mais
que a roupa que usava.
— Porque a partir de agora ela é sua. Todo o resto foi
adquirido por meu pai, e isso os converte em meu.
— As joias não. Entregue-me e poderá seguir respirando.
— Começo a me fartar dessa ameaça. Já não lhe devo
nada. De modo que não vejo o motivo para… — Rafe rodeou a
escrivaninha com impressionante rapidez, agarrou Wortham
pelo pescoço e o empurrou contra a parede.
— Não vê motivo para quê? Para me dar atenção?
Antecipando o desdobramento de força ao que se veria
obrigado a recorrer, não colocara luvas. Sabia o ponto exato
que devia pressionar com o polegar para interromper o
fornecimento de ar, para provocar dor. Wortham abriu os
olhos desmesuradamente. Afundou os dedos nos pulsos de
Rafe. A pressão deixaria marcas. Se não tivesse um propósito,
ter-lhe-ia quebrado o pescoço, mas Wortham não merecia a
morte. E, apesar da longa lista de pecados em nome de Rafe
Easton, o assassinato de um homem que não merecia a morte
não estava entre eles.
Wortham ofegou. E assentiu.
— Tem algo para me dizer? — Rafe apertou com menos
força.
— Eu as vendi, — respondeu o outro homem com voz
rouca.
De modo que foi assim que pagou suas dívidas. Rafe o
soltou e se afastou para evitar um desastre, pois Wortham
parecia estar a ponto de degustar o jantar pela segunda vez.
— A quem?
— Não sei, — o conde esfregou a nuca e sacudiu a
cabeça. — A um cambista.
— Descreva-o.
— Pequeno, cabelo negro, dente pretos. Se parece
bastante a um roedor. Reuniu-se comigo em um botequim.
— Como se chama esse botequim? — Rafe arqueou as
sobrancelhas.
— The Golden Lion.
— Bem, — lorde Easton considerou deixar Wortham
como membro de seu clube, pois preferia tê-lo onde pudesse
vê-lo. Além disso, assim poderia atormentá-lo com mais
facilidade. E esse era um homem que merecia ser
atormentado. — Se eu descobrir algo mais que sua irmã
deseja recuperar, tenha por certo que voltarei para reclamar.
— Estou vendendo coisas.
— Pois não se desfaça de nada mais de sua propriedade
até ter minhas notícias.
— Isso não fazia parte do acordo.
— Estou reestruturando o acordo.
— Não tem direito a me dar ordens, — o rosto do
Wortham avermelhou intensamente. — Sou um conde.
— Cuidado com suas palavras, Wortham, ou da próxima
vez pode ser que não o solte até vê-lo dar a mão ao próprio
demônio.
Rafe deu meia volta e saiu dali. Estava bastante
familiarizado com o The Golden Lion, o leão dourado, embora,
em sua opinião lhe seria melhor se chamado de “O magricela
gato manchado”. A clientela não se encontrava precisamente
entre os mais nobres de Londres. E precisamente por isso,
Rafe se sentiria bastante confortável ali, enquanto procurava
o homem que estaria com as joias que lhe interessavam.
Evelyn despertou com a sensação de que uma forte
tormenta tivesse desabado em sua cabeça. Era um milagre
que tivesse dormido. Tentou não pensar no acordo ao qual
aceitara. Com a pálida luz da manhã entrando pela janela,
considerou a possibilidade de se vestir, partir discretamente e
procurar refúgio em outro lugar. Sem dúvida deveria existir
algum lugar que acolhesse mulheres em sua situação. Mas,
inclusive enquanto pensava nisso, sabia que ele não a
deixaria partir facilmente.
Ele a encontraria. E a faria pagar por passar a noite em
sua residência. Disso não havia dúvida. Era um homem de
palavra. Evelyn começava a compreender por que os outros
lordes o evitavam como se fosse uma peste. Se os tratava
como a tratou, não devia ter muitos amigos. Ninguém gostava
dos valentões.
Ela se voltou e se sentou de repente ao ver uma jovem
donzela de pé junto à cama. A garota fez uma reverência.
— Bom dia, senhorita. Sou Lilás. Trouxe sua roupa,
recém engomada. O senhor espera que se reúna com ele para
tomar o café da manhã.
Como se o próprio Rafe tivesse irrompido na habitação,
todo o ar desapareceu e ela não conseguiu encher os
pulmões.
— Ele está aqui?
— Sim, senhorita.
Que tolice se sentir tão desconcertada. O homem vivia
ali. Evidentemente teria que vê-lo, mas ela pensara que não
seria até a noite.
— De acordo então.
Fingiria que estava de acordo com a situação. Tiraria o
maior proveito. Algum dia faria que dois homens em concreto
lamentassem ter se aproveitado de sua situação em benefício
próprio.
Surpreendeu-lhe a habilidade da donzela para arrumá-
la, mas não quis considerar a possibilidade de não ser a
primeira amante que se alojou naquela residência. Afinal, o
que importava quantas tivesse havido? Não queria pensar
nisso, não queria saber nada sobre ele. Ela se limitaria a fazer
o que tivesse que fazer até que chegasse o dia em que pudesse
fazer o que quisesse.
Depois de se vestir e se pentear, seguiu Lilás pelos
corredores, cada vez mais impressionada pelas estadias
diante das quais elas passavam. A residência, e tudo o que
nela havia, devia valer uma fortuna.
Um lacaio de grande porte permanecia de pé frente a
uma porta de folha dupla, fechada. Ao vê-la se aproximar,
abriu uma delas.
— Desfrute do café da manhã, senhorita — Lilás sorriu.
A garota partiu apressadamente e Evelyn não conseguiu
evitar pensar que era pouco provável que desfrutasse de algo
nesse dia. Suportaria porque não havia escolha. Mas
certamente não desfrutaria disso.
Respirou fundo ajeitou os ombros antes de entrar no
salão. Rafe Easton estava sentado no extremo de uma longa
mesa, lendo o periódico. Deixou-o a um lado e se levantou.
— Bom dia, Eve. Espero que tenha dormido bem.
Como ela pudera esquecer o quão tremendamente
atraente ele era? Estava muito bem vestido com traje de lenço
e colete. Os negros cabelos estavam bem penteados e ela
sentiu falta dos cachos da noite anterior. Suavizavam-lhe um
pouco o rosto. Mas àquela manhã não havia nada suave nele.
— Meu nome é Evelyn — ela lhe informou em um intento
de recuperar a compostura, de convencer a si mesma de que
seria capaz de dirigir a monstruosa e pouco atrativa tarefa
que se estendia diante dela.
— Evelyn eu não gosto.
— Não gosta?
— Vou proporcionar um lar, comida, roupa, joias,
serventes… tudo deverá me agradar. Passará seus dias
preparando-se para minha chegada. Entreter-me-á com sua
conversação, com o pianoforte. Lerá para mim.
Que preço ela deveria pagar se nesse preciso instante
desse meia-volta e saísse da estadia, se saísse pela porta?
Rafe a olhava fixamente e teve a sensação de que ele
sabia exatamente o que ela estava pensando. Possivelmente
estivesse certo e uma mudança de nome fosse o indicado.
Evelyn era muito diferente da mulher em que ela se
converteria. Evelyn fora amada. Duvidava muito que Eve
fosse alguma vez, e certamente não por esse homem que
parecia incapaz de sentir emoção alguma.
— Diga ao Andrew o que quer tomar de café da manhã e
ele preparará um prato — Rafe agitou uma mão para uma
mesa em um canto.
Ela se voltou para o lacaio. É obvio, era alto e atrativo.
Os melhores lacaios eram altos e atléticos. Ao que parecia
Rafe Easton somente se rodeava do melhor. Ela se aproximou
da mesa e escolheu ovo ponche, torrada e presunto. Não em
grande quantidade, pois duvidava que fosse capaz de comer
algo. Toda aquela maravilhosa comida seria desperdiçada.
Andrew deixou o prato sobre a mesa e lhe puxou uma
cadeira. Evelyn se sentou e viu Rafe fazer o mesmo, retomar o
periódico e sacudi-lo. Ela pegou o guardanapo e parou em
seco.
Sobre o tecido de linho branco estava o colar de safiras e
bracelete de conjunto que seu pai lhe dera quando fez
dezenove anos. Feliz, acariciou as joias, quase não se
atrevendo a acreditar que estivessem ali realmente.
Teve que se esforçar para não chorar enquanto levantava
o olhar para Rafe. Antes dele ter tempo de pousar o olhar no
periódico, não passou inadvertido a ela, que estivera
observando-a.
— Como você as conseguiu? — Perguntou ela.
Rafe não a olhou. Limitou-se a entrefechar os olhos,
como se tivesse dificuldades para ler as letras impressas.
— Ontem à noite fiz uma visita para Wortham. Se houver
algo mais que deseje recuperar da residência, deixe-me saber
e faremos uma parada no caminho à oficina de costura — ele
voltou a deixar o periódico sobre a mesa. — A propósito, quem
é sua costureira?
— Chama-se Margaret — Evelyn sacudiu a cabeça, —
mas sempre ia à residência. Não sei onde ela trabalha nem
como contatá-la.
— Então precisarei fazer algumas averiguações para
saber onde devo levá-la para comprar roupa, — Rafe
suspirou. — Quero vê-la vestida com o melhor.
Evelyn apenas o escutava. Continuava muito
surpreendida de ver as joias.
— Não consigo acreditar no que você fez, que tenha se
dado tanto trabalho.
— Não lhe expliquei que nenhuma vez lhe faltaria nada
que eu pudesse comprar?
— Pagou Geoffrey pelas joias?
— Não, paguei ao rato a quem ele as vendeu. Alegra-me
saber que ele não tentou me enganar e me dar as peças
erradas.
— Não imagino ninguém se atrevendo a enganá-lo.
— Faz muito tempo que ninguém tenta fazê-lo. — Rafe
inclinou a cabeça em reconhecimento às suas palavras. —
Você sabe ler, não é?
— Sim, — ela o olhou estranhando a mudança de
assunto.
— Bem. Poderá ler para mim — ele dobrou o periódico e
fez um gesto ao lacaio. O homem o depositou junto ao garfo
de Evelyn.
— Por que quer que eu leia as notícias em voz alta?
— Porque eu gosto do som de sua voz.
— Geoffrey me disse uma vez que eu tenho voz de
homem, — ela soltou uma pequena gargalhada.
— Acredito que já deixei claro que opino ser ele um
idiota.
Com supremo cuidado, Evelyn afastou as joias do
guardanapo, agitou-as no ar e as estendeu sobre seu regaço.
— Como acabou sendo dono de um estabelecimento de
jogos?
— O que importa isso?
Ela brincou com o ovo e lançou um olhar ao lacaio. Os
serventes eram discretos, e suspeitava que os dele seriam
mais. Mesmo assim, a situação resultava muito incômoda.
— O lógico seria que lhe conhecesse um pouco, antes
de… antes das coisas se tornarem mais íntimas entre nós.
Assim terei uma melhor ideia do que deseja.
— Eu lhe direi o que desejo.
— Tudo?
— Tudo.
— Entendo, — Evelyn cortou um pedaço de presunto. —
Eu gosto de montar.
Ele a contemplou como se lhe tivessem saído quatro
braços.
— Pensei que seria útil que soubesse algo de mim.
— Já sei tudo o que preciso saber sobre você.
Ao que parecia, o acordo entre eles resultaria do mais
estéril e Evelyn se perguntou se seria capaz de suportar.
Pegou o periódico da mesa.
— Por onde começo?
Odiava aquele tremor em sua voz, pois ameaçava revelar
suas dúvidas e arrependimentos.
— Você tem um cavalo? — Ele perguntou com voz
impessoal, sem emoção, como se não lhe importasse
realmente a resposta.
— Sim, — Evelyn disse. — Uma égua. Chama-se Snowy,
é muito branca. Está na residência do campo. Suponho que
nunca voltarei a vê-la.
— Você a quer?
Ela o olhou fixamente.
— Se a deseja, só precisa me dizer, eu conseguirei.
— Não quero me endividar mais.
— Em nosso acordo não há nenhuma dívida. Dará o que
eu pedir. E o que você quiser, você terá. Você gostaria de ter
esse cavalo?
O que ela gostaria era se ver livre desse homem. À luz do
novo dia, sua decisão de ficar parecia precipitada.
— Geoffrey jamais aceitará. É um puro sangue de
incrível valor.
— Confie em mim, Eve, Wortham não será nenhum
obstáculo para nada que você deseje.
Evelyn voltou a acariciar as joias com as pontas dos
dedos. Estava realmente considerando lhe pedir algo? Assim
que desse um passo naquela direção, Rafe seria seu dono de
pleno direito.
— No estúdio da residência de Londres há um retrato de
meu pai. Prefiro o retrato ao cavalo.
— Terá ambas as coisas — Rafe empurrou a cadeira para
trás e se levantou. — Você lerá para mim outro dia.
Empregamos nesta conversação todo o tempo de que eu
disponho e preciso passar pelo clube. Esta tarde nos
ocuparemos de seu vestuário.
Ele se dirigiu para a porta, mas antes se deteve junto à
cadeira da Evelyn, puxou o colete e refletiu sobre a
possibilidade de que ele tivesse ficado pequeno enquanto
comia.
— Ontem à noite eu lhe disse que jamais careceria de
nada que eu pudesse comprar. Não duvide em me pedir algo
que deseje. Porque eu prometo que eu não hesitarei em tomar
o que eu desejar de você.
Um bom momento depois de que ele partiu do salão, as
palavras seguiam ressonando na cabeça, no coração, e na
alma da jovem.

A mesa era malditamente longa, mas, inclusive apesar da


distância que os separava, ele vira como se iluminaram os
olhos dela ao ver suas joias. Imaginou como teriam brilhado
no dia que as recebeu das mãos de seu pai. Certamente não
esperava um presente assim. Dava a impressão de que nunca
esperava nada.
Por Deus! Supunha-se que as amantes deviam ser
exigentes e caprichosas. Evelyn deveria lhe estar pedindo
coisas, não que ele a animasse a fazê-lo. Não deveria fazê-lo
pensar em parar em uma joalheria e comprar algumas pedras
cuja cor lhe recordasse os olhos dela. As safiras se
aproximavam o bastante, mas seu tom era muito azulado,
não o bastante violeta. Possivelmente uma ametista. Não, não
eram suficientes azuis. Era uma lástima que não tivesse o
poder de criar uma pedra preciosa.
Desprezou a ideia em seguida. De onde surgira toda
aquela fantasia?
A carruagem se deteve em frente a Easton House, a
residência de seu irmão mais velho. Depois de saltar da
carruagem, ele subiu as escadas da casa. Fazia tempo que
não vinha ali. Mesmo assim, constava-lhe que Keswick e sua
esposa já haviam chegado a Londres para passar a temporada
de bailes que logo começaria. A porta se abriu antes que ele
pudesse chamar.
— Thomas, — ele saudou sucintamente ao mordomo.
— Lorde Rafe, passou muito tempo. Se me permite dizer-
lhe, tem muito bom aspecto.
— Permito-lhe isso. A duquesa está em casa? Preciso
falar com ela.
— Anunciarei sua visita.
Enquanto esperava, Rafe se deteve em frente a um
retrato de Sebastian e Tristan quando eram meninos. A
semelhança era incrível, embora no olhar no Tristan sempre
houvesse um brilho de travessura. Seu tio destruíra a maioria
dos retratos familiares. Não havia nenhum de Rafe quando
menino, nenhum com seus irmãos. Melhor assim. Não havia
necessidade de recordar o que lhes fora arrebatado.
Ele se voltou ao ouvir umas suaves pisadas e viu Mary se
aproximar dele. Seus vermelhos cabelos estavam
perfeitamente recolhidos sobre a cabeça, os olhos verdes
faiscantes, o sorriso tão amplo que ele se perguntou como ela
conseguia que não lhe deslocasse a mandíbula. Antes de
poder evitá-la, tomou as mãos dele, puxou-as para baixo,
ficou nas pontas dos pés e o beijou na bochecha. Se fosse
qualquer outro, teria achado aquela amostra de carinho
encantadora. Entretanto, Rafe a suportou com dificuldade
para não ferir os sentimentos de sua cunhada.
Se não fosse por ela, estariam todos mortos. Ela os havia
ajudado a escapar da torre em que o tio os havia encerrado.
Ela tinha dois anos mais que ele, mas jamais tinha conhecido
uma garota, ou uma mulher, mais valente.
Embora Eve, certamente, também estivesse
demonstrando possuir coragem. Não esperava vê-la em sua
residência pela manhã. Estava convencido de que ela
escaparia em meio da escuridão, e por isso ele permanecera
em pé toda a noite, sentado ao final do corredor, vigilante.
Mas ainda não sabia se a teria deixado ir ou se a teria
obrigado a ficar.
— Alegra-me vê-lo, — Mary lhe apertou os ombros, os
braços, as mãos, como se tentasse assegurar-se de que ele
realmente estava ali.
— Não sei... — com não pouco sentimento de culpa, Rafe
se afastou dela, fora de seu alcance. — Queria lhe
perguntar…
— Não responderei nada se não se sentar comigo no
salão um momento e aceitar uma xícara de chá.
— Temo que eu não tenha tempo.
— Pois não insisto mais. Encantou-me vê-lo, Rafe —
Mary deu meia volta e começou a se afastar. Ele havia
esquecido a quão teimosa podia ser aquela menina.
— Uma xícara, — ele resmungou entre dentes.
Ela se voltou, os olhos emitindo brilhos de vitória e
travessura. Rafe recordou a primeira vez que havia tornado a
vê-la, depois da volta de seus irmãos. Naquela época ela
estivera prometida a outra pessoa, mas não luzia esse aspecto
de felicidade. Supôs que Keswick era bom para ela. Sabia que
era feliz com ela. Que homem não seria?
— Estupendo.
Mary voltou a esticar a mão, como se fosse pegá-lo pelo
braço, mas Rafe conseguiu afastar-se discretamente enquanto
se dirigia ao salão. Aquele fora seu lar quando menino,
durante as estadias familiares em Londres. Deveria se sentir
confortável ali, mas morria por partir.
— Keswick não está aqui — anunciou ela com doçura,
olhando-o fixamente enquanto se acomodavam em cadeiras
junto ao fogo.
— As aventuras dele não são assunto meu — ele
encolheu os ombros — Não vim para vê-lo hoje.
— Quem dera fizesse isso. Refiro-me a vir a vê-lo.
— Agora que nosso tio está morto, já não temos nada em
comum, Mary.
— Você se surpreenderia.
— Duvido.
— Você é um teimoso…
Rafe suspeitou que ela ia dizer “imbecil”, mas a chegada
do chá a interrompeu. Observou-a preparar as xícaras, mas
eram os dedos de Eve que ele via. Pequenos, delicados,
dispondo tudo lentamente.
Teria gostado de ficar para vê-la comer. Estupidez de
desejo. Considerou retornar a sua casa imediatamente, depois
de se despedir de sua cunhada, mas não queria fazê-la
acreditar que ele estava ansioso por desfrutar de sua
companhia. Porque não estava. Entretanto sim queria
resolver o assunto da roupa. Não suportava vê-la vestida de
preto.
— Eu queria saber quem costura a roupa para você, —
ele anunciou enquanto aceitava a xícara de chá que Mary lhe
oferecia.
— Costumo frequentar o estabelecimento da Madame
Charmaine, no St. James.
Ela o olhou por cima da borda da xícara enquanto
tomava um gole. Não parecia surpresa, e Rafe suspeitou que
ela também estaria à par da existência de sua amante.
— Esplêndido, — não lhe resultaria difícil de encontrar.
— Obrigado, Mary, — ele deixou a xícara de um lado. Nem
sequer havia provado o chá.
— Não vá, — ela o olhou.
— Tenho muitas coisas a fazer.
— Não perguntei isso, Rafe. Estava constatando o fato de
que você não deve ir.
— Mary…
— Fale-me da garota, essa para a qual necessita uma
costureira.
— Não acredito que seja uma conversa adequada. — Rafe
franziu o cenho. — É minha amante.
— Acredito que eu gostaria. Deveriam vir jantar.
— Você enlouqueceu! Este é o lar de um duque. As
pessoas não trazem aqui as suas amantes.
— Se essa mulher for importante para você…
— Não é.
— Então por que a converteu em sua amante? — Mary
beliscou o sobrecenho de um modo que parecia doloroso.
Por que demônios acreditava sua cunhada que ele havia
feito aquilo? Ela era uma mulher casada. Conhecia as
necessidades de um homem.
— Não penso falar disto com você. Tenha um bom dia.
E antes de que ela pudesse piorar ainda mais, Rafe saiu
furioso da casa. Eve não era assunto de ninguém, somente
dele. E assim ele queria que permanecesse.
— Acredito que essa garota signifique algo para ele, —
observou Mary enquanto passeava com Keswick pelo jardim
naquela mesma manhã.
— Os homens não se casam com suas amantes.
— Não insinuo que deva se casar com ela, mas
possivelmente essa garota poderia chegar a uma parte dele
que continua pertencendo a Pembrook.
— Tem alguma ideia extravagante, querida?
Mary apertou com mais força o braço de seu marido.
Caminhava junto a ele, do lado do rosto sem cicatrizes, mas
somente para que ele pudesse vê-la. As horríveis cicatrizes
que destroçavam a face dele não a preocupavam. Nunca a
preocuparam, salvo como testemunho do muito que ele havia
sofrido. Ela o amava quando menina. Continuava amando-o.
Sempre o amaria.
— Ele continua ali, sabe? O menino que ele era. Mas está
perdido.
Keswick se deteve e abraçou a sua esposa.
— Então espero que tenha razão com respeito a essa
mulher. Porque eu sei bem o que é estar perdido. E sei
também o que é finalmente retornar a casa. Você é meu lar.
O duque a beijou apaixonadamente, quase com
desespero. Mary jamais se fartaria da paixão entre eles. Ele a
tomou nos braços e se dirigiu para a casa com ela rindo. Ao
que parecia ele tampouco se cansaria disso.
Capítulo 6

Evelyn rondou por corredores e habitações. Rafe não


podia ter falado a sério que sua intenção era lhe dar de
presente a residência. Sem dúvida ele se referira que
compraria outra, menor, possivelmente uma cabana em
algum lugar. Essa residência fora construída para uma
família grande, uma que oferecesse frequentes festas. Havia
salões com lustres de cristal, e ela imaginou a luz iluminando
os casais enquanto dançavam. A biblioteca continha várias
áreas para sentar e as paredes estavam forradas de livros. As
cadeiras e as cortinas eram de cor borgonha e verde. Tudo era
lindo.
Não, era impossível que tivesse intenção de lhe dar seu
lar.
O que mais a fascinava era que em cada estadia havia
um globo terrestre, ou a foto de um. Ela se aproximou da
janela de um pequeno salão e contemplou os exuberantes
jardins. Imaginava muito bem à senhora da casa fazendo o
próprio, encontrando paz e consolo na contemplação.
Evelyn fechou os olhos e fez um esforço por não abrir a
porta, sair lá fora e atravessar o jardim, seguir caminhando
para os prados… Poderia viver muito bem ali, mas o preço que
sua alma deveria pagar por aquilo…
Nem sequer se atrevia a imaginar o preço que ela pagaria
ao final.
Abriu os olhos e apertou a mandíbula. O que sim estava
segura, era de que Geoffrey pagaria mais, de um modo ou de
outro. Nunca se considerara vingativa, mas nesse momento
ela o odiava por ter sido capaz de lhe fazer isso. Que tipo de
pessoa ele era? Resultava-lhe muito difícil admitir que
tivessem o mesmo pai.
De repente ela se sentiu invadida por um grande
esgotamento.
Girando sobre seus calcanhares, saiu dali. A residência
era tão grande que, apesar da grande quantidade de serventes
que havia, tudo parecia vazio e solitário. Ali, sem nada para
fazer, salvo esperar a chegada de Rafe, ela enlouqueceria. O
estômago lhe encolheu, pois quando Rafe chegasse…
Não imaginava como poderia entregar-se a ele sem
montar um espetáculo, sem chorar por tudo o que estava
perdendo.
Subiu as enormes escadas e se dirigiu para seus
aposentos. Ao passar junto a uma porta, deteve-se em seco.
Era a entrada para os aposentos de Rafe. A noite anterior
ela ouvira movimentos ali dentro enquanto as donzelas a
despiam e tentavam esquentá-la, — o mais rapidamente
possível. Depois tudo sumira em um inquietante silêncio.
Haveria um globo terrestre ali dentro também? Ali dentro
estava a cama, a cama que ela compartilharia com ele.
Perguntou-se que aspecto teria. Enorme. De robusta madeira.
Madeira escura. Supôs que os cortinados seriam daquela cor
borgonha que ele tanto parecia gostar. A estadia teria o cheiro
dele. De sândalo e bergamota. E a uísque. Embora isso seria
mais um sabor do que uma fragrância. Em sua língua, em
sua boca. Evelyn umedeceu os lábios, quase sentia o intenso
beijo que ele lhe devotou depois de chegar a um acordo pouco
antes da meia-noite do dia anterior.
Um diminuto calafrio a percorreu. Naquela habitação,
naquela cama, ele faria muito mais que beijá-la. Já seria
bastante incômodo estar com ele. Deveria familiarizar-se com
esse dormitório, encontrar-se confortável, cômoda ali. Esticou
uma mão para o trinco…
Fortes dedos lhe seguraram o pulso, afastaram-na pra
um lado, e de repente se encontrou pega a Rafe.
— Parece que você se perdeu, — observou ele. — Seus
aposentos são ao lado.
— Estive dando uma volta pela residência, — ela engoliu
a saliva. Um repentino medo formara um nó na garganta. —
Só queria ver seu aposento.
— Jamais deverá entrar aí dentro.
— Então como me meterei na sua cama? — Aturdida, ela
piscou. Seria muito esperar que tivesse mudado de idéia?
— Eu irei à sua.
Não haveria salvação. Maldito fosse esse homem. Evelyn
se sentiu enfurecer.
— Mas disse que me teria em sua cama.
— É uma maneira de falar, embora, tecnicamente, sua
cama é minha cama visto que eu sou o dono.
— Mas será minha, junto com o resto da residência e
tudo o que contém. Entendi bem ou não?
— Sim — Rafe entreabriu os olhos, — mas não antes que
eu tenha me fartado de você.
— Então desagradá-lo virá em meu favor.
O sorriso que recebeu de Rafe foi malicioso, a de um
predador a ponto de saltar sobre sua presa.
— Você não quer me desagradar.
— Você está me machucando.
Ele ficou olhando fixamente o pulso de Evelyn, como se
tivesse esquecido que ela possuía um.
— Peço desculpas. Coloque o casaco. Vamos ver a
costureira.
— Entendi — por Deus que estava a ponto de dar outro
passo irreversível. Assim que lhe permitisse comprar roupa…,
mas que outra escolha havia? Ela deu meia volta.
— Eve?
Detendo-se em seco, ela se virou de novo. Rafe
trabalhava rapidamente para alegrá-la.
— Visto que já está familiarizada com a casa, em que
local você gostaria que Laurence pendurasse o retrato de seu
pai?
— Já o conseguiu? — Evelyn só foi capaz de olhá-lo
fixamente.
Ele assentiu a modo de resposta. Certamente não era
homem que protelasse as coisas. Comparado com ele,
Geoffrey vivia no ritmo de um bicho preguiça.
— Em meus aposentos, suponho.
— Sério que você gostará de contemplar o rosto dele
enquanto você e eu estivermos...?
— Não, claro — ela se sentiu repentinamente desolada,
— tem toda a razão. No salão principal? Não. Naquele
salãozinho que dá ao jardim. Eu gostaria de vê-lo pendurado
ali.
Rafe a contemplou como se a estivesse imaginando
naquele local.
— Farei que o pendurem em nossa ausência. Por favor
leve as joias.
— Por quê?
— Porque quero que o faça. E agora, apresse-se. Eu não
gosto que me façam esperar. — Rafe deu meia volta e desceu
as escadas.
Evelyn esteve tentada a abrir a porta de seu dormitório,
somente porque ele a proibira. O que ocultava ali dentro? Não
era mais que um aposento.
Também contemplou a possibilidade de fazê-lo esperar,
mas ainda não sabia até onde podia chegar à fúria dele. No
momento, decidiu apressar-se, recolher as joias, guardá-las
em um bolso e colocar o casaco. De retorno ao corredor,
pensou em escapar pelas escadas do serviço. Mas endireitou
os ombros e se dirigiu ao encontro do demônio.
Os céus estavam encobertos. A carruagem girava pelo
pavimento enquanto Rafe contemplava as luzes iluminando o
rosto de Evelyn que olhava pela janela. Ele amaldiçoou-se,
pois sentia inveja das luzes que eram capazes de roçar nela
com tal suavidade.
Um par de vezes ela esfregou o pulso que ele apertara
com tanta força, e ele precisara de toda sua força de vontade
para não pegar a sua mão, arrancar-lhe a luva e beijar-lhe o
lugar exato onde havia sentido o pulso bater minutos antes.
Ele não sabia por que reagira daquele modo. A porta de
seus aposentos estava fechada com chave. De todos os modos
ela não conseguiria entrar. Ele a apertara com mais força ao
falar de camas e deles dois. Imaginou-a ali, tombada sobre os
lençóis, os cabelos soltos revoltos a seu redor. Qual seria o
comprimento? A trança que vira na noite anterior somente lhe
dera uma pequena pista.
Quase soltara uma gargalhada quando ela o desafiara ao
lhe dizer que desagradá-lo iria em seu benefício. Quando fora
a última vez que ele rira? Não se recordava. Não gostava de se
sentir intrigado por ela. Em um dado instante ela parecia
vulnerável, e no seguinte lhe enfrentava. Desagradá-lo? Ele
duvidava muito.
— Não tem realmente intenção de me dar a residência,
não é verdade? — Perguntou ela com voz rouca, um pouco
mais rouca que a noite anterior.
— Claro que eu lhe darei.
— Mas a residência, e tudo o que contém, deve valer
uma fortuna. — Evelyn o olhou.
Rafe encolheu de ombros como se não tivesse
importância, porque o certo era que não tinha. Comprava
coisas porque podia, mas não lhe produziam nenhum prazer,
nem tampouco o ato de consegui-las.
— Como pode valorizá-la tão pouco?
— Possivelmente a pergunta deveria ser por que valorizo
tanto você, — assim que ouviu as palavras saindo de sua
boca, Rafe quis recuperá-las.
Ele não a valorizava, absolutamente, mas era muito
consciente do que lhe aguardava estar junto dela. Uma
sensação de culpa o empurrava a lhe dar tudo o que pudesse,
para que ela o perdoasse pelas coisas que não poderia lhe dar.
— É uma boa pergunta, — ela mordiscou o lábio inferior.
— Não lhe proporcionei nenhum motivo para me conceder
tanto valor. De modo que, por que o faz?
— Supõe-se que uma amante deve tomar o que lhe
oferecem sem fazer perguntas.
— Essa é a lei? Existe alguma lei sobre amantes, um
livro que os advogados estudem?
Dava a sensação de que, quanto mais se afastavam de
uma cama, mais ousada ela se tornava. Rafe se perguntou
como ela reagiria se soubesse que poderia deitar com ela
mesmo que não houvesse cama, que as fofas almofadas da
carruagem lhe serviriam igualmente. Mesmo assim, não foi
capaz de fazê-la se calar. Aquela mulher lhe inspirava desejos
de sorrir, sorrir de verdade, não com o sorriso malicioso que
ele aperfeiçoara com os anos para insinuar que a vitória seria
dele, inclusive antes de iniciar a batalha.
— Sim, acredito que esse livro exista.
— Pois eu gostaria de lê-lo. — Evelyn inclinou a cabeça
altiva, apontando ligeiramente para cima com seu nariz
arrebitado. —Suponho que você conheça todas as leis com
respeito às amantes.
— Só as importantes.
— Quantas teve?
— Leis?
Ela franziu o cenho. Rafe suspeitava que ela pensava que
aquele gesto era intimidatório. Entretanto havia um aspecto
que convidava a beijá-la. Um aspecto fascinante.
— Amantes.
Pensou em mentir. Mas o que ele ganharia com isso?
Nada. As mentiras eram reservadas para quando lhe serviam
para conseguir seus propósitos.
— Você será a primeira.
— Por que eu? — Ela o contemplou com olhos
exagerados.
Por que ela? Essa era a pergunta. A mesma que ele fizera
a si mesmo milhares de vezes desde aquela reunião no
escritório de Wortham.
— Ekroth a desejava. E eu não gosto de Ekroth.
— Se eu não recordar mal, ele tem papada e dedos
gordinhos.
— Assim é.
— Eu não gostei de como ele me olhava, — Evelyn voltou
a olhar pela janela. — Eu não gostei de como nenhum deles
me olhava. Como se me tivessem deitada debaixo deles. Mas
você não, — ela o olhou e sorriu com tristeza. — Pensei que
não podia ter ninguém a quem eu importasse menos. Mesmo
assim, aqui estou. O que teria acontecido se lorde Berm
tivesse me solicitado?
— O hálito dele cheira mal.
Ela mordiscou o lábio e ele pensou que ela fazia aquilo
para conter um sorriso. Irritava-lhe que ela zombasse dele.
— Lorde Pennleigh?
— É muito velho. É provável que tenha rugas em lugares
nos quais não deveria ter.
Evelyn o olhou fixamente enquanto tentava não dar um
salto de repulsão. Por que não haviam chegado ainda a
maldita oficina de costura?
— E quem você teria achado aceitável? — Ela perguntou.
“A verdade, querida, é que teria sido qualquer dos outros
lordes. Inclusive Ekroth, Berm e Pennleigh”.
— Isso não importa — respondeu ele. — Agora você está
comigo. — A carruagem finalmente se deteve. “Graças a
Deus”.
— Chegamos. Vejamos se lhe conseguimos um pouco de
roupa decente.
Roupa decente? Ele dizia aquilo como se o que ela usava
não fosse.
Mas ao entrar no estabelecimento, toda a ira que tivesse
albergado contra Rafe se dissipou. Não era a primeira vez que
entrava em uma loja, mas jamais estivera em uma oficina de
costureira. Duas damas muito bem vestidas estavam junto ao
mostrador, sem dúvida comprando. Outra mulher, também
muito elegante, estava sentada em uma poltrona fofa, em um
canto estudando o que pareciam ser desenhos de trajes.
— Senhor, — uma robusta mulher se aproximou deles,
— no que posso lhes servir?
— Queria ser atendido pela proprietária, — Rafe puxou o
colete.
— Sou eu. Madame Charmaine.
— Esperava um sotaque francês.
— Orgulho-me de oferecer a meus clientes o inesperado,
— a mulher sorriu. Possuía dentes brancos e retos, lábios
vermelhos como as cerejas.
Rafe parecia estar avaliando-a.
Evelyn recordou quão bem ele julgava às pessoas e se
perguntou o que ele pensaria de uma pessoa tão franca.
— A senhorita Chambers precisa de um guarda-roupas.
Completo.
Madame Charmaine arqueou uma sobrancelha e Evelyn
imaginou se ela estaria elaborando uma lista mental de tudo
o que poderia incluir “completo”, e o quão lucrativa lhe
resultaria a compra.
— Unicamente os melhores tecidos, — esclareceu Rafe
antes de se dirigir para uma mesa coberta de montes de
coloridos tecidos.
— Estou de luto, — sussurrou ela seguindo-o de perto.
— Deveria vestir preto.
— Poderá fazê-lo quando eu não estiver, mas em minha
presença eu gostaria que vestisse cores alegres. — E
escolheu: azuis, vermelhos, carmesim. Cores fortes e
atrevidas. Ela sempre se vestira em tons suaves, para poder
mimetizar-se, não ser tão visível. Exceto pelo vestido vermelho
arroxeado que Geoffrey escolhera para a reunião. Ela o levara
por capricho, se por acaso alguma vez tivesse a oportunidade
de assistir a um baile.
Enquanto isso, Madame Charmaine deslizava lentamente
seu perito olhar sobre ela. Evelyn compreendeu o momento
exato em que a mulher deduziu o que ela era para Rafe, ou o
que seria. Pensou que morreria, que o coração deixaria de
pulsar e o sangue de fluir, os pulmões de se encherem de ar.
— Quero uma dúzia de vestidos para esta semana, —
indicou-lhe Rafe, interrompendo sua inspeção dos tecidos.
— Temo, senhor, que minha agenda está completa.
Possivelmente tenha mais sorte em outro estabelecimento.
— Minha cunhada, a duquesa de Keswick, assegurou-me
que é a melhor, — Rafe se deteve e a olhou.
— E sou, senhor, mas…
— Milorde.
— Perdão?
— Desculpe-me por não ter me apresentado antes. Sou
lorde Rafe Easton. E não acredito que a duquesa continue
comprando aqui se lhe informar que fui recusado.
— Só queria dizer que para cumprir com a data
escolhida, com todo o trabalho que tenho atualmente…
— Sim, entendo, mas a questão é a seguinte: devido a
uma desafortunada circunstância que a deixou sem nada
exceto o vestido que está usando, a senhorita Chambers
necessita de roupa, — a voz se converteu quase em um
sussurro até que Madame Charmaine teve que se inclinar
para ele para ouvir bem. — Uma triste circunstância que uma
dama tenha que ir a todas partes com único vestido que usa,
não lhe parece? O que me custará que amplie sua agenda por
ela?
— Milorde, é impossível. Tenho muitíssimos pedidos…
— O dobro da exagerada cifra que me cobraria de todos a
maneira?
A mulher contemplou os tecidos, o teto, o chão, inclusive
Evelyn a via fazer cálculos.
— Suponho que poderia terminar um ou dois vestidos ao
longo desta semana.
— Esplêndido. Admiro muito a uma mulher que
demonstra tão bom julgamento. Não me resta dúvida de que
vamos nos dar muito bem. Terei que aprovar todos os
desenhos e tecidos.
— Um pedido incomum. À maioria dos cavalheiros não
se importa, mas estou segura de que poderei agradá-lo.
Precisarei tomar algumas medidas.
— É claro.
Evelyn havia contemplado toda a cena com crescente
horror. Por acaso esse homem acreditava que a lua e as
estrelas giravam a seu redor? Pensava que a única coisa que
importava eram seus desejos e necessidades? O que
aconteceria com os outros clientes dessa mulher?
— Tenho alguns assuntos que atender — Rafe se voltou
para ela. — Voltarei dentro de uma hora. Divirta-se com a
Madame Charmaine.
A campainha da porta soou quando ele saiu. Como podia
soar tão inocente quando alguém tão avassalador passava por
debaixo?
— O esquivo Rafe Easton, atrever-me-ia a dizer. Jamais
pensei que cruzaria com ele — murmurou a mulher. — Como
conseguiu se ver relacionada com um dos lordes perdidos de
Pembrook?
— Lordes perdidos? — Evelyn deu meia volta.
— Por acaso viveu escondida sob uma pedra?
— Não, somente em uma residência, — ela se esforçou
por não soltar uma risada histérica, — em uma residência,
protegida por meu pai, o conde de Wortham.
— Entendo, — a costureira sorriu compreensiva. — Ouvi
algo sobre isso. A boa notícia, suponho, é que agora está com
um homem que fará tudo para protegê-la.
— Mas ele insistiu tanto em que a senhora abandonasse
a outros clientes para ocupar-se de mim…
— Assim são as negociações querida, — a mulher bufou.
— Eu cobrarei o triplo. De todos a maneira ele não se dará
nem conta e você não vai contar.
— Eu não sei se é uma boa idéia tentar enganá-lo.
— Late muito, mas duvido que chegue a morder, ao
menos a uma mulher. Certamente não se a maneira como ele
a olhava é um sinal de algo. E agora me acompanhe até lá
atrás. Terá que tirar esta roupa para que eu possa tomar
medidas.
— Por que os chamou de os lordes perdidos? —
Perguntou Evelyn enquanto seguia Madame até uma pequena
habitação.
— Essa é longa uma história — a costureira ajudou a
jovem a despir-se. — Quando meninos, o pai deles morreu e
eles desapareceram. Circularam muitos rumores. Alguns
diziam que eles adoeceram, outros que foram assassinados
por ciganos. E ainda houve outros mais, que asseguravam
que foram devorados por lobos. E então, deve fazer uns três
anos, acredito. Sim, isso. Recordo-me porque lady Mary, a
atual duquesa de Keswick, acabava de retornar a Londres e
eu fiz um vestido para ela assistir a um baile. Pouco importa,
o caso é que os lordes apareceram naquele baile e provocaram
todo um revôo.
— E onde eles estiveram todos esses anos?
— Keswick no exército, lutando na Crimeia. Lorde
Tristan retornou como capitão de navio, por isso suponho que
esteve no mar. Lorde Rafe permaneceu por aqui, em alguma
parte. Não se sabe grande coisa dele. Evita relacionar-se em
sociedade, ou possivelmente seja a sociedade que o evita.
Evelyn recordou a sensação de vazio que lhe produzia a
residência de Rafe, como ele se mantivera afastado durante a
reunião oferecida por seu irmão, suas rudes maneiras, a regra
de que jamais deveria abraçá-lo. Perguntou-se se reclamá-la
como sua amante realmente tivera algo a ver com Ekroth, ou
com sua própria solidão.
Rafe abandonou a carruagem perto da oficina de costura
e caminhou decidido rua abaixo. Necessitava um doce com
muito açúcar. Não recordava a última vez que havia sentido
um desejo tão forte. Necessitava algo que lhe fizesse sentir-se
bem, não como um maldito bastardo.
Por que ele tratara à costureira daquele modo? Era por
Eve, maldita fosse. O olhar mortificado, suplicando a morte,
que estava refletido no rosto dela ao compreender, que uma
vulgar comerciante adivinhara seu papel na vida de Rafe e a
desaprovara, imediatamente. Quem era aquela mulher para
aprovar ou desaprovar o que ele fizesse com sua vida?
Ele proporcionaria um refúgio para Eve. Certo que teria
que pagar um preço por isso, mas nada na vida era gratuito.
Nem sequer a liberdade. Aquilo era o mais caro de tudo.
Para piorar tudo, ele recorrera a seu título para obter o
respeito que procurava para Eve. Lorde Rafe Easton. Não se
referira a si mesmo daquele modo desde que Sebastian havia
recuperado o lugar que lhe correspondia. Não podia estar
mais decepcionado consigo mesmo. Era dono de si mesmo.
Não precisava aliar-se com seus irmãos para obter o que
desejava.
Mas se enfurecera tanto ao ver que Eve se sentia inferior
ao que era, que estivesse à beira das lágrimas… embora
tivesse sido suficientemente forte para não as verter. Teria se
açoitado a si mesmo.
Ao fim, para seu grande alívio, viu uma loja de doces.
Abriu a porta no preciso instante em que duas damas saíam
do estabelecimento. Saudou com uma inclinação do chapéu e
correu ao interior. Uma garota estava de pé, segurando a mão
de um menino, enquanto tentava decidir o que queria. Viu
que o menino levava um pinique na mão. Caramelos por um
pinique. Quanto tempo ia demorar? Crianças. Jamais as teria.
Não as queria, não saberia o que fazer com elas. Mesmo
assim, a menina chamou sua atenção. Os loiros cabelos
estavam amarrados com uma fita azul que os afastava do
rosto. Imaginou Eve naquela idade. Alguma vez pegara seu
irmão pela mão? Alguma vez ele cuidara dela? Por que seu pai
não deixara tudo bem disposto para que sua filha fosse
atendida adequadamente quando ele morresse? Sem dúvida
não lhe teria passado despercebido que seu filho carecia do
caráter suficiente.
Talvez houvesse pensado que deixá-la aos cuidados de
seu irmão lhe obrigaria a converter-se em adulto, a assumir
responsabilidades, a aprender a antepor as necessidades dos
outros, às suas próprias.
Entretanto, Geoffrey seguira seu instinto e se desfizera
egoistamente, e de forma proveitosa, de sua irmã na primeira
oportunidade, vendendo todas suas coisas. Quem dera ela lhe
tivesse pedido algo mais que o retrato e um cavalo, porque
teria comprado a maldita casa se ela quisesse. Não porque
aquela mulher lhe importasse, mas sim porque teria sido o
correto. Fazia muito tempo que desejava fazer algo
simplesmente porque era o correto.
No ano anterior, quando Tristan precisara de ajuda para
localizar o homem que todos pensavam que deveria se casar
com lady Anne. E dois anos antes, quando ele assistira as
reuniões às que não desejava assistir para assegurar o posto
de Sebastian na sociedade. Após aquilo, fazia somente o que
queria. Pensando bem não era tão diferente de Wortham. A
ideia o punha doente. Não suportava ter nada em comum com
aquele canalha.
A menina chupava o dedo e bailava sobre as pontas dos
pés. A atendente olhou para Rafe e lhe indicou com um gesto
que em seguida o atenderia, embora poderia significar que
jamais o faria.
— Vamos, Lizzie. Escolha algo de uma vez, — ordenou-
lhe o menino.
“Isso, Lizzie”, pensou Rafe. “Escolha algo”.
— É que não sei. São todos tão bonitos.
— Posso lhe ajudar, senhor? — A atendente suspirou e
franziu os lábios.
— Uma dúzia de caramelos de hortelã.
Enquanto a moça introduzia os doces marrons com
listras coloridas em um pacote, Rafe sentiu que a boca se
enchia de água. Fazia muito que não se dava um capricho.
Assim que a atendente lhe entregou o pacote, ele tirou um
dos caramelos, meteu-o na boca e saboreou a doçura.
A menina o olhou com seus enormes olhos azuis, nada a
ver com o tom dos olhos de Eve, mas sem dúvida uma cor que
atrairia a atenção dos homens quando se tornasse maior. Ele
ofereceu o pacote.
O menino atraiu à menina fortemente para si e lhe
rodeou os pequenos ombros com um braço.
— Não o conhecemos. Quem é o senhor?
Meninos de rua, embora bastante crescidos para terem
aprendido a desconfiar. Uma lição muito dura, uma que Rafe
não aprendera o bastante rápido. Inocentemente, ele aceitara
a comida oferecida por um tal Dimmick e, antes de que se
desse conta, converteu-se em um de seus lacaios, obrigado a
fazer o que ele queria, porque os castigos daquele homem
costumavam incluir algum tipo de mutilação.
— Nada, moço. Simplesmente pensei que ela teria mais
vontade do que eu. Não posso devolvê-los. E não sou dos que
atiram comida ao lixo. Querem ou não?
Notava-se que o menino lutava, os dedos trementes.
Desejava aceitar o oferecimento, mas temia o preço.
— Eu gosto dos palitos, Wellington — anunciou a
menina. — São bonitos.
As listras, vermelhas, azuis e amarelas, eram muito
chamativas, claro que a maioria dos caramelos duros
possuíam cores brilhantes. Para Rafe elas chamaram a
atenção desde menino. Costumava se sentar durante horas,
chupando um após o outro.
— Uma dúzia de palitos Wellington — ele pediu à
atendente.
— Muito bem, senhor — a mulher destampou o frasco. A
cada palito que tirava, os olhos da menina se abriam mais e
mais.
Quando o pacote estava cheio, a atendente o entregou
para Rafe, que o ofereceu à menina. Ela não possuía a
desconfiança de seu irmão e a agarrou com suas pequenas
mãozinhas. Rafe arqueou uma sobrancelha e voltou a oferecer
os caramelos de hortelã ao menino.
Ele fez uma careta, agarrou o pacote e a mão da menina,
e saiu disparado para a porta. De repente, a menina retornou
e abraçou com seus esquálidos bracinhos à perna de Rafe.
Ele ficou tenso e conteve a respiração enquanto fazia um
esforço por não a chutar, lançando-a pelos ares até fazê-la
atravessar a vitrine da loja. Não devia pesar mais que uma
pluma, mas o mantinha imobilizado como se o tivesse
prendido com grossas correntes. O mundo começou a
desaparecer e a escuridão inundou seu campo de visão.
Chupou o caramelo que estava em sua boca, concentrando-se
no açúcar. Doce, doce açúcar.
— Vamos, Lizzie! — gritou-lhe o menino.
“Isso, vá embora, Lizzie, pelo amor de Deus!”.
A menina o soltou e correu à rua, seguida pelo menino.
Rafe soltou um lento e prolongado suspiro enquanto se
esforçava para acalmar seu acelerado coração, a ponto de cair
vítima de uma sensação de mortificação. Como podia uma
criança acovardá-lo daquela maneira?
— Necessita algo mais, senhor?
A voz chegou de muito longe, através de um túnel. Ele
ainda não se sentia capaz de sair à rua. Sem dúvida ele
cambalearia sobre suas instáveis pernas.
— Sim, também quero uma caixa grande de barras de
chocolate — ele, milagrosamente, conseguiu voltar-se para a
atendente fingindo um mortal aborrecimento.
A atendente assentiu e pegou uma caixa marrom.
— A caixa grande leva doze bombons. Dispomos de vinte
e quatro variedades. Quais prefere?
Algo no que se concentrar. Aquilo seria. Começava a
recuperar a compostura. Contemplou o mostrador onde
exibiam os bombons. Apreciou os diferentes formatos, as
delicadas decorações.
— Não importa.
A atendente pegou um escuro e quadrado.
— Não, esse não — Rafe a deteve. — Aquele que tem
forma de folha. — Acreditava que Eve gostaria daquele.
Apresentava curiosas linhas marcadas.
— Muito bem, senhor.
— E aquele trevo… e aquele que tem forma de diamante.
Mas o coração não, — poderia enviar a mensagem
equivocada.
Ao final ele terminou por escolher todas as peças, pois,
ao que parecia, a atendente não fazia muita idéia do que uma
dama poderia gostar. Rafe não soube com segurança em que
momento ele decidira que daria os bombons para Eve, nem
por que era tão importante para ele que a caixa tivesse as
peças adequadas para ela. Talvez ela nem sequer gostasse de
chocolate.
Com a caixa na mão, saiu da loja e se encaminhou para
a oficina de costura. Já deveriam ter terminado. Quanto mais
caminhava, mais pesada lhe parecia a caixa. Ela não pedira.
Por que ele pensara que ela poderia gostar? Poderia
interpretar mal suas intenções. Pensar que ele desenvolvera
sentimentos para com ela ou, pior ainda, que ela lhe era
importante.
No que ele estava pensando para desperdiçar quinze
preciosos minutos escolhendo bombons de chocolate?
Viu uma mulher esfarrapada em uma esquina, apoiada
contra alguns degraus. Apenas se deteve enquanto, ao passar
ao lado dela, abaixou-se e deixou a caixa junto aos seus pés.
— Obrigada, bondoso cavalheiro! — Gritou ela às suas
costas.
Bondoso? Se ele fosse bondoso teria deixado Eve partir.
Mas, claro, se fosse bondoso nem sequer a teria reclamado.
Quando Evelyn ouviu a campainha tilintar sobre a porta,
soube que era ele. Não sabia como, mas soube. Deveria soar
igual, independentemente de quem abrisse a porta, mas ela
soube.
Madame terminara de ajudá-la a se vestir, o que ela
agradecia. Suspeitava que Rafe pouco se importava se ela
estivesse nua ou vestida. Se quisesse vê-la, irromperia no
aposento.
— Acredito que é ele, — Madame arqueou uma
sobrancelha.
— Como a sra. sabe?
— Você estremeceu ligeiramente — a mulher sorriu. — É
um bom amante? — Evelyn ruborizou violentamente, corpo e
rosto.
— Como você pode ser tão inocente? — Perguntou a
costureira.
— Devo ir. — Ela se perguntou por que caminhava tão
decidida, por que não ficava ali. Retornar junto a ele
certamente significaria descobrir se, em efeito, ele era um
bom amante, nessa mesma noite. Quanto tempo ele lhe
concederia?
Em efeito, era ele. De novo estava concentrado nos
diferentes tecidos. Levava o chapéu em uma mão e tirou a
luva da outra para poder apreciar a textura da seda vermelha
que esfregava entre os dedos. Os movimentos eram
incrivelmente lentos, como se saboreasse a sensação de cada
fio. Seria o seu acoplamento pausado? Ele se deleitaria no
toque da pele dela tanto quanto parecia fazer com o tecido?
Ele levantou os olhos para ela de maneira casual, os
olhos entreabertos, como se quisesse manter seus
pensamentos ocultos. De todos os modos, ela não teria sido
capaz de adivinhá-los.
— Já terminaram com as medidas?
— Sim, milorde — respondeu Madame.
Eve juraria que Rafe se encasulou, embora a mudança
de expressão fosse tão fugaz que, se não estivesse tão atenta,
não teria se dado conta. Por que ela parecia incapaz de
afastar os olhos dele? Ele estava tão atraente quanto de
costume, mas parecia haver algo diferente. Não saberia dizer
com exatidão. Tinha algo a ver com o estado de ânimo?
Estava zangado? Frustrado? Decepcionado? Ela aprenderia
alguma vez a interpretá-lo, a saber o que ele pensava, o que
ele sentia?
— Tenho alguns desenhos para sua dama… — De novo a
fugaz contração dos traços. — Eu gostaria de compartilhá-los
com você agora, — continuou Madame. — Se dispuser de
tempo.
— Sim. Eu gostaria de acabar com este assunto o quanto
antes possível.
Madame aproximou algumas folhas de papel e, enquanto
falava de desenhos, dando as costas a ela, como se a sua
opinião não tivesse importância, Evelyn se aproximou da
cadeira junto à janela onde uma autêntica dama estivera
sentada minutos antes. Contemplou a rua, as pessoas que
passavam a caminho de algum lugar, fazendo o que
gostavam, tomando suas decisões.
Seu pai lhe havia dito que nunca devia invejar nada de
ninguém porque jamais saberia o preço que tiveram que
pagar por aquilo que lhes invejava. Mas nesse momento lhe
resultava muito difícil não invejar a liberdade de ir pela vida
fazendo sua vontade. Não possuía nenhum controle sobre a
roupa que devia vestir, sobre o aspecto que teria ao vesti-la,
sobre a cor do tecido. Não poderia escolher sobre onde viveria.
Não poderia opinar sobre quando se deitaria com um homem,
nem sobre como se produziria o momento. Porque ele possuía
regras. Ele decidia tudo.
Aquilo parecia desagradável. No mínimo ela podia se
mostrar pouco entusiasmada.
— Já podemos ir.
Sobressaltada, ela contemplou a escuridão e se
perguntou quando a noite chegara. Levantou o olhar para ele
e, durante um breve instante, teria jurado que a expressão
dele refletia a mesma tristeza que ela sentia.
Evelyn assentiu e se levantou da cadeira. Rafe não lhe
ofereceu seu braço, simplesmente a conduziu até a rua. Ela
não era bastante boa para ser tocada em público. E mais... se
ela não tivesse sorte, ele decidiria que ela não era bastante
boa para ser tocada em privado.
O lacaio a ajudou a subir à carruagem enquanto Rafe
falava com o condutor. A carruagem bamboleou quando ele
subiu e se sentou em frente a ela. Imediatamente se iniciou o
estalido continuado. Evelyn olhava pela janela, pois era muito
mais seguro que olhá-lo. Não queria fazê-lo pensar que a
intrigava com suas fugazes expressões, seu cáustico humor,
sua habilidade para saber exatamente o que desejava, sem
jamais hesitar. Ela sempre hesitava. Para começar, duvidava
que pudesse seguir adiante com aquilo.
— Ela tem intenção de lhe cobrar o triplo, — ela
anunciou com calma.
— Supus que ela faria isso.
— Não parece que o preocupa, — Evelyn estava
esperando raiva, não uma aparente diversão.
— Não posso culpá-la por isso, depois de praticamente
obrigá-la a cumprir meus desejos à custa de alguma dama de
alta linhagem que poderia se encontrar sem vestido novo para
comparecer ao baile.
— Ela se referiu a você como: um lorde perdido.
Agora, foi Rafe quem olhou pela janela. A pouca
iluminação das luzes mostrava uma mandíbula tensa, olhos
entreabertos.
— Não vamos falar disso, Eve.
Ela entrelaçou os dedos das mãos. Queria conhecer o
passado dele, saber como ele se converteu no homem que era,
por que os serventes não o chamavam de “milorde”. Por que
ele era o dono de um salão de jogos. Ele deveria se comportar
como Geoffrey. Um homem ocioso.
“Graças a Deus que não é como Geoffrey”, ela pensou
imediatamente.
— Então, do que vamos falar?
— Não vamos falar. Você não está comigo para isso.
— Mas, se não soubermos nada um do outro, vai
resultar tremendamente incômodo, não acredita? — Ela não
queria soar caprichosa, mas tampouco queria que seu corpo
fosse a única coisa com o que ele estivesse familiarizado.
— Asseguro-lhe que não resulta nada incômodo.
— Como pode dizer algo assim quando o simples fato de
viajar juntos em uma carruagem já resulta incômodo? Além
disso, eu não gosto da cor vermelha que tanto parece fascinar
você. Não penso me vestir com isso.
— Vestirá, — Rafe a contemplou brevemente, embora tão
intensamente que ela teria jurado que ele dera um golpe seco.
— Não vestirei.
— Parece ter esquecido os termos do acordo.
— Não acredito que eu consiga fazer isto, — Evelyn
apertou os dedos até que lhe doeram, até que a dor subisse
por seus braços até o pescoço. — Não acredito que eu possa
ser sua amante.
— Eu sei.
— Sabe?
— Não lhe disse que sou muito bom julgando às
pessoas?
Ela engoliu com dificuldade. Não a obrigaria?
— Eu posso lhe entregar minhas joias em pagamento por
dormir ontem à noite em sua casa — Evelyn afundou a mão
no bolso.
— Fique com elas.
O que significava aquilo? Ficar com elas porque não a
deixaria partir, ou porque ela necessitaria delas quando
partisse?
A carruagem se deteve.
— Já chegamos, — anunciou ele.
— Onde estamos?
— Na vida que você acredita preferir.
Capítulo 7

Ele estava estragando tudo. Como um senhor. Não


recordava a última vez que havia dirigido tão mal uma
situação. Possivelmente, quando seus irmãos retornaram.
Recordou o emocionado abraço que Tristan e Sebastian
compartilharam, e lhe doía, porque a perspectiva de se ver
rodeado por aqueles fortes braços o obrigaram a se afastar, a
oferecer-lhes um copo de uísque, a não lhes dar a menor pista
do que gostaria de compartilhar com eles naquela feliz
reunião. Ele estava muito zangado com eles. E continuava
zangado, mas o que o mantinha afastado era o medo do que
poderiam descobrir, do que poderiam averiguar sobre seu
passado.
Já lhe estava resultando bastante difícil permitir que Eve
se agarrasse em seu braço enquanto caminhavam pelos
bairros baixos. Mas não podia correr o risco de que alguém
pensasse que ela não era dele. Ali havia uma reputação. Ele
não costumava aparecer com frequência, pois as lendas
aumentavam com a ausência, e muitas pessoas se
recordavam dele, por isso sabia que ninguém os incomodaria.
Durante o café da manhã ele compreendera que Evelyn
não estava completamente entregue à ideia de estar com ele.
Na loja da costureira havia sentido que sentia vergonha do
lugar que ocupava na vida dele. Apesar do amor que o pai
dela professara, ele a mantivera oculta, convertendo-a em
uma prisioneira mais do que ele faria. O irmão decidira
desfazer-se dela. Rafe prometido exibi-la. Evelyn devia
compreender o preço que aquilo significava.
Também devia compreender o preço de partir. Precisava
que ela quisesse ficar, porque não queria que ela partisse.
Queria vê-la vestida com o traje vermelho que ela jurara
jamais vestir. Apostava que ela mudaria de ideia quando o
visse pronto. Queria vê-la à sua mesa durante o café da
manhã e no jantar. Possivelmente, inclusive ele poderia
retornar a sua residência para comer ao meio dia.
Queria aspirar o aroma do seu perfume nos aposentos
da residência enquanto subisse as escadas para encontrá-la.
Queria que seus olhos cor de violeta se abrissem
desmesuradamente ao vê-lo ao seu lado. Queria que as
pálpebras dela se fechassem quando ele se inclinasse para
beijá-la.
Queria ela na carruagem, impondo-lhe suas condições,
apesar de saber que era ele quem as estabelecia. Não queria
destroçá-la, mas o compromisso nunca fora seu forte. Sendo
muito jovem ele aprendera que se comprometer denotava
debilidade, e que os homens se aproveitariam. Que nunca
podia baixar a guarda.
Inclusive ela, doce e inocente como era, se aproveitaria,
arruiná-lo-ia, e o abandonaria. Era consciente de que ela não
gostava daquilo. Já esperava. Não lhe importava se ela
gostasse ou não. Era um solitário.
Gostava de ser.
Mas ela o fazia se sentir menos sozinho. De modo que
queria que ela ficasse, mesmo que fosse somente durante um
tempo. Depois, ele a deixaria partir.
Evelyn se sentia horrorizada pelo que via. Pessoas
vestidas com farrapos, acocoradas junto a fogueiras. Crianças
tão magras que seus olhos pareciam enormes nos rostinhos
frágeis. Meninos descalços no meio da noite gelada. Sujos. Por
toda parte havia sujeira. O aroma rançoso lhe dava vontade
de vomitar.
Rafe caminhava pelos estreitos becos, ladeados de
edifícios mal construídos, de muros inclinados, como se fosse
o dono de tudo aquilo, como se não lhe incomodasse nem um
pouco.
— Onde estamos? — Perguntou ela.
— Em St. Giles.
— Estas pobres e desventuradas pessoas, — Evelyn não
era tão ingênua para não saber da existência dos pobres. Seu
pai lhe falara deles em uma ocasião. Ele dissera que se
precisava fazer algo. Mas, ao parecer, não se fizera nada.
Rafe se deteve e olhou para um lado. Ela seguiu seu
olhar ao interior de um canto escuro. Ela distinguia as
sombras de uma mulher esmagada contra a parede e um
homem que investia nela, gemendo. Não era possível que
estivessem…
— Não pode impedir que ele a trate desse modo? —
Perguntou ela.
— Eu faria, se ela estivesse brigando com ele, mas não é
o caso. Ela está ali por vontade própria, — ele se voltou e a
conduziu de retorno por onde entraram. — Certamente ele lhe
dará uma moeda em troca, ou parte de sua comida, ou a
manterá quente durante a noite.
— É assim que se faz? — Inquiriu ela em um sussurro.
— Assim é deitar com alguém?
— Para alguns sim. Para mim não.
Não contra uma parede, mas em uma cama. Deitado em
cima dela, balançando-se, gemendo. Em uma ocasião,
Geoffrey tinha-lhe mostrado como seus cães “faziam
cachorrinhos”. Mas ela era muito jovem para entender.
Rafe se deteve de novo. Evelyn tremeu ante o que ele
pretenderia mostrar-lhe nessa ocasião.
— Vê aquele cavalheiro, de pé, apoiado contra a parede,
olhando-nos?
Cavalheiro? Ele lhe recordou um camundongo que o gato
levara aos estábulos, uma vez. O homem estava encolhido,
como se não quisesse ser visto, ou como se levasse sobre seus
ombros uma carga invisível. Mesmo assim ela assentiu.
— Ele lhe dará cem libras por suas joias. Mas não
permita que ninguém veja que ele lhe entregou o dinheiro,
pois tentarão roubá-la. Naquele edifício ali, — ele assinalou
com a cabeça para um lugar onde havia uma única lamparina
sobre a porta, — você conseguirá uma cama para passar a
noite por alguns piniques. É obvio, que terá que compartilhá-
la com outros. Com sorte, nenhum deles terá piolhos.
— Você vai me deixar aqui? — Ela levantou os olhos,
bruscamente até seu rosto.
— Se você deseja se livrar de mim… Ontem à noite ficou
por obra do destino, de uma moeda que lançou ao ar. Esta
noite, se voltar a subir comigo à carruagem, quero que o faça
porque compreende que é sua melhor opção. Não será
gratuito, eu sei. Mas, mesmo que eu a leve a uma parte
menos sórdida de Londres e a deixe lá, suspeito que ao final,
o destino a traria de volta a este lugar.
Evelyn olhou a seu redor, tentando se imaginar no meio
de tanta miséria.
— Não sou tão estúpido para acreditar que você será feliz
comigo, — continuou ele, — mas sim tenho esperanças de
que viva bem durante o breve período de tempo que estiver
comigo.
Esperança. Jamais o consideraria um homem de
albergar esperanças, e de manifestar aquilo em voz alta. Sua
mãe fora uma mantida, e um conde se apaixonou por ela.
Rafe poderia chegar a amá-la? Duvidava.
Mas o que não duvidava era de que jamais seria feliz nos
bairros baixos. Não se sentiria feliz. Passaria frio e fome, e
estaria suja. E muito sozinha.
— Não tenho certeza de por que se sentiu obrigado a me
trazer aqui. — Ela elevou o queixo em um gesto de altivez. —
Já lhe dei minha resposta ontem à noite.
— Devo ter interpretado mal. Pensei que albergava
dúvidas. — Evelyn se agarrou ao braço dele com mais força e
sacudiu a cabeça.
— Então.
Conduziu-a de retorno à carruagem. Depois de ajudá-la
a subir deu algumas indicações ao lacaio e se instalou em
frente a ela. Não parava de repuxar o colete, como se ele
estivesse torcido.
— Por que não partimos? — Perguntou ela.
— Meu homem está repartindo algumas moedas.
Ela suspeitou que seriam muitas mais que algumas
moedas. Por fim a carruagem arrancou, graças a Deus.
Embora não fosse muito apropriado, o único pensamento que
entrava em sua mente era o de um banho quente.
— Surpreende-me que não tenhamos sido atacados, —
ela observou.
— Eles me conhecem.
— Por sua generosidade?
— Não. — Rafe rui baixinho. — Porque durante muitos
anos vivi aqui, durante a época em que estive “perdido”, como
Madame tão romanticamente qualificou.
Evelyn tentou não mostrar sua surpresa. Perguntou-se
se alguma vez seria tão hábil quanto esse homem para revelar
tão pouco.
— Por que aqui? Por que não partiu, como seus irmãos?
— Porque eles não me levaram com eles, — a amargura
em sua voz era nítida. — Eu estava com somente dez anos.
Nosso tio queria se apoderar do ducado, mas três herdeiros o
impediam. De modo que partimos até que fossemos o
bastante adultos para retornar e reclamar o que era nosso.
Ela quis abraçar ao menino que ele havia sido. Devia ter
sido tão crédulo e inocente quanto ela até no dia anterior. Era
o filho legítimo de um duque. Sem dúvida teria vivido uma
infância de mimos e caprichos.
— Por isso você sabe como eu me sinto.
— Eu não sei como você se sente, Eve. Sei como alguém
se sente ao estar onde você está agora. Sem nada, nem
ninguém. Passando fome, frio, sem um lugar no qual se
abrigar. Sei o que é fazer coisas que preferiria não fazer, mas
que faz porque deve fazer. Chega-se a aceitar. A viver com
isso. Com o tempo, inclusive chega-se a se sentir orgulhoso
de si mesmo, por ter sobrevivido quando ninguém mais
pensava que fosse. — Rafe pigarreou, como se estivesse
castigando a sua garganta por ter revelado tanto, e devolveu
sua atenção a janela. — Alegro-me que você não tenha ficado
lá.
Evelyn pensou que possivelmente chegaria um dia em
que pudesse jogar uma olhada para trás e se alegrar também.
— Teria sido um tremendo engano, — continuou ele.
Ela esteve a ponto de soltar uma gargalhada. Não se
recordava de ter conhecido um homem tão pomposo e seguro
de si mesmo. Certamente Geoffrey não era. Nem sequer seu
pai.
— De todos os modos não colocarei o vestido vermelho.
Rafe lhe dedicou um sorriso, breve e luminoso na
escuridão. Evelyn não soube por que gostou tanto de ser a
causadora daquele sorriso, embora não tivesse durado mais
que um instante.
— Eu acredito que vestirá.
Que arrogante. Entretanto, ela evitou pronunciar as
palavras porque não desejava arruinar aquele momento de…
não estava muito segura do que: compreensão, aceitação.
Possivelmente com o tempo inclusive chegassem a ser amigos.
A tensão havia diminuído grandemente no interior da
carruagem. Evelyn tentou imaginar como seria quando um
cavalheiro a cortejasse, e levasse-a para um passeio. É obvio,
acompanhados por alguém. Ela teria que esquecer aqueles
sonhos infantis. Por outra parte, se de verdade esse homem
lhe desse de presente aquela residência e tudo o que
continha, ela se converteria em uma mulher poderosa, com
suficiente independência econômica para que um cavalheiro
passasse por cima de seu desafortunado começo. A ideia
parecia atraente.
A carruagem entrou no caminho que conduzia à casa.
Evelyn se negou a aceitar a sensação de alívio que a invadiu.
Mas, imediatamente, o nervosismo se apoderou dela. Ela
deixara claro sua aceitação do acordo. Possivelmente iria até
ela essa mesma noite, para reclamá-la como sua amante. A
carruagem se deteve em seco, e um lacaio abriu a porta. Rafe
desceu e lhe ofereceu uma mão para ajudá-la a sair, soltando-
a assim que ela pousou os pés sobre o cascalho.
— Sente fome? — Ele perguntou enquanto caminhavam
juntos, sem se tocar, para as escadas.
— Muita, — de repente, Evelyn se deu conta de que
estava faminta.
— Poderíamos ter um jantar tardio no terraço.
— Eu gostaria disso.
— Bom.
Subiram as escadas e a porta se abriu diante deles.
— Bem-vinda a casa, senhorita, — Laurence fez uma
reverência.
— Jantaremos no terraço, — informou Rafe ao mordomo.
— Muito bem, senhor.
— No terraço dentro de meia hora, — Rafe se voltou para
ela. — Não precisa se vestir formalmente.
Sem esperar resposta, ele subiu correndo as escadas,
saltando os degraus de dois em dois. Tampouco havia muitas
opções, mas iriam na mesma direção. Poderiam ter subido
juntos.
— Ele sempre precisa ficar sozinho um momento depois
de retornar a casa, — informou amavelmente Laurence.
— Já está há muito tempo com ele? — Ela concedeu ao
homem toda sua atenção.
— Seis anos, — o mordomo levantou o olhar ao teto. —
Desde que fez sua a residência do lorde Laudon.
— Refere-se à quando a comprou?
— Não exatamente, — o homem franziu os lábios. —
Lorde Laudon era famoso por sua afeição ao jogo. Pelo que
entendi esta residência saldou suas dívidas.
— De modo que você servia a lorde Laudon.
— Não, senhorita. Até que o senhor Easton me trouxe
aqui, e fez com que me formassem convenientemente para
meu cargo, tive a desgraça de viver entre a miséria de St.
Giles. E agora, se me desculpar, devo me assegurar de que o
jantar seja preparado.
Evelyn o viu partir antes de dirigir o olhar para o alto das
escadas onde seu… como se chamava o homem que possuía
uma amante? Amante? Querido? Protetor? O que não restava
dúvida era de que ele era um homem muito complexo. Besta
ou salvador? Certamente uma combinação de ambos.
E qual terminaria sendo para ela?
Capítulo 8

Havia optado por jantar no terraço à luz das velas porque


proporcionavam mais sombras que luz, e ele já revelara muito
de si mesmo. Não queria que ela o observasse, que tentasse
decifrá-lo.
Tampouco queria se vestir como requeria um jantar
formal. Claro que, por estar em sua casa, podia usar, ou não,
o que desejasse.
Escolheu uma camisa de linho branca e solta. O casaco,
colete e o lenço estavam atirados no chão, aos pés da cama.
Evelyn continuava vestida com aquele horrível traje negro,
mas tirara todos os grampos do cabelo que o amarrara com
um laço negro. A trança dourada chegava até a parte baixa
das costas. Aquela visão o perseguiria em sua volta ao clube
naquela noite. Não se recordava a última vez que passara tão
poucas horas em seu estabelecimento. Era curioso que não
tivesse pensado nele até esse momento. Essa mulher
monopolizara seu pensamento durante a maior parte do dia.
Rafe a observou por cima da borda da taça, imaginando-
a com os vestidos que a costureira, sem dúvida, já trabalhava
excessivamente para aprontar. O negro desapareceria. Quase
não podia esperar. Evelyn se mostrou exageradamente calada
enquanto se deliciava com a sopa, e depois o faisão. Ao levar a
mão para a taça de vinho, viu que lhe tremiam os dedos.
— Esta noite não... — ele lhe informou com calma. Ela
levantou o olhar. —... vamos nos deitar — continuou ele. —
Eu lhe disse que não aconteceria até que você se sentisse
confortável comigo.
Rafe não ficou satisfeito com a expressão de gratidão que
apareceu naquele formoso rosto. Deveria tomá-la e acabar
com isso o quanto antes. Assim ela deixaria de se mostrar tão
nervosa, embora sem dúvida ela estaria muito mais
desconfortável com ele.
— Você gosta de chocolate? — Ele perguntou.
Ela sorriu com doçura e ele se perguntou quanto tempo
ela precisaria permanecer ao lado dele para perder aquele
belo sorriso.
— E quem não gosta de chocolate?
Rafe lamentou ter dado a caixa. Esperava que ao menos
a anciã tivesse desfrutado dos bombons, sem engoli-los
rapidamente.
— Quando você começou a viver com o conde? — Ele
perguntou.
Evelyn pegou a taça de vinho, felizmente com o pulso
muito mais firme.
— Aos seis anos, depois que minha mãe morreu de
escarlatina. A esposa dele morreu quatro anos depois, e só
ficamos ele, Geoffrey e eu. Durante muito tempo não
compreendi que ele tivesse uma esposa. Aquele homem era
meu pai. Eu estava convencida de que ele estava casado com
minha mãe. Você sabe o que precisa fazer para que não
tenhamos filhos?
Rafe esteve a ponto de engasgar com o vinho. Quando ele
aprenderia a não beber enquanto ela falava?
— Eu não gostaria de ter filhos fora do matrimônio —
continuou ela. — Por mais amados que sejam, a vida deles
não será fácil.
Ele esteve a ponto de lhe prometer que, se houvesse
filhos, ele não os abandonaria como Wortham. Mas, acaso
não havia decidido naquela mesma tarde que as crianças não
eram para ele?
— Conheço algum método que diminui a probabilidade
de ter filhos.
— Foi o que pensei. Quanto tempo um cavalheiro
costuma ficar com a amante?
— Depende do cavalheiro. Depende da amante.
— Meu pai amava a minha mãe. Não acredito que ele a
teria abandonado.
— Mas ela o abandonou.
— Não foi por escolha dela, — Evelyn jogou bruscamente
a cabeça para trás. — A morte a surpreendeu.
— Deve ter sido doloroso.
— Claro que sim, mas faz parte da vida, não?
Da vida dele não. Não se ele pudesse.
— Pode redecorar os aposentos se você quiser.
Ela piscou perplexa. Era uma mudança de assunto
muito brusca, mas não gostaria de continuar mantendo
aquela conversa.
— Sério? Alguns deles me parecem bastante lúgubres.
Você foi responsável pela decoração?
— A casa está tal como a recebi. Eu gosto dos aposentos
escuros. Se você não, — Rafe encolheu os ombros, — troque
tudo. Não passo muito tempo aqui. Disponho de meus
aposentos no clube.
Evelyn deixou a taça de vinho sobre a mesa e
contemplou Rafe, que agradeceu pela penumbra. Não queria
que ela adivinhasse que, inclusive essa noite, ele não gostaria
de partir. Queria ficar e que ela tocasse o pianoforte para ele.
Queria que ela lesse para ele. Queria que ela se sentasse com
ele no jardim. Queria que ela se deitasse sobre a cama e o
recebesse. Segurar-lhe-ia as mãos para impedir que o tocasse,
mas depois a beijaria, lenta e apaixonadamente, justamente
antes de afundar-se em seu interior. Não seria capaz de se
conter, ele sabia. Seu corpo já a desejava.
Pensou em procurar uma prostituta para a noite, mas
sabia que não ficaria satisfeito. Desde o instante em que vira
Eve pela primeira vez, sabia que ninguém, exceto ela o
satisfaria. Podia culpar até não poder mais ao Ekroth e seus
dedos gorduchos, mas a verdade era que a desejara no
instante em que contemplara seu perfil.
— Então quando eu vou vê-lo, — observou ela com voz
rouca.
— Normalmente na última hora da noite. Assim que tudo
comece entre nós.
— Ainda não começou? Sem dúvida haverá entre nós
algo mais que deitarmos na cama.
“Não, não haverá”, Rafe esteve a ponto de afirmar.
Entretanto, já a machucara bastante ao não ser o homem que
ela desejava: um homem disposto a casar com ela. De modo
que calou as palavras que sabia lhe fariam mal. Nunca se
considerara deliberadamente cruel. O que ele mais gostava
dessa mulher era sua falta de cinismo. Mas o tempo a
mudaria, quanto mais tempo estivesse com ele. Por isso ele a
deixaria partir antes.
— Podemos dar um passeio pelo jardim? — Perguntou
ela depois de um prudente silêncio e como se tivesse
compreendido que não receberia resposta alguma para sua
pergunta anterior.
Rafe apurou a taça de vinho, levantou-se da cadeira e a
ajudou a se levantar. Evelyn se levantou com tal elegância
que ele teve que se conter para não afundar as mãos nos
cabelos dela, segurar-lhe a nuca e beijá-la com toda a paixão
de que era capaz.
Caminharam, um ao lado do outro, o brilho das luzes
guiou seus passos junto aos rododendros, gerânios e rosas.
— Não entendo por que quer se deitar comigo quando
nem sequer quer me tocar.
Ela acreditava que ele não queria tocá-la? Rafe desejava
tocá-la mais que respirar, mas aquilo a convidaria a fazer o
mesmo, e ali radicava o problema. Apesar da camisa solta, se
ela o envolvesse com seus braços ele se sentiria sufocar,
afastá-la-ia a um lado e, certamente a machucaria.
— Entendo a regra sobre não o abraçar, mas ao menos
poderíamos pegar a mão, não? — Antes que ele pudesse
responder, Evelyn deslizou uma mão na dele, palma contra
palma, os pequenos dedos entrelaçados com os seus maiores,
descansando sobre seus nódulos. Nódulos que haviam
destroçado rostos por dívidas que não eram dele, mas sim do
homem para o qual ele trabalhava sendo mais jovem. Fazia
qualquer coisa para sobreviver. Não pretendia desculpar seu
comportamento, mas lhe parecia mal que ela estivesse
agarrando sua mão como se ele fosse merecedor daquele
contato.
Por outra parte, não se sentia capaz de soltar, não se
atrevia a falar. A garganta estava fechando por culpa de uma
emoção que ele não reconhecia, que não era capaz de
denominar.
— Quando era menina, meu pai me dava bonecas de
presente, — ela lhe explicou com doçura, como se a viagem ao
mundo das lembranças exigisse certa reverência. — Quando
eu estava triste, quando estava contente. Quando estava
doente, quando estava bem. Pouco importava. Eram tão
bonitas… eu costumava preparar o chá para elas. Eram
minhas amigas. Evitavam que eu me sentisse sozinha.
Evelyn fez uma pausa antes de continuar.
— E um dia encontrei uma passagem através da sebe,
que dava a uma cerca de madeira. Havia um pequeno buraco
pelo qual eu conseguia ver o jardim do vizinho. Vi uma
menina, não muito maior que eu, que brincava com outra
menina. Falavam, riam e jogavam. As bonecas não fazem
nada, exceto ficar sentadas. Tive uma crise e estraguei todas
as minhas bonecas. Não era nada próprio de mim. Pai se
desgostou muitíssimo. Foi então quando comecei a suspeitar
que minha existência fosse um segredo.
— Já lhe disse que comigo você não será nenhum
segredo.
— Sim, mas não posso evitar me perguntar se será
melhor ou pior. Continuo sem ter amigas. Nunca serei
respeitável.
Rafe negava-se a se sentir culpado por seu papel na vida
dessa mulher. Se não fosse por ele, alguém já se teria deitado
com ela, disso não lhe restava dúvida. Ela não teria nenhuma
escolha.
— A respeitabilidade não lhe dará o que comer, nem a
manterá quente, vestida ou protegida.
— Você tem amigos?
— Não. Não preciso de ninguém.
— Mas tem irmãos.
— E você também — Rafe notou que a pequena mão se
contraía.
— Os seus também são horríveis?
— Não. São boas pessoas.
— Suponho que não me aprovariam.
Rafe parou e se voltou para ela. De novo agradeceu as
sombras que camuflavam os traços femininos, o azul dos
expressivos olhos.
— Pouco me importa se a aprovam ou não. A única coisa
que me importa é o que eu queira.
E o que ele queria? Por Deus, ele não poderia viver nem
um segundo mais sem saborear de novo aqueles suculentos
lábios. Evelyn continuava segurando sua mão, de modo que
ele lhe dobrou delicadamente o braço atrás das costas dela,
tomou a outra mão e a aprisionou junto à primeira. Sentia o
olhar violeta sobre ele, embora não a visse.
— Não preciso que você me imobilize. Sou bastante
capaz de cumprir com essa estúpida regra.
Estúpida? Era uma regra que, se fosse o caso, a salvaria.
Rafe soltou-lhe as mãos e agarrou-lhe o rosto entre as mãos,
acariciando-lhe as bochechas com os polegares, deslizando-os
até as comissuras dos lábios. Queria vê-la sorrir. Afundou
uma mão nos cabelos dela antes de aproximar a boca
daqueles lábios. O sabor era de vinho, um intenso aroma que
se tornava ainda mais intenso em sua língua. Pareceu-lhe
menos tímida que a noite anterior. Esquivava-se, desafiava-o.
Rafe gostava que ela não tivesse medo dele.
Não lhe alegrava saber que ela crescera sozinha e que,
junto a ele, continuaria sozinha. Contrataria uma
acompanhante, alguém que a visitasse durante o dia.
Contrataria uma dúzia de acompanhantes se com isso a visse
sorrir.
Evelyn, bendita fosse, cumpriu sua promessa. Não o
tocou. Não deslizou as mãos por seu torso, não afundou os
dedos em seus cabelos. Mas tampouco precisava de todas
essas coisas para fazê-lo cair de joelhos diante dela. Ela
soltou um suspiro gutural. Deslizou a língua em círculos por
sua boca. Explorou igual a ele: ávida e profundamente. Para
Rafe não restava dúvida de que essa mulher seria tudo o que
ele exigiria na cama.
Ela aprenderia depressa, ela… ficaria deitada na cama e
aceitaria o que ele lhe concedesse. Manteria os punhos
fechados aos lados do corpo, igual a esse momento. Sentia a
tensão irradiar dela enquanto ela tentava obter seu próprio
prazer sem romper a maldita regra.
Que mal faria se pousasse as mãos brandamente sobre
os ombros dela?
Preferiu não arriscar. Não podia lhe conceder esse poder
sobre ele. Não podia ceder o mando. Não podia arriscar a que
ela descobrisse a verdade sobre ele.
Rafe deu um passo à frente, obrigando-a a retroceder,
um, dois, meia dúzia de vezes, até aprisioná-la contra a
parede de tijolos. Poderia tomá-la ali mesmo, levantar-lhe as
saias, afundar-se profundamente. Mas, se o fizesse, mais
valeria a Evelyn ter ficado nos bairros baixos. Poderia deitá-la
sobre a relva, permitir que a grama servisse de cama. Mas ela
merecia algo mais que esse gesto bárbaro.
Ele prometera esperar até que ela estivesse confortável
com ele. E, embora os lábios dela respondessem selvagens
aos seus, Rafe sabia que ela ainda não estava preparada para
mais. Ou possivelmente ele temia machucá-la em sua
primeira vez. Tomar uma virgem suportava suas
responsabilidades.
Não podia simplesmente afundar-se em seu interior
como fazia com outras mulheres. Devia ter mais cuidado.
Seria outra coisa, se não fosse vê-la nunca mais, mas
essa mulher viveria em sua maldita residência. Ela o veria. A
não ser que a tomasse uma vez, e depois partisse deixando-
lhe tudo como prometera. Assim ele não teria que enfrentar a
decepção, tristeza ou arrependimento.
Possivelmente era a melhor maneira de dirigir a situação:
tomá-la, acabar com ela, e permitir-lhe que seguisse adiante
com sua vida.
Mas, antes de começar, já sabia que, no mínimo, iria
querer outro beijo.
Afastando-se, não o surpreendeu comprovar que estava
certo. Os punhos de Evelyn estavam fechados. Rafe deslizou o
polegar pelos úmidos e inchados lábios, sentiu sua língua lhe
roçar a pele.
— Devo ir ao clube, — sua voz soava rouca, como se não
tivesse pronunciado nenhuma palavra em um século. Ela se
limitou a assentir.
— Não sei quando voltarei, — tampouco sabia por que
sentia a necessidade de lhe dar explicações. A agenda era
dele. Ela teria que se adaptar, teria que esperá-lo.
Girando sobre os calcanhares, lutando contra todos os
impulsos que o empurravam a convertê-la em sua amante,
deixou-a na penumbra do jardim.
Evelyn aguardou vários segundos, a respiração
entrecortada, lutando por recuperar a compostura. Abriu os
punhos e observou as marcas das unhas que se cravaram nas
palmas das mãos, quase fazendo-a sangrar. Quando
considerou que já não precisava do muro de tijolos para se
apoiar, dirigiu-se sobre pernas trêmulas até a mesa, pegou a
garrafa de vinho e se serviu do que restara. Alegrava-se de
que ele tivesse partido. Ou isso ela disse a si mesma. A
alternativa era desejar que ele ficasse. Não lhe restava a
menor dúvida de que as coisas não teriam terminado com
aquele simples beijo.
Se não fosse por causa daquela estúpida regra, teria se
fundido contra seu corpo, teria o envolvido com os braços.
Inclusive, para sua imensa vergonha, ela teria suplicado que
ele a levasse até o dormitório. Aquele homem era muito hábil
despertando calor e paixão, um calor e uma paixão tórrida.
Considerando sua rigidez, sua distância, sua altivez, ela não
esperara que ele colocasse fogo em seus sentidos.
Possivelmente fosse no dormitório onde Rafe se abriria.
Se fosse assim, ela se reduziria a um monte de cinzas. Evelyn
não sabia se sentia emoção da antecipação ou terror.
Deixou a um lado a garrafa e levantou a taça, levando-a
aos lábios, que ainda vibravam depois do beijo.
— Há algo…
Evelyn soltou um grito ante a inesperada aparição de
Laurence. O vinho se derramou sobre sua mão e, supôs,
sobre o vestido. Pegou a taça com ambas as mãos para
estabilizá-la, tanto quanto a si própria.
— Peço desculpas, senhorita. Não pretendia assustá-la.
— Não, sou eu quem se desculpa. Não o esperava, — ela
soltou uma pequena gargalhada. — O que eu suponho seja
óbvio.
— Vi o senhor partir, — o homem sorriu com
amabilidade, com sinceridade. — Vim para ver se precisa de
algo mais.
— Não, acredito que aproveitarei de um momento mais
no jardim.
— Como desejar. Eu ficarei oculto nas sombras e
aguardarei.
— Não precisa se incomodar. — Ela segurou a taça com
mais força, surpreendida de que não explodisse em pedaços.
— Estarei bem.
— Se lhe acontecer algo por culpa de minha negligência,
o senhor me daria uma surra que me deixaria a beira da
morte.
— Mas não o mataria, — Evelyn estava segura de que o
mordomo brincava.
— A morte seria misericordiosa.
— Está insinuando que ele não é misericordioso? —
Evelyn sentiu seu coração se encolher.
— O que digo é que ele é muito hábil fazendo com que
seus inimigos, ou quem o defrauda, vivam para se lamentar.
— Ele tem muitos inimigos?
— Já falei muito. É muito fácil falar com você. Deverei
aprender a manter a boca fechada em sua presença.
— Está a salvo. Não direi nada do que me confiar.
— Ele tem sua maneira de descobrir. Aproveite o jardim.
Laurence se retirou às sombras, mas ela sentia sua
presença vigilante. Sentou-se em uma cadeira e observou a
vegetação. As luzes brilhavam, mas a névoa começava a
invadir tudo. Sentia a chegada envolvendo as luzes. Deveria
entrar na casa, mas não se animava a isso. Além da
fragrância das flores, ainda percebia o perfume de Rafe. Era
um homem cuja presença permanecia inclusive depois de sua
partida.
— Tem medo dele? — Ela perguntou, sabendo que
Laurence estava o bastante perto para ouvi-la.
— Não.
— Mas disse que ele lhe daria uma surra.
— Só se eu o trair. Então sim, teria medo dele. Muito
medo.
Bebendo o vinho aos goles, ela notou que já não sentia
os lábios inchados pelo beijo. Umedeceu-os com a língua e
comprovou que perdera o gosto de Rafe.
— Então ele é uma má pessoa?
O silêncio se fez eterno. Evelyn desejou não ter iniciado
aquela conversa. Precisava chegar a suas próprias conclusões
com respeito a Rafe, não as apoiar na opinião de outra
pessoa. Entretanto, resultava tão difícil qualificá-lo…
— Houve um tempo em que eu pensei que sim, —
respondeu Laurence ao fim, quase em um sussurro inaudível.
— Por isso tentei matá-lo.
Ela se remexeu bruscamente na cadeira, embora não
conseguisse vê-lo. Entre as árvores se ouvia o sussurro da
brisa e confiou que ocultasse sua respiração entrecortada.
— Por que você tentou matá-lo?
— De novo falei em excesso, — a voz do mordomo estava
carregada de decepção para si mesmo. Evelyn pensou que, se
insistisse, ao final conseguiria que ele revelasse. Entretanto,
voltou-se outra vez e continuou bebendo o vinho aos goles.
Era mais que evidente que Laurence não conseguira seu
propósito de matar Rafe. Ela se perguntou o quanto ele se
aproximou. Não conseguiu conter um brilho de admiração,
porque Rafe não só se desviara do ataque, mas convertera
Laurence em uma pessoa de sua confiança para que cuidasse
de tudo. Proporcionando-lhe algo muito melhor do que,
evidentemente, ele tivera em St. Giles.
E não faria o mesmo por ela? A contra gosto, sem
dúvida, e segundo suas próprias regras, mas mesmo assim
lhe oferecia coisas que ninguém mais lhe havia oferecido. Ela
se perguntou como seria sua vida essa mesma noite se
Ekroth a tivesse conseguido como amante. Continuaria
sentada no jardim desfrutando da noite? Ou estaria
esperando que o tempo passasse depressa enquanto ele
obtinha prazer?
Ele a teria beijado? Teria se incomodado em recuperar as
joias para ela? Teria reclamado o retrato de seu pai que
estava pendurado no salãozinho?
Evelyn se perguntou como sua mãe conseguira chamar a
atenção de seu pai. Ela se apaixonou por ele antes de se
converter em sua amante, ou fora um processo mais
prolongado no tempo? Ela não podia assegurar que amasse
Rafe Easton, e não estava segura de conseguir amá-lo.
Mas começava a alegrar-se de que ele a tivesse trazido de
volta a sua casa sob a chuva, em vez de abandoná-la diante
da porta de Geoffrey.
Capítulo 9

Ela deixara um abajur aceso junto à cama. Rafe se


perguntou se ela sofria pesadelos, se os monstros visitavam
seus sonhos, como acontecia com ele. Entretanto, suspeitava
que a existência de monstros era algo novo para a Evelyn.
Logo acrescentaria ele à lista, se ainda não o fizera.
Havia um aspecto muito inocente enquanto dormia.
Estava deitada de costas, mas ligeiramente virada para um
lado, o quadril um pouco elevado, uma perna apoiada sobre a
outra. Uma das mãos descansava junto à cabeça, sobre o
travesseiro, os dedos encolhidos. Confiante, segura de que ele
não iria ao seu leito naquela noite, que não reclamaria o que
ela lhe devia.
Rafe ignorava por que estava ali e não no clube. Havia
planejado trabalhar até o amanhecer, até sentir-se muito
esgotado para pensar nela, para desejá-la. Entretanto, o
relógio apenas marcara a meia-noite quando ele partiu. Como
um tolo, ele esperara encontrá-la sentada no salãozinho,
contemplando o retrato do pai, tomando um pouco de vinho,
rum ou uísque. Como um tolo ele esperava que ela ainda não
tivesse se retirado para seus aposentos. Claro que ela ainda
não era uma mulher da noite. Seus hábitos teriam que mudar
e começar a ser como os dele à medida que aprendesse a
esperá-lo, a estar preparada para recebê-lo quando ele
estivesse preparado para tomá-la.
E nesse momento, maldito fosse, desejava-a. Não
entendia o impulso que o empurrava a estar ao lado dela. Era
ela, não uma simples questão de luxúria. Ou possivelmente
fosse puro desejo por ela. Não conhecia nenhuma outra
mulher capaz de saciar seu desejo. Pensava nela todo o
tempo. Assim que a tivesse, todos aqueles ridículos desejos se
dissipariam como a névoa ante a saída do sol. Se ela chegasse
a saber o poder que possuía sobre ele, poderia tornar-se
muito exigente.
E o fato de que ela não lhe exigisse nada era em parte
responsável por sua obsessão.
Evelyn abriu os olhos e Rafe sentiu uma opressão no
peito, tão fulminante e dolorosa como se ainda vestisse o
casaco, o lenço e o colete, apesar de que retirara tudo assim
que retornara a casa. Ao não a encontrar em pé, fora ao seu
segundo aposento, o único no qual os serventes tinham a
entrada permitida, a estadia em que seu ajudante de câmara
atendia a suas necessidades, e ordenara que lhe preparassem
um banho. Esforçou-se por esquecer o que desejava: entrar
no dormitório dela e observá-la. Não lhe parecia apropriado.
Por outro lado, desde quando algo o detinha porque não era
apropriado?
— Você voltou, — murmurou ela com uma voz grave que
falava de segredos compartilhados. Sorriu docemente, tão
docemente, tão inocentemente. E de repente abriu os olhos
desmesuradamente. Completamente acordada, sentou-se,
tampando-se até o queixo.
Rafe preferia esse medo à inocência, e sentiu que seu
peito começava a relaxar.
— Vai ser agora? — Perguntou ela respirando
entrecortadamente, os nódulos brancos pela força que
agarrava os lençóis.
— Não, queria somente me assegurar de que você
estivesse bem.
— E por que não estaria? — Evelyn franziu o cenho.
— Não sabia que você tem dificuldades para dormir —
Rafe se negava a admitir toda a verdade, de modo que elevou
um ombro descuidadamente.
— Normalmente não, — ela sacudiu a cabeça, — mas
também não costumo esperar encontrar companhia ao
despertar.
— É que nunca foi uma amante, — ele sorriu zombeteiro
e se apoiou no dossel da cama.
— Outra regra dos amantes? Vai poder me espiar sempre
que desejar?
— Posso vir até você sempre que eu quiser.
— Deveria dispor de algumas horas do dia para mim
mesma.
Por isso ele entrara no dormitório dela. Gostava daquele
descaramento ao anunciar as coisas das quais ela deveria
desfrutar. Não tinha medo dele, mas, a julgar pela força com
que continuava se agarrando aos lençóis, tampouco se
encontrava de todo confortável na companhia dele.
— Escolha duas horas durante o dia para que eu não
possa incomodá-la e me informe de quais são. Mas as noites
são minhas.
— Quinze minutos cada hora até completar as duas
horas — ela o olhou fixamente e elevou o queixo.
— Vou precisar ficar entrando e saindo? — Ele esteve a
ponto de sorrir. — Nada, carinho. Cento e vinte minutos
consecutivos.
Evelyn fez uma careta. Rafe nunca a vira com aquela
expressão. Não parecia próprio dela. Nem sequer ao descobrir
quão imbecil seu irmão era, ela fizera uma careta por como
ele a tratara.
Ele a destroçara, mas não a destruíra.
— Não sei. Estou sendo teimosa. Suponho que não
necessito duas horas a sós. Temo que já terei muitas de todos
os modos. Nem sequer sei como vou preenchê-las.
— Preparando-se para minha chegada.
— Já que suspeito que me preferirá principalmente nua,
não acredito que eu leve muito tempo em me preparar.
— E o que sabe você de como eu prefiro? — Rafe
entreabriu os olhos. — Seu irmão jurou que você é virgem.
— Ele disse isso? — Não era possível ruborizar-se mais
do que Evelyn estava. Sentia-se escandalizada. Claro que
tampouco podia culpá-la por isso.
— Isso foi o que ele disse a todos.
— Céu santo! — Ela enterrou o rosto entre as mãos.
Ao menos soltara os lençóis, que caíram brandamente. O
tecido de algodão da camisola emprestada não resultava nada
provocador, e mesmo assim despertou a curiosidade de Rafe
sobre o que ela esconderia debaixo daqueles doze botões.
Imaginou-se desabotoando-os lentamente, afastando o tecido,
beijando-lhe a pele.
— Poderia deixar de se referir a ele como meu irmão? —
Evelyn elevou o rosto e o olhou entre os dedos. — Acredito
que ele se assemelha ao demônio. Que mais ele lhes contou?
— Que você sabe ler e que toca o pianoforte, — ele
contemplou fixamente o dossel de veludo azul. — Não prestei
muita atenção, já que não fui naquela reunião por sua causa.
Ela deixou cair as mãos sobre o regaço, sem dúvida
ignorando de que os lençóis já não a tampavam. Rafe a
imaginou ali, sentada, mas sem a camisola. Quanto ao que se
vislumbrava dos seios, fez uma ideia bastante aproximada do
tamanho.
— E o que você fazia lá?
Ele se perguntou por que não desfrutava da visão dos
seios dela, por que seus olhos deslizavam até os olhos cor
violeta. A pálida luz o impedia de apreciar plenamente sua
cor, e mesmo assim ele era incapaz de afastar o olhar.
— Consegui minha fortuna me aproveitando das
debilidades de outros homens. Estava ali para valorizar
diferentes oportunidades.
— E o que descobriu foi uma mulher frágil a qual você
poderia explorar.
— Não a considero frágil.
— Sério?
Evelyn parecia realmente surpreendida, tanto quanto o
próprio Rafe ao compreender que certamente não pensava
que ela fosse.
— Encontra-se em uma situação desgraçada, mas,
certamente não é frágil. Se fosse, estaria em um canto
chorando por sua triste sorte e o futuro que a aguardava. E,
entretanto, vai tirar o maior proveito da situação e está
decidida a que seu ir… — ela novamente o fulminou com o
olhar, a ponto de lhe arrancar um sorriso —... Wortham
lamente o que lhe fez. É uma sobrevivente, Eve. Acredito que
se sairá muito bem depois de ter se livrado de mim.
— E em quanto tempo acredita que acontecerá isso?
— Não muito, — nessa ocasião, Rafe sim sorriu. Não
conseguiu evitar. Foi somente um fugaz fio de brancura,
embora sim conseguiu reprimir uma gargalhada.
— E se eu não estiver preparada? E se alguma vez eu
não gostar de estar com você, Rafe?
Essa mulher poderia tê-lo golpeado no ventre, tanto
fazia. Jamais havia pronunciado seu nome, jamais lhe havia
tocado, e o alcançou com a força de um aríete, praticamente
dobrando-o pela cintura. Outras mulheres haviam dito seu
nome, frequentemente levadas pela paixão. E então ele
assimilou as palavras que ela pronunciara justo antes.
Inaceitável. Completamente intolerável. Jamais a forçaria,
mas, por Deus, que a faria dele, e sua paciência começava a
desaparecer.
— Então terei que me assegurar de que se sinta
confortável.
Para Evelyn, as palavras de Rafe soaram a desafio. Claro
que, no instante em que ela despertara, encontrando-o em
seu dormitório, ela suspeitara que estava acontecendo algo
que não conseguia compreender. Geoffrey sempre passava a
noite nos clubes e ela supunha que Rafe, sendo o dono de
um, estaria ocupado até o amanhecer. Entretanto,
possivelmente por ser o proprietário dispunha de
subordinados para fazer o trabalho. Dava a impressão de ser
um homem que fazia o que queria e quando queria.
Como nesse momento quando se sentou, com
movimentos de predador, aos pés da cama, as costas
apoiadas contra o poste. Uma postura que não podia resultar
nada confortável. Descansou as pernas sobre a cama e ela
não pode evitar abrir os olhos desmesuradamente. Estava
descalço. Possuía pés grandes, e nus, com a planta rugosa,
como se tivesse andado sem sapatos pelas ruas. A intimidade
do ato quase a fez saltar da cama e dirigir-se à janela.
Ela própria não entendia por que se surpreendia tanto.
Ele usava a camisa de linho que ela já conhecia e as calças.
Evelyn estava bastante segura de que tomou um banho,
porque seus cabelos estavam frisados nas pontas e se
notavam úmidos. Mas os pés… Deus santo. Não se lembrava
de ter visto os pés de um homem, jamais. Como o resto dele,
pareciam fortes. Rafe cruzou as pernas à altura dos
tornozelos e se reclinou contra o poste da cama, como se
pretendesse passar a noite ali.
— Não se alarme assim, — ele observou com voz grave e,
de certo modo, sensual. — Já lhe disse que esta noite não
acontecerá nada.
— Não estou alarmada. É que… não é decente que eu
veja seus pés descalços.
— Carinho — ele riu baixinho, — nada do que acontecer
entre nós será decente.
Ela supôs que, se ela anunciasse que tampouco era
decente que ele estivesse sentado em sua cama, receberia a
mesma resposta.
— Vamos ter muitos encontros como este, à meia-noite?
— Já é muito mais que meia-noite. Perto das duas da
manhã.
Habilmente ele evitara responder à pergunta porque,
supôs, que a resposta a inquietaria. Entretanto fora ela quem
tomara a decisão de se converter em sua amante. E não
voltaria atrás, nem sequer diante do aspecto decididamente
perigoso que ele exibia naquele momento. Imaginou-o
endireitando o magnífico corpo para engatinhar até ela como
um felino, uma das panteras que ela vira no zoológico.
— Tem alguns horários bastante estranhos, — observou
ela.
— O pecado não costuma ter horário.
Evelyn começou a puxar os lençóis, compreendendo
muito tarde que já não a cobriam. Seu primeiro impulso foi
voltar a cobrir-se inteira, mas a ação só a faria parecer
afetada. Confrontaria seu destino com esse homem com a
maior dignidade possível, como uma mulher condenada frente
ao patíbulo.
— Fale de sua vida em, St. Giles — ela o animou.
Rafe a contemplou por um longo momento antes de
encolher os ombros.
— Não há muito para contar. Foi duro e desagradável. E
eu estava decidido a sair dali o quanto antes possível,
custasse o que custasse.
— E o que custou?
— Isso foi ainda mais desagradável.
Rafe lhe dedicou um de seus sorrisos travessos, que
parecia dizer: “Na realidade você não quer saber, não é
verdade?” Evelyn continuava esperando um sorriso de alegria.
Por acaso ele teria um em seu repertório de expressões
faciais? Era tão reservado, tão cuidadoso de não revelar
nenhuma vulnerabilidade.
Adotaria ela aquele método para tratar os aspectos
desagradáveis de sua vida?
— Dentro de algumas horas deve sair para comprar
chapéus e calçados, e todas as ninharias que as mulheres
necessitam, — ele aconselhou. — Leve a Lilás para que a
ajude, e um lacaio para carregar os pacotes.
— É um pouco difícil comprar sapatos e chapéus quando
não sei que aspecto a roupa terá. Os artigos devem se
complementar. Uma mulher não compra um chapéu só para
ter um chapéu.
— Está magoada por causa da roupa, — Rafe
entrecerrou os olhos.
— Pelo modo tão despótico de dirigir o assunto, sim.
— Você queria somente vestidos pretos e, atrevo-me a
dizer, objetos que pudessem fechá-la até o queixo.
Era verdade que ela considerara botões para os vestidos.
— A roupa virginal já não lhe servirá, — continuou ele.
— Sou muito consciente disso, — disse ela antes de
fechar os olhos com força. Negava-se a se converter em uma
fulana só porque assim o ditavam as circunstâncias. — Peço
desculpas…
— Não o faça. Eu gosto de um pouco de fogo.
Ela abriu os olhos. Encontrava-se em meio de uma
conversa que nunca pensou que fosse manter. Dada a tênue
luz que emanava do abajur, não o via com a claridade que
teria gostado. Era mais uma sombra do que uma forma.
Esteve tentada de subir a chama, mas se o fizesse também
revelaria mais dela própria. E nesse momento em particular,
preferia a penumbra.
— Sim, bom, posso mostrar muito mais caráter.
— Fico contente somente com um pouco de fogo, — ele
sorriu fugazmente. — Além disso, você controla
excessivamente seu caráter. Pergunto-me por que…
— Você não responde as minhas perguntas. Por que
deveria eu responder às suas?
— Pensei que era da opinião de que devíamos conhecer
detalhes insignificantes sobre o outro, — Rafe inclinou a
cabeça.
— Se alguém nos importa, nada é insignificante. Meu pai
dizia isso. Ao menos você gosta de mim?
Ela não acreditava possível que Rafe ficasse mais quieto.
Nem sequer pestanejava. Nem sequer parecia estar
respirando.
— Para você é importante que eu goste? — observou
lentamente.
Outra pergunta que ficaria sem resposta. Rafe punha a
prova a paciência de um santo. Quem dera ela pudesse
interpretá-lo com a mesma facilidade com a que ele parecia
interpretá-la. Pois era certo que queria gostar. Desde menina
pensava que, se fosse bastante boa, comportava-se
adequadamente, seu pai faria mais do que lhe dar bonecas de
presente. Levá-la-ia com ele. E, quando finalmente o fez,
depois da morte de sua mãe, pensou que, se gostasse de
Geoffrey, ele seria seu irmão de verdade. E nesse momento
era bastante estúpida para acreditar que, se Rafe gostasse
dela, convertê-la-ia em algo mais que amante. Mas ele não
gostava dela. Esse homem não parecia gostar de ninguém.
E então recordou-se de algo mais, que tampouco ela
gostava dele.
— O que faz aqui realmente, milorde?
Embora não movesse nem um músculo, Evelyn sentiu a
fúria crescer nele.
— Jamais deverá se dirigir a mim nesses termos.
Sua voz era neutra, mas cortante. Teria conseguido
matar um homem com ela. Ele a utilizara com Geoffrey? Por
Deus ela esperava que sim, mas em que tipo de pessoa lhe
convertia isso?
— Por quê?
— Isso já não faz parte de minha vida, — ele olhou pela
janela, como se a resposta se encontrasse do outro lado.
— Mas informou Madame Charmaine de sua
ascendência.
— Sim, — Rafe apertou a mandíbula e a olhou de novo
com seus frios olhos.
— Utilizou-a para tratar de ganhar seu favor e agora se
arrepende.
— Bastante.
Ele fizera aquilo por ela? Para que Madame não a
contemplasse com desdém? Ou fizera por ele? Não acreditava.
Não lhe parecia um homem que se inclinasse diante de
ninguém.
— Mas você é um lorde…
— Eu sou eu mesmo. Eu me formei nesses bairros
baixos no qual meus irmãos me abandonaram… Rafe se
levantou da cama com uma brutalidade que a fez se apertar
contra a cabeceira, apesar de que se afastou dela, dando-lhe
as costas. Notava a tensão nos ombros, nos músculos do
pescoço.
— Não falaremos disto, Eve.
Voltou-se para ela sem rastro de emoção no rosto.
Poderia muito bem estar soprando uma vela. Em duas
passadas retornou junto à cama e ficou de pé, olhando-a. Os
dedos dos pés de Evelyn se encolheram, como se tentassem
se esconder. Lentamente, Rafe agarrou os lençóis e começou a
retirá-los.
— O que você está fazendo? — Ela soltou um pequeno
grito e o olhou furiosa enquanto puxava os lençóis.
— Dando passos para que você se sinta mais confortável
comigo.
— Este não é modo de conseguir.
— E falar, ao que parece, tampouco. Você não gostará de
ouvir, mas eu a desejo, Eve. Esta noite não a tomarei, mas
por Deus que terá que ser logo.
Sua voz era rouca, brusca e os dedos dos pés dela se
encolheram ainda mais enquanto sacudia a cabeça.
— Já me viu os pés descalços, — continuou ele. — Eu
não deveria poder ver os seus?
— Já os viu ontem à noite, — passara-se somente uma
noite desde que ela fechara o trato com esse demônio?
— Não os vi na cama.
— O aspecto deles não é diferente.
— Então a que vem tanto acanhamento?
Ela se sentia apanhada.
— Solte o lençol. Não vou machucá-la.
— E se eu não soltar?
— Tampouco a machucarei, — Rafe fechou os olhos e
voltou a abri-los lentamente.
— Finalmente uma resposta que você não evitou, —
Evelyn engoliu a saliva e afrouxou pouco a pouco os dedos.
Desejava-a deitada sobre a cama, com as pernas
separadas. Desejava afundar-se em seu interior, investir e
investir até que o prazer levasse a dor das lembranças. Quase
contara tudo, os escuros segredos que não compartilhava com
ninguém, que começara a carregar sobre seus ombros desde
os dez anos. E com os anos ele acumulara mais segredos,
cada um mais pesado que o anterior.
Mas, se os contasse, Evelyn escolheria os bairros baixos.
Saberia a escuridão que ele levava na alma, os horrores que o
atormentavam, o desespero que costumava enchê-lo de pavor.
E, nesse momento, o desespero estava dirigido para ela.
Jamais desejara uma mulher como desejava Evelyn. Se tão
somente ela conseguisse envolvê-lo com uma fração de sua
inocência… Entretanto, o mais provável era que ele lhe
transmitisse sua própria escuridão. Não suportava a ideia de
tocá-la, de destruir a luz em seu olhar, mas, mais ainda
odiava a ideia de jamais possuí-la.
Esperou, a paciência a ponto de abandoná-lo, até que os
dedos da Evelyn deixaram de tocar o lençol. Lenta, muito
lentamente, ele puxou os lençóis. A camisola de algodão a
cobria quase inteira. Ele lhe compraria uma nova, uma que
não deixasse grande coisa a sua imaginação. O lençol chegou
à cintura e continuou deslizando até revelar seus quadris.
Evelyn não afastou o olhar, que refletia um silencioso
desafio. Queria que ele parasse. E quase o fez. Mas quando a
tomasse seria na escuridão. Sem doçura, sem cuidado. Sem a
ternura que ela merecia. Ele se odiaria depois, mas fazia
muito tempo que aprendera a viver odiando a si mesmo.
Continuou puxando os lençóis, revelando os joelhos. E
um pouco mais…
Levantou o olhar até os olhos dela, surpreendendo-lhe o
quão fixamente ela o olhava. Sua obstinação, sua ira, tudo
havia desaparecido. Mostrava-se curiosa e lutava para
respirar.
— Deseja-me? — Ela perguntou com voz rouca.
— Muito.
— Porque sou uma mulher.
— Isso é evidente. Normalmente não desejo os homens.
— Referia-me a que somente me deseja porque sou uma
mulher, — Evelyn revirou os olhos. — Não importa de que
mulher se trate.
Se fosse verdade… Entretanto sim importava. Por
motivos que ele não conseguia compreender, importava muito
que fosse ela.
— Poderia ter estado com qualquer mulher esta noite.
Mas aqui estou.
— Então você deve gostar um pouco de mim.
Poderia ter explicado que não precisava gostar para
desejá-la. Poderia ter ordenado que ela deixasse de fazer
aquelas malditas perguntas. Mas optou por lhe contar a
verdade.
— Eu gosto mais do que convém a qualquer um dos dois.
E porque sabia que havia outra pergunta a ponto de sair
desses lábios, e porque não queria ter que enfrentá-la, retirou
totalmente os lençóis, revelando pequenos e perfeitos pés.
Evelyn dobrou as pernas e escondeu os pés sob a camisola.
— Quer que lhe tire a camisola? É isso?
— Não! — Ela abriu os olhos desmesuradamente. —
Claro que não.
Ajustando a camisola ao redor dos tornozelos, mostrou
os pés. Não se via nenhuma calosidade. Rafe imaginou que o
resto daquele corpo seria igualmente suave e sedoso. Desejou
desesperadamente pegar um daqueles pés entre suas mãos e
deslizar os dedos pelo tornozelo, panturrilha, joelho…
Desejava desfazer a trança dos cabelos, beijar-lhe o pescoço,
começar a desabotoar aqueles malditos botões.
Mas sabia que ela se negaria, e a queria dócil.
— Sabe o que acontece entre um homem e uma mulher?
— Geoffrey me mostrou isso em uma ocasião — ela
assentiu com convicção.
— Tocou você? — Rafe sentiu uma indescritível ira e deu
um passo à frente.
— Não, não. — Evelyn recuou assustada e sacudiu a
cabeça com a mesma convicção. — Ele me mostrou isso com
um par de cães que faziam cachorrinhos.
Ele se afastou da cama e remexeu nos cabelos, pois
chegara a considerar matar aquele canalha, quando a única
coisa que ele fizera foi mostrar a ela como dois cães se
juntavam. Entretanto, enfurecia-se ao pensar que ele a
expusera a uma cena como aquela.
— Devo acrescentar, — observou ela com acanhamento
— que não parecia que a fêmea gostasse muito.
Por Deus santo! De repente, um estranho som invadiu o
ambiente. Rafe levou alguns segundos para compreender que
se tratava do som de sua própria risada. Bruscamente se
interrompeu, e olhou para Evelyn. Sorria e, não sem se
lamentar, ocorreu-lhe que, quando tivesse terminado com ela,
possivelmente ela não voltaria a sorrir com essa doçura.
— Você gostará, Eve, prometo-lhe isso.
Antes de fazer algo impróprio, saiu dali. Debatia-se entre
tomá-la ali mesmo e deixá-la partir. Possivelmente devesse
lançar uma moeda ao ar, mas, tal e como explicara para ela, o
azar não costumava ser um aliado, e ele a desejava muito
para arriscar-se.
Evelyn ouviu Rafe dar voltas em seus aposentos.
Possivelmente ele tivesse razão e o melhor seria acabar com
aquilo quanto antes. A verdade era que seus beijos lhe
proporcionavam um imenso prazer. Podia imaginar o prazer
que encontraria na cama.
Não seria Ekroth, o dos dedos gorduchos, Berm, o do
fôlego fétido ou Pennleigh, que possuía rugas nos lugares
equivocados. Evelyn franziu o cenho. Exatamente, quais
seriam os lugares adequados para ter rugas?
Que importância teria. Rafe não possuía rugas. Era
jovem, firme e forte. Sabia que gostaria de abraçá-lo, acariciá-
lo. Ficar deitada como uma árvore cansada não seria fácil.
Possivelmente ela pudesse estabelecer algumas regras
próprias.
Saltou da cama e andou descalça até a porta. Elevou
uma mão…
Mas não conseguiu bater. Uma vez feito, já não poderia
voltar atrás. Isso ela compreendia muito bem. Um movimento
de ousadia assim provocaria uma resposta ainda mais ousada
por parte dele.
A questão era, entretanto, que ela começara a se sentir
mais confortável com ele. Percebeu o gesto aterrador quando
pensou que Geoffrey a havia tocado, mas não se sentira
aterrorizada. A ira de Rafe não fora dirigida para ela. Ele
deixou bem claro, mas o fato de que lhe importasse tanto, tão
apaixonadamente, o que poderia ter sofrido às mãos do
Geoffrey fizera com que os receios que ela ainda tivesse
partissem à deriva, como arrastados pela corrente.
Não lhe restava a menor dúvida de que, se Geoffrey
tivesse abusado dela, Rafe o teria matado. Ou ao menos o
teria feito desejar a morte. Certamente o segundo.
Deveria se sentir horrorizada ao sabê-lo capaz de
cometer atos tão abomináveis, mas a verdade era que se
sentia muito segura. Rafe a defenderia, protegeria. Não o
fizera desde o começo? Primeiro dos “cavalheiros”, que foram
à reunião, e a defendeu de Geoffrey. É claro que ela teria que
pagar um preço, mas descobriu-se mais que disposta a fazê-
lo.
O que havia inclinado a balança a favor dele fora a
gargalhada. Conseguira atingir seu íntimo, vibrado em seu
coração. Ela saíra rouca, como a abertura de uma dobradiça
oxidada depois de muito tempo fechada. Por sua reação, ele
se surpreendera tanto quanto ela.
Ela se aproximou da janela e contemplou a noite. Rafe
revelara somente pequenos detalhes de sua vida, mas ela
começava a fazer uma ideia do conjunto. Igual a ela, ele ficou
sozinho, sem ninguém que cuidasse dele. Mas conseguira se
converter em um vencedor. Não havia recorrido a seu título, a
não ser a si mesmo. Era digno de admiração.
Possivelmente algum dia conheceria um homem que a
respeitaria por ela ter feito o necessário para sobreviver.
Capítulo 10

Na manhã seguinte, Evelyn saboreou do café da manhã


solitária. Ao que parecia, Rafe fora ao clube. Não retornou
naquela noite, nem na seguinte. E tampouco a que se seguiu.
Não teve notícias dele. Teria que viver com aquela, incerteza
sempre?
Uma noite, a curiosidade a vencera e tentara abrir a
porta do dormitório dele, mas estava fechada com chave.
Tentou tanto a porta que dava a sua própria habitação como
a que dava ao corredor. Perguntou-se que segredos guardaria
ali, o que ela poderia descobrir dele. Era tão misterioso e, se
não retornava a sua própria casa, como ela poderia chegar a
conhecê-lo melhor?
Era consciente de que a única coisa que ele desejava era
deitar-se com ela. Desgraçadamente, Evelyn sonhava com
algo mais.
No quarto dia, depois de comer, sentou-se em uma
cadeira sob a sombra de um enorme olmo, junto ao muro de
tijolos que contornava o jardim da propriedade contigua. De
uma janela do final do corredor, na asa onde estava situada
seu dormitório, ela conseguira ver uma enorme residência
rodeada de um impecável terreno.
Como de costume, passara a manhã rondando pela casa,
imaginando que era dela. Decidiu que a converteria em um
refúgio para mulheres que se achassem em uma situação
parecida com a dela. Ofereceria instrução para que tivessem
alguns conhecimentos básicos que lhes permitissem
conseguir um emprego decente. Assim não precisariam
depender de outro, como acontecia com ela.
Por outra parte, era muito possível que ele já tivesse se
fartado dela. Buscara notícias dela? Ela fizera algo que o
desagradara? Rafe parecia daqueles que assinalavam as
falhas. Talvez pudesse ir a alguma livraria e procurar um livro
que falasse sobre as regras para as mantidas. Era um pouco
ignorante a respeito. Supôs que deveria tentar mostrar-se
sedutora, mas como se fazia isso?
Por outro lado, se não se deitasse com ela, sua reputação
ficaria intacta. Evelyn bufou ante o absurdo daquela ideia.
Viver na residência de um homem já supunha a ruína.
Ninguém acreditaria que alguém tão masculino e viril como
Rafe Easton não se deitara com ela.
Ouviu o riso infantil que já a fizera sorrir outras tardes.
Era seu momento preferido do dia.
— Lorde Redley! — Chamou uma mulher. — Venha aqui,
criatura.
Houve mais risadas, e o imaginou escapando da babá. A
julgar pelo agudo timbre de suas risadas, não podia ter mais
de dois anos.
Evelyn fez um esforço por não lamentar que jamais
haveria crianças brincando e correndo por esses terrenos. Já
que completara somente vinte e dois anos, supôs que Rafe a
deixaria partir enquanto ainda fosse jovem, com tudo o que
pudesse levar dele. Possivelmente inclusive encontraria um
marido e, por que não, teria filhos. Mas jamais poderia ficar
nesse lugar.
Surpreendia-lhe que Rafe tivesse instalado sua amante
junto a uma família nobre, mas, por outro lado, tampouco
pareciam lhe afetar muito os convencionalismos. Havia
considerado a possibilidade de apresentar-se aos vizinhos,
mas como explicar sua posição ali? Suspeitava que não
fossem se mostrar precisamente encantados ao saber que
uma mulher de tão duvidosa moralidade residia junto a eles.
De modo que permaneceu no jardim, tomando chá, sem
sequer uma triste boneca de porcelana como companhia.
Viu a aproximação de Laurence. O homem era
tremendamente amável. Talvez pudesse convencê-lo para que
a acompanhasse a tomar o chá. Se seria uma mulher pouco
convencional, então deveria tratar aos serventes de modo
pouco convencional também.
— Olá, Laurence.
— Boa tarde, senhorita — o homem se deteve ante ela e
fez uma pequena reverência. — Chegaram vários pacotes da
parte de Madame Charmaine. Deixei-os no salãozinho para
que proceda a inspeção.
— Oh! — Evelyn se levantou da cadeira de um salto. —
Meu vestuário...tão cedo? — Quase não podia acreditar
naquilo e tampouco podia acreditar o quanto emocionada se
sentia ante a perspectiva de poder vestir algo que não fosse
seu único e negro vestido. Se Laurence não tivesse pernas tão
longas, duvidava de que tivesse conseguido seguir o passo
dela, pois praticamente corria saltando pela grama.
— É normal que o senhor Easton se ausente tanto
tempo? — Ela perguntou.
— Sim, senhorita. Às vezes me pergunto para que se
incomoda em manter uma residência. Pelo que sei ele prefere
o clube.
— Você esteve alguma vez no clube? — Ela o olhou pela
extremidade do olho.
— Uma ou duas vezes.
A resposta lhe pareceu um pouco evasiva e Evelyn não
conseguiu evitar perguntar-se por que. Ao que parecia todo
mundo relacionado com aquela residência possuía segredos.
Laurence abriu a porta. Ela continuou pelo corredor.
— Envie-me a Lilás.
— Sim, senhorita.
Laurence partiu enquanto ela entrava no salão e se
deteve em seco.
Sentado em uma poltrona junto à janela estava Rafe,
iluminado pela luz do sol. Uma perna esticada, a outra
dobrada sobre o joelho, um cotovelo sobre o braço da
poltrona, um copo cheio de um líquido dourado pego aos
lábios. Lábios que a atormentaram, esquentaram, encheram
de prazer.
Prazer muito parecido ao que sentia naquele momento ao
vê-lo. Era tão corpulento, tão masculino, tão incrivelmente
formoso, apesar de ser evidente que fazia dias que não se
incomodara em se barbear. Entretanto, a incipiente barba
não fazia mais que lhe dar um aspecto mais sensual, mais
atraente.
Evelyn segurou as mãos para não as estender para ele.
Suspeitava que seria uma tortura não poder abraçá-lo nos
dias e noites que seguissem. Porque, se não podia abraçá-lo,
ele, com toda probabilidade, tampouco a abraçaria. E isso
parecia quase um pecado.
— Você voltou! — A voz soou gutural, quase
entrecortada. Sem dúvida se devia a que ela correra para
chegar até ali.
Certamente não era pela alegria de vê-lo, porque sua
presença sempre seria acompanhada da possibilidade da
perdição.
— Eu diria que sim, — respondeu ele, o olhar ocultando
o que pudesse ter sentido ao vê-la de novo. Certamente não
havia sentido nada. Evelyn se entristecia de pensar que
possivelmente ele jamais a veria como algo mais que uma
mulher com a qual dar uma simples queda. Rafe apontou os
pacotes com o copo.
— Uma parte de sua roupa está terminada. O resto dever
estar no final da semana que vem.
Ela contemplou a enorme quantidade de caixas antes de
devolver sua atenção a Rafe. Os pacotes pareciam ter perdido
sua importância frente à presença daquele homem. Quis lhe
perguntar onde estivera, o que fizera, por que permanecera
afastado dali, se ele estava bem. Entretanto, duvidava muito
que ele lhe respondesse.
— Incomodou-se em buscá-la.
— Passava por ali — Rafe encolheu os ombros. — Dê
uma olhada, e veja se você gosta. Evelyn desejava
desesperadamente dizer que ele não podia deixá-la ali sem
mais, adoecendo, preocupando-se com ele, mas tampouco
queria que ele soubesse que estivera preocupada. Os homens
tornavam-se violentos quando perdiam grandes quantidades
de dinheiro? Ela tivera inquietantes visões dele acossado por
jogadores que haviam perdido jogando às cartas em seu
clube. Jogadores como Geoffrey.
Queria lhe dizer que esperava um mínimo de
consideração, mas uma imagem se instalou em sua mente,
uma em que ela não havia reparado por muito tempo. Sua
mãe sentada junto à janela, belamente vestida, olhando para
o exterior.
— O que está fazendo, mamãe? — Evelyn lhe perguntara.
— Simplesmente espero ao conde, céu.
Olhando para atrás, ela compreendeu que sua mãe
dedicara uma grande parte de seu tempo a esperar. E, ao que
parecia, sua vida consistiria basicamente em esperar Rafe.
Em qualquer caso, era preferível esperá-lo do que esperar que
Geoffrey lhe abrisse a porta do dormitório para deixá-la sair.
Também recordava como sua mãe corria à porta assim
que via a carruagem do conde. Como se lançava em seus
braços assim que ele descia da carruagem. Como, depois lhe
dava um tapinha na cabeça e lhe entregava sua nova boneca,
sua mãe e ele subiam juntos as escadas. Evelyn se perguntou
se alguma vez experimentaria tanta alegria com a chegada de
Rafe. De repente pensou que deveria fazer algo mais que ficar
ali como uma tola admirando a perfeição física daquele
homem, quando era evidente que vê-la não provocava a ele
emoção nenhuma.
Muito consciente de seu papel na vida de Rafe, ela se
aproximou da primeira caixa, levantou a tampa e rebuscou
entre o papel de seda até encontrar uma saia de montaria
azul marinho com uma camisa branca e uma jaqueta
combinando com a saia, debruada de cordão prateado. Era
elegante, mas ao mesmo tempo formal. Ela estava esperando
que a roupa que se encarregaria de mudá-la, proclamasse a
alta voz e aos gritos o que ela era, mas o que estava diante
dela era o típico conjunto que uma dama de alta linhagem
usaria. Olhou-o de esguelha, segura de que ele não movera
nem um músculo.
— Obrigada. É lindo.
— O chapéu faz conjunto, — sem soltar o copo, Rafe
apontou uma caixa circular que descansava em um sofá.
Era do mesmo tom de azul, debruado de gaze branca que
terminava em um laço na parte de atrás.
— Ao que parece tem um gosto requintado.
— Não é verdade?
Ela se voltou bruscamente e o viu contemplando o
líquido ambarino do copo, como se tivesse sido a bebida que
tivesse falado e ele a estivesse censurando. Ela não se
lembrava de ter ouvido nem um elogio dele, tê-lo ouvido
admitir que a achava atraente ou tentadora. Ele a desejara
porque outros homens a desejaram, e ele os achara
inadequados. Ao menos era isso que ela pensava.
Esticou a mão para outra caixa. No interior havia um
vestido em um tom vermelho arroxeado muito parecido ao que
usara na noite em que Geoffrey convidara os homens para
conhecê-la, mas o tecido era mais sedoso, de melhor
qualidade. Deslizá-lo por seu corpo seria uma delícia. Cada
caixa encerrava uma surpresa: um vestido de luto, negro,
singelo embora elegante. Ela não esperava que ele lhe
proporcionasse algo para quando ele não estivesse presente,
algo que lhe permitiria seguir honrando a seu pai.
Seguiram um vestido verde de noite, de pronunciado
decote. Outro de cor rosa pálido com um corpete franzido.
Uma bata de seda, violeta. Uma camisola de gaze branca,
praticamente transparente, e que não deixava nada à
imaginação.
Enquanto voltava a deixar a camisola na caixa, evitou
olhar para Rafe. Não queria que ele visse o medo e
inquietação que a invadia ao pensar que ele se deitaria com
ela, e que queria que ela parecesse desejável.
Finalmente só restava uma caixa sem abrir. Antes de
afastar o papel que a cobria, já sabia o que continha. A
vibrante cor vermelha era impossível de ocultar. Ao tirar o
vestido da caixa e segurá-lo alto, ela ficou praticamente sem
fôlego.
— É… lindo, — depois de dobrá-lo, voltou a deixá-lo na
caixa. — Mas não penso vestir isso.
— Você é muito teimosa, — as comissuras dos lábios de
Rafe se retorceram.
Nem a própria Evelyn sabia porque se mostrava tão
obstinada com respeito ao vermelho. Talvez simplesmente
quisesse poder decidir sobre algum aspecto de sua vida.
— Deveria levá-los a meus aposentos para prová-los e
estar segura de que me cabem.
— Comece pelo traje de montaria, — ele deu alguns
golpezinhos no copo com o dedo. — Vamos dar um passeio a
cavalo pelo parque.
Evelyn o olhou sem fôlego e, embora estivesse muito
consciente de que ele certamente possuía um estábulo lotado
de cavalos, ela não conseguiu evitar fazer uma pergunta.
— Você trouxe a Snowy?
Rafe se limitou a levantar a taça a modo de saudação e
virá-la de um gole.
— Por isso você esteve fora tanto tempo.
— E onde você acreditava que eu estava? — Ele inclinou
a cabeça e a contemplou atentamente.
— Em seu clube. Pensei que estava me dando tempo
para me acostumar a situação e a você.
— Um pouco difícil se acostumar a mim se não estiver
aqui.
— Não estou segura de conseguir ser uma boa amante,
— ela soltou uma pequena gargalhada. — Eu não gostei de
não saber onde você estava nem quando ia retornar. Eu não
gostei de esperar, sem saber o que devia fazer. Compreendo
que eu não sou importante e que somente servirei para um
propósito, mas…
Em um movimento, tão rápido quanto potente, Rafe se
levantou da poltrona e se aproximou dela. Seu olhar estudou
atentamente seu rosto. Evelyn o sentiu quase como uma
carícia.
— Não me ocorreu que pudesse ficar preocupar. Mas sim
pensei que agradeceria minha ausência, — ele lhe acariciou a
bochecha com os nódulos. — Não posso saber sempre quando
estarei aqui. Meu negócio, em várias ocasiões, mantém-me
afastado de casa.
— Mas nesta vez não foi assim.
— Agora você faz parte de meu negócio, — ele deslizou o
polegar pelo lábio inferior de Evelyn. — Vamos dar um
passeio, você quer? — Antes que ela pudesse responder, ele
deu meia volta. — Tive muitas dificuldades para trazer esse
cavalo.
Ele sugerira sair para montar porque, desde o momento
em que a vira entrar no salão, não desejara mais que tomá-la
nos braços, levá-la ao dormitório e fazê-la sua, como o
bárbaro que toda Londres afirmava que ele era.
Seu desejo por ela não fizera mais que aumentar, ao ver
a felicidade iluminar aquele rosto quando ela contemplava um
vestido atrás do outro. E o vermelho… ela vestiria, ele vira a
tentação em seus olhos antes que ela conseguisse disfarçá-lo.
Não poderia ter se sentido mais satisfeito diante da reação
dela.
Mas ao ver o cavalo…
Algo dentro de Rafe se rasgou. Teria dado o que fosse
para que ela o olhasse assim, com a mesma alegria, o mesmo
prazer, a mesma… não saberia descrever a emoção. Era
evidente que adorava o cavalo. Ela o acariciara, sorrido, e
murmurava doces palavras.
Rafe queria que ela sorrisse assim para ele também.
Não que o tivesse olhado sobressaltada e apreensiva
como quando entrara na habitação e o vira ali sentado.
Manteve o cavalo ao trote ao lado dela sem querer
admitir que poderia estar com ciúmes de um animal, porque
era o depositário de todos os afetos daquela mulher.
Não sabia o que lhe acontecia. Havia retornado a
Londres, passado pela loja da costureira para recolher o que
estivesse terminado e depois retornado à residência. Não ao
clube. Desde a noite em que ele o conseguira, o lugar fora o
centro de sua vida. Mas, em sua ausência, poderia ter ardido,
tanto fazia, pois apenas lhe dedicara um minuto de seus
pensamentos. Toda sua atenção estivera colocada em voltar
para ver Evelyn.
Não sentira falta dela, porque ele não era dos que sentia
falta de ninguém. Mas sim pensara nela todo o tempo. Havia
sonhado com ela nua, contorcendo-se debaixo dele. Havia
sonhado com ela lhe rodeando com seus braços sem que ele
começasse a suar, a respiração lhe entrecortasse ou que o
coração começasse um galope alucinado. Em seu sonho, Rafe
se afundava dentro dela enquanto Evelyn o abraçava com
força até que resultasse impossível saber onde terminava ele e
começava ela.
Mas tudo isso não era mais que fantasia. A realidade
seria muito diferente. Sabia. Aceitava. Não conseguiu evitar
que seu olhar pousasse de novo nela. O traje estava perfeito,
abraçava-lhe os seios, a delicada cintura. Ela montava bem a
cavalo. Ao chegar ao parque, os olhos cor violeta se abriram
desmesuradamente.
— Quantas pessoas! — Ela murmurou quase em um
sussurro.
— É a hora do dia para passear. Nenhuma vez você
esteve no Hyde Park?
De repente, Evelyn pareceu achar muito interessante as
rédeas que deslizava pelos dedos enluvados.
— Meu pai me trouxe em uma ocasião, em uma
carruagem, a primeira hora da manhã. Não recordo de ter
visto mais de uma dúzia de pessoas. Todos saberão o que sou
para você?
Rafe desejou por um instante ter tido o mesmo tato que o
pai de Evelyn, e não a ter levado ao parque na hora de
máxima afluência.
— Duvido. Os homens que conheceu aquela noite, é
obvio, saberão, mas não lhes interessará revelar o que
aconteceu naquela reunião. Já que não partiram com você,
isto os fará parecerem fracos.
— E, entretanto, aqui estou, sem acompanhante. Isso diz
muito sobre minha moralidade, não?
— Muitas damas não trazem acompanhantes, porque
aqui há muitas pessoas. Além disso, dá igual o que pensem.
— Suponho que sim. Em qualquer caso, já não importa
— Evelyn se ergueu e elevou o queixo. — Depois da morte da
mamãe, pai me levou a sua propriedade no campo. Até este
ano não havia retornado a Londres.
— Permaneceu no campo.
— Eu gostava de estar lá, — ela assentiu e deu uma
palmada ao cavalo.
Era lógico que ela gostava. Isto ele conseguira ver, estava
longe, tudo era muito verde, e tranqüilo.
— E por que você retornou?
— Acredito que papai tencionava me arranja um marido,
mas então adoeceu, rápido e inesperadamente. Sua saúde se
deteriorou a um ritmo alarmante. O médico disse que estava
a tempos sofrendo um câncer do sangue. Pensei que eu
compareceria a bailes, — Evelyn olhou a seu redor e guiou ao
cavalo com mão perita. — Agora compreendo que não foi mais
que uma estúpida ilusão. Se não me trazia para o parque em
uma hora em que todo mundo estivesse aqui, não acredito
que fosse se incomodar em me conseguir um convite para
uma festa.
Era evidente que a jovem começava a compreender que
seu pai, possivelmente, não se sentia tão orgulhoso dela como
a fizera acreditar. Uma ira fulminante invadiu Rafe.
— Seu pai não evitou exibi-la no parque porque não a
valorizasse. Suspeito que a amava muito para vê-la sofrer. As
pessoas que se dedicam a fofocar por aí podem ser muito
cruéis quando se propõem.
— Não parece que as tenha em grande estima.
— Não, e você tampouco deveria. Não são importantes.
— E o que acontece com as pessoas que vivem na
residência contigua à sua? As do menino pequeno. Conhece-
os?
— Não são importantes.
— Há alguém que o seja para você? — Evelyn sorriu com
ironia.
“Você é”. Aquele sentimento carecia de todo o sentido
para Rafe. Sua pressa por retornar à residência para vê-la de
novo, a obsessão por prolongar o tempo que passavam juntos
levando-a ao parque… Não recordava a última vez que fora a
um parque. Fora por causa de uma dama, e eles se
separaram pouco depois.
— Estou a muito tempo sozinho, Eve, para que alguém
tenha importância.
— Você acredita que eu também me sentirei assim
depois de um tempo? — Ela sacudiu a cabeça. — Espero que
não. Parece-me muito triste. E me dá a impressão de que eu
estaria muito sozinha.
— Não se você gosta de sua própria companhia.
— Você gosta da sua?
Na realidade, não muito, mas aquela era outra questão.
Rafe ignorou a pergunta e permitiu que o silêncio se
prolongasse entre eles.
— Acredita que nos encontraremos com Geoffrey por
aqui?
— Não se ele nos vir primeiro.
Evelyn lhe dedicou um sorriso resplandecente e alegre
que alcançou seus olhos cor violeta, arrancando brilhos. Algo
se encolheu no peito de Rafe. O maldito colete estava muito
justo. Ele não deveria ter cedido ao capricho dos caramelos.
Se continuasse assim, teria que arranjar a roupa. Sabia por
experiência.
— Teve muitas dificuldades com o cavalo?
— Geoffrey colocou um preço e eu paguei, — até
considerara tomá-lo sem mais, mas sabia que, de todos os
modos, o dinheiro retornaria brevemente a seu bolso, e
enfurecer Wortham só serviria para que aumentasse o
ressentimento para sua meia-irmã. Duvidava muito que Eve
voltasse a vê-lo alguma vez, mas nunca se sabe.
— Acredita que ele se aproveitou de você?
— Eve, — Rafe riu, — ninguém se aproveita de mim.
— Não sei se você tem muita confiança em si mesmo ou
se é um arrogante.
Rafe a olhou nos olhos. A cor parecia mais escura, não
tão violeta. Seria por causa da cor azul do traje de montaria.
Deveria ter encomendado violeta, mas não podia negar que
dava um aspecto muito elegante ao corpo dela. Tampouco
sabia por que comprar uma peça que a cobrisse tanto.
Não se supunha que uma mantida deveria se mostrar
atrevida e ousada? Eve parecia completamente inocente.
Jovem. Tão jovem.
— Quantos anos você tem?
— O que importa isso?
Importava, porque ali, sentada feliz sobre seu cavalo,
relaxada, sem se preocupar se por acaso ele lhe exigisse o
que, claramente, não estava preparada para dar, parecia mais
uma menina do que uma mulher.
— Nada. É simples curiosidade.
— Quatorze.
Rafe soltou um juramento e apanhou as rédeas da égua
branca, obrigando-a a deter-se. Contemplou-a atentamente.
Os delicados traços, o fino pescoço, a curva do peito, a
estreita cintura, os largos quadris…
— Você não é uma menina, — grunhiu ele. Porque não
queria que ela fosse, não queria sentir aquela absoluta
fascinação por alguém a quem teria que aguardar anos para
possuir.
— E se eu fosse? — Evelyn inclinou a cabeça.
— Eu não tomo meninas, e você está mentindo.
— Melhor dizendo, brincando. Pensei que você fosse um
homem sem nenhuma moral. Alegro-me de descobrir que não
é completamente malvado.
— Quantos?
— Vinte e dois. Uma velha, em muitos aspectos, eu temo.
Quase uma solteirona. Por isso pensei… — ela suspirou e
sacudiu a cabeça.
— Pensou que seu pai tinha a intenção de casá-la.
Ela assentiu e fez uma careta de irritação.
— E Geoffrey também. Quando ele me disse que queria
me apresentar a alguns cavalheiros, supus que se referia a
me casar. E você? Há alguma mulher que você goste?
— O casamento não é para mim, — Rafe soltou as rédeas
da égua. Os dedos lhe começavam a doer por causa da força
com a que as segurou. A ideia de não poder tê-la durante
anos…
— Não brinque comigo, — ele ordenou antes de iniciar a
marcha.
— Eu gosto de brincar.
— Bem, pois será um hábito que terá que esquecer
enquanto estiver comigo.
— Não acredito que eu goste de ser transformada em
algo que não sou — ela suspirou ruidosamente. — Embora eu
suponha que já está acontecendo, não?
Ele se negava a se sentir culpado pela pouca previsão do
pai de Evelyn.
— Acredita que haverá outras amantes por aqui?
— Suspeito que sim, mas se disfarçam muito habilmente
de damas.
— Mais ou menos como eu.
“Nada a ver com você”, pensou Rafe. Duvidava que
existisse outra mulher comparável a ela em toda a Inglaterra.
Evelyn tinha consciência de estar tagarelando sem
sentido sobre tolices. Irritava-a se sentir preocupada com o
que os outros pensariam, como se tivesse escrito na testa,
com letras maiúsculas, o que ela era. Havia muitos casais
passeando e, sem dúvida, nem todos estariam casados.
E sem dúvida também, se não tivesse se sentido
envergonhado por ela, seu pai a teria levado ao parque para
que conhecesse pessoas. Não duvidava do amor dele por ela,
mas começava a compreender que possivelmente não se
sentira tão orgulhoso de sua filha como afirmava estar. Nunca
a levara a uma oficina de costura. Nunca passeara a cavalo
com ela pelo parque.
Supôs que Rafe Easton não sentia nenhuma vergonha
porque ele mesmo era bastante escandaloso. Não podia negar
que esse homem representava o que, ela imaginava,
encaixava-se com os sonhos da maioria das damas: alto,
atraente, com a suficiente altivez para despertar curiosidade.
Conseguia que as mulheres fossem até ele. Evelyn se
perguntou se também esperava que fosse ela quem desse o
primeiro passo. Duvidava muito.
Se esperasse a que ela estivesse preparada, esperaria
muito tempo. Embora possivelmente não tanto quanto ela
teria assegurado alguns dias atrás. Não gostava de saber que
era tão solitário. Ninguém parava para falar com eles,
ninguém os saudava de longe. As pessoas inclusive pareciam
se esforçar para evitá-los, como se temessem se contagiar de
algo ao se aproximarem muito.
Sua primeira suspeita era que se devia ao que ela estava
a ponto de ser, uma mulher de moral lasciva. Mas começava a
pensar que o que mantinha às demais pessoas afastadas era
o muro que Rafe levantava ao seu redor. Não sorria, não
saudava, não assentia. Era um lorde, mas ninguém o tratava
com a deferência devida. Ela quis assegurá-lo que não se
importava que o negócio dele o convertesse em uma pessoa
pouco respeitável. Ele conseguira triunfar por si próprio, e
mesmo assim era evidente que tanto trabalho e esforço não
lhe proporcionara seu lugar merecido entre a aristocracia,
não o reintegrara ao lugar que ele deveria ocupar.
Rafe soltou um juramento e fez uma careta. Devia ter
puxado com força as rédeas, porque seu cavalo se desviou
para um lado e teve que ser guiado de novo para o caminho.
— O que houve? — Perguntou ela.
— Estamos a ponto de sermos incomodados, — ele chiou
os dentes e sacudiu a cabeça.
— Por quem? — Evelyn olhou a seu redor e viu um casal
montado em cavalos baios que trotavam para eles.
Estavam muito perto para conseguirem escapar, mas, à
medida que se aproximavam, ela começou a suspeitar quem
poderia ser o cavalheiro. Seus olhos o delataram. O tom azul,
quase gelo, embora seu olhar não fosse frio. Na realidade era
cálido e acolhedor e brilhava com diversão por causa do
sorriso da dama que montava a seu lado. O cabelo da jovem
era de um loiro tão pálido que parecia quase branco e seus
olhos eram da cor da prata fundida. Não podia ser descrita
como uma beleza, mas havia uma nobreza em seu porte que a
tornava inesquecível.
Detiveram os cavalos ao mesmo tempo, que Rafe e
Evelyn.
— Irmão, jamais pensei em tropeçar com você por aqui,
— saudou o outro homem.
— Sebastian também está por aqui?
— Em alguma parte. Mary insiste para que ele se mostre
em público, — o homem desviou sua atenção para Evelyn. —
Não me recordo que nos tenham apresentado.
— Permita-me a honra de apresentá-lo à senhorita
Evelyn Chambers. Evelyn, apresento-lhe lorde Tristan Easton
e sua esposa, lady Anne.
— Um prazer, — lorde Tristan tirou o chapéu. — É a
irmã do Wortham.
— Meia-irmã, sim.
— Sinto muito a perda de seu pai — saudou lady Anne.
— Obrigada, — Evelyn ficou, de repente, muito
consciente de não vestir o luto, tal e como deveria.
— Estaria vestida de negro se eu não tivesse insistido ao
contrário, — comentou Rafe. — É uma cor fatal. Não faz
justiça a compleição dela.
— Acredito que exageramos um pouco no que diz
respeito à vestimenta de luto, — assentiu lady Anne com
amabilidade, — e quem diz isso é alguém que se vestiu de
negro durante dois anos.
— Também perdeu seu pai? — Perguntou Evelyn.
— Não, ele se encontra bastante bem, — a outra mulher
sorriu. — Como outras muitas, perdi meu prometido durante
a guerra da Crimeia. Tristan e eu nos conhecemos quando o
contratei para que me levasse até Scutari para visitar a
tumba de Walter.
— Naquela época, Tristan era capitão de iate, — explicou
Rafe.
— Navio. Capitão de navio, — lorde Tristan grunhiu de
uma maneira muito parecida com o irmão caçula quando se
zangava. — Há uma diferença entre um iate e um navio.
— Os dois flutuam na água.
— E aí terminam as semelhanças. Se você viesse alguma
vez para navegar conosco, mostraria a diferença.
— Continua tendo seu navio? — Perguntou Evelyn. Ela
imaginava quão maravilhoso devia ser poder ir onde quisesse,
quando quisesse.
— Não, — lorde Tristan sorriu com amabilidade, — vendi
o Revenge a um cavalheiro, sabia, que o apreciaria e o
cuidaria. Agora me dedico ao desenho e a construção de iates.
Suspeito que dentro de alguns anos os iates serão muito
cobiçados. Vamos inaugurar o primeiro na semana que vem.
Se Rafe se animar, está mais que convidada a acompanhá-lo.
— Nunca naveguei.
— Eu achei muito emocionante, — interveio lady Anne.
— Se está fazendo testes, há muitas probabilidades de
que afunde, — observou Rafe.
— E você acredita que eu arriscaria a vida de minha
esposa se não estivesse seguro? — Tristan soltou uma
gargalhada. — Além disso, sei que você sabe nadar.
— Essa não é a questão. Embora não tenha importância.
Não temos tempo para navios.
— Certamente será melhor, porque se você se atrevesse a
se referir ao iate como “navio”, estando a bordo, eu o lançaria
pela amurada.
— Eu gostaria de vê-lo tentar.
Evelyn nunca vira dois homens contemplar-se com tanta
raiva. Chegariam às mãos? Nunca presenciara uma briga.
Suspeitava que o problema entre eles tinha pouco a ver com o
iate ou o navio. Era algo muito mais profundo. Lorde Tristan
era um dos irmãos que o abandonara, que partira sem ele.
— Temo que precisemos ir, — lady Anne demonstrou sua
têmpera ao esticar uma mão e apertar o braço de seu marido.
Lorde Tristan fechou os olhos e deixou o ar escapar
lentamente. Ao abri-los, mostravam de novo aquele brilho
travesso.
— Você gostando ou não, faz parte da família. Espero
que mude de opinião e venha a nós no “navio” — voltou a
colocar o chapéu. — Um prazer, senhorita Chambers.
O casal partiu ao trote como se não tivesse estado a
ponto de explodir uma tormenta.
— Não diga nada, — murmurou Rafe antes de fazer girar
o cavalo e lançá-lo rapidamente por onde chegaram.
Evelyn esteve a ponto de não o seguir. Entretanto, sabia
o que era se sentir desprezada. Por mais que seu pai a tivesse
mimado, Geoffrey nunca aceitara sua presença. De modo que
lançou à égua ao trote, agradecida quando ele diminuiu a
marcha para que ela pudesse alcançá-lo. Rafe respirava com
mais dificuldade que sua montaria. Seu pai nunca falara com
tanta brutalidade, nunca lhe mostrara aborrecimento. Evelyn
não sabia como responder, como suavizar aquilo.
— Não gostei muito dele, — observou ao fim.
Ele a olhou fixamente, com o cenho franzido, e ela se
perguntou o que ele faria se ela esticasse uma mão para
acariciá-lo. Claro que, considerando a distância que os
separava, certamente cairia da sela antes de alcançá-lo.
— Lorde Tristan, — esclareceu-lhe, se por acaso tivesse
dúvidas.
— Devo reconhecer que você está se mostrando leal, —
ele sorriu levemente. — Mas meu irmão não me desagrada.
— Então por que você não quer ir no navio dele?
— Iate, — o sorriso se ampliou.
Durante alguns segundos, Evelyn chegou a pensar que
ele poderia rir. Entretanto, o sorriso simulado desapareceu
rapidamente.
— Eu não sou como eles. Tristan e Sebastian. Sebastian,
o duque, lutou na Crimeia. Foi gravemente ferido enquanto
tentava salvar um companheiro. Tristan sulcou os mares.
Soube que ele salvou um menino das garras de um tubarão.
São bons homens. Eu não. Não temos muito em comum. Eles
retornaram à vida social, enquanto eu habito os rincões mais
escuros e afastados dessa vida.
Lançou o cavalo a um galope rápido que tornava
impossível manter uma conversa.
Mesmo assim, ela o seguiu, curiosa sobre aqueles
rincões escuros, perguntando-se em silêncio por que ele os
preferia, e perguntando-se também se chegaria um dia em
que aqueles rincões a engoliriam também.
Capítulo 11

Encaixou o primeiro golpe porque ele merecia.


Vira o rosto de Eve se iluminar quando Tristan os havia
convidado, e no fundo de sua alma sabia que certamente era
o primeiro convite que ela recebera de um nobre. Seu pai, por
muito que a amasse, encerrara-a em uma jaula de ouro tão
formosa e cheia de tanta bondade que ela nem sequer se deu
conta de que estava presa.
E Rafe lhe negaria o prazer de aceitar porque, se
passasse tempo com seus irmãos, não duvidava que
acabariam vendo o interior de sua alma escura e sabendo as
coisas que ele fizera para sobreviver. Agachou-se para
esquivar o próximo golpe de Mick antes de lançar um rápido
gancho sobre as costelas de seu adversário.
— Está de um péssimo humor, — brincou Mick.
Se soubesse somente a metade. Assim que ele deixara
Eve na residência, fora ao clube para evitar a presença dela.
No quadrilátero se despiu da cintura para acima. Era o único
lugar no qual não precisava ocultar sua aversão à roupa. Se
pudesse tirar também as calças, se sentiria na glória.
Saltando sobre os pés descalços, Rafe dançou ao redor
de Mick. Estava furioso consigo mesmo por revelar para Eve
que seus irmãos eram boas pessoas e ele não. Era algo que
somente ele reconhecia nos rincões mais recônditos de sua
alma obscura, mas jamais manifestara em voz alta. Estava
tão orgulhoso de seus lucros, pelo que havia conseguido…
Fazia planos para mostrar a seus irmãos.
E, entretanto, foram eles que lhe mostraram que eram
homens de honra, que não tinham virado as costas às suas
origens, que não fizeram nada para manchar o sobrenome
familiar. Enquanto ele não deixou de cometer uma ofensa
atrás de outra.
Não pensou em seus pecados, não permitiu que
atravessassem a barreira de sua consciência. Se se
repetissem as mesmas circunstâncias, voltaria a fazê-los.
Lançou um gancho contra Mick, mas falhou. O bastardo
o golpeou no estômago e quase o dobrou.
— Esta noite você está avoado, — observou Mick.
Rafe se endireitou e elevou os punhos. Jamais falava de
seu passado, não fazia confidências, não contava com que
outros olhassem além de seus próprios interesses. Assim era
o mundo no qual se fizera homem, o mundo no qual
sobrevivia, nunca olhava além de suas próprias necessidades,
desejos, vontades. Encontrar-se encurralado pelos desejos de
Eve o inquietava. Não desejava mantê-la encerrada em uma
jaula de ouro, mas sair dela significava deixar-se ver em
ambientes nos quais se sentia muito incomodado.
— Alguma vez você pensa em como chegamos até aqui?
— Rafe lançou um novo gancho, que Mick esquivou.
— Então você também ouviu os rumores.
— Que rumores?
Mick atacou e Rafe parou o golpe com seu punho direito
enquanto soltava um murro com o esquerdo. Mick cambaleou
antes de recuperar o equilíbrio e falar de novo.
— Que Dimmick não morreu.
Dimmick, o anterior dono do Rakehell Clube, mentor e
verdugo de Rafe. O homem que, supunha-se, saltara da ponte
da torre de Londres fazia alguns anos, embora os restos que a
água empurrara até a borda do Tâmisa resultaram bastante
irreconhecíveis. O que servira para identificá-lo fora o anel
que Dimmick sempre levava em sua mão esquerda.
Esquivando um murro na mandíbula, Rafe fez uma finta.
— Não seria estranho ele fingir sua própria morte e
depois permanecer escondido.
— Seis anos?
Já se passaram seis anos desde que ele obrigara
Dimmick a lhe entregar o Rakehell Clube? Começara a
trabalhar para ele aos quatorze anos. E três anos depois se
converteu em seu melhor cobrador. Rompia ossos sem o
menor remorso, ameaçava sem a menor piedade.
— Você tem a consciência de um cadáver, — dissera
Dimmick em uma ocasião. — Por isso você é tão bom no que
faz.
Aceitava as ordens e as executava, porque aprendera,
muito tarde, que Dimmick não era o tipo de homem para
quem alguém devia estar em dívida.
— Dimmick sempre foi muito paciente, — seu mantra
era que: se fosse destruir um homem, precisava destruir
completamente.
— Se ele estiver vivo, vai procurá-lo, — Mick golpeou o
ombro de Rafe.
— Se algo me acontecer, procure um advogado chamado
Beckwith. Ele tem meu testamento e os papéis do clube. Se
eu morrer, o Rakehell Clube passará a ser de sua
propriedade.
Mick ficou gelado, e Rafe, vítima do vício adquirido de
não perder a ocasião para se aproveitar de uma debilidade,
golpeou-o no rosto, com o punho e o enviou ao chão.
Uma lástima. Com aquilo acabaria a briga. Rafe se
ajoelhou junto ao homem que brincara de correr atrás dele
quando era mais jovem, aceitando qualquer migalha que ele
estivesse disposto a jogar. Não muitas, mas as suficientes
para ganhar a lealdade de Mick. Quando Rafe ficara com o
salão de jogos, dera ao Mick um posto. Não os convertia nos
melhores amigos, pois sua única relação era trabalhista. Mick
dirigia o local e se ocupava de tudo quando Rafe não estava.
O que, até fazia muito pouco, acontecia muito raramente.
— Não que eu tenha previsto que me vá acontecer algo,
— ele assegurou quando Mick recuperou a visão.
— E por que me deixa o clube?
— Quem mais saberia dirigir isto?
— Posso dirigi-lo sem ser o dono. Sem dúvida haverá
alguém melhor a quem entregar.
— Se houver, não o conheço. Mas, como eu disse, tenho
intenção de continuar aqui por bastante tempo ainda.
Entretanto, envie alguns homens para farejar por aí, para ver
o que averiguam. Se Dimmick estiver vivo, quero encontrá-lo
antes dele me encontrar.

“Acordada, acordada”, sussurrava a mente dele, embora


não se atrevesse a pronunciar as palavras. Não estava seguro
de que quisesse que ela se desse conta de sua presença,
inclinado contra o dossel, aos pés da cama, observando-a
dormir. Durante todo o dia se lembrara daquela noite, antes
de partir, quando cuidara dela enquanto dormia. Queria estar
ali todas as noites, seu olhar se centrou no rosto dela, na
doce expressão que refletia.
Todas as mulheres que ele conhecera intimamente eram
moldadas pela vida, e eram pessoas indestrutíveis. Mas
Evelyn sim podia romper-se. O mais provável era que no final
ele acabasse destroçando-a, a não ser que conseguisse reunir
forças suficientes para deixá-la partir.
Admirava a teimosia dela, satisfazia-se com os duelos
dialéticos. Sempre que pensava estar ganhando, ela lhe
lançava uma frase que o deixava desconcertado. Em ocasiões,
em muitas ocasiões, quando estava com ela, percebia um
breve brilho do homem que ele poderia ter chegado a ser se o
destino lhe tivesse sido mais amável. Um homem que
mereceria tê-la o resto de sua vida.
— Enquanto você esteve fora, — ela abriu os olhos e
sorriu, — despertava cada noite, esperando vê-lo aqui, de pé.
E Rafe permanecera acordado cada noite, desejando
estar ali. Aquilo era muito perigoso. Essa mulher poderia
converter-se em um vício. Sabia muito bem o que acontecia
aos homens que nunca possuíam o suficiente de jogo, bebida
ou ópio. Precisava deter essa crescente obsessão, esse desejo
de estar na companhia dela.
— Senti sua falta durante o jantar, — continuou Evelyn.
Rafe sentiu uma opressão no peito. Palavras, não eram
mais que palavras. Coisas que as pessoas dizem quando não
há ninguém mais na frente. Ele deveria ter importância para
ela, para que ela sentisse sua falta. E ela estava ali
unicamente porque estava obrigada a ficar. Se a deixasse
partir, não voltaria a vê-la, jamais.
A mera ideia lhe resultava intolerável.
— O que aconteceu com seu rosto? — Ela se sentou e o
olhou com os olhos entreabertos.
— Estive boxeando, — ele encolheu os ombros.
— Refere-se a brigar?
— Só por diversão. Tenho um quadrilátero de boxe no
clube.
— Diversão? O que os cavalheiros acham de divertido em
ser golpeado?
— Em sermos golpeados não. Em golpear.
Evelyn revirou os olhos como se sentisse exasperada, fez
soar a campainha e, depois de jogar os lençóis para um lado,
saiu da cama.
— O que você está fazendo? — Perguntou Rafe, alarmado
com atitude dela. Não estaria pensando em abraçá-lo, não?
— Um homem de sua riqueza sem dúvida terá uma
geladeira. Precisamos colocar um pouco de gelo nessa ferida.
— Eu não diria que seja uma ferida. Mick não golpeia tão
forte.
Ela ficou nas pontas dos pés diante dele e estudou seu
rosto como se fosse uma curiosidade, algo incomum que
deveria estar exposto em um museu. Levantou uma mão, mas
ele a segurou pelos pulsos.
— Começa a inchar, — Evelyn franziu o cenho.
Soltando-a, Rafe levou uma mão à bochecha, perto do
olho.
— Não é para tanto.
Alguém golpeou a porta com os nódulos.
— Sente-se em uma cadeira junto ao fogo — ela lhe
ordenou com autoridade, antes de se dirigir à porta.
Rafe não se moveu. Ninguém lhe dava ordens. Ninguém.
Evelyn abriu uma fresta da porta, o suficiente para falar
com o servente. Ao retornar ao dormitório, apertou os lábios e
assinalou à sala de estar.
— Sente-se!

Ela se dirigiu ao lavatório, pegou um pano e o molhou,


enquanto Rafe a olhava e depois olhava à área ao redor. Que
mal poderia haver? Não estava cumprindo uma ordem, era
porque gostava de sentar. E por isso se deixou cair em uma
fofa poltrona de respaldo alto.
Evelyn se aproximou sob o atento e fascinado olhar de
Rafe sobre a camisola que permitia vislumbrar partes das
pernas. Ele queria deslizar as mãos por aquelas coxas, e
depois fazer o mesmo com os lábios.
— Isto servirá até que chegue o gelo — Evelyn se
ajoelhou em frente a ele e elevou o pano. A água estava fresca.
— Eu posso fazer isto, — observou ele enquanto esticava
uma mão.
— Eu farei — ela bruscamente puxou o pano e o olhou
furiosa. — Por favor. Você fez tanto por mim, e eu não tenho
feito nada por você. Posso lhe fazer este pequeno favor.
Passara tanto tempo. Rafe já não sabia aceitar a
amabilidade de outros. Por isso o presente de Tristan quase o
desarmara.
Não respondeu, mas tampouco objetou, nem se afastou,
quando ela deslizou o pano delicadamente sobre a bochecha.
Limitou-se a observá-la e viu a preocupação refletida em seus
olhos, a pequena ruga entre as sobrancelhas, a concentração,
como se pudesse lhe causar um dano irreparável se não
fizesse bem.
— Não entendo os homens que brigam — insistiu ela. —
Você venceu?
— Derrubei, — Rafe experimentou uma estranha
sensação de orgulho no peito.
— E por que fazer tanto dano a um amigo?
— Não é um amigo. Trabalha para mim. Ele também
conseguiu me alcançar com um par de bons ganchos.
— Segure isto contra a bochecha, — de novo bateram na
porta e Evelyn soltou um suspiro.
Outra ordem. Enquanto ela se levantava para abrir a
porta, Rafe decidiu que precisaria ter algumas palavras sobre
o assunto das ordens. Ele não toleraria. Mas, quando ela
retornou, tirou-lhe o pano da mão e envolveu o gelo, ele não
disse uma palavra. E quando ela apertou a ferida
brandamente com o gelo, pensou que jamais havia sentido
algo tão sublime.
— Tem fome? — Perguntou ela. — Posso fazer com que o
cozinheiro lhe prepare algo.
— Não, já comi — Rafe não estava acostumado que
alguém se interessasse por seu bem-estar. Resultava-lhe
inquietante.
— Para que um antro de jogo precisa ter uma sala de
boxe? — perguntou Evelyn sem deixar de se concentrar na
tarefa.
Estava colocada de tal maneira que, de vez em quando,
quando inalava ar ou se movia ligeiramente, um dos seios lhe
roçava o braço. Rafe esteve a ponto de desmoronar. Sentiu a
boca secar. Seria muito simples levantar da poltrona, lançar-
se sobre ela, jogá-la ao chão, levantar a camisola… Não, não a
levantaria. Rasgaria. Desejava contemplá-la em sua nudez
esplendorosa, e não duvidava que seria gloriosa.
— Os homens sentem frustrações, — ele tentou explicar,
estando ele mesmo consumido naquelas mesmas frustrações.
— E necessitam um lugar para descarregá-las. Por isso
disponho de um local para boxear ou lutar. E às vezes… — ele
se interrompeu, pois queria que ela se sentisse confortável em
sua companhia, e que não soubesse a verdade sobre ele.
— Às vezes? — Ela o olhou aos olhos.
— Levo até lá algum homem que eu precise dar uma
lição.
— Que tipo de lição? — O frio do gelo abandonou o rosto
de Rafe quando ela se afastou ligeiramente.
— As coisas que me pertencem não devem ser utilizadas
indevidamente.
— Que tipo de coisas? — Evelyn franziu o cenho.
Por que ele iniciara essa conversa? Ele sabia... porque
precisava que ela conhecesse algumas das piores coisas sobre
ele, para não se importasse se ele havia comido, se sentia
fome, ou se sua bochecha estiva inchando. Ele não queria
cair na armadilha de ser cuidado.
— As mulheres que trabalham para mim… algumas
fazem deitadas sobre uma cama. Por sua própria escolha, —
ele acrescentou rapidamente. — Nas ruas, tiveram sorte, mas
em meu estabelecimento estão melhor. Estão limpas, os
aposentos estão limpos, os clientes que as visitam estão
limpos. Mas, de vez em quando, algum daqueles cavalheiros
esquece onde está e se torna um pouco brusco. Se fizerem
mal a uma das garotas, eu faço mal a ele.
— Pessoalmente? — Ela o olhou perplexa.
— Sim, eu pessoalmente. Não há nada que dê mais medo
que enfrentar um homem ao qual nada importa.
Uma expressão de ternura se refletiu fugazmente nos
olhos cor violeta e Rafe deu um salto. Odiava falar de sua
vida. Não deveria ter ido ao dormitório para vê-la dormir.
— Você me disse que faria com que Geoffrey lamentasse
como me tratou. Vai ser neste local?
— Não, para ele tenho pensado outra coisa.
— O que, exatamente?
— Ainda não perfilei os detalhes. Saberei melhor quando
o tiver feito — fazia tempo que Rafe aprendera que na melhor
das vinganças não precisava incluir dor física.
Feridas se curam. A lembrança da agonia diminuía com
o tempo. O melhor era organizar algo que supusesse um
constante aviso dos fracassos ou enganos de cálculo.
— Obrigada por se ocupar que Geoffrey lamente.
A gratidão refletida no olhar de Evelyn quase o fez pedir
que o obrigasse a prometer algo mais. Ninguém cuidara dele
assim, nunca. Estava acostumado a provocar medo, mas,
pela primeira vez em sua vida, pensou que poderia existir algo
mais forte que o medo. Não estava seguro do que poderia ser,
mas ficava aterrorizado.
De novo, ajoelhada diante dele, Evelyn voltou a
pressionar o gelo contra a ferida e a aproximação o distraiu
da irritação. O seio descansava descuidadamente sobre o
braço de Rafe, e ele sentia claramente o mamilo ereto através
do tecido da camisola e através do tecido de sua manga.
Queria desenhar círculos ao redor desse mamilo com a
língua. Uma vez, duas, e depois sobre…
— Eu gostaria de visitar seu salão de jogos algum dia, —
a voz da Evelyn soava algo mais rouca. Estaria pensando no
mesmo que ele? Duvidava que essa mulher fosse sequer
consciente das liberdades que um homem tomaria com um
corpo como o dela.
— As damas não estão permitidas — ele bufou.
— Mas eu não sou nenhuma dama, não é verdade? —
Ela sustentou o olhar dele em um claro desafio.
Rafe quis negar, mas não podia.
— Você não gostaria. Está quase todo decorado nas
cores preta e verde. Sempre está cheio de fumaça. Cheira a
tabaco, licores e mulheres.
— Mesmo assim eu gostaria de ver onde você passa tanto
tempo.
Antes que ela tivesse entrado em sua vida, ele passava
todo o tempo lá.
Evelyn deixou o pano a um lado e, com delicadeza,
afastou para trás os cabelos dele. Rafe não se recordava a
última vez que havia sentido uma carícia ligeira como uma
nuvem. Apesar de sua suavidade, possuía uma grande força.
— Quem dera ele não tivesse machucado você, —
sussurrou ela.
— Já sofri golpes piores.
— Sim. — Evelyn voltou a olhá-lo aos olhos, — suponho
que sim. Você vive em um mundo difícil. Alguma vez pensou
em abandoná-lo?
— É ali onde pertenço.
— Mas você é o filho de um duque.
— Se ele vivesse me deserdaria. — Embora, fosse obvio,
que se seu pai vivesse, não teria jamais se encontrado em
uma situação que o tivesse obrigado a fazer as coisas que
fizera.
— Suspeito que meu pai faria o mesmo comigo se
conhecesse minha decisão de ficar aqui. Embora suponha
que, na verdade seja sorte, nunca fui realmente filha dele.
— Não dê tanta importância a um passeio pelo parque.
— Mas você não me mantém oculta. Não se envergonha
que o vejam comigo.
Rafe tomou o rosto dela entre as mãos, agradecido por
ela não se dar conta de que os nódulos estavam esfolados, e
ligeiramente inchados. Doíam-lhe mais do que a bochecha,
mas ao tocá-la a dor desapareceu como se tivesse um efeito
balsâmico. Desejava-a, nesse momento. Queria que a dor
desaparecesse, toda a dor. Falsa ideia. Uma parte daquela dor
estava tão profundamente enraizada que jamais havia sido
acariciada, consolada, aliviada. E ele levaria tudo à tumba.
Acariciou a bochecha de Evelyn com o polegar. Ele
prometera ensinar-lhe as habilidades necessárias para
sobreviver por sua conta. Ainda não havia começado a lhe
falar de investimentos, mas se dava conta de que ela
necessitava algo mais.
— Está muito cansada?
Ela abriu muito os olhos e se ruborizou visivelmente, e
Rafe soube, por sua reação, no que ela estava pensando.
— Estou completamente desperta.
Ele percebeu o ligeiro tremor em sua voz, mas ao menos
ela não havia mentido. Começava a se sentir mais confortável
em sua companhia. Pensou em levá-la à cama, mas essa noite
não estava em seu melhor momento. Havia muitos
pensamentos obscuros povoando sua mente. Rostos que
havia golpeado, ossos que havia quebrado, tudo sob às ordens
de Dimmick. A princípio era muito jovem, e estava muito
assustado, para não obedecer a aquelas ordens tão
desumanas. Se enganasse Dimmick, pagaria no inferno. Mais
adiante, e durante um tempo, ele começara a gostar de
golpear às pessoas, sentia-se importante ao provocar medo.
Até que um dia, enquanto passava em frente a uma loja, viu
imagem de um valentão refletida no espelho. Levou um tempo
para reconhecer a besta. Não conseguira até olhar nos olhos
azul gelo, e seu estômago se revoltou ao compreender no que
ele se converteu.
— Vista-se, — Rafe se levantou da poltrona. — Aquele
horrível conjunto de luto servirá. Vamos ao clube.
— Agora?
— É menos provável que alguém a veja a estas horas, —
e no clube era menos provável que ele a lançasse sobre a
cama e se afundasse em um esporte que pouco teria a ver
com os murros.
Evelyn tentou não se sentir enganada. Ao chegar ao
clube, Rafe a levou ao piso inferior e ela pensava que iriam ao
antro de depravação. Entretanto, ele a levou a uma habitação
com um quadrilátero no centro, delimitado por cordas, e com
bancos apoiados contra as paredes. Ela imaginou às pessoas
ali sentadas para presenciar o que acontecia dentro do
quadrilátero.
Ela esperava poder ver a sala de jogos, presenciar os
jogos nos quais os homens perdiam fortunas, sobre tudo
queria ver o jogo com o qual Geoffrey se endividou com Rafe,
que lhe dera a ideia de convidar ao dono desse lugar à
reunião em que ele havia pretendido entregá-la a algum
homem como sua amante. Nem sequer se atrevia a imaginar
como seria sua vida se Rafe não tivesse comparecido naquela
reunião.
— Tire a capa, — ele lhe ordenou enquanto fazia o
mesmo com a jaqueta.
Ela desejou que esse homem não tivesse o costume de
lhe dar ordens sem explicar o motivo primeiro. Mesmo assim,
Evelyn desabotoou a capa e a tirou antes de dobrá-la e deixá-
la sobre um banco.
Ao se voltar para Rafe viu que ele tirou também o colete e
estava arrancando a camisa que jogou para um lado. Ela não
conseguiu fazer outra coisa do que contemplar maravilhada,
os tonificados músculos e o estômago plano como uma tábua.
Ele se movia como se fosse feito de poesia, brandamente. Em
uma ocasião ela visitara um museu com seu pai e vira
estátuas de deuses. Mas nem sequer eles eram tão
musculosos, fortes, tão belamente esculpidos, como Rafe.
— Tenho que tirar a roupa também?
— O quê? — Ele se voltou bruscamente. — Não, claro
que não. Isso me distrairia e lhe concederia uma vantagem
injusta, — ele agarrou uma das cordas e a levantou. —
Vamos. Entre.
— O que vamos fazer?
— Dentro de certo tempo você estará sozinha. Alguém
poderia tentar se aproveitar. Precisa saber como se defender.
— Vai me ensinar a boxear?
Rafe sacudiu a cabeça e algumas mechas de negros
cabelos caíram sobre seu rosto, fazendo-o parecer mais jovem
e perigoso ao mesmo tempo.
— Vou ensinar você a brigar.
— Poderia golpear Geoffrey.
— Se você quiser. Eu seguro ele para você.
— Isso não seria justo.
— Eu não acredito nas brigas justas. Acredito em brigar
para ganhar. E agora entre no quadrilátero de uma vez.
Evelyn quase não conseguia conter a excitação que lhe
percorria o corpo. Suspeitava que nem tudo tivesse a ver com
o que estava a ponto de lhe ensinar, mas sim, com o efeito
que vê-lo sem camisa estava provocando em seu estômago. Ao
se aproximar viu as marcas escuras dos golpes sobre as
costelas.
— Meu Deus! Você está ferido.
Sem pensar duas vezes, esticou uma mão enluvada e
tocou o hematoma. Rafe respirou fundo e ficou tenso
enquanto o ar escapava entre seus dentes.
— Por que não me disse isso? Eu teria me ocupado de
curar isso.
Rafe lhe segurou o pulso com seus largos dedos e lhe
afastou a mão.
— Estou a ponto de perder o controle, Eve. Se eu tivesse
tirado a camisa em seus aposentos, você teria acabado sem
camisola.
— Estando ferido, duvido, — ela o olhou com expressão
de espanto.
— Estando ferido, estando doente, estando no leito de
morte.
— Todos os homens são assim?
— Não tenho nem ideia, — Rafe a olhou exasperado. —
Não falo dessas coisas com homens. Eu sei somente como é
para mim. E, agora, ao quadrilátero.
Evelyn se agachou para passar sob a corda. Duvidava
que esse homem falasse de alguma coisa com alguém, porém
sendo mais mundano que ela, suspeitava que ele não saberia
muitas coisas sobre o que poderia acontecer entre eles. Cada
vez pensava mais nisso. Não queria se sentir atraída por ele,
mas não podia negar quão magnífico exemplar ele era. Não
queria olhá-lo fixamente, mas resultava muito difícil olhar em
outra direção. Possuía braços fortes e musculosos. Fibrosos.
E, embora não lhe permitisse rodeá-lo com seus braços,
suspeitava que ela sim adoraria ser abraçada por ele.
—…e o fará cair de joelhos.
— Desculpe-me? — Enquanto ela estava perdida em
seus pensamentos, ele continuou falando.
— Preste atenção, Eve — Rafe suspirou. — Estava
explicando que o ponto mais vulnerável de um homem está
entre suas pernas. Se o golpear aqui, o fará cair como uma
árvore destruída.
— Entendo.
— Com suas saias e anáguas é pouco provável que
consiga lançar um chute suficientemente acima…
— A não ser que se trate de um anão. Então poderia me
arrumar bastante bem.
Rafe a olhou fixamente antes de soltar uma gargalhada,
mais parecida com um latido. Evelyn sorriu ante o agradável
som que a envolveu.
— Se for um anão, você também deveria ser capaz de
fugir dele. De modo que vamos assumir que não se trata de
um.
Ele se aproximou um pouco mais e ela fechou os punhos
para não se deixar vencer pela tentação de tocá-lo de novo.
— Você deverá lhe permitir a aproximação, — Rafe a
agarrou pelos ombros, — sem deixar de olhá-lo com ar
inocente…
Ela abriu os olhos desmesuradamente e piscou.
— Assim é, — ele sorriu. — Estará absorvido com seus
olhos e não se dará conta quando você colocar
dissimuladamente a perna entre as dele. E então, levante o
joelho o mais forte e rápido que puder.
E ela o fez.
Soltando um grito, Rafe se dobrou pela cintura e se
deixou cair sobre o quadrilátero, soprando, a cabeça
agachada.
— Não… se supunha… que… tivesse… que… fazer agora.
— E como vou saber se teria feito bem? — Evelyn se
ajoelhou. — Você está bem?
— Preciso de um momento.
Ela desejava consolá-lo, esfregar-lhe as costas e os
ombros, inclinar-se e lhe beijar a fronte. Quando ela deixara
de lhe desejar todos os males possíveis? Desconfortável com a
ideia de que possivelmente desejasse estar com ele, olhou a
seu redor.
— E que tal se, enquanto espero que você se recupere,
dou uma volta por aqui e lanço uma olhada às salas de jogo?
— Não.
— Depois de me ensinar a brigar, vai me ensinar a jogar?
— Não, — ele levantou o olhar para ela.
— Você é muito aficionado a essa palavra, não é
verdade?
— Para que arriscará perder com uma simples carta o
que tanto esforço vai lhe custar para ganhar? — Rafe respirou
fundo e se sentou sobre os calcanhares.
— Suponho que não faça muito sentido.
— Não, não faz, — ele ficou em pé e a atraiu para si. —
Feche os punhos.
Evelyn fechou os dedos sobre os polegares, bem presos
contra as palmas. Mas Rafe lhe abriu as mãos.
— Coloca o polegar por fora, tampando os dois primeiros
dedos. E mantenha o punho à mesma altura que o peito, bem
firme, para que não suba ou baixe. Assim é menos provável
que rompa algo — Ele levantou as mãos ao alto com as
palmas viradas para fora. — Agora, dê um murro contra a
minha mão.
— Vou machucar você.
— Estarei bem.
Evelyn não se agradou com o som de seu punho contra a
palma da mão de Rafe.
— Muito bem, — assentiu ele. — Outra vez.
Ela soltou outro murro. O horrível som da carne
golpeada a envolveu.
— Mais depressa e com mais força, — ele lhe ordenou.
E ela o fez, uma e outra vez. Quando ele retrocedeu,
dando voltas pelo ringue, ela o seguiu.
— Se de verdade quer machucar alguém, golpeie o nariz.
Dói como um demônio. Se for capaz de lhe quebrar o nariz,
tão melhor. Se ele girar para se afastar de você, golpeie nos
rins. Você o fará cair ao chão como se lhe tivesse dado uma
joelhada entre as pernas.
— Onde está o rim?
Ante o seguinte murro, Rafe cobriu o punho com sua
mão, forte e grande, capturando-o sem o menor esforço.
Evelyn começou a entender por que ele havia sorrido tão
confiante de si mesmo, na noite em que ela o ameaçara de lhe
arrancar os olhos com as unhas. Não teria a menor chance
diante dele.
Ele deslizou a outra mão até as costas dela e desenhou
um pequeno círculo.
— Está aqui. E há outro do outro lado. Se o fizer bem,
pode paralisar um homem, momentaneamente.
— Você o faz bem?
— Não tem muito sentido fazer isto se não vai fazer bem,
— ele assentiu. — Essa é a questão também, quando se
lançar a brigar, lance-se por completo. Nunca volte atrás,
nunca dê trégua. Vi homens pequenos derrubando outros
maiores graças a sua determinação por ganhar.
— Então você presenciou muitas brigas, — ela não
recordava ter visto nenhuma. Certamente nem seu pai nem
Geoffrey jamais apareceram feridos. Nunca teve que segurar
um trapo molhado contra o rosto de um homem, nunca teve
que evitar olhar a um homem aos olhos porque, se o fizesse,
temia perder-se em suas profundidades.
Por suas palavras e ações, Rafe dava a impressão de ser
um homem a quem importava muito pouco tudo o que não
fosse ele mesmo, mas ao ajudá-lo em suas feridas ela
compreendera que havia muito mais do que se via a simples
vista. Porém ela não estava segura de que fosse boa ideia
aprofundar-se mais nisso.
— Vi muitas pessoas lutando para sobreviver, — ele
explicou. — Não é bonito de ver.
— Ver certamente afeta tanto quanto experimentar.
— Nem tanto, — Rafe a contemplava como se desejasse
experimentar a maciez de sua pele, o sabor de seus lábios.
Clareou a garganta. — Por outro lado, se um homem se
aproximar pelas costas e a rodear com um braço — fazendo-a
girar, agarrou-lhe o ombro com uma mão, — incline-se para
frente e depois jogue a cabeça para trás com toda a força de
que seja capaz, para golpeá-lo no nariz. Com sorte o
quebrará.
— Parece que você não está o suficientemente perto para
eu alcançar.
— Se não se importar, prefiro passar esta demonstração.
— Não farei com força, mas acredito que deveria ter uma
ideia.
Rafe lhe acariciou o pescoço com os polegares. Não a
rodeava com seus braços, mas ela sentia o quente fôlego na
nuca.
— Estou o bastante perto.
A voz era suave e sedutora, e a respiração de Evelyn se
acelerou enquanto sentia o estômago duro. Pensou que, para
seu próprio bem, deveria jogar a cabeça para trás com força.
Mas a ideia de machucá-lo lhe provocava náuseas.
— E saberei se tiver quebrado o nariz? — Ela perguntou
com voz rouca.
— Sim. Ouvirá um forte rangido.
Ela sentiu um círculo de úmido calor junto à sensível
pele detrás da orelha esquerda, e teve que fazer um grande
esforço para não virar. Rafe deslizou a boca ao outro lado da
cabeça. Evelyn fechou os olhos com força e pensou em
manhãs chuvosas, na cama, deitada sob as mantas.
— E o que acontece se ele não me soltar?
Um prolongado e espesso silêncio, seguiu, e ela se
perguntou se, igual a ela, ele estaria tentando entender se ela
se referia a um atacante ou se falava do homem às suas
costas, o homem que deslizava os lábios suave e lentamente
por sua nuca, fazendo com que lhe arrepiasse os pelos.
— Soltará, — ele finalmente respondeu.
Evelyn teria jurado que havia percebido um toque de
arrependimento na voz de Rafe, que se afastou dela.
— Acredito que já tenha feito uma ideia do essencial.
Ela se voltou bem a tempo para vê-lo sair do quadrilátero
e dirigir-se para o monte de roupa.
— Não praticamos grande coisa. Quase não valeu a pena
vir até aqui.
— O chão é mais macio no ringue, — Rafe colocou a
camisa, — não há bagatelas que possam quebrar. E é
improvável que alguém se machuque se levar a coisa mais
longe.
— E por que não o fazemos? Refiro-me a levar as coisas
mais longe. — Ela acreditava que começava a compreendê-lo.
Ele não se incomodou em colocar o colete ou a jaqueta,
que segurava com força em uma mão.
— De verdade você é tão ingênua?
Evelyn notava a tensão nos traços de Rafe, nos nódulos
brancos da mão que estava livre, o punho fortemente
apertado. Ele se aproximou do quadrilátero e levantou a corda
como se gostasse de utilizá-la para estrangular alguém.
— Isto foi uma péssima ideia, — ele observou. —
Devemos partir.
— Pois me pareceu uma ideia bastante boa, — ela se
agachou sob a corda. — Agora já sei como golpear Geoffrey a
próxima vez que o vir.
— Não esqueça de manter o pulso firme. Eu não gostaria
de precisar suportar o desconforto de vê-la machucada.
Evelyn teria gostado de vê-lo sorrir. Assim, ao menos,
saberia se ele brincava ou não.
— Já que estamos aqui, posso dar uma olhada?
— Suponho que não há nada de ruim em uma rápida
olhada, — respondeu ele depois de olhá-la atentamente.
Ela o seguiu para fora da sala. Subiram dois andares e
continuaram por um corredor com vários aposentos aos
lados. Já que não estavam com as portas abertas, ela pensou
que se tratava da zona destinada ao bordel. As paredes
estavam revestidas em cor bordô, com listras douradas. Um
pouco mais elegante do que ela esperava. Os abajures de gás
cintilavam nas paredes. Ao passar junto a uma porta aberta,
olhou no interior do aposento e se deteve.
— Este é seu escritório. É aqui que você trabalha, —
Evelyn entrou.
A decoração era espartana. Uma escrivaninha. Uma
cadeira em frente e outra atrás. Uma mesa com garrafas de
licor. As janelas, nuas, não mostravam mais que a noite ao
outro lado.
— Por que diz isso? — Perguntou Rafe.
Ela girou a cabeça e o viu apoiado contra o batente da
porta, os braços cruzados sobre o peito.
— Os globos.
Estavam distribuídos por numerosas estantes em três
paredes.
— Deve haver ao menos cem.
— Cento e dois, para sermos exatos.
— Incluídos os que você tem na residência? — Evelyn se
voltou, surpreendida.
— Não.
— Por que você os coleciona? Que fascinação encontra
neles?
Ele se limitou a ficar quieto, olhando fixamente o
ambiente fracamente iluminado.
— Eu fazia planos para percorrer o mundo e queria
estudar os lugares aos quais iria? Pode confiar em mim. Não
contarei a ninguém.
— Não tem a quem contar.
— Suponho que você tenha razão. Quando eu era
menina colecionava bonecas. Não por gosto, mas sim porque
eram os presentes que meu pai sempre me dava. De modo
que possivelmente não era tanto uma questão de colecionar
bonecas, mas sim, de colecionar o símbolo do amor dele.
Talvez por isso eu as destrocei. Estava furiosa e não podia
golpeá-lo, — Evelyn se afastou de Rafe. Não desejava viajar
até seu passado. Mas queria viajar ao dele.
— Davam-me esperança.
Com o coração acelerado, ela se virou de novo. Somente
uma olhada. Não pedia mais que lançar uma olhada na alma
dele. Ela esperou. Sem dúvida havia algo mais. E então sua
paciência foi recompensada.
— Davam-me a esperança de que houvesse algum lugar
melhor do que onde eu estava.
— E os colecionou todos quando menino?
— Não, Eve, continuo colecionando estas malditas
coisas, — Rafe se voltou para o corredor. — Quer ver o antro
de jogo ou não?
Ele ainda continuava procurando um lugar melhor do
que onde estava, igual a ela. Evelyn não desejava ser uma
mantida, não queria viver na casa de um homem que a queria
somente para se divertir. Queria algo melhor, um marido,
uma família, um lar.
A residência dele nunca seria um lar.
Nem o escritório, tampouco. Não lhe satisfazia. Por mais
confortável que parecesse, nada do que havia ali, exceto os
globos, refletiam o que ele era. Evelyn acreditava que faria
algum pequeno descobrimento sobre ele, algo que explicasse o
que ele era, mas inclusive ali ele tomava muitas precauções
para não revelar nada sobre si mesmo.
— Sim, quero ver.
Possivelmente ali, finalmente ela conseguiria entendê-lo.
Rafe mantinha a inquietante suspeita de que não a
levara ao clube para ensiná-la a se defender. Utilizara aquilo
como desculpa, ante si mesmo, o homem que não tolerava
desculpas, porque desejava que ela visse seu estabelecimento.
Não os pecados que se cometiam ali, mas sim o que havia
obtido com seu esforço: algo que lhe assegurasse que jamais
deveria nada a outro homem, que nunca sofreria, que nunca
se veria obrigado a fazer algo que não quisesse.
Evelyn aprenderia com ele. Certo que durante um tempo
não seria feliz, mas, quando estivesse livre dele, teria os meios
para fazer o que desejasse. Enquanto isso, ele devia averiguar
exatamente o que ela desejaria fazer. Suspeitava que desde o
dia em que a presentearam com a primeira boneca, seu único
sonho havia sido converter-se em uma esposa.
Do mesmo modo que ele passara os dez primeiros anos
de sua vida convencido de que seria um cavalheiro.
Conduziu-a por um escuro corredor até o balcão
enquanto recordava algo que mantivera enterrado por muitos
anos. Sentado no regaço de seu pai, no escritório, observando
atentamente como ele passava as páginas do atlas e
assinalava todos os lugares que ele algum dia visitaria.
— “Pembrook gera consideráveis ganhos, de modo que
disporá de uma boa remuneração. Para você não haverá luta,
nem miséria. Sei que lhe desgosta quando vê Sebastian e
Tristan partirem sem você, mas algum dia você percorrerá o
mundo, enquanto que Sebastian se verá obrigado a
permanecer aqui.” Contudo, ao final, todos se viram obrigados
a partir.
Abriu as pesadas cortinas e respirou o aroma a rosas de
Evelyn quando ela passou diante dele. Depois a seguiu até o
balcão. Ela foi direta à beira, sujeitando-se ao corrimão. Mas
inclusive ali, as sombras a mantinham oculta dos jogadores.
Ninguém saberia jamais que ela estivera ali. Entretanto, Rafe
suspeitava que aquele aroma permaneceria nos corredores
pelos quais eles haviam passado. Havia sido um engano levá-
la ali, deixar sua lembrança no clube. Quando a deixasse
partir, não queria que nada dela permanecesse. Não queria
nenhuma lembrança além da cama.
Mas ali estava, desfrutando da visão de seu rosto,
enquanto ela contemplava fixamente tudo o que se estendia a
seus pés, como se se tratasse de uma bacanal de pecado.
Ouvia-se o embaralhar das cartas, o jogo de dados ao ser
lançado, as roletas ao girar. Ouvia-se as exclamações de
alegria e os gemidos de desespero. Ele não precisava olhar
para baixo para saber o que veria ali.
— Quanta atividade. Está cheio de vida, não é verdade?
Rafe não precisou pedir uma explicação. Sabia de sobra
a que ela se referia. A sala bulia de atividade, sempre estava
acontecendo algo. Uma carta era volteada, um dado se
detinha, uma bola caía em uma caçapa.
— O que o atraiu a este lugar?
Alguma vez ele havia conhecido uma mulher que fizesse
tantas perguntas? Alguma vez ele conhecera uma mulher que
lhe despertasse tanto desejo de responder? Os interrogatórios
lhe irritavam. Eram incômodos, intrusivos. Mas, quando
Evelyn perguntava, um pequeno fragmento de algo em sua
alma despertava e ele se perguntava, estupidamente,
ridiculamente, se ela era importante para ele.
— O dinheiro que eu poderia ganhar.
Ela o olhou e lhe dedicou o que, supôs, fosse um sorriso
pormenorizado.
— Também poderia perdê-lo.
— Ao final a casa sempre ganha, Eve. Não seria estranho
que esta noite um milhão de libras troquem de mão, e a
maioria iria para às arcas de Rakehell.
— Está zombando de mim. — Ele sacudiu a cabeça. —
Isso é quase obsceno.
— Há obscenidades piores.
— Como… — ela o olhou fixamente e Rafe se arrependeu
de ter falado.
Utilizar crianças como mão de obra. Enviá-los às minas,
na escuridão, sozinhos salvo pela companhia dos ratos e
baratas, e outras criaturas de várias patas, e que mordem,
obrigando-os a permanecer sentados e quietos, abrindo e
fechando portas para a passagem dos cavalos e vagonetas.
Enviá-los ao fundo dos poços, fazê-los arrastarem-se por
espaços estreitos onde nem conseguiam passar, obrigá-los a
respirar o pó que quase os sufocava.
Mas não podia lhe contar nada disso. Nada devia sair à
superfície. Devia permanecer enterrado tão profundamente
como o próprio carvão.
— Wortham, por exemplo — ele respondeu em tom
neutro. Possivelmente também os outros lordes que estiveram
ali naquela noite. Ele estava preparado para passar página. —
Acredito que terminamos aqui.
Evelyn pensara que ele a acompanharia até a carruagem.
Ao contrário, subiram outro lance de escadas.
Teve que reconhecer que o que Geoffrey fizera, em efeito,
era uma obscenidade, ao menos era assim o modo como ele a
tratara. Entretanto, ela, nem por um instante pensou que
Rafe tivesse pensado em Geoffrey ao elaborar sua resposta.
Ele não movera nem um músculo do rosto, mas ela vira algo
nos olhos azul gelo, somente um brilho, porém profundo,
poderoso e arrepiante. Algo do passado dele, possivelmente,
um incidente, uma pessoa, um lugar que tivesse feito parte do
processo que o convertera no homem que era.
Durante um instante acreditou que ele o compartilharia
com ela, embora não estivesse segura se desejava realmente
que ele o fizesse. Sentia um grande interesse em compreender
esse homem, mas começava a pensar que o custo seria muito
elevado, que os pesadelos dele poderiam se converter nos
dela.
No alto das escadas, no meio do corredor, Rafe abriu
uma pesada porta de mogno e Evelyn entrou em uma sala de
estar, não tão espartana quanto o escritório, embora fosse
evidente que esse homem não gostava dos adornos. Dos lados
da sala surgiam corredores que, supôs, conduziriam a outras
habitações, dormitórios possivelmente.
— Meus aposentos.
— Por que mantém isto quando possui uma preciosa
residência? — Perguntou ela enquanto se aproximava de uma
grande janela e contemplava a rua que se estendia mais
abaixo. A névoa começava a cair, dando um aspecto sinistro a
tudo o que rodeava.
— Prefiro isto. A residência… eu a tenho porque
consegui.
— Aqui é onde você viverá quando a residência for
minha, — ela o olhou.
— Certamente que sim. Embora possivelmente eu
compre outra antes que isso aconteça — Rafe se apoiou
contra o marco da janela.
— Parece que você não gosta das cortinas.
— Por que colocar vidro em uma janela se depois se
bloqueia a paisagem que conseguiu?
Ela devolveu a atenção à rua. Via cavalheiros entrarem e
saírem do clube.
— Os que entram têm o passo mais ligeiro do que os que
saem.
— Quando entram, acreditam que trazem a deusa
Fortuna sentada em seu ombro.
— E suponho que logo descobrem que não é assim.
Rafe esticou uma mão e colocou uma mecha dos cabelos
de Evelyn atrás da orelha. Um quente calafrio lhe percorreu o
corpo, mas ela manteve o olhar fixo na rua. Se o olhasse
nesse momento poderia ser perigoso, com aquelas habitações,
dormitórios, tão perto.
— Ela não existe. É somente o produto da imaginação de
um pobre idiota. Sabe o que é o pior que pode acontecer a um
homem na primeira vez que visita um salão de jogos?
— Que perca tudo?
— Que ganhe.
Evelyn o olhou, surpreendida. Os olhos azuis estavam
fixos nela, mas começava a compreender que ele sempre a
estudava como se desejasse decifrar cada detalhe de sua
pessoa. Até esse momento ela vivera sem prestar muita
atenção a algo de importância, enquanto ele não permitia que
nada escapasse a seu escrutínio. Ele sobrevivera enquanto ela
cambaleava e tentava encontrar seu caminho. Deveria
aprender com esse homem.
— É ganhar o que cria a obsessão, — continuou Rafe. —
O momentâneo júbilo, como se estivesse no topo do mundo,
fosse invencível. Se o experimentar uma vez já não volta a
esquecê-lo. Pouco importa quantas vezes perca depois
daquilo, continua procurando aquele momento de felicidade
que durante um instante o fez esquecer todos os problemas
em sua vida.
— Então, o que era eu naquela noite na casa do
Geoffrey? Algo para possuir porque podia? Algo a ganhar pela
momentânea felicidade que poderia produzir?
Rafe se aproximou mais dela, voltou a pegar as mechas
que se soltaram novamente e as retorceu entre seus dedos
como se jamais as tivesse visto.
— Algum dia um cavalheiro ganhará seu coração, e a
felicidade superará com acréscimo qualquer coisa que você
tenha experimentado ao voltear uma carta ou rodar um dado.
Não lhe importará que sua reputação esteja arruinada, ou
que seu pai jamais tenha se casado com sua mãe, — ele lhe
acariciou as bochechas com os nódulos antes de tomar o
queixo entre suas mãos. Com a parte mais rugosa do polegar,
pintou sensações no lábio inferior dela.
Ela se deu conta de com que elegância ele evitara
responder a sua pergunta, enchendo-a com a esperança de
chegar a possuir tudo aquilo que sempre desejara.
— Você se casará algum dia?
As palavras surgiram de sua boca como um sussurro.
Evelyn não sabia por que importava tanto se ele casava ou
não, mas de repente importava. Traria a dama dele a esse
lugar, ensinaria ela a se defender, mostraria seus aposentos?
Permitiria que ela pendurasse cortinas nas janelas?
Rafe a olhou aos olhos e em seu olhar azul se refletiu a
resignação e a verdade antes que falasse.
— Não.
Uma simples palavra que não deixava nenhum lugar a
dúvidas, que não deixava nenhum espaço ao inesperado.
— E se ela lhe roubar o coração?
— Primeiro ela teria que encontrá-lo.
De repente, os lábios dele estiveram sobre os seus, a
língua impaciente por dançar com a dela. A intensidade fez
com que ela cambaleasse, e elevou os braços para lhe rodear
o pescoço, para segurar-se, para evitar que lhe dobrassem os
joelhos e caísse ao chão.
Rafe lhe agarrou os pulsos antes que suas mãos sequer
roçassem seus fortes ombros, e lhe segurou os braços às
costas, com força, enquanto continuava devorando sua boca
para, de algum modo, mantê-la perto, embora, tentasse
manter a distância entre eles.
Por que um homem tão sensual quanto ele, capaz de
oferecer beijos tão intensos que ameaçavam devorá-la,
possuía tal aversão aos abraços? Como podia estar tão atento
ao mínimo movimento quando ela estava perdida no frenesi
da coação que ele exercia sobre ela para que respondesse,
para que explorasse, para que saboreasse?
No mais recôndito canto de sua mente, Evelyn recordou
que estava de pé em frente a uma janela sem cortina e que,
sem dúvida, deviam estar servindo de espetáculo para quem
entrasse ou saísse do clube. Mas pouco lhe importava. Pouco
lhe importava.
A certeza a golpeou com horripilante firmeza. Desejava
esse beijo. O beijo dele. Desejava sentir a boca do Rafe sobre a
sua. Desejava sentir o sabor, o roçar da incipiente barba
contra sua delicada pele, o eco de seus gemidos.
Ou por acaso era ela quem gemia e suspirava?
Quando ela começara a esperar os beijos? Quando
começara a esperar a companhia dele? Quando decidira que
desejava desesperadamente desvendar todos os mistérios
desse homem? Um homem que não possuía coração. Não era
amável. Jamais se casaria.
Era sem dúvida a pior pessoa pela qual ela poderia
desenvolver sentimentos, mas ali estavam. De momento não
eram mais que brotos, mas cresceriam, e então, onde ela
estaria? Uma mulher quebrada, no corpo e na alma.
Mas não acreditava que seria ele quem a romperia. Ele
estava tendo muito cuidado para não o fazer, para não a
apressar, para não a possuir até que ela estivesse preparada.
Rafe afastou a boca da dela e, respirando
entrecortadamente, contemplou-a como se sentisse confuso.
Lenta, muito lentamente, soltou-a, separando dedo por dedo.
Seu olhar se desviou para o corredor, como se estivesse
contando os passos que poderia levá-la até lá, e mais além.
Até o dormitório.
— Aqui não, — sussurrou ela com calma.
Não sabia por que lhe importava tanto, mas o fazia. Não
queria que ele a tomasse em um lugar de pecado, vício e
depravação.
— Não, aqui não, — ele devolveu seu olhar até ela, um
olhar não tão gélido.
Então partiram. Rafe a escoltou pelas escadas e
corredores até que chegaram à entrada traseira, a porta pela
qual entraram já fazia o que parecia ser uma eternidade.
— Foi como você havia imaginado? — Perguntou ele
enquanto abria a porta.
— Na realidade me pareceu bastante insípido e
aborrecido. Não sei por que esperava mais emoção. — Evelyn
se dirigiu à carruagem que aguardava na rua. Um lacaio
abriu a porta, Rafe a ajudou a subir, mas não a seguiu.
— O cocheiro a levará para casa.
— Você não vem? — Ela se perguntou por que se sentia
tão desiludida.
— Há alguns assuntos que devo atender.
— E quando retornará à residência?
— Não sei.
Depois de fechar a porta da carruagem, Rafe subiu à
calçada e ficou olhando-a. Ela o via claramente através da
janela.
O veículo arrancou, virou em uma rua e se perdeu de
vista. Evelyn não recordava ter visto nunca a ninguém com
um aspecto tão solitário.
Capítulo 12

O relógio sobre o suporte da lareira estava a ponto de


marcar às onze quando ela despertou. Nunca dormira até tão
tarde. Supôs que isso era o que acontecia quando alguém se
dedicava a entreter os homens até altas horas da noite.
Saltou da cama, chamou à donzela e se aproximou da
janela para abrir as cortinas. Não se surpreendeu ao
comprovar que fazia um dia nublado e cinzento. Nada a ver
com seu estado de ânimo. Algumas noites, ele iria a seu leito
e fariam algo mais que falar. Eram os termos que ela aceitara.
E respeitaria sua promessa. Possivelmente não restasse
muitas coisas, mas cumpriria sua palavra.
A porta se abriu e Evelyn se voltou para a donzela. Não
lhe passou desapercebido que o ambiente não se carregou de
energia, nem pareceu encolher, nem se encheu de vida com
sua chegada.
— Quero que hoje coloquem lençóis limpos na cama.
— Sim, senhorita — Lilás pareceu surpreendida. — Nós
os trocamos diariamente. É claro.
Lilás se aproximou do armário e tirou o vestido de luto
que Evelyn possuía desde aquela fatídica noite. Parecia que
havia transcorrido uma eternidade. De repente, Evelyn sentiu
aversão para o objeto.
— Não, o mais novo. Preciso fazer uma coisa. Quero que
você vá comigo, e necessitaremos três criados fortes para nos
acompanhar.
— Sim, senhorita.
— Quero me reunir com a cozinheira. Preciso fiscalizar o
menu do jantar de hoje. Quero que seja algo especial.
A donzela piscou perplexa, e ela compreendeu que não
precisava revelar toda sua agenda à garota, sobretudo dado
que acabava de decidir tomar as rédeas no assunto
doméstico.
A primeira hora da tarde ela se encontrava na
carruagem, a caminho de seu destino. Surpreendia-lhe o
muito que sua vida mudara. Enquanto residia na residência
de seu pai, jamais pedira uma carruagem. Saía à rua somente
quando ele a acompanhava. Jamais dera instruções ao
serviço sobre suas preferências culinárias. Jamais fora a
encarregada de uma casa.
Na noite anterior, na penumbra de seus aposentos,
compreendera algo valioso sobre Rafe. Ele lhe dissera que não
se importava com nada, mas não era verdade. Importava-se
com todos, muito mais do que estava disposto a admitir,
inclusive a si mesmo. Se não se importasse, não se ocuparia
de qualquer homem que fizesse mal a alguma das mulheres
que trabalhavam para ele, não teria ensinando-a a se
proteger. Ela, desde o começo, suspeitara de que ele jamais
lhe faria mal, mas nesse momento a certeza era absoluta.
O que fosse fazer com o coração dela, não obstante, era
outra questão. Evelyn temia que, diferente dele, ela não teria
forças suficientes para mantê-lo encerrado. Seu coração era
muito fácil de encontrar e ferir. Inclusive ela permitira que
Geoffrey lhe fizesse mal. Seu irmão nunca lhe dera motivos
para pensar que sentisse algo por ela, mas tampouco ela teria
acreditado que ele a desprezasse tanto. A adoração
incondicional de seu pai a envolvera na fantasia de ser
alguém especial. Mas Geoffrey destroçara cruelmente aquele
sonho.
A carruagem virou em uma rua e se deteve em frente a
uma residência que já não lhe parecia tão elegante ou
impressionante quanto antigamente. A porta do veículo se
abriu e um lacaio a ajudou a descer. Quando todos estavam
reunidos, ela falou.
— Quando a porta da residência for aberta, pode ser que
tenham que entrar aos empurrões, já que fui comunicada que
tenho a entrada proibida. Mas quero entrar.
Ela se aproximou da construção e subiu as escadas até a
porta. Para sua imensa surpresa, estava aberta. Era evidente
que não esperavam sua volta. Entrou, seguida muito de perto
por seus acompanhantes.
Manson chegou correndo por um dos corredores. Abriu
os olhos desmesuradamente, e também a boca, antes de
recuperar o controle.
— Sinto muito, senhorita, mas…
Um dos lacaios de Evelyn lhe bloqueou o passo enquanto
ela se dirigia às escadas e começava a subir.
— Não demorarei muito, Manson. Preciso somente de
algumas coisas. Por favor, sinta-se liberado para anunciar
minha presença ao senhor.
Ao chegar ao patamar, dirigiu-se ao corredor que
conduzia à asa leste e foi direto ao dormitório situado no
fundo. Seu dormitório. Com a mão na maçaneta, hesitou um
instante antes de abrir a porta. Decidida, entrou no local e se
deteve em seco. A penteadeira, as mesinhas de noite, o
guarda roupa… tudo estava vazio. As poucas bonecas que
sobreviveram a seu ataque de ira não eram vistas por
nenhum lado. Correu para o armário. Vazio. O bonito vestido
vermelho arroxeado que ela comprara com a esperança de
usá-lo no baile em que ela acreditava que Geoffrey ofereceria
depois daquela humilhante noite havia desaparecido.
Às suas costas se ouviram fortes pisadas. Surpreendida
pela calma que a invadia, voltou-se para a porta. Geoffrey
irrompeu, o rosto congestionado e vermelho.
— Que fique bem claro…
Não havia dado nem dois passos quando dois dos lacaios
o agarraram. Geoffrey tentou se soltar, mas eles não
afrouxaram. Finamente deixou de lutar e a olhou furioso.
— Não tem nenhum direito a estar aqui.
— Você tirou daqui todas as minhas coisas. Onde estão?
— Vendi.
As palavras a golpearam como um murro no estômago,
mas ela se negou a mostrar alguma reação. Era muito capaz
de permanecer tão estóica e hermética quanto Rafe.
— Entendo.
— Tudo nesta residência me pertence. E farei o que eu
quiser com isso.
Era culpa ou remorso o que ela pareceu ouvir? Evelyn
não estava segura, mas já estava farta de conceder o benefício
da dúvida. Os olhos cinzentos disparavam adagas contra ela e
o comportamento daquele homem a entristeceu por vários
motivos.
— Eu o admirava. Era meu irmão mais velho, o futuro
conde. Mas, neste momento, eu não gosto muito de você.
Papai lhe pediu que cuidasse de mim e tem você fez um
trabalho muito rasteiro. Você me fez acreditar que tentava me
buscar um marido.
— Eu nunca disse tal coisa. Disse que a apresentaria
para alguns cavalheiros.
— Mas você sabia o que eu pensaria.
— Você sempre foi uma estúpida, — ele bufou.
— Parece-me tremendamente triste.
— Nem se atreva a se compadecer de mim.
— Não me compadeço. Você disse ao papai que eu teria
tudo o que merecia. Ao final, Geoffrey, serei uma mulher rica.
Você, ao contrário, será um ser insignificante.
— Eu sou um lorde, você uma bastarda.
Como ele podia ser tão odioso? Como podia desprezá-la
tanto? Era evidente que ela estava perdendo tempo. Ele
jamais a escutaria, nunca chegaria a entender plenamente
quão retorcido era.
— Agora partiremos. Se fizer um escândalo, meus
homens lhe darão uma surra. De modo que, por favor, não o
faça.
Com a cabeça muito alta, ela saiu do dormitório que em
uma ocasião fora dela, onde em um tempo ela fora feliz. Logo
descobriria se era possível encontrar a felicidade em outro
dormitório.

A última hora da tarde, Rafe contemplava a rua do outro


lado da janela de seu escritório. As pessoas passavam,
sempre apressadas.
Não sabia por que não retornara a sua residência, junto
com Eve. Desejava-a, só Deus sabia quanto. Ali de pé em seus
aposentos, na penumbra, iluminada pelas luzes do exterior,
ela parecera toda sedutora. A voz grave e a risada gutural não
fizeram mais que aumentar o seu atrativo.
Ao rememorar o beijo ele fechou os olhos. Aquela mulher
se converteu em uma perita na hora de imitá-lo. Quase
estivera a ponto de permitir que ela o abraçasse. Quase. Ao
sentir o roçar das mãos dela desejou sentir a carícia tanto
quanto a recusara. Notara uma opressão no peito e a testa se
enchera de suor. Sabia que a afastaria com um empurrão,
certamente a machucaria. Por isso a agarrara pelos punhos
antes de provocar algum mal.
Não queria que a primeira vez dela tivesse lugar num
antro de perversão, nem na carruagem ou nas ruas. Queria-a
em uma cama, da forma mais normal possível… ou tão
normal quanto poderia ser com um homem que sentia
aversão a ser abraçado.
Perguntou-se o que Sebastian pensaria se conhecesse a
verdade do que acontecia nos orfanatos. Não lhe restava
dúvida de que, naquele tempo, fosse desconhecido, mas
possivelmente após, tivesse averiguado. Foram escritos
numerosos artigos sobre as deploráveis condições, a
brutalidade e crueldade dos proprietários. O senhor e a
senhora Finch haviam sido especialmente desumanos. Aquele
orfanato estava saturado. Os meninos dormiam em paletes
sobre o chão em um quarto fechado com chave. Não havia
velas, nenhuma luz exceto a que eram proporcionada pela lua
e pelas estrelas.
Sebastian lhe dissera que não revelasse sua identidade a
ninguém, mas ele era um lorde, e os lordes não dormiam no
chão. De modo que na segunda noite ele exigira uma cama.
A senhora Finch o empurrara até uma diminuta
habitação. Nela havia uma cama. Uma desconfortável cama
de madeira sem colchão, nem nada. E o amarraram a ela.
Rafe apertou um punho contra a janela, tentando afastar
as lembranças, a sensação de desespero, o medo de que o
deixassem lá para morrer. Tratava-se de um dos locais de
castigo, mas fez bem seu encargo. Na noite seguinte ele já não
pediu uma cama.
Ele dormira encaixado entre outros dois meninos.
Um som o fez se voltar. Mick entrou no aposento. A
mandíbula retorcida e arroxeada despertou um sentimento de
culpa em Rafe, embora considerando o inchado e dolorido que
ele levava em seu olho, o sentimento desapareceu
rapidamente.
— Acaba de chegar uma mensagem para você, — Mick
lhe ofereceu um envelope.
Rafe pegou. Não reconhecia a caligrafia pela qual estava
escrito seu nome. Não pertencia a ninguém que lhe tivesse
escrito antes.
— Seu cocheiro a entregou, — continuou Mick,
interpretando a confusão de seu chefe, apesar de ele não ter
movido nem um músculo.
Cada vez era mais hábil escondendo suas reações.
— Já pode se retirar, — ele falou em tom neutro, seguro
de que a mensagem era de Eve.
Até que não esteve sozinho não se atreveu a deslizar os
dedos pelos elaborados traços. Evelyn possuía uma bonita
caligrafia, enquanto a dele era bastante horrível. Resultava-
lhe mais cômodo escrever com a mão esquerda. “A marca do
diabo”, dissera a senhora Finch antes de ordenar que lhe
amarrassem o braço esquerdo durante as aulas noturnas. Ele
nunca conseguira dominar a escrita com a mão direita, e
quando se instalou em Londres voltou para o que lhe era mais
natural, ao menos no referente ao papel e pluma.
Abriu o envelope e tirou a pequena folha de papel.

A senhorita Evelyn Chambers


Tem o prazer de solicitar sua presença
Durante o jantar desta noite
Às oito.
Rafe não pôde evitar sorrir diante de tanta formalidade.
Por acaso temia que fosse iniciar outra prolongada ausência?
Sentia falta de sua companhia?
Que loucura. Ninguém sentia falta dele. Nunca se
incomodava em ser agradável. Não dava atenção, não lhe
importavam as necessidades dos outros, somente as suas.
De novo leu a mensagem enquanto imaginava o lento
movimento da pequena mão ao riscar com precisão as
palavras, com o cenho franzido ao escolhê-las
cuidadosamente, para não dar a impressão de que o
convidava para algo mais que uma degustação de comida.
Certamente o bombardearia toda a noite com perguntas,
matando o desejo, em um intento de atrasar o inevitável.
O pior era que desejava ouvir a voz dela, quase tanto
quanto sentir o calor de seu corpo. Gostava do modo em que
seu tom catarino ascendia e descendia, como se temesse a
resposta à sua pergunta, mas sentisse a necessidade de
perguntar, de qualquer forma. Em ocasiões ele sentia o
impulso de contar-lhe tudo, de falar daquilo do qual nunca
falava. De lhe relatar que, assim que Sebastian e Tristan
desapareceram de sua vista, a senhora Finch o agarrara pelo
pescoço e o empurrara até uma sala. Com a ajuda do marido,
que o havia imobilizado, rasparam-lhe a cabeça para que não
tivesse piolhos, despira-o e insistira que ele afundasse em
uma banheira. De pé diante dela, tampando as partes mais
vulneráveis de seu corpo, ele se negara, exigira que ela lhe
devolvesse a roupa.
E então apareceu a vara. Um golpe seco contra as
pernas.
Outro sobre os ombros. E outro mais sobre as costas. E
o traseiro.
Ninguém jamais o havia açoitado. Ele era um lorde, o
filho de um duque. Ninguém podia tocá-lo. A única maneira
de escapar dos açoites foi metendo-se na banheira. De modo
que entrara. A água estava gelada e quase imediatamente ele
começou a se encolher e a tremer.
Em seguida aquela mulher o atacara com uma escova de
cerdas com a qual ela lhe esfregara até quase lhe arrancar a
pele.
Quando tudo estava terminado, quando estava seco, ela
lhe entregara umas calças junto com uma camisa e uma
jaqueta feita de um tecido áspero, com remendos. Enquanto
não começou a viver nas ruas de Londres não havia
compreendido que ela levou sua camisa, colete e jaqueta
porque os botões eram muito valiosos. Sem dúvida os
arrancara para vendê-los, e deveria ter vendido a roupa
também. Que importância tinha que não tivesse botões? Era
feita dos melhores tecidos. Os botões sempre podiam ser
comprados, possivelmente não tão bons quanto os originais,
mas serviriam.
Mas no orfanato ainda não tinham terminado as lições e
ele passara o resto da noite encerrado em um local com
outros meninos que dormiam. Rafe permanecera acordado,
acocorado enquanto tentava estimar quão rápido passaria o
tempo até que ele voltasse a ver seus irmãos.
À manhã seguinte, depois de comer uma papa com leite,
o único alimento no orfanato, eles o conduziram, junto com
outros meninos, até um local para que desfiasse velhas
cordas até deixá-las reduzidas à mínima fibra. Quanto
menores eram, mais lhe cortavam os dedos ao puxá-las. As
mãos sangravam, mas nenhum dos meninos se queixava.
Porque a vara sempre aguardava.
De novo, Rafe deslizou os dedos sobre a delicada escrita
de Eve. Entretanto, nessa ocasião ele se fixou nas pequenas
cicatrizes feitas pelos diminutos fios. Era quase uma
abominação que mãos como essas pudessem tocá-la. Não
pelas cicatrizes, mas sim por aquilo no que finalmente se
converteram. Armas para cumprir as ordens de outros.
Rafe saboreava um bom uísque no escritório. Ao chegar à
residência fora informado por Laurence de que a senhorita
Chambers dera instruções para que ele a esperasse ali.
Para que ele a esperasse. Não era assim que as amantes
se comportavam, embora o único culpado fosse ele. Resistiu a
lhe proporcionar uma lista completa de suas regras.
A porta se abriu e Evelyn deslizou dentro do escritório.
Rafe ficou sem fala. Os dedos se agarraram com força ao copo
de cristal que, se fosse um pouco mais fino, sem dúvida teria
quebrado. Por obra de um milagre, o negro havia
desaparecido. Ela estava com o vestido arroxeado que ele
havia comprado. Os cabelos recolhidos sobre a cabeça
capturavam a luz e emitiam brilhos dourados. O colar que o
pai lhe presenteara resplandecia sobre seu pescoço, uma
tentação para que ele o beijasse por cima, por debaixo, ao
redor, até alcançar a orelha, que mordiscaria com paixão.
Tudo nela exsudava confiança.
Mas, à medida que ela se aproximava, percebeu as
dúvidas, a insegurança. Desejou ser um poeta, mas as
palavras poéticas lhe haviam sido arrancadas da alma. Além
disso, a poesia pertencia ao mundo dos apaixonados e ele não
tinha nenhuma intenção de ser desonesto com ela. Não
possuía coração para oferecer, e não queria semear nela a
falsa esperança de que ela pudesse achar um em seu interior.
Entretanto, por um fugaz instante, ocorreu-lhe que, se
pudesse comprar um coração para Evelyn, compraria.
Voltando-se para a mesa das bebidas, Rafe desarrolhou
uma garrafa de vinho e se concentrou em servi-lo
generosamente em uma taça, agradecido de que suas mãos
tivessem parado de tremer.
— Tem ideia de como você é linda?
— Supõe-se que uma amante deve estar apresentável,
não?
Ele ofereceu uma taça e observou fascinado como os
dedos de Evelyn se fechavam em torno da haste. Por que se
sentia tão excitado? A antecipação de possui-la logo, supôs.
— Uma amante não deveria ir à casa de seu ir…, do
Wortham, sem mim.
— Levei a Lilás e a três dos lacaios mais fortes, — Evelyn
elevou o queixo, desafiante antes de molhar os lábios no
vinho.
Rafe desejou que aquela língua se inundasse em sua
boca e não na taça.
— A noite em que tudo aconteceu, o mordomo, Manson,
disse-me que sentia muito, mas que não podia me deixar
entrar. Entretanto, ao vê-lo hoje, e ver como me olhava, como
se eu não fosse mais do que um trapo com o qual limpar as
botas, fez-me compreender que as desculpas se deveram
somente a sua boa formação. Na realidade Manson não
sentia. Disse a minha donzela, Hazel, que ela era livre para
me acompanhar se desejasse. Sinto falta dela.
Evelyn tomou outro gole de vinho.
— Mas ela recusou minha proposta, como se eu fosse
inferior a ela. Toda minha vida eu soube quem sou, mas meu
pai me protegia. Jamais compreendi até que ponto. Com sua
morte, e minha visita de hoje, compreendi que não era tão
bem aceita quanto eu acreditava.
Toda sua vida, Rafe soubera quem era, mas saber não o
protegera. Em alguns momentos inclusive piorara tudo.
— Eles não importam — ele grunhiu. — Não são nada.
— Assim é como você segue adiante? Finge que ninguém
é importante?
— Não finjo, Eve. Não são importantes, — ele não
permitia que eles fossem. — Para que você foi lá?
— Queria recuperar algumas coisas. Um pente de
concha para meus cabelos, luvas, uma escova que pertenceu
a minha mãe. Ele vendeu tudo. Ao entrar no aposento não
encontrei nenhuma evidência de minha passagem ali. Tudo
desapareceu, como se eu jamais tivesse existido. O que,
suponho, é o que ele sempre desejou.
Rafe se enfureceu que Evelyn se sentisse inferior por
culpa de uma visita espontânea. Wortham pagaria caro, ao
final ele pagaria. Mas, no momento, ele necessitava outra
coisa sobre a qual descarregar sua ira.
— Se desejar algo, pelo amor de Deus, persiga seu
sonho. Tome, — ele tirou um maço de papéis dobrados da
gaveta. — Laurence não mencionou nada? É um documento
que redigi para você. Se o levar a qualquer loja de Londres, e
se o mostrar a atendente, todas suas compras serão anotadas
em minha conta.
— Não penso em gastar seu dinheiro, — o queixo da
Evelyn disparou para cima com tal força que Rafe se
surpreendeu de que não lhe partisse o pescoço.
Estúpida e orgulhosa mulher. Como lhe enfurecia, e lhe
intrigava. Raramente alguém se atrevia a lhe fazer frente e
que essa pequena mulher o fizesse constantemente o deixava
perplexo.
— Você comeu algo desde que vive aqui?
— Desculpe?
— Você comeu algo desde aquela noite em que chegou
aqui sob a chuva?
— Sabe muito bem que sim.
— Utiliza os abajures de gás? Deixa um abajur de azeite
queimando em sua mesinha de noite? Tomou algum banho
quente? Tem a lareira acesa nas noites frias?
— Eu não…
— Já está gastando meu dinheiro, Eve. É ridículo hilar
tão fino e distinguir entre entrar em uma loja e comprar algo
que gosta ou queimar azeite durante a noite porque quer ler.
Eu pago o gás, a comida, os salários dos serventes que se
ocupam de suas necessidades. Se quiser um maldito pente
para seu cabelo, compre um pente.
— Não havia pensado em tudo isso, — ela o olhou com
expressão desolada, — de todas as maneiras possíveis em que
já estou em dívida contigo.
Afastando-se dele, Evelyn se aproximou da janela
enquanto Rafe sentia desejos de esbofetear-se por não pensar
que essa mulher experimentara certa sensação de controle em
sua vida, ao lhe enviar o convite naquela tarde. Mas com
poucas palavras contundentes ele conseguira devolvê-la à
realidade sobre o lugar que ela ocupava em sua vida. Não
sabia o que dizer, como consertar, como devolver o sorriso a
seu rosto, ou a segurança com a qual ela havia entrado no
escritório minutos antes.
— Evie, eu… — “sinto muito”. Quando ele se
desculpava? Claro que tampouco conseguia recordar a última
ocasião em que se equivocou.
Evelyn tomou outro gole de vinho, segurando a taça com
ambas as mãos como se estivesse se agarrando a ela.
— É claro, sei e entendo que compremos artigos, que
nada é grátis, mas nunca pensei que tudo deve ser adquirido,
— ela se voltou. — Simplesmente estava lá. Papai
proporcionava. Nunca falou de pagar por isso. Jamais me
ocorreu lhe perguntar como tudo funcionava, — ela suspirou
frustrada. — Não estou me expressando acertadamente.
Entendo que precisamos comprar coisas. Mas nunca havia
considerado exatamente quanto poderia custar o tronco que
eu queimava na lareira, ou o carvão que utilizava. Os
detalhes. Nunca pensei nos detalhes. Por Deus que já lhe
devo uma fortuna.
Rafe arrojou o papel sobre a mesa e se aproximou dela.
Aspirou sua fragrância, feliz de estar bastante perto para
poder sentir.
— Eu não diria uma fortuna, e já lhe disse que não fiz a
conta. De modo que, se você necessitar algo, compre ou peça
ao Laurence ou a outro servente para buscar.
— Então estamos falando de uma quantia?
— Se assim o desejar, se se sentir mais confortável
nomeando.
— Qualquer quantia?
— Agora sim você fala como uma amante, — ele não
conseguiu deixar de sorrir.
— Visto que você me assegurou não ter tido uma até
agora, não estou segura de como pode saber isto.
— Quando os homens apostam, ou rosnam ou se gabam.
E em ambos os casos exageram. Nada é tão ruim como
querem fazer acreditar, e nenhum deles destaca o que eu
presumo que seja a verdade. Mas frequentemente os assuntos
das conversas giram em torno de suas esposas ou amantes.
Evelyn estendeu as mãos e lhe arrumou a lenço, embora
ele não acreditasse que precisasse de acerto. Rafe sentiu um
nó no estômago, como se ela já lhe tivesse arrancado a
maldita peça, antes de prosseguir com todo o resto.
— Não respondeu a minha pergunta sobre a quantia —
insistiu ela.
— A que você desejar.
— Poderia arruiná-lo, — Evelyn elevou o olhar e seus
olhos emitiram um brilho.
— Não acredito provável. Poderá ir às compras
diariamente, durante todo o dia, se assim o desejar.
— É muito generoso.
— Não confunda minha tendência esbanjadora com
generosidade. Uma alma generosa dá tudo, até seu último
pinique. Já viu meu clube. Acredite em mim quando digo que
enquanto aqueles homens acreditarem que terão uma
oportunidade de fazer fortuna com o jogo, em vez de ganhá-la
com seu trabalho, nunca ficarei com um último pinique.
— Bom, — ela sorriu, — certamente assim não é como
eu havia imaginado que se desenvolveria nossa noite. Toda
esta conversa sobre dinheiro. Esperava que esta noite girasse
em torno de nós.
“Nós”. Fazia anos que essa palavra já não fazia parte de
seu vocabulário. Rafe esteve a ponto de aconselhá-la que
pensasse somente nele e em suas necessidades, mas se ele
fizesse parte dos planos dessa noite já não estaria vestido com
o maldito colete, jaqueta e lenço, sentindo-se à beira da
asfixia. Fizera aquilo por ela. Começava a se dar conta de que
fazia muitas coisas por ela.
Dera permissão para ela gastar todo o dinheiro que
quisesse. Ele nunca havia sido esbanjador. Custava-lhe muito
ganhar seu dinheiro. Certamente nunca se privava de nada,
mas o que mais desejava era ganhar dinheiro.
— Vamos jantar, você quer? — Rafe tomou a taça vazia
de Evelyn e a deixou a um lado. — Eu estive desejando isto
desde que recebi seu convite.

Jantaram no salãozinho que dava ao jardim. Evelyn


mandara retirar o retrato de seu pai. No dia seguinte pediria
que voltassem a pendurá-lo. Aquela noite queria a intimidade
de um ambiente menor e o salão era muito grande, muito
formal, muito frio.
As chamas das velas cintilavam. Os lacaios serviram a
comida, prato após prato. Ela quase não tocou em nada,
consciente do constante olhar de Rafe. Estivesse comendo ou
bebendo vinho, ele a olhava.
Carregava a frágil e vã esperança de que as coisas não
progredissem entre eles, que ela se convertesse mais em
companheira do que em amante. Falar de assuntos aleatórios
enquanto jantavam, ler, tal e como ele havia pedido naquela
primeira manhã. Mas compreender até que ponto já estava
em dívida com ele, deixara-a estupefata. Não Havia pensado
nos pequenos detalhes.
— É assim que perdem os homens suas fortunas, não?
Pouco a pouco, sem se dar conta. E, de repente, olham a seu
redor e não resta nada.
— Normalmente, sim — Rafe a contemplou por cima da
taça.
Evelyn sentia a crescente tensão no ar, como uma negra
tormenta que se formasse sobre um paramos. Ao enviar o
convite ela fizera uma vaga ideia do que poderia acontecer ao
final da noite, sabia que poderia terminar exercendo sua
sedução. Sua intenção era aliviar a solidão que percebia nesse
homem, dar-lhe mais do que ele pedia, ser mais do que o
acordo estipulava.
— Você se incomodou muito para organizar toda esta
noite, — observou ele com calma.
— Pareceu-me que uma amante deveria assegurar-se de
que as noites estivessem cheias de sabores e fragrâncias —
ela assentiu. — Sei que não vai me cortejar, mas pensei que
deveria criar um ambiente para parecer que sim, — ela não
sabia como explicar aquilo, sem parecer uma autêntica tola,
— porque ontem à noite compreendi que não seria tão
horrível…
— Isto é certamente um elogio.
O sorriso de Rafe veio acompanhado de uma sombra de
escuridão e ela se perguntou se alguma vez ele lhe dedicaria
uma expressão de pura felicidade. Ignorando a interrupção,
ela continuou.
— Esta tarde me dei conta de que com a morte de meu
pai perdi tudo. Estava muito aflita pela tristeza para
compreender até que ponto minha vida mudou. Estarei aqui
até que você se farte de mim, e até que chegue esse momento
me esforçarei para conseguir que nosso acordo resulte o mais
agradável possível, para ambas as partes. Pensei que, depois
de jantar, poderia ler para você. Ou, se preferir, toco o piano.
— Tenho certeza de que lhe ocorre alguma outra
diversão.
Enquanto ela continuava bebendo o vinho a pequenos
goles, Rafe a contemplava com os olhos entornados, de um
modo que a Evelyn lhe fazia pensar em como a beberia, lenta
e prazenteiramente, até saciar-se. Sabia o que ele queria que
lhe oferecesse, deitar-se com ela por diversão, mas não
renunciaria a sua castidade com essa facilidade. Verdade que
devia, verdade que havia prometido. Mas ele também poderia
fazer algo para atraí-la até sua cama.
— Preferiria jogar xadrez? Sou bastante boa. Jogava
frequentemente com meu pai.
— Começaremos pela leitura — ele sorriu travesso.
— Vai ser esta noite, não é verdade? — Evelyn
suspeitava que terminariam na cama. E se sentiu muito
orgulhosa de que sua voz não soasse tremente.
— Fui mais que paciente.
— Eu diria que foi mais paciente que um santo.
— Não sou nenhum santo.
Era um pecador, e logo ela também seria.
— Tentarei não ficar nervosa.
— Beba um pouco mais de vinho.
Ela obedeceu, saboreando bem a bebida, deixando que o
calor a invadisse, sentindo-se ligeiramente enjoada.
— Não me ocorre nenhum assunto do qual falar.
— Pois não fale, então. Não preciso que me entretenha,
esta noite não.
— Farei outras noites? — Ela franziu o cenho.
—Duvido, — as comissuras dos lábios do Rafe se
elevaram ligeiramente. — Suspeito que, assim que a tenha
tomado, demorarei um tempo em me saciar.
Fora assim entre seu pai e sua mãe? Evelyn não queria
pensar neles naquela noite, mas as palavras surgiram de sua
boca sem conseguir evitar.
— Meu pai amava a minha mãe, mais do que amava a
esposa.
— Eu não sou seu pai, — Rafe se deteve com a taça de
vinho a ponto de alcançar seus lábios.
— Graças a Deus — ela soltou uma gargalhada.
— Referia-me, Evie — ele a contemplou atentamente, —
que eu não amo. Não comece a pensar que o que acontecer
entre nós é mais do que é.
Eve assentiu. Ele já lhe explicara claramente, e em mais
de uma ocasião, o que ela seria para ele. Mesmo assim, não
conseguiu evitar desejar algo mais.
— Alguma vez você amou alguma das damas com a qual
tenha… estado?
— Não possuo capacidade para amar — ele sacudiu
lentamente a cabeça.
Ela se sentiu repentinamente muito triste. “Que pessoa
tão solitária deve ser”. Não pronunciou as palavras. Não
queria iniciar uma conversa que pudesse afastá-los da
possibilidade de desfrutar dessa noite.
— Tem razão. Não deveríamos falar.
Rafe a olhou alguns segundos, como se tentasse
memorizar cada linha, cada curva do rosto. Evelyn se
perguntou se continuaria fazendo aquilo à manhã seguinte,
durante o café da manhã, se perceberia alguma diferença.
Quanto mudaria essa noite? Haveria algo que permaneceria
igual?
— Se eu fosse dos que cospem poesia — ele comentou
finalmente. — Cuspi-la-ia por você.
— Cuspir poesia? — Ela não sabia se chorava ante a
sinceridade de Rafe, ou ria ante a escolha das palavras. Por
fim se decidiu por um sorriso. — Não tem muito boa opinião
da poesia.
— Custa-me entendê-la. As palavras nem sempre
significam o que se supõe que significam. Não aparecem
sempre na ordem correta. Dão voltas em torno do tema.
— E você prefere que as coisas sejam mais diretas.
— Sim, — Rafe assentiu lentamente.
— Eu gosto de poesia. Inclusive quando não entendo
exatamente o que diz o poeta, eu gosto de como as palavras
fluem, sobretudo quando se lê em voz alta. Opino que a
poesia deve ser lida em voz alta para que possamos apreciar
realmente.
— Se você lesse poesia para mim eu conseguiria apreciá-
la.
— Suponho que descobriremos — Evelyn sorriu,
aceitando a provocação, — já que disse que começaremos por
uma leitura.
Não se lembrava de ter visto um sorriso tenro no rosto
daquele homem, e em primeira instância lhe parece
descoordenado, e mesmo assim muito natural. Inclinando-se
à frente, Rafe lhe segurou o queixo e apoiou o polegar sobre
sua boca.
— Não fique nervosa.
— É um pouco difícil não ficar, — Evelyn não conseguia
sossegar seu lado romântico. Queria algo mais.
Ela se deitaria com Rafe e depois nada seria igual. Havia
um nó no estômago e se retorcia como os fios do algodão de
açúcar que ela vira serem enrolados em uma ocasião, em uma
confeitaria.
— Celebraremos a leitura na biblioteca — Rafe se
levantou da cadeira e puxou a dela para que ela fizesse o
mesmo.
Uma pausa. Evelyn não sabia se se sentia agradecida ou
irritada. Ao final optou por agradecida.
Capítulo 13

Rafe se encostou à lareira e bebeu seu melhor uísque,


uma taça atrás da outra, enquanto ela se sentava
perfeitamente ereta, em uma poltrona. Ao final não leu
poesia, mas uma história sobre prados açoitados pelo vento e
amores tormentosos. Mas ele não escutava tanto as palavras
como o tom e cadência da voz. A nota rouca chamara sua
atenção desde o começo. Mesmo que ela não tivesse feito mais
que recitar as letras do alfabeto, teria toda sua atenção. Ela
era muito perigosa.
Quis tomá-la em seus braços e subir as escadas com ela,
mesmo sabendo o inferno que seria tê-la tão perto.
Observando-a quase se sentia capaz de esquecer suas
limitações, esquecer tudo o que não podia lhe oferecer e, pela
primeira vez em sua vida, as deficiências dele, encheram-no
de pesar. Era o bastante frívolo para reconhecer que, por fora,
era um tipo muito atraente. O que poderia afugentar Eve era
o interior. As áreas obscuras, os segredos, as coisas que ele
fizera. Se ela soubesse tudo isso, nem sequer seu aspecto
físico o compensaria. Evelyn se separaria dele. Não lhe
enviaria mais convites, nem se vestiria de maneira atraente,
nem lhe prepararia um bonito jantar ou lhe ofereceria
aborrecidos entretenimentos como leitura e música.
Evelyn o abandonaria, e ele ficaria sozinho novamente
com a única companhia de seus pensamentos. A voz se
tornou mais baixa, rouca, sedutora. Rafe a desejava tanto
quanto o respirar. Apurou a taça e a deixou sobre o suporte
da lareira.
Antes de ficar completamente louco, aproximou-se dela,
inclinou-se, fechou o livro e o deixou sobre a mesa, junto à
poltrona, junto à taça de uísque que permanecia intocada.
Puxou-a para que se levantasse e a observou fixar o olhar cor
violeta sobre o alfinete de ônix do seu lenço.
— É a mulher mais linda que eu já vi. Pensei que era por
causa de sua pele, o cabelo ou os olhos. Mas é mais que isso.
— Por Deus santo, quanto ele havia bebido? Parecia incapaz
de conter o incessante balbucio. Tomou o rosto de Eve entre
suas mãos vazias e a levantou, porque desejava contemplar a
profundidade violeta dos seus olhos. — Vou machucar você
Eve. É o que eu faço. Faço mal às pessoas. Estou fazendo a
tanto tempo que já não sei como não fazer, — desejava-a tão
desesperadamente que estava a ponto de ajoelhar-se diante
dela, mas jamais confessaria, porque isso lhe daria poder
sobre ele, — e isto me consome. Não quero machucá-la.
— Pois não o faça.
Tal e como ela expôs parecia muito simples.
— Deveria deixar você partir.
— Não quero que faça isso.
Rafe disse a si mesmo que ela era impulsionada por tudo
o que ganharia sendo sua amante. Quando ele tivesse se
fartado dela, receberia riquezas, poder e, se jogasse bem suas
cartas, influência. E a liberdade para fazer o que lhe desse
vontade.
— Converta-me em sua amante de verdade, — ordenou
ela com voz rouca, envolvendo-o com sua voz grave,
penetrando pelas frestas de sua negra alma.
Um profundo e selvagem gemido ressonou na estadia
quando ambas as bocas se fundiram, antes que ela pudesse
respirar de novo. A ponto de rodeá-lo com os braços, Evelyn
recordou a primeira regra e os deixou cair. Como desejava
tocá-lo, abraçá-lo, apertá-lo com força contra seu corpo,
porque estava a ponto de derreter-se sobre o chão.
Não houve doçura, não houve delicadeza. Rafe não
concederia, mas o escuro e ansioso modo como a devorava lhe
fez ferver o sangue, debilitou-lhe os joelhos, inundou-a de
prazer dos pés à cabeça. Não tinha certeza em que momento
exato compreendera que ela também o desejava, que lhe
importava bem pouco sua reputação. A única coisa que sabia
era que o desejava.
Eram duas almas solitárias expulsas da sociedade. Sem
dúvida encontrariam consolo um no outro. Rafe se afastou. O
habitual gelo de seu olhar havia desaparecido, substituído por
brasas ardentes. O azul era mais intenso, como o das chamas
na base da fogueira.
— Preciso fazê-la minha, Eve — ele gemeu.
Ela assentiu e umedeceu os lábios, saboreando o uísque
que Rafe havia tomado, saboreando a ele.
— Mas não esqueça minha regra.
— Não o abraçarei.
Ele a tomou em seus braços e se dirigiu para a porta.
Evelyn desejava desesperadamente lhe rodear o pescoço com
um braço, acariciar seu rosto.
— O que me permite fazer?
— Nada, — ele se dirigiu ao corredor. — Somente
aproveite, não tente tomar a iniciativa.
— E se me aproximar mais de você e lhe beijar o
pescoço?
Seus olhares se fundiram antes que ele começasse a
subir a escada.
— Não.
Ela quis perguntar-lhe o motivo, saber o que lhe
acontecera para não suportar que ela, nem ninguém, o
tocasse. Com clareza brutal, compreendeu de repente que na
noite em que a levara nos braços sob a chuva até sua casa,
não havia sido ela quem o animava a seguir adiante, mas sim,
ele mesmo. O que lhe havia acontecido? Entretanto, não era o
momento de insistir, de intrometer-se, de interrogar. Algum
dia o faria. Depois dessa noite, a distância entre ambos ficaria
reduzida. Depois dessa noite, tudo mudaria.
Rafe empurrou a porta com o ombro e entrou no
dormitório, fechando com um pontapé. Delicadamente, deitou
Evelyn sobre a cama, como se ela pudesse se romper em
pedaços se não tomasse cuidado. Depois começou a tirar a
roupa. Ela ouviu tecido sendo rasgado, ouviu saltar os botões
que rodaram pelo chão. Pensou que deveria se sentir
assustada diante de toda aquela loucura, mas o certo era que
estava fascinada ao saber-se capaz de provocar uma reação
como aquela em um homem. Rafe estava à beira da loucura
de desejo por ela.
A sensação resultava embriagadora, e ela apoiou um
cotovelo sobre o colchão para olhá-lo. Rafe tirou a camisa e a
jogou a um lado. Equilibrando-se com um pé, ele tirou a bota
e se desembaraçou da meia três-quartos, antes de fazer o
mesmo com o outro pé.
Desabotoou dois botões da calça antes de parar e olhá-
la. Evelyn sentia a boca seca, o coração pulsava como se
estivesse a ponto de sair voando de seu peito. Ele também
respirava agitadamente e a fronte estava perlado de suor.
— Pode fechar os olhos se quiser, — a voz rouca
provocou calafrios na Evelyn.
Esse homem não possuía nem um defeito. Era puro
músculo e pele envolvendo os sólidos ossos. Ela sacudiu a
cabeça e se atreveu a confessar o que não tivera a coragem de
revelar na noite anterior, quando ele a levara a sala de boxe.
— Acho-o lindo.
Rafe soltou um bufo, que poderia ser interpretado como
uma risada. Seus dedos seguiram com os botões e ao fim
baixou as calças. O desejo inundou Evelyn, que morria de
vontade de tocá-lo.
Todo. Muito. Possivelmente deveria estar assustada pela
protuberante masculinidade. Era o único termo que conhecia,
mas, aplicado a Rafe, não soava muito apropriado. Ela
precisava de algo mais contundente. Seguramente ele a
machucaria, mas não sentia medo.
Possuía pernas longas e tonificadas, e uma cicatriz na
coxa direita.
— O que aconteceu aí? — Ela se sentou na cama.
— Depois, — ele respondeu. — Contarei depois.
Contaria? Finalmente começaria a falar, a lhe contar
tudo sobre ele, seu passado, seu presente, seus sonhos para o
futuro? Suas metas e ambições? Havia muitas perguntas,
mas podiam esperar. Tudo podia esperar.
Rafe se aproximou da cama levando com ele seu
masculino aroma, possivelmente de sexo, almiscarado, nada
desagradável. Com uma mão apoiada em seu ombro,
empurrou-a de novo contra o travesseiro. Desfez-se das
roupas dela até deixá-la tão exposta quanto ele próprio
estava.
— Deus santo, eu sabia que você seria…
Rafe se interrompeu e ela se perguntou que palavra ele
teria utilizado, embora, a julgar pelo olhar apreciativo, da
curva de seus lábios, ele estava satisfeito.
— Agora eu me viro? — Perguntou Evelyn com voz débil.
Ele a olhou surpreso e franziu o cenho.
— Não vou tomá-la por trás — e lhe dedicou um fugaz e
cálido sorriso que chegou até o coração de Evelyn. — Não
somos cães, e lhe prometi que desfrutaria com nossa união.
Ainda de pé, Rafe se dobrou pela cintura, agachou-se e a
beijou, seus lábios levando a termo o habitual truque de
magia ao que ela estava se acostumando. As contundentes
carícias da língua a animaram a responder do mesmo modo.
Evelyn desejava desesperadamente pentear os cabelos dele
com os dedos, abraçá-lo. Entretanto, elevou os braços e se
agarrou ao travesseiro. Tratava-se de um pobre substituto,
mas lhe serviria.
Sentiu uma das mãos de Rafe deslizar pela coxa até o
joelho, detendo-se para lhe acariciar o quadril antes de
continuar sua ascensão até as costelas. De novo se deteve. De
repente ela sentiu a forte mão sobre o seio, massageando-o
com delicadeza, como se temesse machucá-la. O polegar, ao
menos ela pensou que era o polegar, descreveu círculos ao
redor de um mamilo que, imediatamente, entumeceu. Ela
gemeu.
Rafe afastou os lábios dos dela e os deslizou pelo
delicado pescoço. Mordiscava, beliscava, acalmava com a
língua. Evelyn abriu os olhos e contemplou a negra cabeleira
inclinada sobre ela. A única parte do corpo dele que a tocava
era a mão e os lábios. Ela queria sentir seu peso. Não era
assim que se fazia? Não sabia. Sabia somente que o desejava,
por completo.
A habitação começava a esquentar, como se tivessem
aceso um fogo. Embora possivelmente fosse ela a que
começava a esquentar-se à medida que ele lambia sua pele.
A boca de Rafe deslizou para baixo, mais abaixo, sobre o
começo do decote, e seguiu baixando até substituir os
polegares ao redor dos mamilos. A língua começou a desenhar
um círculo ao redor do mamilo até que ele fechou a boca e
começou a chupar. Dos lábios de Evelyn surgiu um rouco
suspiro, nascido de seu interior mais profundo, e seu corpo se
retorceu.
— Gostou disso? — Perguntou ele enquanto soprava
sobre a pele úmida, empurrando-a à loucura.
— Sim. Por que não posso abraçar você?
— Porque não pode.
Essa não era uma resposta. Ela desejava desobedecer,
mas se fizesse o lhe ordenara que não fizesse, possivelmente
todas aquelas deliciosas sensações desapareceriam. Queria
somente acariciá-lo uma vez, quis suplicar, somente uma leve
carícia com seus dedos sobre as costas. Na realidade não
seria um abraço, mas não se atreveu a arriscar.
Rafe continuou deslizando a mão pelo corpo de Evelyn,
até pousá-la entre as coxas. Os dedos iniciaram um
movimento circular.
— OH! Rafe…
— Cale-se. Relaxe.
Relaxar? Evelyn estava a ponto de sair da cama. Não
sabia como podia continuar deitada sobre o colchão.
Lenta, muito lentamente, ele introduziu um dedo em seu
lugar mais íntimo.
— Meu deus, como já está molhada, e tão ardente… tão
malditamente apertada, — ele levantou o olhar para ela. No
rosto se refletia tensão. — Nunca conheci tal aperto.
— Isso é ruim?
— Para mim não, — ele lhe dedicou um sorriso
malicioso, — mas temo que possa lhe resultar desagradável.
— Até agora não está sendo. Não quero que você pare.
— Sou um bastardo egoísta, e a desejo muito para
conseguir parar.
Evelyn não acreditou em nenhuma palavra. Estava
convencida de que, se lhe houvesse dito que não queria
continuar, ele teria parado, mas, se o fizesse, ela poderia
morrer. Adorava sentir as mãos e a boca daquele homem
sobre seu corpo, adorava as sensações que ele lhe despertava.
Colocando ambas as mãos sobre o interior das coxas,
afastou-lhe as pernas e se inclinou sobre ela. E a beijou ali
mesmo.
— OH, Deus!
Rafe permanecia de pé. A postura devia lhe resultar
tremendamente desconfortável, mas não parecia se importar,
absolutamente, enquanto seus lábios seguiam lentamente o
rastro de suas mãos. Outro beijo, um giro da língua, uma
delicada sucção. Uma e outra vez. Os cuidados mudavam,
mas o resultado era o mesmo: uma intensa pressão que
crescia mais e mais até que ela acreditou que gritaria. Evelyn
girava a cabeça de um lado para o outro, estendia os braços
para ele, recordou-se que não podia tocá-lo e optou por
agarrar os lençóis com força. Desejava-o. Não poder tocar o
atlético corpo, não poder sentir seu calor enquanto ele se
esforçava tanto por incrementar o dela, era uma autêntica
tortura.
Começou a ofegar para respirar e ouviu pequenos gritos
surgirem de seus lábios. Gritos que não ela conseguia
reprimir, não podia controlar. Aquilo era uma autêntica
loucura.
Rafe cobriu um de seus seios com a mão e apertou e
beliscou brandamente enquanto continuava torturando-a
febrilmente com seus lábios. A pressão aumentou, o corpo de
Evelyn ficou tenso…
— OH, Deus santo!
O prazer percorreu seu corpo, saiu dela enquanto se
convulsionava com as costas arqueadas. Gritando, puxou os
lençóis, pois precisava agarrar-se a algo para se manter
ancorada. Arfando para respirar, deixou-se cair de novo,
incapaz de acreditar no que acabava de experimentar. Rafe se
moveu agilmente e se colocou entre suas coxas, erguido sobre
ela, as mãos apoiadas em ambos os lados dos ombros, reto,
os músculos tensos, os olhos cor gelo de um azul abrasador.
— Perdoe-me — ele grunhiu com voz rouca antes de
afundar-se em seu interior.
A dor foi aguda, intensa, rápida. Já que Rafe a olhava
fixamente, ela mordeu o lábio para não gritar, os braços
trêmulos.
— Estou bem — ela assegurou.
Teve a impressão de que ele assentia antes de começar a
balançar sobre ela com longas e fortes investidas. Rápidas.
Furiosas.
De seus lábios surgiu um profundo gemido. Rafe jogou a
cabeça para trás e seu corpo deu uma sacudida, tensionando.
Depois de uma última investida, parou, respirando com
dificuldade, olhando-a como se, por um instante, não a
reconhecesse.
Evelyn não conseguiu evitar a tentação de acariciar as
úmidas mechas negras que cobriam sua fronte. A respiração
de Rafe começou a acalmar, mas o olhar permanecia fixo
nela.
— Supunha-se que eu deveria ter saído, — ele sussurrou
com voz rouca, como se tivesse estado gritando.
— Desculpe?
— Supunha-se que eu deveria verter minha semente na
mão, não dentro de você.
— Da próxima vez, então.
Rafe soltou algo parecido a uma gargalhada.
— Você quer uma próxima vez.
— Pois, melhor... sim — ela sorriu.
Ele dobrou os braços e conseguiu, sem tocá-la com seu
corpo, beijá-la rapidamente nos lábios antes de se afastar.
— Você já vai? — Perguntou Evelyn.
— Ainda não. Espere aqui.
Como se tivesse escolha, como se ela não sentisse uma
letargia que lhe impedia de se mover, e as pernas convertidas
em gelatina. Observou-o dirigir-se para a bacia. Gostava da
forma de seu traseiro, o modo como seus músculos se
flexionavam a cada movimento. Era seu amante.
Certamente poderia observar um homem sem se sentir
culpada. Era seu trabalho.
Rafe se lavou antes de voltar junto dela com um pano na
mão. Sentado na beira da cama, começou a lhe limpar a face
interna das coxas.
— Não há tanto sangue como pensei que haveria — ele
observou.
— Sou sua primeira virgem?
Ele levantou o olhar até ela e, durante um fugaz
instante, pareceu-lhe mais jovem do que o habitual. Antes de
reatar sua tarefa, ele assentiu.
— Machuquei você?
— Não foi tão horrível.
— Nem sempre vai doer.
— A dor valeu a pena pelo que veio antes.
Ele sorriu e ela desejou manter aquele sorriso congelado
para sempre.
— Você gostou? — Perguntou Rafe.
— Sim, muito, — Evelyn sorriu. — Você é mais hábil do
que os cães.
Ele a contemplou durante alguns segundos com o cenho
franzido antes de explodir em uma gargalhada, sonora e forte.
Não durou muito, mas sim o bastante para que ela se
apaixonasse por aquela risada.
— Isso espero.
Evelyn mordiscou o lábio enquanto se perguntava se
deveria manifestar seus pensamentos em voz alta.
Mentalmente, lançou uma moeda ao ar. Não funcionava tão
bem como quando lançava a moeda de verdade, mas
necessitava que ele soubesse.
— Alegro-me de que tenha sido você.
Rafe ficou completamente imóvel, olhando-a como se ela
estivesse dizendo sandices.
— Minha primeira vez.
Os músculos do pescoço de Rafe se esticaram enquanto
ele engolia a saliva nervosamente, a noz subindo e descendo.
De pé em frente a ela, tampou-a com os lençóis e a colcha
antes de deslizar o polegar por sua bochecha.
— Durma bem.
Evelyn se sentiu invadida por uma imensa tristeza. Não
estava preparada para vê-lo partir. Havia a sensação de que
deveria haver algo mais. E ao fim compreendeu que o que
faltava era o abraço. Depois de ter acabado deveriam ter se
abraçado. Recordou uma ocasião em que, assustada, ela fora
ao dormitório de sua mãe estando ali o conde. Ela estava com
as costas apoiadas contra o torso de seu pai que a rodeava
com um braço. Estavam tão colados que lembravam duas
colheres em uma gaveta. Claro que eles se amavam. Rafe não
a amava. E ela não estava muito segura do que sentia por ele.
— Partirá? — Ela perguntou enquanto tentava não se
sentir ferida, ofendida.
— Sim. Certamente eu deveria ter lhe dito isso antes. É
outra de minhas regras. Nunca fico na cama com você.
— Por que não?
— Não estarei aqui quando você despertar pela manhã,
— ele se limitou a sacudir a cabeça e a baixar a chama do
abajur.
— Aonde você vai?
— Uma amante não deve perguntar tudo. Aceitará o que
eu disser.
Ela percebeu uma ligeira irritação em sua voz. Não
queria que a noite terminasse com os dois zangados.
— Eu o verei amanhã à noite?
— Sim. Coloque o vestido vermelho, — Rafe recolheu
suas roupas e rebuscou entre os farrapos de tecido até que
encontrou o bolso do colete de onde tirou uma chave.
Encaminhou-se até a porta que separava ambas as
habitações e introduziu a chave na fechadura. Sem
pronunciar uma palavra mais, entrou em seu dormitório e
voltou a fechar a porta com chave. Evelyn se esforçou para
não se sentir triste, desiludida, abandonada. Desde o começo,
ele a havia advertido que haveria regras, que as coisas
deveriam ser ao gosto dele. Mas durante um breve momento
ela chegara a pensar que havia algo especial entre eles.
Deitando de lado, olhou para a janela. Uma vida
completamente diferente a aguardava do outro lado.
O problema era que, de repente, desejava a vida que
começava a viver, ao menos, uma boa parte dela. E não podia
evitar pensar que, com o tempo, desejaria toda ela.
Rafe pregou a orelha à porta. Não a ouviu chorar. Não
sabia se sentia preocupação ou alívio. Na noite em que
Wortham a expulsara de casa, ela não derramara nenhuma
lágrima. Sua Evie era muito dura.
Teria querido lhe dar muito mais, quase suplicara a ela
que o tocasse. Que pousasse uma mão sobre seu ombro, que
afundasse os dedos em seus cabelos. Mas não podia arriscar.
No pico da paixão, ela poderia esquecer a aversão dele a ser
abraçado, poderia rodeá-lo com os braços, as pernas, todo
seu corpo.
Voltando-se, escorou as costas contra a porta e deslizou
até o chão. Havia um abajur de gás aceso, sempre estava
aceso, para afugentar os demônios escondidos nas sombras,
esperando o momento oportuno para se manifestarem. Sabia
que se dormisse essa noite eles apareceriam, sentia no mais
profundo de seu ser. Precisava ir ao clube, precisava ouvir o
constante ruído da vida, a atividade, as voltas da roleta, o
golpe dos jogos de dados, o sussurro das cartas ao serem
embaralhadas. Não podia ficar em sua casa.
Por mais que desejasse deitar-se na cama ao lado dela,
vê-la cair no torpor do sonho, correria o risco de dormir ele
também. Se os pesadelos o assaltassem, não queria que ela
estivesse o bastante perto para ouvir seus gritos.
“Alegro que tenha sido você”.
Rafe duvidava que ela se alegrasse tanto se soubesse que
fora tomada por um louco.
Capítulo 14

Mesmo que ele não lhe houvesse dito que não estaria em
casa quando despertasse, ela teria sabido. A atmosfera da
residência era diferente de quando ele não estava. Não sabia
como explicar, mas parecia mais vazia, menos vital, mais
corrente.
Depois de se vestir com a ajuda de Lilás, Evelyn saiu do
dormitório no preciso momento em que um servente, pequeno
e gorducho, abria a porta de uma habitação ao outro lado do
corredor. De seu braço esquerdo se penduravam algumas
camisas recém engomadas. Ela tentou não olhar a mão
enluvada, semelhante a uma garra, que parecia congelada em
uma desconfortável posição.
— Bom dia, senhorita — o homem se deteve e fez uma
pequena reverência, — sou o ajudante de câmara do senhor
Easton. Bateman.
Ela se obrigou a sorrir para que ele não pudesse ler sua
mente. Perguntava-se como era possível que um ajudante de
câmara maneta pudesse desempenhar suas funções como era
devido. Sem dúvida o homem deve ter imaginado o que ela
estava pensando, pois lhe ofereceu uma explicação.
— Esmaguei a mão quando jovem. Nunca sarou
totalmente. Ainda me dói um pouco, sobretudo com tempo
frio e úmido.
— Sinto muitíssimo, embora esteja segura de que é um
magnífico ajudante de câmara.
— O Senhor nunca se queixou, — Bateman endireitou os
ombros.
— Suponho que essas são as camisas dele.
— Sim, senhorita. Vou deixá-las nos aposentos dele. O
alfaiate as entregou ontem. Ele gosta que sejam lavadas e
engomadas antes de estreá-las.
Com uma rápida olhada, Evelyn calculou que haveria
meia dúzia de camisas. Novas. Muitas. Embora, depois da
noite anterior, sem dúvida precisaria substituir ao menos
uma.
Evelyn assinalou a porta contígua a seu dormitório, não
sem certo apuro, mas parte de sua responsabilidade consistia
em assegurar-se de que Rafe fosse atendido adequadamente.
— Mas o dormitório dele é aqui.
— Não, senhorita — o homem piscou. — Aquele é o
dormitório onde o ajudo a se vestir. Ninguém tem a entrada
permitida a esse outro.
— E como é limpo e ordenado?
— Que eu saiba, não é limpo.
— Entendo, — entretanto, não entendia nada.
— É tudo, senhorita?
— Sim, continue — Evelyn assentiu.
Depois de que o ajudante de câmara entrou no aposento,
ela se dirigiu até a porta que sabia estar fechada com chave.
Que segredos ele ocultava ali dentro?

Os joalheiros de St. James eram os melhores de toda


Londres. Quando Rafe entrou no estabelecimento, não lhe
surpreendeu ver um duque sentado junto a um dos
mostradores. Quem lhe dera não tivesse sido aquele duque
em particular.
Dada a posição da porta, e sua limitada visão por causa
do tampão, seu irmão teve que girar quase por
completamente para ver quem entrava.
— Rafe.
— Sebastian, — ele elevou o queixo. — Sinto muito.
Keswick.
— Sebastian está bem, — Keswick encolheu os ombros
— Este é o último lugar no qual esperaria vê-lo. — O
atendente não se encontrava à vista e Rafe pensou em partir,
mas fazia muito tempo que ele deixara de tentar evitar as
situações desagradáveis, de modo que fechou a porta e se
aproximou do mostrador.
— Onde está o atendente?
— Procurando um colar que mandei criar especialmente
para Mary. dentro de algumas noites celebraremos um baile.
Será o primeiro em Londres. Ela está bastante nervosa. O que
celebramos em Pembrook antes do Natal foi bom, mas já sabe
como é Londres. Aqui se analisa tudo mais profundamente.
— Ela não deveria se importar com o que os outros
pensem.
— Se não fosse por nosso filho, certamente não se
importaria. Afinal de contas ela se casou comigo. — O duque
devolveu sua atenção ao mostrador, o que significava que não
conseguia ver seu irmão. Rafe pensou que possivelmente
deveria se colocar do outro lado de Sebastian, mas, claro, o
duque tinha direito de olhar para onde quisesse.
— Recebeu o convite? — Perguntou Sebastian com
calma.
— Para a festa de Natal? Sim, enviei minhas desculpas.
— Para o baile desta semana.
— Sim. E lhe agradeço por isso, mas tampouco poderei
comparecer a este.
— Significaria muito para a Mary se você estivesse lá.
— Sim, bem…
— E para mim também. Todos juntos na residência,
como costumava ser. — Mas Rafe já não era o que costumava
ser e, por isso sentia culpa, e precisou insistir.
— Sinto muito, mas os negócios me impedirão de
comparecer.
Sebastian se limitou a assentir, e Rafe começou a
estudar as peças do mostrador. Procurava algo que fizesse
jogo com a cor que vira nos olhos de Eve ao erguer-se sobre
ela na cama, na noite anterior. A paixão acentuara o tom
violeta. Rafe queria que ela visse o mesmo que ele quando
olhava aqueles olhos. Não era próprio dele ter pensamentos
tão extravagantes. Igual ao chocolate, dar-lhe joias de
presente seria um engano, fá-la-ia pensar que ele sentia algo
por ela.
Não existia mais obrigação para cobrir todas as
necessidades dela. Não precisava lhe proporcionar
frivolidades. Deveria partir dessa loja já, antes de fazer
ridículo.
As cortinas da loja correram e um homem quase calvo,
com algumas mechas de cabelos cinzentos, apareceu
sorridente.
— Bom dia, senhor, em seguida lhe atendo. Aqui está,
Sua Graça. Acredito que a duquesa se mostrará encantada —
deixou uma caixa de veludo sobre o mostrador e a abriu para
mostrar um colar de pedras verdes intercaladas com
diamantes.
Rafe sentiu uma sacudida ao compreender que tanto ele
quanto seu irmão tiveram a ideia de comprar um colar que
fizesse conjunto com a cor de olhos de uma dama.
— O que lhe parece, Rafe? — Perguntou Sebastian. —
Acredita que Mary gostará?
— Suspeito que ela seria feliz com um colar de
margaridas trançadas.
— Atrever-me-ia a dizer, — o atendente se ergueu — que
não encontrará em toda Londres outra peça mais de seu
agrado como esta.
— Meu irmão é um cínico, senhor Cobb, não se ofenda
pelas palavras dele.
— Peço-lhe desculpas, milorde — o homem se voltou
bruscamente para Rafe. — Não sabia que…
— Não precisa se desculpar.
— Lorde Rafe, entretanto, está certo — interveio
Sebastian. — A duquesa seria feliz com as margaridas,
embora eu saiba que será mais com este colar. Acrescente-o a
minha conta, por favor. — Rafe pensou que se tivesse ainda
os dois olhos, seu irmão lhe teria piscado um.
— Sim, Sua Graça. Agora mesmo.
— Sei que um cavalheiro jamais se equivoca em dar
pérolas de presente para uma dama, — Sebastian guardou o
colar no bolso e se voltou para Rafe, sustentando-lhe o olhar.
— Mas você não comprou pérolas.
— Desta vez não, mas sim o fiz em outra ocasião.
Apresentarei a Mary suas desculpas por não comparecer ao
baile.
Se o atendente não estivesse presente, seu irmão, sem
dúvida, diria algo mais. Entretanto, saiu da loja sem
acrescentar uma palavra.
— E então, milorde? — O atendente se colocou em frente
a Rafe, — no que posso lhe servir?
— Mostre-me tudo o que você tenha com pérolas.

A noite se aproximava. Ele logo retornaria. Ao menos isso


ela pensava. Esperava.
Evelyn tinha desejado esperar no terraço, mas uma
persistente garoa a obrigara a se sentar junto à janela em seu
salãozinho, perguntando-se desde quando ela começara a
considerá-lo seu. Continuava sem acreditar que Rafe fosse lhe
dar a residência de presente. Ela esperava somente que
demorasse muito a saber. Uma parte dela temia que, depois
de tê-la tomado, fartara-se dela. Qualquer uma poderia se
deitar debaixo dele para saciar sua luxúria. Que importância
tinha que fosse ela?
Certamente não lhe importava o suficiente para ficar com
ela depois.
— Não colocou o vermelho.
Levantando da poltrona, Evelyn se voltou para a porta e
recriminou a felicidade que quase a consumiu ao vê-lo ali.
Surpreendeu-lhe quão cansado parecia, como se não tivesse
dormido. Ela se perguntou se teria surgido algum problema
no clube. O que ele fazia lá durante todo o dia? E de noite?
— Não. Pensei que, com o intuito de manter seu
interesse vivo, seria melhor que não resultasse tão previsível,
— o vestido amarelo pálido havia chegado naquela mesma
tarde e ela decidiu estreá-lo.
— A última coisa que eu pensaria de você é que é
previsível.
— Bastante mais que você. Não estava segura se você
viria.
Rafe se aproximou da lareira. Não deveria ter se
aproximado dela para beijá-la, tomá-la em seus braços…?
— Não pensava em vir até meia-noite, mas não
aguentava mais tempo longe daqui.
— Alegro-me, — Evelyn sentiu um pequeno
estremecimento de felicidade e se perguntou como Rafe
reagiria se ela lhe confessasse que sentira sua falta.
Deveria uma amante dizer tais coisas? Sua mãe fazia?
Frequentemente ela confessava a Evelyn o muito que sentia
falta do conde, mas teria dito a ele alguma vez? Sentia raiva
por não saber exatamente como deveria se comportar. Por
outra parte, Rafe nunca tivera uma mantida em sua casa e
tampouco teria muita ideia. Se estivesse equivocada, ele não
se daria conta, não? Ela só queria se importar com algo, e
suspeitava que não era assim.
— Aviso para que nos sirvam o jantar?
— Não, — respondeu Rafe com certa tensão na voz.
Estava com os nódulos brancos agarrando-se ao suporte da
lareira. — Quero tomá-la agora, antes de jantar.
Não ficara muito poético, mas tampouco ele tinha
necessidade de cortejá-la. Seu acordo não incluía nenhum
esforço para levá-la à cama.
— Sim, de acordo. Vamos a meu dormitório? — Sem
dúvida ele não estaria pensando em tomá-la ali mesmo,
diante do retrato de seu pai.
— Trouxe algo para que você coloque.
Antes de que ela pudesse perguntar algo, Rafe afundou a
mão no bolso da jaqueta e tirou uma bonita caixa lavrada em
couro. Evelyn a contemplou, perplexa. Seu pai lhe
presenteara com uma muito parecida em uma ocasião. Em
seu interior ela encontrara o colar de safiras.
— Pegue-a, — ele agitou a caixa no ar.
Com dedos trêmulos, ela obedeceu. Como se o que
estivesse dentro pudesse saltar da caixa e mordê-la, abriu-a
com supremo cuidado. No interior, sobre um leito de veludo,
havia um colar de pérolas.
— É lindo, — Evelyn sorriu.
Rafe mostrava uma expressão quase agônica, como se
temesse que ela não gostasse. Apesar de sua rudeza,
inúmeras regras e distância, aquilo lhe resultou incrivelmente
comovente.
— Isto é a única coisa que quero que use, — ele explicou.
— Esta noite.
— Precisarei de uns quinze minutos para me trocar.
— Dez.
— É um ditador.
— Se soubesse o que está custando me refrear e não a
tomar agora mesmo no chão, já teria saído por essa porta.
— Tanto me deseja?
— Estou quase louco, Eve.
Embora ela fosse muito consciente de que não era ela,
em particular, que o estava empurrando à loucura, mas sim a
ideia de ter uma mulher, sim ela achou certa satisfação no
sofrimento dele.
— Doze minutos.
Antes que Rafe pudesse protestar ela saiu correndo do
salãozinho.
Rafe se voltou e se agarrou ao suporte da lareira
enquanto contemplava o relógio. Estava ignorando suas
próprias regras, por essa mulher. Ele não vivia sob o jugo da
hora, mas passara quase todo o dia fazendo exatamente isso,
tentando determinar quando deveria retornar sem dar a
impressão de que estar longe dela havia sido um inferno. Sem
dúvida se devia unicamente ao feito de ter se deitado com ela
somente uma vez na noite anterior. Levara em conta o quão
dolorida, sem dúvida ela teria se sentido. Mas essa noite, com
sorte, Evelyn já não experimentaria nenhuma dor e assim
poderia saciar-se dela e acabar com aquela horrível
necessidade de vê-la sorrir, de aspirar sua fragrância, de
ouvir sua voz.
O colar a surpreendera. Rafe ficou muito satisfeito por
ter sido assim, que ela não esperava. Era evidente que ficara
encantada. No dia seguinte, possivelmente, traria um
bracelete em conjunto. E no outro os brincos. Depois teria
que passar aos diamantes, rubis, esmeraldas. A coleção de
joias dela rivalizaria com a da própria rainha.
Só havia transcorrido um minuto. Ele deixara de contar
o tempo no orfanato. Os minutos passavam a um ritmo
infernalmente lento. Era uma tortura. O melhor era existir,
não pensar.
— Ainda restam mil momentos daquele inferno, — contá-
los não supunha nenhum alívio.
Não os contar tampouco era melhor. O tempo começara
a deixar de ter sentido, até a noite em que ele esperara a volta
de Sebastian e Tristan. A noite mais longa de sua vida.
O ponteiro dos minutos do relógio avançou outra
posição. Já lhe dera tempo suficiente. Se não estivesse
preparada para ele, aceleraria as coisas ajudando-a ficar
preparada.
Rafe se deteve diante do dormitório onde guardava a
roupa, onde os serventes podiam atender suas necessidades.
Depois de tirar a jaqueta, jogou-a sobre uma poltrona.
Seguiram o lenço, o colete e a camisa. Depois se sentou para
tirar as botas. Na bacia havia água quente. Ele ordenara que
a levassem antes de ir em busca de Eve. Rapidamente se
lavou e pensou em barbear-se, mas, depois de esfregar o
queixo decidiu que não estava com bastante paciência para
fazê-lo. O mais seguro seria que, com a pressa, cortasse a
pele ou, pior ainda, a garganta. O melhor seria não arriscar.
Cruzou o corredor e abriu a porta do dormitório de
Evelyn sem chamar. Ao vê-la deitada na cama, a cabeça
apoiada nos travesseiros, os cabelos soltos, Rafe se deteve em
seco. A única coisa que ela colocara era o colar. Havia
esperado obstinação pela parte dela, a mesma que ela
mostrava para o vestido vermelho. Estava esperando
encontrá-la vestida com uma camisola, o queixo alto,
desafiante.
Inclusive quando seguia suas ordens, ela era imprevisível
porque ele nunca podia estar seguro de se lhe daria atenção.
Possuía um grande dom para esse jogo de amante. Se não
conhecesse sua história, teria acreditado que ela era uma
cortesã experimentada. Talvez possivelmente tivesse recebido
alguma influência de sua mãe.
Havia deixado acesa unicamente um abajur que a
submergia em sombras provocantes. Gostava da falta de
modéstia dela, que se sentisse o suficientemente confortável
com ele para não se mostrar tímida.
— Feche a porta, por favor — pediu ela.
Só então Rafe compreendeu que se deteve em seco ao vê-
la, sem soltar o trinco. Fechou a porta, tirou as calças e se
aproximou da cama. A segunda vez também deveria ser
suave. Mas não seria. Passara horas imaginando-a debaixo
dele. Morria por sentir aquela ardente e sedosa estreiteza a
seu redor.
Quando estava bastante perto, segurou o queixo dela e
se inclinou para beijá-la apaixonadamente, quase perdendo o
controle. O sabor dessa mulher o embriagava mais que o
melhor uísque escocês. Seu corpo lhe urgia a suplicar.
“toque-me”, mas não se atrevia por medo de que aquilo
desatasse a loucura em seu interior e que pudesse fazer
algum dano a ela. A última coisa que ele queria era machucá-
la, e mesmo assim sabia que já o fizera. Egoistamente,
conduzira-a por um caminho que lhe dificultaria
enormemente poder ter o marido e os filhos que desejava.
Filhos. Maldição! Comprara preservativo para se cobrir,
para assegurar-se de não lhe dar filhos fora do matrimônio e
que ela não desejava ter, mas as deixara na jaqueta. Deveria
retornar a seus aposentos, mas nesse instante não suportava
a ideia de deixá-la.
Deslizou as mãos sobre o corpo dela e lhe afastou as
coxas, sentiu o ardente calor, e compreendeu que Evelyn
aguardava espectadora o que receberia. Praticamente ele não
fizera nada, mas ela já estava preparada. Seus gemidos e
suspiros o envolveram.
Evelyn afundou as mãos nos negros cabelos e ele gemeu
ante a sensação das unhas lhe arranhando a cabeça. “Faça
com que ela pare, faça com que ela pare». Mas não o fez. Um
minuto mais. Mas não bastou. Desde quando o tempo era tão
curto? Por que um minuto lhe parecia uma eternidade
quando não estava com ela, mas corria veloz como uma
locomotiva quando estava a seu lado? Queria parar o tempo,
fazer com que durasse eternamente.
Os dedos de Eve se flexionaram, apertaram,
pressionaram…
Rafe a agarrou pelos pulsos e interrompeu o beijo.
Segurando-lhe ambas as mãos com a dele, levantou-lhe os
braços acima da cabeça e subiu à cama. Começou por
desenhar um caminho de beijos acima do colar, e depois
abaixo. Com a mão livre deslizou em sua intimidade.
Ela esteve a ponto de fechar os olhos com as
maravilhosas sensações que cresceram em seu interior, mas
isso lhe teria privado de sua visão.
Oscilando contra ela, Rafe soube o instante preciso em
que o prazer inundou Evelyn, refletindo-se em seu rosto.
Apertou as coxas e comprimiu com elas os quadris de Rafe,
que permitiu porque não podia negar. Estava muito
agradecido por aquela maneira de responder, a rapidez com
que se incorporou ao ritmo de seu emparelhamento.
Perdido na maravilha daquele corpo, cavalgou com força
sobre ela até que a ouviu gritar e arquear as costas contra ele.
E só então se deixou ir, somente então concedeu à miríade de
crescentes sensações, a liberdade para que o assaltassem,
para que se apropriassem de seu fôlego, seu cérebro, seus
pensamentos. Para que o consumissem.

Evelyn temeu ter sofrido algum dano nos pulsos. Sabia


que Rafe não fora consciente da força com a qual a segurara
durante as últimas investidas. Inundada na paixão ela
tampouco se deu conta até que se levantou da cama para se
lavar e colocar a bata de seda rosa que ele lhe dera. Rafe
colocara as calças e estava sentado na cama com as costas
contra a cabeceira e os tornozelos cruzados, enquanto
degustava um bolo de carne. A bandeja de comida descansava
entre eles sobre a cama. Ao menos ele não partiu
imediatamente. E pelo modo como a olhava, ela suspeitava
que antes de o fazer, ainda teria outra sessão de sexo.
— Eu gostei do colar, — disse Evelyn.
— Amanhã trarei outro.
Ele disse aquilo como se não tivesse nada de especial.
Não era mais que um objeto que alguém podia dar de
presente. Como se ela não fosse mais que uma mulher a
quem qualquer um podia tomar.
— Já me deu muitas coisas, não preciso que me compre
joias.
— Supõe-se que as amantes devam desejar coisas, —
Rafe parou de comer e a observou como se a visse pela
primeira vez.
— Rafe, eu não estou aqui para conseguir coisas de você.
Estou aqui porque quero.
— O quer dizer com isso?
— Eu gosto de estar aqui. Eu gosto da residência. Eu
gosto dos serventes. Inclusive eu gosto de você, por estranho
que possa parecer.
— Não lhe dei nenhum motivo para gostar, — ele evitou o
olhar dela e pegou um morango da bandeja.
— Suponho que não, — embora na realidade sim. Ele a
resgatara de Geoffrey, protegera, sempre se assegurava de
que ela tivesse tudo o que necessitava, embora o fizesse de
um modo prepotente.
Inclusive ela começava a se afeiçoar com a prepotência
dele.
— O que você faz quando não está aqui? — Perguntou
ela.
— Compro joias.
— Suponho que irá ao clube, — Evelyn revirou os olhos.
— O que faz lá?
— Coisas aborrecidas. Repasso os livros de contas,
calculo o dinheiro que entra, o dinheiro que sai, faço ajustes
para que sempre entre mais do que sai. Dito as bebidas que
precisam comprar, os jogos que devem acrescentar, os que
devem eliminar. Determino com que lordes precisam falar por
causa das dívidas.
— Falou com Geoffrey? Sei que ele possuía dívidas com
você.
— Por isso compareci naquela reunião, — Rafe assentiu.
— Ele queria me mostrar o plano para assegurar-me de que
pagaria sua dívida. Eu estava lá somente como observador,
mas então você entrou pela porta… praticamente me deixou
sem fôlego.
— Mas você apenas me concedeu uma saudação, —
Evelyn se ergueu.
— Jamais permita que alguém descubra o quanto deseja
algo. Concederá vantagem.
Ela tentou não dar mais crédito a suas palavras do que
merecia. O que ele dissera era que desejava se deitar com ela,
não que a desejava.
— Não me contou como conseguiu essa cicatriz na
perna.
— Não é uma história muito divertida.
— Não me interessa a diversão. Quero saber coisas de
você.
Rafe pegou a bandeja vazia e a levou até uma mesa. Ao
retornar junto à cama, deitou-se de costas, apoiou um braço
sob a nuca e contemplou o dossel. Deitada de lado, ela
estudou seu perfil.
— Aconteceu depois que meus irmãos retornaram à
Londres. Sebastian havia reclamado o título e retornado a
Pembrook com sua esposa depois de me pedir que vigiasse a
residência de Londres. Uma noite vi alguém rondar e enfrentei
o intruso. Antes de me dar conta de que estava armado,
recebi um disparo na perna.
— E o que aconteceu? — Evelyn necessitou alguns
segundos para compreender que o relato havia terminado.
— Perguntou-me como consegui a cicatriz — ele se
voltou para ela e a olhou. — Assim a consegui.
— Mas como escapou? O que o intruso fazia lá?
— Nosso tio o contratou, a ele e seus dois cupinchas,
para desfazer-se de nós. Saíram de entre as sombras. Dei-lhes
uma boa surra até que perderam a consciência.
— Conseguiu imobilizar os três, mesmo estando ferido?
— Eu estava furioso. Pretendiam assassinar Sebastian.
Se ele morresse, Tristan se converteria em duque. E se
matassem a ele? Então eu seria o duque. Eu não quero ser
duque.
— Opino que você seria um duque maravilhoso.
— Não tenho paciência para a vida social — Rafe soltou
um bufo. — Não tenho nada a ver com esse mundo. Ao
contrário de você… — ele se deitou de lado e deslizou uma
mão sob a seda da bata até o seio dela. — Com você tenho
muita paciência.
— Eu não diria tanto. Faz um momento as coisas
estavam muito aceleradas.
— E voltarão a ser eu suspeito — murmurou ele
justamente antes de se inclinar para beijá-la.
Rafe estava com sabor de morangos e ela não conseguiu
decidir se preferia esse sabor de frutas ou o mais embriagador
do uísque de alguns minutos atrás. O álcool parecia encaixar
melhor com esse homem. Os morangos pareciam
excessivamente inocentes para alguém como ele.
Sem interromper o beijo, ele soltou o cinto da bata e a
abriu para ter um melhor acesso a tudo o que desejava. Ao
que parecia, desejava tudo. Evelyn precisava admitir que ele
era um amante muito atencioso. Com os limitados
conhecimentos que possuía sobre o que acontecia entre um
homem e uma mulher, era muito consciente de que ele
poderia ter procurado seu próprio prazer sem proporcionar
nenhum a ela. Embora estivesse convencida de que o prazer
seria ainda maior se pudesse abraçá-lo, sentar-se sobre ele,
rolar com ele, não podia acusá-lo de não lhe dar o que podia.
Não queria que ele voltasse a lhe segurar as mãos, de
modo que se absteve de esticar os braços para tocá-lo, apesar
do difícil que resultava não tocar, não sentir o calor da pele
dele, a suavidade de seus cabelos.
Rafe se levantou da cama e ela reprimiu um protesto. É
obvio, ele precisava tirar as calças. Enquanto o fazia, Evelyn
fez o mesmo com a bata e a jogou no chão.
Ao voltar-se, viu-o de pé, em magnífico desdobramento.
O abajur refletia luzes e sombras sobre seu corpo. Ela se
ajoelhou sobre a cama e simplesmente desfrutou da visão, de
tudo aquilo que gostaria de tocar.
Com um sorriso travesso, ele lhe fez um sinal com o dedo
indicador para que se aproximasse. Com os olhos muito
abertos, ela se perguntou se ele teria lido seu pensamento, se
sabia que seus mais profundos desejos eram os de
compartilhar mais com ele.
— No que está pensando?
— Venha aqui.
Evelyn se arrastou até a beira da cama e tentou levantar.
Entretanto ele a deteve posando uma mão sobre seu ombro.
— Deite de costas e deixe as pernas penduradas pelo
lado da cama.
Ficaria totalmente exposta e, embora ele já a tivesse visto
totalmente nua, mostrar-se tal e como ele pedia a faria se
sentir vulnerável. Mesmo assim, como podia negar. Evelyn se
perguntou quando os desejos e necessidades de Rafe
começaram a ser preferenciais. Fez o que ele pediu e se deitou
de costas, o olhar fixo no dossel.
Rafe deslizou as mãos, cálidas e rugosas, por seu corpo e
lhe sustentou o olhar. Ao menos isso ele permitia.
— Não sei se você sabe que é perfeita — anunciou ele.
— Tome cuidado. Começa a falar como aquele poeta que
o aborrece.
— Está muito mais confortável comigo do que eu
esperava que estivesse.
E ela se sentia muito mais confortável com ele do que
havia esperado sentir-se. Entretanto, Evelyn estava com a
sensação de que ele não estava tão livre como ela. Se
mantivessem somente à parte física, aí não teria nenhum
problema para juntar seu corpo ao dele, mas o que ela
desejava descobrir era a alma, o que desejava encontrar era o
coração.
Ajoelhando-se no chão, Rafe lhe afastou delicadamente
as coxas e enterrou o rosto entre os suaves cachos. Ela
suspirou em êxtase. Morria de vontade de esfregar a planta
dos pés contra as costas dele. Entretanto, limitou-se a
umedecer os lábios e a esforçar-se por concentrar-se em seu
crescente prazer em lugar de no que poderia oferecer.
Ele desdobrou toda sua magia com a língua, descrevendo
círculos e acariciando-a. Era um homem muito experiente.
Deliciosas sensações a invadiram e teve que afundar as mãos
nos lençóis.
Aquilo era glorioso. Mas não conseguiu evitar perguntar
a si mesma se aquilo lhe impediria de estar com outro
homem.
Começava a compreender por que uma mulher ficava
arruinada se se deitava com um homem antes de casar.
Tendo conhecido um homem, não seria irremediável
comparar o próximo com o anterior?
Rafe lhe acariciou os seios, triplicando, quadruplicando
as sensações que a inundaram até lhe encher os olhos de
lágrimas. A sensação era deliciosa. Não deveria permitir que
fosse, mas já não podia negar a si mesma o presente que esse
homem lhe oferecia, como tampouco podia se negar a aceitar
as pérolas.
Quando pensava que já não poderia aguentar mais, seu
corpo se dobrou, antes de cair enfraquecida em muitas
sensações prazerosas que a fizeram gemer. Através dos olhos
entreabertos, observou-o ficar de pé como se fosse uma
espécie de deus que emergia do desejo, uma expressão de
determinação no rosto, as abas do nariz inflamadas, os olhos
ardentes de desejo, de desejo por ela. Segurando-lhe as coxas,
atraiu-a para si antes de afundar-se em seu interior com uma
única e forte investida.
Evelyn observava, fascinada, o balanço dos quadris, a
ondulação do estômago. De sua posição o via com muita mais
clareza. Possuía a mandíbula firme, os dentes apertados, os
cabelos caíam sobre sua fronte. Os músculos dos braços se
contraíam enquanto ajustava a postura, segurando-lhe as
pernas.
Jogando a cabeça para trás, Rafe soltou um profundo e
gutural gemido coincidindo com as últimas investidas. Estava
com o corpo coberto de uma camada de suor. Os olhos
ligeiramente fechados, os lábios entreabertos, a respiração
agitada. Embora lhe parecesse inconcebível, nunca o vira
mais formoso, em certo modo selvagem. Indômito, sem
civilização. Feroz.
Quando finalmente abriu os olhos, eles brilhavam com a
expressão vitoriosa de um conquistador. Rafe respirou fundo
antes de sair lentamente dela. Evelyn sentia as pernas fracas
e se arrastou para trás enquanto ele se deixava cair na cama
e ficava olhando fixamente o dossel, a respiração ainda
agitada. Se ele tivesse lhe permitido apoiar uma mão sobre o
forte torso, ela tinha certeza de que sentiria o pulsar
acelerado do coração, rápido e furioso.
Um dos dois deveria dizer algo. Entretanto, ela
permaneceu em silêncio, aconchegada de lado, simplesmente
observando-o, perguntando-se que tipo de reflexões invadiria
a mente dele.

Essa mulher o mataria. Era diferente de todas as


demais. Rafe tentou se convencer de que era a inocência dela,
era sua amante, porque se supunha que devia ser diferente.
Mas era ela, a essência, não a etiqueta que usasse para
fazê-la parecer menos perigosa. Era o modo como ela confiava
nele, a maneira tão singela de responder. Era sincera, pura,
inclusive nesses momentos.
Temeu chegar a sentir algo por ela. Aquele caminho só
podia conduzir ao desastre.
Voltou a cabeça e descobriu que ela adormecera. Com a
maior delicadeza possível, sem incomodá-la, agarrou os
lençóis e a tampou com cuidado. Evelyn soltou um pequeno
suspiro e se aconchegou.
Rafe experimentou uma aguda dor no peito, como se o
coração lhe tivesse deixado de pulsar. Desejava-a
desesperadamente, aconchegada contra ele, a mão apoiada
em seu peito, a respiração lhe fazendo cócegas na pele.
Que estúpido era. Precisava deter aquela fantasia. Evelyn
não era mais que uma conveniência, certamente encantadora,
mas o meio para alcançar um fim, não o fim de si mesmo. Ela
o estava estragando. Quando tivesse acabado com ela,
procuraria outra amante. Havia descoberto que gostava de ter
uma mulher à sua imediata disposição continuamente.
Quando a necessidade o assaltava, ela estaria ali.
O problema, ao menos com ela, era que essa necessidade
parecia surgir cada vez com maior frequência. Não passava
tanto tempo no clube como seria necessário. Jurou a si
mesmo que no dia seguinte não retornaria à residência antes
da meia-noite.
Recuperaria o controle de si mesmo, da situação.
Capítulo 15

Se alguém a visse, pensaria que estava louca. E por isso


Evelyn saiu da residência no meio da noite sem avisar
ninguém, além da sua donzela, que a ajudara a se vestir. As
luzes do jardim estavam apagadas de modo que unicamente a
lua a guiava para o muro mais longínquo. Rafe partira aquela
tarde, comunicando-lhe que retornaria tarde, por isso não o
esperava até passada a meia-noite.
As noites costumavam ser os momentos mais solitários.
Durante o dia havia ruído de carruagens, de cascos dos
cavalos. Ouvia-se a conversa das pessoas que passavam pela
rua, dos meninos que corriam e riam. Tantos sons
maravilhosos. As carruagens permaneciam detidas em fila na
rua. Pouco antes, ela observara pela janela de um dos
aposentos da planta superior e os vira chegar, detendo-se à
entrada da residência contígua. Estavam celebrando um
baile.
Só conseguiu ver fugazmente algumas pessoas, vestidas
com seus melhores ornamentos. Estavam muito longe para
poder captar algum detalhe. Resignada, afastou-se da janela.
Ela jamais compareceria a um evento daquele tipo. Jamais
receberia um convite. Jamais seria bem recebida nos lares
decentes.
Sempre seria uma marginalizada, por mais posses que
obtivesse, aquilo não mudaria as circunstâncias de seu
nascimento, que continuariam desdobrando uma negra
sombra sobre cada aspecto de sua vida.
Tanta suscetibilidade ameaçava apropriar-se dela, e
Evelyn havia retornado a seus aposentos e chamado Lilás.
Uma hora depois, escondida entre as sombras do jardim,
escutava a música que surgia da residência de seus vizinhos.
Imaginou que as portas do terraço estariam abertas,
permitindo que o ar refrescasse os convidados enquanto
dançavam sobre o piso polido. Teve tentação de ir em busca
de uma escada, apoiá-la contra o muro e espiar à propriedade
dos vizinhos, mas já não era uma menina e sabia o quão
descortês e invasivo resultava espiar através dos buracos da
cerca. De modo que se limitou a escutar e a imaginar.
Ouvia pessoas falando, sussurros e murmúrios que se
mesclavam com suaves suspiros. Sem dúvida apaixonados
indo a um encontro. Os apaixonados eram aceitáveis,
mantidas não. Não parecia justo, mas em assuntos do
coração sempre se faziam concessões. A música se deteve.
Evelyn pensou imediatamente que possivelmente poderia
contratar uma orquestra para que tocasse para Rafe e ela
alguma noite. A ele parecia não ter importância no que ela
gastaria seu dinheiro. Sua única preocupação era o que
acontecia no dormitório.
De novo chegaram a seus ouvidos as notas de uma
valsa. Balançando-se ao som da música, ela elevou os braços,
tal e como fora instruída por seu professor de baile,
descansou uma mão sobre o ombro de um imaginário
cavalheiro e o imaginou posando a mão em sua cintura,
apertando-a ligeiramente, compartilhando o segredo de algo
íntimo que existia entre ambos. O cavalheiro tomou a outra
mão e começou a guiá-la em círculos pelo jardim, o olhar fixo
nela, porque estava muito enfeitiçado por sua beleza para
olhar para outro lado.
Evelyn se inclinou para um lado, girou e, de repente, o
imaginário cavalheiro tomou forma, quando uma forte mão
pousou em sua cintura e outra mão, mais cálida, tomou a
dela. Rafe. Sem perder um passo, conduziu-a pela grama em
perfeita sincronia com a música. Ela não se lembrava de ter
posado uma mão sobre o ombro dele. Certamente fora ele
quem deslizou na posição. Sustentando o olhar, ela sorriu
com doçura.
— Não o esperava até a meia-noite.
— Não estava pensando em retornar até depois da meia-
noite.
— E, entretanto, aqui está.
— Aqui estou.
— Deve pensar que sou uma boba dançando aqui no
jardim.
— O que penso é que está linda dançando no jardim,
iluminada unicamente pela luz da lua, — a voz de Rafe era
grave e sedutora. Cheirava a tabaco e uísque. — Colocou o
vermelho.
— Esperava que você não se desse conta.
— Você gosta.
— Eu adoro. Maldito seja. Você já sabia que eu o usaria.
— Eu esperava por isso, — Rafe sorriu, os brancos
dentes perolados, lançando brilhos sob a lua. — Fica muito
bem, tal e como pensei.
A música se deteve e em seguida começou a próxima,
uma rápida, embora eles continuaram com a valsa. Era muito
próprio dele, decidido a não se conformar, mas a fazer o que
gostava, e era evidente que ele preferia dançar a valsa.
— Nunca dancei com um cavalheiro.
— Não está dançando com um cavalheiro.
Mas sim ele era. Rafe via a si mesmo como um rufião,
um canalha. E, entretanto, o tecido de seu caráter estava
costurado com fios de bondade.
— Nenhuma vez eu compareci a um baile, — informou
ela. — Os vizinhos celebram muitos?
— É o primeiro deles em Londres.
— Parecem ter convidado muita gente.
— Porque despertam curiosidade.
— Quem são eles?
— Você gostaria que fôssemos? — Ele se limitou a
sacudir a cabeça e a olhá-la com atenção.
Ao dormitório. Ali era onde ela passaria as horas. E, se
bem que era uma delícia quando ele estava junto a ela, em
ocasiões ela desejava mais.
— Um momento mais antes de entrar.
— Referia-me ao baile. Você gostaria de fazer uma
aparição?
— O que você está pensando? — Evelyn sentiu um
estremecimento de antecipação antes que a realidade se
estrelasse contra ela. — Subir o muro? Não pode aparecer
sem mais. Precisa de um convite.
— Tenho um convite.
Evelyn esteve a ponto de tropeçar e cair ao chão. Rafe a
agarrou com mais força para segurá-la. É obvio que o haviam
convidado. Era um lorde. Um lorde solteiro. Todas as mães
estariam atrás dele, procurando emparelhá-lo com suas
respeitáveis filhas. Desviou sua atenção ao muro, pensando
no luxo que havia do outro lado. Um mundo ao qual apenas
lhe era permitido lançar uma olhada. Afastando-se de Rafe,
entrou nas sombras. Tantas vezes ela sonhara em comparecer
a um baile, mas o preço a pagar naquele momento…
— Eu não seria bem recebida — ela finalmente sacudiu a
cabeça.
— Seria. Do contrário teriam que se ver com minha ira,
— ele lhe acariciou a nuca e continuou pelo braço nu. — Evie,
se quiser ir, eu a levarei.
Ela se voltou, sentindo a carícia lhe chegar até o pescoço.
— As pessoas saberão que sou sua amante.
— Quando vai aprender que eles não têm nenhuma
importância? Nenhum deles. Além disso, tampouco será
anunciada como tal. Será anunciada como a senhorita Evelyn
Chambers. Que eu a acompanhe pode ser que faça se elevar
algumas fofocas, dada minha reputação, não pela sua. Os
cavalheiros que estiveram na casa de Wortham não dirão
nenhuma palavra. Não é provável que admitam não terem
conseguido o troféu.
Evelyn decidiu que, se ganharia má fama, faria com que
Geoffrey lamentasse o tratamento que lhe dispensara, essa
noite era tão boa quanto qualquer outra para começar.
—Sim, de acordo. Vamos.
— O vermelho é para mim, — Rafe roçou a borda do
decote. — Sugiro que vista o arroxeado. — Era exatamente o
que ela planejara fazer. O vermelho era espetacular, mas
incrivelmente escandaloso com o pronunciado decote.
— Não demorarei muito.
— Tome todo o tempo que precisar. Sei através de bom
contato que este baile vai durar uma eternidade.
Ou ao menos para ele pareceria eterno, murmurou Rafe
enquanto seu ajudante de câmara ajudava o melhor que
podia para vesti-lo. Foi Rafe quem grampeou o colete de
brocado de seda azul, pois requeria uma destreza que
superava as habilidades de Bateman. Quando terminou
colocou o fraque que seu lacaio segurava ao alto.
— Não me recordo quando foi a última vez que ficou tão
elegante — observou Bateman, enquanto tirava uma penugem
da casaca.
E Rafe desejou não a usar. Não sabia o que dera nele
para oferecer a Eve levá-la naquele maldito baile.
Não planejara retornar à residência até muito mais
tarde, mas não levava mais de uma hora no clube quando
começara a pensar nela, perguntando-se o que ela estaria
fazendo. Ele a encontrara no jardim dançando uma valsa.
Sozinha. Nem sequer se recordava ter atravessado o jardim.
De repente a tinha em seus braços e se moviam ao ritmo da
música.
A mão lhe roçava o ombro com tal ligeireza que apenas a
sentia, e por isso ele fora capaz de suportá-la. Sem lhe
importar as consequências, quase esteve a ponto de pedir que
ela o abraçasse com mais força, que fechasse a mão sobre seu
ombro. Seria diferente com ela? Seria com qualquer mulher?
Não sabia. Pouco lhe importava. Não se arriscaria.
Porque havia muitas coisas que não podia compartilhar
com ela, ele decidira conceder-lhe esse baile.

Evelyn permanecera frequentemente escondida no alto


das escadas e observara como a condessa, vestida com seus
melhores ornamentos, descia ao vestíbulo onde o conde
Wortham a esperava. Seu pai sempre lhe parecera mais
atraente quando ia acompanhado de sua condessa a caminho
de um baile ou do teatro. Mas Rafe deixava a seu pai em um
lugar muito ruim. Quando se vestia com trajes formais estava
espetacularmente atraente. Suspeitava que as damas
brigariam para dançar com ele. Um golpe de ciúmes invadiu
sua mente. Aquelas damas seriam apropriadas para casar
com ele e, quando o fizesse, sem dúvida prescindiria dela. Em
caso contrário, seria ela quem partiria, apesar de todas as
coisas às quais teria que renunciar. Jamais o compartilharia
com outra que lhe esquentasse a cama. Quase esteve a ponto
de lhe dizer que mudara de ideia sobre comparecer ao baile.
Quase. Mas levava muito tempo sonhando viver um momento
assim para renunciar.
Além disso, possivelmente não voltaria a ter outra
oportunidade.
Ainda não adquirira má fama, mas, assim que a tivesse,
as portas que nunca lhe foram abertas estariam fechadas
para ela.
Sempre imaginara a expressão de prazer de seu marido
ao vê-la descer as escadas para se reunir com ele, mas Rafe
não era seu marido, e permanecia no vestíbulo olhando-a com
uma expressão que não revelava nada, limitando-se a
contemplá-la com os olhos entreabertos.
Quem dera ela soubesse esconder seus sentimentos
assim, pois suspeitava que naquele momento, ao vê-lo, seus
olhos deviam brilhar. Inclusive vestido com trajes formais e
com os cabelos perfeitamente penteados, mostrava um
aspecto sombrio e perigoso, de alguém com quem ninguém
quereria cruzar a noite. Os largos ombros enchiam a jaqueta,
as calças negras abraçavam as robustas pernas. Ele colocou
as luvas brancas. As dela chegavam até o cotovelo e
encaixavam tão justas que sem dúvida teria os dedos
intumescidos ao acabar a noite. Mas não se importava. Ela
compareceria a um evento formal.
No momento em que ela pousou seu pé sobre o chão de
mármore do vestíbulo, Rafe pegou a cartola que Laurence lhe
oferecia e a ajustou sobre a cabeça antes de lhe oferecer seu
braço. Tivera aquele gesto com ela em uma ocasião, na noite
que caminharam pela St. Giles e ela havia suposto que o fazia
para protegê-la. Ele pensava que ela necessitava de seu
amparo naqueles momentos? Sorriu resplandecente e apoiou
uma mão sobre o braço de Rafe.
— Não consigo acreditar que eu vou comparecer a um
baile, — exclamou entusiasmada.
— Espero que o ache mortalmente aborrecido —
respondeu ele com humor.
— Nada do que você diga me desiludirá.
Laurence abriu a porta e saíram à noite. Evelyn se
surpreendeu ao ver uma carruagem os esperando.
— Não está tão longe para não podermos caminhar.
— Está o bastante longe.
Um lacaio abriu a porta e Rafe a ajudou a subir. Ela se
sentou. Sem dúvida ir caminhando faria que lhe sujassem os
sapatos e a bainha do vestido, mas na carruagem teria que
suportar a larga fila de convidados que continuavam se
aproximando da casa. Temia que, se tivesse muito tempo para
pensar, perderia a coragem.
Rafe se sentou em frente a ela, inundando tudo com seu
masculino aroma a tabaco, sândalo e bergamota.
— Você comparece a muitas festas? — Perguntou ela.
— Suficientes para saber que eu não gosto.
— Então, por que vamos a esta?
— Porque você não deveria estar dançando em um
jardim, deveria dançar em um salão de baile. — Nenhuma
outra coisa que ele pudesse lhe ter dito a teria agradado mais.
— Tem certeza de que não se importarão que você leve
uma acompanhante?
— Querida, eles estarão tão assombrados diante da
minha presença que seria o mesmo se eu fosse nu.
— Eu diria que diante disso, sim, eles protestariam, —
Evelyn riu.
— Possivelmente eu tenha exagerado um pouco, — ele
inclinou a cabeça. — Você está linda.
— Você também, — ela levou uma mão às pérolas que
ele lhe dera. Rafe soltou uma gargalhada que reverberou a
seu redor.
— Falo sério, — protestou ela ante a aparente
incredulidade. — Certamente é o homem mais atraente que
eu já vi. Já me pareceu isso aquela primeira noite em que nos
conhecemos. Não fazia mais que lhe lançar olhadas furtivas
enquanto você conversava com os outros cavalheiros — ela
entrelaçou os dedos de suas mãos com força, esperando que a
dor lhe impedisse de seguir dizendo idiotices. — Não sei por
que lhe contei isso. Suponho que estou nervosa.
— Asseguro que você não tem nenhum motivo para estar
nervosa, mas devo advertir que nosso anfitrião não é tão
atraente. Foi gravemente ferido durante a guerra. Tem o rosto
coberto de cicatrizes. A primeira vez que alguém olhar, pode
resultar desconcertante.
— Então ele é um soldado, não um lorde — ela sentiu
certo alívio. Não teria que conversar com a alta sociedade.
Mas e ele? Só estava de visita?
— É um duque.
— Possivelmente deveríamos pensar melhor, — Evelyn
sentiu um nó no estômago.
— Nunca a tomei por uma covarde.
— Não tenho medo, mas não quero provocar um
escândalo. Disse que era o primeiro baile que ofereciam. Não
quero arruinar a festa deles.
— Não o fará.
A carruagem se deteve. A porta se abriu e Rafe desceu de
um salto, oferecendo-lhe uma mão. Depois de respirar fundo
para se acalmar, ela aceitou a mão e sentiu como os dedos se
fechavam em torno dela, fortes e decididos. Aliviada, observou
como os serventes trabalhavam em excesso para atender os
convidados à medida que chegavam à festa. Ela temia que
todo mundo já se encontrasse ali, que eles fossem os últimos,
mas supôs que as pessoas chegariam e partiriam ao longo de
toda a noite. A residência era tão grande quanto a de Rafe,
possivelmente inclusive mais.
— Eles possuem um filho, — observou ela enquanto
subiam os degraus. — Às vezes o ouço jogar no jardim.
— Só tem dois anos. Sem dúvida estará na cama.
— Parece conhecê-los muito bem.
— Nem tanto.
Entraram pela porta e Rafe entregou o chapéu a um
servente enquanto ela olhava emocionada a seu redor. A
residência era impressionante. As paredes estavam adornadas
com retratos familiares. Algo neles lhe resultou familiar. Os
olhos, ela supôs. Todos os homens dos retratos possuíam os
olhos de um tom azul muito claro.
Mas, antes de poder pensar mais nisso, Rafe a conduziu
por um corredor onde muitos casais aguardavam em fila.
Olharam-no, mas não disseram nada e ela se perguntou se
saberiam quem ele era.
— Acredita que Geoffrey estará aqui? — Ela sussurrou.
— Duvido. Quando eu parti do clube, ele estava preso
jogando cartas.
Evelyn se alegrou ao ouvi-lo. Sem dúvida teria criado
algum problema, embora suspeitasse que Rafe o teria
apanhado imediatamente. Sentiu falta de alguns pentes de
pérolas para prender o cabelo, mas não queria gastar mais
dinheiro de Rafe, endividar-se mais com ele.
Entraram em um ambiente e ela praticamente ficou sem
fôlego. Era tal e como ela imaginara. Escadas desciam até um
enorme salão. Nos tetos estavam pendurados lustres cheios
de velas acesas. Uma parede de espelho refletia os convidados
que iam de um lugar a outro. A fragrância das abundantes
flores enchia o local de um aroma embriagador. O teto era tão
alto que havia espaço suficiente para um balcão onde tocava
a orquestra. No lado oposto aonde eles se encontravam, uma
porta se abria para o terraço.
Inclinando-se, Rafe sussurrou algo ao ouvido do servente
de libré que estava de pé na entrada. Depois apoiou uma mão
sobre a que Evelyn continuava mantendo sobre seu braço.
— Senhorita Evelyn Chambers, — anunciou o homem
com uma voz ensurdecedora que quase paralisou o coração
da jovem. — E lorde Rafe Easton.
Não lhe surpreendeu que estivesse ali na qualidade de
lorde, mas sim lhe resultou desconcertante ouvi-lo anunciar
em voz alta. Resultava tão fácil esquecer que ele pertencia a
esse mundo, enquanto ela sempre caminhara no fio. Aos pés
da escada, um casal se voltou de repente e Eve viu o rosto
destroçado do duque. Apesar da advertência de Rafe, ela não
estava preparada para ver os farrapos de pele grossa,
parecidos com a cera derretida, que rodeavam o emplastro
negro do olho e desciam até a mandíbula daquele homem. Em
contraste, a mulher que estava ao lado dele era pura
perfeição, com seus flamejantes olhos verdes e cabelos
vermelhos. A mulher sorriu com doçura para o casal recém
anunciado.
À medida que se aproximavam, Evelyn se deu conta de
que o único olho do anfitrião era do mesmo tom que o de
Rafe, de um azul que recordava o gelo sobre um lago azul.
Precisou fazer provisão de todas suas forças para manter a
boca fechada, para não parecer perplexa. Não queria que o
duque pensasse que era seu rosto o que a havia
escandalizado e sim, não saber que estava a ponto de
conhecer outro irmão de Rafe. Tinha certeza. Se ela fizesse
caso omisso das cicatrizes, ele se parecia muitíssimo com o
homem que ela conhecera no parque. Sentiu o impulso de
soltar um murro contra o braço do Rafe. Por que ele não
dissera?
— Excelências, — depois que eles pararam em frente ao
casal, Evelyn fez uma profunda reverência.
O duque se limitou a observá-la, certamente vendo mais
com seu único olho do que a maioria das pessoas com dois.
— Senhorita Chambers, é um prazer, — saudou a
duquesa. — E você… — ela golpeou o ombro de Rafe com o
leque, — foi mal por não nos dizer que viria.
— Não estava seguro de dispor de tempo.
— Mas então ele me pegou dançando no jardim…
— Em nosso jardim? — Interrompeu-a o duque.
— Não, em seu jardim, — surpreendida pela brutalidade
na voz do homem, Evelyn sacudiu a cabeça, — do outro lado
do muro.
— Vive naquela monstruosidade do outro lado do muro?
— O duque olhou furioso para seu irmão.
— Não. A senhorita Chambers vive ali. Eu vivo nos
aposentos do clube. E agora, se nos desculpar, ouço que
começou uma valsa. E eu prometi uma dança a esta dama.
Antes que alguém pudesse responder, ele a puxou pelo
braço e a empurrou para a pista de dança.
— Isso foi muito descortês, — murmurou ela.
— Não viemos aqui para falar. Viemos para dançar.
— Por que não me esclareceu a que festa íamos
comparecer?
— E o que importa? Você queria comparecer a um baile,
e já o fez. Uma dança e vamos. Aproveite querida.
Entre a multidão de casais que dançavam, Rafe a tomou
em seus braços e começou a deslizar pelo piso. Ela queria
continuar magoada, mas decidiu adiar o assunto até mais
tarde. Não entendia a relação daquele homem com seus
irmãos, como se não tivesse irmãos. Mas, naquele momento,
ela estava em um salão de baile, dançando com um atraente
cavalheiro. Não permitiria que a noite fosse arruinada.
— Por que não os deixou saber que vive junto a eles? —
Bom, possivelmente sim terminaria arruinando-a.
— Nunca surgiu em nossas conversas.
— Você deve ser o homem mais desesperador…
— Um homem que a trouxe para um evento que ele odeia
para que você possa se divertir.
— De verdade que odeia? — Perguntou ela quase sem
fôlego.
— Só porque recorda as minhas raízes, raízes que foram
arrancadas faz muito tempo.
— Mas as raízes sempre retornam a sua origem, não? À
terra.
— Minha pequena filósofa, não vê que eles se sentem tão
desconfortáveis comigo como eu com eles? Muitos destes
cavalheiros frequentam meu clube. Devem-me muito
dinheiro. Alguns inclusive se divertem com minhas garotas.
Conheço suas intimidades mais inconfessáveis.
— Quais destes cavalheiros?
— Quer destruir minha fama de discreto? — Rafe sorriu
com gesto zombador.
A música se deteve e Evelyn se sentiu sobressaltada por
um profundo desânimo, pois estavam a ponto de partir.
Supôs que deveria se sentir agradecida pelo tempo que havia
desfrutado. Entretanto, Rafe não a acompanhou para fora da
pista de baile e, quando a orquestra iniciou outra valsa,
começou a dançar de novo. Ela sorriu agradecida. Apesar de
todas as suas queixas, ele não a devolveria à residência tão
rapidamente como havia afirmado. Ele lhe concederia aquela
noite até que ela se fartasse. Estava segura.
— Madame Charmaine me disse que seus irmãos e você
estão somente a três anos em Londres. Mas sem dúvida o
clube lhe pertence há mais tempo.
— Converti-me em seu proprietário aos dezessete anos,
mas utilizava o nome de Rafe Weston.
— Muito engenhoso, mas ninguém o reconheceu?
— Eu estava com dez anos quando… desaparecemos, tal
como disse tão pomposamente. Ninguém nos procurou.
Ninguém tentou nos encontrar. O rumor mais popular era o
de que havíamos sido devorados pelos lobos. Lobos, Evie. Um
possivelmente, mas os três? Os outros dois não teriam ficado
olhando, não teriam feito girar os polegares enquanto
esperavam ser devorados. Mesmo assim, as pessoas
acreditaram.
Rafe soava muito ofendido, e Evelyn supôs que ele teria
motivos para estar.
— Mas sem dúvida, quando retornaram, alegraram-se
em vê-los.
— Não tanto quanto você pensa. Nosso tio comprara
amizades. Não éramos muito refinados, mas, sobretudo eu,
eu não cresci neste ambiente. Sinto-me muito mais
confortável passeando por St. Giles. — Aquilo para Evelyn
pareceu muito triste. Rafe deveria se sentir desconfortável ali.
Decidiu não lhe pedir que ficassem mais tempo quando
acabasse a segunda dança. Ela precisaria apressar os últimos
minutos. Um mês atrás, uma semana, teria observado a seu
redor, notando os formosos vestidos e os elegantes
cavalheiros. Teria prestado atenção aos penteados e as joias.
Teria contemplado à orquestra enquanto tocava, e as chamas
que cintilavam nos candelabros. Mas seu único objeto de
atenção nesse momento era Rafe, os olhos azuis gelo fixos
nela, a mandíbula firme. Como desejava que esses lábios
desenhassem um sorriso! O peso de sua mão sobre a cintura.
A delicadeza com a qual lhe segurava a mão. A sensação da
palma dela curvada em torno do forte ombro. O calor em seu
olhar. A promessa de que a noite terminaria na cama. Ela
nunca desejara ter se convertido em uma mantida, mas
reconhecia que desejava estar com ele.
Quando a música acabou, soube que sempre recordaria
as últimas notas, e o presente que ele lhe dera, ao permiti-la
comparecesse a um baile.
— Acredito que é hora de ir.
Rafe a olhou com atenção antes de assentir. E de repente
fez algo que jamais fizera, entrelaçou os dedos da mão com os
dela. O pequeno gesto resultava quase tão íntimo quanto
deitar com ele. Abriram caminho entre os convidados até o
extremo do salão. A mão se fechou com mais força quando
lorde Tristan, com lady Anne a seu lado, atrapalhou o
caminho.
— Disseram-me que você estava aqui, — lorde Tristan
sorriu jovial. — Gostaria de tomar uma taça comigo na
biblioteca?
— Já vamos embora.
— Tão cedo? — Perguntou lady Anne com evidente
decepção. — Pensei que poderíamos conversar um momento.
Temos tanto em comum…
— Não estou muito segura de que seja assim, — Evelyn
não sabia o que responder.
— Ambas caminhamos de braços dado com um lorde de
Pembrook. Parece-me tremendamente estimulante.
Deveríamos falar disso. Não se importa, não é verdade, Rafe?
— Uma taça, — insistiu Tristan. — Somente por cortesia.
— Não sou conhecido precisamente por minha cortesia.
— Não seja teimoso. Pedimos somente cinco minutos.
Evelyn não queria intervir. Tratava-se de um assunto
entre irmãos, mas tampouco desejava que uma deliciosa noite
fosse arruinada somente porque ela recebera o presente de
poder dançar.
Apertou a mão de Rafe, que a olhou e sorriu.
— Estarei bem com lady Anne se desejar se reunir com
eles.
— Não desejo, — ele suspirou ruidosamente, — mas
suponho que alguns minutos de atraso não farão mal algum,
— ele lhe soltou a mão. — Não demorarei.
Ela o contemplou partir com seu irmão. Ambos eram
espetaculares, a ampla passada, os largos ombros, cabelos
escuros, quase negros, brilhando sob a luz das velas. As
pessoas se voltavam com a passagem deles.
— Chamam a atenção aonde vão, — observou lady Anne.
— Sim, ouvi dizer que despertam muita curiosidade.
— Sim, isso também, mas sobretudo são diabolicamente
atraentes e caminham com muita confiança. São capazes de
intimidar a mais de um.
Aquilo era evidente.
— Gostaria de me acompanhar ao terraço para tomar um
pouco de ar? — propôs lady Anne.
Evelyn se surpreendeu com o convite. Era evidente que
lady Anne não havia captado plenamente o papel que ela
desempenhava na vida de Rafe.
— É muito amável, mas…
— Nem se atreva a recusar, — a esposa de Tristan pegou
Evelyn pelo braço e se encaminhou para as portas abertas. —
Eu sei muito bem o que é despertar a curiosidade de outros.
Guardei luto por meu falecido noivo durante dois anos.
Quando finalmente retornei à vida social, todo mundo
analisava meu comportamento. Resultava bastante irritante.
Em minha opinião, tendemos a julgar muito os outros.
Saíram ao exterior e se dirigiram para o corrimão que
bordeava o terraço. Daquela posição, Evelyn via o telhado da
residência de Rafe. Com o muro de tijolos, as árvores e a
vegetação, era impossível ver o jardim do lado de lá e as casas
estavam construídas sobre um bonito terreno que separava
grandemente uma da outra.
— Não posso acreditar que aquela seja a propriedade de
Rafe — observou lady Anne. — Não sabíamos.
— Eu vivo ali. Você não deveria cercar amizade comigo.
— Por que não? Porque é amante dele? Nenhum de nós é
totalmente puro. Você se sentiria mais confortável se
soubesse que lorde Tristan e eu fomos amantes antes de nos
casar?
Evelyn foi consciente de que seus olhos se abriram
desmesuradamente. Por sorte, conseguiu evitar que a
mandíbula caísse até o chão.
— Só lhe conto isso, — continuou lady Anne, — porque
me dei conta do que você significa para ele. Fui bastante
descortês para observá-los enquanto dançavam. Ele não tirou
o olhar de você nem um segundo. Acredito que sente algo por
você, e por isso quero que você se sinta confortável conosco.
— Não estou muito segura de entender do que me está
falando, — Evelyn piscou perplexa.
— Rafe é um solitário. E você está aqui. Com ele.
— Não é o que você acredita, — assegurou ela. Não
queria se arriscar a pensar que poderia haver algo mais,
porque sabia que poderia romper o coração muito facilmente.
— Então me perdoe. Sou uma romântica. Oh, e olhe,
Mary vem até nós. Ela é quem melhor conhece os lordes de
Pembrook. Foi criada com eles.
— Mas já não são os moços que conheci, — comentou a
duquesa depois de se unir às outras duas mulheres. —
Entretanto, alegro-me muitíssimo de que Rafe esteja aqui
nesta noite, — ela sorriu. — Suspeito que você seja a
responsável por isso.
— Eu queria somente dançar.
— Bom, pois talvez consiga outra dança antes de ir.
Sebastian não deveria segurá-lo por muito tempo, mas, já que
faz tempo que Rafe não vinha à mansão, estando seu irmão
aqui, não desperdiçará a oportunidade de falar com ele.
— Soube que foram separados de meninos.
— Não tiveram escolha.
E Mary começou a contar a história.

— Quanto tempo você já está vivendo ali? — Perguntou


Sebastian. Encontravam-se na biblioteca. Ele, sentado na
borda da escrivaninha, Tristan, reclinado em uma poltrona e
Rafe apoiado contra a lareira. Cada um com uma taça de
uísque na mão.
— Três anos mais dos que você leva vivendo aqui — Rafe
encolheu os ombros. — Conseguia vigiar nosso tio.
— Por que não nos disse isso? Todo mundo está
convencido de que lorde Loudon vive ali, embora, eu soubesse
que faz anos que ele não vem à cidade.
— Não queria que nosso tio soubesse que eu estava aqui,
de maneira que Loudon e eu dirigimos a transação de
maneira muito discreta. Eu lhe pago uma quantidade anual
para que continue parecendo que ele é o proprietário. O fato
de que não venha à cidade significa que ninguém vá visitá-lo,
de modo que o segredo se manteve a salvo, — embora ele
supunha que poderia ter economizado a anuidade desse
homem.
— Mas poderia ter nos contado, — insistiu Sebastian.
— Como eu disse, normalmente fico no clube. Não é mais
que uma propriedade. Além disso, não acredito que minhas
propriedades sejam assunto seu, — tampouco havia desejado
que Sebastian aparecesse ou interferisse com sua vida, e
temia que ele faria se soubesse o perto que estavam suas
respectivas residências. Além disso, preferia que ninguém,
nem sequer seus irmãos, soubessem nada dele.
— Quanto vale sua fortuna? — Perguntou Tristan.
— É muito maior que a sua, eu me atreveria a assegurar.
— E essa mulher que trouxe esta noite… — refletiu o
duque.
— A senhorita Chambers.
— É sua amante?
— Fala como se desaprovasse. Considerando o escândalo
que deu pé a seu matrimônio, eu reconsideraria o tom.
— Não o estou censurando. Simplesmente tento
compreender — Sebastian remexeu os cabelos. O tapa olho
torceu e, franzindo o cenho, ele o endireitou.
Rafe não havia considerado o fato de que, depois de
tanto tempo, seu irmão continuava sem se acostumar às
mudanças que a guerra havia provocado nele.
— Por que mantém distância? Para que tanto segredo? É
nosso irmão. Pode ser que não estivéssemos ao seu lado
durante doze anos, mas podemos estar agora.
— Agora já não preciso de vocês.
— A família sempre é necessária, — murmurou Tristan
com o olhar fixo no copo.
— Não tome como algo pessoal, mas estive sozinho…
— Todos nós estávamos sozinhos.
— Não como eu. Sebastian tinha seus companheiros do
Exército, você, a tripulação do navio...— “eu não tinha
ninguém. Estava completa, absolutamente, sozinho”. — Não
quero falar disso.
— Quero saber como era sua vida, o que aconteceu
durante o tempo que não estivemos aqui, — insistiu
Sebastian.
— Não, Sebastian — Rafe sacudiu a cabeça, — você não
quer saber.
— Tenho lido coisas inquietantes no periódico sobre
alguns orfanatos e as condições nas quais estão, — Sebastian
apurou a taça. — Eles lhe batiam?
— O que importa isso?
— Ou seja, sim o fizeram.
— Saber disto o faz se sentir melhor? — Rafe suspirou.
— Ao menos os castigos não me deixaram cicatrizes. Tristan
não pode dizer o mesmo.
— Não teria deixado você lá se eu soubesse o que
acontecia naqueles muros. Pensei que seria um lugar onde
cuidavam dos órfãos e meninos abandonados. Não pensei que
os maltratassem.
Rafe nunca quisera que seus irmãos soubessem o que
ele havia sofrido. Fazia-o se sentir fraco por não ter
conseguido se defender, que a herança da qual se sentira tão
malditamente orgulhoso não lhe tivesse servido de nada nos
limites do orfanato. A única coisa que ele conseguira foi piorar
tudo porque ninguém acreditava. Ridicularizavam-no e
pioravam seu castigo. Todos contribuíram para reforçar suas
suspeitas sobre o motivo de seus irmãos para deixá-lo para
trás: ele não era suficientemente bom, incapaz de servir de
ajuda na fuga. Era uma carga, incapaz de suportar seu
próprio peso.
— Sinceramente não vejo nenhum sentido de continuar
falando disso. Servirá somente para tirar a luz o que está bem
enterrado.
Sebastian o contemplou atentamente durante um
momento enquanto Tristan seguia com o olhar fixo no
conteúdo de sua taça.
— Como quiser, — assentiu finalmente o duque. — Não
falaremos do passado. Mas sim podemos seguir adiante.
Quero que meu filho lhe conheça, que conheça seus dois tios,
que compreenda que o que vai herdar o fará somente porque
Tristan e você estiveram dispostos a combater junto a mim
por nossos direitos de nascimento. Precisa conhecer
plenamente o legado que lhe será transpassado.
“Não, não precisa, ao menos meu legado não”, ele esteve
a ponto de responder.
— Quando eu parti, — “escapei” — do orfanato e abri
caminho em Londres, não respeitei as leis todo o tempo.
— E você acredita que tudo o que eu fiz foi legal? —
Perguntou Tristan. — Eu não servia precisamente na marinha
de Sua Majestade. Estava em um navio capitaneado por um
homem que pensava que as leis só existiam em terra firme, e
só se ele estivesse com ânimo de cumpri-las. Em seu navio
era o imperador. Nem sempre obtínhamos nossos espólios de
maneira honrada.
— E quando você se converteu no capitão de seu próprio
navio?
— Um navio que ganhei jogando às cartas, — Tristan fez
girar o líquido na taça. — Para falar a verdade, fiz armadilhas
para consegui-lo. Estava desesperado por possuí-lo, por ter o
comando. O que quero dizer é que todos fizemos coisas com
as quais vamos ter que conviver, mas ao menos estamos aqui
para viver com elas. Por um lado, alegro-me. Inclusive discutir
com você é melhor que não o ter aqui.
— Ele sempre fala tanto? — Rafe se voltou para
Sebastian.
— Temo que sim, mas de vez em quando diz algo que
vale a pena ser escutado.
— Eu não precisaria levar todo o peso da conversa se
você não fosse tão melancólico. São os horrores da guerra, —
acrescentou Tristan a modo de explicação para Rafe. — O que
não se poderá dizer é que nossas vidas tenham sido
aborrecidas. Possivelmente deveríamos considerar inclusive
que o tio nos fez um favor.
— Não! — Rugiram Sebastian e Rafe ao uníssono. —
Jamais.
Tristan pareceu muito contente consigo mesmo, como se
acabasse de demonstrar que, apesar de suas diferenças,
possuíam coisas em comum.
— Vai nos acompanhar na sexta-feira no iate.
— Pensarei, — respondeu Rafe a contra gosto.
— Bom, parece que temos progredido — Tristan apurou
a taça e se levantou. — Agora, se me desculparem,
cavalheiros, preciso dançar com minha esposa.
— Eu também deveria ir — Rafe o olhou sair da
habitação antes de deixar seu copo sobre o suporte da lareira.
— Não é tão insensível quanto parece — observou
Sebastian. — Sabia que o vendi?
Rafe não sabia, mas antes de poder responder, o duque
continuou.
— Por um punhado de moedas para poder comprar
minha promoção. Ele jamais disse uma palavra. Depois de
chegar às docas, manteve-se estóico e silencioso. Isso sempre
me perseguiu.
— Diferente de mim, que não parei de suplicar e
choramingar.
— Não tinha mais que dez anos. Partiu-me a alma deixar
você para trás, mas era o orfanato ou deixá-lo com os ciganos.
Não sabia outro modo de protegê-lo. E, apesar das penúrias
que, suspeito, você sofreu, sinto-me muito orgulhoso de poder
chamá-lo de meu irmão. Não só sobreviveu, se deu bem por
você mesmo, e muito bem por certo.
— Tenho que me assegurar de que Evelyn está bem, —
Rafe não sabia o que responder.
— Pois vá então.
— Você é uma pessoa melhor que eu, — a ponto de sair
pela porta, o caçula dos lordes se voltou. — Você e também
Tristan, — era tudo o que ele podia conceder a seu irmão no
momento, mas possivelmente fosse um começo.
Capítulo 16

Ela colocara a camisola quando o ouviu sair do


dormitório. Esperava que fosse à sua cama, mas as pisadas
ressonaram no corredor, cada vez mais fracas, até perderem-
se nas escadas. Evelyn considerou meter-se na cama, mas
havia decidido que seu ofício de mantida incluía algo mais do
que acontecia entre os lençóis. Possivelmente ele não quisesse
assim, mas assim seria. Por algum motivo, Rafe se afastara de
seus irmãos e, embora não o admitia, era evidente que lhe
causava uma profunda dor.
Envolvendo-se na bata, ajustou-a com firmeza à cintura
antes de sair do dormitório e seguir o caminho que, estava
segura, Rafe havia seguido. Pode ser que ele tivesse se
dirigido ao clube, embora ela esperava que não. Sabia que ali
era onde ele relaxava, e desejava ser ela quem ocuparia essa
função na vida dele. Não estava segura de quando
desenvolvera tantos sentimentos carinhosos por ele. Era um
homem teimoso, mal-humorado, e não possuía um só átomo
de frivolidade em todo seu ser, mas ela era dele, ao menos
naquele momento.
E até que ele se fartasse dela, tinha a intenção de
cumprir com algum propósito em sua vida, além de manter
sempre um aspecto impecável e estar sempre disponível para
que ele saciasse sua luxúria. Já passava da meia-noite, os
serventes se retiraram a seus aposentos e Evelyn abriu, ela
mesma a porta do escritório, sem saber muito bem por que
estava tão segura de que o encontraria ali, caso ele estivesse
na residência.
E ali estava. Vestido com uma camisa de linho solta e
calças. Um braço apoiado sobre o suporte da lareira e na
outra mão segurava uma taça quase vazia. Contemplava a
lareira vazia e se voltou para ela com olhar turvo.
— Vá à cama, Evie. Esta noite não a incomodarei.
Ela sentiu um doloroso nó no estômago e seu peito se
encheu de uma tristeza que quase lhe partiu as costelas.
Assim via ele aquela relação: cada vez que ia a seu leito ele a
incomodava. Não significavam nada seus gritos de prazer?
Não compreendia que ela fora buscá-lo como sinal de boa
avaliação? Não significava nada para ele?
Ela se aproximou da mesa, tirou a tampa de um
decantador e o levantou.
— O que está fazendo? — Perguntou Rafe.
— Gostaria de tomar uma taça, — Evelyn encheu uma
taça e, com o decantador na mão, aproximou-se dele e encheu
a sua taça.
Sentia o olhar carregado de curiosidade sobre ela, mas
não se atrevia a olhá-lo aos olhos. Aquele olhar poderia
dissuadi-la de seu propósito. Devolveu o decantador à mesa,
ficou confortável em uma poltrona próxima e se sentou sobre
as pernas dobradas.
— Saúde, — ela brindou com a taça ao alto e bebeu um
bom gole, permitindo que o calor a inundasse, infundisse-lhe
coragem. — Nunca quiseram abandoná-lo.
— Sei, — ele soltou uma risada abafada e devolveu sua
atenção à lareira vazia.
— Compreendo que não ajuda grande coisa saber, —
acrescentou ela. — Quando eu era pequena, e minha mãe
ainda vivia, o conde costumava ir nos visitar. Sempre que
partia, ela ficava sentada junto à janela e chorava durante
alguns minutos antes de parar, secar o nariz com seu lenço
de seda e me dizer: “Ele não quer nos deixar, Evelyn, mas não
tem escolha. O dever e toda aquela porcaria”. Eu pensava que
deveria ter algo que lhe permitisse ficar. Mas então minha
mãe morreu e eu pude viver com ele.
— Sua mãe não morreu por sua culpa — espetou Rafe,
perfurando-a com o olhar.
— Sei, mas mesmo assim foi uma estupidez desejar
aquilo. Acredita que para eles foi mais fácil que para você?
— Não, — ele devolveu a atenção à lareira. — Mas
tampouco acredito que nenhum dos dois teve que fazer o que
eu fiz para sobreviver.
— O que você fez, Rafe? — Evelyn bebeu outro gole de
uísque e rodeou as pernas com os braços.
— Não quer saber, Evie — Rafe sacudiu a cabeça
lentamente.
— Continua fazendo essas coisas?
— Não, — ele a fulminou com o olhar. — Certamente que
não.
— Então possivelmente não sejam tão importantes, —
ela tomou outro gole, surpreendida por quão relaxada
começava a se sentir. — Seria tão horrível ir naquele navio
com seu irmão?
— Iate.
— As esposas deles parecem muito agradáveis, — Evelyn
riu baixinho antes de ficar séria. — Sabia…? — Ela
contemplou a taça e franziu o cenho. — Ora, está vazia.
Rafe se aproximou da mesa com duas largas passadas,
pegou o decantador e encheu a taça dela antes de se sentar à
sua frente.
— Sabia o quê?
— Lorde Tristan e lady Anne tiveram relações antes de se
casar, — sussurrou ela, para que a confidência não parecesse
tão má.
— Sim, sabia. Toda Londres sabe. Apesar de que ele
negou depois, acredito que todo mundo interpretou como
uma mentira, um intento de protegê-la quando já era muito
tarde.
— OH! — Evelyn sopesou a informação, acompanhado a
de outro gole. — E então por que as mantidas são tão
insultadas? Se outras também o fizerem sem estar casadas…
— Suponho que tenha algo a ver com o amor.
— Alguma vez você amou alguém? — Ela o olhou por
cima da borda da taça. Era curioso, pois, quanto mais bebia,
mais desejava beber.
— A meu pai. Não conheci minha mãe, pois morreu de
parto quando eu nasci.
Rafe acariciou o lábio com o polegar e ela desejou poder
beijar aqueles lábios. Como ele reagiria se ela se levantasse da
poltrona, percorresse a distância que os separava se
inclinasse, e pressionasse sua boca contra a dele?
— Suponho que pode considerá-la como a primeira
pessoa que eu matei.
— O quê? — Lentamente, Evelyn assimilou as palavras
através da neblina do álcool. — Não foi culpa sua que ela
tenha morrido. Simplesmente ocorreu.
— Deu à luz a gêmeos sem morrer. Por que comigo foi
tão difícil? Não acredito que meu pai me culpasse, mas penso
nisso de vez em quando.
— Não deveria. Assim não. Ela o amava. Estou segura. E
gostaria de vê-lo feliz.
— Depois de tudo o que lhe aconteceu, — ele riu
baixinho, — como pode ser tão malditamente otimista?
— Eu não gostaria de ser de outro modo, — Evelyn
entreabriu os olhos. — Você precisa parar de beber. Começa a
ficar impreciso.
Rafe lhe dedicou um sorriso. Um sorriso verdadeiro. A
habitação começava a obscurecer pelas bordas e para Evelyn
resultava muito difícil manter os olhos abertos.
— Parece-me que a imprecisa é você, — respondeu ele
com algo muito parecido a um tom humorístico na voz.
— Quem foi a outra pessoa que você matou? Disse que
sua mãe foi a primeira.
— Não sei como ele se chamava.
— Mas sem dúvida ele merecia. Do contrário não o teria
matado.
— Não fica horrorizada? — Rafe inclinou a cabeça, como
se tentasse vê-la com mais clareza.
Evelyn tentou sacudir a cabeça, mas tinha a sensação de
que estava por conta própria.
— Eu queria matar Geoffrey, embora na realidade ele
não merecesse. Mas acredito que deveria tê-lo esbofeteado.
— Isso eu posso solucionar se ainda desejar.
— Decidi que ele me causa pena, — ela ouviu uma
risada. Dado que Rafe estava com a boca fechada, supôs que
proviria dela. — Ele é um ser fraco, nada digno de admiração.
Não merece o esforço de golpeá-lo. Além disso, não acredito
que eu seja capaz de me levantar da poltrona.
— Sim, eu supus isto quando deixou a taça cair.
— Ela estava na mão minha, verdade? — Evelyn olhou a
mão, os dedos.
— Acredito que você está bastante bêbada.
Ela elevou os olhos e o olhou. Esticando uma mão,
deslizou um dedo pelos lábios dele.
— Você gosta?
— Muito, para sua desgraça. Pensei que a estas alturas
já teria me fartado de você.
— Eu também pensei. Não acredito que você continue.
— E você, querida, está bêbada.
Rafe a pegou em seus braços e ela pousou uma mão
sobre seu ombro.
— Não vou abraçar você. Foi assim quando dançamos a
valsa. Eu gostei de dançar a valsa.
— Levarei você a outro baile.
Evelyn foi vagamente consciente das longas passadas
conduzindo-a para fora do escritório.
— Eu gostaria de ir ao navio de seu irmão.
— Vai ter que chamá-lo de iate.
— Chamarei, eu prometo isso. Então vamos?
— Não sei. Ainda não decidi.
— Tem uma moeda? — Perguntou Evelyn.
— O que tem isso a ver?
— Tem uma moeda? — Insistiu ela.
— Sim. A mesma que você utilizou a outra vez.
— Deixe-me no chão.
— Cairá de bruços.
— Não, não o farei. Baixe-me.
Rafe fez como ela pedia e os pés de Evelyn pousaram
sobre o chão frio, de mármore. Estavam no vestíbulo e ela
balançou um pouco antes que ele a segurasse pelos ombros
para estabilizá-la.
— Muito bem, agora pegue a moeda. Você a lançará.
Cara vamos ao navio, coroa não vamos. De acordo?
— Não me parece bem deixar nas mãos do azar…
— Confie em mim. Estamos de acordo sobre os termos?
— De acordo, — Rafe a olhou com os olhos entreabertos.
— Lança-a ao ar, mas não a olhe quando aterrissar.
— E como saberei…?
— Não pense nisso, — Evelyn pousou um dedo sobre os
lábios dele para fazê-lo calar. — Você faz, — ele obrigou a si
mesmo a se concentrar no rosto dela, seus olhos. — Lance.
Rafe a lançou ao ar. A moeda girou para baixo.
— Já está, — anunciou ela, elevando a mão para impedi-
lo de vê-la aterrissar sobre o chão, rodar e parar. — Durante
esse fugaz instante antes de que ela tocasse o chão, o que
você pensava?
— Que isto é ridículo.
Ele tentou se afastar, mas Evelyn o segurou apoiando
uma mão sobre seu braço. Rafe a olhou furioso. Durante um
tempo, um olhar assim a teria acovardado, mas isso foi antes
de conhecê-lo bem.
— Meu pai me ensinou que quando se lança uma moeda
sempre há um segundo, justamente antes que ela aterrisse,
em que se pensa em cara ou coroa. E nesse momento é
quando se sabe verdadeiramente que resultado quer que saia.
E então? No que pensou? Vi em seu olhar. Sei que pensou em
uma coisa ou em outra.
— A primeira noite que você passou aqui lançou uma
moeda.
— Sim, mas não lhe disse se cara significaria que eu
ficaria. Na realidade, era coroa que significava que eu ficaria,
portanto eu menti. Mas é aí que reside a beleza da coisa.
Pouco importa o que saia, o que importa é o que se desejava
que saísse. E essa será sua resposta. De modo que, o que
desejou, Rafe?
— Pouco importa o que eu deseje — ele a tomou em seus
braços. — Vamos porque, do contrário, vai ficar falando o
tempo todo deste assunto.
— Quando eu fiquei falando todo tempo de algo? — De
repente esgotada, Evelyn apoiou a cabeça sobre o ombro dele.

Rafe a deitou delicadamente sobre a cama e lhe desatou


a bata. Ela apenas se moveu enquanto ele a tirava. Ao tampá-
la com os lençóis se sentiu tentado de unir-se a ela. Mas fazia
anos que não suportava a sensação do peso das mantas sobre
seu corpo.
Evelyn não protestou, não disse nada. Quanto mais a
conhecia, mais convencido estava de que ela jamais teria
terminado em St. Giles, como havia suposto ao princípio.
Essa mulher possuía uma determinação, uma força de
vontade que lhe permitiria encontrar a maneira de se esquivar
dos esgotos. Havia optado pelo caminho mais fácil ao ficar
com ele, mas também o mais inteligente. E ainda mais
inteligente fora, ao lhe fazer acreditar que decidira que a sorte
escolhesse, quando desde o começo havia sido ela. Estava ali
porque escolhera estar. O qual significava que poderia
escolher partir com a mesma facilidade.
Rafe começou a suar. Pouco lhe importava se ela
partisse. Essa mulher não significava nada para ele. Não
gostara de dançar com ela. Não ficara encantado de vê-la com
o vestido vermelho. Não se alegrava de que ela usasse as
pérolas que ele lhe dera. Estava preparado para abandoná-la,
dedicar-se a seu negócio. Mas ali estava, vendo-a dormir,
pensando que deveria ter um homem abraçado a ela,
respirando sobre sua nuca enquanto ela sonhava.
E sonhou, desejando desesperadamente ser esse homem.
Depois de apagar o abajur, saiu do dormitório e retornou
ao vestíbulo. A moeda continuava no chão, a coroa olhando-o
abaixo. Seu pai lhe havia dado essa moeda numa
tempestuosa manhã.
— Vá ao povoado e compre alguns caramelos de hortelã.
Repartiremos eles esta noite enquanto lhe conto a história da
caçada de hoje.
Seu pai subiu ao cavalo e partiu com seu irmão, lorde
David. Rafe não chegara a ir à loja de doces. O dia era frio, de
modo que ficara junto ao fogo, jogando com um cavalo
esculpido em madeira que ele havia roubado de Tristan. Não
gostava de ir sozinho ao povoado. Pensara em convencer seu
pai para que o acompanhasse quando retornasse da caçada.
Mas o único a retornar havia sido seu tio. Os serventes
saíram em busca de seu pai e para matar o cavalo que o
jogara ao chão.
Rafe esfregou a moeda. Não sabia por que a guardava
todos esses anos. Em muitas ocasiões poderia tê-la utilizado
para comprar algo para comer, para encher sua barriga. Mas
ele a conservara.
Jamais admitiria perante Eve, mas esperava que saísse
cara. Durante aquele segundo, justamente antes de que a
moeda aterrissasse no chão, sua mente havia sussurrado
“cara”. Por mais que odiasse admitir, o iate do Tristan
despertava sua curiosidade. Rafe se sentira defraudado
quando Tristan vendera o navio antes de que ele pudesse
navegar a bordo. Se não tivesse evitado seus irmãos, se não
tivesse se afastado…
No fundo sempre fora consciente de que eles não tiveram
outra escolha, salvo deixá-lo para trás. Mas também sabia
que, se tivesse sido mais forte, mais afiado, mais rápido,
possivelmente o teriam levado com eles. E eram essas
carências que os obrigou a abandoná-lo. Mesmo assim, era
muito difícil virar a página.
Capítulo 17

Na noite seguinte, de pé entre as sombras do balcão,


Rafe decidira ficar no clube até o amanhecer. Estava
desesperado para ver Eve. Desejava-a.
Sacudiu a cabeça. Ele não precisava de ninguém.
Somente de si mesmo. Não necessitaria de ninguém, jamais.
Era uma lição que ele aprendera assim que chegou a Londres.
Era um aprendiz muito rápido. Assim que lhe ensinavam uma
coisa, dominava-a imediatamente. Estava outorgando muito
poder a Eve, estava lhe permitindo exercer muita influência
sobre ele. De verdade ele gostaria de navegar no iate de
Tristan, ou fazia para agradá-la? Desde quando sentia a
necessidade de agradar a alguém que não fosse ele mesmo?
Não gostava do jogo de lançar a moeda ao ar. Era
partidário de decidir por si mesmo. Se Evelyn lançava uma
moeda, deveria deixar tudo nas mãos do destino. Não deveria
ter ficado com ele. Aquela havia sido a resposta do destino.
“Vá”.
E ao final ela faria. Todo mundo fazia. Todos partiam.
Exceto, ao que parecia, Wortham. Aquele homem perdia
dinheiro a uma velocidade impressionante.
— Em que quantia ele já está?
— Oito mil libras, — respondeu Mick do fundo das
sombras.
— Que idiota, — Rafe bufou.
— Acredita que a sorte mudará. Todos acreditam. Por
isso seguem jogando.
E por isso Rafe não jogava. Um homem só possuía
controle sobre as cartas quando fazia armadilhas. Rafe fizera
quando desejava algo desesperadamente. Por exemplo, sua
residência. E não lhe acalmava a consciência o fato de que,
depois de apoderar-se dela, ele convidara o lorde a um jogo
particular do qual partiu com quase todos os lucros. O lorde
se instalou na sua propriedade do campo e cancelara a sua
participação no clube de Rafe.
Wortham deveria fazer o mesmo.
— Acredito que vou falar com milorde, — murmurou
Rafe.
— Em seu escritório?
— Não, deve bastar no salão de jogos, — não esperava
receber muitas queixas por parte de Wortham. Aquele homem
não possuía culhões. O melhor que podia fazer era levantar-se
da mesa e não retornar até ter saldado a dívida.
Rafe desceu as escadas sem iluminação. Em seu clube
havia mais sombras que luz, o ambiente ideal para os
pecados, onde os pecadores se sentiam mais confortáveis.
Avançou entre as mesas. Fazia pouco, aquele era o lugar onde
mais desejava estar. Irritava-o que nesse momento preferisse
estar em outro lugar. E mais ainda o irritava era o lugar onde
mais queria estar, entre os braços de Eve, fosse o único lugar
no qual jamais estaria. Entretanto, em várias ocasiões ele se
perguntava se com ela seria diferente.
Parou junto à cadeira de Wortham e observou a jogada
da última mão. Em seguida lhe tiraram as fichas.
— Acredito que vai sendo hora de partir, milorde,
enquanto ainda restem algumas poucas fichas para cobrar.
Seu crédito aqui alcançou o limite.
— Você fornica com a filha de meu pai…
— Não fale dela, — Rafe o agarrou pelo lenço do pescoço
e o levantou da cadeira.
— Ou o quê? Não me permitirá voltar a respirar? Talvez
seja você quem deixará de respirar.
Rafe sentiu uma profunda queimação no flanco e
empurrou Wortham para um lado. Uma faca ressonou no
chão um segundo antes que o conde caísse com os olhos
muito abertos, o rosto cinzento. Rafe suspeitava que era a
primeira vez que ele apunhalava a alguém.
O repartidor de cartas se sentou escarranchado sobre
Wortham e preparou o punho.
— Não, — rugiu Rafe. — Não vale a pena.
As pessoas não podiam se dedicar a golpear à nobreza
sem sofrer as consequências.
— Mas ele o apunhalou, — protestou Mick.
— Não é mais que uma espetada, mas tirem-no daqui.
Não quero voltar a vê-lo, — Rafe puxou o colete que estava
morrendo de vontade de tirar. — Voltem para jogo,
cavalheiros. Acabou o espetáculo.
Agachando-se, recolheu a faca e se encaminhou de
retorno às escadas que o levariam a seu escritório, e à porta
traseira.
— A julgar pelo sangue que há nessa faca… — Mick o
alcançou.
— Faça com que limpem tudo e que as coisas voltem
para a normalidade. Voltarei para casa.
“Com Eve”, sussurrou uma vozinha em sua cabeça.
“Com a Eve”.

Apareceria. Não era normal nele, embora tivesse


assegurado que não a veria antes da meia-noite, nunca
cumprira a palavra.
Evelyn esperava na sala de estar de seus aposentos,
repuxando a bata de seda. Debaixo colocara uma camisola de
seda que emitia faíscas brilhantes cada vez que ela se movia.
Não havia nenhum motivo para se vestir formalmente, dado
que assim que entrasse ele a despiria. Deveria alegrar-se por
despertar um desejo tão forte em Rafe, mas em ocasiões
sentia falta de desfrutar um pouco mais um do outro.
Certamente não seria ela que se queixaria. Afinal de contas
ele a levara ao baile. Pensou em lhe pedir que a levasse ao
teatro. Ela vira um anúncio…
A porta se abriu de repente. Rafe deu dois passos e se
deteve.
— Por que não estava me esperando lá embaixo?
— Estava esperando-o aqui, — Evelyn nunca o vira tão
desarrumado. Respirava com dificuldade, o lenço retorcido, o
colete aberto e a camisa desabotoada. Lentamente ela se
levantou da poltrona. — Por Deus santo! Isso é sangue?
Matou alguém?
— Ao menos me conhece o bastante bem para saber que
sou capaz disso, — Rafe riu com amargura. Arrancou a
camisa rasgando-a ruidosamente e a jogou no chão.
— Preciso avisar o médico, — sentenciou ela.
— Laurence já se ocupou disso.
A próxima coisa foi tentar tirar o colete, com evidente
esforço. Rafe deu um passo, virou-se e cambaleou até a cama.
Sentando-se na beira, deixou cair a cabeça. Evelyn correu a
seu lado e lhe inspecionou a camisa empapada em sangue.
— Meu Deus! Todo esse sangue é seu?
— Temo que sim, mas não se preocupe. Meu advogado
está à par de que, no caso de eu morrer, você fica com tudo.
Exceto o salão de jogos, que será de Mick.
— Acredita seriamente que me preocupo com isso neste
momento?
— Se for inteligente, estará rezando pelo meu
desaparecimento.
— Pois então devo ser extremamente estúpida porque
estou rezando para que o médico chegue logo.
Rafe a olhou como se ela fosse uma nova espécie de
borboleta que ele fosse cravar em uma cortiça.
— Depois de tudo o que você sofreu, como pode pensar
nos outros primeiro? Não vê quão importante você é? Não
entende que você é a única que importa?
— Eu não sou a única que importa. O mundo seria
muito triste se fosse assim, — com todo o cuidado de qual foi
capaz, Evelyn o ajudou a tirar os braços pelas mangas do
colete. — O que aconteceu?
— Um idiota. Não gostou de saber que seu crédito havia
terminado.
— Atacaram você em seu clube?
Ele encolheu de ombros antes de fazer uma careta de
dor.
— Que tipo de clientes você tem?
— Wortham é um dos membros. Isso deveria lhe dar
uma pista.
— Mas ele não faria algo assim, — ela começou a lhe
enrolar as mangas da camisa.
O silêncio de Rafe a obrigou a levantar o olhar. Evelyn
ficou imóvel, horrorizada diante da ideia.
— Diga-me que não foi ele.
— Não foi ele.
Ela suspirou aliviada e, com supremo cuidado, tirou-lhe
o resto que sobrara da camisa. E então viu a espantosa ferida
da qual emanava o sangue, e pensou que iria desmaiar.
Correu até a bacia e pegou um pano. Depois de retornar
à cama, apertou-o contra a ferida aberta, ouviu a respiração
entrecortada de Rafe.
— Não é para tanto, — ele assegurou. — É larga, mas
não profunda. Não alcançou nenhum órgão.
— Como você sabe?
— Porque se fosse assim doeria muito mais. Aquele
idiota não sabia o que fazia. Atacou sem nenhum sentido.
Alguns pontos deveriam bastar. Certamente devo ser
costurado.
— Não sei costurar. Sempre preciso voltar a desfazer
tudo. Certamente terminaria costurando você das costelas à
coxa.
— Então alegro-me de não a ter tomado como meu
alfaiate, — Rafe soltou uma gargalhada.
— Já lhe disse que não possuo nenhuma habilidade, —
ela o olhou enquanto uma horrível realidade tomava forma em
sua mente. — Você vive em um mundo muito violento, não é
verdade?
— Não tanto quanto costumava ser, — ele desviou o
olhar para a chama do abajur. — Sei que não alcançou
nenhum órgão porque sei como é o corpo por dentro. Quando
eu estava com quatorze anos trabalhava para um tipo muito
mau. Chamava-se Dimmick. Fazia favores às pessoas, ou lhes
emprestava dinheiro, mas sempre cobrava com acréscimo. Na
hora de pagar, enviava alguns de nós para recolher o
dinheiro. “Meus meninos”, chamava-nos. “Não quererá que eu
envie meus meninos”. Antes de nos enviar a nosso primeiro
trabalho, levou-nos a um necrotério, abriu um cadáver e nos
ensinou onde golpear para causar a maior dor, onde acertar
para matar.
— Você mencionou que matou alguém. Fez para ele?
— Para ele não, — Rafe voltou a olhá-la. — Mas fiz mal a
muita gente, muito dano. Não estou orgulhoso, mas naquele
momento tinha a sensação de não ter escolha se quisesse
sobreviver. Um par de anos depois, ele se meteu em uma
confusão. Um dos “meninos dele” sabia ler e escrever e fazia
um registro das atividades dele, — ele sorriu com expressão
travessa. — Em troca de não levar aquilo para a Scotland
Yard, pedi o local de apostas.
— Assim conseguiu ser dono do clube.
Rafe assentiu lentamente, pensativo, e Evelyn se
perguntou quanto faltaria antes que ele voltasse a se fechar
na concha. Não era habitual nele revelar tanto sobre si
mesmo. Sem dúvida tentava esquecer a dor.
— E o que aconteceu com ele? Onde ele está agora?
— Enviou alguém para me matar. Quebrei o braço dele, e
disse-lhe que podia lhe mostrar um modo de vida melhor.
— Laurence? — De repente Evelyn compreendeu.
— Estendeu-se o rumor de que eu era melhor, — de novo
Rafe assentiu. — Os que trabalhavam para ele começaram a
trabalhar para mim. Havia muitos inimigos e logo não restou
ninguém para protegê-lo. A última coisa que eu soube foi que
ele saltou da ponte da Torre de Londres.
— Não deveria se sentir culpado.
— Não me sinto culpado. Não serviria de nada.
— Por que me contou tudo isto?
— Para que, no caso de que eu morra, você não me
procure quando chegar ao céu.
— De todos os modos eu não pensava fazer isso, —
Evelyn se sentiu inclinada a continuar com a farsa de que
nenhum dos dois estava preocupado com a ferida.
Rafe sorriu e levantou o olhar ao ou vir a porta ser
aberta.
— Ah, Graves! Preciso de suas habilidades.

Evelyn colocou toda sua fé no doutor William Graves,


cujo aspecto recordava a um anjo. Rafe parecia ter uma
confiança ilimitada nas capacidades daquele homem, que
procedeu a limpar a ferida, muito mais profunda e horrível do
que lhe parecera no início, antes de costurá-la.
Depois que Graves partiu, Evelyn ainda estava presa por
pequenos tremores. Esteve tentada a tomar um pouco do
láudano que o doutor havia deixado. Certamente, conseguira
que Rafe dormisse. Já que não costumava ficar ali depois de…
não sabia o que pensar. Não estavam fazendo amor, mas
aquilo parecia mais íntimo que simplesmente meter-se na
cama, ao menos para ela, embora duvidasse que fosse o
mesmo para ele. Mas, visto que ele nunca ficava, jamais tivera
a oportunidade de vê-lo dormir. Com a medicação varrendo
suas preocupações e cargas, pareceu-lhe vulnerável, jovem.
E malditamente orgulhoso, sem permitir que os
serventes se ocupassem de suas necessidades. E se ela não
estivesse? Teria sofrido todo o processo sozinho, sem ninguém
que o velasse? A resposta era evidente antes que terminasse
de formular a pergunta. Sim. Ele se mantinha isolado dos
outros. Esforçava-se para não precisar de ninguém. Nem
sequer a ela.
Ela lhe proporcionava alívio para suas necessidades
físicas, mas seu coração, sua alma, permanecia distante,
intocável. Rafe fazia coisas por ela porque era o que se
esperava. Os homens compravam joias para suas amantes, e,
portanto, comprava-lhe joias. Porque ela era sua amante, não
porque sentisse algo.
Era uma tola por desejar significar algo para ele. Claro
que, diferente de Rafe, ela não parecia ter muito controle
sobre seu coração. Possivelmente se parecia mais com sua
mãe do que acreditava. Sem dúvida, se tivesse escolha, sua
mãe teria se apaixonado por um homem com quem pudesse
casar, e não por um que era obrigado a roubar os momentos
que passavam juntos. Evelyn só seria a amante de um
homem. Quando ele acabasse com ela, encontraria o modo de
tornar-se apresentável. Deixaria a aristocracia para trás, e
Londres também. Iria a algum lugar onde não fosse conhecida
e encontraria o amor. Ou pelo menos um homem que
antepusesse a felicidade dela à sua própria. Um homem que
entrelaçasse sua mão com a dela quando passeassem.
Rodeasse-a com seu braço enquanto contemplavam o pôr-do-
sol. Levasse-a nos braços para dentro de casa porque suas
passadas eram maiores e ele estaria impaciente para deitar
com ela.
Evelyn suspirou e tampou Rafe com os lençóis,
agasalhando-o. Fazia frio e ela não queria que ele adoecesse.
Já seria bastante complicado lutar com a ferida. O doutor
Graves lhe explicara que ele certamente teria febre e ela
saberia se a ferida se infectara. Dera instruções para que o
chamasse em caso necessário. Abaixando-se, beijou-lhe a
testa e a sentiu suada. Não suportava vê-lo sofrer. Ocorreu-
lhe aplicar um pano úmido sobre a testa.
Ao se afastar da cama viu a roupa atirada no chão. Ao
recolhê-la, o estômago lhe encolheu ante a visão do sangue
que manchava o tecido, danificando o formoso brocado. O
tecido estava muito rasgado para poder ser consertado, não
só por causa da faca, mas também pela pressa de Rafe por
despir-se.
Ao recolher o monte do chão notou que havia algo no
bolso do colete. Afundou os dedos e tirou uma chave muito
parecida com a de sua porta, uma chave que ela jamais
utilizava porque uma mantida não deveria impedir o acesso
de seu amante ao dormitório. E de repente compreendeu. O
pequeno objeto de latão permitia o acesso ao dormitório de
Rafe. Segurando-a contra o peito, deixou cair a roupa e se
voltou bruscamente para a cama.
Rafe continuava sem mover um só músculo. Dormia
profundamente.
A seguir se voltou para a porta que separava seus
dormitórios. O que havia atrás daquela porta que ele tão
ferozmente guardava?
Fazendo o menor ruído possível, aproximou-se da porta.
O coração martelava com força em seu peito e respirava
agitadamente. Abriu a mão e contemplou a chave manchada
de sangue. Sangue dele.
Não se sentia culpada por querer saber tudo de Rafe. Era
inconcebível que compartilhassem tanta intimidade e ao
mesmo tempo ele tivesse segredos para ela. Aquela porta, e o
que havia atrás, atormentava-a. Mas estava a ponto de saber.
Não estava fazendo nada horrível. De todos os modos veria
aquele local assim que a residência fosse dela. O que Havia de
mau em ver um pouco antes?
Voltou-se de novo para se assegurar de que Rafe
continuava adormecido. Decidiu que sim, apoiando-se nos
profundos roncos que ele emitia. Não sabia que ele roncava.
Havia tantas coisas que não sabia dele. Esse era o motivo pelo
qual queria lançar uma olhada naquele aposento. Somente
uma olhada. A roupa de cama seria escura? Estaria o local
cheio de globos terrestres?
Não podia deixar essa oportunidade passar. De novo se
voltou para olhá-lo. Se Rafe confiasse nela, não se mostraria
tão misterioso. Despiria sua alma. Ao abrir a porta, ela não
estava confirmando que não era digna de sua confiança?
Embora ele nunca soubesse, ela sim saberia.
Colocou uma mão sobre o trinco, aproximou a chave à
fechadura…

“Mantinham-no imobilizado, golpeavam-no, monstros de


odiosos sorrisos e estúpidas risadas. Ele tentava chutá-los,
agitava os punhos no ar, mas não tinha braços, não tinha
pernas. Nada. Não podia fazer nada, nem sequer se virar.
Estavam esmagando-o. O peito lhe afundava. Não podia
respirar.
Ouviu alguns choramingo, os gritos cada vez mais fracos
pedindo ajuda. Esses gritos surgiam dele. Não saíam dele.
Pararam, e isso lhe aterrorizou ainda mais.
— Sou um lorde! Não podem me tratar deste modo! Sou
um lorde! Meu pai era um duque! Meu irmão é o duque!
Mas conseguiu somente que rissem mais forte, que
empurrassem mais forte, que o envolvessem mais forte.
Estavam envolvendo-o em um casulo, como o que vira uma
larva fazer em uma ocasião. Em seu interior o inseto se
transformou em outra coisa, algo formoso. Ele a vira surgir.
Mas sabia que ele não conseguiria sair daquilo. Ele se
asfixiaria, morreria. Cada vez sentia menos.
Estava desaparecendo enquanto os monstros se abatiam
sobre ele. Quando já não existisse, seria livre. Eles o
seguiriam até o inferno.
Precisava escapar, precisava lutar. Se ao menos pudesse
respirar. Recuperaria as forças, se livraria deles. Precisava
lhes demonstrar que era forte, que não podiam vencer. Mas
seus pulmões estavam a ponto de explodir.
Ar. Ar. Não havia ar para respirar porque todo o espaço
estava cheio de gritos.”
Os gritos a despertaram. Evelyn saiu disparada da
cadeira junto à cama, desorientada e aturdida. Sua intenção
fora velar o sono dele, não ficar adormecida. Sentiu-se
horrorizada ao vê-lo agitar os braços no ar, apanhado entre as
garras de um horrível pesadelo.
Sentando-se na cama, lutou desesperadamente para lhe
segurar os braços.
— Rafe, Rafe! Acorde! Não é mais que um sonho.
— Tire-me daqui, tire-me daqui!
O punho bateu contra o rosto de Evelyn que saiu
disparada da cama, golpeando contra o chão. Via luzes diante
os olhos e a cabeça lhe dava voltas. Com decisão, ele se
levantou.
— Rafe? — Por Deus, sua mandíbula estava doendo.
Rafe a fulminou com o olhar. Um olhar enlouquecido,
como a de um animal encurralado que ela vira em uma
ocasião em um zoológico. Parecia possuído, brigando com os
lençóis, como se fossem o inimigo.
— Santo céu!
Ao recordar a regra de Rafe, sentiu como se o punho
tivesse aterrissado de novo sobre seu rosto. Ele não gostava
que o abraçassem, e ela o agasalhara. Quando ela estava
doente, gostava de sentir o peso das mantas. Mas ele devia se
sentir como se enormes braços o estivessem agarrando.
Evelyn puxou freneticamente os lençóis.
— Acalme-se, acalme-se, eu tirarei isso.
À medida que os lençóis se afastavam, ele relaxava.
Quando a última das úmidas camadas aterrissou sobre o
chão, Rafe saiu da cama. Respirando com dificuldade, olhou a
seu redor com expressão enlouquecida. O sangue começava a
empapar a bandagem.
— Onde está minha roupa? — Ele perguntou com voz
rouca.
Continuava usando as calças, mas não era possível que
pretendesse sair.
— Ela estava destroçada. Fiz que um dos serventes a
atirasse ao lixo.
— Minha chave. Preciso da minha…
— Deixei-a ali, sobre a mesinha de noite. Encontrei-a no
bolso de seu colete.
Rafe se voltou e a olhou com expressão acusadora. Ela
soube imediatamente o que ele estava pensando, e deu
infinitos agradecimentos por poder dizer a verdade.
— Não a utilizei. Não entrei em seu dormitório, — ela não
fora capaz de abrir a porta. Todo mundo possuía segredos e
ela decidira que ele possuía direito aos dele. — Por favor, volte
a se deitar na cama para que possa me ocupar da ferida.
Ignorando-a, Rafe agarrou a chave e cambaleou para a
porta. Evelyn desconhecia se ele sentia dor, se estava ainda
sob o efeito do pesadelo, ou se era o láudano, mas ele sentia
enorme dificuldade para colocar a chave na fechadura.
— Deixe para mim, — ela correu até a porta.
— Não.
— Rafe, quero ajudar.
— Então me deixe em paz, — finalmente conseguiu
colocar a chave e a girou. — Agora saia, — abriu a porta o
suficiente para poder deslizar dentro do aposento.
— Você precisa de ajuda. Está sangrando outra vez —
protestou Evelyn, decidida a ajudar aquele obstinado e
orgulhoso…
Incrédula, ela interrompeu seus próprios pensamentos.
— Bom, — ele abriu a porta — agora já sabe a verdade —
anunciou ele com a voz carregada de ira, resignação,
vergonha. — Você é a amante de um louco.
Capítulo 18

Evelyn contemplou a desordem de roupa atirada, botões


soltos, o colchão nu, as janelas sem cortinas, o chão coberto
de pó.
— Por favor, vá — murmurou Rafe enquanto apoiava a
mão sobre o flanco, sem dúvida sofrendo uma imensa dor.
Mas Evelyn percebeu algo mais: a humilhação que sentia
ao descobrirem seu segredo.
Esse homem forte que a protegera, proporcionara-lhe um
refúgio, aparecia ante ela derrotado. Partia-lhe a alma.
— Não seja ridículo. Sente-se nessa cadeira junto à
lareira enquanto trago lençóis para a cama.
— Não quero lençóis. Não os suporto, — Rafe se sentou
com cuidado. — Eles me dão a sensação de que vou me
asfixiar.
Como os lençóis que ela ajustara em torno de seu corpo.
Lentamente, Evelyn se aproximou da cadeira e se ajoelhou
diante dele, pousando brandamente as mãos sobre seus
joelhos e lhe sustentando o olhar.
— Você não está louco.
— Olhe a seu redor. É obvio que estou.
— Por favor, deixe-me ver a ferida, — Evelyn poderia
discutir até não poder mais, mas era evidente que ele não
entraria em razão.
— A bandagem me aperta tanto que está me matando.
Preciso tirar isso e as calças. Você deve partir. — Os
músculos do pescoço se moveram como se estivesse engolindo
a saliva, o olhar fixo em um ponto distante sobre a parede. —
Por favor, Eve, vá.
A brusca e dilaceradora súplica quase fez com que lhe
partisse o coração.
— Não posso, — ela respondeu com os olhos cheios de
lágrimas. — Não posso deixá-lo sozinho, não estando assim.
Tirarei a bandagem e as calças. Pode se deitar em minha
cama. Não voltaremos a colocar os lençóis, mas posso fazer
que pare de sangrar. Depois você poderá descansar.
Evelyn lhe retirou com doçura os cabelos da testa. Rafe
lhe agarrou a mão. Ela esperava que ele a afastasse a um
lado. Entretanto, voltou o rosto para a palma e a beijou antes
de fechar os olhos. Parecia a ponto de ficar adormecido nessa
posição.
— Só preciso de alguns minutos aqui dentro, — ele
sussurrou.
— Posso consertar… — inclinando-se, ela pegou uma
camisa do chão. Estava rasgada e lhe faltavam vários botões.
— Não quero que as consertem. De vez em quando
recolho todas e as levo a um orfanato. Eles se ocupam de
consertá-las.
Se não deixava consertar sua roupa queria dizer que
substituía por outra nova. Evelyn supôs que ele não queria
que os serventes, nem ninguém, questionassem como ele
destroçava a roupa.
— Seu alfaiate deve lhe adorar.
— Assim é, — Rafe riu baixinho, o som vibrando na
palma da mão de Evelyn.
Parecia respirar menos agitadamente e parara de
sangrar. Entre ambos se estava desenvolvendo uma
intimidade, um pouco mais profunda do que compartilhavam
no leito. Evelyn odiava a ideia de acabar com aquele
momento.
— As pessoas não costumam ter essa sensação de asfixia
sem motivo. O que lhe aconteceu?
Rafe apoiou as mãos sobre o regaço, segurando as dela
com as palmas para cima. Parecia estar estudando as linhas,
procurando resposta ou, possivelmente, as palavras para
explicar o inexplicável.
— Não contarei a ninguém, — sussurrou ela. — Eu lhe
prometo.
— As promessas não valem nada, Evie — Rafe fechou os
olhos e falou com voz rouca. — Podem ser rompidas.
— As minhas não, — assegurou Evelyn com convicção.
Ele abriu os olhos, mas não a olhou. Continuava lhe
acariciando as palmas da mão e finalmente suspirou.
— Meus irmãos me deixaram em um orfanato. Os donos
eram umas pessoas horríveis. O dinheiro faz falta para dirigir
um lugar assim e, certamente, os internos não possuem
meios de pagamento. De modo que eles tinham um acordo
com os donos de uma mina de carvão próxima. Antes do
amanhecer nos despertavam, davam-nos nossas papa com
leite para tomar o café da manhã e nos enviavam à mina.
Trabalhávamos lá até horas depois do pôr-do-sol. Chegou um
momento em que a luz do sol me machucava os olhos.
Rafe continuou deslizando os dedos pelas palmas das
mãos de Evelyn, como se estivesse gravando ali sua história.
— Eu era o transportador de carvão. Tirava o carvão que
outros desenterravam do fundo dos poços. Quase rompia as
costas. Às vezes me perguntava se algum dia seria capaz de
ficar ereto de novo. E um dia vários de nós estávamos
recolhendo nossos pertences quando alguém nos gritou que
corrêssemos. Eu não era muito ágil. Apesar de ter perdido
peso, não era tão magro. E por isso era lento. Outro menino e
eu. O teto caiu sobre nós e ficamos apanhados. Na escuridão.
Os faróis se apagaram.
Depois de um novo suspiro, continuou seu relato.
— Tive sorte. Minha cabeça, ombros e um dos braços
estavam livres. Comecei a me desenterrar. E então ouvi o
outro menino. Não o via, não o encontrava com tanta
escuridão. Somente ouvia seus gritos, seus gemidos, e depois
o silêncio. O silêncio foi o mais ensurdecedor. Por impossível
que parecesse, o silêncio viajava como um eco pelo poço,
atravessava minha mente e se cravou em minha alma. Eu
sabia que ele estava morto. E de novo me encontrava sozinho,
seguro de que a morte me reclamaria também. Não conseguia
respirar.
— Mas alguém chegou e o resgatou, — Evelyn morria de
vontade de abraçá-lo.
— Ao final sim. Não sei quanto tempo estive ali. Horas,
dias, semanas. Possivelmente só minutos. A única coisa que
eu tinha certeza era que o peso da terra, o carvão e as vigas,
me esmagariam, como havia acontecido ao outro menino.
Nem sequer soube seu nome. Não sei por que não me
esmagou. Quando não precisava brigar com os ratos que
tentavam me morder, eu cavava freneticamente, sem parar.
— Voltaram a enviá-lo à mina?
— Certamente, ao dia seguinte. Tínhamos cotas a
cumprir. Demorei algumas semanas para escapar e chegar
até Londres. Por mais medo que me desse estar sozinho, era
melhor do que estar nos poços.
— Lamento que tivesse que sofrer tudo isso.
— O desmoronamento, em minha opinião, foi o primeiro
passo, de onde surgiu minha aversão a estar confinado. Em
ocasiões perco a calma. Antes de você chegar, quando vim à
residência, a primeira coisa que fiz foi entrar neste aposento,
arrancar toda a minha roupa e a percorri de um extremo a
outro até recuperar a compostura.
Depois era no aposento dela que ele ficava nu. Em certo
modo poderia considerar um avanço. Mesmo assim, Evelyn
sentia vontade de chorar pelo menino que ele havia sido, que
pensou que ia morrer, que ouvira a morte de um
companheiro.
— Se eu o abraçar, acredita que perderá a compostura?
— Sei que sim. Não é a primeira vez que golpeio alguém
que tentou me abraçar, — Rafe deslizou um dedo pelo rosto
dela. — Não me arriscarei a machucá-la.
— Deveria ter me explicado tudo isto muito antes, para
que eu o tivesse compreendido, para que tivesse ajudado.
— Explicar? — Ele soltou um bufo. — Explicar que, se
não se importasse, eu permaneceria nu a maior parte do
tempo? Nem sequer meus serventes têm o acesso permitido a
este aposento. É meu segredo mais escuro. Não o compartilho
com ninguém. E, certamente, não havia planejado que você o
descobrisse, — ele inclinou a cabeça e a observou. — Eu bati
em você?
— Eu diria melhor que me coloquei no meio, — Evelyn
acariciou a bochecha.
— Ah, Eve! — Rafe fechou os olhos com força e, ao abri-
los, olhou-a com expressão de arrependimento. — Tentei ter
muito cuidado para não perder o controle.
— Não fez de propósito. Estava em meio a um pesadelo.
— Não vê que estou louco, que se não me controlar posso
me converter em um bárbaro?
— O que vejo é que você é um homem lutando contra
seus demônios. E não é a mesma coisa. E não precisa lutar
sozinho. Deixe-me ajudar.
— Não posso, — ele sacudiu a cabeça.
Evelyn não podia culpá-lo por sua reticência. Estava a
muito tempo sozinho, mas restava a possibilidade de que
entre eles dois houvesse algo mais. Disso estava segura.
Mesmo assim, ia requerer paciência. Rafe lhe contara muito
mais do que ela esperava, mas também lhe deixara com a
sensação de que não contara tudo.
— Por favor, venha para minha cama e me deixe cuidar
de você, — ela ficou em pé e lhe estendeu uma mão.
E esperou. Via claramente a indecisão refletida no rosto
de Rafe, como se lutasse contra si mesmo. Em que lugar ele
acharia proteção? Somente naquele aposento ou com ela?
Rezou para que ele a escolhesse. Ao fim, ele pegou sua mão e
se levantou, iluminando-se com esse gesto uma leve faísca de
esperança para o futuro.
— Talvez, — murmurou ele, — estejamos loucos os dois.

Rafe despertou, momentaneamente desorientado pelo


lençol de seda contra as costas e o dossel de veludo sobre sua
cabeça. Estava nu como um recém-nascido, a ferida
descoberta. Os pontos de sutura lhe repuxaram quando se
deitou de lado. E ali estava ela, deitada de lado, uma mão sob
a bochecha, as largas pestanas apoiadas contra a pele. Tinha
as pernas dobradas e envoltas pela camisola. Os dedos dos
pés se abriam e fechavam como se estivesse sonhando saltar
sobre verdes prados. Rafe aspirou sua fragrância, observou a
rítmica respiração.
Ela deixara um abajur aceso, com a chama muito frouxa.
Permitia-lhe vê-la com clareza embora as sombras a
cobrissem com um tênue véu. Recordou o quão delicadas
foram aquelas mãos enquanto se ocupou dele. Por um
instante ele experimentara uma estranha sensação de ser
amado. E os sentimentos que ele experimentara com essa
mulher lhe provocaram um susto de morte.
Sentira o desejo de lhe pedir que não o abandonasse
nunca. Não, pedir-lhe não: Suplicar. Rogar.
Evelyn não se horrorizou diante do que descobrira em
seu refúgio. Havia compreendido sua aversão para a roupa,
não acreditava que ele fosse louco, e quase o convencera de
que não tinha nada do que se envergonhar. Era a mulher
mais incrível, amável e generosa que ele conhecia. E era dele.
Ao menos até que se fartasse dela ou ela começasse a
procurar o amparo de outro homem. Certamente, ninguém
mais seria capaz de lhe proporcionar a segurança que ele
proporcionava. Se aguentasse até que fosse ele quem
finalizasse a relação, teria muito a ganhar, poderia se
converter em uma mulher independente.
No fundo de sua alma, nos rincões que se esforçava por
ignorar, desejou que a relação entre eles fosse diferente, que
ela estivesse ali porque desejava, não pelo que ganharia com
isso. Por outra parte, se não fosse por causa do acordo, ela
nem sequer estaria ali.
— Olá, — Evelyn abriu os olhos e lhe sorriu com tal
doçura que ele esteve a ponto de desmoronar. — Como se
encontra?
— Como se tivesse bebido muito uísque, do barato.
— Duvido muito que conheça o sabor do uísque barato.
— Nem sempre tive tanto, — durante um tempo não
tivera nada. — Por que não abriu a porta quando encontrou a
chave?
— Porque você desejava manter em segredo, — ela
suspirou e se esticou como um gato sob o sol, — e pensei que
sua amante deveria respeitar sua privacidade.
Amante. Isso sempre se interpunha entre eles. Ela não
estava ali por sua escolha.
— A ferida está vermelha.
— Suspeito que estará vários dias assim. Quase não me
incomoda.
— Porque sofreu coisas muito piores. Eu poderia ter
terminado vivendo uma vida muito parecida se você não
tivesse me acolhido.
Não a acolhera. Ele lhe devotara amparo, mas a um
preço muito elevado. Naquele momento, não pensara naquilo,
não havia pensado em outra coisa que não fosse seus
próprios desejos e necessidades. Quando ele havia se
convertido em um bastardo egoísta que pensava somente em
si mesmo? Não era o tipo de homem em que se teria
convertido seu pai se continuasse vivo, se tivesse podido
exercer sua influência. Sebastian e Tristan se pareciam muito
mais aos lordes que deveriam ser. É obvio, eram mais velhos,
eles tiveram a presença do pai durante mais tempo. Mesmo
assim, não poderia evitar pensar que seu pai se sentiria
defraudado se o visse.
— Estive pensando, — Evelyn se apoiou sobre um
cotovelo.
— Pensei que você dormia.
— Antes de adormecer. O que aconteceria se eu não o
abraçasse, mas simplesmente o tocasse? Sonho fazendo isso
todo o tempo, sabe? Acariciar os ombros e as costas.
— Eve, não faça — Rafe grunhiu e fechou os olhos.
— Estou segura de que você também pensa nisso.
Somente algumas ligeiras carícias, como se estivéssemos
dançando.
— Eu a machucarei, — ele engoliu com dificuldade e
abriu os olhos.
— Não, não o fará. Confio em você.
— Está louca, — Rafe saltou da cama.
Imediatamente se sentiu enjoado e necessitou alguns
momentos para recuperar o equilíbrio antes de se aproximar
da janela e olhar para o exterior. Deveria ir ao dormitório com
a cama nua, onde poderia dormir sem o perigo de ficar
enredado entre os lençóis ou colchas. Ali não gritaria. Mas se
sentia resistente a abandonar Eve.
Ouviu o amortecido tamborilar dos pés descalços, mas
não se voltou ao sentir a presença dela junto a ele.
— Como pode estar tão seguro? — Perguntou ela com
doçura.
Rafe não queria entrar naquele terreno. Resultava-lhe
igualmente horripilante, como ouvir um menino morrer nas
minas. Mas ela precisava compreender, embora com isso ele
corresse o perigo de que ela o abandonasse. Era seu segredo
mais escuro, que lhe devorava a alma.
— Não levava muito tempo em Londres. Comia dos lixos
e procurava refúgio em qualquer parte onde pudesse
encontrá-lo, normalmente algum beco, junto a uma lixeira,
em algum canto escuro. Uma noite despertei ao sentir que um
homem me aprisionava contra o chão enquanto me arrancava
a roupa. Disse-me que parasse de resistir, que não seria tão
ruim se eu parasse de resistir.
— Deus santo!
— Não me lembro como consegui escapar dele, mas o fiz,
— Rafe era incapaz de olhá-la, por mais que desejasse. —
Antes que ele me tirasse a roupa, antes que conseguisse fazer
o que pretendia. Não me lembro de tê-lo golpeado, mas o fiz.
Golpeei-o até matá-lo, para que jamais voltasse a tocar a
outro menino.
— Alegro-me, — ela assegurou com voz rouca.
Ele sentiu o roçar de sua mão, os trêmulos dedos lhe
apertando a mão.
Rafe se voltou e a olhou. Os olhos da jovem estavam
alagados em lágrimas, lágrimas que ele teria gostado de
derramar quando o menino morreu naquela mina, mas ele
temera que, se lhes desse rédea solta, jamais poderia parar,
confirmariam sua debilidade, dariam razão a seus irmãos por
tê-lo deixado para trás.
— Alegro-me, — repetiu ela. — Alegro-me de que o tenha
matado. Aquele homem era da pior espécie se era capaz de
machucar um menino.
— Você não entendeu, não tudo. Eu via tudo vermelho.
Não recordo ter feito o que fiz, mas sei que o fiz porque não
havia ninguém mais ali. Aquele homem me segurava e eu
estava me sufocando outra vez. Fiz o que tive que fazer para
afastá-lo de mim.
— E após teve medo de que outra pessoa o abraçasse?
— Porque sei do que sou capaz. Se eu perder o controle…
— Comigo não o fará.
— Eve…
— Comigo não o fará — insistiu Evelyn com convicção. —
Comigo não.
Deveria lhe contar o resto, mas essa mulher lhe dava
esperanças, e fazia muitíssimo tempo que não sentia
esperança alguma. Possivelmente com ela, em efeito, seria
diferente. Quando estava com ela sentia algo que nunca
sentia com outras pessoas, como se tivesse encontrado uma
parte perdida de si mesmo, como se fosse possível ser tudo o
que podia ser.
Lenta, muito lentamente, Evelyn deslizou uma mão sobre
seu torso nu.
“Não, não, não!”, gritou a mente de Rafe.
Mas seu corpo se afastou de sua mente. Seu corpo se
mantinha imóvel, espectador. Ela lhe sustentava o olhar,
desafiando-o a confiar enquanto lhe transmitia a promessa de
que não o machucaria. Rafe não se assustava com a dor. Já
havia sofrido o suficiente para saber que suportaria. O que ela
não sabia era que tinha o poder de destruí-lo.
Essa mulher significava-lhe algo. Não estava seguro do
que se tratava, mas era consciente de que lhe importava. Por
isso ele se sentira desolado quando ela descobrira a cela do
louco. Por isso se negava a tocá-la. Poderia machucá-la e,
quando o fizesse, ela partiria. Ela era o bastante forte para
sobreviver sem sua ajuda. Mas ele não queria sobreviver sem
ela. Os terríveis pensamentos lhe provocaram um
estremecimento justo no instante em que a mão da Evelyn se
deteve sobre seu galopante coração. Sentia a ponta dos dedos,
o calor da palma. Se fosse um homem mais amável, um
homem mais delicado, possivelmente teria chorado. Levava
muitíssimo tempo desejando ser tocado, acariciado, abraçado.
Seus instintos mais baixos lhe permitiam deitar com ela,
mas, além disso não se atrevia a correr o risco de machucá-la.
Lentamente, tanto que ele apenas foi consciente do
movimento, Evelyn deslizou a mão para o ombro e desceu
pelo braço.
— Diga se a pressão gerar desassossego, — ela
sussurrou com uma voz muito parecida com a que empregara
para acalmar a seu cavalo.
Deveria ter resultado inquietante. Deveria tê-la afastado
com brutalidade. Isso era o que acontecera na primeira vez
que esteve com uma mulher. Ela o abraçara, e ele a
empurrara. Não batera nela, como fizera com o homem do
beco, mas começara a tremer, como se alguém o tivesse
jogado a um rio gelado. Ela lhe disse que ele deveria estar em
um manicômio. Com dezesseis anos ele havia acreditado. E
depois daquilo não permitiu que nenhuma mulher o
abraçasse.
Eve apoiou a outra mão sobre seu peito e descreveu um
movimento similar ao primeiro, mas para o outro lado do
corpo. Ali onde ela tocava, Rafe tinha a sensação de que o
tivessem incendiado, mas não com fogo, mas com paixão. A
sensação era tão boa, tão boa.
“Toque. Por toda parte”.
— Não acredito que eu possa me cansar disto — as mãos
de Evelyn seguiram o percurso em sentido inverso, dos braços
até o peito.
E ficando nas pontas dos pés, aproximou-se e
pressionou os lábios contra o centro do peito. Rafe já não
conseguiu mais.
— Eve.
O som gutural era o de um homem moribundo, e isso ele
era. Afundou os dedos nos cabelos de Evelyn, tomou o rosto
entre as mãos e o levantou para apoderar-se de sua boca
como se lhe pertencesse, como se somente ele fosse saboreá-
la. A ideia de que algum outro homem a conhecesse como ele
a conhecia o deixava louco.
As mãos do Eve seguiram pelo pescoço, até as omoplatas
e de novo para baixo. Sempre abertas, sem supor uma
ameaça, sem se fecharem em torno dele. Proporcionando
carícias largas e suaves. Sem abraçá-lo, sem apertar, sem
constranger.
Resultava liberador. Como ele conseguira sobreviver sem
isso? Como pudera pensar que bastaria com que ele a
tocasse, mas sem lhe permitir fazer o mesmo?
Sentiu as mãos deslizarem por suas costas, o traseiro.
Emitiu um pequeno grunhido e começou a subir a camisola.
Ela interrompeu o beijo, desamarrou-a e se desembaraçou
dela. A camisola deslizou por seu corpo até alcançar o chão.
Depois de tirar os pés, aproximou-se de Rafe e apertou o
corpo contra o dele, os seios esmagados contra o torso. Ele
voltou a grunhir e ela emitiu um suspirou gutural.
— Sim, — sussurrou Evelyn. — Eu desejei tanto.
Ele lhe rodeou o corpo com os braços. Nunca lhe havia
ocorrido que lhe estivesse negando um prazer, que ela
quereria tocá-lo, acariciá-lo. Pensava que, se ela não sabia o
que faltava na relação, não poderia sentir falta. Abraçou-a,
nada mais, enquanto ela o abraçava.
E se sentiu maravilhado. Havia muita pele contra sua
pele. Seda e cetim. Um calor aveludado. Se não fosse pela
ferida do flanco, a teria tomado nos braços para levá-la à
cama. Porém, pegou a mão dela e a conduziu até o leito.
Ela se deitou de costas e deixou que ele a cobrisse.
Mas não como anteriormente, apoiado sobre os braços,
permitindo que unicamente estivesse em contato com ela a
parte de seu corpo estritamente imprescindível para alcançar
seu objetivo. Com um sorriso sedutor, ela lhe acariciou
brandamente as costas e os ombros. Pele contra pele, mais do
que ele jamais havia experimentado. Resultava embriagador,
aditivo. Com ela não experimentava nenhuma sensação de
asfixia.
— Aperte um pouco mais, — ele ordenou.
E ela o fez, sentindo-se afundar na pele por onde
passavam seus dedos. Mas não bastava. Não bastaria até que
ele se afundou em seu interior, até que ele se sentisse
rodeado pelo aveludado calor. Certamente lhe abririam os
pontos, mas não se importava. Estava perdido nas sensações
que ela criava, perdido nela. No violeta de seus olhos, nos
cabelos loiros, sua fragrância corporal mesclada com o
perfume de rosas.
Um brilho travesso apareceu nos olhos de Evelyn que
levantou a cabeça e lhe beijou o pescoço. Um úmido calor o
inundou.
— Ah, Evie!
— Retire-se, — ela o empurrou pelos ombros para afastá-
lo.
— Peso muito? — Ele se endireitou.
— Não, — Evelyn sorriu. — Quero você deitado de
costas.
Começou por enchê-lo de beijos, como se o corpo dele
estivesse impregnado de uma ambrosia que ela precisasse
engolir. A mão de Rafe se enganchou nos loiros cabelos.
Sentia um desesperado desejo de contato, de tocá-la
enquanto sentia a língua dela deslizar por uma pele que
jamais conhecera a carícia de uma mulher. Ela também havia
sentido essa necessidade? O que haviam compartilhado
resultara menos prazeroso por tudo o que ele havia negado?
Até então nunca havia se sentido adorado, merecedor.
Precisava manter tudo congelado, oculto atrás de um muro.
Ela continuava descendo, mais e mais, os cabelos estendidos
sobre o torso de Rafe como um fio de seda. Tênue, como se
quase não existisse, mas para um homem que não tinha
conhecido mais carícias, fazia anos, poderia ter sido como
uma manta de lã, tal era a intensidade com que as sentia.
Seus sentidos despertavam como jamais fizeram. O
prazer começou a inundá-lo. Pouco importava onde ela o
tocava, estava por toda parte.
E ela continuou descendo.
— Evie, — ele a chamou com voz rouca.
Evelyn elevou o doce rosto e lhe deu de presente o mais
terno dos sorrisos. Mesmo assim em seus olhos se refletia
uma clara determinação. Não poderia afastá-la de seu
objetivo.
— Estava imaginando o que sabe.
Ela voltou a abaixar-se e tomou-o com sua sedosa boca.
Rafe esteve a ponto de chorar diante de tamanha sensação de
prazer. Sua mão se agarrou com mais força aos loiros cabelos,
enquanto que com a outra apertava os lençóis no punho. De
novo soltou um grunhido, o da besta liberada.
Durante todos aqueles anos ele acreditara conseguir
prazer, quando não fora assim. Nada era comparável a esse
grandioso presente. Sempre acreditara que bastava dar. Mas
de repente compreendia que receber era outra forma de dar.
Evelyn podia ser ingênua em suas carícias, possivelmente
inclusive pouco hábil, mas, visto que ela conhecera outra
coisa, ele estava convencido de que seu entusiasmo era mais
do que poderia encontrar em outra parte. Essa mulher o
mimava com seus esforços. Produzia-lhe mais aceitação do
que jamais conhecera.
Desejava-a mais do que era inteligente desejar, mas já
deixara de se preocupar com a inteligência. Era como um
homem viciado nos jogos de azar. Na vida havia mais
fracassos que êxitos, mais cartas más que boas, mas, quando
o destino sorria, importava somente esse instante de vitória.
Sentia-se vulnerável, exposto, mas isso fazia que a
aventura, os momentos compartilhados, fosse maior.
— Evie, — ele a empurrou contra a cama.
Beijou-a e encontrou na língua dela seu próprio sabor.
Sentia-se honrado pelo muito que ela queria fazer por ele,
pelo muito que o desejava. Intensificando o beijo, instalou-se
entre suas pernas, surpreso ao encontrá-la tão úmida, tão
preparada.
Ajeitando-se, afundou em seu interior e se deixou cair
até que seu torso lhe esmagou o peito. Os braços de Evelyn
lhe rodearam até se apoiarem em suas costas. Deveria estar
suando, tremendo, sentindo a familiar opressão em seu peito,
mas a única coisa que ele sentia era Evelyn. Começou a
balançar contra ela. Evelyn levantou as pernas e lhe
aprisionou os quadris. Deveria ter protestado, mas a sensação
de estar envolto por aquele calor era maravilhoso.
Rafe acelerou o ritmo. Nunca antes havia sentido um
prazer tão intenso. Nunca antes havia abrangido todo seu
corpo. Evelyn cavalgava com ele com intensidade, seus gritos
ressonando a seu redor, seu corpo contraindo-se em
espasmos sob o dele. Sentia seus músculos ondularem.
Nunca antes havia se sentido tão fisicamente próximo a outra
pessoa. Nenhuma sombra poderia deslizar entre ambos.
Evelyn arqueou as costas e seus braços se esticaram em
torno dele. E Rafe sentiu a força de sua própria liberação. Se
não estivesse deitado na cama, teria caído de joelhos.
Segurando-se com os braços para não a esmagar, beijou-
a atrás da orelha.
— Eu sabia que seria assim, — sussurrou ela com
doçura.
— Até agora você não havia desfrutado? — Rafe se sentiu
ferido no orgulho. Até então ela lhe dera a sensação de que
havia desfrutado com suas habilidades.
— Sempre foi maravilhoso. Você faz que seja assim. Mas
também resultava solitário, como se cada um obtivesse o
prazer em seu pequeno mundo. Mas desta vez foi como se
compartilhássemos o mesmo mundo. Gostei de poder tocá-lo,
sentir seus músculos com o esforço. Gostei de pensar que
possivelmente você tenha encontrado um pouco de felicidade
em minhas carícias.
— Felicidade? Evie, você quase me matou.
Sentiu-a se mover sob seu corpo e se levantou um pouco
mais para poder olhá-la nos olhos.
— Isso é muito bom. Nunca… — quase não acreditava
que estivesse falando disso. Não se surpreenderia acabar
vestindo saias. Acariciou-lhe os cabelos. — Nunca resultou
tão satisfatório. Eu também achava solitário.
Rafe desejou não ter admitido, mas parecia incapaz de
não contar tudo.
— E sua ferida?
— Os pontos aguentaram, embora eu não saiba como
conseguiram dadas as circunstâncias. — Afastou-se dela,
deitando-se de costas e, imediatamente sentiu falta de seu
contato.
— Não o abraçarei — Evelyn se aconchegou contra seu
lado e apoiou uma mão sobre seu torso, — mas se quiser
pode me abraçar.
Rafe a rodeou com um braço e a segurou. Logo ouviu
seus suaves roncos e ficou contemplando o dossel. Em seu
peito sentiu certa opressão. Sentiu desmoronarem os muros
de pedra que rodeavam seu coração.
Sem esse muro de pedra, como demônios se protegeria?
Capítulo 19

O iate deslizava pela água com Eve ao leme. Um moço


fracote estava atrás dela e a guiava. O sorriso da jovem era
tão amplo que deslumbrava. Sua risada era levada pelo vento
e, sentado em um extremo do barco, Rafe se esforçava para
não grunhir. Também lutava para evitar vomitar.
Embora tivessem perdido a inauguração do iate, ele
avisara Tristan de que na próxima ocasião em que saísse para
navegar, convencido de que passariam semanas, Eve quereria
acompanhá-los. E seu irmão aparecera no clube com um
sorriso travesso.
— Amanhã. Não vou lhe dar a oportunidade de mudar de
ideia.
E ali estava, impressionado com a formosa carpintaria de
madeira e o trabalho artesanal. Tristan lhes mostrara o iate.
Sob a cobertura havia uma biblioteca, um salão e três
camarotes, um dos quais, Rafe descobrira que estava
reservado para ele. Seu irmão desenhara o iate com a
esperança de que os três irmãos pudessem navegar juntos. A
nave era suficientemente ampla para poder navegar
comodamente ao redor do mundo.
— Se você fizer mal ao Camundongo terá que se ver
comigo, — Tristan estava sentado no banco junto a Rafe com
os cotovelos apoiados no corrimão e as pernas esticadas.
— Pois me pareceu ouvir você apresentá-lo como Martin
— Rafe nem sequer se incomodou em disfarçar que estava a
ponto de dar um murro naquele moço.
— Quando ele servia sob minhas ordens no navio era
Camundongo, — seu irmão encolheu os ombros. — Um tipo
duro. Somente ficou conhecido como Martin desde que
começou a se interessar pelas mulheres. Acredita que supõe
uma desvantagem ser chamado como uma criatura que as faz
gritar e saltar sobre os móveis. Suponho que um pouco de
razão ele tem. Mas é um bom moço, e por isso não quero que
o machuquem. Está desfrutando com a companhia de Eve,
mas não irá atrás dela. Nesse sentido não tem nenhum
motivo para se preocupar.
— Não estou preocupado.
— Então seus olhos lançam adagas só por puro prazer.
Rafe franziu o cenho. Tristan era capaz de tirá-lo do
prumo em um segundo.
— Que tal seu estômago? — Perguntou Tristan. —
Quando zarpamos, você estava um pouco verde.
— Ao meu estômago não acontece nada.
— Passei minhas primeiras seis semanas de navegação
pendurado a um lado do navio.
— Por que não desceu?
— Será que você não estuda os globos que tem? Quando
se está no mar, a terra nem sempre está ao alcance da mão.
De maneira que se sofre em silêncio, e reza para viver o
suficiente para voltar a ver terra. Ao final nos acostumamos
ao balanço, e quando pisa em terra resulta estranho que nada
se mova sob seus pés.
— Sente falta do mar?
— Na realidade não, — Tristan sorriu para sua esposa,
de pé junto à Mary. — Precisava escolher entre o mar e Anne,
o que significava que não havia escolha. Eu gosto da Evelyn.
— Como se me importasse o que você pensa, — Rafe
soltou um bufo.
— Vamos, Rafe, — seu irmão sorriu, — sabe muito bem
que sim, importa. Do contrário, você não estaria aqui.
Antes que ele pudesse responder algo apropriado,
Sebastian se aproximou e apoiou um quadril contra o
corrimão.
— Este iate é muito mais agradável do que o que peguei
para ir a Crimeia.
— Ou para retornar à Inglaterra — acrescentou Tristan.
Rafe não havia pensado muito em como seu irmão fora à
guerra.
— Quase não me recordo da viagem de volta. Estive
enjoado quase todo o tempo.
— Estava se recuperando das feridas, — recordou-lhe
Tristan.
— Suponho... — o duque olhou a seu irmão caçula. —
...que preciso admitir que isto é bastante agradável. Em
qualquer caso melhor que Londres.
— Você não gosta de Londres?
— Detesto. Se fosse por mim ficaria todo o tempo em
Pembrook. Mas Mary insiste no contrário.
— Além disso, está o pequeno detalhe da Câmara dos
Lordes — murmurou Tristan. — Não sei para que nosso tio
desejava tanto essa responsabilidade.
— Difícil saber, — Sebastian suspirou. — passaram
quinze anos desde que ele tentou nos liquidar.
— Quinze?
Rafe se surpreendeu ao descobrir Eve a seu lado, com
expressão atônita.
— Desde que se… perderam? — Ela acrescentou.
— Desde que abandonamos Pembrook, sim — confirmou
Sebastian. — Quinze. Mês a mais, mês a menos. Era inverno.
— Você me disse que fazia dezenas de anos — ela se
voltou para o Rafe.
— E fazia, — ele encolheu de ombros.
— Você tem somente vinte e cinco anos?
— Quantos anos acreditava que eu tinha?
— Uns quantos mais.
E era certo que se sentia mais velho. Em certas ocasiões
tinha a sensação de ter mil anos, com seu correspondente
peso.
— É difícil de acreditar quão jovens fomos — assentiu
Sebastian.
— A idade se mede por como se vivem os anos, não pelo
tempo durante o qual transcorrem — murmurou Tristan.
— Esse é meu marido filosofando de novo? — Perguntou
lady Anne enquanto se sentava ao lado dele. Imediatamente
ele a rodeou com um braço e a atraiu para si.
— Você gosta das minhas filosofias.
— É verdade, — Anne sorriu com doçura. — São um dos
motivos pelos quais eu a amo.
Rafe começou a ter uma sensação de asfixia, como se a
roupa lhe apertasse, apesar de que usava somente uma
camisa e calças largas. Tristan insistira em prescindir de
roupa formal a bordo. Possivelmente fosse porque o banco de
repente estava abarrotado. Levantando-se de um salto, esteve
a ponto de perder o equilíbrio, recuperou-o e reduziu a pouca
distância que o separava de Eve.
Mary se fundiu em um abraço com Sebastian.
Rafe se sentiu de repente em evidência por não rodear
Eve com seu braço, mas ela não era nem sua esposa, nem o
amor de sua vida. E não queria que ela interpretasse mal seu
lugar.
— Parecia que você estava conduzindo o iate.
— Martin fez quase tudo — respondeu ela. Sua voz
carecia da alegria que havia irradiado tão somente alguns
momentos antes.
Como podia um moço magricela produzir tal sensação de
felicidade nela com tão pouco esforço?
— Terra à vista! — Gritou o rapaz.
— Pensei que poderíamos desfrutar de um picnic em
alguma ilha, — explicou Tristan enquanto se levantava do
banco.
— Qual ilha? — Perguntou Eve. — Vejo várias.
— Já que você é nossa convidada, pode escolher.
O sorriso de Eve era tão brilhante que Rafe desejou ter
sido ele quem tivesse proposto que ela escolhesse.

Cada casal tinha uma manta sobre a qual se sentar. As


cestas de vime transbordavam comida e garrafas de vinho. Os
casais estavam todos o bastante perto para manter uma
conversa, se fosse seu desejo, embora a maior parte do tempo
se dedicara a murmurar entre eles.
Ao menos os outros dois casais. Evelyn e Rafe pareciam
ter caído em um desconfortável silêncio. Ela desfrutava da
companhia dos outros, mas encontrar-se na presença deles
não fazia mais que lhe recordar o que ela não era: amada.
Casada.
Com a perspectiva de ter filhos.
Estava muito agradecida por eles não a recusarem, por
não a fazerem se sentir inferior, mas uma parte dela desejava
ter ficado no iate com Martin.
— Você está muito calada, — observou Rafe em voz
baixa, como se, igual a ela, tampouco queria incomodar os
outros dois casais. Estava deitado de lado sobre a erva com
uma taça de vinho na mão. — Antes você ria muito com
aquele Martin.
— Ele estava me contando algumas de suas aventuras —
Evelyn sorriu ao recordar-se.
A princípio o moço havia falado quase em gagueira. Mas
ao compreender o muito que ela estava desfrutando, ele
começara a relaxar. Um rapaz tímido, embora sem dúvida
ganharia mais de um coração.
— Não imagino poder ver tanto do mundo quanto viu ele.
— Mesmo assim parece triste. É porque deve permanecer
em Londres?
Não. Porque era amante e não esposa. Entretanto não
era o momento de começar uma discussão sobre aquele
assunto.
— Surpreendeu-me saber quão jovem você é.
— Por isso está tão melancólica?
Evelyn desejou poder estender uma mão e alisar a ruga
do sobrecenho, mas não se haviam tocado desde que subiram
a bordo do Princess. A falta de vínculo afetivo diferenciava
alguns casais de outros e, por mais que ela tivesse gostado
que não acontecesse, provocava-lhe uma profunda dor no
peito.
Talvez se soubesse o que Geoffrey lhe reservara, se
tivesse recebido alguma advertência, poderia ter encontrado
outra saída. Nas últimas semanas ela perdera a inocência e
carregava a sensação de ter envelhecido anos. Naquele
momento lhe parecera a única decisão possível. Estava
assustada, desorientada despreparada ante a vida que
Geoffrey lhe havia preparado. Seu pai não ajudara ao protegê-
la tanto. Com o Rafe ela se tornaria mais forte, mais
confiante. E naquele momento não só sabia o que queria, mas
também o que merecia.
— A vida o obrigou a amadurecer muito depressa. Sendo
muito jovem averiguou o que queria e o que não. Não permitiu
que as pessoas se aproveitassem de você. Não posso dizer que
eu tenha feito o mesmo.
— Você acredita que eu me aproveitei? — Perguntou Rafe
depois de um prolongado silêncio.
Que Deus a ajudasse, porque assim ela acreditava.
Acreditava-o o tipo de homem que faria algo assim. De
verdade era esse o tipo de homem que merecia seu amor?
— O que acredito é que vou dar um passeio.
— Não gosto de passear.
— Por mim perfeito, pois gostaria de ir sozinha.
Rafe não tentou detê-la, o que ela agradeceu
imensamente. Ficando em pé, aproximou-se da praia até onde
à água lambia a borda. Tirou os sapatos para que não se
enchessem de areia e vagou pela borda com a água à altura
dos tornozelos. Não se importava se se molhasse. Logo
secaria.
Compreendia Rafe e conhecia muitos dos detalhes que o
haviam convertido no que era, que o obrigaram a levantar um
muro ao redor do coração. Pouco a pouco estava arrancando
pedacinhos daquele muro, mas, embora encontrasse o
coração dele, ele era um lorde e ela, a filha ilegítima de um
conde. Era uma perdida, uma mantida.
— Que bom é aqui, não é verdade? — Perguntou lady
Anne.
— Há muita tranquilidade — Evelyn se voltou para ela e
sorriu.
— A brisa produz outro som aqui, a água canta sua
própria canção. Tristan e eu costumamos celebrar picnics em
diferentes ilhas. Ele precisa do mar.
— Mas renunciou a ele por você.
— E eu renunciaria à terra firme por ele, — lady Anne
riu. — Ao final, acredito que chegamos a um acordo e
nenhum dos dois tem a sensação de ter renunciado a nada.
— Estão sendo muito amáveis comigo.
— Não é fácil amar a nenhum destes lordes de
Pembrook. Tiveram uma vida muito dura. Todos se
equivocaram sobre qual deveria ser sua prioridade. Keswick,
pelo que, pensava que a única coisa importante era
Pembrook. Para Tristan, o mar era seu amante e a única coisa
que importava. Não conheço Rafe o suficiente para saber a
que ele dá mais importância.
Rafe não dava importância a nada. Ou ao menos para ele
era importante que nada nem ninguém tivesse importância.
Já anoitecia quando retornaram à residência.
Evelyn não se surpreendeu que se retirassem
imediatamente a seus aposentos, nem que Rafe se desfizesse
da jaqueta, do colete e da camisa em questão de minutos.
Havia passado uma semana desde que ela descobrira sua
aversão pela roupa, uma semana durante a qual a ferida do
lado começara a sarar.
Ela mostrava certa lentidão na hora de desabotoar a
roupa, pois estava mais interessada em estudar o homem que
ela acreditava começar a conhecer. Ela estava convencida de
que ele superava os trinta anos. Entretanto, tinha apenas três
anos mais que ela.
Sabia que ele tivera uma vida difícil, mas jamais lhe
ocorrera o muito que ele tivera que trabalhar para conseguir
todas as suas posses em tão pouco tempo.
— Preferiria estar com ele? — Perguntou Rafe
bruscamente.
— Com quem? — Evelyn se sentiu aturdida pela
pergunta.
— O rapaz. Martin. O Camundongo. Como quer que se
chame. Pensava nele quando caminhou até a borda?
— Pensava em você, — reconheceu ela. Rafe se deteve
em seco. — Pensava em nós. Somos muito diferentes dos
outros casais.
Ele apoiou os cotovelos sobre as coxas e se inclinou a
frente enquanto entreabria os olhos, fixando-os em algum
ponto da parede mais longínqua, possivelmente na janela.
— Nunca menti. Sempre fui sincero sobre o que existiria
entre nós.
— Mas compartilhamos tantas coisas que comecei a
pensar que algo poderia mudar. Vi a possibilidade de que
assim fosse. Eu me atrevi a desejar o que jamais pensei que
poderia ter.
Ele a contemplou.
— Continuo sonhando em me converter em uma esposa
— “ser sua esposa”.
Não estava segura de quando começara a pensar assim.
Sustentou-lhe o olhar durante um instante, tentando
interpretar algo, ver se sua confissão o impactara, ou
inclusive deleitara. Mas ele não mostrava nenhuma emoção. A
noite em que foi ferido, ele baixara as defesas, mas, durante
as noites que seguiram, retornara a levantar o muro. Embora
continuasse lhe permitindo tocá-lo, e ele a abraçava enquanto
dormia, continuava faltando algo, a solidão não se dissipou
por completo. Nunca lhe dissera que a amava, nem sequer
que gostava. E ela não sabia como abordar o tema.
— Seus irmãos e suas esposas foram muito amáveis
comigo, mas somente porque não desejam criar mais
distância com você. Continuo sendo uma mulher rodeada
pelo escândalo. Duvido que me recebessem em suas casas se
você não estivesse aqui.
— Eles sabem muitas coisas sobre escândalos. Já
viveram os seus.
— Mas, quando há amor no meio, tudo se perdoa. Com o
tempo se converte em algo romântico, em material para uma
novela, em algo sobre o qual as garotas jovens suspirarão e
ainda não compreenderam que nem todos os escândalos
terminam bem.
— O seu sim terminará. Você se converterá em uma
mulher economicamente auto-suficiente.
Eve contemplou o homem que arrancava as botas. O
estômago se encolheu e sentiu uma sacudida por todo seu
corpo.
— Você sente algo por mim?
— Eu lhe dei joias de presente, não? — Rafe deixou
cuidadosamente a segunda bota no chão. — E a levei a bordo
daquele maldito iate, não?
— Mas não me abraçou, — Evelyn cobriu a boca com
uma mão, reprimindo as lágrimas que ardiam em seus olhos.
— Durante todo o dia mantivemos distância. Poderíamos ter
sido dois desconhecidos. Martin prestou mais atenção em
mim do que você.
— Então sua opinião é que poderia ser mais feliz com
ele.
— Pois claro que não. A única coisa que sei é que com
você não sou completamente feliz.
— O que quer de mim, Eve? — Rafe ficou de pé de um
salto. — Eu lhe dei isso tudo.
Ela sentiu que a alma caía aos pés. Lentamente, sacudiu
a cabeça.
— Não, só me deu aquilo que você pode comprar.
— Suponho que estava claro que não haveria nada mais
entre nós, — sem ter posto nada mais que as calças, ele se
aproximou até ela. — Já lhe expliquei isso na primeira noite.
É melhor que não haja sentimentos.
— Sério? Disse-me que não gostava quando eu o tocava.
Não acredita que seria impressionante que lhe tocassem o
coração?
— Não tenho nenhum coração que possa ser tocado. Faz
muito que não o tenho. E não me sinto culpado a respeito.
Rafe lhe tirou o vestido e as anáguas, deixando-as
atiradas no chão. Sapatos e meias também. As pernas da
Evelyn pareciam se mover por vontade própria, sem que ela
exercesse nenhum controle.
— De maneira que isto é tudo o que haverá entre nós?
— Esses foram os termos do acordo ao qual aceitou —
ele se deteve e a olhou fixamente.
— E se eu já não estiver de acordo com esses termos?
— Então precisarei me esforçar para convencê-la de que
esses termos são de seu agrado.
Rafe tomou posse da boca dela, com ânsia e dureza. As
lágrimas alagaram os olhos de Evelyn, que foi vagamente
consciente de ser levada até a cama, de sentir as mãos e a
boca de Rafe por todo seu corpo. Ela se sentia como uma
daquelas bonecas de porcelana que seu pai lhe dava de
presente e que rompiam com facilidade.
— Toque-me, Eve — suplicou ele com voz rouca. —
Toque-me.
Mas ela não podia, não quando não restava nenhuma
esperança de chegar até seu coração. Com surpreendente
clareza, ela compreendeu que, desde o começo, esperara que
houvesse algo mais entre eles, havia pensado que
possivelmente ele se apaixonaria por ela, que conseguiria o
final feliz que sua mãe não chegara a conhecer.
Rafe se elevou sobre ela. Sentia sua dureza empurrando,
intimamente, procurando a entrada.
— Responda Eve.
Mas pela primeira vez em sua vida, nada importava.
— Que sentido tem a vida se não houver esperança para
o amor?
— Este é o sentido, — ele soltou um juramento e lhe
beijou o pescoço, os seios, mordiscou os mamilos. —
Responda.
Evelyn contemplou o dossel e imaginou o iate agitando
as águas a sua passagem. Aquele iate poderia levá-la para
longe dali. Poderia levá-la a algum lugar muito, muito,
longínquo. A primeira noite se perguntou se teria a
capacidade para separar seu corpo de sua mente. E começava
a descobrir que era bastante simples se o coração não era
mais que um despojo de pedaços quebrados.
— Você conhecia os termos do acordo, — Rafe soltou um
rugido e se afastou dela, afastou-se da cama, olhando-a
furioso. — É muito tarde para lamentar.
— Por desgraça eu temo que nunca é muito tarde.
— Está se mostrando pouco razoável.
— Mereço mais.
— Pois pode estar segura de que não encontrará nada aí
fora — respondeu ele enquanto assinalava para a janela,
antes de irromper em seu dormitório e fechar com uma
sonora batida.
Ela se rodeou o corpo com os braços e permitiu que as
ardentes lágrimas lavassem suas bochechas, embora não
pudessem lavar a dor de seu coração.

Rafe apoiou as costas contra a porta. Não havia


necessidade de utilizar a chave porque já não a mantinha
fechada. Deveria se sentir familiarizado com seu dormitório,
mas o pegou despreparado. Toda sua roupa havia
desaparecido. Cada uma das camisas rasgadas, coletes,
jaquetas. Todas as calças. Os farrapos dos lenços. Cada
objeto que alguma vez o havia ofendido, ameaçara asfixiá-lo.
Desaparecido.
Eve tinha recolhido tudo para levar ao orfanato.
O colchão nu sobre o qual estava acostumado a dormir
em um tempo em que acreditava que os lençóis e as mantas o
fariam começar a suar, agora estava coberto por roupa de
cama de cor violeta. As cortinas recém colocadas estavam
abertas para permitir a entrada da noite. Não se via nenhuma
mancha de pó. O chão de madeira estava imaculadamente
limpo.
O aposento cheirava a cera de abelha. Cheirava a ela.
Evelyn fizera tudo aquilo. Expulsara os demônios.
Devolvera à magia das carícias. Ajudara-o a vencer a loucura.
Rafe se aproximou até a janela e olhou para o exterior.
Tudo nele o empurrava a retornar ao dormitório dela, a lhe
pedir desculpas, a fazê-la sorrir. Mais ainda, a fazê-la rir. Era
o que o havia aborrecido a bordo do iate: ver como aquele
rapaz era capaz de lhe provocar a risada com tanta facilidade
quando ele não se lembrava de um só momento em que
tivesse obtido tal façanha.
Apoiou as mãos sobre o batente.
— Sente algo por mim? — Ela havia perguntado.
“A cada respiração”.
Durante um instante ele fora aquele menino de pé junto
ao caixão de seu pai, que vira seus irmãos partirem, o rapaz
desalinhado que havia se sentido aterrorizado na escuridão.
Ela, sem dúvida o abandonaria. Se lhe concedesse algum
poder sobre ele, ela o abandonaria.
Em seu interior não havia suficiente bondade para fazer
que ela ficasse, e além disso conhecia seus segredos.
Não deveria sentir nada por ela. Não deveria significar
nada para ele. Mas significava.
Afundou a mão no bolso da calça e acariciou a moeda.
Ela o aconselharia a lançá-la ao ar, mas não precisava para
saber o que queria.
Nunca precisara nada, nem de ninguém. Não desde
aquela noite em que seu tio tentara matá-los. Tampouco
precisava dela, mas isso não lhe impedia de desejá-la.
Não soube quanto tempo ficou ali de pé, acariciando a
moeda, recordando cada instante que havia passado com ela.
Pensou em deitar-se na cama, a cama que parecia a de um
homem cordato, mas não queria dormir sozinho.
Afastando-se da janela, dirigiu-se para a porta.
Ela era sua amante e ele estabelecia as regras. Deitaria
com ela sempre que ele desejasse muito. E nesse momento
gostaria disto. Não faria amor…
A ideia abriu passo a tropicões em sua mente. Desde
quando começara a pensar que era fazer amor com ela?
Desde quando deixara de ser simplesmente deitar com ela?
Desde quando com ela era mais que qualquer outra mulher?
Rafe apoiou a testa contra a porta. Do outro lado tudo
era silêncio. Estava acordada? Havia chorado? Não suportava
a ideia tê-la feito chorar. Evelyn merecia alguém muito melhor
que ele. Deveria partir, declarar completo o contrato. A
residência já estava em nome dela. Ocupou-se daquilo antes
de ir procurar o cavalo. O certo era que Evelyn possuía direito
a expulsá-lo aos chutes.
Aquela mulher desejava mais do que ele podia lhe
oferecer. Podia comprar tudo que desejasse. O problema era
que o que ela mais desejava não podia ser comprado, e ele
sabia muito bem. Também sabia que não era capaz de dar.
Queria meter-se na cama e sentir que ela se movia e se
aconchegava contra seu corpo. Queria sentir a cabeça dela
apoiada sobre seu ombro, a mão apoiada sobre seu torso.
Uma vez mais, somente uma vez mais, e então possivelmente
poderia deixá-la partir.
Para não a incomodar, abriu a porta com cuidado e
entrou nos aposentos. Em seguida sentiu como se toda a
vida, o ar, a alegria, tivesse desaparecido do ambiente. Não
precisou olhar para saber que ela não estava na cama. Não
precisou procurar para saber que ela não estava na
residência. Mesmo assim correu até o armário e quase
arrancou a porta das dobradiças ao abri-lo. Todos os vestidos
estavam ali, o vermelho, o violeta, o amarelo. Cada vestido,
cada casaco.
Tudo exceto o horroroso vestido negro e capa de
conjunto que ela usava no dia em que chegara.
— Não.
O som surgiu abafado de sua garganta, um grito de
incredulidade. Rafe correu até a penteadeira e abriu o
joalheiro. Todas as joias que ele lhe dera continuavam ali,
sobre a base de veludo, lançando brilhos zombeteiros.
Unicamente faltavam as duas peças que seu pai lhe dera.
Rafe teve a sensação de que algo em seu interior estava
se rasgando, fazendo-se em pedaços. Ela não o abandonaria.
Ele não permitiria.
— Laurence, Laurence! — Ele correu escada abaixo.
Em algum lugar um relógio marcava a hora, uma, duas,
três vezes. Era madrugada. Aonde ela poderia ir? Com os
cabelos revoltos e a jaqueta torcida, Laurence apareceu no
vestíbulo, ao mesmo tempo, que Rafe.
— Eve pediu uma carruagem?
— A senhorita Chambers? Não, senhor.
De modo que ela havia partido a pé. Aonde iria?
Rafe saiu correndo da residência. Não a via no caminho.
Não a via entre as sombras da noite. Esteve a ponto de gritar
seu nome, mas seu orgulho o impediu. Não podia permitir
que toda Londres soubesse que, uma vez mais, ele fora
deixado para trás.
Capítulo 20

Rafe estava de pé junto à janela de seus aposentos do


clube, observando as idas e vindas das pessoas, tentando não
se recordar quanto costumavam fascinar Eve. Não pensar
nela estava sendo um empreendimento muito difícil, pois tudo
lembrava ela.
Ao percorrer a residência aspirava sua fragrância. Já não
suportava ficar ali nem sequer um instante. Cada aposento
lembrava a ela.
E permanecer no clube resultava igual de difícil.
Quando boxeava com Mitch, pensava em Eve durante as
lições no ring. Quando olhava o salão de apostas, via-o
através de seus olhos.
Quando ia a seu escritório, lamentava não lhe ter
mostrado o globo que Tristan esculpira para ele, não ter
explicado que sentia medo de se sentir agradecido. Se alguma
vez ele se importasse com algo, sem dúvida lhe seria
arrebatado. O melhor era não sentir.
Assim seria imune à dor.
Então, por que ele sentia essa maldita dor?
Porque a adorava, maldito fosse. Esse era o motivo pelo
qual sofria essa agonia, pelo qual não atendia o clube, pelo
qual lhe dava exatamente igual quanto dinheiro estava
ganhando, pelo qual lhe dava igual se alguns homens lhe
deviam mais do que seriam capazes de lhe devolver se
vivessem dez vidas.
Evelyn não tinha ninguém, nem aonde ir. Mesmo assim
ela conseguira desaparecer como a fumaça levada pela brisa.
Se não estivesse seguro do contrário, teria chegado a pensar
que ela não havia sido mais que um produto de sua
imaginação.
Deveria deixá-la em paz, deixar de se preocupar com ela.
Havia tomado uma decisão. Partiu. Mas fizera aquilo sem
saber o que ele sentia na realidade. Partiu pensando que não
lhe importava.
Maldito imbecil ele demonstrara ser.
Teria morrido por lhe confessar que sim, ela lhe
importava?
Tirou a moeda do bolso e a observou, recordando quão
morna ela havia parecido quando seu pai a colocara sobre a
palma de sua mão. Não acreditava no azar, na sorte ou na
fortuna. Em sua opinião era o homem quem criava as três
coisas, às vezes do nada.
Girou a moeda uma vez, duas, três. Não podia jogar
aquele estúpido jogo. Mas sim podia lançá-la. Cara, deixá-la-
ia partir. Coroa a buscaria.
Lançando-a para cima e observou alcançar seu topo,
girar e iniciar a descida. Estava a meio caminho para a porta
quando a ouviu se chocar contra o chão. E compreendeu que
dava exatamente igual de que lado havia aterrissado.
Ele a procuraria até encontrá-la ou até exalar seu último
suspiro.
Rafe correu escada abaixo e saiu pela porta traseira. Não
estava muito seguro de por onde começar. Os bairros baixos,
supôs. Sem dúvida ela não havia retornado com Wortham e,
se tivesse outro refúgio, não teria permanecido com ele
naquela primeira noite.
Ele lhe explicara onde poderia vender suas joias. Ele lhe
mostrara onde poderia procurar alojamento. Sim, os bairros
baixos. Ela teria ido para lá.
Saindo à rua, fechou a porta atrás dele e se dirigiu para
o cais. Havia enviado a carruagem de volta à residência,
porque não tinha nenhuma intenção de retornar para lá. Sem
ela, aquele lugar lhe resultava miserável. As pequenas coisas
que lhe produziam tal prazer… Ninguém o havia fascinado
como Evelyn.
Rafe girou ao chegar a um beco, com a intenção de
alcançar a próxima rua e alugar uma carruagem. Entretanto
foi impedido por seis valentões que o rodearam. Não possuía
nem o tempo, nem a paciência para essas tolices.
— Se souberem o que é melhor para vocês, cavalheiros,
se afastariam e me deixariam continuar meu caminho.
— E, se você soubesse o que é melhor para você me
devolveria o clube.
Rafe observou como o grupo abria passagem para
Dimmick, que se adiantou. Embora houvesse pouca luz, era
evidente que continuava sendo o mesmo de sempre.
— Dimmick. Disseram-me que você estava morto.
— Foi o melhor para eu me esconder uma temporada.
Encontrei um tipo mais ou menos de minha estatura,
esmaguei-lhe a cara, vesti-o com minha roupa e deixei que os
peixes o mordiscassem um pouco. Depois paguei a outro para
que exclamasse “meu Deus, é Dimmick!”. A polícia não
costuma fixar-se muito nos de nossa classe. Mas agora
retornei dentre os mortos e quero meu clube de volta. E
também sua bonita residência. Com isso cobrirá meus
interesses.
Rafe sentiu seu estômago encolher ante a ideia de que
Dimmick tomasse posse da residência que pertencia a Eve.
Que Deus ajudasse aos serventes se Dimmick reconhecesse
algum. Alguns ficaram devendo dinheiro e dever e ele, já que
ele recebera o encargo de desfazer-se deles. Mas o que ele
fizera foi lhes dar novos nomes e um lugar no qual viver, onde
fosse pouco provável que se cruzassem com o homem que
queria machucá-los.
— Temo que avalie ambas as coisas um pouco demais
para renunciar a elas facilmente. E visto que como estou
familiarizado com sua maneira de operar, deveria saber que,
se eu morrer, o clube passará as mãos de Mick. Tudo muito
legal. Meu advogado tem o testamento e as escrituras da
propriedade, tudo assinado.
— Sinto ouvir isso. Muito bem, moços, já sabem o que
devem fazer.
O grupo se equilibrou sobre Rafe, os punhos ao ar.
Embora conseguisse derrubar um, possivelmente dois, eles
eram muito hábeis e logo se encontrou atirado no chão.
— Entregará o que quero de um modo ou outro, —
Dimmick se agachou sobre ele.
“Não, não o farei. Somente se isso supõe que chegou a
averiguar algo sobre a existência de Eve”, pensou Rafe
enquanto era levantado do chão.

Encontrava-se em uma sala vazia de um enorme edifício.


Possivelmente um armazém. Qualquer movimento: fosse
mover os pés, grunhir, respirar, correr dos ratos, ressoava.
Rafe estava amarrado a uma cadeira, a corda firmemente
presa ao redor do torso, braços e pernas. Suas mãos estavam
livres e apoiadas sobre uma mesa baixa. Sobre a mesa, uma
pluma, um tinteiro e uma folha de papel.
— E agora, — começou Dimmick, — vai escrever um
novo testamento, deixando o clube para mim. Em troca do
qual, concederei uma morte rápida. Consta-me que é muito
consciente de que poderia ser lenta e dolorosa.
Rafe olhou a seu redor, avaliando a situação. Estava
rodeado por meia dúzia de homens. Eles seguravam um
enorme martelo. Sabia muito bem com que fim. Se
conseguisse se soltar das ataduras, possivelmente poderia
com um par deles, mas com os seis seria toda uma façanha.
Esteve a ponto de soltar uma gargalhada. Desde quando era
tão otimista para pensar que aquilo poderia sair bem? O
otimismo era assunto de Eve. Lamentava enormemente
jamais voltar a vê-la. Mesmo que fosse somente uma vez.
Poder olhá-la nos olhos, vê-la sorrir, dizer-lhe… Por Deus
santo, que mau momento para se dar conta de que a amava.
E já fazia algum tempo. Durante a maior parte de sua
vida se esforçou para assegurar-se de que nada importava.
Mas ela sim importava. Era a única que importava.
Quando ela o abandonou, ele havia perdido uma parte de
seu ser, possivelmente a última parte que ainda possuía
algum valor.
Elevou a mão direita e moveu os dedos tanto quanto lhe
permitiram as cordas que se cravavam em sua pele. Dimmick
lhe aproximou a pluma. Rafe pegou, molhou-a no tinteiro e
pousou a ponta sobre o papel enquanto contemplava como a
tinta se pulverizava pelo pergaminho. Levantou o olhar e
piscou um olho para seu captor.
— Não acredito que o faça.
— De acordo. Charlie, amasse a mão esquerda.
— Mas você sempre me disse que era para esmagar a
mão importante, com a qual escrevem.
— Utilize a cabeça. Precisa dela para escrever.
— Entendo. De acordo então.
Dois homens mais entraram em ação. Eles rodearam o
pescoço do Rafe com seu braço e lhe obrigaram a levantar o
queixo enquanto o outro lhe segurava o pulso esquerdo de
modo que a mão ficasse esmagada sobre a mesa. Rafe
recordou a primeira vez que Dimmick lhe obrigara a romper a
mão a alguém.
— Amasse a mão dele ou lhe romperei o braço.
E Rafe lhe quebrara a mão. Jamais esqueceria o som do
osso ao romper-se, nem o uivo de dor da vítima. Sua mão
nunca se curou totalmente, o que o convertia em um dos
piores ajudantes de câmara de toda Londres.
Manteve o olhar fixo em Dimmick. Se saísse dessa,
assegurar-se-ia de vê-lo pendurado. Tudo legal. Ele não
poderia retornar de um enforcamento.
Pela extremidade do olho viu elevarem o martelo.
Preparou-se…
Uma incomensurável dor o atravessou. Quis manter-se
digno, mas não foi capaz de conter o grito gutural. Os homens
o soltaram. Respirando com dificuldade observou Dimmick. O
homem sorria satisfeito.
— E agora, escreva esse testamento ou farei que voltem a
golpeá-lo até que o osso fique reduzido a mingau.
— Vai ser… um pouco… difícil. Resulta que sou canhoto.
Ouviu o rugido de Dimmick, viu o martelo em sua mão
gorducha, viu-o descer…
A dor o levou às mais negras profundidades.

Deveria ter fome, sobretudo porque o jantar desdobrado


ante seus olhos era um dos mais deliciosos que já vira. Mas
não encontrava o sabor em nada. Comeu pequenos bocados
porque assim lhe resultava mais apetecível.
— Não está a seu gosto? — Perguntou Mary. — Posso
fazer com que a cozinheira prepare outra coisa.
— Não tenho apetite, — ela sorriu. — Isso é tudo. Foram
muito amáveis.
Eles a acolheram na metade da noite em que
abandonara Rafe. Não sabia aonde ir, mas logo averiguou que
a duquesa era extraordinariamente compassiva. Inclusive a
abraçara enquanto ela soluçava e balbuciava. Não julgou
Rafe, salvo para opinar que Evelyn fazia bem em abandoná-lo.
Mas se assim era, por que doía tanto? Por que se sentava
em frente à janela com a esperança de vê-lo entrar ou sair da
residência? Estava bem? Sentia falta dela?
Havia momentos em que considerava retornar junto a
ele, mas desejava muito mais do que ele poderia lhe dar.
Necessitava tudo aquilo que ele não podia comprar: amor,
família, felicidade.
Mas já tinha chorado o suficiente. Chegara a hora de
seguir adiante.
— Não posso continuar me aproveitando. Pensei em
começar a procurar trabalho amanhã, — quanto tempo ela
estava ali? O passar dos dias e das noites não possuía
nenhum significado para ela.
— Ajudaremos você a encontrar algo. Que habilidades
possui?
Antes que ela pudesse começar com a lista de seus
limitados talentos, a porta do salão se abriu de repente, como
impulsionada por uma tormenta e Tristan Easton irrompeu.
— Suspeito que Rafe tenha problemas, — ele anunciou
sem o menor preâmbulo.
— Por que você diz isso? — O duque se levantou com tal
violência que a mesa cambaleou.
— Não esteve no clube, nem em sua residência há três
dias. Ninguém sabe onde ele está.
— Isso não é próprio dele, — Eve se sentiu invadida por
um profundo temor. — Ele nunca se afasta muito tempo do
clube.
— Tem alguma ideia de aonde poderia ir?
— O clube é a única coisa que lhe importa, — ela
sacudiu a cabeça.
— Duvido muito — respondeu o duque. Seu olhar
revelava que, em sua opinião, ela era importante para Rafe. —
Poderia ter ido a Pembrook?
— Não acredito, — respondeu Evelyn, — mas, por outra
parte, tampouco acredito conhecê-lo muito bem.
— Eu fui lá, — interveio Tristan. — Quando Anne e eu
nos distanciamos. Ajudou-me a superar o passado, mas não
estou seguro de que os demônios do Rafe residam em
Pembrook.
— Se estão em algum lugar, esses demônios estarão em
St. Giles — observou Evelyn. — Possivelmente Laurence
saiba. Tentou matá-lo em uma ocasião.
— O mordomo tentou matá-lo? — Perguntou Sebastian.
— E em que demônios ele estava pensando ao contratar
aquele homem para dirigir sua casa?
— Pouco importa, — interrompeu lorde Tristan. —
Voltarei a falar com ele.
— Acompanho você, — Evelyn ficou em pé.
Enquanto se dirigia junto a Tristan e o duque, que havia
insistido em acompanhá-los à casa vizinha, soube que Rafe
não ia gostar que seus irmãos averiguassem a verdade sobre
a vida que ele vivera enquanto eles estiveram fora. Mas, se
houvesse problemas, possivelmente eles poderiam ajudá-lo, e
isso era a única coisa que importava. Encontrá-lo, assegurar-
se de que ele estava bem. Não sabia por que lhe importava
tanto. Sim sabia. Era pelo pequeno e molesto detalhe que ela
o amava, apesar de sua rudeza, seus muros e sua distância.
Era melhor homem do que admitia ser. E ela vira aquele
homem.
Nem sequer se incomodou em bater na porta. Limitou-se
a entrar como se a residência fosse dela. Laurence apareceu
no vestíbulo, deteve-se e sorriu.
— Senhorita Chambers, você retornou. O senhor se
sentirá aliviado. Enviarei mensagem ao clube.
— Não está lá, — informou-lhe Tristan. — Abandonou o
clube faz três noites. Quando falei com você faz um momento,
disse-me que fazia três dias que não o via.
— Assim é. Não esteve aqui, mas nele não é estranho.
Antes da chegada da senhorita Chambers, podia passar um
mês ou dois sem vir.
— E, se não está aqui nem no clube, onde pode estar?
— Não há nenhum outro lugar, — Laurence sacudiu a
cabeça. — Exceto St. Giles. Mas não ficaria lá nem um
segundo. Aborrece-se com aquele lugar.
— Por onde deveríamos começar a procurar?
O mordomo hesitou, sem dúvida pelo costume de
conviver com um homem que cultivava tantos segredos.
— Laurence, — Evelyn sorriu para animá-lo, — deveria
responder ao duque. Lorde Tristan e ele são os irmãos do
senhor Easton.
— É verdade, agora reconheço a semelhança.
— Conte o que souber.
— Poderia estar em qualquer parte de St. Giles. Enviarei
os serventes para que façam averiguações.
— Não será necessário, — respondeu o duque. —
Dirigimo-nos para lá agora mesmo.
— Com todo meu respeito, Sua Graça, está familiarizado
com St. Giles?
— Passei por ali, sim.
— Todos vivemos ali. Se houver algo fora do normal,
descobriremos.
— Todos viveram em St. Giles? — Perguntou Evelyn,
nada surpreendida de descobrir que Rafe os acolhera.
— Certamente, senhorita. Se me permitir a ousadia,
sugiro que falem com Mick, no clube. Ele segue um pouco
mais que eu em contato com os elementos indesejáveis.
— Obrigada por seu conselho, Laurence — Evelyn sorriu.
— Com certeza o seguiremos.
— Vamos ao clube — sugeriu o duque ao mesmo tempo
que se voltava para a porta. Evelyn girou sobre seus
calcanhares para segui-lo.
— Senhorita?
Ela se voltou para o Laurence.
— Ele passou uma grande parte de sua vida
sobrevivendo naquelas ruas. As pessoas não fazem algo assim
sem ganhar algum inimigo, mas não é fácil derrubá-lo.
— Está de acordo com lorde Tristan? Acredita que ele
tem problemas?
— Se não está no clube, então temo que possa ser assim.
Mas o encontraremos, de um modo ou outro.
Evelyn nem sequer se atreveu a considerar que “outro”,
poderia significar encontrá-lo morto.
— Desaparecido?
De pé no balcão junto ao duque e lorde Tristan, Evelyn
observou o gerente do clube Rakehell, Mick, os braços
cruzados sobre o peito, fulminando-os com o olhar como se
fossem eles os responsáveis pelo desaparecimento.
Tristan repetiu o que Laurence lhes contara e Mick
soltou um juramento baixo.
— É verdade que ele nunca se afasta muito tempo deste
lugar. Mas ultimamente passa mais tempo fora, por isso não
dei importância. Deveriam perguntar a lorde Wortham.
— O que meu irmão poderia ter a ver com isto? —
Perguntou Evelyn.
— Apunhalou-o em uma ocasião. Aqui mesmo, no salão
de apostas, diante de todo mundo.
— O quê? — Ela o olhou boquiaberta. — Não, Rafe me
disse que… — fechou os olhos com força, recordando as
palavras exatas.
“Diga que não foi ele”.
“Não foi ele”.
Soltou uma série de impropérios muito pouco dignos de
uma dama e abriu os olhos, encontrando-se com os olhares
perplexos dos três homens, como se eles pensassem que as
mulheres eram incapazes de pronunciar obscenidades.
— Nunca me disse o nome do homem que o apunhalou.
Somente se referiu a ele como um idiota. Deveria ter
imaginado. Tem muito má opinião sobre Geoffrey.
— É bem merecida, — interveio Mick. — Embora jure por
minha vida que jamais compreendi de onde Wortham tirou os
culhões para fazer o que fez. Jamais conheci um homem mais
covarde.
— Talvez seja outra pessoa a responsável por sua
repentina coragem — sugeriu Keswick. — Opino que
deveríamos falar com ele e averiguar.

Evelyn seguiu Manson pelo corredor, seguida por Tristan


e o duque, surpreendida pelo diferente que lhe parecia a
residência. Houve um tempo em que a considerara seu lar,
mas nesse momento compreendia que fora seu pai o que a
convertera em tal, não as paredes ou os retratos, o mobiliário
ou as peças de decoração, das quais lhe pareceu que havia
muito menos. Perguntou-se quantos objetos Geoffrey teria
vendido para saldar suas dívidas.
— Sua Graça, lorde Tristan, que inesperada honra — ao
entrarem no escritório, Geoffrey ficou de pé de um salto.
A Evelyn não passou desapercebido que ele a ignorara
completamente.
— Acredito que já conhece a senhorita Chambers, não é
verdade? — Perguntou o duque.
— Sim, é obvio, — o rosto de Geoffrey se tingiu de
escarlate.
— Seria uma descortesia de sua parte não a saudar
também.
— Senhorita Chambers… — o conde fez uma leve
inclinação de cabeça.
— Milorde. Atrevo-me a dizer que não tem bom aspecto.
Havia perdido peso, tanto quanto ela havia perdido
depois da morte de seu pai. A pele estava coberta de uma
pouco saudável palidez. Sob os olhos, duas meias luas lhe
obscureciam o semblante.
— Sua Graça, no que posso lhes servir? — Perguntou, de
novo ignorando sua irmã.
— Soube recentemente que atacou lorde Rafe com uma
faca.
Embora parecesse impossível, Geoffrey adquiriu um
aspecto ainda mais doentio. A fronte se cobriu de suor.
— Ele me provocou.
— Até o ponto de que matá-lo teria resultado plausível?
— Foi… — o conde deu meia volta, as mãos trêmulas, e
remexeu os loiros cabelos.
— Teria sido? — Insistiu lorde Tristan.
— Foi um desafortunado mal-entendido.
— Onde ele está? — Exigiu saber o duque.
— Não tenho nem ideia — Geoffrey se voltou
bruscamente e os contemplou com expressão incrédula. —
Dimmick não me faz confidências.
— O que sabe sobre Dimmick? — Evelyn sentiu uma
sacudida de inquietação e deu um passo à frente.
— Quem é esse homem? — Perguntou-lhe o duque.
— O anterior dono do clube, — informou ela. —
Supunha-se que estava morto.
— Pois nesse caso retornou da tumba — observou
Geoffrey com altivez, como se se deleitasse ao ter uma
informação que ela desconhecia.
— Que relação você tem com ele? — Perguntou lorde
Tristan em tom ameaçador.
— Eu… eu lhe pedi emprestado algum dinheiro —
Geoffrey deu um passo atrás, como se estivesse em perigo.
— Quanto?
— Muito. Ameaçou me matar. Deve compreender… por
isso…
— Por isso, o quê, Geoffrey? — Perguntou Evelyn
pegando o rosto de seu irmão. — Ele tem algo a ver com seu
ataque a Rafe?
— Supunha-se que eu deveria matá-lo. Assim minha
dívida ficaria saldada.
— Você o mataria por um dinheiro que devia?
— Era ele ou eu. Esse Dimmick é um tipo diabólico.
— Bastardo! — Sem pensar duas vezes, possuída pela
ira, fechou o punho tal e como Rafe lhe ensinara golpeou o
rosto do conde, que aterrissou no chão como uma árvore
caída, o nariz sangrando em jorros.
— Parece que o quebrou, querida, — lorde Tristan se
ajoelhou em frente a Geoffrey.
— E o que fazemos agora? Como encontramos Rafe?
— Levaremos ele de volta ao clube Rakehell. Pode ser que
nos dê alguma pista que tenha algum significado para Mick.
— Não sei onde encontrar Dimmick, não sei como lhe
enviar uma mensagem. Aparece sem mais nada, —
choramingou Geoffrey com voz nasal.
O apêndice apresentava um aspecto bastante feio e
Evelyn comprovou que começavam a inchar os olhos. Deveria
sentir remorso, mas a verdade era que a única coisa que
sentia era o desejo de voltar a golpeá-lo.
Estavam de retorno no escritório de Rafe. Geoffrey
sentado em uma cadeira, recebendo os furiosos olhares de
Mick e dos dois irmãos de Rafe.
— Ouvi rumores de que Dimmick não tinha morrido, —
assentiu Mick. — Não quis acreditar que fossem verdadeiros.
Está ressentido. Sinto que possa ser o responsável pelo
desaparecimento de Rafe.
— E como vamos encontrá-lo? — Perguntou Evelyn.
— Não se preocupem. Tenho aos melhores cães a meu
serviço. Por aqui, senhorita Chambers, cavalheiros.
Deixando Geoffrey onde estava, sob a vigilância de um
corpulento empregado de pé diante a porta, Mick os conduziu
até o balcão no qual estiveram pouco antes. Levantou uma
mão e fez soar um sino. Toda atividade cessou. Todo mundo
olhou para cima.
— Cavalheiros, devo lhes pedir que abandonem o local.
Temos que fazer limpeza. Quando voltarmos a abrir,
encontrarão todas suas dívidas saldadas. Mas devem partir
agora mesmo, o quanto antes possível.
Do salão de apostas surgiram alguns murmúrios de
protesto, mas logo os únicos que permaneciam ali eram os
empregados.
— De acordo, escutem — anunciou Mick. — Há motivos
para acreditar que o senhor Easton desapareceu. Dispersem-
se por St. Giles e vejam o que podem descobrir. Assim que
averiguem algo, qualquer rumor ou notícia, sobretudo se tiver
algo a ver com um tipo chamado Dimmick, façam-me saber.
Muitos de você o conhecem, alguns não. Estes últimos são
afortunados. Façam correr a voz de que haverá uma
recompensa de quinhentas libras para o homem ou mulher
que nos diga o lugar exato onde o senhor Easton pode estar.
E agora partam.
Todo mundo entrou em ação.
— Isto deverá bastar, — Mick se voltou para os outros. —
Confio de que saberemos algo antes que o dia termine.
— Todos são de St. Giles — observou Evelyn.
— Do primeiro ao último. Ele sempre contrata aos mais
famintos, os mais sujos, o pior de cada casa, e nos oferece
algo melhor. Não há um só deles que não esteja disposto a
morrer por ele.
— Conhece meu irmão a muito tempo, — interveio o
duque. Mais que uma pergunta, era uma afirmação.
— Desde que eu era um ranheto que brigava para abrir
caminho nas ruas. Ele não tinha nenhuma paciência comigo,
não parava de me dizer que o largasse, que o deixasse em paz.
Mas sempre estava ali, com o punho preparado, quando os
valentões começaram a se meter comigo. Ensinou-me a
colocar os punhos e a devolver um bom golpe. Quando me
doía a barriga, arranjava algo para comer, mesmo que ficasse
sem nada. Tem um coração forrado de pedra. Mas dentro
dessa pedra há um homem muito melhor do que ele acredita
ser. Morreria brigando por ele e, se Dimmick for o responsável
por não o encontrarem, que Deus ajude a seu irmão, e depois
que Deus ajude ao Dimmick assim que eu puser minhas
mãos sobre ele.
— Terá que se acalmar, — responderam o duque e lorde
Tristan ao uníssono.

Haviam-no deixado fortemente amarrado com as cordas.


Sem comida, sem água, sem consolo. Não sabia quanto tempo
estava ali. Dias, semanas. O tempo parecia não ter
significado. A única coisa da qual era consciente era da
constante agonia que a dor da mão lhe provocava.
Foram para buscá-lo e o levaram de retorno à habitação
quase vazia, sentaram-no na cadeira junto à mesa e o
amarraram a ela. Mas desta vez Dimmick também estava
sentado, rabiscando sobre o papel.
— Quando eu tiver terminado, assinará o melhor que
possa, — anunciou-lhe Dimmick. — E então sua tortura terá
acabado.
Rafe duvidava. Não havia enlouquecido com as cordas.
Simplesmente ele havia imaginado que eram os braços da
Evelyn, rodeando-o, abraçando-o enquanto lhe sussurrava
palavras de ânimo. “Tudo irá bem, tudo terminará bem”.
Mentiras. Um homem podia sobreviver graças às
mentiras. E um menino também.
— Você se esqueceu de que escrevo com a mão
esquerda?
— Eu não esqueço nada. Não esqueço como me enganou
— Dimmick levantou a vista e olhou Rafe com um olho
fechado e o outro acusador. — Não esqueço como voltou meus
meninos contra mim. Inclusive os que me deviam dinheiro
deixaram de ter medo, pensavam que você os protegeria.
Rafe não diria que protegia alguém. Não gostava dos
valentões e Dimmick havia sido um dos piores. Tirar a
autoridade desse rufião lhe produzira uma grande satisfação.
Por isso oferecia uma vida melhor àqueles que dependiam de
Dimmick. Não pelo que lhes dava, mas sim pelo que ele
recebia.
Sempre era ele. O mundo se centrava ao redor de sua
pessoa.
Até a chegada de Eve. O centro se deslocou, quase
derrubando-o do lugar. Dimmick retornou a seus garranchos
de ferro.
— Eu, Rafe Easton, estando em plena posse de minhas
faculdades, físicas e mentais, pela presente… como se escreve
delego?
Dimmick voltou a levantar a vista e Rafe se limitou a lhe
devolver o olhar.
— Que teimoso você é — Dimmick suspirou. — Charlie, o
martelo.
— “D” — começou Rafe, — “e”, “l”, “e”, “j”, “o”.
— Muito obrigado.
Rafe esperava que o advogado, ou Mick, se dessem
conta, ao ver os erros de ortografia, de que não havia sido ele
quem redigira o testamento. Possivelmente não servisse de
nada, mas…
— “Delejo” ao Angus Dimmick o clube Rakehell…
Rafe foi vagamente consciente de um alvoroço, o ruído de
uma porta ao ser aberta aos chutes, pisadas que corriam. De
repente tudo se encheu de gritos e insultos. Dimmick saltou
da cadeira e uma figura imprecisa o agarrou pelo pescoço.
— Ousou machucar o meu irmão?
Sebastian? Que demônios ele fazia ali? Começava a dor a
lhe provocar alucinações? Tratava-se de um sonho?
Rafe o viu tombar Dimmick no chão e começar a golpeá-
lo, tal e como ele desejara fazer desde o instante em que o
amarraram.
— Meu Deus! Ajudem-me a desamarrá-lo.
Eve estava ajoelhada diante dele, acariciando-lhe o rosto.
— Meu amor, em seguida tiraremos isso.
— Eve, — balbuciou Rafe com voz rouca.
— Estou aqui.
Mick e Laurence lhe cortaram as cordas. Rafe sentiu
como se afrouxavam, sentiu que de novo podia respirar.
Quando conseguiu utilizar a mão saudável, tomou com ela o
rosto de Evelyn.
— Quero fazer você rir, Evie.
— Não tenho certeza de que entenda o conceito. Esta não
é maneira de proceder. Por Deus santo, sua mão. Está
terrivelmente retorcida e machucada. Precisa de um médico.
— Depois. Antes quero que saiba que eu a amo, Evie.
Quero me casar com você. Quero lhe dar filhos e essa família
que tanto deseja.
— Está sofrendo, Rafe. Sua pobre mão. Não sabe o que
diz.
— Sei exatamente o que digo. Queria ter lhe dito antes.
Mas não a encontrava.
Os olhos de Evelyn se inundaram de lágrimas. Era
porque ela responderia que sim, ou porque responderia que
não?
— Sebastian, deixe-o já — ordenou Tristan. — Vai matá-
lo.
Rafe se voltou e viu seu irmão tentando afastar Dimmick
inconsciente, do enfurecido duque.
— E você acredita que isso me importa? Viu o que ele fez
ao Rafe?
— Ele está vivo, isso é o que importa.
— Isso não é a única coisa que importa, — Sebastian se
deixou cair ao chão. — Supõe-se que devo cuidar de você e de
Rafe. Faz quinze anos que não o fiz. Mas, por Deus, que agora
preciso ser capaz.
Rafe só queria tomar Evie em seus braços, beijá-la
apaixonadamente e levá-la a algum lugar onde pudessem
estar sozinhos. Mas nos últimos dias pensara muito, visto que
não havia nada a fazer exceto pensar. Sustentou-se de pé
sobre as pernas cambaleantes e se aproximou de seus
irmãos, agachados perto de Dimmick.
— Sinto muito, Rafe — Sebastian levantou o olhar para
ele.
— Não preciso que você cuide de mim.
— Rafe…
— Escute bem. Não preciso que cuide de mim porque
sou perfeitamente capaz de cuidar de mim mesmo. Mesmo
que ele tivesse me matado, teria sido nas minhas condições.
Anos atrás você não teve outra escolha, exceto me deixar
atrás. Sempre soube. Sabê-lo não tornava mais suportável,
mas assim era. E porque você não estava lá para me proteger,
fui em frente por mim mesmo, embora nem sempre me senti
orgulhoso do que…
— Talvez tenha que repensar isso, — interveio Tristan. —
A maneira de se sentir mais orgulhoso do que é. Como
acredita que o encontramos?
Rafe não tivera tempo de refletir sobre como souberam
que ele fora sequestrado, por quem e onde estava. Seus
irmãos não conheciam o lado escuro de Londres, não como
ele.
— Tem um monte de seguidores leais, — Tristan
assinalou com o queixo para um ponto atrás de Rafe.
Ele se voltou e ficou petrificado ante a cena desdobrada
frente a ele. Seus serventes, os empregados do clube…
estavam todos ali, do primeiro até o último homem, e as
mulheres também. E Evie, afastada deles, embora fazendo
parte deles. Mas mais, muitos mais.
— Eu sabia que eles nos ajudariam a encontrar você, —
ela sorriu com doçura.
Rafe nunca se emocionou tanto. Nunca tivera a sensação
de que algo em seu interior estivesse desmoronando. Não
chorava desde aquela noite em que o abandonaram no
orfanato, mas nesse momento algo ardente e espesso lhe
obstruía a garganta.
— Parece que não está tão sozinho quanto acreditava, —
Tristan lhe deu uma palmada nas costas.
— Por Deus, Rafe! Sua mão, — exclamou Sebastian.
— Ficará curada. Tristan e você sofreram coisas muito
piores — pela primeira vez em sua vida admitia que
possivelmente tivesse sido assim.
Mick e Laurence se aproximaram.
— O que fazemos com este verme? — Perguntou Mick.
— Levem-no a Scotland Yard, entreguem ao inspetor
Swindler. Digam que em alguns dias lhe entregarei certa
informação, — Rafe conhecia James Swindler porque ele,
também, havia crescido nas ruas. Por isso sabia que poderia
lhe confiar o diário que havia escrito sobre as atividades de
Dimmick.
— De acordo. E seus meninos? O mesmo de sempre?
Rafe contemplou os patéticos ajudantes de Dimmick.
Sabia muito bem o que era cair em más companhias.
Assentiu.
— Deem a opção: serviço doméstico ou o clube.
Enquanto Mick e Laurence tomavam o mando, davam
ordens, faziam com que levassem Dimmick dali, Rafe se
voltou para Eve, que continuava a seu lado, observando-o.
— Tristan e eu esperaremos lá fora — anunciou
Sebastian depois de clarear a garganta.
Tal e como ele os havia esperado. Durante dois longos
anos, perguntando-se se teriam morrido. Durante os dez que
os havia precedido, jamais lhe ocorrera que não pudesse
voltar a vê-los. Mas os dois últimos anos de espera foram os
mais longos de sua vida.
Finalmente estava sozinho com Eve.
— Falava a sério — ele lhe assegurou. — Quero me casar
com você, — deu um passo para ela. — Sei que não a mereço,
e que nunca serei o tipo de homem que você merece…
— Preciso lhe abraçar — interrompeu Evelyn.
— Por Deus santo, Evie — Rafe tinha a sensação de que
a dor lhe ia esmagar, — e eu preciso que você me abrace.
Mas, sobretudo, carinho, preciso abraçar você.
Desesperadamente.
Em um segundo ela lhe rodeou o pescoço com os braços
e começou a soluçar contra seu peito. Rafe quase sentiu seu
coração partir. Desde quando tinha coração?
— OH, Evie, meu amor, não chore! — Envolveu-a com
seus braços.
— Senti tanto medo que você tivesse morrido.
— Sou muita má pessoa para morrer jovem. De modo
que, se aceitar se casar comigo, será por muito, muito tempo.
— Sabe bem que me oferece somente a ilusão da escolha,
— Evelyn se afastou ligeiramente. — Como não me casaria
com você se o amo tanto?
Ele sentiu como se Evelyn tivesse levantado o martelo e o
tivesse estrelado contra seu peito.
— Repita.
— Amo você, e sim, casarei com você.
Rafe fundiu os lábios com os dela. Depois, pensou. Muito
em breve. Antes que ela tivesse a oportunidade de mudar de
ideia.
Capítulo 21

Na sala de boxe havia mais sombras que luz, como de


costume. A maior parte da luz iluminava o ring, onde lorde
Ekroth permanecia de pé, olhando os homens que rodeavam
a área delimitada por cordas. Rafe Havia convocado a
reunião, e convidado Ekroth para subir ao ring. Parecia que ia
declinar o convite até que Mick o animou com suaves
empurrões e levantando a corda para que pudesse passar.
Um molde em gesso mantinha imóvel a mão de Rafe, que
estava longe de ter sido curada, mas era capaz de golpear sem
problemas com a direita.
Ele se perguntou se Ekroth seria consciente do
significado da presença do grupo de homens que aguardavam
espectadores. Perguntou-se se algum deles sabia por que
foram escolhidos para aquela lição em particular.
— Não nos mantenha com esta incerteza, Easton. O que
significa tudo isto? — Perguntou Ekroth.
— Lorde Rafe.
— Desculpe?
— Easton não, lorde Rafe Easton. Assim deverão se
dirigir a mim.
— Acreditava que seu nobre berço lhe trazia tristeza.
— Sofri uma mudança de… sentimentos. De maneira
que, no futuro, dirigir-se-ão a mim com o respeito que meu
pai me legou.
— Não há problema. Considere-o feito.
— Esplêndido. E agora passemos a assuntos mais
importantes. Sabem o que todos possuem em comum? — Os
homens se olharam uns aos outros. Alguns fizeram uma
careta, outros sacudiram a cabeça. E outros evitaram seu
olhar.
— Estiveram todos na casa de Wortham na noite em que
ele decidiu arruinar a vida da filha do conde.
— Você também esteve lá, — assinalou Ekroth com voz
acusadora.
— Efetivamente, e por isso sou muito consciente do que
haviam planejado para a mulher que vai se converter em
minha esposa. E eu não gosto. Eu não gosto absolutamente.
De modo que, cavalheiros, esta noite vou dar a escolher:
podem ver como saem à luz suas dívidas comigo e sua
posição na sociedade fica arruinada, ou podem fazer correr a
voz, sem entrar em detalhes, de que Wortham não é digno da
filha, irmã ou prima de nenhum homem. Assegurar-se-ão que
ele seja desprezado, considerado a escória da Terra, e
recusado por toda pessoa decente. Se fizerem isso,
cavalheiros, com a exceção de Ekroth, todas suas dívidas
comigo ficarão saldadas.
— E o que acontece comigo? — Quis saber Ekroth.
— Vou lhe pedir um pouco mais. Quis colocar suas mãos
sobre ela, humilhá-la, arruiná-la com seus dedos vis, sem lhe
prometer nada em troca.
— Prometi quinhentas libras.
— O valor dela não pode ser calculado.
— E o que tem planejado, milorde, para que fiquemos em
paz? — Elkroth elevou o queixo, desafiante.
— Tenho planejado lhe dar uma boa surra.

Geoffrey Litton, conde de Wortham passeava em seu


escritório com evidente frustração. Era o dia em que tudo
deveria ter voltado ao normal. Angus Dimmick fora enforcado,
naquela tarde, em praça pública por vários assassinatos.
Aquele homem era um tipo terrível e ele se alegrava de não
estar em dívida com ele. Havia presenciado o enforcamento, e
depois partiu para um botequim para celebrar com umas
quantas jarras de cerveja. Ao fechamento do botequim se
encaminhou para sua casa. O que na realidade gostava era de
jogar às cartas, mas nenhum clube lhe permitia a entrada.
Não ficara surpreso com o clube Rakehell, mas que o fizessem
outros não fazia sentido.
Algo não encaixava.
No dia seguinte, quando sua visão não fosse tão
imprecisa, nem tivesse a cabeça tão inchada, voltaria a
percorrer os clubes e falaria com os donos.
A habitação estava sumida na penumbra. Um único
abajur ardia brandamente sobre o escritório e o guiou até o
armário dos licores, onde se serviu de uma generosa taça de
uísque. Levou-a ao nariz e aspirou o embriagador aroma.
Depois de beber um bom gole, girou sobre seus calcanhares,
virou-se e, para sua eterna vergonha, gritou como um leitão
ao que acabaram de cortar o rabo.
Rafe Easton estava recostado em uma poltrona junto à
lareira apagada.
— O que você faz aqui? — Perguntou Geoffrey, incapaz
de controlar o tom agudo de sua voz.
— Vim saldar nossas dívidas.
— Não foi minha culpa, — protestou o conde. — Aquele
Dimmick. Disse que anularia minhas dívidas se eu o
apunhalasse. E, quando recuperasse o clube, ele me
converteria em membro permanente. Ele tem a culpa. Mas
está morto. Já não tem nada a temer de mim.
— Nunca tive nada a temer de você. E me importa um
nada o assunto da facada. O que me importa é a maneira tão
atroz como você tratou à filha de seu pai.
— Mas vai se casar com ela. Vi o anúncio na imprensa.
De modo que sairá muito bem de tudo isto.
— Mas e se eu não estivesse ali naquela noite? — Easton
se levantou lentamente do assento. Inquieto. — O que teria
acontecido então? Você concederia aqueles lordes a liberdade
para violá-la.
— Não, — Geoffrey recuou, bateu contra a mesa e os
decantadores tilintaram. — Não, não. Somente ia permitir que
a examinassem, que a tocassem. Não que a fo… — ele se
interrompeu ao recordar a última vez que empregara esse
termo em relação a Evelyn, — não que se deitassem com ela.
Se deixasse de ser virgem, perderia seu valor. Mas tudo isso
já é irrelevante.
— Não acredito. Você vai velar pelo bem-estar dela, tal e
como prometeu a seu pai que faria. — Rafe jogou alguns
papéis sobre a mesa. — Vai assinar isto.
— O que são esses papéis? — Geoffrey tentou lê-los sem
aproximar-se muito de Easton.
— Vai transferir todas as propriedades, incluindo esta
residência, para sua querida irmã.
— Como? Não. Isso jamais, você enlouqueceu.
— Considere o seu presente de casamento para Eve.
Assine os papéis e não lhe darei uma surra de morte.
— Atreve-se a me ameaçar?
— Não só me atrevo, satisfaço-me com isso. Expulsaram
você do meu clube e, sem dúvida, já deve ter descoberto que
nenhum outro o admite.
— Você é o responsável por isso? — Geoffrey ficou
totalmente vermelho.
— Sou responsável por muito mais que isso. Em toda a
Inglaterra não há um lorde disposto a lhe entregar sua filha
em matrimônio. Morrerá sem descendência, e seu primo
Francis herdará o título e as propriedades. Até então, para a
aristocracia já não existirá. Não será convidado a nenhum
baile, jantar ou festa. Sua única possibilidade será viver em
sua ancestral propriedade, sozinho, sem nada exceto o
arrependimento pela crueldade com a qual tratou Eve e a
certeza de que sempre estarei vigiando você. Você não me
verá, mas tenha por certo que estarei à par de cada sopro de
ar que aspire.
— Não se sairá bem.
— Já o fiz, — Easton lhe ofereceu um sorriso malicioso.
— Assine os papéis.
— Ao menos me permita retornar a seu clube — Geoffrey
se aproximou da escrivaninha. — Eu enlouquecerei se não
tiver as cartas para me entreter.
— Experimente administrar suas propriedades.
— Mas as cartas, entende, são minha paixão.
— Uma paixão desaconselhável. Conduziram-no pelo
caminho da ruína, mas foi sua escolha transitar por esta
estrada na noite que ofereceu Eve a qualquer um que a
desejasse.
— Terá que me dar algo em troca de assinar estes
papéis.
— Estou lhe dando a vida.
— Preferiria a morte, — porque seria uma vida muito
miserável.
— Isso pode ser arrumado.
Geoffrey percebeu a dura frieza no olhar de Rafe Easton.
E não lhe restou a menor dúvida de que ele poderia arrumar.
Mas não era realmente o que desejava. Encontraria um clube
disposto a aceitá-lo. No dia seguinte. No dia seguinte
encontraria o modo de sair dessa confusão. Molhou a pluma
no tinteiro e assinou os documentos. A seguir observou
Easton recolhê-los e colocá-los em uma carteira.
— Perdeu a oportunidade, Wortham, de reclamar uma
mulher maravilhosa como irmã. Procurou lhe arrebatar tudo
o que lhe importava. É justo que eu tire tudo o que lhe
importa. Abandone Londres antes do amanhecer ou dará com
seus ossos no cárcere.
— Mas se acabei de saldar minha dívida com você.
— Não. Acaba de saldar a dívida com a Evelyn. Sua
dívida comigo segue em pé, milorde, e já que agora sou eu o
possuidor das notas promissórias que assinou para Dimmick,
tenho que dizer que sua dívida é considerável.
Quando Rafe Easton partiu, Wortham afundou a cabeça
entre as mãos e chorou por tudo o que havia perdido, pela
vida tão solitária que se abria diante dele.
Capítulo 22

Observando seu reflexo no espelho, Rafe puxou o colete


cinza pérola. Custava-lhe um tempo descomunal vestir-se.
Sua mão se curou, mas a mobilidade não era a mesma de
antes. O doutor Graves colocara os ossos o melhor possível e
Rafe estava agradecido. Ao menos não havia perdido
completamente a mão. E estava aprendendo a escrever com a
direita.
Jogando o olhar para trás, supôs que poderia ter
advertido ao Dimmick desde o começo que era canhoto, assim
ele teria quebrado a mão direita, mas conhecia de sobra as
intricadas táticas daquele homem e sabia que ao final teria
assinado qualquer coisa que ele lhe apresentasse com o
intuito de acabar com a dor. E ele preferira se ver condenado
antes de dar algo que pertencia a Eve, ou ao Mick.
De modo que estava condenado. Embora nem tanto
quanto Dimmick.
Durante os três meses que seguiram a seu resgate, Rafe
havia passado mais tempo na companhia de seus irmãos,
perguntando-se por que se negou a fazê-lo durante todos
aqueles anos. Costumavam ficar acordados até altas horas da
noite, bebendo uísque e falando dos anos que estiveram
separados. Rafe gostava de ouvir falar dos lugares que Tristan
havia visitado, das pessoas que ele conhecera, das culturas
que descobrira. As histórias de Sebastian eram menos
amenas e ele as contava com certas reticências, mas serviam
para que eles fizessem uma ideia do que havia sido a guerra,
e o fizeram admirar a coragem e sacrifício de seu irmão, mais
do que teria feito se não as tivesse escutado.
— Encarregou-se de que entreguem o presente à
senhorita Chambers? — Rafe estendeu os braços e seu
ajudante de câmara lhe ajudou a colocar o fraque negro.
— Sim, milorde.
Já não fazia uma careta cada vez que seus serventes, ou
seus empregados do clube, dirigiam-se a ele naqueles termos.
Era o filho de um duque, o irmão de um duque. Sentia-se
orgulhoso da herança familiar, de seus direitos de
nascimento. Além disso, queria que não houvesse dúvidas de
que a senhorita Evelyn Chambers, filha ilegítima de um
conde, casava-se com um lorde.
O endinheirado lorde de uma família muito poderosa.
Mary insistira em que Eve continuasse vivendo com eles
até as bodas. Rafe jamais pensaria que Evie teria encontrado
refúgio na casa do vizinho. Era o último lugar no qual a teria
procurado, e ela sabia. Naquela época não teria ido
voluntariamente para bater na porta.
Entretanto, nesse momento tinha por costume acudir ali
diariamente. Cortejava Evie como ela deveria ter sido
cortejada desde o começo. Com flores, livros de poesia e
chocolate. Acompanhava-a a montar a cavalo pelo parque,
dançava com ela nos bailes, jantava com ela cada noite. Havia
muito que lhe recompensar e tinha a intenção de dedicar o
resto de sua vida a assegurar-se de que ela não lamentasse,
nem sequer um segundo, ter se convertido em sua esposa.
Evelyn contemplou seu reflexo no espelho de corpo
inteiro, quase incapaz de acreditar que fosse possível usar um
vestido, cor marfim e bordado de pérolas de tão formosa
manufatura. Não haveriam bodas tranquila em uma igreja de
campo, não puderam escapar. Em duas horas ela se casaria
em St. George, e toda Londres fora convidada.
Exceto Geoffrey, que já não residia em Londres, mas
havia retornado à propriedade familiar no campo depois de
assinar a cessão de todas as propriedades que não estivessem
hipotecadas. Suspeitava que Rafe tivesse algo a ver com isso,
mas quando lhe perguntava sobre isso ele se limitava a lhe
assegurar que ele não fizera mais que cumprir a promessa
feita a seu pai.
Dado que ela não necessitava outra residência em
Londres, converteria essa em um refúgio para mulheres
caídas em desgraça, um lugar onde pudessem aprender
habilidades que lhes permitissem não precisarem depender
da benevolência de estranhos.
— Está linda, — observou Mary, de pé junto à Anne.
Evelyn se voltou para as duas mulheres que logo se
converteriam em suas cunhadas.
— Supõe-se que eu deveria estar nervosa, mas não
estou.
— Porque sabe que vai se casar com um homem que a
ama, — assegurou-lhe Anne.
— Sim, acredito nisto.
Alguém golpeou a porta discretamente com os nódulos.
Mary a abriu e pegou um pequeno pacote que um servente
oferecia.
— Para você, — entregou o pacote a Evelyn. — Do Rafe.
Ela pegou e se aproximou da janela para desfrutar de
um pouco de intimidade. O sol entrava em torrentes. Faria
um dia lindo.
Havia uma nota sob o laço e abriu para lê-la. Estava
escrita com uma caligrafia irregular e, sem dúvida, com
muitíssimo esforço.

Espero, sinceramente que não precise dela hoje.

Depois de desatar o laço, Evelyn tirou a tampa. No


interior havia uma moeda e, embora tivera muitas como
aquela na mão com antecedência, soube que era a mesma
moeda que havia jogado ao ar numa longínqua noite na qual
acreditou não ter nenhuma opção.
Tirou-a da caixinha e viu outra nota no interior.

Meu pai me deu esta moeda pouco antes de morrer. Esta


manhã a lancei ao ar. Cara, casava-me contigo. Coroa, a
tomaria por esposa. Para mim, Eve, não há nenhuma escolha a
fazer. Amo você mais que a minha própria vida. E quero passar
o tempo que me resta demonstrando isso. Mas, meu amor, se
tiver alguma dúvida, deixarei você partir. Nada é mais
importante para mim do que a sua felicidade.

Com um profundo suspiro, Evelyn apertou a nota contra


o peito. E lançou a moeda.

Quando a carruagem se deteve, quase havia anoitecido.


Evelyn contemplou seu marido, “seu marido”, com expressão
resplandecente e, quando tentou descer, ele a tomou em seus
braços. Com um pequeno grito, ela lhe rodeou o pescoço com
os braços.
Havia sido um casamento lindo, um dia lindo.
O duque a conduzira até o altar, onde Rafe aguardava
com Tristan a seu lado. Quando Sebastian a entregou a seu
irmão, colocou-se junto a seu gêmeo. As lágrimas inundaram
seus olhos ao ver os três irmãos juntos, os lordes de
Pembrook finalmente reunidos, como deveriam ter estado
sempre.
Juntos e seguindo o costume de ir contra os
convencionalismos, já que unicamente os homens solteiros
permaneciam diante o altar, junto ao noivo.
Rafe a conduziu escada acima. A porta se abriu e
Laurence inclinou levemente a cabeça a sua passagem.
— Bem-vindos a casa, milorde, milady.
“Milady”. Evelyn esteve a ponto de soltar uma
gargalhada.
— Quem teria pensado que a filha ilegítima de um conde
acabaria sendo uma dama? — Comentou para Rafe enquanto
subiam as escadas.
— Você foi uma dama desde o instante em que nasceu.
— Em uma ocasião você me disse que minha vida ficou
arruinada no momento em que nasci.
— Isso foi antes de conhecê-la. Eu era um estúpido
naquela época.
“Não tão estúpido”, pensou ela. Mas cauteloso. Sem se
atrever a sentir algo por alguém a quem poderia chegar a
perder. Já a perdera uma vez. Não voltaria a perdê-la jamais.
A porta do dormitório de Rafe estava aberta e ele a levou
para dentro, fechando-a com um chute para trás. Quando a
deixou sobre a cama, Evelyn lhe arrancou o chapéu e
afundou os dedos em seus cabelos.
— Quanto, quanto senti sua falta.
— Mary e suas estúpidas regras sobre a respeitabilidade,
— Rafe tomou o rosto entre as mãos e a olhou com expressão
séria, com toda a intensidade dos olhos azul gelo. — Lançou a
moeda?
— Sim. Cara, casava com você. Coroa me converteria em
sua esposa. Não precisava de uma moeda para saber o que
queria. Nunca precisei.
Rafe a beijou como se ela fosse tudo para ele, como se
fosse a única coisa importante.
As roupas desapareceram apressadamente, eram muitas
peças. Havia passado muito tempo. Frequentemente ela
pensara em se aproximar da casa vizinha, havia esperado vê-
lo entrar pela janela de seus aposentos. Mas seu canalha, sua
caveira, seu malandro, tinha respeitado as regras. Sacudiu a
poeira das ruas, que mantivera muitos anos, e abraçara seu
lugar na sociedade.
E a sociedade não só o havia abraçado, mas também a
todos os irmãos, como se juntos fossem mais formidáveis,
mais respeitados, mais importantes. O fenômeno resultara ser
muito interessante. À medida que o lugar de Rafe se
afiançava, também o fazia o dela.
Evelyn percebia a inveja no rosto das damas enquanto
passeava com ele pelo parque, viu a admiração delas quando
ele unicamente dançava com ela nos bailes. Recebia convites
porque era bastante evidente que, se não a convidasse,
nenhum dos lordes de Pembrook, nem suas esposas
compareceriam, e a desaprovação deles não era algo que a
alta sociedade desejasse granjear.
Quando toda a roupa desapareceu, atiraram-se sobre a
cama em um matagal de braços e pernas. Evelyn agradeceu
que ele já não sentisse a necessidade de lhe segurar os
pulsos, de restringir seus movimentos. Morria de vontade de
tocá-lo, cada músculo, cada centímetro de pele. Parecia o
mais adequado que, suas vidas como casados, começasse ali,
no dormitório de Rafe, onde ele lutara contra seus demônios.
E conquistara a todos. O homem que ressurgira das
flamejantes profundezas do inferno era alguém a quem ela
amaria até exalar seu último fôlego.
Jamais se sentira tão completa como quando uniram
seus corpos. Quando Rafe se elevou sobre ela e a olhou,
Evelyn sentiu que nunca vira olhos tão formosos, cheios de
amor por ela. Imaginou olhando-a do mesmo modo quando
fossem velhos, com cinquenta ou sessenta anos.
Ambos eram muito jovens. Tinham toda uma vida pela
frente.
Evelyn deslizou as mãos pelo rosto de seu marido.
Contemplou sua juventude, marcada pelos anos, mas ainda
visível. Desejou que não tivesse padecido tanto, mas eram
precisamente aqueles padecimentos que os uniram. Desejar
um caminho diferente para algum deles seria como desejar
não terem se conhecido. Pois, como teriam se conhecido se
não tivesse sido ele um pecador e ela filha do pecado?
— Amo você, Evie — sussurrou ele. — Duvido que eu lhe
diga isso frequentemente, mas esta noite deveria saber.
— Sei. E eu amo você. Com toda minha alma e meu
coração, e meu corpo.
Rafe começou a mexer os quadris, sem protestar quando
sua esposa lhe rodeou com as pernas. Tampouco quando o
abraçou. Evelyn o segurava com força enquanto o prazer
crescia além da carne para englobar sua alma, coração, todo
seu ser.
Seus olhares permaneceram fixos, suas respirações
compassadas. Ele guiava, ela o seguia. Retorceram-se ao
mesmo ritmo para uma cadenciosa tensão que somente eles
ouviam. As sensações cresceram, atravessaram-na dos pés à
cabeça, uma e outra vez. E então explodiram em seu interior,
levando-a a um topo ao qual nunca antes havia ascendido.
Foi plenamente consciente das últimas investidas de
Rafe. Seu corpo ficou tenso, apertou a mandíbula, e viu toda
a maravilha refletida em seu olhar. Tão maravilhosa para ele
quanto fora para ela.
Delicadamente, ele se deixou cair e enterrou o rosto no
pescoço de Evelyn.
— Maldita seja, como senti sua falta.
— Via-me todos os dias.
— Assim não.
— Adoro abraçar você.
— E eu adoro que você me abrace, — Rafe lhe beijou a
bochecha, a orelha, a têmpora, e de novo a olhou nos olhos.
— Vai se alegrar muito de ter se casado comigo.
— Acredita nisso? — Ela sorriu e arqueou uma
sobrancelha.
— Estou convencido, — ele lhe dedicou um sorriso
travesso. — Seria um grande engano de sua parte não o fazer.
A gargalhada de Evelyn foi bruscamente interrompida
por seu beijo. Que homem tão arrogante. E como o amava.
Epílogo

Castelo de Pembrook, Yorkshire Inverno de 1864

Aquele deveria ter sido o aniversário de suas mortes, e,


entretanto, nessa noite fariam amor com suas esposas.
Mas no momento, a última hora daquela tarde ventosa,
estavam todos montados em seus cavalos, no alto da colina,
contemplando o castelo de Pembrook. De sua vantajosa
posição se viam os restos da torre que fora a prisão deles,
tantos anos atrás. Sebastian fora derrubando-a pouco a
pouco, golpeando tijolo a tijolo.
— Custa acreditar que tenham passado vinte anos —
observou Tristan.
— Deveria contratar a alguém para arrasá-la
completamente, para acabar com isso de uma vez, — refletiu
o duque.
— Acredito que deveria deixá-la como está — respondeu
seu gêmeo.
— E você o que opina, Rafe? — Perguntou Sebastian. —
O que você acha que eu deveria fazer?
— Reconstruí-la, torná-la mais grandiosa do que era, —
parecia-lhe um gesto simbólico, mas temia fazer o ridículo se
explicasse que sentia que seu tio lhes tinha derrubados,
reduzindo-os a umas almas nuas, e que cada um deles
sobrevivera e reconstruíra suas pessoas, fazendo-as melhores
do que poderiam ter sido. — Ainda estará aqui durante
bastante tempo — optou por responder em seu lugar. — Seu
herdeiro necessitará um lugar onde residir antes de herdar o
título.
— Pode ser que tenha razão. Além disso, ele parece
gostar desse lugar. Sempre o encontro explorando-o.
Possivelmente o faça. De todos os modos, não preciso decidir
agora mesmo. Ele não vai a nenhuma parte.
— Diferente de nós, — observou Tristan. — Acredito que
deveríamos voltar para a residência. Ouvi dizer que sua
esposa preparou toda uma festa para celebrar o aniversário
da noite em que nos resgatou.
— Ela me resgatou em duas ocasiões. Uma vez da torre e
a outra de mim mesmo.
Rafe tinha a sensação de continuar sendo resgatado a
cada manhã quando despertava com Eve em sua cama.
Sempre o maravilhava e lhe supunha uma lição de humildade
encontrá-la ali, em seus braços, sorrindo, fazendo-o rir,
dando-lhe filhos, dois no momento. Ela lhe prometera que a
próxima seria uma menina. E suspeitava que assim seria.
Aquela mulher possuía o costume de conseguir tudo o que se
propunha.
A casa que ela recebera de Wortham fora transformada
em um refúgio para mulheres sem um lugar para se abrigar,
sem refúgio. Ela se preocupava de que aprendessem um ofício
e lhes buscava um emprego respeitável que lhes permitisse
ganhar a vida. Até o convencera de que as mulheres que
trabalhavam para ele deveriam dirigir os jogos e não os
colchões. A primeira vez que uma mulher se sentou para
repartir cartas em uma das mesas se produziu um grande
revôo, mas com o tempo o número de sócios do clube se
duplicou, e seus lucros triplicaram. Ao que parecia os
cavalheiros prestavam pouca atenção à quantidade de
dinheiro que perdiam quando recebiam sorrisos e ânimos de
uma mulher.
Seus irmãos permaneciam tão calados quanto ele, e Rafe
se perguntou no que estariam pensando. Ainda não lhes
dissera o quanto os amava. Não era capaz de pronunciar as
palavras, mas Eve lhe assegurara que eles sabiam.
Comparecia a todas as reuniões e navegara tantas vezes no
iate de Tristan que já não enjoava. Sua família e ele sempre
apareciam em Pembrook no Natal.
Se seu pai soubesse, se sentiria encantado.
— Será melhor que retornemos, — anunciou o duque. —
Estão nos esperando.
Sem perder mais tempo, giraram suas montarias ao
mesmo tempo e galoparam para a mansão. Rafe viu as três
mulheres esperando em frente à casa, apesar do frio. Seu
olhar se dirigiu imediatamente àquela a qual ele amava mais
que a sua vida.
Aquela que sorria resplandecente enquanto o saudava
com a mão no ar.
Seu cavalo apenas se deteve quando ele já havia
desmontado para tomá-la em seus braços e beijá-la enquanto
ela o abraçava com força. Possivelmente deveria ter se sentido
desconfortável de não saber que seus irmãos estariam
saudando suas esposas do mesmo modo. “Não”, pensou, não
lhe teria importado o mínimo o que eles fizessem. Alegrava-se
muito daquele recebimento, desejava muito as carícias dela
para que lhe importasse.
Tomando-a nos braços se dirigiu para casa.
— O que está fazendo? — Evelyn soltou uma gargalhada.
— Temos um tempinho antes do jantar. Quero você para
mim a sós.
— Amo você, lorde Rafe Easton — ela apoiou a cabeça
contra seu ombro.
— Não tanto quanto eu a amo, lady Eve.
Quando ela começou a lhe mordiscar a orelha, ele riu.
Que mulher tão travessa. Sua intenção era fazer amor antes
de jantar, e depois também. Jamais se fartaria dela.
Durante um instante, todos os globos terrestres que ele
fora colecionando ao longo dos anos giraram ao mesmo tempo
em sua mente. Estivera procurando um lugar melhor.
E finalmente o encontrara, o melhor lugar de todos…
aconchegado nos braços de Eve.

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