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*
Lins, Osman, 1924-1978
Osman Lins : os casos especiais / prefácio e notas
Adriano Portela. – Recife : Cepe, 2019.

Inclui referências.

1. Ficção brasileira – Pernambuco. 2. Contos


brasileiros – Pernambuco. 3. Lins, Osman, 1924-
1978 – Biografia. 4. Lins, Osman, 1924-1978 – Crítica
e Interpretação. I. Portela, Adriano. II. Título.
*

ISBN: 978-85-7858-812-0
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OSMAN LINS: UM CONSTRUTOR
DO AUDIOVISUAL

Referindo-me às sugestões no sentido de o


escritor utilizar meios da indústria cultural, declarei:
Poderá um romancista, um poeta, ocasionalmente,
levar-lhes contribuições: não porém a eles aderir,
abandonando o livro.
Osman Lins

O interesse em propor a reedição das três narrativas de Osman Lins que


culminaram em exibições na televisão brasileira nas décadas de 1960-1970,
em episódios do programa Caso Especial da Rede Globo, veio justamente
da provocação supracitada. É ponto pacífico entre os críticos que o autor é
um arquiteto da palavra: sabe que o ato de escrever é fruto de um trabalho
insistente para atingir a perfeição. No livro Guerra sem testemunhas (1969),
Osman Lins afirma que só escrevendo é capaz de aferir conceitos, revisar
valores, pesar o imponderável, desfiar o tecido das ideias e avançar na
obscuridade das coisas. Entretanto, a crítica também concorda que o autor
era um “homem do seu tempo”: um intelectual atuante e engajado nas
questões prementes de sua história e de seu país, responsável por uma
produção criativa e ensaística que não deixa dúvidas sobre a sua inserção na
realidade.
A epígrafe é explícita: a lealdade do escritor é para com o seu meio, com
o livro. Isto não significa, porém, que não possa incursionar noutras áreas,
explorar outras possibilidades e conhecer outras formas de dizer. Sua
ligação com as artes plásticas, com o teatro e com a música, por exemplo, já
foram apontadas em inúmeras pesquisas. Seu vínculo com o cinema,
sobretudo com a Nouvelle Vague, foi documentado em estudos sobre as
influências do experimentalismo francês do Nouveau Roman na sétima arte.
Existem até estudos que abordam o caráter proto hipertextual de suas
narrativas fragmentárias, estruturadas como um jogo, e um site que
transforma o romance Avalovara num produto multimídia e interativo na
internet, mostrando como a sua linguagem antecipava o funcionamento do
texto digital da era do computador doméstico.
Entretanto, a sua breve passagem pela indústria cultural e pelos mass
media parece ter sido esquecida, restando um silêncio sobre essa aventura
que seria a derradeira em sua breve existência, tendo o escritor falecido aos
54 anos, em consequência de um câncer, deixando para trás vários projetos
inacabados, como o romance A cabeça levada em triunfo, e o seu incipiente
— e surpreendente — trabalho como roteirista de televisão.
Nascido em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, Osman Lins é autor de
contos, romances, narrativas, ensaios e peças de teatro. O romance
Avalovara (1973) é considerado sua obra-prima. O livro intercala oito
narrativas que permeiam tempos e espaços distintos, tendo como ponto de
partida o modelo gráfico de uma espiral e um quadrado, e é um exemplo
acabado do impulso artístico experimentalista deste autor. As influências
das artes plásticas e da música nesta obra já foram muito documentadas.
Também há estudos sobre a presença da oralidade em seu último romance
publicado, A rainha dos cárceres da Grécia (1976), jogo de encaixes
abissais onde uma personagem é descrita como “locutora de rádio”.
Entretanto, a presença da mídia tecnológica na ambientação de suas
narrativas é rara. Ouvimos o som de uma vitrola tocando em disco de vinil a
ópera Catulli Carmina, de Carl Orff, na sala de um apartamento em São
Paulo, disputando com o ruído do tráfego e das britadeiras no entorno a
audiência da música de Avalovara. Ainda neste romance, vemos os
protagonistas de um dos capítulos, pegos de surpresa no café de uma praça
em frente à catedral Notre-Dame de Paris, tentando escutar a orquestra e o
coro de uma apresentação do salmo In convertendo dominus, de Campra,
“triturados pelo barulho dos veículos”, sobretudo pelos canos de escape das
motocicletas. A tecnologia está presente, assim, como “invasora” do
silêncio, do encontro, do diálogo e da meditação próprios da literatura. É
quase sempre uma rival da escrita, e do trabalho árduo, lento e
recompensador da criação artística.
Por outro lado, a indústria cultural sempre rondou o escritor e sua obra.
Antes da produção das narrativas adaptadas, a TV Cultura produziu e exibiu
uma telenovela baseada no premiado romance O fiel e a pedra (1961), de
sua autoria, levada ao ar de agosto a setembro de 1981, às 21h, com
adaptação de Jorge Andrade e direção de Edison Braga. Deste trabalho só
restaram, arquivados no centro de documentação da emissora, alguns
capítulos esparsos dentre os trinta originais. Mais recentemente, porém,
assistimos à bem-sucedida investida do diretor Guel Arraes, que
transformou uma peça teatral de Osman Lins, a comédia Lisbela e o
prisioneiro (1964), numa minissérie exibida pela Rede Globo em 1994.
Posteriormente, em 2003, o texto é adaptado pelo mesmo diretor para o
cinema, transformando-se num filme de grande bilheteria, com atores
conhecidos do grande público, o que incentivou à reedição da peça pela
Planeta, bem como o recrudescimento do interesse dos leitores pela obra do
pernambucano.
Infelizmente, essa publicidade parece ser esporádica e momentânea,
retornando a obra ao reduto fechado dos estudos acadêmicos eruditos, e da
admiração dos críticos e leitores mais especializados. A relação de Osman
Lins com as massas não parece destinada a uma grande intimidade, embora
esta não fosse a vontade do autor. Apesar de ter dedicado sua vida ao
trabalho burocrático no Banco do Brasil — o que consumiu grande parte do
tempo que desejaria ter dedicado à sua obra —, não são raras as vezes em
que ele se manifesta com indignação sobre a inexistência de financiamentos
específicos na área cultural para a produção literária no país. Seu
entendimento é que a produção de textos criativos é um trabalho, uma
atividade como outra, e como tal deveria ser encampada, apoiada,
valorizada e reconhecida. Para espanto geral, costumava identificar-se como
“escritor” sempre que indagado sobre sua profissão.
Não surpreende, pois, que ao constatar o vertiginoso avanço dos meios de
comunicação na sociedade da segunda metade do século XX, com a
penetração da “caixa de imagens” substituindo rapidamente a “caixa dos
sons” na decoração das salas e na intimidade das famílias brasileiras,
Osman Lins tenha vislumbrado no veículo uma enorme potencialidade para
a educação e para a inserção de conteúdos num país de tão vasta extensão,
com tão grande carência de escolas, mestres e bibliotecas, e tão alarmantes
índices de analfabetismo — preocupação que não cessou de denunciar em
seus artigos jornalísticos. Na introdução à edição de seus roteiros, ele
afirmou que a chance de escrever para um veículo de massa representava
até mesmo uma pausa no “angustiante isolamento” que padecia enquanto
escritor:
O criador da literatura não se define, unicamente, por uma certa maneira de dizer; e sim, também,
por uma certa maneira de ver. Inserido no mundo, ele pensa a sua condição e a dos seus
semelhantes. Num país como o nosso, o escritor que lida com um material de fruição mais difícil,
e, para muitos, inacessível, sofre na carne uma espécie de segregação. Há um abismo quase
infranqueável entre ele e a imensa maioria do povo. Então, uma tentativa como esta, significa uma
pausa em nosso angustiante isolamento. Uma realização que é, ao menos, mais sincera e mais
honesta, vence a massa de produtos realizados com fins comerciais e sem qualquer respeito pelo
público. E é possível que não só algumas preocupações temáticas do autor, mas também algo do
seu envolvimento com as palavras, alcancem os espectadores. Os quais, em sua maioria, não
havendo chegado ao estágio de leitores, nunca tiveram e dificilmente terão nas mãos uma obra
literária. (LINS, 1978, p. 8. Grifos nossos)

Mas também é possível que o autor tenha vislumbrado, no rápido avanço


das tecnologias da informação midiática, a abertura de uma oportunidade
concreta para a sua tão almejada profissionalização, com a possibilidade de
obtenção de um trabalho fixo, remunerado e legitimado, onde pudesse
propagar suas ideias e suas histórias, multiplicando sua ação no mundo para
muito além do que o veículo do livro impresso lhe permitiria alcançar, no
contexto cultural de seu país e de sua época.
Inaugurada em 18 de setembro de 1950 por Assis Chateaubriand,
fundador do primeiro canal do Brasil, a TV Tupi de São Paulo, a televisão
cresceu no país como um símbolo de avanço e modernização — anunciada,
mesmo, como “A máquina de ir à Lua”, numa referência à transmissão
mundial do dia 20 de julho de 1969 da viagem da Apolo 11, divulgada
como a maior conquista técnica e científica da história da humanidade, que
contou com mais de 500 milhões de espectadores assistindo “ao vivo” ao
acontecimento. Maior audiência conseguida até então em escala mundial, a
televisão foi o ingrediente fundamental do primeiro marco verdadeiramente
planetário de conquista do “espaço midiático”, talvez mais do que do
“espaço sideral”1.
Uma rede de vinte estações terrestres interconectadas com satélites sobre
o Atlântico, o Pacífico e o Índico, permitiram levar o sinal supostamente
gerado pela NASA aos telespectadores dos Estados Unidos, América
Latina, Europa, Norte da África, Ásia e Austrália. O distante Alasca
recebeu a cobertura por meio de um satélite da força aérea e de uma antena
do exército. A televisão se posicionou, assim, como um meio ideal, em
plena Guerra Fria, de formação da “opinião pública”. Os Estados Unidos,
que disputavam com a União Soviética a liderança na Terra e, quiçá, fora
dela, devem muito de sua hegemonia ao domínio da informação massiva.
As empresas produtoras e revendedoras do aparelho transmissor também
absorveram a mensagem da conquista deste novo e fundamental “espaço”
de mobilização das “massas”. A verdadeira “viagem”, assim, não foi tanto a
do foguete para a Lua, mas a do aparelho de televisão para o interior das
mentes e das percepções humanas em escala mundial. As propagandas da
Telefunken e da General Eletric adquirem, assim, conotações divinatórias,
proclamando a todos, ironicamente, a verdade a respeito das viagens
espaciais tão em voga nos anos 1960.
O avanço da televisão no Brasil ocorreu durante os chamados Anos de
Chumbo, numa atmosfera de rigorosa censura dos produtos culturais. No
dia 31 de março de 1964, um golpe pôs fim à frágil democracia brasileira,
dando início a uma ditadura militar. Temendo um golpe de esquerda do
então presidente João Goulart, os militares tomaram o poder, com apoio de
boa parte da população influenciada pela mídia. O início da censura no
Brasil ocorreu durante o chamado “milagre econômico”, fase em que o país
teve um crescimento significativo. A censura foi um dos acontecimentos
mais marcantes, e mostrou a rigidez do regime autoritário. O controle
governamental era intenso, com a proibição explícita da divulgação de
notícias contra a ditadura militar, assim como eram violentas as formas de
perseguição.
A partir da promulgação do Ato Institucional Número 5 (AI-5) em 1968
inaugurou-se a pior fase da repressão militar. O AI-5 foi decretado pelo
presidente Costa e Silva e cancelava todos os dispositivos da Constituição
de 1967 que pudessem ser usados pela oposição. O Conselho Superior de
Censura foi criado para julgar os órgãos de comunicação que não
cumprissem as leis, podendo ser fechados imediatamente. Após o AI-5,
todos os veículos de comunicação deveriam ter suas pautas aprovadas pelos
militares, antes de serem publicadas. As agências de notícias eram sujeitas a
inspeção local por pessoas autorizadas. O regime militar usou de critérios
políticos para censurar o jornalismo. Muitos materiais foram censurados.
Algumas reportagens de publicações impressas eram vetadas e, nos trechos
deixados em branco, eram publicadas receitas culinárias ou poemas. O
órgão responsável pela censura dos meios de comunicação era o Contel,
comandado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) e pelo
Departamento de Ordem Pública e Social (Dops).
A violência do regime era notada nos confrontos policiais e nos
desaparecimentos de perseguidos políticos sem motivo aparente. Mas nem
todos percebiam as proporções reais de tudo isso. Durante o AI-5, a censura
vetou cerca de 600 filmes, peças de teatro, programas de rádio, novelas,
músicas. Muitos artistas e compositores tiveram suas obras censuradas e
foram perseguidos. A televisão funcionou como instrumento efetivo de
controle social, favorecendo a propaganda política estatal e promovendo a
difusão de uma história pré-fabricada, e a disseminação da versão dos fatos
controlada pela censura.
Foi nesse ambiente hostil que Osman Lins enveredou na aventura
televisiva, escrevendo, roteirizando e adaptando para o programa Caso
Especial da Rede Globo, os episódios: A ilha no espaço, Quem era Shirley
Temple? e Marcha fúnebre, textos reunidos e publicados por Raul
Wasserman, diretor da Editora Summus, em 1978. As três obras com suas
respectivas adaptações audiovisuais estão sob a direção, respectivamente,
de Cassiano Gabus Mendes, Paulo José e Sérgio Britto. Foram produzidos,
ao todo, 172 episódios, com cerca de uma hora de duração cada, entre 10 de
setembro de 1971 e 5 de dezembro de 1995, com periodicidade variada.
Os “casos especiais” eram modernizações do antigo formato do teleteatro,
com cenas em estúdio, apresentando uma história completa por episódio. Os
textos podiam ser inéditos, mas em geral consistiam de adaptações literárias
em segunda mão, de contos, romances e peças teatrais de autores
consagrados, como Machado de Assis, Graciliano Ramos e Jorge Amado,
inexistindo à época a profissão do roteirista de TV no país.
Fascinado pela proposta, Osman Lins não apenas cedeu seus originais
para as adaptações: assumiu ele mesmo o desafio de aprender as técnicas de
expressão do meio audiovisual, redigindo de próprio punho os seus
episódios, e gabando-se, inclusive, de ter sido “o primeiro dos autores
adaptados a produzir um texto diretamente pensado para a televisão”. O
primeiro programa gravado e exibido totalmente em cores da televisão
brasileira foi um Caso Especial: o episódio Meu primeiro baile, transmitido
em 31 de março de 19722. Em 1979, o programa abandonou a grade da
Rede Globo, sendo substituído por Aplauso, que apresentava teleteatros.
Nos dois anos seguintes foram exibidos apenas três episódios, até que, em
1983, a atração voltou a ser transmitida com regularidade. Entre 1984 e
1987, houve uma nova interrupção no programa, que só teve dois episódios
exibidos. De 1988 até 1995, ano no qual o programa encerrou
definitivamente, passou novamente a ser emitido com período regular,
integrando a Quarta Nobre.
Osman Lins é um autor tão experimentalista que, nessa sua nova
empreitada, acabou promovendo um diálogo entre linguagens diferentes, o
que sugere uma leitura intersemiótica. A transmutação de um sistema de
signos para outro nos abre um paradigma em que passamos a analisar a arte
e os demais campos do saber. O caminho foi desenvolvido devido aos
subsídios riquíssimos do Osman Lins ficcionista e do Osman Lins
dramaturgo, até chegarmos ao Osman Lins roteirista.
O autor utilizou técnicas indicadas por roteiristas consagrados e até por
profissionais hollywoodianos de hoje, como Syd Field (2001), que também
é autor de diversos livros sobre o assunto. O trabalho do pernambucano em
Marcha fúnebre desenvolve instruções dadas por alguns especialistas
contemporâneos mais requisitados na área do cinema, como Doc
Comparato (2009) — que também já escreveu para o programa Caso
Especial da Rede Globo — e Ismail Xavier (2003), um dos nomes mais
citados nos estudos cinematográficos a níveis nacional e internacional. E os
estudos sobre adaptação, envolvendo autores como Linda Hutcheon (2013)
e Robert Stam (2006), deram um norte a leitura dos roteiros osmanianos.
Podemos dizer que, na produção para a TV, Osman Lins, mesmo sabendo
que os seus objetivos maiores seriam alcançados por meio da ficção
literária, se entregou ao ofício e acabou marcando presença na história da
televisão brasileira e na memória da Rede Globo. “O que tenho trabalhado a
vida inteira é a palavra. E não é na televisão que posso fazer uma incursão
mais profunda, abrir uma brecha até onde outras pessoas, penso, não foram”
(LINS, 1979, p. 208).
Enfim, podemos concluir que Lins foi um pensador além da teoria. Ele,
de fato, foi da teoria à prática quando partiu das críticas que direcionava à
indústria cultural para se infiltrar no sistema de comunicação de massa.
Com esse acesso, o escritor passaria a entender melhor o funcionamento da
indústria e tentaria dar sua contribuição, produzindo um determinado
conteúdo que proporcionasse ao espectador uma reflexão sobre o produto
exibido.
Então é necessário, é urgente, que os escritores, por todos os meios de que possam dispor, exijam
uma mudança de mentalidade e de situação. Não se pode, em hipótese alguma, admitir que a
literatura, mal atendida, mal remunerada, seja apenas uma tarefa de indivíduos bem situados no
mundo e, talvez por isso, sem o intenso desejo de estabelecerem com o seu povo, através dos seus
livros, um contato vital. É absolutamente indispensável que essa oportunidade seja virtualmente
franqueada a todos. (LINS, 1977, p. 48)

Estando infiltrado na indústria, Osman Lins começa a implementar sua


visão de mundo, projetando nas obras suas convicções; era o escritor
imprimindo sua arte de criar e, consequentemente, amadurecendo enquanto
roteirista. Em Marcha fúnebre, por exemplo, Lins traz um script completo,
com todas as etapas solicitadas pelos profissionais da escrita televisiva e
cinematográfica, partindo da ideia, conflito, construção de personagens,
tempo e da unidade dramática, além dos objetivos, plots e subplots.
Por fim, esta reedição pela Cepe Editora busca confirmar que a produção
de Osman Lins para o audiovisual sugere pesquisas que possam relacionar
não só a transcodificação do gênero conto para o gênero roteiro, mas
também outros estudos que subjazem à produção artística dos Casos
Especiais.
NOTA DA PRIMEIRA EDIÇÃO

Em 1969, no meu livro Guerra sem testemunhas3, referindo-me às


sugestões no sentido de o escritor utilizar meios da indústria cultural,
declarei: “Poderá um romancista, um poeta, ocasionalmente, levar-lhes
contribuições: não porém a eles aderir, abandonando o livro”. Entre aqueles
meios, inscrevia-se a televisão.
Posteriormente, me seria oferecida, como a outros autores, a possibilidade
de experimentar esse meio de expressão, através da série Caso Especial,
que procura fugir à rotina dos enlatados e onde a terrível luta pela conquista
de altos índices de audiência, se não desaparece, é atenuada. A
oportunidade interessava-me, exatamente devido a este duplo aspecto:
permitia-me a experiência e não gerava compromissos. Assim é que, no
espaço de dois anos mais ou menos, foram transmitidos pela TV Globo,
com a minha assinatura, apenas três narrativas: A ilha no espaço, Quem era
Shirley Temple? e Marcha fúnebre, sob a direção, respectivamente, de
Cassiano Gabus Mendes, Paulo José e Sérgio Brito. Agora, interessando-se
por esses textos, o editor Raul Wassermann, da Summus, convence-me a
reuni-los em livro.
Para Quem era Shirley Temple? e Marcha fúnebre, escritos
expressamente para a televisão — e até agora, parece, fui o único ficcionista
brasileiro a fazê-lo —, não haveria problema: era só transcrevê-los,
inclusive com as indicações sobre a trilha sonora e até, por vezes, de
enquadramento. No caso de A ilha no espaço, porém, qual a solução?
Publicar o texto original ou sua adaptação? Acabei optando pela primeira
alternativa: os que viram o programa, se têm boa memória, poderão
estabelecer comparações entre a narrativa escrita e a versão transmitida pela
Globo, com Cecil Thiré no papel principal.
Na verdade, não há apenas essas duas versões de A ilha no espaço:
escrevi, a intervalos mais ou menos amplos (a versão inicial é de 1960!),
vários desfechos, nenhum dos quais me satisfez. Por uma razão simples: a
história, a meu ver, esgota-se no capítulo 11, beneficiando-se, exatamente,
do que fica na sombra, do que não se esclarece. Afinal, um mistério
revelado é coisa morta e, por isto, eu preferiria, com a publicação da
narrativa em livro, eliminar o capítulo final. Entretanto, como este já foi
divulgado em jornal (Última Hora, São Paulo, janeiro de 1965), e como a
adaptação para a TV em grande parte se apoiava nele, optei por conservá-lo.
Além do mais, penso que o breve episódio drolático não destoa do tom
geral da história, momento de recreio de quem passara cinco longos anos
escrevendo o seu terceiro livro
(O fiel e a pedra), e, aprestando-se para temporada mais ou menos extensa
no estrangeiro, evitava empenhar-se em obra de fôlego ou de fatura mais
árdua.
Quem era Shirley Temple?, claro apólogo sobre a intolerância, vivido
com delicadeza e emoção por Dina Sfat, toca de passagem no problema da
erosão causada com frequência pelas pequenas comunidades brasileiras na
mentalidade e no comportamento de professores universitários, assunto de
que fui testemunha e observador durante algum tempo. Seu lado
documental, entretanto, reduz-se praticamente a isto. O mesmo não
acontece com Marcha fúnebre, para o qual realizei um trabalho de pesquisa.
Entrevistei, antes de escrever o texto, o diretor do Serviço Funerário do
Município de São Paulo; colhi, em arquivos de jornais, bom material (ótima
pista para a localização desse material foi-me fornecida pela revista
publicada pelo próprio Serviço Funerário); interessantes subsídios
proporcionaram-me também os estudos de Maria Amélia Salgado Loureiro.
Assim, não obstante certo caráter fantástico e o fato de passar-se no futuro,
em 1990, Marcha fúnebre, sendo à sua maneira um poema sobre a glória do
corpo, tão vilipendiado em nossos dias, não só pelos torturadores, como
pela indústria do erotismo, chega quase a ser uma reportagem dramatizada
sobre o problema dos cemitérios.
Nenhum dos textos constantes do volume foi aproveitado na íntegra. Aqui
e ali houve pequenos cortes, cuja razão não pude apurar. O problema
universitário, por exemplo, que faz parte de Quem era Shirley Temple?
perdeu, na produção, muito da sua mordacidade. No caso de Marcha
fúnebre, o sepultamento da atriz, onde a presença do povo era de grande
importância, pois deviam acompanhar o enterro dezenas de ambulantes,
adquiriu, com o recurso de atores portando trajes belíssimos, um tom
felliniano, decerto mais decorativo, porém distanciado da minha concepção.
Faltou a referência ao caso (verídico) da caveira de Casimiro de Abreu.
Também foi eliminada a fala onde se diz que, em 1990, o Ministro da
Fazenda já não era o mesmo de 1977, talvez — quem sabe? — por ser
pouco delicado lembrar que até os ministérios passam.
Entretanto, seria injusto afirmar que, não obstante esses senões, os meus
textos tenham sido deturpados ou traídos. Assim, considero a experiência
válida. Sou escritor e toda a minha vida, por assim dizer, tenho lutado com
as palavras. Mas o criador de literatura não se define, unicamente, por uma
certa maneira de dizer; e sim, também, por uma certa maneira de ver.
Inserido no mundo, ele pensa a sua condição e a dos seus semelhantes. Num
país como o nosso, por uma série de razões, o escritor, que lida com um
material de fruição mais difícil e, para muitos, inacessível, sofre na carne
uma espécie de segregação. Há um abismo quase infranqueável entre ele e a
imensa maioria do seu povo. Então, uma tentativa como esta, que não nos
afasta do nosso projeto básico, do qual vem a ser como que uma
ramificação, significa uma pausa em nosso angustiante isolamento. Uma
realização que é, ao menos, mais sincera, mais honesta, vence a massa de
produtos realizados com fins comerciais e sem qualquer respeito pelo
público. E é possível que não só algumas preocupações temáticas do autor,
mas também algo do seu envolvimento com as palavras — e eu lembraria
aqui as citações clássicas de Marcha fúnebre, que proporcionaram a Teresa
Raquel, na encenação, alguns de seus melhores momentos — alcance os
espectadores. Os quais, na sua grande maioria, não havendo chegado ao
estágio de leitores, nunca tiveram e dificilmente terão nas mãos uma obra
literária.
Osman Lins
1978
Em palestra realizada no encontro promovido pela Universidade Federal de
Pernambuco na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), no Recife, em
06/08/2003 — realizado em homenagem a Osman Lins pela passagem dos
25 anos do seu falecimento — a pesquisadora Ermelinda Ferreira analisa o
conto A ilha no espaço como uma alegoria da solidão do escritor, preso
num dos últimos andares de um edifício desabitado. A queixa de Osman
Lins sobre a indiferença dos leitores por ocasião de um comentário seu,
extraído do livro Guerra sem testemunhas, se expressaria, assim, nesta
metáfora talvez incompreendida pelos espectadores quando da exibição da
obra na TV. Mesmo angariando um público quantitativamente muito maior,
talvez esse público buscasse no Caso Especial apenas mais um
entretenimento, relegando o escritor à mesma condição de isolamento por
ele sentida na recepção de seu notável romance Avalovara. “Avalovara é,
provavelmente, um caso único na literatura brasileira, no qual o enredo
encena a palavra. É ela que sobe ao palco, poderosa, e fala, com a voz
embargada, de um mundo estagnado” (FERREIRA, 2003).
I
O desaparecimento, em setembro de 1958, de Cláudio Arantes Marinho,
bancário, casado, com quarenta e um anos de idade, deixou atônita a
população do Recife. Não pelo desaparecimento em si, mas pelas
circunstâncias que o envolveram e que viriam a constituir o ponto
culminante nos obscuros fatos de que imprensa e rádio, durante vários
meses, se ocuparam, mantendo no noticiário o majestoso “Edifício
Capibaribe”, de que Arantes Marinho era condômino.
A princípio, acreditou-se que ele houvesse morrido: seu apartamento, no
18º andar, estava fechado por dentro, a trinco e chave. Repórteres vieram,
gente da polícia, e arrombaram a porta: a janela de frente, que dava para o
rio e para o mar, estava aberta, a cortina barata esvoaçando, mas não havia
ninguém no apartamento. O forro da cama, ligeiramente amarrotado, a
marca da cabeça num dos travesseiros e o par de chinelos sobre o pequeno
tapete de chenile, davam a impressão de que ele estava deitado, invisível.
A esposa e a filha constataram não faltar nenhuma de suas poucas roupas,
nenhuma das pouquíssimas gravatas, os dois pares de sapato ali estavam e
até a caneta, a escova de dentes, o isqueiro com as iniciais C. A., nada
faltava.
Supor que um homem com a sua idade e não afeito a exercícios físicos
pudesse haver descido numa corda, de tão grande altura, era absurdo. E
depois, com que finalidade ele faria isto? E onde estava a corda?
A suspeita de que tudo fora um golpe de publicidade, organizado pelos
donos do edifício, foi logo abandonada. Mas quase todos se mostraram
inclinados, depois de observar, nos jornais, a planta do apartamento e as
condições especialíssimas em que este se encontrava, a hipótese, bem ao
gosto do nosso tempo, de que o infeliz bancário fora arrebatado do leito, em
pijama e descalço, por algum poder desconhecido.
Muito se falou a respeito. E Arantes4, que adquirira, em razão dos
sucessos precedentes, certa notoriedade triste, foi, por semanas, assunto
obrigatório de conversas. No entanto, seis meses para trás, era ele um
funcionário correto, desconhecido5 e aparentemente feliz.

II
Veio andando pelo cais da Rua da Aurora e deteve-se, como tantas outras
vezes, naquela mesma hora, a contemplar a massa de concreto que se erguia
ante ele, com suas inúmeras janelas cintilantes, sobre o estrelado céu de
março. Ali, entre tantos retângulos de luz, no antepenúltimo andar, estava a
sua casa.
Lutara com a mulher, que o induzira a vender o chalé na Madalena,
despender economias de anos, endividar-se nos bancos para dar a entrada
do apartamento; e depois assinar um contrato cheio de cláusulas,
autorizando a sangria no ordenado.
— Se for preciso, eu me emprego, ou você consegue emprego para uma
das meninas, contanto que fiquemos com o apartamento.
Compromisso tomado, ninguém voltara a falar naqueles empregos
possíveis: ele é que vinha pensando em aceitar umas escritas, para fazer em
casa, à noite, esforço que assumiria agora sem repulsa, pois começara a
orgulhar-se do edifício, dos polidos nas escadas, dos elevadores
automáticos, do revestimento de mármore nas paredes do hall, e, sobretudo,
no espaço ocupado pelos vinte andares daqueles blocos gêmeos, um atrás
do outro e ambos voltados para o oceano.
Um dia, pensava, desaparecidas as pobres velharias da Rua da Aurora,
uma fila imponente de arranha-céus se refletindo no Capibaribe, ele poderia
dizer:
“Sou dos antigos. Nosso edifício foi o pioneiro, o primeiro a ser erguido
nesta rua.”

III
Sentado no living (as duas filhas — sempre tão distantes! — tinham jantado
fora, festa de noivado no Espinheiro, nunca faltavam noivados, chegadas de
viagem, aniversário, ambas saíam demais), dispôs-se a escutar
placidamente, olhos nas guilhotinas de vidro, as reclamações da mulher.
— Isso entristece.
— O quê?
— Ora o quê! Apartamento bom, sem tapete na sala, sem um abajur, sem
quadros nas paredes. Os móveis antigos.
— Estão em moda.
— Sim, mas não os ordinários como estes. E, ainda por cima, essas
cortinas!
— Você pensa demais em tolices. A vida é tão curta! Quando menos se
espera...
— É isso mesmo, insistia a mulher. A vida é curta. Hoje morreu mais um,
no 5º andar deste bloco.
Com um sobressalto, Arantes contemplou-a:
— Hoje?...
— Sim. Enterra-se amanhã. Quarenta e cinco anos. É por isso que eu
digo: aproveitar a vida...
Arantes levantou-se, ficou de pé diante da janela:
— Morreu de quê?
— Quem sabe?
— Não se sabe...
— Não.
Fora da barra, um comprido navio estava fundeado. O farol de Olinda
voava sobre a noite, projetava nas cortinas a sua intermitente claridade. Três
mortes num mês — Arantes refletia — e todas inexplicáveis. Que estava
sucedendo no edifício?
Lembrou-se então, jamais viria a esquecer isto, de que faltava exatamente
uma semana para o seu 41º aniversário. Não era, bem o sabia, um homem
feliz. Mas ninguém o era inteiramente e ele gostava da vida. Seria triste
morrer naquela idade. Quem sabe não viria ainda a conhecer alguém que o
amasse de verdade, uma mulher ou mesmo uma criança, um neto? Alguém,
não importavam os anos, beleza ou condição, alguém que o amasse?...
Dionísia se fora para o quarto. Desde muito, afetava um cansaço
inexplicável, principalmente nas noites que ficavam em casa e nas primeiras
horas da manhã: oblíquo modo de atingir o homem — não mais o amava,
pois não enriquecera — e de fazê-lo sentir-se responsável pela sua ausência
de coragem, pela sua carência de alegria.
Arantes encostou o rosto na vidraça, contemplou mais uma vez a
paisagem noturna: um pouco à esquerda, com suas luzes claras, por trás dos
imensos tambores de combustível, petroleiros ancorados: depois, a silhueta
cinzenta dos Grandes Moinhos, os pavilhões das docas, com suas muitas
janelas, a Torre Malakoff e seu relógio; a Ponte Santa Isabel, a Ponte Duarte
Coelho, luzes nas águas do rio, arranha-céus.

IV
Na manhã de 27 de março, que era a do seu aniversário, soube, no elevador,
haver morrido um homem, pela madrugada, no 11º andar do bloco “B”. No
banco, telefonou para o seu velho amigo Guimarães, lembrando, como fazia
há anos, a data e o jantar.
Bem antes da hora costumeira, saiu para fazer compras, queijo, vinho,
ameixas, um paliteiro decente. A manhã estava ensolarada, Cláudio Arantes
sentia-se disposto. Não podia, mesmo assim, conter sua tristeza, a
estonteante impressão de que a morte procurava-o no “Capibaribe”, como
alguém que esqueceu um endereço e põe-se, impaciente, batendo em várias
portas, ao azar.
O paletó num braço, na outra mão o embrulho de especiarias, decidiu
comprar uma gravata. Era o presente que a si mesmo concedia: as filhas, a
mulher, nunca se lembravam de fazê-lo.
Diante da vitrina, no passeio, olhava a exposição, as gravatas lisas ou de
listas, feitas de lã, de seda, as gravatas rubras, amarelas, verdes, presas em
finas hastes niqueladas. E sentiu, de repente, o sangue queimar, como nos
tempos de sua adolescência, mesmo antes de apreender — havendo, antes,
apenas pressentido — a beleza do rosto de mulher que parecia (flor num
aquário com peixes) boiar sobre as alegres gravatas. Mais: ele estava nos
olhos desse rosto juvenil e curto, de uma majestade dócil, tranquila e como
que purificada. Aqueles olhos banhavam-no e Arantes sentiu a crosta de
seus anos diluir-se; transformou-se ante aquela vitrina, e
momentaneamente, num rapaz de vinte anos, sem nenhuma ruga nos olhos
ou na boca, o coração como um arco distendido. Ou como um tigre à
espreita.
Tudo foi vago e intenso. Espécie de alucinação, muitos indefinidos
sonhos seus cumprindo-se naquele instante único. Estavam lado a lado, ante
o balcão, e Arantes sentia o seu perfume, via as suas mãos de unhas bem
tratadas, escutava a sua voz. Ela falava com os dentes meio cerrados, como
se tivesse frio; ele mal percebia, entre as caixas abertas, os padrões das
gravatas.
Teria contemplado aquele rosto em sonho?, nas colunas sociais?,
conheciam-se de alguma existência submersa e de que restara, como único
sinal, a recordação dessa beleza que lembrava — não sabia por quê — um
veleiro ancorado?
Então, o empregado afastando-se um momento, eles ficaram sós. E
Arantes sentiu desamarrar-se nele uma ternura velha e séria, tão grande que
chegava a ser solene. Murmurou, olhando-a de perfil:
— A senhorita... é tão linda!
As palavras eram navalhas, cortavam-lhe a garganta e a alma, fora difícil
falar.
Ela voltou-se, tocou-lhe a mão, de leve, como quem tenta aplacar uma
raiva e seu olhar era de gratidão. Não falou.
Ele apanhou o pacote, o paletó, saiu sem comprar. Não quero que a morte
me encontre agora, pensava, talvez a vida ainda me reserve um bem, tão
grande como eu jamais poderia imaginar.
O jantar foi diferente dos anteriores. Guimarães e a mulher, alegres
quando sóbrios, mais alegres ficaram com as bebidas. Dionísia alegrou-se,
as filhas riram muito, enquanto ele pensava naquele assunto, não
mencionado, que Guimarães ignorava e a família esquecia, as sucessivas
mortes no edifício.
Quando a porta do elevador correu, pesada, sobre o último aceno dos
amigos, ele ficou de pé, sozinho, lembrando-se da jovem da manhã, certo de
que não voltaria a encontrá-la e desejando que a morte não o descobrisse,
em meio à multidão que ocupava os dois blocos gêmeos do edifício.
V
Entre o Domingo de Ramos e a Sexta-Feira da Paixão, registraram-se três
óbitos. O porteiro do prédio, alegando sentir-se mal do peito todas as vezes
que ajudava a transportar defuntos pelo elevador, solicitou demissão.
Alguém, a essa altura, teve a ideia de promover uma assembleia de
inquilinos e condôminos, para debater o assunto, que começava a alarmar
os moradores.
A reunião foi na garagem do bloco “B”, um mal iluminado recinto abaixo
do nível da rua, mas espaçoso e abrigado dos ventos. Atestando o temor de
que todos estavam dominados, poucos não foram. O número dos que
Arantes conhecia era pequeno, sendo que muitos ele não se lembrava de ter
visto nunca. Certo major do Exército, ninguém sabe por que, assumiu a
presidência, prometendo que seria breve e direto na sua exposição, e que
ouviria com o máximo interesse quem quer que tivesse algo importante a
dizer. E soube-se, o que a maioria ignorava ainda, que os médicos estavam
embaraçados, não podendo indicar, com segurança, de que haviam morrido
aquelas várias pessoas, aliás moradoras em diferentes andares, com hábitos
próprios, diferentes fontes de abastecimento e cujas mortes, com uma
assustadora uniformidade, apresentavam as mesmas circunstâncias: todos
gozavam saúde, tinham falecido dormindo — um durante a sesta — e
apresentavam no corpo, principalmente no tronco, manchas rubras.
Houve um momento de silêncio e logo começaram as perguntas. Não se
registravam mortes semelhantes em outros pontos da cidade? Não haveria,
no edifício, quem se dedicasse a experiências termonucleares? Não estaria
poluída a água? O militar falou, superior, com fastio e talvez com ironia:
não, por duas vezes mandara examinar a sua. Houve então quem indagasse,
não teriam aquelas pessoas sido vítimas dos resíduos letais trazidos pelo
vento — fumaça dos navios, pó dos Grandes Moinhos, emanações dos
combustíveis na outra margem do rio ou da fábrica de refrigerantes, que
ocupava o quarteirão quase todo, à esquerda e por trás do edifício.
Um sujeito de aspecto musculoso e baixo provocou exclamações e risos,
perguntando se não podia ser assassinato, se as mortes não seriam causadas
por uma espécie de vampiro de Londres. Ao que se respondeu,
judiciosamente, que um vampiro de Londres não podia existir senão em
Londres.
Neste ponto, um homem de aspecto bovino6, falando pausadamente,
interrompendo a série de suposições, que ameaçavam converter a
assembleia numa palestra sem consequências e mais ou menos sinistra, fez
uma proposta lúgubre e que provocou, sem exceção, mal-estar profundo.
Sugeriu fosse feita, na próxima vítima, rigorosa autópsia, verificando-se
inclusive se não acusava irradiações atômicas. Do extremo da garagem, um
tipo desenvolto e sanguíneo, de cabelo vermelho e dentes de carnívoro, saiu
da sombra e caminhou para ele. Parecia ter a intenção de esbofeteá-lo.
Parou no caminho, olhou acintosamente em redor e falou alto:
— Comunico aos senhores que vou tomar a única medida sensata. Mudar-
me quanto antes. Amanhã, se puder.
Alguém lançou um “mas” indeciso, logo cortado por ele:
— Não fico mais aqui. Boa noite.
Sua retirada teatral encerrou a assembleia, havendo antes sido posta em
votação e aprovada, por unanimidade, a proposta do homem que falava
medindo as palavras.
O exemplo do indivíduo sanguíneo (soube-se depois, com admiração, que
não tinha filhos e era enganado pela mulher) foi seguido. Em dois dias, três
inquilinos rescindiram o contrato de locação, não obstante o prejuízo, e
desocuparam seus apartamentos. Mas decorreram mais de três semanas,
antes que o próximo cadáver fosse examinado. Seria o de um polaco ou
estoniano, que negociava com joias e guardava, sobre o próprio passado,
rigoroso segredo, nem mesmo revelando ao certo há quantos anos estava no
Brasil.
Promoveu-se logo outra reunião e o comparecimento foi bem inferior ao
da primeira; fato notável, no qual se acrescentou, nesta segunda assembleia,
o desejo manifesto e unânime de que mortes semelhantes fossem noticiadas
em outros pontos, para dissipar a impressão presente em todos, de
habitarem num lugar infausto, talado por um cerco invisível. Cerco este
cuja impiedosa realidade fez-se mais clara na manhã seguinte, quando
correu a notícia de que haviam amanhecido mortos o eficiente major e uma
jovem esbelta, notável por sua beleza e que trabalhava como recepcionista
numa companhia aérea.
Então, o edifício tremeu, abalado por uma espécie de pânico. Vizinhas
que jamais trocavam um cumprimento,
visitavam-se, faziam comentários. Murmurava-se através dos corredores,
soavam campainhas, telefones batiam de um andar para outro, discutia-se
em voz alta nos elevadores. Todos, em maior ou menor grau, lutavam contra
o medo. Em cada brecha, em cada recanto sombrio, parecia esconder-se,
com seus olhos frios, sua língua partida, uma serpe.

VI
A noite, para Cláudio Arantes, foi tristíssima. Triste e exasperadora. Os
jornais da tarde estampavam uma fotografia da moça, outra do “Edifício
Capibaribe” e enumeravam as mortes ali verificadas nos últimos três meses.
Uma lista completa, mas com a insinuação de que faltavam nomes. Na rua,
havia caminhões parados e os elevadores de serviço trabalhavam sem
pausa, descendo carregados com utensílios, móveis, objetos de adorno.
Dionísia olhava da janela, voltava-se e perguntava se a família ia ficar ali,
à espera. Argumentava Arantes que era insensatez fugir da morte; e que,
além de tudo, empregara, contra a sua vontade, as economias juntas em
mais de 15 anos, não podendo pagar, ao mesmo tempo, as amortizações do
apartamento e o aluguel da casa.
As filhas pressionavam, argumentando que ele assim dizia porque não era
jovem como seriam elas, com a vida inteira pela frente.
Respondia que estavam todas com a razão, que era velho e
desesperançado e sem alentadoras ambições.
— Mas não me é possível largar o apartamento. Outros, sendo ricos ou
simples inquilinos, poderão fazê-lo. Eu, não. Tenho de seguir até o fim, dê
no que der.
— Você não tem amor à sua família.
— Não se trata disso — gritou. Assumi responsabilidades mais altas do
que devia. Assinei promissórias, estou enforcado.
— Que valem promissórias, com as nossas vidas em perigo? Não pague
mais as letras.
— Irão a protesto, serei interpelado pelo banco, posso perder o emprego.
Vocês não entendem?
— Pois o senhor pode fazer o que quiser — disse a filha mais velha.
Amanhã mesmo, vou morar com uma amiga. Ela me chamou hoje e eu
fiquei de dar a resposta.
— Vou também — acrescentou a outra.
Arantes, nos seus olhos, sentiu um brilho de ódio ou de desprezo, que o
feriu. Quão depressa, pensou, tinha perdido sua delicadeza infantil aquele
rosto de 16 anos! E que havia, perguntou a si próprio, que havia nele de
errado, que em ninguém no mundo despertara uma afeição durável?
Sozinho na sala, ouvia ainda as vozes encolerizadas das mulheres, dentro
do quarto. Na outra noite, quando quis ouvir o noticiário, soube que as
filhas tinham levado com elas o rádio de cabeceira.
Agora, sempre que voltava para casa, duas coisas o afligiam: o número
crescente de janelas apagadas e o ar de humilhação, de vítima resignada,
com que sua mulher o recebia.
A polícia, mais de uma vez, compareceu ao edifício, fez interrogatórios
inúteis. Também esteve lá, em consequência da morte do major, uma
comissão de oficiais do Exército. O secretário (interino) da Saúde,
acompanhado de médicos, visitou o local, foi fotografado, prestou
declarações que alarmaram o Recife:
a) Era absolutamente desconhecida a doença que vitimava os moradores
do “Capibaribe”;
b) O vírus, possivelmente, fora trazido de países distantes, talvez das
margens do Ganges ou do Nilo, por algum navio empestado;
c) Fora assim com o cholera-morbus, que nos flagelara há um século e
que viera, de regiões levantinas, na barca “Defensora”;
d) A posição especial do edifício, muito alto e isolado, exposto aos ventos
do mar, favorecera o contágio;
e) Humanamente impossível assegurar que o misterioso mal não atingiria,
dentro em breve, outros pontos da Capital.
Por coincidência, nesse mesmo dia, um carregador falseou um degrau
entre o 1º e o 2º andar do bloco “A”, com uma pesada escrivaninha à
cabeça, rolou escada abaixo e morreu. A imprensa tirou partido do acidente,
o público sobressaltou-se ainda mais e o êxodo recrudesceu.
Então, Dionísia foi embora. Regressando do trabalho, Arantes encontrou
o apartamento apagado e um bilhete na mesa, sob a cafeteira:
“Meu caro, resolvi hoje à tarde ir para a casa de meus pais, se quiser ir
também, lá estarei. Mas não vá me pedir para voltar, é perder tempo. Não
vá.”
Menos pelo desejo de trazê-la, que por formalidade, foi à casa dos sogros,
articulou sem convicção os argumentos próprios, ouviu as réplicas
inevitáveis, despediu-se de todos, voltou só.

VII
O edifício parecia agonizar em silêncio e começava a exalar um cheiro
indefinível, de recinto fechado, onde murcharam flores.
Mesmo assim, Arantes, nessa noite, chegou a encontrar uma alegria meio
perversa na sua liberdade. Era um alívio não ver, antes de apagar a luz, o
breve olhar que Dionísia lhe atirava, olhar cortante e amargo — como a
frase final de um suicida.
No dia 30 de junho, às 19h, vindo pela Rua da Aurora, recusou acreditar
no que via: o prédio estava às escuras. Somente no térreo, clareando o hall e
a calçada, com o vigia sentado num banquinho, junto à porta de vidro e
ferro trabalhado, havia luzes.
Arantes debruçou-se na amurada, olhando o rio e os reflexos do rio, o
coração batendo. Devia haver alguém ainda. Era possível que somente
ele?...
Cumprimentou o velho sentado na calçada, entrou com passo firme,
tomou o elevador, parou em andares que não eram o seu, fez pressão em
algumas portas, escutou como se fossem de um desconhecido os próprios
tacões nos empoeirados vestíbulos e verificou que o odor de flores secas
trancadas numa sala acentuara-se. Chegou ao 18º, entrou no apartamento.
Em seguida, ouviu com alegria o som de ferros arquejantes, alguém
chamara embaixo o elevador. Depois foram vozes de homens, rumores de
passos, tocaram a campainha. Levantou-se, abriu a porta e leu, nos três
pares de olhos à sua frente, um misto de avidez, perplexidade e
comiseração. Conhecia-os. Eram os donos do “Capibaribe”, cujo dinheiro
estava ameaçado e vinham-lhe fazer uma proposta. A conversa foi longa,
ele próprio estendeu-a, mas tudo pode resumir-se nisto: receberia grátis o
apartamento, se permanecesse nele, vivo, até que o seu exemplo
desmentisse o medo de todos os que haviam fugido.
— Mas isto vai ser invadido por toda sorte de bichos. Os ratos vão subir
do rio e fazer morada aqui. E os morcegos e as baratas? O edifício vai ficar
como uma dessas casas mal-assombradas, mas cem vezes maior.
— Nós zelaremos, daremos toda a assistência, faremos o possível para
tornar agradável a sua moradia.
— Os senhores vão precisar de um exército, para manter limpo este
monstro.
— Que vista magnífica — disse um dos visitantes, olhando através da
vidraça.
Outro perguntou: — Então?... É coisa séria, subscreveremos um contrato.
Um tilintar ritmado e insistente, altas horas da noite, despertou-o. Quem
telefonaria? E em que andar chamava o telefone? Naquele mesmo andar, em
cima, embaixo? Quem seria? Uma pessoa doente, procurando um médico?
Um trote? Parente ou amigo que chegava de viagem, inesperadamente, e
telefonava do aeroporto? Os chamados não cessaram: alguém, com
paciência inumana, insistia. De súbito, sentando-se na cama, Cláudio
Arantes sentiu uma necessidade premente de ligar-se àquele semelhante.
Era tão fácil! “Chega ao extremo do fio, atende a este chamado. Fala a esse
homem, a essa mulher. Delicadamente. Faz com que te desejem, para além
da sombra, de fora desta solidão, faz com que te deem boa noite.”
Saiu de pés descalços, desceu alguns degraus, ficou mais longínquo o
chamado, ele voltou às pressas, subiu para o andar superior. Que o chamado
não cessasse, que não se exaurisse a paciência daquele desconhecido.
Localizou a porta. E foi, diante dela, como se estivesse preso e urgisse
livrar-se quanto antes, ganhar os descampados. Deu de ombros, de pés,
quebrou a fechadura, precipitou-se aos trambolhões, como um ébrio, para o
telefone:
— Alô!... — Outra vez, com mais força, gritou. Chamou ainda: — Alô!
Do outro lado, nenhuma voz respondia. Era apenas um silêncio derrisório,
o vazio deste silêncio, o nada. Pôs o fone no gancho, olhou, com remorso, a
porta arrombada. Por que fiz isto? Eu próprio comecei a implantar a
desordem, aqui, onde vou viver sozinho. Comecei a destruir, a desorganizar,
adiantei-me ao vento, ao próprio tempo, à podridão, ao cupim, às ratazanas.

VIII
No outro dia, indo visitar Dionísia, lá encontrou por acaso as duas filhas e
comunicou, no tom mais indiferente que lhe foi possível, a conversa da
véspera. Todas se alegraram, quando lhes falou na possibilidade de obter o
apartamento sem pagar as árduas prestações restantes, e esta alegria
também o fez feliz. Quando saiu, porém, achou-a impiedosa e admirou-se
da própria ingenuidade. Arriscava a sua vida e curtia o isolamento, bastando
que isto representasse uma vantagem possível, para causar na família uma
satisfação que chegava a ser cruel. E posso censurá-las? — perguntava. Não
me degradei, eu mesmo, trocando a minha vida por dinheiro? Vendi uma
aparência de coragem ou de obstinação. Não fosse isto e eu, Cláudio
Arantes Marinho, fugiria, me arruinaria, mas iria embora, fosse para onde
fosse. E o pior é que não vencerei a luta, não obterei o apartamento: a
Morte, aqui escondida, mais dia menos dia me descobrirá.
Vieram repórteres, fotografaram-no, mal perguntaram seu nome.
Publicaram, pagos pelos donos do “Capibaribe”, uma entrevista falsa, com
seu retrato numa das janelas, contemplando a paisagem. Ele era o homem
sem medo, o que não receava a morte e o mistério, o que preservava o
edifício do abandono, sendo também um símbolo de fé. Tenho fé em Deus,
dissera aquele desconhecido com a sua mesma idade, com um rosto
semelhante ao seu, cujo retrato saíra na entrevista e que o repórter
assegurava morar no seu apartamento, de onde contemplava, sobre o mar, o
despontar do Sol e as luzes dos navios. “Mas eu não creio em Deus, não
disse isso, há quantos anos não me lembro d’Ele?”
Soube que seus três algozes haviam oferecido, sem sucesso, dinheiro a
algumas pessoas, para morarem uns meses no “Capibaribe”. E ele? Também
não devia ganhar? Não valia milhões, o seu trabalho? Lesavam-no, esta era
a verdade, os três ricaços lesavam-no. Foi difícil vencer a própria intensa e
humilhante ambição de forçar exigências, ameaçar deixar o apartamento se
também não lhe dessem uma mensalidade, vender — ou pelo menos tentar
vender — por melhor preço a sua permanência, corromper-se ainda mais.
Quase não visitava Dionísia e só via as filhas quando iam ao banco, pedir-
lhe dinheiro. Telefonou, mais de uma vez, para o seu amigo Guimarães,
perguntando se podia visitá-lo à noite, mas o outro pretextava um
compromisso. Infelizmente, um compromisso inadiável. Chamasse outro
dia.
— Então, aparece lá, na casa assombrada — gracejava.
— Está bem — respondia o outro sério.
Não ia, mantinha-se arredio, tinha um juízo qualquer a seu respeito,
algum juízo errado. Todos se afastavam. Isto, porém, não duraria muito,
pois seus dias estavam bem contados, a Morte procurava-o, farejante e cega,
nos dois blocos, pelos vinte andares ocos.
Sempre que tornava, no silêncio da noite, a noção das distâncias
existentes, sem uma voz humana, sem nenhum coração, entre seu leito e o
porteiro, sentado no banquinho, meio adormecido, diante do edifício,
Arantes como que perdia os seus apoios e se esforçava para não chorar.
Propôs aos donos do “Capibaribe” transferir-se para um andar mais baixo.
A resposta foi não; precisavam dele bem no alto, para que a luz do seu
apartamento fosse vista de longe. É ali, que você precisa resistir. Mais
algumas semanas e outra janela haverá de acender-se, você já não estará
sozinho. Quis fazer outra proposta: deixaria acesa a sua sala, contanto que
dormisse no 1º ou no 2º andar, perto do chão. Mas foi embora.
Entrava em casa, quando se lembrou do telefone, em cima. Nunca mais
tocara... Chamar alguém, alguém, fosse quem fosse. Subiu aos saltos. A
fechadura da porta continuava em pedaços, o telefone fora removido. O
piso, as paredes, vidraças, portais, tudo ressoava como um órgão.

IX
Lia muitas revistas, para distrair-se. Comprava-as, quase todas as noites,
numa barraca da Martins de Barros, onde ficava o banco.
A moça que vendia revistas começou a dar-lhe confiança. Tinha o rosto
redondo e amarelaço, fácil de esquecer, os cabelos pintados num tom claro e
Arantes não sabia como eram os seus quadris ou suas pernas. Encontrara-a
jamais em outra parte que não entre as revistas, atrás daquele balcão, por
entre as muitas dezenas de rostos de mulheres que pareciam rir da sua
pálida beleza suburbana?
— Quero falar com você. Marque um lugar.
— Está passando um filme...
— Filme, não. Não posso. — E mostrou o dedo com a aliança, cheio de
compaixão de si mesmo, pois conhecera um momento de beleza, a mulher a
quem poderia amar com as forças mais antigas do seu coração tocara-o,
desaparecera, decerto esquecera-o e ele abdicava do sonho, descia até à
vendedora de revistas, só para fugir da solidão, ouvir no apartamento,
depois de tantos dias, uma voz humana. — Espero por você entre 19h30 e
20h horas, na Rua da Aurora, em frente à Câmara.
Saíram lado a lado, sob as castanholas, escutando o som das águas na
amurada. Era a primeira noite de setembro. Arantes sentia-se ridículo em
caminhar de mãos dadas. Sem havê-la beijado, sem quase haver falado,
parou, olhou-a de frente. Na sombra, o rosto inexpressivo e redondo
adquirira uma espécie de doçura. Mas aqueles olhos úmidos, que
procuravam imitar a flama da paixão...
— Quero que você suba ao meu apartamento.
— E sua família?
— Está fora.
Ela apertou-lhe o braço e acompanhou-o. Cláudio Arantes sentiu pela
mulher uma gratidão desmedida e espantou-se com o júbilo que tentava
conter e que, contido, parecia mais irrefreável. Andou depressa, sempre
mais depressa e quase esquecido da mulher, que trotava a seu lado. Desceu
o passeio esburacado, ganhou o meio da rua. À altura do último pé de
castanholas, a uns sessenta metros do edifício, segurando-lhe o braço com
mais força, ela deteve-o:
— Onde é que você mora?
Então, ao gesto indeciso de braço em direção à grande massa escura de
concreto, olhou-o como se ele fosse um espectro.
— Está com medo? Com medo de quê?
Ela fugiu. Tropeçou adiante, olhou para trás, ergueu-se outra vez,
descalçou os sapatos, disparou. Arantes se voltou com ódio para o arranha-
céu. Imensa baleia morta apodrecendo no cais? Morta, pensou, e nem assim
me governando menos. Baixou-se, catou uma pedra — mal suportando o
ódio, a cólera —, avançou. Ergueu o braço e a pedra caiu da sua mão: havia
uma janela acesa, no bloco posterior. Sorrindo, contou os andares, correu,
passou pelo porteiro sem cumprimentar, tomou um elevador do bloco “B” e
não localizou o apartamento.
Desceu. A luz continuava acesa, era no 6º andar, ele subiu outra vez. Não.
Nenhuma claridade sob as portas do 6º, do 7º e do 5º andar. Então, retomou
o elevador, saltou no térreo, apanhou o elevador do bloco “A” e entrou no
seu apartamento. O luar despontava.
Durante uma semana inteira, aquela sala acesa desafiou-o. Por duas
vezes, explicando ao porteiro que se sentia aborrecido e só, pediu-lhe para
fechar o portão e dar uma volta em sua companhia. Ia andando com ele,
falando por falar, detinha-se, olhava para cima, nenhuma luz havia. E o
velho não tocava no assunto, não mencionava a existência de outro
morador.
Uma noite, vendo o apartamento aceso, decidiu esclarecer aquilo de uma
vez. Junto ao portão que abria para a Travessa do Costa; um grupo de
meninos discutia. Gratificaria um deles para ficar embaixo, olhando a janela
do 6º e subiria sem sapatos pela escada. Podia ser que o hóspede, ouvindo o
elevador, desligasse a lâmpada. Se, chegando em cima, encontrasse o
apartamento às escuras, voltaria depressa, perguntaria ao menino em que
momento desaparecera a luz. Aproximou-se do grupo, tomou o braço de um
garoto de muletas. Voltou-se para o prédio e viu — viu a luz apagar-se.
Então saiu às pressas, escutando as vaias dos meninos, tomou o elevador,
subiu, deixou a sua porta escancarada. Era preciso que alguém o visitasse
aquela noite. Viria alguém, alguém, fosse quem fosse. Os minutos
passavam-se e a sua esperança, longe de morrer, tornava-se mais intensa.
Por sobre o elevador, no retângulo dourado, continuava aceso o número 18,
ninguém chamava embaixo, ninguém ia subir.
Meia hora depois, ele ouviu uma tosse, um gemido, resmungo de ferros e
levantou-se de um salto. O número 18 se apagou, e o registro mágico foi
indicando, dócil, o mergulho do ascensor através dos andares vazios, ao
encontro daquele que esperava embaixo.
E se não voltasse a subir?... Ficou de pé, os lábios secos, sem bater com
os olhos, olhando para os números. Começou o registro da subida — e seu
coração estacava a cada número, receando que este não se apagasse como
os anteriores, interceptasse a vida que subia, o fim de sua angústia, um jato
de alegria. Recuou um passo, hirto, o número 18 se acendera. O elevador
parou, abriu-se a porta e Arantes vacilou, com um grito surdo: não havia
ninguém dentro.
Trancou-se e deitou-se na cama, lutando contra pensamentos absurdos.
Era loucura pensar que a Morte, invisível, subira de elevador. E que
estava a seu lado, na sombra, silenciosa, olhando os reflexos das luzes nas
paredes.

X
Na manhã seguinte, em vez de ir ao banco, apanhou um ônibus, saltou na
Encruzilhada e dirigiu-se ao mercado. Comprou alpiste, uma gaiola de
arame, um periquito branco, apanhou um táxi e levou-o para o seu
apartamento, onde entrou como um recém-casado. Assoviando, pôs comida
no coxo, água fresca no papeiro de matéria plástica, estalou alegremente os
dedos e foi para o trabalho.
Quando voltou, não acendeu logo a luz. O pássaro dormia na gaiola,
sobre a mesa. A um gesto seu, quando ligasse a lâmpada, despertaria, faria
acrobacias, cantaria. E assim foi. Ficaram até bem tarde, frente a frente, o
periquito saltando, ele estalando os dedos e assoviando, cantou algumas
canções, falou da solidão, de sua infância, da vida que ainda o esperava, de
como era bonito uma rosa boiando sobre os coloridos peixes de um aquário,
do seu amor guardado e de como veriam, ele e o pássaro, daquela alta
janela, o despontar do Sol na linha do mar. Por fim, num gesto de ternura
que não pôde encontrar outra expressão, pôs, antes de dormir, um alvo
lenço de linho em cima da gaiola.
Pela madrugada, despertando, sentiu uma pontada de terror. Mas se
lembrou do periquito branco, adormecido na sala e abrigou-se, tranquilo, no
lençol. Mas não dormiu. Começou a pensar naqueles vinte andares,
naqueles apartamentos fechados, segregando mofo.
Ficou de pé. Não toleraria, nem por um minuto mais, o silêncio de aço,
aquela solidão constrangedora. Quem ouviria o seu grito, se tivesse uma
dor, se corresse um perigo? Um perigo?... Ia gritar, mas conteve-se. Gritar
para quê? E veio-lhe, premente, o desejo de falar, como fizera à noite, ao
pássaro. Saiu do quarto, ligou o interruptor e viu que o periquito estava
morto. Compreendeu então que iria enlouquecer e decidiu sumir,
imiscuindo-se, por um artifício que teria de inventar, naquela espécie de
mistério em que se vira envolvido.

XI
Sua providência inicial foi comprar calça e paletó escuros, numa liquidação
de roupas feitas. Em seguida, vindo do trabalho no sábado, trouxe
comestíveis e avisou ao porteiro que, tendo necessidade de descanso, ficaria
em casa durante o fim de semana, nem sequer visitando a família. No
sábado seguinte, fez o mesmo. Antes, porém, adquirira uma corda e,
pretextando haver perdido a sua chave, pedira ao velho as sobressalentes
(jogadas numa caixa, sem etiqueta indicativa) e experimentou-as uma a
uma, na porta do apartamento inferior ao seu, até abri-lo. Roubou a
duplicata e devolveu a caixa com as outras.
A madrugada de 28 de setembro, que fora a escolhida, não lhe saía da
mente. Tinha tudo: roupa e sapatos desconhecidos da família, dinheiro, a
corda, a chave de baixo, a faca, a esperança. O resto dependia de seus
punhos e de conseguir prender um gato, dos muitos que vagavam pelos
arredores. Então, começaria vida nova. A pobreza futura não contava;
importava era deixar a carapaça inútil, aquela vida velha e sem amor.
No sábado, luzes apagadas, havendo novamente avisado que passaria o
seu fim de semana sem sair, repassava o plano pela centésima vez. Nascera
a lua cheia, sua claridade iluminava o living. O gato, com seus olhos de
ouro refulgindo, bebia leite num pires. Fez tudo como se fosse dormir.
Trancou as portas por dentro, deixou as chaves na fechadura, escovou os
dentes, vestiu o pijama; ficaram os chinelos ao pé da cama, na mesa de
cabeceira o relógio de pulso. Às 2h30 da madrugada, barbeou-se, meteu o
gato num saco e deixou-o, juntamente com a roupa e os sapatos, no
apartamento por baixo do seu, abrindo a janela da frente. Subiu novamente,
trancou-se por dentro, verificou se não faltava nada. Não. Tinha no bolso do
pijama a faca e a chave do outro apartamento, o dinheiro estava na roupa.
Ergueu a vidraça. A Lua iniciara a descida; a fachada do prédio não
recebia mais o seu clarão. Havia, ao pé da janela, pequena grade de ferro:
mais que proteção, era um ornato. Num dos curtos varões, passou a corda,
de modo que as duas extremidades se tocassem embaixo, deu no meio da
corda um nó — e, com um medo terrível de cair, mas firme na sua decisão,
iniciou a descida. Viu quanto pesava seu corpo e arrependeu-se, mas voltar
era impossível, tinha de descer e quanto antes, as forças lhe fugiam. E se
tombasse dali, daquela altura, nem cairia na rua, mergulharia na lama da
maré e talvez nunca mais fosse encontrado. O piso dos andares, no
“Capibaribe”, prolonga-se numa espécie de ressalto mais ou menos largo,
na fachada, de modo que Arantes, em frente à janela na qual devia entrar, e
sentindo-se no limite de sua resistência, teve de provocar na corda uma
oscilação perigosa e de êxito difícil, porque o vento jogava-o para os lados.
Afinal, conseguiu meter as pernas no peitoril da janela e, quase sem
fôlego, sentindo que as mãos fugiam ao seu governo, impulsionou em um
último esforço o corpo, decidido a cair no apartamento ou despencar de
uma vez.
Os únicos sons que ouvia, quando voltou a si, eram os da ventania e os
movimentos do gato, agitando-se na sua prisão. E um outro rumor,
constante e sem ritmo, um roçagar na parede... Lembrou-se da corda. O
vento jogava-a, ela batia na parede, mas longe da janela.
Dispunha-se a arriscar a vida novamente, ficando de pé no ressalto da
fachada, quando a corda guinou em sua direção e ele agarrou-a, cortou um
dos lados acima do nó, puxou-a e cingiu-a à cintura. Tinha vontade de rir e
estava com sede. Com dificuldade — as mãos inchadas, endurecidas —,
vestiu-se, calçou os sapatos, fechou a janela e apanhou o saco, fechou a
porta, guardou a chave no bolso. Aí, lembrou-se de que melhor era descer
sem sapatos; descalçou-os. E se foi pelas escadas, contando os degraus,
tateando com os pés e os ombros, pois tinha as mãos ocupadas. Era
interminável: quase vinte andares, e às cegas!
No térreo, sentou-se no penúltimo degrau, as pernas trêmulas, o corpo
como que esvaziado. O portão de aço e vidro estava fechado, o velho
preferia passar as noites fora, enrolado num capote, sob os ventos, a ficar
dentro do “Capibaribe”. Arantes dirigiu-se, com o saco, para um depósito
de lixo, que há dias vinha observando. Com extremo cuidado, abriu o saco,
tirou a faca, feriu o gato e prendeu-o no depósito. Os miados,
ensurdecedores, rasgaram a madrugada. Ele correu, ocultou-se no pequeno
balcão da portaria e esperou. O gato saltava na prisão, seus miados
cresciam, davam medo. O vigia não vinha.
Por fim, a chave girou, rangeu o portão, o velho entrou, passou falando
só. Antes que ele desaparecesse, Cláudio Arantes saiu do esconderijo,
esgueirou- se pelo portão semifechado e respirou o ar da liberdade. Correu
pelo meio da rua ainda de sapatos na mão. Isto é um domingo, dizia a si
mesmo, é o começo de um domingo! Na Ponte Santa Isabel, calçou-se.
Lavou o rosto no repuxo da Praça da República e ali jogou a chave. É um
domingo que começa — repetia. E agora estou livre, vou em busca do
amor, das vozes, dos risos dos homens. Os sinos do Carmo chamavam para
a missa.

XII
O Edifício Capibaribe voltou a ser habitado. Com esta diferença: pertencia a
um só proprietário, que comprara os dois blocos por metade do preço,
quando lá moravam apenas ratos, aranhas e baratas. E a Morte, com sua
foice invisível. Ele próprio, com a família e a coleção de objetos antigos,
instalou-se num dos apartamentos, até que o episódio fosse esquecido.
Algum tempo mais tarde, viajou para o interior de Minas, onde
tencionava adquirir certa imagem raríssima sobre a qual alguém lhe havia
escrito, e lá encontrou — de barba, casado, com filhos e ateliê de fotógrafo
— Arantes Marinho. O ex-bancário, embora negasse a princípio, acabou
confessando sua identidade e descrevendo a fuga.
— Segredo puxa segredo — sentenciou o empresário. Era eu que matava
os moradores do prédio: todos os meios são lícitos para um bom negócio.
Numa cômoda do século XVIII, que adquirira na Bahia, tinha encontrado
a fórmula, escrita em latim, de um veneno que, parece, fora inventado para
Lucrécia Bórgia. Conseguiu prepará-lo e misturava-o com a cola dos
envelopes que, sob qualquer pretexto, enviava abertos para os moradores.
Não escrevia o endereço, de modo que jogava com o espírito de economia
do destinatário. Este, caso reaproveitasse o envelope e passasse a língua na
cola, estava morto.
— Se o senhor gosta assim de dinheiro, posso fazê-lo ainda mais rico —
disse Arantes. Não estou em condições de explorar o processo que inventei
de fotografar a cores. Podemos chegar a um acordo. Sabe, meus
documentos são falsos e tenho de viver na obscuridade.
Rindo do passado, subiram a rua tortuosa e deserta, ao sol do entardecer.
Arantes acomodou numa cadeira de braços o responsável por sua libertação,
mas também por tanta angústia inútil, preparou a máquina, pediu ao rico
assassino que sorrisse e apertou um botão. O disparo fez tremerem as
janelas nos caixilhos, a cabeça do homem tombou ensanguentada. Arantes
moveu outro dispositivo: a cadeira foi descendo com o morto; subiu pouco
depois, já sem ele. No ateliê, afora um pouco de fumaça, que o fotógrafo
afastou com as mãos, era como se nada houvesse acontecido.
O título chama logo a atenção para a tendência, que se impunha entre o
povo brasileiro convertido em “público telespectador” deste grande
monopólio empresarial da informação e do entretenimento que se instalava
no Brasil, de buscar notoriedade nos apelidos estrangeiros, sobretudo
quando designavam as figuras “ricas e famosas” dos filmes e seriados. O
nome dado à protagonista desta história, “Shirley Temple”, não foge,
portanto, à regra. De origem no inglês antigo, “Shirley” deriva de scir, que
significa “brilhante, luminoso, iluminado” e leah, “pasto, campo, condado”.
O nome, incomum e considerado masculino, foi popularizado
mundialmente após o estrelato da atriz estadunidense na década de 1930.
Até então, só fora atribuído a uma pessoa no livro Shirley, de Charlotte
Brontë, em 1849. À semelhança do que se sucede em Jane Eyre, seu
primeiro romance, a história é protagonizada por uma mulher de
personalidade forte. Neste caso, são duas heroínas, Shirley Keelder e
Carolina Helstone (personagem inspirada na irmã de Charlotte, Anne),
cujos comportamentos desafiam os padrões da época. Em pleno Século
XIX, em Yorkshire, no auge das Guerras Napoleônicas e no período mais
tumultuoso da Revolução Industrial, estas mulheres vão procurar impor-se
num mundo patriarcal, enfrentando duras provações, sobretudo no amor.
A peça repousa num poderoso elemento visual: a excessiva altura de
Shirley. A atriz deve dar uma ideia, ao mesmo tempo, de arrebatamento,
poesia e desamparo. Sua figura deve ser esgalga, longa, um El Greco. Os
cabelos corridos, bem lisos. Gosta de chapéus: na maior parte das vezes,
usa-os e tem, deles, uma pequena coleção, em geral puxando para o
esportivo. Sublinha sempre os olhos, fortemente, com traços negros. Na
SEGUNDA PARTE (e só na segunda) fuma com uma longa piteira (Não,
naturalmente, em todas as cenas).
Sua mãe fixou-se na figura de Shirley Temple7. Mais ou menos aos 47
anos, usa vestidos rodados e os cabelos em cachinhos. Procura sorrir com a
ingenuidade e o ar infantil da antiga menina-prodígio do cinema.
Quanto aos outros elementos, pouco preciso acrescentar. Já estão
suficientemente delineados e a sua aparência física não é tão importante
como nos dois casos anteriores.
Gostaria que Candinho, por vezes, usasse óculos escuros e bengala. Como
se fosse cego. Para merecer, nas ruas, uma certa atenção.

ABERTURA8
Letreiros alternando com algumas fotografias, que anunciam o tema e
constituem uma espécie de retrospecto da vida da heroína. As fotos, em
sépia, devem aparecer na seguinte ordem: o batizado: é tão comprida que os
pés são sustentados por outra pessoa, ao lado da madrinha; festa infantil de
aniversário: uma criança alta, soprando cinco enormes velas num bolo;
primeira comunhão: um grupo de crianças, salientando-se uma, mais alta do
que todas; a câmara aproxima-se e isola-a;

cena de praia: ela alta, com um balde, ao lado de um mulatinho, tendo à


mão um peixe; ambos estão de chapéu e têm entre 12 e 13 anos;

grupo de formatura no colégio, ela já adolescente e, sempre, mais alta do


que todos; aí, já podemos identificar o rosto da atriz que desempenhará o
seu papel; time de basquete, onde ela — entre os 20 e 21 anos — ainda é a
maior.

À medida que essa última imagem fica fora de foco, vão entrando vozes da
torcida. As vozes avultam com o aparecimento de rápidas imagens do jogo:
a personagem, pulando quase da altura da cesta, faz alguns pontos. Já se
ouvem alguns gritos: “Isto, Cegonha!”, mas ainda pouco claros.

Close do juiz encerrando a partida. (Grito da torcida.)

Grande plano: o time vencedor abraçando-se, enquanto os espectadores


entram para abraçar as suas componentes e as moças do time vencido
retiram-se.

Mudança de foco. Vemos a heroína, a meia distância, desvencilhar-se de


alguns admiradores (um dos quais exclama: “Cegonha, você é o máximo!”,
sem que se distinga quem falou) e caminhar em direção à câmara.
MÚSICA:
durante toda essa abertura, ouve-se um dobrado, desses tão preferidos
pelas bandas de música interioranas. Isto, para sugerir, desde já, uma
atmosfera provinciana. Música e imagem são cortadas, súbita e
simultaneamente, no momento em que a heroína chega ao primeiro plano.

PRIMEIRA PARTE
PERSONAGENS:
Shirley (a “Cegonha”) e, depois, o Técnico.
CENÁRIO:
vestiário do clube, com os armários ao longo das paredes e um banco
comprido no meio.
TÉCNICO
(Entra rápido.) Que é que há? Agora deu pra isso! A maior figura em campo
e, mal acaba o jogo, some. Está ficando mascarada?
SHIRLEY
(Senta-se no banco e vai tirando os sapatos.) Não vou mais jogar. Encerrei.
TÉCNICO
Close.
(Perplexo.) Ficou louca?
SHIRLEY
Enchi.
TÉCNICO
Pode-se saber por quê? Uma jogadora com as suas qualidades!
SHIRLEY
(Quase chorando.) Estou farta de ouvir esses gritos da assistência.
“Cegonha! Cegonha!”9 Eu tenho nome. Sei que é ridículo alguém chamar-
se Shirley. Principalmente eu. Mas é meu nome. Shirley. Shirley. Shirley!
TÉCNICO
(Agitado.) É um inferno. Nunca se pode organizar um time que preste.
Quando menos se espera, lá vem uma e casa com o primeiro torcedor que
aparece. (Enquanto isso, sobe no banco.) Outra, fica histérica. Você não
pode me deixar na mão.
SHIRLEY
Não adianta.
TÉCNICO
Isso é uma irresponsabilidade. Um crime!
SHIRLEY
E você? Que está fazendo em cima desse banco?
(Empurra o banco, bruscamente, com a planta do pé.)
TÉCNICO
(Caindo do banco, que vira.) Quer me matar? Quer me matar?

PERSONAGENS:
Shirley e Albano.
CENÁRIO:
lagoa com pequenos barcos e ancoradouro.
(Shirley, num barco, está quase parada. Albano pedala mais rápido, fazendo
círculos em redor.)
SHIRLEY
Quer parar com esse giro? Estou ficando tonta.
ALBANO
Então, vamos seguir lado a lado. Pode ser?

(Gesto de quem consente, mas sem dar muita importância. A câmara afasta-
se dos dois barcos juntos. Nota-se que conversam e que o moço fala mais
do que ela. Três ou quatro tomadas de uns quatro segundos cada. Agora, os
barcos chegando ao ancoradouro, com o casal já fotografado de perto. Ele
salta primeiro. Vai ajudá-la a descer. Sua surpresa [um tanto discreta],
vendo a altura da moça.)
ALBANO
Quer tomar um refrigerante?
SHIRLEY
Pode ser.
ALBANO
(Dirigem-se para o bar.) — É quente, a sua cidade.
SHIRLEY
Entre dezembro e janeiro é sempre assim. Depois do Carnaval, aí pela
Páscoa, melhora.
ALBANO
É animado, aqui, o Carnaval?
SHIRLEY
Mais ou menos.
ALBANO
Pensando bem, não estou assim com tanta sede. Você está?
SHIRLEY
Pensando bem, não. (Riem os dois.)
Fading.
PERSONAGENS:
Shirley e Menino.
CENÁRIO:
caminho estreito, o campo, poucas árvores, inclusive uma com um papagaio
preso nos ramos.
(Os pés de Shirley pedalando. — Seu rosto. Ela está de chapéu e com outra
roupa: é outro dia. — Ela na estrada. — Novamente seu rosto. Vemos que
ela percebe algo. — Uma criança, com um pau, tenta tirar o papagaio
enleado na árvore. — Ela desce da bicicleta. Como é alta, consegue tirar o
papagaio. O menino recebe o brinquedo, sorrindo. Ela bate na cabeça dele.
— Ela na bicicleta: acena para o menino. Ele não responde. — A câmara
distancia-se do menino. Este põe as mãos na boca, à maneira de porta-voz.)
MENINO
(Gritando.) Cegonha!
(Corte rápido. O rosto tenso de Shirley, que freia a bicicleta.)
MÚSICA:
sublinha o efeito, dramaticamente.
Fading.

(À direção: este breve incidente, que, embora reforce a tensão entre Shirley
e o meio, pareceria um tanto dispensável, é necessário. Ele é a miniatura de
episódios mais amplos, a serem ainda desenvolvidos.)

PERSONAGENS:
Shirley e Albano.
CENÁRIO:
o campo, a bicicleta ao lado.
(O casal sentado no chão. Vez por outra, mas não com muita frequência,
passam a mão diante do rosto, espantando os mosquitos: estamos no trópico
e é verão.)
ALBANO
Quero abrir uma firma de representações. Posso ficar rico em pouco tempo.
Pra mim, é fácil, tenho bons amigos no comércio de São Paulo. Gente
minha. Faz quase um mês, sabe?, que estou viajando por aí, observando:
não quero dar ponto sem nó. Já sondei a cidade. Parece ótima. Grana
bastante e otários não faltam.
SHIRLEY
Não é o único lugar com essas... qualidades.
ALBANO
Não estou dizendo que vou ficar aqui. Que já escolhi. Tudo vai depender de
conseguir o capital que falta. Por enquanto, filha, o que está me prendendo,
é você. Só.
SHIRLEY
Você nunca me disse o que fazia antes.
ALBANO
Comércio... Comércio. Pensa que estou duro? Tenho um pé-de-meia. Mas é
pouco.
SHIRLEY
Albano! De repente, você vai embora. Não é verdade?
ALBANO
Shirley! Acha que sou ave de arribação? Tenha calma. De qualquer
maneira, estou vidrado. Nunca encontrei alguém como você. No duro!

PERSONAGENS:
Shirley; depois, o Pai; depois, a Mãe (Janete) e os dois meninos, irmãos de
Shirley.
CENÁRIO:
quarto de Shirley. Cama, guarda-roupa (não-embutido), um porta-chapéus
com os seus chapéus etc. Dois posters: um de Greta Garbo e outro de um
louva-a-deus. Mesa de trabalho. Uma vitrola antiga. Discos. Livros.

(Shirley, sentada ante um pequeno suporte com uma partitura, tocando


violoncelo10. De súbito, off, duas crianças começam a discutir e se ouve a
voz da Mãe, ralhando. Pancadas. O barulho vai rapidamente enervando a
musicista, que começa a imitá-los no instrumento, sublinhando a imitação
com expressões grotescas de choro, manha, ódio etc., enquanto o barulho
continua. De súbito, ela para e vemos, em primeiro plano, sua expressão de
espanto.)
Corte.

A figura do Pai, enquadrado na porta, na mão direita uma lata com uma
planta e na outra um dicionário. Zoom rápido e o seu rosto perplexo. — É
atropelado pelos dois meninos, que acabam de irromper no quarto, seguidos
pela mãe, de roupão e papelotes. Confusão. — Expressão desolada da
Shirley.

PERSONAGENS:
Shirley e o Pai. Depois, Janete.
CENÁRIO:
escritório do Pai. Mesa de trabalho e cadeira. Telefone. Um rádio de pilha.
Papéis e 2 ou 3 livros sobre a mesa, sendo que um é o dicionário.
Passarinho de plástico, desses que metem o bico na água, levantam o bico e
voltam à mesma posição. Estante sem portas, com 20 ou 30 livros, no
máximo. Rede. Na parede: diplomas emoldurados e o retrato de formatura
do seu ocupante. Cadeiras. O rádio toca música caipira, em surdina.
PAI
Estou muito contente. Só ontem eu soube que você parou de jogar. Ótimo.
Não ficava bem, você, filha de um professor universitário, metida nessa
história de basquete.
SHIRLEY
Não foi por isso. Posso desligar? (Desliga o rádio.) Só que não quero mais
jogar.
PAI
Seja como for, dou o meu apoio. Afinal de contas, tenho uma certa
evidência na escola e... (Toca o telefone.) Alô... É da casa do Professor
Doutor Franco Tobias. Ele mesmo. Sim... Não. São dois sacos de farelo e
um de fosfato. Isso! Até logo. (Desliga.) Como eu ia lhe dizendo, aí está a
minha tese sobre o mundo carnavalesco, uma bibliografia enorme, mais uns
três ou quatro meses acabo de escrevê-la e, lá para o fim do ano — ou antes
— defendo-a. Eis-me, por assim dizer, no máximo da carreira: livre-
docente. E você misturada com essas moças sem reputação, numa quadra de
basquete...
SHIRLEY
Não foi por nada disso.

(A mãe vai passando, com seu vestido leve, de mangas fofinhas.)


PAI
Janete! (A mãe se detém.) A nova professora de Linguística esteve aqui?
MÃE
Veio trazer o livro que você pediu a ela.
PAI
Da próxima vez, receba-a no portão. Nada de intimidade.
MÃE
Por quê?
PAI
É desquitada.
MÃE
Ah! Não sabia.
Exit.
PAI
(Fotografado de tal ângulo que se veja o passarinho de plástico.) É este livro
aqui. Sobre o kitsch. Interessa à estética carnavalesca.
SHIRLEY
Meu pai, aconteceu outra coisa.
PAI
O quê?...
PERSONAGENS:
Shirley e Albano.
CENÁRIO:
o campo.
ALBANO
Que calor está fazendo hoje! Vamos pegar uma sombra. Debaixo daqueles
pés de pau.
SHIRLEY
Falei a papai de você.
ALBANO
Ah. foi? E o coroa, que é que disse?
SHIRLEY
De um modo geral, ele não aprecia gente de fora. Principalmente quando
não conhece a família.
ALBANO
Ah, é? Diga a ele que a minha família é isto. (Faz o sinal característico de
“dinheiro”.)
SHIRLEY
Não é uma família... muito importante.
ALBANO
Você acha? Pois tente entrar nessa família. (Para e fala em tom de troça.) E
se a gente assaltasse um desses bancos aqui? Hein? Era mais fácil. Mais
direto. Financiamento imediato. (Riem. Ele fica sério. Pega-a pelo braço.)
Shirley! Shirley!
SHIRLEY
(Um pássaro canta, perto, um bem-te-vi, agudo.) Não, Albano. Não...

MÚSICA:
faixa

INTERVALO
PERSONAGENS:
Pai e Mãe. Esta, sentada na rede, balança-se de leve e faz tricô. O Pai está
na sua cadeira, junto ao birô.
CENÁRIO:
escritório do Pai.
PAI
De repente, a Shirley parece outra. Mais acessível, menos tensa. Você não
acha?
MÃE
É mesmo. Parece outra.
PAI
Você já viu o moço? Eu vi. É menor do que ela. Mas tinha que ser, não é?
Os cabelos compridos, por aqui. Agora, só usam assim.
MÃE
É. Agora estão usando assim. (Para de mexer com as agulhas. O Pai
levanta-se, dá-lhe um tapinha na mão, ela recomeça a trabalhar.)
PAI
Não é bem o par ideal para a filha de um livre-docente.
MÃE
Já está pronto, o artigo?
PAI
Não. Quase. Não é um artigo, Janete; é uma tese. O que me entristece, sabe,
é a obstinação da Shirley em não concluir o curso superior. A filha de um
mestre universitário! É um absurdo.
MÃE
Também acho. Um absurdo mesmo. (Para de tricotar. O marido “dá-lhe
corda” outra vez, batendo na sua mão. Ela recomeça.)
PAI
Não gostaria que ela casasse tão cedo. Além do mais, esse rapaz não me
entusiasma. Uma pessoa de fora, que ninguém conhece. E com os cabelos
compridos.
MÃE
Não sei pra quê, não é?, esses cabelos pelos ombros.
PAI
(Liga o rádio. Mais uma vez, música caipira.) Ofereceram um bom preço
pela nossa fazenda.
MÃE
Você vendeu?
PAI
Se eu tivesse vendido, Janete, você saberia.
MÃE
Precisava a minha assinatura, não é?
PAI
Vou convidar esse rapaz para jantar aqui em casa. Você não acha? Assim, a
gente pode conhecê-lo melhor.
MÃE
Boa ideia. Mas será que ele vem? Parece tão desconfiado!
PAI
(Desliga o rádio.) Desconfiado? Você o viu onde?
MÃE
Aqui. Quer dizer: na sala. Shirley tocou um pouco e ele ficou sentado,
ouvindo. Quase não falou.
MÚSICA:
tema, à base de cordas, servindo de cortina às próximas cenas.

PERSONAGENS:
Shirley, o Pai, a Mãe, os irmãos e Albano.
CENÁRIOS:
vários.
(Obs.: não veremos os atores pronunciando as frases que se seguem.)
VOZ DE SHIRLEY:
De repente, o vento chega. Sopra horas e horas, sem parar. Você precisa ver.
(Breve pausa.)
VOZ DE ALBANO:
Acho que vou-me fixar aqui. O único problema é o capital. (Breve pausa.)
VOZ DE SHIRLEY:
Minha mãe, quando menina, era fã de Shirley Temple. Quando nasci, pôs-
me este nome ridículo. (Pausa.)
VOZ DE ALBANO:
Bonita, essa música. É Chopin? (Ele pronuncia “IN”.)
VOZ DE SHIRLEY:
Não. É O Cisne, de Saint-Saens. O carnaval dos animais. Qualquer música,
você sempre acha que é Chopin.
VOZ DE ALBANO:
Gosto muito de Strauss.
IMAGENS:
Shirley e Albano, ela na bicicleta, pedalando vagarosamente, e ele
acompanhando-a a pé, gesticulando; os dois andando na rua, ele um pouco
afastado; numa mesinha de bar; os dois no mesmo barco; ela tocando
violoncelo; ele dando um presente a ela; a mãe com as mãos paradas no ar,
o pai dando-lhe um toque na mão e ela recomeçando a tricotar; Shirley
lendo um livro; Shirley falando ao pai, a mãe entra, o pai lhe conta algo, ela
ergue as mãos, a cena continua, a mãe com as mãos levantadas, o pai baixa-
lhe as mãos; vêm Shirley e Albano andando, ele em cima da calçada, ela
embaixo, param, ele beija-a.
Fading.
MÚSICA:
morre, juntamente com a última imagem.

PERSONAGENS:
Shirley e o Pai.
CENÁRIO:
escritório do Pai.
SHIRLEY
O senhor vai vender o carro velho?
PAI
Sim. Tem mais de três anos. Estou dando entrada em um novo.
SHIRLEY
Bem. É que... Por que não me dá o outro?
PAI
Você precisa de carro, Shirley? Pra quê?
SHIRLEY
(Não responde logo.) Tanta coisa! É, talvez eu não precise mesmo. Mas o
senhor nem sempre pode me emprestar o seu.
PAI
Shirley... E esse tal de Albano?
SHIRLEY
(Gesto vago, que nada quer dizer.)
PAI
Por que não rompe?
SHIRLEY
Romper?... E depois?
PAI
Tenho de convir que você, este último mês, está feliz. Mas... não me parece
que ele sirva.
SHIRLEY
E quem serve? Foi o primeiro, até hoje que me deu atenção. Quer montar
um escritório. Representações.
PAI
Traga-o para jantar. Por que ele não veio ainda?
SHIRLEY
Eu não quero insistir. Tenho medo.
PAI
Medo? Medo?!...
(A câmara focaliza-o. Por trás dele, o passarinho de plástico, no seu
movimento inexorável e sem sentido.)
MÚSICA:
torna o motivo anterior. Vai acelerando no fim da cena.

PERSONAGENS:
Shirley, Albano, o Pai, a Mãe e os irmãos.
CENÁRIOS:
vários.
VOZ DE ALBANO:
Mas quem é Shirley Temple?
VOZ DE SHIRLEY:
Uma criança, atriz dos anos 30. Representava um mundo aparentemente
ingênuo e sem maldade. (Pausa)
VOZ DE ALBANO:
Claro. Gosto de você. Mas jantar lá, com o velho?! (Ligeira pausa.) Essa,
agora, é de Chopin?

VOZ DE SHIRLEY:
Não. De Mozart. Ele, às vezes, também escrevia peças fáceis. (Pausa.)
IMAGENS:
Shirley no carro, dirigindo; ela tocando violoncelo, entram os dois irmãos
mascarados e fazem gestos, ela enxota-os com o arco; Shirley e Albano no
carro, mas este é que vai dirigindo; um circo, visto de fora; Shirley e
Albano discutindo, ele parecendo muito abalado; cena de Carnaval, ela
dançando sozinha e Albano tirando a máscara (é uma máscara sorridente),
fitando-a com ódio intenso; mesa de jantar na casa de Shirley, todos à mesa,
inclusive os irmãos e Albano; uma criança empurra a outra, esta revida, cara
espantada de Albano, a mãe dá um cascudo no Menino 1, a cara dele
chorando, cara do Menino 2 rindo, plano geral com o pai levantando-se e
arrastando este último pela orelha; o outro, ainda chorando, joga um pão na
mãe; a mãe reclama do marido, o marido briga com a criança, esta sai da
mesa correndo, o pai sentando-se na mesa, oferecendo molho ao visitante, o
visitante estendendo o prato de macarrão, o pai vira o molho, close: cai a
tampa do vidro e o molho derrama-se no prato.

(Música: encerra.)

PERSONAGENS:
o Pai e Albano.
CENÁRIO:
Sala de estar. Poltronas, TV, mesinha de centro com flores de plástico, o
Coração de Jesus, uma dessas incríveis tapeçarias de parede representando
um tigre.
PAI
E sua família, meu rapaz? São todos de Minas?
ALBANO
Não saem de Mariana. Aliás, ficam pra lá de Mariana.
PAI
Por que não se formou?
ALBANO
Sabe? Gosto do comércio. Nasci com esse troço. Comprar e vender. Quero
me instalar aqui como representante. A cidade é joia. Indústria e café. Muita
grana.
PAI
Também sou um pouco fazendeiro. Tenho uma propriedade a três
quilômetros daqui.
ALBANO
É grande?
PAI
Mais ou menos. Estou pensando em passar uns dias lá, terminando a minha
tese. Boas terras, sabe? Aqui, nós, do magistério, sempre temos outra
atividade.
ALBANO
Ah!
PAI
E seu pai, faz o quê?
ALBANO
Ele se vira. Gado, cereais, essas coisas. Cara bacana, o velho. Vivo.

PERSONAGENS:
Shirley e a Mãe.
CENÁRIO:
o escritório. Shirley está meio deitada na rede, olhando um álbum de
fotografias. A mãe sentada, a certa distância.
(A câmara focaliza a cena, de tal maneira que vemos as fotografias no
álbum. Algumas, justamente, são as que já vimos na abertura da peça.)
SHIRLEY
(No álbum, vemos o retrato de Shirley com o pretinho.) Por onde andará o
Geraldo?...
MÃE
Que Geraldo? (Tem as mãos meio erguidas e não as muda de posição
durante a cena.)
SHIRLEY
Este aqui. Era nosso vizinho naquelas férias em Santos.
MÃE
O negro? Como você foi agora se lembrar daquele traste?
SHIRLEY
(Sorri.) Um dia, fiz uma aposta com ele e perdi. Não me lembro como era a
aposta, nem qual era o pagamento. Sei que não paguei. Coitado.
MÃE
Coitado, por quê, minha filha?

PERSONAGENS:
o Pai e Albano.
CENÁRIO:
sala de estar.
ALBANO
Só preciso de um sócio. Um sócio ou, então, um bom avalista.
PAI
Não vai ser tão fácil. Eu, que nasci aqui, às vezes tenho dificuldades!
ALBANO
Quero operar no ramo de eletricidade. Mesmo porque, nesse ramo, eu sou
doutor. Conheço bem eletrônica.
PAI
Minha TV não está funcionando muito bem. Deu para apresentar umas
barras transversais, horríveis. Às vezes, foge o som.
ALBANO
Ah, precisava ver o diagrama esquemático. Um problema de circuito. Às
vezes, os resistores não estão de acordo com os capacitores. Amanhã ou
depois, durante o dia, eu venho aqui, se o senhor quiser, e olho. Mas já é
tarde, acho que vou indo. Minha mãe gostaria de conhecer o senhor.
PAI
Por que a sua mãe?
ALBANO
Meu pai também, é claro. Mas ela ainda é mais exigente do que ele. Bem...
(Estende a mão rapidamente.) Um seu criado.
PAI
(Olha-o, suspicaz.)
Corte

PERSONAGENS:
Shirley e Albano
CENÁRIO:
espetáculo circense.
(Panorâmica do público, enquanto se ouve a voz do empresário. Termina
focalizando o rosto de Shirley. Albano está a seu lado.)
VOZ DO EMPRESÁRIO:
E agora... respeitável público, tenho o grande prazer de apresentar-lhes... O
Maior Homem do Mundo e o Menor Homem do Mundo! Maestro!
MÚSICA:
faixa circense.
Corta.

(Entram um Gigante e um Anão. O Gigante tem uma expressão de


imbecilidade. Palmas. Assovios. O rosto de Shirley fica sombrio. Ela se
levanta.)

PERSONAGENS:
os mesmos.
CENÁRIO:
estão dentro do carro.
SHIRLEY
Nós não devíamos ter ido.
ALBANO
Deixa pra lá.
SHIRLEY
Você acha que eu pareço retardada? A gente cresce muito, fica parecendo
meio anormal. Depois, precisa provar que não, que não é.
ALBANO
Shirley... Acho que vou embora. (Ela vai ligar o carro.) Não. Não sei se
você está entendendo. Vou me mandar. Vou cantar noutra paróquia.
SHIRLEY
Quando?
ALBANO
Queria muito ficar aqui, sabe? Mas não estou encontrando um ambiente
sadio. Tudo muito fechado. E não preciso de tanto para iniciar. Uns quinze
ou vinte mil, juntando com o que eu tenho, estava tudo azul. Bom. Não
adianta chorar. Não é mesmo?
SHIRLEY
Tenho pensado nisso. Talvez possa dar um jeito.
Corte

(Uma janela bate com força. Ruído de ventania. Uma avenca pendurada,
balançando. Shirley vem correndo sob o vento forte, à luz suja da manhã.)

PERSONAGENS:
Shirley, o Pai e a Mãe.
CENÁRIO:
quarto de Shirley. A porta, que está entrefechada, é aberta violentamente e
ela irrompe feito louca. Atira-se na cama, soluçando com violência. Entram
o Pai e a Mãe.
PAI
(Agitando-a.) Shirley! Shirley! Que aconteceu?
MÃE
(Olha tudo atônita, sem saber o que fazer.)
PAI
Fale. Que foi que houve?
SHIRLEY
(No meio das lágrimas.) Ele foi embora.
PAI
Pode ser que volte.
SHIRLEY
Enganou-me. (Levanta-se com violência.) Enganou-me.
PAI
Quando foi isso?
SHIRLEY
Hoje. De madrugada. Nem pagou o hotel.
PAI
Se foi embora, é porque não prestava. Não se perde nada.
SHIRLEY
Eu não fico mais nessa cidade.
PAI
Que tem a cidade com isso? Vou chamar um médico.
Exit.
MÃE
Tenha calma. Calma.
SHIRLEY
Não quero mais saber de nada. Odeio tudo. Tudo!
PAI
(Voltando, lívido.) Shirley... Por que você não veio de carro? Onde deixou o
carro?
SHIRLEY
(Abraça-se com ele.) Vendi. Dei o dinheiro a ele, para abrir a loja, o maldito
escritório, começar a vida. Como pôde fazer isso?!
PAI
(Desprende-se.) E você? Como pôde fazer uma cretinice igual? Vender o
que lhe dei? E meter o dinheiro no bolso de um ladrão? Com aquele cabelo,
não podia mesmo prestar pra coisa alguma.
SHIRLEY
Não foi por isso que ele me enganou. Não foi por isso. (Esmurra a parede.
Atira-se na cama. Close, o rosto cheio de ódio e desespero.) Não fico mais
aqui. Nem um dia. Não suporto mais que ninguém ria de mim. Se ficar, me
mato.
MÚSICA:
sublinha a cena, com frase rápida e tensa.
PERSONAGENS:
os mesmos.
CENÁRIO:
estação ferroviária.
SHIRLEY
(Beija e abraça, rapidamente, o Pai e a Mãe. Sobe no trem11, levando o
violoncelo. Toque de sineta. O trem parte. Ela fita os pais, enquanto o trem
vai afastando-se. O Pai e a Mãe andando.)
PAI
Que será da minha filha em São Paulo?... Uma cidade tão grande!
MÃE
(Comovida e com ar infantil.) É isso que estou aqui pensando. Uma cidade
tão grande!

(O trem. — O casal andando no cais, a mãe erguendo o braço num adeus.


Vem andando, esquecendo o braço no ar. O Pai baixa o seu braço.)
MÚSICA:
faixa, encerrando a PRIMEIRA PARTE.

SEGUNDA PARTE
PERSONAGENS:
Shirley e o Pai.
CENÁRIO:
sala do apartamento em que ela está morando. Pequeno e um tanto
antiquado na sua decoração, mas de relativo bom gosto, com algumas peças
antigas (poucas); um jarro, uma estatueta. Tapete. Telefone. Cortina. O
abajur aceso. Livros. Vê-se ainda o violoncelo. O apartamento fica no 10°
andar.

(Estão os dois sentados em poltronas estofadas, um em frente ao outro. Ele


está observando o ambiente, vê-se que acabou de chegar.)
PAI
Você, agora, está bem instalada. Como conseguiu isto?
SHIRLEY
Foi mesmo uma sorte. Mas não vai durar. Daqui a uns seis meses, a dona
volta da Espanha.
PAI
Quanto vai custar, Shirley?
SHIRLEY
Pode ficar descansado. Ela não tinha quem cuidasse do apartamento e pôs
um anúncio. Vou pagar um aluguel quase simbólico, pouco mais do que
estava pagando no pensionato. Ela entregou tudo, inclusive roupa de cama.
Só tirou os quadros. Preenchi os claros com esses posters.
PAI
(Levantando-se e pondo os óculos.) Você e seus posters. (A câmara
focaliza-os: a dupla fila de palmeiras do Jardim Botânico; o obelisco aos
mortos da Revolução Constitucionalista de São Paulo; o Empire State
Building; a torre Eiffel; um lançamento de foguete em Cabo Kennedy.)
PAI
Muito bem. Uma coleção bastante expressiva. (Vê que Shirley acendeu um
cigarro e está fumando, numa longa piteira.) Você agora fuma?
SHIRLEY
Fumava há tempo. Não na sua frente. Mas, cada vez mais, acho que não
devo esconder as coisas.
PAI
Está bem. Está bem. (Toca o telefone, duas vezes.)
SHIRLEY
Alô... Alô! (O rosto ligeiramente tenso do Pai, olhando para ela.)
SHIRLEY
Ninguém. (Desliga.)
PAI
(Muda de expressão.) E os seus projetos12, Shirley? Nada, ainda?
SHIRLEY
Tenho várias coisas em vista. Mas, sem saber bater à máquina, é quase
impossível. Estou estudando datilografia. (Animada.) Não é tão difícil.
Venho aprendendo rápido, acho que por causa do violoncelo, embora sejam
coisas tão diferentes. Talvez eu possa copiar a sua tese. E preciso copiá-la
de máscara?
PAI
Por que de máscara?
SHIRLEY
(Não responde e fita-o com uma certa ironia.)
PAI
O que talvez retarde a conclusão do trabalho é que estou tentando obter uma
bolsa da Fundação Gulbenkian.
SHIRLEY
Pra quê?
PAI
Para ir à Itália. Aliás, Portugal e Itália. A Gulbenkian, você sabe, jamais
concede bolsas para pesquisas fora de Portugal. Mas tive uma ideia:
transferir o objeto da tese para o mundo carnavalesco na obra de Camões!
SHIRLEY
E o que tem tudo isso com a Itália?
PAI
Quero assistir ao Carnaval de Veneza, Shirley. O Carnaval de Veneza!
SHIRLEY
(Olha-o como se supusesse, vagamente, que ele estivesse enlouquecendo.
Toca novamente o telefone. O pai olha o aparelho com um ar equívoco.
Desta vez, Shirley não atende. O telefone silencia.)
PAI
E o violoncelo?
SHIRLEY
Quando eu começar a trabalhar, vou matricular-me num bom curso. (A um
gesto do pai.) Não, não quero que o senhor tenha outras despesas. Há três
meses que me mantém aqui sem trabalhar e... (Esmagando o cigarro,
subitamente perturbada.) Nunca pensei que fosse tão difícil. Eu tenho me
esforçado, sabe? Vejo todos os jornais, nas colunas de empregos. E nada. E
não quero voltar. Não posso voltar.
PAI
A despesa não é tanta assim. Afinal, nem faz três meses completos que você
se transferiu. E, sabe de uma coisa? Esqueci-me de dizer: sua mãe está
trabalhando. Substituiu a professora de Psicologia. Claro que preciso ainda
orientá-la. Não tem prática. Mas não é formidável?
SHIRLEY
Sim. Quer dizer: para os alunos, não sei.
PAI
Com isto, houve um pequeno reforço no orçamento doméstico. Não se
preocupe, por enquanto. (Levanta-se.)
SHIRLEY
Vai sair?
PAI
Vou... Sim, visitar um amigo. (Dá a impressão de que mente.) Pode ser que
volte um pouco tarde.
SHIRLEY
Leve a chave. Vou dormir aqui na sala. Pode ocupar a minha cama.
PAI
Você?... Nesse sofá?
SHIRLEY
Não se preocupe.
PAI
Bem. Onde fica o banheiro?
SHIRLEY
(Um gesto.)

PERSONAGENS:
o Pai.
CENÁRIO:
o banheiro.
PAI
(Ante o espelho [cena rápida], compõe-se com um ar de vaidade que indica
a natureza da “visita” a fazer.)

PERSONAGENS:
o Pai e Shirley.
CENÁRIOS:
o quarto de dormir e, depois, a sala.

(Ao som do despertador, o rosto do Pai acordando.)


Fading.

(Ele em pé, pondo a gravata.)


Fading.

(Ele na sala, a valise na mão. — Shirley deitada de bruços no sofá, os pés


para fora, descobertos. — Rosto compadecido do homem e movimento na
direção dela. — O Pai cobrindo-lhe os pés.)
MÚSICA:
partitura viva, fundindo instrumentos musicais com interferência de
buzinas de automóveis, expressando a trepidação da cidade.

PERSONAGENS:
Shirley.
CENÁRIO:
rua central de São Paulo.

(Os pés de Shirley, rápidos, andando na cidade, no meio de outros pés. —


Tomada à distância, ela mais alta que todos, de chapéu. — Tomada mais
próxima, as pessoas olhando-a de alto a baixo.)
PERSONAGENS:
Shirley e uma Recepcionista.
CENÁRIO:
escritório comercial.

Shirley dirige-se à Recepcionista. — Apresenta-lhe uma ficha. — Shirley


sem chapéu, batendo à máquina, com boa velocidade. — Shirley
escrevendo a mão, a outra mão enfiada nos cabelos, respondendo um teste.
— Entregando o teste à Recepcionista, com quem fala, certamente
perguntando quando saberá o resultado. — A Recepcionista aponta um
calendário. — Focalizar o calendário: Vê-se que é junho — Ela põe o
chapéu.
MÚSICA:
cessa.

PERSONAGENS:
o Chefe e a Recepcionista.
CENÁRIO:
sala do Chefe. É um escritório elegante. Seu birô fica de lado para a janela.
Do alto, mais ou menos sobre o ponto em que fica a sua poltrona giratória,
pende uma lâmpada, protegida por um quebra-luz largo, art nouveau.
Há duas portas e um cofre.
CHEFE
De todos os testes, o melhor é mesmo o dessa moça. De longe. Além do
mais, conhece línguas. Tem boa aparência?
RECEPCIONISTA
Bem, o senhor sabe, pra mim, como mulher, é difícil dizer.
CHEFE
Mas é preta? É mal-arranjada? Enfim...
RECEPCIONISTA
Não. Não é nada disso. Usa um chapeuzinho.
CHEFE
Vinte e dois anos... Na força da idade. Isso é bom, é ótimo. O inconveniente
que eu acho é ser crua em matéria de escritório. Nunca ter trabalhado.
Capaz de pensar que emprego é camping. Piquenique. Usa um
chapeuzinho?
RECEPCIONISTA
Pois é. Assim. (Faz um gesto.)
CHEFE
Grau de escolaridade... Não tem diploma superior e não está estudando.
Abandonou o Curso de Letras no primeiro ano. Estranho. Como se chama?
RECEPCIONISTA
Shirley.
CHEFE
Shirley? Puxa! Eu era fã de Shirley Temple.
RECEPCIONISTA
De quem?
CHEFE
Shirley Temple. Não conhece?
RECEPCIONISTA
Não. Nunca ouvi falar.
CHEFE
É verdade. Você é muito nova. Mas nunca viu na TV?
RECEPCIONISTA
Não.
CHEFE
Ela era o máximo. Menina-prodígio. Fez filmes lindos. A Mascote do
regimento. A Queridinha do vovô. Hoje é embaixadora, qualquer coisa
assim. Entrou na política. Mas naquele tempo... Eu não perdia um filme de
Shirley Temple. Telefone para a candidata. (A Recepcionista vai retirando-
se.) Um momento. (Ela volta.) (Ele abre uma gaveta e retira uma pasta de
cartolina cheia de papéis. Acha o que procura, uma foto e mostra-a.)
Conhece?
RECEPCIONISTA
Não. Sua filha?
CHEFE
Quantas vezes preciso repetir-lhe que não sou casado?
RECEPCIONISTA
Eu esqueço. Sobrinha?
CHEFE
Nada disso. É ela. Shirley Temple!

PERSONAGENS:
Shirley.
CENÁRIO:
sala do seu apartamento.
SHIRLEY
(Vai saindo13, sempre de chapéu. Fecha a porta. O apartamento vazio. A
câmara busca o telefone, que tilinta cinco ou seis vezes. A mão de Shirley
apanhando-o. Seu rosto, com o telefone no ouvido. Vê-se, por trás dela, a
porta ainda aberta.) Alô... Para que número ligou? (Até aí, ela está ainda a
meia distância, não se ouvindo quem fala do outro lado. A câmara vai
aproximando e vamos distinguindo a voz que lhe fala.) Não, não é este
número.
MOÇO
(Off) Que número é, então?
SHIRLEY
Por que o senhor quer saber?
MOÇO
(Off) Que idade você tem?
SHIRLEY
Vinte e dois, vinte e três... Por aí.
MOÇO
(Off) Então, não me chame de “senhor”. Eu tenho vinte e seis. Use o
“você”. Que tal?
SHIRLEY
Olhe: desculpe, mas eu preciso sair: Ciao.
MOÇO
(Off) Alô... Eu não lhe disse por que estou insistindo. Deixe-me dizer e,
depois, pode desligar: você tem uma voz linda14. Cálida. Musical. É mesmo.
MÚSICA:
Inicia tema delicado, que entra logo em cortina.
SHIRLEY
(Tira o chapéu.) Você acha?
MOÇO
(Off) Claro.
(Esses diálogos, como se sabe, são sempre altamente banais e não vale a
pena continuar. Vê-se que Shirley continua falando animadamente.)
Fading.
MÚSICA:
cresce e se esvai com a imagem, quase desaparecendo.

PERSONAGENS:
o Chefe.
CENÁRIO:
o escritório.
CHEFE
(A campainha do interfone chama. Ele atende.) Pronto.
RECEPCIONISTA
(Off) Continua ocupado.
CHEFE
Daqui a uns dez minutos, chame outra vez.

PERSONAGENS:
Shirley.
CENÁRIO:
seu apartamento.
MÚSICA:
cresce, com a mesma imagem que retorna, sem que se ouça a voz da moça,
evidentemente alegre com a inesperada conversa telefônica. Novo fading. A
música quase desaparece outra vez.

PERSONAGENS:
o Chefe.
CENÁRIO:
o escritório.
CHEFE
(A campainha do interfone chama. Ele atende.) Diga.
RECEPCIONISTA
(Off) Ainda continua ocupado.
CHEFE
Talvez esteja quebrado. Chame daqui a uma hora. Ou amanhã. Não. Passe
um telegrama. Mande um boy. Como achar melhor.
RECEPCIONISTA
(Off) Está bem.
CHEFE
(Sozinho, fica um instante pensativo, abre a gaveta, retira novamente a
pasta e contempla o retrato de Shirley Temple. A câmara focaliza esse
vestígio amarelado de um passado inteiramente morto.)

PERSONAGENS:
Shirley e a Voz do Moço.
CENÁRIO:
seu apartamento.
SHIRLEY
(Está sentada no chão, sobre o tapete.) Altura, um metro e sessenta. Talvez
um pouco menos.
MOÇO
(Off) A gente podia se encontrar. Que tal? Sem compromisso.
SHIRLEY
Podia ser. Mas... Mas não sei se vale a pena.
MOÇO
(Off) Dê o seu telefone.
SHIRLEY
(Hesita.) Não posso.
MOÇO
(Off) Por quê?
SHIRLEY
Sou casada.
MOÇO
(Pausa.) (Off) Então, nunca mais nos falamos? Tudo acaba aqui?
MÚSICA:
entra levemente com som de violoncelo: Apenas um Coração Solitário.
SHIRLEY
E se você me desse o seu número? (Imitando-o.) Que tal?
MOÇO
(Off) Pode ser. Tome nota.
SHIRLEY
(Apanha o lápis e abre o caderno de endereços.)
Fading.

PERSONAGENS:
Shirley e a Recepcionista.
CENÁRIO:
o mesmo e o escritório.
MÚSICA:
cresce com a música de violoncelo.
SHIRLEY
(Está sentada, a partitura na sua frente, tocando. Vê-se o título da música:
Apenas um coração solitário. Tocam a campainha. Ela olha na direção da
porta, sem parar de tocar. Vê-se a parte inferior da porta. Alguém introduz
um envelope.)
SHIRLEY
(Ela para de tocar, levanta-se e apanha a correspondência. Seu rosto,
alegrando-se com a leitura da mensagem. Precipita-se para o telefone, bate
com a perna numa cadeira, pula de dor e o salto se transforma num breve
passo de dança. Liga o telefone.)
SHIRLEY
Alô... Recebi o chamado. Quando devo ir ao escritório?
RECEPCIONISTA
O chefe quer que você venha hoje, bem. Hoje, ainda? Já são mais de cinco
horas.
Corte
RECEPCIONISTA
É que ele viaja amanhã e vai passar fora três ou quatro dias. Queria ver se
entrevistava você hoje.
Corte
SHIRLEY
A que horas termina o expediente?
Corte
RECEPCIONISTA
Às sete, sete e pouco.
Corte
SHIRLEY
Está bem. Dentro de meia hora, mais ou menos, estou aí. (Desliga.)
PERSONAGENS:
Shirley, o Chefe, a Recepcionista e dois Assaltantes.
CENÁRIO:
o escritório.
CHEFE
(Está folheando papéis. Toca o interfone. Ele atende.)
RECEPCIONISTA
(Off) Dona Shirley está aqui. Posso mandar entrar?
CHEFE
Pois não. (Levanta-se. A lâmpada ilumina a sua cabeça. A porta se abre.
Vê-se o seu rosto um tanto atônito. A câmara acompanha lentamente o
longo corpo de Shirley, subindo dos pés à cabeça. Está de chapéu. O Chefe
senta-se.) Queira sentar-se, dona Shirley, faça o favor.
SHIRLEY
(Ocupa uma cadeira ao lado da mesa. Tira o chapéu.)
CHEFE
(Mexendo nuns papéis.) Estive examinando o seu teste. Compreenda, tenho
várias candidatas em vista, mas a escolha final depende... bem... desta
conversa. Qual é a sua pretensão salarial?
SHIRLEY
(Vagamente espantada.) Está aí, na ficha que preenchi.
CHEFE
Ah, sim. É verdade. Um tanto elevada...
SHIRLEY
(Mexendo na bolsa, tira a carta recebida.) A carta que o senhor me mandou
não fala de nenhuma condição. Diz que eu fui aprovada e que me apresente
com urgência, trazendo os meus documentos. É isso que está escrito.
CHEFE
Não. Para ser franco, o cargo já está preenchido. Apenas, como o seu teste
foi bom, eu fiz questão de vê-la, para... no futuro...
SHIRLEY
(Dura e calma.) O senhor está mentindo.
CHEFE
Não ouvi bem.
SHIRLEY
Ouviu. O senhor está mentindo. Como tantos outros não aceitam negros,
não me aceita devido à minha altura.
CHEFE
Não estou entendendo.
SHIRLEY
(Levantando-se. Seu chapéu cai no chão.) Está entendendo demais. Não
admitem que uma mulher seja superior em nada a vocês. Nem mesmo na
altura. Mas eu quero trabalhar. Quero viver a minha vida. Por que vocês não
deixam?
CHEFE
Acalme-se.
SHIRLEY
Por que vou ter calma? Querem que eu corte as pernas? Eu tenho direito ao
meu lugar no mundo.
CHEFE
A senhora está louca!
SHIRLEY
Não tenho culpa de ser como sou. Não tenho culpa do mundo que encontrei.
(Em tom mais baixo.) Não tenho culpa...
CHEFE
(Fita-a, sem ação.)
SHIRLEY
(Baixa-se para apanhar o chapéu. A porta abre-se violentamente e dois
homens armados invadem a sala, jogando para dentro a Recepcionista
aturdida.)
ASSALTANTE
Todo mundo quieto. Mãos para cima. (A Shirley.) Você também.
SHIRLEY
(Vai levantando-se, braços para o alto, o chapéu na mão direita.)
CHEFE
Como entraram aqui?
ALBANO
Feche a matraca. Veja a chave do cofre.
SHIRLEY
(Está de pé. Sua expressão é de ódio, um ódio duro e concentrado. Fita
Albano de maneira implacável.)
ALBANO
(Reconheceu-a. Mas faz como se nunca a tivesse visto.) Você, mais pra trás,
se não quer levar bala. (Ela recua um pouco. Devido à sua altura, seus
braços, levantados, ultrapassam a lâmpada com sua campânula art
nouveau.) (Ao Chefe.) Vamos depressa. A chave.
MÚSICA:
faixa vibrante.

INTERVALO
PERSONAGENS:
os mesmos.
CENÁRIO:
o mesmo.
CHEFE
Posso abrir o cofre, mas vocês...
ASSALTANTE
Para com o papo, velho. Pega a chave e abre o cofre. Não podemos perder
tempo.
ALBANO
Tem um minuto. Corra. E não se meta a bacana. (Faz um gesto ostensivo,
olhando o relógio de pulso.) Dois segundos... Quatro segundos... Cinco.
CHEFE
(Com a chave na mão, precipita-se para o cofre. Série rítmica de imagens.
As mãos do Chefe contando os números no segredo do cofre. Cara de
Shirley, que lança um rápido olhar para a lâmpada à sua frente. Cara da
Recepcionista. Do outro Assaltante. Relógio de Albano: passaram-se quinze
segundos. Mão firmada no revólver. O rosto suado do Chefe. Shirley. A
lâmpada. O relógio: vinte e cinco segundos. Toda a responsabilidade da
cena a cargo da montagem.)
MÚSICA:
sublinha e reforça o ritmo da sequência.
ALBANO
Cinquenta segundos. Abre esse troço ou não abre?
MÚSICA:
acorde decisivo.
SHIRLEY
(A câmara, rapidamente, elucida o seu pensamento. Baixando as mãos
erguidas, ela dá um golpe e arrebenta a lâmpada.)
(Escuridão. Três ou quatro disparos. Rumor de corpos rolando e de passos
precipitados. Cai um móvel.)
VOZ DE ALBANO
Cai fora, enquanto é tempo.
CANDINHO
(Abre a porta. Um disparo quase o atinge, seu vulto desvencilha-se. Os dois
assaltantes fogem pela porta.)
VOZ DO CHEFE
Onde estão vocês? Estão feridas?
RECEPCIONISTA
(Começa a gemer.)
CHEFE
(Acende o isqueiro.) Você está ferida?
RECEPCIONISTA
(Move a cabeça afirmativamente, apavorada.)
CHEFE
(Dirige-se para a mesa, o isqueiro na mão. Põe o isqueiro na mesa. Apanha
o telefone e ergue o rosto. Vê-se Shirley, que não se protegeu dos tiros, de
pé, hirta.) Como posso retribuir o que fez?
SHIRLEY
Eu tinha uma conta a ajustar. Estou me lixando pelo seu cofre.
PERSONAGENS:
Shirley, Voz de Policial e Candinho.
CENÁRIO:
Delegacia de Polícia.
SHIRLEY
(Examina um papel, seu depoimento.)
VOZ DE POLICIAL
Tudo O.K.?
SHIRLEY
Tudo O.K.?
VOZ DE POLICIAL
Então, assine.
SHIRLEY
(Assina e devolve o papel.) Posso ir?
VOZ DE POLICIAL
Faça o favor.
CANDINHO
(Aproximando-se.) Também estou liberado?
VOZ DE POLICIAL
Já devia ter ido.
CANDINHO
Obrigado.

PERSONAGENS:
Shirley e Candinho.
CENÁRIO:
rua.
CANDINHO
(Andando ao lado de Shirley.) Puxa! Nunca senti tanto medo na minha vida.
É assim que a gente morre. Caminha para a morte.
SHIRLEY
Que é que o senhor foi fazer lá?
CANDINHO
Já trabalhei com aquele sujeito, quando ele não estava tão bem de vida.
SHIRLEY
Por que saiu?
CANDINHO
Eu? Sair? Sair o quê? Fui demitido. Mas, às vezes, apareço lá e ele me larga
uma nota. Não é toda vez, sabe? Mas não custa arriscar.
SHIRLEY
Por que ele lhe demitiu?
CANDINHO
Por causa da idade. Ninguém acha que eu ainda possa dar no couro.
SHIRLEY
Estou com fome. Quer fazer um lanche?
CANDINHO
Se a senhora paga, eu aceito.

PERSONAGENS:
os mesmos.
CENÁRIO:
lanchonete.
CANDINHO
Escute: a senhora não teve medo? Não pensou que um daqueles tiros podia
acertá-la?
SHIRLEY
Sim, pensei nisso. Mas não tive medo. Ao contrário: dizia a mim mesmo: é
agora. Agora!
CANDINHO
Pois eu, acho que antes de ouvir o tiro já estava no chão. Nunca pensei que
ainda pudesse ser tão ligeiro. Mas o esforço foi tão grande que ainda estou
doido. Acho que amanhã nem consigo sair da cama.
SHIRLEY
Onde é que o senhor mora?
CANDINHO
Numa pensão. Quer dizer, pensão é o modo de dizer. É um cortiço. Mora
gente, lá, da pior laia. E o aluguel sobe sempre.
SHIRLEY
Não tem aposentadoria?
CANDINHO
Tenho. Mas sempre ganhei pouco. Mesmo quando era moço, nunca recebi
grande coisa. De modo que a pensão — vou lhe ser franco — não dá para
comer todos os dias. E eu não tenho filhos, não tenho ninguém que me
ampare nesse mundo. Envelhecer é muito chato. Mas envelhecer sem grana,
é uma peste.

PERSONAGENS:
os mesmos.
CENÁRIO:
quarto de Candinho. Cama turca. Velha mesa de pau, sem verniz. Uma
pequena valise. Nada nas paredes. Som de bate-estacas.
CANDINHO
Muito obrigado pelo auxílio, dona Shirley. Mas ouça um conselho. Tenha
cuidado com a vida. Aqueles caras. Quando menos se espera, saem da
cadeia. Eles podem querer tomar uma vingança.
SHIRLEY
Já pensei nisso. Mas a cidade é tão grande!
CANDINHO
Não confie. É um conselho. E não se esqueça. Se encontrar um trabalho pra
mim... Qualquer coisa. Mesmo que o ordenado seja só pra constar. Eu lhe
confesso: tenho medo de viver neste miserê. De repente, alguém pode me
fazer uma proposta suja e eu aceito. (Ri.) Minha finada mulher às vezes me
dizia: “Você, Candinho, não é flor que se cheire”. E não sou mesmo.
(Cresce o barulho de bate-estacas. Agora, também uma serra elétrica.)
SHIRLEY
Estão construindo dos dois lados, não é?
CANDINHO
É. As construtoras, agora, descobriram esta zona. Aqui também vão fazer
um edifício.
SHIRLEY
Aqui, onde?
CANDINHO
Aqui. Vão derrubar a casa. Não viu a placa lá fora?
SHIRLEY
Vai ter de se mudar?
CANDINHO
Que jeito? Se, pelo menos, eu arranjasse um lugar de vigia na obra... Mas
eles não me aceitam.
SHIRLEY
O senhor fazia o quê?
CANDINHO
Fiz de tudo. Trabalhei em circo... Ator, sabe? Galã. Aprendi o ofício de
eletricista, fui aprendiz de alfaiate, zelador, baleiro em cinema... Nem me
lembro mais de tudo.
SHIRLEY
(Pensa um pouco.) O senhor... se importava de morar num quarto de
empregada?
CANDINHO
E eu tenho esses orgulhos? Mas na casa de quem?
SHIRLEY
Na minha.
CANDINHO
Dona Shirley! Está perguntando se alma quer reza?! Quando me mudo?
SHIRLEY
(Sorri.)
Fading.

PERSONAGENS:
Shirley e Candinho.
CENÁRIOS:
vários.
MÚSICA:
faixa servindo de fundo às cenas que se seguem.

(Candinho metido numa roupa de segunda mão, um pouco maior do que


ele, rindo, mostrando a roupa — Shirley lendo um jornal na coluna de
empregos, lápis vermelho na mão, marcando os anúncios que lhe
interessam. — Ela e Candinho na mesa do apartamento, durante uma
refeição. — Ela descendo de um ônibus e batendo com a cabeça na parte
superior da porta. — Ela e Candinho assistindo a um jogo de basquete. —
Ela falando num “orelhão”, precisando curvar-se para conseguir usar o
aparelho. — Ela e ele sentados no banco de um parque. — Os dois no
cinema, ele comendo pipoca; a pessoa que está atrás dela, muda de lugar. —
Os dois no Viaduto do Chá, fotografados com teleobjetiva, ela alta, no meio
da multidão, ele ao lado, quase escondido no meio das outras pessoas. —
Os dois numa rua qualquer, cruzando com rabinos, sem os olhar. (Obs.:
Gostaria que não fosse dispensada esta última cena. Trata-se, como se pode
facilmente depreender, de uma alusão ao preconceito racial que cerca os
judeus, tema não desenvolvido na peça, mas que o Autor gostaria de
lembrar com essa rápida sequência.) — Shirley no telefone, em casa: a
câmara se aproxima e focaliza o seu rosto. Por trás dela, aparece o rosto —
nesse momento, meio irônico — do velho.
Fading.
MÚSICA:
cresce e corta.

PERSONAGENS:
Shirley e Candinho.
CENÁRIOS:
sala do apartamento, com a mesa enfeitada.
SHIRLEY
Como conseguiu enfeitar a mesa desse jeito?
CANDINHO
Você não sabe que eu já fui garçom? (Sentando-se.)
SHIRLEY
Não.
CANDINHO
(Sentando-se na frente dela.) Pois é, já fui.
SHIRLEY
Não é todo garçom que sabe enfeitar uma mesa.
CANDINHO
Vi os enfeites, numa dessas revistas, e copiei.
SHIRLEY
Mas por que isso? É seu aniversário?
CANDINHO
Não. Você não sabe?
SHIRLEY
(Gesto de quem ignora.)
CANDINHO
Hoje, fez dois meses que eu estou aqui.
SHIRLEY
(Perpassa uma sombra de apreensão no seu rosto.) Já?
CANDINHO
Já. Dois meses que eu estou nessa mamata. Sabe? Estou até começando a
gostar de ser velho.
SHIRLEY
(Vendo-o servir vinho.) Onde arranjou esse vinho?
CANDINHO
Tem uma caixa no meu quarto. É vinho português. Deve ser da dona da
casa.
SHIRLEY
Você não devia ter usado. Não é nosso.
CANDINHO
Que é que tem? Só uma. Ela nem vai notar.
SHIRLEY
Dois meses... Já estamos em agosto.
CANDINHO
As noites têm estado menos frias.
SHIRLEY
(Como se só então houvesse feito as contas.) Candinho! Faz cinco meses
que eu estou em São Paulo. Cinco!
CANDINHO
Falta de sorte, Shirley.
SHIRLEY
Eu não tinha feito as contas. É tempo demais.
CANDINHO
E eu, que procuro emprego há três anos? Mas eu sou um velho.
SHIRLEY
É verdade que não vou todos os dias. Mas quem aguenta procurar trabalho
todo santo dia? Às vezes, me dá um cansaço! Uma fadiga! Uma vontade de
desistir!
CANDINHO
É... Eu conheço isso. Mas, vamos esquecer por hoje essas chateações.
(Levantando o copo.) Saúde. (Mudando de tom.) Shirley... Levante a toalha.
Veja o que tem embaixo.
SHIRLEY
(Levanta a toalha. Há uma folha de revista, embaixo, dobrada. Shirley
desdobra-a. Vemos o que é: Shirley Temple num dos seus filmes,
dançando.)
MÚSICA:
entra, em cortina, com faixa musical de um velho filme de Shirley.
SHIRLEY
Vou mandar pra mamãe. Ela era louca por Shirley Temple. É por isso que
eu me chamo Shirley.
CANDINHO
Vi todos os filmes dela. Dezenas de vezes.
SHIRLEY
Você também era fã?
CANDINHO
Não. Vendia balas no cinema. Era capaz de imitar uma porção de artistas.
SHIRLEY
Imitava Shirley Temple?
CANDINHO
Como não? (Levanta-se. Afasta-se para o meio da sala.)
MÚSICA:
sobe com o motivo e Candinho sapateia um pouco, numa cena entre lírica e
grotesca, imitando a garota.
(Ri.)
Fading.
MÚSICA:
termina subitamente.

PERSONAGENS:
os mesmos.
CENÁRIO:
o mesmo, sendo que agora o jantar já terminou e os dois estão ainda à mesa.
SHIRLEY
(Fuma, com a sua piteira.) O pior, é que eu me sinto cheia de amor. Cheia
de ternura. Quem me vê, não pode imaginar o que eu trago em mim. Mas
quase todos os homens são menos altos que eu. Acham-se ridículos,
andando ao meu lado. E eu, também, começo a achar-me ridícula.
(Candinho quase não a ouve. Está avinhado, os olhos meio pesados.)
Felizmente, descobri o telefone. Tenho um amante invisível. Para ele, eu me
fiz diferente. Outra. Normal, um metro e sessenta, sei lá... Ele insiste:
“Vamos nos encontrar em tal lugar. Sem compromisso. Que tal?” Está
sempre perguntando: “Que tal?” Mas nunca permitirei que ele me veja. Que
saiba quem sou. E assim vou indo. Pensei que aqui, uma cidade tão grande,
as pessoas fossem menos mesquinhas e não prestassem atenção à minha
altura. Mas não, é tudo a mesma coisa. A mesma coisa.
CANDINHO
(Não chega a estar bêbado. Numa semi-ebriez, talvez embalado pela fala de
Shirley, alguma lembrança amarga veio à tona e um ódio antigo sobrenada
nos seus olhos.) Minha mulher não me deu um filho. Ela amargou os meus
melhores anos. Era epilética, uma doente. (Vai subindo de tom.) Vivia tendo
ataques e eu nunca tive sossego, perdi minha saúde, o pouco dinheiro,
minha mocidade toda cuidando dos seus ataques. Eu não vivi, ela consumiu
a minha vida, aquela...
SHIRLEY
(Sacudindo-o.) Candinho! Candinho! Ela não era culpada. Pense nisso. Para
ela, foi pior do que para você. Ela não era culpada!
MÚSICA:
faixa forte.

PERSONAGENS:
Shirley e o Pai, depois Candinho.
CENÁRIO:
sua sala no apartamento.
SHIRLEY
Conseguiu a bolsa?
PAI
Não. Não foi possível. Mas a tese está quase pronta. Preciso modificar uns
capítulos. E você? Por que não vai passar uns dias conosco? Não quer mais
ir em casa?
SHIRLEY
Não posso ir, por enquanto.
PAI
Podia ter ido na Semana da Pátria. Eu lhe telefonei duas vezes, pedindo que
fosse. Sua mãe tem sentido muito a sua falta.
SHIRLEY
Quando eu definir aqui a minha vida, então vou.
PAI
Quando definir, quando definir... Está custando muito. Várias pessoas que
vieram de lá muito depois de você já conseguiram emprego. Moças da sua
idade, é verdade que formadas.
SHIRLEY
Nenhuma tem um metro e oitenta e oito.
PAI
Isso não é motivo.
SHIRLEY
Que é que o senhor pensa, então? Que não estou procurando? Que não estou
tentando? Não é justo. Eu tenho tentado.
PAI
E como continua assim? Ociosa?
SHIRLEY
Não consegui nada. Parece absurdo, mas não consegui. Sou alta demais,
ridícula, perturbo a visão ou pareço imbecil. É difícil.
PAI
Então, volte pra casa.
SHIRLEY
Não. (Ligeira pausa.) No fim do mês, no máximo até início de outubro, vou
voltar para o pensionato. A dona do apartamento me escreveu. Deve
regressar dentro de uns 15 dias.
PAI
Vou dar-lhe um prazo, Shirley. Um mês ou dois, três meses, vá lá. Não me
incomodei de manter você aqui, embora fosse contra a sua vinda. Mas esse
tempo todo... enfim...
SHIRLEY
Eu sei, eu sei que não é justo. Mas eu não esperava, sinceramente, nunca
acreditei que... que fosse tão difícil. Mas pode ser também uma questão de
sorte, ou de jeito, não sei.
PAI
Volte para casa, Shirley. Não gosto que você fique aqui, sozinha. Não é
lugar para uma moça, a cidade é muito grande, perdição demais, podem
acabar falando mal de você. Não pensa nisto?
SHIRLEY
Falando mal? Onde? Dizendo o quê?
PAI
O que se pode dizer? O que se pode dizer de uma moça sozinha, vivendo
em São Paulo?
SHIRLEY
Meu pai... O senhor acha que eu sou ainda criança? Acha que eu sou
inocente? Virgem? Que ninguém... tocou em mim? É isto?
PAI
Que está você dizendo, Shirley? Que está tentando dizer-me?
SHIRLEY
(Parece não encontrar mais palavras.)
PAI
(Sem mais dúvidas e colérico.) Então, arranje-se. Comigo, não conte mais.
Fique sabendo que me sinto desonrado e que não a considero mais minha
filha. Arranje-se. Fracassei como pai, fracassei na carreira, fracassei em
tudo!
SHIRLEY
Meu pai! Não é assim tão horrível.
PAI
(Menos exaltado.) Fracassei em tudo. Minha tese foi recusada hoje.
(Novamente exaltando-se.) E a culpa, em parte, é sua. Estas preocupações
com você, estes sobressaltos...
CANDINHO
(Abre a porta entre a cozinha e a sala, espantado.) Que foi que houve,
Shirley?
PAI
Que é isso? Quem é esse velho? Avô seu, não pode ser. Tanto o meu pai
como o pai de sua mãe eram diferentes desse aí, e estão mortos, e nem
sequer foram enterrados em São Paulo.
CANDINHO
Que quer dizer com isso? Que eu saí da cova?
PAI
E está com meu pijama... É um cliente, Shirley? Chegou a esse ponto?
(Breve pausa.) Eu sabia que a sua vinda ia dar nisso.
SHIRLEY
Ouça... Não foi aqui que aconteceu. Foi lá. Lá!
PAI
(Olha-a espantado.) (Sai, batendo a porta.)
Corte
(Shirley deitada, chorando.)
Corte
(Candinho na sala, meio apalermado, olhando o mundo para ele confortável
e que, segundo pressente, vai perder.)
Corte
(Shirley jogando rapidamente roupas numa valise. Chorando, ainda.)
Corte
SHIRLEY
(Jogando algum dinheiro na mesa.) Tome conta da casa. Talvez viajemos no
mesmo ônibus, eu e ele. (Sai.)
Corte
(Shirley curvada sobre o guichê da Estação Rodoviária. Seu rosto, visto de
dentro do guichê.)
VOZ DO BILHETEIRO
Pra hoje, está tudo lotado. Só amanhã. (Shirley pensando, a valise na mão.
Ela andando. Ela entrando num táxi. Ela dentro do elevador. Com ela sobe
um jovem de cor, bem mais baixo que ela, tendo à mão o estojo de um
instrumento musical. Ela e ele descendo no mesmo andar. Abrem a porta do
apartamento vizinho. Vozes. Risos dos que estão lá dentro: é uma festa,
contrastando com o estado de espírito de Shirley. Shirley diante da porta do
seu apartamento. Põe a chave. Seu rosto e uma frase musical. Não se sabe o
que ela viu lá dentro.)
MÚSICA:
faixa expressiva.

INTERVALO
PERSONAGENS:
Shirley, Candinho e Desconhecidos.
CENÁRIO:
sala do apartamento.

CANDINHO
(Imitando-a, fumando numa longa piteira e tendo à cabeça um dos chapéus
de Shirley.) Pois é, meu amor. Sabe qual é a minha altura? (Os
desconhecidos, que riam, silenciam e levantam-se com a entrada de Shirley.
Vão saindo.) Um metro e sessenta. Não. Um metro e cinquenta. Não,
menos. Eu sou Shirley Temple. Que tal?
SHIRLEY
(Seu rosto concentrado, os olhos baixos.)
CANDINHO
(Filmado de trás. Importante que não se veja o seu rosto. Percebe que o seu
“público” se foi, que está sozinho e qual é a razão disto. Põe o telefone no
gancho e tira o chapéu. Agora, é filmado de frente. Vê-se que tem os olhos
fortemente sublinhados de negro, tal como sempre o faz a sua amiga
Shirley.)
SHIRLEY
Você?! Você?!... Eu esperava isso de todos. Mas de você! (Candinho passa
por ela e vai para a cozinha. Ela imóvel, na porta da entrada. Logo em
seguida, vê-se por trás dela, Candinho com a maleta. Ouve-se o bater da
porta da cozinha.)
MÚSICA:
passagem rápida e dramática. Entra em cortina, acompanhando as cenas
em que Shirley está só.

(A mala de Shirley em cima da cama, fechada. — Ela abrindo a torneira de


gás e fechando-a. — Suas mãos no armário do banheiro, tirando
desajeitadamente o aparelho de barbear, desatarraxando-o e tirando a
lâmina. As outras peças caem na pia. — Ela abrindo as cortinas da janela e,
a seguir, os vidros. Olha para baixo. — Vista da rua embaixo. — Seu rosto
angustiado, desesperado. Som de campainha. Hesitação: saltará finalmente
ou irá ver quem é?)
MÚSICA:
chega ao auge e cessa de súbito.

(Shirley abre a porta. À sua frente, está um moço bem-parecido, ainda mais
alto que ela, com um balde na mão.)
MOÇO
Posso lhe pedir um favor? (Shirley olha-o com embevecimento.) (Ele passa
a mão diante do rosto da moça.) Que é que há? É sonâmbula? (Ela acena
que não.) Pode arranjar-me umas pedras de gelo? O nosso está acabando.
SHIRLEY
Ah, sim, pois não. (Vai para a cozinha e abre o refrigerador. Ele entra e olha
a sala. Ela volta e entrega o balde.)
MOÇO
Não era você que morava aqui. Mais de uma vez pedi gelo emprestado à
outra dona. Era sua tia?
SHIRLEY
Eu... O apartamento não é meu. Ela está viajando. Vai voltar e então...
MOÇO
E então, você se manda?
SHIRLEY
Sim, é isto.
MOÇO
Precisa deixar o endereço. Não gostaria de perder você de vista. Quer vir à
nossa festa? Afinal, é vizinha da minha prima.
SHIRLEY
Não, obrigada. Tenho o que fazer.
MOÇO
Que pena. Toca violoncelo?
SHIRLEY
Assim... Não muito bem. Mas vou estudar. Ainda é tempo.
MOÇO
Isso. Ainda é tempo. Qualquer dia desses, venho ouvir você tocar. Pode ser?
Que tal?
MÚSICA:
acorde.
MOÇO
Bem... Obrigado. (Exit.)
MÚSICA:
acompanha o estado de espírito de Shirley. Eis que, de repente, tudo parece
novo.

(Shirley toca na mesa, no telefone, no violoncelo, vai à janela, fecha-a. A


campainha toca outra vez.)
MÚSICA:
silêncio.

(Shirley abre a porta. Diante dela está o mesmo rapaz de cor que subiu com
ela no elevador. Vê-se agora qual o instrumento que trazia no estojo: é um
trompete.)
MÚSICO
(Sorrindo.) Alô...
SHIRLEY
(Decepcionada.) Acabou o gelo.
MÚSICO
Não quero gelo. Posso entrar? (Ela dá-lhe passagem.) Ouvi dizer que aqui
havia um celo. Você toca mesmo? No duro?
SHIRLEY
Não sou grande coisa. Não pude ainda estudar como desejo.
MÚSICO
Mas gosta de música?
Corte

(O rosto do Moço Alto. Vê-se que algo se esclarece na sua mente.)


Corte
MÚSICO
Que é que há com você? Está aflita?
SHIRLEY
Não. Estava. Agora, não estou mais.
MÚSICO
Mora sozinha?
SHIRLEY
Sim.
MÚSICO
É ruim a solidão. Eu sei. Principalmente quando se é como você.
Corte
(O rosto do Moço Alto, ruído dos convidados em redor. Pensa: “Será ela?”)
(Não se deve ouvir, nesta breve cena, voz alguma. Jogar só com o rosto do
ator.)
Corte
SHIRLEY
Como eu?
MÚSICO
Sensível. Isto se vê logo. Olhe: não vou ficar na festa. Gente chata. Tenho
alguns amigos ótimos. Gente que gosta de música. Não quer ir comigo?
Leve o ceio. (A porta da sala continua aberta. Aparece o Moço Alto. Entra.)
MOÇO
Acho que já nos conhecemos. Você é mesmo casada?
SHIRLEY
Não.
MOÇO
Então, temos muito que falar. Sei de um lugar ótimo, longe daqui. Meu
carro está embaixo. Que tal?
MÚSICO
(A Shirley.) E o meu convite? Fica em nada?
MOÇO
Olha: pega um avião, cruza o Atlântico Norte e desce na Luisiana, em Nova
Orleãs, que é lugar de crioulo tocador de corneta. Visto?
MÚSICO
(Vê-se que foi ofendido. Volta-se ainda para Shirley.) Bem. Fica para outra
vez. De qualquer modo, sei que você é legal. Muito legal.
MOÇO
Estás sobrando.
MÚSICO
Ciao. (Exit.)
MOÇO
Então, vamos?
SHIRLEY
Vou buscar a minha capa.
MOÇO
(Seu rosto, como que acompanhando a passagem de Shirley.)
Corte

PERSONAGENS:
Shirley e o Moço. Depois, o Músico.
CENÁRIOS:
entrada do edifício e exterior (a rua). (Shirley, de chapéu e capa, e o Moço
Alto saindo do prédio. — Os dois entrando no carro. — O carro saindo. —
Shirley e o Moço Alto dentro do carro em movimento. O rosto de Shirley
não está muito alegre e revela certa preocupação. — Passam pelo Músico,
que vai caminhando na calçada, lentamente, com o seu trompete: a câmara,
de dentro do carro, mostra-o ficando para trás. — Rosto tenso e hesitante de
Shirley. Como que vai olhar ainda uma vez para trás. — Close do Músico,
andando. Ouve-se, de longe, a batida da porta de um carro e o rápido ranger
dos pneus no asfalto. Ele vai andando e, de súbito, para. Sua cara se
ilumina. — Close de Shirley, parada na calçada, olhando-o de cima para
baixo, sorrindo.)
MÚSICO
Você?!
SHIRLEY
Então? Vai ver os seus amigos?
MÚSICO
Eu ia. Mas, se você quiser, podemos sair por aí. Só sei que não vamos para
Nova Orleãs. (Saem andando. A câmara vai-se afastando. Eles conversam e
gesticulam. De súbito, timidamente, ensaiam um passo de dança, talvez
estejam cantarolando uma marcha-rancho. Vê-se que o Músico levou o
trompete à boca. Ouve-se a sua música, enquanto os carros passam. Os dois
dançam lado a lado, com grande discrição.)
MÚSICA:
associa-se, orquestralmente, ao trompete do Músico.)
SOBEM OS LETREIROS
Escrevendo para o programa Caso Especial da Rede Globo, Osman Lins,
por motivos já discutidos anteriormente, ingressava em um novo desafio: a
escrita para a televisão. O consagrado autor literário estava em vias de se
tornar um roteirista. Mesmo sendo ainda um aspirante ao ofício, o
vitoriense experimentou a linguagem e chegou a escrever três narrativas
para TV. Marcha fúnebre foi o último episódio osmaniano no programa.
Como este foi o terceiro texto que ele ousou em escrever para a televisão, é
notável uma evolução técnica em relação aos anteriores (A ilha no espaço e
Quem era Shirley Temple?).
A ação decorre em 1990. Contudo, para não sobrecarregar o trabalho com
elementos alheios ao tema central, não insistiremos em exterioridades:
roupas etc. Esses dados, portanto, são poucos: os jovens de ambos os sexos
usam cabelos curtos e repuxam os olhos com traços oblíquos; a única
diferença é que todos os rapazes usam roupas negras e todas as moças
roupas em tons amarelos.
Um elemento plástico da maior importância são os capacetes dos
motociclistas, inspirados nos capacetes dos espanhóis comandados por
Cortez à época da conquista. As possíveis diferenças entre os jovens de
então e os de hoje também não foram acentuadas.
Há certa orientalização em alguns ambientes e que assinalo.
Dois papéis principais: Selene15 Raquel e seu filho Tarcísio.
O jovem, que anda por volta dos 20 anos, deve ter algo de arrebatado, de
inocente e, ao mesmo tempo, de duro.
A mãe será, forçosamente, uma atriz de rosto bem conhecido do público,
a fim de ser imediatamente reconhecida nos seus vários disfarces: está
sempre mudando de vestuário. Quanto maior for a sua aura como atriz,
melhor. Rogo não fazê-la caricatural.
Os intervalos da SEGUNDA PARTE ficam a critério da Direção.

PRIMEIRA PARTE
Abre-se o filme com um lento e prolongado travelling do Cemitério do
Araçá, em São Paulo, tomado de fora, de modo que o terço inferior da tela
fique ocupado pela parte superior do muro e os outros dois terços pelos
perfis dos túmulos, ao fundo. O travelling não será interrompido nem
mesmo se passar a câmara ante o portão. Interessante se, aqui e ali, pegar
algo das barracas de flores que ficam junto ao muro.
Sobre essa imagem, projetam-se os letreiros, que tanto podem ser
pequenos blocos imitando inscrições funerárias sobre mármore, como essas
letras prateadas que se usam para coroas mortuárias.
Trilha musical a critério do músico. O Autor19 preferiria algo com um
certo acento moderno, um tanto dissonante, mesmo no caso de se usar
música de órgão.

PERSONAGENS:
Selene Raquel e Tarcísio. Ela lê jornal junto a um abajur, sentada. Ele
move-se e olha o relógio com uma certa ansiedade. Uma vez chega junto do
telefone, como se fosse usar o aparelho.
CENÁRIO:
sala na casa de Selene. Ambiente não propriamente requintado, mas com
claras intenções decorativas. Poltronas fofas, muitas almofadas, tapetes,
flores e abajures.
SELENE
(Por cima do jornal.) Por que não se senta? Se tem algum encontro, saia.
TARCÍSIO
Não. Não tenho encontro nenhum.
SELENE
Então, por que fica assim, nesse vaivém? Até dá tonturas.
TARCÍSIO
(Vai até perto do telefone.) Ninguém me telefonou? Ninguém mesmo?
SELENE
Você quer saber se a Regina lhe telefonou? É isto?
TARCÍSIO
Sim. É isto.
SELENE
Pois bem. Não telefonou. Que foi que houve? Rompeu com ela?
TARCÍSIO
Não. Ela viajou.
SELENE
Ah, sim. (Virando a página do jornal.) Interessante. Ainda ontem, por acaso,
achei entre meus álbuns de recortes um jornal de 1977. Comparei os dois
jornais, o de 1977 e o de ontem. Quer dizer: foi como se comparasse o
mundo atual com o de 13 anos atrás. Pude examinar bem as mudanças. São
muitas. Tanto no jornal de 1977 como no de 1990 havia inundações. Mas
eram em lugares diferentes. Os dois jornais trazem notícias de guerra. Mas
os países em guerra são outros. O consumo de drogas continua preocupando
as autoridades. Mas as drogas têm nomes completamente novos. A inflação
continua. Mas o Ministro da Fazenda já não é o daquele tempo. Sabe o que
parece o mundo? A mesma peça, com uma nova montagem.
TARCÍSIO
(Aproximando-se.) Mamãe... E se você pensasse mais um pouco no mundo
de hoje? Se a senhora pensasse mais no que está vivo do que no que está
morto?
SELENE
(Largando o jornal.) Que quer você dizer com isso? Que tudo que eu criei
no palco desapareceu? Que ninguém se lembra mais de Selene Raquel
como Cleópatra ou Lady Macbeth? Muita gente se lembra. E se não volto
ao palco é porque não quero. Afastei-me.
TARCÍSIO
Não é isso. É que você vive em nosso tempo como se ele ainda não
houvesse chegado. Como se muitos anos ainda não houvessem passado e
você estivesse no viço da idade e eu fosse ainda um menino. Mas estamos
em 11 de maio de 1990 e eu tenho vinte anos.
SELENE
E eu sou uma velha. Não é o que você quer dizer?
TARCÍSIO
(Abraça-a.) Não, você é ainda tão bonita! É que não se pode prender o
tempo. E você vive tentando prendê-lo. Aqueles armários, com todos esses
vestidos17 que usou nos seus tempos de atriz...
SELENE
(Afastando-o e rindo.) E não esqueça que quase todos ainda cabem em
mim. Poucas mulheres podem dizer o mesmo. Continuo com o meu corpo
de moça.
TARCÍSIO
Eu sei. Eu sei.
SELENE
E é este corpo que levarei para o túmulo. E que, como lhe disse mil vezes,
você sepultará com honras...
TARCÍSIO
Não fale nisso.
SELENE
Em jazigo perpétuo, onde ninguém mais me toque. Onde eu fique como
essas bandeiras de guerra, guardadas numa urna de cristal, e que ninguém
toca. Ninguém. (Segura a cabeça dele.) Você fará isto?
TARCÍSIO
Sim. Farei. (Levanta-se.) Mas por que você pensa tanto em morte? Por que
pensa tanto no passado e na morte?
SELENE
Então você não sabe? É porque amo o corpo. Eu amo o corpo, Tarcísio18, e
principalmente o corpo na mocidade. O corpo, essa coisa que anda, que toca
e é tocado, que se agita, que sente dor e prazer, entende? Esses ossos e carne
com um coração lá dentro, às vezes tímido, às vezes rebelde, sempre
inquieto, batendo por tudo. (Acompanha, com o punho fechado, o ritmo do
próprio coração.)
TARCÍSIO
Mamãe... Há dois dias meu coração está batendo com angústia. Regina...
rompeu comigo. Não sei para onde ela foi.
SELENE
Com você?! COM VOCÊ?! (Soa o telefone. Close19 de Tarcísio20. Breve
expectativa. Ele corre e atende.)
TARCÍSIO
Alô... Regina?
SELENE
(Em voz baixa.) Não se mostre expansivo. Imponha-se.
TARCÍSIO
(Mais contido.) Quando chegou? (Pausa.) Ah, sim. Falar comigo? Onde?
Vou ver se posso ir. Ciao. (Desliga.) (Expansão de alegria.) Ela voltou,
mamãe. Ela voltou. E telefonou para mim.
SELENE
Eu ouvi.
TARCÍSIO
E eu, que já estava pensando que nunca mais ia vê-la.
SELENE
(Erguendo-se. Teatral.) “Amém, amém. Haja o que houver, no entanto, nem
toda a dor do mundo é um preço bastante para o gozo de vê-la um só
instante!” Romeu e Julieta, segundo ato, última cena21. (Riem. Esboçam um
passo de dança.)

INTERVALO
PERSONAGENS:
Tarcísio e Regina. Figurantes. Ele e ela estão sentados no chão, em
almofadas.
CENÁRIO:
boîte de jovens, em 1990. Estilo francamente oriental e música ambiental
com instrumentos do Oriente. Alguns jovens dançam, mais ou menos à
maneira dos bailados siameses.
TARCÍSIO
Minha mãe vive no passado, com seus álbuns de recortes e o guarda-roupa
cheio de vestidos que usou no teatro. Mas somos muito ligados.
REGINA
Não sou contra isso. Eu bem queria ter pelos meus pais a admiração que
você tem por ela.
TARCÍSIO
Talvez seja por não saber quem é meu pai. Quero-a como se ela fosse, ao
mesmo tempo, meu pai e minha mãe. (Ri.)
REGINA
Isso não quer dizer que você vá permanecer criança a vida inteira. Não tem
mais sentido, na sua idade, viver às custas dela. Ela nem tem uma renda tão
alta.
TARCÍSIO
Priva-se de comprar certas coisas, contanto que não me falte nada. Mas não
quer ainda que eu trabalhe. Vive muito só. Precisa de minha companhia.
REGINA
É por isso que você tem de ir embora. Vamos fugir, Tarcísio. Vamos embora
juntos.
TARCÍSIO
Pra onde? Fazer o quê?
REGINA
Não interessa. Se não importa pra mim, por que interessa pra você? A gente
se arranja.
TARCÍSIO
Regina, não há nada contra as nossas relações. Por que temos de fugir?
REGINA
Eu quero fugir com você para o mundo, Tarcísio. Você precisa nascer. Até
quando quer ficar assim? Achei incrível quando estive na sua casa. O seu
quarto parece o de um menino. Tem até urso de pelúcia!
TARCÍSIO
Você não vai supor que eu brinco com o urso.
REGINA
Mas o urso está lá. Você tem que pegar aquele urso e jogá-lo pela janela.
Vamos embora comigo. Seja pra onde for. Montamos na sua moto e vamos.
Quanto antes. Eu não vou perguntar pra onde você me leva. Quero que
fique bem claro: pra onde formos, está bem.
TARCÍSIO
Regina... Você é formidável. Sim, eu quero ir com você. Mas tenho pena.
Eu nasci tarde demais, quando ela não contava mais ter um filho. Acho
também que é por isso que se apega tanto a mim. E pensa tanto na morte...
Engraçado: ela esquece as datas de aniversários de nascimentos. Mas não as
datas em que morreram os amigos. Amanhã quer que eu vá com ela ao
cemitério, visitar o túmulo de alguém que morreu há 15 anos.
REGINA
E você vai?
TARCÍSIO
Já prometi que ia.
REGINA
Isto quer dizer que, pelo menos amanhã, não vamos embora.
TARCÍSIO
Vamos. De noite. (Toma-lhe a mão.) Regina... Ela tem a saúde frágil. E vai
sentir tanto a minha falta!

PERSONAGENS:
Selene e Tarcísio.
CENÁRIO:
ônibus, através da cidade.
SELENE
Ah!... Há quantos anos não vou ao Cemitério de São Miguel. Uma
ingratidão. Quinze anos hoje que morreu Arnaldo Heleno e eu nunca visitei
o seu túmulo.
TARCÍSIO
Logo você, que tem mania de visitar os mortos.
SELENE
Mania? Então não é para isto, para receberem as homenagens dos vivos,
que eles estão lá? E Arnaldo Heleno, mais que nenhum outro amigo,
merecia que eu me lembrasse dele. Trabalhamos juntos em tantas peças!
Arnaldo Heleno... Ele não reconheceria mais São Paulo. Como a cidade
mudou! Aliás, pensando bem, deste lado até que não mudou tanto. Sabe? A
cidade não mudou. Cresceu. Crescer não é o mesmo que mudar.
TARCÍSIO
Eu cresci... e mudei.
SELENE
Para mim, você não cresceu nem mudou. É o mesmo garoto que eu —
quando podia — levava para brincar no Parque Ibirapuera. Às vezes, íamos
os três; eu, você e o canastrão do Ornelas. Pobre Ornelas, foi canastrão na
vida e na morte. Quis ser incinerado e as cinzas jogadas ao mar. E sabe que
música ele escolheu para a cerimônia? La Cumparsita.
TARCÍSIO
La Cumparsita? Que é isso?
SELENE
Oh, Deus, como vou explicar a você o que era La Cumparsita? Era um
tango. Uma canção para infelizes. Para amantes enganados e sem a mínima
esperança ... O pior foi levar as cinzas a Santos. Era um sábado e chovia!
Abrimos a urna, mas o vento soprava em direção à terra e as cinzas vinham
era pra cima de nós. Acho que não caiu um único grão no mar. (Ri, de modo
um tanto crispado.)
TARCÍSIO
(Pede parada.) Estamos chegando. (Descem.)

PERSONAGENS:
Selene, Tarcísio e Homem 1.
CENÁRIO:
rua em frente a estacionamento.
SELENE
Aqui? Tem certeza de que é aqui?
TARCÍSIO
Pelo menos era.
SELENE
(Ao Homem 1, que se aproxima.) Onde fica o Cemitério de São Miguel?
HOMEM 1
Era aqui. Mas não é mais. Há muito tempo que foi transferido.
SELENE
Transferido? Transferido, como?
HOMEM 1
Sei, porque trabalho aqui perto há vinte anos. Quatrocentos e cinquenta
jazigos e 11 mil urnas. Tudo transferido para o Cemitério da Saudade.
SELENE
Para depois ser transformado nisso? Num estacionamento?
HOMEM 1
Não. Ia ser uma praça ou uma biblioteca. Mas faltou verba. A senhora sabe
como é.
SELENE
Pois o senhor sabe como era em Roma, na antiga Roma?
HOMEM 1
Não sei não senhora.
TARCÍSIO
Vamos, mamãe.
SELENE
Um túmulo era uma coisa sagrada. Para ser mudado de lugar, precisava a
autorização sabe de quem? Do Papa!
HOMEM 1
Mas aqui no Brasil, é tudo assim.
SELENE
Em Roma, se eu vendesse um terreno onde houvesse um parente enterrado,
eu conservava o direito de cruzar o terreno, mesmo que fossem cem léguas,
para visitar o túmulo. Não perdia nunca esse direito. Nunca.
HOMEM 1
Pois é. A senhora vê. Um estacionamento. Bem, com licença. (Sai.)
SELENE
Querido Arnaldo Heleno! Que automóvel descansa agora no lugar dos teus
pobres ossos?... (Faz um gesto vago de adeus. Corte rápido.)

PERSONAGENS:
Tarcísio e Regina.
CENÁRIO:
rodovia à noite. Seguem os dois numa moto. Tarcísio dirigindo.
REGINA
Se eu fosse pólvora, você queria ser o quê?
TARCÍSIO
Estopim. E se eu fosse bala, você queria ser o quê?
REGINA
Gatilho.
TARCÍSIO
E se eu fosse um tiro?
REGINA
Eu era o alvo.
TARCÍSIO
E se eu fosse uma faca?
REGINA
Eu era a ferida. E se eu fosse a manteiga, você fazia o quê?
TARCÍSIO
Eu lambia. E se eu fosse a corda, você fazia o quê?
REGINA
Um par de ligas. E você, se eu fosse corda?
TARCÍSIO
Me enforcava. Me surrava. Me amarrava.
REGINA
E se eu fosse um capacho?
TARCÍSIO
Eu não usava mais sapatos. E se eu fosse um lenço?
REGINA
Eu chorava. Se eu fosse uma porta?
TARCÍSIO
Eu entrava e saía. (Riem.) (Fusão. Os mesmos personagens, ainda na moto,
na estrada, à noite. Mas agora vão calados e em menor velocidade. Tarcísio
para.)
REGINA
Que foi que houve? Algum problema?
TARCÍSIO
Não, o problema é comigo.
REGINA
Qual?
TARCÍSIO
Vamos voltar, Regina.
REGINA
Você volta só.
TARCÍSIO
Está louca?
REGINA
Não quero saber. Você volta só. Para a sua mãe. Para o seu berço, e pronto.
TARCÍSIO
Regina, entenda. Eu gosto de você. Gosto mesmo. E eu sei que você tem
razão. Mas quer saber? Mesmo este negócio de escapar, de ir por aí, é
infantil.
REGINA
Está bem. Então você escolhe.
TARCÍSIO
Escolhe o quê? Não há necessidade disso. Vamos voltar, Regina. Tudo foi
decidido muito depressa. Não amadureci a ideia. E não adianta eu fingir que
estou indo com você. Não estou. Estou em casa. Penso que vou magoar a
minha mãe.
REGINA
E a mim não magoa?
TARCÍSIO
Não. Você é tudo que eu quero. Quero casar com você.
REGINA
Quando? Daqui a vinte anos?
TARCÍSIO
Não ponha a coisa nesses termos. Um pouco de paciência.
REGINA
(Aludindo pela primeira vez a algo que ocorreu na estrada, entre a primeira
cena na moto e esta.) Você não teve paciência há pouco, quando paramos na
estrada e... Tarcísio, Tarcísio!
TARCÍSIO
(Abraça-a.) Eu não vim só pra isso. Queria ir embora com você, queria
mesmo. (Solta-a.) Mas não tenho coragem, Regina. O que é que eu vou
fazer? Não tenho coragem. Penso em mamãe me procurando e isso me dói.
REGINA
Está bem. Você volta. Eu fico aqui.
TARCÍSIO
Aqui, onde? Na estrada? De noite?
REGINA
Por que não?
TARCÍSIO
É perigoso.
REGINA
Dormir na cama também é.
TARCÍSIO
Regina!
REGINA
Não toque em mim. Some! Vai dormir com o ursinho de pelúcia! (Tarcísio
liga a moto e vai embora. Close de Regina.)

PERSONAGENS:
Selene, depois ela e Tarcísio.
CENÁRIO:
seu quarto de dormir, com espelhos tríplices, um leito faustoso e armários
cheios de vestidos de teatro. Sobre a cama está a roupa de Julieta, de
Shakespeare. Numa mesa ao lado da cama, uma garrafa de cristal com
vinho e um cálice.
SELENE
(Cena importante. Aqui começamos a ingressar no fantástico, que, embora
não deva ser demasiadamente sublinhado, é uma das constantes da peça.
Selene, numa camisa de dormir, contempla-se ao espelho. Levanta-se e põe
na cabeça uma espécie de solidéu, um colar e, num gesto harmonioso, o
manto de Julieta. Vê-se então que o seu rosto rejuvenesceu.) O teatro está
cheio e as luzes se concentram em mim. Silêncio absoluto na plateia. (Faixa
musical sublinha a cena que se segue.) É o quinto ato, cena terceira, de
Romeu e Julieta. Romeu, equivocado, pensa que Julieta está morta... “Oh,
Julieta querida... Julieta? Não. Oh, juventude amada, por que és ainda tão
bela? Devo crer que esse fantasma chamado ‘o fim das coisas’ enamorou-se
de ti e te esconde na escuridão para fazer de ti sua amante? Por temer isso é
que eu quero ficar contigo. E nunca, nunca mais sairei deste palácio
tenebroso. Olhos meus, contemplai pela última vez a mocidade; braços,
apertai-a pela última vez; e vós meus lábios, portas do alento, selai com um
legítimo beijo um contrato sem termo com a morte insaciável. (Verte o
vinho no cálice.) Vem, amargo condutor, guia insípido, piloto desesperado.
Lança de uma vez teu barco fatigado dos trabalhos do mar, sobre os
rochedos fragorosos. (Bebe.) Honesto boticário, teu veneno é eficaz; eu
morrerei num beijo.” (Cai sobre a cama. O cálice parte-se no chão.) (A
câmara desvia-se da cena e fixa um relógio, que marca onze horas.) (Fusão
sobre o mesmo relógio, agora marcando quatro horas e dez minutos.)
MÚSICA:
encerra a faixa.
TARCÍSIO
(Abre a porta e entra em casa. A câmara acompanha-o até o quarto da mãe.)
Puxa! Sempre com as suas encenações para uma plateia de fantasmas.
(Apaga a luz e vai sair. Mas acende outra vez a luz e aproxima-se. Toca o
rosto de Selene novamente envelhecido e recolhe a mão, assustado.)
Mamãe! Mamãe! (Apanha no chão o cálice quebrado.) Veneno! Foi por
minha causa! Foi por minha causa! Mas eu vou ter o que mereço! (Segura o
cálice quebrado, decidido a cortar o pulso.) (Fora de cena por trás dele.)
Solte isso. Quem é você? (Dá um pulo de medo e cai sentado junto à cama,
com um grito sufocado.)

INTERVALO: FIM DA PRIMEIRA PARTE22

SEGUNDA PARTE
SELENE
Não conhece mais a sua mãe? (Está vestida como a Dama das Camélias e os
traços de velhice desapareceram.) Agora, posso usar eternamente todas as
roupas que desejo.
TARCÍSIO
Você se matou. Tomou veneno por minha causa.
SELENE
Que pretensão. E que tolice. Morri porque chegou a hora. Eu nunca me
mataria. Sempre tive horror a necrotérios e autópsias.
TARCÍSIO
E esse cálice e tudo?
SELENE
Qual a boa cena de teatro que não tem um revólver, uma espada, um punhal
ou uma taça de veneno? Mas não quero que fique muito triste. Para falar a
verdade, eu tinha medo de ficar velha demais. Agora, embora seja difícil,
assuma a direção da sua vida; sepulte-me como eu desejei. Naquela gaveta
há algum dinheiro. Acho que é suficiente. Tarcísio, meu filho querido:
quero um lugar permanente, na terra que amei e onde passei uma jornada
tão breve que, quando pensei que o dia começava, a noite já descia...
TARCÍSIO
(Ergue-se.) Mamãe! (Dirige-se para ela, os braços estendidos. Ela
desaparece. Ele se vê novamente sozinho.)

PERSONAGENS:
Tarcísio e Funcionário.
CENÁRIO:
a Funerária. O modelo deste cenário é a Funerária de São Paulo, um grande
salão, com mesas e funcionárias, e placas indicando: CERTIDÕES,
PARTICIPAÇÕES, IMPRENSA etc. Afora isto, nada de fúnebre. Um
ambiente limpo, polido, com gente bem vestida ocupando as mesas, ante
algumas das quais há filas esperando a vez.
FUNCIONÁRIO
(Apertando a mão de Tarcísio.) Tudo bem?
TARCÍSIO
Bem por quê? Perdi a minha mãe. Vim tratar do enterro.
FUNCIONÁRIO
Ah, sim. Trouxe a certidão de óbito?
TARCÍSIO
Está aqui.
FUNCIONÁRIO
Sua identidade.
TARCÍSIO
(Entrega-lhe o documento.)
FUNCIONÁRIO
Tão moço! Não havia ninguém de mais idade na família para tratar do
assunto?
TARCÍSIO
Nossa família éramos eu e ela. Agora, não tenho mais ninguém.
FUNCIONÁRIO
Lamentável.
TARCÍSIO
Ela achava que ainda ia viver muitos anos. Não pensava que morresse tão
cedo. (Tarcísio vai esquecendo que fala com um simples funcionário e
como que mergulha nas suas próprias emoções.) Deixou algum dinheiro,
que está aqui comigo. E a casa era nossa. Agora eu fico sozinho naquela
casa, cheia de vestidos que não servem mais para nada, uma casa grande
demais para mim. Ela possuía algumas joias. Mas estão todas empenhadas.
Eu soube hoje.
FUNCIONÁRIO
Sua profissão?
TARCÍSIO
Estudante.
FUNCIONÁRIO
Não trabalha?
TARCÍSIO
Não, eu fazia companhia a ela. Ela, no seu tempo de atriz, tinha sempre o
público. Agora vivia muito só. Eu era o seu público. A partir de hoje, eu é
que estou só. Bem... (Emocionado.) O palco está vazio.
FUNCIONÁRIO
Tenha calma, meu jovem. Tenha calma e vamos ao ponto. Como deve saber,
o Serviço Funerário de São Paulo, a apenas dez anos do século XXI, é uma
autarquia gigantesca, um monopólio fantástico, uma esplêndida máquina
bem lubrificada, com a finalidade de prestar aos nossos clientes, desde os
mais ricos aos mais desprotegidos, a preços que variam segundo a
modalidade de serviços, uma assistência perfeita na hora mais crucial e
amarga de nossas vidas. Que tipo de pompas prefere?
TARCÍSIO
Que tipo como?
FUNCIONÁRIO
Oferecemos alternativas para todas as bolsas. Temos por exemplo quatro
classes de ornamentação de câmaras fúnebres. E quatro tipos de transportes
para os mortos. Não seria lógico nem justo ver um cliente que transitou na
vida em carros luxuosos, fazer a última viagem num transporte
inexpressivo. Não. A morte, absolutamente, não igualha.
TARCÍSIO
O senhor acha?
FUNCIONÁRIO
A instituição acha. E se o nosso leque de opções já é amplo no que diz
respeito aos itens condução e ornamentação, chega a requintes que ninguém
imagina quando se trata dos tipos de sepultamento. Temos: popular,
especial, médio, luxo um, luxo dois, luxo três, luxo quatro, luxo cinco e o
super luxo.
TARCÍSIO
E luxo seis, não tem?
FUNCIONÁRIO
Ainda não.
TARCÍSIO
E como é o super luxo?
FUNCIONÁRIO
Caixão italiano envernizado, transporte em carruagem, remoção, carretos,
urna para missa, abajures — pois não há mais velas —, cruz para os carros
do cortejo, manto de seda lavrada, um par de meias e um par de sapatos,
tule de seda, tampa artística com motivos sacros de cobre, toda assistência e
enfeite de rosas. Num enterro dessa classe, evidentemente, a sofisticação é
outra.
TARCÍSIO
E quanto custa?
FUNCIONÁRIO
Está aqui a tabela de preços. Dez vezes mais barata que a de qualquer
Capital do Brasil.
TARCÍSIO
Não... Não tenho dinheiro para o super luxo. Escolho mesmo esse: luxo
três.
FUNCIONÁRIO
Muito bem. Luxo três. É um bom enterro.

PERSONAGENS:
Tarcísio e Moça, depois Funcionário.
CENÁRIO:
sala comum, de escritório, provida com um receptor de TV.
MOÇA
Por que não o fogo? A cremação é o ideal: limpo, rápido, prático. E
economiza espaço.
TARCÍSIO
Não. Ela gostava da terra. É... amava a terra.
MOÇA
Nesse caso... Dispomos hoje de trinta campos rotativos. Tem alguma
preferência?
TARCÍSIO
Se eu pudesse ver...
MOÇA
Pois não. (Liga a TV.) Este é o do Araçá, fundado em 1897. (No vídeo,
vemos trecho do cemitério e pessoas da classe média fazendo um
piquenique.)
TARCÍSIO
Que é isso? Um piquenique?
MOÇA
Os campos rotativos são hoje um lugar como os outros. Veja! Ampliaram-
se, com isto, as áreas de lazer.(Outro cemitério no vídeo. Vê-se uma mulher
pobre roubando flores.) Este é o de Vila Formosa. Fundado em 1949.
(Outro cemitério no vídeo. Vê-se gente andrajosa, que mora nos túmulos.)
O da Freguesia do Ó, fundado em 1908. (Falando num microfone.)
Atenção, Ordem Geral. Atenção. Ordem Geral. Voltamos a registrar
marginais alojados no campo rotativo da Freguesia do Ó. Desalojá-los com
urgência. Cumpra-se. (Há, nesta sequência, tomadas rápidas, alternando as
imagens na tela de TV com o rosto de Tarcísio. Outro cemitério, com um
grupo de pessoas de mais ou menos quarenta anos, dançando.) Consolação,
o mais antigo de todos, junto com o de Santo Amaro.
TARCÍSIO
Esse é bem animado. Não é aí que está a Marquesa de Santos?
MOÇA
Sim. Na Consolação, dispomos de gavetas temporárias.
TARCÍSIO
Eu quero um jazigo perpétuo. Ela sempre desejou um lugar onde o seu
corpo ficasse para sempre.
MOÇA
Isso acabou, meu caro. Não há mais. Caiu em desuso. A cidade cresceu
muito. Os terrenos, mesmo distantes, ficaram muito caros. A solução para
atender à demanda...
TARCÍSIO
Demanda? Que demanda? Ninguém pede pra morrer.
MOÇA
A solução para atender à demanda é a alta-rotatividade. Isto é, seis gavetas
superpostas, ocupáveis pelo espaço de três anos.
TARCÍSIO
É por isso que você fala em campo rotativo? Não se diz mais cemitério?
Agora é campo rotativo?
FUNCIONÁRIO
(Abrindo a porta e entrando.) Esqueci-me de perguntar. De que cor prefere
os abajures do velório?
TARCÍSIO
(Exaltado.) Um verde, um roxo, um vermelho, um azul, um amarelo, de
todas as cores. Um troço alegre, velho, o melhor luxo três que for possível.
O melhor!

PERSONAGENS:
Tarcísio e, depois, Selene.
CENÁRIO:
cabine telefônica. (Em nenhuma hipótese o atual “orelhão”.)
TARCÍSIO
(Chorando, faz uma ligação. Ouve-se a chamada da ligação; ninguém
atende. Ele desliga. Volta-se. Vê-se seu rosto passar das lágrimas para um
sorriso discreto de alegria.) Não está nada fácil cumprir aquele seu desejo.
SELENE
(Agora está vestida como uma personagem de Tchekov, de branco.) Não há
mais, nos cemitérios, um canto onde alguém possa ficar até ser esquecido?
É isto?
TARCÍSIO
É isto. E não existem mais cemitérios. Agora chamam-se campos rotativos.
SELENE
Que mau gosto! (Riem os dois.) Vamos ainda uma vez dar um passeio no
parque? Como antigamente?
TARCÍSIO
Preciso falar com alguém que me leve ao Vice-Prefeito. Só ele, atualmente,
pode autorizar a compra de um jazigo perpétuo.
SELENE
Depois você vai. É cedo ainda. Vamos comigo.

PERSONAGENS:
os mesmos.
CENÁRIO:
Parque do Ibirapuera. (Obs.26: trata-se de um interlúdio leve, compensando
o tom algo pesado e mesmo grosseiro das cenas na Funerária. Pede-se,
portanto, que se mantenha a cena e que o tratamento seja o mais delicado
possível.)
SELENE
(Andando ao lado do filho.) “Sempre joguei fora o meu dinheiro, como uma
verdadeira louca; e casei-me com um homem que só sabia fazer dívidas.”
TARCÍSIO
Você nunca me disse que tinha sido casada.
SELENE
“Foi a província que matou meu marido — ele bebia tanto! —, e eu, para
minha desventura, apaixonei-me por outro homem, liguei-me a ele, e
então... — foi o primeiro castigo, um golpe na cabeça — aqui... neste rio.
TARCÍSIO
Não há rio nenhum.
SELENE
“...aqui, afogou-se meu filho, e eu parti para o estrangeiro, parti para
sempre, para não voltar mais nunca, nunca mais ver este rio.” (Muda
subitamente de expressão e corre, rindo.) A cena é de Tchekov. O cerejal.
Meu filho está vivo e bem vivo, e é jovem, e lindo, lindo! (Dançam
levemente, sob o olhar encantado e comovido do filho. De súbito, ela para e
recita, com grande poesia, esta nova fala de O cerejal): “Sim, eis a Lua, e
eis a felicidade, eis que se aproxima, que vem na nossa direção, cada vez
mais perto, eu já escuto seus passos.” (Como voltando a si.) Mas já
brincamos bastante. Vou olhar um pouco o meu velório. Não gosto muito de
velório, mas enfim... sendo o meu...

PERSONAGENS:
Selene e figurantes.
CENÁRIO:
é a sala da primeira cena. Os móveis foram afastados e o esquife está dentro
da peça, cercado de abajures de pé, coloridos. Há vários grupos espalhados
no salão: homens e mulheres bem vestidos; e jovens sentados pelo chão,
vestidos segundo as “Instruções Gerais”.
MÚSICA:
solene, de órgão. Mas não chega a ser música sacra.
SELENE
(Não fala. Tudo que faz é passear entre os figurantes, reagindo com
expressões fisionômicas, segundo o que ouve. Aliás, dependerá das
possibilidades da Produção apresentar realmente os rostos dos vários
comparsas que aqui surgem, em certos casos para uma única fala, ou apenas
fazer ouvir as suas vozes, mostrando como reage ante elas Selene Raquel.)
HOMEM DE IDADE
Selene Raquel! Selene Raquel! Passamos belos momentos na Riviera.
Grande mulher. Não posso queixar-me. (Expressão de Selene, como quem
diz: “Que filho de uma puta!”)
ATRIZ JOVEM
Tinha qualidades. Mas grande atriz, nunca foi.
MULHER 1
Ultimamente, andam falando muito de nós dois.
GALÃ
Como não há nada, nada temos a temer.
MULHER 1
Mas você sabe, não é? Quando o povo fala, ou é ou está pra ser.
CAPITALISTA
Vão fazer cortes severos no orçamento. A taxa de juros...
HOMEM 3
Pois o sujeito não tinha nenhum senso de oportunidade. Imaginem que, em
pleno cemitério, começou assim a oração fúnebre: “Mocidade esportiva da
minha terra!” (Risos.)
CRÍTICO 1
O papel do crítico é meter o pau. Se o crítico não mete o pau, não é
respeitado.
CRÍTICO 2
A verdade é que o teatro está em crise.
HOMEM 2
Estou decepcionado com você.
MULHER 2
Por quê?
HOMEM 2
Quando seu marido morreu, passei aquela conversa e você me deu o contra.
No entanto, eu soube que...
MULHER 2
Ah! Você é que é culpado.
HOMEM 2
Culpado por quê?
MULHER 2
Por que não insistiu?...

PERSONAGENS:
Tarcísio e Presidente da Câmara dos Vereadores.
CENÁRIO:
Gabinete oficial.
TARCÍSIO
Informaram que o senhor, como Presidente da Câmara, tem prestígio com o
Vice-Prefeito.
PRESIDENTE
Exageros, exageros, somos apenas amigos que se respeitam. Qual é o
problema?
TARCÍSIO
Sou filho de Selene Raquel. A atriz de teatro. Ela morreu hoje. E eu queria
para ela um jazigo perpétuo. Sabe... o túmulo, para ela, era uma coisa
sagrada. Eterna.
PRESIDENTE
Antigamente, meu caro, antes do Grande Surto Imobiliário, isso ainda era
possível. Hoje não. Temos de aproveitar os terrenos existentes.
TARCÍSIO
Ela deixou algum dinheiro e eu quero cumprir a vontade dela.
PRESIDENTE
Aceite o meu conselho. Guarde o seu dinheiro. Alugue uma gaveta por três
anos. É barato. Um terço de um salário-mínimo, talvez menos.
TARCÍSIO
Presidente: ela nunca morou em apartamento. Gostava da terra e sempre
quis em torno dela um... um anel, entende?, um espaço. Não vou metê-la
numa gaveta, num birô, não tenho nada com a alta-rotatividade de vocês.
Quero um lugar onde ela fique isolada e para sempre. Será possível que o
Brasil, tão grande, não tenha um lugar permanente para um morto?
PRESIDENTE
O Brasil, sim. Mas São Paulo, não. Somos quase vinte e cinco milhões, pelo
último censo. Não há mais lugar para esses caprichos. Em todo caso, como
o
Vice-Prefeito gosta de teatro, principalmente do teatro japonês, e
certamente conhecia sua mãe, quem sabe?... Vou encaminhar você a ele.
(Toca uma campainha.)

PERSONAGENS:
Figurantes do velório. Selene está ausente.
CENÁRIO:
o velório.
MÚSICA:
de dança, discreta.

(Nesta sequência, não há diálogos. Vozerio. A cena pode ter de quarenta a


sessenta segundos. As pessoas, totalmente descontraídas, conversam e
gesticulam, como num coquetel. Vemos quando aparecem dois garçons,
com salgadinhos e bebidas. Há a mesma mistura de gente grande e de
jovens.)

PERSONAGENS:
Tarcísio e Vice-Prefeito.
CENÁRIO:
Gabinete do Vice-Prefeito, ambiente oriental, com luminárias redondas de
papel etc. Sobre a mesa, em português e japonês, a placa VICE-PREFEITO.
VICE-PREFEITO
(Está de quimono, sentado diante de uma mesa baixa, à moda oriental.
Sobre a mesa, uma espada. Ele próprio é um japonês. A certa distância, uma
japonesa vestida a caráter toca um samissen. Não fala com sotaque
japonês.) O que há é a racionalização do uso do espaço, com o
aproveitamento do subsolo. Os tempos mudam. Antes, as pessoas eram
sepultadas nas igrejas. Os cemitérios a céu aberto ficavam apenas para os
indigentes, os escravos, os supliciados e os que morriam de varíola.
TARCÍSIO
(Também sentado no chão, diante dele.) O senhor sabe o que aconteceu com
o poeta Casimiro de Abreu? Foi enterrado num lugar chamado Barra de São
João. O cemitério ficava entre uma igrejinha e o mar. Mamãe contava essa
história e toda vez ela chorava. O mar foi subindo e acabou com os túmulos.
O coveiro guardava um crânio debaixo da cama. Quem quisesse ver o
crânio, pagava dois mil réis. Era o crânio de Casimiro de Abreu! (Pausa.)
Mesmo naquele tempo, dois mil réis não valiam grande coisa.
VICE-PREFEITO
Nós aqui não temos mar.
TARCÍSIO
Mamãe tinha horror à falta de respeito pelo corpo. Ela viveu o próprio
corpo. O corpo, para ela, era uma coisa que merecia honras. Ela dizia que o
corpo... era como o estandarte de batalhas perdidas e vencidas, e que não
podia ser jogado por aí. Consegue ou não consegue o terreno?
VICE-PREFEITO
(Pondera um pouco.) Em que campo você queria?
TARCÍSIO
No campo... no Cemitério da Consolação.
VICE-PREFEITO
Dispõe de quanto?
TARCÍSIO
(Abre a pequena maleta em que traz o dinheiro diante do Vice-Prefeito.) É
tudo que eu tenho.
VICE-PREFEITO
Nenhum cheque?
TARCÍSIO
Na minha conta, quase nada. E mamãe morreu de repente.
VICE-PREFEITO
Eu sinto o seu problema e gostaria muito de ajudá-lo. Mas quanto calcula
ter aí? Cem mil? Cento e cinquenta mil? Por esse preço, no máximo, eu
poderia conseguir-lhe um terreno na periferia. No Cemitério da Consolação,
impossível. Se esse é realmente o dinheiro que possui, conforme-se. Alugue
uma gaveta. Sai tão mais em conta!
TARCÍSIO
Não sabia que estava assim tão caro. Então... (com humor amargo) que
venha a gaveta. Vou alugar a gaveta.

PERSONAGENS:
Tarcísio e dois ladrões de moto.
CENÁRIO:
ruas de São Paulo. Viadutos. (Música forte, acompanhando a cena, também
sem palavras.)
(Tarcísio vai saindo da Prefeitura. Sai tão perturbado que a maleta se abre.
Algum dinheiro cai no chão. Ele se curva e apanha-o. Os dois malandros, a
certa distância, veem o que se passa. Tarcísio pega a moto. Eles também, e a
perseguição começa. Cena importante, mas decorativa, entregue à
habilidade do Diretor e do Cameraman. Do mesmo modo que a cena do
Parque compensa a grosseria das cenas anteriores, esta perseguição a céu
aberto traz certo oxigênio, certa impressão de aventura e dinamismo,
contrapondo-se aos diálogos em ambientes fechados. Não chegamos a
saber, na cena, se o roubo se efetivou. Isto vai ser esclarecido através de
Tarcísio, na cena seguinte.)

PERSONAGENS:
Tarcísio, Funcionário, Homem 2, Padre, Atriz Jovem e figurantes.
CENÁRIO:
o velório.
MÚSICA:
agora, tornou-se mais ruidosa e menos solene.

(Dois ou três casais até já dançam. Algumas pessoas olham o relógio e há


quem vá embora, pois está ficando um pouco tarde.)
TARCÍSIO
(Entra, machucado e sem a pequena mala. Não se espanta com o aspecto
descontraído do velório. Vai direto ao telefone e tenta ligar.) Alô... É da casa
da Regina? Posso falar com ela? Não apareceu? Mas telefonou? Sim... Aqui
fala o Tarcísio. Minha mãe morreu hoje. Diga a ela. Por favor.
FUNCIONÁRIO
(Falando por trás de Tarcísio, que acaba de desligar o telefone.) Já sabe
onde ela será enterrada?
TARCÍSIO
Não. Não tenho ainda um túmulo. Fui assaltado. Roubaram todo o meu
dinheiro.
FUNCIONÁRIO
Mas já começa a ficar tarde. Não posso esperar muito tempo.
TARCÍSIO
Tem que esperar. Não resolvi ainda o caso.
FUNCIONÁRIO
Você não está entendendo. Existem, para isto, leis. Daqui a pouco, chega o
carro. Se a família não tiver ainda um túmulo, nós próprios escolheremos
onde enterrá-la.
TARCÍSIO
Que quer dizer isso?
FUNCIONÁRIO
Quer dizer o que estou dizendo.
TARCÍSIO
Que vão enterrá-la numa vala comum? Como indigente?
FUNCIONÁRIO
Mais tarde você poderá removê-la.
TARCÍSIO
Não removo nada. E ela não sai daqui enquanto eu não houver decidido.
FUNCIONÁRIO
Faz-se o que se pode meu caro. Se se pode dar à pessoa falecida um grande
funeral, um belo túmulo, ótimo. Se não, paciência. Quantos não são
enterrados como indigentes? E não estão menos mortos por isso. Nem
menos enterrados.
TARCÍSIO
Quer saber de uma coisa? Enterros para indigentes não deviam existir.
Indigentes não deviam existir. A fome é para ser honrada com uma comida
que preste. O homem é para ser honrado com uma comida que preste. O
corpo é para ser honrado, vivo ou morto. Eu ainda não estou vencido. E não
é você nem ninguém que vai decidir onde será enterrada minha mãe.
(Movimento na sala. Chegou alguém de certa importância.)
VOZ DA ATRIZ JOVEM
Chegou o padre. Veio encomendar o corpo. (Entra um sujeito de roupão e
sandálias japonesas. Fala com arrastado sotaque americano.)
PADRE
Sorry, sorry... Desculpem. Sou chegando da Y.M.C.A. da A.C.M. — Where
is the body? (Vai pondo a estola por cima do roupão e caminhando para o
esquife.)
TARCÍSIO
(Há dois jovens a seu lado. Ele acena, chamando-os para outro cômodo da
casa.)
ATRIZ JOVEM
(A Tarcísio.) Querido, você é o único parente. Não vai assistir?
TARCÍSIO
Não sei latim nem inglês. (Sai.) (Vê-se, de passagem, o padre americano
entre os abajures, rodeado por outras pessoas. Umas indiferentes e outras
chorando.)

PERSONAGENS:
Tarcísio, Jovem 1 e Jovem 2.
CENÁRIO:
o quarto onde morreu Selene Raquel.
TARCÍSIO
Não sei o que faço. Os dois caras me levaram tudo.
JOVEM 1
Sabe, Tarcísio, essa história do jazigo perpétuo me lembra essas atrizes que
querem um teatro com o nome delas. Estou sendo franco.
JOVEM 2
Isso é julgamento. Coisa inoperante. Não resolve nada. O negócio é
transformar o problema em ação. Vamos resumir. Ela queria um túmulo
para sempre. Não era possível comprar um em vida.
TARCÍSIO
Não. O Serviço Funerário não permite.
JOVEM 1
Por quê?
TARCÍSIO
Pra evitar que o pessoal comece a especular. Como acontece até no interior
de São Paulo.
JOVEM 2
E quem escolheu o Cemitério da Consolação?
TARCÍSIO
Fui eu. Mas depois eu me lembrei: muitas vezes ela havia falado nesse
cemitério.
JOVEM 2
Mesmo em outros, o terreno está custando uma nota, não é isto?
TARCÍSIO
É. Um absurdo. E não é só aqui em São Paulo. No Recife, em Belo
Horizonte, é muito mais caro. No Rio, então, nem se fala.
JOVEM 2
Quer dizer que você tinha decidido alugar uma gaveta. Aí vieram os gajos e
roubaram a maleta com o dinheiro. A velha tinha depósito no banco, mas
você não pode passar cheque. Está na mão.
TARCÍSIO
Isto.
JOVEM 1
Esse troço todo aí já está pago? Canapés e tudo?
TARCÍSIO
Está. O que falta é pagar o aluguel da gaveta.
JOVEM 2
Bem. A solução velha é fazer uma coleta. A solução nova é muito diferente.
TARCÍSIO
Qual é?
MÚSICA:
acorde inquietante.

(A câmara se fecha sobre o rosto do Jovem 2, que tem olhos de iluminado.)

PERSONAGENS:
Padre, Milionário e figurantes.
CENÁRIO:
portão da casa de Selene Raquel.
(O padre vai saindo, acenando para algumas pessoas que o levam até o
portão. Há um táxi esperando-o, um Volks. Ele toma o táxi e, atrás, encosta,
se possível, um Rolls-Royce. De qualquer modo, deve ser um carro de luxo,
com motorista. Dele, desce um cavalheiro já idoso, mas de peruca,
aparentando um ar de juventude, muito bem vestido, de luvas e bengala. O
chofer abre a porta e ele desce do carro. Cumprimenta com a cabeça as
pessoas que foram levar o padre até o táxi. A câmara acompanha-o através
do velório, até o momento em que ele chega junto do ataúde. Este pequeno
papel deve ser preparado com carinho. É uma fase do passado luminoso e
romântico de Selene Raquel que vem à tona. Um velho amante, no declínio
da vida, vem contemplar pela última vez o objeto de uma forte e antiga
paixão.)

PERSONAGENS:
Milionário, Tarcísio, Jovem 1, Jovem 2, Selene e figurantes.
CENÁRIO:
quarto onde morreu Selene Raquel.
TARCÍSIO
Eu acho que topo a ideia. Quando eu era criança, ela gostava de me levar ao
Parque. A gente se deitava na grama, junto do obelisco. E agora... (Batem à
porta. Tarcísio vai abrir.)
MILIONÁRIO
(Entra seguido de outras pessoas e estende a mão a Tarcísio, olhando-o com
intensidade. Talvez esse homem seja o pai de Tarcísio, coisa que não deve e
nem pode ser esclarecida. Depois de estender a mão, ele ainda o abraça.)
Você está com um problema.
TARCÍSIO
Sim. Quer dizer... Estava.
MILIONÁRIO
(Tirando do bolso um talão de cheques.) A vontade da minha querida e
inesquecível amiga Selene Raquel será cumprida. De quanto precisa?
(Breve momento de hesitação. Tarcísio pensa se deve aceitar a oferta
inesperada ou cumprir o que acabou de combinar com os seus amigos. De
repente, vê-se que a sua expressão muda. A câmara, então, mostra-nos,
entre as outras pessoas, um pouco afastado, o rosto de Selene Raquel, que
acena negativamente. Está de cabelos curtos e a câmara deve deter-se um
pouco sobre ela, para que o público a reconheça bem.)
TARCÍSIO
Agradeço muito, mas já decidimos outra coisa. Vamos enterrá-la no Parque
Ibirapuera. (Novamente o rosto de Selene Raquel, que sorri, aprovando e
põe o elmo na cabeça. Ela agora é Joana d’Arc.)
MÚSICA:
acorde grave, cortando a cena. Esses acordes vão acompanhar o enterro,
logo misturando-se com a música de um realejo.

PERSONAGENS:
os mesmos e dezenas de figurantes.
CENÁRIO:
externos, a caminho do Ibirapuera. O Parque Ibirapuera. (Este é o grande
momento, para o qual caminha a história. Selene Raquel, a morta, abre o
desfile, num cavalo branco, vestida como a donzela de Orléans e tendo à
mão um estandarte vermelho. A seguir, vai o ataúde, sustentado por Tarcísio
e amigos. Tarcísio leva o urso de brinquedo consigo. As outras pessoas
seguem atrás, inclusive alguém que conduz um carneiro e que vai perto do
caixão. Aos acompanhantes do início, associam-se ambulantes.
Principalmente ambulantes que vendem coisas volumosas: um vendedor de
algodão doce; um vendedor de balões: um vendedor de cestas de vime; um
vendedor de sacos de espuma de borracha picada, para travesseiros; um
vendedor de corrupios; um amolador de tesouras e o homem do periquito
com o seu realejo (este, aliás, deve ser um dos primeiros a associar-se ao
cortejo, que passará a ser acompanhado pela sua música, associada aos
acordes graves e majestosos a que já me referi); homens que estão
trabalhando na rua, de capacete, fazendo escavações, também interrompem
o trabalho e seguem, com os seus instrumentos.)

(Mas a sequência não se limita, aqui, aos acompanhantes do préstito,


Introduz flagrantes surrealistas e absolutamente necessários, pelas suas
sugestões simbólicas e também para dar maior grandiosidade ao préstito:
vemos crianças e tigres olhando por trás de vidraças fechadas; leões
andando por cima de telhados. Trata-se de uma sequência feita de cortes,
onde tomadas do grupo se alternam com closes, principalmente de Selene
[sem elmo] no seu cavalo branco e do filho. E toda a eficácia deste finale
vai depender da montagem. Aqui vão apenas os elementos de composição.
Não será necessário acrescentar que alguns amigos de Tarcísio seguem nas
suas motos. Há assim, na cena, uma mistura do Mecânico e da Natureza. O
cortejo chega a um gramado do Parque Ibirapuera. O ataúde é depositado
no chão. Tarcísio toma a pá de um dos trabalhadores e enterra-a no solo.
Fusão com a cena seguinte.)

PERSONAGENS:
Tarcísio, Selene e figurantes.
CENÁRIO:
o túmulo recém-coberto, num gramado do Ibirapuera.
(As pessoas vão se afastando e ficam apenas Tarcísio e Selene Raquel,
afastados, um de cada lado do túmulo. Selene, agora, está com um manto
branco, leve. E descalça. A música cessou. Os dois ficam ali alguns
segundos, olhando o túmulo. Ouve-se o barulho do trânsito e algum rugido
longínquo de leões. Tarcísio joga o urso em cima do túmulo.)
(Close de Selene: é o seu último olhar para o filho.)
SELENE
Ciao, filho.
TARCÍSIO
Ciao, mamãe.
SELENE
Ciao, Selene Raquel. Ciao, corpo de Selene Raquel. (Afasta-se. Para uma
charrete. Ela toma a charrete. Vai embora para sempre.)

PERSONAGENS:
Tarcísio e Regina.
CENÁRIO:
gramado no Ibirapuera, ao pôr-do-sol.
TARCÍSIO
(Está sentado. Vemo-lo de perfil, o Sol se pondo por trás dele. De repente,
ele levanta o rosto. Entra no quadro Regina, que lhe estende a mão e senta-
se a seu lado, abraçando-o. Ele pronuncia então, espaçando-as, as seguintes
frases finais, que apontam para diferentes direções e, na verdade, não
pedem resposta:) O Sol está se pondo... (Silêncio.) Procurei tanto você...
(Silêncio.) Sabe? Hoje terminou, de verdade, a minha infância.
MÚSICA:
Faixa final.
REFERÊNCIAS

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2014.

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______. “Uma ilha no espaço aberta à visitação”. Palestra apresentada no


encontro realizado em homenagem a Osman Lins, em memória à passagem
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MARCHA Fúnebre. Caso Especial. Direção de Sérgio Britto. Rio de


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STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à
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TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo:


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WOOD, James. Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
NOTAS

Osman Lins: um construtor do audiovisual


1 Uma experiência similar de alcance massificado, embora mais localizada,
de uma notícia inverossímil já havia sido testada no âmbito do rádio, em 30
de outubro de 1938, no programa da CBS (Columbia Broadcasting System),
na transmissão simulada de uma “edição extraordinária” com o aviso sobre
uma suposta invasão de marcianos, coordenada pelo jovem escritor e diretor
Orson Welles, desconhecido à época, que teria adaptado o livro de H. G.
Wells, A guerra dos mundos, para uma radionovela. A “invasão” durou
apenas uma hora — com todas as características do radiojornalismo às
quais os ouvintes estavam acostumados —, mas marcou definitivamente a
história do rádio, ajudando a CBS a bater a NBC, emissora concorrente, e
levando pânico a incríveis dois milhões de pessoas em diversas cidades
norte-americanas, que acreditaram piamente na veracidade da transmissão.

2 Em 1971, o governo baixou uma lei determinando o corte da concessão


das emissoras que não transmitiam uma porcentagem mínima de programas
em cores. Foi um período de transição, de mudanças e inovações nas
televisões brasileiras. Com a Copa do Mundo de 1974, a venda de
receptores coloridos coloca definitivamente o Brasil no mundo da TV
colorida. Com o Plano Real, em 1994, ocorreu a explosão das vendas de
aparelhos de TV, agora com o controle remoto. O consumo televisivo das
classes mais baixas foi ampliado. Só em 1996, foram vendidos oito milhões
de televisores no Brasil.

Nota da primeira edição


3 Em seu ensaio Guerra sem testemunhas (1969), Osman Lins reúne uma
série de reflexões e confissões sobre o ofício de escrever, que se amplia até
abranger o problema da situação do escritor no mundo contemporâneo, num
contexto geral que proclamava a morte do romance e numa realidade local
dominada pela repressão política à criação e ao pensamento. Segundo Ana
Luiza Andrade, “[...] a ensaística de Lins distingue-se por sua preocupação
cultural. Guerra expressa a missão cultural do escritor no mundo, descrita
em termos de um combate sem tréguas e sem possibilidades de
reconhecimento” (ANDRADE, 1987, p. 54).

A ilha no espaço
4 O isolamento do artista que Lins enfatiza em Guerra sem testemunhas
(1969) é convertido numa provável alegoria no roteiro de A ilha no espaço.
O autor nos leva à seguinte reflexão: sozinho num edifício abandonado por
todos, seria o escritor um elemento de resistência, tal como o bancário
Arantes, que apesar do enfrentamento da indiferença de todos acaba
sucumbindo ao medo da morte? Refém de um sistema opressor, até que
ponto poderia um revolucionário resistir e combater o silenciamento a que
se vê sujeito? Haveria alguma saída para o artista “num mundo estagnado”
(título de um ensaio escrito por Osman Lins em sua juventude)? Certamente
esta seria uma das críticas subliminares elaboradas pelo autor, entre tantas
outras prováveis leituras desse texto. Graças ao tratamento bem-humorado
do tema, que em alguns momentos beira intencionalmente o ridículo, é
provável que o autor tenha conseguido a aprovação do projeto pela
emissora. De qualquer forma, A ilha no espaço já laborava uma quebra de
paradigmas, com uma temática inovadora e aparentemente improvável de
angariar alguma projeção nacional naquela época.

5 Em relação ao roteiro em si, até hoje não sabemos se o diretor, Cassiano


Gabus Mendes, chegou a adaptar o texto original ou se apenas fez
anotações de planos de filmagem. No arquivo da Rede Globo não consta
cópia do roteiro e nem informações a respeito. Osman Lins comenta, no
prefácio à publicação da obra, que o capítulo 12, embora a seu contragosto,
teria norteado a adaptação para a TV. O fato é que, modificada por Cassiano
ou não, a narrativa precisou ser adaptada do formato “conto” para o formato
“roteiro”, e é possível que o próprio Osman Lins tenha realizado esse
trabalho, preferindo publicar a versão “conto”.
Além de usar o espaço da televisão para fazer críticas e implantar
mensagens subliminares, Osman Lins também experimentou a eficácia da
adaptação de técnicas narrativas que já vinha usando na sua prática com o
texto impresso. No início de seu conto — conduzido por um narrador
heterodiegético, que articula 12 personagens (entre eles o edifício) em 12
capítulos —, ele emprega um artifício muito usado nos roteiros de cinema,
o flashforward. Ardil comum aos roteiristas, a técnica costuma ser utilizada
para prender a atenção do espectador. Ao jogar a cena do final do filme para
o início da obra, o público acaba assistindo à história como um longo
flashback — o flashback interrompe a linearidade da narrativa para mostrar
uma cena que aconteceu no passado, ao contrário do flashforward, que
funciona como uma antecipação de um evento ainda não acontecido na
temporalidade da história. A abertura do conto não chega a entregar os
mistérios que rondam o edifício, e ainda funciona como um elo do primeiro
com o último capítulo. Exímio praticante desses jogos temporais, o autor
consegue antecipar o final da história sem entregar o desfecho, mantendo
assim o elemento “suspense” tão importante na narrativa policial.

6 Tanto no conto como no episódio, observamos um elemento que funciona


em ambas as plataformas: a representação metafórica. Por exemplo: numa
reunião de condomínio convocada pelos moradores do edifício, assustados
com as mortes sequenciadas, um deles, descrito, ironicamente, pela alcunha
de “homem com aspecto bovino”, faz uma sugestão impensável: realizar
uma autópsia na “próxima vítima” em busca de resíduos atômicos.
Completamente alheio à realidade, esse indivíduo é um protótipo do
consumidor alienado dos filmes enlatados — em geral de pseudoficção
científica — fartamente difundidos pela programação da época. Era como
se o povo, aficcionado pelos filmes de entretenimento e tendo sua
percepção da verdade conduzida pelo jornalismo diário produzido pelos
meios de comunicação de massa, passasse a agir como “gado” seguindo
para o abate, daí o “aspecto bovino” do morador, que sequer raciocina que
“a próxima vítima” poderia ser ele mesmo. Logo em seguida ao
pronunciamento desse personagem, outro homem surge do “extremo da
garagem”: “um tipo desenvolto e sanguíneo, de cabelo vermelho e dentes de
carnívoro, saiu da sombra e caminhou até ele, com a intenção, talvez, de
esbofeteá-lo” (LINS, 1978, p.18).

Quem era Shirley Temple?


7 A alusão à famosa atriz mirim hollywoodiana é um dos pontos que o autor
sabiamente aborda, pois com a popularização e a acessibilidade da classe
média brasileira aos aparelhos de televisão, a indústria de entretenimento
norte-americana, acoplada à propaganda disseminadora dos novos hábitos
de consumo, passou a invadir massivamente os lares e a mudar
efetivamente os comportamentos das famílias. O culto à celebridade e às
estrelas midiáticas, já formalizado no cinema, adquire paulatinamente uma
versão mais popular com a veiculação dos filmes na chamada “sessão da
tarde”. O público infantojuvenil torna-se o alvo preferido desse sistema, que
se concentra na oferta de produtos de distração acessíveis — os filmes, os
desenhos e as novelas —, que não só promovem o lazer, mas contribuem
para o controle das crianças (pela “babá eletrônica”), além de cumprir o
papel de anunciar os produtos de consumo para o mercado.

As figuras célebres dos filmes, estampadas constantemente nos meios de


comunicação, e depois nas propagandas e selos dos produtos com elas
identificados, passam a exercer um papel de “formadoras de opinião”. De
certa maneira, passam a ocupar um lugar antes reservado aos eruditos,
estudiosos e escritores. Com a massificação da informação pela TV, as
celebridades disputam, com vantagem — ao lado dos jornalistas, críticos e
intelectuais —o direito à última palavra sobre o que o público deve pensar,
como deve agir e o que deve sentir. A banalização da cultura pelos
interesses mercadológicos torna, assim, a população cada vez mais refém
dos critérios e dos padrões de gosto difundidos pela mídia.
8 Nesse percurso “ficção/ teatro/ ensaios”, ainda faltava ao autor de Vitória
de Santo Antão experimentar a linguagem voltada para os meios de
comunicação de massa. O que nos parece é que Osman Lins, fazendo uso
do seu pensamento crítico, uniu a sua habilidade de ficcionista com as
técnicas dramatúrgicas e partiu para o mundo dos roteiros de TV. Ainda
muito conectado com a linguagem teatral, Lins inicia o roteiro de Quem era
Shirley Temple? com a seguinte frase: “A peça repousa num poderoso
elemento visual: a excessiva altura de Shirley”. O que também fica logo
perceptível é a presença de um primeiro elemento cênico: a altura da
protagonista. A abertura do episódio, sugestionada pelo roteirista, mostra
um mix de fotografias e letterings (letreiro que aparece na cena) formando
uma ordem cronológica de momentos vividos por Shirley Temple. A
sequência dá destaque à sua altura:

o batizado: é tão comprida que os pés são sustentados por outra pessoa, ao
lado da madrinha; festa infantil de aniversário: uma criança alta, soprando
cinco enormes velas ...; cena na praia: ela alta, com um balde, ao lado de
um mulatinho ...; grupo da formatura no colégio: ela já adolescente e
sempre mais alta do que todos ...; time de basquete, onde ela — entre os
vinte e vinte e um anos — ainda é a maior (LINS, p. 1978, p. 38).

Essa própria projeção congruente de imagem e texto, como na cena acima, é


uma característica do teatro épico. Ela significa, segundo Piscator, a
apresentação do contexto em que vai se desenrolar o processo.

Um dos recursos de epicização de Piscator foi o filme. O cinema é narrativa


imagética, forma artística épica autônoma, incluí-lo é lançar a cena
dramática para relações extra-palco, aproximando-o da Épica. A projeção
de um filme feita por ele em Opa! Nós vivemos (Hoppla, wir leben, 1927),
de Toller, foi decisiva para o direcionamento do drama político-social para o
épico, já que a ação não pode mais sozinha fundamentar a totalidade da
obra. (DIAS, 2011, p. 127)

Outro elemento teatral encontrado no roteiro, agora ligado à estrutura, é a


questão da divisão. No teatro, a separação dos atos é pontuada pela inclusão
de intervalos, no roteiro para TV ou cinema a divisão é estabelecida pelo
que chamamos de ponto de virada ou plot point ou golpe teatral, como
preferem alguns roteiristas. O “ponto de virada” é um artefato que muda o
rumo da trama, faz a ação avançar. No roteiro, Osman faz uso dos
intervalos. O primeiro acontece logo depois que Shirley conta ao seu
namorado Albano que havia falado sobre ele ao pai.

INTERVALO
PERSONAGENS: Pai e Mãe. Esta, sentada na rede, balança-se de leve e
faz tricô. O Pai está na sua cadeira, junto ao birô.
CENÁRIO: Escritório do Pai.
Pai: De repente, a Shirley parece outra. Mais acessível, menos tensa. Você
não acha?
Mãe: É mesmo. Parece outra. (LINS, 1978, p. 46)
A primeira fala já sugere que houve realmente uma virada no enredo. Se a
personagem parece outra é porque algo aconteceu — nesse caso, ela estava
em paz porque havia contado sobre o namorado ao pai — e,
consequentemente, a trama caminha com novos artefatos.
Osman Lins usou fartamente, neste episódio, uma alusão a um espetáculo
também muito presente em sua obra: o circo, gênero de teatro popular. Um
circo (do latim circus, “circunferência”) é comumente uma companhia em
coletivo que reúne artistas de diferentes especialidades, como malabaristas,
palhaços, acrobatas, contorcionistas, equilibristas e ilusionistas, entre
outros. A palavra também descreve o tipo de apresentação feita por esses
artistas, normalmente uma série de atos coreografados com fundo musical.
Um circo é organizado em uma arena — picadeiro circular, com assentos
em seu entorno, enquanto os circos itinerantes costumam se apresentar sob
uma grande tenda ou lona. A história do circo no Brasil começou no Século
XIX, com famílias e companhias vindas da Europa, onde se agruparam em
guetos e manifestavam sentimentos diversos através de interpretações
teatrais onde não demonstravam apenas interesses individuais, e sim,
despertavam consciência mútua.

9 Na peça osmaniana — termo por ele mesmo usado para identificar o texto
—, a história se concentra num aspecto físico da personagem (interpretada
pela atriz Dina Sfat): sua altura exagerada, que estabelece um contraponto
com o tamanho diminuto da famosa atriz mirim, resultando num efeito
grotesco dentro da narrativa. Para o crítico teatral Anatol Rosenfeld, um dos
elementos da técnica de distanciamento do ilusionismo do teatro burguês e
comercial, proposta por Bertold Brecht, reside na produção de efeitos
grotescos, que podem ter várias gradações: “A combinação entre o
elemento cômico e o didático resulta em sátira. Entre os recursos satíricos
usados encontra-se também o do grotesco, geralmente de cunho mais
burlesco do que tétrico ou fantástico. A própria essência do grotesco é
tornar estranho, pela associação do incoerente, pela conjugação do díspar,
pela fusão do que não se casa — pelo casual encontro surrealista da famosa
máquina de costura com o guarda-chuva na mesa de necropsia
(Lautréamont). Brecht se aproxima de outras correntes atuais, como o
Teatro de Vanguarda ou a obra de Kafka, porém desfamiliariza o mundo
para explicar e orientar, enquanto as demais correntes tendem a exprimir,
através do grotesco, a desorientação em face de uma realidade tornada
estranha e imperscrutável” (ROSENFELD, 1985, p. 158).

10 Uma das cenas deste roteiro parece conter indicações extraliterárias


muito claras para a produção de um efeito revelador do papel que a
metáfora da altura poderia ter nesta obra. Trata-se da cena em que Shirley,
sozinha em seu quarto, tenta tocar o violoncelo, mas vai-se irritando com o
barulho de seus dois irmãos pequenos pela casa. Osman Lins, tão senhor da
palavra em todos os momentos, dá, aqui, instruções explícitas para a
produção estritamente imagética e sonora desta mensagem, mostrando que
não era de todo indiferente, nem tampouco incapaz, de praticar o teatro — e
quiçá a televisão — com os recursos próprios desses meios.

Neste curto e expressivo trecho temos um resumo do que dissemos: em


poucas palavras destinadas a uma leitura ou transposição intermidiática da
ideia, o autor apresenta um roteiro de como criar uma cena sintética que
elucide todo o problema da história: uma moça “alta” — com elevados
padrões éticos e estéticos, talvez; distintos dos padrões preponderantes em
seu meio — sofre com as agressões do entorno. Os ruídos das discussões,
das brigas e da vida cotidiana, tão distantes da melodia extraída de seu
instrumento incomum, igualmente desmesurado para o ambiente,
transformam-se numa interpretação jazzística, tensa, aguda, que converge
para uma imagem reveladora: a do Pai — figuração da ordem e do sistema,
talvez até mesmo do país imerso no regime militar — com dois objetos nas
mãos: a planta, que o liga à terra, à agricultura, ao trabalho braçal, a uma
certa boçalidade; e o dicionário, que o liga ao estranho, ambicionado e
exótico mundo das palavras, ainda desconhecido.

11 Esses fatos — todos relacionados à altura — vão levando Shirley à


tomada de decisões; algumas infantis, outras radicais, e uma bem pontual
para o desenrolar do roteiro: o abandono do próprio lar. Com o objetivo de
ter uma vida nova, Shirley segue para São Paulo, mas lá acaba se deparando
com situações similares. O autor divide, assim, a narrativa em duas fases. A
primeira se inicia numa partida de basquete, na qual Shirley, apesar de
aplaudida e aclamada pelo ótimo desempenho, fica irritada com o apelido
gritado pela torcida: - “Cegonha!”, e acaba desistindo do esporte. Logo em
seguida, sofre a sua primeira decepção amorosa, sendo enganada por
Albano, que rouba seu dinheiro, e decide deixar a casa dos pais e a
cidadezinha onde se sente perseguida. A segunda fase mostra a protagonista
em uma nova situação de vida, morando em São Paulo, onde tenta encontrar
emprego. Numa espécie de fuga — tanto dos pais quanto da sociedade
repressora como um todo —, ela passa a morar sozinha, mas não consegue
se libertar dos preconceitos contra a sua altura. A fase se encerra quando a
personagem — cheia de decepções e amarguras — atinge a maturidade e
descobre seu caminho na música, com a escolha de um instrumento tão
grande quanto ela, um violoncelo.

12 Um recurso utilizado nestes roteiros de Lins é a ironia, ironia dramática


woodiana, que inclusive já fora usada em A ilha no espaço. Esse aspecto é
identificado no texto quando Shirley comenta sobre a tese de doutorado de
que o pai tanto se orgulhava e que usava (ainda na primeira fase da
narrativa) para se exaurir dos problemas e justificar certas atitudes da
jovem, uma delas, a de que a filha de um acadêmico não poderia se juntar a
qualquer um, principalmente a um rapaz que usa o cabelo grande, se
referindo a Albano.
13 Na segunda fase, o roteiro nos apresenta um personagem inonimado e
não visível, mas que consegue, por meio da persuasão, prender a atenção de
Shirley. Esse momento acontece quando nossa protagonista está indo
resolver algumas coisas na rua.

14 Depois que Shirley (aquela figura que está sempre à espera de uma
crítica, com medo de a qualquer momento sofrer algum tipo de preconceito)
recebe o elogio, de repente escuta uma frase amável, e ainda relacionando a
sua voz com a música; ela fica encantada, mesmo nunca tendo visto a
pessoa que está do outro lado da linha. Finalmente alguém parece se
interessar por ela. Só que o medo de ser rejeitada ainda continua, Shirley
passou a adorar aquelas conversas, mas não tem coragem de se apresentar
pessoalmente a ele. Isso acontece muito atualmente, as pessoas se escondem
por trás das redes sociais, por vezes usam fotos que não são as delas, toda
uma farsa psicológica por conta do medo da rejeição. No roteiro
osmaniano, a tecnologia era a anterior à internet; se tivesse vivo seria capaz
de o autor usar a simbologia do mundo virtual em seus textos,
principalmente para enredar críticas, e nos fazer raciocinar sobre as
consequências da era on-line; os emoticons seriam as máscaras do teatro
épico.

Marcha fúnebre
15 Marcha fúnebre foi exibido em 1977, com direção de Sérgio Britto. No
elenco principal estavam Tereza Raquel, no papel da atriz Selene Raquel, e
Diogo Vilela, interpretando o filho dela, Tarcísio. O enredo gira em torno
desse casal. Quando jovem, Selene foi uma atriz de teatro muito conhecida.
Agora, na meia idade e longe dos palcos, ela vive de nostalgia. Sua grande
preocupação é com a morte. A artista deseja ser enterrada em um jazigo
perpétuo, onde será eternamente lembrada. Seu filho é quem deve
providenciar a realização do sonho, só que ele se defronta com a cidade de
São Paulo em plena crise para enterrar os seus mortos, não há mais lugar
nos cemitérios; só existem duas opções: cremação ou rodízio de corpos. Ao
contrário das demais, esta obra ingressa francamente no ambiente
fantástico, pois o espírito de Selene Raquel fica vagando, aparecendo e
confabulando com o filho até que ele resolva a situação do enterro. Para
completar, Tarcísio ainda vive sob a pressão da namorada, que deseja fugir
com ele.

No site do arquivo Globo (disponível em:


https://teledramaturgiaglobo.wordpress.com/2015/07/13/globo-50-anos-
caso-especial/) está a informação de que o programa Caso Especial trazia
uma história completa por episódio, o que passa a ser uma modernização do
formato teleteatro. Doc Comparato, também autor e adaptador de alguns
casos, entre eles: Os amores de Castro Alves (1981), O inspetor geral
(1983), A pata do macaco (1983), classifica o programa como “telefilme”.
Essa estrutura costuma ter de 25 minutos a 1h30 de duração. Esse formato
difere, por exemplo, da minissérie, que não tem uma resolução completa
por episódio: a história vai se desenvolvendo numa sequência de
acontecimentos em dias específicos. Comparato é um entusiasta do formato
“telefilme”:

No Brasil tivemos exemplos de telefilmes na década de 1980 com os Casos


Especiais de 90 minutos, mas infelizmente esse formato foi abandonado.
Atualmente existem poucos formatos de audiovisuais exibidos nos canais
brasileiros, o que denota certa negatividade na curva de diversidade formal
criativa. (COMPARATO, 2009, p. 117)

16 No roteiro osmaniano detectamos que os assuntos abordados reforçam as


opiniões e traduzem o gosto pessoal do autor. Osman Lins era um
humanista e um intervencionista. Suas críticas à sociedade refletem uma
compreensão da escrita como um instrumento não apenas ligado à distração
e ao lazer. A obra de arte narrativa teria, na sua ótica, uma função
formadora e questionadora, voltada para a produção de espíritos críticos e
livre-pensadores. Que esse aspecto tenha se consolidado no gênero
romanesco já é sabido. Tentar levar essa função para o meio televisivo,
porém, marcado pelo consumismo mercadológico, pelo financiamento
propagandístico e pela influência dos interesses dos anunciantes nos
conteúdos da programação, seria um desafio. O imenso alcance das massas
pelo meio televisivo parecia a Osman Lins uma grande oportunidade, com
um importante efeito pedagógico e com uma capacidade formadora de
opinião muito superior ao efeito da leitura de livros, sobretudo num país de
analfabetos. Talvez essa questão tenha sido decisiva na sua guinada
profissional como “roteirista”. Daí os temas “engajados” de seus roteiros.
Em Quem era Shirley Temple?, por exemplo, o autor introduz a questão do
preconceito num recorte que hoje consideraríamos próximo ao bullying. Em
Marcha fúnebre, tratou da temática atualíssima do corpo, e por esse viés
tentou elaborar uma crítica velada aos procedimentos da tortura, do
assassinato e da censura vigentes no sistema fascista instaurado no país pela
ditadura militar. Em suas pesquisas elaboradas para a constituição do
roteiro, comenta:
Entrevistei, antes de escrever o texto, o diretor do Serviço Funerário do
Município de São Paulo; colhi, em arquivos de jornais, bom material (ótima
pista para a localização desse material foi-me fornecida pela revista
publicada pelo próprio Serviço Funerário); interessante subsídio
proporcionaram-me também os estudos de Maria Amélia Salgado Loureiro.
Assim, não obstante certo caráter fantástico e o fato de passar-se no futuro,
em 1990, Marcha fúnebre, sendo à sua maneira um poema sobre a glória do
corpo, tão vilipendiado em nossos dias, não só pelos torturadores, como
pela indústria do erotismo, chega quase a ser uma reportagem dramatizada
sobre o problema dos cemitérios. (LINS, 1978, p. 7)

17 Em Marcha fúnebre, os figurinos dos antigos personagens interpretados


por Selene Raquel explicam a sua paixão pelo teatro e o desejo de ser
lembrada pela eternidade, mostrando que o artista merece aplausos e
homenagens póstumas; o elemento de ligação está no cálice (cena da
morte), logo após ela tomar o falso veneno ocorre o seu desencarne, ou seja,
o objeto faz a ponte entre os mundos dos vivos e dos mortos. Outro
componente fortíssimo e que nem chega a aparecer em cena, pois é apenas
citado, é o jazigo; o objeto labora como conclusão, pois no momento em
que o corpo é enterrado, a alma de Selene se tranquiliza e a sua missão se
dá por encerrada. Existe um outro componente que acaba exercendo as
funções de ligação e conclusão, é o ursinho de pelúcia de Tarcísio. Ele é
citado por Regina, quando ela ainda está tentando convencer o namorado a
fugir:

Regina — Eu quero é fugir com você para o mundo, Tarcísio. Você precisa
nascer. Até quando quer ficar assim? Achei incrível quando estive na sua
casa. O seu quarto tem até urso de pelúcia!
Tarcísio — Você não vai supor que eu brinco com o urso.
Regina — Mas o urso está lá. Você tem que pegar aquele urso e jogá-lo pela
janela. Vamos embora comigo. Seja para onde for.
(LINS, 1978, p. 97)

Tarcísio só consegue se desprender do ursinho quando a mãe é enterrada. É


como se o objeto representasse o elo entre mãe e filho, com a persistente
infantilização do rapaz, e em seguida o ponto final dessa relação. Tanto que
ele vai aparecer numa das cenas finais: “Tarcísio joga o urso em cima do
túmulo.” (LINS, 1978, p. 125), numa simbólica, porém flagrante libertação
do poder materno (e midiático, talvez?) que o infantilizava, obrigando-o a
reviver e a reverenciar a celebridade até ao ponto de prejudicar a percepção
de sua história pessoal e a tomada de decisões importantes em sua vida real.
O componente dramático é uma das ferramentas solicitadas pela fórmula da
Indústria Cultural, e Osman segue à risca essa estrutura. Outro
procedimento é que as histórias precisam ter detalhadamente um início,
meio e fim. Na literatura podemos inverter essa ordem e até deixar a
história no vácuo, sem um final amarrado, mas na imagética massiva não.
Osman cria um drama básico para os três episódios, ele apresenta o
problema, desenvolve a ação e em seguida soluciona o problema.
Outro elemento necessário e que o vitoriense não deixa de usar é o “ponto
de identificação”, é a arte congruente entre o público e o enredo. Marcha
fúnebre sugere que os restos mortais dos humanos — assim como os seus
infinitos dejetos —, talvez não encontrem mais lugar num mundo
continuamente dilapidado pela infinita voracidade do sistema. O público
captura essa mensagem básica — que antecipa o discurso ecologicamente
correto da atualidade — identificando-se com a sua verdade: “falta vaga nos
cemitérios”. Isso pressupõe a ideia de superpopulação nos meios urbanos, e
também de aumento da mortalidade (por causas que não são explicitadas,
mas apenas sugeridas).
A partir daí, o autor aposta na sugestão de outras camadas interpretativas,
nas alusões metafóricas que poderiam advir desta conclusão mais
superficial, adensando criticamente as possibilidades de significados da
trama. O vilipêndio do corpo, que acontece tanto nos ocultos porões da
tortura como nos escancarados estandartes do mercado; a insistente
demanda da atriz que se descobre mero instrumento do processo, relegada
ao esquecimento post-mortem e à tomada de consciência da irrelevância de
sua atuação na tela da TV, quando comparada à sua missão nos palcos do
teatro, aparecem de maneira subliminar. Esses questionamentos são os
pontos de identificação entre o público e a história, eles podem tanto nos
emocionar como nos levar a reflexões e debates. É por meio da personagem
que esse ponto de identificação pode ser concretizado:

Podemos dizer que a personagem gera conflitos, exteriores ou interiores, de


acordo com suas necessidades ou seu caráter, e novos conflitos, por sua vez,
dão lugar a outros. O dramaturgo até certo ponto não se coloca na posição
de resolver conflitos e sim de expor, acrescentar, complicar, questionar e em
última instância deflagrar algum tipo de solução. (COMPARATO, 2009, p.
100)

18 Todos esses conflitos em que as personagens estão envolvidas fazem


parte da ação dramática do roteiro. Existe uma parte central dessa ação que
é chamada de plot. Um filme pode ter vários plots, mas é necessário ter o
plot principal; ele, segundo Syd Field (2001), vai funcionar como a
“espinha dorsal” do roteiro, é a história central se desenrolando, o
desenvolvimento da storyline que falamos no início do capítulo. E dentro de
cada plot, seja no principal ou nos demais, vai haver também o que
Comparato (2009) chama de núcleo dramático.

Em Marcha Fúnebre, por exemplo, existe o plot principal: Selene e


Tarcísio; e os subplots: Tarcísio e Regina; e Tarcísio sozinho na luta pelo
enterro. No plot principal o núcleo dramático seria divido assim: Selene
Raquel, Tarcísio e todas as personagens secundárias estão numa mesma
ação dramática, que são as ações em torno do velório e enterro da atriz; no
“subplot Tarcísio e Regina”, os dois estão na ação do planejamento da fuga
para ficarem juntos; e no segundo subplot, Tarcísio está na empreitada de
buscar uma pessoa e outra para resolver exclusivamente o funeral de
Selene; ele não trata mais da fuga, nem tampouco dedica-se as ações dentro
do velório e nem fica mais em tempo integral com a mãe. Os subplots
funcionam como uma linha secundária que reforça o núcleo dramático do
plot principal:

Num plot a única lógica que interessa é como se organizam e entrelaçam as


ações em que umas partes se ligam a outras para se conseguir uma
intensidade dramática do conflito inicial até o fim. Ou então: existe plot ao
se colocar os acontecimentos de uma história posicionados organicamente
em partes conexas segundo a necessidade dramática. Por exemplo, Édipo
rei de Sófocles conta em flashback o drama (a tragédia) de um homem que
mata o pai e se casa com a própria mãe, sem saber que são seu pai e mãe.
Aqui é quando o como e a história se confundem. Por isso gosto de definir o
plot como a defesa de uma história (COMPARATO, 2009, p. 127).

Tendo os plots e subplots bem amarrados, assim como todos os demais


elementos que possam ser usados na trama, é hora do autor trabalhar na
estrutura do roteiro. Muitos escritores do audiovisual consideram esse o
passo mais decisivo. Para Field, “a estrutura é o elemento mais importante
no roteiro. É a força que mantém tudo coeso; é o esqueleto. Sem estrutura
você não tem história.” (1996, p. 12).

19 O roteiro de Marcha fúnebre não se encontra no estilo/formato


tradicional utilizado pela maioria dos roteiristas profissionais: o master
scenes, o que não significa que está incorreto. Osman Lins optou por um
modo mais parecido com o teatro.

PERSONAGENS: SELENE RAQUEL E TARCÍSIO. Ela lê jornal junto a


um abajur, sentada. Ele move-se e olha o relógio com uma certa ansiedade.
Uma vez chega junto ao telefone, como se fosse usar o aparelho.
CENÁRIO: sala na casa de Selene. Ambiente não propriamente requintado,
mas com claras intenções decorativas. Poltronas fofas, muitas almofadas,
tapetes, flores e abajures.
SELENE — (Por cima do jornal.) Por que não se senta? Se tem algum
encontro, saia.
TARCÍSIO — Não. Não tenho encontro nenhum.
SELENE — Então, por que fica assim, nesse vai e vem? Até dá tonturas.
[...]
TARCÍSIO — E eu, que já estava pensando que nunca mais ia vê-la.
SELENE — (Erguendo-se. Teatral.) “Amém, amém. Haja o que houver, no
entanto, nem toda a dor do mundo é um preço bastante para o gozo de vê-la
um só instante!” Romeu e Julieta, segundo ato, última cena. (Riem.
Esboçam um passo de dança.)

INTERVALO

PERSONAGENS: Tarcísio e Regina. Figurantes. Ele e ela estão sentados


no chão, em almofadas.
CENÁRIO: boîte de jovens, em 1990. Estilo francamente oriental e música
ambiental com instrumentos do Oriente. Alguns jovens dançam, mais ou
menos à maneira dos bailarinos siameses.
TARCÍSIO — Minha mãe vive no passado, com seus álbuns de recortes e o
guarda-roupa cheio de vestidos que usou no teatro. Mas somos muito
ligados.
REGINA — Não sou contra isso. Eu bem queria ter pelos meus pais a
admiração que você tem por ela. (LINS, 1978, p. 95 e 96)

No formato master Scenes, essa mesma cena seria apresentada assim:

CENA 01 / INTERIOR / SALA DE ESTAR / CASA DE SELENE / NOITE


O ambiente não é propriamente requintado, mas com claras intenções
decorativas. Poltronas fofas, muitas almofadas, tapetes, flores e abajures. //
Selene está sentada lendo um jornal junto a um abajur. // Tarcísio move-se e
olha o relógio com uma certa ansiedade. Ele chega junto ao telefone, como
se fosse usar o aparelho.
SELENE
(Por cima do jornal.)
Por que não se senta? Se tem algum encontro, saia.

TARCÍSIO
Não. Não tenho encontro nenhum.

SELENE
Então, por que fica assim, nesse vai e vem? Até dá tonturas.

[...]

TARCÍSIO
E eu, que já estava pensando que nunca mais ia vê-la.

SELENE
(Erguendo-se. Teatral.)
“Amém, amém. Haja o que houver, no entanto, nem toda a dor do
mundo é um preço bastante para o gozo de vê-la um só instante!” Romeu e
Julieta, segundo ato, última cena.

Eles riem e esboçam um passo de dança.

CENA 02 / INTERIOR / FESTA / NOITE

Anos 90. Estilo francamente oriental e música ambiental com instrumentos


do Oriente. Alguns jovens dançam, mais ou menos à maneira dos bailarinos
siameses. // Tarcísio e Regina. estão sentados no chão, em almofadas.

TARCÍSIO
Minha mãe vive no passado, com seus álbuns de recortes e o guarda-
roupa cheio de vestidos que usou no teatro. Mas somos muito ligados.

REGINA
Não sou contra isso. Eu bem queria ter pelos meus pais aadmiração que
você tem por ela. (LINS, 1978, p. 95 e 96)
Comparando os estilos, observamos que as mesmas informações têm nos
dois formatos, apenas que no master scenes os elementos aparentam estar
mais organizados; há um trabalho de divisão de cenas, espaços, tempo,
descrições e intenções para a personagem. Isso facilita muito o trabalho do
diretor quando ele for elaborar o roteiro técnico — o exemplo acima é
chamado de roteiro literário —, onde ele tendo uma visualização maior das
cenas poderá arquitetar melhor os planos que deseja usar no filme. A
diferença do roteiro literário para o técnico, é que no técnico o diretor vai
receber o roteiro literário e encher de elementos técnicos: planos,
enquadramentos, cortes, indicações de luz etc. É bom frisar que o formato
master scenes não é obrigatório, cada roteirista escolhe um estilo para
trabalhar, o importante é que a mensagem seja passada de uma forma
simples e que a leitura do texto seja visualizada.

A forma do roteiro é tão simples; tão simples, de fato, que a maioria das
pessoas tenta torná-la mais complexa. Richard Feynman, o físico ganhador
do Prêmio Nobel, uma vez observou que “as leis da natureza são tão
simples que temos que ficar acima da complexidade do pensamento
científico para enxergá-las”. Para ação há uma reação igual e contrária. O
que poderia ser mais simples que isso. (FIELD, 2001, p. 157)

Tanto Quem era Shirley Temple? como Marcha fúnebre segue essa
simplicidade, Osman Lins traz a divisão de uma estrutura clássica do
roteiro: primeiro, segundo e terceiro atos. No primeiro, o roteirista deve
trazer basicamente a exposição do tema e uma expectativa até o problema
surgir; no segundo ato, o problema necessita ganhar uma dificuldade ainda
maior, precisa ficar mais complicado, deve existir também uma tentativa de
sanar a situação, ter uma medida extrema para levar a crise e para poder
chegar ao clímax. Terceiro ato: clímax, resolução e epílogo.

20 Todos esses conflitos em que as personagens estão envolvidas fazem


parte da ação dramática do roteiro. Existe uma parte central dessa ação que
é chamada de plot. Um filme pode ter vários plots, mas é necessário ter o
plot principal; ele, segundo Syd Field (2001), vai funcionar como a
“espinha dorsal” do roteiro, é a história central se desenrolando, o
desenvolvimento da storyline que falamos no início do capítulo. E dentro de
cada plot, seja no principal ou nos demais, vai haver também o que
Comparato (2009) chama de núcleo dramático.

Em Marcha fúnebre, por exemplo, existe o plot principal: Selene e Tarcísio;


e os subplots: Tarcísio e Regina; e Tarcísio sozinho na luta pelo enterro. No
plot principal o núcleo dramático seria divido assim: Selene Raquel,
Tarcísio e todas as personagens secundárias estão numa mesma ação
dramática, que são as ações em torno do velório e enterro da atriz; no
“subplot Tarcísio e Regina”, os dois estão na ação do planejamento da fuga
para ficarem juntos; e no segundo subplot, Tarcísio está na empreitada de
buscar uma pessoa e outra para resolver exclusivamente o funeral de
Selene; ele não trata mais da fuga, nem tampouco dedica-se as ações dentro
do velório e nem fica mais em tempo integral com a mãe. Os subplots
funcionam como uma linha secundária que reforça o núcleo dramático do
plot principal:

Num plot a única lógica que interessa é como se organizam e entrelaçam as


ações em que umas partes se ligam a outras para se conseguir uma
intensidade dramática do conflito inicial até o fim. Ou então: existe plot ao
se colocar os acontecimentos de uma história posicionados organicamente
em partes conexas segundo a necessidade dramática. Por exemplo, Édipo
rei de Sófocles conta em flashback o drama (a tragédia) de um homem que
mata o pai e se casa com a própria mãe, sem saber que são seu pai e mãe.
Aqui é quando o como e a história se confundem. Por isso gosto de definir o
plot como a defesa de uma história. (COMPARATO, 2009, p. 127)

Tendo os plots e subplots bem amarrados, assim como todos os demais


elementos que possam ser usados na trama, é hora de o autor trabalhar na
estrutura do roteiro. Muitos escritores do audiovisual consideram esse o
passo mais decisivo. Para Field, “a estrutura é o elemento mais importante
no roteiro. É a força que mantém tudo coeso; é o esqueleto. Sem estrutura
você não tem história.” (1996, p. 12).
21 Quando um roteirista está disposto a contar uma história, o que mais
interessa não é o que se vai contar e sim como essa narrativa será contada.
Ismail Xavier defende que, antes de montar a estrutura, esse quesito deve
ficar bem claro na mente do roteirista. É preciso entender como o filme tece
a narrativa, como a trama é oferecida ao espectador; e a partir desse
oferecimento é que a história — ou a fábula, como ele prefere chamar —, é
deduzida:

Diante de qualquer discurso narrativo, posso falar em fábula, querendo me


referir a uma certa história contada, a certas personagens, a uma sequência
de acontecimentos que se sucederam num determinado lugar (ou lugares)
num intervalo de tempo que pode ser maior ou menor; e posso falar em
trama para me referir ao modo como tal história e tais personagens
aparecem para mim (leitor/ espectador) por meio do texto, do filme, da
peça. Uma única história pode ser contada de vários modos; ou seja, uma
única fábula pode ser construída por meio de inúmeras tramas, com formas
distintas de dispor os dados, de organizar o tempo. (XAVIER, 2003, p. 65)

Osman Lins fez isso. A fábula seria a história de uma mulher, que no
passado já fora uma atriz famosa, e que agora deseja ser enterrada de uma
maneira pomposa. A história se passa no “futuro”, ano de 1990, na cidade
de São Paulo. A trama, ou o modo como Osman Lins nos conta é o que
enaltece a fábula, é o que produz a magia do cinema, no caso aqui do
telefilme! Osman leva o telespectador para o lado do fantástico e esse exato
momento é umas das viradas do roteiro (não é impossível, mas muito difícil
o telespectador imaginar que Selene Raquel observaria o seu próprio velório
e influenciaria na decisão do seu funeral). Ele mesmo alerta para o valor
dessa cena:

(Cena importante. Aqui começamos a ingressar no fantástico, que, embora


não deva ser demasiadamente sublinhado, é uma das constantes da peça.
Selene, numa camisa de dormir, contempla-se ao espelho. Levanta-se e põe
na cabeça uma espécie de solidéu, um colar e, num gesto harmonioso, o
manto de Julieta. Vê-se então que o seu rosto rejuvenesceu.)
O teatro está cheio e as luzes se concentram em mim. Silêncio absoluto na
plateia.
(faixa musical sublinha a cena que se segue.)
É o quinto ato, cena terceira, de Romeu e Julieta. Romeu, equivocado,
pensa que Julieta está morta... “Oh, Julieta querida... Julieta? Não. Oh,
juventude amada, por que és ainda tão bela? Devo crer que esse fantasma
chamado “o fim das coisas” [...] (LINS, 1978, p. 103 e 105)

Quando Tarcísio chega da “suposta fuga” com a namorada, já encontra a


mãe morta. Arrependido, ele pensa em se matar, mas o espírito de Selene
aparece para ele e o impede. A partir daí filho e espírito iniciam a luta para
dar um enterro digno para a atriz.

22 É importante salientar que a estrutura do roteiro osmaniano está montada


nos moldes cinematográficos corretos, pois ela consegue ressaltar os
elementos da curiosidade, da surpresa e do suspense. Sérgio J. Puccini
Soares, em sua dissertação Cães de aluguel: análise de um roteiro de
Quentin Tarantino, nos diz que:

A curiosidade é fomentada pela necessidade de acontecimentos passados. Já


a surpresa é gerada por um acontecimento sobre o qual a narrativa não nos
fornecera nenhuma prévia e que contraria qualquer expectativa. Assim
como o suspense é gerado pela expectativa do que está por vir. (2001, p. 66)

Marcha fúnebre traz os elementos da curiosidade, suspense e surpresa. O


primeiro está atrelado ao início da narrativa. Por que Selene Raquel vive
tanto do passado? Por que ela fala tanto na morte? Será que ela tem algum
distúrbio? Será que ficou louca de tanto fazer teatro? Ou na verdade ela tem
mesmo é muito medo da morte? O suspense está em saber se Tarcísio vai
conseguir proporcionar o enterro que a mãe tanto queria. Ele tem várias
portas fechadas e até os últimos momentos, já a ponto de fechar o caixão,
Tarcísio não tem nenhuma solução. A surpresa vem em dois momentos,
primeiro com a ideia dele e dos amigos de enterrar a atriz no Parque
Ibirapuera — algo inimaginável para o espectador -, e depois em o filho e
também a própria Selene (mesmo morta) ter negado o dinheiro oferecido
por um antigo amante da protagonista. Surpresa porque o que ela tanto
desejava poderia ter sido resolvido em frações de segundo, apenas
aceitando a oferta, mas o presente foi negado.

26 No roteiro, percebemos que Osman Lins mostra preocupação com a


linguagem TV. Ele traz sugestões de intervalos, dando espaço para a
publicidade, ferramenta que mantém os programas no ar. Osman passa a se
conectar com o universo mercadológico. O anúncio só prevalece
patrocinando determinado produto se o produto gerar um público
consumidor, e uma das formas da propaganda ter espaço no telefilme é no
que hoje chamados de break ou comercial, esse break funciona legal
quando o roteiro tem os seus três atos bem estruturados. “tais segmentações
ou divisões em atos funcionam como uma espécie de cortina artificial para
que se possa colocar os anúncios publicitários.” (COMPARATO, 2009, p.
134).

A par do roteiro e do episódio na íntegra de Marcha fúnebre, destacamos


alterações feitas pelo diretor Sérgio Britto, algumas até que desconfiamos
ter sido ordem da própria direção da Rede Globo de Televisão. Pelo menos
a abertura solicitada por Osman Lins foi mantida:
Abre-se o filme com um lento e prolongado travelling do Cemitério do
Araçá, em São Paulo, tomado de fora, de modo que o terço inferior da tela
fique ocupado pela parte superior do muro e os outros dois terços pelos
perfis dos túmulos, ao fundo. O travelling não será interrompido nem
mesmo se passar a câmara ante o portão. Interessante se, aqui e ali, pegar
algo das barracas de flores que ficam junto ao muro. Sobre essa imagem,
projetam-se os letreiros, que tanto podem ser pequenos blocos imitando
inscrições funerárias sobre mármore, como essas letras prateadas que se
usam para coroas mortuárias. (LINS, 1978, p. 92)

A primeira mudança veio logo em seguida: o movimento de câmera, o


travelling, terminaria em Selene Raquel e a partir desse ponto seria iniciado
a cena. Na TV o movimento foi encerrado em Tarcísio e daí a cena
prosseguiu. Ainda na mesma cena, comentários referentes as publicações
nos jornais e uma menção ao Ministro da Fazenda também foram cortados.
Em relação a esse séquito, Osman Lins, no prefácio do livro em que os
textos foram publicados, ironicamente questiona: “Também foi eliminada a
fala onde se diz que, em 1990, o Ministro da Fazenda já não era o mesmo
de 1977, talvez — quem sabe? — por ser pouco delicado lembrar que até os
ministérios passam.” (LINS, 1978, p. 7). Vivíamos numa época em que os
militares estavam no comando, e esses jamais pensariam em abrir mão ou
passar o poder para os demais, democracia era algo abominável para eles.

Continuando com as “tesouradas” no roteiro. Numa cena com Tarcísio e


Regina, um diálogo inteiro com sete falas foi substituído por um beijo na
boca. Até hoje, um beijo na TV, infelizmente, rende mais audiência do que
qualquer embate textual dramático. Depois desse beijo há uma inversão na
escaletta (é o esqueleto do roteiro formado pelas sequências de cena. Os
italianos, quando se referem a estrutura, chamam escaletta) - ela funciona
como uma sequência numerada, tipo um resumo do roteiro em tópicos,
exemplo: 1. Tarcísio e Regina se beijam; 2. Selene morre; 3 Tarcísio e
Regina debatem; e assim por diante. No roteiro, após o beijo a cena
continua, os dois pegam uma moto e vão pela estrada, no meio de caminho
eles param, Tarcísio tenta convencer Regina a desistir da fuga e voltar para
casa, ela não quer, os dois brigam, ele a abandona na estrada. A cena
seguinte é na casa de Selene, onde ela faz toda uma encenação cênica antes
de morrer. Quando Tarcísio chega ela já está morta. Escaletta do roteiro: 1
cena do beijo; 2 casal foge; 3 casal para na estrada e brigam; 04 Tarcísio
deixa a namorada no caminho e volta para casa; 4 Selene Raquel encena sua
morte e morre em seguida; 05 Tarcísio chega e encontra a mãe morta.

A mudança na TV foi a seguinte: o episódio exibido não seguiu a ordem


escrita, o diretor quis mostrar os planos de forma paralela, numa sequência
de planos. Ao fim do beijo de Tarcísio e sua namorada, a cena mostrada é
da casa da atriz, onde acontece a encenação seguida da morte de Selene, em
seguida o diretor volta para cena do casal fugindo, ao final da briga Tarcísio
vai para casa, é quando o espectador está diante, novamente, da cena da
morte. Escaletta do episódio: 1. cena do beijo; 2. Selene Raquel encena sua
morte e morre em seguida; 3. casal foge; 4. Tarcísio deixa a namorada no
caminho e volta para casa; 5. Tarcísio chega e encontra a mãe morta.
Outro diálogo completamente anulado do roteiro é quando Tarcísio está
tentando resolver o enterro e a moça do cemitério oferece a cremação. O
filho conta que Selene gostava da terra, então a mulher mostra, por meio da
TV, como funcionam os campos rotativos. O que poderia ter sido uma
inovação para época, o uso da metalinguagem, acabou sendo eliminado.

Para o final do episódio, as mudanças em relação ao texto foram ainda


maiores. Osman Lins desejava implantar uma estética do reconhecimento,
ou seja, o artista sendo valorizado pelo seu público, a atriz recebendo
homenagens póstumas, um enterro digno de uma personalidade pública. O
funeral seria um grande evento, com muita gente, tem comércio,
movimentação e registros da imprensa. A cena não aconteceu desse jeito.
Dos ambulantes escritos por Osman: o homem do algodão doce, vendedor
de cestas de vinho, vendedor de sacos de espuma de borracha picada,
vendedor de corrupios, amolador de tesouras; apenas o pipoqueiro e o
vendedor de balões permaneceram. Outros elementos de cena também
saíram:

[...]um amolador de tesouras e o homem do periquito com o seu realejo


(este, aliás, deve ser um dos primeiros a associar-se ao cortejo, que passará
a ser acompanhado pela sua música, associada aos acordes graves e
majestosos a que me referi); homens estão trabalhando na rua, de capacete,
fazendo escavações, também interrompem o trabalho e seguem, com seus
instrumentos.). (LINS, 1978, p. 124)
Mantendo a linha do fantástico — algo que o roteirista apresentou a partir
da morte da atriz -, Osman pede uma sequência de flagrantes surrealistas e,
segundo ele, necessários para dar grandiosidade à cena. “Vemos crianças e
tigres olhando por trás de vidraças fechadas; leões andando por cima de
telhados.” (LINS, 1978, p. 124). Isso também não foi mostrado no episódio.
Enfim, para a cena do enterro, o diretor acrescenta vozes misteriosas
chamando Tarcísio.
Mesmo diante das modificações do roteiro, o telefilme, imageticamente
organizado por Sérgio Britto, funciona. Osman Lins alega que seria injusto
dizer que o texto tenha sido deturpado, e considera a experiência de
roteirista válida. “Sou escritor e toda a minha vida, por assim dizer, tenho
lutado com as palavras. Mas o criador de literatura não se define,
unicamente, por uma certa maneira de dizer; e sim, também, por uma certa
maneira de ver”. (LINS, 1978, p. 7 e 8). O pernambucano conseguiu
alcançar em seu trabalho de escrita para televisão, o que Doc Comparato
chama de “Unidade Dramática”, quando o autor apresenta a narrativa
pronta para ser filmada, ou seja, o roteiro final, o alicerce para edificação do
produto audiovisual:
Escolhi o título “Unidade dramática” porque no roteiro final aprovado pela produção e pela
direção, assinado pelo roteirista e pronto para ser rodado, ninguém mais fala sobre o conceito de
ideia, o conflito matriz (qual), que história está sendo contada, as personagens (quem), o como, o
onde ou o tempo dramático (quando). Nessa etapa só o roteirista vai ouvir a palavra cena: em que
tal cena está muito bem, outra poderia estar melhor, em determinada falta algo, mas que não faz
mal, talvez aquela necessite de um detalhe específico, e por aí vamos. É o momento em que o
roteiro final se transforma em produto audiovisual. A racionalidade numeral e funcional da
produção toma conta (COMPARATO, 2009, p. 217).
O amor que não sentimos e outros contos
Castro, Guilherme Azambuja
9788578584009
98 páginas

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O amor que não sentimos" é o livro vencedor da categoria Contos do 1º Prêmio Cepe
Nacional de Literatura e traz um bom conjunto de contos que, em geral, tratam as relações
familiares e emocionais de um modo delicado, com uma sensibilidade original e uma
escrita limpa e direta, fazendo um ótimo uso da oralidade. Os personagens são construídos
com cuidado e eficiência pelo autor Guilherme Azambuja Castro, assim como as vozes de
seus diversos narradores. Memória, infância e adolescência são trabalhadas de forma a
retratar situações comuns, mas complexas, de passagem, perda ou conquista da
experiência. O próprio ambiente onde as histórias se desenvolvem é de fronteira,
reforçando essa impressão de transpasse ou transgressão. As referências extraídas da
cultura pop, geracionais, e das tradições gaúchas também soam muito bem equilibradas.

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O grande massacre das vacas
de Siqueira, Sérgio Corrêa
9788578583989
215 páginas

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O romance "O grande massacre das vacas" de Sérgio Correa Siqueira, trata de um tema
desconhecido — e aparentemente secundário — da história brasileira, mas que revela
muito daquilo que se denomina de Brasil profundo. No caso, o transigir entre o público e o
privado, seja no campo dos negócios e da política, seja nas relações de amizade. Por meio
de uma narrativa equilibrada, firme e persuasiva, o autor envereda pelo romance histórico,
mas sem fazer da ficção uma mera moldura para um evento da história brasileira. Pelo
contrário, submete a história à ficção e recria pela imaginação o passado brasileiro. Esse
foi o vencedor na categoria Romance do 1º Prêmio Cepe Nacional de Literatura.

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E eu, só uma pedra
Pereira, Helton
9788578583965
24 páginas

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O livro "E eu, só uma pedra", do autor Helton Pereira, faz uma aposta prioritária na
invenção, com um trato cuidadoso da fantasia e na ousadia intelectual. O protagonista — a
pedra — é um personagem singular, que foge dos clichês e estereótipos das histórias
infantis. O livro foi vencedor na categoria infantojuvenil e conta com ilustrações de Cau
Gomez. Com um manejo ousado da imaginação, a narrativa apresenta uma visão pluralista
e sem preconceitos da realidade. São feitas referências sutis à tradição e às influências
literárias, tudo com leveza de estilo.

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A emparedada da Rua Nova
Vilela, Carneiro
9788578581749
518 páginas

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Obra de Carneiro Vilela que inspirou a Minissérie "Amores Roubados" da TV Globo, A


emparedada da Rua Nova, deve grande parte do seu sucesso ao mistério que cerca sua
criação. O autor retratou um crime verdadeiro e hediondo, em que uma moça indefesa foi
emparedada viva, pelo próprio pai," em defesa da honra da família"? Ou teria Vilela
inventado a estória que, de tão bem construída, faz com que até hoje muita gente acredite
que ele se baseou em fatos?

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Jogo de Cena
Nunes, Andrea
9788578587659
328 páginas

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A morte de um boticário francês na fictícia cidade de Mangueirinhas desencadeia uma sucessão de


outros crimes aparentemente provocados por assombrações do folclore nordestino, levando a pacata
população local a um estado de histeria coletiva. Para solucionar tais crimes, a delegada da cidade
precisa superar as desavenças que cultiva com o filho de seu padrasto, um historiador que regressou à
cidade, mas que renega o parentesco e as origens. Num romance policial eletrizante, Andrea Nunes
utiliza informações verídicas sobre o mais ousado projeto científico da humanidade e traz revelações
sobre a crise mundial do Petróleo, numa obra recheada de estratégias de espionagem, ação, suspense
e reviravoltas, arrematando, como sempre, com um final desconcertante para o leitor.

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