Você está na página 1de 388

Todos os direitos reservados

Copyright © 2014 by Editora Pandorga

E STA É UMA OBRA DE FICÇÃO.N OMES, PERSONAGENS, ACONTECIMENTOS E LUGARES


DESCRITOS NESTA HISTORIA, SÃO PRODUTOS DA IMAGINAÇÃO E CONVENIÊNCIA DO AUTOR.
QUALQUER SEMELHANÇA COM NOMES, DATAS E ACONTECIMENTOS REAIS É MERA
COINCIDÊNCIA.

COORDENAÇÃO EDITORIAL Silvia Vasconcelos


PREPARAÇÃO Patrícia Murari
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Project Nine
COMPOSIÇÃO DE CAPA Renato Klisman
REVISÃO Mônica Vieira/Project Nine

TEXTO DE ACORDO COM AS NORMAS DO NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA


PORTUGUESA (DECRETO LEGISLATIVO Nº 54, DE 1995)

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


(CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Vinícius, Marcus
Janelas nocivas / Marcus Vinícius. -- Carapicuiba, SP :
Pandorga Editora e Produtora, 2014.
1. Ficção brasileira I. Título.
14-00298CDD-869.93

Índices para catálogo sistemático:


1. Ficção : Literatura brasileira 869.93
2014
IMPRESSO NO BRASIL
PRINTED IN BRAZIL
DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À
EDITORA PANDORGA
Avenida São Camilo, 899
CEP 06709-150 - Granja Viana - Cotia - SP
Tel. (11) 4169-3875
www.editorapandorga.com.br
Prefácio
Este romance tem um caráter psicológico, onde o enredo se
desenrola revelando a personalidade de cada personagem. O
pensamento de cada personagem orienta o leitor para os
acontecimentos futuros. A verdade parece ficar aflita diante da
introspecção.
A possibilidade do amor entre um homem honesto e trabalhador e
uma garota de programas, desencadeia uma série de
acontecimentos que flutuam entre a liberdade da mulher e a
personalidade dura de um homem. Mais simples dizer, que o ciúme
pode influenciar as decisões de cada um. Amar parece não ser o
bastante para a idealização de um casal. Nisso, surge um desejo, ou
um romance fortuito de uma paixão nascente. Uma paixão, que
somente pode ser apreciada, através da visão da outra por uma
simples janela.
O que vale mais? A força de um amor sem expectativas ou a força
de um amor refletido na própria alma?
Assim vive Felipe, deixando os acontecimentos estabelecerem a
ordem correta da dinâmica entre duas pessoas. O texto estabelece
fortemente a orientação psicológica desse Felipe perdido num
triângulo amoroso. Uma metade assinala a vontade de viver próximo
a quem desperta-lhe carinho, a outra metade precisa da paixão
fulminante do desejo entre corpos. O entendimento dessa dualidade
provoca um sentido perscrutador. Às vezes, parece, aos olhos de
Felipe, que o amor é uma grande farsa ditada para todos
contemplarem. Mas a vida ensina a todo instante que a farsa
somente existe se a mentira tornar-se maior do que a verdade.
Capítulo 1
Céu azul desmaiado perto de uma viagem à ilusão, assim como
sentir saudades de alguém a quem se dedicava muito amor.
Talvez o cotidiano seja uma armadura e quem está dentro se sente
como um louco preso com a fugacidade do tempo. Ninguém
condenaria Felipe por estar no desdém, no desprezo, na palidez de
mais uma tarde, por fingir-se de morto diante de qualquer nova
paixão ou diante de uma compleição de alguém distante que
terminantemente amava. Assim passou Felipe mais um dia irritado,
querendo beber para esquecer, de preferência no final da tarde.
Estava de prontidão com sua bandeira de conquistador içada ao
vento sem cantarolar canções tristes.
Queria encontrar alguém para resmungar sobre um pesadelo
qualquer, encontrou apenas um bêbado rude:
– Você sabe fazer presságio de pesadelo? – perguntou Felipe.
– Não. Apenas sei que amanhã minha vida vai piorar – respondeu
o bêbado.
– O que aconteceu?
– Fui despedido! Estou bebendo as últimas de ontem.
– É verdade, as portas estão fechadas para muita gente.
– Prefiro pular as janelas.
Naquele ambiente não era fácil encontrar alguém para conversar.
Mesmo assim, Felipe continuava de esguelha para uma nova paixão.
Fazia falta um olhar mais atento para uma mulher, as flores nasciam
e demonstravam suas pétalas coloridas e cheirosas, mas a
fugacidade do tempo murchava essa beleza no desdém. Quando
estava longe de sua concubina ele ouvia o canto triste da noite que o
chamava. Participava da noite como quem precisava de água.
Uma nova paixão estaria talvez em algumas falsas bolas de cristal.
Uma tristeza escondia-se em cada nova alvorada. Em cada lugar
que passava, pensava: “o vento é um escudo de defesa contra o mal
correndo solto, distribuindo cólera a cada alegria do dia”. Melhor
estaria meneando a cabeça para um copo de cachaça escolhendo
entre as jovens uma nova révora esquecida. Com pequenos sorrisos
tímidos, procurava uma obrigação de encontrar uma nova amante,
assim agitava-se contra quem verdadeiramente o amava, assim se
sentia inocente nos sentimentos.
Continuamente nesses locais de consumo de álcool encontrava-se
com algum colega, também com os mesmos sentimentos, talvez um
bêbado fosse um deles:
– Qual dupla sertaneja você admira? – perguntou o bêbado.
– Não gosto de música sertaneja – respondeu Felipe, curto e
grosso.
– Vamos! Deve haver alguma – insistiu o bêbado.
– Já falei! Não gosto.
– Você não sabe o que está perdendo. Essa é a melhor música
para a bebedeira.
– Às vezes acho que não gosto de música nenhuma.
– Não quero incomodá-lo, mas as pessoas de vez em quando
precisam exaltar seus sentimentos.
Às vezes, era divertido ou monótono conversar com um bêbado,
mas essas eram suas companhias de maior decoro naqueles
recintos. Na maioria das vezes, eram pessoas estúpidas que se
mantinham alcoolizadas para permanecer alegres, em outras vezes,
eram apenas pessoas que se encontravam ali somente para
resmungar suas tristezas para as outras, algo como sentir
necessidade do presente que a noite oferece.
Talvez Felipe fosse um daqueles homens que viajam pela cidade
sozinho, curtindo o sentimento, a saudade ou os amores que já se
foram. De vez em quando, sentava num bar qualquer para encontrar
alguém que também vivia de amores estúpidos. As cadeiras, os
copos, as garrafas e a luminosidade sanguirrubra eram seus sinais
de vivência que perduravam em quase todas as noites. Vivia
pensando consigo mesmo que o sentimento não era tão ruim assim,
melhor do que viver com alguém por necessidade ou por obrigação
de estar junto com alguém. Mas ele não conseguia viver assim por
muito tempo, a saudade às vezes insultava seus desejos, por isso
sempre voltava ao encontro de uma garota de programa que
conhecia, havia apenas um desejo sem paixão, mas ela o deixava
contente como numa alegria desmaiada de contentamento.
Felipe venerava muitas mulheres como passatempo, nem que
fosse apenas para sentir uma única fagulha de paixão. Pensava que
não havia motivo para amar tanto assim, parecia sempre,
ridiculamente, quadrupedar até o pé de flores da pessoa amada. Se
fosse assim então não queria viver, não havia motivos para sofrer
tanto por amor. Pensou então que não seria qualquer mulher que o
faria bem mais feliz. Depois de qualquer uma dessas paixões, Felipe
acordava com o nome da pessoa na cabeça durante um dia inteiro.
Não suportava viver assim, queria mudar, queria saber controlar esse
motivo maior de pensar em alguém. Logo, em outros dias quando
acordava, o mundo estava lá como sempre, o que apenas mudava
era um sentimento acompanhado e crescente. Apenas não se sentia
bem quando agia amorosamente. Ficava ainda pior quando pensava
que duas pessoas nasceram uma para a outra, para sempre viverem
felizes juntas, para ele não havia algo de mais ridículo. Na maioria
das vezes, suas mulheres estavam reunindo para ele um triângulo
amoroso no qual ele tinha que interromper, então sentia que poderia
fazer de cada uma, uma mulher feliz, mas no final de tudo esses
amores se transformavam em sentimento. Todo aquele tempo com
cada uma era uma grande loucura, uma grande dor no coração e uns
grandes sonhos desiludidos. De cada lembrança, sentia que todos os
beijos eram o fim, o instante primeiro para cada saudade. Contudo,
essas noitadas nas ruas eram os momentos onde ele chegava aos
sonhos dos poetas, no céu azul dos anjos tristes, na força da grande
vida renovada, mas, sempre depois de um tempo, esquecia um
daqueles amores para experimentar um sentimento diferente com
outra pessoa. Ficava sempre apaixonado por mais outra pessoa,
mas sempre vivendo às lívidas escuras com Grace, uma garota de
programas que conhecia para viver apenas um sereno amor. Por
isso, ele sempre sentia a necessidade da noite, a noite o tornava
criança, às vezes sorria, outras vezes ficava um pouco cabisbaixo,
mas sempre agindo para encontrar outra paixão. Um dia, uma de
suas ex chorou na sua frente, sentiu um pouco de orgulho e não
pensou duas vezes em abandoná-la. Assim se sentia mais forte,
assim se sentia mais resistente, assim então se sentia mais
renovado. Deixava para cada novidade o dia passar, o tempo
também, deixava a própria vida viver.
De lembranças em lembranças sentia novamente a vontade de ter
alguém especial, não havia como fugir daquilo. Seu único livramento
na noite era um mirante em que se avistava toda a cidade iluminada
do alto, para lá, às vezes, partia sozinho e bastante embriagado para
resmungar uma queixa qualquer ou para lamentar-se de um amor
que não deu certo. Às vezes mantinha algumas mulheres sobre a
tempestade, como uma potestade de alegria e amor, outras vezes
elas decaíam no forame do esquecimento, verdadeiramente dizendo,
para ele todas eram assim: venais para os homens. Bastava seu
entojo para a mulher da vida nunca mais ser a mesma. Cercava
sempre o pensamento de raiva ao defrontar-se com um primeiro silvo
de paixão. Não gostava nem um pouco de sentir-se dentro de um
paraíso de duas pessoas, pois quando se sentia assim, ele
começava a pensar na outra pessoa em todo lugar que estivesse
sozinho, no copo, na garrafa, na mesa e no luminário sanguirrubro.
Assim, quando Felipe estava apaixonado, oferecia até o mundo, para
ele, tudo era como um balanço, quando errava no jogo sabia se
defender, mas quando acontecia o contrário, ele anulava a tilintante
paixão para sempre ouvir a monodia clara, alta e em bom tom.
O sentimento sempre acompanhado de Grace não era tão ruim
assim, caminhar vagando sem destino não era tão ruim assim, sentar
numa mesa sozinho não era tão ruim assim, o melhor de tudo era a
permissão para poder se apaixonar.
Pensamento de Felipe:

Meu punhado de recados não encontra nenhuma resposta e a


minha energia é o vento do deserto. Assim fica difícil querer alguém,
não que Grace não seja de amores, mas é preciso sentir algo mais
profundo, algo além de uma paixão, alguém além do meu próprio
destino. A saudade às vezes invade assim, querendo despistá-lo dos
caminhos de destinos felizes. Grace, penso que a amo, bem pouco
do que eu queria verdadeiramente, sua presença apenas acalma
meu coração ébrio. Mas agora, aqui nessa tempestade de ventos, eu
recordo contente do seu abraço quente que parece me querer para
sempre.
Outro gole na cachaça e o mesmo sonho.
Pensamento de Felipe:

Penso, desculpe, Grace, mas desejo que a minha saudade ainda


encontre um amor de verdade, alguém para sempre beijar depois do
amor, alguém apaixonadamente sincera para me chamar de amor,
alguém passional demais, de cor vermelho rosáceo, que sempre me
beije um muxoxo feliz demais. Que seja qualquer mulher, menos
você, Grace, você deixa o meu coração quieto demais, é que eu
gostaria de sentir o que o coração pede. Assim me canso de falar
para esse vento que me cega com areia, me canso de esperar uma
mulher melhor do que você, me canso do seu paraíso de sonhos.
Meu corpo fica melhor como dianho no deserto, como idiota
incrédulo, como Ícaro sem asas, mas sempre está preso a você
como um desgraçado sem chance de ser feliz. Tudo isso acontece
porque eu ainda não aprendi a me despedir de você, do seu abraço
e do seu contorno, preciso de você porque aprendi a estar com você,
aprendi a amar lhe amando. Penso que os amores nascem assim,
sem querer vai querendo repentinamente.

Um pouco cansado daquele meio repleto de fanfarronices, Felipe


escreveu no guardanapo em cima da mesa o nome de Grace.
Pensamento de Felipe:

Nosso amor ainda vai perdurar por bastante tempo, pois você
ainda consegue me guardar num cantinho bom do lado esquerdo do
seu coração. Você consegue me guarnecer do meu próprio
nhenhenhém.
Esqueça tudo e, por favor, ainda me espere para o seu único amor
de verdade. Sei que você fica com vários homens durante uma noite,
mas eu não me importo, tenho certeza de que não a amo. Você é o
suficiente que tenho para estar contente, você é o bastante ainda
para fazer amor e você ainda é capaz de amaldiçoar meus sonhos
de família feliz. Você sabe que nunca planejei estar do seu lado, foi
tudo improvável, mas você consegue compartilhar o sentimento,
consegue, apesar de tudo, ser um rosto para se acariciar.
Brevemente, eu voltarei para o seu lado, aceitando as mágoas que
você teve com cada um de seus parceiros. Talvez a vida seja assim
mesmo, vai ganhando forma até nos sentirmos culpados de um estar
junto do outro. Assim não pode ficar eu sei, fico às vezes nervoso
com o seu comportamento de diva, é que eu penso em ser um pouco
cuidadoso com a nossa provável oração de mesa. O que direi às
futuras crianças? Dessa maneira, não seria muito limpo o que eu
diria. Nem sei se eles adivinhariam o pior. Tudo acontece de errado e
eu ainda gosto de você. Mas que fique claro! Gosto de você apenas
porque não tenho ninguém. Está certo? Ambos somos peças que a
vida esqueceu de presentear com a felicidade. O tempo passa
derramando dentro desse copo de cachaça, e eu ainda espero a
hora mais noturna para beijá-la, pois é apenas o beijo que consigo
roubar de você e talvez a única carícia que você guarda para mim.
Além de tudo, preciso adverti-la, preciso de outra mulher que seja
minha única amante, que seja o oposto, que seja a contradição do
meu querer, para sempre desejar tudo muito ansioso para mais uma
vez. Que não seja como você, amor que custa surgir, surge apenas
nos redemoinhos de saudade, nos medos dos sentimentos. Penso
que sim, você é como ficar sem cigarros na noite.

Felipe logo pagou a conta, deu um último gole na cachaça e


novamente se foi pelas ruas, sozinho, tentando pesar o certo e o
errado. Repentinamente, acendeu um cigarro e lembrou que tinha
que voltar para casa ainda naquela noite, pois Grace talvez o
estivesse esperando.
Caminhou então pelas ruas escuras com o cigarro aceso entre os
dedos. De vez em quando, olhava para alguma casa noturna,
pensava em entrar, mas depois esquecia, voltava em seu
pensamento a vontade de estar próximo de Grace. Depois, por
algum motivo, começou a observar o céu estrelado. Quantas
estrelas!!!
Felipe caminhava de cabeça baixa num canto escuro de uma
avenida, procurando algo além do recanto do seu modesto
apartamento numa rua na zona norte. Em determinados momentos,
ficava observando os sobreviventes da noite e seus veículos
ruidosos. Depois acendia outro cigarro.
Ainda caminhando sozinho, Felipe encontrou um amigo, Rodrigo
Roschel, em frente a uma badalada casa noturna:
– Felipe, é você!?
– Estou com dores na coluna de tanto andar.
– Aonde você vai!?
– Estou indo para casa, Grace deve estar me esperando.
– Está louco, cara, não vai entrar!? O lugar está cheio de gata! –
disse Rodrigo, segurando um copo de chope e acotovelando Felipe.
– Não dá, já estou um pouco bêbado e meio sem grana.
– Nada disso, esse lugar caiu dos céus e você também.
– Fica para outra. Minha mulher deve estar me esperando.
– Você está louco, cara!? Você chama aquela vadia de minha
mulher!? – surpreendeu-se Rodrigo.
– Eu sei, mas é a única que tenho.
– Tomara que encontre outra!
– Tomara.
– Vamos entrar? Eu pago sua conta.
– Não sei. Talvez fosse melhor ir.
– Vamos! Eu pago suas doses.
– Tudo bem, eu quero ficar bem mais bêbado mesmo.
– Vamos que a mulherada já está ficando louca!
Pagaram suas entradas. Depois de muito tumulto já estavam no
ambiente delirante do pub.
– Olha isso daqui, cara! Isso é demais – disse Rodrigo, exaltado.
– Parece muito bom.
– E você querendo voltar para casa e encontrar aquela vadia.
– Por favor, Rodrigo. Não fale assim de Grace – pediu Felipe, em
tom ameno.
– Tudo bem, mas que você está passando por apuros com aquela
mulher, isso você está! – aconselhou Rodrigo.
– Deixe isso para lá. Olha lá! Tem uma morena nos meus olhos.
– Aqui é tudo de bom. Quanta mulher bonita! – continuou Rodrigo,
exaltado.
– Vamos sentar ali de frente para a pista de dança.
Logo os dois se sentaram.
Felipe acabou pedindo uma bebida forte.
– Olhe! Aquela garota está indo para a pista de dança – anunciou
o amigo Rodrigo. – Vá! Tente a sorte.
– Você tem razão. Quem não arrisca, não petisca – aquiesceu
Felipe.
Felipe bebeu a bebida forte e foi atrás da morena:
“Ela ainda continua olhando para mim...”, pensou ele.
Quando se aproximou da moça:
– Tudo bem? Você vem sempre aqui? – declarou Felipe.
– Não. É a primeira vez. E você? – perguntou ela.
– Também. Mas parece ser muito legal – disse ele, se
aproximando da moça.
O barulho estava intenso na boate, por isso os dois falavam alto
um com o outro:
– Parece que o pessoal está bastante animado – considerou a
morena.
– Sabia que seus olhos são lindos? – elogiou Felipe, bem perto da
moça.
– Desculpe, moço, seu hálito de bebida alcoólica está gritando.
– Não se preocupe comigo... seus olhos precisam dos meus –
declarou ele, tentando agarrá-la.
– Sai, por favor! Você está muito bêbado!
Depois de muito esforço ela acabou acertando alguns tapas em
Felipe que acabou voltando para onde estava:
– Estou bêbado sim, e daí!? – retiniu ele pelo recinto.
Quando Felipe voltou para o scoth bar, deparou com o amigo
Rodrigo aos beijos lascivos com uma loira bem bonita, foi o instante
de surpresa para ele decidir ir embora, afinal, levou um fora e agora
não tinha ninguém para conversar:
– Espere, Felipe! – gritou Rodrigo.
– O quê?
– Espere! Não vá ainda. Você viu o avião que está comigo?
– É verdade.
– Eu já a conhecia antes.
– Estou pensando em ir embora.
– Não vá ainda, cara!
– Tenho que ir. Grace deve estar me esperando.
– Você ainda está de caso com aquela vagabunda!?
– Não fale assim de Grace.
– Desculpe, mas você sabe que ela não vale nada.
– Sim, ela vale sim. Vale bem mais do que minha sorte pode
desejar – disse Felipe, em tom peremptório.
– Então volte logo, antes que perca sua amada Grace – debochou
Rodrigo, em tom de ironia.
Felipe, decidido, caminhou até a saída, pagou sua bebida e saiu.
“Se não fosse a vida que ela leva estaríamos bem melhor hoje”,
pensou Felipe. “Odeio quando meus amigos falam dela assim”.
Levou muito tempo andando até Felipe chegar na porta do edifício
onde morava. Abriu o portão e subiu as escadas, às vezes parava e
pensava em Grace, depois continuava o cansativo caminho até o
sexto andar. Quando chegou, percebeu que a porta de seu
apartamento estava aberta, foi até melhor assim, porque estava tão
bêbado que não conseguiria colocar a chave na fechadura.
– Aonde esteve durante todo esse tempo, querido? – perguntou
Grace.
– Estive por aí – respondeu Felipe, irritando-se.
– Calma! É porque lhe esperei por muito tempo.
– Então por que não voltou para a vida?
– Espere!
– E esse chapéu ridículo, foi com ele que saiu para a vida da rua?
– Eu vou procurar entender, você deve estar um pouco bêbado.
– E essas cores na cara? – retiniu Felipe.
– O erro é meu, eu sei. Mas eu estava tão feliz em revê-lo – disse
venusianamente Grace.
– Você às vezes me cansa, sabe?
– Não, por favor, não grite comigo hoje.
– Se não quer ouvir nada, então por que não vai embora?
– Então já estou indo. Vou pegar as minhas coisas.
– Poderíamos ser mais felizes, sabe? – continuou Felipe. – Se não
fosse essa sua maldita vida nas ruas.
– Penso que você está fora de si – considerou ela, ao pegar a
bolsa para sair.
– Eu estou fora de mim!? E quantos homens estiveram dentro de
você hoje? – continuou Felipe, bastante irritado.
– Estou indo!
Plam! Grace partiu fechando a porta com bastante força. Felipe foi
procurar beber mais, depois decidiu abrir a porta para falar aos
corredores:
– Vá e não volte mais! – gritou ele. – Esse seu cheiro de puta
contamina esta casa, aliás, contamina tudo por onde você passa.
– Você ainda vai se arrepender – disse ela, chorando ao descer as
escadas.
Tentando se tranquilizar, Felipe sentou no sofá acompanhado de
um copo de uísque barato. Por alguns momentos, ficou observando
a janela do apartamento.
Pensamento de Felipe:

Por que ela se foi? Eu sei, sou eu e as minhas malditas palavras


estúpidas. Por que ela não esperou um pouquinho mais? Eu lhe diria
agora palavras carinhosas, não sou tão monstro como parece. Mas
também, essa vida dela me diminui como amante e como homem.
Ela se vai assim e se esquece que hoje estive sozinho, estava
precisando apenas de um pouco de carinho. Nosso tête-à-tête
sempre foi um fracasso. E por quê? Porque ela sempre foi uma
mulher da vida. Eu sei que a conheci assim, assim tive que aceitar.
Mas não aceito! Sou grosseiro e ultrapassado quando se trata da
minha mulher.

Por um determinado momento, Felipe notou algo diferente no


prédio vizinho à frente de sua janela, percebeu que a janela vizinha
estava acesa. Era estranho, pois desde quando morava ali, nunca
ninguém esteve naquele apartamento. Se aproximou então da janela
para verificar quem estava no prédio vizinho, bebeu um pouco mais e
percebeu apenas um silêncio.
Capítulo 2
Repentinamente, enquanto olhava para o apartamento vizinho de
janela, ele avistou a presença de uma linda moça.
Pensamento de Felipe:

Deus! Como é linda! De um brilho tão intenso que se separa da


noite. Ver uma moça tão linda assim é como desejar intensamente o
dia, desejar a vida e o amor. Uma beleza que se defende do tempo
como flores caindo a qualquer hora do dia. Para mim, toda paz seria
uma presença sua na janela. Uma mulher assim é toda uma
felicidade desejada por um homem.

Felipe ficou horas admirando a beleza da moça pela janela. Ela


estava ali, bem perto, do outro lado, em outro prédio. Às vezes
parecia crepitar nele uma nova paixão, uma paixão súbita e
repentina. Depois de certo tempo ela saiu da vista da janela.
Pensamento de Felipe:

Ela pareceu não me notar, virou a cabeça para os lados e não me


viu. Será que vou vê-la novamente?

Demorou mais algum tempo para as luzes do apartamento onde


ela morava se apagarem, restou apenas para Felipe se consolar com
a bebida.
Felipe resolveu dormir ali mesmo onde estava.
Na manhã seguinte, acordou e foi logo verificar pela janela se
encontrava a mesma moça da noite passada. Arqueou a cabeça,
mas não havia ninguém. Ela já devia ter saído logo de manhãzinha.
Aos poucos, foi restabelecendo a cabeça embriagada, decidiu
tomar uma ducha fria. Ficou pensando na moça e no quanto ela
encantava com tanta beleza. Pensou também na desavença que
teve com Grace e na noite pesada que o marcou na bebida.
Quando começou a fazer a barba pensou em ligar para Grace.
Depois da barba feita foi para o telefone:
– Alô, Grace – disse Felipe.
– Tudo bem agora?
– Desculpe, eu estava fora de mim, estava completamente
bêbado.
– Sim, eu notei. Desculpo, sim.
– Que tal eu chegar até aí para namorarmos?
– Tudo bem. Eu o espero. Assim nos desculpamos melhor por tudo
que houve ontem à noite.
– Então eu devo aparecer por aí às onze horas. Tudo bem? –
avisou Felipe.
– Tudo bem.
– Então até logo.
– Até logo e um beijo.
Em pouco tempo, Grace foi se arrumar para ficar bem bonita à
espera de Felipe.
Ela levava essa vida por diversos motivos, um deles era a
dificuldade que enfrentava por ser filha de uma família pobre do
interior. Resolveu ainda muito jovem, por volta dos dezoito anos, se
tornar garota de programa. Suas condições financeiras estavam
muito precárias, seu pai não dispunha de dinheiro para financiar seus
estudos na capital, foi quando conheceu uma amiga chamada Paola,
que acabou a incentivando entrar naquela vida. Mas como qualquer
mulher, Grace também tinha seus pudores, com muita dificuldade,
ela suportava a ideia de ser difamada por Felipe, apesar dos
pesares, ela o amava muito. Conheceu-o como um de seus clientes,
depois da primeira noite com Felipe, que foi muito amoroso, os dois
começaram a se encontrar com mais frequência, a partir daí, Grace
já estava apaixonada por ele.
Grace sentia por Felipe um amor muito forte, quase uma paixão
inebriante, já estavam juntos há uns dois anos, mesmo assim ela
continuou com seus programas, e Felipe aceitou tudo já no começo
do namoro, não que ele pensasse que ela sairia todas as noites para
acertar as despesas.
Grace falava com seus pais apenas por telefone, dizia que tudo
estava muito bem e que trabalhava num escritório de advocacia,
escondendo parte de sua vida difícil.
Podia não parecer, mas quando Grace queria, ela era uma mulher
muito doce.
Ela não aceitava os limites de sua feminilidade, vivia então num
mundo de mentiras, mas dizia para si mesma que um dia largaria
tudo e se casaria com Felipe.
Foi uma criança cuidada com muito carinho de seus pais, contudo
não aceitava os limites da vida e foi se prostituir. Para ela, tudo era
muito desagradável, mas não tinha como se estabelecer na cidade
grande sem dinheiro.
Quando estava passando batom refletiu sobre aquela situação.
Pensamento de Grace:

O que será que Felipe está suportando? Ele nunca foi assim,
sempre foi um homem dócil e atencioso comigo. Pode ter sido a
bebida mesmo. Mas ele mudou um pouco de uns tempos para cá.
Alguma coisa me diz que tudo não ocorrerá tão bem entre nós.
Talvez seja eu mesma, eu e meus problemas. Ele às vezes tem
razão. Sei que ele gostaria de ter ao seu lado uma mulher apenas
sua, mas o que eu faço com tanta despesa. E a minha faculdade!?
Mas sei que tudo o que estou passando vai acabar algum dia.
Seremos felizes, meu bem, eu e você, pois o amo tanto.

Felipe tinha que acordar para o dia. Circulava no apartamento


sempre procurando alguma coisa que esquecera. Às vezes, colocava
a cabeça para fora da janela em busca de encontrar novamente
aquele rosto lívido da moça que vira na noite anterior. Mas nada! O
vento soprava seu rosto tão depressa, que de tanto procurar aquela
moça pelas frestas da janela, esquecia que tinha que encontrar
Grace.
Alguns pombos cinzentos cruzavam os céus de um prédio para
outro. A temperatura na cidade subia mais e mais, o sol radiava
inclemente num céu azul sem nuvens. O calor era tanto que Felipe
até pensava em desistir de se encontrar com Grace.
O dia ansiava por calor intenso.
Apesar de tudo, Felipe apreciava a boa companhia de Grace, e às
vezes sentia terrivelmente a falta dela, mas, verdadeiramente, Grace
demonstrava que amava mais Felipe do que ele a ela.
Felipe, inseguro, sempre analisava seus sentimentos por Grace,
seu sentimento maior para com ela era sempre o medo do
sentimento, mas não vasculhava tão a fundo para saber se aquilo
era realmente amor. Felipe tinha dificuldades de separar amor de
paixão, sempre pensava que os dois sentimentos eram a mesma
coisa. Enfim, Grace era bonita, mas naqueles instantes a moça do
apartamento ao lado, de pele alva e macia com olhos verdes de gato
brilhando com vida e saúde despertou novamente o prazer pelo amor
que às vezes sentia falta. E Grace, por outro lado, parecia estar
paciente com os diversos gênios de Felipe.
Felipe enxugou e penteou os cabelos. Sempre via traços do pai
em sua imagem refletida no espelho, tanto nas linhas do rosto como
nas linhas do nariz e dos olhos, mas a cor da pele era igual à da
mãe.
Depois de mais uma vez olhar pela janela à procura daquela
moça, Felipe resolveu ir logo ao encontro de Grace. Saiu do
apartamento fechando devidamente a porta, logo desceu as escadas
entoando num assobio uma melodia qualquer. Já de frente à sua rua,
Felipe encostou-se no ponto de ônibus perto de casa para esperar o
veículo de passageiros.
Depois de algum tempo começou a pensar.
Pensamento de Felipe:

Como aquela moça é perfeita! Perfeita em tudo até nos meus


sonhos.
Ontem a encontrei. Ontem a vi pela janela pela primeira vez, era
linda como tudo que se quer na vida. Se ao menos me visse naquela
madrugada, talvez eu veria a descoberta de uma nova paixão. Senti
que poderia guardar seus olhos por muitas e muitas noites. Ela não
se parece com Grace, seus olhos se abrem como sonhos de uma
vida inteira, sua boca é como favo de mel da mesma manhã com
ares do dia.
Preciso de mais! Preciso tê-la! Preciso vê-la de novo.
Felipe sentiu que talvez pudesse estar apaixonado, e não por
Grace, justamente quem mais lhe dedicava amor naqueles dias.
Seria muito triste para Grace, que o amava muito, descobrir os
pensamentos dele, porque, apesar de tudo, ela ainda era uma moça
também bonita, muito simpática e de um coração de ouro.
Grace suspirava com a figura de Felipe, um homem alto e
naturalmente forte.
Felipe, de olhos pio sursivirados, para o veículo de passageiros,
esperou o ônibus encostar, em seguida entrou e sentou bem ao
fundo do veículo, sozinho, para que pudesse pensar consigo
observando a paisagem da cidade.
Pensamento de Felipe:

Realmente, Grace, você parece perder lugar no meu coração.


Tudo bem que não posso lhe dar uma vida de rainha, mas se ao
menos estivéssemos juntos mais vivos, nossos sonhos poderiam ser
outros.
Sempre me espera assim amável com cafezinhos na mesa,
calado, eu espero seu olhar primeiro para saber a melhor hora de
beijá-la.
Você não é menina e sabe muito bem disso, mas prefiro assim,
brincando com carinhos de inocência.
Espere mais um pouco, terei que lhe dizer, nosso amor está quase
no fim. Meu acaso de sorte chegou ontem, aquela moça me
transformou com sentimentos mais puros do que o seu. Não sei o
que eu poderia dizer a você, Grace, talvez lhe diria volto depois, mas
não dá, você parece me diminuir como homem. Verdadeiramente eu
gostaria de alguém apenas para mim.

Porém, Grace não era muito de aceitar um não de Felipe, e apesar


de todos os ataques de ira dela, Felipe sempre fora paciente e
amoroso. Talvez devesse ter sido mais firme, se a tivesse tratado
com mais firmeza e rigor, quem sabe assim as coisas tomassem um
rumo diferente?
Sensível com a demora de Felipe, Grace resolveu ligar para ele.
Esperou, esperou e ninguém atendeu:
– Ora bolas! Por que o Felipe está demorando tanto?
E Felipe continuava no veículo, um pouco sonolento.
“Grace deve estar agoniada me esperando”, pensou ele.
Ela poderia estar num daqueles dias em que acordava de mal com
o mundo. Mal-humorada ou não, uma coisa era certa, dessa vez
voltaria para ele, antes que o pior acontecesse.
Chegando na rua dela, Felipe desceu do veículo e caminhou
trôpego pensando em Grace.
Quando Felipe chegou ao prédio onde Grace residia, não teve
dificuldade em passar pelo porteiro que já o vira em companhia dela:
– Pode subir! – disse o porteiro, sorridente.
Felipe o cumprimentou com um aceno de mão e entrou no
elevador, divertindo-se em imaginar a reação de Grace ao revê-lo.
Tocou a campainha do apartamento e esperou. Depois do segundo
toque, Grace abriu a porta, e sem que ele reagisse começou a beijá-
lo libidinosamente.
Os dois se beijaram muito:
– Então, tudo bem com você agora? – perguntou Grace, ainda
beijando-o.
– Sim, e com muita saudade sua – sorriu Felipe.
– Dê-me mais um beijo, então.
Repentinamente o telefone tocou, Felipe, mais perto, atendeu:
– Alô, é a Cristina? – perguntou um indivíduo de voz rasgada.
– Não, ela não está – disse Felipe.
– Por favor, quem está falando?
– É o namorado dela!
– Desculpe, foi engano.
Surpreso, o indivíduo que ligou logo desligou o aparelho.
– Certamente você nunca vai largar essa vida – raivou-se Felipe.
– Já falamos sobre isso, Lipe! – devolveu Grace.
– Essa sua vida dupla me enoja!
– Eu sei, Lipe, mas é só por uns tempos.
– Só por uns tempos!? Você pensou no que me disse agora!?
– É que tudo está tão difícil. Gostaria muito que entendesse.
– Eu entendo! Até demais! – replicou Felipe, furioso. – Tenho
certeza de que você não precisa disso.
– A mensalidade dos meus estudos aumentou.
– E daí!? Não quero aceitar que minha cabeça seja enfeitada de
penduricalhos.
– Oh, meu amor! – emitiu Grace, venusianamente, tentando beijá-
lo.
– Não. Já cansei! Esqueça essa vida para o nosso bem. Como
vamos viver num relacionamento cheio de mentiras? Você já notou o
quanto fica ridícula quando vai sair à noite? Do jeito que está nunca
seremos felizes juntos.
– Eu sei. Mas você fica tão lindo quando briga comigo! – brincou
Grace, tentando beijá-lo novamente.
– Será que falta homem para você? – perguntou Felipe, irritado. –
É isso!?
– Não. Você não entende!? Eu o amo e sempre vou amar.
– Mude para sermos felizes então. Você sabe que eu a amo
também.
Logo depois de alguns sussurros os dois se beijaram e se amaram
naquela manhã cheia de ares do dia.
Em seguida, Felipe ficou deitado na cama enquanto Grace alisava
carinhosamente seus cabelos.
Pensamento de Grace:

Você vale muito para mim, Lipe. Tenho certeza que nenhum
homem me ama mais do que você. Sei que você tem razão em tudo.
Ainda seremos bem mais felizes do que hoje, deixe apenas as coisas
se estabilizarem.

Nesse momento, Grace deixou Felipe dormindo e foi avistar a


janela pensando em tudo sobre ambos.
Pensamento de Grace:

Mas preciso de você agora nesses momentos difíceis. Espere que


tudo vai melhorar, e me mantenha assim, sua para sempre.

Repentinamente, Felipe abriu os olhos:


– Você lembra do Ângelo, um amigo meu? – perguntou ele.
– Sim, lembro! Aquele que trabalha na Tex S.A. – disse Grace.
– Ele vai casar e nos convidou para a cerimônia.
– Que bom!
– Assim podemos nos distrair um pouco. E ele a convidou porque
gosta muito de você. É um dos poucos amigos meus que gostam de
você. O restante todo apenas diz para mim o que você não gostaria
de escutar.
– Ok! Mas você não pode deixar seus amigos interferirem na
nossa relação, temos que nos manter sempre fortes contra esses
dizeres, querido.
Nesse momento, Felipe levantou e disse olhando fixamente nos
olhos de Grace:
– Por favor, Grace, largue essa vida, você pode viver comigo, eu
posso ajudá-la financeiramente. Eu sei que ganho pouco, mas no
mês que vem talvez eu seja promovido. Vai nos ajudar até casarmos.
Ela pensou num breve momento e disse:
– Tudo bem! Para a nossa felicidade eu vou deixar essa vida. Eu já
estava pensando em largar tudo mesmo.
– Jura!? Você não vai se arrepender. Seremos o casal mais feliz
do mundo.
Foi tudo o que Felipe esperava ouvir:
– Primeiro o Ângelo se casando... depois nós dois – disse ele,
exaltado.
– Estaremos felizes juntos. Vou cancelar todos os meus encontros
– declarou Grace, ao beijá-lo graciosamente.
Logo se beijaram como nunca fizeram antes.
– Tem um porém – considerou Grace, em tom enérgico. – Que
você largue a bebida.
– Tudo bem, eu largo tudo para estarmos felizes juntos.
Depois Felipe voltou a beijá-la, em seguida fizeram novamente
amor e ficaram juntos a tarde inteira até que:
– Grace, preciso ir. Não se preocupe que eu avisarei quando vai
ser o casamento do Ângelo.
– Tudo bem, eu espero.
– Até logo – despediu-se Felipe, ao fechar a porta.
Depois de sair do elevador, Felipe não se conteve de tanta
felicidade ao receber a resposta de Grace. Finalmente parecia ser a
grande resolução dos seus problemas. Enfim, pareciam que ficariam
juntos para sempre.
Esperando o ônibus para o caminho de volta Felipe refletiu.
Pensamento de Felipe:

Agora seremos felizes de verdade. Esse sempre foi o amor que


esperei dela. Juro! Grace não vai se arrepender dessa atitude.
Mas ainda quero ficar de esguelha naquela moça da janela, pois
tenho direito sim, como qualquer homem de encontrar a felicidade.
Ah! E Grace me disse sim, vai querer ser minha, somente minha e
de mais ninguém.

Felipe esperava impacientemente o ônibus chegar e muitos


transeuntes se acomodavam debaixo do ponto:
– Esses malditos ônibus nunca passam quando a gente mais
precisa – reclamou um velhusco, ao seu lado.
Já começava a chover na cidade.
– É verdade. Mas a gente tem que ter paciência – disse Felipe.
– Penso que não! Pagamos os nossos impostos. Temos direito a
um serviço de qualidade – declarou uma senhora.
– Eu já estou entojado dessa cidade – afirmou o velhusco.
Felipe resolveu comprar um cigarro com um vendedor ambulante:
– Eu quero um cigarro picado – solicitou ele, ao oferecer uma
moeda ao vendedor.
– Você fuma, meu rapaz? – perguntou o velhusco.
– Infelizmente – respondeu Felipe, ao dar uma baforada de
fumaça.
– Faz mal. Essa fumaça estraga os pulmões.
– Eu sei.
– Talvez queira morrer mais cedo.
– Não. É porque no momento estou com sorte.
– Sorte desgraçada essa.
– É o único de hoje.
De tanto esperar, logo o ônibus estacionou em frente ao ponto, o
velhusco entrou e se despediu:
– Tome cuidado, rapaz!
– Não enche.
Novamente outro ônibus estacionou no ponto:
– Esse ônibus passa na zona norte? – indagou Felipe para o
motorista.
– Sim.
Então Felipe entrou, pagou o serviço com algumas notas
amassadas e se acomodou na última fileira de assentos. Procurava,
naquele instante, apenas pensar em Grace, mas não escondia o
desejo de ao menos encontrar aquela moça tão bonita novamente.
A viagem passou rápido para ele que dormiu um pouco, e quando
estava chegando no seu ponto ele esperou o veículo parar para
descer na rua Bonfim. Andou depois mais alguns metros, e de frente
ao prédio onde morava, entrou logo em seguida cansado, subindo as
escadas resfolegando. Ao entrar no apartamento tirou a camisa e foi
direto para a cozinha buscar uma garrafa de xerez.
Felipe estava animado, querendo beber apenas para matar a
vontade de ver aquela moça. Então, com a garrafa de xerez na mão,
quedou sobre a janela, espraiando a vista sobre a janela dela,
esperando que ela aparecesse.
Sozinho, continuou suspirando pensamentos enquanto observava
a janela da moça.
Pensamento de Felipe:

No meu mirante. Novamente quero avistá-la por um brilho apenas


que seja. Seu rosto de contornos perfeitos chegaria para mim como
num livramento. Nenhum mal me afastará do seu brilho de ninfa que
me aconselha proteção, escudo e uma defesa dos seus lívidos olhos
repentinos.

Felipe bebeu novamente do xerez, não cumprindo a promessa que


fizera à Grace de nunca mais voltar a beber.
Continuou suspirando sonhos na janela.
Pensamento de Felipe:
Se você aparecesse aqui agora, eu lhe mandaria, através de um
aviãozinho de papel, algum verso para que ao menos permanecesse
ansiosa esperando mais um costume travesso meu, estou apenas
lhe desejando intensamente. Às vezes, eu poderia sair como um
errante por essa cidade apenas para encontrar flores de amores para
você. Sem desdém, procuro seus olhos agora nesta janela, dividindo
meu medo de você não se agradar com a minha presença.
Meu dianho de consciência paira sobre mim sussurrando vontades
passionais.

Ele acabou dormindo no sofá, sentindo saudades da feição lívida


da ninfa da janela ao lado.
Passaram-se muitos dias, e nesse cotidiano todo Felipe sempre
buscava revê-la novamente, mas ela nunca estava lá como da última
vez.
Chegou então o grande dia do casamento do amigo Ângelo. Felipe
já estava devidamente trajado para a ocasião, logo, ligou para o
amigo Ivan:
– Ivan, é você!? – disse Felipe.
– Você já está pronto? – perguntou Ivan.
– Não, tenho que pegar Grace.
– Então tudo bem, eu passo aí, depois passamos na casa de
Grace e em seguida iremos direto para o casamento. Ok?
Felipe ligou depois para Grace:
– Grace, já está pronta? – indagou ele.
– Estou esperando apenas você.
– Não se preocupe, estou esperando o Ivan, ele vai nos dar uma
carona até lá.
– Você está bem bonito? – questionou Grace, brincando.
– Claro! E você?
– Vou roubar todos os olhares da noiva.
– E sobre aquilo que falamos. Você já se decidiu mesmo?
– Sim, querido. Não vou fazer programas nunca mais. Tudo porque
o amo.
– É por isso que a amo também.
Logo depois desligaram o telefone.
Então Felipe ficou esperando Ivan, assistindo à televisão e
bebendo novamente. Uma vez ou outra, ia para a janela para ver se
encontrava a moça:
“Eu ainda lhe pego, ninfazinha!”, pensou ele no parapeito da
janela.
Ele pensava que não haveria problema algum em paquerar uma
garota mesmo estando junto com Grace.
Depois de poucas horas, Ivan chegou à frente do condomínio
simples onde morava Felipe. Em seguida, fez a chamada pelo
interfone:
– Felipe, cheguei! Desce logo.
Felipe então fez questão de desligar tudo o que estava no
apartamento, desde lâmpadas até a televisão. Muito bem trajado,
logo desceu as escadas até encontrar Ivan:
– Hei, irmão! Como vai? – cumprimentou Ivan.
– Tudo bem – afirmou Felipe.
– Minha nossa... como o tempo passa!
– E como passa! O Ângelo já está casando.
– E você e a Grace? Como estão indo? Fiquei sabendo que você
gosta muito dela.
– É verdade.
– Você gosta dela mesmo sabendo que ela é garota de programa?
– Você não sabe da última.
– O quê?
– Ela deixou de fazer programas para ficar comigo.
– Que bom, amigo!
Continuaram a conversa no veículo:
– Realmente agora sinto que estamos numa boa – declarou Felipe.
– É isso mesmo! Para mim não tem nada melhor do que uma
mulher fiel que você realmente ama.
– Estamos pensando em morar juntos.
– Não, deixe tudo como está – disse Ivan, em tom peremptório. –
Eu tiro isso como experiência própria. Quando me amarrei com a
Adriana estava com dificuldades financeiras e tudo piorou.
– Mas eu penso o tempo inteiro na nossa união.
– Não faça isso, amigo! Deixe o tempo ser seu companheiro.
– Também tenho medo de ela voltar para a vida.
– Isso é um medo que você sempre vai sentir.
Enquanto Ivan guiava o carro, Felipe ficou calado avistando os
lugares onde passava, pensando em tudo o que Ivan disse.
Realmente ele deixaria o destino agir nessa relação mais próxima de
Grace, mas não poderia deixar passar tanto tempo sem convidar
Grace para um possível noivado. Felipe pensava e tinha medo de
ficar sozinho, pois alguns de seus amigos já estavam casando. Ir
àquele casamento do amigo Ângelo o fazia refletir mais sério sobre
os problemas da vida, pois Grace era justamente sua companheira,
quem o afastava da degenerescência e a moça do prédio vizinho era
apenas mais um platonismo sonhador. Ele tinha consciência real
daquilo, por isso temia sempre seus sentimentos mais nobres.
Logo Ivan estacionou o veículo em frente ao condomínio de Grace:
– Chegamos, Felipe – disse Ivan. – Chame-a, porque estamos um
pouco atrasados.
– Espere um pouco – solicitou Felipe.
– O que foi?
– Estou pensando naquilo que você disse – considerou Felipe,
introspectivo.
– Sobre ela voltar a fazer programas?
– Pois se isso realmente acontecesse eu nunca mais veria a cara
dela.
– Deixe disso! Se você a aceitou até hoje, é porque você
realmente gosta dela. E a cabeça não consegue mandar nas coisas
do coração – aconselhou Ivan, sorrindo.
– Às vezes acho que não posso confiar em Grace.
– Então esqueça tudo o que eu disse e a chame logo.
Aos poucos, Felipe sentia aquela dualidade amorosa crescer em
seus sentimentos.
Quando junto ao porteiro do prédio:
– Senhorita Grace, o senhor Felipe está aqui esperando – avisou o
porteiro no interfone.
– Diga a ele que eu já estou descendo.
Grace então deu uma última olhadela para o espelho até descer
pronta pelo elevador.
Ao encontrar Felipe no hall de espera:
– Grace! Como você está bonita! – admirou Felipe.
– Gostou!?
– Nunca a vi tão linda antes!
– Então, vamos!
Quando Grace entrou no veículo até Ivan ficou surpreso com a sua
beleza:
– Tudo bem? – cumprimentou ela.
– Tu-do-bem.
Grace e Felipe sentaram atrás, foi o instante para ele aproveitar
alguns beijos.
– Agora não, Lipe! Cuidado com a maquiagem! Quero estar bem
linda na presença dos noivos.
Felipe, impulsivo, acabou se irritando.
Pensamento de Felipe:

Quem ela pensa que é? Tanta beleza às vezes é pouca. Não se


preocupe com sua maquiagem de palhaço, você não me guarda
tanta beleza assim. Descubra no espelho antes de evitar um beijo
meu. No meu mirante talvez eu possa encontrar mulheres melhores,
como num livramento do seu malmequer.

Ele sempre se demonstrava muito ciumento quando estava do


lado dela. Ficava mais exasperado ainda quando seus carinhos não
conseguiam atingir a atenção necessária de Grace.
Juntos partiram para uma mansão onde o casamento do amigo
Ângelo se realizaria. Enquanto isso, Felipe buscava a atenção e os
carinhos de Grace:
– Olhe nos meus olhos – disse ele.
– Estou olhando – disse Grace, desentendida.
– Você realmente gosta de mim?
– Lipe, querido, eu realmente o amo.
– Então por que não olha para mim quando falo com você?
– Acalme-se, teremos a noite inteira depois.
Chegando ao local do casamento todos se espantaram com o
tamanho da casa.
– Um dia iremos morar numa casa igual a essa – declarou Felipe
para Grace.
– Nem trabalhando minha vida inteira compro uma dessa – brincou
Ivan.
A mansão ficava num dos lugares mais valorizados da cidade. A
casa era imponente em estilo italiano e estava toda iluminada para a
cerimônia.
– Você sabe como o Ângelo arrumou uma casa como esta? –
perguntou Felipe.
– Não sei, deve ter alugado – considerou Ivan.
– Talvez Adriana esteja aqui.
– Talvez!
– E o que faria?
– Talvez eu desejasse conversar com ela. Tivemos uma pequena
discussão. Nada que valha a pena brigar.
Aos poucos, Felipe, Grace e Ivan foram se amontoando com o
restante dos convidados.
Repentinamente, Ivan avistou Adriana ao lado de algumas amigas,
depois de pensar aproximou-se dela para conversar:
– Está tudo bem com você? – perguntou Ivan, um pouco
acanhado.
– Tudo. E você? – sorriu Adriana.
– Bonita festa, não?
– Muito bonita mesmo!
– Ontem eu estava em casa e algumas coisas me fizeram lembrar
você. Todas lembranças boas.
– Que bom! Também pensei sobre nós, Ivan.
– E o que pensou?
– Que devemos continuar assim, um pouco distantes um do outro.
– Mas foi uma briguinha de nada!
– É isso – completou Adriana. – A rotina acabou estragando nosso
relacionamento.
– Me dê pelo menos mais uma chance. Sei que ainda posso fazê-
la feliz.
– Não sei, mas fique aqui pertinho de mim.
Enquanto isso, em outro canto da cerimônia, Felipe e Grace
continuavam juntos.
– Você quer parar de olhar para outras mulheres – pediu Grace,
nervosa.
– Não precisa ficar com ciúmes. Esta noite os meus olhos são
todos seus – disse Felipe.
– Então esqueça essa dona que está à sua direita.
– Já esqueci.
Os momentos que mais agradavam Felipe eram quando ela
demonstrava ciúmes. Isso o fazia acreditar que ela realmente
gostava dele. E o gostar de Grace era o seu desejo intenso, seu
revés de sentimento, seu instante pleno de amor. Ele adorava
quando ela desconfiava.
Num determinado instante da festa, Felipe tentou acender um
cigarro:
– Você não vai acender isso aqui, vai? – marrou o semblante
Grace. – Você quer me matar de vergonha?
– Não, mas estou com vontade e ninguém vai notar – disse Felipe,
em tom peremptório.
– De maneira alguma! Esse seu cigarro fede.
– Não se incomode muito. A cerimônia é de um amigo meu.
– É por isso que às vezes brigamos, você nunca atende a um
pedido meu.
– Tudo bem. Está certo! Não fumo mais essa droga. Está bem
assim?
– Fica um pouco melhor.
– Você se defende sempre, não é? Parece até um espírito que
vaga sozinho à noite sem culpa.
– Lipe, não comece!
Qualquer tormento entre os dois era motivo para Felipe comentar
sobre a vida dela.
– Você apenas esquece dos seus erros – declarou ele, irritado. –
Sua prostituta!!!
– É sério, não vou aceitar você me difamando – afirmou Grace,
indignada.
– Quem aqui está lhe difamando? – retiniu Felipe. – Você é ou não
é prostituta?
– Desculpe. Deve ser a bebida... vou embora... não vou ficar aqui
aguentando seus insultos.
Rapidamente, Grace pegou sua bolsa e saiu para fora da mansão
por conta própria. Partiu com passos pesados no seu elegante salto.
– Isso! Vá fazer outro programa – gritou ele no meio da festa.
Num determinado momento, ela se enganou e voltou para pedir
algo para o Ivan.
– Por favor, Ivan, você pode me levar em casa?
Naqueles instantes do acontecimento Ivan apoiava o amigo.
– Não posso! A cerimônia acabou de começar.
– Tudo bem. Eu vou sozinha então.
Dessa vez, ela descalçou os saltos que a incomodavam para
caminhar. Depois andou mais uns cinquenta metros de gramínea até
encostar num ponto de ônibus com os sapatos na mão. Felipe, um
pouco embriagado, não acreditava no que tinha acabado de fazer,
retiniu aquilo tão alto para todo mundo ouvir, mesmo assim não
acreditava. Depois pensou lamentando:
“E ela estava tão bonita com aqueles cabelos presos daquela
maneira. Deus! Eu sou mesmo um idiota.”
Vendo tudo aquilo, Ivan não se conteve:
– Você está louco, cara!? Você viu o que você fez?
– Também não estou acreditando até agora.
– Vá lá e peça desculpas a ela senão vai ser tarde.
– E ela estava tão linda – disse Felipe, lamentando.
– Vá lá, cara!
– Agora deixe... esquece. Outro dia eu peço desculpas.
– Desculpas!? Você é um louco mesmo.
– Mas às vezes tenho razão. Ela me nega o olhar e nunca aceita
minhas atitudes.
– Atitude, cara!?
Logo quando começou a cerimônia Felipe marrou a fisionomia
para os presentes na festa. Resolveu esquecer o acontecido.
Felipe, verdadeiramente, gostava de manter seu orgulho, gostava
de manter-se poderoso como um general para que seus sentimentos
não se enfraquecessem diante de uma mulher. Nesses momentos,
Felipe demonstrava seu completo machismo, algo que nunca
passava pela cabeça dele antes. Machistas eram os outros, os
sobejos, os fanfarrões e os infames. Para ele aquela sua atitude era
de um homem sentido, como qualquer outro homem que nunca
chora.
Decidiu então prestar atenção na cerimônia, a noiva de Ângelo já
se aproximava do altar. Naquele instante, Felipe sonhou consigo.
Havia nele um sentimento nascente de felicidade, Felipe se
demonstrava apaixonado por outra pessoa. Era uma paixão que já
chegara de uma forma que não dava mais para medir a diferença do
certo e do errado. Apesar do machismo, ele demonstrava ser
bastante frágil quando qualquer sentimento mais nobre adentrava em
seu coração. E fora apenas uma pequena olhadela qualquer.
Qualquer momento era tempo dele sonhar junto com seu platonismo
terminante.
Logo quando abriu os olhos, o casal recém-casado já comemorava
sua união com os participantes, a noiva já jogara até a corbelha de
flores para o restante das solteiras.
Sozinha e lamentando o acontecido, Grace viajava no ônibus com
os calçados de salto alto nas mãos, estava triste, pensava que Felipe
nunca mais poderia ser seu, pois sempre quando ele bebia, palavras
desafiadoras surgiam.
Na viagem até a sua casa Grace continuava triste e pensando.
Pensamento de Grace:

Agora estou indo para sempre, Lipe querido! Nunca mais quero ver
seu rosto novamente. Você às vezes parece um velho trapaceiro que
não consegue me ouvir nem por um momento. O que fazer? O que
fazer? Se eu o amo. Estava tudo tão lindo até ele fazer e acontecer
na bebida. Mas eu o amo, Deus. Às vezes penso que não é somente
a bebida que faz isso com ele, às vezes pode ser eu. Talvez eu não
saiba agradá-lo. Sempre, em todas as nossas brigas eu acabo
chorando tristemente. Penso que eu seja mais frágil do que ele.
Felipe, nessas horas, se mostra bastante forte contra tudo, ele não
deixa a infelicidade se mostrar em seu comportamento. E o que eu
vou fazer!? Se eu não consigo controlar minha saudade por ele. Mas
dessa vez, Lipe, você me procura, por que quando estou sozinha,
qualquer sentimento lacera meu coração. Em qualquer dia do mês
minha espera está cheia de saudade. Mas mesmo o amando tanto
assim, nunca mais faça isso comigo, nem por brincadeira.
Esqueça! Eu já sei o que vai acontecer. Você vai me ligar e pedir
desculpas com aquele seu jeito de cachorro sem dono e eu vou
acabar aceitando tudo para ficar novamente do seu lado.

Apesar de tudo, Grace era uma moça donairosa e por isso não
conseguia esconder sua paixão por Felipe. Ela sempre o amou
muito.
Muito triste e com a maquiagem borrando no rosto, Grace desceu
do ônibus, sempre com os saltos na mão, antes de caminhar lívida
até a entrada do condomínio onde morava:
– Senhorita Grace! O que aconteceu!? Está chorando – disse o
porteiro do prédio, preocupado.
– Nada, não foi nada – disfarçou ela.
Então ela subiu de elevador, entrou no seu apartamento e se atirou
na cama de casal que trazia lembranças de Felipe, todo aquele
quarto parecia ser uma certa divindade a favor dele. Isso a
perturbava mais ainda.
Enquanto isso, Felipe foi embora da cerimônia de carona com
Ivan.
– E agora o que vai fazer? – perguntou Ivan.
– Não sei. Talvez eu ligue para ela – considerou Felipe.
– Depois de tudo que fez! Você acha que ela ainda vai aceitá-lo?
– Não sei. Ela já aceitou outras vezes.
– Tome tento, meu caro amigo. Essa mulher ainda gosta de você.
Você vai acabar perdendo ela.
– E se isso acontecer não vou me importar muito.
– Ela gosta de você e não vou falar outra vez.
– Mas eu não gosto tanto assim.
– Você não vai encontrar tão fácil uma garota como aquela. Vá
devagar – advertiu Ivan.
Não demorou muito e Ivan estacionou o veículo em frente ao
condomínio onde Felipe morava.
– Vá com calma, amigo – continuou Ivan.
– Calma é o que tenho de sobra.
Felipe despediu-se de Ivan, depois entrou no condomínio, subiu as
escadas e entrou no apartamento.
Em seguida, veio uma vontade súbita de rever aquela moça da
janela ao lado. Felipe então recostou-se sobre a janela e esperou
alguns minutos até vê-la novamente.
Capítulo 3
Ela estava ali, no mesmo lugar, do outro lado, na mesma janela
que avistava seu quarto, estava com jeito de quem estava
despreocupada da vida. Num determinado momento, Felipe tentava
fitar seus olhos que se anulavam de sua vista. Felipe sempre
procurava seus olhos, até que, repentinamente, ela deu uma olhada
para ele e permaneceu olhando sem dizer nada. Em outro instante,
ela continuou olhando para Felipe, só que dessa vez parecia se
apaixonar. Felipe sentiu isso como um sol nascente.
Pensamento de Felipe:

Finalmente ela parece gostar de mim. Isso sim! Vou esquecer


Grace rapidamente com ela sob meus olhos. Quero esquecer todos
os momentos que já tive com Grace. Quero lacerar meu coração
com uma nova paixão. Eu ainda vou conquistar esses carinhos
distantes. Infeliz estou por desejá-la tanto a ficar desse lado que nem
um triste aceno seu será desculpa para eu não lhe querer. Minha
felicidade é vê-la e você nem me notar. Que diferença faria se ela
não me notasse? Então meus sonhos não seriam verdade.
E agora!? De maneira alguma eu gostaria que você fosse embora
agora. Fique para que eu me apaixone mais, para que eu comece a
fazer loucuras como mostrar meu coração flechado. Olhe, não fique
tímida, me mostre seu corpo! Às vezes você me sorri e o seu sorriso
parece sempre lindo como se todas as cores estivessem nele.

Felipe e a moça continuaram a se ver por um tempo muito


demorado. Felipe parecia feliz, ela parecia responder ao seu
encanto. Qualquer momento que não fosse aquele de vicejar aquela
moça, digo moça porque ela parecia ser bem mais nova do que
Felipe, seria um encargo pesado ou um incômodo.
Felipe, quando apaixonado, não parecia ser diferente de qualquer
um, pensava às vezes em mandar flores, bilhetes, poemas,
chocolate, convidá-la para sair e até segui-la, mas, no fim de tudo,
sempre pensava que seria uma grande besteira que poderia assustá-
la. Assim se sentia Felipe quando apaixonado.
Mesmo sem palavras o encontro dos dois era sem querer, um
romance platônico, nenhum dirigia palavras com o outro, apenas se
olhavam. Às vezes, ela saía da janela fingindo não prestar atenção
em Felipe, mas em outras vezes ela voltava sorrindo ao ver que
Felipe continuava a observá-la. Talvez a moça sentia que estava se
interessando por Felipe, aquele seu motivo bobo de ficá-la vigiando
pela janela a fazia desejada e ele também sabia fitar bem os olhos
de qualquer garota. Apenas uma coisa incomodava Felipe naquele
instante, o fato de não saber o nome dela, pois já estava decidido ao
sentimento que crepitava no coração. Sentia que algo o fazia
esquecer Grace completamente de sua vida. Ela apenas continuava
sorrindo com os olhos para Felipe, e ele terminantemente,
continuava se apaixonando. Resolveu então pensar numa ideia
prática de como conquistá-la. Tudo parecia difícil, nada lhe parecia
simples, pensava em algo que fizesse impacto ao coração daquela
doce e sonhada mulher.
Do outro lado da cidade, enquanto Felipe se apaixonava, Grace
continuava desolada, não sabia o que fazer, meneava a cabeça para
os lados e pensava que sem Felipe sua vida seria insuportável:
“Aquele danado ainda vai ver uma coisa”, pensava consigo Grace.
“Vou quebrar a minha promessa e voltar a fazer programas. Sim! Vou
voltar a fazer programas. Dessa vez, querido Lipe, vou pensar muito
mais em mim. Se não me quer, não me importarei, tem muito homem
que faria tudo para ficar do meu lado, problema seu”.
Para Felipe, o momento estava romântico, pois continuava de
olhadelas para a moça, até que, sem mais nem menos, ela sumiu
novamente.
Logo Felipe procurou alguém para confessar aquela paixão, pegou
o telefone e ligou para o companheiro Ivan:
– Alô, Ivan! – disse ele.
– É você, Felipe? – indagou Ivan.
– Preciso conversar com alguém para desabafar.
– Para mim tudo bem.
– Pense em algum lugar.
– Pensei. Vamos fazer aquelas rondas noturnas que fazíamos pela
cidade, assim, enquanto eu dirijo, você me confidencia seus fatos.
– Tudo bem.
– Tudo bem então, eu pego você às dez – finalizou Ivan.
Alguma coisa atormentava os pensamentos de Felipe naquela
noite, mas não sabia o que era. Certamente seria a moça do prédio
vizinho. Decerto Felipe sentia que estava apaixonado.
Enquanto esperava Ivan ele circulava pelo apartamento
procurando peças de roupas.
“Será que ela realmente me notou?”, pensou Felipe. “Claro que
sim! Senão ela não ficaria ali por tanto tempo. Tenho que, pelo
menos, descobrir seu nome.”
Quando Felipe sentia novamente o verbo amar, ficava assim, de
pensamentos vagando pelo ar, quase como um adolescente.
Felipe, perturbado, olhava para os lados, sentia que o coração
estava estranho, sentia que aquela paixão crescia cada vez mais.
Ainda esperava por Ivan impacientemente, logo depois começou a
fumar incontroláveis cigarros. Novamente foi para a janela para
tentar a sorte, e ela estava lá, linda como nume lívida e estrelada,
seus olhos pareciam guarnecer um prazer vindouro. Realmente,
Felipe não acreditava, ela o olhava de um jeito tentador, mas ele
pensava e sentia que aquilo tudo luzia perto do impossível. Dessa
forma, sempre começava a imaginar uma forma de tê-la mais
presente. Porém, tudo parecia realmente impossível. Tempos atrás já
vivera algo parecido, tanto nos tempos de rapaz quanto nos tempos
de homem. Mas agora não, seus pensamentos machistas não
podiam suportar que uma mulher o dominaria assim.
Quedava as mãos com cigarros e às vezes passava a mão na
barba a fazer. Certamente ele não podia aceitar aquela situação.
Porém, a força dos olhos dela pareciam hipnotizar qualquer
comportamento rude seu. Já com Grace tudo era diferente, pois ele
conseguia manter sua atitude por não amá-la tanto assim, e o pior de
tudo era que Grace tinha o raro dom de agradá-lo demais por amá-lo
muito.
Um pouco da noite passou rapidamente assim, com a vizinha em
frente à janela de Felipe mantendo o olhar provocador da paixão.
Repentinamente a campainha tocou, Felipe pensou:
– Ivan já deve ter passado pelo porteiro.
Em poucos passos até a porta, depois remexendo a chave ele
enfim conseguiu abrir. Era realmente Ivan, sorridente, foi logo
perguntando:
– O que aconteceu, amigo?
– Conto logo que sairmos.
Sem que Ivan percebesse, ele foi até à janela, mas dessa vez ela
tinha sumido e apagado a luz do apartamento.
– Por que está tão estranho? Parece que viu assombração –
brincou Ivan.
– É quase isso! – disse Felipe.
– Assim você me deixa curioso.
– Vamos, eu conto no caminho.
Os dois logo saíram do apartamento e desceram as escadas. Já
fora do prédio entraram no veículo de Ivan.
– Então, o que aconteceu? – perguntou Ivan.
– Cara! Nem te conto! – disse Felipe.
– O quê?
– Estou completamente apaixonado – constatou Felipe, eufórico.
– Disso eu já sei. Grace consegue realmente mexer com a sua
cabeça – declarou Ivan, com a chave na ignição.
– Não é Grace! – continuou Felipe. – É uma garota especial.
Simplesmente linda!
– E o que ela fez para deixá-lo assim?
– Ficamos nos paquerando há horas.
Nesse instante, o veículo já estava circulando pela cidade:
– Talvez você esteja sonhando demais – acautelou Ivan. –
Somente conheço uma mulher que gosta de você verdadeiramente.
– Não! Essa mulher mexe comigo, sabe. É totalmente diferente de
Grace. Aliás, penso que Grace terminou comigo definitivamente.
– Por quê?
– Porque ela não me ligou hoje de manhã.
– Claro! Depois de tudo que você disse a ela. Penso que ela tem
toda razão.
– Mas ela sempre me liga todas as manhãs... esqueça! Olha,
aquela mulher é a coisa mais linda que já vi.
– Esqueça essas mulheres impossíveis! – aconselhou Ivan. – E
pense nessas reais princesas da rua. Olha aquela dali! Minha nossa
é um avião!
– Você nunca vai esquecer essa vida mesmo.
– Lembra, era como dizíamos: a vida tem que ser vivida com a
mulher da vida, porque se a vida não for vivida com a mulher da vida
a vida não é vivida.
– Esqueça isso. Tudo isso era uma grande besteira do nosso
tempo juvenil.
– Mas você adorava!
– Os tempos mudam.
– Minha nossa! Olha aquela loiruda ali – retiniu Ivan.
– Como você gosta disso!
– Desde que eu me entendo como homem – brincou Ivan.
– Você não tem vontade de se apaixonar? – perguntou Felipe.
– Não. E ficar como você...
– Não, mas com essa moça é diferente. Sinto que existe algo forte
entre nós.
– Somente se for isso que você guarda aí entre as calças.
O veículo deslizava sereno entre os pontos de prostituição da
cidade. Até que, repentinamente:
– Olha aquilo ali! Pare o carro, Ivan – gritou Felipe. – É aquela puta
da Grace!
Novamente o comportamento estúpido de Felipe transparecia...
além de maltratar Grace com a boca suja, ela não podia ficar com
ninguém.
Rapidamente Felipe desceu do veículo, furioso:
– O que você está fazendo aqui!? – vociferou ele.
– Calma! Eu posso explicar... – disse Grace, tentando se defender.
– Explicar!? Sua... sua... sua vadia!
– Não precisa fazer escândalo.
– Você lembra o que você me prometeu?
– E você!? – retrucou Grace, em tom enérgico. – Você lembra o
que me disse ontem?
– E não era verdade!?
Nesse momento, Felipe ameaçou dar um tapa no rosto de Grace:
– Eu a amava, sua vadia! – declarou ele. – Sonhava em casar com
você.
Novamente Felipe tentava acertar Grace, mas o colega Ivan
tentava apaziguar a situação.
– Muita calma, amigo – pediu Ivan. – Vamos para o carro.
– Não me faça drama – irritou-se Grace. – Você já está
acostumado com tudo isso.
Ivan continuou no local segurando Felipe.
– Vamos embora, amigo.
– Solte-me, Ivan! Deixa-me ensinar uma coisa para essa mulher.
– Vamos embora.
Enquanto Felipe gritava desaforos para Grace, Ivan o segurava
para colocá-lo dentro do carro.
– Vadia!
– Nunca mais me procure para curar suas enxaquecas – gritou
Grace. – Nunca mais!
Naquele momento, várias colegas de Grace a cercaram:
– O que aconteceu? – perguntou uma delas.
– Não foi nada. Apenas um cliente com dores de cotovelo – disse
Grace.
– Humpf! Esses homens... com apenas algumas noites já pensam
que são donos da gente.
Logo dentro do veículo Felipe se acalmou:
– Tudo bem – assegurou ele. – Eu vou conseguir esquecê-la.
– Minha nossa! – pronunciou Ivan. – Ela voltou a fazer programas.
– A culpa foi toda minha... se eu não tivesse provocado ela
naquela festa. Pare ali! Quero tomar todas, hoje.
– Tudo bem. É você quem manda!
Cabisbaixo, quase triste, Felipe saiu do carro e sentou numa mesa
bem perto do luminário da casa. Ivan apenas o acompanhou.
– Não posso acreditar que ela fez isso! – confessou Ivan, tentando
confortar o amigo.
– Sim, mas ela fez.
– Penso que dessa vez tudo acabou.
– Sim, dessa vez tudo acabou – afirmou Felipe, um pouco irritado.
– Mas não pense que vou deixar tudo como está. Ela vai pagar um
preço bastante alto por isso.
– E o que você pensa fazer?
– Não sei... mas que ela vai pagar... isso ela vai!
– Garçom! Traz uma bebida bem forte para o meu parceiro aqui.
Enquanto isso, Grace foi para o apartamento chorar. Estava
deitada sobre a cama com os olhos cheios de lágrimas borrando a
maquiagem da noite.
Pensamento de Grace:

Você quase me bateu... e eu o amo tanto, Felipe! Pensei por certo


momento que tudo iria melhorar. Mas não, cada vez você se torna
mais estúpido e orgulhoso. Penso que dessa vez tudo acabou... mas
eu o amo tanto! Deus, por que tudo acontece de errado comigo? Às
vezes penso que espero muito do Lipe... gostaria que ele estivesse
num mirante bem alto me esperando, esperando pacientemente
todos os meus erros. Sei que a culpa maior é minha. Algumas vezes,
tento melhorar para ele, vestindo peças mais comportadas, olhando
apenas para ele quando estamos juntos, enfim, ser a menina joliz de
seus sonhos mais profundos de amor. Mas ele sempre pensa em ser
o valentão das mulheres com aquele pensamento retrógrado e
antiquado de que vai me sustentar enquanto lavo e cozinho para ele.
Às vezes penso que ele tem outra mulher. Só pode ser isso. Ele deve
ter outra mulher! Isso explica aquela estupidez comigo.

Do outro lado da cidade, Felipe e Ivan bebiam juntos para espantar


a noite.
Por um instante, Felipe permaneceu calado e pensativo ao lado de
Ivan.
Pensamento de Felipe:

Você não podia ter feito isso comigo, Grace! Agora não vamos
voltar nunca. Está decidido assim na minha cabeça. Tenho certeza
que sou bem mais forte do que você quando o assunto é nossa
separação. Não quero mais nada de você. Aliás, não quero mais
guardá-la no cantinho bom do meu coração. Esqueça-me de uma
vez!
Nesse momento, Felipe, olhando para ninguém, bebeu mais um
pouco de cerveja.
Pensamento de Felipe:

Quero deixar meu coração voar mais alto, voar para bem longe
onde eu possa sonhar imaginações mais lascivas. O amor de Grace
é diferente do que eu quero para mim, é um amor que não vale mais
do que uma noite bem vivida. Pois eu quero sim é uma vida bem
vivida.
A vizinha parece gostar de mim. Apenas falta algum tempo para
nos conhecermos melhor. Quero que uma coisa fique clara, o que
me mantém degenerado por ela é a força viva da sua beleza.

Logo a noite passou rápido e Felipe já estava novamente dormindo


embriagado em cima do sofá do seu lar.
Alguns dias que se passaram a mais foram apenas para Felipe
lamentar ao pé da bebida.
Enquanto Grace parecia não suportar a dor de mais um dia sem
Felipe. O medo da tristeza era mais sentido por ela que devotava
naquele amor sua declaração de paz contra todos os seus
problemas, que não eram poucos, o dinheiro sempre acabava antes
do final do mês. Às vezes, infelizmente, ela passava por grandes
dificuldades, sempre fazia suas contenções de despesas para poder,
no mínimo, se alimentar melhor. Nisso tudo não faltavam mentiras
frequentes para os pais, mentia que trabalhava num escritório de
advocacia e que ganhava razoavelmente bem.
Depois da última conversa com Ivan, Felipe deixou bem claro que
desmascararia Grace para os pais.
– Vá com calma, amigo! – aconselhou Ivan.
– Aquela vadia não vale nada mesmo! – disse Felipe, irritado.
Mesmo difamando a parceira, Felipe não percebia que seu estado
emocional se alterava quando mencionava o nome dela.
Alguns dias passaram até que Felipe começou a colocar seu plano
em prática. Uma vez, no apartamento de Grace, Felipe encontrou
uma carta dos pais dela, depois conseguiu anotar o endereço. Foi
fácil, pois ele já pensara em fazer aquilo, avisar aos pais de Grace
que ela estava se prostituindo.
Felipe enviou então a carta pelo correio, nela, ele explicava a vida
que Grace vinha tendo.
Passaram mais alguns dias, até que:
– Virgílio! Veja só, uma carta – disse a senhora Regina. – Uma
carta anônima, endereçada a você e a mim.
– Deixe-me ver – aproximou-se o senhor Virgílio.
– Abra logo!
– Espere, querida.
Aos poucos, senhor Virgílio, pai de Grace, lia a carta com cuidado.
Quando terminou de ler, tirou os óculos do rosto e os segurou
firmemente. Depois olhou no fundo dos olhos de sua senhora e
começou a soluçar. Não queria acreditar naquelas palavras.
– O que aconteceu, Virgílio?
– Não sei, leia você.
Então senhora Regina pegou a carta para si e começou a ler em
voz alta.
– Minha nossa! Será verdade!? – assustou-se ela.
– Onde foi que nós erramos, querida!? – declarou o senhor Virgílio,
chorando.
– O que vamos fazer, querido?
– Quanto a você eu não sei, mas eu vou trazê-la para casa à custa
de fiveladas.
– Você não vai fazer isso. Pelo bem de nossa filha!
Nesse momento, senhor Virgílio começou a arrumar a mala para
visitar a filha.
Mesmo não acreditando, senhor Virgílio partiu para a capital
querendo esclarecer com Grace o motivo daquela carta.
Quando chegou à frente do apartamento de sua filha o senhor
Virgílio respirou bem fundo e pediu a Deus que tudo isso não fosse
verdade. Depois tocou a campainha e:
– Pai! Quanta surpresa! – anunciou Grace, um pouco
surpreendida.
Ela não estava esperando nunca ver o pai no seu apartamento de
receber os clientes.
– Tudo bem, minha filha?
– Pai, o que o trouxe aqui tão repentinamente?
– Filha, eu tenho uma coisa muito séria para falar com você.
Grace temia a todo instante, pois poderia aparecer qualquer
cliente, dessa forma não saberia explicar para o pai.
– Por que não ligou antes? Eu poderia ter arrumado toda essa
bagunça – disse ela, tentando mudar o assunto.
– Filha, preste atenção, o que eu tenho para falar com você é
muito sério.
Nesse instante, Grace se amedrontou. Pensou que ele talvez
tivesse descoberto sobre sua vida na cidade. Pensou logo em Felipe.
– Filha, leia esta carta que eu recebi em casa – pediu seu Virgílio,
entregando a carta.
Grace rapidamente disfarçou seus atos e começou a encenar
todas as atitudes... venusianamente leu bem devagarinho, em
pensamento:
“Felipe, você me paga!”
Depois virou-se de frente para o pai e sorriu:
– Ah, pai! Não acredito que você acreditou nessa besteira –
advertiu ela, fazendo-se de tranquila.
– Então não é verdade!?
– Claro que não, pai! Talvez seja de um ex-namorado meu que não
aceita até hoje nossa separação. Acho que até sei quem é.
– Foi o que eu também pensei, filha. Mas e eu sua mãe ficamos
tão preocupados que logo pensei em esclarecer com você.
– Pai, como pôde pensar isso de mim! – declarou ela, abraçando-
o.
– Desculpe, filha.
Quando abraçou a filha seu Virgílio não se conteve e começou a
chorar.
– Desculpe, filha! Sabe como é? Você aqui sozinha nessa cidade
grande... eu tive medo... sei que a gente não tem muita possibilidade
de lhe oferecer uma vida melhor. Mas agora, conversando com você
aqui, sei que pelo menos dignidade nós conseguimos lhe dar. Esses
rapazes de hoje não merecem mesmo uma princesa como você –
desabafou o senhor Virgílio.
– Tome. Aqui está o cartão do escritório onde trabalho.
Grace já havia pensado em tudo. Até como despistar seu pai da
verdade. Ela conhecia o pai que tinha e sabia que ele era um homem
muito cheio de pudores.
Já o senhor Virgílio acreditava muito facilmente em tudo que a filha
dizia. Com o cartão em mãos, não teve dúvidas, sua filha era
realmente o que pensava, uma mulher honesta e direita.
– Venha, pai! Hoje o senhor vai dormir nessa cama grande e
confortável.
Depois, mudando de assunto:
– Sabe, filha? Sua mãe está conseguindo vender bem os salgados
que está fazendo em casa. Daqui uns tempos, ela vai poder ajudá-la
em seus estudos.
– Obrigada, pai! – mentiu Grace. – No momento, não estou
precisando. O emprego lá no escritório está muito estável.
Nisso, quando seu pai foi tomar banho, ela aproveitou para
desligar e esconder o telefone. Depois foi para o interfone e
conversou baixinho com o porteiro:
– Não estou para ninguém, hoje. Ouviu? Ninguém.
– Pode deixar, senhorita Grace.
“Ah, Felipe! Um dia você me paga”, pensou ela.
Então, depois de ter esclarecido tudo com a filha, o senhor Virgílio
partiu aliviado retornando à sua casa no interior. No caminho, dentro
do ônibus, ele foi relembrando feliz toda a vida de Grace.
Pensamento do senhor Virgílio:

Enfim, tudo acabou bem. Minha filha é realmente o que eu


esperava, uma filha dócil, amável, dedicada nos estudos e no
trabalho. Esses rapazes de hoje em dia perderam totalmente os
valores do bom costume, não sabem respeitar ninguém, quanto
menos as mulheres, ainda mais uma mulher como a minha filha,
sempre donairosa e afável. Quem escreveu essa carta é um
completo despeitado. Não soube agradá-la como ela merecia, sim,
como ela merecia, como uma princesa. Uma mulher como ela, tão
valorosa, não poderia nunca se envolver com qualquer um, mas eu
sei, seu coração é simples, não consegue ver maldade nas pessoas.
Eu tenho vontade mesmo é de esganar quem escreveu essas
besteiras.
Quando o senhor Virgílio chegou em casa:
– Então, diga, homem de Deus! Como foi? – perguntou dona
Regina.
Seu Virgílio, prontamente, sorriu e abriu os braços para abraçá-la.
– Foi tudo como eu esperava! – disse ele. – Quem escreveu isso é
um despudorado. Nossa filha está muito bem. Aqui está o cartão de
onde ela trabalha.
– Você tem certeza que ela está falando a verdade? – questionou
dona Regina, retraída.
– Tenho! Olha aqui. Tome o cartão.
– Isso não garante nada, Virgílio.
– Regina, a nossa filha não é dessas.
– Que bom que você acha isso. Assim fico mais aliviada.
– Deus sempre foi muito generoso com a gente, não seria agora
que ele nos deixaria na mão.
– Será verdade mesmo, Virgílio?
– Claro que é verdade, mulher!
Nesse instante, os dois se abraçaram fortemente:
– Deus lhe ouça! – declarou dona Regina. – Deus lhe ouça!
Naquele mesmo dia, Felipe estava acordando de um pesadelo,
contentando-se em respirar novamente os ares do dia.
Novamente, percebeu que seu sonho ainda estava de pé e
resolveu vigiar o apartamento da janela ao lado, infelizmente, parecia
que a moça não estava lá, mesmo assim continuou vagando o olhar.
Repentinamente, tocou a campainha, Felipe se assustou e foi ver
quem era.
Quando abriu a porta:
– Seu nojento! Quer destruir minha vida!? – bravejou Grace,
acertando alguns tapas no peito de Felipe.
– O que aconteceu?
– Não se faça de desentendido!
– Mas realmente não sei.
Sorrelfo, Felipe disfarçava seus atos com Grace:
– Como você teve a coragem de dizer tudo aquilo para os meus
pais? – inquiriu ela.
– Dizer o quê? Eu nem conheço seus pais – disse ele, fazendo-se
de inocente.
– Não se faça de idiota novamente! Você escreveu uma carta para
os meus pais.
– Pode ser qualquer um desses que você encontra na rua.
– Foi você... eu tenho certeza que foi você... seu... seu monstro!
Nesse momento, Grace sentou e começou a chorar.
Felipe tentou consolá-la.
– Pode ter sido qualquer um – declarou ele, novamente.
– Foi você, seu monstro!
– E o que estava escrito nessa carta?
– Que eu sou garota de programa.
Nesse momento, Grace chorou muito.
– Sabe!? Eu posso ser tudo nessa vida, mas nunca vou querer
perder a dignidade e o respeito que tenho dos meus pais –
desabafou ela.
Felipe resolveu se aproximar de Grace para reconfortá-la:
– Não fique assim – pediu ele.
– Como não ficar assim!? – irritou-se Grace. – Você tentou destruir
minha vida! O único respeito que ainda tenho é o respeito que os
meus pais dedicam a mim. Por favor, eu peço, não destrua a minha
vida!
– Mas eu continuo afirmando que eu não tenho nada a ver com
essa história.
– Lógico que foi você! A gente tinha acabado de brigar naquela
noite.
– Grace, eu tenho pena de você. Mesmo depois do ocorrido e
mesmo depois do seu pai desconfiar de você, mesmo com tudo isso,
você continua vendendo o corpo. Você não tem vergonha?
– Eu não posso! Tudo está cada vez mais difícil. A mensalidade da
faculdade até aumentou.
Felipe a segurou pelos ombros tentando dedicar um pouco de
carinho:
– Vamos! Esqueça essa vida e volte para mim. Você viu! Tudo
estava melhorando.
– Solte-me! Eu não acredito mais em você.
– Então você prefere a segunda vida que leva, com o medo de
seus pais um dia descobrirem, do que viver comigo, somente
comigo.
– Lipe, você sabe que eu o amo muito – disse Grace, olhando nos
olhos dele e chorando. – Você tem que saber que você é o único
amor da minha vida.
– Então? Por que não se afasta desse submundo?
– Eu não posso. Você nunca vai entender.
– Realmente eu nunca vou entender.
– Você tem noção do inferno que é minha vida? Meus pais não
podem descobrir nunca.
Grace controlou o choro. Em sua consciência, o certo sempre
sussurrava, mas o calor da concupiscência crepitava ardentemente.
A força em que ela mantinha seu pequeno status anulava os padrões
normais que eram lacerados pelo poder das coisas, que ela, em sua
visão de mundo, nunca poderia viver sem o luxo das melhores
coisas. Ela sabia que agia erroneamente. Que o grande amor que
sentia por Felipe poderia acabar com aquela sua atitude de viver a
contemplação do mundo moderno. Mas o hábito e o costume da vida
lhe impunha tudo isso sem qualquer tipo de escolha. O coração de
Grace somente desejava estar junto de Felipe, mas a alma mundana
machucava o sentimento presente. Seu coração, a todo instante
junto de Felipe, se sentia roubado violentamente, mas a decisão
estava tomada, somente havia o desejo de estar sempre ao lado do
caminho destinado do dinheiro e do status. Ela sentia que aquele
momento era realmente o momento dela, pois devido à influência de
alguns clientes seus, ela procurava engrenar uma carreira de
modelo.
Felipe, com toda razão, se achava no direito de tirar aquela ideia
fixa de Grace. Seu instinto masculino insistia em protegê-la,
guarnecê-la da vida mundana, mesmo não compartilhando de seu
sentimento, ele mantinha seus padrões machistas de querer que sua
namorada estivesse sempre de laços presos à sua vontade,
diminuindo-a como sua posse que não deveria ter sentimentos
contrários aos caminhos do destino de seus pés.
A vida continuava mesmo com a falta de um sentimento mais rijo
por qualquer outra mulher. Ele sentia que não amava Grace, mas ela
o guarnecia dos violentos sentimentos. O acaso não agradava, as
mulheres que já tivera até então estavam quase todas casadas,
procurava encontrar alguém que incendiasse o coração com uma
paixão adornada de amor. Essa paixão era sinalizada através da
janela do seu apartamento, um sentimento quase platônico pela
moça em que ele flagrou através da janela, por meio de olhares
lívidos, da vontade lasciva que refreava seu sentimento promíscuo e
do descontrole passional degenerado. E desse sonho libidinoso
Grace não fazia parte, aliás, Grace era apenas o instante da rotina
agradável. Contudo, ele controlava Grace, ele não deixava ela voar
como um pássaro cinéreo que pudesse alcançar a nuvem, ou
através dela ou através dos seus sonhos femininos.
– Venha morar comigo – disse Felipe.
– Eu não quero – declarou Grace. – Eu sei que voltando para você
eu vou sofrer mais ainda do que sofro. Você não me respeita nunca.
– Mas você não se dá o respeito!
Em todos os instantes em que os dois estavam presentes no
apartamento Felipe procurava se aproximar serenamente de Grace.
– Eu não sei por que você exige tanta fidelidade de mim –
desabafou Grace, em tom peremptório. – Você me conheceu num
programa, desde aquele dia nós prometemos um ao outro não
interferir em nossas vidas.
Nosso relacionamento já teve vários altos mesmo eu sendo garota
de programa.
– Mas hoje tudo mudou.
– E por quê?
– Porque estou gostando de você.
– Sinto, Lipe! Mesmo o amando muito eu não quero viver mais
suas incertezas.
– Então por que você veio aqui? – perguntou Felipe, tentando
agarrá-la a força.
– Eu vim para você deixar meus pais em paz.
– Quem não deve não teme.
– Então foi você realmente!
– Não, não fui eu – continuou mentindo Felipe.
– Veja bem o que você está fazendo. Você pode estar destruindo
minha vida, tudo que eu levantei até aqui.
– Você quer dizer, tudo que levantou com base em mentiras.
– Solte-me!
– Tudo bem. Mas que fique claro de que, quem está fazendo isso,
está fazendo para libertá-la de uma vez das mentiras. Talvez você
encontre uma sorte com a verdade. A pessoa que está fazendo isso
não está fazendo para julgá-la, e sim para esclarecer do melhor
caminho possível através da alegria de conhecer a razão da vida.
– E o que você conhece da minha vida para dizer isso? Eu tenho
sonhos, sonhos possíveis, sonhos reais. Você está parecendo um
muro nunca ultrapassado que trafica meus pensamentos mais
íntimos, mais verdadeiros. Eu estou esperando apenas a força mover
do meu lado, depois disso eu posso pensar em rever todos os meus
erros.
– Continue assim, pensando somente em seus sonhos egoístas.
Desse jeito você esquece facilmente das pessoas que mais a
amam, seus pais e eu.
– Que grande tolice! – raivou-se Grace. – Você me ama!? Você
nunca me amou. Eu sempre enxerguei seus olhos distantes. O
sangue do seu coração sempre pulsou por mulheres do seu passado
que nunca o amaram verdadeiramente.
Todas as farpas dirigidas de um para o outro estavam sendo,
naquele instante, carregadas de cólera. Nenhum aceitava a ideia
contrária do outro. Felipe, teimoso, apenas exercia sua vontade de
querer que Grace estivesse longe da prostituição, do mundo de
concupiscência e de luxúria. Enquanto Grace não aceitava que
ninguém dominasse a sua verdadeira vontade.
Nunca adiantaria Felipe falar qualquer coisa, pois, apesar dos
pesares, Grace sempre lamentava a vida que levava. Quantas vezes
ela já chorou depois de um programa, mas não tinha mais volta, seu
corpo estava na inércia da vida degenerada.
– Cale a boca! – disse Grace, enxugando as lágrimas. – Você,
entre tantos, foi a única pessoa que eu realmente amei mesmo não
merecendo. Você sabe quantas vezes eu choro por não tê-lo do meu
lado? Eu sinto que você não me ama! Você sempre foge de qualquer
situação mais próxima que envolva um casal.
– Mas você se dá o respeito para isso? Você não se dá o menor
respeito! Prefere ser uma vadia na cama dos outros, uma vagabunda
de pernas abertas e uma piranha suja.
Todas aquelas palavras mais duras desestruturaram os
sentimentos mais ternos de Grace. Mesmo acostumada a ouvir
aquelas palavras pela rua, ela não suportava quando as palavras
vinham da pessoa amada. Logo começou a chorar:
– Você não pode fazer isso comigo! – gritou ela, chorando.
– Grace, você tem que aceitar a verdade, apesar de viver na
mentira. A verdade sempre existirá ainda que você não aceite.
– Você ainda verá que tudo o que você está fazendo comigo é um
erro – chorou Grace, abrindo a porta para ir embora.
– Espere, não vá ainda! Talvez eu devesse pagá-la por todas as
horas que tivemos juntos.
Depois de ouvir aquilo, Grace, muito magoada, partiu descendo as
escadas. Ela estava fora de controle, chorando muito. Felipe sabia
como ninguém colocar o dedo na sua ferida.
Ainda houve tempo para Felipe gritar mais algumas cretinices pelo
hall:
– Às vezes, eu tenho vontade de espancá-la – berrou ele, furioso.
Grace continuou descendo as escadas, pausadamente, tentando
não se importar com as idiotices de Felipe. Contudo, seu coração
não perdia os ares amáveis por ele. Sua alma o tempo todo, desde
que conhecera Felipe, sinalizava para derrotar aquele machismo
desprezível de quem ela mais amava, mesmo com o veneno abjeto
dele, não seria agora que seu pensamento donairoso acabaria assim
facilmente. Ela permanecia chorando, mas sempre com sua fé
feminina, de que um dia ganharia a vida honestamente, de que um
dia mudaria inteiramente a cabeça dele.
Felipe fechou a porta, e com o pensamento degenerado ligou o
rádio, procurando ouvir algumas canções que pudessem quedar
aquele ímpeto valente que nunca perdia. A consciência sussurrava
sabedorias que ele não aceitava, pois o orgulho estava sempre
presente. A certeza única de que Grace, mesmo difamada, ainda
continuaria o amando, o fazia sentir potente, convicto de sua posição
masculina. Era cômodo se sentir assim, o amor jactante do seu peito
servia apenas para manter as aparências de um homem sempre
amado, sempre agressivo, sempre violento, que não perderia nunca
para homem nenhum o sentimento terno de Grace.
Ele, às vezes, se sentia como um sádico, por sentir tanta alegria
ao ver os olhos de Grace cheios de água. Sua indiferença soluçava
dentro do peito, assim não perderia dignidade, o brio e o decoro de
um homem bem amado. Por não amá-la como devia, o medo o
cercava, era o medo presente de se machucar com os espinhos de
uma rosa. Então, ele, sorrateiramente, dosava a quantidade de
sentimento, algumas vezes amar outras vezes sem amar, era o que
o coração concitava.
Certo de que agiu de maneira acertada, ele aumentou o volume do
rádio, logo depois deitando-se no sofá único de dois assentos,
tentando refletir sobre aquele relacionamento que o seu coração
fechado despedia a cada momento.
Os sentimentos obscuros pescavam apenas de Grace o sexo, o
bem-estar, a luxúria e o bel prazer, nunca em seus pensamentos ele
conseguia espraiar uma novidade fraterna como sonhar em ser o
único homem de alguém.
Pensamento de Felipe:

O que aquela vadia quer? É claro que vou continuar abrindo os


olhos de seus pais. Como minha namorada, não vou querer de forma
alguma que ela saia abrindo as pernas para qualquer um na rua. Eu
sei que estou fazendo o certo, somente assim ela vai aprender que o
sentimento tem que ser recíproco. Estou cansado da palidez de seus
sonhos. Ainda bem que tudo ocorreu mal, eu não suportava mais
seus caprichos, eu não suportava mais estar em seus sonhos tão
gráceis e bem guardadinhos. Que ela aprenda a enxugar suas
próprias lágrimas sem precisar de mim. Mas de uma coisa ela pode
ter certeza, eu vou continuar barrando seus sonhos mesquinhos de
felicidade falsa. Como ela pode querer viver duas vidas e ainda não
se preocupar com o mundo que a cerca!? Ela tem que aprender, e
quanto antes melhor, que as pessoas são flagelos das aspirações
mais longínquas. Verdadeiramente o mundo não presta. Quando ela
finalmente aprender isso de uma vez por todas, talvez ela venha me
agradecer futuramente.
Aos poucos, Felipe foi adormecendo com o rádio ligado. Para ele,
sua vontade viril não passava apenas de um chato cravado na
passagem dos caminhos de Grace. Interromper a alegria intensa de
Grace era o proveito de sua vida desditosa. Seus problemas eram
como uma enorme bola de neve, a falta de encontrar realmente a
joliz que envaidecesse sua vontade inspiradora o guarnecia quase
sempre à frente do sol poente. E, com toda certeza, ele esperaria o
sol nascer novamente do outro lado, e esse sol nascente despertava
na janela ao lado. Uma nume graciosa que cegou seus olhos
desejosos de paixão, a vizinha da janela do prédio ao lado, a sua
única visão do sol nascente era a concrecação vertical que abrigava
aquela nina despertadora de sonhos.
Repentinamente, veio-lhe na ideia observar na janela a lívida moça
de sua paixão escondida. Talvez ele a pudesse encontrar
novamente, pensou. Talvez ela já estivesse pronta para agraciar
seus desejos apaixonados. Seus sentidos despertavam de prazer
somente com aquele momento de espraiar os olhos da amável
moradora do prédio ao lado.
Em pouco tempo, ele já se encontrava na janela, buscando as
formas da jovem refletir também em sua retina. Ao primeiro
momento, uma pequena decepção: ela não estava na janela. Mesmo
assim, sua imaginação não se conformou, ele continuou esperando
ela aparecer, mas sua real vontade não despontava. Já se
conformando que ela realmente não estava em casa, começou a
inspirar os ares daquele dia renovador, sentindo uma alegria
desmaiada ao avistar da janela as cores do dia.
Pensamento de Felipe:

Em meus pensamentos “no love” você apareceu, como uma


impudica vontade amorosa. Sonho pairar em seu coito a todos os
instantes que minha vontade nascer. Nina da janela, a menina mais
bela que enche em meu peito tanta cautela. É um medo sempre
presente estando sempre distante de seus ares de paixão. Ouço a
monodia de todos os seus sentimentos juntos adentrando em meu
coração, é uma melodia suave, lívida e triste.
Eu quero, mas não consigo roubar você violentamente para mim.
Seus olhos, mesmo quando presentes, parecem distantes,
sussurrando “não” para os meus sentidos reunidos na frente de sua
janela. Quando isso acontece, em meus pressentimentos mais
miseráveis, sinto que a paixão ignora qualquer sentimento luxurioso
meu. Por favor, quando novamente me avistar, não esconda seu
olhar potente de um amor que eu sempre busco em minhas tristezas.
Se acaso um dia você vier a me encontrar com Grace, não se
preocupe, ela é apenas um corpo degenerado, e meu corpo, também
degenerado, já se cansou de imperfeições. Mas você não, você é
perfeita, perfeita como o céu que tilinta o azul cintilante, perfeita
como o mar profundo que chora com as vibrações das ondas,
perfeita como a lua que brilha nos ares escuros do infinito, perfeita
como o sol que desperta na alvorada para decantar a vida no
livramento. Não se esqueça nunca que você é a peça derradeira de
meus sentimentos findos, pois eles podem se acabar sem que você
conheça a entrada do meu coração, que sempre estará aberto para
sua alma ficar mais bem guarnecida.

Entre o tempo pausado de uma canção e outra do rádio Felipe


adormeceu, sempre esperançoso em encontrar a jovem moradora da
janela ao lado. Ele sabia que vigiar as atenções daquela jovem seria
cansativo, mesmo assim não dispensava as atenções.
Já Grace ia para casa com os olhos disfarçados de lágrimas, de
maquiagem borrada, temia que alguém do ônibus notasse alguma
tristeza sua escondida. Continuava triste, observando serenamente a
paisagem da cidade, pensando no quanto Felipe era rude e grosseiro
torturando seu coração apaixonado que não se cansava nunca com
as atitudes dele.
Pensamento de Grace:

O que vou fazer para prendê-lo em meus laços? Seus sonhos


vagam distantes de mim. Em seu amor está presente a ira. O amor,
sim, não está perfumando em mim, mas a sua ira me sobrecarrega,
parece até que eu não fui feita para lhe dar calor. Talvez nossa cama
esteja fria como uma madrugada escura sem estrelas, ou talvez eu
não seja sensual o bastante para ligar sua imaginação libertina. É
isso, querido Lipe!? Eu não sou sensual o bastante? Eu não consigo
despertar o seu prazer? Eu não consigo fazer carícias em seu
espírito? Eu sei, você se entojou de mim. Meu corpo difamado pelos
outros é apenas uma desculpa deliciosa para os seus dizeres. Eu
sei, não pense que você esconde isso de mim, meus traços são
apenas desenhos desprezíveis em sua mente amante. Ama do meu
lado o que tem que amar no momento, no instante, no minuto que o
sentimento deseja. Mas seu futuro não consigo agarrar para mim,
está distante, no seu beijo compromissado eu sinto seu futuro
perdido no infinito. Mesmo assim, meu corpo, meu coração e minha
alma voam na velocidade do tempo para trancar seu futuro na minha
pequena felicidade, se um dia já tive uma, e somente assim ouvi-lo
dizer estou feliz ao seu lado.

O ônibus finalmente chegou ao ponto da casa de Grace, ela


desceu apressadamente, buscando o reconforto do lar, buscando as
sensações dos seus discos preferidos; buscando o aconchego de
sua cama; buscando um sentimento que nunca poderia estar
presente naquele dia, pois aquele dia ela guardou apenas para amar
Felipe. Tudo dera errado, ela não o amou, e soluçou um leve choro
por sentir os respingos de uma pequena chuva que caía, pensou
então: “eu poderia estar com ele, inflamando os ares com amor,
assistindo à TV e comentando a vida amorosa dos nossos artistas
preferidos”. Grace pensava no quanto seria bom estar ao lado de
Felipe naquele instante em que todos os seus pensamentos de
felicidade decaíam com o tempo em que a chuva tornava-se torrente.
Ela começou então a apertar os passos, não queria que a noite fosse
tão desditosa assim, além de perder novamente a pessoa amada,
não queria chegar encharcada dos pingos de chuva, que mais
pareciam lágrimas de Deus pelo pronunciado fim de sua relação.
Com bastante pressa, ela chegou ao portão do prédio em que
morava, gritou eufórica para que o porteiro abrisse o portão, somente
depois do terceiro grito que ele foi abrir, ela escondia as lágrimas
misturadas com as gotas de chuva.
Cordialmente, o porteiro esboçou uma conversa:
– Ninguém esperaria essa chuva hoje, não? – disse ele.
– Muito mais coisas que eu nunca esperaria aconteceram. Raios!
Por que o inferno somente aparece para mim? – declarou Grace,
irritada.
– Não fale assim, senhorita Grace, a gente tem que agradecer
todos os dias a Deus pela vida que ele nos concedeu, haja o que
houver.
– Que vida? Você acha que eu vivo alguma vida? Eu apenas a
suporto tão simplesmente.
Sem dar muita atenção para as palavras do porteiro ela subiu
rapidamente as escadas, cada passo era um movimento
acompanhado de angústia, ela pensava sempre consigo que tudo
aquilo não poderia estar acontecendo com ela, mas infelizmente
estava. Cansada e arfando com dificuldade, ela finalmente chegou
ao andar onde morava. Afoita e descontrolada procurava a chave
dentro da bolsa, queria entrar logo para encontrar um velho disco de
uma cantora norte-americana que ouvia sempre quando estava com
dor de cotovelo. Quando, enfim, encontrou a chave, ela logo abriu a
porta, entrou a empurrando para trás e jogando a bolsa sobre
qualquer móvel da sala. Indiferente, apenas desejava ouvir aquela
canção triste que já estava na ponta da agulha. Debruçada sobre um
sofá velho ela ligou o aparelho, e instantaneamente procurou se
acalmar. Quando a música começou a tilintar pelos ares ela começou
a chorar bem mais forte, as lágrimas eram torrentes sobre seu rosto.
Pensamento de Grace:

Por que tudo tem que ser assim? Querido Lipe, eu não consigo
viver sem você. Seus olhos são faróis na minha chegada, seu peito é
meu porto de descanso, seu coração é minha joia incandescente de
imaginações, e eu, bem, eu, penso que não sou nada para você. Por
que você tem que ser assim, tão estúpido? Seu estúpido!
Eu não consigo viver assim, sem Lipe para mim. Eu não consigo
viver sem seus ombros largos, sem seus olhos em transe, sem o
peso do seu corpo sobre mim, sem seu apetite sexual. Eu não
consigo viver sem Lipe.
Eu sei o que ele deve estar pensando, deve estar rindo
ironicamente e pensando que qualquer dia eu volto para ele. Ledo
engano, querido Lipe! Dessa vez eu não volto. Agora eu vou pôr
você por baixo sem um pingo sequer de saudade. Eu sei, você se
esconde na bebida para não demonstrar lucidamente o que
realmente sente: nunca me amou! E mesmo assim eu faço todas as
carícias para verdadeiramente ganhar seu coração sombrio e sem
sangue o suficiente para se esquentar comigo.
Eu também sei que você espera uma grande paixão como todos
esses homens solteiros perdidos nos bares. Deve sonhar com uma
pequena garota que seja toda certinha com horários bem à moda, e
que ao mesmo tempo esquente seu coração glacial. Vou lhe dizer,
querido Lipe! Essa tal garota não existe! Está apenas dentro do seu
inconsciente.

Ainda muito magoada Grace foi ao telefone procurar consolo.


Talvez algumas palavras amigáveis poderiam acalentar seu coração
entristecido.
Pensou em ligar para várias amigas, mas somente uma entenderia
o que ela sentia por Felipe, Paola, sua fiel amiga conhecida numa
pensão. Com Paola ela abria todos os seus sentimentos sem medo
de qualquer verdade dita pela amiga. Paola sabia o quanto Grace
amava Felipe, mas tinha a certeza de que Felipe somente magoaria
a amiga.
Grace devotava muita confiança em Paola, por isso ligou:
– Alô! Paola, é você?
– Amiga!
– Eu preciso muito falar com você – disse Grace, em tom de voz
chorosa.
– O que houve?
– Eu e o Lipe.
– Fala, amiga! O que houve?
– Nós brigamos – desabafou Grace.
– De novo! – brincou Paola.
– É sério.
– As outras vezes também foram sérias?
– Não. Dessa vez brigamos feio.
– Eu já lhe disse mil vezes para esquecer esse cara. Ele não
presta, ele não a ama, ele não tem nada e também não vale nada. O
namorado de uma mulher da vida tem que entender sempre que ela
é da vida. Você sabe muito bem que sou sua amiga mais fiel... será
que até hoje, vivendo nas ruas, nas boates, nos programas e nos
motéis, você não aprendeu a esquecer um cara! É só você colocar
na cabeça que ele é somente mais um – disse Paola, tentando
reconfortar a amiga.
– Mas eu amo o Lipe! Ele é o único homem da minha vida!
– E o que ele fez dessa vez?
– Ele me chamou de todos os nomes possíveis. Ele me humilhou
de todas as formas mais monstruosas – chorou Grace.
– Amiga, esquece esse cara! Você tem tudo para arrumar um
homem decente, rico e educado. Você é bonita! Sempre quando
fazemos programas juntas todos os homens escolhem você primeiro.
Faça como eu, quando isso acontece eu dou o troco na rua. Sem
problema algum, eu consigo homens mais bonitos, mais ricos e
muito mais viris. Ou pode fazer coisa pior como encarar três bonitões
numa suruba – disse Paola.
– É que eu penso às vezes no lado dele. Ele sempre desejou ter
uma mulher somente para ele. Ele tem vergonha de me apresentar
aos amigos, à família, enfim, a todos. Você sabe que os homens não
são fáceis – disse Grace, justificando.
– Mas mesmo assim ele tem que entender seu lado. Afinal de
contas, ele não a conheceu num programa? Então?
– Você acha mesmo que eu devo esquecê-lo.
– Claro, filha de Deus!
– É que para mim é tão difícil. Eu não resisto àquele charme dele
de homem duro e sofrido.
– De homem sofrido eu quero distância. Sai para lá! Isso é
masoquismo! De sofrimento basta o que eu passo. Imagina!
Apaixonar-se por um homem sofrido.
– Não é só isso. Aquele jeitão dele me liberta. Eu o amo... amo...
amo – declarou Grace.
– Você não o ama, isso é apenas obsessão. Você nunca leu sobre
amores possessivos? Isso se torna doença enquanto você não
coloca um basta em tudo. Eu penso que você se envergonha sem
ele. Ele é apenas um objeto que torna sua vida mais comum aos
olhos das outras pessoas. Você está pensando mais na sociedade
do que propriamente no relacionamento. Você quer continuar com
um escudo que protege sua vida promíscua nos programas. Ele a
torna uma mulher comum e isso a protege contra as fofocas.
– Não é isso! Eu quero que a sociedade se dane! Quando estou
perto dele eu sinto uma vibração diferente no meu peito. Deve ser
amor! Quantas vezes eu já chorei depois de fazer um programa sem
ele saber. Você não sente o mesmo em relação ao Maurício?
– Minha relação com o Maurício é totalmente diferente da sua. O
Maurício não se preocupa com esse tipo de situação, ele até apoia
para entrar mais dinheiro em nossa casa, pois somos praticamente
casados. Nossas despesas são feitas juntas.
– Amiga, como eu a invejo! Eu sempre quis ter um homem assim,
que não pedisse justificativa nenhuma – disse Grace. – Mas o que eu
faço? O Lipe não aceitaria nunca esse tipo de situação.
– Primeiro, se você não consegue colocar ele na linha, então
largue ele logo de uma vez que já, já você encontra um homem
como o Maurício.
– Mas eu não posso!
– Por quê?
– Porque eu amo o Lipe.
– Amiga, então tudo vai ficar muito complicado!
– O Lipe é meu cansaço contente, é o meu sussurro de amor, é o
meu orgulho de ser mulher, é a minha paixão mais profana, é a
minha percepção, é meu ódio contra todos, logo, ele sempre será
para mim o meu tudo, o meu poder de mulher moderna.
– Não exagere, querida! Até hoje você não aprendeu que homem
é tudo igual?
– Eu sei que os homens são iguais, mas o Lipe é diferente.
– Diferente em quê, Grace? Não se iluda com um homem tão
esquentado assim!
– Ele é fiel sem deixar de cobiçar outra. Quando estou com ele eu
sinto que o seu peito é meu, mas seus olhos são do mundo, isso me
faz querer abraçar o mundo para ele sentir que somente comigo vai
ganhar esse mundo. Quando estamos juntos ele é promíscuo,
querendo de qualquer forma o sexo que ele sabe que é dele, isso me
faz querer ser uma espécie de quase santa para ele sentir que a
porta está distante, mas o espera com a chave dentro, basta
somente ele se aproximar para abri-la. Ele é forte, de palavras
violentas, isso me faz querer entrar nos trilhos que ele imaginou para
a vida inteira. Percebe então? Sou eu que tento me encaixar nos
seus sonhos, e nunca o contrário.
– Mas todo homem, Grace, tem que ter uma rédea, senão esse
namoro nunca vai passar de um simples e vão namoro. Você tem
que aprender que todo homem tem que ser desprezível perto de sua
mulher, somente assim o romance torna-se duradouro.
– Eu sei que você tem plena razão. Vou procurar ouvir suas
palavras com mais consciência – suspirou Grace.
– Você vai ver que depois de encontrar um homem que saiba
aceitar suas vontades tudo vai melhorar. Você vai acabar
esquecendo o Felipe como num passe de mágica, você vai ver. É
como naquela música do Zezé di Camargo e Luciano, você vai ver!
Não é tão difícil esquecer um homem. Eles passam em nossas vidas
como um vendaval, mas somente um irá acariciá-la como uma brisa.
– Eu temo que a minha brisa seja o Lipe.
– Terminantemente não é. Se ele não a respeita não é.
– Tomara que Deus ouça suas palavras – disse Grace.
– Agora, já que você ligou, mudando de assunto, tenho uma
notícia ótima para lhe dar.
– Que notícia? – alegrou-se Grace.
– Você sabe aquele dono de uma agência de modelos que lhe
falei?
– Sim.
– Então, eu mostrei uma foto sua e ele gostou bastante, disse que
gostaria muito de conhecê-la – declarou Paola.
– Verdade?
– Verdade.
– Nossa! É a melhor notícia que recebi em toda a minha vida.
– Então! Você vai poder começar sua carreira de modelo de uma
vez por todas.
– Amiga, eu não posso acreditar! Você fez isso por mim?
– Claro que sim! Você é a minha melhor amiga e você já merece
faz tempo.
– Nossa! Eu nem sei o que dizer.
– Só tem um problema.
– Qual?
– Eu acho que você vai ter que transar com ele – considerou
Paola.
– Sério? Eu... não... gostaria.
– Afinal de contas, você é ou não é uma profissional? – irritou-se
Paola.
– Sou. Mas...
– Mas nada. Ele vai dar asas aos seus sonhos, amiga! Ele me
disse que gostaria muito de contratá-la para a agência dele depois
que a conhecer melhor, é claro. A agência dele faz trabalhos no
Brasil e na Europa. É uma agência muito forte no mercado.
– Mas isso parece ser tão sujo. Você não vê as modelos famosas
de televisão? Todas declaram que nunca fizeram o teste do sofá...
Eu gostaria de ser como elas.
– E você acredita no que elas dizem? – brincou Paola.
– E não é para acreditar? – espantou-se Grace.
– Claro que não! A maioria delas já fizeram coisas bem piores. A
maioria também já foi garota de programa, inclusive as mais
famosas.
– Eu sei, mas você não acha que pega mal começar a carreira de
modelo assim?
– Isso é um preço pequeno perto dos seus sonhos, amiga. Pense
adiante, no futuro, na fama, no dinheiro, no status. É ou não é um
preço pequeno?
– Talvez seja mesmo. Acho que tenho que separar meus pudores
sentimentais das relações profissionais. Hoje o mundo é assim
mesmo, cada um tentando engolir o outro, então não vou ser a
engolida.
– Por que se você não aceitar essa oportunidade, logo outra
garota terá essa chance e você acabará invejando quando ela atingir
o topo da carreira. Tudo isso faz parte da carreira de modelo. Não é
à toa que esses donos de agência de modelos ficam cercados de
mulheres bonitas. Tenho certeza que ele conduzirá sua carreira até o
topo do firmamento. Mas acalme-se, tudo isso levará algum tempo, o
sonho não é algo repentino, requer sempre que agarremos as
poucas chances que aparecem.
– Quem não vai gostar nada disso é o Lipe.
– Grace, é a última vez que eu falo para você esquecer esse cara,
é ele quem está empatando sua sorte na vida, e você também não
precisa confiar esse segredo para ele.
– Você está certa. Eu direi a ele depois das minhas primeiras fotos
nas capas de revistas.
– É assim que se fala, amiga! Não se deixe abater por qualquer
um, tenho certeza de que um dia o Felipe vai correr lambendo o chão
que você pisa.
– Não fale assim dele. Coitadinho!
– Você vai ver. Ouça o que eu digo. Bem, eu tenho que ir, as ruas
e as avenidas esperam a luxuriosa Paola. Quero encontrar, nesta
noite, apenas gatinhos.
– Boa sorte, amiga.
– Para você também. E lembre-se que as revistas mais badaladas
do mundo estão esperando a formosa Grace.
– Obrigada, querida – despediu-se Grace. – Até logo!
– Tchau.
Naquele instante, Grace demorou a colocar o fone no gancho,
ficou pensando nessa tal sorte que nunca a convidou para sentir a
felicidade.
Seria realmente verdade que esse tal homem gostou dela apenas
através de uma pequena foto? Nesse momento, ela sentiu o calor da
beleza brilhar novamente, sentiu que Felipe poderia pagar o preço
por desprezá-la tanto com seus motivos. Seus sonhos e seus
sentimentos começaram a galopar.
Depois que ela colocou o fone no gancho pensou em ligar
novamente para Paola, a consciência e o amor por Felipe pesaram
naquele momento. Mesmo ela procurando pela vida inteira aquela
chance de seus sonhos tornarem-se realidade, não seria certo para o
coração que pedia continuamente a ilusão cara de viver um grande
amor com Felipe. E ela pensou, pensou e pensou, tentava abrir o
coração para escutar a consciência, algo não poderia ficar para trás
naquela sua decisão, e esse algo era Felipe, porque, mesmo com a
briga que tiveram, ela sabia que bastava ela voltar que Felipe a
esperaria de braços abertos, como aconteceu em outras várias
vezes em que brigaram.
Com a cabeça ainda atordoada com aquela chance de ver seus
sonhos se realizarem, ela procurou a cama. Enquanto fazia a cama
para descansar pensava no revés que aquele sonho poderia trazer, a
falta de Felipe para a vida inteira. Felipe sempre se mostrava
contrário aos quereres de Grace, ele sempre discordava de todas as
formas de vida que Grace procurava, o sonho de ser modelo
profissional era mais uma, Felipe provavelmente negaria esse desejo
também, ainda mais se soubesse que ela transaria com o dono da
agência. Mas como toda mulher, a voz do coração pulsava mais
forte, somente de pensar em perder o amor de Felipe a fazia uma
mulher temerosa com o futuro, ela tinha aquele sexto sentido
desperto que apontava Felipe como seu grande amor.
Ela sentia que seria impossível levar aquela história adiante, pois
sabia do desdém de Felipe com relação àquele tipo de trabalho. Os
dois já discutiram várias vezes sobre essa oportunidade, e Felipe
sempre relutava, achando os sonhos de Grace verdadeiros sonhos
bobocas.
No momento em que Grace já estava deitada, virada à frente do
teto sobre luzes apagadas, ela relembrou dos palavrões de Felipe,
da briga que tiveram, naquele falatório irremediável. Sentiu que sua
aura feminina deveria seguir adiante sem se preocupar com os
pudores do namorado. Não fazia sentido esquecer aquele caminho
tão desejado desde garotinha; não fazia mais sentido respeitar as
vontades dele, ela era livre, deveria buscar sempre o melhor para si.
Se Felipe não aceitava, então deveria procurar outra mulher. Quando
pensava assim seu peito doía no fundo da alma, pois ele fazia parte
de todos e quaisquer sonhos de felicidade.
Pensamento de Grace:

Por que, Lipe, você é assim? Eu sei que não aceitará nunca que
eu encontre a minha felicidade. Vai dizer: procure seus sonhos com
outro homem. Mas eu não consigo sonhar uma felicidade sem você
para me guardar.
Afinal de contas, quem é a sua nina amada? Diga que sou eu. Eu
sei que quando estamos juntos eu sinto seu espírito pairar sobre
minha noese, minha imaginação, minha percepção de que ainda
existe algum resquício de sentimento seu sobre mim.
Eu procuro agora resfriar você no meu coração para que os meus
desejos mais íntimos possam acontecer. Sim, que possam
acontecer. Serei uma modelo bem paga e que viverá todo o glamour
da fama. Caro Lipe, você me verá em todas as revistas de banca nas
ruas, você sentirá, por um breve momento, que não pode viver sem a
linda Grace ao seu lado. Pedirá novamente qualquer tipo de amor,
seja o efêmero ou o constante matrimônio. Sentirá ciúmes, sentirá as
doenças de paixão que agora sinto por você. Você pensa que é fácil
me esquecer, mas o que eu sinto por você é uma tendência louca de
roubar seu coração para mim, e será nosso amor constante, porque
eu não falseio, não improviso e nem provoco os sentimentos de
minha alma.
Agora você quer fugir, desdenhar, desprezar nossos instantes
intensamente quentes de paixão, agora é tarde, querido Lipe, eu
estou lhe amando como nunca amei ninguém, agora é tarde.

Aos poucos, Grace foi adormecendo, sempre pensando no que


aconteceria no dia de amanhã. Parecia que finalmente seu dia de
amanhã estava chegando. Acabou dormindo com um sorriso leve na
face.
Capítulo 4
O dia despontava novamente nas janelas de todo trabalhador
comum. O cinza da manhã preenchia todos os vazios da cidade, os
tímidos raios do alvorecer riscavam as construções verticais, era o
momento mais propício para encontrar Deus na natureza, mas todos,
fiéis ao trabalho, levantavam para cumprir as tarefas que a vida
impunha. Com Felipe não seria diferente.
O rádio-relógio acionou o alarme de escândalo para quem estava
em sono profundo e tentador. Felipe, desesperadamente, procurava
encontrar o aparelho, apalpando todas as coisas que sentia com a
mão direita até finalmente desligar o botão do alarme. Novamente
caiu num último proveito de sono que não poderia levar muito tempo,
mesmo se quisesse, pois a obrigação do trabalho pesava na
consciência cansada. Mesmo assim, continuou dormindo enquanto a
rua lá fora ensaiava o ruidoso caos urbano. O brilho do dia pouco a
pouco iluminava pelas frestas do apartamento cada cômodo onde
residia Felipe. O profundo sono resistia ao nascimento da aurora que
pairava sobre o céu.
Repentinamente, o alarme acionou novamente, dessa vez não
tinha como escapar, tinha que realmente abrir os olhos para o dia
nascente. Irritado, desligou o alarme:
– Vida maldita!
Nesse momento, ele queria apenas acordar, sentir o cheiro dos
ares do dia, ficou algum tempo estático na cama olhando para o teto.
Sem pestanejar, os pensamentos do dia anterior vieram à cabeça
como sentimentos de culpa, ele sentiu que ontem fizera algo de ruim.
Na cabeça pesava a rapacidade abandonada, pesava o amor
distante daquela nume tão desejada na janela, mas não era somente
isso que pesava. O que pesava realmente eram as tolices que ele
dissera à Grace. Os pormenores eram somente os pormenores, mas
a dupla paixão vivida pelo coração não apagava, a moça da janela
acendia a cada dia os vazios da alma, e Grace, bem, Grace era
somente um sentimento vivido e real, mas que o bom senso não
admitia perder. Perder Grace era o fundo do poço para ele, era como
caminhar à procura do oásis, que seria a moça da janela, numa
estrada de desertos com os ventos soprando areia nos olhos cegos.
Os pensamentos laceravam uma vontade de pedir desculpas à
Grace, mas o espírito com chagas não admitia um arrependimento,
seu sentimento masculino não voltaria atrás de nenhuma palavra dita
naquela ocasião.
Ele continuava desperto sem se movimentar debaixo das cobertas
a relembrar.
Pensamento de Felipe:

Não adianta, Grace, eu não vou fazer qualquer esforço para reaver
nosso namoro. Se para você tudo acabou, para mim então acabou
antes do que você imaginava. Meu cansaço é ter você, mas ter você
é difícil, você nunca ouve o que eu digo, então que sejam as
palavras duras, para você colocar a mão na consciência e
reaprender a viver. A vida não é feita de sonhos, são os sonhos que
são feitos da vida, por isso não se esqueça que os homens que você
encontra são apenas vidas passageiras sem nenhuma importância.
Se sou aquilo que contorna os seus sonhos brilhantes, então
aprenda a encantar meu coração que voa distante até a janela ao
lado.
Essa moça da janela que sonho parece ser feita de imaginação,
seus contornos lívidos são feitos de encantamento, realmente estou
me apaixonando por outra pessoa, Grace. O amor parece vir das
janelas, das janelas nocivas ao nosso amor, Grace!
Mas eu tenho que trabalhar! Nisso você não pensa nunca, essa é
a real solução para qualquer relacionamento durável. E é isso que
vou fazer agora, é isso que tenho que fazer agora como qualquer
outra pessoa normal.
Mas antes, eu gostaria de ver novamente aqueles olhos
escondidos na janela.

Repentinamente, Felipe levantou da cama, já estava um pouco


atrasado comparado ao habitual. Com seus resquícios escondidos
de paixão platônica ele novamente foi até a janela. Depois de abrir a
cortina com entusiasmo ele desanimou, ela não estava lá como
habitualmente. Uma pequena tristeza pairou em seu coração e uma
vibração negativa também.
“Parece que o dia não vai ser dos melhores”, pensou ele.
Aquela formosa moça que ele avistava às vezes na janela era a
sua imaginação real de amor mais sublime. Não se conformou e
fingiu que continuava a contemplar a vista daquela manhã fosca de
cor cinza no ar. Enquanto permanecia de prontidão, de olhos atentos
sobre o apartamento da moça, uma sensação desagradável flutuava
sob a mente. Sem pensar muito, sempre apaixonado, ele perdia
totalmente o decoro, ficou alguns minutos observando qualquer
chance daquele sentimento sonhado aparecer por ali e talvez lhe dar
asas de imaginação, para o amor é sempre permitido sonhar.
Ele estava somente de cueca quando novamente veio na
consciência a obrigação do dia:
“Eu vou, mas ainda lhe quero hoje”, refletiu Felipe, antes de correr
para o banho matinal.
Com uma toalha colorida ele entrou no banheiro:
“Deus! Essa mulher tem que ser minha um dia”, pensou ele,
otimista.
Entrou debaixo do chuveiro ligado buscando sempre esquecer os
pesados pensamentos sobre Grace, pois ele estava acostumado a
dizer cretinices para ela e mesmo assim ela voltava facilmente para
os seus braços. A única certeza que Felipe tinha na vida era o amor
sincero de Grace.
Logo, afastando-se dos pensamentos túrbidos que a consciência
apitava estar errados, Felipe voltou a sonhar feliz com sua nina tão
desejada. Enquanto esfregava o sabonete pelo corpo ele cantarolava
singelas canções de amor, sempre pensando na vizinha, nunca em
Grace.
Pensamento de Felipe:

Nina da janela, aparece mais uma vez para mim, para os meus
olhos brilharem, para meus desejos voarem. Se um dia perceber que
o seu vizinho de janela A ama, eu lhe digo: não se arrependerá
nunca! O amor não pode ser flagelo! Por que sonho tudo isso com
você? Mas você nem sente o meu perfume aproximando para lhe
vigiar, enamorar, guarnecer e decantar.

Felipe tomou um banho ligeiro, desligando o chuveiro ele já não


via a hora para novamente tentar avistar da janela do quarto a
vizinha. Esticou o braço para fora do boxe a fim de apanhar a toalha
colorida, se embrulhou com ela para enxugar o corpo, fazendo a
higiene com bastante esmero, mesmo sabendo que no trabalho se
sujaria demasiadamente. Depois enxugou o rosto e sacudiu a toalha
sobre os cabelos até secá-los o quanto possível. Logo já estava com
a toalha enrolada sobre as partes baixas do corpo, pensando sempre
na vizinha e no tempo de atraso para o serviço. Calçou os chinelos
de borracha e, por um instante, ficou a se olhar no espelho.
Estava pensando em fazer a barba:
– Felipe, você é demais, vai com tudo que você ganha essa
mulher...
fácil, fácil – disse ele para a imagem no espelho, batendo as mãos
sobre as bochechas.
Por mais um instante pensou:
“Não vou fazer a barba hoje, estou por quase nada atrasado.
Somente quero ver aquela moça. Vizinha, por que você não aparece
mais? Eu quero ver você.”
Rapidamente ele saiu do banheiro, conferiu as horas no rádio-
relógio do quarto, ainda havia um pouquinho de tempo para dar uma
espiada através da cortina. Num leve toque, ele abriu um pequeno
vão, tentou avistá-la no apartamento, desapontou-se novamente, ela
não estava em nenhum cômodo do apartamento.
Do apartamento de Felipe dava para observar de qualquer espaço
todos os cômodos da sua vizinha de janela que ele tanto escondia
que amava. Pois aquele sentimento de Felipe era sempre malvisto
por ele, tanto que ele às vezes se maltratava:
– Esquece, cara! Essa mulher nem sabe direito que você existe –
resmungou ele, sozinho no apartamento.
Aquele desapontamento o desanimou, então ele procurou vestir
seu uniforme de trabalho, com cuidado, ele jogou sobre a cama uma
cueca e o macacão azul do serviço, tudo ligeiramente passadinho a
ferro seco. Antes de se vestir ele passou, abundantemente,
desodorante com fragrância marina por todo corpo, parecia que
estava se aprontando para uma festa importante e não para um
trabalho duro e forçado. Para ele, era sempre certo estar bem
perfumado, pensava que nunca se saberia o momento casual de
encontrar alguém especial.
Com o olho no rádio-relógio ele vestiu primeiro a cueca, depois o
macacão do serviço, quando tudo já estava do seu agrado ele
lembrou de escovar os dentes e logo pensou:
“Vou dar outra olhadinha para ver se ela está lá.”
Então, novamente abriu a cortina do seu quarto levemente para
tentar avistar a moça e novamente ela não estava lá. Logo irritou-se
consigo mesmo:
– Caro Felipe, pare com essa história de voyeur, está parecendo o
mais imbecil dos imbecis.
Voltou para o banheiro a fim de escovar os dentes, e enquanto
escovava, ficou pensando:
“É uma idiotice pensar que essa mulher gosta de você por causa
de uma ou duas olhadinhas. Pare com isso! Esse não é o velho Lipe
que conheço. Tudo bem! Mas o que vou fazer? Eu estou me
apaixonando... Ela é tão linda! Deus, como eu odeio me sentir um
imbecil apaixonado.”
Com os pensamentos túrbidos ele resolveu comer alguma coisa
logo de manhã para forrar o estômago, foi até a cozinha, abriu a
geladeira e se desanimou, havia apenas duas fatias de presunto.
Felipe não era de fazer compras do mês, resolvia comprar algo
somente quando faltava, por isso a geladeira estava praticamente
vazia. Depois resolveu revirar os armários da cozinha para encontrar
algo que pudesse rechear com o presunto. Bateu os armários de lá
para cá até finalmente encontrar no fundo um saco de padaria.
Revirou o saco e encontrou dois pães amanhecidos e meio duros.
Não titubeou nem um pouco e começou a preparar o singelo lanche,
partiu os dois pães ao meio que se descascavam facilmente de tão
duros, colocou as fatias de presunto em cada pão, e quando tudo
ficou pronto ele arriscou a primeira abocanhada, sentindo sem
frescura o sabor salivante dos pães com o presunto. Em cada
mordida naquela manhã em que começava a brilhar o dia, ele sentia
novamente aquela paixão tentadora de investigar a janela. Era uma
vontade instigante, não havia como fugir dela, aliás, era somente um
ato simples, abrir a cortina para avistar alguém. O que poderia
chatear Felipe era se algum de seus amigos soubesse que ele
estava tão perdido de amores assim. Gostava de manter uma
postura bronca e obtusa, nenhum sentimento juvenil poderia
derrubar um homem tão vivido que tantas vezes já bateu e tantas
vezes já apanhou. Ele sempre sentia, graças a uma vida mundana,
que nenhuma mulher poderia enfraquecer suas vontades. O amor
para ele era somente um sentimento secundário. Então com o
primeiro pão na mão ele foi até a janela da sala. Recomeçou,
disfarçadamente como quem contemplava a vista panorâmica, a
procurar a vizinha da janela. Mesmo sem ter avistado a moça, ele
continuou a sua observação, comendo o pão e pensando no quanto
a beleza dela paralisou seus sentidos, às vezes ele sentia a ironia do
destino porque em seus pensamentos, Grace era tão somente um
anonimato. Pensar em Grace era pensar em aborrecimentos, pensar
em acontecimentos desprezíveis e pensar no cansaço da vida. Mas
quando pensava na vizinha da janela, pensava em potência, em
vibração, em divindade, era como se aproximar dos céus mesmo
vivendo no inferno.
Quando terminou de comer o primeiro pão, rapidamente foi
apanhar o segundo, depois voltou para o mesmo lugar para
continuar avistando o apartamento da moça. Aquilo não podia
demorar por muito tempo, pois tinha que ir trabalhar, mas por mais
que torcesse para encontrar a moça, mais se desapontava.
Ele, pacientemente, fazia seu lanche matinal.
“Infelizmente, tenho quase certeza que ela não quer nada
comigo... Calma! Talvez ela não esteja em casa. Ela não tem a
obrigação de ficar na janela o tempo todo. É somente você que é um
imbecil apaixonado que fica de voyeur idiota procurando paixãozinha
teen”, pensou Felipe.
Felipe perdurou ainda por muito tempo até finalmente sentir o
tempo da obrigação chegar. Não dava mais para ele ficar ali, não
podia mais se abestalhar naquela aventura platônica, ele tinha que
sair para o trabalho.
Decididamente então, depois de comer, ele se foi como o vento
através da porta. Num instante, olhou para o apartamento para ver
se tinha esquecido algo, mas não, estava tudo certo.
Depois de fechar o apartamento ele pensou:
“Um dia essa moça vai ser minha. Ah se vai!”
Rapidamente, ele desceu do sexto andar, onde morava, até o
térreo, sabia que estava atrasado, por isso procurou descontar o
tempo perdido nas passadas. Passou pelo portão do prédio, e para o
seu espanto ele viu seu ônibus chegando ao ponto, detestava fazer
aquilo, correr atrás de ônibus, mas era inevitável, ele não podia
chegar atrasado de jeito nenhum. Correu, correu e correu, de longe
ele já acenava para o motorista esperar.
O motorista gentilmente esperou:
– Obrigado – disse Felipe, arfando e entrando no ônibus.
Já de frente ao cobrador ele revirou o bolso para encontrar
moedinhas. Encontrou todas já contadas e entregou na mão do
cobrador. Passou pela roleta e procurou um lugar para sentar, o
ônibus estava cheio, logo se irritou por não achar nenhum lugar,
conformado em ficar de pé ele se esquivou de vários passageiros
que se seguravam nas armações, procurou rapidamente ficar no
fundo do ônibus à frente de uma senhora que carregava sacolas de
compras.
Conformado em viajar de pé ao ver tanta gente reunida dentro de
um veículo, ele resolveu então observar as paisagens da viagem.
Mesmo viajando com dificuldade, seu pensamento estava somente
voltado para uma pessoa.
Pensamento de Felipe:

Eu vou acabar ficando louco se não vir aquela moça novamente.


Talvez seja a única mulher que até hoje não me trouxe cansaço,
procurá-la pela janela, apesar de tudo, me faz bem. Eu sussurro a
cada instante meus sentimentos para ela. Eu seria feliz hoje se ela
aceitasse meu desejo apenas através do meu olhar. Mas qual mulher
aceita apenas um olhar? Elas querem tudo menos um singelo olhar.
Elas sempre querem aquilo que beira o impossível das coisas. Elas
somente querem as coisas, somente as coisas. Ainda bem que
esqueci meu passado de juvenil idiota que somente acreditava que a
maioria delas procurava algo além, como um sentimento completo,
um carinho afetuoso, um colorido de paixão e uma atenção
dedicada, mas não, elas somente querem as coisas.

Ele tentou esquecer os pensamentos quando o ônibus finalmente


chegou ao terminal, ele tinha que pegar outro ônibus, pois, para
chegar ao local de trabalho, ele, todo dia, pegava dois ônibus sempre
lotados.
Desceu do ônibus de cabeça quente naquele empurra-empurra
tradicional. Ele não suportava as lotações, isso o deixava estressado
como um cão encoleirado. Sempre sonhava em um dia comprar seu
carro, podia ser qualquer um, até modelo popular antigo, mas que
iria solucionar metade dos seus problemas, isso iria.
Quando ele já se encontrava caminhando pelo terminal, avistou de
longe seu ônibus partindo.
– Vida desgraçada! – gritou Felipe, irritado. – Meu chefe vai soltar
os cachorros hoje.
Desesperou-se por um momento, mas não tinha como fazer nada,
ele tinha que encostar-se a um canto e esperar o próximo veículo,
era a única coisa a fazer:
– Quem mandou ficar pensando em mulher – disse para si mesmo.
Resolveu então esperar fumando um cigarro, foi até um vendedor
ambulante e pediu um picado. Depois voltou para um canto qualquer
para fumar sossegado.
Enquanto fumava, Felipe ficava observando as pessoas aos
arredores. Felipe, apesar de ser um homem conformado com a
condição social, detestava qualquer ambiente muito popular. Não
suportava ver aquela gente de cara abortada esperando um milagre
de Deus. Conviver com aquela gente ignorante o desesperava. Ele
não via a hora de finalmente comprar seu veículo para desfrutar das
maravilhas que a vida trazia. Mas seu dinheiro escorria fácil pelas
mãos, ele gastava todo o dinheiro em farras, bebidas e mulheres.
Sempre pensava consigo que gostaria muito de esquecer seu modo
de vida, mas era impossível, pois desde muito tempo sempre foi
nisso que ele aprendeu a gastar todo o dinheiro. Não havia qualquer
situação para ele mudar. Também pensou em raras ocasiões a se
tornar um protestante, se apegando mais em Deus, porém o sabor
libertino das mulheres o cegava numa vida degenerada.
Continuou a observar as pessoas, se irritando facilmente com os
homens e com as mulheres que se aglomeravam em filas para
esperar o ônibus. As mulheres todas pareciam viver uma aflição
irremediável, todas malcuidadas, de cabelos presos, suadas, sem
haver nelas um único dote que poderia acender os seus instintos
masculinos. Às vezes, ele pensava que por estar ali,
verdadeiramente, aqueles eram os tipos de mulher que ele poderia
esperar como parceira fiel, pois Grace, apesar de bonita, não
passava de uma prostituta de luxo, e que nunca realizaria sua vida
desejada de serenidade e amor. Se desesperava facilmente quando
aqueles pensamentos vinham à tona, ter que viver ao lado de
qualquer mulher daquelas que se espalhavam na multidão do
terminal o fazia pensar que era um desgraçado, um desditoso
castigado por Deus. Os sentimentos vividos pelos amigos eram
sempre mais nobres que os dele, namorar com a prostituta Grace
era motivo para zombarias por parte dos colegas.
Já os homens que circulavam no terminal, bem, estes para ele
eram todos bestiais, imbecis e idiotas. Quase todos se
cumprimentavam falando alto, como quem fazia questão de aparecer
no anonimato da vida, alguns assobiavam e gritavam ruídos irritantes
que nem mesmo um monge suportaria. Para ele, tudo não passava
de um completo caos. Ver todos aqueles homens que caminhavam
entre a pobreza e a miséria o conformava, pois pensava: “esses
homens merecem essas mulheres mesmo”.
Tudo o fazia refletir sobre si próprio.
“Não posso criticar, desgraçadamente, também sou como eles...
sou um mero empilhador. A vida somente traz sorte para os outros e
nunca para nós”, pensou.
Num determinado momento, quando Felipe estava distraído, o
ônibus chegou, e para atormentar ainda mais os pensamentos,
começou o empurra-empurra entre todos os passageiros para entrar
no veículo. Como ele se irritava com aquela falta de educação entre
as pessoas! Todos se empurravam para entrar primeiro e conseguir
os melhores lugares. Todos se moviam como completos primatas
trogloditas. Felipe ficou então arredio, preferiu esperar
pacientemente que todos se matassem para entrar para depois
procurar seu lugar.
Todos entraram, a partir daí, Felipe foi o último a entrar, bastante
calmo dessa vez, ele, sabendo que viajaria de pé, pois já estava
acostumado, procurou novamente o fundo do ônibus. Dessa vez
acabou ficando ao lado de três jovens falantes que zombavam sem
pretexto um do outro.
Felipe estava cansado de viver naquele inferno diariamente, sentia
que seu corpo envelhecia muito mais rapidamente que o habitual. Já
procurou vários médicos da saúde pública, e todos sem exceção
prescreviam remédios que nunca melhoraram em nada seu cansaço
decorrente daquela luta diária. Sempre preferiu hospitais
particulares, pois as instituições públicas estavam sempre falidas,
era o que ele e a maioria pensava. Ele não dava crédito a órgão
público nenhum, a política para ele era apenas um meio do rico ficar
mais rico, desacreditava totalmente nos políticos. Detestava as
épocas de eleição quando toda a cidade ficava imunda de santinhos.
Sempre quando votava ele procurava de uma forma ou de outra
anular seu voto, não havia motivos para embasbacar com políticos
que ele acreditava que todos sem exceção eram falsos. Ele tinha na
mente a certeza que somente o dinheiro regia os poderes vigentes.
Mas a vida para Felipe era assim, e como bom católico, sabia que
as coisas não mudariam, ele sentia que, de uma forma ou de outra,
Deus escolhera sua vida assim. Pensava sempre que a sorte de
cada um já estava escrita nas estrelas, restava apenas regular para
que tudo não piorasse. Mas não havia preocupação para que as
coisas piorassem, quando se está no chão ninguém cava a própria
sepultura, o céu existe apenas para se contemplar. Ele sentia que a
vizinha aparecia para ele como num sonho, como um céu ou como
um firmamento, por isso quando a encontrava, ele procurava conter
seus instintos, pois tudo poderia virar poeira a qualquer movimento
falso.
Não demorou muito tempo para o veículo de passageiros chegar
ao seu ponto. Saindo, esgueirando-se entre as pessoas ele desceu.
Quando o ônibus partiu deixando-o, ele respirou bem fundo a vista
do céu que já estava radiante no alto.
O céu límpido de azul era um mau sinal, começou então a apertar
os passos para chegar o quanto antes no trabalho. No momento em
que caminhava de passos acelerados ele avistou de longe um
desses relógios publicitários do centro da cidade.
O relógio já marcava oito e quinze:
– Inferno! – espantou-se Felipe. – É hoje que eu perco o emprego.
Não demorou para ele começar a correr. Mesmo havendo muitos
transeuntes na sua frente ele corria se desviando de todos, um por
um, sempre pedindo para os outros saírem da frente. Algumas
senhoras empurradas protestaram:
– Seu maluco! – gritaram elas.
– Vão se danar, velhas reumáticas! – devolveu ele.
– O senhor me respeite – continuou uma das senhoras.
– Eu não tenho tempo para ficar tricotando, fofocando e
comprando badulaques – finalizou Felipe, já de longe, não deu nem
para as senhoras ouvirem.
Logo Felipe foi chegando no trabalho, ganhava apenas o que dava
para sobreviver e manter as poucas extravagâncias de solteiro.
Sua rotina diária era marcada em boa parte do dia em cima da
empilhadeira, um trabalho pesado, mas que o divertia bastante ainda
mais com a companhia dos colegas. Todos o admiravam muito pela
camaradagem que ele guardava consigo. De uma coisa Felipe não
abria mão, de trabalhar naquele depósito, para ele, todos eram como
se fossem uma grande família, considerava cada um como um
irmão. O trabalho sempre era para ele como um lazer diário. Tantas
besteiras ditas, risadas, gozações dentro do ambiente de trabalho,
principalmente na hora do almoço. Fizera, em dez anos de serviço,
grandes amigos que ele não esqueceria nunca, levaria todos dentro
do coração até o fim dos dias.
Quando entrou no depósito para bater o cartão um de seus
colegas de trabalho já o preveniu:
– Você chegou atrasado numa hora péssima – disse o colega
Jorjão, um negro troncudo carregador de carga.
– O que aconteceu? – perguntou Felipe.
– O superior está na sala conversando com nosso chefe.
– Estou ferrado! Como vou bater o cartão com o superior lá
dentro?
– E isso não é tudo.
– Tem mais?
– Adivinhe sobre o que eles estão falando... sobre corte de
funcionários. Estão pensando em cortar uns dez.
– Não vou me incomodar com isso, até o superior prestigia o meu
trabalho. Porra! Eu trabalho aqui há dez anos. Não é possível que
vão me despedir por alguns raros minutinhos atrasados.
– Amigo, parece que a coisa é séria! Eu não sei não. Esse assunto
começou hoje. Estão pensando em enxugar a empresa. Estão
dizendo por aí em muito dinheiro desperdiçado no depósito.
– É sempre assim que eles nos tratam. Você trabalha suado por
dez anos e depois, por nada, somos reles desperdício de dinheiro –
desabafou Felipe.
– Eu sei que é difícil para você, mas imagine para mim que tenho
mulher e filhos para sustentar, e se eu for embora não vejo nenhuma
perspectiva melhor para mim – declarou Jorjão.
– Você me disse uma coisa que pode ser o meu risco. Fatalmente
eles escolherão os solteiros para dispensar. Não... não pode ser... eu
trabalho aqui há dez anos. Eu preciso disso aqui. Aqui é minha vida!
– Acalme-se! Até agora não tem nada definido. Não há nomes. É
melhor você ir com a cara e a coragem para bater seu cartão, pois o
superior não vai sair tão cedo da sala.
– É isso que vou fazer. Não há problemas. Eles nunca vão pensar
em me despedir, afinal, eu trabalho aqui há dez anos. Dez anos são
quase uma vida.
– Vá parceiro e seja humilde.
– Eu vou... não há o que temer.
Felipe serenamente caminhou até a porta da sala, e com muita
calma bateu na porta pedindo licença:
– Desculpe, chefe – disse ele, ao entrar. – Eu vim aqui bater o meu
ponto.
– A essa hora!? – espantou-se o chefe Agnaldo.
– Deixa – asseverou o doutor Paulo Roberto, fitando os olhos de
Felipe. – As coisas vão mudar muito aqui depois de quarta-feira.
Nesse instante, havia somente uma coisa a fazer, e foi o que ele
fez, baixou a cabeça e bateu seu ponto. Depois, quando ele já ia
saindo seu chefe o surpreendeu:
– Felipe, tome mais cuidado da próxima vez.
– Isso se houver uma próxima vez – considerou o doutor Paulo
Roberto, em tom peremptório.
Felipe, não se importando com aquelas palavras, bateu a porta
suavemente.
O doutor Paulo Roberto e seu empregado, o chefe Agnaldo,
voltaram à conversa de portas fechadas.
Enquanto isso, chegando perto dos colegas que trabalhavam,
Felipe irritou-se:
– Eu não acredito! Pelo jeito que o superior falou comigo eu serei
mandado embora. Certamente – desabafou ele.
– Será mesmo, Felipe!? – intrometeu-se Roque, um de seus
colegas carregadores de carga. – Você tem tanto tempo de casa.
Não seria justo.
– E desde quando existe justiça para pobre!? – sorriu um outro
carregador, chamado Penha.
– Eu não acredito que isso possa estar acontecendo – retiniu
Felipe, raivoso.
– Calma! Não adianta se rebelar, a melhor coisa que você tem a
fazer agora é subir nessa empilhadeira e mostrar serviço – disse o
colega Penha.
– Sem reclamar – finalizou Jorjão.
– Eu não posso acreditar que depois de tantos anos de trabalho
duro eles possam fazer isso com a gente – declarou Felipe.
– Amigo, vai trabalhar – aconselhou Roque, carregando cargas
para a empilhadeira.
Mesmo contrariado, Felipe subiu na empilhadeira, os colegas
mostravam quais as cargas que tinham que empilhar, sem
pormenores, pois já estava acostumado com o serviço. Não demorou
muito para ele ligar a máquina para iniciar o empilhamento.
Manobrava a máquina com bastante desenvoltura, de lá para cá e de
cá para lá, no semblante bastante seriedade.
O turno da manhã voava, mas por trabalhar num processo
bastante mecanizado seu inconsciente fazia todo o serviço enquanto
o consciente estava ligado numa pessoa.
Pensamento de Felipe:
Será que aquela moça é casada? Será que já rendeu alguns
frutos? Talvez não, ela parece ser bastante jovem. Talvez seja de
outra cidade, deve estar tentando a sorte aqui na capital. Não gosto
de pensar que ela não caiba em meus sonhos, que creio, são bem
menores do que de muita gente que conheço.
Garota, se você se deixar levar pelos sentidos do meu coração,
você não vai se arrepender. Sei que ganho pouco, mas a vitória está
nas vontades diferentes da alma. Quando a alma está potente de
amor toda a natureza das coisas atentam para nos aproximarmos
delas, as almas se prendem como positivo e negativo, querendo
somente sempre o próximo instante de contentamento, que amplia
os horizontes nas orações dos desesperados da noite.

Mesmo pensando na vizinha da janela ele mantinha a seriedade


no trabalho sem falhar uma única vez. Tinha uma nitidez exata entre
sentir a alma e trabalhar compenetrado ao mesmo instante.
A empilhadeira corria o tempo todo nervosa no depósito.
Pensamento de Felipe:

Eu gostaria de poder trabalhar mais, se ao menos o dia tivesse


quinhentas horas, eu trabalharia as quinhentas horas para cobri-la do
mais precioso diamante.
Puxa vida! Eu vou fazer de tudo para tê-la comigo, nem que eu vá
voando até a sua janela, mas que você será minha, ah, isso vai.
Talvez eu esteja precisando de uma mulher mais nova, que esteja
sonhando sonhos nobres, por tanto detestar os sonhos imbecis de
estrela que Grace tanto procura. Eu acabei de esquecer o quanto é
bom ser jovem, você vê apenas o horizonte e corre para alcançá-lo
sem ao menos ganhar algo disso tudo.

Naquele momento, quando Felipe fazia suas manobras com a


empilhadeira, mesmo com pensamentos distantes trabalhava com
afinco, a sineta do horário de almoço tocou. Ele se alegrou junto com
os companheiros que começavam com seus falatórios intermináveis,
o turno da manhã já terminara.
Felipe desceu da empilhadeira, guardou as luvas no bolso do
macacão e se juntou ao restante dos colegas. Todos caminhavam
sorridentes para fora do depósito aguardando as marmitas de
almoço.
Todos se reuniam e cada um se acomodava em qualquer canto
para conversar durante o almoço.
Felipe se sentou isolado dos restantes, Jorjão, o colega mais
próximo, notou que ele estava distante da conversação e procurou
saber o que havia de errado:
– O que houve, Felipe? – perguntou Jorjão. – Está preocupado
com a demissão de funcionários? Fique tranquilo, eu também acho
que você não será demitido, eles não fariam isso, você trabalha aqui
há quase dez anos.
– Não é isso, Jorjão – disse Felipe, preocupado.
– E o que está pegando então?
– Você sabe aquela mulher?
– A tal garota de programa? Não acredito que você esteja sofrendo
por causa de uma puta.
– Alguém falou em puta aí? – intrometeu-se Penha. – Se tem puta
eu estou dentro.
– Cale a boca, Penha! – mandou Roque. – Pode falar, Felipe,
desabafa aqui com a gente.
– Estávamos namorando há algum tempo – explicou Felipe, até
ser interrompido.
– Você é louco, cara!? Você namora uma puta? – galhofou Penha.
– Parem de falar assim dela, eu não gosto – pronunciou Felipe, em
tom peremptório.
– Tudo bem. Ninguém aqui chama mais ela de puta, está bem? –
brincou Penha.
– Então... ela prometeu para mim que nunca mais faria programas,
mas outro dia eu a peguei na rua fazendo os malditos programas –
desabafou Felipe.
– Eu não sei por que você se espantou, você já sabia que ela era
uma garota de programa – cutucou Penha.
– Eu sei, mas acabamos gostando um do outro, e depois ela me
prometeu não mais fazer aquilo – esclareceu Felipe.
– Mas vou lhe dizer uma coisa, esse tipo de mulher já nasceu com
o instinto de fazer isso, não é um simples namoro que vai conseguir
tirar ela da vida. Eu já tive relacionamentos com putas, e a melhor
coisa que se faz quando isso acontece é não se envolver, pensar
apenas que é uma noite de prazer, somente isso – aconselhou
Jorjão, tentando confortar o amigo.
– Ô Felipe, por que você não sai com a gente? – perguntou
Roque.
– Se eu sair com vocês encontrarei somente outras putas –
declarou Felipe.
– Mas a vida é assim mesmo, ela lhe dá o troco saindo com outros
clientes e você dá o troco nela saindo com outras putas. Nunca ouviu
aquele velho ditado? “Chifre trocado não dói” – zombou Penha.
Todos riram bastante nesse momento.
– Parem de brincar. Minha vida está se tornando um inferno. Ela
não escuta nada do que eu digo. E agora piorou ainda mais depois
que eu botei ela para fora de casa xingando-a de todos os palavrões
possíveis. Ela não é assim, mas dessa vez eu acho que não vai me
procurar mais, eu exagerei, sabe?
– Diga-me do que você a chamou? – continuou Penha.
– De vadia – respondeu Felipe.
– E do que mais?
– Vagabunda.
– E mais...
– Piranha.
– Xiiii! Não precisa nem ficar esperando, essa não volta nunca
mais para você. Apesar de elas gostarem no íntimo, elas acabam
odiando quando se escancara de vez. Escuta o que eu digo, sempre
que ela fizer algo de errado que você não goste, trate-a sempre com
carinho, como se fosse sua verdadeira namorada... isso se você
quiser garantir uma fêmea do seu lado.
– Agora já foi e eu quero que tudo se dane.
Nesse momento chegaram as marmitas. Eles, afoitos, foram
voando em cima da comida:
– Vem cá que eu estou morrendo de fome.
– O que tem hoje? – perguntou um.
– Você gosta de pernil?
– Gosto.
– De feijão tropeiro?
– Sim.
– De bolinho de bacalhau?
– Que bom! Delícia.
– Tudo isso que eu disse é o que não veio na marmita – brincou
Penha.
– Você se acha engraçado, não é, Penha?
– Eu não sou engraçado, sou apenas um tirador de onda.
– Enquanto vocês discutem nós devoramos.
– Opa! Eu estou nessa também.
Aquele momento de descontração provava aos olhos de Felipe
que seu meio social era mesmo na falta de educação. Mas mesmo
assim ele pensava que não perderia os amigos pela falta de
educação, quando se está nela você se diverte também.
Todos, em poucos instantes, já estavam cada um com sua
marmita, comendo como verdadeiros peões de roça, sentados,
segurando a marmita com uma das mãos e com a outra a colher,
misturando a comida para os lados e levando a colher cheia para a
boca. Quase todos pegavam o pedaço de frango com as mãos,
mesmo sendo um ambiente informal para se fazer a refeição, Felipe
refletia sobre aquilo, pensava que comer daquele jeito, afoito, era
muita falta de educação, nem uma simples oração eles fizeram.
Felipe pensava: “até quando viverei em ambientes que refletem a
pobreza de espírito do ser humano”.
Distraidamente, às vezes ele se via naquele espetáculo de falta de
educação, uns falavam de boca cheia, outros se lambuzavam com a
comida, mas aquilo já fazia parte de sua vida, não havia como fugir
da pobreza de espírito. Porém, lembrando-se da amizade fraterna
entre todos aqueles colegas ele resolveu desabafar algo que nunca
gostava de comentar, pois o deixava frágil, falar de uma mulher por
quem sente um amor de ternura, a paixão que vinha da vizinha da
janela.
– Jorjão, tem uma mulher que está me deixando louco como eu
nunca fiquei. Ela parece uma rosa no meio do deserto, tem o sorriso
da vida e os olhos mais sentimentais que já vi até hoje – suspirou
Felipe.
– Pode ser o doce amor! – brincou Jorjão.
– Ela é uma garota muito especial.
– Você gosta muito dela? – perguntou Penha, intrometendo-se
novamente.
– Não sei... talvez... eu não a conheço direito – disfarçou Felipe.
– Se você gosta dela então esqueça. As mulheres nunca dão valor
a um homem apaixonado. Elas sempre os tratam como se fossem
idiotas, e a pior coisa é um homem idiota. Esqueça, escute o que eu
digo, sai dessa.
– Eu sei, mas é difícil mandar no coração.
– Então cuidado para não perdê-lo.
– Felipe, vá em frente, o amor é a coisa mais bonita que acontece
com a gente, sentir o amor faz parte da vida, não escute o velho
Penha que cansou de apanhar da vida. Veja o meu caso, estou
casado há quinze anos e até hoje sou apaixonado pela Zeilma –
aconselhou Jorjão.
– Seu caso é um em um milhão – gritou Penha, enquanto a
comida era posta para fora de tanta afobação para falar.
– Eu estou com o Penha – disse um.
– Eu também – concordou outro.
– Todo mundo sabe qual a preferência das mulheres – enfatizou
Penha.
– Homem!? – disse um rapaz mais exaltado.
– Não. Quem gosta de homem é veado, mulher gosta é de
dinheiro – alegrou-se Penha.
– Nunca vi tanta besteira dita de uma vez – declarou Jorjão.
Todos com seus machismos faziam uma algazarra até que, Roque,
mais sério, puxou a conversa para outro rumo:
– Gente, esquece essa besteira! – considerou ele. – Será mesmo
que eles vão cortar dez de nós? Não pode ser, mesmo eu sendo
solteiro tenho minhas despesas.
– Quem disse que eles vão cortar somente os solteiros? Vão cortar
quem eles acham que deve cortar – manifestou Jorjão.
– Eu não quero nem pensar nessa possibilidade. Meus problemas
triplicariam. Como eu vou fazer lá fora? Você já viu o tanto de
desempregado que a gente vê na rua? Um número exorbitante. Eu
não faço nem ideia do que fazer! A única coisa que eu sei fazer é
isso. Não vou voltar para a escola depois de velho – anunciou Felipe.
– É isso mesmo que eles querem fazer disse um cunhado meu –
surpreendeu Penha. – Com essa história que a televisão joga para a
gente todo dia que você tem que se reciclar, estudar, estudar e
estudar, com isso o mercado de trabalho se torna acirrado com tanta
gente estudada procurando emprego, a partir daí surgem os
desempregados sem chance de conseguir trabalho de novo como a
gente.
– Eu não sei o que vou fazer se acontecer comigo – se
desesperou Jorjão. – Eu tenho uma família grande para criar. Eu
também, somente sei fazer isso daqui. Não sei o que vai ser. Talvez
eu tenha que viver da miséria de fazer bico, onde você nunca sabe
do amanhã, uma vez ganha pouco outra vez quase e na maioria das
vezes nada.
– Não se preocupem, eles devem estar falando isso somente para
a gente trabalhar mais, ser mais eficiente, mostrar mais trabalho,
entende? – disse um, tentando acalmar.
Nesse momento a sineta tocou, todos se levantaram, até mesmo
aqueles que faziam a sesta. As conversações continuaram entre eles
dentro do corredor de acesso ao depósito.
Felipe foi caminhando, pacientemente, vestindo as luvas e
bebendo água para se refrescar. De frente à empilhadeira ele saltou
para dentro, sem muita conversa e com bastante profissionalismo ele
começou a guiar a máquina para o trabalho.
Havia um sentimento em Felipe que o fazia prever algo de ruim. O
presságio era justamente a demissão. Ele sempre achava que era
uma maldição determinada em sua vida, sempre que estava
apaixonado por alguém, sua vida desmoronava por todos os lados,
talvez fosse impressão, mas era o que sempre acontecia. Felipe
sentia que o amor por uma mulher sempre foi um dos sentimentos
mais malditos, porque degenerava o homem ao desespero. Um
homem apaixonado era quase sempre um motivo para errar em
todas as suas ações na vida.
Felipe continuou trabalhando com aquela habitual mania de pensar
na vida, para ele era uma terapia que devolvia a sanidade, pois o
trabalho era pesado por horas, mas mesmo com pensamentos nos
problemas sua concentração era perfeita.
Pensamento de Felipe, enquanto trabalhava:

Não me importo nem um pouco com esse emprego, se estou bobo


de paixão por alguém ou se Grace vai voltar comigo ou não vai.
Simplesmente quero ter a vizinha da janela, ela é tudo o que eu
quero. Pensar que seja possível amar uma mulher como ela, me faz
esquecer qualquer problema, qualquer virtude dos que estão acima
de mim e qualquer inferno que eu vá esperar.
Minha rapacidade se foi e com ela os amores também, todas as
matérias femininas eu decorei sem querer decorar, eu sei que os
instantes de sentimentos apresentados foram feitos para ser vividos.
Meu pensamento pode ser promíscuo por não alcançar voando seus
desejos mais escondidos, mas meu pensamento é incolor, tão
transparente que nele se percebe a sua volúpia deslizando nas
vontades sonhadoras. Meu trabalho diário é de lhe querer de uma
forma sempre alucinada, incitando a desordem do meu estado
permanente de lucidez.
Grace para mim é de uma péssima qualidade, mas você, você tem
uma emanação invisível de virtudes, o perfume que prostra o homem
para apenas desejar você, seja ao norte, ao sul, de leste a oeste,
sempre desejando você. Talvez você seja dessas que seduzem e
depois aconselham, para aquele que a quer esquecer, pois para tê-
la, antes esse homem deve roubá-la sem pensar no amor uma única
vez.
Meu espírito voa desencarnado sempre à frente de sua janela,
querendo conhecer o ideal do seu amado, para retornar ao corpo e
enfim exercitar os poderes que a conquistam. O voo do meu espírito
é de uma alegria imensa, chora apenas as virtudes que o meu corpo
não pode alcançar.
Se alguém a chama vulgarmente de gostosa é porque já sentiu o
sabor de sonhar contigo... insulto somente seria se a avistasse e não
decorasse seus dotes lívidos de contornos renascentistas... uma
gostosa perfeição.
O trabalho da tarde voava junto de seus pensamentos até a sineta
retinir o estrondoso ruído. Fim de mais um dia de trabalho. Todos se
alegraram e começaram as suas conversações e brincadeiras. Felipe
passou a mão no rosto e abriu um contagiante sorriso de descanso.
Estacionou a empilhadeira no canto de costume para descer aliviado
pelo fim de um trabalho forçado. Felipe poderia parecer para muitos,
mais um sujeito ignorante entre todos os colegas, mas não era, num
passado recente ele teve amigos educados de classe média, ele era
também mais um, mas com a morte de seu pai somente lhe restou
muito suor, garra e um apartamento. Depois, com o trabalho de
operário que teve que arranjar, acabou o afastando de antigos
amigos e se socializando com a classe operária. Apesar da pouca
instrução dos colegas ele se divertia com o tamanho respeito que
cada um tinha com o outro.
Todos estavam reunidos na saída do depósito até que uma linda
moça passou entre eles:
– Gostosa! Minha rainha! – gritou um.
– Vem cuidar lá de casa – berrou outro.
Aqueles instantes para Felipe eram mágicos, pois ele conhecia a
cabeça de seus colegas, eram todos fanfarrões, mas como ele
admirava a singela e a mínima educação, sabia que todos no fundo
somente queriam sorrir.
– Cai fora, seus ridículos! – devolveu a moça.
– Vai lá mexer – ralhou Felipe para os colegas.
– Não adianta falar, Felipe – alertou Jorjão. – Educação aqui passa
longe. Sabiam que poderia ser uma filha, uma mulher ou uma mãe
nossa?
– Mas não é... hahaha.
As fanfarronices continuaram, cada um pegava o seu rumo de
casa sempre tirando prosa. Talvez, entre eles, tudo poderia ser
degenerado, pois o que cada um possuía era justamente a conversa
entre amigos, aquilo os deixava contentes para continuar no dia
posterior.
Felipe e Jorjão se desligaram do restante, o caminho dos dois era
diferente, caminhavam juntos sempre depois do expediente até o
ponto de ônibus.
– Felipe, você não topa tomar uma cervejinha? Depois do trabalho
cai sempre bem, assim você esquece um pouco dos problemas –
disse Jorjão.
– Não vai dar, Jorjão. Estou cansado de tudo, cansado da vida, de
Grace, de vontades insolúveis, cansado de tudo. Eu vou ver se
durmo mais cedo hoje. Você sabe! Tenho que acordar cedo amanhã
para não levar um tranco do chefe – declarou Felipe.
– É a Grace, não é?
– Que Grace? Você acha que eu perco meu sono com ela. Tenho
mais o que fazer do que ficar mimando as vontades de uma
prostituta que sonha em aparecer nas capas de revistas da alta
sociedade.
– Se não é a Grace, então é essa tal moça nova.
– Vou lhe dizer com toda franqueza, Jorjão. Essa moça está
aparecendo na minha vida como um tornado – desabafou Felipe.
– Tome cuidado. Esse tipo de mulher gosta de dominar o homem
desde o fim até o começo. Dê mais chances para o coração aceitar
Grace, ela sim faz parte de sua vida.
– Mas do jeito que você está falando até parece que eu fico
rastejando atrás de uma mulher que eu nem conheço – defendeu-se
Felipe.
– Eu o conheço, Felipe. Quando você gosta de alguém acaba
perdendo o raciocínio lógico, fazendo besteira e esquecendo as
pessoas que o cercam. Eu sei que a Grace continua fazendo
programas, mas do pouco que eu conheço dela deu para perceber
que ela parece gostar de você. Você certamente soltou seus
demônios atrás dela para ela se afastar assim, por isso ela voltou a
fazer programas. Tome tento, nenhuma mulher gosta de um homem
assim – disse Jorjão.
– Você às vezes tem razão, vou procurar melhorar, é o máximo
que posso fazer.
Felipe disse apenas por dizer, o importante para ele era continuar
com a cabeça do jeito que o coração pedia, não dava a mínima para
conselhos, sabia que nada adiantaria se não ouvisse primeiramente
o coração.
Muitas pessoas se consideram sábias por nunca ouvir os outros,
mas é o coração que apanha quando não se percebe o que você é
para os outros. As pessoas que nos cercam são as mais aptas para
enxergar as dores de nossa alma. Mas a cabeça dura igual a do
burro era o que mantinha a vontade de Felipe acesa. Deixando-se
seduzir pelos agressivos desejos de sentimentos contrários.
Naquele momento, o ônibus de Jorjão chegou, ele logo se
despediu de Felipe, pedindo para ele refletir sobre o assunto, depois
entrou no veículo e partiu.
Para Felipe não era surpresa as pessoas e os amigos lhe darem
conselhos sentimentais, estava cansado de todos que sempre diziam
o que o coração dele não queria ouvir. Portanto, ele mantinha sua
condição potente masculina, soberana enquanto não existisse dores
sentimentais que prostrasse o desejo tentador de paixão.
Felipe permaneceu parado no ponto de ônibus esperando seu
veículo aparecer. Subitamente o desejo repentino de ver sua vizinha
de janela acendeu. Queria porque queria rever os olhos despertos de
desejos em seus olhos quase maduros. Preocupava-se com o ônibus
que não aparecia, pois naquele fim de tarde teria uma grande chance
de revê-la, certamente ela estaria em casa. Quando pensou nessa
possibilidade seu peito inflou-se de aflatos apaixonantes.
Estupidamente seria para ele amor, que a cabeça não aceitava como
tal, para ele era apenas uma paquerinha de momento, e que mais
tarde estaria pensando em outra pessoa como já acontecera outras
vezes.
Saiu do ponto, atrás de um vendedor ambulante e comprou um
cigarro picado, era apenas para conter a ansiedade de vê-la
novamente. Puxou a fumaça e depois tragou, pensando no quanto
seria valioso conhecer alguém que lhe pudesse afastar de Grace,
pois Grace nunca estava em seus planos, mesmo sabendo que ele
estava nos planos dela. A felicidade seria certeira se algo muito forte
ocorresse entre ele e a vizinha de janela, mas quando pensava na
impossibilidade da felicidade que nunca acertava o destino, não seria
agora que aceitaria. Mas o amor tem a rara capacidade de cegar o
sujeito numa eterna esperança duradoura, e era justamente o que
acontecia com Felipe, a esperança estava sempre acesa para um dia
deslizar nos contornos daquela mulher. O peito carregado de paixão
o acompanharia até a janela da casa.
Finalmente o veículo chegou, contente ele entrou, disse um
singelo obrigado para o motorista e se espantou novamente com o
tanto de gente que havia, não era para se espantar, pois era hora do
rush, mas ele tinha que se contentar em viajar novamente de pé, que
nunca era do seu agrado. Pagou a taxa passando pela roleta, depois
muito desconfortavelmente procurou se desvencilhar das pessoas
para chegar ao fundo do ônibus onde gostava de ficar quando estava
cheio.
Quando, depois de se apertar para estar onde queria, ele chegou
ao fundo do veículo, acabou se segurando com uma mão apenas.
Todo aquele cansaço laborioso de ir e voltar para o trabalho o fazia
novamente ter uma normal repugnância da vida de pobre
trabalhador. Pensava ceticamente qual destino esperava a sua vida,
de como ele poderia alcançar qualquer virtude que o tiraria daquela
amargura diária. Certamente, ele tinha a quase certeza, de que
viveria sempre na pobreza, pois se perdesse o emprego, tudo seria
ainda mais desprezível, beirando uma possível miséria. Uma tristeza
sempre pairava em seus pensamentos, porque quando era criança
via o mundo com os olhos da fantasia, e que tudo seria riqueza em
seu caminho atingido no futuro, mas uma lágrima temia em descer
dos olhos, não era isso que estava acontecendo, pois o dinheiro, a
felicidade e os sonhos foram voando junto com a nuvem de poeira.
Mas o coração de um homem não chora por coisas que a vida
sabe agredir, conteve a lágrima, o peito e os sentimentos para erguer
a cabeça, ser filho de Deus era o último orgulho que mantinha a raça
de punhos cerrados. Procurou esquecer os desesperos para esperar
de coração acalantado a chegada ao terminal, seria apenas mais um
veículo lotado de gente para ele chegar finalmente em casa. Pensar
naquele desrespeito do próximo para com aqueles que viajavam com
ele o fazia pensar numa vingança eterna, a de que todos os pobres
terão os portões do céu abertos.
Avistando as construções verticais da cidade, Felipe permaneceu
estático dentro do ônibus, a viagem passava bastante rápida quando
se prendia a atenção nos lugares, nas pessoas e nos carros afora.
Seu coração acelerou quando avistou de longe o terminal, enfim, era
mais um fim de parte de um suplício diário. Aos poucos, o ônibus foi
desacelerando para estacionar, as pessoas em volta de Felipe já se
reuniam na porta de saída, a confusão novamente estava
generalizada. Não que todos faltassem de educação umas com as
outras, mas que a vontade perturbadora de descer fazia com que
cada um empurrasse o outro levemente. Quando o veículo
estacionou, cada um foi descendo, todos que desciam se aliviavam
ao sentir novamente os ares e as brisas do dia, esquecendo aquele
lugar abafado dentro do ônibus. Felipe também desceu, sempre
respeitando aquele seu decoro de esperar os mais desesperados
descerem primeiro, ele não gostava quando as pessoas o
empurravam. Quando desceu sentiu o mesmo alívio das outras
pessoas, respirar profundamente aqueles ares o fazia sentir que
novamente era um ser humano, pois o tranco e o solavanco do
ônibus o fazia se sentir como um boi sendo transportado.
Mas não demorou muito para ele voltar para o desespero de mais
uma viagem urbana, quando desceu já avistou de longe o outro
veículo que o levaria para o bairro onde morava. Pensou, se um
ônibus parou e o outro apareceu é que de alguma forma ele estava
com sorte, aquela sorte funesta que somente ele como pobre sentia.
Sentir aquele tipo de sorte era como ser marcado a ferro e fogo, era
como sentir na pele, era como ser miserável e se sentir melhor por
ascender à socialização de pobre. Tudo era apenas sutil em seus
pensamentos.
Começou a apertar o passo, odiava o desespero de correr atrás de
um ônibus. Pensou energicamente consigo: se esse se for eu pego o
próximo.
O último ônibus quase foi saindo quando ele chegou, o motorista
gentilmente resolveu esperar. Felipe entrou e acenou seu sereno
obrigado, quando olhou a vista do interior do veículo se sentiu
aliviado, o ônibus estava vazio, novamente sentiu aquela infeliz sorte
que somente os que estão abaixo do quadro social sentem.
Mas enfim, era uma sorte, não desperdiçaria aquela tranquilidade
de viajar sentado pensando na vida e avistando a paisagem por
causa de esnobismo espiritual. Pagou a derradeira passagem e
procurou se sentar no fundo, pois às vezes ele pensava que, se
ocorresse um acidente, os de trás teriam mais felicidade em ser
socorridos. Quando se sentou, ele sentiu mais um infortúnio, se
sentiu lesado por levarem tanto dinheiro por quatro corridas de
ônibus, sentiu que todo aquele dinheiro num mês o deixaria com
mais oportunidade de comprar o automóvel tão sonhado.
Mas a vida era assim e não havia como interrompê-la, e por que
interromperia, pois se ele estava prestes a chegar em casa,
descansar e ver o noticiário sempre de vistas presas à janela
vizinha? Talvez pudesse encontrá-la naquela noite.
De alguma forma, ele sentia um pormenor, pois mesmo aquele
sentimento lhe roubando um pouco de paz, vindo de uma forma
avassaladora, até aquele dia, não sabia nem o nome dela. Sentiu
que o tempo foi lhe retirando a capacidade de investir sobre o amor
de alguém. Não havia mais dentro dele uma vontade de se arriscar
dentro do caldeirão de sentimentos que se misturavam com o medo
de amar. Avistar a pequena de longe era o mais cômodo naquele
momento.
Felipe resolveu não se incomodar mais e procurou avistar a
paisagem da viagem, sempre pensando na vizinha, no sentimento e
nas janelas.
Pensamento de Felipe:

Mais um trabalho em que quase tudo ocorreu bem, se não fosse


aquela chamada do chefe ao pé do ouvido. Deus! Será que depois
de tantos anos servidos àquela empresa eu serei mandado embora.
Não é possível! Mais um tormento para lidar nessa vida marcada a
ferro e fogo. Estou cansado de me ajoelhar para os poderes vigentes
fantasiados de homens de negócios. Por que eles consomem tão
facilmente a vida da gente? Meus anos de labuta não valeram nada,
simplesmente nada para alguém que não vai com a sua cara
colocando-o no olho da rua. Minha rapacidade se foi toda com esse
trabalho de peão, mas tem que haver a base do sofrimento para que
outros possam curtir a vida comprando todos os quereres para uma
perua esnobe. É nessas horas que penso no quanto sou desprezível
para um mundo orquestrado conforme as vontades dos devassos.
Mas não quero ficar pensando nisso, prefiro as vontades de
livramento do meu coração. Ah, se eu a visse novamente na janela,
juro que nem pensaria mais nos carinhos de Grace.
Amarei, com toda força que tem um coração, apenas você, minha
nina da janela. Serei sempre atencioso com você, somente com
você. E quem disse que não sou atencioso quando quero? Talvez
Grace lhe dissesse que sou o pior homem na face da Terra. Sim,
com ela sou sim. O mínimo que eu peço a ela é respeito, coisa que
ela nunca me deu. Mas com você eu serei diferente, eu caçaria todos
os demônios que existem em mim para você sentir felicidade em
todos os nossos caminhos juntos. Direi apenas as palavras que você
sonha em ouvir.
A única coisa que Grace soube me ensinar foi que o revés da
paixão é o amor, e eu penso que seja isso o que eu estou sentindo
por você, espero que você sinta o mesmo.

A viagem finalmente estava terminando, Felipe já se via dentro de


seu bairro, então levantou do assento se preparando para descer no
ponto que ficava perto de sua casa.
Já era tempo, foi muito inferno para um único dia.
Felipe nem deu muita confiança para os poucos presentes no
veículo, baixou a cabeça e caminhou até o fundo, quando sentiu que
o seu ponto se aproximava ele sinalizou para o motorista. Mesmo
com um sentimento de humilhação, ele sabia suportar todos os dias
da semana, era a forma de se manter vivo. Em poucos instantes,
então, o ônibus foi parando em seu ponto, Felipe esperou a parada
para enfim descer, foi quando sentiu os ares do seu bairro que ele
novamente sentiu a tranquilidade do dia.
No caminho até o prédio, ele percebeu várias outras pessoas
andando na calçada, também buscando como ele o retorno ao lar.
De longe, avistou uma rapaziada reunida à frente de uma casa
noturna, não se importou com aquilo, pois às vezes ele resolvia dar
uma espiadinha, não resistia à baderna nenhuma. Mas a vontade de
ver a vizinha o descontrolava, foi nesse momento que ele apertou os
passos. Decidido, ele queria revê-la.
Depois de caminhar poucas quadras, ele entrou em seu prédio,
estranhou por um momento seu batimento cardíaco, não era possível
tudo aquilo por uma mulher. Mas a alma aceitava, pois somente ele
sentia o furor no coração. No fundo, tinha medo, porque a idade
condenava qualquer sentimento por uma mulher mais nova. Poderia
ser preconceito seu, porém aos olhos da sociedade não era cabível,
pois ele caminhava nos trinta enquanto ela radiava olhos teens.
Felipe subiu as escadas do prédio pausadamente, pensou num
dado momento que seria besteira voar daquela maneira atrás de
uma moça que certamente estaria envolvida com um gatinho da alta
roda de rapazes. Ele seria apenas para ela um possível coroa
derrubado por amores. Mas quem consegue mandar no coração? Os
olhos de um homem são sempre vulneráveis a qualquer beleza
exposta.
De frente à sua porta Felipe remexeu a chave até abri-la,
acendendo a luz da sala logo em seguida:
“Calma, Felipe! Não é preciso ser tão afobado, pense primeiro,
ligue a TV ou procure algo na geladeira”, pensou ele.
Mas não demorou muito para ele se sentir tentado a abrir
suavemente a cortina. Aos poucos, foi abrindo a cortina como quem
espera uma grande surpresa.
– Ela vai estar lá... Ela vai estar lá! – torceu Felipe.
Quando abriu se desanimou mais uma vez. Ela não estava no
apartamento, todas as luzes estavam apagadas. Era tudo o que
poderia acontecer para ele perder o dia.
– Raios! Esquece essa mulher – disse ele. – É apenas uma
simples garotinha que pensa o dia inteiro em frequentar boates,
clubes, escolas e festas teens com gente da idade dela. O que um
peão como eu poderia oferecer para ela? Ah! Talvez o amor bem
agressivo de peão... se ela sentisse esse poder esqueceria todos os
frufrus da vida.
Ele logo se conformou, ligou a TV, gostava de ouvir a voz da
televisão, ela suavizava aquele estado sereno, depois foi para a
cozinha procurar algo na geladeira. Lembrou-se repentinamente que
a geladeira estava completamente vazia, resolveu então descer e ir
até a padaria mais próxima para comprar algumas cervejas, jurou
que aquela decepção de não encontrá-la não estragaria sua noite.
Ele já estava acostumado a sempre tomar uma cerveja em frente à
televisão. Era agradável assistir aqueles apresentadores
engraçados, bêbado então, era melhor ainda. Ele se divertia com as
besteiras da TV.
Desceu as escadas assobiando uma melodia qualquer, do sexto
andar ao térreo, deixando para trás televisão ligada e porta aberta.
Ele não se incomodava, pois todos daquele prédio o conheciam, e
nunca houve desde o tempo que morava ali, algum roubo ou assalto,
então não se preocupou nem um pouco.
Quando chegou à rua continuou caminhando e assobiando. Às
vezes, a garota lhe voltava na mente, sentia um sentimento pegajoso
que não gostava de sentir, para ele o amor era algo somente vivido
pelos sociáveis, e não para ele, um grosseiro peão sem perspectivas
de futuro.
Entrou na padaria, raramente fazia compras do mês no
supermercado, pois não tinha tempo, então tudo que ele tinha que
comprar num dia comprava na padaria. Entrou de cara fechada para
todos, escolheu a cerveja preferida, resolveu num instante comprar
umas cinco logo de uma vez, depois, comportado, entrou na fila dos
que aguardavam para pagar suas compras. Se aborreceu porque a
fila não andava, enquanto esperava, ficou observando todos os
produtos da padaria, pensou brevemente no quanto era difícil abrir
um negócio daquele, para ele, conseguir montar uma padaria era
como conquistar um império, ou seja, quase impossível. A força e o
ímpeto que o seduziam para ganhar dinheiro era muito grande, por
isso, cada coisa que ele via na rua era um motivo para descobrir
como ganhar dinheiro, para escapar daquela vida de namoricos com
uma prostituta, mas era inevitável, essa era a vida que Deus
escolhera para ele, viver alucinado cheio de sonhos impossíveis.
Na sua vez de pagar as cervejas, ele pagou rapidamente sem
muita conversa com o caixa, de cara marrada recebeu o troco e saiu
com as suas cervejas e um maço de cigarros, numa única noite, ele
era capaz de acabar com aquele maço inteiro. Voltou ao caminho do
prédio com uma rara sensação de contentamento, as cervejas e os
cigarros seriam sua companhia naquele final de noite, ao menos se
sentia bem acompanhado, melhor do que se Grace viesse torrar sua
paciência querendo reatar aquele degenerado namoro. Às vezes,
ficar sem Grace era melhor, pois o carinho que ela dispensava era
quase sempre falso, não havia romance quando depois o outro o
deixava para ganhar dinheiro com outros amores.
Para ele, ela era apenas um sentimento libertino, sem causas ou
efeitos, somente o presente diria a verdade escondida em cada
coração.
Ele então subiu as escadas do prédio com uma sacolinha cheia de
cervejas. Sentiu um certo descanso pairar, pois finalmente era a sua
última caminhada naquele dia. O encargo de viver a semana inteira
apenas para ganhar o dinheiro que perdia todo na mesma semana o
descontrolava, o desesperava sobre o que seria do futuro. Com a
lógica do presente ele pensou, seria isso mesmo, bebendo e sorrindo
com as desgraças da vida.
Não se assustou nem um pouco quando chegou ao seu andar, a
porta estava aberta com a televisão ligada:
“Qual ladrão vai roubar minha casa?”, pensou ele. “E por que
economizar miseráveis centavos com energia?”
Num momento de distração dentro de casa ele abriu a cerveja,
depois com uma força de espírito ele tomou, tomou e tomou até a
cerveja ficar mínima dentro da lata.
Sobreveio na cabeça tentar avistar a vizinha novamente.
– Eu não acredito, mas eu vou futricar essa garota mais uma vez –
disse ele, sozinho. – Quem sabe com o álcool na cabeça ela não
aparece por um encanto. Diabos! Talvez essa mulher não exista,
talvez fui eu que bebi por esses dias atrás. Diabos! Mas ela existe
sim e é tão bela quanto qualquer artista de cinema. Eu juro! Se eu
abrir essa cortina e não a vir, será a última vez que faço isso.
E quando ele abriu a cortina seus olhos se espantaram, se
animaram, se envaideceram, se alegraram, ela estava lá, e dessa
vez vestida apenas de sutiã, e com os olhos hipnotizantes sobre
Felipe, pareciam íntimos, pareciam embevecidos, brilhavam como a
maior estrela já vista. Cada gesto que ela fazia sob aquela peça
íntima, degenerava os desejos impudicos de Felipe. Seu coração
estava palpitando como uma máquina de infinitos cavalos de
potência.
Ela continuava lá, do outro lado, fazendo gestos como quem se
preocupava com outra coisa qualquer, mas seus olhos não
enganavam, estavam presos, estavam convictos, estavam
misturados aos olhos de Felipe. Aquele processo delicado de olhar
com os olhos tímidos para ele o fazia delirar, sentir que era possível
uma grande nova paixão.
Felipe continuou hipnotizado com o olhar da jovem apaixonada, os
olhos dela pareciam demonstrar calorosamente de que precisavam
de uma primeira paixão.
Ela sinalizava pelos olhos embriagados de pureza um sentimento
escandaloso de quereres, e esses quereres eram Felipe, que por sua
vez entrava num estado que ele cansava de acusar, o estado do
amor, para ele, naquela idade não havia muitos motivos para esperar
isso, mas o que fazer se o coração pulsava num ritmo que
impulsionava uma energia que levaria a alma às estrelas. Ele olhava,
retribuindo todos os avassaladores sentimentos que ela lhe
despertava.
Naquele momento, a única reação de Felipe foi esperar suspirando
todos os movimentos dela até ela fechar a cortina.
Pensamento de Felipe:

Como esse sentimento é violentamente intenso, se eu fosse feito


de plumas eu juro que me soltaria daqui do alto até o chão. Como é
verdadeiro sentir que a paixão matizada de amor ainda pode me
buscar desse inferno.
Continue assim, me olhando, me querendo, me fazendo sentir que
as luzes não se apagaram, desejando um amor eterno, para toda
vida, para sempre, somente assim eu alcançarei seu espelho de
Afrodite bem antes do nosso destino já escrito no espaço, nas
constelações e nas galáxias. Mesmo quando eu morrer, meu espírito
vai vagar pelo infinito do universo, procurando o planeta mais vazio e
mais próximo possível do paraíso. Até Deus vai ter que esperar, pois
eu vou dar um tempo antes de entrar no reino da salvação,
esperando apenas você, minha jovem brilhante, somente entrarei
com você enlaçada nos meus braços.
Seus olhos são fáceis de ler, são decifráveis, neles escapam um
brilho de ternura, graciosidade, felicidade, delicadeza, beleza, amor,
paixão, imaginação e demasia alegria feminina.
Não vá... não se canse de homenagear nosso encontro.

Depois de algum tempo, ela fechou as cortinas e tudo escureceu


em seu apartamento. Felipe, eufórico, foi comemorar seu sentimento
bebendo aos goles outra cerveja. Ele sentou na frente da televisão
falante, estupefato, em transe, como quem acabava de encontrar
uma grande sorte.
Na frente da televisão ele não acreditava em tudo aquilo.
– Essa mulher é tudo! – retiniu ele.
Capítulo 5
A lua cercada de escuridão despontava no céu novamente e todas
as criaturas da noite se preparavam para ganhar as ruas e os
prazeres, dentre essas criaturas estava Grace, dentro de casa se
preparando para mais uma noite de profissionalismo sexual.
Estava ela novamente escolhendo as peças de roupa que usaria
nos programas. Sempre quando ela se preparava para mais uma
noite, a consciência tangia-lhe a cabeça, pensava nos pais que não
mereciam aquilo, mas seu lado esquerdo e matemático do cérebro
impunha as certezas da vida, que para ela nunca fora um conto de
fadas, lembrar de que enquanto ela se prostituía suas antigas
amigas de adolescência se casavam com os filhos dos fazendeiros
mais ricos de sua cidade natal a fazia se magoar, tentava encontrar o
porquê que não poderia ser ela, mas uma certeza repentina sempre
flutuava em seus pensamentos, a de que todas se casavam por
dinheiro, uma forma mais sórdida ainda de ganhar a vida, pois
acalentar os problemas, destruindo o próprio futuro para parir filho
para a aristocracia, para ela, era o golpe mais baixo que uma mulher
poderia dar. Por isso ela sagradamente guardava seus filhos e
sonhos de felicidade somente para um homem que ela teria certeza
amar, e por quase nada esse homem flutuava em sua cabeça, um
sentimento pairava no coração e gritava freneticamente que esse
homem era um certo empilhador de carga, certamente e
necessariamente poderia ser Felipe.
Não adiantava dar pausas ao coração, ela amava realmente Felipe
como nunca amou outro homem. Por isso, enquanto ela se
preparava para sair mais uma vez pelas ruas, novamente escolhia as
peças íntimas de cor preta, numa espécie de sentido decidido: sair
para matar todo e qualquer sentimento que possa haver por um
homem da rua. Antes de encontrar Felipe num programa, ela usava
qualquer cor de peça íntima, ela sempre sorria quando lembrava da
calcinha vermelha que usou com ele, sinalizava coisas boas como
amor e paixão, isso a aproximava mais ainda do rude Felipe. Depois
decididamente ela resolveu somente usar preto com outros homens.
Qualquer um a julgaria muito facilmente, mas somente ela sabia e
conhecia suas circunstâncias. Manter aquele padrão de vida era
muito complicado, ainda mais com as mensalidades caríssimas de
sua faculdade aliadas aos aluguéis, roupas, alimentação e
transporte. Às vezes ela pensava: “se já estava decidido ser uma
garota de programa então não havia como voltar atrás”. Suas
decisões eram sempre terminantes. Algo poderia absolvê-la, algo do
tipo: lei da sobrevivência.
Ela sempre se aprontava para um programa com muito carinho,
vestiu a calcinha preta e foi para a frente do espelho atrás da porta
do armário, sentiu que realmente estava donairosa naquele dia
quando arrebitou o bumbum se vendo totalmente sensual. Apreciar o
próprio corpo era uma forma de se libertar dos problemas, de uma
coisa ela não podia se queixar, do corpo que Deus lhe dera de
presente. Somente de lingerie, ela se revirava à frente do espelho
fazendo poses que agradariam qualquer amante da rua. Mesmo
sabendo que seu corpo tinha formas exuberantes, ela tinha a
consciência feita de que para agradar os mais endinheirados como
playboys, executivos e artistas a garota tinha que estar sempre bem
produzida, pois uma mulher como ela despertava imaginações,
fantasias e sonhos de uma grande parte de homens desiludidos,
separados e infiéis, somente aqueles seres que nenhuma mulher
aceitaria na cama, mas ela não, se produzia com bastante esmero
para todo cliente sair feliz e satisfeito.
Depois ela se preparou para colocar o vestido, nenhum parecia
agradar, aquele derradeiro banho profundo aromatizado pedia um
vestido suave e fino, já a ocasião da noite pedia algo como sensual e
decotado. Então revendo vestido por vestido com cautela ela acabou
escolhendo um vestido verde-água de tecido colante no corpo. Havia
um enorme decote nas costas e outro que privilegiava suas
belíssimas pernas bronzeadas. Vestiu delicadamente a peça, mas
com um agonizante sentimento de desilusão, ela sempre se
aprontava para aquela ocasião pensando sempre que seria a última
vez, mas hoje como ontem ela pensou o mesmo, não seria diferente
com o dia de amanhã.
O perfume de sempre foi escolhido para a presente ocasião,
mergulhou-se na fragrância da noite, para ela não havia meio termo,
ou o homem se apaixonaria ou nunca mais a veria. O perfume
exalava aflatos de luxúria, poderia seduzir até um distante pacato
cidadão que por ela passasse. Grace não poupava nenhum recurso
que poderia enlouquecer os homens, ela atacava agressivamente, a
noite era seu habitat natural, então como uma flor de paixão ela
desabrochava libidinosamente.
Calçou os sapatos altos que privilegiavam ainda mais seus dotes
femininos, pareciam suspender em declive as suas ancas. Sempre
de olhos atentos no espelho querendo provocar a própria imagem,
querendo extravasar noeses libertinas em todos os homens
possíveis que pudesse encontrar. Não faltava com cuidado a
nenhum detalhe, tudo era visto e revisto, e quanto ela mais se via
bela em frente ao espelho mais ela pensava em Felipe.
A todo momento ela se via de costas para o espelho, intimamente
adorava seu bumbum enrijecido com bocados de carne que todo
homem adoraria apertar:
“Se o Felipe me visse agora duvido que me rejeitaria assim
facilmente. Se me visse agora, avançaria sobre mim atacado de um
infindo desejo de sexo. Como meu corpo se molda facilmente à
percepção sexual desses homens de hoje em dia! Não chore tanto
assim por quem não lhe dá valor, afinal todos querem ter você essa
noite”, pensou Grace.
Cuidadosamente, toda arrumada, Grace pensava apenas em dar o
toque final, somente faltava a maquiagem para sair no estilo gata da
noite. Enquanto, de frente ao espelho do banheiro, ela fazia as
sobrancelhas, a boca e os retoques finais, tudo era permeado em
seus pensamentos com as lembranças de Felipe. Grace não sabia
como agir para agradar as vontades do namorado, nenhuma
efêmera briguinha a faria sentir uma ex de Felipe, certamente já
ocorrera outros pormenores entre os dois, mas Grace não
esqueceria assim facilmente tanto amor dedicado no tempo em que
estiveram juntos. Então, para ela, eles ainda eram namorados.
Quando tudo finalmente estava pronto e as lembranças de Felipe
ainda vagavam em pensamentos, ela decidiu sair de uma vez para
esquecer todo e qualquer sentimento de culpa que pudesse agredir o
namorado. Num determinado instante, lembrou-se em combinar com
a amiga, Paola, o local de encontro para juntas fazerem o trottoir.
Grace foi ao telefone e sempre que pegava nele se lembrava de
contas a pagar. Mas, afinal, não havia chance para se aborrecer, pois
ela estava correndo atrás da vida, a todo momento estava numa
inércia disparada, nenhum problema poderia abalar seu
profissionalismo sexual.
Digitou pausadamente as teclas do telefone até que:
– Alô, Paola! – disse Grace.
– Então, amiga, pronta para ganhar todos os gatos da cidade? –
alegrou-se a amiga, Paola.
– Sim, mas novamente me sobreveio algumas tristezas sobre tudo
isso. Você sabe que ainda não me acostumei com essa vida. Toda
noite quando isso começa eu passo a ter medo de tudo, da vida, dos
meus pais e do Lipe.
– Quanto aos seus pais eu entendo, mas você de uma forma ou de
outra um dia terá que contar tudo a eles, da mesma forma que eu
contei aos meus, hoje eles se acostumaram tanto que nem mais
percebem minha vida à margem das ditas certinhas.
– Mas meus pais não entenderiam nunca. Você não faz ideia do
que seja essa vida para eles, ambos foram educados no interior com
todos aqueles modos tradicionais, para eles seria o fim de tudo, meu
pai com certeza nunca mais me deixaria entrar em casa e a minha
mãe nunca mais olharia na minha cara – disse Grace, preocupada.
– E você acha que os meus pais também não são assim? Lógico!
Mas com o tempo eles foram se acostumando. Meu pai, por
exemplo, às vezes me pede algum dinheiro mesmo sabendo que
vem da minha prostituição – esclareceu Paola.
– Eu nunca teria coragem de fazer como você fez. Prefiro assim,
do jeito que está, ocultando minha vida nas ruas. Meu maior medo
sempre será que eles saibam.
– Agora, Grace, se você se sente mal por fazer o trottoir com medo
das reações do Felipe, por favor, me dê um tempo. Eu já falei mil
vezes que ele não a merece. Amiga, você foi feita para brilhar, para
casar com um aristocrata bem rico que lhe dê tudo o que você
quiser.
– Tudo bem. Vou tentar esquecer o Lipe somente por esta noite,
porque aquele danado ainda vai voltar correndo atrás de mim.
– Sabe, amiga? Às vezes tenho medo dessa sua doença chamada
Lipe.
O que você viu de tão especial naquele peão pé-rapado?
– Esquece o Lipe por enquanto. Então? Aonde vamos nos
encontrar? No lugar de sempre?
– Talvez, se eu conseguir me soltar do Maurício, ele quer porque
quer ficar comigo esta noite. Você sabe, nunca encontrei um homem
tão fogoso.
– Que bom, Paola, que o Maurício a ame tanto, o que me enche
mais ainda de tristeza por saber que o Lipe nem perto de mim quer
ficar – entristeceu-se Grace.
– Esquece esse idiota! – aborreceu-se Paola.
– Não fale assim do Lipe – Grace esboçou um contido choro
naquele momento. – Seu namoro anda a mil maravilhas e você ainda
galhofa do meu único amor da vida.
– Desculpe, Grace, eu entendo.
– Tudo bem. Eu também não sei por que eu fico tão sentida por
um homem que me usa do modo que quer usar. Somente eu mesma,
a maior tonta da face da Terra.
– Não fique assim, Grace. Não se culpe tanto.
– Tudo bem, então se eu chegar primeiro fico lhe esperando no
começo da avenida Afonso Pena em frente ao bingo.
– Não precisa, eu vou sair daqui o mais rápido possível, estou
precisando de dinheiro nesse final de mês.
– Até mais então.
– Até mais.
As duas logo desligaram o aparelho no mesmo instante.
Grace então procurou esquecer por um momento o sentimento
rancoroso sobre Felipe e resolveu sair para mais uma noite de
programas na rua:
– Lipe, tentarei esquecê-lo assim, na rua em busca de paixões
recalcadas. Eu sei que você não vai me procurar mesmo, sempre
esteve longe de mim, mas perto do meu coração – disse ela, dentro
de seu apartamento vazio.
Grace, audaciosamente, pegou sua pequena bolsa preta com
detalhes prateados e saiu, fechando a porta com cuidado e sempre
pensativa naquele futuro indesejável, não fazia parte dos seus
planos continuar rodando bolsinha na avenida Afonso Pena, mas a
penúria da vida impunha um brilho fraco de desejos, enfim, a única
condição era aceitar.
Ela desceu as escadas do prédio que estavam escuras, fazendo
lembrar ainda mais os temores de viver como uma marginal,
dependendo sempre da vida oculta, da escuridão que beneficiava
sua vontade de ganhar dinheiro pagando por isso qualquer preço. O
preço era depender de uma contínua mentira que ela supunha que
um dia acabaria, estava somente dando um tempo, mas ela confiava
piamente que um dia alavancaria sua carreira de modelo. Continuou
descendo as escadas de um condomínio antigo em que ela já vinha
alugando há muito tempo, de andar em andar ela sentia o temor
daquela vida se perpetuar sem que ao menos conhecesse a virada
de mesa. A escuridão do interior do prédio realçava ainda mais a
vida de mentiras que a arrastava para a derrota, essa era a palavra
que mais fazia Grace temer suas condições de futuro. A derrota era
uma palavra que sempre flutuava em seus pensamentos, não vivia
assim por acaso, ela começou a sentir a negatividade dessa palavra
quando visitou uma ex-colega das ruas que por motivos diversos
largou a vida degenerada da prostituição, e essa sua amiga sempre
soltava bem facilmente que a vida do trottoir era uma vida de derrota,
desde então a palavra ficou marcada em sua mente. Mas ela nunca
deixava essa palavra pesar mais problemas em sua consciência já
afetada, ela continuava perseverante em seus sonhos, jurou que a
palavra derrota não se manifestaria em sua vida, e que um dia
finalmente conheceria o estrelato de modelo nas capas de revistas.
Mas enquanto isso, para manter um padrão de vida suficiente para
uma modelo, ela continuaria com os programas.
Depois de descer as escadas escuras do prédio, Grace passou
pelo porteiro, levemente acenou um singelo cumprimento. Grace
sabia que as pessoas daquele prédio desconfiavam das suas
atividades, por isso ela agia da forma mais discreta possível para
não alardear ainda mais seus problemas, ela tinha a consciência de
que a prostituição nunca era bem vista aos olhos da sociedade.
O porteiro com um discreto sorriso maroto a viu passar, esperando
apenas alguém para novamente fofocar sobre a vida dela. Ele
adorava quando os garotos do prédio perguntavam sobre ela,
qualquer rara presença de Grace era motivo para falar de seus
amantes. Conversava também com as senhoras do prédio sobre as
roupas provocantes que ela usava, comentando tudo, sempre
colocando pimenta nas relações sociais do condomínio.
Mas Grace era decidida e não dava a mínima importância no que
as pessoas pudessem pensar sobre seu comportamento. Continuou
com seus passos firmes densos de feminilidade até o ponto de
lotação. Grace, como Felipe, também detestava essa dependência
do veículo público, pensava que não era um modo de viajar na
cidade compatível com uma modelo. Sempre firmemente jurava que
algum dia ainda conseguiria fazer com que um cliente bem rico a
desse um carro de presente como aconteceu com uma colega.
Gostava de sonhar com aquela independência de sair pelas ruas da
cidade esnobando a aventura que somente um carro proporcionaria.
Logo, um veículo importado era o seu sonho material mais íntimo,
sonhava sempre que levaria o namorado, Felipe, para qualquer
lugar, até viagens para o litoral com ele do lado era o seu desejo de
consumo irresistível. Mas somente com Felipe isso teria um efeito
desejável. O interessante dos sonhos de Grace era que Felipe, em
todos, vinha sempre acompanhado. Em qualquer desejo havia Felipe
no meio. Ela não falseava seus sentimentos. Se sonhasse em ter
uma cobertura, Felipe teria que morar dentro, se sonhasse com um
carro importado viajaria com ele, se sonhasse com uma casa de
praia Felipe também visitaria junto com ela. Era impossível uma
felicidade material sem o namoro delicioso dos dois. Assim Grace
passava o tempo esperando sua oportunidade para conseguir
comprar uma vida de sonhos para o namorado.
Repentinamente, sob um céu escuro, o ônibus finalmente chegou,
ela sem perder muito tempo entrou, e em cada passo, nos três
degraus do veículo, seu vestido colante se encurtava mais,
aparecendo quase toda a perna morena para os olhos delirantes do
condutor, ele pasmou, hipnotizado, como quem babava, somente
tinha olhos para Grace, contorceu-se enquanto ela, delicadamente
sensual, adentrava. O mesmo olhar embasbacado era diferido pelo
cobrador e pelos restantes dos passageiros homens.
Suavemente ela retirou algumas moedas de sua bolsinha preta
para pagar a passagem:
– Muito obrigada – agradeceu ela, quando recebeu o troco.
– Disponha – disse o cobrador, salivando as palavras como quem
saboreasse um doce.
Enquanto ela procurava um lugar para se sentar os homens que
seguiam viagem fitavam seus olhos, sua boca e principalmente suas
ancas. Não havia desejo masculino que não admirasse a beleza de
Grace, que deixava claramente no ar uma sensualidade profissional,
talvez fosse pelas roupas provocantes que usava, mas todos os seus
dotes femininos eram agraciados.
Ela acabou sentando nas primeiras fileiras do veículo, sentou de
um jeito comportado que contrastava com a sensualidade do vestido.
Enquanto isso, os homens presentes, mesmo despreocupados,
olhavam algumas vezes de soslaio para despertar a imaginação, a
percepção e a noese do sexo.
Sobre um estreito apoio da janela ela apoiou o cotovelo com a
mão segurando a testa como quem se enrubescia com tantos
olhares, mas somente pensava em alguém.
Pensamento de Grace:

Felipe, eu sei que o que faço com você é ruim, mas o que vou
fazer se minha vida caiu nesse precipício que nunca chega ao
fundo... se eu ao menos tocasse o chão, saberia lhe dar seu
presente mais íntimo, a liberdade de amar, a única liberdade que
existe quando duas pessoas se gostam, nunca havendo nenhuma
espécie de segredos entre elas. Mas em mim eu sinto que ainda
existem enormes segredos, um deles, continuar com esses malditos
programas, deitando com velhos babões que enojam a gente
somente vendo seus olhos de interesse sexual, mas infelizmente a
vida me ensinou somente o errado. Não consigo manter uma vida
padrão, à moda dos seus segredos íntimos de sonhar junto a mim
uma família feliz.
Lipe, a única coisa que peço é que você me perdoe sempre, nunca
diga não às minhas vontades, pois a maior delas é ter você como
meu homem para sempre. Eu sei que você sabe que eu, por motivos
diversos, sou ligada à concupiscência, às coisas, aos materiais, mas
nunca pense, e eu nunca lhe dei motivo para isso, que em algum
momento eu deixei de amá-lo. A vida pode ser simples para os
filhinhos de papai que flutuam no imaginário e nas paixões das
mulheres virtuosas, mas uma coisa eu posso lhe dizer que nenhuma
o amaria como eu amo... mas você consegue sempre me esquecer
facilmente.
Depois que discutimos, você em nenhum momento me procurou,
pois sabe que vou correr de volta aos seus braços sempre quando a
tristeza o encontrar, lógico, a boba aqui, apaixonada, nunca quer ver
seu homem triste por causa de mulheres que nunca deram o valor
que ele merece.

O momento de descer em seu ponto estava chegando quando ela


levantou para o delírio dos olhares presentes, ao perceber que quase
todos a olhavam, ela firmou um rumo retilíneo com o olhar
penetrante para frente sem uma mínima distração para os lados.
Enquanto ela passava, alguns homens viraram a cabeça seguindo o
compasso deslizante de seu corpo grácil. Claro! Alguns não
resistiram e olharam para trás apenas para avistar seus glúteos
definidos que estavam bem delineados com o vestido colante que
usava.
No momento que o ônibus parou, ela deu o sinal para que o
motorista abrisse a porta, até que:
– Motorista, por favor, abre a porta – gritou Grace com um tom de
voz suave.
Foi o instante para os homens presentes se manifestarem:
– Não abre não, motorista! – berrou um.
– Deixa a biscate rodar bolsinha para a gente – bradou outro.
– Vocês são uns ridículos! – defendeu-se Grace. – Abre logo essa
porta, motorista.
Com uma breve pausa o motorista depois acionou o dispositivo
que abria a porta. Grace, procurando ser mais distinta possível,
desceu suavemente com uma pose de madame.
A partir daí, começaram a algazarra, o machismo, o delírio e as
palavras promíscuas:
– Piranha gostosa!
– Vem rodar bolsinha lá em casa!
– Putona!
Enquanto o ônibus ameaçou partir ainda deu tempo para ela se
defender:
– Vão para casa e se agasalhem com suas mulheres feias.
O ônibus enfim partiu, não deixando nenhuma lembrança boa para
Grace que começou a esboçar um contido choro.
– Deus, me tira desse inferno! O que eu vou fazer da minha vida?
Eu não sei fazer nada direito. Deus, o que eu fiz para merecer esse
tipo de coisa – chorou Grace, tentando se conter.
Caminhando desiludida na avenida onde fazia o trottoir, Grace
cada vez mais sentia a falta de uma segurança masculina, alguém
que a pudesse proteger desses infortúnios da vida. Muitas vezes,
acusava Felipe de ser um amante distante, que nunca se aproximava
verdadeiramente dos problemas dela, a falta de um carinho mais
cúmplice era um motivo para pensar em esquecê-lo, mas o coração
castigado dizia justamente o contrário, freneticamente induzia Grace
a buscar sempre a proximidade do namorado, a buscar a certeza, e
a certeza era amar Felipe, pois ela conhecia bem seu lado carinhoso,
sabia que por detrás daquele homem obtuso e rude havia um outro
homem, amoroso e dedicado. Lutar pelo sentimento daquele homem
era o que a alma deduzia, Grace, ao contrário de Felipe, nem
pensava em desiludir a força do coração.
Mas as atitudes eram contrárias, ela sabia que o maior passo para
encontrar o sim do namorado era largar as ruas de uma vez, porém
não se desesperava, conquistá-lo de uma maneira forte requeria
algum tempo, e nesse algum tempo prometia sempre a si mesma
que largaria aquela vida.
Grace, tentando esquecer as besteiras que ocorreram no ônibus,
começou a se alegrar com a rua, avistando colegas e travestis.
Sentia que seu verdadeiro amor era Felipe, mas as ilusões daquele
mundo destinavam uma alegria rotineira que a remediava
instantaneamente dos problemas amorosos, então Felipe novamente
voltava para um anonimato profundo em seus pensamentos.
Quando ela encontrava novamente os ares noturnos sorria, porque
a sorte não era tão dura assim.
De longe, caminhando até seu ponto de costume, perto de uma
casa de bingos, ela avistou uma amiga, o travesti Bia Baby:
– Amiga! – gritou o travesti, de longe, ao avistar Grace.
Animadas, se aproximaram e trocaram beijinhos amigáveis:
– Que bom encontrá-la aqui! – disse Grace.
– Nossa! Eu amo essa mulher, poderosa como sempre, se eu
fosse mulher queria ter esse corpo maravilhoso que você tem,
Grace.
– O que é isso? Você encontra muito mais bofes maravilhosos do
que eu. Você é a fada suprema da avenida Afonso Pena!
– E você é minha diva entre todas dessa cidade.
– O que eu mais desejo é ser tão iluminada assim como você diz.
– O que aconteceu, minha diva? – perguntou o travesti Bia Baby. –
Problemas de relacionamentos amorosos, sentimentais, paixões
iludidas? Pode desabafar comigo, minha diva, a única mulher com
quem eu me casaria.
– Acabei de ser difamada por alguns imbecis. Você sabe, esse tipo
de cara somente faz a gente perder a cabeça e pensar que somos
realmente o que eles dizem. Eu não sei, às vezes penso em largar
tudo e voltar para a barra da saia de minha mãe – desabafou Grace.
– Ih, amiga! Cabeça erguida, não se deixe abater por meia dúzia
de idiotas enrustidos e machistas. Nenhum desses babacas
consegue me ferir, já estou acostumada com esse tipo de gente.
Tudo isso é gentinha que não tem nada o que fazer, aposto que
todos queriam ter o suficiente para poder lhe fazer. Ih! Esquece. Não
me diga que qualquer um agora vai distanciar a iluminada Grace dos
holofotes e das passarelas do mundo inteiro.
– Mas não é somente isso que vem me aborrecendo – declarou
Grace.
– O que está acontecendo então? – indagou o travesti, Bia Baby.
– É que eu e o Lipe brigamos novamente, por motivos tão tolos
que eu nem me lembro, somente sei que ele me tratou igualzinho a
esses homens fanfarrões.
– Eu não acredito, querida, que você vai ficar chorando por causa
de um homem machista que não se dá nem o respeito. Empurra ele
logo na ladeira de uma vez! A estonteante Grace merece homem
muito melhor, do tipo que abre a porta do carro, puxa a cadeira
gentilmente e oferece flores. Amiga, esquece de uma vez por todas
esses tipinhos que encontra na rua, eles não valem nada.
– Mas o que eu posso fazer se só de lembrar dele meu peito afoba
de paixão.
– Ih! Você já está nesse estágio? Então, amiga, se for assim, vá
correndo para os braços dele o mais cedo possível. Por que quando
você sente algo forte assim por alguém, a melhor coisa é aceitar as
coisas do coração, porque senão vai sofrer mais ainda.
– É o que eu acho, mas a Paola...
– Ih! Esquece o que a Paola possa ter dito. Ela só pode estar
morrendo de inveja. Você acha? Aquele namorado dela transa com
ela e com o resto da cidade. Ela está com inveja porque sabe que o
Lipe é diferente, ela sabe que ele é fiel, e isso é o maior sonho de
uma garota de programa.
– Não... eu não acho que a Paola possa estar com inveja.
– Vai por mim, amiga, nós, mulheres, odiamos saber que nossas
amigas andam felizes no amor.
Naquele instante em que Grace e o travesti conversavam, um
automóvel sedã de luxo se aproximou, um dos homens que estavam
dentro saiu para galantear as duas, convicto que as duas eram
mulheres.
– Vocês duas, vamos nos divertir juntos? – aproximou-se ele.
– No momento não podemos – respondeu Grace.
– Se o problema for dinheiro eu tenho aqui. É só dizer quanto é –
disse o homem, num tom de voz embriagado.
Grace tentou disfarçar a situação.
– É que nós temos preços diferentes – explicou ela.
– Claro! A loira gostosona é mais cara – insistiu ele. – Sem
problemas, eu pago do mesmo jeito.
O travesti, Bia Baby, continuou calado, olhando para os arredores
sem dar muita atenção para aquele homem que parecia mais estar
num fim de festa.
– Sua amiga loiruda é tão cara assim que nem olha na gente? –
insistiu o homem, novamente.
– É que ela não é bem minha amiga – informou Grace, tentando
esclarecer.
– Tudo bem. A gente entra no carro, bate um papinho e no final
todo mundo acaba se conhecendo – brincou o homem.
– É que ela não é bem isso o que você está pensando.
– Meu Deus! Isso é um macho? – perguntou ele, pasmado.
– Sou, meu bem. Por quê? Não vai querer mais não? – disse o
travesti, em tom de voz firme.
– Eu não posso acreditar!
– Pois acredite... e não estou conseguindo suportar seu cheiro de
uísque paraguaio... e sou muito cara para você também.
Não acreditando no que via, o homem se aproximou cambaleando
do travesti até em pouco tempo apertar com a mão os bugalhos de
Bia Baby:
– Aiiiii! Seu nojento.
– Nossa Senhora! Isso é um homem de verdade!
– Claro que sou, seu imundo!
– Mas como isso pode ser? – indagou o homem.
– É, mas é verdade. Ninguém acredita. Se fosse mulher seria a
mais bela entre todas dessa avenida – explicou Grace.
– Meu Deus! Eu vou é caçar um jeito de ir embora de uma vez
daqui.
– Vá logo, seu coroa – gritou Bia Baby. – Comigo você sentiria
mais tesão do que qualquer outra mulher que possa ter imaginado.
O senhor, que estava meio embriagado, entrou rapidamente dentro
do carro que desapareceu na avenida.
Mesmo assim, Bia Baby continuou gritando para eles:
– Vão logo embora, seus enrustidos, imbecis e idiotas. Nunca
viram uma travesti antes? Sou mais mulher do que qualquer esposa
de vocês... Eu sou tudo.
Em pouco tempo, Bia Baby começou a engasgar as palavras.
– Calma, Bia! – aconselhou Grace, tentando apaziguar.
– Você tem razão. Esses homens são todos uns cretinos. Às vezes
penso na minha vida como uma grande merda que não vale nada.
Grace abraçou o amigo.
– Sabe, Grace, vou lhe dizer uma coisa muito importante. É para
você que está nessa vida há pouco tempo. Largue tudo isso antes
que sofra mais e acabe dependendo dessa vida maldita como eu.
Porque depois, sua vida fica tão suja que você acaba se enojando de
você mesma. Volte para o Felipe enquanto há tempo, não insista
nesse inferno, aqui não há nada que possa oferecer de bom.
– Eu sei, amiga! – disse Grace. – Mas eu estou tão atolada nesse
inferno quanto você. O jeito é a gente aceitar as condições da vida. E
o Lipe não quer pensar em mim nem um pouco. Afinal de contas,
nascemos ou não nascemos para brilhar?
– Esqueça o que eu disse. Tudo isso não passa de uma grande
ilusão. As pessoas que estão nessa vida de rua não valem nada.
Sabe quantas vezes eu passo por isso a cada dia? Nem eu sei
responder direito.
– Eu sei o quanto é difícil, mas eu não cheguei até aqui para
desistir assim facilmente. Não posso voltar para casa com uma mão
na frente e outra atrás.
– Volte para casa enquanto há tempo, pois se acaso um dia seus
pais descobrirem, é nesse momento que você vai perder tudo, tudo
mesmo, até o carinho dos pais como eu perdi.
– Não fique assim, querida. É como você disse agora a pouco,
bola para frente, cabeça erguida e tudo mais, pois um dia seremos
as estrelas mais badaladas desse país.
– Tudo isso não passa de ilusão. Será que até hoje você não
percebeu? Grace, eu gosto muito de você, mas você acha que um
dia será alguém nessa sociedade estúpida, claro que não, se salve
desse mundo de prostituição. Continuando nessa vida, você apenas
encontrará desilusões dentro do seu pequeno anonimato.
O travesti, Bia Baby, tentava conter o choro.
– Não, querida! Eu não posso pensar assim. Eu tenho uma vida
longa pela frente e espero, com muita certeza, que seja de felicidade,
prosperidade, dinheiro, status e fama – desabafou Grace.
– Não se iluda tanto, amiga – alertou Bia Baby.
Nesse momento, chegou Paola para junto de Grace fazer o trottoir.
– Não escute essa bicha recalcada, Grace! Você vai ser sim uma
modelo famosa internacionalmente – advertiu Paola.
– Não me chame de bicha, sua piranha siliconada! – irritou-se Bia
Baby.
– Sinto. Mas é o que você merece por desviar a minha amiga de
seu caminho glorioso nas capas de revista – continuou Paola.
– Não sei. Às vezes sinto que a Bia está certa. Esse mundo
sempre foi e sempre será estúpido com gente da nossa laia. Não é
assim que eles dizem? – entristeceu-se Grace, por um breve
momento.
– Se é assim que você pensa então tudo bem – considerou Paola.
– Quer dizer que você não acredita na sua amiga aqui?
– Não é isso, Paola – disse Grace. – É que eu já estou nessa vida
faz algum tempo e não consegui nada em troca até hoje, a não ser
somente os desaforos de bêbados e de namorado, que pelo jeito não
me quer mais.
– Então se prepare para tê-lo de volta, ou se acaso preferir,
escolher entre os homens mais bonitos e ricos dessa cidade –
declarou Paola, entusiasmada.
– O que você fez dessa vez? – perguntou Grace.
– Prepare-se para fazer seu último programa.
– Eu já sabia. A única coisa que eu aprendi com vocês é que nada
vem de graça.
– Eu consegui! Sabe aquele dono de agência de que lhe falei?
Então, ele combinou tudo comigo – esclareceu Paola.
– Mesmo, amiga!? – alegrou-se Grace. – Eu nem sei como lhe
agradecer. Isso é maravilhoso!
– Que tal me agradecer com um beijo aqui – disse Paola,
oferecendo a face esquerda.
– Eu não acredito! Finalmente eu posso voltar a sonhar. Como
você conseguiu isso?
– Você sabe! Sou uma empresária e acima de tudo sua melhor
amiga – anunciou Paola. – Não é difícil de arranjar as coisas para
uma amiga.
– Eu nem sei o que dizer! – disse Grace, surpresa. – Já sei, hoje
mesmo eu volto para o meu querido Lipe. Ele vai adorar esse meu
novo rumo de vida. Tudo vai ser perfeito. O Lipe vai voltar para
mim... o Lipe vai voltar para mim... o Lipe vai voltar para mim.
Grace começou a gritar aquilo bastante feliz mesmo que todos os
transeuntes do local ouvissem. Não era por menos, sua felicidade
estava sempre ancorada no peito do namorado.
Um pouco abobalhada, ela esboçou uma roda de ciranda:
– O Lipe vai voltar para mim... o Lipe vai voltar para mim... o Lipe
vai voltar para mim – cantarolava ela, entre Paola e Bia Baby.
– Espere. Não vá tão longe. Acalme-se um pouco – alertou Paola.
– Por quê!? Lógico que com um trabalho desses o Lipe volta para
mim. Ele sempre pegou no meu pé por causa dos programas. Mas
agora não, agora estamos inteiramente livres para sermos felizes –
continuou Grace, joliz e amável.
– Se esqueceu do último programa? – insistiu Paola.
– Não sei se posso – refletiu Grace. – Começando a carreira assim
é muito perigoso. Um dia tudo pode vazar acertando meu namorado
e minha família.
– Eu não falei, querida? – advertiu o travesti, Bia Baby. – Nesse
mundo todos somente querem a única coisa que você pode dar,
nada mais do que isso que você tem entre as pernas.
– Não escute essa bicha infeliz, Grace! – retiniu Paola.
– Já falei para não me chamar de bicha. Eu tenho um braço
bastante feminino, mas com o mesmo peso de um homem.
– Então cale a boca! – disse Paola. – Pare de encher a cabeça da
minha amiga com seus fracassos por não ser mulher.
– Aqui, sua piranha nojenta, você apenas está querendo ganhar
dinheiro às custas dela. Você pensa que não a conheço? Não é à toa
que nenhuma das meninas que estão aqui não vão com a sua cara –
bradou Bia Baby.
– Eu não suporto ouvir sua voz, bicha pobre! – atacou Paola.
Foi o momento para Bia Baby riscar os braços de Paola com suas
unhas postiças.
– Aiiiii! Olha o que essa bicha maldita me fez!
Bia Baby saiu para outro ponto, correndo e tentando avisar Grace.
– Não escute o que essa baranga lhe diz, ela quer apenas ganhar
dinheiro em cima de você, Grace – gritou o travesti, atravessando a
avenida. – Escute sempre a voz do seu coração, amiga.
Grace não se preocupou muito com as palavras do travesti, pois
ainda estava bastante contente com a notícia.
– Você acha mesmo que isso é a melhor coisa a fazer? –
preocupou-se ela. – Nenhuma das minhas tentativas deu certo.
Talvez ele não goste de mim na cama, novamente eu colocaria tudo
a perder.
– Não se preocupe, não há como não gostar de você, Grace, você
é delicada, amorosa e carinhosa. Vai por mim, tudo vai dar certo.
Meio caminho já foi andado, ele gostou muito de você pela foto –
disse Paola.
– Mas você sabe que ter uma relação com uma pessoa é
totalmente diferente de vê-la através de uma foto. E se ele quiser
apenas se aproveitar de mim?
– Já falei que você não tem do que se preocupar, eu conheço ele
há bastante tempo. Você vai gostar dele. Quem sabe ele não a faz
esquecer de uma vez o tolo do Felipe.
– Não fale assim do Lipe, por favor!
– Tudo bem. Mas eu garanto que vai ser a última vez que você
fará programas. Pense somente no depois, no futuro, tudo vai ser tão
breve que você nem vai lembrar que fez isso. E afinal de contas,
você é ou não é uma profissional?
– S... sou.
– Às vezes parece que não...
– Então me diga logo o que tenho que fazer.
– Ele me disse que vai escolher um dia especial, depois vai me
ligar marcando esse dia. Então aí você vai fazer o que tem que fazer,
tudo bem direitinho e carinhoso para no fim a gente acertar o
contrato com você.
– Não sei não. Mas você promete que vai ser a última vez?
– Sem nenhum problema, Grace.
– Assim espero.
– Agora me deixe que tenho que ganhar a vida. Você sabe! Manter
um macho delicioso igual o Maurício dentro de casa é fogo.
– A avenida é toda sua.
– Vem aqui, gatinho, que eu sou toda sua – gritou Paola na
avenida para os automóveis que constantemente paravam.
Grace ficou num ponto, pouco iluminado, fazendo singelos acenos
para os motoristas. Alguma coisa em sua mente dizia que aquele
mundo não era realmente um mar de rosas. Transar com o dono da
agência de modelo para se tornar uma modelo não seria uma
entrada pela porta da frente. Às vezes ela sentia fortemente um
desejo de esquecer aquela oportunidade para o estrelato a fim de
correr eternamente para os braços de Felipe, mas seu querido não
lhe dava muitas escolhas. O tratamento que Felipe dispensava numa
relação era somente para ditar seus desejos de matrimônio feliz, era
o que ele pensava, mas nem de longe pensava em casamento com
Grace, afinal ela era uma mulher da vida, e como tal não deveria ter
sentimentos por ninguém. Porém, os sonhos de Grace eram
demasiadamente grandes, não havia controle em seu coração, por
isso quando sentia que os pensamentos do namorado estavam um
pouco próximos dos seus ela começava a enxergar seu futuro de
felicidade.
Grace continuou fazendo seu trottoir com pensamentos túrbidos.
Pensamento de Grace:

Eu confio em Paola. Tenho certeza que vai ser a última vez que
vou transar para ganhar algo em troca. E rapidamente eu estarei nas
capas de revista, mas não serei como qualquer uma dessas modelos
esnobes. Eu terei meu namorado, o mesmo namorado dos tempos
difíceis. Todos vão saber que eu sempre fui a mesma, desde os
tempos difíceis até o estrelato, e terei o carinho do público para todos
os dias.
Todos ainda vão conhecer a modelo mais badalada dos trópicos,
minha vida passada será desprezível perto do que conquistarei.
Todos os momentos serão elegantes, todas as vidas sentirão a
potência do meu corpo escultural. Vários homens comprarão tudo
sobre mim, querendo saber sobre meus amores, minhas vontades e
os meus desejos, para, sem delírios, quererem me ter como a mulher
de seus sonhos mais angelicais. Mas adivinhem quem vai tomar
conta da poderosa aqui? Somente você, meu querido Lipe. Somente
você. Mesmo com todos os ocorridos ainda serei sua, somente sua,
pois você é minha vida de sonhos, sem você os meus desejos não
existiriam, minhas vontades não teriam peso e meus sentimentos
estariam violentados.
Serei diferente de todas, pois terei um único amor para a vida
inteira.

Felipe, para Grace, era como ter devaneios de ser uma senhorita
sonhada por todos os solteiros, era como se verdadeiramente ela
vivesse num conto de fadas em que era uma princesa do seu tão
amado príncipe, era como se não existisse a prostituição em seus
pensamentos. Felipe a tornava uma espécie de mulher com um
único homem, e esse sempre foi o seu desejo mais íntimo, ter um
único homem para a vida inteira.
Mas enquanto fazia o trottoir, o desar, o revés e o desdém
pesavam sempre na consciência. Grace não gostava muito do estilo
das colegas, que absolutamente atacavam seus clientes sem fazer
muitos rodeios de mulher desejada, por isso ela preferia manter uma
certa pose altiva que instigasse ainda mais os homens. Ela sabia que
eles adoravam um certo desprezo, ainda mais homens que
procuravam mulheres na rua, pensava sempre consigo, que eles
procuravam um tipo de mulher que nunca lhes dariam atenção, era
nessa falta de atenção que Grace centrava seu estilo sensual, sabia
mais do que ninguém que os homens procuravam sempre as mais
desejadas.
Continuou com seu ar libidinoso de mulher silenciosa, vestida
sensualmente com vestido colante que privilegiava as vistas das
pernas, até que, repentinamente, próximo a ela estacionou uma
pickup luxuosa e preta que ficou parada por um tempo. Grace não se
incomodou e se aproximou do veículo procurando conversar com o
dono, mas com as janelas fechadas não se via nada.
Então, ela, precavida, bateu levemente na janela escura da
possante pickup:
– Tudo bem?
– Oi, moça! – disse um velho de chapéu aba larga, ao abrir a
janela automática.
Naquele instante, Grace não acreditava, pensou até em se afastar,
pois o velho parecia ter idade para ser seu avô. Era nesses
momentos que ela se enojava da vida que levava, não havia
condições para transar com um vovô, pensava. Nessas horas, a
vontade de chorar e correr de saudades para Felipe era maior, tanta
ilusão nas cores da cidade grande somente fazia maltratar o próprio
coração. Mas o presente estava sendo vivido e era aquilo mesmo
que a força da rotina ordenava ela fazer, aceitar o pedido do velho
caipira. Ela pensou sorrateiramente que ele devia ser um daqueles
velhos fazendeiros viúvos e abandonados, mas o encargo daquele
ofício era mesmo aquilo, levar um pouco de carinho e companhia
para os milhares de solitários da cidade.
Então ela rapidamente se refez da primeira impressão do velho e
abriu um contagiante sorriso.
– Pois não – disse Grace.
– Oi, moça. Eu tô rodando aqui faz muito tempo e até agora eu
não vi uma muié igual ocê. Ocê é a mais linda daqui com toda
certeza desse mundo – disse o velho.
– Muito obrigada – devolveu o sorriso Grace.
– Quanto que tá seu serviço?
– Duzentos.
– Minha Nossa Senhora! Mas esse trem tá caro de mais. Num dá
pra dá uma abaixadinha não?
– Meu senhor, esse é o preço – disse Grace, em tom peremptório.
O pior de tudo era sentir que o velho além de estar munido de um
veículo caríssimo, ainda assim tentava economizar numa noite de
prazer que certamente estava guardada em sua imaginação por um
bom tempo.
Para ela, aquele velho era todos os entraves da vida juntos. Por
um momento, ela chegou mais perto e conseguiu perceber a boca do
velho salivando. Era absolutamente nojento! Sentiu pavor de se
deitar com aquele velho babão. Ele era simplesmente o tipo mais
repugnante que a vida lhe mostrara até aquele momento. Queria
fugir, queria voar, queria desaparecer, queria os carinhos de Felipe
de qualquer maneira. Mas se lembrou da vida e dos seus
pormenores para garantir o necessário daquele mês para poder
continuar estudando, e assim almejar futuros distantes e desejados.
Alguém que estivesse na penumbra de seus pensamentos,
certamente a condenaria, mas por toda a vida Grace nunca sentiu
uma mínima experiência de ser protegida, todos passavam em sua
vida como tempestades avassaladoras, desejando sempre o seu
prazer de moça libertina. Aprendeu com namorados distantes que o
amor somente era necessário através do valor das coisas, porém
algo repentino e de ventos alísios lhe mostrava uma forma de viver
diferente, algo como viver para amar, algo como nunca conseguir
escapar da sorte vindoura. O único que lhe trazia essa novidade tão
bem aceita era o bruto namorado, que não a procurava há um bom
tempo. Depois da severa discussão cada um decidiu virar os rostos
para a lua, sempre condicionando a volta se o outro acaso
procurasse, o que não aconteceria assim facilmente por parte de
Felipe.
Grace continuou conversando com o velho até se decidirem pelo
preço do programa.
– Mas num dá pra fazer por cento e cinquenta? – perguntou o
velho.
– Não, somente por duzentos. É pegar ou largar! – disse Grace.
– Tudo bem. Sobe aí. Tomara que a senhorita seja fogosa o
bastante pra valer tudo isso.
– Espere somente um minutinho.
Grace foi ao encontro das colegas para avisar que encontrou um
cliente e que voltaria daqui a uma hora:
– Paola, encontrei um cliente – disse Grace.
– Minha nossa! Que máquina! – surpreendeu-se Paola. – Não vá
me dizer que é um daqueles gatinhos agroboys, filhinhos de
fazendeiro.
– Não. É o próprio fazendeiro.
– Que sorte!
– Sorte!? O velho tem idade para ser meu avô, e além disso saliva
sempre uma baba branca nojenta. Eu não sei se vou dar conta de
ver aquele velho em cima de mim.
– Ai! Será que ele é tão nojento assim? Tenta... faz uma forcinha.
– Vou tentar... Vou ver se dou conta dessa anomalia... Argh!
– Olha, se você voltar e eu não estiver aqui é porque eu consegui
cliente. Tudo bem?
– Tudo bem. Até logo – despediu-se Grace.
Não muito contente com o cliente que acabara de encontrar Grace
entrou na pickup do velho:
– Para onde nós vamos? – indagou ela.
– Eu tava pensando em ir pra minha fazenda. Lá é sossegado,
ninguém vai aborrecê nóis, tem um clima gostoso, uma casa enorme
e uma cama quentinha esperando a gente – disse o velho.
– Eu não posso, meu senhor! Meu programa é de uma hora.
– Então cumé qui faz?
– A gente pode ir em um desses motéis.
– A senhorita tá pensando que o meu dinheiro é capim?
– Não. Eu somente estava sugerindo.
– Tudo bem. Um mulherão como você num dá pra dispensar.
O velho fazendeiro então acelerou a pickup bruscamente como se
o acelerador fosse parte do seu coração cálido, sua sensação pelo
prazer daquela jovem o fazia delirar introspectivamente enquanto
descia o pé na máquina.
Enquanto a pickup transitava na cidade à procura de um motel, o
velho falava da sua vida e dos seus problemas, já Grace, sentada ao
lado dele, embrulhava o estômago só de olhar para aquela face
maltratada com vários sulcos marcados em seu rosto de pessoa
idosa.
Quanto mais o velho fazendeiro falava da vida mais ela se
enojava:
– Sabe? Eu sou um coroa muito sofrido. Minha muié me deixou
depois de quarenta anos de casamento, ela faleceu, depois eu me
casei com uma menina-moça que só queria o meu dinheiro. Também
me largou pra mó de viver as aventuras da vida. Mas ocê vai me
adorá, inté hoje eu pego fogo em cima da cama. Muié nenhuma
nunca reclamô.
Grace passou a viagem, silenciosa, calada, apenas sinalizando
com a cabeça de que estava prestando atenção, mas o coração
queria pular fora, voar para bem longe daquele senhor, encontrar
realmente quem importava, quem realmente era querido. Ela
pensava sempre enquanto o senhor falava do por quê que as
relações amorosas nunca eram finalizadas com as pessoas que a
gente realmente se importa. Por que as circunstâncias da vida
sempre trazem uma pessoa que é totalmente contrária daquela que
a gente ama do fundo do coração? Não havia nenhuma resposta na
cabeça, mas o coração estava cheio de certezas, e uma dessas
certezas era a repugnância daquele velho fazendeiro falastrão.
Pensamento de Grace:

Eu não acredito que vou fazer esse velho! É tudo que existe de
mais nojento na vida. Que vida mais odiosa! Não, eu não vou
encarar esse tipo de situação. Eu já passei por situações ruins antes,
mas isso é algo de mais repugnante que existe. Olha a minha idade
perto desse velho caduco! Não, eu não vou me deitar com esse
velho. Esses homens imundos que pensam que com o dinheiro
compram tudo, mas estão muito enganados, eu não vou me rebaixar
a esse ponto.
Lipe, por que você não volta para tentarmos novamente, esquecer
qualquer passado e, enfim, ser feliz? Mas você não esquece os
meus erros assim tão facilmente. Lipe, seu idiota, às vezes eu penso
em me deitar com esse velho somente para descontar as tolices que
você me disse.

Finalmente, depois de perambular por toda a cidade, o velho


fazendeiro encontrou um motel. Como o tempo do programa já
estava rodando, ele adentrou com bastante pressa pela garagem de
acesso do motel até o porteiro pedir para parar. Grace quando viu o
porteiro preferiu virar o rosto para se esconder daquela vergonha de
ter uma relação íntima com alguém de idade tão avançada.
Ela percebia claramente que se não tomasse uma atitude sua vida
perduraria perdida por muito tempo. Aquilo era um claro sinal de que
não bastaria apenas esconder-se dos outros, pois se sua carreira de
modelo viesse a vingar, ela não teria mais a opção de virar
simplesmente o rosto, a verdade poderia ficar bem clara aos olhos
de todos. Seria o desar de uma carreira tão sonhada que poderia
tornar sua vida mais problemática do que era. Era o costume de
Grace, ela já visualizava seu futuro glamoroso, mas não queria de
forma alguma reviver as sensações marginais do passado.
O porteiro distribuiu ao velho uma senha de garagem. Grace
continuava tentando se esconder das luzes, pois havia em seu
destino vários medos, como a família descobrir algo ou se alguém de
sua faculdade também viesse a descobrir, essa segunda opção era
mais temida ainda, porque ela pensava que se algum dia alguém
descobrisse, fatalmente não teria suporte para se esconder de
comentários maldosos, pensaria em largar os estudos de uma vez
por todas.
Voltou a respirar com mais facilidade quando a pickup entrou na
garagem do motel, aquele ambiente absorto sem pessoas circulando
a acalmava contra olhares curiosos.
Viver na penumbra era vergonhoso porque não havia nenhuma
liberdade. A noite era sua cúmplice de uma vida dedicada à luxúria, à
libertinagem e à concupiscência. Ela sempre procurava aceitar
alguns limites para não declarar sem querer que era uma mulher da
vida. Ela aceitava todos os nomes para aquela profissão, mas se
afugentava vergonhosamente da força da expressão prostituta. Não
havia motivos para ela aceitar aquilo, pensava convictamente
consigo sempre que era uma garota de programa.
Enquanto o velho fazendeiro procurava estacionar sua pickup,
discorria sobre suas virtudes de velho namorador:
– Sabe, filha. Ocê vai gostá muito de mim. Quem sabe a gente
num venha a se encontrá mais depois, futuramente namorá sério, e
talvez, quem sabe, inté nos casá. Porque eu gostei muito de ocê, ocê
é simpática, tímida, jovem, bonita, tem tudo que um homem como eu
gostaria de ter ao seu lado. É uma pena que ocê não quis conhecê a
minha fazenda, lá tem mais umas três caminhonetes igual a essa,
uma poderia ser sua. Sabe, tem os cavalo mais lindo do mundo. Eu
mexo com gado, sabe. Lá ocê óia o horizonte e só vê boi pra tudo
quanto é parte. O casarão da fazenda tem três andares e uma
piscina enorme pra ocê se sentir igual a uma rainha. Ocê ia esquecê
fácil fácil essa vida sofrida na cidade grande. Eu ia dá do bão e do
mió pra ocê. Num ia faltá nada pro cê. Sabe essas roupa de grife?
Eu ia comprá tudo pro cê. É só ocê sê a muié mais fogosa comigo
hoje...
Enquanto o velho falava Grace embrulhava o estômago mais
ainda. O pior de tudo era a imponência de suas palavras dizendo que
comprava tudo, seu decoro íntimo de mulher não aceitava aquelas
fanfarronices. E enquanto falava, suas palavras arrogantes se
misturavam com aquela baba umedecida que não escapava da boca.
O maior nojo dela era se esse velho viesse porventura tentar beijá-la,
a boca dele era muito nojenta, a saliva parecia que não voltava para
o organismo, ficava por horas alojada nos cantos da boca, parecia
baba de boi. Ela brincava em pensamentos: “talvez por ter vivido
tanto tempo com boi ele se tornou um”.
Ainda um pouco contrariada por ter aceitado aquele programa,
Grace desceu da pickup para apertar o passo até entrar no primeiro
salão do motel com um medo tremendo que o velho pudesse se
encostar por algum momento. Mas não adiantou, ele, safado e
frenético, chegou por trás, juntinho ao corpo de Grace, tentando
alisar suas partes baixas sob as ancas dela.
Ela tentou se esquivar sempre com aquele sentimento de nojo no
coração.
– Acalme-se um pouco! Espere chegarmos ao quarto – disse ela,
tentando se safar das safadezas do velho.
– Sabe, querida. Eu quero aproveitá cada centavo do meu
investimento.
Qualquer palavra arrogante do velho doía no coração, ora pensava
em largar aquela situação, ora pensava em encarar aquele problema
de frente. Ela sabia que o velho não tinha problema nenhum, pelo
contrário, ele estava no pleno direito dele, ela que tinha que mudar
seus conceitos sobre a vida e seus destinos para nunca mais viver
um constrangimento como aquele.
Quando chegaram na sala de entrada do motel, o velho pediu as
chaves de uma suíte para o atendente, que estranhava, com alguma
maldade, um senhor de idade entrando com uma moça bem mais
jovem.
O velho continuava irritando com todas aquelas tentativas de
amassar todos os bocados do corpo de Grace, até o momento que
ele a provocou tentando beijá-la na pele macia e tenra de seu rosto,
aparentemente, tentando mostrar para o atendente que ela era sua
mulher, mas novamente o nojo da boca dele sobressaiu quando ela
sentiu aquela baba labreada e gosmenta lambrecar seu rosto:
– Não me beije novamente, por favor! – pediu ela, irritada.
– Tudo bem, querida – assentiu o velho, sem se importar nem um
pouco com a reação dela.
O atendente facilmente percebeu que se tratava de uma garota de
programa e seu cliente, não demorou muito para ele soltar um
sorriso invasor sobre os olhos de Grace. Ela se sentiu descoberta,
despida e despudorada, envergonhada por saber que chegara ao
mais baixo nível de sua vaidade derrotada.
– Acompanhem-me, por favor – disse o atendente, sempre com
aquele sorriso invasor que incomodava Grace.
O atendente seguiu na frente, em seguida vinha Grace com o
velho logo atrás. Quando os três estavam subindo uma escadaria
que dava acesso ao corredor das suítes, o velho não aguentou
aquelas vistas tão próximas das ancas de Grace e enfiou as mãos
por baixo do vestido dela, tentando sentir os bocados de suas
nádegas.
Foi o momento para ela se irritar novamente:
– Pare com isso ou eu vou embora agora! – advertiu Grace, em
tom de voz peremptório.
– Tudo bem, querida – concordou o velho, mansinho e
enrubescido.
O atendente não suportou aquela situação hilária e quase esboçou
uma gritante gargalhada.
– Hum... aqui está a suíte dos dois – anunciou o atendente, ao
abrir a porta.
Grace entrou primeiro, em vez de ficar maravilhada com aquela
luxuosa suíte, ela se entristeceu, baixou a cabeça quase esboçando
um contido choro.
O velho, com todos os sentidos em êxtase, nem se preocupou,
somente desejava que o atendente fosse logo embora.
O atendente estendeu a mão direita para ver se conseguia alguma
gorjeta, mas o velho, pão-duro, tratou logo de desvencilhar aquela
situação constrangedora apertando a mão do rapaz para
cumprimentá-lo:
– Então, passar bem – declarou o velho.
– Passar bem – devolveu o atendente, constrangido.
O velho se irritava com o rapaz que não ia logo embora para ele
praticar suas safadezas cosquilhentas.
Antes de partir, o atendente ainda esticou a cabeça sobre o velho
para avistar Grace entristecida de cabeça baixa sobre a cama:
– Então, espero que tenham uma boa noite – despediu-se ele.
Brilhando satisfação em seus olhos, o velho fechou imediatamente
a porta, seu sexo estava aceso como um vulcão:
– Enfim, sós – disse ele para Grace.
Ele correu de felicidade para abraçar Grace, que não aceitava de
modo algum aquela situação, sua cabeça sinalizava não a todos os
instantes. Naquele momento, pensava somente em não aceitar sua
verdadeira profissão, em não aceitar que a vida de uma prostituta era
assim mesmo, de que sempre haveria sofrimento ao se deitar com
um desconhecido.
Enquanto ela permanecia imóvel, sentada à beira da cama sem se
mexer para não inflamar ainda mais os desejos daquele senhor de
idade, ele, afoito, já foi logo se despindo como quem encontrava pela
primeira vez um dia único de luxúria.
Ela pensava em algo para poder atrasar aquele ato de rebeldia,
seria sim uma rebeldia, uma rebeldia contra os sentimentos do
coração. Grace já andava pensando assim há algum tempo, não que
o problema fosse o cliente por ser velho demais para a sua idade,
mas a verdade era que o sentimento terno para com Felipe estava
crescendo e cancelando sua vontade de transar por transar como se
fosse um ato mecânico. Continuamente sentia que não havia motivos
para Felipe ser seu parceiro fiel.
O velho, desesperado pela relação, tirou toda a roupa, ficou nu na
frente dela e correu ao seu encontro para abraçá-la.
– Então, gatinha, vamos nos diverti? – declarou ele, acalorado.
Grace não acreditava no que via, o velho estava mais com cara de
quem devia curtir a terceira idade num asilo, frequentando danças de
salão, do que para um coroa enxuto no estilo Clint Eastwood como
ele provavelmente devia pensar. Aqueles instantes se tornavam
pesadelo vendo o velho pronto para atacá-la na cama de corpo
totalmente livre e nu somente com o chapéu para manter o estilo
cowboy e mocinha. Tudo pareceria bem engraçado se ela se
soltasse, aceitando as fantasias lúdicas do velho, mas Grace não
vinha mais aceitando a sua condição perdulária de traquinagens
sexuais.
Rapidamente ela pensava em algo, aceitar para continuar
usufruindo de um dia a dia menos difícil, ou negar logo de uma vez,
porque não se sentia mais com uma alma profissional. Subitamente,
ela então reagiu atrasando por mais um momento o instante sexual.
Quando o velho se aproximou encostando a genitália umedecida
sobre sua pele arrepiada de nojo ela se desvencilhou
inteligentemente:
– Vamos esperar mais um pouquinho, assim eu me preparo melhor
para a gente fazer bem gostoso – sugeriu Grace, venusianamente.
– Ocê num falô que o tempo de uma hora já está rodando. Então?
– Acalme-se! Eu posso ficar aqui com você mais um tempinho.
– Não. Eu quero agora – disse o velho, de um jeito abobalhado.
– Acalme-se! Aproveite este motel maravilhoso e tome uma ducha
para relaxar enquanto eu me capricho com lingeries que o deixarão
nas alturas.
– Ah bom! Então tá tudo bem. Eu tô precisando mesmo.
– Então, desse jeito vai ser bem mais gostoso.
– Mas num vai me enrolá. Quando eu voltá do banho quero lhe
encontrá peladinha... Meu Deus! Essa muié deve sê um vulcão na
cama.
Não muito conformado, o velho foi para o chuveiro, despido,
sempre de olho naquela mulher que parecia acender seus sonhos
mais surreais. Quando ele finalmente entrou no boxe do chuveiro,
Grace começou a refletir sobre aquela graça sem graça, timidamente
foi retirando o vestido colante pensando no quanto a vida era ingrata
com ela. Pois ela de um jeito ou de outro tinha que aceitar, a situação
vivida estava prestes a desabar, enquanto o vestido descia até o
chão, ela aceitava aqueles pormenores que a vida impunha.
O velho continuou debaixo do chuveiro, agora, cantarolando
canções sentimentais de antigos temas sertanejos. Qualquer tipo de
ação do velho não colaborava em nada para ela decidir se ia logo em
frente ou parava por ali.
Grace continuou em sua decisão túrbida.
Pensamento de Grace:

Meu Deus! E agora o que vou fazer? De um lado esse velho me


enoja só de vê-lo, de ouvi-lo, de senti-lo então deve ser arrepiante,
por outro lado são mais duzentos contos para derrubar as despesas.
Na verdade, estou me arrepiando comigo mesma, não estou me
suportando mais, eu não tenho nenhum valor, essa é a verdade, eu
faturo com as minhas tristezas, sou pequena, desprezível e vulgar.
Por isso eu tenho quase a certeza de perder meu Lipe para sempre.
O que foi que eu fiz com os meus anos de juventude para estar aqui
prestes a me deitar com um velhote nojento?
Quer saber de uma coisa? Vou esquecer meu Lipe assim, sem
ouvir os apelos sentimentais da alma, sem ouvir o que a consciência
pensa sobre o certo ou o errado, sem delirar com emoções
esdrúxulas do coração. Querido Lipe, agora é adeus para sempre,
pois tenho que, uma vez na vida, aprender a dizer isso a você.
Agora, velhote, quero ver se você é bom mesmo no tranco.

O velho já ia terminando seu demorado banho enquanto Grace o


esperava nua sob o escuro do quarto.
Quando repentinamente o som da água do chuveiro cessou, ela
pressentiu o pior, o velho novamente embolava suas fantasias com
palavras mal delineadas e pouco plausíveis para um breve momento
de coito:
– Minha coelhinha, seu garanhão já está cheiroso pra gente tirá
um amor bem gostoso – disse o velhote, sempre meio abobalhado.
Nesse momento, Grace pensou consigo que nenhuma fanfarronice
do velhusco a desanimaria para enfim conseguir seus duzentos
reais. Ela estava terminantemente decidida em terminar com aquela
sacanagem de uma vez, pois era uma profissional, e tinha que
aceitar, contra qualquer disposição contrária, que a impedisse de
ganhar o dinheiro. Afinal de contas, ela estava na rua para isso
mesmo.
Sob uma escuridão opaca o velho vinha de encontro à Grace. Ele
estava enrolado sob uma toalha avermelhada com o logo do motel,
revigorado do banho, e sempre muito disposto a esfriar aquele fogo
escaldante no meio das pernas, começou a alisar com desejo as
pernas de Grace. Somente com aquele toque ela sentia uma vontade
imensa de repelir todos os homens de sua história. Era como uma
vontade louca de odiar todos os homens, enquanto o velho passava
a mão, pensava consigo que nenhum homem valia nada.
Ela estava deitada de costas para ele, com um travesseiro bem
apertado sobre a cabeça, não suportando aqueles dedos de pele
grossa caminhando sobre seu peito.
– Minha coelhinha, eu nunca vi um bumbum tão formoso – disse
ele, baixinho, ao pé do ouvido dela.
Ela continuava com aquele sentimento de nojo.
“Vai ser a pior coisa que eu vou fazer na vida, mas eu vou deixar
esse velhote entrar em mim para eu conseguir esses malditos
duzentos reais”, pensou Grace, ainda com o travesseiro sobre a
cabeça.
Enquanto o velhusco deslizava os dedos sobre o corpo de bruços
dela, ele delirava, sonhando com uma noite infinita de prazeres,
realmente ela parecia querer aceitar o sexo do velho fazendeiro,
aquele sentimento de aceitação excitava ainda mais o brilho de um
desejo proibido.
Todos os pudores da vida pareciam voar distantes na cabeça do
velhaco. Seu desejo ardia em labaredas constantes, sem cessar,
sem se desorientar, sempre altivo, com um apetite sexual que nunca
tivera antes, todas as formas de Grace, deitada de costas, impelia
uma combustão que deveria se apagar naqueles traços perfeitos,
naqueles traços sinuosos, naquela pele morena, macia e tenra.
Num breve momento, ele a abraçou por trás, querendo sentir seu
membro mais ansioso para enfim mergulhá-lo no único instante
infinito da vida.
– Ocê tem o sabô do doce mel – disse ele, num tom de voz amena
que arrepiava todos os sentidos de Grace.
Naquele instante que ele a abraçou por trás, escorreu do canto de
sua boca uma baba bem branca que foi se empoçando nas costas
de Grace. Ela sentiu de súbito um enjoo, era tão nojento, tão
nidoroso, tão fedegoso, tão asqueroso, que ela esqueceu do dinheiro
e começou a gritar escandalosamente:
– Aaaaaah!
Rapidamente ela afastou-se do velhote, gritando muito, e depois,
veio repentinamente a vontade de chorar, chorar soluços contidos.
– O que aconteceu? – surpreendeu-se ele. – O que eu fiz de
errado?
– Que nojento! – disse ela, sempre chorando.
– Ocê trate de voltá aqui que eu num terminei.
– Nem vai começar – retiniu ela.
– Ah é? Então eu num pago nada. Ocês, muié da vida, tem que
aprendê a se deitá cum qualqué tipo de home, seja casado, soltêro,
viúvo, disquitado, preto, branco, amarelo, vermei, rico, pobre, gordo,
magro, jovem, inté véio como eu. Ocês nunca aprende que ocês num
vale é nada – desabafou o velhusco.
Quando Grace ouviu a última frase do velho agachou-se chorando
num canto do quarto.
Ela chorava muito, sem cessar, chorava por tudo, pela miséria do
desespero, pelo controle que o velho subjugava e pela falta de um
único amor que existia em seu coração, de nome Felipe.
Enquanto ela chorava de desespero, o velho vestia as calças
soltando suas supostas frases de verdade:
– Ocês, muié da vida, num vale é nada. Num sabe nem respeitá os
carinho de um coroa romântico. Eu num vou pagá é nada, muito
menos lhe levá de vorta. Fica aí, chorando na vida. A única coisa que
ocês presta na vida é chorá... e eu perdêno meu tempo pensando
que ia senti uns carinho gostoso dessa vez.
Depois de esbravejar e vestir a roupa, ele colocou o chapéu na
cabeça fazendo vistas grossas. Em seguida, atravessou a porta
fechando-a com uma força estupidamente bruta.
– Diacho de muié esquisita! – gritou ele pelos corredores do motel.
Grace continuou dentro da suíte ainda chorando muito. Ela estava
descobrindo que aquela vida não era a sua. Isso ocorria porque
nenhum homem agradava mais seus sentidos, aquela repugnância
crescia de acordo com o tempo de falta do namorado. Ela chorava
porque pensava que Felipe estava mesmo certo, uma vida
desregrada não agradaria nenhum homem mesmo.
O velhote fazendeiro desceu as escadarias que davam no salão de
entrada do motel, sempre gesticulando muito e totalmente
contrariado fazendo valer suas vontades peremptórias.
– Quem vai pagá a conta é a senhorita aí, tudo bem? – disse o
velho para o atendente.
O atendente fez um sinal de tudo bem e deixou que o velho
partisse. E ele foi, passou pela saída, pela garagem até encontrar
sua pickup preta reluzente.
Na saída do motel ainda deu tempo para ele soltar seus desaforos
sobre Grace para os porteiros:
– Cês qué sabê di uma coisa? Essa muié da vida num vale nada,
nada mesmo.
Muito nervoso, o velhote acelerou sua pickup e sumiu,
provavelmente para sua fazenda.
Grace, já vestida, e dentro da suíte, ainda soluçava resquícios de
um pranto realmente sentido. Olhava para todos os móveis do motel
se perguntando o porquê dela estar ali, procurando respostas,
lembranças do seu início de vida perdulária, tentando amordaçar a
vontade louca pelo amor do seu único querido, mas ninguém poderia
salvá-la daquele destino torpe. Ela observava calmamente todos os
cantos, todos os móveis e todos os brilhos daquela suíte de luxo,
pensando sempre no quanto ela e Felipe poderiam se divertir ali, era
uma saudade que gritava em seu peito, crescente como um encontro
com o infinito do espaço e suas estrelas. O sentimento que a cama
trazia em seu coração era voraz, trazia um espaço necessário para
as melhores aventuras amorosas, trazia uma noese de saudade
imensa, uma saudade das virtudes do namorado. Ela tentava
encontrá-lo em todas as peças de vermelho, essa cor vibrava
emoções de uma saudade inesgotável em seu coração.
Grace então fechou a porta da suíte e levou consigo as chaves
para entregar, no corredor ficou observando alguns quadros que
traziam desenhos de uma semiótica carregada de luxúria,
libertinagem e paixão, tudo que lembrava a emoção sem limite do
coração. Observando os desenhos de homens e mulheres se
amando fazia a saudade relembrar momentos íntimos com aquele
bruto apaixonante, era como ela caracterizava o namorado, em seu
pensamento, ainda era uma verdade se sentir namorada de Felipe.
Ela desceu as escadarias e quando chegou ao salão principal
decidiu apertar o passo para não ver o sorriso invasor do atendente.
E logo no momento de passar pela porta de vidro, sentiu o sorriso
invasor se transformar em palavras desafiadoras, como quem quer
debochar de sua condição financeira:
– A senhorita não vai pagar pelo quarto? – indagou o atendente,
num tom irônico.
– Mas... o meu marido não pagou? – disse Grace, tentando se
acalmar.
– Não. Ele disse que a senhorita acertaria a despesa.
– Como?
– Foi o que ele disse.
Grace se irritou furiosamente com a safadeza do velhote, procurou
revirar algumas coisas dentro da bolsa para se fazer de preocupada:
– Meu jovem, eu esqueci meu talão de cheques – declarou ela.
– Sei.
– O senhor está duvidando de mim? Era o meu marido que ia
pagar, mas como o senhor pôde ver ele está ficando velho e
esclerosado. Ele anda esquecendo de tudo, sabe!
– Sei.
– Meu senhor, eu tenho que ir, não posso ficar a noite inteira aqui,
tenho mais o que fazer.
– É o que eu mais sei.
– Então? O senhor vai ficar aí repetindo sempre a mesma coisa.
– Não. Mas alguém tem que pagar essa conta.
– Tudo bem. Eu deixo a minha identidade com você e depois eu
passo aqui para pagar essa maldita conta. Tudo bem assim?
– Não tem outro jeito, não é?
– Não.
– A senhorita poderia, às vezes, diminuir o tom de voz quando
fosse falar com as pessoas.
– Meu filho, esse sempre foi o meu tom de voz... e em vez de ficar
regulando minhas maneiras, pede para um táxi passar aqui, por
favor.
– Sem problemas, senhorita!
O atendente resolveu ligar para o táxi, prontamente, depois de
sentir que Grace estava um pouco irritada. Ela não tinha mais o que
fazer senão esperar o táxi, decidiu sentar numa salinha de estar que
ficava em frente ao balcão de entrada, avistou algumas revistas de
famosos e começou a folhear, página por página, para ver se o
tempo passava mais depressa, ela sabia que tinha que voltar para o
ponto, pois não podia perder nenhum cliente naquela noite.
– O táxi chega daqui a dez minutos – disse o atendente.
– Você pode me fazer outro favor? – pediu Grace, novamente
irritada.
– Pois não.
– Tire esse sorriso bobo da cara.
– Desculpe.
– Sei – devolveu Grace na mesma moeda.
Grace, demonstrando-se irritada, continuou a folhear as revistas
como quem não se importava com o que via. A noite decididamente
estava perdida, ela não conseguiu os duzentos reais e ainda por
cima acumulou uma dívida com o motel. Tudo desabava com muita
pressão sobre a cabeça, a realidade era muito sórdida comparada
àqueles sonhos de frequentar as revistas de famosos que ela
folheava. Mas daquele mal ela tinha se livrado, o velho era tão
asqueroso, que, mesmo ela estando decidida a lhe dar o prazer, não
conseguiu devido à personalidade pegajosa dele.
“Que coisa mais idiota de chamar a gente de coelhinha”, refletiu
ela.
O que estava mais aborrecendo ela era a falta de proteção, a falta
de ter um macho do lado para dar cabo do velhote.
“Ah, se o Lipe estivesse aqui, ele daria um jeito nesse velho
safado”, pensou ela, sempre irritada.
Mas quando ela voltava a lembrar da baba aglutinada do velhote
sobre suas costas, percebia que tinha feito a coisa certa. Era um
terror a menos naquela noite, pois naquele tipo de ambiente, era
difícil encontrar pessoas íntegras e distintas, a maioria era sempre
feita de homens grossos e malcriados, talvez fosse por isso que ela
se apaixonou por Felipe, ele foi, no primeiro encontro, um homem
bastante educado e cuidadoso com as vontades dela, como algo do
tipo, gentilezas antigas. Mas seu conceito sobre ele também se
alterava, parecia que aos seus olhos, o sentimento sempre acabava
depois do prazer. Assim, no seu julgamento, era facilmente
perceptível que os homens não valiam nada, pois todos os tipos que
encontrava eram sempre do tipo mais vulgar possível.
O táxi finalmente chegou buzinando na porta do motel.
Um dos vigias veio comunicar no balcão de entrada:
– Moça, o seu táxi chegou.
– Obrigada.
Grace jogou uma revista que tinha nas mãos para o lado
levantando com um delicado decoro feminino, pois, apesar da
profissão, ela sabia extrair feminilidade em seus passos sem ser
vulgar.
Ela passou à frente do atendente, olhando-o atravessado com o
queixo levantado, mostrando, apesar de tudo, um pequeno resquício
de orgulho:
– Humpf! – expressou ela, ao olhar o atendente nos olhos.
Quando ela passou pela porta de vidro, pedindo para o vigia dizer
ao motorista para esperar, o atendente resmungou sozinho:
– Puta largada e mal paga.
Não que Grace era uma mulher orgulhosa, daquelas que olham o
homem de cima para baixo, mas o terror dos olhares do atendente
pedia uma atitude mais agressiva como desprezá-lo com um simples
olhar apenas. Ela sabia que o atendente supunha que ela era uma
garota de programas, por isso mantinha certa postura de desdém,
isso condicionava o atendente a respeitá-la nem que fosse na marra.
Ela agia assim com todos que a desprezavam quando notavam que
ela não passava de uma prostituta de luxo. Foi percebendo as ironias
devassas dos outros que ela acabou fortalecendo seu íntimo de
defesa, por algum tempo, ela aprendeu rapidamente, pois lidava toda
noite com homens extremamente grosseiros.
Ela saiu do motel de cabeça erguida, era a única coisa a fazer
naquele instante, pois seu íntimo sinalizava o tempo todo que todos
que a cercavam naquele motel, o atendente, o porteiro e os vigias,
estavam gargalhando por dentro, com um tipo de medo respeitador
sobre o fato ocorrido. Mas aquele respeito somente estava existindo
porque ela nem olhava em suas caras fechadas, quase prontas,
esperando apenas ela ir embora para desencadearem suas ironias.
Com um desespero alucinado de sair logo daquele lugar ela entrou
no táxi.
– Vai para onde, senhorita? – perguntou o taxista.
– Para qualquer lugar que seja o mais longe daqui – disse Grace.
– Como? Não entendi.
– Tudo bem. Para a avenida Afonso Pena, por favor. E rápido, se
não for pedir muito.
O taxista se assustou e arrancou de vez com o veículo, mas com
aquele já acostumado passeio ‘rápido’ de motorista que nunca está
pensando no atraso do passageiro.
Daquela noite Grace não esperava mais nada de ruim que
pudesse acontecer. Tudo de pior já tinha acontecido. Pelo menos se
livrou de um velho safado.
Mesmo assim, ela estava decidida a encontrar um cliente naquela
noite. A noite ainda era uma criança para Grace, que buscava de
qualquer forma se livrar dos pesadelos acontecidos. Ela sabia que
tinha que fazer mais dinheiro ainda devido às despesas não pagas
no motel. Vez em quando vinham em seu pensamento alguns
desejos de derrota, mas não havia outra forma, aprendera com as
colegas a esquecer qualquer passado remoto, a melhor coisa a fazer
era empinar o nariz para respirar novos ares do dia.
Pensamento de Grace:

Por que os homens se julgam os detentores da verdade? Todos


não passam de uns idiotas arrogantes. Por que pensam que mulher
de zona é apenas reles panos de chão? Eu sei, porque o pano de
chão é o pano mais velho da casa, é aquele tipo de pano que se usa
para acumular toda a sujeira até esse pano sumir. Eu não vou deixá-
los fazer isso comigo. Ainda chegará o tempo que todos seguirão
apenas meus olhos, sonhando que são seus, mas não são, e
cuidado, querido Lipe, talvez nem possam ser seus também.
O que me irrita em todo homem é a arrogância, perto da gente
eles se acham mais do que poderosos. Por quê? Porque os mais
arrogantes são os mais fracos, os mais solitários e os mais
sensíveis. Eles precisam da gente para ainda acreditar que estão no
paraíso, pois não conseguem amar as ditas certinhas, depois
precisam e necessitam da força estúpida do dinheiro para esboçar
seus desejos de amor. Eles pensam que não, mas nós sabemos que
nenhum homem vale nada sem a companhia de alguém que o faça
amar.

Na viagem até a avenida Afonso Pena o motorista procurou ser


amistoso tentando puxar uma conversa amigável.
– A senhorita não acha muito perigoso andar naquela avenida a
essa hora? Sabe, lá é muito perigoso à noite, tem toda espécie de
gente, ladrão, bandido, prostituta então lá tem aos montes, ô
mulherada assanhada sem rumo na vida. Não acha? – disse ele.
– Não. Eu não acho – devolveu Grace, irritada. – E aliás, o que o
senhor tem contra prostituta?
– Não, eu não tenho nada contra. Eu somente acho que toda
mulher deveria procurar um marido para cuidar dela... Por que a
senhorita se irritou? Também é prostituta?
– Não, eu não sou prostituta – continuou Grace, irritada. – Sou
uma garota de programa.
– E qual a diferença?
– A diferença é que eu vou para cama somente com quem eu
quero e ainda recebo por isso, isso se chama paixão.
– Uma palavra tão bonita dessa misturada com um desejo tão
profano desse.
– Mas é o que eu sinto quando estou com esses homens. Amor
não, amor é diferente... amor é somente o Lipe.
Nesse instante, os olhos de Grace começaram a lacrimejar, seus
soluços contidos voltavam na angústia dos sentimentos. Lembrar
daquela noite era lembrar de Felipe avisando para ela parar com os
programas, era como desafiar o insuperável, desafiar o limite,
parecia que Felipe tinha realmente razão, e era aquela razão que
agredia seu coração repleto de convicções, por sempre achar que a
mulher sempre foi mais inteligente, mais perceptível e mais sensível
que o homem. Mas sua convicção feminina continuava, ela ainda
provaria ao namorado que ele seria a pessoa mais imatura e
insegura da relação.
Com um trânsito mais abrandado naquela noite que beirava a
madrugada o táxi rapidamente chegou ao ponto onde Grace
continuaria a rodar sua bolsinha preta.
Ao pagar o motorista Grace ainda ouviu conselhos fora de hora.
– Está entregue, moça – disse o motorista. – E cuidado! Tome
juízo.
Estava pronto, era mais um desconhecido julgando o que ela bem
sabia; julgando novamente como Felipe fazia. Aquilo cansava a sua
consciência, que cada vez mais, percebia nos homens a notável
característica de serem machistas. Parecia que todos faziam certa
intriga contra suas vontades, não era mais possível pensar de outra
forma, o que todos os homens queriam realmente era uma mulher
cheia de pudores, certinhas, bem à moda antiga, mas que esgotasse
todas as noeses de prazer possíveis. Para Grace, havia apenas dois
tipos de mulher, uma para se casar e outra para dar prazer, talvez,
pensava ela na penumbra, fosse uma mulher para casar, mas essa
opção valeria apenas somente com um homem, seria terrível se um
dia esse homem sumisse de sua cabeça.
De longe, depois de sair do táxi, Grace avistou a colega Paola,
ambas se alegraram em se ver, porque cada uma confidenciava
sempre à outra o que havia acontecido nos programas, era
importante deixar os babados em dia.
– Então, Grace, o que aconteceu? – disse Paola ao rever a amiga.
– O velho peludo fazendeiro era mesmo bom no tchan?
– Você nem imagina o que aconteceu! – disse Grace, com
lágrimas nos olhos que borravam a maquiagem.
– Diga logo!
– O velhote me deixou na mão, além de não me pagar, deixou a
conta do motel para mim.
– E por quê?
– Vou dizer a verdade. Só de pensar em transar com um tipo
daquele me dava arrepios. Mas eu tentei, até que, antes de tudo, ele
babou em cima de mim, a coisa mais nojenta que eu já senti até
hoje. Eu comecei a sentir nojo daquele velho pegajoso.
– Mas eu já disse, mais de mil vezes, para parar com essas
frescuras, os clientes detestam garotas com frescuras. Lógico que
ele teve razão! Quando chega na hora do vamos ver você pula de
lado. Eu já falei, você tem que ser extremamente profissional senão
seus problemas vão aumentar.
– Não. Eu não consigo ser tão fácil como você pensa. O velhote só
falava idiotices.
– Mas é assim que eles gostam, eles gostam de mulheres que os
aceitam como eles realmente são, mulheres que libertam suas
fantasias, suas imaginações, muitos adoram essa liberdade fora do
casamento.
– Mas comigo não. Um mínimo de respeito pelo menos sou capaz
de me dar. Esse tipo de homem pensa que é dono do mundo por ter
tudo na vida. Pensa sempre que mulher é um artigo de luxo que se
usa na hora que quiser e quando bem entender. Não vou nunca abrir
minha guarda para esses idiotas.
– Você ainda não entendeu nada sobre a vida. É por isso que você
tem que fazer o que realmente eles querem, somente assim você
conseguirá colocá-los entre seus dedos, na palma de sua mão.
– Tudo bem. Não vamos mais discutir sobre as grosserias desses
idiotas. Mudando de assunto, durante todo esse tempo aqui você
não conseguiu nenhum programa?
– Não. Mas teve uns rapazes que passaram aqui e parecem que
vão voltar. Todos os três são uns gatinhos. Ah, amiga, estou tão
carente hoje, preciso tanto de um gatinho...
– Quem não precisa?
– Eles são tão fofinhos, carinhosos e indolentes que eu juro para
você, se eles voltassem aqui eu pegaria um somente para mim.
– E o Maurício?
– Ah, nem me fale daquele tonto. Aquilo não sente ciúmes nunca.
Eu posso, com toda liberdade desse mundo, me deitar com o patrão,
com o irmão e com o pai dele, que ele nem liga. Para ele tanto faz ter
a mim ou não. Ele somente está comigo por causa do carro, porque
aí eu o levo para onde quiser. Sou mais uma motorista do que uma
amante.
– Mas você sempre disse que o ama!
– Ah, eu sou louca por ele. Mas quem disse que ele sente o
mesmo, na verdade, ele não passa de um interesseiro.
– É, amiga, nosso coração apanha do mesmo jeito por homens
dife-rentes... Bem que eu pensava que o Maurício fosse diferente do
Lipe, mas não, são todos iguais.
– Você ainda duvida? Eu comecei a sentir algo mais profundo pelo
Maurício quando percebi que ele não se importava muito com os
programas, mas acho que tudo tem um limite, ele não se importa
demais, às vezes penso que eu nem existo.
– Estamos com azares diferentes, eu reclamo pelos ciúmes em
excesso do Lipe e você pela falta de atenção do Maurício.
As duas ainda trocaram muitas confidências até voltarem a desfilar
suas sensualidades pela avenida.
De vez em quando passava um veículo mais atento. Na penumbra,
Paola, que sempre foi mais atirada do que Grace, logo se agitava.
– Vem cá, macho gostoso! – gritava Paola para qualquer veículo
que parasse repentinamente. – Vem, para eu mostrar uma coisa bem
gostosa.
Paola sempre foi mais despudorada do que Grace, sempre de
desejos mais impudicos e desconcertantes. Não sabia dizer não a
um homem, quase sempre diminuía o preço do programa somente
para deitar-se totalmente entregue. Paola não era de fazer muitas
amizades na rua, mas Grace, por ser mais nova, acabou sendo sua
colega mais íntima, ela se sentia como uma irmã mais velha. Era
essa dependência mútua entre as duas que tornava fácil o
coleguismo, todas as confidências de uma eram repartidas com a
outra, não havia inveja, nem vantagens de uma para com a outra.
As duas se conheceram numa pensão de moças, no começo não
se olhavam muito porque Paola achava Grace um pouco esnobe por
ser universitária, mas foi quando percebeu que Grace tinha
dificuldades de seguir os estudos adiante por causa dos preços das
mensalidades, que ela iniciou Grace a fazer programas, a ganhar um
dinheiro suficiente para sobrar, pagando todas as contas e até
algumas coisas supérfluas. Grace depois se entusiasmou com o
dinheiro ganho nos primeiros programas, foi então que ela se levou
pela inércia de ser uma prostituta de luxo. Paola sempre incentivava
dizendo que os homens gostavam muito das universitárias. Foi
então, a partir daqueles rotineiros contatos na pensão que as duas
se tornaram muito amigas.
A noite estava resplandecente no céu de estrelas contagiantes.
Nada mais poderia estragar os novos pensamentos revigorados de
Grace. Pensou consigo em erguer a cabeça e desprezar aqueles
instantes ruins com o tal velhote fazendeiro. Ela até se animou
depois que reencontrou a amiga. Portanto, a noite traria aflatos de
normalidade, apenas esperava tranquila ganhar um cliente para a
noite não acabar completamente perdida. Mas a força do acaso às
vezes se torna estúpida. Por que passaria na cabeça dela, naquela
hora, que haveria algo de pior para acontecer? Sua simulação de
vida, ocultando na penumbra seu verdadeiro modus vivendi, não
esperaria surpresas numa noite desmaiada que rapidamente
mergulhava na madrugada. Ela não sabia o porquê que dentro dela
havia uma alma invisível que não enxergava os acasos que, mesmo
quase impossíveis, poderiam acontecer numa cidade grande.
A amiga Paola continuava abordando esdruxulamente qualquer
um que passava de veículo até o momento que conseguiu o que
tanto queria, alguns possíveis clientes para marcar um programa.
Um automóvel parou sorrateiramente ao lado de Paola, ela,
espetaculosa, foi ao encontro do tal veículo.
– Então, rapazes, vocês finalmente voltaram! – disse ela.
– É que nós estávamos querendo fazer uma festinha lá em casa.
Você sabe! Levar umas garotas para fazer uma baderna juntos –
declarou um dos rapazes.
– Tenho certeza que comigo essa festa ferveria – assegurou
Paola, se insinuando.
– Qual o seu preço, gatinha? – perguntou outro.
– Apenas cem. Olha que somente eu coloco fogo nos três de uma
vez.
– Você não tem mais uma amiga. Assim três revezam em duas. É
bem melhor!
– Tenho uma amiga sim. Posso chamar ela?
– Com toda permissão do mundo.
Os rapazes estavam dentro do veículo, dois na frente e um atrás,
todos não se aguentavam para realizar uma pequena orgia particular.
Era um costume de Paola participar de bacanais, ela delirava ainda
mais quando eram feitos entre jovens bem dispostos.
Não querendo perder de forma alguma a clientela, Paola foi
chamar Grace que estava num ponto pouco iluminado conversando
à toa e totalmente despreocupada com o travesti Bia Baby.
– Grace, vem aqui! – pediu Paola. – Essa minha amiga é muito
bonita. Vocês irão delirar com o corpo dela. Esperem um pouco.
– O que foi? – perguntou Grace, sem saber o que acontecia.
Aos poucos ela foi se aproximando do veículo.
– Venha conhecer aqueles rapazes de que lhe falei – disse Paola,
sempre animada.
Quando Grace se aproximou e colocou o rosto à mostra da janela
do carro, não acreditou, não podia ser. Seu coração ficou frio como
gelo, seus sonhos construídos para a constante felicidade
desabaram, ruíram com a presença um pouco desagradável
daqueles rapazes:
– O que... foi... Ah, são vocês! – surpreendeu-se Grace, num
singelo e desanimado cumprimento, querendo de qualquer forma
sumir daquele lugar.
– Por quê? Vocês já se conhecem? – indagou Paola, sem
compreender nada.
– Sim, nós somos colegas de faculdade da Grace – explicou o
rapaz que estava no volante.
– Ih! – sussurrou Paola.
Contudo, Grace permaneceu séria, não queria demonstrar
fragilidade, pensou que não havia motivo para pânico, afinal, para
qualquer dúvida, ela estava acompanhando uma amiga.
– Paola, gostaria que você conhecesse meus colegas de turma,
Guilherme, Raul e Nuno – apresentou Grace.
– Muito prazer – disse Paola, um pouco acanhada.
– Prazer – devolveu o cumprimento os rapazes, acenando, cada
um mais propenso ao riso que o outro.
Quando percebeu os olhares irônicos dos rapazes ela disse.
– Bem. Não é isso que vocês estão pensando.
– Eu não estou pensando em nada. Você está, Guilherme?
– Não. Eu não.
– E você, Raul?
– Também não.
Nesse instante, Grace de olhar compenetrado fixou os olhos nos
rapazes.
– Eu posso explicar tudo – continuou ela.
– Não precisa explicar nada para a gente. Você não deve
satisfação nenhuma para ninguém – declarou Nuno.
– Por favor! Não contem para ninguém que vocês me viram aqui.
Por favor! Para ninguém – enfatizou Grace – Tudo bem. A gente nem
a viu aqui. Não é mesmo pessoal? – anunciou Nuno, em tom de
ironia.
– Eu estou falando sério, pessoal.
– Tudo bem. Relaxa! Calma, gatinha! – afirmou Nuno, sempre
irônico.
– Por favor, gente! É muito importante para mim...
– Olha! A gente não tem nada a ver com o que você faz ou deixa
de fazer da vida. A vida é sua, ok? No mais, nós já estávamos indo
mesmo. Ô gatinha, aquela nossa festinha fica para outro dia. Ok?
– Por favor, gente! Não façam isso comigo – pediu Grace, quase
suplicando.
O motor do carro rangeu umas três vezes antes de partir, eles
pouco se preocuparam com o pedido de Grace.
Dentro do carro, eles começaram a gritar, zombando do ocorrido,
fazendo brincadeiras e piadas e depois partindo velozmente.
– Nós não vamos fazer nada, somente contar para a faculdade
inteira – zombou um, gritando.
– Vai fundo, putona! – zombou outro.
Grace ao ouvir aquilo começou a se desiludir da vida enquanto o
carro dos três sumia no horizonte da avenida.
No carro eles conversaram exaltados.
– Meu, eu não acredito que a Grace é puta! – disse Guilherme.
– Minha nossa! Eu vou espalhar para a galera inteira – anunciou
Nuno.
– Quem diria? Ela com aquele nariz empinado pagando sempre de
patricinha! – declaclou Raul.
– A patricinha mais putaraça que eu já vi – caçoou Nuno, como
todos, sempre bastante exaltado.
– Quem diria? A Grace... rodando bolsinha na Afonso Pena –
continuou com a ironia Raul.
Já Grace, depois de ver sumir os colegas fazendo piadas da sua
condição, começou novamente a sentir aquele irremediável contido
choro.
– O que vou fazer agora? Estou perdida... É o fim da linha para
mim... Eles nunca vão me respeitar... – chorou ela, sentando-se no
meio-fio de cabeça baixa.
– Não fique assim por causa desses playboys, Grace – encorajou
Paola, tentando confortar a amiga.
– Deus! Por que tanto inferno acontece comigo?
Nessa hora apareceu o travesti, Bia Baby, também para consolar.
– No fundo, Grace, eles queriam era ter uma noite com você.
– Pare com isso, Bia, de dizer que todo mundo me quer. Eu não
passo de uma triste coitada abandonada.
– O que é isso? Querida, você é a mulher mais gostosa que eu já
vi. Não fique se martirizando por causa de um bando de playboys
imbecis – incentivou o travesti.
– Eu não suporto mais essa tristeza fantasiada de alegria –
continuou chorando Grace. – Desde que eu comecei nesse negócio,
minha vida se tornou um inferno, apesar do dinheiro, que não paga
minha tristeza diária, tenho medo dos meus pais... E para variar eu
conheci aquele cachorro do Lipe.
– Calma, amiga – pediu Paola. – Você já deveria prever esse tipo
de situação. Você tem que se acostumar com isso.
– Acostumar com o quê? Com o inferno, é isso? Com esses
homens me sinto como se tivesse sido violentada no coração.
Sabem o que eu queria? Era uma vez só, colocar todos esses
homens no chão, no chinelo, no fundo de minhas tristezas, inclusive
o Lipe – desabafou Grace.
– Amiga, isso já está se tornando doença – disse o travesti. – Toda
vez que você fica triste você menciona o nome daquele peão suado
com cheiro de peixe.
– Vocês não percebem? Eu amo aquele desgraçado... Eu sei que
se eu tivesse aquele idiota do meu lado todos os meus problemas
seriam fáceis de enfrentar. Mas não, ele prefere fazer a linha de
homem sério do que me aceitar logo de uma vez.
– Não fique assim! Venha, vou lhe pagar um drink – convidou
Paola, ao abraçar Grace.
Realmente Grace não esperava aquilo. Mas poderia acontecer,
como aconteceu, quem está na chuva é para se molhar. E o pior de
tudo era ter encontrado justamente os jovens mais ricos e arrogantes
da sua turma. Ela tinha plena consciência de que os dias vindouros
seriam de muitas lágrimas, porque os três, fatalmente, pegariam
pesado com aquela descoberta. Eles sempre foram os garotos mais
zombadores da sala, tudo isso seria um prato cheio para as suas
brincadeiras, ainda mais com Grace que sempre foi a colega mais
distante do grupo.
Dessa vez, Grace pensou que não suportaria mais seguir adiante
com suas pequenas tentativas de uma vida normal. Erguer a cabeça
parecia ser uma coisa impossível. Esse era o real troco que as
mentiras devolviam, sempre escondendo quando aconteceriam.
Seus pensamentos já estavam mergulhados em um turbilhão de
dúvidas... Se o pior acontecesse, o que ela largaria, os programas ou
os estudos? Provavelmente seu instinto escolheria os estudos, pois
ela já estava muito acostumada com o dinheiro dos programas, seria
quase impossível manter o mesmo padrão de vida se largasse os
programas. Mas se largasse os estudos não teria como dar
satisfação aos pais que sonhavam e acreditavam na felicidade de ver
sua filha formada.
Então Paola e Grace foram a um pub perto da avenida Augusto
Gama. O travesti, Bia Baby, ficou para continuar fazendo o trottoir.
Quando entraram no pub, Paola e Grace não se surpreenderam
com a chuva de olhares maliciosos do público masculino que
frequentava o lugar. Já estavam acostumadas com a indolência dos
homens quando estes avistavam seus decotes. Paola adorava
sempre qualquer reação masculina, já Grace, mesmo em seu traje
insinuante, procurava sempre se desviar das atenções, em seu
coração havia uma mágoa que se queixava de qualquer um. A
mágoa que era um ramerrão, de que todos os homens não
prestavam, por isso se desvencilhava de qualquer aproximação com
um medo presente de sofrer desilusões. Para ela, repetidamente,
todo homem era um degenerado, que a única coisa que sentiam era
uma vontade imensa de se reproduzirem. Um sentimento verdadeiro
ficava cada vez mais distante, o homem certo era para ser Felipe,
mas esse também colocara seus sonhos por água a baixo. Mas
continuava sempre a amá-lo profundamente, entre as virtudes de um
coração que reconsiderava qualquer coisa da pessoa amada, com
uma única vontade na vida, de amar para sempre.
Elas se sentaram em uma mesa num canto escuro, para juntas
desabafarem suas tristezas, colocando para fora as mágoas da vida.
Paola também vivia cercada de problemas como todo mundo, mas
sentiu que a amiga estava perdendo as esperanças, por isso
resolveu reconfortá-la, e talvez a bebida fosse um remédio para
aquele descontentamento.
Ela sabia que a amiga estava passando por momentos difíceis,
mas sabia também que por ser mais velha, poderia dizer palavras
que levantassem a moral de Grace, pois já tinha bastante
experiência naquela vida perdulária, e tinha a plena consciência da
discriminação dos outros. Suas palavras poderiam salvar o ânimo da
amiga.
Logo um garçom chegou prontamente para servi-las.
– Tudo bem? No que posso ser útil? – perguntou ele.
– O que vai querer, amiga? – indagou Paola para Grace. –
Qualquer dose de qualquer drink é por minha conta!
– Acho que vou querer uma dose de vodca – disse Grace.
– E a senhorita? – continuou o garçom.
– Somente uma batida de morango para mim serve... Obrigada –
solicitou Paola.
– Sem problemas, levará apenas alguns minutinhos – declarou o
garçom, sumindo adiante entre os clientes.
– Então, amiga? Se quiser chorar, chore, coloque tudo o que você
está sentindo para fora. Eu estou aqui para ajudá-la – anunciou
Paola.
– Você já deve estar premeditando que eu estou assim por causa
do Lipe e não pelos playboys da minha turma – indicou Grace.
– E não é isso?
– Não. É por causa de tudo. Às vezes penso que você me colocou
numa imensa cilada. Essa vida é cheia de tropeços, percalços,
quando comecei não achei que seria tão horrível assim. No começo,
a gente se maravilha por conseguir muito dinheiro e às vezes até
transamos com homens maravilhosos. Mas depois você cai na
realidade e sente realmente qual é o seu lugar no mundo.
– Já cansei de dizer para você nunca se preocupar com o mundo,
numa profissão dessa você está na chuva para molhar. Não pode
ficar alimentando esperanças de estar sendo respeitada pelos
outros. O que você acha? Desde quando comecei sempre fui
desrespeitada, estamos aqui para satisfazer os desejos dos outros,
não os nossos. Quanto à cilada em que eu a coloquei não tenho
culpa nenhuma. Você estava desesperada, eu apenas avisei que
você tinha chances de melhorar o padrão de vida se quisesse. E não
melhorou?
– Melhorou coisa nenhuma... De que adiantou? Se hoje estou
prestes a ser a prostituta da sala. Você acha que vou aguentar? Não
vou suportar nunca aqueles olhares atravessados para mim. O que
você pensa que aquilo é? Naquela universidade, somente existe
mauricinho e patricinha, filhinhos de papai e mamãe.
– Sabe o que eu acho? Acho que você tem que sacudir e levantar
a poeira... se sentir como uma patricinha também. No fundo, todo
esse tipo de gente faz força para se comportar aos modos
tradicionais. Todos são do tipo que comem feijão e arrotam caviar.
– E você acha que eu não sei disso?
Nesse instante, o garçom chegou com a dose de vodca e a batida
de morango. Rapidamente, Grace se calou para que ele não ouvisse
a conversa. Com muita educação, ele dispôs sobre a mesa as
bebidas, com alguma atenção sorrateira sobre os decotes das
moças.
– Está olhando o quê? – raivou-se Grace. – Vai logo cuidar do seu
serviço.
– Desculpe, senhorita! Eu já estou indo – disse o garçom, ao andar
de fininho entre as pessoas do pub.
– E você acha que eu não sei disso? – continuou Grace. – Todas
aquelas pessoas se acham importantes na vida, mas não passam de
um simples porão educado. Sabia que toda vez, quando existe um
trabalho em grupo, eu sou uma das últimas a ser convidada, ali
ninguém se importa com ninguém. A maioria fica apenas preocupada
em tirar as melhores notas, cada um querendo engolir o outro.
Vendo tanto homem circulando, Paola, sempre um pouco mais
exaltada, resolveu tirar um cigarro da bolsa.
– Amiga, tem um gatão olhando para a nossa mesa – alertou ela.
– Eu aqui tentando desabafar e você preocupada com homem!
– Desculpe. É que eu não resisto... tudo bem, pode continuar.
– Antes me dê um cigarro.
– Mas você não fuma!
– Somente um, para relaxar, estou tensa.
– Nossa! Mas ele é lindo mesmo. Eu acho que ele está olhando
para mim – alegrou-se Paola, ao flertar com o cara.
– Preste atenção no que eu estou falando, por favor! – pediu
Grace, depois de dar uma baforada no cigarro. – Não existe mais
essa coisa de posição social. Tudo hoje é na base da grana, ou você
tem ou não tem e ponto final. Mas aqueles idiotas vão realmente
acabar comigo, disso eu sei, porque aquela gente não vai com a
minha cara por eu ser do interior. Você sabia que às vezes eles
esboçam gritinhos me chamando de burra, somente porque eu disse
que talvez Nova York seria a capital dos Estados Unidos. Mas, Paola,
eles fizeram uma arruaça tão grande por causa daquilo que acabei
ficando tão vermelha de vergonha.
– Sei – assentiu Paola, sempre flertando com o mesmo cara.
– As coisas não podem ficar assim. Eu vou acabar perdendo os
meus estudos, você vai ver. Aqueles playboys de uma figa pensam
que são donos do mundo. Por que a corda sempre arrebenta para o
lado do mais fraco? Hoje em dia ninguém pode alcançar alguma
forma de ganhar dinheiro, que sempre, de uma forma ou de outra,
conseguem destruir aquilo que você construiu. Eu não sei o que vai
ser da minha vida se eu largar os estudos, porque, claro, eu não
posso, na condição em que estou, largar os programas. Eu não
posso largar os estudos! Pois a faculdade é o meu único álibi para
meus pais não ficarem sabendo de nada.
– Não se desespere. Acredite em Deus, que tudo vai melhorar –
aconselhou Paola, ainda flertando com o cara.
– Aquela chance com o tal dono de agência de modelos pode ser
minha única saída... Você já conversou com ele?
– Calma, amiga! Estou apenas aguardando o retorno da ligação
dele. Relaxe e paquere esse tanto de gato.
– Você acha que eu estou com cabeça para pensar em homem?
Esses idiotas são sempre a mesma coisa, todos são mortos de fome
de sexo. Para conseguirem isso fazem de tudo.
– O que está acontecendo com você, Grace? Está parecendo uma
recalcada que não consegue homem nenhum.
Nesse momento, Grace virou numa golada só a dose de vodca.
– O que é isso, Grace? – assustou-se Paola. – Está pensando que
isso é água?
– Aprendi isso com o Lipe – disse Grace, em tom de saudosismo.
– Lá vem você falar novamente desse cara! Depois começa a
entrar em depressão e chora. Esquece essa doença logo de uma
vez!
– Não consigo... O Lipe é o único homem da minha vida inteira.
Ele ainda vai ver uma coisa. De repente, sem mais nem menos, ele
vai me ver nas capas de revistas. Já estou até vendo, ele
observando, todo bobo, minha foto sensual nos outdoors da cidade,
pensando, por que eu fui deixar essa mulher, depois pensa melhor e
volta correndo para os meus braços. Ah, amiga, seria tudo para mim!
Seria um final feliz digno de uma princesa. Imagine só a cara
daqueles playboyzinhos da minha sala.
– Sei – continuou Paola, ainda flertando com o mesmo cara à sua
frente.
Quando notou que Paola estava mais preocupada em olhar para
um homem do que ouvir as coisas que dizia, Grace se irritou.
– Você vai continuar olhando para esse cara? – disse ela.
– Vou... Porque eu conheço muito bem o meu lugar – afirmou
Paola, em tom de voz enérgico.
– E o Maurício onde fica?
– Eu faço da minha vida o que bem entender. Qualquer coisa foi
somente mais um programa. Ele não se importa nunca mesmo.
– Aonde você vai?
– Vou para a mesa dele. Ele acenou me chamando.
– E você vai me deixar aqui sozinha. Lembra? Foi você quem me
convidou.
– Tudo bem, Grace! Eu também não estou com cabeça para
conversar nem namorar. Vamos embora então. Eu dou uma carona
até sua casa.
Entediadas com o lugar as duas se levantaram da mesa, e mais
uma vez com todos os olhares perseguindo-as. Grace foi na frente
enquanto Paola deixou a conta sobre a mesa. Saíram do pub, que
mesmo assim ainda estava movimentado, era um lugar bastante
frequentado na noite.
Caminharam juntas trocando algumas palavrinhas duras uma com
a outra, pois Grace naquele momento somente esperava atenção.
Em qualquer instante Grace poderia se irritar, sua vida sentimental
já estava bastante desgastada, amigos eram poucos, na faculdade
de Direito então não tinha nenhum, somente restava a ela a
presença da companhia de Paola, e se a qualquer momento Paola
negava-lhe a atenção, então se sentia frágil como se o mundo inteiro
vingasse alguma coisa contra ela.
Encontraram o carro de Paola bem distante, quando ela saía para
os programas costumava deixar o carro num local seguro, longe de
ladrões e assaltantes.
Paola era um pouco desastrada no volante, ficou bastante tempo
fazendo manobras até sair da vaga.
– Você nunca vai aprender a dirigir? – disse Grace.
– Não me deixe mais nervosa do que estou – retrucou Paola.
– Sabe? Você diz que sou bonita, mas a vida a todo instante me
diz o contrário. Veja o tanto de problemas que eu tenho, se eu fosse
realmente bonita tudo seria mais fácil. Você até conseguiu comprar o
seu carro, enquanto eu, meu dinheiro somente paga roupas de grife
e perfumes caros.
– É porque você começou há pouco tempo. Não se incomode com
isso, um dia tudo isso vai mudar. Espere somente mais um pouco, eu
não falei que esse amigo meu, dono de uma agência, vai contratá-
la... Só resta esperar um telefonema dele.
– É o que mais faço o dia todo. Esperar... esperar... e esperar. Eu
já coloquei na minha cabeça de uma vez por todas que ele não vai
mais ligar. Eu já me conformei, nasci mesmo é para sofrer.
– Não seja dura consigo mesma. Grace, às vezes penso que você
ainda não se tornou adulta, pois comporta-se igualmente como uma
simples menininha coitadinha do colegial. Todos têm seus
problemas, a diferença é que alguns conseguem suportar, tente fazer
isso de vez em quando.
– Eu nunca vou conseguir suportar qualquer dor, já estou ficando
com enxaqueca pela falta do Lipe, se ao menos aquele idiota
soubesse o que o meu coração deseja, eu enfrentaria tudo com
facilidade, aqueles playboys não seriam problema algum. Agora, sem
ninguém para me proteger, não sei o que vai ser de mim se todos
souberem que sou uma prostituta de rua – disse Grace.
– Já falei para você parar de ficar se penalizando. Ora bolas! A
vida é assim! Uma vez se bate, outras vezes se apanha, é só uma
questão de se acostumar – disse Paola.
– Eu não vou acostumar com o sofrimento. Se isso realmente
acontecer eu vou largar a faculdade de uma vez por todas.
– É assim que você vai agir toda vez que surgir um problema?
– Sim.
– Está errada! Pois fique sabendo que a todo instante encontrará
dificuldades na vida. Não tape o sol com a peneira. A vida é feita de
altos e baixos. Escute o que eu digo, não jogue os seus sonhos pela
janela como eu já fiz, o final é sempre doloroso.
– Não adianta você contar as suas desilusões, vou largar a
faculdade sim. Coloque-se no meu lugar, como você olharia na cara
daquelas pessoas esnobes que se acham as mais importantes da
cidade? Todas filhinhas de papai, com contas enormes para gastar
no clube, paquerando somente os filhinhos de papai, e quem não se
enquadra em seus padrões são, ou gays ou putas. É assim que a
vida reage sempre, não há como fugir disso.
– Tudo bem, Grace. Você sabe o que faz, depois não diga que não
avisei.
As duas conversaram sobre alguns temores dentro do carro até,
enfim, Paola estacionar em frente ao prédio de Grace que se
despedia.
– Tenha uma boa noite, amiga. E não fique rancorosa por eu não
ouvir seus conselhos, sei que você diz a verdade, que somente quer
o melhor para mim, mas eu conheço os meus limites – disse Grace.
– Não tem problema, Grace. Mas, hoje, quando colocar a cabeça
no travesseiro, reflita mais sobre tudo, ainda existe um sol brilhando
sobre nossas cabeças, não desista assim tão facilmente da sua
felicidade. Se você veio aqui para completar seus estudos então lute
para isso se realizar.
– Pode deixar, eu vou pensar mais a respeito disso. E você, por
favor, procure o seu amigo da agência, essa chance pode resolver
todos os meus problemas atuais.
– Não se preocupe! Ele vai ligar, eu o conheço, quando ele coloca
uma coisa na cabeça não há demônio que tire. Fique tranquila! Ele
vai ligar ainda nessa semana, você vai ver.
– Jura, amiga?
– Estou dizendo que sim.
– Vai ser maravilhoso se isso acontecer! – Grace pulou de alegria.
– Pode torcer que vai realmente acontecer... Então, eu já vou
indo... Tchau, Grace, e boa sorte.
– Muito obrigada, amiga!
O motor do carro de Paola rangeu e ela partiu ao encontro do
trânsito túrbido daquela madrugada. Não havia carro algum pelas
ruas, nem vidas, nem pessoas, nem sequer mendigos, tudo estava
deserto numa madrugada desmaiada que insistia em sobrevoar os
céus.
Paola era mais centrada, por isso tinha mais os pés no chão,
detestava algum delírio de Grace quando esta sempre pensava que
a vida deveria ser um mar de rosas. Talvez Paola fosse uma mulher
decaída na realidade, às vezes, observando Grace, ela notava
alguns traços de personalidade seus, de quando era mais jovem, da
idade de Grace, por isso talvez ela pensasse em adotar aquela
amizade para se tornar uma espécie de irmã mais velha. Não queria
de forma alguma que a amiga cometesse os mesmos erros.
Pensando assim, era mais um pequeno motivo que ela ajeitou em
sua cabeça, ajudar Grace no que fosse preciso para levar a
felicidade de um prestígio qualquer para a amiga, felicidade que ela
descartou há muito tempo de sua cabeça. Talvez fosse apenas um
brilho desejado por garotas inexperientes, para ela a vida não existia
mais em flores, a révora se foi e com ela todos os apreços vividos.
Ela continuava dirigindo pelas ruas vazias, procurando a casa, o
cachorro e o namorado.
Pensamento de Paola:

O que Grace pensa da vida? As coisas são mesmo assim, todos


querem lhe derrotar, vê-lo na tristeza, no azar e na infelicidade. A
vida é assim! Uma mulher que somente pensa na vaidade feminina
pode encontrar homens que somente pensam na vaidade masculina,
e quando esses sentimentos se chocam, o poder de concupiscência
dos homens subjuga qualquer vaidade de uma mulher, ainda mais se
essa mulher é jovem e frágil como Grace. Nós, mulheres, sempre
temos na cabeça uma falsa ideia de que dominamos a virtude
humana, mas não, são eles que guardam em suas mãos nossos
desejos de felicidade plena. Qual mulher que não sonha com um
homem que seja mais forte do que ela? Várias se dizem
independentes, mas são as independentes que procuram homens
cada vez mais poderosos.
Já passou o tempo em que eu derramava lágrimas por um homem.
Não faz mais parte da minha vida viver às custas da decisão desses
idiotas. Ainda chegará o dia em que Grace verá que o Felipe apenas
deseja o sexo usual, casual e sem compromisso. Não consegui ver
ainda nenhum homem que amasse de verdade. Peço apenas uma
coisa a Deus, que ele abra os olhos da minha amiga.

Enquanto isso, Grace, um pouco contente, pensando na


possibilidade de ser uma modelo profissional, preparava-se para
entrar no prédio em que morava. Em sua combustão de sentimentos,
a derrota e a vitória se misturavam, talvez seja assim quando se está
contente, porque a vitória não lhe deixa pensar na infelicidade e nem
a derrota lhe deixa pensar na felicidade, então o contentamento paira
intimamente no espírito humano.
Com a chave do portão Grace entrou no prédio, quando viu o vigia
dormindo no serviço, aquele sentimento de derrota, dos colegas de
turma a vendo fazendo programas, quis se manifestar, pensou:
“talvez devesse acordar esse preguiçoso, pois se todos cobram
dignidade de mim também devo cobrar dignidade dos outros, a vida
não é assim!?”
Mas outrora o sentimento de vitória também se manifestava,
pensou então que não haveria problema algum em deixar o vigia
com seus sonhos profundos, pensou que a vida poderia ser algum
dia bela, cheia de prazer e sensacional, repleta de emoções
benéficas. Logo, por não ter nenhum espírito vingativo, Grace deixou
que o senhor vigia continuasse dormindo. Partiu, subindo as
escadas, tentando domar a vontade de chorar, alguma coisa intensa
lhe dizia que tudo não seria feito de emoções angelicais, que
realmente apareceria boatos na faculdade a respeito de sua segunda
vida presenciada na penumbra das avenidas do sexo e que
verdadeiramente não conseguiria nunca o status de modelo de
agência.
Enquanto subia as escadas, arfando com dificuldade, o
pessimismo voltava a crescer em seus pensamentos, cada
movimento brusco para vencer os degraus da escada a fazia
repensar, refletir, introverter a necessidade do revés. Pensava
lucidamente que a sorte não cairia para uma jovem mergulhada na
escuridão da vida e no outro lado da lua. Ela tinha uma certeza
convicta que sempre ressoava em seus instantes de solidão, de que
viver um sonho quase irreal não era para moças como ela, moças
que secretamente guardavam a sete chaves um passado sempre
presente vivido nos antros do sexo que a cidade devorava.
Para Grace, seu destino já estava cercado de um brilho, ou seria
um brilho do bem ou seria um brilho do mal, pois em cada instante
que respirava, suas emoções alcançavam as alturas da vitória,
depois, como num presságio, vinham as sensações de derrota, as
profundezas do anonimato que ela rejeitava de todo íntimo.
Ela entrou em seu apartamento, acendeu as luzes da sala, jogou a
bolsinha preta num canto qualquer e logo correu para ligar o rádio,
era uma mania que sempre tinha quando chegava. Enquanto a
música tilintava no ambiente ela deitou-se sobre o chão cheio de
almofadas coloridas. Apertou uma das almofadas com um desejo
intenso de fé, uma fé diferente, uma fé traduzida sem anjos, uma fé
de querer algo acima de tudo.
Pensamento de Grace:

Por que a desgraça procura me alcançar? Por mais que eu corra


dela, ela sempre está me cercando, me orientando para um destino
indesejável. Também pudera, eu trilho os caminhos da vida sem
pensar nas reações adversas. Toda tempestade da escuridão me
empurra com tamanha agressividade que nem meus sonhos íntimos
são poupados, eles voam longe, para longe de mim, volta e meia eu
tenho que buscá-los novamente para piorar a minha existência.
Todos podem dizer que sou uma mulher feita para todos, mas
ninguém pode ocultar que sou uma mulher como todas as outras,
que precisa de carinho, de ser amada, de ser desejada por um único
homem apenas. Meu coração pode sair saltitando, mas não
consegue voar, ele sempre cai no chão onde Felipe pisa.

Sob o teto de seu apartamento, Grace sentia uma inconstância de


ligar qualquer aparelho que falasse, era um modo fácil de descansar
a alma irrequieta que não suportava a falta do namorado, então
desligou o rádio e ligou a TV. Não havia nada para se entreter
naquele horário de madrugada túrbida, acabou escolhendo um canal
por ponderar aquela força que tinha de viver somente o desejo que o
seu coração apitava, sentiu a vontade instantânea ao ver um pastor
de igreja protestante comentar algo a respeito de encostos que
destroem a vida sentimental da pessoa. Subitamente, ela sentiu que
era aquilo que devia estar acontecendo com ela. Somente poderia
ser aquilo, pensou ela.
O pastor, com palavras chocantes, discorria sobre encostos que
cessavam toda a luta da pessoa para alcançar as alegrias que a vida
apraz. Esses encostos, dizia ele, fechavam todas as portas da
pessoa em busca da felicidade.
Grace se sentiu num momento introspectivo que talvez fossem
esses encostos que a separavam de Felipe. Para ela, tudo que vivia
para salvar a vontade imensa de ter Felipe ao seu lado era bem-
vindo.
Pensamento de Grace:

Minha vida sempre foi um caos amorosamente, sempre insistindo


nos mesmos erros. Com certeza, deve existir um espírito de derrota
cercando a vontade pelo amor do meu querido, que certamente me
ama, tenho certeza que Felipe me ama. Talvez seja esse espírito que
o cega numa paixão que não existe livramento. Eu sei que Felipe é
de se apaixonar facilmente, mas também sei que existe um apetite
de sentimento entre ele e eu, uma atração capaz de ser chamada de
amor, só que ele ainda não descobriu a verdade que existe em meu
coração.
Será que até hoje ele não descobriu que sua rapacidade se foi?
Ele não tem mais idade para ficar brincando de amores, pois já
completou os anos necessários para dividir os desejos sexuais dos
desejos de uma vida inteira repleta de paz. Sim, paz, todo homem
um dia acaba descobrindo que quer ter paz, do tipo chegar a casa
totalmente livre de preocupações e encontrar uma família para
guardar em seu coração.
Com certeza meu instinto de mulher me diz que Felipe tem alguma
paixãozinha libertina escondida em suas virtudes... ou então são
esses malditos encostos que esse pastor tanto fala que nos separam
a cada dia.

Alguns minutos foram se passando e Grace foi adormecendo com


a televisão ligada, enquanto caía num sono profundo o pastor da TV
continuava pregando sua fé contra os encostos.
Capítulo 6
Certamente toda mulher aprendeu a descobrir se o homem que ela
ama tem algum sentimento por outra, isso não é difícil saber, pois
todo e qualquer indício de rejeição prova que ele, se não tem, ao
menos deseja outra mulher.
Desejos... desejos... e mais desejos, era o que passava na cabeça
de Felipe quando seguia novamente do trabalho para o lar. Saber por
onde andavam os olhos da vizinha de janela era sempre um augúrio
infeliz que trazia ao coração pequenas chamas de ciúmes. O desejo
agressivo de um homem às vezes poderia se tornar uma bomba
relógio pronta a ser detonada a qualquer instante. Assim estava ele,
mais uma vez ansioso para deleitar-se com os olhos sobre a
adorável vizinha que se exibia lividamente somente de olhares
apaixonantes todo santo fim de tarde. Para Felipe estava começando
uma doce rotina ao voltar do trabalho.
O sentimento encarniçado às vezes torna o homem inseguro ou
quase incapaz de fazer o jogo costumeiro para ganhar outra mulher.
Pois sempre que se acostuma com uma parceira acaba se
esquecendo das novidades que uma nova emoção vem a trazer.
Assim, continuava Felipe, paralisado, sem dar um passo adiante
para reviver ou se alucinar com as virtudes femininas que a vizinha
de sua janela apresentava. Ela parecia se apaixonar, mas ele, com
aquele esquisito costume de ganhar o coração de uma meretriz, não
saberia nunca como encantar o coração de uma moça acostumada
às tradições de família, era essa sua real vontade, a de conquistar
uma moça com esses aspectos familiares, seria uma volta de intensa
alegria reviver seu passado juvenil, no velho costume de namorar as
garotas do colégio. Ele sempre se lembrava com muito prazer da sua
época de puberdade, em que o tempo era a maior maravilha de
Deus, por isso às vezes se irritava com as atitudes de Grace, viver
um relacionamento duradouro com uma garota de programa não
fazia parte dos seus planos mais íntimos.
Felipe, por sua vez, perdia pouco a pouco a vontade de beber da
bebida deliciosa da noite que sempre o aguardava com mulheres
sem virtude alguma dos seus desejos de vida realizada. Isso trazia
cansaço ou contentamento com os sentimentos já existentes, então
começou a restabelecer sua vaidade masculina quando pairou sobre
a janela em frente aquele anjo de olhos transparentes como a seda.
Uma chama novamente crepitava, ainda existia um resquício de
sentimento que ele não abandonava nunca, querendo de qualquer
forma, mesmo mudando seus hábitos mais condicionados, oferecer
todo o bem que ele sabia que ainda existia em seu coração.
Algum anjo da paixão sussurrava em seu ouvido palavras de
livramento, como algo do tipo deixe ser. Ele sentia que realmente
deveria ouvir essa entidade, se livrar da carapaça obtusa de um
homem seguro e procurar vibrar esse sentimento que aflorava a todo
momento em seu coração. Mas não seria assim tão fácil desmentir a
Felipe quais eram verdadeiramente os caminhos do amor.
Assim continuava Felipe, com seus pensamentos delirantes,
buscando o inimaginável, a percepção, a noese e a imaginação
daquele amor que o fazia lembrar da juventude. E mais uma vez
voltando para casa naquela irremediável rotina, do trabalho para a
casa, viajando sem sossego algum num ônibus lotado, dependurado
no corrimão, buscando uma força interior para que a fadiga não
derrotasse seus membros cansados.
Porém, existia um algo a mais que revigorava seus ânimos
enfraquecidos do trabalho pesado, e esse algo a mais se encontrava
à frente de sua janela, numa outra janela, a vizinha mais
encantadora que já vira, uma moça com traços parecidos com os de
uma nume de poeta. Aquela reação que vinha em sua cabeça
quando sentia a possibilidade de vê-la em mais um fim de tarde o
fazia delirar como um adolescente que encontrava a primeira
namorada.
Junto e apertado com os outros passageiros, Felipe via um infinito
de possibilidades com aquele novo sentimento, algo lhe dizia que a
moça da janela era diferente, totalmente desigual em relação aos
desejos conspícuos de Grace. Pensava ele que ela era realmente o
que pedia aos quatro ventos, uma mulher cheia de pudores que não
pensaria em dinheiro, e sim na vontade de amar, uma virtude para
nobres, desejava ele acertar em tudo, e talvez, se o sentimento que
nutria fosse tão virtuoso assim, quem sabe ela não seria daquele tipo
de mulher que está junto do homem para o que der e vier, uma
espécie de guerreira, qualidade que não via nunca em Grace,
achava ele, que uma mulher que vivia da transa com diversos
parceiros somente seria mais uma vaidosa convencida. Felipe, por
instinto, desprezava todas as qualidades de Grace, e não era por
menos, ela já lhe dera vários motivos para isso.
O ônibus enfim chegou ao ponto mais próximo de sua casa, Felipe
estava cansado, mas ansioso para ver as delicadas feições
apaixonantes da vizinha. Agora, depois de todo fim de tarde, sua
rotina se reprogramou para tentar avistar aquela moça pela janela,
este era o seu agradável happy hour. Desde que aquilo começou ela
não faltou mais, sempre estava de coração aberto para os desejos
incontroláveis do rude Felipe.
Felipe resolveu, como sempre, comprar algumas latinhas de
cerveja antes de entrar em seu lar. Caminhou sobre a calçada com
um aspecto sorridente como quem avistava uma luz no céu escuro,
como quem esperava uma grande sorte vindoura que não demoraria
a se realizar. Tudo pareceria um sortilégio quando se encontrava o
amor, de frente, sempre esperando... Mas Felipe estava seguro
somente de uma coisa, de que não se desesperaria em nenhum
momento para conhecer a bela jovem que mexia com seu coração,
pois tinha aprendido com os amores passados a dar tempo ao
tempo, de uma coisa sua cabeça tinha certeza, de que toda mulher
quando está realmente apaixonada se entrega de corpo e alma à sua
emoção. Entrou na lanchonete, perto de sua casa, para comprar a
refrescante bebida que ele se dava sempre o direito de beber depois
do trabalho. Ficou procurando nas prateleiras algo mais para levar,
mas nada o seduziu, então apanhou logo as três latinhas que
desejava, da marca que mais lhe agradava, depois entrou na fila com
um excesso de ansiedade, queria porque queria chegar logo em
casa. Quando notava a presença das pessoas ao redor tentava
pescar algo das conversações, talvez, pensava ele, alguém a
conhecesse, que era nova num bairro onde várias pessoas se
conheciam, somente Felipe era de poucos amigos, sua cara marrada
afastava qualquer sentimento de boa vizinhança. Quando chegou
sua vez de encarar o caixa ele não fez delongas, pagou
imediatamente, e sem nenhuma palavrinha amigável partiu, dessa
vez, enfim, deleitaria seus olhos sobre outros olhos apaixonantes.
Essa era sua única aventura amorosa depois de deixar Grace, se ele
sentia alguma tristeza no coração, isso ele sentia, mas toda tristeza
era anulada com aquele pequeno carinho encarnado em sua vida.
Caminhou trôpego, de passos pausados, até o prédio onde
morava. Quando à sua frente ele avistou o prédio vizinho dela,
suspirou, baixando os olhos de ponta a ponta do prédio.
“É hoje, meu Deus!”, pensou ele, contente.
Suspirar por amor não era uma mania rotineira de Felipe, algo
dentro dele sempre o impedia de soltar aquele desejo agressivo de
amar, então ele ficava à mercê das águas de seu barco, pensava ele
que se o sentimento fosse forte vingaria algum dia, não havia
motivos para buscar a vida como se fosse um anjo decaído.
O coração começou a bater mais forte enquanto subia as escadas
do prédio, o desejo de vê-la estava compassado e no mesmo ritmo
do cansaço físico. Cada degrau vencido era uma aceleração a mais
no coração ansioso. Nem existia medo algum de não vê-la, a sorte
sempre acompanhava aquele caminho de graça da felicidade.
Quando enfiou a chave na fechadura da porta pensou brevemente
que aquilo era impossível, seu coração parecia, que de tanto bater,
em algum instante poderia parar.
Com uma dificuldade inexplicável a porta demorou abrir, era
novamente a ansiedade atropelando o desejo, às vezes ele sentia
até um tremor nos membros, mas qualquer idiotice juvenil era
reprovável para seus conceitos machistas, para ele, mulher alguma
poderia assim deslizar facilmente na alma de um homem. Aquele
brilho repentino de felicidade em sua consciência o fazia parar para
pensar, que, não se sabe por qual motivo, estava amando como um
adolescente idiota.
Finalmente abriu a porta depois de várias tentativas, avistando os
ares do apartamento ele decidiu em ainda não correr pela janela
atrás daquela vibração que repelia seus sentidos de provedor, tudo
estava do jeito que ele queria. Tentando abrandar aquele frêmito de
paixão, ele foi até a cozinha para guardar duas latinhas na geladeira
enquanto abria uma para derramar aquele sabor álgido em sua
lassidão.
Certamente ele foi caminhando até a janela da sala, de onde
estava mais acostumado a observá-la, os choques frenéticos em seu
coração pairavam numa frequência regular. Aqueles instantes que
antecediam a abertura das cortinas ora sobressaltava o peito ora
sepultava o coração. Afinal, ela estaria realmente de amores com
ele? Se sim, então ela estaria lá novamente, se não, seria apenas
mais uma paixão platônica repentina.
Quando ele chegou próximo da janela deu um gole profundo para
molhar a garganta e acalmar as emoções se o pior acontecesse.
Mas no instante em que abrira a cortina, seu coração não podia
acreditar, era um excelente sinal de que a garota estava realmente
caída por ele, ela estava lá, do outro lado, o esperando mais uma
vez. Seus olhos brilhavam, um delírio invisível de que havia
encontrado a garota certa, Felipe havia encontrado certamente a
felicidade plena, ela era muito linda para ser verdade, sua alma
buscava a todo instante os contornos perfeitos que ela trazia no
rosto, um contorno de beleza matizada de libido e simplicidade,
como uma princesa que sempre sonhava em encontrar um príncipe
encantado, normalmente sempre são essas as mais lindas.
Ela, novamente com a sutileza de sempre, fingia estar avistando a
paisagem da janela, mas sempre de olhos fixos sobre o olhar
abobalhado de Felipe. O coração, o cérebro e a alma dele gritavam
freneticamente que aquilo era o sublime amor vivido somente pelos
bem-aventurados da vida. Seria ele também, com aquela sorte
vindoura, mais um bem-aventurado? A experiência dizia sempre que
não, era ainda muito cedo para admitir aquela felicidade amável, mas
seus olhos mecânicos continuaram a persegui-la, Felipe sabia como
ninguém a nunca desperdiçar a ternura dos olhos de uma linda
jovem.
Enquanto os dois continuaram naquela simulação de reencontro
ela começou a despir os seios.
“Isso, minha garotinha!”, pensou ele. “Faz assim que eu me
apaixono facilmente.”
Ela, delicadamente, como quem não estava vendo ninguém,
começou a tirar o sutiã sobre os seios fartos. Nos olhos de Felipe,
brilhava uma loucura incomensurável de paralisar todos aqueles
instantes. Os bicos rosados dos seios dela pareciam apontar
timidamente para ele. Parecia uma fantasia ou um sonho lúdico de
prazer, mas era a imagem mais completa que ele já teve dela até
então.
Pensamento de Felipe:

Garota, você é simplesmente a divindade de uma virtude minha


guardada há muito tempo, a virtude de querer o bem à mulher mais
próxima da vida. Você inspira as flores do paraíso para que elas
tentem ao menos viver a alegria intensa de serem lindas como a
lógica da natureza. Em seus seios, em vez de derramarem leite,
derramariam mel para que todo ser do cosmo pudesse sentir o doce
do seu íntimo escondido. Tão sublime é espraiar a vista sobre sua
imagem refletida, que se chovesse agora acima de você,
descobriríamos o tesouro escondido no final do arco-íris, porque as
cores do arco-íris somente são mais vivas quando você se matiza
com a sagrada água do céu. Eu nunca encontraria resposta alguma
a qualquer potestade do amor se me perguntassem se quero viver
no paraíso ou viver o presente do seu lado. Os estrondos da
tempestade são somente a fúria de alguma potestade masculina que
se enciumou quando descobriu que você nasceu para dar amor a um
pequeno mortal como eu.

Num dado momento, a moça fingiu notar a presença de Felipe a


observando. Demonstrando-se um pouco irritada, ela colocou a mão
sobre os seios, completamente fingida, Felipe percebia facilmente
aquele dote dela somente para mostrar suas formas exuberantes.
Depois fechou a janela e a cortina, segura de que seduzira Felipe.
Ele, por sua vez, estava estático completamente envaidecido,
somente desejando mais. Mas nada se via, ela realmente o deixou
com água na boca, com uma vontade imensa de tocar aqueles seios
pontudos. Continuou observando o apartamento dela, talvez ela
voltasse, mas nada, o desejo ficaria somente guardado na mente, e
provavelmente ela não voltaria a se expor daquela maneira. Felipe
estava totalmente absorvido com o jogo de sedução da vizinha,
sentiu ligeiramente o amor crescer, ela sabia verdadeiramente como
encantar um homem. Por mais que ele insistisse em revê-la, ela não
voltava, pensou ele que talvez fosse um único agrado ao voyeur que
dedicava tanta atenção ao seu chamado de sereia.
Saudoso com o que vira Felipe continuou bebendo a cerveja,
pensando no quanto aquela garota parecia ser especial.
Pensamento de Felipe:

É, Grace, declaradamente você não faz mais parte da minha vida.


Pois se eu conseguir ganhar essa moça não haverá mais nem
carinhos nem ternuras entre nós.
Por que você não consegue ser assim? Às vezes eu penso que
por você ser profissional deveria saber seduzir um homem como
ninguém, mas não, isso você não consegue fazer, veja só o banho
de sedução que essa moça agora deu em você. Com certeza, nem
fazendo seu milésimo programa vai conseguir fazer algo tão
excitante, talvez seja por isso mesmo, por ser uma mulher da vida,
qualquer movimento seu torna-se vulgar, por isso eu aprendi a amar
e a respeitar as mulheres de verdade, são somente elas que
conseguem realmente mexer com a cabeça de um homem.
Mas não pense que ficou livre de mim! Tenho ainda as minhas
dores. Ainda vou desmascará-la na frente de seus pais, suas
mentiras ainda vão cair por terra, você um dia entenderá que tudo o
que eu faço é para decantá-la nos sabores da verdade. Um dia você
entenderá tudo isso, talvez seja porque eu ainda a amo. Será
verdade o que o meu coração disse agora? Será que eu ainda a
amo, Grace? Depois de todo esse encanto da vizinha será que ainda
existe espaço em meu coração para Grace? Talvez sim... talvez
não... provavelmente não.

Felipe aproveitou o tempo que ainda existia na noite que abraçava


o dia para procurar Grace, pensou pausadamente se isso seria certo
ou errado buscar provas de que Grace realmente vivia num mundo
de prostituição. Ele não tirava aquela certeza de que somente os
pais descobrindo e reprovando, ela se tornaria da noite para o dia a
real mulher de sua vida, conseguiria até esquecer aquela paixão
hipnotizadora pela vizinha, mas de uma vez por todas tinha que
tentar colocar Grace nos eixos. Era um motivo que ele tinha para dar
aos amigos a verdade de que Grace aprenderia a viver a vida do
modo como ele via.
Enquanto se preparava para rumar à avenida onde ela costumava
fazer o trottoir, ele sentia uma ponta de dor de saudade, de uma
saudade nunca vivida antes. Ele poderia acusar Grace de tudo, mas
nunca poderia dizer que lhe faltou amor. Às vezes seu coração
derretia e vinha outra certeza na cabeça, a de que nenhuma mulher
o amava tanto quanto Grace, por isso sentia aquela rara vontade de
domá-la, para que ela fosse a mulher que ele tanto desejava, para
um dia, quem sabe, ser o amor de uma vida.
Suas incertezas aumentavam quando sentia que poderia ter a
vizinha como um affaire, e Grace, se acaso conseguisse mudar de
direção, como alguém próximo. Felipe não tinha mais idade para
ficar encontrando gatinhas pela noite, ele sabia que as mulheres não
mais o consideravam como um bambambã das épocas dos vinte
anos. Naquele instante da vida, somente havia em seus caminhos a
vizinha e Grace, a vizinha tinha aquele raro poder de despertar uma
paixão já esquecida nele enquanto Grace o amava como nenhuma
outra mulher. Mas ele poderia resolver esse problema, tentando
mudar a cabeça da namorada, se Grace o amava realmente tanto
assim, com certeza se conformaria entre ele e não entre um dinheiro
fácil, a principal dificuldade estava em tentar sentir algo por uma
mulher da vida, pois em nenhum passado tão remoto ele esperava
estar com uma mulher nessas condições.
Felipe, com a cabeça em turbilhão, resolveu acabar com aquela
dúvida, agir de forma drástica era a maneira mais simples de
proteger seu coração. Ele sentia que ainda queria Grace ao seu lado,
mas não mais daquela forma, usando um namoro para se esconder
atrás de mentiras.
A certeza de mudar tudo estava enraizada, apagou todas as luzes
do apartamento antes de sair, decididamente desceu as escadas
com aquela vontade de estragar os falsos caminhos brilhantes de
Grace. Saiu do prédio com pensamentos revolucionários a respeito
do relacionamento dos dois. Sereno, caminhou até o ponto do ônibus
mais próximo de sua casa, a vontade de que a verdade fosse
extraída era um risco que ele teria que correr, sabia que depois do
que estava pensando em fazer, talvez nunca mais Grace o veria
novamente. Mas já estava decidido, ou era tudo ou era nada.
Esperou o ônibus que o levaria para a avenida Afonso Pena com
uma paciência lógica, não havia como errar, ele sabia que Grace
estava novamente nas ruas para ganhar a riqueza da ilusão.
Enquanto os instantes se passavam ele já pensava na possibilidade
de perder o amor de Grace para sempre, ela tinha aquele carinho
especial que ele nunca recebera de outra mulher, às vezes pensava
que talvez fossem carinhos falsos de quem somente deseja alguém
para se guarnecer de uma vida mundana.
O ônibus encostou na frente de Felipe, o único que esperava, não
havia muitos passageiros naquela hora da noite. Entrou, pagou a
entrada e sentou nas últimas fileiras de assentos enquanto o
motorista continuou a rotina de roncar o pesado veículo possante.
Durante a viagem, Felipe às vezes pensava em desistir, talvez
estaria indo longe demais, talvez estaria estragando a vida de
alguém, mas em seu coração havia uma certeza ríspida como a
espada, o que ele estava fazendo era certo mesmo que machucasse
Grace. Era uma atitude agressiva, mas o coração não conseguia
pesar o certo do errado. As dúvidas viajavam também, porém sua
consciência mandava fazer aquilo, qualquer outro homem no lugar
dele faria a mesma coisa, proteger sua mulher era o princípio mais
essencial de sua couraça de sentimentos.
Aquela ponta de ciúmes sempre aflorava no peito quando percebia
qualquer homem entrando naquele ônibus rumo àquela avenida. Era
como se todos ali presentes somente quisessem mergulhar seus
prazeres sórdidos na paz de uma vida tão sonhada. Alguns homens
iam entrando e sentando enquanto Felipe deferia olhares carregados
de ira. Não havia motivos para tal, mas ele ficava ignorante quando
se tratava de sua mulher, mesmo sendo um casal de namorados
recém-brigados ele ainda mantinha seu ímpeto de posse sobre ela,
não seria qualquer briguinha que cancelaria seu controle sobre ela,
porque, para ele, no amor apenas existiam pausas, pois tanto a vida
de um como do outro ainda se uniriam, ele não sabia como, mas o
primeiro passo deveria ser dela, não havia como ele aceitar aquela
tolice de viver ao lado dela como uma espécie de mais um
acompanhante, a vergonha dos amigos era sempre mais forte em
suas decisões.
Por que Felipe então procurava aquela reaproximação com
Grace? Se o sol parecia despertar para ele aquecendo um coração
que já estava frio, então era aquele hálito de emoções, era a moça
da janela. Muita gente reprovaria aquela sua atenção exagerada por
alguém que nem se sabe o nome, como se afastar da verdadeira
companheira, da mulher que realmente se vive junto, para enamorar
o longínquo, o quase impossível ou a ilusão. Mas a relação de Felipe
já estava desgastada há muito tempo, por beijar uma flor que estava
no canteiro de todos. Ciúmes, esse era o principal defeito normal de
Felipe.
Em todo tempo da viagem, Felipe pensava na vida, uma reflexão
rotineira quando estava no ônibus, pensava em se alegrar se acaso
não encontrasse Grace na avenida da luxúria, aí sim, ele a
procuraria realmente para reatar o namoro. Era uma pequena
esperança que brilhava em sua noese, não encontrar Grace na
avenida seria a chance que pedia ao coração para tratar Grace como
devia. Mas era somente mais uma esperança vã que nunca tomaria
conta de seus pensamentos, pois a certeza da libertinagem da
namorada estava clara em sua percepção.
Enfim o ônibus foi chegando próximo ao ponto, Felipe levantou
esquecendo-se das imaginações, programando a cabeça para o pior,
era mais fácil acreditar na vontade ímpia de Grace, ela nunca ouviria
qualquer palavra para deixar a concupiscência. Ele deu o sinal de
parada, alguns segundos depois o ônibus parou, ele desceu, de peito
aberto, respirando aqueles ares de antro, volvendo a cabeça para
encontrar alguma morena de traços delicados. Mas nada, talvez
fosse a chance que pedia para se alegrar, porém ainda era muito
cedo para recolher a esperança no coração. Procurou caminhar
mais, a certeza ainda cutucava sua consciência, ele tinha que tirar
tudo a limpo. Sempre de atenção desperta ele volvia a cabeça para
todas as direções da avenida. Em alguns momentos, pensava que
talvez não, talvez ela tinha realmente esquecido a vida perdulária
para esperá-lo. Enquanto caminhava na avenida e não encontrava
Grace nos principais pontos onde ela ficava, sua alma sorria, talvez
fosse uma felicidade que estava guardando para os dois. Mas quem
disse que a certeza deixava de cutucar seu livramento? Pois sim,
seria um livramento, se ela realmente tivesse deixado os programas
ele correria naquela noite mesmo para o apartamento dela para
propor uma vida nova. E de tanto procurar chifre na cabeça de
cavalo, ele avistou de longe uma morena de cabelos lisos, o
desapontamento voltou a apertar o destino, novamente Grace estaria
naquele mundo sanguirrubro do sexo.
Não dava para ele ver direito, pois a moça estava de costas e do
outro lado da avenida, ele tinha que tirar a prova dos nove, seu
coração não aceitava aquela afronta da namorada. De longe, então,
ele marcou o rumo onde a moça estava e partiu de passos decididos
e apressados, atravessando a avenida sem dar muita importância
para os automóveis todos cheios de homens fanfarrões e bêbados.
Quando chegou perto da moça ele colocou a mão direita sobre o
ombro dela:
– Grace, você ainda está nessa maldita vida? – gritou ele, como
quem tinha direitos sobre ela.
– Cara, você está louco!? – disse a moça, ao virar-se na frente
dele.
Surpreso, a única coisa que lhe cabia era um leve pedido de
desculpas:
– Desculpe-me, por favor...
Cabisbaixo, a reação de Felipe era um conformismo contente,
afinal Grace realmente não se encontrava na avenida. Ao mesmo
tempo que aquilo frustrava sua certeza convicta também alegrava o
coração. Haveria verdadeiramente uma chance entre os dois? Ele
procurava acertar na verdade obumbra, mas não a encontrava de
forma alguma, as cores matizadas da noite pareciam ter perdido
Grace.
A semelhança entre os dois era um acaso, cada um vivia de
maneira diferente sobre o aspecto da vida, não havia semelhança de
gênios, mas havia semelhança de virtudes amorosas, pois, mesmo
Felipe não amando-a como ela queria, o amor dela fazia com que ele
se sentisse completo e era aquela atração de sentimentos opostos
que fazia ele ainda acreditar numa possível vida a dois.
O constrangimento derrotava as injustiças de Felipe, aquela
saudade prazerosa voltava a tomar conta de uma vontade imensa de
amar Grace. Se ela tivesse realmente esquecido de viver aquela vida
à margem, então seu coração estava livre, Felipe começou a respirar
os ares de uma saudade completa.
Num dado instante em que Felipe já se preocupava em voltar para
casa com aquela insatisfação perfeita, avistou de longe uma linda
morena curvar o corpo sobre o painel de um veículo para conversar
com o motorista. Aquilo chamou sua atenção, pois os dotes físicos
da morena se pareciam muito com os de Grace. Enquanto Felipe se
aproximava para perceber melhor a face daquela mulher, seu
coração começou novamente a duvidar da capacidade de Grace. Ela
realmente nunca seria a mulher que destinaria um coração de
candinha para ele. Sim, ele avistou, e era Grace, conversando para
marcar mais um programa na grande cidade. O ódio novamente
rompeu sobre o coração de Felipe, a cólera matizava-se de ira, mais
uma vez aquele ciúme matava suas esperanças. Por mais que ele
pensasse, não havia como acreditar que uma mulher tão formosa se
rebaixasse àquele ponto.
O desespero maior era sentir todos aqueles homens a cercarem
como animais que procuram pelo cheiro estúpido do dinheiro uma
mulher para acalentar suas inseguranças.
Perdidamente ele procurava manter uma postura. Continuou a
observando de longe sem que ela percebesse:
“Grace, eu não acredito nisso! Você está novamente vendendo o
nosso amor”, pensou ele.
Mas tudo estava feito, depois de alguns segundos tentando se
recompor daquela contínua traição, seu orgulho voltou a boiar na
consciência, a certeza brilhava novamente em seus conceitos, ele
realmente tentaria estragar aquela vida de luxúria de Grace. Sem
que ela o visse, ele caminhou para a sombra, escondendo um
coração contrariado, escondendo planos laboriosos contra o sorriso
terno de Grace. Ele detestava aquela vida dela que aprisionava seus
sentimentos. Não havia outra coisa a fazer senão impedi-la de viver
naquela libertinagem que a escondia sob a verdade.
Ele continuou de passos decididos a fazer aquilo que o coração
magoado tanto clamava, para ele, somente seria mais uma reação
normal de um homem sentido, às vezes o pior também aparecia na
cabeça desesperada, mas não, havia ainda um motivo que poderia
alcançar as virtudes de Grace, o mesmo motivo que reacendia suas
esperanças de tê-la somente como sua eterna querida, aquele
motivo que ainda restava em seu coração, um último resquício de
amor.
Felipe caminhava de passos largos subindo a avenida da
prostituição para encontrar um ponto de ônibus. Não havia mais um
motivo para continuar ali se machucando, se martirizando, vendo
aquela mulher que ele destinava carinhos sair com os homens mais
estúpidos da cidade.
Quando chegou perto do ponto, por sua sorte, o ônibus já estava
chegando, ele deu o sinal para a parada e entrou correndo como
quem não aguentava mais os ares daquela avenida. Pagou com o
que ainda restava no bolso, passou pela roleta e procurou sentar nos
últimos lugares para ficar o mais sozinho possível.
Pensar no que Grace estava fazendo era o único motivo para ficar
calado, os momentos de sua vida eram relembrados como
momentos de desar. Sim, ainda havia saudade em seu coração. Mas
como algo poderia dar certo entre os dois? Se Grace anulava a sua
saudade, agredia os seus sentimentos, não era fácil suportar a
distância, porém a vontade de ter uma vida melhor era sempre
desejada.
Pensamento de Felipe:

Grace, um dia você vai sentir a mesma dor que eu sinto. Vá


devagar, garota, e acompanhe o ritmo natural das coisas. Eu sei que
às vezes você chora um rio de lágrimas, mas não é assim que você
vai encontrar as chaves do nosso livramento. Sim, eu sei que às
vezes não sou o que você sonha, mas posso chegar perto se você
conseguir me entender, enfim, conseguirei entendê-la também,
somente as certinhas me encantam de emoção.
Às vezes quero ir para bem longe, para esquecer todos esses
malditos motivos que me prendem a você. Minha defesa, minha
proteção e meu escudo são sempre a minha segunda paixão, talvez
seja você, Grace, porque até hoje o meu coração não conheceu
quem ele ama de verdade.
O ônibus onde Felipe viajava perambulava pelas ruas da cidade
contornando todos os lugares iluminados. Felipe ficava na janela,
pensando no que poderia fazer para ter Grace como realmente
queria, como uma querida candinha que o esperasse todos os fins
de tarde. Ele sentia que ela não era feliz com aquela vida que levava,
pois quando ela estava em seus braços era quando a verdade do
sorriso revelava sua emoção.
Depois de vários minutos rodando, o ônibus finalmente estava
chegando ao ponto onde Felipe descia habitualmente, na porta de
seu prédio. Quando percebeu que já estava na rua de casa, ele
levemente acordou daqueles pensamentos túrbidos, levantou se
apoiando sob o corrimão e repudiou novamente aquela indesejável
vontade de continuar viajando num ônibus solitário que somente
trazia mais lembranças de tristeza e de sentimentos. O ônibus parou
e ele desceu, infelizmente o sentido da sorte não foi encontrado
naquela noite, sua certeza tinha realmente razão, ela estava fazendo
do seu mundo seu palco, debaixo de mentiras escuras das ruas.
Felipe caminhou cabisbaixo trotando tristemente para o prédio, a
vida novamente trazia surpresas desagradáveis. Por que Grace,
apesar de tudo, continuava a vender o corpo? Era o que sua
metralhadora de sentimentos cuspia para fora.
Quando entrou no hall do prédio de acesso às escadas, ele notou
o que andava de errado na sua vida, era a vida difícil que levava,
pois quando um homem leva uma vida difícil, certamente a mulher
que o ama também vive de dificuldade. Aquele ambiente absorto, de
aflatos decadentes, era a imagem do que conhecia, a vida era
predestinada de desilusões para alguém que não vivia num mar de
rosas tão sonhado pelas mulheres. Era assim então, cada um comia
com os dentes que tinha na boca.
Felipe subiu as escadas tentando se acalmar, pois a vida não traria
mais reviravoltas em seu coração, era o que pensava. Enquanto
subia, as mágoas condensavam uma vontade inspiradora de desejar
mulheres diferentes, mulheres que soubessem amaciar o coração
judiado, mulheres que pudessem fazê-lo lembrar do amor juvenil,
vinha em sua percepção a vontade de admirar novamente sua
vizinha. Era sempre assim, quando chegava em casa e subia as
tortuosas escadas a saudade lacerante sobrevinha na cabeça de
rever aquela deliciosa nume de pensamentos amorosos.
Quando abriu a porta do apartamento ele acendeu as luzes da
pequena sala e sentiu aquele desejo tentador novamente ressoar em
seu sangue, o tesão de voyeur, o amor ambicionado e a ilusão lúdica
de sentir o sentimento impossível do ter o compenetrava naquela
visão além das cortinas, além das janelas, de suas janelas nocivas,
que desorientavam seu percurso normal, o habitual, buscar apenas
uma mulher que se ama verdadeiramente, pois aquelas janelas
nocivas o mergulhavam numa dúvida: Grace ou sonhos escondidos?
Sem perder muito tempo diante da janela, Felipe numa vontade
avassaladora abriu as cortinas para avistar a janela de sua vizinha.
Desapontamento, ela não estava lá.
Meneou a cabeça para o lados:
– Droga! – raivou-se Felipe por um instante.
Novamente o desejo que sentia da garantia de ter os olhos dela
somente para si o traía, ela não estava lá como de costume. Seria
fácil descarregar aquela cólera contra os móveis do apartamento,
afinal aquele carinho terno às vezes se mostrava como uma ilusão, e
ilusão era a última coisa que Felipe esperaria de alguém, não havia
mais tempo para ele viver sentimentos juvenis, a única parceira de
um homem, descobrindo o auge da fase adulta, era a segurança de
controlar suas emoções.
Contrariado, procurou algo para relaxar senão poderia perder até a
noite de sono com aquele duplo desapontamento, a namorada que
continuava a fazer programas e a paixão permanente da vizinha que
não saía de seus pensamentos. Foi à geladeira para descer a
cerveja gelada na garganta, seu instante tradicional de momentos de
raiva. Sentou no sofá à frente da televisão com a cerveja em mãos,
iniciando o incontrolável zap, procurando alguma distração ou um
entretenimento imperdível da noite.
Aquele momento estava bem agradável, cerveja acompanhada de
televisão. Para uns seria tédio, mas para Felipe era somente o seu
único instante de relaxamento. E depois de vagar sobre os canais ele
resolveu assistir a um noticiário num programa de fofocas que falava
da vida sentimental de um jogador de futebol.
Entre uma frase e outra ele começou a perder as esperanças num
sentimento sincero.
– Cada Maria-chuteira dessa não vale nem a esperança de um
velho miserável. Fazem suas ceninhas de ciúme somente para um
imbecil jogador de futebol pensar que ela não está de olho no
dinheiro dele. Agora, se fosse comigo, tudo seria ao contrário, os
ciúmes dela seriam para me agredir e não para me apaixonar. Onde
já se viu? Ficar com ciúmes de outras mulheres amantes do imbecil,
sendo que ela é o desejo profundo de todos os outros imbecis desse
país. Hipocrisia é só o que se vê entre essas pessoas... somente
hipocrisia... é como você, Grace! Se eu tivesse dinheiro, você viveria
somente para me agradar, mas como eu não tenho nem aonde cair
morto, você apenas me mergulha num poço de ciúmes infernais –
disse ele, sozinho.
O desejo reprimido não solucionava a indecisão de Felipe:
– Sabe o que eu vou fazer? Uma coisa que já devia ter feito há
muito tempo, ligar para o pai dela, somente ele colocará Grace na
linha. Dessa forma, ela vai aprender que a vida é uma coisa muito
rara para se desperdiçar num desejo tolo pela vida material.
Ele pensou várias vezes antes de pegar o telefone, sabia que o pai
dela era um senhor bastante conservador e que nunca suportaria
saber que a filha era uma acompanhante. Mas, por outro lado,
poderia ser o livramento que ele tanto esperava por parte de Grace,
certamente o pai dela não deixaria a filha viver mais daquela
maneira, e talvez ela fosse embora de uma vez, voltando para a casa
dos pais, porém era um risco que tinha que correr.
Suspirando profundamente, Felipe pegou o telefone, depois discou
número por número, pausadamente, era a última chance que
esperava da vida, ou Grace mudava ou tudo teria um fim. Era
importante para ele acreditar na mudança de Grace, ainda existiam
silvos de carinho tilintante em seu peito, amor sereno, daqueles
amores que não se preocupam para onde a mulher vai ou deixa de ir,
por isso ainda queria ela ao seu lado, do jeito que sempre desejou,
para se sentir completo, sem qualquer tipo de insegurança sobre o
futuro.
Enquanto ele esperava alguém atender ao telefonema olhava para
os arredores sem saber direito o que diria. Até que:
– Alô! Com quem gostaria de falar? – atendeu Virgílio, o pai de
Grace.
– Alô! É o senhor Virgílio? – disse Felipe.
– Sim. Quem é?
– Um amigo distante – respondeu Felipe.
– Como assim um amigo distante? Posso saber ao menos com
quem estou falando?
– No momento isso não é importante.
– Como não é importante? Então vou desligar.
– Espere! Não desligue ainda... sou a pessoa que enviou uma
carta a vocês pouco tempo atrás.
– Ah, é você que fica difamando minha querida filha! Fique
sabendo de uma coisa, se você continuar escrevendo suas cartinhas
idiotas eu vou acabar chamando a polícia – irou-se o senhor Virgílio.
– Mas não são cartas idiotas. Tudo o que estava escrito na carta
era verdade. Sua filha realmente se tornou uma acompanhante em
Belo Horizonte – disse Felipe, ao pé do telefone.
– Como isso pode ser verdade? Por favor, não me ligue mais, eu
tenho o coração doente. Pare com essas brincadeirinhas sem graça.
– Não são brincadeiras. É a mais pura verdade! Sua filha é uma
prostituta!
– O quê? Você deve ser louco, cara! Não vou deixar de acreditar
em minha filha para acreditar num idiota qualquer apaixonado.
– Todas as noites ela sai para esperar os clientes no mesmo
ponto.
– Hei, tudo bem! Mas como posso saber se o que você diz é
realmente a verdade? Pode ser mais um jovem que não conseguiu
agradar a minha querida filha.
– Basta somente você ir próximo ao bingo da avenida Afonso Pena
das dez horas em diante. Você vai confirmar o que eu digo. Ela vem
mantendo essa rotina já faz quase um ano. Não é de se espantar
que o senhor ainda não sabia, ela trata desses assuntos com
bastante sigilo.
– Meu Deus! Não pode ser verdade. Eu não vou acreditar em
você, seu maluco! Está querendo me matar de desgosto?
– Não. Apenas quero que veja com os seus próprios olhos quais
são os estudos de sua filha. Por favor, apenas veja com os seus
próprios olhos.
Nisso Felipe desligou o telefone.
– Alô... alô... alô... – continuou senhor Virgílio no telefone. – Com
certeza deve ser alguém que não gosta da minha filha. Com certeza
deve ser um trote.
– O que aconteceu, homem de Deus? – perguntou senhora
Regina, desesperada, vendo o marido aflito ao telefone.
– Não foi nada! É apenas mais um trote.
– Que espécie de trote? Não me esconda nada, por favor!
– O rapaz que enviou aquela carta agora se manifestou dizendo
absurdos sobre a nossa filha. Eu não vou deixar de confiar em nossa
filha para confiar em um estranho.
– E o que ele disse?
– Disse que nossa filha anda se prostituindo numa avenida famosa
da cidade.
– Como podem falar assim de nossa filha?! Esses rapazes de hoje
em dia estão cada vez mais despudorados. O que você pretende
fazer em relação a isso, Virgílio?
– Não sei. Estou pensando em ir à capital conferir com os meus
próprios olhos.
– Eu não acredito que você possa acreditar num estranho
qualquer, gente que você nem sabe quem é!
– Eu não sei, mas tenho que fazer alguma coisa. Não posso ficar
aqui de braços cruzados pensando que talvez minha filha esteja
vendendo o corpo – irritou-se seu Virgílio.
– Isso é idiotice, Virgílio! Você sabe muito bem que nossa filha
seria incapaz de fazer uma coisa dessa. Quando ela morava
conosco nunca foi de namorar, sempre foi uma menina educada e
prendada. Ela não precisa de dinheiro a ponto de se deitar com
estranhos da rua.
– Eu não sei, mas as palavras desse rapaz pareciam ser bastante
convincentes. Quem sabe talvez não seria por isso que ela parou de
nos pedir dinheiro para bancar os estudos?
– Virgílio, você sabe muito bem que ela está trabalhando num
escritório de advocacia – respondeu com raiva senhora Regina.
– Qual a certeza que nós temos disso? Nenhuma. Grace sempre
foi bastante esperta para inventar histórias. Não quero dizer que seja
tudo isso verdade, mas infelizmente algo anda de errado com nossa
filha.
– Você acha mesmo que isso seja verdade? – disse senhora
Regina, esboçando um contido choro.
– Não sei, mas vamos torcer para que não seja – declarou senhor
Virgílio, ao abraçar a mulher.
– O que você está pensando em fazer?
– Vou viajar amanhã para a capital a fim de conhecer essa avenida
mal falada.
– Você vai ver, Virgílio, que nossa filha não tem nada a ver com
isso... você vai ver.
– Tomara, querida, tomara... – disse seu Virgílio, em tom de voz de
oração.
Os dois foram se deitar assistindo as notícias da noite. Seu Virgílio
marrou o semblante pensando no que não queria acreditar. Para ele,
seria uma espécie de anátema sobre sua família. A fisionomia
carrancuda escondia a vontade de chorar e de se perguntar: – O que
eu fiz de errado, meu Deus!?
Mas não havia caminhos que pudessem explicar aquela condição.
O que penalizava seu conceito próprio de bom pai seria aquela
estratégia sorrateira que Grace talvez estaria agindo sem dizer nada
a ninguém. Às vezes passava em sua cabeça que ela pudesse estar
sofrendo, algo como uma depressão sentimental, mas nada
realmente teria uma explicação razoável. Era como se o peso do
mundo estivesse em suas costas, a dor daquela emoção indesejável
fluía para todos os movimentos do corpo. Sua incerteza crescia no
coração que nunca aceitaria a segunda vida da filha. Talvez o
tormento duraria até o fim. Afinal, Grace era ou não era prostituta?
Sua impressão de pai não descartava nenhuma possibilidade.
Já dona Regina conseguiu dormir com mais facilidade, ela tinha
uma certeza no coração de que a filha era realmente o que ela
pensava. Ela nunca acreditava no revés da sorte, sabia que a filha foi
muito bem cuidada para acabar vivendo da luxúria, da libertinagem e
da concupiscência. Para ela, tudo era bastante natural, pois a filha
era bonita, ela nunca estranharia se um rapaz com dor de cotovelo
tentasse prejudicá-la. Certamente todos aqueles rumores eram
apenas ciúmes de alguém, isso confortaria seu coração.
No dia seguinte, a manhã ganhava seus ares contemplativos na
pequenina cidade do interior onde viviam os pais de Grace, seu
Virgílio e dona Regina. Naquele lugar, a saudade era revisitada pelo
sol que aquecia a simplicidade de pessoas de bem. Aqueles ares do
interior faziam seu Virgílio acreditar que a filha não era nada disso,
pois, nascida ao redor de pessoas simples, mas de caráter, não
deixaria nunca que a filha perdesse a compostura e a consciência,
essas eram certamente as virtudes que ele ensinara à filha.
Dona Regina temia em acordar quando num dado instante
arregalou os olhos e percebeu que o marido não estava do lado. Ao
primeiro instante, pensou que ele acordara antes para regar as
plantas, coisa que fazia todas as manhãs. O dia já pairava nos
espaços da casa, a luz entrava em cada janela para saudar o
sentimento da alvorada de um novo tempo. Entretanto, o novo tempo
já se mostrava carregado de revés, alguma coisa no coração de
dona Regina temia qualquer atitude do marido.
Ela começou a se desesperar quando não conseguiu encontrar
seu Virgílio.
– Virgílio! Virgílio! Cadê você? – gritou dona Regina pela casa.
Depois de tanto procurar, a certeza estabeleceu um vínculo com o
coração temeroso.
– Minha Nossa Senhora, tome conta do meu marido. Ele foi atrás
de Grace. Por favor, minha Nossa Senhora, proteja minha filha e
cuide para que ela seja realmente a garota mais direita dessa cidade.
Grace, eu ainda confio em você! Seu pai vai ter uma grata surpresa
quando descobrir que você sempre será nossa filha querida – orou
dona Regina.
Enquanto isso, seu Virgílio já estava na estação rodoviária,
decidido a descobrir a verdade. Comprou a passagem quando
chegou na estação pensando em aumentar a confiança na filha, pois
ainda havia resquícios de uma verdade que temia em controlar o
coração. Seu Virgílio passeava de um lado para outro dentro da
rodoviária enquanto esperava a hora do ônibus.
De origem humilde, seu Virgílio primava apenas pelos conceitos
que sempre moldaram sua vida inteira: a honestidade, a verdade e
uma vida regada de amor e paz, coisas que pareciam sumir da
cabeça de Grace. Para ele, era importante descobrir a verdade, pois
nunca aceitaria que uma filha sua vendesse o corpo na cidade
grande.
Havia um pequeno público na rodoviária. Olhando nos olhos de
cada um, ele sentia algo de estranho, como poderia as pessoas
serem tão falsas, disfarçando as suas reais angústias? Pois se sua
filha fosse capaz de mentir para ele, o que seria então das pessoas
que enxergava apenas em instantes? Seu Virgílio era assim, de
coração simples, não conseguia ver a maldade das pessoas, mas se
sua filha também participasse dessa falsidade mundana, então ele a
corrigiria, senão, não seria esse mundo que acertaria seus caminhos
para uma mulher realizada e feliz. Alguma coisa em sua cabeça
ditava que uma mulher somente seria realizada se primasse por uma
família, era a única coisa que ele desejava de Grace.
Entre as pessoas que circulavam na rodoviária ele pensava se
seria certo da parte dele desconfiar da filha. Será que ele tinha esse
direito? Afinal, sua filha já era uma mulher crescida. Sim, mas ele
tinha que interferir logo antes que a filha, inexperiente, acabasse com
a própria vida de uma vez por todas, ele era o pai, e se um pai não
protegesse sua filha contra a perdição do mundo então ele não faria
mais parte da vida dela.
Depois de um certo tempo, sentado, esperando a chegada do
veículo, com os pensamentos incomodando seu destino, o ônibus
parou à sua frente. Todas as pessoas que se preparavam para viajar
reuniram-se com suas malas e seus pertences ao redor do veículo
interurbano. Seu Virgílio, já com a passagem em mãos, esperou
apenas o motorista aparecer para entregá-la. De cara fechada, seu
Virgílio passou pelo motorista que estava na porta e entrou
procurando apenas seu lugar para sentar. Cautelosamente, ele olhou
de um lado para o outro, caminhando macio até encontrar o número
do assento. Em seguida sentou-se, procurando acalmar os
sentimentos aflorados, a ansiedade de descobrir a verdadeira filha e
o desespero de não aceitar qualquer futuro vindouro.
Seu Virgílio sentou-se ao lado da janela, acomodou-se logo de
uma forma que conseguisse dormir durante a viagem. Estendeu a
poltrona para espreguiçar, pois não havia conseguido dormir na noite
anterior, sempre pensando naquela real possibilidade da filha ser
aquilo que ele nunca desejou. Sua ansiedade exalava enquanto
todos os passageiros demoravam a guardar suas coisas, isso fazia
com que o ônibus não partisse de imediato para a capital.
Havia um tumulto muito grande do lado de fora do veículo, todos
os passageiros reunidos se bagunçavam para colocar suas malas no
bagageiro. Seu Virgílio assistia a tudo, comodamente, através da
janelinha. Esperar era a única coisa a fazer depois de rezar, rezar
muito, sim, rezar, pois era um momento bastante decisivo de sua
vida, era como se Deus estivesse testando suas qualidades como
pai.
O sol a cada instante já radiava límpido no céu... enfim, estava
chegando a hora do veículo partir.
Todos os passageiros começaram a entrar e a ocupar seus
lugares, a ansiedade de seu Virgílio começou a diminuir quando
sentia que o ônibus finalmente partiria. Continuou esperando os
passageiros ocuparem seus lugares, vários tipos de jovens,
mulheres, senhores de idade como ele, senhoras, mães com o filho
no colo, todas as formas e tipos de gente indo para a capital, alguns
a trabalho, outros por visita e alguns com sonhos, talvez fossem
esses sonhos que iludiram sua filha. Ele não sabia ao certo, mas
desde quando Grace era criança, ele sentia os brilhos e as garras
dela, sentia algo espiritualmente que a filha desejava além do que o
cotidiano de uma vida simples pudesse dar. Aquele pensamento
ficava cutucando suas lembranças, era como se depois que ela
nasceu, tudo como um agouro já caminhava para um lado tortuoso,
para a perdição. Sem nenhum fato concreto ele tentava juntar todas
as ideias. Ele, num flashback da vida inteira, já devia ter notado as
diferenças da filha quando criança para prever aquele futuro
indesejável. Agora, se Grace fosse mesmo o que pensava, então
somente tinha na combustão de emoções a vontade de procurar o
remédio que curasse a filha do submundo do sexo das ruas. Ele
tentava manter o coração afastado dos sentimentos para suportar a
dor de descobrir uma filha diferente daquela que parecia tanto
conhecer.
Todos ocuparam seus lugares, alguns conversavam muito, mas
nada que pudesse tirar a paciência de seu Virgílio, aliás, o que o
incomodava naquele momento era um jovenzinho que sentara ao
seu lado ouvindo música num walkman, que mesmo através de um
pequeno fone tilintava ruidosamente, era como se seu Virgílio
ouvisse um enxame de abelhas voando. Mas era muito pouco para
fazê-lo desistir, buscar a revelação dos segredos da filha era o mais
importante naquela hora.
Todas as pessoas se acomodavam como podiam, muitos
estendiam as poltronas já preparando para viajarem dormindo, era a
única coisa que restava a fazer, qualquer viagem de ônibus é sempre
muito incômoda, pior ainda para seu Virgílio, mesmo sendo um velho
pesado e forte, as câimbras poderiam aparecer durante o percurso,
ele não suportava ficar muito tempo parado, sem se mover.
O condutor do veículo apareceu subitamente tentando reconfortar
os passageiros e depois de alguns instantes entrou em sua cabine.
Algumas pessoas se silenciaram quando o motor começou a ranger.
Seu Virgílio se alegrou, finalmente a viagem começaria. O motor
ainda rangeu por um determinado tempo, até, enfim, o veículo iniciar
uma marcha ré para sair da plataforma.
Seu Virgílio abriu um singelo sorriso ao avistar da janelinha os ares
daquele dia radiante. Ele estava viajando como sempre gostava de
viajar, ao lado da janela para avistar as paisagens, o verde, as roças
e o mato, era sempre agradável esquecer dos grandes problemas
para contemplar o sol rodopiando aparentemente sobre a terra.
Mas de início, a viagem ainda estava na pequenina cidade.
Avistando aquela cidade do interior onde nascera alguma coisa
apertava no coração. Ver as casinhas simples, algumas de tapico,
anulava qualquer vontade de riqueza e prosperidade, algo que ele
temia na filha, que sempre se demonstrava muito ambiciosa, por isso
ligava uma coisa na outra, certamente conhecia os desejos
conspícuos da filha. Às vezes, pela janela, já vinha uma forte
emoção de saudade, um choro contido que ele nunca deixaria
despertar na frente das outras pessoas, sempre mantinha uma velha
tradição do interior de que homem forte não chora.
Mesmo sendo uma viagem temporária, seu Virgílio já sentia as
dores da saudade de sua pequenina cidade que ele tanto aprendeu a
amar, diferente de Grace, que nunca em sua cabeça pensava em se
casar com algum moço da cidade para viver a rotina natural do
interior. Às vezes, quando pai e filha discutiam sobre esses vínculos
com a terra ela dizia: “quem cria raízes são as árvores!”. O que
magoava seu Virgílio profundamente.
Sua única filha era sua única rosa no jardim, por isso temia em não
poder mais falar tão bem dela aos amigos.
Quando o ônibus circulou a praça principal da cidade sua emoção
transpirava junto com o suor, eram as várias lembranças da filha
ainda bem mocinha que saía sempre aos domingos de noite para se
divertir com os amigos e as amigas. Eram saudades de um tempo
que estupidamente não voltava mais, mesmo Grace, naquela época,
sendo uma menininha extrovertida, ele nunca poderia pensar
naquela provável situação. Seu coração orava um não ruidoso, mas
sua razão cuspia um sim incisivo.
Com a mão sob o queixo consumia as vistas da pequena cidade.
“Como minha filha cresceu rápido! Parece que foi ontem... Grace,
ainda quero acreditar em você”, pensou ele.
O ônibus continuou seguindo viagem, passando por pequenas
ruas cheias de comércio. Seu Virgílio saiu até sem se despedir da
mulher, ele tinha que manter sua posição de provedor e pai, pois
dona Regina com certeza temia tudo. Enquanto ele avistava o
comércio local abrindo, firmava seu desejo de trazer Grace
novamente para casa, talvez ela pudesse trabalhar em um daqueles
comércios. Mas ele tinha certeza de que aquilo não seria tão fácil,
porque Grace não tinha vontade nenhuma de viver em sua pequena
cidade.
Aos poucos, o veículo interurbano já estava saindo da
cidadezinha, ganhando a estrada, a viagem se tornaria mais calma
somente com as vistas da natureza ao redor. O jovenzinho que
estava ao lado de seu Virgílio continuava ligado no seu pequeno
enxame de abelhas com canções estranhas, canções de jovens,
modernas, que irritavam os ouvidos dos mais velhos. A viagem
parecia que não seria fácil, o tilintar do walkman do jovem não
deixava o senhor Virgílio dormir.
Mas a vista da natureza estava deslumbrante, era a vida renovada,
era a esperança plural viva, certamente seu Virgílio sentia que
poderia mudar a cabeça da filha. Como Grace poderia disfarçar com
tanta eficiência uma segunda vida tão espurca quanto os rios da
cidade grande? Era tudo que permeava em sua cabeça, indagações
sobre o futuro da filha, cercada de mentiras torpes que apenas
traziam mais perturbações.
No meio da autoestrada, o ônibus voava baixo como um
mostrengo veloz, às vezes seu Virgílio se segurava, com tanto medo
daquela viagem. O vento ressoava ruídos anulados com aquela
velocidade que amedrontava qualquer pequena coragem de seu
Virgílio em viajar.
Enquanto avistava da janela o sol da manhã brilhando
intensamente ele acendia sua percepção.
Pensamento do seu Virgílio:

Pudor, minha filha, pudor, foi a única coisa que eu tentei lhe
ensinar durante todos esses anos. Ainda não consigo acreditar nas
palavras daquele homem. Mas algo me diz que você é assim,
sempre buscando as coisas mundanas como a riqueza e o luxo.
Grace, a vida não pode ser sempre aquilo que a gente deseja. Se
prostituir não vai resolver em nada, não vai trazer a felicidade, o
respeito e muito menos o amor. Espero que aquele pequeno orgulho
feminino tenha deixado minha pequena.
Grace, uma mulher que vende o corpo vende a única coisa que
Deus lhe deu para viver em sonhos, a luz, sem a luz existem apenas
as trevas. Não quero morrer sabendo que não fiz nada para tirar
minha filha da escuridão. Uma mulher quando nasce, nasce para ser
respeitada eternamente, o respeito pode ser uma coisa vã quando os
homens que a cercam apenas lhe dão um preço estúpido do amor,
mas quando um homem a respeita você sente que o paraíso ainda é
possível nesses tempos encarnados de violência e ódio. Será que
você nunca sentiu, durante todos esses anos, o quanto eu busco
proteger sua mãe? É assim quando se ama, o sentimento vale mais
que quaisquer prazeres mundanos.
Não quero vê-la como uma mulher errante, se vendendo em todo
lugar que passa, vivendo ilusões com homens impudicos e
recebendo desilusões tristes, sem conhecer um único carinho que
um verdadeiro homem de caráter pode dar. Pois vários traduzem o
carinho como um afago, um querer bem ou um toque de beijo
açucarado, mas o carinho nada mais é do que viver sentindo uma
atenção esmerada de quem se ama.
O ônibus continuava rasgando aquela manhã ensolarada de
pensamentos indefiníveis, pois seu Virgílio certamente não conhecia
mais a filha, se tudo aquilo fosse verdade. Seu pensamento
cambaleava, ora o que tinha que ser certo ora o que era errado.
Vagar sem conhecer realmente a filha que criou depois de pôr no
mundo não trazia nenhum afago contente no coração, pelo contrário,
às vezes aquela dúvida era agressiva, portadora de raiva, de
impotência, por não saber o que fazer no futuro para as coisas
mudarem. Sua paz de espírito estava em desordem. O que imaginar
então se aqueles possíveis erros de Grace fossem parar na pequena
cidade de onde ele vinha? Ele que sempre primava pela decência e
pelos bons costumes das mulheres da cidade. Às vezes pensava
que fosse algum castigo de Deus, mas não podia ser, de forma
alguma, pois sempre respeitava os outros como um bom católico
fervoroso. Realmente, somente poderia ser um espírito maligno que
se apoderou da filha, essa era a conclusão final de tudo, nem as
constantes repreensões que impunha sobre a filha na adolescência
pesava em sua consciência, enfim, somente poderia ser um espírito
maligno e mais nada.
Num determinado instante da viagem, o ônibus entrou num desvio
para chegar a um pequeno restaurante de beira de estrada. Quando
o motorista parou o veículo, alguns se levantaram, mas seu Virgílio
continuou sentado, em seu íntimo apenas havia uma ansiedade
soberba, o desejo de chegar logo na cidade grande.
O motorista abriu a porta da cabine e avisou aos passageiros
sobre a pausa de quinze minutos para um rápido lanche. Muitos, no
corredor, já caminhavam para sair, alguns saíam para o banheiro,
outros para lanchar, e uma mulher com o filho no colo para ninar a
criança. Somente seu Virgílio continuava em transe, como se
estivesse traumatizado, emburrado, não sairia dali por força contrária
nenhuma, já ensaiava na cabeça o que faria com a filha.
Depois de cinco minutos passados, quando notou que era uma
das poucas pessoas presentes no veículo, seu Virgílio sentiu uma
vontade louca de urinar.
De caminhar trôpego, ele foi se arrastando pelo corredor do
veículo até sair, quando presenciou os ares do pequeno local se
lembrou do tempo em que era caminhoneiro e vivia a vida nas
estradas, aqueles eram ares de nostalgia que traziam várias
lembranças, até o tempo em que Grace era uma menininha. Se ele
tinha errado na educação da filha, não sabia, o autoritarismo pareceu
não dar certo, então somente anulando as vontades de Grace
resultaria no fim daquela vergonha paternal.
Demoradamente ele procurava o banheiro do restaurante.
– Por favor, moço, onde fica o banheiro?
– Você segue reto até a primeira porta à direita.
E seu Virgílio obedeceu direitinho, andava novamente respirando
aqueles álgidos ares de estrada, onde qualquer um que desse
informação era mais um amigo, os tempos de nostalgia não
envelheciam nunca em sua cabeça. Quando entrou no banheiro,
deparou-se com sua imagem no espelho de velho pesado e
cansado. Não gostou muito do que viu, saber que já tinha
ultrapassado a meia-idade com poucos fios de cabelo ralo na cabeça
e as vistas de músculos flácidos apenas lacerava os sentimentos no
desespero, mais pelo fato de saber que tudo foi em vão, se
realmente a filha guardava dores escondidas. Nunca foi fácil chegar
naquela idade, pensando que a única filha já estava encaminhada na
vida, na verdade estava se tornando a sua maior vergonha, seu
maior desapego, sua tristeza para desejar o fim.
Deixando com que os pensamentos voassem para longe, seu
Virgílio entrou no cômodo do vaso sanitário, abriu a tampa e deixou
as calças escorregarem. Quando começou a urinar, distraidamente
ele leu uma frase escrita à sua frente que o atormentou no momento:

“Eu tracei uma puta neste banheiro!”

Aquela frase tinha gosto de morte, era o primeiro desejo que


vinha-lhe na cabeça. Ele não acreditava naquela perseguição de
acasos. Um desespero estava contido na garganta:
“Não pode ser possível! Minha filha não é dessas”, pensou.
O sentimento lhe amargurava somente de pensar no quanto a vida
desprezava esse tipo de mulher, mulher assim, pensava ele desde
garoto, sempre foi a escória da humanidade, aquilo não poderia estar
acontecendo com sua família tratada a esmero.
Ele lia e relia a palavra “puta”, a palavra lhe parecia mais com
agulhas ácidas no coração, perdera aquele real sentido de que puta
era somente uma moça perdida na libertinagem sem família que
desse algum tipo de atenção.
“Mas você tem pai e mãe, não é, minha filha?”, perguntou em
pensamentos. “Não é verdade? Diga para o papai, não é verdade?”
Ele perdurou por demasiado tempo à frente da parede escrita,
ficou fazendo introspecções, indagações e reflexões, mas ainda
havia uma luz no final do túnel, ainda não tinha certeza de nada,
estava caminhando para isso. A verdade que ele mais ansiava em
conhecer era a verdade que a filha sempre apresentou, era de sua
real vontade esperar somente lágrimas de alegria.
– Não, você não é isso, minha filha! – continuou no banheiro. –
Tenho certeza que não.
Ele segurou o quanto foi possível, até que.
– Mas algo no meu coração diz que é verdade! – chorou
desesperadamente.
Os quinze minutos já tinham passado, o motorista, preocupado,
procurava um último passageiro que não havia entrado no ônibus,
daí resolveu entrar no banheiro.
– O ônibus já está partindo! – gritou o motorista no banheiro do
restaurante.
– Eu já estou indo.
– Rápido, por favor! Quando eu disse quinze minutos eram
realmente quinze minutos, e contados. Por favor, não me faça perder
a hora. Também sou pago para isso.
Com uma lágrima ainda corrente no rosto, seu Virgílio suspendeu
a calça, depois foi para o espelho para enxugar as lágrimas na pia.
Não era certo viver emoções de traição naquela idade, mas as forças
do acaso são quase sempre impossíveis de se remediar. Enquanto
lavava o rosto tentava buscar direção para os sentimentos.
“Se verdade ou não, Grace, você vai voltar para casa”, pensou ele,
decididamente.
Bem distante, o velho Virgílio ouviu o ronco do motor do ônibus,
parecia estar partindo, foi quando decidiu apertar seu passo
cansado. Saiu do banheiro sem ter ainda abotoado as calças,
quando deparou com o ônibus quase partindo ele aborreceu-se:
– Espere! – gritou ele, levantando os braços.
O motorista parou o veículo e cruzou os braços esperando seu
Virgílio enfim chegar. Seu Virgílio, por sua vez, caminhou numa
pressa cambaleante, demonstrando-se muito nervoso com a atitude
do motorista.
Depois de muita espera ele chegou ao ônibus à frente do
motorista.
– Como pode uma coisa dessa!? – raivou-se seu Virgílio. – Não se
respeita mais os mais velhos em nenhum lugar?
– Meu senhor, eu não posso esperar por ninguém uma vida inteira
– retrucou o motorista. – Eu tenho horários para cumprir.
– Ora essa! Você trate de me respeitar. Quando você ainda
urinava na cama eu já pegava carreta pesada. Não é possível
esperar pelo menos alguns minutinhos?
O motorista acabou não mais insistindo naquela discussão tola.
– Tudo bem, meu senhor, entre e vamos embora.
Sentindo a conformidade do motorista, seu Virgílio entrou, subindo
com dificuldade, depois passou pelo corredor olhando nos olhos de
cada um dos passageiros que reprovavam o rancor do velho pesado.
O andar trôpego perdurou até ele ficar de frente ao garoto que
estava ao lado, sentado no banco do corredor. Ele olhou fixamente
no garoto, que continuava atento às músicas do walkman sem se
importar com a cara feia do velho cansado.
– Menino, por gentileza, você poderia me dar passagem? – pediu
seu Virgílio.
O garoto sem ouvir nada continuou a balançar a cabeça,
totalmente envolvido com os sons do pequeno aparelho, nem
percebia a presença de seu Virgílio.
– Menino, vai me dar passagem ou não?
Continuou delirante no radinho, desprezando totalmente as
vontades de seu Virgílio. Foi o momento certo para seu Virgílio rumar
um chute na canela do garoto.
– Ai! Ficou maluco, vovô? – resmungou o garoto.
– Respeite-me, seu moleque! Eu não sou seu avô. Vai me deixar
passar ou não?
– Vai, passa logo de uma vez!
– Obrigado.
– Cada maluco que me aparece.
Seu Virgílio se acomodou quando o ônibus já entrava na
autoestrada novamente para seguir viagem. Todos os passageiros
silenciaram, muitos por tentarem dormir, pois a arma para combater
uma longa viagem era dormir. Mas o sol radiante convidava os mais
atentos para admirar uma paisagem paradisíaca da natureza, nem o
dinheiro era capaz de comprar aquela imagem de vernais respirando
os ares do dia. Seu Virgílio era um desses passageiros que
gostavam de viajar na janela para tentar romper aquela percepção
que os dias presenteavam.
Muitos anos já haviam passado na vida do pai de Grace, seu
andar cansado demonstrava a idade avançada, o rosto marcado com
os sulcos do tempo era a prova de velhice madura. Logo, para seu
Virgílio, era importante saber que a vida tinha seus limites, ela não
duraria para sempre, então tentava aproveitar os instantes que a
natureza tão próxima de Deus o brindava.
Enquanto acompanhava a beleza do sol nascente ele perdurava
em suas imaginações de paz para a filha.
Pensamento do seu Virgílio:

Querida filha, se tudo realmente for verdade, não sei o que vou
fazer, mas certamente ao menos pensarei em levá-la para a nossa
casa, para voltar a reaprender como se vive em família para um dia
descobrir como seus olhos devem enxergar uma luz que acende o
desejo de toda mulher, primar pelo decoro por saber que um dia será
esposa e mãe.
Grace, tenha a certeza de uma coisa, você está assistindo uma
vida irreal, uma vida que nunca pode ser vivida por uma mulher
direita, pois você foi o sonho mais aguardado de sua mãe e meu. Por
que não nota qualidades autênticas em sua mãe? Seria bem melhor
do que conhecer as falsas qualidades dessas pessoas arrogantes
das revistas de espetáculo. Sim, foi isso que estragou sua verdadeira
personalidade. Grace, essas pessoas não prestam, apenas induzem
ilusões em nossas cabeças. Será que até hoje você não sabe que o
sexo não foi feito por Deus para ser idolatrado? O sexo foi feito para
empatar o homem e a mulher na busca da felicidade. Deus! O que
eu fiz para não dizer isso a ela antes? Quantas semanas se
passaram entre eu e Grace? Mas nunca tive coragem de conversar
sobre o que é ser uma mulher de verdade. Talvez assim ela
descobriria o que realmente um homem deseja de uma mulher. Oh,
Deus! Mas o tempo não pode voltar, porém eu ainda sou seu pai, e
tenho como dever iluminar seus caminhos.

Aos poucos, lado a lado de pensamentos túrbidos, ele foi


adormecendo, a viagem era cansativa, dormir parecia ser a melhor
coisa a ser feita naquele instante.
O médico já havia lhe receitado descanso pleno sem
preocupações nem aborrecimentos, mas quando se tratava da filha,
seu Virgílio não media esforços para ajudá-la. E era o que ele estava
fazendo mais uma vez, procurando empurrar todos os entraves na
vida de Grace. Para ele, todo pai deveria agir daquela maneira,
mesmo que não tivesse condições financeiras nenhuma, deveria ao
menos abrir os olhos e indicar onde a luz brilha intensamente.
Alguma coisa seu Virgílio já pressentia, era como se esperasse
que a qualquer dia os problemas desabariam, pois a fase
adolescente da filha passara muito rápido e com poucas dificuldades,
parecia que todos aqueles anos se descontavam agora.
Seu sono perdurou ainda por muito tempo até acordar com o sol
forte do meio-dia. Mesmo com aquele sono breve ele ainda sentia os
ossos da perna doendo, dormir de mau jeito não foi como aproveitar
qualquer tempo de sono. Às vezes virava as pernas para um lado,
depois para outro lado, mas ainda sentia um formigamento
queimando, o espaço que ele tinha na poltrona era muito pequeno
para o seu corpo pesado e largo, para qualquer um ele aparentava
ser um grande fazendeiro, por aparentar ser um velho grande e
saudável de áurea, mas não era o que realmente ocorria, seu Virgílio
estava cansado com a força dos anos e seus membros atendiam
com muita dificuldade às ordens do cérebro.
Bem despertos, seus olhos estavam radiantes com a imagem da
cidade grande, tudo parecia ser muito grandioso naquele momento.
Ao mesmo instante que se alegrava ele lamentava, era essa a
mesma cidade que produzira sua filha para um possível caminho
obscuro da vida. Ele baixava seus pensamentos maduros sobre cada
vista de fora, seja em um transeunte, em uma fábrica, em um prédio
ou em um mendigo debaixo da ponte. Esse mendigo lhe despertou
uma mágoa atenta, talvez seria esse o caminho de sua filha, pois
seu Virgílio era determinante em seu caráter, certamente se alguém
trilhava o caminho da escuridão cada vez mais estaria longe da luz.
Mas ainda não era para tanto, ainda havia tempo para recuperar a
percepção da filha.
O momento era de plena admiração com aquela cidade que ele
não visitava há muito tempo.
“Como esta cidade está grande! Cada vez que venho aqui parece
que ela dobrou de tamanho. Da mesma beleza que o homem produz
o fascinante também produz a miséria. No fundo do meu coração
esta cidade não consegue me enganar, ela se alimenta dos sonhos
dos nossos filhos para depois vomitarem suas ilusões. Nunca gostei,
não gosto e nunca vou gostar desta cidade. O que ela faz com minha
filha é imperdoável”, pensou seu Virgílio, enquanto avistava a cidade
pela janela.
De tanto avistar uma admiração falsa daquela cidade ele sentia a
arrogância da arquitetura, parecia que era feita para uma multidão
saber e conhecer quem verdadeiramente é o verme e quem é o
cidadão. Apesar de ser um velho provinciano, seu Virgílio foi um
homem bastante viajado devido ao trabalho de caminhoneiro,
conhecia quase todas as cidades importantes do país, por isso tinha
um conceito raro de saber julgar as diferenças sociais. No íntimo
lacerado não aceitaria nunca que sua filha fosse devolvida como um
vômito das discrepâncias sociais. A força incontrolável da fé ainda
era sua virtude mais esmerada, se Deus realmente estava pairando
seu poder sobre ele, então tudo seria apenas grãos de areia que
rolariam nessa tempestade.
Aos poucos, o veículo foi chegando à rodoviária, seu Virgílio não
interrompia sua afobação para sair e buscar a verdade de qualquer
maneira. Seus colegas de viagem se reuniam com sorrisos abertos,
ansiosos para abraçar a cidade, uma vontade normal para quem
chega sempre bem disposto, seja para encontrar um parente, seja
para trabalhar ou estudar.
Finalmente, depois de horas rodando, o ônibus estacionou na
plataforma, vários já se levantaram para congestionar o corredor de
saída, seu Virgílio, tentando controlar a ansiedade, procurou ser o
último a levantar para sair, nem aqueles ares refrescantes e
matutinos despertavam seu desejo de sair logo, esperar era o seu
primeiro desejo, desejo da experiência, experiência da esperança.
Ele apenas estava protagonizando aquele destino, mas de uma
forma serena, calma, não poderia colocar suas descobertas sobre a
filha em risco, então tinha que ouvir apenas a tranquilidade da
esperança; esperança de conhecer a mesma filha que foi morar
longe de casa.
Quando todos os passageiros já estavam fora do veículo
esperando a retirada de suas bagagens foi o momento em que seu
Virgílio caminhou para sair, sem precisar de nenhuma ajuda, ele
iniciou seu passo trôpego, desceu os degraus do ônibus e abriu os
olhos esperançosos para aquele dia límpido e radiante. Dessa vez
era certo, a cidade não esconderia mais os segredos de sua filha, ou
ela era a mesma garota amorosa de antes ou não.
Caminhou de olhar sorrelfo através da rodoviária. Num breve
momento, sentiu uma ligeira fome, que não seria tão difícil assim de
sanar devido às várias lanchonetes que haviam ao redor.
Em uma dessas lanchonetes seu Virgílio parou:
– Hei, moço! Eu quero um salgado, por favor – pediu ele, com um
ar de senhor pacato.
O rapaz do balcão atendeu ao pedido entregando o salgado e um
frasco de pimenta, depois ficou parado à frente de seu Virgílio como
quem esperava uma pequena conversação.
– Moço, você conhece um pequeno hotel baratinho aqui por perto?
– Conheço sim, senhor. Têm vários aqui perto, mas o mais em
conta é o Club Star, logo aqui em frente. Mas cuidado, esse hotel é
bastante carregado de gente da pior espécie – disse o rapaz do
balcão.
– Que tipo de gente?
– Gente de todo o tipo homossexuais, putas e bandidos vindos de
vários lugares.
Novamente a palavra “puta” sobressaltava o coração que nunca
queria acreditar que a filha fizesse parte dessa escória, até o jeito em
que o rapaz falava, condenava seus sonhos paternais escondidos.
Não, verdadeiramente, Grace era da melhor espécie de gente
possível.
– Mas fique tranquilo, é só o senhor ficar na sua sem aborrecer
ninguém – aconselhou o rapaz.
– Como eu não tenho muito dinheiro mesmo, vou ter que ficar em
qualquer espelunca – esclareceu seu Virgílio.
Depois de lanchar, ele pagou e despediu-se do rapaz,
caminhando, acompanhando o vento, cercando a saudade, de passo
em passo manco, foi saindo da rodoviária. Como não tinha nenhuma
bagagem foi mais fácil partir desviando dos vários presentes na
rodoviária.
O tempo já estava marcando, de pensamentos atentos, seu Virgílio
esperava a noite cair, era o momento em que veria a verdade sobre
a filha. O céu ainda estava claro, o bruaá se elevava na multidão,
eram os elementos da confusão caótica da cidade.
Quando saiu inteiramente da rodoviária ele logo de longe avistou o
pequeno hotel onde pretendia passar algumas horas. Um pouco
reconfortado por encontrar o hotel, seu Virgílio encontrou
dificuldades para atravessar uma avenida. Pacientemente, ele
esperou os intermináveis veículos passarem, mas parecia ser quase
impossível transpor o outro lado da avenida, realmente ele nunca
aprenderia a viver naquela imensidão de gente.
Num dado momento ele tentou atravessar. Não demorou muito
para desistir.
– Sai da frente, velho maluco! Quer morrer? – retiniu um motorista.
Seu Virgílio voltou assustado para o lado de onde estava, cada vez
mais aborrecido por não ansiar nenhuma possibilidade de se mover.
Alguma coisa sempre desagradava seu Virgílio na cidade, a falta
de respeito com os mais velhos, porque no interior a velhice é vista
com sabedoria, o que nunca acontecia naquele inferno, um
formigueiro de gente buscando tudo o que seja em vão. E a mágoa
poderia tomar conta de seu coração, a mágoa de ver aquela cidade
ensandecida mergulhar a filha nos sentidos miseráveis que nunca
sumiram em lugar nenhum. Proteger a filha, essa era sua função
naquela breve viagem, pois seu amor paternal era indecifrável, sem
comparações com qualquer outro sentimento.
Mas seu Virgílio não desistiu de vez e insistiu em atravessar a
avenida, só que dessa vez procurou correr como nunca, mesmo
numa corrida manca ele passou para o outro lado, quase foi pego
por um automóvel. Mas enfim, ele chegou, ergueu a cabeça e
constatou que realmente estava diante do pequeno hotel que
procurava. Entrou, arfando com dificuldade e com o suor
umedecendo a camisa, não era a todo instante que seu Virgílio tinha
o costume de correr tão afoito de um lado para o outro. Quando
diante do balcão do hotel ele chamou o atendente, as luzes se
apagaram pela metade, pois o sol estava escaldante. Um moço
aparentando ter uns vinte anos de idade apareceu na sua frente para
lhe receber. Realmente o prédio era como o moço da lanchonete
disse, totalmente desprovido de luxo, bem simples, em alguns cantos
quase sujo, o prédio era bastante antigo, mas não havia outro jeito,
ele não tinha como escolher, era esse o hotel onde passaria o tempo
até sair à espreita da filha. A noite fugitiva de acasos aos poucos
ansiava o retorno.
Tentando ser educado o moço recebeu seu Virgílio.
– Então? O senhor vai querer um quarto? – disse o moço.
– Sim. Vou querer sim, meu filho. Se fosse possível, eu gostaria de
ficar com o quarto mais modesto, não tenho muito dinheiro, por isso
qualquer coisa está valendo, vou ficar somente uma noite mesmo –
disse seu Virgílio.
– Então me acompanhe, por favor.
– Devagar, você sabe, estou muito velho para subir escadas de
qualquer maneira, acho que vou precisar de uma ajuda.
O moço atendente segurou os braços de seu Virgílio firmemente
para coordenar a subida dolorosa da escada. O passo manco movia-
se lentamente, uma vez um pé outra vez outro. As escadas de
madeira estavam bastante roídas por cupim, em cada passo de
ambos ouvia-se um tec-tec que fazia parecer que tudo desabaria em
instantes. Seu Virgílio foi levado pelo braço, subindo bem lentamente
as escadas que chegavam até o andar de cima numa forma de
espiral. Chegando ao quarto o moço soltou os braços do velho,
despreocupando-se com os cuidados que seu Virgílio necessitava.
Tentando disfarçar a sujeira e o cheiro de mofo do lugar o
atendente abriu a porta do quarto com um sorriso enganador.
– É aqui! – anunciou o moço.
Quando esticou o pescoço para ver o quarto, seu Virgílio se
arrepiou com o estado de descaso em que o lugar se encontrava.
– Nossa! Mas precisa ser um quarto tão ruim assim? – perguntou
seu Virgílio, estarrecido.
– Com esse preço, você esperava o quê?
– Mas tem até barata andando pelas paredes!
– Senhor, não vou ficar aqui discutindo, esse é o quarto, você fica
com ele se quiser. Quanto às baratas eu posso bater um inseticida
mais tarde.
– Não precisa! Vai acabar ficando pior do que está.
Sem muitos rodeios, seu Virgílio sentou na cama que cheirava
mofo tentando se acomodar e descansar as pernas doloridas da
viagem. O cansaço sempre seria fácil de vencer enquanto a
preocupação maior fosse a filha, era por isso que ele estava ali,
tentando conhecer a verdade para descansar a consciência numa
realidade, seja afável ou dura, mas numa realidade, era somente
isso que importava.
Depois de convencer seu Virgílio de ficar com o quarto, o moço foi
caminhando para voltar ao balcão, até que:
– Hei, filho! – chamou seu Virgílio.
– O que foi?
– Você sabe como faz para chegar na avenida Afonso Pena?
– Sim, é fácil, mas é melhor se você ir de táxi, pois o senhor, frágil
desse jeito, indo até lá, pode acabar se perdendo na cidade. Você
sabe! Lá é um lugar de muita perdição.
– Era sobre isso que eu queria saber! A que horas as moças
costumam aparecer?
– Às oito horas da noite... Mas, que mal lhe pergunte. O senhor
não acha que está muito velho para ficar de safadezas? Aliás, nesse
quarto, nenhuma mulher vai ficar com você. Garanto outros quartos
melhores.
– Respeite-me, rapaz! E fique sabendo que ainda tenho idade para
dar no couro. Ainda não morri.
– Tudo bem, não está mais aqui quem falou. Quando precisar de
alguma coisa, qualquer coisa, até mesmo mais informações, é só
mandar me chamar.
– Pode deixar... Chamo sim.
O moço logo foi para o andar de baixo para continuar na portaria
do hotel depois de deixar as chaves do quarto com seu Virgílio.
Mesmo com o dia marcando quase doze horas da manhã seu
Virgílio pouco sentia fome, pois o salgado ainda o estava saciando,
mesmo acostumado a comer o almoço preparado pela mulher nessa
hora, seu único anseio era fazer o que tinha que fazer desde quando
decidiu chegar na capital.
O sol atravessava a janela, brilhando o chão do quarto, talvez
fosse uma luz que poderia esclarecer as ideias de seu Virgílio, ele
estava precisando, até o dado momento não saberia o que fazer se
realmente descobrisse que a filha era prostituta. Uma confusão de
sentimentos misturava-se no coração, ainda precisava sanar aquela
dúvida amarga. Ele estava claramente num processo de reflexão,
tirou os sapatos e os guardou bem juntinhos embaixo da cama.
Estava sempre de cabeça serena para os sentidos não rodopiarem
para o lado errado, pois se descobrisse a falsidade da filha, talvez
fosse capaz de tentar bater nela. Repentinamente, somente havia
uma coisa a fazer, rezar para que tudo fosse a maravilha que
realmente aparentava, orar para que a filha trilhasse um caminho
certo para a vida.
Ele agachou com os joelhos sobre o chão e os cotovelos sobre a
cama, sempre com as mãos unidas, parecia que dessa vez somente
uma oração iluminaria seu coração.
– Meu Deus, o Senhor sabe muito bem que não sou homem de
ficar reclamando e nem de ficar pedindo, mas com o Senhor eu sei,
posso receber suas graças. Por favor, meu Senhor. A única coisa
que lhe peço é para que a verdade seja a única coisa que sempre
conheci, a de que minha filha sempre foi honesta e direita, isso é
tudo o que há de mais importante para mim. Mas se acaso ela for
aquilo que não espero, então eu peço que o Senhor me livre desses
sentimentos de valentia em meu peito. Eu deixo em suas mãos
misericordiosas o futuro de minha filha.
Depois da oração, seu Virgílio se sentiu mais forte, a preocupação
pela filha fora aliviada, sentiu que encontrara a força necessária para
enfrentar qualquer adversidade.
Como não havia mais nada para fazer, ele resolveu tirar um
descanso até a hora de sair, pois não havia conseguido dormir tão
bem no ônibus como queria.
Ele foi até a porta e começou a chamar o atendente do pequeno
hotel.
– Ô moço! – gritou ele pelo corredor.
– Pode falar.
Apesar de o hotel ter andares na sua constituição, o lugar era bem
compactado, para não dizer pequeno, dava para ouvir os dois
dialogando claramente.
– Eu vou dormir e gostaria que você me acordasse às sete horas
da noite. Tudo bem?
– Sem problemas, chefe.
– Obrigado.
Atenciosamente, seu Virgílio fechou a porta do quarto e se
preparou para deitar. Antes ele bateu com as mãos sobre a cama
para tirar a poeira mal cheirosa que havia. Depois estirou-se sobre a
cama, espreguiçando para esticar os ossos doloridos pela câimbra
por ter ficado tanto tempo sem se movimentar no ônibus. Quando
baixou a cabeça sobre o travesseiro sentiu que aquele cheiro
amargo dos lençóis ainda não havia saído, então esmurrou o
travesseiro várias vezes, somente assim ele pôde criar coragem para
dormir como devia. Brevemente, pensando que agora estava
dormindo sem a mulher depois de vários anos, sentiu uma saudade
do calor da senhora companheira, era essa saudade que sentia que
ele tentaria mostrar para a filha, o quanto era bom ficar somente com
quem se gosta verdadeiramente.
Aos poucos, seus olhos marcados pelo tempo foram se fechando,
o sono era inevitável, era de uma pequena preguiça que ele estava
precisando.
Do outro lado da cidade estava Grace, de pensamentos
carregados, sentindo uma força incompreendida para abandonar a
vida degenerada das ruas. Por mais que tentasse disfarçar, era difícil
esconder aquela mentira que tomava conta de sua alma, sentia que
não poderia voltar naquele dia, o horror da alma lacerada pelas
mentiras estava contornando seu caminho. Mas ela já estava na
inércia, atrás de um sonho moldado de lágrimas e dor, então, ela,
mais uma vez, caminhava atrás de um destino já traçado, era sua
única opinião, não desistir do conceito forrado atrás de uma glória
que poderia escapar entre os dedos.
Tudo parecia uma ilusão sádica, ninguém se importava em abrir
alguma porta que traria felicidade, o peso da mentira estava valendo
mais que os seus sonhos, era a primeira vez que ela se deparava
com o medo de uma solidão, e ela conhecia os pormenores de uma
mulher, pois para a mulher a solidão pode ser mais sentida do que
para um homem, porque a mulher vive de amores e de graças.
Somente havia uma coisa que martirizava seus pensamentos. Por
que uma mulher não pode nunca negar as vontades amorosas de
um homem? Mas isso, somente quem poderia responder para ela
era seu pai, um homem que sempre dedicou seu amor de
compleição lívida à mãe de Grace, coisa que Grace nunca
conseguira ver enquanto crescia junto aos pais.
O crepúsculo já radiava róseo no espaço, era a noite entrando
novamente para esconder as vontades daqueles que se permitem
viver da escuridão. Mais uma vez, Grace se preparava para dedicar
seu corpo às ruas, tentando não repetir nenhuma lingerie, foi
escolhendo as peças íntimas, às vezes no telefone a combinar um
horário com Paola. Mas a real vontade era tentar esquecer aquilo
que parecia ser mais um vício, cada noite era um tempo convidativo
à concupiscência. Toda noite ela pressentia um medo comum, sabia
que a verdade era invasora de suas fantasias, somente essa noite
ela não podia imaginar que seu pai estava à sua espreita, querendo
encontrar as verdades esquecidas.
A noite gradativamente soprava os vernais nas suas etéreas ondas
escuras. Seu Virgílio continuava dormindo, tentando por um pequeno
momento esquecer uma possível verdade que lacerava a alma. O
atendente do pequeno hotel percebeu que a noite estava chegando,
era a hora de acordar o senhor vindo do interior, ele não sabia o
porquê que um velho do interior estava querendo conhecer as
avenidas da prostituição na cidade grande. “Mas que seja então feita
a vontade do velho”, pensou ele, todos, inclusive os mais velhos, têm
o direito de sonhar.
O atendente foi então até a porta do quarto onde seu Virgílio
dormia:
– Senhor! Acorde, senhor! – gritou ele, tentando acordar seu
Virgílio. – Acorde! Já são quase sete da noite.
– Tudo bem, já acordei. Obrigado – disse seu Virgílio, dentro do
pequeno quarto, acordando.
Quando acordou, seu Virgílio sentiu aquele inchaço normal de
quem dorme durante o dia. Apenas abriu os olhos para avistar que a
escuridão permeava os quatro cantos do quarto. Ainda existia uma
força que impedia os membros de seu Virgílio de se levantar, ele
ainda não havia descansado o quanto queria, mas a hora chegou,
ele tinha que ver com os próprios olhos, ver a confirmação do que
temia. Numa reação surpresa ele levantou com uma fé de um pai
contrariado, acendeu a luz do quarto e começou a repensar no que
deveria fazer para chegar à avenida Afonso Pena. Aos poucos, seu
corpo compensava o tempo descansado, já estava certo do que
faria. Para começar, se vestiu e se calçou, algo de ruim dizia em seu
coração que a filha estava mesmo naquele mundo degenerado das
ruas. Enquanto se aprontava, tentava espantar aquele mau
presságio.
Ele não queria aceitar que aquele medo tomasse conta da sua
sorte.
“Não! De maneira alguma, minha filha não é isso, tenho certeza
que não”, pensou ele.
Depois de muitas orações ele deu uma última olhada no quarto
para enfim sair. Quando fechou o quarto, o vento da porta parecia
trazer um revés da sorte, o medo ainda pairava em seus
sentimentos, parecia ser um caso de polícia, mas não era, sua filha
já tinha idade suficiente para escolher o que queria da vida. Quando
ele lembrava disso seu coração era mais remoído ainda, aquela
impotência de estar sozinho sem poder fazer nada era ainda mais
frustrante.
Mas, enfim, somente se encontra a sorte se encarar o azar, e foi o
que ele fez. Deu as voltas na chave. Depois de fechar a porta do
quarto ele caminhou no pequeno corredor do hotel, aquele início de
caminhada parecia colocar seu coração na mão. Fazia de tudo para
evitar ver a filha vestida vulgarmente de qualquer cor nas avenidas
do sexo.
Controlando o passo cambaleante e o pensamento, seu Virgílio
ainda procurava informações com o atendente.
– Amigo, qual ônibus que eu pego para chegar na avenida Afonso
Pena? – perguntou ele.
– Senhor, você ainda está pensando em procurar a avenida do
sexo? Não acha que está um pouco velho... – disse o atendente.
– Eu já falei para você me respeitar. Não tem a mínima ideia do
que eu estou procurando lá!
– Tudo bem. Mas eu tenho certeza do que você está procurando
lá. Quer saber de uma coisa? Não vá lá, eu posso lhe indicar ótimos
lugares onde existem mulheres muito mais lindas. Naquela avenida
somente existe a escória, o mais baixo nível, apenas mulheres
judiadas pela vida.
Aquelas palavras do atendente vieram como ares de profunda
desilusão, foi o que sentiu da filha. Pensou no quanto ela poderia
estar descontente em ganhar a vida num lugar assim, sentia-se
também derrotado como pai, não conseguiu mostrar à filha o
verdadeiro caminho do amor.
Dessa vez, seu Virgílio respirou profundamente, foi o mínimo para
o atendente notar uma tristeza em seu semblante.
– Por favor, eu apenas quero saber qual ônibus eu pego para
chegar na avenida Afonso Pena – disse seu Virgílio.
– É melhor você pegar um táxi, a essa hora o trânsito naquela
região é muito conturbado – aconselhou o atendente.
– Então chame um táxi para mim.
– Pode deixar, senhor.
Mesmo querendo pegar a filha no pulo, sem querer aceitar aquela
situação, ele tinha que esperar, ele tinha que colocar a filha de uma
vez por todas na linha. Resolveu então esperar na simples sala de
estar do hotel, assistindo à televisão, não importava o que estava
vendo, mas se distrair com o tempo.
Seu Virgílio ainda conseguiu esboçar um leve sorriso ao ver um
programa qualquer de televisão. Estava se distraindo no momento de
espera por aquilo que poderia mudar seus conceitos sobre a vida,
ele pensava que as misérias humanas apenas ocorriam com os
outros, com aquelas pessoas da televisão. Aquele trem de
sentimentos vinha ao seu encontro, ele não sabia que atitude
assumir, mas era provável que seria acima de tudo um pai raivoso e
enérgico, eram as únicas armas contra os erros degradantes da filha.
Não demorou muito e em poucos minutos o táxi apareceu na porta
do hotel buzinando freneticamente. Sabendo que era com ele, seu
Virgílio tratou de levantar, a ansiedade tangia-lhe o peito a cada
instante, marcou então o passo enfraquecido, querendo de súbito ver
a filha, ver a verdade ou a mentira, mas ver com os próprios olhos.
Despediu-se do atendente acenando cordialmente.
– Já vai, não é, senhor? – brincou o atendente.
– Meu jovem, eu já falei para você me respeitar – retrucou seu
Virgílio.
– Tudo bem, senhor! Pode falar... e não há mal nenhum nisso... faz
bem para todo homem... até para um senhor de idade... todos nós
somos filhos de Deus.
– Por favor, me respeita, eu sou casado!
– Com certeza já se cansou da mulher e resolveu encarar novos
ares, uma vida nova, repleta de vida das mulheres mais novas.
– Eu não vou mais perder meu tempo com você.
– Pode deixar que eu abro a porta para o senhor.
Gentilmente, e com um sorriso maroto, o atendente foi ajudar seu
Virgílio a abrir a porta:
– Pronto! Respire bem fundo essa noite. Tenho certeza que será
inesquecível. Mas somente vou lhe dizer uma coisa, se algumas
delas cobrar mais de cem não pague, prostituta de rua não vale tanto
assim.
Ouvindo aquilo, a vontade de seu Virgílio era de esganar aquele
rapaz que tentava ser simpático, mas que colocava o dedo sempre
na ferida mais exposta.
Havia uma única reação em seus pensamentos: “como os homens
de hoje se tornaram vulgares, eles não respeitam nenhuma mulher,
todas são apenas objetos de prazer”.
O pensamento defendia seu Virgílio assim, pois a maior vítima da
concupiscência masculina era sua filha. A cada passo a certeza
dominava seu coração, naquele fim de túnel ele veria uma luz ou um
trem vindo em sua direção.
Caminhando com alguma dificuldade ele foi se aproximando do
táxi:
– Posso ajudar o senhor? – perguntou o taxista.
– Não precisa. Eu ainda sou forte o bastante para andar sozinho.
Arfando com dificuldade seu Virgílio entrou no veículo.
Até aquele momento, uma dúvida sobreveio em sua cabeça, que
talvez estaria sendo protetor demais, parecia às vezes loucura,
porque a filha já estava crescida o bastante para resolver seus
problemas sozinha. Porém, seus cansados braços paternais tinham
que tirar aquela história a limpo. Foi pensando assim que a certeza
novamente voltava nos pensamentos, a certeza inebriante e contínua
de que a filha estava realmente mentindo.
O taxista já estava ligando o veículo quando perguntou:
– Para onde o senhor quer ir?
– Para a avenida Afonso Pena, por favor.
Sem dizer qualquer coisa, pois já suspeitava, o taxista partiu com o
veículo de faróis acesos naquela noite de ares refrescantes. O táxi
andava com velocidade moderada, era o melhor a fazer para
consumir o dinheiro do cliente. Parava corretamente em todos os
sinais, em algumas vezes até esperava o sinal fechar para o tempo
correr apressadamente. Todas as luzes brilhavam intensamente
sobre as criaturas noturnas da cidade. Ainda havia comércio aberto,
estudantes perambulando e trabalhadores voltando para casa, tudo
prometia ser um dia normal, mais um dia normal.
Quem contava serenamente com esse dia normal era Grace,
esperava desperta uma noite até melhor do que as outras,
aguardava no mínimo uns cinco clientes. Seria uma dura sorte
conseguir o dinheiro que estava a cada dia mais difícil de ganhar.
Grace já se encontrava no ponto de costume, fazendo o trottoir
junto da amiga Paola e o travesti, Bia Baby. Conversavam sobre
assuntos variados, sem se preocuparem com o tempo, pois o próprio
tempo sempre trazia um cliente mais carente, solitário ou baderneiro.
Sempre desejando ser as mais discretas possíveis, elas evitavam os
baderneiros, mas quando o dinheiro era bom não havia o porquê de
não aceitar. Paola e Bia Baby eram sempre mais extrovertidas e se
divertiam muito em mostrar as pernas para os incontáveis veículos
que corriam na pista, já Grace, mais introvertida, ficava de beleza
serena sob a sombra da rua, pois tinha seu estilo que não mudava
nunca, nem com os conselhos da amiga, era assim, pela discrição
que ela ganhava seus clientes.
Enquanto isso, o táxi que levava seu Virgílio à avenida Afonso
Pena se aproximava, tomando o caminho do velho centro
abandonado.
Seu Virgílio, tentando desabafar a dor que sentia buscava uma
conversa amigável com o taxista:
– Sem querer ser intrometido, você tem família, meu jovem? –
perguntou seu Virgílio.
– Tenho sim, senhor – respondeu o taxista. – Uma esposa
amorosa, um filho e duas filhas, que amo muito. Todos eles são parte
da minha vida, não sei o que faria sem eles. É por isso que trabalho
a essa hora, é para dar um mínimo de dignidade a eles.
– É verdade. Nós nos massacramos sonhando com um futuro
digno para os nossos filhos, mas nem sempre a vida desliza como
esperamos.
– Por que o senhor está falando assim? Como quem perdeu a fé
na vida, nos valores e na família. Se tem uma coisa que a gente não
pode perder é a fé. Olha o meu Santo Expedito aqui, o santo das
causas impossíveis, é nele que devoto minha fé.
– É, talvez eu esteja precisando do seu santo, estou perdendo a
minha alegria de viver por causa de uma causa impossível. Será que
Santo Expedito pode me dar uma mãozinha?
– Claro! Com certeza. Basta apenas ter fé no poder divino.
– E o que você faria se soubesse que uma de suas filhas está se
prostituindo? – perguntou seu Virgílio.
– Não sei. A gente nunca sabe o que o coração diz numa hora
dessas. Conhecendo-me como eu conheço, provavelmente eu
perderia a cabeça. Meu mundo desabaria, verdadeiramente, não
saberia o que fazer.
– Graças a Deus! Então não sou o único que pode perder a
cabeça.
– Por que o senhor está falando assim? Não me diga... que...
estamos indo na Afonso Pena... por causa de sua filha.
– Infelizmente.
– Não fique assim, você não deve ser o único. Filhos! A gente
cuida para crescerem com todo o carinho para depois magoarem
nossos corações. Estou torcendo para que você mude essa ideia da
cabeça dela.
– Eu ainda não tenho certeza, estou aqui para descobrir a
verdade, mas meu coração ainda não consegue acreditar, mesmo eu
vendo com meus próprios olhos, meu coração ainda vai dizer não.
– Então eu torço para que seja tudo uma grande mentira.
– Que Deus escute suas palavras.
O táxi entrou na avenida Afonso Pena com uma velocidade de
vigilância, seu Virgílio ficou olhando através da janela do veículo as
várias moças que perambulavam com seus decotes provocantes.
– E aí, vovô! Vai querer fazer um programinha básico – disse
Paola, mascando chicletes. – Aproveita que a delícia aqui está
disponível!
Nesse instante, Paola conseguiu parar o táxi à sua frente, ela
estava justamente entre a visão de seu Virgílio e Grace. Seu Virgílio
ainda não conseguia ver nada.
– Então, vovô, vai querer ou não vai querer? – disse Paola,
provocando.
– Desculpe, minha filha, mas eu não vim aqui para isso – retrucou
seu Virgílio, bem pacato.
– Então deve estar querendo algo diferente como uma travesti,
garanto que minha amiga Bia Baby vai colocá-lo nas alturas.
– Menos.
– Já sei! Não gostou do corpinho aqui. Tenho uma amiga aqui que
vai oferecer algo bem mais apimentado com um corpo de morena
escultural.
Nesse momento, Paola saiu da frente de seu Virgílio que avistou
de longe, estarrecido, a filha em trajes extremamente vulgares.
Sentiu a ponta de alguma coisa acertar o coração, não era possível
aquilo estar acontecendo com ele, era a filha vagando como uma
prostituta nas ruas da cidade grande. A verdade esclarecia a mentira
da filha, ela era realmente a última coisa que ele desejava. Por mais
que avistasse a filha, o coração não aceitava, repentinamente,
sobrevinha uma vontade estúpida de pegá-la à força para que ela
aprendesse uma lição.
Paola sem desconfiar de nada continuava com seu super
escândalo:
– Grace, venha aqui para conhecer um amigo meu! – gritou ela.
Seu Virgílio continuou de olhos presos sobre a vista de sua filha,
enquanto Grace, ouvindo a amiga chamar, se aproximava do veículo,
ela saía debaixo de uma penumbra. Ela foi se aproximando num jeito
de rebolar como uma mulher vulgar. Não adiantava mais seu Virgílio
tentar não mais acreditar naquilo que estava debaixo de seus olhos,
quando Paola chamou-a pelo nome Grace, era realmente ela, sua
filha, inevitavelmente prostituta... o coração cada vez estava mais
amargo.
Grace enquanto caminhava em direção do táxi, tentava avistar o
passageiro, um possível cliente. Mas o destino preparava a versão
verdadeira da vida, ao chegar mais perto ela percebeu os traços da
última pessoa que ela esperava ver ali naqueles meandros de
perdição.
“Oh, Deus! Como pôde fazer isso comigo?”, ruminou Grace. “É o
meu pai! Deus, tudo está perdido.”
Grace estava frente a frente com o pai, era inevitável, a mentira
estava desabando em cima da vergonha. Seus caminhos pareciam
se fechar repentinamente, não havia mais o que fazer, apenas pedir
o perdão e a bênção, era difícil entender o coração, em vez das
desculpas ela sentia a cólera.
“Por que raios meu pai veio me ver aqui?”, pensou ela.
Os dois continuaram se olhando fixamente. As lágrimas escorriam
salgadas dentro da garganta de seu Virgílio, não poderia nunca
entender qualquer motivo que a filha apresentasse. Não havia
desculpas em seu coração, mas era sua filha, e por algum motivo ele
sabia que tinha que perdoar, somente segurava o pranto para não se
enfraquecer, para passar a velha imagem de enérgico.
Enquanto se olhavam, a confusão de sentimentos borbulhava nas
retinas de ambos os olhos. Depois de tanto olhá-la fixamente com
um semblante cenho, seu Virgílio baixou a cabeça, sentiu uma dor
de derrota pela filha, ela não aprendera nada em seu tempo de
juventude. Às vezes, sobrevinha uma vontade agressiva de puxar o
cinto para mostrar a lição que ela tinha que aprender, mas sua
devoção de fé impedia o comportamento exasperado, impedia a
insanidade, impedia a reação natural de pai. Infelizmente, ele sentia
que a filha ainda não era uma mulher suficientemente madura.
Seu Virgílio segurando o desespero somente pensava em descer
do táxi para dar talvez a sua última lição, a fúria queimava em sua
alma, a mentira da filha parecia uma barra de ferro quente rasgando
a pele, o futuro não era mais futuro e sim um passado sem
passagem, sempre presente no tempo adiante, afinal, como qualquer
senhor de decoro do interior, era quase uma desgraça ter uma
mulher da vida na família.
O taxista percebeu o desgosto de seu Virgílio, quis então
demonstrar algum tipo de companheirismo:
– Pode seguir, amigo – disse o taxista. – Não precisa pagar a
passagem, você tem muito o que conversar com sua filha.
– Obrigado – foi a única coisa que seu Virgílio disse ao baixar a
cabeça.
Saiu do veículo com movimentos pausados como quem suportava
uma grande dor de raiva.
Paola, já tendo percebido tudo, apenas se calava e olhava para
Grace que continuava estática apenas esperando a primeira reação
do pai, se acaso ele fosse estúpido ela também seria, mas se ele
fosse compreensível igualmente ela também seria, ela estava pronta
para encarar a verdade como uma faca de dois gumes.
O táxi partiu sumindo entre as construções da cidade noturna,
mesmo com a avenida movimentada, Grace e seu Virgílio se
pareciam com protagonistas de uma peça dramática de pageant.
Seu Virgílio foi caminhando lentamente ao encontro da filha.
Quando chegou perto disse as palavras aveludadas que Grace tanto
esperava ouvir naquele momento:
– É, minha garota, acho que você me deve uma explicação –
declarou seu Virgílio.
– Oh, pai! Perdoe-me, por favor! – disse ela ao abraçar o pai.
– Por que, minha filha? Por quê? – inquiriu ele, chorando.
– Eu não sabia o que estava fazendo, estava louca para mudar de
vida de uma vez, mas agora lhe vendo aqui estou certa do meu erro.
Perdoe-me, meu pai, eu não sabia o que estava fazendo. O senhor
não sabe o quanto a vida aqui é difícil. Deus, estou tão
envergonhada diante do meu pai, a pessoa que mais amo nessa
vida. Somente me perdoe, pai – continuou Grace, também chorando.
– Não sou eu quem tem que perdoá-la. Somente o Todo-
misericordioso pode fazer isso. Será que aos olhos dele tudo isso
que você faz está certo? Faça ao menos essa pergunta antes de
recomeçar. Minha filha, por quê? Faltou alguma coisa por parte de
mim e de sua mãe?
– Não é isso, pai. Eu estava precisando de mais, e esse mais, nem
você nem minha mãe tinham. Você pensa que eu não choro todas as
vezes que chego em casa de madrugada? Somente Deus sabe o
que eu passo. Quantas vezes já tive que suportar homens imbecis e
indesejáveis ao meu lado.
– Quanto a isso você nem me conte, dessa parte eu não quero
nem saber, senão eu acabo tirando o meu cinto para lhe bater do
mesmo jeito quando era criança. Não é justo, minha filha! Eu sempre
ensinei que o dinheiro é importante, mas não a ponto de fazer a
gente esquecer nossos princípios.
– Que raios de princípios são esses que todo mundo tem para
transformar o mesmo mundo num grande lixo miserável?
– São os mesmos princípios que a colocaram no mundo.
Os dois se calaram por um instante. Paola e Bia Baby se
afastaram para deixar os dois a sós, tanto Paola quanto Bia ficaram
bastante envergonhadas com a presença de seu Virgílio que
desprezava num decoro íntimo aquelas pessoas que acompanhavam
a filha numa vida degenerada. Ele não gostava nem de sentir o olhar
do travesti, era tudo aquilo que conhecia de um mundo de perdição
que somente via na televisão.
– E essas pessoas com quem anda? O que é aquela coisa
libertina? Como pode existir isso no mundo? Eu não criei minha filha
com todo amor e carinho para ficar andando com gente desse tipo –
disse seu Virgílio, estarrecido.
– Por favor, pai, não me repreenda. São apenas amigos... essas
pessoas que você chama de coisa já me ajudaram muito.
– Não, minha filha, você está errada. Essas pessoas nunca a
ajudaram, eles somente a usaram sugando sua beleza e
despedaçando suas pétalas. Minha filha, por que você fez isso?
Você sempre foi a rosa mais linda e querida da nossa cidadezinha.
– Eu odeio aquela cidade! Aquelas moças interesseiras e aqueles
rapazes idiotas que pensam que são ricos, não passam apenas de
jecas do interior que nunca vão sair daquela vidinha miserável.
– Filha, eu também faço parte daquela vidinha miserável e me
orgulho muito de viver num lugar onde as pessoas ainda prezam
pela decência e pelos bons costumes, coisa que a cidade grande fez
você perder. Por favor, minha filha, esqueça seu pai e sua mãe,
talvez nós estejamos miseráveis demais aos olhos de uma garotinha
mimada e esnobe.
– Desculpe-me, pai! Depois que você me viu eu estou pensando
em largar essa vida de vez.
– Somente pensando? Você não tem mais vergonha na cara?
Cadê aquela minha filha amorosa que se arrumava toda para ir na
praça aos domingos?
– Ela se cansou de tantos domingos vazios.
– Não, minha filha. Aquela é a vida que todos daqui sonham ter e
você despreza isso por causa de fantasias de glória que somente
alimentam a fome da verdadeira miséria da vida. Isso sim é uma vida
miserável, trocar sexo por dinheiro. Ainda não consegui acreditar que
a minha filha fez isso.
Nesse instante, seu Virgílio ficou bastante magoado. Ele tentava
enxugar as lágrimas do rosto.
– Vamos, minha filha! Venha para casa comigo – pediu seu Virgílio.
– Não, pai. Eu não posso ir, toda minha vida está aqui agora. Eu
não conseguiria suportar viver naquela cidadezinha.
– Mas não há problema algum em viver aqui? Vejo claramente nos
seus olhos que sua vida aqui está muito agradável, vejo que vive a
mil maravilhas, talvez esteja gostando dessa vida que está levando.
– Por favor, pai, não se confronte com meus desejos. Eu prometo
ao senhor que vou largar essa vida, eu somente preciso de um
pouco mais de tempo.
– Não. Você vai largar essa vida a partir de agora. Por favor, não
me faça ser mais grosseiro do que sou.
– Tudo bem. Eu sei que estou errada. Tudo bem, eu já larguei,
mas eu ainda preciso ficar aqui, muita coisa minha está aqui, a
faculdade é um exemplo. Também estou tendo chances como
modelo, sabia?
– Eu sei muito bem dessas suas chances como modelo, foram
essas chances que a empurraram para essa vida.
– Por favor, pai, tenha paciência, essa é uma carreira em que as
coisas não acontecem de um dia para o outro.
– Quer dizer então que você não vem comigo, mesmo eu tendo
presenciado toda essa libertinagem. Você continua teimosa, é essa
sua teimosia que a leva a beirar essa vida imunda.
– Pai, o senhor tem que aceitar o fato de que já cresci e quando
quero dizer não quero dizer não. Não vou voltar para aquela cidade
onde as coisas não acontecem. Agora que cheguei aqui não vou
desistir por qualquer coisa.
– E eu ver minha filha vestida vulgarmente como uma prostituta é
qualquer coisa?
– Pai, tente entender, é somente uma fase que já passou. Tudo
bem? Já passou! – irritou-se Grace.
– E o que me garante que você não vai continuar se vendendo? –
A minha palavra.
– Cuidado, filha. Você já está fazendo promessas cedo demais.
– O senhor tem que aprender a me entender de uma vez por
todas. Quando eu digo que parei é porque parei. Estou sendo clara
ou não?
– Não. No mais, esqueça, minha filha, não sei por que, mas estou
ficando com nojo de você, vestida dessa maneira tão vulgar. Se
quiser continuar vivendo assim vá em frente, assuma a sua profissão
de uma vez, porque a única coisa que me resta a fazer é rezar pela
sua alma. E por favor, faça isso mesmo, não volte mais para aquela
cidadezinha onde nasceu, seus pais não vão estar lhe esperando
mais. Para mim, minha filha morreu aqui e agora. Adeus.
Seu Virgílio, nervoso de súbito, virou as costas e começou a andar
na avenida, se afastando de Grace e acenando para um táxi
qualquer.
– Pai... por favor... entenda! – berrava Grace. – Pai... espere...
pai... eu prometo... pai... faça como quiser então, seu velho ranzinza.
Um outro táxi parou ao lado de seu Virgílio que entrou logo em
seguida. Ainda deu tempo de Grace bater os punhos sobre a janela
do veículo.
– Por favor, pai, eu ainda o amo e sempre amarei – gritava ela.
Tristonho, seu Virgílio baixou a cabeça para não escutar a filha
gritando freneticamente. Enquanto o táxi partia bruscamente na
avenida, ele apenas continha aquele choro insuportável.
O táxi se foi, levando as esperanças de seu Virgílio para com a
filha, enquanto ela ficava na avenida enxugando as lágrimas.
Depois de algum tempo, Bia Baby e Paola reencontraram Grace
que ainda se sentia triste com o acontecido.
– Não fique assim, amiga – disse o travesti. – Isso já está se
tornando rotina. Toda vez você está triste por qualquer coisa. Sabe?
A gente tem que ser forte...
– Não é isso, Bia! É que meu pai é o meu alicerce para todas as
coisas. Eu não sei, mas de uma forma ou de outra eu vou largar os
programas, eu não posso mais aceitar essa vida contrária aos
anseios dos meus pais – disse Grace.
– O que é isso, Grace? – interferiu Paola. – Você tem que pensar
no que é melhor para você e não no que é melhor para os seus pais.
Como vai viver sem os programas?
– Minha mãe envia todo mês um dinheirinho para mim, não dá
para muito, mas dá para as coisas básicas. Basta apenas conter as
coisas caras de que me acostumei – esclareceu Grace.
– Eu não acredito, Grace! – declarou Paola. – Logo agora que eu
estava arrumando a entrevista com aquele dono de agência. Você
não pode botar tudo a perder!
– Eu não preciso continuar nos programas para trabalhar como
modelo. Tudo vai depender dele gostar ou não gostar de mim –
retrucou Grace.
– Não se iluda, Grace, tudo vai depender do teste do sofá. Vai ser
nesse teste que ele vai descobrir se gosta ou não gosta de você –
explicou Paola.
– Tudo bem, eu já sei! Quanto a isso eu resolvo depois.
– Grace, não vou lhe dizer nada, tenho certeza de que você está
tomando a decisão certa, esse mundo não leva a nada mesmo. Tudo
isso é somente uma grande ilusão. É a melhor coisa que você faz na
vida. Vai, querida, que eu vou ficar aqui torcendo por você – afirmou
Bia Baby.
– Eu sei, vou precisar de muita sorte.
Naquele instante, Grace resolveu colocar um ponto final naquela
história de prostituição. O ímpeto nasceu da vergonha de ver seu pai
assistindo à sua escuridão, mentira e miséria de sentimentos. Ela
poderia continuar ficando, se divertindo de um cotidiano de
preconceitos, mas o dedo indicador da sociedade era mais forte, ela
sabia que não havia como lutar contra o preconceito forjado em
todas as escalas sociais. Resolveu assim, do nada, ou do tudo, de
seus pais, mas era algo além deles que dizia que o caminho era
outro, era algo em seu coração; algo como um grande amor; algo
como Felipe. Talvez assim ela voltaria a ter seu principal sonho de
volta, o amor dedicado de Felipe.
Realmente, a ideia de Felipe estava dando certo, pois mostrando
aos pais dela a mentira, somente assim ela poderia rever os
conceitos e procurar se moldar às vontades do namorado, uma
candinha, era tudo o que Felipe desejava de Grace. Toda a vontade
arquitetada de Felipe estava dando certo, Grace poderia estar
decidida a abandonar os programas. Ela sentia um livramento muito
intenso quando caminhava num futuro sem seu corpo a se vender e
com esse mesmo corpo procurando a alma sonhadora do seu
grande amor.
Decidida, terminantemente, a abandonar aquela vida, ela estava
no ponto de ônibus, pronta para voltar ao apartamento que alugava
na cidade. Enquanto ela esperava o ônibus fazia planos e tecia
sonhos de uma nova vida, uma vida que tinha um sabor especial de
rever o namoro com Felipe, o desejo do livramento crescia a cada
instante que a separava do retorno a Felipe, o sonho daquele amor
expandia em seu peito, ela não via a hora para contar-lhe a
novidade.
Ansiosa, ela até pensou em comprar cigarros, mas estava muito
tarde, tudo estava fechado em volta. Mesmo o ponto estando quase
totalmente escuro, ainda apareceu duas senhoras que estavam no
bingo. Uma delas não se incomodou muito com Grace e partiu a
lançar palavras que magoassem. O ritmo da rotina ainda não
conhecia a nova atitude de Grace.
Quando Grace sentiu que não precisava mais encarnar como uma
prostituta, olhou bem no fundo dos olhos das senhoras. Uma, mais
arisca, disse:
– Humpf! Que ousadia! As mulheres hoje em dia estão ficando
mais desavergonhadas.
– Filha, você não tem medo de pegar um resfriado com essas
pernas soltas no sereno?
Era para magoar, ela sabia que era para magoar, ainda mais vindo
da personificação exata daquelas coroas recalcadas que se acham
da alta sociedade, cheias de pudores e preconceitos. Ela tinha que
pensar em algo e devolver na mesma moeda. Nenhuma resposta
parecia estar a altura. Em outros tempos, ela soltaria todas as bruxas
e diabos para cima das duas senhoras, mas como estava querendo
se identificar com aquela moça que ela era antes de se prostituir,
tentando respirar os novos ares de uma moça de família, que ela
ainda sentia essa alma esquecida, então Grace devolveu:
– Humpf! – disse Grace, ao virar o rosto.
– Mas que desaforo! – disse uma senhora. – Você viu como ela me
respondeu.
– Eu lhe disse que essas moças de hoje são todas umas
desavergonhadas – disse a outra senhora.
– Olha aqui uma coisa, minha filha! – continuou a senhora que se
sentiu ofendida. – Para o seu governo eu sou...
A senhora acabou sendo interrompida pelo barulho do ônibus que
aparecia no ponto, era o veículo que Grace esperava. Sem dar
nenhuma confiança para a senhora, Grace entrou no ônibus
roubando as vistas do motorista e do cobrador. Ainda deu tempo de
Grace sentar e ver através da janela a cena da mulher com o dedo
indicador levantado, dizendo seus decoros, mas não se ouvia nada,
somente o ruído dos motores do veículo, Grace ficou apenas
olhando e sorrindo. O ônibus partiu naquele encontro da madrugada,
enquanto Grace acenava um adeus às senhoras.
No caminho, Grace sentiu um pouco de medo ao viajar vestida
daquela maneira com dois homens que não demonstravam ser muito
amistosos. O cobrador não tirava os olhos do seu decote, já o
motorista, sempre que parava em algum sinal fechado espichava o
pescoço para trás para tentar ver alguma coisa. Ela se incomodava
muito com a forma que os dois olhavam. Por sorte, pensou
rapidamente em decorar o número do veículo, pois se alguma coisa
acontecesse ela poderia os identificar.
Com a viagem ainda no começo, ela buscou compenetrar seus
pensamentos naquela nova chance, naquela nova vida e naqueles
novos ares. Mas sempre quando ela respirava bem fundo, abrindo o
coração para o futuro com a paisagem urbana como vista, o
cobrador secava os olhos sedentos em suas pernas. Nesse
momento, ela esticou a saia ao máximo que podia, fechou as pernas
e desprezou os olhos do cobrador. Havia um sentimento mais
importante naquela hora, sua paixão por Felipe, ela queria planejar
sozinha como faria para dar a nova notícia de sua vida para ele. De
tanto olhar a lua cheia no céu, Grace acabou se esquecendo dos
olhos afoitos do cobrador, na sua cabeça havia apenas amor dirimido
de saudade.
Pensamento de Grace:

Felipe, estou pronta para você, somente você. Dessa vez tenho
certeza que cresci, ver o meu pai me fez renovar os pensamentos,
as vontades outrora esquecidas e meus reais e verdadeiros sonhos.
Meus sonhos são você, meu amante; são você, minha eternidade;
são você, minha única felicidade; enfim, meus sonhos são você.
Eu mudei, sim, acho que mudei, as causas existem sim, o princípio
foi o meu pai, mas o fim foi você, grande amor da minha vida, sim, foi
você, por você sou capaz de tudo, até de vencer minhas convicções,
as minhas regras e as minhas atitudes. Sim, não vou perder meu
homem ordinário e carinhoso, quase o sabor de uma vida inteira por
causa de um iludido status de acompanhante de empresários.
Eu tenho mesmo que tomar vergonha na cara, meu pai tem
realmente razão. Coitado do meu pai, tão velho e ainda tendo que
suportar a tristeza de ver a filha transando o corpo na avenida mais
suja da cidade. Ele está certo, tenho certeza de que quando ele
viajava nas estradas do país, tinha em seu íntimo desejo uma única
vontade, a vontade de ver a filha nos caminhos mais felizes de uma
mulher delicada.
Meu presente, eu mudo por você, pai, porque sua filha vai ser
aquilo que você construiu ao longo desses anos, mas meu futuro eu
dedico ao meu namorado amante, porque o amo além do impossível.

O ônibus estava chegando ao ponto próximo do prédio dela, Grace


continuava receosa com os olhares intrusos do cobrador. Ela
levantou mesmo com aquela pele macia aparecendo, tentando
caminhar o mais comportadamente possível, mas somente esse ato
não comportou os olhares do cobrador, os dois, o cobrador e o
motorista trocaram gestos vulgares e devassos para se comunicarem
sem palavras, coisas que Grace subentendia como cantadas de
baixo calão.
Grace, ansiosa para chegar logo no seu ponto acionou o sinal.
– Vai descer aqui, senhorita? – perguntou o motorista.
– O que você acha? – devolveu Grace.
– Calma, senhorita! Não é para tanto.
– Abre logo isso! – disse Grace, querendo que o motorista abrisse
a porta.
– Calma, senhorita, eu vou abrir. Antes, quanto está custando o
seu programa?
– Abre logo essa porcaria!
Estar sozinha com os dois no ônibus fazia Grace temer ainda mais
aquelas cantadas.
– Vamos! Quanto está o programa? Você é bem gostosa mesmo...
deve estar custando uns duzentos ou mais.
– Eu não sou nada do que você está pensando e abre logo essa
merda senão eu vou gritar.
– Eu vou abrir, gatinha, calma... taí, não doeu nada uma
conversinha, mas garanto que tenho outra coisa que faz doer bem
mais, gostosa!
Enquanto os dois faziam suas piadas borbulhantes de risadas,
Grace desceu do veículo, aborrecida e contrariada.
– Boazuda! – retiniu o cobrador, através da janela.
– Vocês vão ver só uma coisa, eu tenho o número do carro.
Amanhã vocês vão ver, seus idiotas! – gritou Grace.
– Que vê nada, minha filha! Olha o modo como você está vestida a
essa hora da noite – finalizou o motorista, já partindo de volta à sua
viagem.
– Idiotas!
Mesmo entristecida, Grace sentia que seria a última vez que ela
ouviria aquelas provocações, aquilo não poderia nunca continuar
pela vida inteira, era o desar, o revés, a vontade anulada de viver um
sonho de princesa. E por que Grace ainda queria viver na cidade?
Certamente para continuar tendo Felipe ao seu lado. Nenhuma
dromomania a faria ter seu sonho de volta, a mania doce de querer
Felipe no seu caminho arborizado era a fé que a mantinha sempre
desperta para o amor.
Depois do fiasco no ônibus, Grace caminhava sozinha pelas ruas
vazias que davam acesso ao seu prédio. Era lamentável ficar
lembrando dos dois trogloditas do veículo. De uma coisa ela tinha
certeza, de que não teria mais saudades daquela vida em que
colocava uma pedra sobre isso, somente faltava, para esquecer
daquela vida de vez, tirar aquelas roupas indecorosas, era tudo o
que ela queria.
Estava com a face enfraquecida quando encarou o vigia do prédio
de perto. Os resquícios da vida ainda insistiam em agonizar seu
íntimo. O vigia abriu o portão sem dar muita conversa para ela, pois
ele era novo ali, e como Grace marrava a fisionomia para ninguém
conhecer suas intimidades, então ele por reação fazia o mesmo.
Ela entrou no interior do prédio, bem ligeira, não queria que de
forma alguma alguém a visse novamente, era uma vergonha
nascente despertada apenas naquele momento, depois do pai flagrar
sua libertinagem ela percebeu o quanto era vergonhoso caminhar
assim para as pessoas. Todo mundo deflorando em pensamentos
seus decoros, suas liberdades e suas intimidades, não era um rumo
certo para quem sonhava sonhos de princesa.
Demonstrando um pouco de cansaço ela remexeu a chave,
tentando abrir a porta do apartamento, com dificuldade não
conseguiu abrir, por mais que contorcesse a chave para todas as
direções a porta não abria. Foi o instante reto para ela se derrotar, se
colocando como uma coitadinha perante as coisas normais.
Qualquer dificuldade era a força certa para barrar as vontades de
Grace com uma fé que se perdia facilmente.
– Oh, Deus! Por que o raio dessa porta não abre? Minha vida é
assim mesmo, não adianta quando eu quero e nem quando eu
posso. Deus, não vai abrir essa porta? Não estou fazendo o certo
dessa vez? Não abandonei o sexo das ruas? O que você quer dessa
vez? – disse Grace, irritada, porque a porta do apartamento não
abria.
Talvez fosse por isso que ela via tantas qualidades e talentos no
espírito de Felipe, pois ele parecia completar suas faltas, parecia
atrair suas fraquezas contrárias, ela se derrotava facilmente
enquanto Felipe com sua carcaça de conformidade com o revés da
vida, não se desesperava pelas pequenas dificuldades, pois a
violência era a reação que nele despertava somente quando as
amarguras estavam apitando sobre seus desejos de cotidiano, algo
como comer um pão com mortadela ou beber uma cerveja.
Ela continuou irritada enquanto a porta não abria, parou de insistir
por um momento, para ela, aquela pequena dificuldade já se
transformava em desgraça.
– Desgraça! Eu vou dizer sim, desgraça – continuou Grace. –
Estou ou não estou fazendo o certo? Então! Por que não consigo
nem abrir o raio dessa porta? O Senhor é assim mesmo, sempre
colocando pedras na frente da minha felicidade.
As palavras de Grace às vezes se tornavam até profanas por
acusar uma divindade de um pequeno problema. Qualquer um
desaprovaria sua atitude, mas talvez poderíamos redimi-la, pois seus
últimos dias estavam enlouquecidos.
Então ela respirou fundo e procurou tentar abrir a porta
novamente, agora com um pouquinho de paciência. Colocou a
chave, remexeu, e dessa vez, com uma sorte cuidadosa, ela
finalmente conseguiu abrir a porta. O sorriso estampou-se
timidamente no rosto que estava iluminado com a luz do ambiente do
apartamento.
Não demorou muito para Grace entrar no quarto.
“Sim, pai, vai ser a última vez que vou vestir esse tipo de roupa”,
pensou Grace, despindo-se. “Sim, agora a sorte vai andar a cavalo.
Sim, talvez seja essa vida que vem me trazendo o revés nas minhas
tentativas de ganhar a vida. Sim, Lipe, você vai ter a mulher que
tanto sonha. Meu sangue não é como vinagre, sim, quando decido
uma coisa está decidido, não vou mais fazer programas. Para mim
basta! Basta, não adianta viver algo que meu pai, a pessoa que mais
amo nessa vida, desaprova, se na verdade meu íntimo quer somente
agradar a ele. Meu desejo continua sendo aquela imagem
saudosista, a imagem com meu pai dizendo: ‘eu coloquei a moça
mais linda no mundo’.”
A madrugada já obrigava suas criaturas a esquecer o dia passado
quando Grace, depois de trocar de roupa, tentando colocar um fim
no passado recente, ligou o rádio numa altura amena para que
somente ela ouvisse as melodias lamentosas que a faziam lembrar
de Felipe.
A canção lividamente despertava um choro de alegria quando ela
pensava nos momentos que vivera com o namorado. Um bolsão de
suspiros enchiam seu peito, não havia como escapar das felicidades
que somente Felipe sabia entregar, foram aquelas lembranças
matizadas de saudades que fizeram Grace procurar pela foto de
Felipe. Procurou em todos os cômodos do apartamento, depois se
lembrou que certamente a foto estava no quarto, a partir daí revirou
todos os móveis do quarto, o armário, as gavetas, o criado-mudo,
debaixo da cama, ela tinha que encontrar aquela foto, ela tinha que
viver e sentir as faces duras que a fizeram se apaixonar. Ela não
cansava de procurar, a foto certamente estaria no quarto, aquela
procura tinha sabor de saudades, sabor de suspiros, sabor de um
amor excessivo.
Foi quando, na segunda tentativa de encontrar a foto nas gavetas,
que Grace a encontrou debaixo de canhotos de folhas de
pagamento.
– Aí está você, seu danado! – disse Grace, com a foto nas mãos. –
Meu Lipe, tão lindo quanto um tigre.
A música continuava a tilintar pelos ambientes, forjando novas
emoções no coração de Grace, que deitou na cama para continuar
suspirando com a foto nas mãos, sonhando dessa vez um novo
futuro de alegria intensa com o namorado.
Pensamento de Grace:

Você vai voltar para mim, eu vi isso quando meu pai desenhou
nossos caminhos perdidos se cruzando no céu onde os anjos fazem
músicas emanadas de nossos sentimentos retos. Nós temos que ser
felizes juntos, minha alma pede isso, a sua também, e quando duas
pessoas desejam a mesma coisa não há tempestade no mundo que
as afaste desse sonho.
Uma árvore está crescendo a partir de agora, está crescendo forte,
nosso amor é que a mantém rígida. Que tal, Lipe, se eu sussurrasse
em seu ouvido que comigo você pode ter sua família tão esperada
por tanta esperança. Poderemos ter dois ou mais barrigudinhos. Não
seria ótimo?
A aurora vai nascer novamente, e com ela uma nova mulher
chamada Grace, a Grace dos sonhos de Felipe. Tenho certeza de
que você vai gostar da grata surpresa, meu querido.

Enquanto a madrugada descia pela noite, Grace, com os olhos


contentes sobre a foto do namorado foi adormecendo aos poucos. A
música tilintava suavemente nos ambientes à procura daquela moça
convicta de um renascimento espiritual.
Já seu Virgílio estava prontamente esperando o ônibus de volta
sentado, meio sonolento, na rodoviária. Aquela descoberta real da
vida de Grace era como um desafeto, para ele, não entrava na
cabeça que a filha pudesse fazer parte do lado escuro da vida. Uma
lágrima acompanhada de uma forte dor no peito sempre escorria de
seus olhos quando lembrava da cena promíscua da filha vestida
igualmente a uma mulher de zona. Bem, ele pensava, a filha havia
crescido com as rusgas da puberdade, algo que faltava na révora de
menina, um sentimento que obedecesse somente às ordens do
coração.
Era difícil para ele tentar remediar aquele problema, pois a filha já
estava bastante crescida, e não seria os conselhos dele que a fariam
ser abençoada com as graças de um amor verdadeiro. Ele se
preocupava, mas estava certo de que tinha feito o que realmente era
possível. Sua menina infelizmente já estava na fase de ouvir
somente os ensinamentos que a vida carrega com experiências.
A madrugada pairava na noite como quem perdoa todos os erros
do dia passado. Seu Virgílio, ansioso, esperava o ônibus para voltar
para casa na cidade do interior, assistia à TV na rodoviária para não
dormir, tinha medo constante dos seres da capital, ao seu lado
dormiam nas cadeiras dois mendigos que tinham caras de poucos
amigos. Ver aqueles dois mendigos era como captar as virtudes da
experiência, a ideia estava amadurecida, sua filha, infelizmente,
estava nas sombras, pois ele estava firme numa decisão, de que
para um homem não há mal pior do que ser mendigo e para a mulher
não há mal pior do que ser prostituta, então somente restava ao seu
íntimo, rezar para que Deus perdoasse a alma indolente da filha.
Seu Virgílio aguardava o momento de voltar com os olhos
freneticamente para o relógio principal da rodoviária, o tempo temia
em continuar. Para tentar esquecer o relógio, ele revirava a vista
para várias direções, às vezes para a TV outras vezes para os
mendigos, depois nos serventes de limpeza e adiante nas várias
pessoas que circulavam, mas o pensamento não se enganava tão
facilmente, a vida parecia ter acabado, nem as lembranças que tinha
quando a filha era criança não apagavam aquela desonra, tudo era
muito forte para um senhor de idade. Seus pensamentos estavam
tão carregados de monodias infelizes que às vezes ele desacreditava
em Deus, algo nele dizia que servir ao Senhor durante tanto tempo
parecia vão. Várias perguntas não se calavam, entre elas a maior
indagação sobre um destino inesperado:
“Por que o Senhor não guardou os caminhos de minha filha?”,
pensava seu Virgílio, com a mente obscurecida.
A revolta nascia assim, num pensamento silencioso, mas a filha
era o motivo maior para a desilusão, não havia nada que pudesse
acalentar o coração de um pai. Pensou, por vários instantes, em não
dirigir a palavra à filha até a hora de sua morte. Talvez fosse uma
reação muito exagerada, mas ele não encontrava forças para fazer a
direção da vida da filha.
A madrugada na rodoviária começou a voar quando seu Virgílio,
sem querer, deu uma cochilada na frente da TV. Parecia que não
havia motivos para se preocupar, os mendigos nem notaram sua
presença. A papa gorda umedecida com o pescoço e o peito, temia
em balançar, ele peremptoriamente queria continuar acordado, mas
a cabeça pescava um sono pesado constantemente. Quando sentiu
que estava dormindo o céu já abria os espaços foscos, o sol
timidamente radiava seus primeiros raios naquele dia que nascia
com esperanças de mudança. Era como se algo novo fosse
implantado em seu coração, algo que pedia que uma divindade
católica viesse para espantar as desilusões da filha.
Enquanto esperava por demorado tempo, a luz do dia veio
lembrar-lhe que o cotidiano somente começa com alguns goles de
café forte. Levantou-se da cadeira com a dificuldade de costume, as
dores na coluna insistiam em amargurar os sentidos do corpo, foi
caminhando pausadamente, procurando uma lanchonete qualquer
dentro da rodoviária, que, naquela manhã, começava a receber os
primeiros viajantes das estradas do estado.
Quem o visse ali, caminhando com os passos apertados, pensaria
que ele fosse mais um boia-fria perdido na cidade grande à procura
de um dinheirinho para completar o preço da passagem, mas não, ou
quase a mesma coisa, o coração estava mais perdido do que a
direção do paraíso.
Na lanchonete sua atitude foi a de sempre, cercado de vários
viajantes ele pediu seu café amargo, o garoto do balcão serviu o café
morno que desceu na garganta em poucos goles, para ele o dia
somente raiava depois do café. Sentir o aroma do café era o instante
de saudade que abraçava suas lembranças, lembranças da mulher,
que provavelmente teria acordado aflita por mais um dia sem a filha
e o marido. Facilmente os resquícios de piedade eram o que ele
pedia para que sua divindade católica tivesse para com a filha,
mesmo com tanta revolta no coração, a crença e a fé ainda eram as
virtudes que venciam sua consciência abalada.
O tempo que timidamente temia em passar na madrugada já era o
mesmo tempo que voava junto com a luz do alvorecer. Seu Virgílio
tomou o último deguste de café bastante preocupado com o horário
do ônibus, depois pagou a conta com as poucas moedinhas que
ainda restavam no bolso para dar direção ao seu andar pesado.
Quando avistou o relógio da rodoviária percebeu que estava
justamente na hora do ônibus, verificou novamente a passagem para
se certificar do horário, da plataforma e da poltrona, em seguida,
desceu as escadarias que davam acesso às plataformas. Seu andar
estava tão transtornado com as dores que ele mal conseguia descer
as escadas, mas tentou e conseguiu, com muito medo de cair, mas
conseguiu, somente descendo um pé de cada vez, sempre apoiado
no corrimão para não escorregar e acontecer o pior. Na plataforma
de embarque seu Virgílio descansou, arfando com muita dificuldade,
descer tantos degraus parecia ser uma saga para ele e para a sua
idade. Ele se preocupou quando avistou o motorista já recebendo os
bilhetes, entrou na fila, esperando como o último, um alívio subiu no
espírito. Quando chegou sua vez, seu Virgílio entregou o bilhete,
perguntando o tempo de viagem, o motorista acabou respondendo
com um sorriso cordial. Seu Virgílio devolveu o sorriso, entrando logo
em seguida com a mesma dificuldade de sempre para se locomover,
todas as pessoas já se acomodavam para a viagem enquanto alguns
se despediam, através das janelas, dos parentes presentes, tudo
num clima bem alegre regado de saudades antecipadas.
O motorista junto com alguns ajudantes fecharam os
compartimentos de mala. Muitos esperavam a viagem começar,
entre eles, seu Virgílio, que somente tentava tranquilizar a dor que a
cidade marcava em seu coração, e olhando a vista da janela poderia
afastar algumas tristezas, talvez os ares do dia seriam a vista de
acalanto.
A viagem não iniciava logo, o que impacientava seu Virgílio que
buscava como nunca compartilhar aquele desar com a esposa.
Muitas pessoas conversavam se distraindo até que.
– RRRRR – o motorista acionou os motores.
Seu Virgílio, tentando esquecer as vergonhas que a filha
despertou, avistava os ares do dia, repleto de um perfume que
lembrava-lhe os dias nas estradas quando era caminhoneiro.
Enfim, o veículo totalmente lotado de passageiros, aparentemente
educados, partia rumo à pequenina cidade do interior numa
passagem entre a fumaça suja de fábrica e a fumaça de lenha, esse
era o principal cheiro que acendia o destino de seu Virgílio, ele
somente poderia se sentir em casa quando sentisse o cheiro de
lenha queimada, o gosto de água com barro do filtro de cerâmica e
os sons dos passarinhos em revoada cantando.
O ônibus cruzava a cidade grande, as cenas ainda eram de
poluição, poluição sonora, com o barulho ensurdecedor dos
incontáveis veículos, poluição visual, com as cenas de prédios
decadentes cobertos de pichações e poluição dos ares, com o
desagradável cheiro das fumaças de plástico queimando.
Mas não demorou muito para a vista turbulenta urbana se
transformar na vista rural das estradas.
Seu Virgílio, forte de coração, chorava apenas em pensamentos,
enquanto avistava a natureza gigante tomar conta dos espaços, a
filha infelizmente perdera as virtudes que somente ele declarava que
ela tinha.
Pensamento de seu Virgílio:

Não, Deus! A culpa não é da minha querida filha, e sim daquela


cidade grande, tão grande de idiotices e falsidades. Como aceitar,
Deus? Eu não acredito que minha filha fez isso pensando em
dinheiro, com certeza foi alguma má companhia.
Mas você tem que aprender, minha filha, não quero mais encontrá-
la enquanto você não se limpar dessa imundície miserável. Por quê?
Por quê? Se ao menos eu não fosse um pai tão ausente. Por quê?
Por quê?
Capítulo 7
A incapacidade de um homem que não consegue atender aos
pedidos do coração, talvez seja sua maior virtude. Por nunca ter
escrito poemas nem corações no caderno colegial, seus sentimentos
tornaram-se couraças sensíveis, pois sempre ficava perdido quando
descobria que estava amando.
Felipe progressivamente diminuía o tom de voz, talvez tentando
diminuir seu estado de grosseiro pecador buscando utilizar da
educação. Verdadeiramente era o principal erro, tentar ser aquilo que
não consegue ser para agradar o objeto amado, era a sua
consciência tentando encontrar um caminho para inventar uma nova
forma de busca, uma forma que conseguisse buscar junto aos
braços a vizinha, a doce vizinha que parecia flutuar suas virtudes no
céu quando ele a avistava.
Educação, essa era a palavra da moda que açoitava o espírito de
Felipe, ele não se cansava de assistir pela TV que toda mulher gosta
de homens educados. Verdade ou mentira? Para Felipe era verdade,
as mulheres mais desejadas necessitam sempre de um diferencial,
diferencial esse que Felipe não cumpria com muito decoro, pois há
muito tempo ouvira que as mulheres gostam mesmo é da cama
balançando, mas para conquistar a bela vizinha algo lhe dizia que
tinha que mudar em algum conceito, talvez, repentinamente passava
na cabeça dele, que mulher também gosta de homens educados. Ele
não sabia o que estava acontecendo, a paixão estava derrotando
seu espírito valente, ele estava realmente disposto a rever seus
conceitos, tudo para conquistar aquela mulher. Somente a mulher
para induzir o homem à descoberta de que nunca se está maduro o
suficiente.
Ele tinha que fazer alguma mudança dentro do seu presente,
beber todo santo dia não tinha laços de costumes como um homem
educado. Certo! Trabalhar no pesado de segunda a sexta também
não dedicava princípios de um homem educado, ganhar pouco,
muito menos. Certo! Expulsar todos os demônios em cima da
namorada também não era típico de um homem educado. Certo! Se
a vizinha era dotada de contornos prazerosos, talvez tudo poderia
valer a pena, talvez disfarçar até ganhá-la de uma vez fosse o mais
cabível, depois era somente voltar ao normal com todas as
fanfarronices possíveis e de direito.
Todo esse tipo de pensamento deixava o espírito carregado, uma
certeza que combinava com o coração quando Felipe rumava para
casa, sentia sempre naquele horário que a paixão brotava aos olhos
na janela.
Impaciente, ele esperava na porta do serviço seu amigo de longas
datas, Ivan. A demora de Ivan perturbava aquele costumeiro espírito
de dia ganho quando em casa avistava de longe os olhos ternos da
moça. Não sabia o motivo para ter marcado aquele fim de tarde com
Ivan, pois seu desejo íntimo apenas buscava encontrar mais uma
vez aquela paixão perceptível da vizinha. Enquanto Ivan não
aparecia, Felipe pensava no sentimento, se aquilo era real de
verdade, se havia virtude em conhecer uma mulher somente pelos
olhos, ou tudo não passava de uma mera ilusão de mulher formosa,
do tipo que brinca com o homem, mas na hora certa foge do fogo.
Mesmo Felipe tendo a consciência, por experiências de outras
mulheres com quem tanto brincou, não mudava seu destino, todo fim
de tarde ele tinha que encontrá-la na janela. Parecia que ficara
subentendido para os dois que em todos os dias a partir das sete
horas se encontrariam na janela, algo como um encontro marcado
através de olhares platônicos.
Será que o instinto sexual de Felipe estava certo? Na maioria das
vezes, um olhar de uma mulher bonita quer dizer muitas outras
coisas, ou nada. Felipe, de pensamento reto, tinha certeza que era
amor, pois os olhos dela tão embevecidos de ternura apenas
sinalizavam a abertura de um possível namoro, um possível affaire.
A escuridão da noite pairou no céu marinho, contrastando
escuridão com o azul, um raro momento onde ainda havia escuridão,
e luz, quando finalmente chegou o amigo Ivan.
Ivan estacionou o veículo bem à frente de Felipe:
– Então, Felipe, vamos para aquele lugar que eu falei? – disse
Ivan, chamando Felipe.
– Eu não sei – desconversou Felipe. – Eu tenho que ir para casa,
não sei se vou sair hoje, estou muito cansado. E tem mais, eu e a
Grace ainda estamos naquele clima meio estranho, sem saber se
ainda existe alguma coisa. Se eu sair hoje talvez possa acontecer
dela ligar, e se eu não estiver lá para atender, certamente o clima vai
piorar de vez. Vai parecer que eu a esqueci completamente, vai ser
como colocar uma pá de cal no namoro. Você sabe! Eu sempre faço
de conta que não me importo com ela, até ela ligar, é nesse
momento que sempre fazemos as pazes.
– Não adianta resmungar, Felipe, se você marcou comigo então
nós vamos sair. Não se preocupe, o lugar é muito bom, você vai
gostar, é do jeito que você gosta. Quanto à Grace, bem, você já a
perdeu há muito tempo. Você já fez bobagens demais com ela,
nenhuma mulher aceita tanta estupidez por muito tempo.
Felipe continuava indeciso, pois a força da atração pela paixão
desperta com a vizinha da janela estava mais determinante em seus
anseios, paquerar a vizinha era um passo mais decisivo do que ir
para um barzinho para ficar bêbado falando besteiras.
Ele deixava se apaixonar facilmente, era um instinto incontrolável
que somente o lado oculto da natureza poderia explicar.
– Deixa para amanhã, Ivan. Tudo bem? – disse Felipe.
– Não. Agora que você marcou você vai – continuou Ivan. – Porra,
cara! Faz um tempão que a gente não sai junto, eu vim aqui somente
para a gente curtir essa noite como sempre curtimos. Porra!
– Tudo bem. Mas vou lhe dizer uma coisa, se esse lugar estiver
muito ruim, não vai adiantar, eu vou embora. Certo?
– Entra logo aí, Felipe!
Ainda com aquela ansiedade de chegar logo em casa para ver a
vizinha se trocando, Felipe entrou no carro, mesmo contrariado, pois
o crepúsculo tinha somente o cheiro dos aflatos vindos da janela, era
um cheiro especial que sentia no final das tardes, não podia perder
aquela vontade maior do instinto.
– Vamos logo!
– Eu já disse que vou – irritou-se Felipe. – Mas você vai me levar
em casa se essa porra estiver uma droga. Eu estou querendo largar
o cheiro do álcool para sentir o cheiro de mulher.
– Não reclama e entra logo! O que você vai fazer em casa a essa
hora? Ver TV?
– Sim. Ver TV. Eu trabalho o dia todo como escravo somente para
ter o sossego de assistir as principais besteiras da televisão à noite.
Por que não?
Ivan calou-se e começou a dirigir o veículo pelo trânsito carregado
da cidade. Enquanto estava no carro, Felipe pensava na vizinha, no
quanto poderia perder se não fosse em casa para encontrá-la.
Aquela sedução já pairava em seu coração como doença. Aquela
sedução platônica já estava ditando suas vontades normais, tempos
atrás, Felipe encontraria os amigos voando, se sentia como um
verdadeiro filho da noite, hoje, sua vontade diária era de apenas
revisitar a janela.
Ivan, enquanto parava no sinal fechado, tentava puxar conversa
com o amigo:
– O que está acontecendo com você, amigo? – perguntou ele. –
Há pouco tempo você que me procurava para sair, alguma coisa está
errada com você, você não era assim! Tem mulher no meio dessa
história?
– Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Por que você tem
que sempre pensar que qualquer atitude minha está relacionada com
mulher? – disse Felipe.
– Por que será, hein?
– Tudo bem, mas não é para tanto! Eu de vez em quando tenho
umas necessidades normais de reclusão, como qualquer um, não
sou como uma galinha ciscando no terreiro. Todas as suas atitudes
mudam com a idade.
– Ahahah! Cuidado para não mudar tanto de atitude assim. Mulher
demais nunca é o bastante.
– Cale a boca! Não fale besteiras. Vá me dizer que você consegue
ficar ligado em pegar mulher vinte e quatro horas por dia.
– Claro que sim! Eu sou solteiro, tenho que ciscar em todos os
terreiros possíveis. A idade só faz bem nesses casos. Mas vai... me
diz a ver-dade... qual mulher que está intimidando o nosso Felipe?
– Já falei! Não tem mulher nenhuma.
– Vamos, fale! Você é pegador, sempre tem uma.
– Vamos mudar de assunto, por favor. Senão eu vou embora de
uma vez. Eu já não estou querendo sair, se você ficar enchendo o
meu saco vou ficar pior ainda.
– Tudo bem! Não está mais aqui quem falou. Pô, Felipe! Você
anda mudado mesmo, antes somente faltava um alto-falante para
você contar para todo mundo seus casos...
Os dois se calaram por alguns instantes dentro do trânsito caótico
na hora do rush até que Ivan tentou puxar conversa novamente:
– E a comadre? – intrometeu-se Ivan. – Vocês não voltaram até
hoje?
– Até hoje. Você acredita? – admirou-se Felipe.
– Não se perturbe por isso, aquela mulher não vale nada! É melhor
assim. Afinal de contas, ela é uma prostituta, e uma mulher assim,
meu caro amigo, não vale nem beijo na boca.
– Mas eu fiz uma coisa que pode acabar mudando a cabeça dela.
Ela não vai ter mais opção. Vai acabar voltando para mim como eu
sempre quis.
– E o que você fez dessa vez?
– Contei tudo para o pai dela.
– De novo! Você sabe que isso não adianta, esse tipo de mulher
sabe passar a lábia no papai, ele sempre vai ficar acreditando mais
nela do que em você.
Ivan continuava conduzindo o veículo.
– Só que dessa vez eu fiz diferente – disse Felipe. – Adivinhe o
que eu fiz?
– Não sei. Como posso saber! O que você fez? – indagou Ivan.
– Eu falei para o pai dela tirar a prova dos nove, encontrando-a
justamente no local onde ela faz o trottoir.
– Você fez isso, cara? Eu não acredito! Você não vale nada
mesmo. Se ela acaba descobrindo, cara, vou lhe falar sério, pode
esquecer.
– Deus sabe que eu estou fazendo certo. Essa menina tem que
aprender de uma vez por todas que a vida não é assim. Todos nós
temos nossas dificuldades, mas eu penso que são apenas provações
de Deus para ver se você faz o bem ou o mal realmente.
– Sinto, amigo, mas você não vai convencê-la com essa lenga-
lenga de provação de Deus.
O automóvel foi aproximando do bar, o ambiente parecia bem
amistoso com algumas mulheres dando o ar da graça. Felipe não viu
nada que o agradasse, seus pensamentos ainda estavam dominados
pela loucura apaixonante de ver a vizinha.
Deixaram o carro estacionado a poucos metros do bar,
caminharam de olhos sorrateiros sobre as mulheres presentes
tentando avistar alguma que correspondesse, e circulando entre as
mesas sentaram na de número cinco.
Felipe adorava tomar chope todos os fins de tarde, mas aquela
ocasião não era de sua vontade, pois seus sentimentos ainda
estavam maduros para com a vizinha, era um sentimento enraizado
nas primeiras atitudes do começo, ele tinha aquele raro desejo de
querer agradar ao romance dos dois, por isso, mal tinha chegado ao
bar e já estava resmungando, querendo ir embora.
Ivan rodopiou a cabeça procurando mulher:
– Então, Felipe, até que está bom aqui hoje – disse ele. – Não foi
uma má sorte eu chamá-lo. Olha aí, por todos os lados você
somente vê mulher bonita. Ainda mais agora que você não tem mais
Grace. Você tem que aproveitar essa vida de solteirice.
– Não me lembre Grace – reclamou Felipe. – Tenho certeza que
ela vai voltar, não existe razão para ela me esquecer de vez, tudo o
que eu disse já dissera antes, em outros momentos, e mesmo assim
ela voltou. Se tem uma coisa que eu tenho certeza dentro de mim é
que Grace sempre foi completamente apaixonada por mim.
– E você? Sempre correspondeu o mesmo?
– Quer saber a verdade? Não, eu nunca senti algo além do que
garantia de sexo no final do dia. Você sabe o quanto é desgostoso
ficar sozinho.
– Não sei não, Felipe, mas às vezes você demonstra que gosta
dela, você sempre se irrita quando ela não faz as suas vontades.
– Não é isso! É que eu tenho essa verdade na minha cabeça,
mulher minha tem que fazer jus ao nosso namoro, somente fica
comigo. De que adianta você estar com alguém se no final da noite
terá cinco, sete ou dez homens diferentes?
– Você tem razão, não sei como você aguenta, eu não suportaria
nunca namorar uma prostituta. Amigo, quer saber de uma coisa?
Essa mulher foi seu fundo de poço. Esquece essa vadia.
– E perder a minha garantia de sexo no fim do dia?
– Sabe de uma coisa? – insistiu Ivan. – Eu não entendo você. Com
tantas mulheres à nossa volta, quase todas poderiam ser parceiras
exemplares, mas você prefere mudar a cabeça de uma puta. Você já
pensou no que está querendo? Você está querendo fazer de uma
puta uma Amélia apaixonada. Esquece! Isso é impossível!
– Eu confio no meu taco... – declarou Felipe.
– Já que você confia tanto assim no seu taco, por que você não
tenta arrastar alguma daquelas ali para cá?
– Esquece! Eu não estou com saco para ficar galanteando ou ficar
babando ovo de mocinhas sorridentes e inseguras. Estou a fim de ir
embora e não adianta, eu falei para você que se eu não gostasse do
lugar você me levaria para casa.
Ivan tentou que o amigo ficasse mais um tempo, mas Felipe, com
o libido aceso, somente pensava em túrbido na vizinha de seus
sonhos mais viscerais.
– Não, Felipe, agora você espera. Acabamos de chegar! Você às
vezes tem o espírito muito arrogante querendo que todos façam
aquilo que somente você quer.
– Não, Ivan, eu falei para você que não queria vir. Você que
insistiu, eu falei, se eu não gostasse iria embora imediatamente.
– Espere! Nós nem aproveitamos nada.
Eles ainda permaneceram no barzinho por algum tempo. Ivan
estava de pensamentos ariscos, querendo de qualquer forma se dar
bem com alguma moça que estivesse presente. Enquanto Felipe,
somente pensava naquele sentimento ardoroso, mas distante da
pessoa amada.
A capacidade de amar de Felipe era estúpida, pois ele não
conseguia administrar o próprio coração, o desejo era intenso de
permanecer amando durante todos os dias, a vontade de estar tão
próximo da vizinha fazia com que suas verdades se transformassem
na intensidade distante que somente o amor movimenta. Sim, o amor
movimenta intensos quereres, em que a pessoa mais desejada não
percebe nem um pouco as confusões de pensamentos de quem
ama, às vezes tornando-o em um louco, ou quase isso, querendo
passar por cima de todos os seus pudores e vergonhas, aceitando
como certo somente o instinto.
Felipe, decididamente, queria ir embora para rever seu saudoso
momento de platonismo escondido em seu coração pesado.
– Sinto muito, Ivan, mas eu não fico nem um momento a mais
nessa chatice, tenho que dormir, eu trabalho amanhã logo cedo, não
posso viver uma vida de bon vivant – disse Felipe, ocultando sua
verdadeira vontade.
– Tudo bem, você tem razão. Mas da próxima vez, nem pense em
me chamar nas suas horas de alegria, naquelas horas em que
somente você sabe que quer tanto se divertir. Tudo bem, quando eu
quero você não quer – irou-se Ivan.
– Não fique assim. Eu tenho que ir mesmo. Você não pode pensar
dessa maneira. Não é possível que agora você vai ficar se doendo.
Pô, cara, eu o conheço há mais de dez anos.
– Não sei por que você é assim, mas deve haver algum motivo...
vamos, eu o levo! – conformou-se Ivan.
Com o corpo quente de emoção, Felipe levantou, finalmente
estava prestes a rever sua paixão violenta, foi na frente, conduzindo
o caminho para Ivan.
– Eu não acredito, Felipe, olha o tanto de mulher bonita aqui, eu
não acredito que você está indo embora para dormir. Simplesmente
você não é mais o mesmo – disse Ivan.
Felipe ficou calado com seus passos decididos, querendo porque
querendo sentir a emoção do coração.
“Se ele soubesse da beleza divina e harmônica daquela minha
vizinha danada de gostosa!”, pensou Felipe.
Os dois chegaram na frente do carro, fugindo das luzes coloridas
do bar, as únicas luzes onde nasciam as vontades donairosas de
amar. Ivan estava puto de raiva, estava decidido a pegar alguma
mulher. Mas para Felipe, a noite não terminaria sem seus seguros
impulsos de encontrar alguém, pois, para ele, já tinha encontrado
esse alguém, impossivelmente, numa idade em que já se
desesperançava em sentir emoções fortes no coração, ele estava
certo de que estava amando, por isso fazia de tudo para encontrar a
vizinha no lugar de costume.
Ivan entrou no veículo esperando Felipe para novamente puxar o
mesmo assunto que estava na ideia, ele não entendia o porquê de
Felipe mudar tanto de comportamento, pois antes sair com o amigo
era uma verdadeira festa.
Felipe entrou pelo lado direito sem muita conversa, não queria de
forma alguma demonstrar para o amigo que uma paixão estava
revirando sua cabeça tanto assim.
Ivan logo ligou o carro e partiu esperando o momento certo para
cutucar o amigo:
– Felipe, me diga uma coisa – enunciou Ivan. – Você ainda não
conseguiu esquecer Grace, não é verdade?
A pergunta oportunista não revelou o conhecimento da verdadeira
paixão de Felipe naquele momento, mas ele se incomodou. A vizinha
tinha as reais qualidades que um homem vê em uma mulher,
totalmente diferente de Grace que somente o fazia tentar esquecer
os sentimentos mais ternos. Talvez fosse a raiva que Grace
provocava nele que embrutecia seu coração, ele sentia isso, talvez
fosse amadurecimento ou uma espécie de idiotice vulgar, mas
namorar com uma garota de programa às vezes o fazia sentir um
ciúme exagerado com proporções de humilhação de seus
sentimentos masculinos.
Felipe demorou um pouco para responder à pergunta.
– Quer saber a verdade mesmo? – indagou ele. – Eu não sinto
nada por Grace. Quando vejo Grace somente sinto o que meu
membro sente, somente sexo, é isso. Talvez seja machismo meu,
mas não existe forma alguma de me sentir apaixonado por Grace.
Como alguém vai sentir alguma coisa com alguém que se conhece já
na cama valendo um quinto do seu salário.
– E se Grace mudasse do dia para a noite! – continuou Ivan. –
Você faria de tudo para tê-la novamente?
Só de falar em Grace seus sentimentos se agrediam, ele se irritava
facilmente, diferentemente de ficar pensando em sua musa posando
suas formas artísticas na janela. Felipe somente tinha os olhos no
horário, temia em não conseguir chegar a tempo para vê-la trocando
de roupa, sempre na mesma janela.
Com um pensamento sóbrio ele respondeu:
– Não.
– Não!?
– Não... Grace nunca conseguiu me agradar fora da cama. Uma
mulher tem que ter as qualidades certas para um homem... uma
dessas qualidades seria a dedicação total de sua vida para o seu
homem – disse Felipe.
– E você acha que ainda existe mulher assim?
– Existe.
– Fale-me quem que eu caso com ela hoje mesmo.
– Não sou eu quem vai revelar o segredo dos diamantes.
Enfim, o veículo chegou na rua onde morava Felipe depois de
cruzar o centro até a região de prédios populares da cidade.
Felipe saiu do carro e esboçou uma breve despedida, enquanto
Ivan, curioso, desejava esclarecimentos:
– E quem pode me revelar o segredo dos diamantes? – perguntou
Ivan.
– Procure a resposta nas janelas da cidade – respondeu Felipe, se
despedindo ironicamente.
Ivan pensou, pensou, pensou e pensou...
“É, ele deve estar louco antes do tempo”, pensou Ivan, antes de
partir com o veículo roncando com potência total. “Quem quer saber
de janelas e de diamantes? Eu vou atrás da única resposta da vida:
mulher!”
Felipe caminhou até o prédio ainda com a fadiga do dia
trabalhado, mas havia uma chama que queimava por dentro, uma
paixão que iluminava a escuridão. De todo aquele encantamento
ainda havia uma coisa que rompia os laços de uma aproximação,
Felipe não sabia o nome dela, afinal, qual seria o nome da vizinha?
Seria Márcia, Roberta, Suzane, Karina, Viviane, Andreia, Alessandra,
Regina, Patrícia, Adriana ou Luciene? Afinal, qual era o nome
daquela vizinha que despertava paixão em seus olhos? Novamente
ele sentia aquela repugnância de aceitar que seu coração deitava de
felicidade eterna somente de pensar naqueles desejos luxuriosos,
afinal de contas, para ele era vergonhoso um homem da sua idade
ainda ficar caindo por uma menina aparentando ser bem mais nova,
talvez dezessete, dezesseis ou quatorze, quem sabe? Às vezes ele
se alegrava da única informação que tinha sobre ela, de que ela
certamente não deveria ser tão nova assim, pois era fácil notar que
ela morava sozinha, e nenhuma menina tão nova assim morava
sozinha.
Felipe subiu as escadas, ansioso, apreensivo, somente esperando
aqueles olhos encantadores sob sonhos de liras melodiosas.
“Ainda estou com sorte, ainda está na hora em que ela troca de
roupa. Deus, eu tenho que roubar essa mulher para mim! Eu tenho
que fazer alguma coisa, ela já está me dando sopa há bastante
tempo”, refletiu ele.
Aquele inferno da ansiedade voltava sempre que Felipe chegava
em casa e tentava abrir a porta do apartamento, suas mãos ficavam
trêmulas e ele não conseguia virar a chave na fechadura. A vontade
de sentir a umidade dos olhos da vizinha fazia com que ele perdesse
os momentos de pensamento certo para cada ação. Então, com
muita dificuldade, ele se acalmava e voltava a comportar suas ações
até conseguir abrir a porta.
Depois de abrir a porta ele tentou diminuir a ansiedade procurando
algo na geladeira e revisitando todos os cômodos do apartamento,
quando enfim abriu as cortinas num jeito exasperado de quem
esperava aquele momento por várias horas. Arfando com dificuldade,
ele não conseguiu na primeira olhada notar a presença dela, depois
de uma segunda arregalada de olhos ele conseguiu sentir a
presença da sorte pairar sobre seu coração, ela estava novamente
lá, linda, bela, inocente, lívida, resplandecente, encantadora e cheia
de algum pudor que dominava os desejos viris de Felipe. Sim, ela
estava novamente lá, na mesma janela de sempre, com o mesmo
olhar demasiadamente embevecido, reto, certo e direto aos olhos de
Felipe que cada vez mais diminuía no peito a casca grossa de
homem rude e estúpido. No semblante dele um sorriso
embasbacado de quem parecia estar contemplando o amor de uma
doce menina de ares angelicais, o amor ou a paixão ou qualquer
outra coisa mais, atirava todas as outras vontades da vida no inferno,
era como se ele estivesse sonhando com um paraíso real ainda em
vida. A noite serena com estrelas brilhantes era somente um detalhe
daquela visão, que mais parecia uma tela de perspectivas
renascentistas, com o lúdico de sentir uma pequena possibilidade do
amor se aproximando do seu destino, pequena possibilidade que
mais agravava as dores da alma de um homem perdido nas
mulheres mundanas do que se inibir com a presença dele.
As brincadeiras sutis de sedução dela animaram os sentimentos
rústicos de Felipe. Até que num dado momento ela sumiu da janela,
Felipe, enlouquecido, ficou esperando, ele tinha que sentir aquela
estrela seduzindo com brincadeiras de amor, somente um olhar era
muito pouco para ele, mas tentava sempre conter seu instinto por
aparentar ser bem mais velho do que ela. Talvez fosse isso que o
mantinha distante dos desejos dela.
Alguns instantes se passaram até que ela voltou para a janela, só
que dessa vez ela fez uma coisa que surpreendeu todos os sentidos
de Felipe, ela, bem num jeitinho sedutor, escreveu na janela com
batom a palavra love. O que passou na cabeça de Felipe ao ler a
palavra em inglês? Certamente amor era a palavra que o seu
coração mais aceitava, pois ele sentia a palavra na sua plenitude de
vontade, era a real virtude que sua alma sentia. Pensar em Grace
era como pensar no esquecimento, pois a vizinha enxaguava todos
os sentimentos profundos com um real sentido de amar, sim, era o
que ele estava sentindo. A dúvida presente era somente aquele
platonismo gratuito que lacerava a vontade ímpia dos corpos. Ele
respondia a palavra com um fitar de olhos apaixonados, ela também
dava seus ares de paixão dominando facilmente os olhos
domesticados de Felipe. O tempo foi morrendo com a noite, somente
o brilho da lua radiava naquela presença perfeita do amor sendo
encontrado no caos degenerado da cidade, passou ainda alguns
minutos platônicos até ela fechar a janela e a cortina como sempre
fazia desde o começo, assim era mais fácil deixar um desconhecido
perdidamente apaixonado, como quem mostra o doce, mas não
deixa nunca comê-lo, assim a pessoa acaba desejando o doce como
a última coisa de sua vida. Ainda houve tempo de ela acenar um leve
tchauzinho apaixonante.
Felipe ficou sozinho, olhando para a janela fechada dela,
hipnotizado e delirando de emoções. Agora sim, era verdade, aquele
anjo celestial estava realmente perdido de amores por ele, depois
daqueles sinais, seu coração aceitava com originalidade o sabor de
amar.
Ele fechou sua janela pensando no quanto era bom amar alguém
que se declinava às suas vontades, era como se ela lesse seus
pensamentos, era aquilo que Felipe esperava. Logo em seguida, ele
foi para o quarto e se estirou sobre a cama com a cabeça
enlouquecida de verdade comprovada por fatos: ela realmente
estava correspondendo seu amor singelo. Por mais que fosse difícil
de se imaginar era o que estava acontecendo, uma atração violenta
pelo amor de um e do outro.
Dormindo novamente estava Felipe sem ao menos tentar uma
sorte maior, mesmo depois de comprovar um fato que mesmo assim
podia-se transformar em brincadeiras de menina, ainda estava Felipe
sorvendo daquela intimidade declarada.
Pensamento de Felipe:

Sim, ela me ama... não vou precisar dos pés de Grace, nunca
mais! Sim, ela me ama.
Mas eu sei, infeliz seria meu coração se minha alma não saltasse
daqui até a janela dela. Sim, eu sei, eu quero pular, mas toda mulher
tem sua segunda opção de pensamento. Eu não estou preparado
para ouvir um não dessa menina, de todas, até de Grace eu consigo
ouvir um não, mas quando meu coração sente a pulsação
verdadeira, eu somente aceito um verdadeiro sim.

Enquanto Felipe perdia mais uma noite para fazer tudo em nome
da paixão, no dia seguinte, a única mulher com quem ele trocava
amores verdadeiros, Grace, estava apavorada, chegando no pátio de
sua faculdade, temia que seus colegas espalhassem entre os outros
a sua verdadeira condição, era normal ela ter aquele medo presente,
pois, apesar de viver às escondidas como uma garota de programa,
ela tinha medo de que as pessoas que formavam sua vida social
soubessem que ela era prostituta. Era inevitável que numa
universidade particular renomada, onde as vaidades se
confrontavam, facilmente os comentários se alastrariam. Mesmo
assim, Grace tinha uma esperança renovada, pois, depois do flagra
que seu pai deu em sua vida, ela decididamente estava pronta a
deixar a vida das ruas, então indo para a faculdade tentou esperar
quais seriam as reações dos colegas.
Caminhando rumo ao pátio, Grace estava introspectiva, pensando
em mudar toda sua vida, rever seus conceitos, aliás, era o mínimo
que ela poderia fazer, pois seu pai conscientemente estava com toda
razão. Mudar tudo de uma vez seria difícil, mas o pior de tudo seria
se as colegas soubessem dos seus segredos profundos, a única
vergonha na vida era ter que se passar como uma prostituta entre
colegas e professores.
Quando ela chegou no pátio avistou de longe uma roda de todas
as suas colegas mais ricas, ela acenou tentando cumprimentar, por
mais que acenasse, mesmo de longe, suas colegas nem se davam
conta de sua presença. Foi então encontrá-las de perto se afastando
das pessoas com uma dificuldade de segurar apostilas, livros e
cadernos entre uma multidão de alunos.
Até que num dado momento ela chegou perto das colegas
patricinhas.
– Gente! Vocês não me viram acenando para vocês? – perguntou
Grace, ainda ingênua sobre o assunto comentado entre todos de sua
turma – Vocês sabem se hoje haverá prova?
Todas as colegas, sem dizer nada, se afastaram da presença de
Grace, todas frias, como quem tem autoridade para reprovar
qualquer atitude, caminhando como se Grace nem existisse, talvez
houvesse pudores em suas consciências.
Grace continuou tentando esboçar uma conversa.
– Amigas, o que houve? – continuava Grace. – Por que vocês não
olham para mim? Vanessa! Raquel! Vocês podem me dizer, por
favor, o que está acontecendo aqui?
– Eu sempre achei que não passava mesmo de uma rampeira –
disse a última que se afastava.
Todas se afastaram de Grace no mesmo instante em que a maioria
dos alunos caminhava para as suas salas.
Grace sentiu naquele momento a força da verdade carimbar sua
vergonha falseada com um sorriso meigo de pequena ignorância.
Sim, não parecia real, mas a verdade veio à tona dentro do pequeno
meio social. O que fazer naquela hora? Grace não sabia, mas queria
muito se esconder para talvez tentar encontrar confiança em suas
virtudes. Realmente seus colegas-monstros deram com a língua nos
dentes, por mais que Grace tentasse amenizar a dor, a vergonha
vinha e se sobrepunha sobre seu encantador sorriso. Ela ainda ficou
olhando para todos com uma desconfiança: será que estão
sabendo? Era vergonhoso, porque muitos que passavam por ela
soltavam um semblante reprovador. Era realmente o revés de toda
uma vida sonhada. Tudo parecia cair por terra.
Grace buscava esperanças, melhores destinos e um lugar para se
esconder. O choro novamente voltava contido olhando as suas
amigas reprovarem sua vida secreta, não havia nada o que fazer, era
apenas esperar as coisas se assentarem. Grace, quase sozinha,
iluminada no pátio, correu para o banheiro onde queria deixar os
contornos da vida desaguar em tristezas.
Ao entrar no banheiro ela avistou uma moça vestida de preto que
sempre tinha alguma rixa com as patricinhas da faculdade.
– Quem diria! De manhã uma menininha bem-vestida e
comportada, de noite uma puta vendendo desejos aos famigerados.
Que nojo! – disse a moça.
– É mentira! – devolveu Grace. – E além do mais, não tenho que
dar satisfação para ninguém sobre a minha vida.
A moça saiu do banheiro rindo dos gritos histéricos de Grace que
não tinha mais como segurar, então deixou o pranto rolar. Ficou
sentada numa privada com as lágrimas escorrendo pelo rosto, a
vergonha estava solta rodopiando nas línguas maldizentes dos
colegas.
Pensamento de Grace:

Por que teve que acontecer logo comigo? Definitivamente a vida


não presta, estou cansada de ser motivo de piada dos outros. Se
pelo menos aqueles malditos pudessem ficar calados. Eles
acabaram criando um monstro no meu lugar. Minha nossa! O que
vou fazer agora? Minha vida está perdida! Como vou continuar
estudando aqui por mais três anos com todas essas pessoas
humilhando meu caráter? Oh, Deus! Meu pai que teve a verdadeira
razão para me ajudar.
Mas não vou aceitar tudo passiva desse jeito. Erga a cabeça,
Grace! Você vai para aquela sala de aula com a cabeça erguida, sem
olhar para ninguém, como se fosse uma rainha acima do bem e do
mal. Não deixe esses covardes lacerarem os seus sonhos.

Quando Grace se preparava para sair.


– Não chore, dama da noite, com certeza, tem um homem muito
rico lhe esperando – disse uma outra garota que estava no banheiro
ouvindo suas lágrimas.
– É mentira! – gritou Grace, raivosa.
Grace deixou com que as palavras voassem longe do sentimento
carregado. Observou o destino sonhado e partiu com passos
decididos até a sala de aula, pensou, por um instante, que não seria
a reprovação de garotos mimados que a cessaria de lutar pelos seus
sonhos. O rumo de uma grande modelo estudada já estava traçado,
não havia mais motivos para olhar para trás, e além do mais, ela
tinha prometido para seu pai que não voltaria mais a fazer
programas.
Ela saiu do banheiro com a cabeça rígida, certa de que nada a
diminuiria como mulher, andou pelos corredores enquanto o silêncio
ainda perdurava. Quando ela chegou perto da porta de sua sala
tentou respirar profundamente e esquecer os olhares de desprezo,
afinal os verdadeiros amigos somente aparecem nessa hora.
Passou um tempinho até ela tomar coragem para entrar. O
professor, sem saber de nada, calmamente dava sua aula. Ela entrou
firmemente pedindo licença e com os olhos diretos na cadeira em
que se sentaria. Suas pernas queriam amolecer, mas a vontade da
consciência era mais forte. Quase todos os alunos notaram seu
caminhar decidido até ela se sentar com o máximo de decoro
possível.
– Ela desfila melhor na avenida Afonso Pena, gente! – disse Nuno,
para a sala, ironizando
Vários alunos riram juntos, enquanto Grace, sentida, procurava
ficar calma, baixando a cabeça sem retrucar os colegas perniciosos.
Ela sentia que eles prolongariam as gozações infantis, então o
melhor que poderia fazer era prestar atenção na aula do professor.
Mas a aula não perduraria tanto tempo com os alunos em silêncio.
Num dado momento, Nuno, Guilherme e Raul combinaram com
outros colegas uma chateação para Grace. Ela já estava até
esquecendo da história, com uma compenetração fora do normal na
aula, parecia até, que, sem se sentar com as colegas de costume,
ela aproveitava mais os seus estudos.
Depois da criancice armada, eles começaram a cantar numa
espécie de grito de torcida, dentro da sala de aula:
– Puta... puta... puta... puta... puta...
Grace ficou bastante nervosa enquanto os garotos faziam a piada
e os outros ficavam rindo para os ares. Ela não sabia o que fazer,
não sabia se tentava responder à altura ou se ficava calada
menosprezando a brincadeira.
Até que o professor, cansado da palhaçada, interviu:
– O que é isso, gente? – brigou o professor. – Vocês nem parecem
que são universitários. Por favor, vou dizer somente uma vez,
guardem suas baixarias quando forem assistir futebol.
O silêncio perdurou cinco minutos até eles cantarem novamente.
– Puta... puta... puta... puta... puta...
O professor parou de riscar o quadro negro para se voltar
novamente aos alunos.
– Por favor, gente! Vocês não são mais crianças – advertiu ele. –
Tratem de prestar atenção.
– Pode deixar, professor. Essa brincadeira é comigo – disse Grace.
– Olha aqui! Cuidem de suas vidas que eu sei muito bem cuidar da
minha.
Responder às provocações foi a pior coisa que Grace fez.
– Cuida da minha vida também – gritou Nuno. – Eu pago cemzão.
– Eu pago duzentão! – berrou um colega.
– Dá para fazer um desconto para mim, eu só tenho cinquentinha
– zombou outro.
Todos riram bastante.
– Calem a boca, seus ridículos! – devolveu Grace.
– Por que você esqueceu a bolsinha justamente hoje que eu
estava querendo tirar uma.
– Por favor, eu não acredito que estou ouvindo isso – continuou
Grace. – Escutem aqui uma coisa! Eu pago a mensalidade da
mesma forma que vocês pagam, então eu exijo respeito.
– Ela tem toda razão – intrometeu-se o professor.
– Que nada, professor! – ralhou Nuno. – Ela paga a faculdade com
o dinheiro imundo ganho na Afonso Pena.
Foi o momento para a turma cair numa baderna geral:
– Puta... puta... puta... puta... puta... – continuaram ironizando a
pobre Grace.
O professor logo se irritou com a situação:
– Já que vocês não são educados o bastante, então vou educá-los
na marra – disse ele. – Trabalho em grupo de cinco para me entregar
no final da aula, valendo nota, tudo sobre o que eu disse até aqui na
aula de hoje.
– Obrigada, professor – agradeceu Grace.
A turma logo ficou insatisfeita com a exigência do professor. Todos
aguardavam uma aula breve sem muitos afazeres, por isso
brincavam com Grace, mesmo sendo uma brincadeira de mau gosto,
eles agiam como se fossem macacos enjaulados. A atitude agressiva
do professor era justamente uma tentativa de acalmá-los, pois ele
sentia que Grace estava enfrentando uma discriminação pesada.
Mas a vida sempre foi cercada de cabeças degeneradas que não
conseguem evoluir de uma semente apenas. O que faltaria
acontecer? Faltaria apenas eles lançarem pedras contra Grace como
nos tempos bíblicos.
Como não havia mais como resmungar, todos foram arrastando
suas carteiras para formar os grupos de cinco. Grace, no primeiro
momento, ficou observando, esperando alguém para formar seu
grupo, mas ninguém apareceu. Certamente, estavam todos
ocupados em fortalecer o desprezo e a discriminação. O mundo
nunca completaria um agrado para as mulheres da vida, sim, era
esse o termo que julgava Grace como uma mulher desqualificada de
sentimentos ternos femininos dentro da sociedade. Grace estava
comprovando a certeza de que sairia chutada até às portas do fundo
daquele meio, era a vontade orgulhosa sobressaindo perante o
perdão. Havia perdão, quem sabe desculpas por ela não ser igual a
todo mundo? Não, a sociedade transfere de geração em geração
seus preconceitos enraizados, na maioria das vezes, no medo, medo
de que a pessoa estivesse certa em fazer o que fez.
Grace, sem grupo, resolveu conversar com o professor para dar
início aos seus estudos:
– Professor! – chamou ela.
– Qual o problema, Grace?
– Todos os grupos já estão formados com os cinco integrantes,
ficou restando somente eu.
– Não há problema algum se você entrar em algum grupo já
formado.
Ela acabou ouvindo o que não queria ouvir, temia a hostilidade dos
colegas, pois seria difícil como as coisas estavam de algum grupo
aceitá-la. Como era a única coisa que restava fazer então ela
resolveu conversar com o grupo onde suas amigas mais íntimas,
Vanessa e Raquel, estavam.
Novamente a pior escolha foi feita. Ao lado do grupo ela tentou se
justificar:
– Eu estou sem grupo e o professor falou que eu posso entrar para
formar um grupo de seis. Vanessa, Raquel, posso me sentar com
vocês? – pediu Grace.
– Depende – respondeu Vanessa. – Você sabe alguma coisa sobre
a matéria?
– Não... mas eu posso ajud...
– Minha filha, procura outro grupo, não posso perder meu tempo
com uma falida rampeira e sem um mínimo de distinção e respeito.
Além de não saber nada, não passa de uma prostituta de quinta
categoria. Sabe, eu acreditava em você... mas eu odeio mentiras e
você mentiu. Por favor, nunca mais dirija a palavra para mim – disse
Vanessa, em tom enérgico.
– Por favor, Vanessa, acredite em mim! – insistiu Grace. – Tudo
isso não passa de difamação.
– Olha aqui, Grace! Nós não estamos querendo mais a sua
presença. Nós fomos educadas dentro de uma tradição religiosa que
certamente você nem conhece e temos namorados que nos aceitam
como nós somos. Pode parecer meio antigo, mas ainda quero ter o
respeito das pessoas que gostam de mim, então dê meia-volta e se
retire, não quero que as pessoas me peguem conversando com
você. O que vão pensar de mim? Que sou pistoleira como você.
Cruzes!
– Tudo bem. Eu sinto muito por trair a confiança de vocês, mas um
dia vocês vão perceber que eu fui injustiçada.
Ouvindo a conversa o colega Nuno decidiu soltar todos os
demônios em cima de Grace:
– Olha aqui a foto dessa coisinha rodando bolsinha na Afonso
Pena – intrometeu-se Nuno. – Além de vulgar é ardilosamente
mentirosa.
– Meu Deus! É mesmo verdade! Ela é realmente do mais baixo
nível – espantou-se Raquel, ao ver uma foto de câmera digital.
– Como você conseguiu isso? – irritou-se Grace. – Me dê aqui
essa foto.
Nuno, se divertindo com a situação de humilhar alguém, começou
a passar a foto para mostrar a todos presentes.
– Olhem só o nível dessa mulher – disse o playboy, ironizando. –
Olha só o quanto ela está ridícula com essa minissaia curta, mais
vulgar impossível! Sinto, Grace, mas todos estão no direito de saber
a verdade.
– Me dê aqui essa foto, seu mauricinho de meia-tigela! – continuou
Grace, tentando pegar a foto. – Ordinário! Me dê essa foto.
O playboy Nuno ficou percorrendo a sala inteira mostrando a foto
aos colegas. Todos foram se divertindo, ironizando e humilhando as
condições de Grace.
Por mais que parecesse incomum, aquele rapaz, supostamente
educado em bons colégios, vingou uma vontade agressiva contra as
vergonhas de Grace, era de arrepiar no quanto os pudores pessoais,
vulgarmente, sempre existiram. Assim era o playboy Nuno,
galhofando das tristezas contidas de uma mulher que não podia ver
o mundo da mesma forma que ele via. A juventude consegue ser
mais vaidosa do que o amadurecimento.
Grace, bastante nervosa em tentar pegar a foto para si, começou a
esboçar novamente seu choro contido, magoada, ela não sabia o
que fazer, queria de qualquer forma esconder suas vergonhas num
lugar bem distante dali. Enquanto corria atrás do playboy Nuno ela
se arrependia de toda a sua história passada nas ruas da
prostituição. Bem que o pai, o namorado e a própria consciência
alertaram, mas não havia mais volta, o tempo agora chasqueava dos
seus temores.
Ela sabia muito bem que somente ela tinha procurado aquela
reação. O futuro parecia agora ser tomado por nuvens escuras e
cinéreas, não havia mais bonança no que seria cotidiano daquela
hora para frente. Até o machismo de Felipe fazia sentido naquele
instante de vergonha, Nuno mostrava, para a zombaria de todos, a
foto do trottoir dela. Infelizmente as coisas já estavam todas feitas,
seu círculo de amizades agora era somente poeira nos olhos. Ela
perseguia aquela foto como se fosse a última chance da vida,
demoradamente, aprendia que a vida sempre batia na alma que
calada somente aceitava as verdades dessa vida valente onde os
bandidos são sempre mais fortes que os heróis. Ela até pensou na
proteção de seu sonho maior de herói, o querido e desejado Felipe,
mas o único reconforto que teria agora era a fuga.
E foi o que ela fez, não suportando mais aquela vergonha de
correr atrás de Nuno, decidiu então sair da sala, o choro já estava
borbulhando no coração, a única coisa que passava em sua cabeça
era correr ao encontro dos braços protetores de Felipe. Sem
nenhuma esperança ela correu com as mãos sobre o rosto através
da porta da sala. O professor ainda tentou impedi-la de ir embora,
pois pensava que era apenas uma brincadeira de jovens, mas não
era, era, porventura, uma espécie de desgraça para uma menina que
começava a vislumbrar a vida obumbra da realidade.
Ela caminhava triste, pensando no que faria naquele momento, a
única coisa que passava em sua cabeça era trancar a matrícula,
quem sabe assim poderia esperar um ano para estudar com outros
colegas que não soubessem do fato. Era como ela estava
enxergando seus anos de prostituição, um fato de delírios juvenis,
pois sabia que não seria assim que conquistaria seus sonhos íntimos
de sucesso. A enorme bola de neve estava crescendo, e ela não
tinha como evitar, primeiro, seu namorado brigou com ela por causa
dos malditos programas que ele tanto reprovava, segundo, seu pai
descobriu sua segunda vida, flagrando ao vivo e a cores, e por fim,
todo seu meio social também descobriu, para piorar fazendo piadas
e comentários maldosos. Realmente a vida até aquele dado
momento somente tinha uma única tendência, a de enterrar todas as
vontades da sonhadora Grace.
Enquanto caminhava nos corredores Grace tentava justificar a
vontade de trancar a matrícula.
Pensamento de Grace:
Eu não tenho como me defender mesmo, eles estão com toda
razão, eu procurei tudo isso até descobrir que a luz que vinha no final
do túnel era um trem de carga vindo em minha direção. Felipe,
principalmente Felipe, tentava me avisar, eu não escutei, agora tenho
que mostrar a ele a nova fase da minha vida. Tenho que agradecê-lo
por tentar abrir meus olhos, agora vejo a verdade e o carinho que ele
tem por mim. Somente você, querido Lipe, para me fazer amá-lo
mais a cada atitude de prova do seu amor, querendo sempre o meu
respeito, a minha fortaleza, a minha presença descoberta de valores
degenerados sobre a vida.
Mas de uma coisa estou certa, vou abandonar também essa
faculdade, antes a prostituição agora a faculdade, já que não tenho
como pagar meus estudos vou deixá-los, assim eu paro de fazer
peripécias para arranjar dinheiro. E as pessoas que conheci aqui não
valeram mesmo a pena, se elas são assim comigo é porque não me
conhecem, não são amigas de verdade. Somente meu querido Lipe
soube me adivinhar como pessoa, como alguém que também precisa
de amor.

Decidida, Grace foi até a secretaria.


– Eu gostaria de fazer meu pedido de trancamento de matrícula –
disse ela, em frente ao guichê.
– Primeiro eu vou precisar de um requerimento aprovado pelo
diretor – esclareceu a secretária.
– Sem problemas! É só me dar o folheto.
– Tem certeza que não é somente uma decisão precipitada. Olha
que muita gente se arrepende de fazer isso depois que vê todos os
colegas se formando.
– Não tem importância! Me dê aqui o requerimento que eu
preencho rapidinho com todos os meus dados.
Grace sentou-se numa cadeira e começou a preencher o
requerimento. Muitas coisas passaram em sua cabeça, se aquilo
seria o correto ou idiotice, mas logo lembrava do valor da
mensalidade e da dificuldade que seus pais teriam em pagá-la, e
sem a ajuda do dinheiro dos programas, sentia que estava fazendo o
mais certo possível naquela hora. Enquanto ela preenchia o
requerimento seu coração batia freneticamente pela ansiedade de
correr logo ao encontro de Felipe para dizer o quanto o amava e que
finalmente estava largando a vida de prostituição.
Mesmo com a confusão de ideias diferentes, ela sentia que era o
mais cabível para sua vida ser entregue ao coração do amado. Com
as mãos um pouco trêmulas ela preencheu rapidamente o
requerimento, no coração havia somente uma saudade amorosa de
Felipe.
Grace entregou o requerimento para futuramente aguardar
resposta de aceitação.
Quando ela já estava no ponto de ônibus, sufocando a vontade
imensa de encontrar Felipe, o brilho do dia dava lugar a escuras
nuvens pesadas, inevitavelmente parecia chover.
Ela realmente estava indo ao encontro do coração, do sim, da
verdade de sentimentos. Toda aquela reação dos colegas a fez
acreditar que Felipe a amava de verdade, as brigas passadas não
mais pesavam na sua decisão, estava pronta para esquecer o
orgulho novamente, a fim de ter Felipe novamente do seu lado.
Apesar das brigas e mais brigas, algo perceptível a fazia acreditar
que somente procurando ele, o livramento a alcançaria. A decisão
novamente era dela, pois muitas vezes já brigou com ele, mas como
ele sempre esperava, então ela novamente estava de retorno com o
peito tangido de saudade imensa. O que a fez sentir para esquecer o
orgulho novamente? Nada ocorreu, não foi seu pai, não foi sua
amiga Paola, nem as provocações dos colegas, era, tão somente, a
liberdade que ela desejava, uma liberdade acompanhada, a
liberdade de estar presa a alguém.
A ansiedade desejava empurrar todos os ponteiros do relógio para
deitar-se naquela noite com Felipe, uma vontade progressiva que
deveria ser acalmada até passar oito horas, esse era o tempo que
ele ficava no trabalho operando uma empilhadeira de um lado para o
outro, e como ainda era cedo, ela então aproveitou o tempo para
procurar um emprego, e dessa vez seria para valer, decididamente
ela firmou a atitude de sair da prostituição.
O ônibus viajava pela cidade, levando uma outra Grace, uma
Grace nova, uma Grace renovada, uma Grace com sonhos puros e
verdadeiros, era como se visse o mundo pela primeira vez, era como
se estivesse esquecida de todas as mentiras que esse mundo
prometera. Desse jeito então, com os olhos brilhantes sob as nuvens
carregadas do ar, ela estava de esperanças verdes e novas,
desejando felicidade para todos e para si. Qual seria o motivo
daquela felicidade recorde de Grace? Apenas o amor, ou um
livramento de um passado obscuro, que somente enxergando as
pazes com a vida, fez com que a pessoa buscasse a luz?
A felicidade de aceitar o outro caminho fazia de Grace uma
catalisadora de alegrias, a esperança era aceita como o primeiro
passo da eternidade, a atitude era a arma do infinito e a liberdade
era o prêmio do passado.
Desceu do ônibus dessa vez, não com um ar de cansada, mas
sim, com a vontade de ganhar o mundo, ela se sentia como uma
borboleta que deixava o casulo, pois dessa vez as coisas tinham que
mudar, porque ela também estava mudando, da decisão de voltar
para Felipe ela deixou para trás a prostituição, uma faculdade
caríssima e impagável e as mentiras do coração. O novo caminho
começava ali, de frente a uma agência de empregos.
Quando Grace se deparou com a agência, a dúvida novamente
beliscou sua consciência, não estava acostumada àquela aceitação
de pobreza, para ela o normal da vida ou era se casar com homens
ricos ou trabalhar intelectualmente, mas casando-se com homens
também ricos.
Ela ficou um bom tempo parada à frente da agência, perguntando
a si se valia a pena ou não, mas a certeza de um coração que se
acendia, lhe dava uma coragem para conseguir de volta a
consideração do pai. Então era a única coisa a ser feita, buscar uma
realidade nova, uma realidade que ela sempre desprezou, a
realidade de ser mulher honesta e trabalhadora, uma mulher que
sonhasse apenas sonhos de mulher.
Demoradamente ela entrou, tentando deixar para trás todos os
sonhos antigos, todas as realidades perniciosas e todas as vontades
enregeladas. Havia apenas o sentimento carinhoso de provar ao pai
que ela ainda era aquela menina tão meiga e carinhosa.
Decididamente ela buscou informações com a recepcionista que lhe
deu uma folha de papel para anotações de currículo. Até aquele
dado momento Grace nunca havia corrido atrás de trabalho nenhum,
era a primeira vez, mas era ciente das dificuldades, dos problemas e
das crises de que o país enfrentava. Porém estava longe de sua
cabeça que a crise estava em proporções alarmantes, pensava que
qualquer tipo de emprego de salário mínimo seria simples de
encontrar, ainda mais se tratando de uma pessoa de nível
universitário como o dela. Para a sua surpresa a realidade estava
mais dura e seca, foi quando entrou numa sala que a recepcionista
indicara que ela teve a grande decepção, numa sala imensa havia no
mínimo umas cem pessoas, todas preenchendo a mesma folha.
Tanto espanto novamente prostrava sua coragem de encarar a
realidade nua e crua, alfinetando seu orgulho de mulher formosa e
desejada.
E a consciência sussurrava a desistência, enquanto o outro lado
ditava o que a coragem não queria perder, pelo menos o fato de ter
buscado, essa era a chance de provar a todos que ela realmente
mudou.
Grace, pronta da realidade que a esperava, sentou-se numa
cadeira para anotar suas qualidades profissionais na folha, às vezes
olhava para o lado e se achava incapaz, que chances teria uma
garota de programa no meio de tanta gente qualificada? Talvez os
dotes físicos pudessem encantar o contratante. Não era difícil
desvendar esse pensamento dela, pois ela era realmente bonita.
As pessoas não se olhavam com muita gentileza, sentia-se no ar
que cada uma passaria por cima da outra, a qualquer custo, assim
estava Grace, pela primeira vez num ninho de cobras.
Sentindo aquela concorrência da realidade ela por um instante
pensou nos pais.
“É, a vida desse lado não é fácil, realmente seu Virgílio fez das
tripas coração para me dar esse mínimo de vida encantada que já
tive”, pensou Grace.
Seria Grace ingrata? Ou uma menina que fantasiou sua vida de
prostituição com ares de luxo e status, regada a carinhos
esporádicos de senhores magnatas que somente amam suas
próprias histórias de riqueza? Não, Grace não era produto do meio,
Grace era reagente, sim, reagente, ela sabia que o pai era da
camada mais popular da sociedade, e mesmo assim não ponderou
nenhuma questão antes de levá-lo com um empurrão de filha à linha
da miséria. Pois o único respeito que o pai tinha era o caráter, e
miséria não tem nada a ver com falta de dinheiro, e sim, com caráter,
que ele sentiu que perdera por ter uma filha como prostituta de luxo.
Como havia muitos candidatos na espera, Grace teve que esperar
várias horas até o momento de sua entrevista, e enquanto esperava,
as fantasias de amor borbulhavam na mente. Aquela dificuldade
parecia apenas suavizar seus incontroláveis desejos por Felipe, a
ansiedade queria romper no peito. Ela somente queria levar ao
namorado notícias boas e conseguir reatar o namoro de volta, mas
dessa vez com muitas carícias e muxoxos.
A manhã nebulosa já dera lugar para uma tarde ensolarada, e
essa tarde ensolarada deixou o lugar para um crepúsculo de nuvens
pesadas no ar, e mesmo assim, Grace, ainda estava na agência de
empregos. Era difícil crer naquela situação, mas Grace até aquele
dado momento não esboçou nenhum tipo de reclamação, parecia
que estava tentando reaprender a lidar com as dificuldades normais
da vida real. A única coisa que a preocupava era sair dali a tempo
para contar a novidade para Felipe.
Depois de muito tempo esperando, finalmente chegou a sua vez.
Grace foi chamada e levantou com uma elegância peculiar,
totalmente diferente do comportamento aprendido nas ruas,
realmente estava decidida a ultrapassar todas as barreiras que havia
no caminho entre ela, Felipe e seus pais. Uma secretária a
acompanhou até a sala de um provável diretor. Mesmo de
pensamentos honestos ela ficou um pouco nervosa, afinal ela estava
mudando o rumo da vida pela primeira vez.
A secretária abriu a porta da sala e pediu que Grace entrasse, foi o
que ela respeitosamente fez. Ao ver o diretor de recursos humanos
ela o cumprimentou com um aperto de mãos sem delongas,
esperando ouvir o que realmente queria ouvir. Grace era sempre
muito ansiosa e queria sempre que as coisas acontecessem no
primeiro passo que dava.
Mas, como acontecia com a maioria das pessoas, ela ainda não
estava preparada para ouvir um não.
– Então você está procurando algo dentro da área de Direito como
diz aqui na sua ficha? – disse o diretor.
– Sim. Quero muito – afirmou Grace.
– E por quê?
– Porque eu estou estudando Direito, e seria bem melhor atuar na
área em que eu estudo.
– Muito bem... E você tem alguma experiência anterior?
– Infelizmente, ainda não.
– Sinto, querida! Mas no momento estamos apenas relacionando
para os cargos compatíveis às pessoas que conferem com
experiência anterior.
– Como assim?
– É que os cargos que temos disponíveis exigem experiência
comprovada.
– Na certa eu devo ter cara de palhaça, não?
– Desculpe, moça, mas é uma exigência clara do nosso
contratante.
– Então vocês me fazem esperar quase oito horas, quando eu
cheguei aqui era de manhã e agora está quase anoitecendo, para
você me dizer que não! – raivou-se Grace.
– Infelizmente... você não foi a única, muitas outras pessoas
também esperaram.
– Ah, e você acha que com isso eu me contento!
– O que eu posso fazer? A vida é assim! Essa é a lei dos
negócios, da vida real. Aonde você esteve durante todos esses
anos? Em Marte? Não sabe que um quinto da população do país
está desempregado?
– Tudo bem! Eu desisto! – finalizou Grace.
Muito nervosa ela levantou e saiu da sala batendo a porta com
muita força, era a sua reação normal quando as coisas não saíam do
seu jeito. Atravessou o corredor como um pombo sem asas, sem dar
a menor atenção para a secretária e os outros presentes.
Para ela parecia ser definitivo que alguém lá no céu tinha
esquecido dela. Nada que Grace tentava de verdadeiro dava certo.
Por alguns instantes, enquanto caminhava para sair da agência de
empregos, ela pensava em voltar para os programas, afinal de
contas, de algum lugar tinha que sair dinheiro. Mas quem disse que a
lembrança do pai permitia a ela retomar a via contrária, saber que o
pai cairia em completa angústia com aquilo fazia sua consciência
doer. Depois, por consequência, vinha a lembrança de Felipe, esse
sim, conseguia afastar Grace de qualquer escuridão, era o amor que
ela sentia, que era muito grande, e aquelas esperanças renovadas a
fazia acreditar em ter o namorado de volta. Ela tinha guardado
aquele momento por tanto tempo que não seria a falta de sorte
profissional que mergulharia suas esperanças no nada. Grace tinha
que contar sua novidade sobre fidelidade para ele e estava decidida
desde quando saiu da faculdade a fazer isso.
Ela saiu por uma porta de vidro, procurando qualquer transporte
que a levaria ao apartamento de Felipe, os passos não se cansavam,
porque a ansiedade regia a favor do destino pretendido.
A raiva de perder a oportunidade do trabalho foi se apaziguando
com a necessidade de reatar o romance da sua vida. Ela sabia que
não podia ficar muito tempo naquela situação com Felipe, temia
perdê-lo por qualquer mocinha de coração certinho. Ela sentia
profundamente que tinha que mostrar a ele o quanto se esforçava
para se moldar às vontades e desejos dele. E tampouco era a
primeira vez, Grace tinha um instinto feminino muito aguçado, em
todas as brigas que tiveram, ela sempre dava o primeiro passo para
o retorno, definitivamente, parecia que ela perdia Felipe justamente
nessas decisões, de tanto mostrar sua paixão violenta, assim o
destino do namoro ficava sempre nas mãos de Felipe.
Grace ficou um certo tempo num ponto de ônibus, esperando, mas
a ansiedade falava mais alto, e além do mais, tinha a desculpa certa
para reencontrá-lo, não desperdiçaria essa chance por nada. Ficou
avistando o final da rua até se aborrecer e correr atrás de um táxi,
não seria por falta de dinheiro que ela deixaria de rever sua paixão.
Ela não perdeu tempo em parar na frente de um táxi.
– O que é isso, mulher? Ficou maluca? – gritou o taxista.
– Por favor, o senhor tem que me levar até o outro lado da cidade
apenas por quinze pratas, é tudo o que tenho. Por favor, é um caso
de vida ou de morte – disse Grace, arfando com dificuldade.
– Tudo bem, entra aí, eu levo você.
O sol poente já se escondia novamente enquanto Grace cruzava a
cidade dentro do veículo. Pensou em comprar uma besteirinha
qualquer para ele, mas já era tarde, e além do mais, Felipe às vezes
era rude e grosseiro nas aparições repentinas de Grace. O exercício
contínuo dela de preservar o namoro somente tinha agrado quando o
sexo era o propósito, pois uma reação contrária de Grace ao sexo
poderia fazer de Felipe o mesmo ignorante de sempre, com as
mesmas palavras estúpidas de costume apenas para se vangloriar
em cima dela, dizendo que nunca a havia amado antes. Esse era o
estopim dos medos apaixonantes de Grace.
O táxi viajou por um trânsito caótico, era o momento em que todas
as pessoas da cidade saíam do trabalho para chegar em casa.
Depois de quase meia hora o táxi finalmente chegou aonde ela
queria, à frente do prédio onde Felipe morava. Ela acertou o
pagamento com o taxista e deixou o carro. Os instantes diminuíam
entre Grace e Felipe, ela estava certa que iria reconquistá-lo. Entrou
no prédio como um foguete, subindo as escadas sem se importar
com o cansaço, somente tinha medo de algo, de que Felipe não
estivesse em casa, aquilo iria contrariar todo o fogo que existia por
dentro.
De frente à porta do apartamento de Felipe ela tocou a campainha.
Felipe estaria em casa naquele momento? Sim, estava. E adivinhe
com quem ele sonhava naquele instante? Sim, com a vizinha
formosa do prédio ao lado.
O toque da campainha atordoou Felipe, que não esperava
ninguém naquela hora. Pensou várias vezes no que fazer, mas não
se decidia, até que, fez o melhor, fechou as cortinas, fosse quem
fosse ele não queria que alguém descobrisse qualquer rastro de
seus sonhos platônicos. A vizinha à frente ficou surpresa com a
cortina fechada inesperadamente... ela até que tentou esperar, mas
acabou seguindo sua vida abandonando a vista da janela.
Felipe acabou ficando irritado com aquela situação.
“Quem, por diabos, está chamando?”, pensou ele.
Quando olhou pelo olho mágico da porta ficou surpreso já
preparando seu repertório de palavras ignorantes.
– Eu não falei para você voltar para o seu inferno! – ralhou Felipe,
abrindo a porta.
Ao mesmo instante que a porta foi aberta, Grace, sem titubear,
pulou sobre ele como quem desesperadamente ansiava um beijo.
– Por favor, não diga nada, somente me beije! Eu já disse que não
consigo viver sem você? – disse Grace, beijando-o profundamente.
– Mas... o que... aconteceu? – resmungou Felipe, diminuindo o
tom de voz, Grace o pegou da forma em que ele mais gostava,
sussurrando que o amava.
– Eu o amo bastante, não consigo ficar nem mais um minuto sem
você.
– Tudo bem... mas você sabe que entre nós está tudo termi...
No momento em que ele ia expor seu orgulho, Grace fechou sua
boca, não queria que ele roubasse a felicidade com a estupidez
usual.
– Eu tenho uma surpresa para você! – anunciou Grace.
– Não. Mil vezes não! Você está grávida! – irritou-se Felipe,
repentinamente. – Eu falei para você mil vezes para tomar o maldito
anticoncepcional. Já que não tomou eu não vou assumir filho
nenhum. Eu ganho uma miséria, sabia?
– Escute-me, não é nada disso! – esclareceu Grace, com um longo
sorriso jovial.
– O que pode ser então?
– Eu larguei a vida de vez, para sempre, para nunca mais,
somente porque eu o amo. Eu falo sério, não consigo viver sem
você. A partir de hoje você é a minha vida.
– Grace, não consigo acreditar! Você fez isso? – admirou-se
Felipe, beijando-a.
– Sim. Tudo começou com meu pai, ele me pegou fazendo
programas. A partir daí eu descobri que a vida merece mais do que
simplesmente dinheiro. Eu não conseguiria nunca viver sabendo que
meu pai viveria infeliz pelo resto de seus dias.
– Bem que eu falei, Grace! Para sobreviver a gente precisa da
força do corpo, mas para viver a gente precisa da força da alma.
Você finalmente descobriu que eu tinha razão! De uma mulher assim
todo homem precisa. Venha cá, eu preciso de você!
Os dois se mergulharam em beijos apaixonantes. A noite parecia
uma criança esperando ser ninada por um sentimento vivo de Felipe
e Grace. O momento estava propício para aquele longo amor de
espera entre os dois. Mais feliz do que nunca, Grace descobriu os
pensamentos amorosos do namorado, a chance de misturar seus
desejos era aquela. Sua felicidade sempre estava completa com o
peito viril do seu amante preferido, ninguém a fazia mais feliz do que
Felipe.
Apaixonados, Felipe a carregou até a cama, enfim, no quarto
escuro, os dois brindaram um reencontro onusto de uma felicidade
empírica, o amor, fizeram esse amor com desejos, vontades e
sentimentos de saudade. Felizmente o elixir exalava na maioria dos
sonhos infinitos de Grace, ela estava realmente disposta a encarar
todos os bruxedos da vida para perpetuar aquele instante para
sempre.
A saudade foi sendo consumida na noite, os dois guarneceram os
corpos do outro com carícias até o sono de cada um pairar para
alimentar de sonhos de um novo instante amoroso e matinal.
Mas Grace, tentando pesar o coração na balança não dormiu,
ficou contemplando Felipe dormir de face angelical, bem distante
daquele homem rude e grosseiro havia aquele símbolo de
serenidade que somente o descanso mostrava.
Grace continuou acordada fingindo-se dormir. Com o pensamento
vagando, ela caiu na madrugada admirando o doce respirar do
namorado.
Pensamento de Grace:

Felipe, você sabia que somente você me faz feliz? Minha dúvida
está morrendo. Se você me ama como eu o amo então me conserve
como uma flor que brota no seu jardim paradisíaco. Mostre-me que
seu beijo é verdadeiro como o beijo de Rodin, cultive todas as
minhas virtudes como se fossem seu tesouro familiar, me suspenda
no ar livre como um troféu de campeão entre os campeões. Ainda
tenho dúvida! Você não sentirá nunca o que eu sinto, pois eu sei,
você deve esconder suas verdades no meu coito. Por que, Felipe,
quando eu olho para você não consigo descobrir os caminhos do seu
coração? Seus olhos parecem vagar distantes, procurando algo além
do que o meu amor pode dar.
Eu tinha uma certeza de que se eu deixasse a vida você me
receberia com um sentimento puro de felicidade, mas não, você me
recebeu com seus velhos olhos flamejantes de prazer.
Felipe, será que nada o faz me amar como eu quero! Mas eu o
amo, e como amo, mesmo assim continuarei a procurar seu amor, de
procurar a dose certa para que me sinta de verdade. Você ainda será
meu como eu sempre esperei de um homem.
A manhã ganhava espaços quando o rádio-relógio de Felipe tocou,
ele acordou como quem não gostaria de acordar, esticou o braço e
desligou o aparelho, espreguiçou-se com o peito tangido de uma
felicidade breve, fizera um amor emanado da sedução de Grace,
coisa que ele já não esperava mais. Olhou para o lado e sentiu que
Grace ainda dormia, mas ela estava acordada, fingia-se dormir por
motivos efêmeros de mulher.
Felipe levantou rapidamente, não podia chegar atrasado ao
serviço, pois já estava com a corda no pescoço, a empresa estava
prometendo demitir alguns funcionários. Como sentiu que Grace
estava dormindo, aproveitou para espiar através da janela do quarto
o apartamento da vizinha, aquilo já se tornara um vício lascivo em
seu coração. Ele abriu a cortina levemente e demoradamente ficou
de olhos sobre o apartamento da vizinha, Grace, que fingia dormir,
abriu os olhos e percebeu Felipe olhando pela janela. Ao primeiro
instante ela não se incomodou. O que poderia ser? Poderia ser
qualquer coisa, menos uma paquera viciada do namorado. Ela não
tinha como perceber que Felipe estava de paixão violenta pela
moradora do prédio vizinho.
O dever estava chamando e Felipe não podia ficar muito tempo
esperando os olhos lívidos de quem ele realmente amava, então foi
tomar seu banho matinal.
Grace ficou no quarto, tentando entender por que o namorado não
se entregou como ela realmente desejava. Vários pensamentos
vieram em sua cabeça como talvez ele tenha outra, talvez não me
ame ou talvez ele faça amor somente por fazer. Várias razões
surgiram em Grace, mas o que o coração não sabia era que Felipe
era um tipo de homem que somente acompanhava a namorada para
enfim esperar um sentimento mais tórrido por outra mulher, assim
que essa mulher surgisse ele pularia fora, era assim com Felipe e
com tantos outros homens.
Ele voltou do banho se enxugando, por outro determinado
momento ele espiou novamente através da cortina sem perceber que
Grace fingia dormir. Ela, muito esperta, o avistou novamente de
olhos presos ao prédio vizinho.
Grace somente procurava explicações:
“Que raio é esse?”, pensou ela. “Por que ele tanto olha pela janela.
Não há vista nenhuma aí. Somente um prédio cinzento e antigo.”
Felipe continuou olhando enquanto se enxugava, procurando
avistar a vizinha como sempre esperava. Grace, sorrateira, percebia
aquela fixação dele pelo prédio ao lado. Ele se vestiu, calçou as
botas e sempre no tempo de uma coisa e outra dava sua espiadinha
oportunista. Aquilo começou a desafiar a inteligência de Grace, que
sempre apaixonada não podia nunca acreditar em outra mulher na
cabeça de Felipe, somente ela poderia existir nos pensamentos dele,
eram ciúmes normais de quando se ama uma pessoa
verdadeiramente.
Quando ele finalmente ficou pronto para partir, tentou acordar
Grace.
– Grace, acorda... acorda... acorda! – disse ele.
– O quê... hã... bom dia, amor! – declarou ela, fingindo sonolência.
– Você já vai para o trabalho?
– Eu tenho que ir senão eu ficava o tempo que você quisesse...
Estou indo, vou deixar a porta encostada, quando você sair, faça o
mesmo. Não tem problema algum. O que roubariam aqui?
– Nossa, amor, é muito perigoso!
– Mas não tem outro jeito.
– Tudo bem. Tenha um bom trabalho.
Felipe contentou-se e partiu para o trabalho diário, fechando a
porta do apartamento com seu acostumado estilo grosseiro, Grace
quando ouviu o estrondo da porta até pensou que ele estava com
raiva de alguém, possivelmente dela, mas ele sempre fazia assim,
não seria a presença dela que mudaria o comportamento ignorante
de Felipe.
Sozinha no apartamento, Grace ficou receosa com aquelas
espiadas que Felipe dera na janela, então levantou da cama
rapidamente e foi espiar também, para conferir qualquer coisa que
demonstrasse a reação sem vontade de Felipe, pois quando os dois
voltavam de qualquer briga ele sempre se mostrava atencioso e
carinhoso, mas dessa vez não era o mesmo de antes.
Grace perdurou por muito tempo avistando o prédio ao lado. Não
havia nada de anormal.
“O que será que ele estava procurando aqui?”, pensou ela. “Só
pode ser mulher! Qual a única coisa que um homem procura o tempo
todo? Mulher! Só pode ser mulher...”
Ela ficou procurando, procurando e procurando, até sentir que era
ciúmes da sua cabeça. Parou e pensou que Felipe embrutecia seus
sentidos demais. Amar assim era como visitar a história de loucuras
do coração, ela tinha que aprender a amá-lo para nunca mais perdê-
lo como antes, estava certa disso.
Resolveu se vestir para voltar a procurar um emprego, não podia
perder tempo, ela tinha que responder aos pais à altura, estava
convicta de que quando voltasse à casa deles daria a boa notícia.
Mas um pensamento carregado de fraqueza vagava em suas ideias,
pois tudo estava difícil, ela estava ciente que uma moça sem preparo
nenhum não teria condições de trabalhar. Às vezes, as lembranças
das compras de grife no final de semana voltavam, mas fortemente
ela não deixava aquela banalidade ser novamente a prioridade da
vida. Era difícil crer, mas ela não temia mais a vida real, nunca mais
deitaria com homem por dinheiro algum. Pois seus sonhos já
estavam resumidos em viver somente para agradar seu querido Lipe,
amor de verdade ela já sentia, mas compaixão era o que ela não
queria receber em troca, ela firmava que conseguiria de uma forma
ou de outra conquistar os desejos verdadeiros de Felipe.
Estava se vestindo e preparando para sair quando, por
curiosidade, foi dar outra olhada na janela. Afinal de contas ela sabia
que qualquer felicidade com Felipe era breve, sempre havia um
pormenor que estragava tudo. E não deu outra, de tanto procurar
chifre na cabeça de cavalo ela achou, repentinamente, no
apartamento da frente, ela viu esboçar um longo cabelo loiro e
feminino. Sua primeira reação foi se irritar e desejar o pescoço de
Felipe para apertar. Não podia ser! Tudo estava muito maravilhoso
para ser verdade, ela não sabia se escondia ou se pulava no
apartamento para rodar a baiana em cima daquela ordinária.
Grace, por ciúmes, tirava todas as conclusões possíveis:
“Essa oxigenada provavelmente deve ficar se exibindo de calcinha
para aquele idiota ficar olhando daqui”, pensou ela. “Por que eu não
pensei nisso antes? Por que todos eles são iguais? A gente se
esforça tanto para ganhar o coração deles, eu até larguei minha vida
de prazeres materiais para conquistar esse idiota de vez... e ele? Por
isso ele não me procura, deve ficar paquerando essa oxigenada todo
dia.”
Por mais que se enfurecesse Grace não deixaria por nada nesse
mundo a companhia do seu verdadeiro amor. Podia parecer, por ela
ter sido garota de programa, mas Grace era donairosa tanto quanto
sua submissa mãe. Ela primava por uma única coisa nessa mudança
de vida, o amor de Felipe, e não seria qualquer uma, muito menos
uma oxigenada que roubaria o homem da sua vida.
O instinto feminino lhe dizia que ainda era muito cedo para se
enganar.
A melhor coisa a fazer era ir para casa esfriar a cabeça, tentando
esquecer o fato se ainda quisesse preservar o namoro. Foi o que ela
fez, às vezes pensava que seria apenas uma paquerinha sem muita
chance de vingar, então procurou esquecer, nenhuma mulher tiraria
sua felicidade de voltar com Felipe assim facilmente.
A semana passou muito rapidamente com Grace levando currículo
a várias empresas, fazendo fichas em agências e procurando
emprego nos classificados. Nada adiantou! Mas ela continuava firme
em sua decisão, que não perderia a luta simplesmente sem lutar.
Desde o começo ela já suspeitava dessa constante em não se
alegrar profissionalmente. As amigas, como Paola, sem levar muita
fé em sua mudança, somente diziam o que Grace não queria
escutar, que o melhor era continuar na vida de programas, pelo
menos assim tinha dinheiro para gastar. Grace encarava tão
somente como saudade de colega, talvez Paola estivesse sentindo a
falta da companheira nos seus programas marcados. A decisão era
terminante.
Enquanto ela visitava todos esses lugares, recebia o apoio do
namorado Felipe, que a incentivava tanto moral como
financeiramente, e era no financeiramente que Grace não conseguia
suportar aquela dependência, pois nunca vivera com homem
nenhum dependendo de ajuda. Felipe sutilmente sempre
demonstrava suas características machistas, impondo suas
vontades, algo do tipo como indicar a ela o que ele esperava de uma
mulher trabalhando, era a única coisa que fazia de Felipe o mais
imperfeito dos namorados. Mas ela, bem lúcida, apenas dizia que
sim quando na verdade estava dizendo não. Grace estava de vida
renovada, dessa vez ela se preservou perante Felipe evitando
qualquer briguinha à toa que levasse a um rompimento. Para ela, a
felicidade era singular, a felicidade estava em encontrá-lo todos os
finais de noite para amá-lo como se estivesse encontrando as
virtudes do amor no final da linha do infinito.
Quando chegou o final de semana, Grace se despediu
amorosamente de Felipe, estava decidida a rever os pais, pois já
fazia muito tempo desde que seu pai a pegou em flagrante fazendo
trottoir nas ruas da cidade grande, e ela ainda ficou sabendo, através
da mãe, que seu pai, seu Virgílio, não queria saber de mais conversa
com ela. Magoada, Grace decidiu visitá-lo para reaver o carinho do
pai, a coisa mais importante naquele momento.
Chegando à cidade, Grace não sentiu nada de diferente no
tratamento das pessoas conhecidas, a pacata cidadezinha do interior
continuava tratando Grace como a mesma menininha de sempre. De
uma coisa ela estava certa, seu pai não comentou nada sobre sua
vida na cidade grande. Menos mal!
Sorridente, Grace chegou na porta da pequena casa de seus pais
com uma pequena mala, na certa não ficaria por muito tempo,
apenas estava decidida em fazer as pazes com o velho Virgílio. Um
pequeno cachorrinho vira-lata, bastante alegre, apareceu na porta
para receber Grace. Ela devolveu a mesma alegria para o
cachorrinho que abanava o rabo de emoção:
– Você está aí, meu gostosinho! – disse Grace para o cãozinho,
em tom de voz de criança. – Que saudade do meu cachorrinho
querido!
Enquanto Grace brincava com o cachorro a única pessoa que
percebeu a presença na porta da frente foi dona Regina que logo
apareceu para ver quem era.
– Quem está aí? – perguntou dona Regina.
– Mãe, sou eu, sua filha! – declarou Grace, entusiasmada.
– É você, minha filha?
– Mãe, quanta saudade!
Dona Regina foi correndo ao encontro da filha, esperava por
aquele momento por vários meses. Apesar dos ossos cansados
dona Regina apertou os passos para abrir o portão para a filha.
– Minha filha, por que não mandou mais notícias? Estive com
medo, pensei que nunca mais a veria. Eu fiquei sabendo através de
seu pai dos seus problemas. Apesar disso, filha, tenha a absoluta
certeza que nós sempre a amaremos. Nunca se esqueça de nós! –
disse dona Regina, abraçando a filha fortemente, quase chorando.
– Ah, mãe! Não fique assim! Eu sei disso... mas esqueça tudo.
Tudo que o pai disse virou passado. Eu deixei aquela vida de vez.
Não há nada que me faça voltar.
– Graças a Deus! Eu sabia que ele ouviria as minhas preces.
Grace, minha filha, eu orei tanto por você, pedindo a Deus que
iluminasse seu caminho e clareasse as suas ideias.
– Fique mais calma, mãe. Tudo passou – anunciou Grace,
abraçando a mãe fortemente. – Tenho certeza que dessa vez eu
amadureci. Fique mais calma, tudo é passado agora.
Enquanto as duas choravam, seu Virgílio, sem saber de nada,
estava na sala se distraindo com a televisão.
– Mulher, quem está aí com você? – perguntou ele, com uma voz
rouca e alta.
– Adivinhe! Nossa filha! – respondeu dona Regina, alegre e
sorridente.
– Eu não tenho mais filha – reagiu seu Virgílio, em tom de voz
peremptório.
Naquele instante, dona Regina irritou-se e foi encontrá-lo na sala.
– Larga de ser besta, homem! Ande, vá receber sua filha.
– Eu já disse que não tenho mais filha.
– Por favor, Virgílio, não me contrarie dessa vez, ande, vá, ela está
aqui para pedir desculpas, já se arrependeu do que fez. Por favor, é
a nossa filha e ela está precisando da gente como nunca – irritou-se
dona Regina.
Seu Virgílio respirou bem fundo e devolveu.
– Ela devia ter pensado nisso antes de ficar nas ruas daquela
cidade rodando bolsinha para lá e para cá. Eu não criei uma filha
com tanto sacrifício para ficar deitando com o primeiro que
aparecesse somente por causa de alguns trocados. Bote uma coisa
na sua cabeça, isso daí não é nossa filha, isso daí é uma serpente
libertina e maliciosa. E tenho dito! Não vou perdoá-la nunca. Nunca,
ouviu bem?
Sentida pelas palavras duras, dona Regina começou a derramar
um pranto desesperador.
– Virgílio, não faça isso com a nossa filha, por favor, escute o
coração e a perdoe – disse ela, chorando.
– Nunca!
Nisso, repentinamente, adentrou a sala Grace abraçando a mãe
pelas costas.
– Você continua o mesmo velho turrão de sempre – disse Grace. –
Você nunca ouve minha mãe. Eu fico mais sentida por ela do que por
mim.
– Com coisa que você ouve alguém, não é mesmo, minha filha
meretriz? – devolveu seu Virgílio.
– Eu gostaria tanto que você soubesse que eu deixei aquela vida e
agora estou buscando novas oportunidades, somente porque eu amo
o senhor e a minha mãe.
– Saia daqui! Eu não quero ficar na frente de uma serpente de
duas caras. Saia daqui! Vamos!
– Deixa para lá, minha filha – considerou dona Regina, acalmando-
se.
– Deixa esse velho bronco com seus remorsos.
Grace conduziu a mãe vagarosamente até a cozinha, chegando lá,
Grace se sentou, conversando com a mãe, enquanto essa continuou
fazendo o almoço do dia. De tanto conversarem, colocando as
novidades em dia, algumas vezes elas até sorriam. Grace
impulsionava as esperanças da mãe com expectativas sobre futuros
trabalhos de boa índole. Contava sobre sua paixão virtuosa por
Felipe, enquanto a mãe sorria dizendo que apenas gostaria de
conhecê-lo. O momento era propenso para uma alegria que Grace
não sentia há muito tempo, conversar com a mãe era uma de suas
chances de felicidade. Ela dizia para a mãe que agora lutaria sempre
para conquistar o coração do namorado de vez. Os sonhos agora
faziam parte da busca de felicidade. Sua mãe apenas escutava
atenciosamente com uma pequena ponta de orgulho, ela sentia que
dessa vez Grace encontraria o caminho sereno da paz do Senhor.
Felizmente era a última chance que Grace agarrou para deixar a vida
de mulher bandida. Dona Regina era só sorrisos.
Enquanto as duas sorriam à toa sobre todas as novidades dos
moradores daquela pequena cidade, seu Virgílio assistia à televisão
com uma cara fechada, de poucos amigos, esperando apenas o
almoço na mesa.
– Regina, esquece essa conversa vazia e termine esse almoço
logo – gritou seu Virgílio da sala.
– Tenha um pouco de paciência, Virgílio! – disse dona Regina.
As duas, sozinhas na cozinha, tentavam descobrir o porquê da
teimosia de seu Virgílio.
– Mãe, e o pai, como ele vem suportando as tolices que fiz? –
perguntou Grace.
As lágrimas de dona Regina naquela hora temeram novamente em
derramar.
– Desculpe, minha filha. Seu pai a ama muito, ele somente não
consegue demonstrar isso. Eu não sei por que você foi fazer isso,
pois antes ele era somente esperança, acreditava que um dia veria a
filha doutora, educada e vencedora. Depois que ele descobriu o que
você fazia lá na capital, perdeu todo o chão em que pisava, perdeu
as esperanças, perdeu até o sono de todos os dias, hoje ele vive
perambulando na madrugada pelo quintal, suportando as mágoas e
chorando muito.
– Eu sei, mãe! Mas eu era muito inocente, não pensava nunca nas
dificuldades, apenas me contentava com aquele dinheiro imundo.
Por favor, tente convencê-lo sobre a minha mudança. Hoje eu tenho
certeza de que sei o que é melhor para mim. Antes eu pensava que
ficaria rica da noite para o dia. Pensava em poder ajudar vocês dois,
Deus sabe o quanto eu quero isso! Também acho que foi um pouco
da saudade que dominou meus pensamentos, acabei esquecendo
da minha vida.
– Não se preocupe, minha filha, falo isso por mim e por seu pai,
você está perdoada e abençoada. Seu pai não gosta muito de admitir
suas vontades, mas eu sei que a única coisa que ele pensa em fazer
é vir aqui e abraçá-la.
Novamente, seu Virgílio, irritado, chamou dona Regina.
– Ô mulher! A que horas esse almoço vai sair? – disse ele.
– Mãe, como você consegue suportar as ordens do meu pai? –
indagou Grace, somente para a mãe. – Ele fica o dia inteiro sentado
na frente da televisão esperando comida enquanto você trabalha na
casa o dia inteiro.
– Filha, seu pai trabalhou muito a vida inteira, pelo menos agora
merece um descanso... E quando você casar vai poder compreender
isso melhor.
Dona Regina, apressada, foi levando as panelas para a sala,
arrumando a mesa para o almoço. Seu Virgílio sentou logo na
cadeira de costume, mesmo assim se demonstrava um homem
obtuso.
Quando a mesa ficou completamente pronta e todos se
aprontaram em seus lugares para o almoço, seu Virgílio estranhou e
disse.
– Regina, ela vai almoçar conosco? – perguntou ele.
– Mas claro, Virgílio! – respondeu dona Regina.
– Então eu vou almoçar na rua. Pelo menos lá eu posso almoçar
em paz sem precisar ficar olhando para uma serpente.
– Não seja por isso, se esse for o problema eu saio – determinou
Grace.
– Não, filha, você é a nossa filha! Essa casa também é sua. Seu
pai tem que aprender de uma vez por todas a perdoar a própria filha.
– Deixe de falar besteiras, isso não vai acontecer nunca! Será que
até hoje você não consegue ver, preste atenção, nossa filha é uma
prostituta.
– Virgílio, por favor, não fale assim de nossa filha.
– Tudo bem, mas eu não vou almoçar com ela... Eu vou tomar uma
pinga no barzinho para abrir apetite... Passar bem.
– Por favor, Virgílio, sente-se aqui! – disse dona Regina, bastante
nervosa.
Seu Virgílio acabou saindo de cabeça quente, batendo todas as
portas e soltando alguns palavrões.
– Deixa, mãe! Eu não ligo. Ele realmente tem razão de me evitar,
eu traí a confiança que ele tinha.
– Não é isso, minha filha. Meu medo maior é que ele continue com
essa atitude para sempre, porque você sabe muito bem que ele não
tira nenhuma verdade própria da cabeça.
Mesmo preocupadas com seu Virgílio, as duas almoçaram e
depois se juntaram para fazer uma colcha de retalhos. Grace ficou
relembrando os tempos de infância quando costurava junto com a
mãe. Passaram toda a tarde naquele trabalho, pensando,
preocupadas com seu Virgílio, enquanto ele passava o dia no boteco
enchendo a cara com a destilada de onça.
Seu Virgílio, respeitando as tradições interioranas, foi afogar as
mágoas na bebida, era a única coisa que poderia dar coragem às
infelicidades que a vida trazia. Às vezes, ele encontrava mais
conforto na pinga do que na família, era um senhor que gostava da
bebida pelo prazer de um dia poder esquecer todos os problemas.
Dizia sempre que ninguém consegue domar a fera da vida, a vida
nasceu selvagem, esse é o instinto que preserva os sentimentos no
medo. Ninguém poderia ser feliz enquanto existisse o instinto da
vida, pois querer alguém ou alguma coisa não depende da vontade,
e sim do acaso.
Então a noite começou a abraçar o dia na pequena cidadezinha
enquanto seu Virgílio, sentado na mesa sozinho, reclamava nos
ouvidos dos outros bêbados seus fracassos, suas derrotas, seus
infortúnios e seu revés.
– Que Deus me perdoe pelo que vou dizer, mas a verdade é que a
vida é uma desgraça – disse seu Virgílio no recinto, totalmente
bêbado. – E sabem por quê? Porque as pessoas de hoje em dia
perderam os valores morais. Você liga a televisão e somente vê
putaria até perceber que essa putaria já entrou dentro de sua casa.
– Opa! É por isso que o mundo está cada vez melhor! Quanto mais
putaria melhor. Não fique assim, seu Virgílio, o seu tempo já passou.
Talvez esteja com dor de cotovelo por não poder desfrutar da putaria
de hoje – declarou o jovem Tico, um frequentador do bar.
– Cale a boca! – irritou-se seu Virgílio, nitidamente bêbado. – Você
vai ver quando tiver uma família para criar. É libertinagem para todo
lugar...
na música só falam de putaria, na televisão também, até nos
jornais você encontra a putaria. Nos bailões de hoje a moça é quem
tira o rapaz para dançar. Onde esse mundo vai parar? Sabe o que eu
queria mesmo? Era encontrar o desgraçado que inventou a putaria.
– Vai reclamar isso no quinto dos infernos! – retiniu o jovem
valente Tico. – Não suporto bêbado velho reclamando da vida. A
única sorte que Deus deu para o pobre é a divina putaria. Sem
putaria não sei do que seria da minha vida.
– Provavelmente seria um fedelho chorão, buscando uma mínima
chance com qualquer mulher que lhe diria não nessa sua cara feia e
medonha de rato – gritou seu Virgílio.
As palavras de seu Virgílio atingiram em cheio os brios do valente
Tico.
– Você vai ter que engolir tudo isso que disse junto com a sua
cachaça, seu velho bêbado.
– Vai se danar, moleque!
– Ah é? Seu Ribeiro me vê um litro de cachaça, qualquer uma, da
mais barata e vagabunda. Esse velho vai aprender a respeitar as
pessoas e a minha paixão. Não suporto alguém falando mal de
prostituta.
– Moleque, se eu fosse mais novo, mesmo bêbado, eu levantava
daqui e lhe chutava o traseiro daqui até o puteiro da estrada.
Nesse momento, o comerciante Ribeiro entregou em mãos o litro
de cachaça para o Tico.
– O que você vai fazer com esse litro de cachaça? – perguntou o
comerciante.
– Agora esse velho vai aprender uma única coisa – sorriu
sarcasticamente o valente Tico.
Ele foi até a mesa de seu Virgílio e o segurou pelo braço esquerdo.
Seu Virgílio tentou relutar, mas era impossível, o álcool já estava
num efeito embriagante e suas vistas se embaralhavam com as
luzes do bar. De tanto segurar seu Virgílio, finalmente, Tico
conseguiu deitá-lo no chão com o rosto virado para o teto.
Seu Virgílio apenas balbuciou as palavras.
– O que aconteceu? Alguém aí, me ajude a levantar! – disse ele.
Todos os presentes no bar apenas alertaram:
– Deixa disso, Tico!
– Respeita o seu Virgílio!
– Ele apenas está bêbado!
– Ele não sabe o que diz!
Sem pena e nem dó o valente Tico virou o litro de cachaça dentro
da garganta do seu Virgílio. Atordoado, seu Virgílio começou a tomar
um litro de pinga numa vez só. O litro da garrafa foi diminuindo a
cada instante em que seu Virgílio ficava em transe apenas
consumindo o litro que o organismo não poderia suportar. Em poucos
instantes, seu Virgílio tinha tomado todo o litro de cachaça. Não
demorou muito para ele entrar num profundo coma alcoólico.
Enquanto isso, o valente Tico gargalhava para todos.
Todos os presentes sem fazer nada apenas resmungaram.
– Por que fazer isso, Tico?
– É muita humilhação para o velho Virgílio!
Tico apenas sorria com um orgulho jactante:
– Agora esse velho aprende. Ah! Ah! Ah! – zombou ele.
Seu Virgílio continuou desmaiado no bar com o pior aspecto
possível para um senhor aposentado, a boca estava aberta onde
escorria saliva enquanto os olhos estavam abertos. Talvez fosse a
pior situação que seu Virgílio já vivera, às vezes, alguns presentes
ficavam preocupados, pois aquele coma alcoólico poderia levar até a
morte.
Tico continuou fazendo suas piadas de mau gosto. Ele se achava
o mais intrépido dos homens daquela pequena cidade, falava alto
para todos ouvirem, mas na verdade era apenas mais um fanfarrão
valente.
– Coloca um sertanejo aí! – gritava ele.
O único que acabou ficando preocupado com seu Virgílio foi seu
Ribeiro. Ele chamou um garoto de recados e o mandou avisar a dona
Regina, afinal, numa cidade pequena, todo mundo conhece todo
mundo e ele prezava bastante a amizade de seu Virgílio e dona
Regina.
Seu Ribeiro disse ao garoto como ele deveria contar a situação.
– Aqui, garoto, avise à dona Regina que seu Virgílio está
embriagado, deitado no chão do bar, fale para ela chamar alguém
para levá-lo para casa. Diz a ela que ele está muito mau mesmo...
Não diga a ela de forma alguma sobre a confusão, depois ela nunca
mais deixa o seu Virgílio vir aqui – disse seu Ribeiro, dono do
estabelecimento.
– Pode deixar.
– O que é isso, seu Ribeiro? – intrometeu-se o indolente Tico. –
Falando para o garoto chamar alguém para remover esse velho
imbecil daqui? Deixe ele passar a noite aí! Quem sabe quando ele
acordar amanhã aprenda de uma vez por todas que cachaça não é
água. É isso que dá! Não quer encher a cara e falar besteira? Então!
– Você é bruto demais, Tico! Seu Virgílio tem idade para ser seu
pai.
– Mas não é!
O garoto de recados saiu correndo entre vários coleguinhas
pisando no asfalto com os pés descalços, parecia que estava
competindo com alguém numa corrida, tamanha a vontade de dar o
recado.
Enquanto isso, dona Regina e Grace continuavam costurando,
conversando sobre a vida alheia da cidade, algo do tipo sobre os
homens, rapazes, amigas e mulheres. Qualquer notícia da mãe para
Grace era uma novidade, afinal, fazia muito tempo que Grace não
visitava a cidade natal. A conversa estava radiante de uma saudade
sadia, Grace ficou sabendo quem de suas amigas casou, quem
morreu, quem ficou só e todas as fofocas temperadas do interior.
Aquela visita parecia revigorar as forças renovadas de Grace, a partir
dali ela esperava apenas sinais de alegria.
Ela foi à cozinha para pegar um queijo, apenas para beliscar algo
enquanto acompanhava as histórias da mãe, foi quando ouviu o
garoto chamar do lado de fora da casa.
– Hei, dona Regina! – gritou o garoto. – Seu Virgílio está passando
mal lá no bar do seu Ribeiro. Chame alguém para ajudá-lo.
Dona Regina ouviu assustada, não sabia o que fazer naquele
momento, tudo estava difícil de suportar. Ela levantou da cadeira de
costura com muita dificuldade, estava entregue às dores da coluna,
mas mesmo assim ela caminhou até o portão para receber o menino,
estava preocupada, temendo sempre com a saúde do marido.
Grace também ouviu o menino gritar, não demorou para ela
acompanhar a mãe até o portão.
– Abre rápido, dona Regina! – berrou o menino. – Seu Virgílio
precisa de ajuda, ele está desmaiado lá no bar, deve ter bebido além
da conta.
– Calma, garoto! Onde ele está?
– Está desmaiado lá no bar do seu Ribeiro – continuou o menino.
– Meu Deus! – assustou-se dona Regina. – Será que aconteceu
alguma coisa de mais grave? Eu já falei para ele mais de mil vezes
parar com a bebida, ele tinha que ter mais consciência, saber que já
está velho demais para se aventurar na noite como um jovem.
– Tudo bem, mãe! – disse Grace. – Você liga para o doutor
Cândido que eu vou até lá para ajudá-lo.
– Muito obrigada, minha filha. Tenho certeza que você não guarda
mágoas no coração.
– Lógico, mãe! Meu pai é a pessoa mais importante que tenho na
vida. Eu respiro somente pensando em como ajudar ele. Não sou de
ferro como você pode pensar, a vida me ensinou muito. Não posso
perder o respeito que tenho do meu pai.
– Então vamos logo! – insistiu o menino.
– Vá, minha filha, seu pai precisa de você.
Grace apertou a mão do garoto e subiu a rua, as luzes estavam
todas acesas no percurso e guiavam o caminho. Enquanto subia a
rua ela perguntava ao garoto o que de fato ocorreu. Ele, meio tímido,
temia em contar o que realmente aconteceu, esperava apenas levá-
la ao bar para depois ir embora, não queria se meter de forma
alguma naquela encrenca de família. Era um garoto esperto que
sabia que as diferenças na cidadezinha acabavam em tiro e sangue.
Mas Grace, preocupada, insistia tanto que ele acabou não
conseguindo mediar as vontades que a língua queria soltar.
– Diga-me logo! Como ele foi se embriagar até desmaiar? – insistiu
Grace. – Meu pai sempre resistiu aos goles, não seria qualquer
pinguinha que o derrubaria.
– Na verdade foi o Tico quem provocou seu pai que já estava
bêbado. Ele estava nervoso com as coisas que seu pai dizia, então
ele acabou fazendo seu pai tomar à força um litro de cachaça. Seu
pai não teve nem tempo de respirar, acabou capotando para trás,
provavelmente está desmaiado até agora – desabafou o menino.
– Então foi aquele verme do Tico! – irritou-se Grace. – Quando eu
saí daqui ele era apenas o garoto mais malcriado da cidade. Hoje,
certamente, se transformou num homem estúpido e grosseiro capaz
de humilhar até um senhor pai de família.
Grace continuou caminhando, subindo a rua, pensando em ajudar
seu pai no que fosse preciso. Grace estava amadurecendo, sabia
que a consciência era o mais certo a seguir, não podia esquecer do
quanto a presença dele foi importante na sua vida. Por isso que
qualquer chance de reaproximação era um motivo especial para
conseguir o perdão do pai. Mas a preocupação terna de filha era o
que movia seu coração, não podia medir esforços para ajudar o pai
contra uma porção de grosseiros fanfarrões.
Quando Grace se aproximou do bar avistou de longe seu pai
estendido sobre o chão.
– Pai! O que fizeram com você? – gritou ela, correndo
desesperadamente.
Ela encontrou o pai num estado deplorável, aproximou-se tentando
levantar a cabeça dele sobre o colo. Grace chamava pelo pai,
tentando acordá-lo, mas seu Virgílio, desacordado, não dirigia uma
palavra, estava em coma profundo.
De tanto chorar pelo pai ela acabou se voltando contra os homens
do bar:
– O que vocês fizeram com o meu pai? – perguntou Grace,
irritada.
– Ih! Eu não sei de nada, gatinha – disse um frequentador do bar.
– Eu corto meu pescoço mas não digo quem foi – declarou outro
frequentador, mostrando o jovem Tico com o dedo indicador.
– Por que você fez isso com meu pai, vagabundo? – disse Grace,
completamente descontrolada.
– Eu!? Eu não fiz nada com esse velho beberrão – anunciou Tico.
– Você vai ver uma coisa, seu verme. Eu vou voltar aqui com a
polícia para jogá-lo na cadeia, vagabundo. Você não se enxerga não,
em mexer com um senhor já idoso? Você não vale nada mesmo.
– Calma, gatinha! Esquece o vovô aí, deixa ele dormindo, amanhã
ele está totalmente recuperado. Enquanto isso vamos aproveitar o
momento e nos conhecermos melhor.
– Você não se enxerga mesmo. Desde quando eu vou dar moral
para um sujeito da sua laia. Você é o cara mais escroto que eu já vi.
Todos se alegraram com as palavras inferidas de Grace.
– Yahoo!
– Tomou, Tico!
– Vai mais!
– Agora aguenta!
– Calem a boca – ordenou Tico, em tom peremptório. – Quando
uma mulher fala com muito ódio no coração é porque está
apaixonada.
– Não fale besteiras, seu ridículo! – ralhou Grace. – Você é tão ralé
da ralé que não vale a pena nem olhar para você. E me diga uma
coisa, existe alguma mulher que se interessa por você?
Nesse momento ele se aproximou dela e a agarrou pela cintura.
– Existem muito mais do que você imagina – disse Tico, tentando
seduzi-la. – Quer experimentar?
Irritada, somente deu tempo para sentir o estralo que a mão de
Grace deu na face esquerda do valente Tico.
– Não me toque nunca mais, seu idiota!
Enquanto Tico permaneceu com o rosto virado com uma sensação
estranha de revidar, todos os presentes colegas do bar começaram a
zombar dele:
– Se ferrou!
– Yahoo!
– Não apanha de homem, mas apanha de mulher!
Bastante irritado, Tico tirou o que guardava na cintura, um revólver
calibre trinta e dois, logo mandou todos calarem as brincadeiras.
Muitos, apavorados, sumiram do bar ou se esconderam debaixo das
mesas.
Tico, sem pestanejar, apontou o revólver para o rosto de Grace.
– Não faça mais isso, sua vadia! – gritou ele. – Não saia batendo
em pessoas que você não conhece, pode acabar se machucando.
Só foi ter ido morar na capital que acabou se esquecendo dos
costumes daqui.
– Foi você quem começou – disse Grace, tentando não
demonstrar fraqueza. – Eu não gosto que homem nenhum me agarre
à força. Não sou nada sua para você chegar me encostando.
– Tudo bem, essa eu deixo passar. Mas não faça isso nunca mais,
eu poderia me irritar facilmente.
– Por favor, me dê licença para ajudar meu pai! – pediu Grace,
desesperada.
Nisso o jovem Tico se acalmou e guardou o revólver na cintura
novamente. Para Tico sua valentia era a coisa mais importante que
prezava, era uma forma dele crescer perante os outros. Grace já era
mocinha enquanto ele soltava pipa pelas ruas. Aquela sua ignorância
fazia ele provar para ele mesmo que já era um homem decidido e
destemido, e que agora, a menina dessa vez era Grace. Foi a
primeira vez que ela sentiu o olhar colérico de um homem, um olhar
que enraizava um ódio seco, sem compaixão, capaz de passar por
cima de tudo que está à sua frente.
Mas Tico estava de bom humor naquela noite, estava até revendo
aquela moça que trazia lembranças de sua paixão juvenil.
– Tudo bem! Hoje eu estou contente, aproveite essa ideia e leve
logo esse velho bebum daqui. Mas antes, Grace, deixe-me falar uma
coisa, você continua a mesma gostosa de sempre. Não me leve a
mal, mas seu pai estava bêbado e me incomodando muito. Você
sabe! Não tive escolha.
– Sorte a sua de não ter relado esse revólver no meu pai –
anunciou Grace, sempre nervosa.
– Veja pelo lado bom, eu poderia fazer coisa pior, mas não fiz, e
mesmo assim ainda espero uma chance para lhe mostrar que eu
também sou carinhoso... ah... ah... ah... – disse Tico, cinicamente.
– Seu covarde!
Grace arrastou o pai com muita dificuldade enquanto Tico
preocupava em dar goles de labaredas na pinga, zombando de
qualquer coisa que vinha na mente.
Ela tentou chamar alguém para ajudá-la, mas todos, com medo de
Tico, correram para se esconder. Tico era muito temido na cidade por
andar sempre armado, alguns diziam que ele já matara alguém, mas
ele sempre desconversava.
A rua estava pouco iluminada, fazendo Grace se preocupar mais
ainda.
– Por favor, será que ninguém vai me ajudar aqui?
Ela tentava levantar o pai, mas ele era muito pesadão, não havia
como uma moça do porte dela segurar um homem daquele vigor nas
costas.
– Ajudem-me, por favor!
Somente depois que todos notaram que Tico se acalmou
guardando o revólver na cintura, é que muitos daqueles homens
medrosos reapareceram. Muitos reapareciam apenas para avistar o
barzinho de longe, era como se esperassem algo pior.
– Hei, vocês, vão ficar somente olhando ou vão me ajudar?
Um homem, preocupado em ajudar, se aproximou de Grace
tentando ser prestativo.
– Fique calma, moça. Eu vou ajudá-la – disse ele, levantando seu
Virgílio com os braços fortes até acomodá-lo nas costas.
– Muito obrigada. Eu não saberia o que fazer, estava desesperada
– agradeceu Grace.
Prontamente, esse homem começou a andar com seu Virgílio nas
costas, carregando-o para a direção que Grace, aflita, apontava. Seu
Virgílio, desmaiado em cima dos ombros do prestativo homem, não
esboçava nenhum suspiro, estava totalmente desacordado.
Enquanto isso, os presentes apenas avistavam como quem devia
estar por cima da carne seca. Na verdade, eles apareciam como
urubus, vivendo um sentimento estranho alimentado da tristeza
alheia.
O comerciante Ribeiro querendo espantar aquela sensação
desigual no seu estabelecimento ligou o rádio com as modas
sertanejas mais tocadas no país.
– Vamos, gente! Tudo já passou – declarou ele. – Foi apenas uma
discussãozinha sem importância.
– Se depender de mim, meu pai não vai pisar nunca mais nessa
espelunca – retiniu Grace, acompanhando o homem que carregava
seu pai nos ombros. – Onde já se viu!? Embebedar meu pai na base
da força bruta. Vocês vão ver uma coisa! Eu ainda vou chamar a
polícia.
A alegria funesta do botequim foi voltando ao estado de sempre,
os fanfarrões foram voltando, todos reunidos, bebendo, jogando
sinuca e falando mal de mulher, era o que o cotidiano ensinava
àqueles caracteres rústicos e grosseiros. Do outro lado, Grace e o
homem que carregava seu pai desciam uma rua iluminada, sem
muitas pessoas conversando nas portas, pois a noite caía com o
vento frio, era melhor ficar dentro de casa vendo qualquer idiotice na
televisão.
Enquanto caminhavam cansados, o homem gentil e Grace
trocavam indignações:
– Sabe, Grace. Seu pai teve muita sorte, porque o Tico está cada
vez mais valente, ele anda sempre por aí atirando para qualquer
lado. Dizem até que ele já matou alguém – disse o homem gentil,
com um ar temeroso.
– Mas que raio de cidade é essa!? Não tem polícia para prender
qualquer sociopata delinquente? – irritou-se Grace.
– Você sabe como são as leis numa cidade pequena. Todos dizem
que o Tico é amigo dos policiais. Eles acabam não atendendo
ninguém que presta queixa contra o Tico. As pessoas dizem que o
Tico matou um bandido procurado pela polícia, então eles
agradeceram deixando-o andar armado.
– Esse mundo está perdido mesmo! Agora qualquer um pode subir
sobre as leis ditando suas próprias vontades.
– Infelizmente. Por isso, quando o seu pai acordar do coma
alcoólico diga a ele para não procurar acertar as contas com o Tico.
Pois, conhecendo seu pai como conheço, amanhã mesmo ele vai
querer esfregar as mãos na cara do Tico.
– Pode deixar. Eu vou convencê-lo. Eu conheço muito bem o velho
que você está carregando.
Depois de descerem aproximadamente umas quatro quadras,
finalmente chegaram na porta da casa onde dona Regina esperava
totalmente aflita.
O homem que carregava seu Virgílio foi logo adentrando o portão
da casa enquanto dona Regina demonstrava, horrorizada, seu
completo desespero:
– Virgílio, homem de Deus, o que aconteceu? – gritou dona
Regina.
– Fique calma, mãe. Ele está apenas desacordado por causa da
bebida – considerou Grace.
– Meu Deus!
– Onde posso deixá-lo? – perguntou o homem.
– Por favor, coloque-o no sofá da sala – solicitou dona Regina,
sempre horrorizada.
O homem gentil acabou soltando o corpo de seu Virgílio no sofá.
– Meu Deus, minha filha, o que o seu pai fez para ficar desse jeito?
– perguntou dona Regina.
– Não foi ele, foi aquele idiota do Tico que o forçou a encher a
cara. Essa cidade perdeu totalmente o respeito, mas a polícia vai
ficar sabendo disso – esclareceu Grace.
– Filha, eu estou com um aperto no coração, vá buscar logo um
remédio para ressaca e uma água. Rápido!
– Pode deixar, mãe!
O prestativo homem ficou na sala desconcertado sem saber o que
fazer, já se sentia muito útil de ter levado seu Virgílio nas costas até
a casa, mesmo assim demonstrava-se bastante atencioso. Talvez
fossem as qualidades e os dotes de beleza que o prendia naquela
gentileza demasiada para o bem de Grace. Ela às vezes não sentia,
talvez por tanto se afundar introspectivamente nos próprios
problemas, mas vários moços, rapazes e homens estavam sempre
de prontidão, buscando sempre a atenção da beleza empírica de
Grace. Muitos conheciam a formosura da filha do seu Virgílio,
sempre muito conhecida pela cidade por ser tão bonita. Enquanto o
pobre homem mendigava uma resposta dela através de um sorriso
ou de um olhar mais compenetrado, ela apenas se preocupava com
a saúde debilitada do pai.
– Pai, acorda! Tome esse comprimido.
– Bem, talvez eu pudesse chamar um médico ou um farmacêutico
se vocês quiserem – afirmou o homem, sempre demonstrando
gentileza para agradar Grace.
– Eu acho que não vai precisar – declarou Grace, apenas
preocupada com o pai. – Ele até tomou o comprimido com a água
sem vomitar!
– Mas filha! Ele continua desacordado. Se não aparecer um
médico aqui eu vou passar a madrugada aflita.
– Acalme-se, mãe! O pai tem um organismo de ferro, não é a
primeira e nem a última vez que ele ficará bêbado.
– Então eu acho que já vou indo... porque eu tenho que acordar
cedo amanhã.
– Pode deixar que eu acompanho o senhor até a porta – disse
Grace.
– Por favor, a senhorita não precisa me chamar de senhor –
anunciou ele, com as mãos no chapéu sobre o peito, tentando
galantear.
– Bem, eu não sei como agradecer... Qual o seu nome?
– Gilberto.
– Bem, seu Gilberto, sou muito grata pelo o que você fez pelo meu
pai. Havia tantos homens naquele recinto, mas somente alguém com
uma alma tão generosa poderia ter me ajudado como você me
ajudou. Muito obrigada!
– Não há de quê, senhorita... Bem, então eu vou andando.
– Eu lhe acompanho, Gilberto – disse Grace, conduzindo o gentil e
modesto homem até a porta.
No portão, antes de partir, ele ainda tentou roubar um pequeno
sorriso de Grace, mas não recebeu resposta nenhuma, ela até que
percebeu as reais intenções daquela gentileza em demasia, porém o
coração vagava distante. Mesmo assim ela retribui-lhe com um
muxoxo na face, um beijo que esquentou a pobre alma daquele
homem apaixonado.
Grace às vezes não percebia o quanto havia de pretendentes à
sua porta, era somente ela chegar para visitar o pai que vários
homens começavam a crescer os olhos de gavião.
Aquele homem se sentiu feliz naquele instante, levantou o chapéu
olhando para as estrelas e depois sorriu contente como se o beijo
pudesse ter tocado a alma.
– Até logo – despediu-se Grace.
– Até logo, senhorita, e que seu pai se recupere logo. Mande
lembranças minhas ao seu Virgílio.
– Pode deixar. Ele irá agradecer com muito carinho o seu cuidado.
Seu Gilberto, sem perder o fino trato, partiu subindo a rua como se
estivesse flutuando, o beijo de Grace foi o maior prêmio daquela
noite. Esperanças vãs surgiam em sua cabeça tola apaixonada.
Sentir o que não podia sentir era o inevitável no interior. Desde o
momento em que Grace beijou o gentil matuto a verdade ainda não
caíra em sua consciência fragilizada por sentimentos ternos. Aquele
parecia ter sido o último momento que a vida havia o abraçado
fortemente.
Grace fechou o portão com segurança enquanto o cachorrinho
balançava o rabo, bastante alegre, buscando a atenção de qualquer
um que estivesse na sua frente.
Enquanto Grace respondia carinhosamente o cachorrinho, sua
mãe gritou dentro da casa:
– Grace, venha cá, seu pai quer falar com você! – retiniu dona
Regina.
– O quê!? O pai melhorou, mãe... – espantou-se Grace, correndo
ao encontro do pai.
– Filha, eu tenho que lhe dizer uma coisa – disse seu Virgílio,
ainda bastante embriagado, balbuciando as palavras como quem
dizia o que o coração sentia.
– Pode dizer, pai, eu estou aqui.
– Filha, esqueça as besteiras que eu disse até aqui. Eu a amo
muito, você é a minha única filha e não será qualquer idiotice que vai
fazer a gente se separar. Minha filha, digo-lhe com todo meu
coração, você pode ser o que quiser da vida, eu não me importo, o
importante para mim é você sempre ser a minha filha querida. Deus
perdoa a todos até a mim que estava me fazendo de velho ranzinza
para você ser o que o meu egoísmo desejava.
– Obrigada, pai, isso era tudo o que eu precisava ouvir de você, o
seu perdão. Mas agora pai, eu lhe trarei somente alegrias, eu sei que
o que eu fiz era errado, mas estou completamente arrependida, de
agora em diante o senhor terá somente motivos para se orgulhar de
mim – desabafou também Grace.
– Eu tenho certeza que sim, minha filha, eu tenho certeza que
sim...
Posso enxergar agora facilmente em seus olhos a verdade.
Os dois se abraçaram fortemente.
Dessa vez a regra não confirmou quando dissemos que a bebida
somente traz violência e conflitos, nesse momento ocorreu o
contrário. As ideias totalmente embriagadas na cachaça fizeram com
que seu Virgílio apaziguasse o coração puro das amarguras que
vinha enfrentando com a filha. Sim, foi a cachaça que amoleceu seu
coração duro para poder perdoar a filha, pois um homem como seu
Virgílio somente ouve o coração quando embriagado.
O sorriso a partir daquele momento voltou a revigorar no
semblante de Grace, receber o perdão de quem se gosta muito tem
dessas particularidades.
Depois de se confidenciarem sentimentos, Grace resolveu
acalentar o pai contra o frio da noite que cobria o céu naquele
instante:
– Muito obrigada, pai – disse ela, enquanto o pai voltava a ter
sonolência por causa do álcool. – Era isso que eu procurava ouvir.
– Deixa que eu cuido dele, filha – declarou dona Regina, trazendo
um cobertor de lã para seu Virgílio dormir bem mais acomodado.
Nada foi tão propício quanto aquela bebedeira do pai para Grace
finalmente receber seu perdão. Aquilo tinha uma força
incomensurável no seu destino, o vazio era preenchido pelo amor
universal da vida, o amor de pai para filha. A saudade era removida,
o amor fraternal alavancava seus sonhos de felicidade, finalmente
ela poderia se sentir descansada no livramento, novamente seu pai a
aceitava e a paixão rósea estava no rumo da ligação entre ela e o
seu profundo amor, Felipe.
Seu Virgílio, depois de todos os cuidados de dona Regina e Grace,
dormiu profundamente dentro da madrugada que adormecia os
desejos da aurora.
Enquanto as duas conversavam sozinhas tomando café junto com
o cachorrinho deitado mansamente entre os pés, a televisão falava
sozinha.
– Minha filha, que coisa boa seu pai ter lhe dito tudo isso – afirmou
dona Regina.
– Eu sabia, mãe! Debaixo daquela couraça bronca existe um
coração derretido de criança – assegurou Grace. – Eu sabia que
mais dia ou menos dia eu ouviria aquelas palavras lamentosas do
meu pai.
– Eu também tinha certeza do coração grande do seu pai... mas,
filha, mudando de assunto, você viu a atenção do seu Gilberto com
você?
– Nada, mãe! Ele estava apenas ajudando a carregar meu pai.
– Ouça, minha filha, muitos homens aqui sonham em ter você
como mulher. Por que você não aproveita a gentileza do seu
Gilberto? Ele é um homem direito, está separado da mulher, e além
do mais tem um dinheirinho guardado, é um homem seguro, possui
duas propriedades. Acho que ele gostou de você!
– Não, mãe! Eu só tenho um homem na cabeça...
– E quem é ele? O que ele faz?
– Ele é um operário de um depósito.
– Não, minha filha, esse tipo de homem não serve para você. Você
tem que pensar no seu futuro.
– O que é isso agora, mãe!? Eu sei muito bem o que é melhor para
mim, e o melhor para mim é o homem que eu amo.
– Mas filha! Amor não enche barriga nem paga contas.
– Pelo menos liberta a alma.
A conversa entre as duas foi cessando timidamente enquanto seu
Virgílio, no sofá da sala, estava debulhado num sono profundo. O
silêncio do lugar apenas esperava que as duas também procurassem
suas camas. E foi o que elas fizeram, mesmo ainda trocando
algumas palavrinhas as duas procuraram seus quartos para dormir.
Aquela noite lacrimosa estava guardando no coração de Grace
uma certeza da verdade, somente assim ela esperaria pronta para,
no dia certo, apresentar aos pais o namorado Felipe.
Dessa vez Grace dormiu um sono de livramento, onusto de sonhos
verdadeiros e reais. Antes de dormir, ainda conseguiu fazer planos
para uma vida inteira com Felipe, nenhum sentimento contrário agora
poderia separá-la da felicidade com ele. Era a certeza de que o amor
realmente tinha chegado ao seu alcance.
Nos planos de Grace vinha, além da saudade imensa de ser
protegida pelos braços de Felipe, sonhos de filhos, três para ser mais
exato, além de um filho mais velho para viver na companhia do pai,
ou um casal de gêmeos. Claro que sim! Por que não? Tudo era
possível depois de ela ter enfrentado todas as tempestades da vida
até aquele dado instante. Pensou também em comprar uma linda
casa para Felipe e ela, assim que tudo voltasse ao normal e ela
estivesse pronta para se formar e conseguir um ótimo trabalho.
Grace sonhava como qualquer moça da sua idade. Assim eram os
sonhos femininos e dedicados de Grace.
Grace dormiu pela madrugada suspirando felicidade e encanta-
mento... tudo vale a pena quando o perdão tem força de livramento.
Novamente a aurora timidamente ganhava os ares naquela
cidadezinha do interior, mais uma vez o galo cantava, mais uma vez
o leiteiro anunciava seu produto e as poucas pessoas começavam a
sair de suas casas para trabalhar, seja nos pequenos comércios ou
nas lavouras, era novamente a cor iluminada do dia ganhando os
espaços da vida.
Dona Regina foi a primeira a levantar, como de costume foi à
padaria comprar pão depois voltou para preparar o café para o
marido aposentado, mas sempre com os olhos atenciosos sobre ele.
– Virgílio, acorda, vem tomar o café para rebater a noite passada –
disse ela, tentando acordá-lo.
– Não, mulher, a minha cabeça está girando como um pião –
esclareceu seu Virgílio, ainda sonolento.
– Levanta! Você tem que comer alguma coisa.
– Mulher de Deus! Quando eu quiser tomar o café eu tomo, não
precisa falar mais de uma vez – disse seu Virgílio, irritado, todas as
dores da ressaca tilintavam em sua cabeça freneticamente.
Enquanto dona Regina tentava convencer seu Virgílio, Grace saiu
do quarto pronta, já estava novamente de passagem para a capital,
queria imensamente reencontrar Felipe para beijá-lo com a novidade,
as pazes com seu Virgílio.
– Filha! Aonde você vai tão cedo assim? – perguntou dona Regina.
– Eu vou para a capital. Meu imenso amor está me esperando lá –
explicou Grace, de alegria esfuziante.
– Mas já, minha filha, eu ainda não lhe contei nada. Pelo menos
tome um café!
– Não precisa, mãe, eu faço um lanche na rodoviária.
– Mas já... ah, não... pelo menos dê um abraço de despedida em
seu pai.
– Abrace-me forte, minha querida filha! – pediu seu Virgílio,
abrindo um sorriso no semblante.
– Claro, meu pai que amo mais que tudo nessa vida.
Os dois se abraçaram e trocaram carícias ternas como se nunca
estivessem tão próximos, o perdão transparecia em lágrimas de
alegria, a verdade estava inteiramente pairando entre os dois.
Depois da troca de carinhos, seu Virgílio lembrou de algo que
gostaria de comentar com Grace.
– Ah, Grace, minha filha, me lembrei de uma coisa que gostaria de
lhe mostrar – disse seu Virgílio. – Eu gostaria que você ouvisse o
cara que me telefonou falando de você, talvez você saiba quem é.
Sabe, tenho medo, talvez seja um homem perigoso.
– Com certeza, pai, quero muito saber quem é, mas não se
preocupe, provavelmente deve ser um dos meus colegas de
faculdade, gente que não tem nada o que fazer. Você pode suspeitar
o tipo de imbecil que deve ser – considerou Grace.
– Essa moçada jovem de hoje em dia perdeu inteiramente os
modos e o respeito – declarou dona Regina.
Seu Virgílio levantou com toda dificuldade do mundo, mesmo com
uma dor rodopiante de cabeça ele foi ao telefone para fazer a
programação da secretária eletrônica.
– Está aqui, ouça e tente saber se você conhece essa pessoa –
anunciou seu Virgílio, passando o telefone para Grace.
Grace pegou o telefone para si com um sorriso premeditado como
quem queria somente confirmar o sujeito oculto de seus problemas
familiares.
Em poucos instantes começou a ouvir a voz do delator.
– Meu Deus! Eu não acredito! Não pode ser! – surpreendeu-se ela
com uma surpresa desagradável.
– O que foi, minha filha!? – disse seu Virgílio, tentando entender.
– Desgraçado! – chorou Grace.
– O que é isso, minha filha, que nome mais feio! – advertiu dona
Regina.
– Eu mato aquele safado!
– Quem, Grace!?
– Pai, me segura – gritou Grace, chorando nos braços do pai. – O
troglodita que está na mensagem é o palhaço do Felipe, o meu
namorado.
Nesse instante, as lágrimas escorreram como rio que vai para o
mar nos olhos de Grace. Seu pai, sem saber o que fazer, apenas
acomodava ela no tronco barrigudo. Os soluços continuaram velando
o silêncio de seu Virgílio e dona Regina que não sabiam como
amparar a filha.
Até que:
– Você tem certeza que é ele, filha? – perguntou dona Regina,
tentando acalmar Grace.
– Tenho... é ele... aquele idiota! Fez tudo de caso pensado –
respondeu Grace, com o rosto encharcado de lágrimas.
– A culpa é mais uma vez minha, filha – lamentou-se seu Virgílio. –
Eu não devia ter lhe mostrado essa gravação. Se não fosse minha
estupidez você ainda estaria bem feliz como bem estava. Desculpe-
me mais uma vez, filha?
– Não, pai, você não tem culpa nenhuma, você me abriu os olhos
para aquilo que eu não queria enxergar, a culpa na verdade é toda
minha, eu sempre fui uma idiota apaixonada nas mãos do Lipe.
– Escute uma coisa que vou lhe dizer, filha, seja ele quem for, não
merece o seu amor – ponderou seu Virgílio, reconfortando a filha.
– Que burra eu fui! Acreditando naquela cara dissimulada dele.
– Mas, filha, se você realmente gosta desse rapaz deveria
reconsiderar – considerou seu Virgílio. – Tenho quase certeza que
ele fez isso por amá-la demais.
– Não, pai, você não conhece o Lipe, ele mais uma vez provou que
gosta de fazer hora com a minha cara. Dessa vez eu acredito na
verdade, e a única verdade que existe é que ele não me ama. Ele faz
isso sempre com o intuito que eu corra para os seus braços como
uma tola, como se ele sempre fosse o dono da verdade.
– Então, filha, não sei no que posso ajudá-la – anunciou seu
Virgílio.
– Me passa esse telefone para cá – disse Grace, com ira nos
olhos.
– O que você vai fazer?
– Ligar para ele.
Com um sentimento decidido de acertar todas as artimanhas de
Felipe ela discou todos os números do celular dele.
Um breve instante passou até que Felipe atendeu.
– Ok, pode falar – enunciou ele, ao atender o celular.
– Felipe, seu idiota, não quero vê-lo nunca mais. Ouviu bem?
Nunca mais – disse Grace, chorando.
– O que foi que eu fiz? Posso pelo menos saber?
– Não se faça de cínico, seu palerma! Dessa vez acabou, Lipe,
para sempre, eu não vou voltar atrás, acabou. E me faça um favor,
não ligue para a casa dos meus pais nunca mais.
Grace depois de acertar as palavras que desejava respirou fundo e
bateu o telefone na cara dele. Felipe, do outro lado, não se importou,
ele tinha uma convicção cética de que era novamente apenas mais
um delírio histérico de Grace, como sempre, depois de alguns dias
de saudade ela iria novamente procurá-lo.
E ela estava realmente remoendo aquela decisão que atingia
somente o coração. Foi uma atitude drástica, mas sua razão pairava
sobre uma certeza inadiável.
Pensou em ficar sozinha e foi para o quarto. Seus pais, sem saber
o que fazer, apenas aceitavam calados.
– Deixe que ela fique só por alguns instantes, Regina, ela deve
estar precisando... ela realmente amava esse rapaz.
– Isso não é amor... isso é doença!
Enquanto isso Grace estava no quarto, desesperada, querendo
fugir de todos os sentimentos que a prendiam junto a Felipe. Ele
novamente provava que estava com ela somente por pequenos
instantes de prazer. Era impossível ela sentir algo bendito por Felipe
naquele momento. Como uma pessoa amada pode querer tanto
atingir a fraqueza da outra? Por mais que fosse difícil de aceitar, o
lado racional do seu cérebro dizia honestamente que Felipe não era
o amor da sua vida. Não podia ser! Ele sempre a tratava como a
mais fútil das mulheres, como se ela fosse seu brinquedo favorito
que ele voltava a brincar sempre quando bem entendesse. A razão
sussurrava um não que lacerava seu estado de emoção, pois o
coração pedia somente uma coisa, voltar para Felipe sempre,
sempre e sempre, mesmo que ele negasse, a vontade da alma era a
de acompanhá-lo em todos os momentos da vida.
Mas tudo na vida tinha um limite, até as vontades cegas do
coração. Foi nesse momento, pensando em virar o jogo da vida, que
ela abraçou pela última vez seu ursinho de pelúcia que acompanhou
toda a sua juventude. Dessa vez não, ela tinha que aceitar os
instintos de mulher madura, não queria mais viver naquele vaivém
com uma pessoa que não respeitava seus sentimentos. Foi um
instante de coragem súbita que fez ela erguer a cabeça parando de
chorar para novamente reconquistar o caminho dos seus sonhos
profundos.
Repentinamente ela abriu a porta do quarto.
– Pai, mãe, já estou indo – disse Grace, tentando renovar
esperanças.
– Mas já!? Tome um café pelo menos – surpreendeu-se dona
Regina.
– Não se preocupem comigo, eu estarei bem.
– Tudo bem, minha filha, vai com Deus, e que ele ilumine seus
caminhos – despediu-se seu Virgílio.
Nesse momento saindo da casa de seus pais Grace sentiu
novamente aquele ímpeto de adrenalina, a vontade ensurdecedora
de vencer toda aquela tristeza que Felipe provocava. Dessa vez ela
estava decidida, nada mais faria ela voltar para ele, mesmo que o
coração derramasse o cruor escondido.
Passou todos os instantes pensando num futuro sem Felipe até
entrar no ônibus que a levaria de volta à cidade grande, onde
adormecia seus velhos sonhos, mas dessa vez nenhum homem,
nem Felipe, a levaria esquecê-los novamente.
O ônibus rodava na estrada que levava as mais nobres virtudes de
Grace. Ao lado de uma janela do veículo, ela confidenciava a si
mesma sua certeza de um futuro remontado.
Pensamento de Grace enquanto viajava de volta:

Não, Felipe. Dessa vez acabou, tudo, mesmo. Não vou ser a
cachorrinha que volta sempre sorridente abanando o rabinho de
felicidade a cada vez que você me maltrata. Não sou mulher de ficar
recebendo lições de homem nenhum.
Você pode ser mais velho, mas ainda não aprendeu o significado
de querer bem, querer bem é simplesmente, e tão somente amar.
Você sempre consegue roubar meu coração, mesmo sem eu ver,
mas nunca conseguiu me devolvê-lo de volta, é tão somente isso
que eu sempre esperei de você. Então, tudo bem, pode ficar aí
brincando de malabarismo, porque mesmo sem coração ainda me
resta a alma, a mesma alma que me protege do fogo, da água e do
ar.
Não quero fazer isso, mas algum dia você sentirá que me perdeu
para sempre, e que apesar de tudo, eu fui ou eu sou, a mulher que
mais lhe amou na vida.
Capítulo 8
O dia inteiro passou sem que Felipe sentisse qualquer tipo de
remorso com o telefonema de Grace. Certamente, pensava ele, que
ela a qualquer momento voltaria para ele devolver o chá de amor que
ela necessitava. Para Felipe, Grace somente voltava pela simples
necessidade de sexo, talvez por ela ter tido vários homens e mesmo
assim procurá-lo, passava em sua cabeça então que ele era melhor
do que vários na cama, mais um orgulho jactante. Por isso ele não
esquentava a cabeça nem um pouco, previamente subestimava o
caráter sentimental de Grace.
Mas o amor de um homem como Felipe era sempre estúpido, ele
não conseguia imaginar como Grace sofria sem seus mínimos
carinhos, era como representar um sentimento que não existia.
Somente pensava na vizinha, sua verdadeira paixão devassa que
mostrava um caminho de destino infinito sem qualquer mazela no
coração. Aquilo para ele, como dizer eu te amo, era somente uma
parte de realidade que não existia. Para sentir verdadeiramente a
paixão ele tinha que domar os sonhos da pessoa que ele tanto
dedicava atenção, no caso, a vizinha da janela. Ela sim, soltava as
esporas em seu coração, pois somente vendo com aqueles olhos tão
donairosos não era possível sentir o infinito se despedaçar num
recanto onde jazia seu desejo de felicidade.
A percepção da vida somente era entendida quando seus olhos
pairavam sobre o constante espírito apaixonado da garota. Como
uma moça tão jovem poderia dominar um homem tão rude? Talvez
os contornos dela salientassem sua imaginação latente de coito. Pois
Felipe, mesmo sabendo que estava numa área de risco do coração,
pulava quase de olhos fechados no vácuo de um sentimento
profundo. Ele não podia compreender o que estava sentindo, sua
palpitação até acelerava quando chegava perto da cortina, tudo por
causa de uma virtude que o homem mais teme mesmo desejando
intensamente a realidade de chegar num olimpo longínquo, ou quase
isso, amar alguém como os poderosos amam, sentir o coração
sangrar no máximo, mesmo disfarçando e recebendo todo o carinho
amável do objeto mais sublime.
E assim Felipe continuava vivendo, numa profusão de sentimentos
que cegavam qualquer outro destino.
Então ele chegou novamente no apartamento com as três latinhas
de cerveja como de costume. Finalmente em seu lar, buscou domar
a ansiedade, não abrindo a cortina de uma vez para ela não pensar
que ele estava tão apaixonado assim. Esse processo era o mesmo
processo de criar um mínimo detalhe que pudesse promover um
acaso moderado, sem que ela sentisse a real vontade inesgotável de
amar de Felipe.
Ligou a TV para ser acompanhado nos pensamentos e depois
encostou-se numa poltrona para fixar os olhos no aparelho, mas com
a noese distante entre a vizinha e Grace. Por quem ele devotava
mais amor? Certamente, nele havia a contradição da escolha, talvez,
para um retrossexual qualquer, a mulher tem que ser escolhida e não
o contrário. Simplesmente Felipe por Felipe.
Foi pensando no momento de rever aquela paixão escondida que
ele acabou se lembrando do telefonema de Grace. Seria realmente
verdade que ela nunca mais o procuraria de volta? Talvez não, Grace
era sempre muito temperamental, mas sempre ponderava e voltava
atrás em suas decisões. Em outras vezes já aconteceu o mesmo, e
sem um menor pormenor ela voltava soluçando saudades atrás do
seu amor. Isso guardava a mente de Felipe para a própria decisão
livre de, apesar de tudo, sempre haver alguma mulher presa em seus
calcanhares. Ele sabia que dessa vez tinha ido longe demais,
desmascarando ela aos olhos dos pais. Mas o que fazer se sua
vontade masculina desaprovava qualquer libertinagem de Grace?
Lugar de mulher é o lugar mais perto do maior agrado possível de
seu homem. A mulher nasceu para agradar o homem! Felipe não se
importava nem um pouco com aquele modernismo estético de um
casal contemporâneo, para ele, a mulher seria sempre o
complemento da força de um homem.
A noite, devagarinho, ganhava os espaços sobre a cidade, então
Felipe resolveu dar uma rápida olhadela através da cortina, seu
coração novamente pulsava ansiedade. Rever aquela nina
novamente como de costume, era o seu maior prazer naqueles
tempos onde as mulheres estavam cada vez mais donas de si. Na
sua esperança de revê-la estava somente sobressaindo em seu
coração uma lívida paixão descontrolada. E foi o que ele fez, abriu
moderadamente a cortina, mas ela não estava lá, então ele pensou:
“onde, raios, ela está?”.
Ela sempre estava presente naquele horário quando a noite e o dia
cobria o espaço de degradê.
Por um instante ele tentou se acalmar:
– Eu quero que essa mulher vá para o diabo que a carregue! –
disse ele, sozinho dentro do apartamento. – Eu sempre estou aqui
para agradá-la com minha presença, enquanto isso ela se faz de
gostosa pagando de gatinha dengosa para cima de mim. Mesmo eu
não suportando essa vontade imensa de tê-la, não vou ficar mais
bancando o idiota se ela não aparecer para mim hoje. Dane-se! Ou
ela gosta de mim ou não gosta.
Aquela raiva contida apenas descontrolou seu ímpeto na bebida.
Virou em várias goladas seguidas a lata de cerveja. Era demais para
ele, se sentir um completo idiota perto de uma garota juvenil. Sua
raiva de não ser correspondido na hora que lhe coubesse se tornou
em cólera, de alguma forma, ele tinha que descontar em alguém. E
foi o que ele fez, escancarou a janela e atirou com toda força a lata
que segurava sobre um rapazinho que caminhava sossegadamente
na calçada como um transeunte qualquer. A lata atingiu bem na
cabeça do rapaz.
– Joga a mãe! – gritou o rapaz, olhando para cima.
Sem perder a valentia de sempre Felipe acenou através da janela
apenas seu dedo médio estendido agredindo moralmente o rapaz
que estava totalmente indignado com aquela sociopatia.
– Filho da puta! Desce aqui se você for homem... – continuou
gritando o rapaz.
Sem notar qualquer diferença na vista, enquanto Felipe acenava
com o dedo médio a garota da janela apareceu num relance. Quando
ele ergueu a cabeça e olhou de soslaio não conseguiu conter a
vergonha, pois ele nunca gostava de mostrar seu lado devasso para
mulher nenhuma, muito menos para aquela moça lividamente
sensual que degenerava seu coração tosco. Naquele instante, ele
olhou para ela esperando qualquer tipo de reprovação, soltou um
sorriso sem graça na esperança de que ela não se incomodasse com
aquela baixaria usual, mas foi o momento mais surpreendente que
ele recebeu dela, um beijo molhado no vidro da janela que
mergulhava o instinto de Felipe no paraíso. Não podia ser! Ela era
perfeitinha demais para aprovar com carícias aquele ato libertino
dele.
Sem pudor algum ela continuou beijando o vidro da janela como
quem acenava um instinto passional para Felipe. Dessa vez a
certeza de que o amor matizado de paixão estava procurando por ele
era inegável. Não podia ser! Ela era linda demais para se perder
numa inesgotável dedicatória de amor por um simples peão de
depósito de materiais de construção. Era o que sua inteligência dizia,
mas o coração era cético em afirmar: talvez seja isso um sonho
amoroso!
Sim, o amor era realmente aquilo, era como ares do dia numa
manhã de alvorada viva. Bem assim se sentia o raivoso Felipe, um
homem perdidamente desorientado pelos dotes físicos da garota que
aparentava ser mais nova. Mas não seria isso que incomodaria as
sensações cegas de Felipe, para ele, ela era uma sublime perfeição
dos céus, um lascivo desejo escondido, ou uma letícia vontade de
amar o impossível.
E ela continuou, por um demasiado tempo, talvez uns três minutos
beijando a janela como se estivesse beijando o próprio Felipe.
Enquanto ela enamorava a janela, Felipe se embevecia de sonhos
duradouros e eternos. Realmente qualquer outro homem também
ficaria sonhando acordado, era desejo demais sendo explorado em
seu caráter rudimentar.
Era angústia demais para Felipe ficar observando-a sem poder
sentir aqueles lábios zelosos de sentimento.
– Meu Deus! Essa garota é tudo o que eu já sonhei até aqui! Não é
pedir demais. Avidamente é a vontade inesgotável das minhas duas
cabeças. Ela sensualiza minha cabeça maior por ser meiga como
uma mulher apaixonada, bem distante da vadiagem de Grace, e
também sensualiza minha cabeça menor com seu corpo de mulher já
feita.
O tempo do beijo ainda não havia passado enquanto Felipe
continuava delirando aquela surpresa eufórica. Ela estava
inteiramente entregue àquele beijo lascivo na janela. Ele, do seu
lado, apenas confirmava que aquela garota estava completamente
de quatro por ele.
Felipe, mesmo com tantos anos de vivência, diante dela entendia
que aquilo realmente era amor. Pois os dois se entendiam
perfeitamente somente com os olhares. Sem ponderar nada,
qualquer atitude dela era realmente sedutora, fazia o que ele gostaria
de ver.
– Ô palhação, desce aqui que você vai ver onde eu enfio essa lata
– gritou o rapaz lá embaixo esperando qualquer reação de Felipe.
Foi o momento para a moça do prédio vizinho cessar o beijo e
fechar as cortinas. Foi um breve momento de sonhos libidinosos.
Enquanto o rapaz continuava xingando, Felipe ficou alguns instantes
com cara de bobo como quem tinha acabado de levar um nocaute.
– Hei, palhação, vai descer aqui ou não vai? – continuou gritando o
rapaz.
Felipe então acordou do transe e se irritou:
– Vai procurar a sua turma, moleque! – devolveu ele.
Depois fechou a janela e a cortina, suspirou bem fundo, era mais
um dia de felicidade plena, para conquistá-la bastaria tempo, pois ela
não era uma flor que se catava no chão como Grace, pensava ele,
ela era uma flor que nascia somente nos mais distantes cumes de
uma montanha.
A vontade de vê-la novamente, somente nasceria numa nova
tarde, na tarde de amanhã, quando o sol se põe e a lua surge no
firmamento.
Enquanto na manhã desse dia seguinte Paola recebeu o
telefonema tão esperado do seu amigo, dono de uma agência de
modelos. O tão aguardado telefonema dessa vez havia realmente
chegado para surpreender todas as novidades da garganta de Paola.
O sonho esperado por Grace podia realmente estar começando.
Paola então resolveu dar a notícia tão esperada pela amiga:
– Alô – atendeu o telefonema Grace.
– Sou eu, Grace, Paola! Você não sabe da grande novidade que
eu tenho para contar. Você vai acabar subindo pelas paredes! –
disse Paola.
– Não acredito! Você conseguiu, amiga?
– Claro! Ou você acha que eu deixaria uma amiga nas mãos?
– Que formidável!
– Mas existe apenas um probleminha.
– Qual?
– O Carlos Vilas, que é esse amigo meu, sempre insiste em
transar com as modelos escolhidas. Sabe como é né? Essa vida de
glamour e glória sempre é baseada num valor de trocas. Mas tenho
certeza que você vai se encantar com ele. Ele é muito educado –
disse Paola.
– Que tipo de homem é esse tão educado que exige o teste do
sofá? Eu não quero começar minha carreira como uma
desclassificada.
– Sinto, amiga, mas você terá que engolir esse seu orgulho todo
de uma vez. Todas fazem isso para entrar, e para a carreira ganhar
uma projeção maior ainda é aí que elas fazem! Em última instância,
basta apenas mentir quando alguém perguntar algo a respeito disso.
– Eu não sei se isso é o certo, Paola.
– Amiga, essa é a oportunidade da sua vida, não a desperdice
com um orgulho bobo. Acredite! Todas fazem isso, simplesmente
todas.
– Não é isso. Sabe o que é? É que eu voltei a fazer as pazes com
meu pai, e eu não gostaria de perder a confiança dele outra vez. Eu
sei que ser modelo é a coisa mais importante da minha vida hoje,
mas a confiança dos meus pais também está nesse meu projeto de
vida.
– Eu garanto, Grace, você não vai conseguir na vida melhor
oportunidade do que essa! As modelos da agência do Carlos Vilas
costumam viajar pela Europa inteira.
– E agora, o que eu faço?
– Garota, essa é a oportunidade do seu último programa na vida! E
eu vou falar uma coisa, o Carlos Vilas não é nenhum sacrifício não,
aquilo é um deus espanhol, trata a gente sempre como uma dama,
eu digo isso porque já transei com ele... ou você está largando a
oportunidade da sua vida por causa daquele ignorante do Felipe?
– Não fale daquele idiota mais! – irritou-se Grace.
– Então, Grace! Não seja burra! Enquanto a vida lhe chama para
brilhar você prefere guardar seus pudores para aquele peão de
depósito.
– Eu já falei para não falar mais dele... ele é a única coisa que eu
odeio na vida – disse Grace, irritada.
– Vamos, Grace, aceite! Olha uma coisa que vou dizer, depois dos
vinte, ninguém mais chama pessoa nenhuma para esse tipo de
trabalho, somente aquelas que brilham a vida inteira é que
conseguem.
– Tudo bem... tudo bem. Já que vai ser a última vez mesmo, então
quero brilhar como nunca, até ver a sombra do Felipe decaída no
chão.
– É assim que se fala, amiga! Você vai ver que vai se cansar de
ver tantos Felipes sonhando com você, querendo sentir um mínimo
cheiro seu apenas. Você vai brilhar tão alto que nem vai se lembrar
daquele ralé, não terá tempo nem de lembrar que ele existe. Você vai
ver.
– Ah, amiga, tomara que Deus esteja ouvindo o que você está
dizendo, pois eu não suporto mais o Felipe machucando o meu
coração – queixou-se Grace.
– Pode ter certeza de que ele está ouvindo.
– Eu acredito que sim. Depois de tudo que o Felipe fez comigo
acho que mereço essa felicidade sim.
– Então vista-se bem sensual, porque eu falei ao Carlos Vilas que
você iria lá ainda hoje. Não se esqueça, vá hoje! Amiga, estou
torcendo por você. Vai dar tudo certo. O endereço da agência está
naquele cartão.
– Mas, Paola, você não acha que esse tal de Carlos Vilas é muito
alto nível para mim?
– Ah, Grace, para de se subestimar. Tenho certeza que você será
a mais linda contratada dele. Se eu digo que você tem as qualidades
que ele procura é porque é verdade. Eu nunca indicaria a ele uma
rampeira qualquer.
– Muito obrigada mesmo, amiga.
– Então você me conta as novidades depois... e não se esqueça,
se vista bem sensual sem parecer vulgar.
– Pode deixar.
– Até logo e boa sorte, Grace!
Depois que desligou o telefone Grace começou a aspirar ao
fascínio do sucesso, para ela tudo aquilo era uma espécie de
paraíso, uma vontade imensa de realizar os prazeres que a alma
necessitava.
Ela ligou o rádio enquanto dançava pelos cômodos do
apartamento como quem recebeu a sorte grande dos céus. Para ela,
o sonho começava ali, entre uma felicidade e outra a vida ganharia
os encantos que o mundo impunha. E ela dançava, dançava e
dançava de felicidade, ela não conseguia crer que o sonho estava
realmente acontecendo.
Agora, finalmente, ela poderia dar o troco de que tanto precisava
em Felipe. Ela pensava consigo, que, talvez assim, ele poderia se
sujeitar um pouco aos agrados de um romance que estava ruindo.
De uma coisa ela tinha certeza, estava decidida, de que nunca mais
voltaria correndo para os braços daquele homem que nunca saberia
como cuidar de uma vontade tão donairosa. Mas certamente o
coração estava cego em afirmar que seu único amor estava nos
braços fortes de Felipe. Por mais que ela tentasse negar
intimamente, o coração palpitava, então intuitivamente ela decidiu
que somente voltaria para ele se ele engolisse um pouco de orgulho
e desse o primeiro passo para um reencontro amoroso. Estava
cansada de se sentir a única apaixonada daquela história sem final
feliz. Tentou resgatar um pouco de sabedoria do pequeno passado
perdulário, pois já entendera, a partir das reações de Felipe, de que
o amor somente sobrevive se as duas pessoas estiverem em
harmonia de sentimentos. Para ela, tudo já havia chegado num
limite, não amaria mais a quem não demonstrava nenhum resquício
de saudade sequer.
Enquanto aquele pensamento sobre Felipe perdurou, ela ficou
escondida num canto do apartamento, ouvindo uma canção alegre
do rádio contrastando com um sentimento contido de choro. Pois de
que valeria ser uma modelo famosa sem a companhia do grande
amor da vida? Mas agora Felipe era passado, e com certeza ela se
achava muito nova para encarar o coração de frente, talvez um dia o
brilho do glamour que tanto ansiava poderia apagar aquela chama
que ardia em seus sonhos de paz.
Uma outra certeza ela estava encarando de frente – a tristeza – ,
alguma coisa tinha que nascer para destroçar aquele sentimento que
anulava sua inspiração da realidade. E bem brevemente surgiu essa
coisa, o convite para ser modelo, estava convicta de que aquilo
despertaria seu sorriso por um demasiado tempo, talvez até
conseguir se livrar das entranhas de uma paixão pesqueira. Porém
essa tristeza protestava contra a felicidade vindoura, nenhum tilintar
de alegria perdurava por muito tempo. Como poderia ela alçar aquele
voo se novamente tinha que vender o corpo? Sim, vender
novamente o corpo! Mesmo com o perdão carinhoso do pai ela
destinava toda sua vida para aquela oportunidade. Não havia como
escapar daquilo, o rabo de dianho novamente chicoteava suas
pernas. O que fazer? O óbvio, fazer aquilo onde o errado alimenta o
prazer, a certeza de uma aproximação maior da concupiscência, do
verdadeiro desejo, o desejo de ser aquilo que ninguém esperava. A
tentação do sabor do doce era maior do que uma vida de pudores,
do que uma confusão de sentidos, a vontade de conseguir o amor do
namorado e a redenção dos seus pensamentos vitais. A tentação do
sabor do doce era realmente a vingança contra o aspecto de um
passado simbolicamente triste.
E no mais, pensou ela, Felipe dessa vez merecia ser açoitado com
a traição. Não daria nunca, da forma em que ela tanto o amava, para
perdoar as sacanagens do namorado. Vingança! Era o que o
coração frágil exclamava. Ela já estava até finalizando sua
programação de desculpas: eu estava fazendo isso por isso e isso.
Então, com todas as desculpas prontas, ela foi até a janela do
apartamento para sentir a brisa dos ares do dia. Afinal, Deus perdoa
os meios e agradece os fins, já se sentindo absolvida de qualquer
libertinagem pecadora.
Ela saboreou alguns instantes aquela verdade renovada de poder
finalmente sonhar um mundo de lívidas histórias. Até que, como as
portas estavam abertas, ela decidiu ir em frente, ir atrás de seus
sonhos. Tudo estava ok, mesmo tendo que vender o sexo para
abraçar esse destino.
Como a consciência não pesava mais, então ela partiu para um
banho, um banho refrescante, um banho de esperanças renovadas,
esperanças de ser a modelo mais assediada e prestigiada. Enquanto
a água escorria e decantava seu corpo ela cantava junto com o rádio
ligado no último volume. O sabonete de lavanda perfumava cada
poro. Seu único objetivo, provocar todas as tentações possíveis no
então, ainda desconhecido, Carlos Vilas. Já no banho ela
premeditava suas insinuações, se esse tal Carlos Vilas fosse homem
mesmo, ele logo se embriagaria com tamanha perfeição de
sensações tentadoras. A manhã harmonizava com o cheiro de
lavanda de Grace, foi quando desligou o chuveiro, o rádio ainda
tilintava em todos os arredores do apartamento, a vida afora era
disputada na corrida de cada um através do espaço tempo, enquanto
Grace estava se armando de sedução. Era lógico! O tempero seria
beliscado, somente assim Felipe poderia buscar novos conceitos
sobre o amor. Irremediavelmente a traição era o ferrão protetor de
Grace, o amor de um homem somente é tocado quando este se
sente perdedor de algo que sempre tinha. O amor não é uma
personificação de duas caras, novamente ela estava decidida em
embrutecer as qualidades já rudes do namorado.
Nua, de frente a um espelho que refletia todas as suas formas
delicadas, Grace se preparava para o banho mais vital de um
encontro que poderia acabar na cama, o banho de perfume. Ela se
perfumava delicadamente com uma fragrância especial, ainda
conservada, sem uso desde a época que fazia programas. Era um
perfume muito provocador que incendiava em qualquer homem a
concupiscência, um perfume direto de Paris de uma colega prostituta
que comprara de presente. Em poucos instantes, o corpo de Grace
exalava um eflúvio de paixão. Enquanto o dia decantava seu
perfume, ela se insinuava ao deleite no espelho, procurando
acentuar todas as suas formas prazerosas.
Quando chegou o momento de vestir a lingerie, ela acabou
escolhendo novamente o preto, seu sinal de estar saindo para matar,
para matar qualquer desejo de paixão por aquele homem que nem
conhecia. Era sua pequena superstição, mas que mantinha sempre
naquela situação de estar fazendo sexo por algo. Usualmente o
branco era somente com Felipe, pois trazia lembranças positivas de
um amor terno que sentia. O branco seria para ela para sempre a cor
da ternura dedicada a quem se ama. Delicadamente ela vestiu a
peça íntima preta que expressava o sexo da melhor forma, com
aquele desenho característico de elucidar as formas das ancas e das
pernas. E apesar de se vestir pausadamente ela não tirava os olhos
do espelho querendo saciar qualquer perfil que melhor atraía o
desejo. Estava pronto! Todas as peças íntimas que guardavam a
surpresa para o felizardo estavam meticulosamente sobrepostas
sobre seu corpo de pele branca, macia e delicada.
Como havia muito tempo até chegar na agência, Grace não perdia
cada detalhe do seu corpo sedutor. Finalmente ela decidiu vestir as
cortinas do seu espetáculo, vestiu uma calça preta de material
elástico que privilegiava as formas dos seus glúteos que eram
verdadeiros bocados de carne, parecendo até tombar todo seu corpo
para frente, de tanto ocupar seu espaço anterior. Novamente mais
uma outra olhadela no espelho para conferir se a dose era realmente
exata, ser provocante sem parecer vulgar. E como ela sabia fazer
isso! Aprendeu nas ruas a malícia e na faculdade a educação
ponderada, todo desejo travestido de graciosidade.
Enfim, ela vestiu a parte de cima, também colante no corpo, que
destacava a beleza dos seus fartos seios. Sem esquecer dos
acessórios como um pequeno colarzinho e uma pulseira, calçando
também os altíssimos saltos que a deixava imponente sobre
qualquer um. Pronto! Depois de conferir de perfil a perfil, ela estava
apenas com o amor e os sonhos idealizados na consciência, não
faltava mais nada para encantar.
Foi ao quarto para conferir a bolsa que usaria, e escolheu a mais
comportada, uma bolsa que a destacaria sobre as outras mulheres
executivas da cidade. Depois, novamente, uma última olhada no
espelho para conferir os cabelos, claro, os cabelos eram o seu maior
charme, lisos e extensos até os seios com uma pequena franjinha
delineada. Ok! Mesmo com a autoaprovação, ela somente se sentiria
satisfeita se no caminho algum homem a notasse num olhar mais
dedicado.
Então, depois de consecutivas concentrações à frente do espelho,
ela partiu, e com ela a esperança de encontrar um lugar ao sol como
uma verdadeira moça bonita que sempre foi. Todas as suas atenções
estavam voltadas somente para a ideia de convencer Carlos Vilas de
que ela era a moça que ele estava procurando. Seu maior medo era
as suas medidas, tinha medo de se parecer com uma gostosona
qualquer, pois desde os doze anos de idade os homens da sua
pequena cidade já mexiam com ela por causa das suas fartas
nádegas. Mas rapidamente pensou ela:
– Vou ganhá-lo na cama!
Uma das piores coisas que ela sentia era a falta de um automóvel,
não que tivesse vergonha de andar de ônibus, mas era a péssima
qualidade dos transportes urbanos, sempre lotados. Não havia como
se produzir e depois trocar o perfume pelos suores dos passageiros,
aquele cenário suburbano a incomodava como nunca. Com o
primeiro dinheiro que ganhasse como modelo ela jurava a si mesma
que compraria um lindo luxuoso automóvel.
Mas enquanto ela não comprava seu luxuoso automóvel, tinha que
se contentar e pegar o velho ônibus.
Quando chegou ao ponto de ônibus ela já começou a perceber os
olhares mais maliciosos dos homens. Ela estava em pé, parada em
frente ao ponto, e alguns rapazotes conversavam livremente,
quando, repentinamente, um deles apontou para Grace, os outros
também sem postura nenhuma se colocaram a avistar Grace de
costas. Ela nitidamente percebeu, mas não fez nenhuma vista
grossa, pelo contrário, ela até sorriu disfarçadamente, pois aquilo era
um sinal de que ela estava provocante, ainda mais vindo de rapazes
mais novos, sempre tão detalhistas. Eles continuaram olhando-a e
murmurando entre eles, mas nem pensar de perder a postura,
pensava Grace, sempre revelando uma fisionomia séria, talvez para
não deixar que os rapazes mexessem através do vocabulário sujo
com ela. Num dado momento, os rapazotes estavam em tão enorme
estado de ebulição que ela até pensou que um deles soltaria um
elogio, aquele tipo de elogio clássico de jovem. Ela não pensou duas
vezes em continuar de fisionomia fechada, apesar dos elogios serem
sempre tão sinceros, ela não suportava os descuidos dos homens
para com o comportamento.
Quando ela já estava decidindo em deixar o ônibus para pegar um
táxi, o veículo apareceu no horizonte esquerdo vindo numa
velocidade moderada. Grace se aliviou, finalmente ela podia sumir
dos olhares atenciosos dos rapazotes que já se preparavam para
soltar o verbo.
O ônibus parou onde Grace sinalizava com a mão direita, e no
momento que ela adentrou os pequenos canalhinhas dispararam
suas palavras sujas, ou seus elogios, tudo depende de quem vê:
– Gostosa!
– Boazuda!
– Delícia! – gritaram todos eles.
Grace no primeiro momento ficou constrangida, mas depois de
pensar bem, aquilo era tão somente um incentivo à entrevista que
ela já estava por fazer, um incentivo às suas formas de mulher
formosa, ela somente perderia a chance de ser modelo se esse tal
Carlos Vilas fosse gay. Depois da reflexão e de se sentar
comodamente num canto, vigiada de olhares do restante dos
passageiros, Grace acenou delicadamente para os garotos que
faziam uma festa exageradamente de elogios. Pela primeira vez na
vida Grace gostou do comportamento vulgar, pois aquilo levantou a
sua autoestima, porque certamente num ambiente de modelos, a
vaidade era a qualidade principal, a diferença absoluta entre uma
modelo e uma mulher tão simplesmente.
Enquanto o veículo partia ela sorria na penumbra:
“Obrigada, meu Deus!”, pensou Grace. “Somente o senhor mesmo
para colocar esses anjinhos para levantar o meu astral. Agora estou
convicta que sou bonita mesmo! Eu tenho certeza que vou
conquistar esse Carlos Vilas e a minha oportunidade de ser uma
modelo de grande sucesso... Mas por favor, não se esqueça de mim
na hora da entrevista! Por favor, eu preciso!”
E Grace viajou pela cidade ruidosa, os sonhos estavam todos
perceptíveis para um amanhã sem medo, seria a última vez que ela
faria amor em troca de algo. Dentro do ônibus tudo estava calmo,
depois daquele momento de constrangimento, os passageiros
voltaram para o clima de sempre, com muito silêncio, de barulho
mesmo apenas os ruídos do veículo. Foi nesse instante que Grace
passou a respirar bem fundo, no intuito de se acalmar, pois estava
muito nervosa com tudo, talvez ela não tivesse as medidas que
agradaria o senhor Carlos Vilas.
Porém, qualquer momento que Grace estivesse sozinha era um
momento para pensar em Felipe. O que vinha em sua cabeça dessa
vez? A chance de prová-lo que ela era realmente a mulher da sua
vida. Mas será que Felipe estava realmente precisando dessa prova?
Pois ele estava tão decidido a conquistar o amor das janelas que
uma Grace de lixo ou uma Grace de luxo não faria nenhuma
diferença.
Depois de cruzar a cidade em uma hora, Grace desceu do ônibus,
já de olhos atentos sobre os números dos locais na avenida, ela
procurava o número quinhentos e onze, caminhando sempre muito
decidida, afinal de contas era o caminho para a glória. Todos os
transeuntes ao seu redor notavam a sua presença, mas ela estava
convicta de que dessa vez seria a última vez, o brilho das luzes a
esperavam.
Num dado momento, Grace olhou de soslaio para um prédio
comercial, enfim, ela encontrou o número certo do prédio. Era
realmente o prédio de número quinhentos e onze. O aspecto físico
do prédio agradou-lhe os olhos, ela começou a vislumbrar a escalada
do sucesso. Jornais, revistas e televisão, aquele lugar seria a base
de tudo. Tudo era bem chique como ela sempre sonhou, não havia
um sinal de uma cor errada, tudo tinha o desenho surreal dos céus.
Já na espera do elevador ela sentiu um pouco de timidez, pois ao
seu lado, também aguardando o elevador, apareceu duas garotas
bem formosas de rostos bem delineados. Não havia dúvidas, aquele
era o seu primeiro contato com o mundo da moda. As moças
conversavam como quem nem sentia a gravidade da vida, tudo
aquilo fascinava Grace, o modo como elas sorriam, era um tipo de
sorriso diferente, um sorriso de quem caminhava no céu sempre...
cada vez mais, Grace sentia que queria aquela felicidade também.
Quando o elevador chegou Grace entrou acompanhada de algumas
pessoas e com a presença das duas modelos que também rumavam
para o andar da agência. Nem as duas modelos e nem o restante
das pessoas notaram os olhos de fascínio de Grace sobre aquelas
garotas, ela sonhava em ter colegas daquele nível, somente assim
ela poderia viver sabendo que na trilha da vida o ouro é um mero
detalhe da felicidade. Em cada andar que o elevador parava as
pessoas saíam, até que restaram apenas Grace e as duas modelos,
o elevador parecia lento, mesmo ela estando fascinada não escondia
sua timidez, as duas moças tinham uma típica beleza europeia.
Grace até pensou em voltar atrás, pensou que aquilo não era para
ela, afinal, as duas moças eram tão grandes que ela parecia bater no
queixo das modelos. Tudo tinha que ter um fim, e o fim daquela
história ridícula de ser modelo estava próximo. Não havia espaço na
cabeça dela, de que uma mulher com os dotes tipicamente
brasileiros pudesse viver um sonho tipicamente europeu.
“Eu não nasci para ser feliz”, ela pensava isso a todo instante,
talvez fosse pura timidez de iniciante.
Em alguns instantes a porta do elevador abriu, as duas modelos
saíram na frente, logo em seguida foi a vez de Grace sair,
timidamente, colocou o corpo para fora e seguiu os passos das
modelos quando repentinamente viu as duas entrarem na agência.
De tanto esperar finalmente ela estava de frente ao lugar que poderia
realizar todos os seus sonhos. Mas quem disse que Grace tinha
coragem de entrar no primeiro momento? Toda aquela mistura de
sonhos e realidades se chocando lacerava seus reais desejos. Ela se
sentia muito pequena para aquele propósito de glamour, sua cabeça
não conseguia aceitar que a distância estava muito menor do que
antes. Dessa vez a realidade estava a um passo de sua verdadeira
vontade. Aquilo não era para ela, era o que pensava.
Em frente à porta da agência ela deu meia-volta e procurou desistir
de tudo. Chamou o elevador com uma convicção cega de que tudo
estava terminado, que a melhor coisa a fazer era voltar para a cidade
de seus pais e desejar intensamente coisas mais palpáveis do tipo:
casar com um fazendeiro rico que pudesse satisfazer suas vontades
materiais.
Mas aquilo era tudo muito pequeno perto de sua cabeça
sonhadora.
Quando o elevador abriu à sua frente ela pensou melhor.
Pensamento de Grace:

Pense bem! Eu estou a um passo de tudo que desejei desde


garotinha. Você não é tão mau assim, Grace. Pense bem! Quem tem
que ter inveja de você são aquelas duas, pois você é gostosa, linda e
desejada. Pense bem! A pior coisa que pode acontecer é um não.
Pronto, já estava decidido, Grace foi encarar o problema de frente.
Deu meia-volta novamente e em poucos passos adentrou na
agência:
– Tudo bem? Em que lhe posso ser útil? – perguntou gentilmente a
secretária.
– É que... que... que... – gaguejou Grace, estava muito nervosa.
– Tudo bem, pode falar.
– É que eu gostaria de conversar com o senhor Carlos Vilas.
– E a senhorita tem hora marcada?
– Acho que sim. Uma amiga já tratou com ele.
– Tudo bem. Fique à vontade, vou comunicar a ele.
Ao redor da sala havia várias fotos das modelos mais badaladas
do país, era demais para o seu coração, tudo aquilo tinha gosto de
felicidade sem fim. Comportadamente ela se sentou, sempre de
olhos fascinados com aquele mundo de celebridades da moda.
Todas as fotos estavam estampadas com as campanhas mais
badaladas do país, os homens e as mulheres mais lindas, toda uma
vida de suspiros aguardando Grace também, era o que ela
imaginava, cada vez que avistava as fotos mais ela se distanciava do
não.
Tudo aquilo também tinha que fazer parte da sua vida:
“É tudo tão maravilhoso!”, pensou ela de tanta satisfação.
Mas Grace ainda tinha que esperar:
– Senhor Carlos, tem uma senhorita aqui, chamada Grace,
querendo falar contigo – disse a secretária através do telefone.
– Grace!? Eu não conheço nenhuma Grace – disse o senhor
Carlos Vilas.
Querendo esclarecer a secretária voltou-se para Grace:
– Através da indicação de quem você veio?
– Diz a ele que foi através da Paola, provavelmente ele deve
conhecê-la – disse Grace, um pouco nervosa.
– Ela disse que foi através da Paola, senhor Carlos.
– Paola!? Eu também não conheço nenhuma Paola... mande ir
embora, eu não tenho tempo para oportunistas... ah, espere!
Lembrei, eu sei quem é... mande esperar – declarou o senhor Carlos
Vilas.
– O senhor Carlos pediu que você esperasse um pouco.
– Para mim tudo bem – concluiu Grace.
Talvez o pouco que Grace deveria esperar fosse muito, então ela
resolveu folhear algumas revistas, e enquanto folheava se
surpreendia com as campanhas que a agência já tinha participado:
– Vocês fizeram todas essas campanhas? – perguntou ela,
surpresa.
– Claro! Nossa agência está entre as maiores do país – disse a
secretária. – Nós trabalhamos com as modelos mais requisitadas.
Não somente trabalhamos com peças publicitárias, mas também
com moda, seja de referência nacional ou internacional.
Pouco preocupada com o que a secretária dizia, Grace apenas
folheava as revistas sonhando bem mais alto do que antes. A certeza
de querer viver aquela realidade era nítida em seus olhos contentes.
Nisso, alguém se desgostou com sua visita, a secretária, que era
apaixonada pelo patrão, e conhecia os deslizes dele, ela sabia que
ele praticava o tão famoso teste do sofá. O ciúme começou a subir
na cabeça da secretária enquanto assistia as belas formas das
pernas de Grace.
Tentando saber se aquele ciúme tinha razão de existir a secretária
buscou se aproximar de Grace.
– Você veio aqui por algum motivo especial? – perguntou ela,
delicadamente.
– É que eu desejo muito ser modelo e essa amiga minha me
indicou o senhor Carlos... Você acha que eu posso ter chances? –
disse Grace, um pouco ingênua.
– Claro! Você é muito bonita... mas acho que você trabalharia
melhor como modelo fotográfico. Você tem umas formas bem
insinuantes.
– É o que minhas amigas sempre me disseram, mas eu queria
trabalhar em todas as oportunidades que surgissem.
Não dava outra! Depois que Grace revelou o porquê de estar ali, é
que a secretária descobriu que naquele dia haveria o teste do sofá.
O senhor Carlos Vilas, pelos ossos do ofício, era sempre bastante
atirado sobre as mulheres, não havia meio termo para ela, ou dava
ou não dava. Foi sabendo disso que a secretária começou a perder
os olhos da educação para olhar com os olhos da inveja. Muitas
mulheres dependiam do poder do senhor Carlos Vilas, por isso a
agência vivia rodeada de mulheres querendo paquerá-lo. Nos
pensamentos da secretária, Grace seria mais uma. Grace pouco
notava que estava entrando num mundo de vaidades, ciúmes, inveja
e desprezo, mas sua decisão já era pensada desde a infância.
Não havia nada para fazer, apenas folhear as revistas como quem
esperava aparecer nelas num passe de mágica. Grace estava muito
ansiosa, perdidamente procurando seu lugar à terra de espetáculos.
Quando Grace já estava esperando por longas duas horas a
secretária recebeu a chamada de Carlos Vilas:
– Ok, Grace, você pode entrar! – anunciou a secretária.
Era como se o céu estivesse abrindo a porta para ela. Bem que
tentava esconder o sorriso, mas era impossível até a secretária
notava sua alegria.
Depois que Grace partiu no corredor ao encontro da sala de Carlos
Vilas a secretária desabafou a primeira ponta de inveja.
– Eu não acredito que o senhor Carlos vai ficar com essa
desclassificada! – disse a secretária, baixinho, sem que Grace
ouvisse.
Será que Grace suportaria aquele mundo novo? Mas, infelizmente,
a primeira coisa a fazer era seduzir o dono da agência. Na realidade,
Grace não se sentia bem fazendo aquilo, mas o desgaste do
relacionamento com Felipe ditava seu comportamento de traição, ela
queria porque queria machucar pelo menos uma vez o coração do
ex. Mesmo sabendo que estavam brigados, Grace sentia aquela
eterna paixão rancorosa de ex, umas vezes namorado outras vezes
ex, era assim que o romance dos dois desencadeava.
No momento em que ela chegou à frente da porta do escritório do
senhor Carlos Vilas, decidiu se arrumar em última instância,
suspendeu a calça elástica para privilegiar as formas de suas
pernas. Pronto! Bastou apenas alguns retoques para qual lado o
cabelo deveria deslizar.
Click! Ela abriu a porta...
E quando avistou aquele quarentão de cabelos grisalhos, rosto
bem delineado e um porte físico privilegiado, sua alma sorriu, não
podia ser, ela parecia estar se apaixonando. Ele era de uma beleza
característica de homens educados, o oposto do rude Felipe, talvez
fosse isso que a atraía àquela nova fagulha de paixão.
Não conseguiu novamente esconder o sorriso ao cumprimentá-lo
fitando-lhe os olhos:
– Tudo bem? – cumprimentou-a Carlos Vilas.
– Tudo bem.
Grace continuou pasma, aquele homem era a última maravilha que
ela já vira até então. Ela até acabou se esquecendo que estava ali
justamente para seduzir e não para ser seduzida. Ele realmente era
muito bonito! Ela não conseguia nem lembrar de ser modelo, seus
olhos fascinados apenas se desorientavam em cada comportamento
apaixonante dele.
Apertaram as mãos e:
– Sente-se, por favor. Fique à vontade – disse o senhor Carlos
Vilas.
Grace continuou de pé, com uma aparência pasma, nunca havia
encontrado tanta harmonia em um único homem somente.
– Ah, desculpe – continuou ele, dessa vez refazendo sua primada
educação, puxando a cadeira para ela sentar.
Nervosíssima Grace se sentou, e bem mais surpresa com a
tamanha educação daquele homem que parecia hipnotizar.
– Bem você veio aqui através de sua amiga Paola... eu a conheço
bem, é uma mulher surpreendente... bem, ela já lhe falou de mim?
De como eu trato minhas modelos iniciantes? – disse o senhor
Carlos Vilas, indo direto ao ponto.
– Sim – respondeu Grace com um sorriso maroto.
– Vejo que você tem bastante qualidade. Quem sabe não se
transforme numa ótima modelo?
– Você acha mesmo!?
– Sim. Por que não? Você é muito linda, parece ser muito bem
educada, possui perfis bem delicados. Quem sabe não se transforme
numa talentosa top model de sucesso!
– Eu não acredito! É tudo o que eu quero na vida!
– Claro. Tudo somente vai depender de você.
Aquelas foram as palavras que ela não queria ouvir, pois já estava
se perdendo por ele pelas palavras medidas e realizadoras. Mas ela
estava decidida em ir até o fim naquela história, afinal, ele era um
homem de não se desperdiçar assim.
– Como assim? – perguntou ela, se fazendo de inocente com seu
contínuo sorriso maroto, como quem já se entregava de bandeja.
– Não é nada! Não vai ocupar muito tempo seu... vai ser uma coisa
rápida.
– O que eu preciso fazer? – estava Grace sempre de sorriso
inocente juvenil.
– Nada. Apenas tire a roupa, eu tenho que conhecer suas
medidas.
Ela estava decidida em ir até o final, mas pensava sempre no
quanto esse tipo de homem poderoso é safado. Mas nada a faria
desistir, pelo menos ele era um homem muito bonito e poderia fazê-
la tirar Felipe de uma vez da cabeça.
– Mas eu tenho que ficar totalmente nua? – indagou Grace.
– Claro que não! Pode ficar de peças íntimas.
Grace sabia aonde ele queria chegar, mesmo assim não se fez de
enganada. Bem devagarinho ela foi tirando a roupa, sempre com os
olhos fixos sobre o senhor Carlos, que também não poupava olhos
insaciáveis, parecia estar mais muito compenetrado nas formas de
Grace do que na fita métrica. Aos poucos, ela foi retirando a roupa,
uma peça de cada vez, como quem fazia um sutil strip-tease. Era a
melhor forma de agir, pois tinha que conquistar o carinho do futuro
patrão. Apesar de tudo, daquilo parecer uma forma de se vender
mais fácil, ela não via daquela forma, pois nela acendia uma faísca
de paixão, um orgulho bobo de garota de devolver ao ex todo
sofrimento que ele a fez passar.
Tudo já estava pronto para o quarentão medir as formas dela. Ele
se aproximou, quase sufocado, a beleza de Grace em peças íntimas
era estonteante. Os cabelos escuros lisos escorriam até os seios
rosados, a pele branca macia era objeto de desejo do toque e cada
peça íntima revelava mais sexo do que se estivesse totalmente nua.
Tudo isso acendia a concupiscência de um homem, mesmo
acostumado a viver rodeado das mais delirantes mulheres formosas,
esse homem ficou perdidamente enamorado com a visão que
despontava na sua frente, uma mulher de desejos totalmente
libidinosos.
Esperta e preocupada em seduzir o dono da agência, Grace
decidiu em se fazer de garota sapeca, virando-se de costas para ele,
foi o que mais lhe surpreendeu, as ancas de Grace eram como um
oásis no meio da perfeição:
– Você vai começar medindo aqui? – disse Grace, virando as
ancas para ele, provocando-o com uma malícia tentadora.
– Pode ser.
Ele se aproximou dela com a fita métrica nas mãos, enlaçou os
braços em torno da cintura como quem estava prestes a agarrar o
corpanzil delicado de Grace. Ela, do seu modo, apenas sinalizava
sim, era demais para a cabeça pecadora daquele homem que se
surpreendia com a intimidade dela.
Com todos aqueles atos estimulantes, não levou muito tempo para
o senhor Carlos Vilas começar a deslizar as mãos sobre as partes
íntimas de Grace, começou apenas deslizando para no fim segurar
todos os bocados de pele tenra com um desejo voraz pelo sexo.
– Não, aqui não, pode entrar alguém! – advertiu Grace, pois tinha
que se fazer de difícil.
– Onde você prefere, então? – disse o senhor Vilas, procurando os
lábios dela.
– Não sei, sua secretária pode entrar aqui a qualquer instante.
– Espere um pouco, já sei o que fazer.
Ele se afastou dela em poucos instantes para falar ao telefone.
– Senhorita Érika, não estou para ninguém hoje, ouviu bem?
– Sem problemas, senhor.
Era o que a secretária já estava imaginando, ele estava
novamente contratando mais uma modelo daquela forma bem
acostumada. Cabia apenas à senhorita Érika se roer de ciúmes. A
vida com o patrão era sempre assim, às vezes com ela às vezes com
as outras.
Enquanto isso o fogo da paixão incendiava os corpos do senhor
Vilas e de Grace.
Na cabeça de Grace apenas dois objetivos: um lugar ao sol e um
outro lugar longe da dor de esquecer Felipe.
Enfim, o amor nascia como o dia, enquanto o sol se punha, levava
as mágoas de um carinho passado, mas depois nascia do outro lado
trazendo os ares e um novo amor, era assim que regiam as leis dos
sentimentos.
Passaram horas se amando...
O sol poente já se escondia no horizonte quando os dois, ainda se
beijando, já falavam de negócios:
– Então, você gostou? – perguntou Grace, de olhar malicioso.
– Nunca nenhuma mulher me veio em tão melhor hora – disse o
senhor Vilas, arfando enquanto vestia as calças.
– Então? Eu passei no teste?
– Claro! Tome aqui, esse é o seu contrato, amanhã mesmo haverá
um desfile no endereço aí indicado, quero você lá junto com as
outras meninas. Ok?
– Sério!? Eu já posso dizer que sou uma modelo?
– Claro! Você já nasceu modelo, garota.
– Eu não acredito! – gritou Grace de satisfação.
– Bem, agora você poderia me deixar sozinho, pois eu tenho muito
trabalho pela frente... a gente se vê amanhã no desfile, querida.
Finalmente Grace conquistou seu espaço, ela saiu toda sorridente,
sorrindo pelos ares, na saída até beijou a secretária invejosa. Não
era para tanto, mas para Grace era a realização de uma coisa que
estava se tornando impossível com o passar dos dias. Dessa vez ela
tinha certeza que acordaria todos os dias mais feliz com a vida. Pois
a vida agora era sua e de mais ninguém.
Qualquer pessoa que estivesse presenciando os dois naquele
escritório diria que Grace era a mulher mais suja desse mundo. Mas
tudo não foi tão premeditado assim, Grace esgorjou de satisfação
porque tudo foi gerado do desprezo de Felipe. Aquele último conflito
apenas incendiou em Grace um desejo de se livrar de uma vez dos
pensamentos em Felipe. Sim, foi amor, por mais que não parecesse,
Grace estava realmente envolvida com o senhor Vilas. Na cabeça
dela até surgiu uma delicada motivação de se entregar à relação.
No caminho de volta para casa Grace sentia como se estivesse
flutuando em flores, tamanha a felicidade, era como se tivesse
encontrado as sanjas que levavam a um doce paraíso eterno. Não
havia alegria comparável no mundo, ela nunca sentira algo parecido,
nem na época do vestibular seus olhos brilharam tanto.
A única coisa que vinha em sua cabeça naquele momento era
agradecer a amiga Paola, então dominada por um grito incontrolável
ela ligou para Paola através de um celular:
– Alô, amiga! Adivinhe o que aconteceu? – indagou Grace,
comovida.
– Não sei – disse Paola.
– O homem era um gato! Você me falou que ele era bonito, mas eu
não pensava que fosse tanto.
– Não falei. Mas, então, conte o que aconteceu?
– No começo ele foi muito gentil...
– Conte logo! Você conseguiu?
– Adivinha... Consegui!!!
– Eu não falei que você conseguiria!
– A partir de hoje você é amiga de uma modelo da Miller Models...
finalmente eu consegui... e claro, graças também a uma pequena
ajuda da minha amiga de coração!
– Que bom que você conseguiu, Grace... mas você foi para a
cama com ele? – perguntou Paola, curiosa.
– Isso foi apenas um detalhe.
– Como assim um detalhe?
– Foi um detalhe que fez uma enorme diferença. Que homem
maravilhoso!!!
– Eu falei que aquilo era um garanhão espanhol.
– E tem mais.
– Conte!
– Ele me convidou para amanhã mesmo participar de um desfile
da Miller Models na semana fashion.
– Não acredito! Você vai ganhar dinheiro logo de cara. Que
surpresa agradável!
– Onde a gente pode se encontrar?
– Agora não vai dar, estou esperando um cliente, mas depois eu a
procuro para você me contar todos os detalhes... Ok?
– Ah não, amiga! No momento mais feliz da minha vida eu não
posso compartilhar com a minha melhor amiga.
– Calma, Grace.
– Então eu estou esperando a sua ligação.
– Tudo bem, pode esperar que eu ligo... até logo, nova modelo da
Miller Models – despediu-se Paola.
– Até logo, amigona do coração! – despediu-se também Grace.
Realmente Grace merecia tudo aquilo que estava acontecendo,
não pelo fato de conseguir trabalhar numa agência, mas pelo simples
fato de que aquilo a fez esquecer o nome de Felipe por algumas
vezes no coração. A doença antes parecia estar em fase terminal,
mas nada do que uma grande felicidade acompanhada de sorte para
restabelecer as forças de um coração magoado.
Do outro lado da cidade estava Felipe, preocupado por não
receber nenhuma ligação de Grace, não era para menos, ela
descobriu toda farsa que a fez chorar de perdão para o seu pai.
Felipe percebeu que foi longe demais por desmascarar Grace diante
dos pais, mas sua convicção ditava que ele estava certo. Afinal de
contas, até quando Grace continuaria com aquela segunda vida?
Pois se uma pessoa não se arrepende do primeiro erro, ela segue
errando uma segunda vez, uma terceira e assim por diante.
Ele estava pela primeira vez com medo que sua relação com
Grace estivesse realmente desgastada. Será que ela iria perdoá-lo
voltando para o seu reconforto como sempre fazia? Provavelmente
não, Grace nunca gritou com ele tão fortemente como daquela vez
no telefone. Dessa vez, pensava ele, que Grace havia realmente o
chutado para sempre, ela não parecia indecisa como das outras
vezes.
No tempo que ele esteve em casa apenas teve tempo de ligar
várias vezes para o apartamento dela, não adiantava mais ligar para
o celular, ela trocou o número, justamente para não receber mais
ligações de Felipe.
Então ele tentou ligar para a melhor amiga dela, talvez Paola
soubesse mais a respeito da indiferença de Grace.
– Alô! Quem é? – perguntou Paola, atendendo ao celular.
– Felipe, namorado da Grace – respondeu ele.
– Ex, meu caro, ex-namorado! – disse Paola, em tom categórico.
– Não suporto você fantasiando que tudo está muito bem entre
vocês dois. Olha aqui, você dessa vez foi muito longe, minha amiga
chora até hoje pelo o que você fez a ela. Você não se enxerga não?
O que o fez ligar para mim? Você sabe que eu não vou com a sua
cara!
– Onde está Grace? Eu quero falar com ela – declarou Felipe,
enérgico.
– E quem disse que ela quer falar com você! Você se acha muito
importante na vida dela, não acha? Mas se enganou, hoje ela é a
mulher mais feliz desse mundo. Sabe por quê? Porque ela não quer
mais saber de você, seu peão de depósito!
– Respeite-me, sua prostituta falida!
– Mas que homem mais mal educado! Eu não vou ficar aqui
ouvindo suas tolices de dor de cotovelo. É isso o que você vai sentir
daqui para frente, somente dor de cotovelo! Quem mandou não
cuidar da moça que mais o amou na vida!
Foi o momento exato para Paola desligar o celular, ela nunca
suportava o mau tratamento que ele fazia dela, desde o começo do
romance entre Felipe e Grace, ela já não se entendia muito bem com
Felipe, pois ele, sempre no intuito de tirar Grace daquele antro de
prostituição, desrespeitava a todos que cercavam Grace.
Felipe, do outro lado da linha, ficou pensativo, com algum tipo de
remorso. Por que será que Paola disse que hoje Grace é a mulher
mais feliz do mundo? Será que arranjou outro homem? Talvez fosse
possível que todas essas interrogações pudessem passar pela
cabeça de Felipe. Mas ciúmes era pouco provável, ele a tinha da
forma que bem entendia. Ele tinha uma certeza exata de que Grace
sempre seria dele, da forma que ele bem quisesse. Para Felipe, o
sentimento era um cálculo exato em suas introspecções, se amasse
logo não era amado, mas se fosse amado logo não amaria. Ele até
que tentava fugir daquele anátema em que seus pensamentos se
pregaram, mas o cálculo em seu coração era exato, todo sentimento
somente é realmente vivido se um dos dois parceiros pudesse
sonhar um lindo sonho de amor bem distante do casal que
continuasse se suportando.
A dúvida cegava os sentimentos de Felipe, ele tinha que saber
algo sobre Grace, a conversa com Paola não poderia ficar assim
pela metade, alguma coisa andava de errado, Grace nunca ficou
tanto tempo sem procurá-lo.
Decididamente ele resolveu insistir na ligação, ligou novamente
para Paola:
– Você de novo! Eu não tenho nada para conversar com você... –
irou-se Paola.
– Você tem que me contar o que aconteceu. Por que Grace não
me procura mais? Afinal, ela encontrou outro homem? – perguntou
Felipe, impaciente.
– Você ainda pergunta o que foi que aconteceu! Tente rever os
seus conceitos. Eu penso que você acha que deve ser o amante
mais cuidadoso do mundo. Não se enxerga não! Desde quando você
entrou na vida da minha amiga o que ela faz é sofrer... Por favor,
faça um favor a você mesmo, deixe minha amiga em paz! Ela não
precisa mais de você.
– Por acaso ela voltou a fazer programas com coroas ricos?
– Que coroa que nada! Você está totalmente por fora... Grace vai
ser uma top model.
– Novamente vocês duas e esses sonhos bobocas. Eu já falei
mais de mil vezes para Grace, que esse tipo de trabalho é somente
para gente que tem dinheiro, que a melhor coisa que ela tem a fazer
é arranjar um trabalho direito, um trabalho de mulher direita –
continuou Felipe.
– Fique sabendo, seu casca dura, que ela conseguiu – disse
Paola, em tom peremptório.
– O quê!?
– É isso mesmo o que você ouviu! Ela é a mais nova contratada da
Miller Models. Agora, meu querido, você a perdeu para sempre e não
adianta chorar o leite derramado.
– E por que eu deveria acreditar em você? Vocês duas podem ter
arquitetado essa besteira para cima de mim.
– Então, meu querido, por que você não passa na semana fashion,
amanhã, e tire a prova dos nove. Somente assim você vai ver o
quanto ela brilha, somente assim você vai descobrir que perdeu a
mulher mais sincera desse mundo, somente assim você vai entender
que ela o amava realmente... somente assim.
Enquanto Paola discursava, Felipe lentamente foi retirando o
telefone do ouvido até desligá-lo no gancho. Ele não podia aceitar
que aquilo estivesse acontecendo. Grace não podia fazer aquilo com
ele, pois ela era a sua única posse na vida, a única coisa que ele
podia dizer realmente que era sua, ele não podia dividir aquilo com
ninguém. Antes fosse ciúmes, mas não era, ele estava convicto que
não podia perder Grace assim, pois a única vitória que Felipe tinha
na vida era de ter uma mulher bonita como Grace vivendo em seus
calcanhares. Parecia que dessa vez tudo estava desmoronando, ele
pressentia que agora Grace nunca mais colocaria ele como o bem
mais especial. Dessa vez Felipe seria apenas um detalhe.
“Ela não pode conseguir! Ela não pode conseguir! Ela não pode
conse-guir!”, pensou ele, numa noite túrbida sem estrelas, tentando
encontrar algum motivo que pudesse desorientar as chances de
Grace de ser aquilo que tanto sonhava.
Esperança do revés queimava em sua garganta. Era uma falta de
dedicação uma mulher crescer em cima de um homem. Ele podia
imaginar tudo, menos que Grace pudesse seguir uma carreira tão
sonhada... a vida também tinha seus pesares.
Mesmo apesar do desapontamento, Felipe não deixaria aquilo
acontecer, Grace tinha que respeitar suas vontades. O mundo estava
de cabeça para baixo, não foi para aquilo que o seu pai o educou,
para viver na sombra de uma mulher. Do jeito que estava não podia
ficar, ela tinha que respeitar sua dignidade masculina. Ele já estava
pronto para fazer algo que mudasse aquela situação.
O dia raiava novamente por ordens divinas trazendo os ares dos
frondosos vernais que renovavam a vida e os espíritos mais
esperançosos. E entre esses espíritos cheios de esperanças estava
Grace, chegando quase atrasada em um de seus momentos de vida
mais cruciais, seria justamente naquele dia que sua vida ganharia
um novo rumo, um rumo mais perto do cosmos, das estrelas e dos
astros. Finalmente era o momento esperado pela sua vida inteira,
estrear como uma modelo. Se sua vida agora fosse encoberta de
uma felicidade mais alcançável, dependeria somente dela, agora
sim, era tudo ou nada. Ela tinha que subir na passarela
acompanhada de todos os anjos protetores. Ela não acreditava, mas
seus sonhos mais íntimos estavam se realizando.
O dia continuava pálido quando Grace estava chegando quase na
hora certa:
– Então, menina!? Por que demorou tanto? É o seu dia de estreia!
Não fique nervosa, tenho certeza que você vai arrasar os corações...
e uma coisa eu digo, se você tivesse chegado mais um minuto
atrasada, com certeza você estaria fora do desfile – disse a
coordenadora do desfile.
– Desculpe, mas o trânsito estava carregado – considerou Grace,
um pouco nervosa.
– O que aconteceu com você, garota? Está gelada como um
sorvete!
– É que eu estou um pouco nervosa. É a minha primeira vez. E
começando num desfile de biquíni e maiô... você sabe, tenho medo
de chegar na hora e tudo travar – disse Grace.
– Eu sei que você deve estar nervosa, mas não há o que temer,
basta apenas você mirar um ponto no final da passarela e seguir reta
e decidida – confortou a coordenadora do desfile.
– Vou tentar...
– Vou tentar, não, vou conseguir, diga isso sempre quando houver
um desafio na sua frente... e rápido, vá se trocar, todas as meninas
já estão prontas. Só falta você!
Grace, como uma principiante dedicada, foi para o camarim.
Mesmo nervosa seu coração se alegrava ao se sentir inserida
naquele ambiente de glamour e profissionalismo. Qualquer um podia
sentir o que Grace sentia, desde que sempre tivesse uma vontade
nascente na alma. Por estranhar aqueles momentos, ela não sabia
apenas de uma coisa, se foi ela quem voou para o céu ou se foi o
céu que despencou em sua cabeça. Como saber? Claro! Indo em
frente e encarando seus medos sem nenhum receio de ser feliz.
Muitas garotas belas corriam de um lado para o outro, outras
conversavam um tititi incessante enquanto algumas se admiravam
no espelho. Tudo aquilo trazia a harmonia perfeita para Grace
abraçar aquela vida com uma voracidade apaixonante.
De tão nervosa, Grace acabou se encostando pelos cantos, não
conseguia esconder que aquele momento era decisivo. Devagarinho
ela foi se despindo na frente das outras modelos, não sabia como
agir ou se despir assim tão deliberadamente na frente de outras
mulheres. Claro que Grace tinha seu passado vivido na prostituição,
certamente seria mais uma vez que mostraria seu corpo, mas o que
a intimidava era a beleza perfeita das outras modelos, ver garotas
tão novas e tão lindas a fazia se perguntar se realmente aquilo era a
sua vocação.
Uma colega observando a forma tímida com que Grace se despia
acabou se aproximando:
– É a sua primeira vez, não é? – perguntou ela.
– Sim, eu estou um pouco nervosa. Não sei o que eu faço na hora
– disse Grace.
– Eu sei como é. Eu também tremi como uma vara verde antes do
meu primeiro desfile. Reflita numa coisa que eu sempre digo: as
pessoas somente estão lá para admirá-la, então você não precisa se
preocupar, caminhe apenas como uma mulher desejada que não
perde a atenção do olhar por nenhum momento.
– É, acho que você tem razão.
– Deixe-me ajudá-la – propôs a colega.
Nesse instante ela buscou tranquilizar Grace, ajudando-a a se
despir.
– Qual seu nome?
– Grace.
– Uau! Um nome de princesa...
– E o seu?
– Shirley.
Com toda aquela atenção dedicada da colega, Grace acabou
melhorando seu estado de espírito. Entrando num boxe ela se despiu
inteiramente para vestir o biquíni, se admirou e sentiu que estava
realmente sensual. O espelho era sempre o seu psicanalista na hora
em que se achava feia. Mas sua confiança não foi somente
desencadeada pelo espelho, quando ela saiu do boxe para se juntar
às outras garotas que estavam todas prontas, ouviu de Shirley um
notável elogio.
– Nossa! Colega! Seu corpo é divino! – surpreendeu-se Shirley.
– Você acha? Talvez esteja dizendo isso apenas para me confortar
– considerou Grace.
– Deixa de modéstia, Grace. Você é realmente muito linda!
– Só espero que todos achem a mesma coisa.
Não era modéstia, Grace realmente se achava bonita, mas o
grande problema era conquistar o carinho do público. Apesar de
sempre ter almejado aquela posição, ela sempre sonhava em
agradar o público, de ser uma modelo carismática do tipo que
convence a todos com muita graciosidade. Algumas vezes em casa,
depois de ter recebido a notícia de que seria modelo, ela já traçava
seu perfil de personalidade, todos tinham que gostar dela. Porém
havia um receio incontrolável que povoava sua consciência, o
passado degenerado da prostituição. Mas, como várias modelos
famosas também tiveram o mesmo destino, então era apenas deixar
para pensar nisso quando viesse o real momento. O tormento que
ficasse na hora na cabeça de quem se sentisse traído.
– Vamos! Todas prontas... vai começar o desfile – gritou pelos
corredores a coordenadora do desfile.
Muito apreensiva estava Grace, não sabia se tudo ocorreria muito
certo. Como era a primeira vez, ela torcia apenas para passar
desapercebida, apenas como mais uma.
Enquanto a coordenadora foi chamando, todas foram se juntando
em frente ao último corredor de acesso à passarela. Grace
continuava ainda muito nervosa, por isso a sua colega Shirley
tentava diminuir a tensão:
– Grace, desfila em primeiro que depois você vai se sentir bem
melhor. Você vai ver que tudo fica mais fácil depois que se desfila em
primeiro – disse Shirley.
– Você está louca! Deixe que desfilem algumas em primeiro –
declarou Grace. – Tenho certeza que vou encontrar coragem para
desfilar.
Mas não podia mais se esperar, a música já estava ecoando pelo
ambiente, o desfile ia começar...
A primeira a pisar na passarela foi uma garota que pouco se
solidarizava com o nervosismo de Grace. Quase todas já
desconfiavam que Grace foi colocada através do senhor Vilas,
supostamente então imaginavam o teste do sofá, certamente, algum
preconceito já rolava entre elas.
Decidida, a primeira modelo já estava voltando, o público
sorridente batia palmas. Bastante aplaudida a primeira voltou com
um ar de dever cumprido, com um ar de profissionalismo que
intimidava a vontade de Grace:
– Isso deve ser bem mais fácil do que transar por interesse –
provocou a primeira modelo.
– Silêncio e vá se trocar – disse a coordenadora.
A terceira a desfilar já estava voltando, bastante nervosa enquanto
o tempo passava, Grace apenas pedia para ficar em última:
– Acalme-se, Grace! Vai dar tudo certo – tentava confortar Shirley.
– Olhe para mim e faça do jeito que eu fizer. Tudo bem?
– Ah, Shirley, não sei se vou dar conta!
– O que está acontecendo aqui? – intrometeu-se a coordenadora.
– É que Grace está nervosa! – disse Shirley, se preparando para
entrar em cena.
– Olha aqui, minha filha, se você não entrar nessa passarela hoje
mesmo sua carreira acaba sem ter começado.
– Tudo bem.
Grace ficou observando a colega, esperando sua vez e sem deixar
que o medo tomasse conta. Demorou algum tempo até ela controlar
a timidez. Mas como seu sonho era aquele então era vencer ou
vencer. Estava determinada, aquele frio no coração tinha que passar,
porque daquele momento em diante seu objetivo era estar nas
revistas de moda.
Shirley já estava voltando enquanto Grace empinava o corpo para
se apresentar, tentando se impor quando chegasse a vez.
Mas o que Grace pouco contava era que seu ex-namorado Felipe
estava presente entre os espectadores. Não daria para notá-lo em
meio a centenas de pessoas, mas sim, estava lá, furioso de ciúmes.
Talvez fossem ciúmes, porém se tratando da indiferença de Felipe
com relação a ela, provavelmente seria inveja, inveja sim, inveja de
ver Grace realizando seus sonhos e lhe fazendo sombra sobre seus
preconceitos machistas. Pode até parecer que Felipe não era um
homem de seu tempo, mas sua educação foi toda baseada entre
colegas de rua no interior, e ainda, seu pai, primava pelo conceito do
homem de sempre estar na frente da mulher, o homem era o
provedor, o líder, o justo, ou seja, Felipe conviveu a vida toda
cercado dos valores simplistas dos homens conservadores.
Não demorou muito e Grace partiu fabulosamente na passarela,
não estava acostumada, mas mesmo assim se exibiu com
desenvoltura, mostrando caras e bocas, parecia ser uma modelo
experiente, talvez por tanto conferir de perto aquele mundo da moda.
Quando chegou na ponta da passarela, todos começaram a aplaudir,
menos uma pessoa, Felipe, que fitava os olhos de Grace. No
momento em que avistou Felipe ela se fez de enganada, como se
não o conhecesse e virou o rosto com um semblante soberbo de
desprezo. Afinal de contas, o que Felipe poderia fazer dessa vez
para prejudicá-la? Dessa vez o orgulho feminino de Grace parecia
subjugar o orgulho masculino de Felipe. Ela sentia que dessa vez era
ele que estava aprendendo com ela.
Mas não por muito tempo, no fitar de olhares, Felipe sentiu aquele
mesmo olhar que tranquilizava seu coração, ela olhava com aquele
mesmo olhar grácil e donairoso, o mesmo olhar de apaixonada.
Felipe decidiu então: essa é a minha mulher e nada pode me afastar
dela!
Então com um ímpeto súbito Felipe subiu na passarela e a agarrou
pelo braço enquanto ela estava na metade do caminho:
– Mulher minha não vai ficar se mostrando assim – gritou Felipe,
entre todos os presentes do desfile.
Pronto, o pior para Grace novamente aconteceu, os flashes das
câmeras dos jornalistas dispararam incessantemente. Grace ficou
morrendo de vergonha, fazendo um sorriso sem graça e tentando se
desvencilhar de Felipe que a segurava fortemente:
– Vamos lá, para dentro, para você vestir algumas roupas
decentes! – berrou ele, novamente.
– Pare! Você está me machucando! – ralhou Grace, tentando
escapar das mãos fortes dele.
– Eu não vou deixar você trabalhar nessa sem-vergonhice.
Em pouco tempo a plateia que ouvia tudo claramente começou a
vaiá-lo. Enquanto isso os jornalistas de televisão, jornal e revista
bombardeavam todos os flagrantes. Na fisionomia de Grace notava-
se o constrangimento, porém para Felipe, que não tinha nada o que
perder, continuava com o ar jactante.
– Eu não vou deixar mulher minha se mostrar para todo mundo
dessa maneira – continuava Felipe, enquanto era vaiado pelo público
presente.
– Solte-me! Eu não sou sua mulher.
Os flashes brilharam sem parar sobre os dois enquanto ele a
levava para o fundo da passarela, segurada fortemente pelo braço,
Grace não podia fazer nada, apenas relutar.
Até os dois chegarem no corredor de fundo da passarela.
– O que você está querendo fazer comigo? Me envergonhar mais
ainda! Não bastou apenas rodar a bolsinha na avenida, agora quer
rodar na televisão... – gritou Felipe, confidencialmente para ela.
– E você!? Quer destruir minha vida? Você sabe muito bem o
quanto isso é importante para mim – discutiu Grace.
Enquanto os dois trocavam aborrecimentos dois seguranças
vieram juntamente com a coordenadora:
– Aqui, é esse o indivíduo, prendam ele!!! – gritou ela, apontando
para Felipe.
– Eu vou descer a mão se tocarem em mim – vociferou Felipe para
os seguranças.
– Então solte ela! – devolveu um dos seguranças.
– Tudo bem, mas não relem a mão em mim.
Felipe também era forte por isso intimidava os seguranças.
– Levem ele daqui – insistiu a coordenadora do evento.
Foi o momento para Felipe soltar o braço de Grace e voltar
andando como se nada tivesse acontecido, enquanto voltava
tranquilo sobre a passarela, a plateia atônita somente vaiava e
gritava:
– Quer aparecer? Pendura uma melancia no pescoço! – gritou
alguém.
– Por que vocês não pegam no cabo da enxada para virarem
homem? – raivou-se Felipe com a plateia.
– Uh! – vaiavam os espectadores.
– Seu retrô!
Depois do ocorrido, Felipe foi embora do desfile que ficou perplexo
com as calamidades vindas de sua boca. Ainda mais por ser um
ambiente de moda onde as pessoas são muito liberais e não
admitem qualquer atitude conservadora.
Mais uma vez Felipe destroçava os sonhos íntimos de Grace,
porém para ele pouco importava.
Pensamento de Felipe:

O que essa mulher quer fazer? Ela deve achar que eu sou algum
tipo de chão. Não, não sou. Qualquer mulher tem que respeitar o seu
parceiro, saber que ele é o ponto forte da relação. Como vou aceitar
minha mulher nua na televisão para todos verem? Vão achar
certamente que eu sou algum tipo de idiota.
Dessa vez acabou para valer, e não vai adiantar mais voltar,
pensando que tudo não passou de engano.

Realmente os sonhos parecem efêmeros justo para quem deposita


mais fé.
– Garota, o que você está querendo fazer, arruinar o desfile da
nossa agência? – raivou-se a coordenadora com Grace.
– Desculpe.
– Como eu posso aceitar desculpas? Você traz suas briguinhas
com o namorado justamente na semana verão de moda!
– Ele não era meu namorado – chorava Grace.
– Que seja! A passarela não é lugar para discussõezinhas
amorosas.
– Desculpe.
– Desculpe não. Você está fora do desfile! Pegue suas coisas e se
arrume para dar o fora.
– Por favor, me dê somente mais uma chance.
– Não, eu já lhe ajudei demais. Você praticamente arruinou o
desfile com seu amantezinho.
Não dava mais para suportar, Grace desabafou com um contido
choro, era como se tudo descesse à porta do Hades:
– É nisso que dá em confiar em iniciantes! – disse a coordenadora.
– E vocês? O que estão fazendo aqui? O desfile ainda não terminou.
– Não fique assim, Grace, você é muito bonita, tenho certeza que
vai ter facilidade de encontrar outra agência – disse Shirley, tentando
confortar a colega.
– Eu não sei. Essa parecia ser a minha última chance – declarou
Grace, enquanto soluçava as palavras.
Depois de todo caso abafado, o desfile voltou a acontecer com
todo o brilhantismo que devia ter enquanto estava Grace sozinha
numa pequena sala trocando o biquíni pela roupa. Ela se vestia
lentamente, temendo que a saudade daquele seu efêmero momento
de glória pudesse atormentar. Afinal, pela primeira vez na vida ela
chegou bem perto, tudo parecia deslizar no céu até aparecer o amor
da vida para transformar o amor no ódio.
Grace recolhia suas coisas com uma tristeza amarga no coração.
Pensamento de Grace:
Por que as coisas têm que ser assim? Meu maior amor me
derrubou do meu sonho mais íntimo. Felipe, por que você é assim?
Sempre me despreza quando estamos juntos, mas quando sente
que vai me perder faz de tudo para me controlar como se eu fosse a
sua cachorrinha de estimação. Prefere se fazer de palhaço do que
aceitar meu carinho terno. Você não presta mesmo, Felipe! Tenho
certeza que dessa vez tudo acabou. Como pôde encenar tão
descaradamente o tipo homem enciumado? Para você eu nunca fui
ninguém! Deus, mais um motivo para eu tirar esse homem da minha
cabeça!
Eu sei que ainda vão passar muitas luas até eu encontrar um
homem como Felipe que me tem da maneira que bem entender. Eu
não sei o que me faz pensar nele. Tenho certeza que em todos seus
instantes de vida ele somente pensa em mim quando estamos
fazendo amor. Tenho certeza de que se eu entrasse em sua cabeça
por um passe de mágica, eu não encontraria minha imagem, nem
meu nome e muito menos meus sonhos.
Eu não saberia o que dizer à Paola, que tudo acabou por causa da
possessão do Felipe... Felipe, não quero vê-lo nunca mais!

Grace já estava pronta para ir embora quando o desfile acabou.


Suas colegas começaram a adentrar o camarim tagarelando sobre
todos os assuntos, assuntos que colocavam Grace numa penumbra,
num esquecimento, como se ela não fizesse mais parte daquele
mundo.
A tristeza absorvia os sentimentos de Grace. Ela olhava ao redor
com uma dor estranha no peito, seria a primeira e a última vez que
sentiria a vida ressoar no espaço das estrelas. Todo mundo tinha
seus cinco minutos de fama, e os cinco minutos dela se acabaram,
somente restava naquele momento voltar para o anonimato. A
chama da vida para ela se acabou.
Porém, num dado instante, enquanto suas colegas conversavam,
levantando um bruaá que contrastava com sua tristeza, um repórter
de televisão entrou na sala sufocado entre os seguranças,
desesperado, como quem ansiava por um furo de reportagem. Ele
transitava pelo ambiente esbarrando em todas as garotas, mas
querendo encontrar somente uma. Isso mesmo, ele procurava
Grace!
Ela já estava saindo do ambiente quando o repórter acompanhado
do câmera gritou:
– Hei, você! Não é a modelo do namorado ciumento?
Grace se surpreendeu quando o repórter se referia a ela, pois
naquele momento ela era a própria imagem da tristeza. Não havia
motivos para ela ser lembrada em meio a tantas modelos famosas.
– Hei, você! – insistiu o repórter.
– Comigo? – disse Grace, surpresa.
– Sim, você! Eu gostaria de fazer uma entrevista rápida, não vai
ocupar tempo nenhum.
Pronto, logo de súbito as outras modelos que a cercavam
perceberam que Grace roubara a festa. As mais famosas ficaram
com a inveja queimando na garganta, aos poucos foram notando que
toda imprensa somente procurava uma modelo, e essa modelo era
Grace. Sim, Grace! Outros repórteres no pelotão de traz também
queriam paparicá-la. Estava feito, Grace era o destaque da semana
de moda.
O primeiro repórter chegou bem perto de Grace.
– Eu gostaria de entrevistar você. Tudo bem? – pediu ele.
– Claro! Sem problemas.
– Antes de começar a entrevista eu queria saber seu nome.
– Grace.
– Somente Grace? Você não tem um sobrenome de destaque
como qualquer modelo?
– Ah, sim! Pode me chamar de Grace Lenza.
– Então tudo bem... vou mandar ligar a câmera... Ok?
– Sim, estou pronta.
As outras garotas não acreditavam no que estava acontecendo,
ela era paparicada pela imprensa como uma modelo internacional.
Até a coordenadora do evento entendeu o acontecido, estava certo
que o escândalo estava garantindo status na imprensa, o tititi era
alvo de reportagens e fama. Sem perder a pose a coordenadora se
aproximou do repórter e de Grace:
– Meu rapaz, ela acabou de desfilar e está muito desgastada
emocionalmente depois do ocorrido. Espere algumas horas até ela
se recuperar e depois, claro, ela concederá uma coletiva com todos
vocês – disse a coordenadora.
– Mas... – esboçou Grace, como quem estava adorando ser
entrevistada pela primeira vez.
A coordenadora a puxou pelo braço para entrar num boxe onde as
modelos se trocavam. Dessa vez ela mudou totalmente o tratamento
e também passou a mimar Grace.
– O que é isso, minha filha!? – indagou a coordenadora. – Você
está se tornando uma estrela, não pode falar assim de bate-pronto!
Todos lá fora querem saber de você, por isso eu vou marcar uma
coletiva, somente assim você vai ganhar o destaque que merece.
Estou fazendo isso para o seu bem. Ah, e esqueça aquilo que eu te
disse antes, eu estava de cabeça quente, você está de volta ao
time... Ok?
– Muito obrigada, dona Selma! – agradeceu Grace.
– Não há por onde, querida. Você nasceu para brilhar.
Quando todos os repórteres aguardavam afora, impacientes,
esperando entrevistar Grace, dona Selma chegou entre eles fazendo
um pedido especial:
– Eu sinto muito, garotos, mas a Grace ainda está muito chocada
com o ocorrido e está tentando se recuperar, por isso eu peço a
vocês que aguardem uns trinta minutinhos. Tudo bem?
Estava feito, ninguém imaginaria que os ciúmes exagerados de
Felipe pudessem repercutir tão bem para o primeiro desfile de Grace.
Ela estava atônita como quem esperava a alma voar distante das
dores do passado, era um sinal de que a vida dessa vez estava
mudando para melhor. Ela somente não conseguia acreditar que foi
a indolência de Felipe querendo seu mal que a colocou naquela
situação de destaque.
A vida tinha que mudar e estava mudando. Toda vez que ela ouvia
os repórteres irrequietos ela se alegrava e agradecia a Deus. Era a
melhor coisa que aconteceu em sua vida, somente não esperava que
fosse tão rápido.
“Meu Deus, como eu o amo, estou sendo assediada por vários
repórteres no meu primeiro desfile! Bem feito, Lipe, isso é para você
ver que perdeu a mulher da sua vida, seu idiota! Nossa, será que
muita gente vai saber? A Paola tem que saber disso, meus pais,
aqueles playboys da faculdade, todos têm que saber. Guardarei no
meu coração somente os que me ajudaram como a Paola, a Bia,
meu pai e minha mãe. Quanto ao resto, deixarei apenas que morram
de inveja”, pensou Grace.
Ela não podia imaginar que a felicidade estava aguardando-a, que
uma natureza diferente existia em vez da tristeza. Nada em sua vida
até então fora combinado, foram as circunstâncias que se
organizaram para ela sentir que realmente os sonhos existiam. Na
verdade, foi sua busca que condicionou a vida para se encontrar
numa maré de sorte.
O tempo foi passando até chegar na hora de sua entrevista. Ela
estava muito nervosa, por isso pedia algumas dicas de como devia
agir com os repórteres:
– Dona Selma, é a minha primeira vez, não sei o que fazer – disse
Grace, ansiosa.
– Não se preocupe, querida, eu estarei do seu lado. Qualquer
coisa eu ajudo. Os repórteres sabendo da sua inexperiência vão
explorar ao máximo o assunto. Eu estarei como um escudo lhe
defendendo de possíveis constrangimentos. Mas não vai precisar,
você vai ver, tudo vai ocorrer muito bem. Então, vamos, você agora
vai brilhar mais do que em seus sonhos.
As duas já estavam prontas, sentadas, rodeadas de repórteres de
todos os lados:
– Qual o seu nome? – perguntou um repórter.
– Grace Lenza.
– Aquele rapaz é o seu namorado? – perguntou outro.
– Não. Ele é apenas um ex.
– E por que ele ficou tão impaciente com seu desfile? – indagou
um terceiro.
– Ele ainda não consegue suportar a ideia de me perder.
– E por que ele a perdeu? – questionou um quarto.
– Porque ele é muito ciumento e não aceitava a ideia de eu ser
modelo.
– E você ainda continua firme nessa profissão que escolheu?
– É tudo que eu sempre sonhei na vida.
– Você tem certeza de que tudo não foi armado para promover a
sua pessoa?
– Claro que não! – nesse instante Grace ficou bastante nervosa.
– Deixe-me falar – tomou a palavra a dona Selma. – Eu posso
garantir a vocês que nada foi programado, inclusive ela correu o
risco de perder o contrato com a agência.
– O que você fazia antes de ser modelo?
– Eu era estudante – respondeu Grace, depois de hesitar um
pouco.
– Onde você conheceu esse rapaz?
Grace demorou mais um pouco para responder:
– Ele era um amigo de minhas amigas.
– E você tem certeza de que tudo está terminado entre vocês
dois?
– Claro! Nós já terminamos há muito tempo.
– Bem, amigos, ela já está muito cansada e precisa se recuperar
do ocorrido – intrometeu-se dona Selma.
– Só uma última pergunta, por favor – disse um repórter.
– O que você acha de homens assim que querem controlar a vida
da mulher?
– Tenho certeza que a mulher acaba desgostando de um homem
assim. Penso eu que as mulheres procuram homens atenciosos que
respeitem seus sonhos.
– Acabou, pessoal! – intrometeu-se novamente dona Selma.
As duas se levantaram para partir enquanto todos os presentes da
coletiva gritavam:
– Você é linda! Esquece esse estúpido!
O sorriso novamente estampava-se no rosto de Grace. Todas as
pessoas que acompanharam o desfile se sensibilizaram a favor dela.
Grace agora era uma mulher famosa que facilmente acabou
conquistando o carinho do público. Todos estavam do seu lado. O
amor de duas pessoas sempre foi concorrido entre as pessoas que
acompanham do lado de fora. Sempre foi como se um da relação
fosse o errado. Mesmo assim Grace merecia receber o carinho, pois
Felipe nunca dedicou uma real atenção no namoro. Somente Grace
amava com fervor. E quem disse que Grace ainda não mantinha
Felipe no coração? O amor não era uma coisa tão fácil assim de
esquecer.
Para Grace seus sonhos começavam ali, mas eles não poderiam
ser destacados sem a presença de Felipe, Felipe era o seu alvo
principal, ela fazia tudo aquilo para ver se realmente o conquistava
de vez. Lutar pelo sonho do amor era a maior virtude daquela moça-
mulher que sabia que o que importava sempre era viver apaixonada.
Mulher assim ainda existia, mas os pudores que Felipe colocava na
frente o impediam de conhecer o lado mais donairoso dela.
Simplesmente o sentimento ainda perdurava no coração de Grace,
ou agora como Grace Lenza, sucesso da semana verão de moda.
Toda imprensa do evento se deslocava para focar Grace Lenza,
era o destino marcando a presença dela no olimpo de uma grande
estrela. Grace e dona Selma encontraram uma chance de sair do
local pelos fundos. Um motorista já esperava para levar Grace ao lar.
Ela passou entre uma fila de repórteres que a assediava, aquele
brilho estrelar suspendia a noese de Grace nas nuvens, era o seu
primeiro dia de fama, tudo por causa do machismo exagerado do ex-
namorado. Ele era um ex que tinha toda a chance do mundo de se
transformar no verdadeiro homem da vida dela, o que poderia fazê-lo
ser uma sombra, por isso, para ele, não funcionaria mais senti-la,
não se sentiria bem se uma mulher mudasse seus aspectos de vida,
se ele fosse um cachorrinho que pudesse apenas ter o desejo da
vida quando ela bem entendesse e que ele deveria fazer o que ela
bem entendesse, verdadeiramente, era a vida que Grace sonhava,
mas o lado que Felipe desprezava.
Grace partiu assediada por vários da imprensa dentro de um
luxuoso automóvel com motorista e tudo. As câmeras não paravam
de disparar para estampar Grace nos jornais e nas revistas do dia
seguinte. A fama não tinha preço, o passado agora era somente
passado, sua vida agora tinha valor para as outras pessoas, para ela
o sonho estava despertando no coração, a sorte seria agora a
vontade de não perder nunca mais aquela vibração de vida.
O motorista desprezando a imprensa disparou o veículo nas ruas,
Grace saiu como uma verdadeira celebridade, ela não podia crer,
mas sim, tudo era verdade, os sonhos realmente existiam. Naquele
momento, Grace somente conseguia pensar na amiga Paola,
ansiosa, queria contar tudo para a amiga, que tudo se realizou antes
dela mesmo esperar. Ela queria comemorar com alguém e a única
pessoa que vinha na cabeça era Paola, a grande amiga de todas as
horas.
Bastou apenas um pedido dela para o motorista mudar a direção e
rumar para o apartamento de Paola. Ela ansiava muito para contar
sua felicidade para a amiga que tanto ajudou para aquele fim.
Antes Grace estava prestes a voltar para a prostituição nas ruas,
agora apenas vivia seu sonho mais íntimo brotar da canalhice de
Felipe. O amor era realmente recheado de surpresas, a vida era
colhida de esperanças e o sonho era amar a vida, e Grace estava
amando como nunca amou. Estava até se esquecendo que Felipe
queria o revés de tudo aquilo que estava acontecendo. O amor
estava pronto para tudo, até para vingar, através de quem ela mais
amava, a chance da percepção dourada que somente uma vida de
sonhos ansiava.
Na cidade parecia brilhar agora uma nova estrela. Grace saiu do
automóvel luxuoso, esperando encontrar a melhor amiga ainda a
tempo de ver se realmente na TV ela seria aquele real sucesso que
foi na semana verão de moda. Entrou pelo prédio com um sorriso de
ansiedade. Sem perder tempo tocou a campainha tentando acordar
Paola naquela noite serena.
Paola, parecendo cansada, foi atender a chamada.
– Quem deve ser a essa hora da noite? – disse ela, olhando
através do olho mágico. – Grace, é você!?
– Abre logo! Você precisa saber das novidades – gritava Grace de
alegria. Depois de abrir a porta Paola recebeu um abraço forte dela.
– Pelo que vejo você arrebentou no desfile – disse Paola.
– Foi muito mais do que você possa imaginar. Eu brilhei como
nunca...
o Lipe tomou o maior troco de sua vida... até agora eu não consigo
imaginar o que aconteceu... obrigada, amiga!
– Calma, Grace. Conte tudo, uma coisa de cada vez.
– Você não pode acreditar! O Lipe foi ao desfile, somente para me
machucar, mostrar que não aceitava mulher dele se expondo de
qualquer maneira. E ele, realmente, tinha conseguido acabar comigo,
até a coordenadora do desfile me passou um sabão por causa dele.
Mas o melhor ainda está por vir, a imprensa viu a baixaria com outros
olhos e começou a me assediar como a modelo do namorado
ciumento. Paola, eu nem te conto! Tinha repórter de todo lado
querendo me entrevistar. Você acredita que a entrevista somente foi
possível através de uma coletiva?
– Que maravilha, amiga!
– Tudo que o Felipe tentou deu errado.
– Eu sempre disse que o Felipe era um idiota.
Como uma conversa de amigas não para nunca, Grace e Paola
foram brindar aquela ocasião de sucesso. Sorrisos, alegrias,
felicidade, todos os sentimentos de vitória abraçaram os desejos das
duas amigas.
Em frente à televisão ligada as duas comemoravam entre drinks
casuais, cigarros e uma lua que acompanhava as estrelas. Tudo
estava muito maravilhoso, mas ainda poderia ficar melhor. Foi
quando o jornal da noite anunciou a reportagem da semana verão de
moda.
– Veja, Grace, eles vão falar da semana verão! – surpreendeu-se
Paola.
As duas ficaram bastante atenciosas com a reportagem.
– Uma surpresa na semana verão de moda, um namorado
ciumento subiu na passarela para retirar a namorada modelo do
desfile – anunciou o repórter na TV.
– Olha lá! É você, amiga! – disse Paola, surpresa. – Como você
fica bem na TV! Minha amiga, você hoje já é uma modelo famosa
tudo por causa da idiotice do Felipe.
A reportagem foi breve, mas foi o instante certo para despertar as
pessoas mais íntimas de Grace, todos já estavam ligando para ela.
Grace não podia imaginar que sua carreira estava decolando para as
estrelas, bem além das nuvens.
Quem não perdeu tempo para ligar para Grace foi o travesti Bia
Baby:
– Grace, você é uma modelo famosa, amiga! Já está aparecendo
até no jornal da noite. Bem que eu falei para esquecer o estúpido do
Felipe.
– Obrigada, Bia.
E muitos outros agradecimentos surgiram na noite que Grace foi
destaque na televisão. Tudo parecia rumar ao encontro de ser mais
uma celebridade no mundo da moda. Outras agências ligaram
querendo contratá-la, muitos estilistas também, sem contar com os
inúmeros fãs que nasciam naquele momento. Grace era vista como
uma mulher moderna que buscava sua emancipação, uma mulher
livre para decidir suas próprias vontades, nascia uma estrela, nascia
Grace Lenza.
Mas havia alguém que estava descontente com tudo aquilo, nada
mais nada menos do que Felipe, o carrasco que acabou acelerando
a carreira da namorada. Seu comportamento com relação aos
sonhos de Grace era sempre dominante, decidindo sempre o que era
melhor para o casal. Quanto ao amor, ele não entendia muito bem se
aquele sentimento por ela era carinho ou uma vontade exagerada de
posse, mas que ele sentia algo isso ele sentia, mesmo sendo
absorvido por uma tórrida paixão platônica pela moça da janela. O
amor para ele sempre foi algo impossível de se conceituar, pois o
coração era arquirrival da razão.
Como aquele sentimento de posse ainda estava latente, ele estava
estirado na cama assistindo aos noticiários da noite, foi quando se
viu pela primeira vez na televisão e revelando ao mundo sua
estupidez sobre a namorada. Mesmo consciente de que apelou por
uma condição mais drástica, pois se sentia ameaçado de perdê-la de
vez, a mesma que tanto o fazia acreditar que a paixão poderia ser
semelhante ao amor, não demorou para ele soltar seus demônios
assistindo o caldeirão de imagens de Grace sendo assediada por
tantos repórteres. Pronto, tudo o que ele não queria estava
acontecendo, Grace era o destaque da semana verão de moda.
– Palhaçada! – esboçou sua irritação, sozinho, ao ver o noticiário.
– Estão me pichando como um idiota ciumento enquanto ela é a
linda princesa sofrida. Esses imbecis de televisão não sabem nada
da vida dos outros e mesmo assim fazem um grande carnaval com
seu nome.
Estava certo em seus pensamentos que agora, dificilmente, Grace
teria uma fraca vontade de procurá-lo novamente, parecia que a
fama dela estava distanciando os dois, pois o motivo da fama era
justamente a discórdia de ambos. E se tratando de Felipe, o orgulho
estaria içado no ponto mais alto dos sentimentos, não daria o braço a
torcer nunca, pois se ela decidiu assim, assim seria, nem se o mundo
acabasse de uma vez.
Realmente, Felipe não poderia contar que a fama de Grace estava
se alastrando durante a semana. Ela já estava em capas de revistas,
jornais, internet e até em programas de entrevista eletrônica. Tudo
aquilo estava longe de ser imaginado por ele. Ela frequentava
também a roda da alta sociedade, sempre acompanhada do dono da
agência, Carlos Vilas.
Estava virando rotina para Felipe chegar à noite, ligar a TV e
assistir Grace acompanhada com um carisma encantador em todas
as colunas sociais eletrônicas:
– Dessa vez você se vendeu para valer, Grace! – dizia ele à frente
da TV. – Você me trocou por um punhado de engomadinhos. Como
fui tonto! Você sempre quis ser isso, uma mulher de almofada, uma
mulher superficial.
Surpreendentemente, nesses dias que se passaram, a saudade
batia em Felipe, que até pensava em procurá-la, mas aquele mundo
glamoroso afastava sua vontade. Era verdade, Grace não era a
mesma mulher! Grace já era tão inalcançável quanto a vizinha da
janela. Talvez estaria nascendo em Felipe outro grande amor
matizado de paixão? A condição para isso estava sempre no que era
inalcançável. O amor somente debulhava seu coração quando o
direito de posse não era sentido. O não ter era o principal motivo do
amor.
Num certo dia, quando Felipe voltava da hora de almoço, passou
por uma banca de jornal, ao olhar de soslaio percebeu nitidamente
que quem estava na capa de uma das revistas mais conceituadas de
moda era Grace. Seus olhos e nem o coração poderiam aguentar,
ela estava linda, de uma forma que ele nunca vira antes. Ela tinha
um olhar apaixonante, um olhar que embevecia os sentidos mais
primitivos. Não podia ser! Estaria agora, depois de tudo, Felipe
finalmente apaixonado por Grace? Era o que o coração parecia ditar.
Ele ficou pelo menos uns dez minutos de frente à banca de revistas.
Às vezes se penalizava de ter perdido aquela mulher
extraordinariamente linda por conceitos díspares de vida. Não podia
ser! Algo sussurrava em seu coração para procurá-la, pois se ela
tanto o amou, não seria agora que o deixaria para trás.
Ele tinha que ao menos ligar para ela. Mas e se ela realmente
tivesse mudado de vida? Não seria agora, que tudo estava num mar
de rosas, que a faria aceitar a cara de canalhices de Felipe. Mesmo
assim o ímpeto de reaver o amor dela fez com que ele ligasse, dessa
vez sentia que poderia mudar, talvez se moldar àquelas tantas
condições que Grace lhe pedia sempre. Tempos atrás ele daria as
costas, o mundo acabaria e, mesmo assim ele não voltaria atrás na
decisão. Ele até que tentou continuar soberbo com seus orgulhos,
mas havia algo diferente em Grace, ela parecia estar distante,
parecia uma mulher de poucos, talvez fosse o mesmo sentimento
que atraía ele à vizinha da janela que agora estivesse atraindo ele à
Grace. Era como se ela fosse um cometa que passou em sua vida e
agora brilhava distante como uma estrela.
Tudo estava pronto. Dessa vez nada o impediria de procurá-la.
Através de um telefone público ele ligou para o mesmo número
antigo do celular dela... incrivelmente ela atendeu.
– Alô! – disse Grace, atendendo a chamada.
Felipe ficou sem dizer nada.
Ela continuou:
– Alô!
Quando Grace já ia desligando ele murmurou uma frase:
– Alô, querida, sou eu!
– Não acredito! Somente agora você me procura? Pela primeira
vez você me procura. O que deve ter despertado essa nobre ação no
homem mais ordinário da Terra? Eu sei... não precisa falar... aposto
que são ciúmes, os mesmos ciúmes tolos de sempre... ou talvez uma
dor de cotovelo maior ainda, talvez não esteja suportando o meu
sucesso. Com certeza deve ser isso, a sua mulherzinha encantada
de casa e fogão, antes que isso acontecesse, agora é a modelo mais
desejada do país. Não fique assim, meu querido, ela ainda o ama,
bem, assim que a fila terminar ela guarda um espaço para você. Não
foi assim que ela sempre fez? Por que será que ela não o procura
dessa vez? Trabalho, querido, muito trabalho! Com certeza deve
haver um espaço na minha agenda para você. Afinal, não é toda
hora que uma garota apaixonada recebe uma chamada do seu
namorado. Ou será que ele se esqueceu? Você é apenas meu ex!
Ouviu bem? Meu ex! Com certeza que esse seu nobre ato de me
ligar deve tê-lo desgastado muito. Em tempo em tempo isso deve
acontecer. Por favor, me avise qual será o próximo ano dessa grata
surpresa... simplesmente, para que eu fique certa de não atender...
para nunca mais. Ouviu bem? Para nunca mais – desabafou Grace,
antes de desligar na cara dele categoricamente.
Felipe, do outro lado da linha, somente baixou a cabeça:
– Infelizmente eu a perdi para sempre...
Enquanto Grace, do outro lado da cidade, num dos lugares mais
caros, conversava com seu principal affaire, Carlos Vilas:
– Grace, você ainda tem algum sonho a ser realizado? –
perguntou ele.
– Acho que não. Tudo está tão lindo e maravilhoso. Talvez se
melhorar estraga.
– Pense bem, deve haver algo ainda em seus anseios, ninguém
fica exatamente satisfeito, sempre existe algo que a gente busca
alcançar.
– Realmente não sei. Eu me rendo. O que vai acontecer dessa
vez?
– Você nem imagina?
– Claro que não! Fazer a capa de mais uma revista?
– Eu acabei de conversar com um dono de uma grife milanesa, e
ele a quer. Minha querida, Milão a quer! Você não percebeu!? O seu
sucesso é aguardado em Milão!
– Sério!?
– Por que eu mentiria para você?
– É porque tudo está acontecendo tão rápido que eu não estou
tendo tempo nem de pensar.
– Não se preocupe com nada. Deixe tudo comigo que amanhã
mesmo estaremos partindo para Milão, eu e você. Você vai conhecer
a cidade mais charmosa do mundo! Prepare-se para não querer
voltar.
– Carlos, eu nem sei como agradecer. Você sempre foi um anjo
para mim. Depois que eu o conheci minha vida mudou
completamente.
– E quando chegarmos em Milão você vai receber uma grata
surpresa.
– O quê?
– Acalme-se, ainda é surpresa.
Tudo parecia ser um conto de fadas, ser esperada ansiosamente
em Milão, antes poderia ser um sonho inimaginável, mas agora era
uma realidade açucarada de rosas. Grace estava vivendo justamente
o oposto do que vivera até então. Para ela era tudo extraordinário.
Ser uma modelo cobiçada por grifes italianas era um ápice da
carreira de modelo. Acabou dormindo nesse dia com todos os
sonhos do mundo à flor da pele. Dormiu como um anjo que esperava
alçar o seu mais ambicioso voo. Nessa noite de ansiedade, Grace,
incrivelmente, não pensou em Felipe, pois ele ao mesmo tempo
fazendo parte de seus sonhos de amor e paz, também tinha a rara
facilidade de poder estragar tudo. Mesmo ela estando num auge de
glórias, sentia que voltaria para Felipe. Mas por que o coração de
Felipe era tão orgulhoso? Ligou somente uma vez depois de meses.
Ele tinha que mudar uma parte da sua personalidade para os dois se
aceitarem. Porém, agora, tanto ele como ela não se falavam mais.
No momento em que a alvorada ganhou seus espaços radiando
uma felicidade branda no coração, Grace acordou:
“Espere-me, Milão!”, pensou ela.
O dia estava muito bonito para ela voltar a pensar em Felipe.
Talvez se largasse tudo para voltar para ele, era o que a consciência
mandava decidir: Felipe ou Milão? Como o ex-namorado era um
caso perdido não faltou vontade para escolher Milão, a felicidade
brilhava mais intensamente do que um namoro cheio de rancores.
O senhor Carlos Vilas estava na sala de embarque esperando
Grace aparecer. Os ares do dia estavam radiantes como a beleza
renovada de Grace ao chegar. Ao avistar o senhor Carlos Vilas de
longe ainda teve que dar alguns autógrafos, era uma vida de
princesa, sempre havia algumas pessoas que a reconheciam. Depois
de um beijo demorado em Vilas, pois, pareciam que estavam
namorando, a ansiedade voltou a doer no peito. Ela se preocupava
com coisa do tipo: será que Milão vai gostar de mim? Certamente
Grace encantaria os milaneses, mas uma saudade que castigava do
ex era o motivo de alguma mágoa. Afinal de contas, muitos diriam:
por que chutar alguém que a amava antes do sucesso? Grace
poderia responder isso facilmente, porém, Felipe, não diria o mesmo.
Vilas e Grace partiram abraçadinhos dentro do avião, com direito a
foto na coluna social, essa era a parte do jornal que Felipe não
queria ver nem pintada de ouro, temia que alguma paixão de súbito
trouxesse lembranças dela. Os jornais insistiram a semana inteira
com a viagem de Grace. Será que Grace conquistaria a Europa? Era
o que as páginas de cultura estampavam.
Ninguém saberia ao certo, mas o sorriso cativante de Grace já
estava ensaiado, qualquer pormenor resultaria num grande sucesso.
O avião partiu para cruzar o oceano, apenas uma saudade
permeava nos pensamentos dela, uma parte da saudade que temia o
sucesso, talvez fosse o fator que a impediria de rever Felipe para
sempre. Mas como toda mulher de fibra, era somente pensar em
levantar a cabeça, beijar a face do novo namorado, que todo e
qualquer tipo de lembrança passada era esquecida, no amor tudo se
transforma, se hoje não ama, amanhã certamente amará, era o que
ela contava para esquecer Felipe de vez e sentir um sentimento mais
forte por Vilas.
Chegando em Milão pela primeira vez seus olhos exageradamente
estavam embevecidos pela elegância da cidade.
– Toda Europa é assim!? – perguntou ela, fascinada.
– Não. A Europa é mais do que isso. A Europa é um sonho secreto
de Deus – respondeu Vilas.
Os dois viajaram pela cidade dentro de um táxi, Vilas a mostrava
todos os pontos mais badalados.
– Nós ainda teremos muito tempo para curtir todas essas
peculiaridades – disse Vilas.
– Você jura!?
– Lógico, você merece. E ao final de tudo, quero lhe pedir uma
última coisa na vida, uma coisa que espero que lhe agrade.
– Ah, Carlos, não existe nada que você peça que eu não faça. Eu
gosto de você.
– Também gosto muito de você.
Os dois selaram com um beijo quando o táxi estacionou em frente
a um luxuosíssimo hotel.
– Minha nossa! Mas esse hotel parece um paraíso! – surpreendeu-
se Grace.
– Você, querida, ainda vai se acostumar às coisas boas da vida.
– Será? Tudo nunca deixa de ser tão maravilhoso.
– Tenho certeza que vai se acostumar. Tudo vai depender do
último contrato que você vai realizar comigo depois do seu primeiro
desfile em Milão. Nós jantaremos na Galeria Vittorio Emmanuelle, a
partir daí com certeza sua vida vai mudar.
– Ah, Carlos, eu adoro as suas surpresas!
– Agora você precisa descansar. Durma que eu ainda vou rever
alguns contatos do desfile – despediu-se Vilas.
Grace pressentia que algo poderia ainda elevar sua carreira, talvez
o desfile em Milão, ou depois em Nova York ou em Paris. Na verdade
nada disso parecia ser importante, pois a alma estava sendo
lacerada de saudade, uma saudade crescente, justamente, como ela
gostava de dizer: o cretino do Felipe.
Ela estava sozinha na suíte do hotel com a consciência pesando
entre o amor que vinha do coração e os sonhos que vinham da alma.
O que era o mais certo decidir: pois, de que valeria viver uma
felicidade longe da pessoa amada? Certamente assim a felicidade
poderia beirar a tristeza.
Pensamento de Grace:

Eu não sei por quê, mas meu coração ainda pulsa por Felipe. Por
que ele tem que ser sempre tão estúpido? Que idiota, mas eu o amo
tanto!
Sinto que estamos nos separando para sempre... não consigo
viver sem senti-lo. Eu o amo tanto, mas tanto, tanto. Parece até que
não vale a pena ter sucesso sem o peito dele para me guardar.
Somente Deus sabe o quanto eu me esforço para amar o Vilas, mas
não adianta, quando me vem os braços fortes do Lipe na lembrança,
me dá vontade de morrer, eu não consigo viver tanto tempo longe
dele. É nesse momento que eu vejo que o amor é mais forte que a
vontade da gente.
Mas não vou me rebaixar dessa vez, dessa vez ele vai ter que
aprender com a vida. Adeus, meu querido amor, infelizmente, adeus.

Quando a tarde abraçou a cidade de Milão, Grace dormiu,


sonhando com os anjos, sonhando em reviver seu amor mais íntimo.
Por que tanta saudade era sentida por Grace? Talvez fosse um
sentimento que atravessava a alma, lacerando todas as vontades
contrárias, talvez fosse amor. Ao contrário de Felipe, ela tinha
certeza disso, sabia que era amor, mas não havia como conviver
com as incertezas dele que nitidamente desdenhava das vontades
dela. Para ele, amar era apenas mais uma tarefa da mulher, o que
seria bastante simples para Grace.
Para muitas pessoas o amor é algo simples, para outras o amor é
algo complicado, mas para Grace o amor era uma cadência de meio
termo, pois era fácil enamorar com alguém. Os homens por onde ela
passava faziam filas de olhares ao mesmo tempo em que o seu amor
verdadeiro vagava distante dos seios.
Mas finalmente ela estava pronta para decidir sua vida, estava
justamente na noite D da sua carreira internacional. O desfile em
Milão tinha todos os motivos do mundo para Grace ganhar mais
dinheiro e status, cada vez que se agarrava ao sucesso mais
distante o coração a afastava do grande amor da vida.
E o desfile acontecia, com todo glamour e festividade de grandes
estrelas e celebridades do mundo da moda. E Grace estava
presente, iluminada e iluminando como uma verdadeira top sob os
olhares atentos da imprensa europeia. Com toda sua personalidade
graciosa, ela desfilou, encantando a plateia e tirando suspiros dos
homens mais irrequietos, inclusive do estilista que não poupou
elogios à sua beleza exuberante. Os flashes não pararam de ser
disparados, no foco a lívida e sedutora Grace Lenza. Ela passou
como um raio venusto que paralisou todos os presentes, novamente
Grace roubou as atenções para ela. Não demorou muito para experts
em moda gritar que Grace Lenza era a nova revelação, uma nova
estrela de brilho próprio. A cada vez que ela pisava na passarela
conquistava novos fãs, era impossível não se contagiar com a
sensualidade da estonteante modelo que começava a abraçar o
mundo.
No final do desfile, Grace ainda teve que desvencilhar da
avalanche de repórteres que a cercavam para entrevistas, fotos,
autógrafos, abraços e beijos. Todos a seguiam acalorados, querendo
saber mais da nova princesa da moda que despontou através dos
ciúmes do namorado. A história deixava Grace mais encantadora
ainda, a novidade era fascinante. Todos realmente estavam
eletrizados querendo focar Grace em suas lentes. Mas ela conseguiu
fugir através de uma limusine prateada que a esperava. Entrou
rapidamente mesmo sendo badalada por uma multidão de gente.
Grace agora era Grace Lenza, sucesso internacional.
Quando ela entrou na limusine se surpreendeu ao encontrar o
senhor Vilas:
– Grace, você foi um sucesso! – disse ele. – A Europa está sob
seus pés.
– Claro, e eu agradeço tudo isso a você, meu querido Vilas –
declarou Grace, ao selar um beijo nos lábios dele.
– Agora, como prometi a você, lhe apresentarei a noite de Milão, a
noite mais charmosa da Itália.
– Mas eu já vi tudo... tem mais!?
– Claro! Você ainda não conheceu a noite na Galeria Vittorio
Emmanuelle, uma sofisticada rua com pisos de mármore, vitrais, as
melhores lojas, restaurantes e cafés.
– Não precisava, Carlos, você é realmente o homem mais gentil
que conheci.
Apesar de ser bem mais velho do que Grace, Vilas sabia agradar
como ninguém uma mulher. Todo cuidado que ele tinha era uma das
razões de Grace tentar adornar um carinho especial por ele, tentar
amá-lo, se esforçar para sentir por ele o mesmo que sentia por
Felipe.
Mas o senhor Vilas não dava ponto sem nó, todo aquele gracejo
tinha um fim, interesses amorosos ou interesses do próprio status.
Ele já tinha levado ela ao Duomo, uma construção de quinhentos
anos, a maior e mais bela catedral gótica do mundo, assistiram um
concerto no teatro Scala e viram uma obra prima da renascença na
capela do convento de Santa Maria delle Grazie, a Última Ceia de
Leonardo da Vinci. Todo esse encantamento fascinava sempre os
olhos de Grace. As artimanhas do senhor Vilas para a conquista,
deixava Felipe como um menino, um garoto que nunca saberia
conquistar uma mulher como realmente devia. Mas mesmo assim
Grace não sentia aquela mesma paixão forte que sentia por Felipe,
mesmo se esforçando. O que passava em sua cabeça era uma
norma que ela aprendeu depois das rusgas com o ex, a de que o
amor somente existe quando você aceita ser amada por quem lhe
ama mais e não quando você ama mais. Os carinhos do cinquentão,
os cuidados, todo aquele esmero, eram motivos para ela se entregar
de corpo e alma.
Quando Grace viu pela primeira vez o charme da Galeria Vittorio
se viu atraída pelas vantagens do sucesso. Tanta gente bonita
aparentando uma riqueza peculiar a fez buscar mais ainda as
atenções de Vilas, frequentemente ela encostava sua cabeça sobre
o peito dele, o mesmo carinho que fazia para agradar Felipe.
Entraram num restaurante elegantíssimo, frequentado pela nata da
sociedade milanesa, nem nos seus sonhos mais delirantes Grace
pensava em estar ali.
Entraram de braços enlaçados como pombinhos juvenis
apaixonados. Gentilmente, Vilas puxou a cadeira para ela sentar, não
se importando nem um pouco com os olhares sobre os arredores
dela, pois já estava acostumado a sair com mulheres cobiçadas, seu
esporte preferido estava garantido.
Depois de Vilas esbanjar seu italiano impecável com o garçom no
pedido do cardápio, uma língua que certamente impressionava
Grace, eles começaram a conversar. Enquanto ele devagarinho
chegava ao ponto onde queria chegar, Grace ficava admirada com
as gentilezas e cavalheirismo, algo que ela nunca vira em um
homem, a maneira como ele a tratava, a atenção dedicada às
vontades dela, tudo aquilo eram motivos de sobra para ela se
entregar de coração.
Aos poucos ele foi chegando onde queria na conversa:
– Querida Grace, você sabe por que estamos aqui? – iniciou ele.
– Claro! Para jantarmos.
– Não. Estamos aqui para festejarmos a consolidação do nosso
grande amor, um amor que já viajou quase um ano junto, espero que
viaje ainda mais, e espero também que aceite essa lembrança,
símbolo da nossa união – disse Vilas, ao entregar uma pequena
caixinha revestida de veludo azul.
– Ah, não precisava, Carlos, você sabe que eu gosto de você –
sorriu ela.
Quando Grace abriu a caixinha ficou surpresa:
– Mas são alianças!
– Grace Lenza, estou pedindo a sua mão em casamento... Grace,
você quer casar comigo?
Ela ficou nervosa, nunca pensava que aquele romance poderia
chegar tão longe. Seu escudo parecia cair no chão, agora não tinha
mais jeito, ela tinha que decidir entre abandonar Felipe de vez ou
ainda guardar esperanças dele. Seu coração parecia acuado, não
tinha para onde fugir, nas lembranças somente a presença do peito
apaixonante do ex-namorado. Por que as vontades das palavras
nunca eram aceitas pelas vontades do coração? Grace sabia que
aquele sim a distanciaria de vez do mundo do seu verdadeiro grande
amor, e se dissesse não afugentaria aquele cavalheirismo donairoso
de Vilas com quem despertava carinhos e sonhos de felicidade. Mas
afinal, qual era a verdadeira felicidade de Grace? Somente uma, a
única felicidade que transbordava na alma, o ex, o idiota, o estúpido,
o grosseiro, aquele que nunca mudaria um micro do seu
comportamento para tê-la, o amor, Felipe.
Ela olhou para todos os lados, queria fugir, naquele momento não
saberia dizer nada, o não queimava na língua como um desejo louco
de encontrar o primeiro vento que a levasse para junto de Felipe.
Demorou um breve momento até encontrar a saída, dizer o
clássico dos clássicos:
– Eu gosto de você... mas é uma decisão muito difícil... afinal, é a
minha primeira vez enquanto você já foi casado cinco vezes... me dê
um tempo para pensar – disse ela.
– Claro! Não se preocupe quanto a isso, você terá todo tempo do
mundo para decidir. Mas quero que saiba, que um homem como eu
sempre tem a absoluta certeza do que quer. Depois dos erros
passados a gente acaba aprendendo a conhecer a verdadeira alma
gêmea. É o que você é para mim, minha alma gêmea.
Tudo tinha que dar tempo ao tempo, realmente ela tinha que
aceitar o pedido de uma forma que seu coração não se
arrependesse. O amor não podia ser enfeitado como o sucesso.
Pela vida toda Grace pensava em se casar, mas nunca daquela
forma, amando desesperadamente outra pessoa. O coração tinha
muitas armadilhas até a felicidade, não seria na base de um sim ou
não que tudo se resolveria.
Os momentos na Galeria Vittorio se passaram, Grace estava no
quarto do hotel, totalmente indecisa, olhando para o teto, procurando
pesar todos os prós para encontrar a verdadeira satisfação da alma.
Sim ou não para Carlos Vilas?
Pensamento de Grace:

Que vontade louca de fugir dessa vida de comportamento. Meu


grande amor sempre foi o Felipe, não vou conseguir viver com outro
homem. Por todos esses anos em minha cabeça somente vinha
Felipe como pai dos meus filhos. Mas por um lado ele é tão difícil,
não sabe reconsiderar as coisas, parece até que sou um brinquedo
divertido que se usa apenas quando se está preso em sentimentos.
Nunca sonhei um homem assim para mim.
Observando Carlos Vilas de perto como eu o sinto, a gente
percebe o quanto ele é diferente de Felipe. Sempre está por perto
para agradar, para galantear, para acariciar, às vezes em demasia,
até parecendo com melado. Tenho medo que esse melado todo me
enjoe. Além do mais, ele já teve cinco esposas, eu vou ser apenas a
sexta, não dá para acreditar num homem que tem as mulheres mais
lindas do planeta sob seus pés. Parece até que eu sou um artigo
diferente.
Porém é educado como um lord!

As sensações contrariavam o coração, ela estava certa do que


fazer, mas a saudade apertava os sentimentos, ela tinha que decidir
perguntando a quem o coração apontava. Ela tinha que saber, antes
de mais nada, se Felipe ainda a amava, talvez assim a sorte lhe
agarraria nessa indecisão.
Terminantemente ela puxou o telefone do quarto e discou para
Felipe... o coração começou a disparar repentinamente.
Felipe atendeu ao telefonema:
– Alô! Alô! Alô! Quem é? Alô! Alô! Alô! Alguém aí está me achando
com cara de idiota?
Grace permaneceu calada. Ela não saberia o que dizer, o orgulho
falava mais alto, não queria se rebaixar novamente para a jactância
rude do ex, ainda mais agora que era uma pessoa distante.
Felipe começou a perder a paciência:
– Seja quem for, vá para o raio que o parta!
Foi o momento exato para ela desligar o telefone.
– Que seja assim então, vou continuar distante, sem ao menos
pairar sobre seus sonhos – disse, sozinha, lamentando a estupidez
de Felipe ao telefone. – Ele continua o mesmo. Será que na pequena
cabecinha dele não passou a ideia de que era eu? Sim, um homem
sensível percebe esse tipo de coisa de longe. Mas eu esqueci,
estava falando com um homem estúpido, o mesmo de sempre, o
mesmo que, se um dia voltasse para ele, com certeza na menor
desavença me chamaria dos nomes que se acostumou a dizer com
os amigos. Não dá! Mesmo amando ele, não dá!
Grace dormiu naquela noite certa da decisão, estava louca para
dar a resposta ao Carlos. Talvez fosse uma decisão precipitada, pois
o coração rejeitava qualquer grande amor que não fosse Felipe.
Foi dentro de um avião ao lado de Carlos, ambos viajando para a
Inglaterra, que Grace deu a tão aguardada resposta:
– Sim, Carlos, eu me caso com você – disse ela.
– Sério!? Pode ter certeza de que seremos muito felizes.
– Somente de estar ao seu lado eu me sinto feliz. Tenho certeza
de que você é o homem certo, o homem da minha vida.
– Você vai ver, vou lhe fazer uma mulher mais feliz ainda.
– Eu tenho certeza disso – se tranquilizou Grace ao beijá-lo.
Capítulo 9
Apesar da saudade amargurar ainda seu coração Felipe era um
homem forte que cumpria com as obrigações. Mesmo sentindo algo
que nunca sentira antes por Grace, aquela vontade inadiável de
estar ao lado dela, Felipe foi para o trabalho logo de manhãzinha. O
trabalho era o seu talismã contra qualquer paixão aventureira,
somente no trabalho poderia se dispersar dos momentos amorosos,
pois a alma também tinha que ser alimentada de vida e de
responsabilidade.
Enfrentou a rotina de sempre, acordando cedo quando a cor do dia
ainda estava pálida, viajando num ônibus urbano superlotado
enquanto as novidades do coração injetava tristeza por toda alma.
Em seus sentimentos íntimos era justamente a vizinha da janela que
cessava seu amor por Grace, pois pensava ele que seria idiotice
correr atrás de Grace sendo que a vizinha de paqueras era uma
lívida ninfeta graciosa que transbordava em seus desejos. Ele tinha
certeza, ele ouvia o coração, e o coração dizia que era amor puro e
concentrado a tal moça da janela. Ele não podia se enganar quanto
aos sentimentos... o coração disparava quando pensava nela.
Mas o tranco da vida cotidiana era muito mais pesado. Quando ele
chegou à porta do serviço controlando no dedo seu último cigarro,
jurava sempre aos amigos que seria o último, ficou por um instante
confuso ao perceber que todos estavam de cabeças baixas com ares
de tristeza e melancolia. Ele notou que algo havia de errado, pois
ninguém chegou brincando, nem contando piadas e muito menos
falando sobre a partida de futebol do domingo. Pareciam que
estavam de luto.
Quando se aproximou dos companheiros tentou puxar a mesma
conversa de sempre:
– Vocês assistiram à pelada de ontem? – perguntou ele.
Todos continuaram calados tentando encontrar uma oportunidade
para contar sobre o ocorrido.
– Qual é, pessoal? O que aconteceu com vocês? Alguém morreu!?
É isso! Alguém morreu. Quem morreu?
– Pior do que isso, velho Felipe – disse o colega Jorjão.
Quando eles se preparavam para dizer a péssima notícia apareceu
da pequena sala do depósito o chefe Agnaldo:
– Ah, você chegou, Felipe. Eu tenho algo de muito importante para
falar com você – declarou ele, ao entrar novamente na pequena sala.
– Só é importante porque não é com ele – resmungou Penha.
– Vá lá, amigão. Eu não saberia mesmo como dizer isso – disse
Jorjão.
– O que aconteceu com vocês, hoje? Algum parente meu morreu.
– Você verá que é pior do que isso – afirmou Roque, abraçando
Felipe.
– Pelas caras de vocês posso até imaginar o que seja.
Felipe, já prevendo o que seria, entrou na pequena sala onde
aguardava o chefe Agnaldo com seu ar soberbo:
– Feche a porta e sente-se aqui – anunciou o chefe.
Felipe tentava reagir mansamente, apesar de querer socar a cara
do chefe, se comportou da melhor maneira possível.
– Bem, Felipe, eu não tenho boas notícias para você – continuou o
chefe Agnaldo.
– Pode falar de uma vez.
– Bem o depósito está enxugando seu quadro de funcionários. A
crise vem atingindo todos os setores da economia, e como você bem
sabe, o setor secundário é sempre o mais atingido. O país está
sofrendo uma grave recessão, não quero que você veja por um lado
maldoso.
– Eu já falei para dizer logo de uma vez! – disse Felipe, em tom
peremptório.
– Bem os diretores se reuniram para fazer um enxugamento na
máquina operacional do depósito, e o seu nome consta na lista.
– Você quer me dizer que eu estou demitido, não é?
– Infelizmente – declarou o chefe num tom de ironia.
– Eu não posso crer numa coisa dessas, afinal eu trabalho nesse
depósito há quase dez anos. Isso é uma injustiça! Como vocês
podem fazer uma coisa dessas comigo.
– Desculpe, Felipe, foi a diretoria quem decidiu.
– Não importa! Quer dizer que todo esse tempo trabalhado não
valeu de nada. E agora!? O que vou fazer da vida?
– Não se preocupe, seu seguro desemprego será respeitado.
– Qual é!? Eu não estou falando de seguro desemprego, estou
falando de quase uma vida dedicada a esse depósito – continuou
Felipe, raivoso.
– É a crise! Você tem que entender.
– Mas não entendo.
– A firma deu prioridade de demissão aos empregados solteiros.
– Mas eu tenho que ganhar a vida do mesmo modo que os outros,
minha senhora mãe depende do meu salário para comprar seus
remédios, não sou nenhum verme parasita.
– Garanto que vamos encontrar um jeito para sanar esse
problema.
– Vocês nunca se preocuparam com isso, não vai ser agora que
vão se preocupar – definiu Felipe, saindo da sala e fechando a porta
com um desespero gritante.
Os colegas de serviço o viram se aproximando:
– Não fique assim, amigo, tenho certeza que vai encontrar coisa
melhor do que esse depósito velho, você ainda é bastante jovem –
disse Jorjão, tentando confortar.
– Não é isso! Quando eles precisam da gente, nós nos viramos
pelo avesso para servir da melhor maneira, fazemos horas extras,
colocamos nossos interesses de lado, esquecemos de mulher e
família, mas quando estamos do outro lado eles nos tratam como
porcos, da mesma forma que peças usadas que não se precisa mais.
Trabalhei quase dez anos aqui. Foi aqui que eu vi minha juventude
passar até chegar a maturidade. Não posso aceitar tudo isso calado
– lamentou-se Felipe.
– Amigo, eu não sei o que dizer – revelou Penha.
– Eu gostaria que ao menos eles soubessem dos meus problemas.
Me despedem alegando meu estado civil, mas nem passa pelas
cabeças deles que tenho uma mãe para ajudar. Tenho dificuldades
como qualquer um. Quem vê assim pensa que eu sou um jovem
aventureiro egoísta. Sabe, eu não sei o que vou fazer... – nesse
instante Felipe quase soluçou um contido choro, mas a força que o
fez homem até aquele dado momento o fez suportar a tristeza.
– Eu sei que é difícil, homem, mas pense positivo, você é forte,
encontrará outro trabalho logo, logo! – incentivou Jorjão.
– E o pior de tudo é perder a camaradagem de vocês.
– Não se preocupe quanto a isso, seremos sempre irmãos para o
que der e vier – alegrou-se Penha.
– Claro! Para mim você será sempre o De Menor – afirmou Jorjão.
Os três se abraçaram com uma vontade ímpar de mostrar o
coleguismo que cada um tinha com o outro. Eles sentiam que
estavam perdendo um pedaço da alegria de trabalhar, pois trabalhar
ao lado de amigos era como brincar, era como voltar na infância, o
tempo passava como um passo de bailarina, nenhum revés era mais
forte do que a amizade de quase dez anos.
Depois do abraço e da dor de uma amizade sincera Felipe
resolveu voltar para casa, não havia mais nada o que fazer, ele
estava realmente despedido. Toda sua vida passava pela cabeça, os
amigos, os pais e até os amores, tudo parecia estar no final da linha.
Caminhou de passos pesados até o fim da porta de saída dos
funcionários, talvez fosse a última vez que ele colocaria os pés
naquele lugar.
Enquanto caminhava, os amigos se reuniram para se despedir.
– Não se deixe abalar, Felipe! – disse um.
– Você vai conseguir coisa melhor – incentivou outro.
– Não se preocupe, Felipe, ainda hoje nós vamos fazer uma farra
para levantar o seu astral. Você vai gostar, vai ser como há dez anos
– gritou Jorjão, antes que Felipe partisse de vez.
Tudo anulava certamente sua condição de homem honesto
trabalhador. Pois a única coisa que fazia Felipe se sentir bem era o
seu orgulho de trabalhar, a vida poderia estar num caos profundo,
mas desde que ele estivesse trabalhando não havia motivo nenhum
para se desesperar. Naquele momento então havia sim um motivo
para se desesperar, em alguns instantes pensava que fosse praga
de Grace, pois ela além de deixá-lo, ainda deixou pesadas sortes em
suas costas. Qual a dúvida do coração agora? Apenas bastou que o
tilintar do revés lhe jogasse na rua para ele tentar descobrir algo de
bom em Grace, bastou, porém ainda havia uma quimera que
crepitava no coração, a estonteante vizinha, a lívida paixão platônica
que arrastava seus desejos primitivos.
Enquanto Felipe caminhava para o ponto de ônibus a derrota
cegava todas as paixões anteriores. Não havia mais como se sentir
homem se seus pesados braços estavam prostrados na inutilidade.
Como ele poderia pensar em amor se estava perdendo no
sentimento da vida?
Talvez fosse alguma desgraça apenas, mas o turbilhão de
pensamentos queria acusar alguém pelo motivo da derrota, somente
havia um alguém, e esse alguém era uma página mal virada do
passado. O coração acusava Grace, somente alguém com tanto
sortilégio poderia roubar o pouco que ainda mantinha Felipe de pé.
Então poderia ser azar? Provavelmente, ou talvez uma mudança de
direção da sorte.
Parecia que o amor também era capaz de mudar destinos. Como
alguém então poderia explicar a tamanha sorte de Grace que hoje
frequentava as altas rodas do cenário de moda mundial? Como
alguém poderia explicar que agora Felipe era tão somente mais um
desempregado no meio da multidão? Esse tipo de coisa não tem
como explicar, mas se tentasse, provavelmente era o sentimento
vingando contra os malquereres de Felipe que tanto se esforçou para
que a namorada seguisse apenas as vontades dele.
E agora Felipe tinha que aprender a como recomeçar a vida da
mesma forma que Grace, que por causa dele tantas vezes tentou.
Não era fácil! O pior era saber que ela agora era passado, um
passado fantasiado de futuro, pois Felipe constantemente vivia
cercado dos fantasmas dela. Como poderia haver passado, se quase
todas as vezes que ligava a TV ou passava em frente a uma banca
de revistas se deparava com a imagem dela? Sim, mesmo não
querendo ele concluiu que ele era o verdadeiro passado. Não havia
chances de sentir outra coisa, ele verdadeiramente era o retrato do
passado, uma sombra de uma mulher que se foi para nunca mais.
Agora restava apenas conviver com acasos que trouxessem
felicidade para a alma, algo como uma felicidade inteira, recheada de
paixões rubras, ainda se sentia o perfume que exalava pelas janelas,
um amor carregado de sonhos masculinos, os sonhos de um homem
que nunca sonharia por amor, somente pela chama da atração, tão
somente, assim eram os seus interesses passionais.
Com os pensamentos vagando distantes ele entrou no ônibus que
o levava para casa. Era tempo de recomeçar tudo de novo, novo
emprego, novas oportunidades, novos desejos, novo amor, e claro,
uma nova mulher. Ele jurava consigo mesmo que a partir daquele dia
a vizinha tentadora seria sua nova mulher, descartando
estupidamente qualquer possibilidade de voltar como cachorrinho
que abanasse o rabo para Grace. Podia o mundo desabar, mas seu
orgulho permanecia intacto, nada poderia ir mais além do que ele
estabelecia como modo de vida.
Não havia motivo para pensar em Grace, porém a saudade era
causadora de muitos males da paixão, ele sentia permanentemente
algo de diferente, seu coração estava sentindo uma desilusão
contrária ao orgulho. Talvez fosse um sentimento de perda ou de
ruína, pois tinha perdido a namorada e logo depois o emprego, era
muito descalabro para uma vida somente. Será que talvez depois de
tanto tempo, foi logo naquele momento que Felipe foi se apaixonar
por Grace, logo depois de perdê-la? Talvez sim, o sentimento de
perda sempre enraíza feridas que raramente cicatrizam. Mas seu
orgulho masculino nunca aceitaria essa hipótese, provavelmente
Felipe continuaria a desejar uma dura sorte para ela, afinal ela
escolheu a carreira libertina da vida, a concupiscência e a fortuna
valiam mais que um namoro sem futuro.
Felipe continuava de pensamentos túrbidos tentando analisar sua
vida até aquele dado momento enquanto o ônibus viajava vazio. Ele
nunca viajou naquele horário comercial, sempre viajava em horário
de rush, suspirava agora tentadoras prévias do destino.
Pensamento de Felipe:

A culpa foi de Grace! Eu tenho certeza que sim! Mulher tem


dessas coisas, quando não se está com quem ama de verdade
acaba eletrizando aquelas energias negativas que somente elas
conhecem. Tenho certeza que foi praga rogada!
Ela escolheu ser a mais linda, eu escolhi ser eu, talvez eu esteja
errado, o mundo é totalmente diferente do que a gente pensa. Além
disso, Grace é passado! Não quero mais ficar lembrando uma mulher
que me trocou pela vida mundana, claro que sim, ela ainda vive sua
vida mundana. Nesse momento de aperto, prefiro pensar em coisas
boas, como a linda vizinha, ela sim é linda, somente ela consegue
viajar em meus sonhos, em meus sonhos de menino malcriado que
sempre desejou uma mulher somente sua. Nem isso você consegue
ser, Grace!
A partir de hoje, eu somente tenho uma mulher na cabeça. Não há
mais Grace para atrapalhar. Eu amo como nunca meus delírios
sentimentais pela vizinha. Ela sim será minha mulher geradora. Eu a
amo como nunca amei outra pessoa.
Quem sabe eu a encontre ainda hoje para enlaçarmos nossos
olhares sonhadores?

A viagem de ônibus acabou, Felipe finalmente chegou no bairro.


Desceu do veículo, com o passo pesado, refletindo exatamente suas
incertezas sobre o futuro, cada passo era movimentado sob uma
força sobrevivente, parecia até que Felipe era o único homem
derrotado na vida. Ainda era de manhãzinha, talvez umas nove
horas, o dia ainda estava sendo iluminado pela luz branca natural,
com aquele brilho característico das manhãs revigorantes. Ele subia
a rua de seu lar, cabisbaixo, pensando no que o futuro traria em
diante. As pessoas que ele conhecia de vista no bairro passavam por
ele, talvez gostariam de se aproximar, puxar uma conversa, mas sua
cara estava de poucos amigos. Assim ele foi subindo a rua, contava
com poucas esperanças, pois não era de se estranhar, um homem
que viveu a vida inteira trabalhando não saberia se guiar sem sua
bússola de vida, às vezes pensava que um homem sem trabalho não
era um homem.
Então continuou, olhando de vez em quando para o céu como
quem esperava uma resposta divina. Enquanto a resposta não vinha,
o sentimento de derrota crescia por todos os músculos, alguma coisa
ele tinha que fazer para se achar mais imprestável do que era. Não
dava para conviver como se nada tivesse acontecido, primeiro
perdeu a namorada, até aí tudo bem, um amor vai, mas outro vem,
mas quando perdeu o emprego, aí sim, ele se sentiu um verme
microscópico, aí sim o mundo desabava em sua cabeça.
E ele tinha que encontrar algo que o derrotasse ainda mais, senão,
não estaria satisfeito com seu ego, e havia um caminho, o caminho
mais rápido da felicidade plena: o álcool. Lembrou do milagroso
remédio quando avistou do lado esquerdo um barzinho copo sujo,
daqueles que só existem mesmo para se encher a cara de cachaça.
Primeiramente ele entrou no boteco com uma desculpa de
comprar cigarros, mas quando avistou a destilada sobre o balcão,
não resistiu.
– Por favor, eu quero uma dose dessa daí.
O atendente rapazote do bar prontamente serviu-lhe a bebida mais
barata do mercado.
– Pode colocar mais! Hoje eu quero morrer! Minha vida não vale
nada para ninguém mesmo... essa eu vou beber para comemorar a
minha falta de sorte. Diga-me uma coisa: de que vale um homem
sem mulher e sem trabalho? Eu já falei para colocar mais, tenho
dinheiro para pagar, eu ainda tenho meu seguro desemprego.
Enquanto Felipe virava a bebida numa talagada só, o rapazote do
balcão, cansado de acompanhar as histórias de bêbados, tentava se
afastar.
Felipe virou seguidamente quase nove doses de cachaça de uma
vez. O motivo estava enraizado em suas dores. Ele não era de beber
bebida destilada por alegria, bebia somente para se afundar nas
circunstâncias da vida.
Continuou encostado no balcão, quase bêbado, pois era resistente
aos goles, falando sozinho para incomodar os presentes.
– Eu perdi meu emprego, sabem por quê? Por causa de praga
rogada de mulher. Só pode ser! Mulher tem um instinto de destruição
que ninguém conhece. O homem enriquece por causa de mulher, o
homem mata por causa de mulher, o homem fica louco por causa de
mulher, esse é o único anjo da destruição que conheço. E quando
elas não conseguem tudo o que querem, liberam seus
pressentimentos para se vingar o jogando na lama do fracasso. Eu
sei por que eu fui demitido, foi por causa de mulher, Grace queria
tudo da sua maneira e parece que conseguiu. Mas eu não volto para
ela não, nem pelos milhões que ela anda ganhando, eu sou homem,
por isso eu ainda tenho dignidade, não me vendo por fortuna
nenhuma – discursava Felipe, no bar.
– Hei, meu amigo! – advertiu um cliente do bar. – Ninguém quer
saber dos seus problemas com a sua mulher.
– Cale a boca, imbecil! – reagiu Felipe. – Você sabe de que mulher
estou falando por acaso?
O cliente levantou nervoso querendo agredir Felipe:
– Eu não sei quem é e tenho raiva de quem sabe! Vá beber água
de privada para se acalmar, bebum.
– Respeite-me, seu playboy de uma figa!
– Eu vou acabar lhe espancando.
– Então vem, playboyzinho, que mesmo bêbado e com as pernas
amarradas eu faço couro da sua raça.
Os ânimos ficaram acalorados dentro do recinto, o rapaz do balcão
segurou Felipe fortemente conduzindo-o para fora do bar:
– Espere aí, garoto! – gritava Felipe. – Sabem quem é minha ex-
namorada? Minha ex é a modelo Grace Lenza – berrou Felipe,
balbuciando as palavras.
– Ah ah ah! Leve esse maluco logo daqui, estou cansado de ouvir
besteiras. Humpf! Você acha que Grace Lenza já foi namorada desse
bebum idiota? Adeus, tomara que acorde morto amanhã!
Com muito custo o jovem do balcão levou Felipe arrastado para a
rua. Foi pensando melhor que ele decidiu esquecer aquela
discussão, não valia a pena brigar por causa do nome de Grace.
Felipe estava agora despedido e bêbado tentando encontrar o
caminho de casa. Cambaleando foi subindo a rua com muita
dificuldade de se manter em pé, apesar de ser forte para beber, o
cansaço de subir a rua despertava a embriaguez que já era
acariciada pela sua vontade de derrota. Aos poucos ele tentava se
orientar de uma forma mais sóbria. Felipe conhecia a imaginação
para esquecer o álcool do sangue. Nesse vaivém ele continuava, ora
embriagado, caindo pelas tabelas, ora se reagindo, determinado para
chegar em casa.
Quando chegou de frente ao prédio que morava, tentou apenas
passar desapercebido diante dos outros moradores. Com muita
dificuldade ele foi subindo as escadas, dessa vez arfava fora do
normal, os passos cambaleantes pisavam em cada degrau num
zigue-zague hipnótico, quando o corpo parecia ir para frente era a
vez de ir para trás e vice-versa. Demorou muito até ele chegar ao
seu andar, ainda houve tempo para um vizinho garoto notar seu
estado deplorável. A chave temia em entrar na fechadura. Depois de
tanto tempo para abrir a porta, ele entrou, com o pensamento
decidido e embriagado ele procurava alguém na janela, fatalmente
era mais um momento de um coração embriagado.
Tentou avistar pela janela a vizinha:
– Aparece para mim agora, minha gracinha! Você é a única pessoa
que amo de verdade nessa vida. Grace se foi contando dólar. Eu
nunca a amei mesmo, é melhor assim, eu não continuaria bem ao
lado dela sabendo que você existe, você é a ilusão mais delirante
dos meus sonhos, você é perfeita como a lua, mas distante como as
estrelas. Eu sei que você me ama também, não seria por acaso que
os nossos olhos se ligaram instantaneamente, por isso que os
poetas chamam isso de amor. Você é a única coisa que me restou.
Felipe ficou um tempo tentando avistar a moça, mas ela não
apareceu para brilhar nos seus desejos. Com o tempo ele foi se
cansando por causa da embriaguez e acabou dormindo sobre o sofá
da sala.
A paixão estava mais viva do que nunca, seu sentimento por
aquela moça que não conhecia, crescia a cada dia de desprezo de
Grace. Às vezes as idas e vindas que ele tinha com Grace o fazia se
sentir melhor, se sentir mais perto de um sentimento inesgotável.
Felipe ficou muito mal acostumado com a dedicação de Grace, por
isso esperava ela voltar novamente, só que dessa vez ela não
voltaria: estava casada, até que a morte os separe, com Carlos Vilas.
A desculpa para ele se derrotar no álcool era a perda do emprego,
mas a verdade foi o petardo do anúncio do casamento de Grace
através da imprensa que o injetou na melancolia dos dias. Sem
Grace era como desejar a moça da janela sem ter alguém para
enciumar. Assim não valia muito viver aquele grande amor nascente
em seu coração. Porém, mesmo assim, ele continuava apaixonado
pela vizinha, ela era diferente, era donairosa, era delicada e parecia
apaixonada, sentimentos tão díspares. Para ele, ela sobrepunha
Grace por nunca ter aquela raiz de prostituta no passado. Viver um
amor assim era bem melhor, um amor que deixava o coração livre,
um amor que atraía os corações na alma. Estupidez talvez pensar
assim, mas o que um homem criado na aridez dos costumes do
interior poderia pensar? Havia alguma coisa que trancava seu
coração nos preconceitos, alguma coisa que o impedia de aceitar o
amor de Grace como era. Mas não adiantava mais descobrir a
fagulha no coração, pois Grace estava agora casada e muito bem
casada, restava agora se afundar de uma vez naquela paixão ainda
sobrevivente em seus sentimentos.
A tarde já estava carregada do lusco-fusco em degradê do dia pela
noite quando Felipe acordou. Mesmo com a cabeça rodando com a
embriaguez, uma ansiedade reagia no peito para ver a moça mais
linda que ele já viu sob seus olhos. Levantou do sofá onde dormia
para abrir a cortina da janela, suavemente abria, temendo que ela
não estivesse lá, mas quando abriu inteiramente a cortina, para sua
surpresa a moça estava novamente lá, com o mesmo olhar grácil
que o fazia apaixonar-se como um louco. Aquela certeza de
encontrar ela sempre no mesmo horário, ditava nele também uma
certeza peremptória que ela o amava. Claro que sim! Por que uma
moça apareceria assim sempre para o mesmo homem? Claro que
sim, talvez ela o amasse também...
Dessa vez ela se dava no olhar com uma rosa branca nas mãos.
Na conclusão precipitada de Felipe isso era um símbolo de uma
nova relação de amor. Não podia ser! Ela estava realmente
apaixonada por ele. Mas ela era tão linda! Às vezes a beleza dela
intimidava as reações de Felipe. Ela ficou lá, presa ao seu olhar,
enamorando e fazendo carícias na rosa. Aquela imagem lívida era
como avistar a certeza de um paraíso escondido, a rosa estava
perfeitamente compondo a beleza mais real com ela. Felipe tinha
que decorar aquele significado de amor, pois talvez o sentimento por
parte dela nunca mais poderia voltar. Era isso mesmo! Ele não
conseguia acreditar que aquele anjo estava se oferecendo para ele.
Aquele amor embriagava sua cabeça de vontades surreais, de
sonhos impossíveis e de verdades lascivas.
Eles ficaram se olhando por um longo período, o amor era assim,
era se estar preso por vontade, era viver sem saber como viver, era
querer bem sem egoísmo, um desejo de estender a linha da vida no
infinito.
Depois da paixão queimar por tanto tempo cada alma, ela fechou
sua janela e suas cortinas. O mistério continuou indagando os
pensamentos de Felipe:
“Eu tenho que fazer alguma coisa para conquistar essa moça de
uma vez”, pensou ele. “Mas o quê?”
Nesse instante em que se perguntava como ganhar o amor da
vizinha apaixonante, o telefone tocou, uma surpresa agradável
tilintava em seu peito esquerdo:
– Alô! – atendeu Felipe, tentando suspirar uma voz simpática.
Do outro lado da linha ninguém sussurrava nenhuma palavra
sequer.
– Alô! – continuou ele.
Mas não adiantava o telefone continuava mudo.
– Alô, eu acho que sei quem é você – suspeitou Felipe.
Quem estava do outro lado da linha se emocionou, afinal,
finalmente ele estava atento à pessoa que tanto o amava.
– Você deve ser minha vizinha de janela. Que tal nós...
Antes do convite, o telefone foi desligado na cara dele. Felipe
apenas não podia contar que quem ligava para ele direto sem dizer
uma palavra era Grace.
Mesmo agora casada Grace sentia uma saudade imensa ressoar
no coração. Queria saber da vida de Felipe, ele era tudo o que ela
mais queria na vida. Os primeiros dias de casada já passaram, ela
nunca mais pensaria que fosse viver num clima bucólico de um
casamento sem amor e paixão.
O pior foi descobrir que Felipe pensava em outra mulher e não
nela. Não havia desastre maior do que sua grande paixão ficar longe
do coração e dos pensamentos:
“Que inferno! Ele já tem outra e nem pensa em mim”, pensou
Grace.
Grace sabia que errara em se casar, mas já era tarde, a
circunstância da vida orientava ela para se comportar e demonstrar a
todos que era uma grande mulher apaixonada por seu casamento.
Não adiantava estar tão longe de Felipe, porque o desejo matizado
de saudade estava lacerando a consciência, ela não sabia o porquê,
mas sabia que ainda estava apaixonada por Felipe. Nada agora ela
poderia fazer, apenas cuidar para que o casamento fosse edificado
com muito respeito, já que não poderia ser edificado com amor.
No apartamento, Felipe ainda julgava que fora a vizinha que ligou
para ele, os pés flutuavam no ar enquanto a noese estava desperta
para a felicidade.
Mas o que ele não poderia contar era que seus amigos estavam
preparando uma surpresa para ele levantar o astral depois de ser
despedido. Todos eles já estavam reunidos na frente da porta do
apartamento, pareciam exalar festa pelos poros tamanha a alegria
em que se exaltavam.
Jorjão, apesar de casado, também queria participar da festa, uma
forma de consolar o ex-colega de trabalho que ainda não aceitava o
desemprego. Portanto, foi Jorjão que tocou a campainha. Felipe,
ainda no transe platônico da moça, pensou que fosse ela. Antes de
abrir a porta ele ainda ligeiramente se arrumou dando uma olhada no
espelho para se recuperar da embriaguez. Depois, todo arrumado,
foi ver quem era. Quando apontou o olhar no olho mágico ele se
desapontou. Não era sua tão sonhada vizinha.
Ele abriu a porta com um sorriso sem graça no rosto:
– Ah, são vocês – surpreendeu-se Felipe.
– Quem poderia ser? Por acaso você estava esperando a modelo
Grace Lenza, sua ex que ganhou o mundo? – brincou Jorjão.
– Nem me fale dessa mulher – disse Felipe.
– Que mulher que você perdeu, hein, companheiro! – disse Penha.
– Não me digam que vocês vieram aqui para me lembrar de
Grace. Tudo acabou! Eu não quero mais saber daquela mulher. Ela
já escolheu a vida dela, hoje eu sou apenas uma poeira do seu
passado – anunciou Felipe.
– Claro que não, companheiro! Adivinha!? Viemos para marcar
uma farra bem doida, como antigamente, apenas para levantar o
moral. Manja? – disse Roque.
– Eu não acredito! Vocês são loucos mesmo! Até você, Jorjão, que
está casado vai participar? – espantou-se Felipe.
– Tudo por um amigo!
– Vocês não vão acreditar, semana passada eu conheci um
rendez-vous que tinha simplesmente a gracinha mais linda que já vi
na vida – declarou Penha.
– Então é para lá que nós vamos! – festejou Roque.
– O Jorjão vai precisar de um disfarce, vai que sua mulher o pega
lá – brincou Felipe.
– A essa hora ela deve estar lá com as crianças na casa da minha
sogra – disse Jorjão.
– E você? – perguntou Felipe.
– Fazendo hora extra no trabalho – respondeu Jorjão.
Todos gargalharam muito, sinal de uma amizade intensa entre dez
anos de coleguismo, todos eles eram realmente bastante ligados.
Depois de muita conversa jogada fora eles partiram num
automóvel velho de Jorjão, a arruaça já estava armada, e quando
eles se sentiam assim sai de baixo, não havia santo que aguentasse.
Enquanto o carro rodava sobre as ruas mais badaladas da cidade,
Roque e Penha que estavam sentados atrás, mexiam com todas as
mulheres, sem esquecer da garrafa de uísque que acendia a todos.
Muitas vezes o carro passou pela avenida de prostituição para delírio
da algazarra, menos para Felipe que acabava se lembrando de
Grace.
Na realidade, Felipe era o que estava menos empolgado com a
gandaia, há dez anos poderia ser festa, mas naquele momento nada
o inspiraria alegria. Talvez seu coração estivesse precisando de
emoções mais introspectivas. Ele ficava observando as ruas e nada
parecia ter graça, as cores, a alegria, os movimentos, tudo perdeu o
motivo de existir, talvez fosse a falta de Grace ou uma ansiedade de
encontrar o verdadeiro amor nas mãos da vizinha. Tinha uma coisa
que ele já não saberia escolher, o amor de Grace ou o platonismo da
vizinha. Às vezes seu coração pedia emoções brandas como a única
saudade que estava com Grace. Valeria mesmo a pena esquecer um
amor concreto para se aventurar com uma moça que nem se sabe o
nome? Essa era a pergunta que martelava sua consciência.
Infelizmente o amor não tinha conceito.
Enquanto se dirigiam rumo ao rendez-vous Jorjão notou a
fisionomia de Felipe:
– O que aconteceu, Felipe? Não está gostando da farra? Lembre-
se que eu vou somente por causa de você.
– Não é isso, Jorjão, é que às vezes eu sinto falta de Grace.
– O que é isso agora? – intrometeu-se Penha. – Ela não era
apenas uma garota de programas qualquer. Será que até agora você
não aceitou, ou será que está pensando no dinheiro dela?
– Isso nunca! – raivou-se Felipe. – Vocês podem me chamar de
tudo nessa vida, menos que eu procuro dinheiro em mulher. Isso
não.
– Ah, vá dizer que se ela aparecesse hoje na sua frente e pedisse
para você voltar, você não voltaria? – indagou Roque.
– Poderia até voltar, mas não por causa do dinheiro dela – disse
Felipe.
– Eu acho que é uma grande besteira pensar assim... ah, se eu
tivesse a sorte de conhecer uma mulher rica com certeza minha vida
seria outra – disse Roque.
– Felipe, você vai me desculpar, mas o Roque está certo, já que
você ainda gosta dela então por que não a procura? Você vai acabar
realizando o sonho de qualquer homem, ter uma mulher linda e rica.
Deixe de lado esse orgulho bobo, é esse seu orgulho que às vezes o
leva para trás – aconselhou Jorjão.
– Mesmo se eu quisesse não adiantaria mais, ela agora está
casada – esclareceu Felipe.
– Mas pelo pouco que conheço de Grace, ela é capaz de largar
tudo para ficar com você. Eu tenho quase certeza que sim – disse
Jorjão, enquanto dirigia.
– Eu também acho que isso seria possível sim. Mas o grande
problema é que eu estou de olho numa nova paixão. A mulher mais
linda que já vi em toda minha vida. Vocês precisam ver aquela
maravilha dos céus! – alegrou-se Felipe.
– Vocês ainda não viram nada... esperem para conhecer a
ninfetinha Luíza, vocês vão ficar de queixos caídos. Aquilo sim é um
pedaço do paraíso na Terra! – afirmou Penha.
– Quero só ver se essa garota é tudo isso mesmo o que você
disse, Penha – considerou Jorjão.
O antigo automóvel de Jorjão já estava entrando numa rodovia que
dava acesso às melhores casas de prostituição da cidade. Os
instantes mergulhavam todos eles numa algazarra de palavrões e
delírios, apenas Felipe não entrava no clima, ainda estava pensando
em Grace, e no quanto ela o ajudou a amadurecer, talvez já
estivesse convicto de tê-la de volta, mas o abandono era certo como
uma página final. Naquele tempo todo, desde o casamento de Grace
até sua demissão no serviço, foram momentos importantes para ele
repensar a vida. Nada o magoava, apenas o revés de ver Grace
totalmente distante dele, a saudade tinha dessas coisas, era capaz
de paralisar os destinos de um homem. Porém, ainda havia uma
quimera que crepitava sem cessar, os sonhos de poder conquistar a
moça de sua paixão mais próxima, pois Grace se foi, e a mulher
mais próxima do coração era com certeza a estonteante vizinha.
Jorjão, Penha, Roque e Felipe avistaram de longe o rendez-vous,
parecia que a libertinagem liberava os desejos de cada um, a
necessidade do sexo de qualquer modo era a grande necessidade
da vida:
– Vocês vão ver! Esse lugar é show – delirou Penha. – Só tem
anjinha de dezoito aninhos... só gracinha... somente as delicadinhas.
– São essas que deixam qualquer um muito louco! – alegrou-se
Roque.
– Mas tem uma... hum! É a mais linda de todas e também a mais
cara, mas em compensação a satisfação é garantida – exaltava
Penha.
Depois de entrar nas pequenas ruas que davam acesso ao
rendez-vous, finalmente Jorjão estacionou o carro enquanto Penha
continuava sua descrição sobre a moça que lacerava todos os
sentidos dos colegas.
– Eu fiquei sabendo que essa é a última semana dela aqui na
cidade – continuou Penha.
– Do jeito que você fala parece até que essa mulher caiu do
paraíso – duvidou Felipe.
– Vocês vão ver! Por acaso eu já errei?
– Você quer mesmo que a gente fale a verdade? – brincou Jorjão.
Foi o instante para todos eles sorrirem enquanto caminhavam até
a entrada. Todos estavam impacientes sobre o lugar, Penha dizia
maravilhas sobre as garotas, tudo tinha o aspecto libidinoso do
prazer. Ao adentrar, as cores vibrantes do lugar excitavam os
desejos, cada um murmurava com o outro dizendo as besteiras
pontuais. Havia poucos homens presentes e algumas garotas ao
redor, mas nada que pudesse fazer com que eles delirassem, Felipe
até aproveitou para brincar com Penha:
– Nossa! É cada mulher mais linda do que a outra! – debochou
Felipe.
– Isso daqui é um prostíbulo de beira de estrada de quinta
categoria – brincou Jorjão.
– Vocês estão falando isso porque ainda não viram a Luíza – disse
Penha.
Aos poucos foram se entrosando, escolhendo a mesa para o bate-
papo para observar as mulheres da casa. Felipe por um instante até
esqueceu que perdeu a namorada e o emprego, tudo estava a mil
maravilhas.
O tempo foi se perdendo com as piadas e as risadas, o clima
estava perfeito para a descontração até que:
– E então, Penha? Cadê a Luíza, a moça mais linda do paraíso? –
cutucou Felipe.
– Estou vendo que vocês não acreditam no que eu estou dizendo.
Vou provar... vocês vão ver que é a mulher mais linda que vocês já
viram – assegurou Penha.
Todos continuaram rindo, inclusive Felipe, que já estava
acostumado com os gostos do colega.
– Eu não confio em você! Vocês lembram daquela tal Marlene que
ele não parava de falar dela? – brincou Jorjão.
– Nem me fale! – zombou Roque.
– Mas dessa vez é diferente. Essa Luíza tem uma ternura de anjo
e um fogo demoníaco. Esperem só! – insistiu Penha.
– Cuidado, gente! Isso pode ser um monstro metade anjo metade
demônio – caçoou Felipe.
Penha ficou indignado com os colegas e chamou um garçom que
transitava perto da mesa.
– Hei, garçom!
– Pois não.
– Eu gostaria de falar com a senhora Walkíria. Você poderia me
chamar ela logo?
– Sem problemas.
Enquanto o garçom foi chamar a tal senhora, Penha ficou
defendendo as qualidades de Luíza:
– Vocês estão rindo porque ainda não a viram. Eu posso dizer com
a mais absoluta certeza de que a noite que eu tive com Luíza foi a
noite mais sublime que já tive em minha vida. Podem acreditar.
– Vamos fazer assim então, se essa Luíza não for tudo isso que
você está falando, você, Penha, vai pagar toda nossa conta dessa
noite. Tudo bem assim? – desafiou Felipe.
– Está certo então.
Em poucos instantes a dona do estabelecimento, senhora Walkíria,
apareceu na mesa deles.
– Em que lhes posso ser útil, cavalheiros?
– Nós gostaríamos de ver a Luíza – se apresentou Penha.
– Infelizmente, a Luíza, hoje, somente está atendendo no quarto
dela.
– Maravilha! – comemorou Penha. – Enquanto vocês ficam aí
duvidando de mim, eu vou ter um tête-à-tête com Luíza – disse
venusianamente Penha, antes de seguir para o quarto dela.
Enquanto Penha saía da mesa, Jorjão, Roque e Felipe ficaram
com caras de bobos a ver navios.
– Alguma coisa mais, cavalheiro? – sorriu a senhora Walkíria.
– Eu não sei quanto a vocês, mas eu vou querer um uísque
qualquer, pois eu já estou quase acreditando no Penha – disse
Felipe.
– Você acha mesmo que uma garota de programas de luxo possa
atender numa espelunca como essa? – duvidou Jorjão.
– Não sei, tudo é possível! Ainda mais agora que ninguém tem
mais dinheiro para nada – declarou Felipe.
Enquanto estavam na mesa os três apenas brindavam sem
realmente conhecer Luíza. Penha estava num dos quartos dos
fundos onde Luíza recebia seus clientes. Por certo estava
aproveitando o melhor que a vida podia oferecer, estava amando,
não amando por sentimento, e sim por prazer.
Os instantes foram se passando, os três que ficaram na mesa
cada vez mais estavam bêbados, falando besteiras peculiares e se
perguntando se a tal Luíza era mesmo uma novidade de beleza. Por
outro lado, Penha permaneceu no quarto fechado, provavelmente
esgorjando do bem maior de uma mulher. Eram momentos íntimos
que viajavam no ponteiro dos minutos, nada poderia ser melhor para
Penha naquele momento.
Felipe, mesmo antes não acreditando, agora se sentia novamente
precisando de um colo de mulher, talvez a distância entre ele e
Grace pudesse contagiar certo esquecimento de sentimentos. Seus
sentidos agora estavam todos presos na Luíza que ele queria
conhecer de qualquer jeito. O amor para ele era algo como uma
lâmpada incandescente, ora estava apagado ora estava aceso. Ele
tinha que repudiar aquele princípio de dor de cotovelo que Grace
despertava estando casada com outro. E o momento de fugir
daquela dor era naquele instante, era preciso renovar o sexo com
outra mulher, era preciso conhecer a tal Luíza.
Jorjão expunha na mesa seus problemas com a sua mulher até
que:
– Essa mulher é demais! – disse Penha, aparecendo para os
colegas enquanto abotoava o cinto.
– Não precisa dizer mais nada, pela sua cara a gente percebe –
declarou Felipe, bebendo o uísque.
– Podem ir que eu garanto, é a mulher mais fantástica do mundo –
sorriu Penha de satisfação.
– Não precisa falar duas vezes! – alegrou-se Roque enquanto
partia para o corredor que dava acesso aos quartos.
– Espere! – acenou Felipe, tentando ir na frente.
Não adiantou, Roque ficou tão alucinado com os olhos vibrantes
de satisfação do Penha que não perdeu tempo e foi logo ao encontro
de Luíza.
Dessa vez ficaram na mesa Felipe, Jorjão e Penha:
– Meu Deus, essa mulher é de outro mundo! – gritou Penha.
– Parece que dessa vez você acertou – considerou Felipe.
– Vai por mim, Felipe! Para esquecer uma mulher somente outra
mulher.
A curiosidade lacerava as vontades de Felipe, pois ele já estava
carregado de parâmetros, a segunda mulher mais bonita era Grace e
a primeira com certeza era a doce vizinha de sua janela. Em que
lugar ele poderia classificar a tal Luíza? Será que ela poderia ser
mais radiante do que a vizinha? Não, não podia ser, nenhuma garota
de bordel poderia ser mais delirante ou mais bonita do que sua
vizinha, uma moça tão donairosa que às vezes chegava a lembrar
dos comportamentos femininos do século passado. Claro que seria
besteira comparar uma simples garota de bordel com a futura e
possível mulher de sua vida. Até Grace era dispensável quando ele
pensava na vizinha, até qualquer outra mulher era dispensável
quando na mente sobrevinha aquela paixão platônica
incomensurável. Com certeza, de uma coisa ele estava certo,
nenhuma mulher poderia mexer melhor com seu coração do que a
lívida vizinha, pois todos os planos de felicidade eram com ela.
Por um momento Felipe se pôs a imaginar o dia que pudesse ter o
primeiro encontro com a vizinha. Ele sabia que era bobo demais em
não tomar controle da situação e conhecê-la logo de uma vez, mas
qual homem que não teme uma mulher quando se apaixona por ela?
Enquanto Roque transava com a tal Luíza no quarto dos fundos,
Penha discursava sobre os deleites divinos dela, e o coração de
Felipe não se cansava de dizer para si mesmo que não havia mulher
mais perfeita do que sua vizinha, ela sim era uma mulher para se
entregar de corpo e alma, era diferente sempre de Grace, e da tal
Luíza, era diferente de qualquer outra mulher da vida, lembrava até
uma moça prendada para sonhos futuros.
Penha ficou por um bom tempo comentando os dotes libidinosos
de Luíza, para ele ela era perfeita em tudo, uma garota quente que
sabia amar como uma verdadeira profissional.
O tempo foi passando e a lascividade de Felipe aumentando, o
sexo estava aceso e desperto, ele estava doido para transar com a
tal Luíza, era verdadeiramente prazer por prazer. Estava apenas
esperando Roque também aparecer com os olhos de satisfação,
afinal, fazer por fazer era muito melhor do que quando o sentimento
incomodava o coração.
Alguns instantes se passaram até que Roque apareceu na mesa
com um brilho radiante de satisfação:
– Penha, você tinha razão, essa mocinha acabou comigo! –
alegrou-se Roque. – Por duvidar de você, eu estou lhe devendo a
rodada da mesa.
Minha nossa! Ela é gostosa demais!
– Do jeito que vocês estão falando estou até pensando em
esquecer meu casamento por causa dessa Luíza – brincou Jorjão.
– Só se for depois de mim, Jorjão – disse Felipe. – Eu também
quero experimentar dessa florzinha. Afinal de contas, o
homenageado de hoje não sou eu? Vocês que me arrastaram até
aqui!
– Você tem razão – afirmou Jorjão. – Eu também não posso entrar
nessa brincadeira de vocês, senão aí que o casamento acaba de
uma vez. Eu não sei nem como estou aqui com vocês. Quando eu
chegar em casa vou ouvir poucas e boas.
– Então eu vou – anunciou Felipe, decidido, e se levantando da
mesa.
Enquanto Felipe caminhava em direção ao corredor para procurar
o tal quarto, Penha e Roque comemoravam a noite comentando
todas as intimidades que tiveram com a tal Luíza.
– Você sentiu aquelas maçãs rosadas que ela tem?
– Bem que você falou!
– Eu falei para vocês que sou rato de puteiro!
Felipe caminhou ansioso pelo corredor de acesso dos quartos, o
ambiente estava um pouco iluminado, por isso ele procurava pelo
número exato da porta, aqueles instantes crepitavam de desejo em
sua mente.
A viagem parecia rápida, mas não era, uma efêmera viagem em
busca do prazer poderia deixar sequelas no coração. O amor quase
sempre espera a hora certa para se revelar verdadeiramente como
um mal indesejável para o homem. Sua mão batia na porta sem
esperar e nem prever que o coração forte para o sexo se
desmancharia nas entranhas do amor.
Ele continuou batendo a porta e chamando por Luíza. De tanto
esperar, sem resposta alguma, acabou abrindo a porta do quarto
dela sem consentimento.
Quando entrou no quarto e avistou Luíza nua, o coração não
conseguia acreditar, a alma não conseguia suportar a dor que varava
o peito, o ciúme era a prova de que o amor decaía os sentimentos de
um homem na escuridão. Por mais que ele avistasse não conseguia
acreditar, a tal Luíza deflorada tão estupidamente pelos
companheiros era simplesmente sua mais bela rosa do coração, sua
mais doce melodia de vida, sua mais lívida estampa de beleza,
simplesmente, sua vizinha de janela, sua paixão platônica
transbordante.
Já era tarde procurar abrigo contra tristeza, pois os pedaços de
castelo que ele construía nos céus dos seus sonhos despencavam
causando morte no jardim. Era como se o mundo todo perdesse a
cor, era como se o mar ficasse cinza e o restante da composição de
felicidade ficasse crua como a cor do chumbo. O futuro parecia não
querer mais reagir, tudo por causa do revés do sentimento, o ciúme.
Era difícil para ele suportar que era enganado novamente, pois a
alegria de viver era saber que ainda existia uma moça delicada como
uma rosa triste dentro do coração, dentro do futuro e dentro do
caminho da vida. Mas tudo não passava de disfarce sorrateiro da
vida, ela era, assim como Grace, mais uma garota de programas. Às
vezes pensava em não acreditar nos próprios olhos, mas a verdade
estava bruta como nunca. A única verdade era que ele estava por
muito tempo apaixonado por uma mulher que vivia da forma que ele
mais desprezava. Luíza, a vizinha de janela, a paixão pulsante, o
sonho de amor, era Luíza, talvez de nome falso, era simplesmente
mais uma mulher da vida. Daquelas que não se pode confiar um
futuro de mulher que espera o marido chegar do trabalho para lhe
calçar as sandálias, daquelas que nunca se lembram da fisionomia
de quem e com quem fez amor na noite passada, daquelas que
passam em sua vida como um tornado, tal qual como foi Grace. Ele
esperava daquela moça muito mais do que amor, ele esperava a
felicidade casual, típica e familiar, mas a novidade era estranha ao
coração que nunca se libertaria dos conceitos estabelecidos da
sociedade, dos padrões machistas de todas as épocas e do orgulho
ditador de que o bem é somente um. Afinal, Felipe era um homem
comum, não conseguia enxergar através da nuca.
Luíza quando percebeu que quem estava no seu quarto era o seu
vizinho para quem ela tanto se insinuara, acabou se enrubescendo
de vergonha, ela não sabia o que dizer, talvez soubesse do espanto
que ele sentia.
– A tal Luíza é você!? – perguntou Felipe, estarrecido.
– Sim – respondeu ela, um pouco tímida.
– Eu esperava mais de você!
– É que... – gaguejou ela. – É que... desculpe se eu não atendi
suas expectativas... não fique assim... eu sempre fui louca por você
desde que o vi pela primeira vez na janela... é uma pena que você
descobriu o que eu sou e o que eu faço.
– É uma pena mesmo – disse Felipe.
– Você não quer dormir comigo? – pediu ela, tentando ser
carinhosa.
– Eu esperava muito mais de você! – finalizou ele, ao bater a porta
e partir.
– Espere! – gritou ela. – Eu sempre lhe amei desde que o vi
naquela janela!
Ele partiu endemoninhado como quem fitava cólera para o mundo,
continuou caminhando decidido dos corredores até o salão de festas
onde encontrou os amigos bebericando.
– Então? Como foi? Eu não falei que a tal Luíza era mesmo um
sonho no paraíso – disse Penha.
– Melhor seria o diabo! – ralhou Felipe, nervoso, enquanto
passava direto pelos amigos.
– Mas o que aconteceu!? – perguntou Penha, sem saber de nada.
– O que eu fiz de errado?
– O que aconteceu, Felipe? – gritou Jorjão de longe.
– Eu explico depois, não estou com cabeça, eu descobri que um
anjo era um demônio.
Os amigos ficaram perplexos vendo Felipe partir daquela maneira,
sem falar nada e completamente desnorteado, mas não havia nada o
que fazer, Felipe saiu do rendez-vous de uma vez, o coração estava
envenenado de ciúmes.
Do lado de fora do bordel Felipe procurou um taxista, acabou
sinalizando para o primeiro que encontrou, quando o táxi parou na
sua frente ele entrou, fez cara de poucos amigos e apenas disse
aonde queria chegar.
Depois de alguns instantes o táxi partiu levando Felipe, e com ele
suas esperanças de felicidade amorosa. O que partia as ilusões de
Felipe ao meio era o ciúme dormente de não poder fazer nada. Ele
não sabia conviver com ilusões disfarçadas, pois o amor nasceu com
a vizinha por tanto acreditar numa verdade fantasiada de amor
sonhado, naquele tipo de amor em que a pessoa suspira somente
virtudes da pessoa amada. Mas o sentimento era transgressor, se
por um lado Grace o amava demais, pelo outro ele amava o que
estava distante e não o que estava debaixo do seu nariz, foi assim
que foi perdendo Grace aos poucos, por acreditar em fantasias,
sonhos, ilusões, paixões; por acreditar que o amor somente existe
quando é ensaiado longe do coração. Aprender aquela lição que a
vizinha estranhamente lhe ensinara poderia ser o primeiro passo
para receber as virtudes da vida. Talvez fosse assim, o amor não
queria machucar, apenas desejava transformar as vontades
verdadeiras de um homem, afinal, ninguém é velho o bastante para
não acreditar que o sentimento transforma as aparências em algo
estranho, mas que se deve sempre acreditar piamente no amor.
O que mais batia em seu peito era a vontade de voar sobre o
Atlântico para encontrar Grace e dizer que realmente a amava, por
mais que não pudesse parecer ele dessa vez estava aceitando o
sentimento por Grace. Estava entendendo agora que a vida mudava
o destino para demonstrar a verdade do amor.
Enquanto o táxi cruzava a cidade, Felipe, um pouco bêbado,
tentava encontrar forças para não cair numa infelicidade do coração.
Pensamento de Felipe:

Vagabunda! Maldita! Desgraçada! Como pôde debochar dos meus


sonhos mais íntimos? O que eu sonhava com ela era bem mais do
que amor, era uma vontade crescente de vencer o infinito, de vencer
o impossível, de sortear a felicidade para todos. Mas não, ela apenas
estava brincando de amoricos enquanto eu flutuava na imensidão da
eternidade de sonhos nunca antes sonhados. Por que o amor é
sempre um mal bem maior para quem ama? Eu a amava como uma
fera que protege sua cria. Não é justo para mim conhecer a ferida
somente em minha alma. Ah, aquela vizinha estúpida, nunca soube
do meu amor, apenas zombava que me queria enquanto eu
abandonava Grace do coração. Para mim era fácil esquecer Grace,
pois havia a cegueira apaixonante, havia o sentimento calado de
carinho, havia você, minha idiota vizinha de janelas, de janelas
nocivas. Como eu pude ser tão imbecil de trocar o amor sempre
dedicado de Grace por uma simples aventura do coração? Agora
não adianta mais, eu perdi quem realmente me amava, eu perdi a
tão distante Grace Lenza. Pode ser que a paixão apareça sempre
assim, como uma limpeza do coração para fazer a gente acreditar
que o desejo de quem ama quase sempre é vencido.
Quando o táxi chegou à frente do seu prédio Felipe ainda estava
furioso, pagou ao taxista com um semblante marrado de quem não
queria conversa nenhuma, coisa que o taxista entendia bem, por isso
pegou o dinheiro e se mandou com o veículo. Felipe, ainda
atormentado, entrou no prédio, e correndo subiu as escadas, parecia
buscar algo, algo como uma vingança de quem estava com dores de
cotovelo. Quando entrou no apartamento ele catou uma pedra que
escorava a porta do quarto e dominado por uma fúria de súbito, a
jogou pela janela, acertando a janela vizinha, a janela da sua jurada
última paixão. Voou estilhaços de vidro por todos os lados.
A desilusão definitivamente dominava as percepções de um
homem:
– Desgraçada! Eu perdi Grace por lhe amar demais! – gritou
Felipe, enquanto ainda se ouvia os cacos da janela da moça cair no
chão.
Dessa vez parecia que o mundo queria derrotá-lo, sua raiva era
incontrolável, talvez tivesse quebrado a janela dela somente para se
sentir melhor. Ele não suportava mais avistar aquelas janelas
escancaradas na sua frente, a sorte nunca mais seria bem-vinda, o
amor tinha gosto amargo, talvez a vida não pudesse ser vivida por
certos homens.
Depois da janela quebrada, Felipe começou a se acalmar, acabou
dormindo no sofá com todas as suas janelas fechadas com as
cortinas. Pelo menos uma coisa era certa, não mais viveria aquela
ilusão, daquela vez em diante todas as cortinas estariam fechadas
para sempre. Nenhuma aventura jamais poderia iludir seu coração.
Os dias para Felipe foram passando, e com ele um
arrependimento crescente de ter perdido Grace. Somente depois de
ter vivido as desilusões que Grace também teve com ele, é que foi
perceber que o amor dela era sincero, que o amor dela era sempre
vicejante, agora tudo parecia impossível, era tarde demais. O que ele
poderia fazer para ela voltar se agora ela vivia como sempre
sonhou?
Porém a magia do amor mantinha as duas forças, positiva e
negativa. Se por um lado ela desejava no íntimo que Felipe não
fosse feliz em seus relacionamentos, pelo outro, Felipe também
desejava o mesmo. O sentimento era assim, os dois polos, positivo e
negativo, mesmo distantes eram atraídos, um pelo outro.
E do outro lado do Atlântico, na Europa, especificamente em
Londres, estava vivendo intensamente a vida de luxos Grace Lenza,
vivendo e sobrevivendo sob um casamento de respeito, apenas isso,
era o que ela sentia por Carlos Vilas, apenas respeito. A vida era
como saborear apenas um único sabor, talvez fosse a vida que
sempre sonhou, mas sem amor, sem todos os sabores coloridos,
tudo era apenas o azedo do limão.
Estava dessa vez num daqueles dias lindos e radiantes, tirando
fotos para uma capa de revista, querendo ainda ser feliz, era
estranho, mas ela ainda não se sentia feliz, certamente Carlos Vilas,
depois de alguns meses não estava mais sendo atencioso, ou era a
saudade de Felipe que sobrevoava sua cabeça como um fantasma?
Porém nada de abalar o profissionalismo:
– Ok! Acabou – disse o fotógrafo.
– E como ficaram as fotos? – perguntou Grace.
– Ficaram ótimas! Você é linda como uma pérola, querida! Todos
os seus ângulos são perfeitos. A câmera sorri quando dispara em
você. Não tem do que se preocupar.
– Você me dá uma carona até o meu apartamento? – pediu Grace.
– Eu estava pensando numa outra coisa. Por que não
aproveitamos que terminamos mais cedo hoje e damos um pulinho
em algum pub aqui perto? – disse o fotógrafo, tentando convidá-la.
– Eu não posso, sinto muito, Richard. Acho que meu marido não
gostaria muito dessa história.
– Tudo bem. Mesmo assim eu dou a carona. Então? Vamos?
Grace vestiu sua roupa, estava contemplando liberdade sem amor,
algo que não traz muita felicidade. Grace nunca passou por
momentos difíceis na carreira, mas no casamento imperava nos
sentimentos um amor morno sem diferenças que pudessem unir a
paixão. Quem realmente a conhecia certamente diria que faltava
Felipe em sua vida, e o pior de tudo, é que ela tinha certeza daquilo.
Quase todas as vezes que ela fotografava para alguma revista ela
pensava: “será que o Felipe vai ver essa revista?” Ela não estava
acostumada a fazer planos com um marido que já viveu de tudo, do
bom e do melhor, na vida.
Ela ficou estática olhando para o estúdio e recordando o passado
até que:
– Vamos, Grace! O elevador está esperando – disse o fotógrafo
Richard, segurando o elevador.
Grace correu ao encontro dele com os sapatos de salto alto na
mão e esboçando um sorriso terno. Quando ela entrou no elevador
começou a calçar os saltos enquanto Richard também entrava.
Foi o momento para o elevador começar a descer.
– O que aconteceu, Grace? Eu sempre julguei que você era assim.
Mas agora foi a primeira vez que eu a vi sorrir – perguntou o
fotógrafo Richard.
– Você quer ouvir a verdade?
– Se não for muito incômodo.
– É que eu casei com um homem que eu não amo... quer dizer, eu
amo... mas não como eu amo Felipe.
– E quem é esse sortudo que mexe com o coração de uma
estrela?
– É o meu ex. Sabe, o Carlos é um homem legal que sempre me
tratou muito bem, mas o Lipe sempre foi minha vida, eu não consigo
viver longe dele. Sabe, às vezes eu pensava que era idiotice de
gente famosa dizer que não é feliz, mas agora eu consigo acreditar.
– E por que você não procura esse Lipe, talvez ele ainda a ame?
– Eu acho muito difícil, ele não muda, consegue sempre ser
intolerante, grosseiro e às vezes até estúpido. Algumas vezes eu até
ligo para ele, mas ele faz de conta que eu nem existo mais. Ah,
Richard, o que eu faço? Meu coração se desmancha por ele
somente de lembrar daquele peito que me guardava.
– Eu penso que a gente só vive uma vez e por isso devemos lutar
para ser feliz sempre. Não adianta a gente fugir do amor, pois ele
acaba nos encontrando nas lembranças. Por isso, amiga, lute para
ser feliz!
– E será que adianta?
– Eu não sei se adianta, mas que se deve lutar, isso se deve.
Os dois juntos, numa conversa íntima, saíram do elevador para
entrarem no automóvel. O ambiente estava quase vazio, a não ser
com a presença de uma família inglesa que levava consigo uma
garotinha que reconheceu Grace. A garotinha não perdeu tempo e
correu para os braços de Grace, depois pediu um autógrafo e voltou
para perto de seus pais acanhados.
Richard percebeu a popularidade de Grace e não deixou de
comentar:
– Você já pensou em fazer televisão? – perguntou ele enquanto
ligava o automóvel.
– Não, nem quero pensar – disse Grace. – Por favor, me escute,
estou precisando de alguém para desabafar, vamos voltar ao
assunto de antes.
– Desculpe, Grace, mas você está errada nos dois sentidos,
primeiro, você tem que pensar em televisão sim, pois a carreira de
modelo é muito curta, portanto é preciso aproveitar as chances de
hoje, segundo, eu não consigo acreditar em alguém que não se case
por amor, querida, corra logo atrás desse Lipe.
– Você acha mesmo?
– Claro, Grace! O amor é a coisa mais importante dessa vida. Ou
você prefere ficar se martirizando ao lado do Carlos?
Nisso, Richard dirigindo o carro, saiu do estacionamento
subterrâneo para entrar no ambiente confuso do rush nas ruas de
Londres.
– Tem um probleminha, Richard. Eu não tenho coragem de deixar
o Carlos, ele sempre foi uma doçura de homem comigo.
– Criança, a vida passa num passe de mágica, quando você for
ver, toda sua felicidade foi embora, corra atrás da vida antes que ela
suma do seu horizonte.
– Do jeito que você fala, Richard, consegue até empolgar a gente.
– Mas não é verdade!? Nós temos que desejar o melhor para nós
mesmos.
– Eu tenho que me desabafar... o nosso casamento também não
anda nessas maravilhas assim... o Carlos anda distante, ele não me
conquista mais, está sempre desatento às minhas vontades, parece
até que deixou de me amar – desabafou Grace – Tente ficar mais
atenta ao Carlos. Você ainda vai descobrir outras coisas dele.
– O que você está escondendo de mim, Richard? O que você sabe
que eu não sei? Conte-me logo!
– Eu não quero aqui criar uma crise conjugal.
– Conte-me logo, Richard!
– Esquece! Estou tentando prestar atenção no trânsito.
– Vocês, homens, são todos iguais mesmo, vivem de segredinhos
uns com os outros e nunca quebram o pacto de silêncio.
– Isso é coisa à toa, Grace.
– Como coisa à toa, Richard? Tudo o que é referente ao meu
marido tenho o direito de saber.
– Esquece! Não vou contar. Um dia você vai descobrir...
– Humpf!
– Acalme-se, estamos chegando na sua residência.
Grace acabou ficando de cara marrada para Richard, mas ele
continuou obtuso sem revelar nada sobre Carlos. Grace ficou
bastante contrariada, talvez ela quisesse encontrar algum motivo
para deixar Carlos. Qualquer deslize do marido evidenciaria o que o
coração temia em dizer.
– Chegamos – sorriu Richard.
– Obrigada pela carona, Richard. Bem que você poderia me contar
esse segredinho.
– Esquece, não está mais aqui quem falou. Ok?
– Tudo bem. Eu sei que não vou conseguir arrancar nada de você
mesmo. Você sempre foi um anjo! O jeito é arrancar do patrão lá em
cima.
– Por favor, não comente sobre mim.
– Sem problemas, anjinho!
Grace fechou a porta do seu lado do carro quando Richard ligou
novamente o motor.
– Ah, Grace, tem mais, sobre aquilo que nós falamos, nunca deixe
de sonhar sua felicidade. Se você acha que esse tal Lipe é o grande
amor da sua vida, vá em frente, garota. Um grande amor somente se
vive uma vez.
– Tudo bem, vou refletir sobre isso, meu anjo da guarda.
– Até mais, linda – despediu-se Richard.
– Até mais.
Mesmo cansada com o dia atribulado com as sessões de foto
Grace sorria algum resquício de felicidade. Apesar de estar longe do
grande amor, a vida compensou com alguns prazeres. Afinal, ela era
a senhora Vilas, não tinha do que se preocupar com o futuro, tinha
sucesso e planos para ter filhos.
Chegar novamente em casa com o maridão esperando, depois de
um dia estressante de trabalho, era realizador para uma mulher que
antes vivia na escuridão da vida. Pelo menos havia o acalanto dos
braços do marido naquele final de tarde em que o céu preparava-se
para trocar de cor.
Claro que Grace não desprezava seus sentimentos ternos por
Carlos Vilas, apesar de tudo foi com ele que ela escolheu viver sua
vida inteira. Mas Felipe era o furor, o desequilíbrio, a saudade, a
paixão, o amor e a eternidade. Poderia ele muito bem ser tudo isso
se não fosse algum tipo de orgulho que sempre distanciava os dois.
E o pior de tudo isso era saber, que, quanto mais distantes um do
outro, as lembranças de Felipe não se pulverizavam com o tempo.
Era como se a distância fosse o fator que mais maltratava o coração,
não havia como fugir da saudade, pois Grace ainda era muito jovem
para domar as vontades do coração. Ela sabia que algum dia
chegaria o tempo de escolher entre a aridez de viver com Carlos e a
enchente contínua de viver com Felipe. Ela somente esperava que o
acaso lhe mostrasse a verdade da pessoa certa. Um dia ela teria que
escolher, somente desejava que esse dia fosse adiado sempre para
o amanhã.
A tarde estava fresca com uma fragrância do vento londrino
decantando os pensamentos contentes das pessoas que Grace
avistava na entrada do luxuoso condomínio. Acenou para o porteiro,
deu um singelo autógrafo para duas jovens que a esperavam, sorriu
para as crianças que brincavam, que sem querer pressionavam
sempre seus sonhos de família encantada, e depois entrou no
elevador de acesso aos apartamentos. Tudo tinha cheiro do
agradável, do aconchego e da liberdade. Ela não via a hora de
abraçar o marido no recanto do lar a fim de beijá-lo, provando a si
mesma que a saudade de Felipe era uma dor tola e juvenil.
O elevador subiu com Grace torcendo para que Carlos já estivesse
de braços abertos a esperando, querendo carinhos e carícias,
somente assim ela poderia duvidar do próprio coração. Quando o
elevador chegou no seu andar, ela não pensou duas vezes, foi logo
entrando no apartamento com uma saudade que procurava os beijos
do marido.
– Querido! – disse alto Grace pelos recintos. – Querido!
Ela não ouviu resposta alguma e continuou procurando Carlos.
– Carlos, querido!
Enquanto chamava o marido ela tentou procurá-lo na sala de
vídeo:
– Querido!
Procurou também na biblioteca. O apartamento era muito grande
para ela encontrá-lo somente com uma chamada.
– Carlos, querido! Cheguei.
Dessa vez ela tinha chegado mais cedo do que de costume.
Passou então vagamente em sua cabeça que talvez ele não
estivesse no apartamento. Mas ela não se cansou e continuou
chamando.
– Querido, cheguei!
Quando ela resolveu entrar na suíte em que os dois dividiam...
– Querido, você nem sabe... – calou-se repentinamente quando
avistou o marido.
Sua primeira reação foi de desespero, ela não conseguia acreditar
no que estava vendo, mas a realidade estava ali, bruta como numa
violência da alma. Carlos estava sendo deflagrado sexualmente por
outro homem aparentando ser jovem e modelo, talvez fosse um de
seus modelos da agência. Carlos estava de passivo na relação e
parecia ser uma outra pessoa, bem diferente do Carlos que ela
conhecia.
Foi o instante para Grace reagir de alguma forma:
– Que nojo! – espantou-se ela.
Os dois acabaram com a relação, assustados, cada um parecia se
envergonhar da sua maneira.
Carlos saiu da posição para tentar abraçar Grace enquanto o
jovem modelo vestia as calças.
– Grace, eu posso explicar – disse Carlos.
– Não existe explicação para isso – anunciou Grace.
– Venha cá, minha querida – declarou Carlos, tentando abraçá-la.
– Não toque em mim, eu estou com nojo de você... Como você
pôde fazer isso comigo? Eu pensava que conhecia você. Mas não...
olhe para você... você é uma bichona!
Ao ouvir aquilo o sangue subiu até a cabeça de Carlos, que
respondeu com um tapa certeiro no rosto de Grace, um tapa forte
que acabou derrubando Grace no chão:
– Seu maldito!
– Nunca mais se refira a mim dessa forma. Nunca, ouviu bem?
Nunca – raivou-se Carlos.
O jovem modelo assustado no meio da discussão vestiu as roupas
e procurou ir embora.
– Não se preocupe, Brian, amanhã a gente volta a conversar.
– Desgraçado, você ainda ousa marcar um novo encontro com ele
na minha frente – vociferou Grace, muito nervosa.
– Cale a boca, sua rampeira! Ainda bem que isso aconteceu, já
estava cansado de esconder isso de você, cansado de bancar o
marido apaixonado.
– Por que você fez isso comigo? – desesperada, Grace chorava no
chão da suíte.
– Por que você acha que eu tive tantas mulheres? Eu precisava de
você porque você estava em evidência, casar com você divulgaria
melhor a minha imagem. E para lhe dizer bem do fundo do meu
coração, depois de tanto tempo transando com as mulheres mais
lindas do mundo, eu acabei enjoando, transar com elas não dava
mais prazer, eu precisava de mais. Eu sempre precisei quebrar as
regras normais.
– Seu imundo!
– O que é isso, querida!? Isso é tão normal no mundo da moda.
– Você é um homem de duas caras!
– Você já devia estar acostumada, e nem tente declarar isso para
a imprensa, eu conheço seu passado imundo na prostituição, ou
você acha que eles vão acreditar mais em você do que em mim?
– Nojento! Desgraçado! Você não vale nada.
– Você quer mesmo saber a verdade? A verdade é que eu já me
cansei de você. Você me foi útil por algum tempo, agora que a sua
popularidade caiu um pouco, não preciso usá-la mais. Todo
cavalheirismo de qualquer homem tem um limite. Mulher foi sempre
o que nunca faltou para mim, se quiser ir embora vá de uma vez, não
preciso mais de você, mulheres como você são descartáveis –
desabafou Carlos Vilas.
– Não precisa falar duas vezes, eu vou, seu idiota! Meu advogado
irá procurá-lo – disse Grace, ao se levantar do chão.
– Você pensa que vai levar alguma coisa de mim? Está muito
enganada!
– Eu não quero nada seu... somente quero estar longe de você,
estou sentindo nojo das suas duas caras – finalizou Grace, ao partir.
Ainda houve tempo para Carlos Vilas gritar suas cretinices:
– Bem que você antes estava gostando! Mulher como você eu
encontro aos montes. Vá logo de uma vez! Com certeza amanhã
começará a decadência de Grace Lenza, voltando para o anonimato,
lugar de onde nunca deveria ter saído.
Grace foi até a garagem e entrou no seu automóvel importado. Ela
teve a sensatez exata de pegar somente o que era dela. Resolveu
viajar para lugar algum, somente queria colocar a cabeça no lugar
enquanto dirigia, alguma estrada poderia ser a melhor terapia para o
que ela passava.
Novamente Grace não se sentia feliz no amor, parecia que a dor
era a mesma de sempre. Era muito nojento descobrir que o seu
homem não era aquilo tudo que pensava. Até um tapa ela recebeu
de Carlos, coisa que ela nunca imaginaria antes, novamente as
peças estavam fora do lugar, parecia que o amor não aceitava as
ordens da razão. Novamente a decisão pelo homem de sua vida era
sentido na face, não havia como perdoar o calhorda, o caminho
agora parecia rumar para Felipe. E era com ele que o coração
palpitava, era com ele que a alma viajava, porém somente assim era
mais fácil encontrar a felicidade.
Grace estava viajando no seu automóvel sem destino, apenas
querendo refletir e colocar a cabeça no lugar.
Pensamento de Grace:

Não, não vou deixar mais que homem nenhum me faça sofrer. Eu
preciso de liberdade! Não quero me acostumar com um homem
arrogante, nem Felipe me bateu, Carlos sempre foi uma farsa, uma
espécie de ratazana que sempre consegue o que quer, mas comigo
não, comigo será diferente.
Eu preciso tanto ser amada como o Felipe me amava, apesar dele
ser bruto, foi somente com ele que eu fui feliz. Eu estava errada,
pensava que a fama e o sucesso pudesse me desligar da presença
dele, mas ele vive aqui comigo mais do que nunca. Será que ele
ainda me aceita de volta? Desculpe, querido Lipe! Eu preciso de
você, do seu sorriso, nunca quis vê-lo sofrer, apenas era possessão,
sempre quis você somente para mim. E agora? Agora estou tão
longe de você que não consigo perceber a diferença entre a saudade
e o amor. Lipe, eu preciso voltar para você, para os seus braços
fortes que me enlaçavam, para o seu olhar carente pedindo mais e
para o seu peito forte que me guarnece. Ah, Lipe, como eu errei! Eu
poderia muito bem ficar do seu lado, mas preferi buscar o que você
sempre odiou na vida, a glória e a riqueza. Agora eu entendo que
nada disso faz sentido se o amor não estiver presente. Lipe, eu
quero voltar, por favor, não quero que isso seja mais uma decisão
errada minha. Meus caminhos aqui longe de você sempre foram
bucólicos e tristes, totalmente diferente dos meus caminhos com
você que sempre foram de uma felicidade plena que eu não entendia
como felicidade.
Está decidido, vou voltar e lutar pela minha felicidade ao lado de
Felipe, isso é, se ele ainda me querer bem, se ele ainda não tiver
outra, se ainda tiver prazer em me ver do seu lado. Como fui tola!
Todo aquele ciúme exagerado dele era porque me queria bem. Foi
preciso eu ouvir o Carlos escarrar a palavra prostituta para saber que
o Lipe sabia o que estava fazendo. Deus, como eu amo aquele
homem! Felipe é tudo na minha vida, é o grande e maior motivo das
minhas decisões do destino. Não adianta, eu vou voltar e amá-lo
como sempre amei, como sempre meu coração amou.
Felipe, eu o quero e sempre vou querer.

Demorou um certo tempo até Grace se acomodar num hotel para


fugir das canalhices de Carlos, de lá ela ligou para os pais,
demonstrando sua vontade de voltar para o Brasil depois das
safadezas descobertas sobre o marido.
– Alô, mãe!
– Pode falar, minha filha – atendeu dona Regina.
– Eu estou sofrendo muito.
– O que aconteceu?
– Eu peguei o Carlos me traindo, e para piorar, com homem. Mãe,
ele é gay!
– O que é isso, minha filha, não fale uma coisa dessas, o senhor
Carlos é um homem decente e respeitado. Ele nunca seria uma
coisa dessas.
– Mãe, mas eu vi com meus olhos. Você acredita ou não acredita
na minha palavra?
– Claro que sim, minha filha. Mas acho que você deveria olhar
bem isso, você está tão longe e depende dele para conseguir seus
trabalhos.
Como vai fazer sem ele?
– Eu não dependo daquele idiota para nada!
– E o que vai fazer então?
– Eu já fiz o pedido de divórcio, agora não tem mais volta. Eu não
quero ver aquele homem de duas caras nunca mais. Mãe, você
precisa ver o quanto ele estava nojento!
– Eu sei, filha, mas ele é o seu marido. O que você vai fazer sem
ele?
– Estou pensando em voltar para o Brasil, procurar outra agência
ou trabalhar por conta própria e terminar meus estudos de uma vez.
– Pense bem, minha filha. Casamento é para vida toda.
– Não com um gay!
– Tudo bem, faça o que quiser, depois não diga que eu não avisei.
Realmente não havia mais volta, Grace estava decidida em se
separar e voltar para o Brasil. Ela sabia que sua decisão poderia
render várias notas na imprensa por um longo período, mas mesmo
assim era um risco que teria que correr.
Grace estava arrasada e desiludida, os sonhos de princesa feliz
caíam por terra. A única força canalizada era a vontade de voltar
para Felipe sem ao menos pensar duas vezes, parecia até que ela
estava esperando por isso, pois o desejo do amor somente
sinalizava para o ex-namorado.
Depois de ter sofrido muitas amarguras com o casamento, Grace
estava de volta ao Brasil, pisando no solo com esperanças
renovadas de encontrar o grande amor da sua vida. Respirar os ares
brasileiros era como sentir que a vida poderia ser novamente repleta
de sonhos de amor verdadeiro. Nunca mais ela se enganaria, o
coração era decisivo em afirmar que o sentimento eleva o espírito e
a mente. Saber que aquele mesmo céu também cobria a alma de
Felipe era como renascer com uma coragem infinita de ser feliz.
Porém não demorou muito para os repórteres se reunirem ao seu
redor buscando informações de todo tipo sobre o fim do casamento.
– Grace, quem pediu o divórcio primeiro? – perguntou um repórter
que se digladiava com o restante.
– Fui eu – respondeu Grace, curta e grossa.
– E por quê?
– Porque não nos amávamos mais
Apesar de ter passado boa parte da sua vida buscando o sucesso,
foi quando tudo aconteceu que ela percebeu que o próprio sucesso é
uma faca de dois gumes. De uma coisa ela tinha certeza, de que
seria muito difícil voltar para Felipe com todos vigiando seus passos.
Não restava mais nada a fazer do que ser antipática e responder
todo o assédio com respostas tradicionais:
– Enquanto durou foi bom? – indagou outro repórter.
– Claro!
– Você está voltando para o Brasil definitivamente? – inquiriu mais
outro repórter.
– Espero que sim.
– E o que você pretende fazer aqui no Brasil? – continuaram
insistindo enquanto ela se dirigia para o primeiro táxi à sua frente.
– Trabalhar e terminar meus estudos.
Quando ela entrou e se acomodou no táxi um repórter fez uma
pergunta mais ácida:
– O Carlos Vilas disse numa revista que você antes de ser modelo
era garota de programa. Isso confere?
– Olha, o Carlos está falando o que bem entender de mim, assim
como eu também posso falar o que bem entender dele. Um
casamento sempre acaba com mágoas para ambas as partes.
– Mas o que ele disse confere?
Foi o momento para o táxi partir e deixar a pergunta no ar: Grace
era ou não era garota de programa?
Era o que todos queriam saber, surgiram rumores e boatos de
todas as partes para degradar Grace. A imprensa não poupava
nenhum comentário sobre ela, alguma coisa parecia ruir em sua
carreira, ela não estava mais sendo vista com os olhos de carinho do
público. Provavelmente Carlos Vilas soltou a história de Grace para
os amigos que trabalhavam nos jornais e na TV, para ele foi tudo
muito fácil destruir a carreira dela. Para Grace parecia que o castelo
estava desmoronando em cima dela, o sonho parecia ter fim.
Algumas pessoas na rua chegaram até a maltratá-la com palavras
pesadas, parecia até que era o fim não tinha mais volta.
Realmente quando se faz as coisas seguindo o coração tudo
parece prever o pior, pois nada dá certo, o amor sempre foi contrário
à satisfação. Mesmo que todos agora dissessem à Grace que o amor
era a força motriz da felicidade ela não acreditaria. Por que largar
tudo a fim de voltar para sonhar do lado do homem de sua vida? Ela
não saberia responder, mas com certeza diria que às vezes no
cosmo duas pessoas foram feitas uma para a outra, para ela seria a
desculpa que ela mesma gostaria de ouvir de outra pessoa.
Todo sonho de felicidade que ela preparou quando pensou em se
divorciar e voltar para o Brasil estava ruindo, ela não conseguia mais
fechar contratos grandes, a dificuldade aumentava na mesma
proporção como na época era garota de programa. Apenas restava
em sua vida diária trabalhar em pequenos eventos e estudar na
faculdade de antes, determinada em buscar uma nova felicidade em
sua vida, uma felicidade que não dependesse de ninguém.
Grace estava na mesma cidade em que conhecera Felipe, mas
ainda não o encontrara, era uma situação terrível, pois largar a
concupiscência para acreditar no amor nem sempre acarretava um
bem querer. Às vezes ela não se sentia bem em dar o primeiro passo
para um reencontro, pois não queria voltar para ele com a saudade
estampada na cara. Havia uma certeza dentro dela de que se
procurasse ele primeiro, com certeza seria tudo como antes, ciúmes
exagerados e inseguranças passionais. Ela não queria voltar para
nascer novamente outras brigas, temia o que Felipe poderia pensar,
talvez algo do tipo como, agora que perdeu tudo volta para mim. Era
o orgulho novamente os impedindo de ser felizes. Para ela a
saudade teria que vir como uma brisa serena, uma vontade imensa
de amar para ambas as partes.
Os dias passaram e restava somente esperar Felipe, às vezes ela
procurava sair para talvez encontrá-lo nos lugares de costume, mas
era em vão, Felipe perdera o desejo pela noite. Ela se perguntava o
tempo todo: ‘‘o que aconteceu com ele?’’ Algo dentro dela conhecia
os segredos dele, ele ainda poderia gostar dela, não como antes, e
sim como planejava o destino. Ela não temia se o encontrasse por
acaso, temia apenas em voltar de braços abertos, demonstrando
toda a saudade, e era o que o coração ligado à alma desejava
loucamente fazer, mas a razão jactante freava toda essa loucura
extravagante.
Felipe e Grace viviam na mesma cidade, mas nem um e nem o
outro se arriscavam em voltar, pois Grace tinha medo e Felipe
também, medos compreensíveis, porque depois de tanto amor junto
alguém estaria com a razão enquanto o outro estaria errado.
Enquanto Grace sonhava em encontrar Felipe por acaso, esse
estava perdido procurando emprego. A vida não era mais como
antes de perder o emprego, ele acabou ficando mais sedentário com
a rotina mudada drasticamente, parecia até se derrotar cada vez
mais, pois tudo o que ele mais devotava acabara, trabalhar acima de
tudo era o mais importante.
Aquela situação tinha que mudar de qualquer jeito, resolveu então
a partir de uma segunda-feira, renovar as esperanças, ou seja,
continuar tentando até conseguir um trabalho.
Dessa vez Felipe acordou cedo e foi até a banca de jornais mais
próxima de sua residência. Chegou tranquilo, trocou algumas
palavras com o vendedor a fim de comprar o jornal de empregos, até
ver uma capa de revista em que estava estampado na manchete:
Grace Lenza se separou de Carlos Vilas e voltou a morar no Brasil.
Não teve jeito, a felicidade voltou num flash ao coração de Felipe.
Finalmente ele sentia a chance de poder consertar o que houve de
errado no passado dos dois, sentia a necessidade de mostrar para
Grace que ele realmente mudou, e que o amor que sentia por ela era
mais forte do que ela podia imaginar. Ele agora estava
amadurecendo seus botões, nenhuma paixão vibrante poderia ser
maior do que o amor de Grace. Ele a conhecia muito bem e algo lhe
dizia que ela voltou para o Brasil por causa dele. Logo o sentimento
era seguido de acasos imaginados, sendo que ele prometia a si
mesmo procurar Grace até ela aceitá-lo de volta. Parecia fácil na sua
percepção, pois ninguém conhecia melhor Grace do que ele, aquele
sinal na manchete despertava uma certeza concreta, a de que Grace
ainda continuava apaixonada. E isso era felicidade retumbante
dentro do peito depois de uma desilusão amarga. Agora, para ele, o
amor fazia sentido.
Repentinamente então ele resolveu comprar a revista em vez do
jornal de empregos. Afoito, no caminho de volta para a residência,
ele já folheava a revista procurando a notícia. Tudo maravilhava
como novidade em suas aspirações de reconquistar o amor de
Grace. Quando ele leu toda a matéria não acreditou, tudo parecia
perfeito, Grace voltou a estudar na mesma faculdade. Era perfeito
demais, ele começou até a visualizar novamente o retorno da sorte
amorosa em seu coração. Grace seria sua de qualquer jeito, não por
que ele sofreu uma desilusão trágica, e sim porque descobriu o
verdadeiro sentimento interior, um sentimento sempre condenado a
se alastrar na alma. Ele até pensou que não seria tudo aquilo por
acaso, pois o amor era moldado sob medida, não podia ser melhor,
Grace estava sozinha e somente isso bastava para entender que a
vida somente nasce quando sente que uma pessoa o ama acima de
todas as verdades mundanas. Pensando assim era mais fácil
acreditar num relacionamento. Se antes tudo era desprezível ao
coração, agora fazia parte da força vital pensar em Grace.
Quando ele relembrava sua estupidez com ela, surgia o
arrependimento, pois nunca uma mulher o amou tanto, com tanta
dedicação, com tanto respeito e carinho. Somente agora ele
compreendia que amar é apenas um parâmetro para tantos outros
sentimentos. Não se podia nunca confiar o coração a quem apenas o
enxergava numa terceira dimensão como a vizinha de janelas. Bom,
para ele não era nem um pouco agradável lembrar de Luíza, mas de
uma coisa estava certo, de que Grace o conhecia bem mais do que
ele imaginava, ela o observava amando, bem além de uma quarta
dimensão, numa dimensão em que o infinito não era futuro mas sim
presente.
Quando voltou para o lar com a revista nas mãos ele aspirou sua
real vontade de se aproximar de Grace. A saudade já estava
machucando há bastante tempo e ele somente tinha uma escolha,
tentar ser feliz ao lado da mulher que sempre o amou de verdade.
“Não vou bater de porta em porta atrás de um emprego, eu vou
aonde a vida me sorri. Grace tem que voltar a ser minha de qualquer
jeito!”, pensou ele.
Como num passe de mágica pegou uma toalha que já enxugara
Grace e foi para o banheiro cantarolando de alegria. Ligou o chuveiro
e sem pensar nos problemas corriqueiros continuou cantando
canções sobre brigas do passado. Parecia até que não fazia mais
parte de sua vida a tristeza, pois agora havia algo para se preocupar,
nada como amar alguém que você sabe que lhe ama muito.
Enquanto se ensaboava da cabeça aos pés, prontamente para ficar
cheiroso, pois poderia haver qualquer acaso de encontrá-la, Felipe
pensava em nunca mais desistir de Grace. Ele sabia que ela poderia
ter mudado alguns comportamentos, mas também sabia que aquele
resquício de saudade no peito poderia motivar algum sonho
esquecido dela.
Logo ele desligou o chuveiro e saiu do banho se enxugando com a
toalha. Ao lembrar que aquela toalha também enxugou o corpo dela
ele sentiu um tesão frenético, as lembranças dela eram envolventes,
saber que ela estava mais linda agora era como tentar inutilmente
despistar que um dia ela foi toda sua. Parecia até que aquela pausa
de amor entre os dois tinha mesmo que acontecer para cada um
amadurecer da sua forma. Mas e se Grace não estivesse pensando
o mesmo que ele? O que poderia acontecer? Não, Felipe não queria
ficar pensando nessa possibilidade, era melhor se apresentar bem,
pois um reencontro sempre emociona antigos casais, por isso era
melhor fazer a barba recrescida, talvez um rosto jovial pudesse ainda
manter a chama acesa de um ano atrás. Sem qualquer preconceito,
era nisso que Felipe se apoiava, pois estar longe há um ano poderia
não ser tão ruim assim.
Sempre cantarolando, Felipe fez a barba até não se ver um único
fio apenas na face, depois se olhou, olhou e se olhou no espelho,
pensou: “sim, Grace vai ser minha novamente”.
Cada ação para se mostrar bonito era feita com esmero, antes de
escovar os dentes ainda passou uma loção pós-barba. Em seguida,
saiu do banheiro para o quarto, na cama já estava estendida um de
seus melhores conjuntos de roupa, uma calça e uma camisa social.
Tudo tinha que parecer do bom e do melhor, pois Grace conheceu
um mundo completamente comprometido com a elegância. Ainda nu,
ele se banhou de colônia caríssima que ele fazia questão de usar
somente em ocasiões especiais, ao menos uma coisa sabia sobre
moda, de que um homem perfumado sempre sai na frente na
conquista.
Qualquer um poderia recriminar Felipe por parecer um completo
idiota em busca de uma felicidade que ninguém acredita, mas agora
ele parecia entender o que Grace dizia, de que a vida está dentro de
cada um. Ele não tinha certeza de que foi Grace a autora, mas vindo
de Felipe naquele momento tudo era aceitável, estava tentando
agredir seu lado estúpido para renovar os melhores tempos que
tivera com Grace. Até parecia que ele estava se esforçando mesmo,
pois pela primeira vez buscava Grace, para ele, dessa vez, tudo
seria diferente, não queria cometer os mesmos enganos de antes. O
amor, na cabeça e no coração, tem que ser somente um!
Vestiu a roupa se vendo num espelho grande que havia atrás da
porta do armário. A aparência parecia bem disposta para a vida, bem
diferente dos dias de amargura, para um homem como Felipe, a
tristeza não continua por muito tempo, claro que as cicatrizes
marcam, mas viver o momento é sempre o mais importante.
Quando já estava pronto ele ainda deu uma última olhadela para o
espelho, poderia ser um sinal de vaidade, mas Felipe estava
renascendo de uma desilusão, ele tinha que empurrar todas as
pedras que restavam em seu caminho. Demorou um tempo até ele
não esquecer de todos os documentos que precisava, afinal, em seu
pensamento ele queria trabalhar num lugar em que poderia encontrar
Grace todos os dias. Que lugar era esse? Sem esquecer de nada ele
partiu, rumando para a faculdade de Grace, com uma certeza de que
o amor dela renasceria se ao menos ela o visse uma única vez.
Chegou próximo ao ponto no mesmo instante que o ônibus estava
aparecendo. Sem perder tempo ele acenou, o veículo foi parando e
ele entrou, tão apressado que nem esperou o veículo parar
totalmente. Ao entrar cumprimentou o motorista e notou que o
veículo estava vazio, parecia que os caminhos que levavam à Grace
eram caminhos certos para a reflexão, para pensamentos, para
relembrar de tantos momentos lindos juntos.
Ele não perdeu tempo, precisava daquela introspecção, pagou o
cobrador e sentou num lugar bem ao fundo, do lado da janela. Ver
todas as imagens da cidade passando era como ver uma história
entre os dois, uma história que tinha que terminar com final feliz.
Enquanto o veículo de passageiros viajava até o campus
universitário Felipe foi relembrando memórias entre ele e Grace.
Pensamento de Felipe:

Somente Grace me fez ser feliz. Eu nunca poderia imaginar que


algum dia uma doce moça travestida da prostituição pudesse
amansar meu coração pesado. Meu coração que nunca acreditou
que houvesse diferença entre uma prostituta e outra. A diferença é,
que, Luíza, fascinava meus olhos, enquanto Grace fascinava meu
coração. Eu não sabia, mas Grace fazia parte do meu coração.
Como pude perder uma mulher que me tratava como um eterno
amante dos seus sonhos! Eu a amava perdidamente sem saber.
Durante esses anos de derramar lágrimas ela foi a única que me deu
valor. Eu tive que conhecer o fogo do inferno para compreender a
verdade de uma mulher. Eu sei que as coisas que eu disse não têm
desculpas, mas o que fazer agora se eu a estou amando
verdadeiramente? Como eu poderia saber que o meu coração viraria
do avesso, a gente nunca pode entender quais são as reais vontades
da alma. Eu tinha que saber que amar Grace não é como sentir
vaidades ao lado dela, amar Grace é como cultivar uma planta frágil,
não se deve esquecer nunca de regar para um dia saber que a
beleza nasce com as raízes e não com as pétalas.
Se Grace pudesse me ouvir agora eu diria que esqueci a parte
turbulenta do nosso sentimento e que me lembrei do quanto a
saudade decanta as lembranças felizes do nosso grande amor. Não
adianta mesmo eu ficar negando por causa de um orgulho tolo que
ela faz parte do caminho que Deus traçou para mim. Demorou muito
tempo para descobrir que além das janelas há o céu e acima do céu
existe somente uma mulher que me ama de verdade.

Finalmente o ônibus chegou ao ponto final, no campus


universitário onde Grace estudava, Felipe desceu e respirou bem
fundo aquele ar resfriado da manhã, longe do centro urbano. Havia
nos pensamentos uma ansiedade desesperadora de encontrá-la,
mas depois que pensou melhor decidiu caminhar até o setor de
recursos humanos da faculdade. Enquanto se dirigia ao prédio de
recursos humanos ele avistava as várias moças, entre elas ele
procurava o rosto de Grace, uma mistura de saudade e ansiedade
pulsava no coração. Cada moça mais linda que a outra, mas seus
olhos descrentes apenas sonhavam Grace. Não demorou muito até
ele chegar no prédio, em nenhum momento encontrou ela pelo
caminho, mas ao menos encontrou o mural de empregos. Para ele
era alguma forma de unir o útil ao agradável, ele precisava
desesperadamente de trabalho, e nada melhor do que trabalhar num
lugar onde pudesse ver Grace todos os dias, o amor tinha dessas
coisas, alguém sempre faz de tudo para viver um sonho impossível,
era o que sentia, ter Grace de volta parecia ser um sonho impossível,
simplesmente porque Grace talvez não fosse a mesma mulher, na
realidade seu íntimo temia que ela não aceitasse seu amor de volta.
Mas enfim, ele estava lutando por bem querer, ficou alguns
instantes lendo no mural as várias propostas de emprego na
faculdade, até finalmente encontrar, parecia que as esperanças
realmente existiam dentro de um coração apaixonado, era uma
proposta para trabalhar na segurança do estacionamento da
universidade, nada poderia ser melhor, logo pensou que poderia vê-
la entrando e saindo todos os dias. Às vezes pensava em esquecer
tudo aquilo, pois tudo poderia parecer uma grande bobagem, afinal,
Grace agora era outra mulher, uma mulher desejada por muitos
homens, desde os mais bonitos aos mais ricos. Seria besteira?
Talvez, mas por que não tentar, afinal, o namoro dos dois foi bastante
intenso e repleto de desejo, algum tipo de carinho restaria depois de
tudo, talvez isso ao menos.
Decidido ele adentrou o prédio para conseguir a vaga de
segurança:
– Estou aqui por causa dessa vaga – disse ele para a diretora de
recursos humanos.
– E você tem alguma experiência na área? – perguntou a diretora.
– Não, mas posso lhe garantir muito empenho e profissionalismo.
Eu tenho bons antecedentes, com certeza não se arrependerá.
– Pode parecer fácil, mas é um trabalho de risco.
– Eu não me importo, eu preciso dessa vaga, venho procurando
emprego há algum tempo na minha área, mas o mercado está
bastante saturado. Eu preciso desse trabalho de qualquer forma.
– Até que você se encaixa no perfil, além de forte parece ser edu-
cado... tudo bem, talvez você possa trabalhar conosco.
Os dois ficaram algum tempo a mais conversando, acertando
detalhes do tipo, horários, salário, vestuário, férias, tudo que pudesse
realmente efetivar Felipe no cargo.
Ao fim da conversa a diretora finalizou com um aperto de mãos.
– Quanto antes melhor. Você começa amanhã mesmo... – disse
ela, sorrindo.
Quem sorriu mais foi Felipe que foi para casa com um largo sorriso
no rosto.
“Grace, nosso namoro não acabou, está somente começando”,
pensou ele, feliz.
Tudo finalmente estava dando certo, acertar o amor parecia ser
realmente um caminho de luz e felicidade. Felipe não via a hora de
reencontrar Grace, do passado somente sobrevinha os instantes de
contentamento, os vários instantes em que Grace dedicava um amor
terno e carinhoso. Queria reviver tudo, por isso ele estava ali
tentando encontrar a melhor forma de acabar com aquela saudade
imensa dela. Ele tinha que ao menos buscar a chance de salvar um
amor perdido... a vizinha tinha se transformado em poeira de
desilusões em seu coração, era totalmente o oposto do que sonhava,
mas como sempre restava e ressoava o amor de Grace, dessa vez
tudo seria diferente, Grace era a virada do coração... ele tinha que ao
menos buscar a chance de salvar um amor perdido.
Capítulo 10
O dia novamente tilintava seus primeiros raios de sol anunciando a
alvorada, todos saíam de casa para ganhar o dia, uns ainda mais
esperançosos do que outros, era o caso de Felipe que já estava
trabalhando no novo emprego. Sua função era tão somente vigiar os
veículos dos estudantes, funcionários e professores. Podia até
parecer fácil, mas exigia-se uma atenção esmerada, pois o
estacionamento era gigantesco. Pelo seu jeito franco Felipe foi
facilmente conquistando logo no primeiro dia a amizade dos seus
colegas de trabalho.
Enquanto vários veículos chegavam, ele se compenetrava em ver
Grace, a ansiedade matizada de saudade era a sensação mais
próxima de amor que podia sentir. Ele sabia que mais dias ou menos
dias ele a encontraria, restava saber qual seria a reação dela.
Felipe estava preparado para tudo, pensava consigo mesmo que
não desistiria dela tão fácil assim, julgava que ao menos algumas
recordações boas ela poderia ter. Ele queria mostrar para ela que
mudou, estava até acompanhado de um livro, estava agora
pensando melhor no futuro, em chances para alçar um voo como ela.
Estava certo que o coração se purificou, não era mais um homem
tolo cheio de estupidez nas atitudes. Antes de encontrá-la ele até
ensaiava alguns gestos de gentileza, talvez assim seria a melhor
chance de reconquistá-la.
Aquela manhã estava repleta do cheiro dos vernais na entrada que
dava acesso à universidade. E Grace estava no seu luxuoso
automóvel rumo aos diários estudos, estava se formando em Direito.
Seria difícil Grace, na posição em que estava, ainda gostar de
Felipe? Talvez não, como ele, ela também mantinha os pensamentos
marcados com o passado, ela ainda sonhava com uma confusão de
acasos que pudesse trazê-lo de volta. Na verdade, no íntimo, ela o
amava mais que tudo, o coração estava doente de saudade,
qualquer casal que ela avistava era uma desculpa para entristecer, o
amor parecia ser uma felicidade vivida somente pelos outros. Por
que sempre a vontade de amar a pessoa que mais se deseja nunca
é um fato é sempre um sonho? Era esse tipo de pensamento que
vagava em sua consciência. Às vezes ela até arriscava sair com
outros homens, mas qualquer músculo masculino que via trazia
lembranças apaixonantes de Felipe.
O automóvel de Grace foi se aproximando do estacionamento,
nada em sua cabeça poderia arriscar que Felipe estivesse
trabalhando por ali. Quando o veículo entrou no estacionamento ela
diminuiu a velocidade, repentinamente, de longe ela avistou alguém
com a fisionomia parecida com a de Felipe, preferiu então se
aproximar, lentamente o veículo se dirigia ao encontro daquela
pessoa. Mas não era qualquer pessoa parecida, era realmente
Felipe, seu coração parecia querer sair pela boca, era realmente o
grande amor da sua vida, a razão queria buscar explicações, porém
o coração cantava a sorte grande de poder ensaiar o amor. Ela fixou
os olhos sobre ele, mesmo separados pela vista do vidro do carro ele
também devolveu o olhar. Era mais cedo do que ele imaginava,
Grace estava à sua frente e mais linda do que nunca. Felipe ao
primeiro instante não sabia o que fazer, a beleza radiante dela
intimidava qualquer vontade de aproximação. Foi então, por uma
espécie de instinto, que Felipe, tentando mostrar sua mudança,
naquele ímpeto de impressionar, começou a sinalizar para Grace a
fim de facilitar o estacionamento do veículo dela.
Enquanto ele sinalizava com a mão para ela estacionar, Grace
esquecia de fazer as manobras, estava com todas as suas atenções
presas no visual do ex-namorado, ela não acreditava que aquele
segurança tão trajado num terno alinhado poderia ser Felipe. Mas
era, e demonstrando um cuidado todo especial que acabava em
suspiros por parte de Grace, não podia ser, mas era. Seu grande
amor estava tão bonito que ela nem lembrava mais que era uma
modelo top, parecia que seu ex continuava fazendo sombra sobre
suas vaidades.
– Pode chegar mais – gritou ele, ajudando Grace a estacionar o
veículo. – Mais... mais... mais... aí, está bom!
Grace estava muito nervosa, não sabia como tratá-lo ou se
conversava com ele como se nada tivesse acontecido, qualquer
coisa poderia acontecer se ele se aproximasse.
Quando ela já ia saindo do carro Felipe chegou mais perto:
– Não se lembra mais de mim? – perguntou ele.
– Claro! O que está fazendo aqui? Depois de todo esse tempo
você ainda quer me vigiar? – disse Grace, tentando se desvencilhar
dele, ela não sabia por que estava agindo assim, talvez fosse um
nervosismo de súbito.
– Calma, Grace! Eu mudei bastante durante todo esse tempo,
gostaria que você soubesse disso. Foi talvez por causa da perda do
meu emprego, eu passei por maus bocados, que me fizeram
amadurecer melhor as ideias.
– Tem certeza que foi somente isso? – continuou, séria, Grace.
– Não! – respondeu ele ao segurá-la levemente pelo braço com o
intuito dela olhar fixamente em seus olhos. – Acho que você também
fez parte desse meu amadurecimento.
– Talvez você tenha mudado realmente, pois está até com um livro
nas mãos! – brincou ela.
– Ah, isso!? Eu estou estudando para tentar fazer um curso
superior. Você sabe, a área em que eu trabalhava está muito
saturada, encontrei dificuldades para me recolocar no mercado, por
isso estou trabalhando aqui.
– É só por isso mesmo?
– Não. Claro que a vontade maior foi de revê-la. Eu queria que
você me desculpasse por tudo que eu fiz você passar.
Nesse instante, os dois ficaram se olhando, nitidamente
apaixonados, pela primeira vez Grace ouvia dele o que quase
sempre esperou.
Até que:
– Você acha que tudo é tão simples assim? Você acha que é só
pedir desculpas? Você não sabe o quanto eu sofri durante esse
tempo! Não faz ideia de nada! Agora me procura com esse papo
furado de que mudou, eu não sou nenhuma tola para acreditar nisso,
ouviu bem? – irritou-se Grace.
– Grace, tente me entender, eu sei que às vezes me comportei
como um idiota.
– Às vezes!?
– Tudo bem, mas eu não sabia que você me amava, coloque-se no
meu lugar, para mim você não passava de uma garota de programa.
– E agora que não sou mais, você vem correndo atrás de mim!?
– Tente ponderar as coisas. Tudo pode ser melhor a partir de
agora que passamos por um tempo sem ver um ao outro.
– Sinto, Lipe, mas eu não acredito.
Ela virou o rosto e partiu para a aula, não havia mais um motivo
para viver a sua verdadeira vontade. Então caminhou decidida se
afastando continuamente de Felipe.
– Espere, Grace! – gritou Felipe, enquanto Grace caminhava de
costas. – Eu sei de uma coisa que você não sabe... a data do dia do
nosso primeiro beijo. Não é o beijo que apaixona?
Ela continuou caminhando decidida.
– Nem com isso você se importa mais – continuou gritando Felipe.
– Tudo bem... mas eu digo mesmo assim... para provar que eu
sempre a amei durante todo esse tempo... foi no dia dois de fevereiro
de dois mil e dois... mas você não quer mais saber disso, não é
mesmo?
Foi o momento certo para ela sumir de sua vista, na verdade
parecia que ela não estava sumindo somente de sua vista, mas de
sua vida, parecia certeza que ela não o amava mais, talvez pudesse
ser o novo mundo em que ela vivia, o glamour, os sonhos, a glória, o
status, muita coisa mudou na cabeça dela, ele estava certo, foi tudo
isso que fez separar Grace dele. Talvez não existisse mais amor
entre os dois, verdadeiramente, ele foi descobrir, somente naquela
hora, que o amor somente tem sentido quando você o perde de uma
vez por todas.
Não havia mais motivos para ele bancar aquele papel ridículo de
segurança, ela disse claramente que não queria mais nada com ele.
O jeito agora era aceitar aquela estúpida decisão de separar duas
pessoas que se amavam muito.
E foi o que ele fez, colocou o paletó sobre o ombro e partiu,
desistindo do trabalho, de Grace e da felicidade, sua consciência
repetia frequentemente a única sabedoria que aprendeu até ali:
“viver sem Grace não tem felicidade”.
No momento em que caminhava para ir embora passou na frente
de um colega de trabalho.
– Aonde você vai? – perguntou o colega.
– Vou embora! – respondeu Felipe, tranquilo.
– Ficou louco, logo no primeiro dia de trabalho! Você vai perder o
emprego.
– Não importa. Não existe mais razão nenhuma para eu estar aqui.
Eu vou daqui direto para o interior, lá eu encontrarei a paz que
necessito. Eu sei que quase sempre fui um idiota, mas a culpa é toda
de quem inventou o amor. Quando o amor aparece, aparece com o
pacote completo, insegurança, ciúme e possessão. Gostaria apenas
que ela me perdoasse por tudo, eu não sabia que amava mais ela do
que eu mesmo – disse Felipe, em alta voz para o colega.
– Está certo, companheiro – sorriu o colega.
Enquanto Felipe voltava para casa, Grace estava numa aula
chatíssima em que somente o professor discursava, nisso os
pensamentos vagaram distantes.
Pensamento de Grace:

Meu Deus, o que eu fiz? Tadinho, ele realmente sabia o dia do


nosso primeiro beijo. Como eu pude ser tão estúpida assim! Esse é o
homem da minha vida!
Não, talvez não. Ele teve o que merecia, nunca deu o real valor ao
nosso amor, nunca deu valor a mim, na verdade eu sempre fui uma
parte desprezível de seus sonhos. O que eu sempre esperei dele
não era gentileza, cuidado, tampouco atenção, o que eu sempre
esperei dele foi um pouco de consideração. Se fosse para
começarmos desde agora, era para começar com ele dizendo,
simplesmente, a amo porque sempre amei. Não precisava dizer mais
nada, porque eu sempre fui dele, desde o momento daquele beijo.
De uma coisa eu aprendi nos tempos de programa, o amor somente
nasce depois de um beijo, pois quando um homem consegue um
beijo de uma mulher na verdade ele conquistou essa mulher pelo
resto da vida dele. Mas não é assim que Felipe age, ele precisa dizer
primeiro que mudou, eu não quero que ele mude, eu quero que ele
me ame, dizendo a verdadeira vontade do coração.
Eu posso ficar aqui listando uma dezena de defeitos dele que ele
nunca mudará, mas seu defeito maior foi me conquistar, seu defeito
foi deixar eu me apaixonar por ele.
Felipe, eu o quero de qualquer jeito, eu preciso de você, você é a
minha sorte no amor!
Ela não conteve o orgulho por tanto tempo, sem mais nem menos
ela decidiu sair da sala para procurá-lo. Saiu como uma louca
correndo, tirou até os tamancos para correr melhor. Quando chegou
no estacionamento ficou gritando desesperadamente atrás dele:
– Lipe! Lipe! Lipe! Onde está você? Eu ainda o amo!
– Calma, senhorita! O que aconteceu? – perguntou aquele colega
segurança.
– Eu quero falar com o Felipe! – disse ela, com uma força de vida
sem fim.
– Calma, senhorita! Ele foi para casa...
– Faz muito tempo?
– Há uma hora.
Ela não titubeou e correu para o veículo.
– Senhorita Grace, se a senhorita deseja encontrá-lo, corre,
porque ele disse que já estava de mudança feita para o interior –
gritou o segurança, desejando boa sorte para ela.
E foi o que ela fez, entrou no carro tão rápido que nem pensou nas
difíceis manobras que tinha de fazer. Nem parecia ela dirigindo, o
veículo saiu tão rápido da vaga que o segurança nem acreditou ao
ver, pois já estava acostumado às outras vezes em que ela tirava o
carro.
E o automóvel voou, atingindo uma velocidade em que ela nunca
chegou antes, parecia querer atravessar a cidade no meio.
O cheiro dos vernais da estrada tinha a mesma sensação daquela
contínua saudade que tinha que acabar de uma vez. Foi quando
Grace chorou, ela não queria perder a chance de dizer o que o
coração ensinava.
Enquanto isso, Felipe queixava por não ter conseguido convencer
Grace de seu amor, restava apenas encaixotar todos os pertences
para um dia voltar e levar tudo de uma vez, ele estava decidido a
morar no interior, seria melhor para ele e para sua mãe doente. E
não adiantava mais resmungar, tudo estava feito, o amor temia em
fugir do coração, a saudade parecia intacta na alma e a felicidade
dentro de um único sonho na percepção, esse sonho agora era
irrealizável, o sonho de amar para sempre Grace não tinha mais
início, somente o fim era a saída comum do que antes nunca deveria
ter existido, essa era uma convicção de sua consciência.
Quando Felipe já estava com a mala em punho ouviu alguns
ruídos sobre as escadas, parecia ser alguém com pressa, não
demorou muito para ele estranhar e abrir a porta para ver quem era.
Ao abrir, o sentimento somente tinha uma escolha, uma torcida da
alma de querer somente uma pessoa, uma história de Cinderela às
avessas, em que a princesa procura o príncipe, sim, era Grace, com
uma áurea de apaixonada que ele nunca vira antes.
Quando ela se aproximou dele, ele ainda esboçou dizer algumas
palavras:
– Não, não diga nada, Lipe! – disse Grace, tocando o rosto dele. –
Esqueça o que eu disse... eu acho que estava acostumada a correr
para os seus braços... quando você me procurou eu pensei que
fosse outra pes-soa... não quero que você mude em nada... eu quero
o mesmo Lipe de sempre... você estava certo, era eu quem tinha que
mudar... mudar para convencê-lo que fui feita para você.
Num ímpeto repentino os dois se beijaram.
Somente assim Felipe compreendeu que quando uma mulher
ama, ela ama de verdade.
Os dois se beijaram apaixonadamente à frente da janela, quando
repentinamente, a tal vizinha Luíza avistou-os, pareciam felizes, tudo
aquilo subia no corpo com um ímpeto furioso de ciúmes nela. Felipe
percebeu que ela avistava o beijo apaixonado dele e Grace, por isso
começou a beijar de uma forma fulminante para praticar o ciúme
exasperador em Luíza, ora fechava os olhos num beijo apaixonado
ora olhava de soslaio para Luíza como quem diz que encontrou a
felicidade no amor. Sem perder tempo ela saiu da janela, foi buscar
algo...
Felipe e Grace se desejavam muito, bem à frente da janela que
antes era cúmplice de uma paixão.
Dessa vez, Luíza não parecia nem um pouco carinhosa à frente da
janela. Ela estava com um revólver apontado na direção do casal, foi
quando gritou:
– Miséria adora companhia!
Apenas ouviram-se dois disparos.
O sentimento nunca pôde ser controlado por qualquer pessoa,
algumas vezes ama-se muito uma pessoa pensando que talvez ela
não esteja correspondendo, mas por uma obra do acaso, talvez ela
esteja lhe amando de uma forma inexplicável através das leis que
regem o sentimento universal, de uma forma que você nunca
entenderia, como alguém que precisa passar sobre você como um
trem desgovernado por tanto desejá-lo.
E você nem imaginava que ela lhe amava...
A mesma janela que antes fazia parte da cena de um platonismo
agora fazia parte de uma cena de ciúmes e rusgas de paixão. Ele
realmente sentia algo profundamente amoroso por Luíza, mas nunca
poderia saber que era espantosamente correspondido de uma forma
passional e doentia. A pior coisa para Luíza foi ver as janelas que
antes eram a cena de um amor sublime, agora eram um espetáculo
de seu ciúme ao ver Felipe enamorado com outra nessa mesma
janela. Aquilo era o que de pior poderia acontecer.
Nada pôde justificar aquele homicídio, mas uma sociedade
ciumenta é uma sociedade que vive no limite. Foi apenas o ciúme,
algo que muitos dizem favorecer o romance, quase sempre é um
sentimento destruidor. Às vezes cada um possui seu conceito próprio
sobre o ciúme, sendo quase sempre um sentimento duplo e adverso,
se às vezes é tido como um bem por poder favorecer a relação,
fortalecer a paixão e o compromisso, noutras vezes pode se tornar
um sentimento perigoso.
O ciúme pode ser classificado como um sentimento de alteridade,
destinado ao alter e não para si mesmo. É como amar o outro pelo
outro e para o outro. Curiosamente o ciúme vem do latim zelumem e
do grego zelus, que etimologicamente é considerado como zelo. Esta
confusão de palavra obriga muita gente, principalmente os de origem
latina, a apresentar um certo cuidado deste desagradável
sentimento, chegando, mesmo, a percebê-lo como uma prova de
amor. Mas, na maioria das vezes, é um sentimento egocêntrico, que
pode estar associado à terrível sensação de ser excluído de uma
relação. Apesar de o ciúme aparentar ser uma tentativa inconsciente
de preservar e guarnecer o amor, ele frequentemente realiza
sentimentos extremamente perigosos, como a raiva, a vergonha, o
medo, a ira, a humilhação, a ansiedade, a tristeza, o ódio, a
decepção, explosões emocionais e até reações violentas. Uma das
certezas da psiquiatria é que essa ciência não duvida do ciúme, um
sentimento que atrai polos opostos como amor e ódio.
Dentre os vários tipos de ciúmes, o ciúme patológico, também
conhecido como Síndrome de Otelo, pode levar o indivíduo a
cometer atos de extrema agressividade física, sendo alguns casos
que recheiam as crônicas policiais de suicídios e homicídios
passionais. Assim, pode-se comparar esse paciente com um vulcão
emocional, que está ao ponto de entrar em erupção. Foi constatado
que na maioria dos casos de suicídio cometidos após um homicídio
são devidos a ciúme patológico.
Depois de Luíza ter feito o que fez, não demorou muito para ela
apontar o revólver para a própria cabeça, o fim de tudo parecia certo,
o amor deu lugar para um desamor incontrolável, a paixão cegava
qualquer atitude que a fizesse desistir. Sua consciência lhe dizia para
fazer tudo isso por amor, a palavra que move a força da vida, movia
naquele momento a força da morte. E foi o que Luíza fez, disparou a
bala contra a própria cabeça. Toda aquela ebulição de sentimentos
terminou no vazio do nada, pois quando não se tem o amor fica mais
fácil destruir tudo e a todos.
A partir do amor nasce um ciúme, desse ciúme nasce um ódio, um
ódio imperativo que necessita do amor de volta, um sentimento que
dificilmente será sublime como era antes.
Ódio e amor, sentimentos tão contrários que juntos, podem matar
de ódio e morrer de amor.
Na filosofia podem-se encontrar várias elucidações sobre aquilo
que toda pessoa já sentiu ao menos uma vez. Porém o intrigante
sobre o ciúme e a moral dos homens, que classificam essa moral
como a necessidade de sempre proteger o bem ou o amor conjunto
da sociedade, não sabem distinguir a possibilidade de o amor
imperar como um déspota sobre o bem. Toda moral de uma
sociedade é transferida para suas leis, por exemplo, nossa moral não
aceita o ato de matar, portanto, matar é um crime. Mas o ato de fazer
ciúmes em alguém, em nossa moral, também não é muito bem
aceito, e mesmo assim não é caracterizado como crime, mesmo
derrubando sobre o ciumento um agregado de sentimentos que
arquitetam a destruição. Portanto o ciúme será sempre a causa
enquanto a morte o efeito.
Foram esses sentimentos agregados que induziram Luiza à morte
diádica. Esse tipo de morte é totalmente influenciado pelo desejo de
morrer, e para haver essa vontade recorre-se a uma motivação para
o evento, ou seja: o homicídio. Toda essa pulsão nasce devido a
perda do domínio sobre o objeto amado, e para manter esse domínio
tira-se a possibilidade do outro viver sem o domínio, ou seja, mata-
se, garantindo seu pleno domínio, portanto, somente depois comete-
se o suicídio motivado pelo homicídio, deixando uma falsa ideia para
os mais próximos de uma vitória.
Realmente dentro das relações pessoais, principalmente no
coração, ninguém aceita uma derrota, talvez motivada pela tensão
das pessoas em vislumbrar uma fantasia de amor sem fim, a
principal característica de um amor infinito requer, durante esse
infinito, uma manutenção, que quase sempre é impossível, pois as
relações amorosas não são feitas de amor, e sim de ciúmes.
Para alguns, o sentimento torna-se insuportável, o fim de um amor
sem fim...
A noite perdia uma estrela, que se apagou, não brilhou mais,
destinos que não se encontrarão mais. Os destinos e as retas se
tocam apenas no desenho cônico, uma pena se o desenho fosse a
vontade interior da realidade. As estrelas brilham em cada ponto,
tentando traçar uma reta quase infinita até às nossas íris. Sim,
aquela estrela brilhou, alguém desdenhou a alma de quem viajava
lívido por essa reta, tentando abraçar o corpo do universo que
sempre foi do mesmo tamanho, nem pequeno, nem grande, e muito
menos infinito quando a alma está presa à raiz do revés. A estrela
ficou tanto tempo brilhando intensamente o luzir, como um farol
esperando os sonhos de todos aqueles que sobrevivem. Nessa
estrela luzia a vida, luzia lívida muito mais vida ainda. Agora sobra
espaço no universo, tão senhor do tempo, pois o espaço é dono vil
do tempo.
Desmaia estrela! Sem seu brilho... sem outro amor, pois se o amor
acabar na Terra, ainda haverá esperança em outra estrela que vaga
distante dentro do sentido regente da vida, do sentido criador da
existência, do sentido extravagante de ser vivo.
Sim... a estrela existia para alguém, mas estava apagando naquele
crepúsculo vespertino, falecendo na mesma noite.
Eles sonhavam através da janela, parecia até que o amor somente
pertenceria a eles, nenhum procurava além dessas janelas nocivas a
estrela que de outro espaço esperava aflita a sorte de ter somente
uma pequena atenção de segundos, que para ela eram a
ressurreição de um sonho, que como eles, também perdeu.
Sim, todos se foram sem o coração da alma. Mesmo o sol
anunciando a alvorada do dia anterior, anunciando no poente que
voltará, o mesmo sol que dedicava o seu brilho terno aos corações
aflitos, demonstrando que mesmo ele estando sempre no mesmo
lugar, brilhando por brilhar, há como sentir que o paraíso está no
coração. Pois perto dele será um inferno, longe dele será o céu, o
paraíso. O sol que de perto mata, de longe dá a vida, a energia
essencial da vida.
Eram pouquíssimos sentimentos da natureza que alguém na
janela não soube despertar para si. Se alguém lhe machuca de
perto, essencialmente, ele lhe aponta o paraíso. O amor talvez surge
para as pessoas num sopro tão harmônico quanto a harmonia
natural do céu.
Nunca se pode perder a vontade do instinto da vida, o sentimento
de luzir os caminhos para sentir o que o coração tem, o que o
coração não tem, o que o coração deseja, o que o coração não
deseja. Despertar o coração da alma é como despertar numa manhã
cinzenta, sabendo que a alma quer sentir novamente aquela
importante chance de ver alguém se aproximando com o sol, mas se
o sol desaparece na noite junto com esse alguém, ainda existirá
outro alguém, mesmo que distante nas estrelas. Talvez esse alguém
seja tão importante quanto, pois mesmo a estrela estando distante,
ela ainda brilha, podendo ser um sol tão intenso que brilha somente
para você.
Uma outra estrela ainda existe, podendo ser um outro sol, outro
majestoso general da vida, iluminando a morte, iluminando a vida,
iluminando a escuridão... Iluminando os corações da alma.
Um outro sol que ilumina até o fim de um amor sem fim...
INFORMAÇÕES SOBRE NOSSAS PUBLICAÇÕES
E ÚLTIMOS LANÇAMENTOS

www.editorapandorga.com.br
Sumário
Prefácio

1.Capítulo 1

2. Capítulo 2

3. Capítulo 3

4. Capítulo 4

5. Capítulo 5

6. Capítulo 6

7. Capítulo 7

8. Capítulo 8

9. Capítulo 9

10. Capítulo 10

Você também pode gostar