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Michel CassÉ

Astrofísico do Comissariado Europeu para a Energia Atômica e pesquisador


no Instituto de Astrofísica de Paris, é autor de obras famosas, entre elas
Du vide et de la création.

Edgar Morin
Diretor emérito de pesquisas no CNRS (centro francês de pesquisas científicas),
pensador e homem de convicções, é autor, entre outras, de O Método, obra
essencial para o debate contemporâneo.

Filhos do céu
ENTRE VAZIO, LUZ, MATÉRIA
Odile Jacob, 2003

Tradução
Antonio Romane
Bóris Marin

Um é filósofo internacionalmente reconhecido, em busca de


revoluções no conhecimento. O outro, renomado astrofísico na
pesquisa de ponta das primeiras manhãs do mundo. Juntos,
eles nos levam aos confins do universo e do homem.
O que é universo? No que é que ele é nosso, não apenas
porque nele moramos, mas porque nos produziu? Partindo
para a redescoberta da cosmologia, num exercício perturbador
em que a circulação das culturas e dos saberes só tem igual
no rigor científico do diálogo, Michel Cassé e Edgar Morin
volta e meia lembram os mitos antigos, os poetas, os filósofos
e, claro, os sábios, para falar das revoluções da física
moderna sobre o vazio, a matéria e o tempo.
Exemplo de encontro verdadeiro e íntimo entre ciência e
filosofia, este livro de jovial saber, sempre profundo e jubiloso,
nos restitui a condição de filhos do céu.
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PREFÁCIO

Desde a Antiguidade, as sociedades humanas elaboraram concepções sobre


o universo no seio do qual cada uma se inscrevia. Estas sociedades modelaram
sua organização sobre a ordem cósmica: seus calendários se estabeleceram sobre
os ciclos solar e lunar; os solstícios suscitaram grandes festas de regeneração
comunitária. Os mitos e as religiões transfiguraram estrelas e planetas em deuses
e deusas. O Sol e a Lua foram encarnados e personificados em figuras divinas,
Ísis, Istar, Astartê, Selene, Febo, Apolo – e os humanos nunca deixaram de pedir
ajuda e proteção a suas divindades celestes. Algumas sociedades sentiram uma
solidarização tão mútua com o cosmo que praticaram grandes ritos para impedir
a extinção do Sol e, desta forma, regenerá-lo. Assim, os grandes sacerdotes
astecas, sobre o teocalli do México, sacrificaram centenas de adolescentes
arrancando-lhes o coração.
É espantoso que as civilizações mais antigas da Antiguidade, a China, o Egito,
a Caldéia, a Assíria, desenvolveram astronomia e astrologia correlativamente.
Hoje em dia, nas civilizações individualizadas, a astrologia se concentra no
caráter e futuro de cada um, estabelecidos por horóscopos. E se percebe um
verdadeiro renascimento, para além do público das mídias, entre profissões
submetidas ao aleatório (políticos, atores, homens de negócio). Mas outrora, a
astrologia, inseparável da astronomia, estabeleceu uma influência direta dos
planetas não apenas sobre o destino dos indivíduos, mas também sobre o da
sociedade.
Todas as mitologias se debruçaram sobre o mistério das origens do universo,
e cada uma narrou à sua maneira o acontecimento primordial. Sublinhemos, a
despeito da diferença radical que iremos enfocar, a pouco notada analogia entre
o mito grego e o mito bíblico das origens. No mito grego, Caos está na origem
de Cosmo; Caos é, não a desordem, mas a união indiferenciada e genésica das
forças da ordem, da desordem e da organização. Os primeiros produtos disso
são titãs monstruosos, deidades aterrorizantes até que apareceu a geração
harmoniosa dos deuses do Olimpo no seio de um cosmo que emergiu para fora
do caos. Também no Gênese existe um primeiro estado de indistinção, de
mistura, uma espécie de caos informe; mas, diferentemente do mito grego, o
mito bíblico vê na saída do caos um ato de separação, aquela entre luz e trevas.
O Fiat lux é esse ato operado por um deus único e soberano que criará o mundo.
A atual concepção de uma deflagração térmica, jorro de luz na origem do
universo, se diferencia pela ausência de um deus criador. Veremos, neste diálogo,
que, ao invés de um Pai de todas as coisas, houve (e prossegue) uma matriz de
todas as coisas que, como na filosofia chinesa, seria o Vazio. Vamos encontrar
esse mistério em nossa conversa.
Desde o começo da História, o espírito humano esteve preocupado,
apaixonado, fascinado, encantado, enfeitiçado, perturbado pelo céu estrelado. A
sociedade humana sempre buscou inscrever-se no cosmo e inscrever o cosmo
nela própria. Mais ainda: os chineses reconheceram seu parentesco cósmico ao
se reconhecerem como filhos do Céu. Nós também podemos reivindicar essa
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denominação, como apontado nesta nossa conversa.
A aventura moderna operou uma ruptura radical na relação antropo-cosmo,
tanto do ponto de vista do individuo quanto da sociedade. A revolução copernicana
e galileana não apenas destronou a Terra humana da centralidade cósmica, mas
decidiu considerar Lua, Sol e estrelas como entidades materiais. O
desenvolvimento da astrofísica “desencantou” totalmente os astros. O Sol não
é mais Deus, mas motor à explosão nuclear; a Lua não é mais deusa, mas desolado
deserto crivado de crateras mortas. O céu se esvaziou de todos os mitos. Uma
distância infinda de milhões de anos-luz se dilatou entre nós e as estrelas. A
astrologia foi desterrada como superstição ao mesmo tempo pelo cristianismo
e pelo racionalismo científico. Ela só pôde conseguir reconquistar um lugar no
seio da subjetividade individual, o único lugar em que lhe é reconhecida alguma
objetividade. A sociedade não mais se inscreve no cosmo e, a partir do século
XIX, foi arrancada de lá para entrar num futuro irresistível que lhe promete o
domínio do mundo.
Mas já Pascal havia contemplado o novo cosmo em toda sua assustadora
estranheza – “o silêncio eterno desses espaços infinitos me assusta” –,
maravilhando-se com a situação dos humanos perdidos entre um infinitamente
grande e um infinitamente pequeno que lhes são totalmente estrangeiros.
No começo do século XX, a concepção einsteiniana fez desaparecer o cosmo
como Unidade singular em proveito do espaço-tempo, e o universo foi fixado
para sempre em sua imobilidade. Mas houve uma nova renascença do cosmo
quando, segundo Hubble, ele teve uma história e tendia para a dispersão – donde
a idéia do surgimento de sua inaudita singularidade na deflagração do bigue-
bangue.
Simultaneamente, as ciências físicas do século XX fazem ruir o universo-
máquina, determinista e perfeito, que foi o seu dogma no século precedente. A
imobilidade do céu estrelado dá lugar a uma louca diáspora de galáxias e de
estrelas. Depois, do seio desse cosmo surgem estranhas descobertas, como
aquela dos buracos negros e, mais estranhas ainda, a matéria escura e a energia
escura que reduzem nossa matéria a apenas 4% do universo.
Apenas mal-saídos do universo de Ptolomeu (porque continuamos
geocêntricos : manhã – O Sol de levanta; noite – O Sol se deita), temos um
universo coperniciano superprovincializado, porque o Sol soberano do mundo
não é mais do que um pequeno astro no subúrbio de uma galáxia periférica – e
ainda temos de abandonar a idéia de um centro de mundo, catapultados que
estamos num universo em debandada.
O universo está em derrota numa diáspora crescente. As últimas novidades
nos dão conta de que entramos na era final da diáspora, sem esperança de volta.
Este universo em derrota é também derrotador. Temos de abandonar nossos
antigos conceitos que o tornavam inteligível. Nossas categorias racionais de
causalidade, de localidade, de espaço e de tempo devem ser limitadas,
relativizadas. Nossas próprias noções de ser e de não-ser, de vazio e de cheio,
estão relativizadas. Nosso universo carrega enigma consigo (que talvez possamos
resolver), mas também mistério (que ultrapassa as possibilidades do nosso
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entendimento). Nós nos damos conta de que nosso espírito, a despeito de sua
astúcia e de sua audácia, não pode verdadeiramente apreender a estranheza do
nosso universo.
Nós poderíamos, então, nos ensombrar com a idéia de que o fosso é mais
gigantesco, mais irredutível do que nunca entre o humano e o cosmo. Ora, a
astrofísica, que revela aos nossos espíritos essa estranheza do universo, nos
revela paradoxalmente o elo umbilical indestrutível que liga o cosmo aos nossos
seres; nós aprendemos que as partículas constituintes dos átomos dos nossos
organismos nascem nos primeiros segundos do universo; nós aprendemos que
os átomos, dos quais são formadas as moléculas e macromoléculas de nossos
organismos, foram forjados no coração de estrelas anteriores ao nosso Sol;
nós aprendemos que os primeiros seres vivos sobre a Terra são constituídos
integralmente dessas partículas, átomos, moléculas. E também aprendemos que
nossos organismos pluricelulares se formaram a partir de associações primitivas
entre unicelulares. Enfim, somos integralmente filhos do cosmo e carregamos
em nossos seres esse cosmo em microcosmo . Nosso Aqui-embaixo está
inseparavelmente ligado ao nosso Além. A Terra e o céu têm a mesma identidade
física. E como esse cosmo tornou-se mistério, nós também carregamos seu
mistério em nossos seres.
Originariamente, nosso cérebro se desenvolveu para responder aos nossos
problemas práticos e não para compreender o universo do qual ele surgiu – mas
também se superdesenvolveu para se perguntar e buscar compreender. Então,
não é de espantar que, na mesma busca contínua de um diálogo entre a ciência e
a filosofia, eu tenha desejado me ocupar dessas questões, no mais profundo,
com Michel Cassé, que sabe traduzir seu trabalho de astrofísico, ao mesmo
tempo de caçador de buracos negros e de investigador do invisível, em linguagem
fulgurante de poesia. Além do que, este livro remata uma longa amizade,
amadurecida nos encontros de verão da Academia Beychevelle que buscam
reencontrar o espírito dos simpósios antigos.
Então, é em torno desses mistérios, em torno do paradoxo que nos torna ao
mesmo tempo filhos do cosmo, órfãos do cosmo e estrangeiros ao cosmo, que
se deu a nossa conversa. Obrigado a Laure Adler, promotora do nosso diálogo
na France Culture; obrigado a Odile Jacob, nossa editora.

EDGAR MORIN

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1. A REVELAÇÃO DO VAZIO
Por um pensamento fisicista do mundo
EDGAR MORIN – O que é o universo? No quê ele é o nosso universo? Ele é
“nosso” não apenas porque nós nos encontramos nele, porque constitui nosso
lugar, mas também porque nos produziu, nós surgimos dele e não cessamos de
nos perguntar sobre ele, a ponto de que nenhuma sociedade pôde deixar de
representá-lo. Então, ao longo de nossa história, no Ocidente, primeiro
prevaleceu uma concepção geocêntrica na qual a Terra figurava no centro do
universo, o que estava conforme com as aparências e também conforme com a
Bíblia. Depois passamos, não sem dificuldades, com Tycho Brahe, Copérnico,
Kepler, para um outro universo onde, desta vez, o centro era o Sol. Fomos
destronados, mas continuávamos tendo assento na assembléia, o que já não estava
mal. Enfim, chegou uma revolução ainda mais radical em nossa concepção do
universo, um dos aspectos da qual é que nem o Sol, nem nossa galáxia, a Via
Láctea, são o centro do mundo, e o próprio mundo não tem mais centro. Esse
novo universo que começa a surgir – que ainda nem emergiu –, segundo as
descobertas de Hubble sobre sua expansão e sobre a fuga das galáxias, é aquele
no qual devemos nos instalar e é, caro Michel Cassé, o motivo do nosso diálogo.
MICHEL CASSÉ – De fato, o primeiro fio condutor, a astrofísica e a cosmologia
nascendo enquanto ciências, surge quando Galileu aponta sua luneta para a Lua e
enxerga montanhas. Até ali, na visão aristotélica e escolástica dominante, a Lua
marcava o limite entre dois mundos. Acima dela estava o mundo “supralunar”,
tido como eterno, incriado, composto nem de água nem de ar, nem de terra nem
de fogo, mas de uma quinta essência perfeita, ideal, imutável, a quintessência.
Sob a Lua, na esfera “sublunar” centrada sobre a Terra, reinava um regime de
mudanças, marcado pela corrupção, decadência e morte. Ora, segundo os próprios
termos de Galileu, a Lua se mostrava “terrosa”. Era uma viravolta essencial. A
não ser que se inverta a proposição, eu diria que hoje a Terra é também bem
celeste. De agora em diante, no mundo estilhaçado e complexo do saber, existe
uma ciência fundamental da unidade que coloca a equação mais simples do mundo:
Terra = céu; o que está embaixo é como o que está aqui; o que não está aqui não
está em nenhuma parte. Tanto os átomos quanto as leis. Existem unidade de
substâncias e unidade de leis no universo. A física é, conseqüentemente, universal.
E esta ciência fundamental, viva como a especulação e aguda como as tecnologias
que lhe dão asa e armas, tem o nome de cosmologia. Ela responde a perguntas
ancestrais fazendo valer os argumentos da física a mais sofisticada e a mais
abstrata. Esse casamento do céu com a Terra no pensamento humano amarra os
fios entre o pensamento antigo dos filósofos pré-socráticos e o pensamento
quântico e relativista dos eruditos contemporâneos, consagrando o pensamento
fisicista do mundo.
E. M. – O pensamento da physis de Empédocles e o de Heráclito se revelam,
respectivamente, mais ricos que a doutrina platônica das essências ou o sistema
aristotélico das causas. Mas não elucidam a distinção moderna entre astrofísica
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e cosmologia que você esboçou.
M. C. – A cosmologia é o estudo da origem, da estruturação e do futuro do
universo. Ela pede a contribuição dos conhecimentos mais diversos, inclusive
aqueles da teoria das partículas elementares. A escola do interno, aquela que
consiste em ler o mundo num grão de areia, se junta à escola do externo, aberta
para a perspectiva cósmica. A cosmologia é uma ciência histórica. No começo,
o universo era quente. Você falou em universo em expansão, fórmula que vale
como introdução ao discurso cosmológico. Se invertermos a flecha do tempo,
o universo está em contração; e se o imaginamos como um gás, contraí-lo
significa reaquecê-lo. Então, no começo era o calor. E nesse grande calor
proliferaram partículas anônimas, elementares, energéticas – sendo o calor uma
medida da agitação térmica, da energia de cada partícula individual. E é o que faz
com que possamos simular as condições do bigue-bangue por meio de
aceleradores de partículas, conferindo a partículas individuais a energia que elas
tinham originalmente. Por sua vez, os astrofísicos são cuidadosos da perfeição
formal. Eles buscam revelar, no universo, um plano coordenado, um esquema
diretor, um conceito organizado do que está acontecendo através da forma
material, portanto, uma história. No complexo campo do saber, a astrofísica e a
cosmologia, ciências em pleno movimento e de plena consciência, de fato buscam
situar o homem no espaço e no tempo.
Uma equação em forma de poema
EDGAR MORIN – Podemos descrever esse universo? Você pode? Se sim, como?
MICHEL CASSÉ – Comecemos por seus elementos. Existem os atores e existe
o ato. Entre os atores, claro, está a matéria, e sua definição ganhou uma extensão
considerável. Por exemplo, está aí incluída a luz, considerando-se que ela é uma
forma material neutra. Pode-se conferir a ela o sinal zero, mas o zero nunca
passa de um mais e um menos adicionados. Digamos que o mais corresponde à
matéria e o menos à antimatéria. Conseqüentemente, a matéria nasce da luz, mas
em companhia de seu duplo antagônico e mortal, a antimatéria. E essas duas
formas, se se juntam, dão no zero. Segundo essa dialética entre a luz e a matéria
à qual a natureza dá livre curso, o bigue-bangue é o acontecimento em que a luz
se materializa, enquanto que a estrela, por sua vez, constitui o antibigue-bangue.
Ela é o lugar onde a matéria se transforma em luz – razão pela qual as estrelas
brilham. Esta é a primeira descrição da dialética matéria-luz em virtude da mais
bela equação que se conhece por sua sobriedade, um pequeno poema que todas
as crianças sabem de cor sem poder explicitar o sentido, e que se escreve E =
mc2. Ninguém suspeita o potencial explosivo que ela esconde sob seu jeito de
simplicidade! O universo está conforme a teoria de Einstein no que corresponde
a uma descrição relativista. Mas ele é também quântico – voltarei a isto –,
sendo a física quântica a melhor descrição que temos quando se trata do
infinitamente pequeno. Mas voltemos ao caminho da origem. A descoberta da
expansão do universo por Hubble, que você lembrou, foi mesmo decisiva. Tanto
quanto aquela da radiação cósmica fóssil que filtra desde a noite dos tempos e
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vem tiritar na orelha dos nossos radiotelescópios, porque ela é fria, tão fria que
acaricia a Terra e os receptores que a envolvem sob forma de microondas. Ora,
essa radiação invisível é onipresente e permanente. Isto quer dizer que a noite
não existe, que ela pertence ao domínio das aparências, que o céu não é negro,
mas nosso olhar é que é obscuro. Mas estas próteses, os olhos eletrônicos que
montamos a fim de atenuar nossa cegueira, nos permitem ver o invisível. Essa
radiação que filtra das origens, emitida há treze bilhões de anos, é perceptível
por meio de radiotelescópios ou de satélites dedicados ao seu estudo. Ela nos
deixa ver a primeira imagem do mundo. Ela é quase que lisa, afora ligeiras
asperezas que permitem supor que a forma se extrai de um substrato
indiferenciado. Ela nos permite ler os capítulos primordiais da história do mundo
e dá crédito à idéia de uma cosmologia conforme a relatividade geral de Einstein,
segundo a qual o universo se expande, toma volume ao longo do tempo e se
resfria.
E. M. – Uma expansão que, no entanto, seria ilusória, segundo a tendência do
nosso entendimento de conceber segundo as representações mais comuns.
M. C. – Falamos de expansão do universo, mas na realidade se trata de uma
dilatação do espaço em grande escala. Os objetos, por exemplo sua cabeça e a
minha, felizmente não incham. Os objetos constituídos, os objetos tomados em
sua forma, cujos átomos estão ligados por interações mais fortes que a gravitação,
não estão em expansão. Se não, nossos olhos se distanciariam no mesmo ritmo
que o espaço, e não saberíamos que o espaço está em expansão. Então, existe
fixidez no universo, mas em pequena escala. É assim na distância entre a Terra e
a Lua e todas as distâncias em nossa própria galáxia. Quanto às galáxias, afora os
amontoados que às vezes elas formam, estão tão distantes uma das outras que
sua influência, notadamente sua atração mútua, é negligenciável. Essas ilhas de
universos se distanciam mutuamente não porque se repulsam ou se empurram,
mas porque a trama do espaço que as separa se dilata. Nessa visão do mundo,
elástica, o próprio substrato do mundo não é fixo, mas na realidade dúctil. O
próprio tempo está associado a uma dimensão. O espaço quadridimensional ou
espaço-tempo está erigido assim, e, uma vez pleno de matéria, é identificado
com o universo por Einstein. Mas acontece que essas quatro dimensões que
percebemos, as três espaciais e a temporal, podem não ser as únicas.

Tempo e revoluções
EDGAR MORIN – Esses reencontros com o tempo parecem cruciais, precisamos
voltar a isto. Em sua visão teológica, Agostinho já notava o paradoxo: “Em que
momento Deus criou o mundo?” Ele respondeu: “Em momento algum, porque a
criação do mundo é a do tempo”, dimensão da qual não podemos nos abstrair.
No entanto, neste tempo singular que é a história humana, como passamos da
“Lua terrosa” para a afirmação das várias dimensões?
MICHEL CASSÉ – Neste sentido, estamos na sexta revolução copérnica. A
primeira, como você lembrou, é que a Terra não está no centro do sistema solar,

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com o Sol ocupando esse lugar – ainda que essa revolução não tenha penetrado
nas consciências, como se constata pela persistência da expressão “o Sol se
levanta”. A segunda é que o Sol e seu cortejo de planetas estão na borda da galáxia,
em sua grande periferia. A terceira é que a dita galáxia não está no centro do
universo, porque o próprio universo não tem nem centro, nem margem. A quarta
é que a matéria que nos constitui, feita de átomos, não é a substância essencial
do universo, revolução absolutamente considerável que faz com que o átomo
luminoso perca sua realeza; abre-se a era do invisível, de uma substância invisível,
de um novo éter, indetectável, mas provido de energia. A quinta é que as leis que
consideramos universais, isto é, aquelas que nos permitem descrever o
comportamento da matéria daqui debaixo e do céu, parecem restritas à nossa
província cósmica. O universo vai além disso que podemos qualificar enquanto
homens, simplesmente homens videntes e sensitivos. Digamos que a teoria
parece indicar, de maneira indireta, mas lógica, que o universo é um conjunto de
cosmos, uma espécie de champanhe no qual ocupamos apenas uma bolha. Sexta
e última revolução conceitual, ainda não verificada, mas que devamos admitir
por questões de harmonia e de coerência da teoria, é a existência de dimensões
que não percebemos.
E. M. – A percepção disto é impossível, mas não a detecção.
M. C. – O visível está ligado às propriedades físico-químicas de nossa retina.
Foi a insistência da luz que forjou nosso olho, o Sol que o educou. Os dois são
feitos da mesma substância: os átomos do Sol falam aos átomos dos olhos a
linguagem da luz, e a razão pela qual nós enxergamos está nesta identidade de
natureza entre o detector e o receptor. Ao mesmo tempo em que somos cegos a
todas as outras luzes, isto não significa que elas não existam. Nosso visível é a
espuma da matéria. Nosso cosmo é uma esfera causal em que a causa precede o
efeito, onde tudo pode ser descrito de maneira determinista. Mas este reino
seria apenas uma bolha. Ele próprio teria eclodido num meio ao qual se poderia
dar o nome de “substrato incriado” ou “pai do mundo”. E, ainda que não possamos
descrevê-lo, podemos pô-lo numa equação.
Quando a matéria fala
EDGAR MORIN – Esta última fórmula, “pai do mundo”, mesmo sabendo que
você faz uso de uma metáfora, me provoca um questionamento. Que valor atribuir
ao olhar que o homem – de sua “bolha”, como você diz – lança sobre o
indescritível?
MICHEL CASSÉ – O processo científico teria sido o de descentramento
progressivo da condição de homem. A ciência surge como uma longa luta contra
o geocentrismo e o antropocentrismo, mas não necessariamente contra o
antropomorfismo. Ela postula que todos os lugares se equivalem, porque um ser
vivo numa outra galáxia, possuindo as mesmas qualidades que nós e que tivesse
estatuto de observador, veria desenvolver-se o mesmo drama, a mesma
dramaturgia cósmica que nós – e ele constataria, como nós, a expansão do

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universo. Não existe centro do mundo. A despeito desse descentramento espacial,
nós vivemos um tempo particular, o tempo bendito em que a matéria fala, e isto
não é indiferente. Quando me perguntam onde estou, digo que no hoje, no simples
hoje. A matéria fala, e disto se deduz que a linguagem, o pensamento, a vida,
necessitam da obra das estrelas, que as estrelas desempenham na economia geral
do universo o papel de artesão consciencioso, e que, além disso, essa obra, sua
própria existência, aparece como condição necessária à diversidade dos átomos.
Ora, as estrelas, mães dos nossos átomos, não são imateriais, mas surgem, são
feitas, dependem de alguma coisa; elas foram precedidas por outras formas, que
chamamos nuvens interestelares, as quais, elas próprias, decorrem de uma forma
anterior. Que forma? Aí é como uma questão de genealogia, não cessa de
remontar. A mãe da nuvem, bem, é a luz! A luz deu forma à matéria e à antimatéria.
A antimatéria parece ter desaparecido. Existe gênese, mas existe morte. Restam
apenas os átomos. Nós mal podemos imaginar o desaparecimento de antimatéria.
E. M. – O que não impede que você faça dela seu objeto de pesquisa.
M. C. – Sim, de minha parte é o mundo perdido da antimatéria que busco,
junto com muitos outros, supondo que ela não tenha sido completamente
eliminada. Sei que na fronteira da matéria e da antimatéria se produz uma
aniquilação que deveria se saldar por fluxos de raios gama, e nós desenvolvemos
satélites sensíveis a essa forma bastante energética de radiação a fim de delimitar
e de perceber a fronteira entre os mundos e os antimundos, mas até agora nada
disso apareceu. Além do mais, nessa remontagem, nessa gênese, a luz não é
primeira. Ela teria sido precedida por uma forma que poderíamos chamar de
vazio, mas um vazio paradoxal, pleno de todos os nascimentos e de todas as
energias, um vazio que somente a mecânica quântica pode descrever, um vazio
que seria como que uma agência de comunicação e de relações públicas. Esse
vazio ainda existe; ele está na origem disso que poderíamos chamar forças da
física, na origem do fato de que existem interações no mundo. Esse vazio é
relacional. Você conhece bem todos os lineamentos desse pensamento, você
foi um dos primeiros a meditar sobre eles, já que em A natureza da natureza,
tomo essencial de O método, você não hesitou em introduzir as noções de
caosmos e de pluriverso bem antes do surgimento da cosmologia new-look.
E. M. – Obrigado pela leitura atenta. Parece-me que o fato crucial que surge
do nosso universo recente, que você anunciou e ao qual você vai voltar, é que a
matéria e o átomo – que parecia ser o seu substrato fundamental – representam
apenas uma pequena, ínfima parte dele. Em proveito do quê? Do espírito ou de
um espiritualismo? Nada disso. Da energia? Não apenas. Eu diria que em proveito
de um real fisicismo, isto é, de um mundo concebido fisicamente, segundo isso
que os gregos denominavam physis, o que faz nascer, não redutível nem à matéria
nem à energia, essa alguma coisa de onde surge a criação, ou, antes, as sucessivas
criações. Com isto não estaríamos voltando para a intuição de Espinosa?
Rejeitando a idéia de um Deus exterior ao mundo que ele teria criado como uma
máquina ou como um produto, considerando que esse Deus não existe, Espinosa

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inscreve a força criadora no interior do universo. Mas, antes que você fale sobre
essa concepção, precisa ser esclarecida a noção de energia que você lembrou.
M. C. – Ela está no coração do propósito, e não se sabe muito bem precisá-la.
E. M. – Quid, então, da termodinâmica, que não aparece em seu propósito,
enquanto que aparecem o calor, a agitação dos átomos ou moléculas? Quid do
segundo princípio da termodinâmica, que é um princípio primeiro, digamos, de
degradação da energia em calor, depois, em termos de organização, um princípio
de desorganização? Quid, enfim, de sua combinação com o fato de que, a despeito
desse princípio, ou através dele, advenham sem cessar novas gêneses, gêneses
de estrelas, gêneses de universos? Nisto não seria preciso apelar para Prigogine
para compreender o elo entre esse princípio de degradação ou de destruição e
esse princípio de gênese? O problema é mesmo saber como conceber que o
universo possa ser uma espécie de degradação do infinito, que não tem nem
forma, nem tempo, nem espaço. E ao mesmo tempo em que essa degradação
pode ser uma gênese, a criação de alguma coisa, de tantas coisas, a criação de
partículas, de átomos, de estrelas.
M. C. – O primeiro desses movimentos em que toco é mesmo o da criação,
mas eu só utilizaria o termo no sentido em que é empregado nos ateliês de alta
costura, no momento de apresentar as novas coleções, ou melhor, na dramaturgia,
a cada temporada teatral. A criação no sentido teológico é absoluta, e o que é
absoluto, para mim, absolutamente não existe. Então, eu utilizaria o termo criação
como que em cumplicidade com Georges Gamow, no sentido da última moda
parisiense, o universo está mesmo, sem parar, sendo despedaçado, recosturado,
recomposto – e até mesmo calcinado, com a matéria nas estrelas elevada a
temperaturas verdadeiramente infernais.
Anuncio solenemente que a noção de bigue-bangue, que parecia dar crédito à
tese dos monoteísmos judeu, cristão e islâmico de uma criação única – e mesmo
ex-nihilo, o que é uma aberração para o pensamento racional – está banalizada.
Eu diria, na linha de Andrei Linde e Alan Guth, de criação plural. Bolhas de
universos que são, no começo, pérolas ínfimas parecendo emergir do caldo do
espaço-tempo como que Vênus emergindo da espuma.
E. M. – Pérolas ínfimas, mas gigantescas para nós.
M. C. – São gigantescas porque distanciadas por uma expansão considerável.
Esta expansão está ligada, em todo caso, à virtude expansionista do vazio novo,
desse vazio quântico que busco relevar. Existem virtudes antigravitacionais.
Porque, se a gravitação é a atração da matéria pela matéria, a antigravitação, pelo
contrário, é a gravidade repulsiva. Nós temos a experiência da queda porque nós
caímos sem cessar. Mas o universo, em grande escala, tem a experiência do
esvoaçamento. Sob forma de metáfora, pode-se dizer que, no começo, o vazio
estava colérico. Transbordante de energia, estava excitado. Pode-se assim colocar
como origem do mundo as flutuações coléricas aleatórias, e sem causa, de um
substrato generalizado, governado pela mecânica quântica – o termo significando
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“flutuante”. Um estado uniforme perfeito não existe. Ademais, pode-se dizer,
ainda que a expressão seja temerária, que nossa bolha de universo nasceu de uma
transgressão, transgressão da impossibilidade de existir, porque a mecânica
quântica proíbe in fine que se declare a impossibilidade das coisas.
E. M. – Então, o grande ator do universo não seria esse vazio? Esse vazio
quântico que está na origem de tudo, que empurra para o distanciamento e a
dispersão do nosso universo e que parece querer triunfar no fim? Seríamos nós
uma pequena aventura, um avatar menor desse vazio?
M. C. – Nós estamos entre dois vazios, aquele do começo e aquele do fim.
E. M. – Entre dois vazios e também com muito vazio interior!

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2. ABORDAGENS DO INVISÍVEL
A assinatura da matéria
EDGAR MORIN – Assim então, Michel Cassé, nós participamos de um muito
estranho universo. Ele começa a partir de um vazio que não é verdadeiramente
um vazio, que é um vazio quântico, noção no mínimo bizarra. Depois aparece
uma flutuação, uma cólera ou um peido, não se sabe, que desloca ou parece
deslocar esse vazio e fazer surgir, numa espécie de calor incrível, nosso universo,
o qual, resfriando-se, vai criar as partículas e tudo o que se segue. É neste universo
que está ainda uma história do que somos, que mantemos, história sobre a qual é
preciso continuar a perguntar as palavras, os termos, as noções.
MICHEL CASSÉ – Remontando às origens, invertendo a seta do tempo, pode-
se acreditar em tomar posse, pouco a pouco, de um método genético. De fato, a
descoberta mais importante do século XX diz respeito à genealogia. Existe um
elo de gênese entre os homens, mais exatamente seus átomos, e as estrelas,
entre as estrelas e as nuvens interestelares, entre estas e a luz, entre esta e o
vazio quântico. Existe, então, uma cadeia física da gênese: grande vazio, luz,
matéria e pequeno vazio – esta seqüela que persiste e nunca deixa de acelerar a
expansão do universo. Os atores dessa dramaturgia cósmica que são a matéria
atrativa e uma certa forma de substrato – a qual não sei se podemos chamar de
matéria – que tem virtude repulsiva. Ela está batizada de energia escura. A
matéria, ela própria é matéria nuclear – isto é, átomos – e é matéria exótica –
isto é, não-nuclear.
A matéria nuclear pode ser brilhante ou opaca. Existem objetos feitos
essencialmente dos mesmos átomos que você, que a mesa, que as estrelas, que
as galáxias, objetos que, no entanto, são escuros e, neste sentido, invisíveis.
Além disso, existem seres físicos totalmente invisíveis e livres, não constituindo
nenhuma estrutura. Prova são os neutrinos que, produzidos pelas reações
nucleares da central que é o Sol, esvoaçam atravessando-o como se ele não
existisse e também atravessam a Terra, que é porosa como uma bola de cristal.
Pode-se proclamar em voz alta: o invisível não é ausência, não mais do que o
escuro. Aqueles seres, aquelas partículas extremamente delicadas atravessam
cada centímetro quadrado de tua gloriosa pessoa, como também cada centímetro
quadrado deste piso, a razão de sessenta bilhões por segundo – são absolutamente
invisíveis, impalpáveis e, no entanto, muito bem existentes e materiais. Matéria,
então, que não é nuclear e que não é constituída de prótons ou de nêutrons, mas
que tenderia mais para o lado do elétron. O neutrino é o duplo oculto do elétron.
E. M. – Você acaba de dizer, e nunca é demais sublinhar, que o invisível não é
ausência, mas, ao contrário, presença. Nós estamos, então, num domínio em
que é preciso reconhecer a presença do invisível, não qualquer invisível, não
aquele dos mitos, ou dos fantasmas, mas este invisível, inconhecido, no qual
estamos e nos banhamos.
M. C. – A realidade é essencialmente invisível, e o visível é de alguma maneira
15
irrealista, de tanto que ele é excepcional. O não-visto é o próximo invisível.
Esse invisível, assim como você o qualifica, o neutrino, nós conseguimos fazê-
lo assinalar sua presença. Basta apresentar um pergaminho digno dele. Na
impossibilidade fisiológica de percebê-lo, é preciso recorrer a uma
hipersensibilidade ao invisível. Assim, eu tenho uma imagem neutrínica do
coração do Sol, que posso admirar da aurora ao crepúsculo. Porque este invisível
ultrapassa a cor, como também ultrapassa aquilo que poderíamos chamar de
radiação eletromagnética.
Mensagens cósmicas
EDGAR MORIN – Que estatuto dar à luz que, como sabemos, é o primado
simbólico em todas as culturas?
MICHEL CASSÉ – Até pouco tempo, pensava-se que só havia mensageiros do
tipo luminoso – a luz sendo conhecida como transportador consciencioso e
veloz da informação de um ponto a outro do universo. Mas descobrimos que
existem outras formas de correio: além dos neutrinos, as ondas gravitacionais,
por exemplo. O fato é que o espaço conhece frêmitos e que estas deformações
do espaço-tempo – que é como que uma pele de tambor elástica – produzem
ondas, que se propagam, e que são chamadas, conseqüentemente, gravitacionais.
Ora, neste registro, o universo é muito transparente que o é no registro
eletromagnético. Em outros termos, a visão, ou a percepção eletromagnética,
se interrompe quando o universo torna-se opaco à sua própria luz.
E. M. – Mais precisamente, o que isso aí significa?
M. C. – Que o universo, quando era muito quente, no começo, era flama. Mas
uma flama é opaca à sua própria luz. Nunca ninguém verá isso que se chama,
metaforicamente, bigue-bangue em razão de um muro de luz inicial impenetrável.
Em troca, esse mesmo muro é transparente aos neutrinos, como também às
ondas gravitacionais. E as astronomias por nascer estão nesses dois domínios.
E. M. – Assim, o gênio humano, a parte desse gênio que anima o conhecimento
científico, consegue tornar observável, constatável, mensurável, a presença desse
invisível! A mais bela descoberta é que se pode falar desse invisível sem vê-lo,
estabelecer balizas. O jogo do conhecimento se revela plenamente nisso, esse
jogo extraordinário entre o conhecível e o inconhecível. Nós transgredimos
fronteiras e guardamos, ao mesmo tempo, a certeza do inconhecível. Nós não
estamos fechados em nossos sentidos, e nosso espírito, apesar de seus limites,
pode concebê-los e conceber seu além.
M. C. – Absolutamente. Para já, não se deve confundir o vazio com o nada e
o invisível com o indizível. Além do que, o fato de decalcá-lo – por que não
fazemos outra coisa que não decalcar o invisível – nos coloca na presença de um
céu de criação. O visível surge disto como luz de uma plácida fase de uma certa
estrela que se chama Sol. Mas só ver estrelas em sua maioria silenciosas é, de
certa maneira, uma felicidade, porque essa visão confere ao céu e à alma uma

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aparência de serenidade. Se nossos olhos fossem verdadeiramente sensíveis a
toda forma de radiação, o céu não seria constelado, mas uma tempestade. Aliás,
é este céu dinâmico que revelamos graças às nossas próteses satelizadas. Ver
nascer as estrelas, notar seus cadáveres, isto o olho humano não pode fazer
sozinho, porque ele está ajustado, regulado, educado pela luz da estabilidade
solar.
E. M. – Este é o paradoxo. Durante muito tempo consideramos que havia
uma ordem impecável e perfeita no céu, mas, segundo você, o universo é
tempestade.
M. C. – Tempestade e campo minado. E toda explosão no céu é criadora. Não
se deve lamentar a explosão de uma estrela, as humanidades futuras se aninham
nesses estilhaços e fagulhas porque, destruindo-se, a estrela insemina o espaço
com os produtos de sua alquimia nuclear, impõe-se como o lugar em que a matéria
se transforma de simples em complexa. Do acontecimento primordial que
chamamos, vulgarmente, de bigue-bangue emana a matéria simples que é o 1 e o
2, o hidrogênio e o hélio, enquanto que, in fine, contamos 92 elementos, desde
o hidrogênio até o urânio, o neônio, o magnésio, o silício, o enxofre e o ouro –
que todos, tanto o ouro como todo átomo, à exceção dos quatro mais leves, vêm
das estrelas. No entanto, essa matéria nuclear não representa, segundo uma
proporção comumente aceita, mais do que 4% da matéria universal. Além do
mais, a matéria visível, aquela que se pode notar por sua luz franca, pela luz que
se pode perceber, não representa mais do que 5 por mil do conjunto. O que são
os 96% restantes? Parece que há uma partilha entre a matéria escura e a energia
escura, isto é, invisível à razão de 30% e 70%. Os neutrinos são uma forma de
matéria escura, e seus hipotéticos primos também – os neutralinos, por exemplo,
e quem sabe os neutralíssimos! –, é preciso levar a sério esses ectoplasmas,
porque são as conseqüências lógicas das teorias físicas circundantes.
Excelência do zero
EDGAR MORIN – O que não quer dizer – precisão indispensável – justificar as
tradicionais díades da ontologia clássica.
MICHEL CASSÉ – Não. Ponto notável é que, assim, preparamos verdadeiramente
o leito do neutro ao atribuir à luz o sinal zero, declarando que a luz repousa no
zero, que ela não tem nem carga, nem massa, e que desse fato ela dá nascimento
à matéria e à antimatéria seu duplo, antagônico e fatal. Zero é, assim, a energia
total do universo. A energia negativa, depois de muito tempo, encontra sua
justificação: é a energia da gravitação. Já que, agora, o negativo e o positivo – a
antimatéria e a matéria, por exemplo, uma coisa e seu duplo – encontram, a
nosso ver, uma justificação, fazendo-se a soma total de todas as formas de energia,
energia potencial gravitacional negativa e energia da matéria positiva – incluindo
todos os elementos do mundo –, matéria comum, matéria escura e energia escura,
chega-se à cifra zero, quer dizer, não se exige nenhuma energia para produzir um
universo! Continuo pasmo. É pelo menos o que indicam as últimas observações

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astronômicas, especialmente aquelas do satélite MAP, pelo viés do estudo da
geometria do universo. Uma geometria “plana”, euclidiana, corresponde a uma
energia total nula. Com a planície espacial certificada, conclui-se disso a nulidade
energética.
E. M. – Com isso nós chegamos justamente a toda uma série de paradoxos
que estão ligados aos termos, aos conceitos que utilizamos. Primeiro essa noção
de zero que é tudo não sendo nada. Existe essa idéia de vazio que não é realmente
vazio. Isto nos remete, por acaso, às asserções de Hegel, em sua Lógica, sobre
o ser e o nada. Para o filósofo alemão, o ser é tão absoluto que não se pode
conferir atributo a ele, que ele não tem nenhum atributo do ser. Ora, quando nos
voltamos para o nada, aparentemente também se escapa a toda atribuição. O que
faz com que, para Hegel, exista reciprocidade entre o ser e o nada, e identidade
negativa de um ao outro. Esses conceitos se estabelecem no limite da absurdez,
ou, se preferirmos, do incrível. Ora, deixando de lado o ser, o nada, e voltando
para as nossas noções, é forçoso constatar que, todavia, falamos de vazio e que,
no entanto, falamos da matéria. O que é esse vazio que não é um vazio, mas que
você diz “quase vazio”? Você o qualifica assim, às vezes, de vazio quântico, palavra
que lembra – e você não omite isso – aquela de flutuação. Então surgem outras
questões. A noção de flutuação toma toda sua precisão na microfísica, mas seria
no seio desse vazio original?
M. C. – A violação está codificada. O mais admirável, acho eu, é que essa
física não repousa no puro aleatório. Ela não é uma física do acaso absoluto.
Falamos aí de um princípio de incerteza, mas isto quer dizer que os
distanciamentos – os clinamen, como diria Lucrécio – estão limitados e eles
próprios são regidos por uma lei, o que faz justamente toda a sutileza da coisa. O
incerto está codificado.
E. M. – Mas não menos notável é que esse vazio está cheio de possibilidades
quase infinitas. É dele que surgiu o nosso universo.
M. C. – Ele é portador de todos os nascimentos...
E. M. – ... A ponto de que não sei mais qual físico poderia dizer que o vazio é
a energia infinita...
M. C. – ... Fórmula ainda mais dramática do que parece. Porque se trata mesmo
de um drama. Os físicos das partículas, quando calculam a energia do vazio, ou,
mais exatamente, a densidade da energia do vazio – a operação consiste em
fazer o balanço de todas as partículas efêmeras chamadas virtuais, mas tão reais
quanto você e eu, salvo que elas são fugazes – chegam a uma densidade infinita
ou quase. Ora, se é o caso, o universo deveria instantaneamente explodir. Então,
existe contradição na física – ou, antes, e esta é uma ocasião para falar sobre
isto, nisso o vazio é causa de escândalo. Por um lado, o vazio dos físicos das
partículas é tão povoado e tão espesso que é de espantar que se possa ver através
dele; por outro, o vazio dos cosmologistas é mais do que magro. Prova é que se
vêem as estrelas até o fim do mundo ou das galáxias. Basta, aliás, assegurar a
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densidade de energia implicada pela observação: 10-29 g por cm3. O vazio
cosmológico é bastante leve. Mas existe aí um osso duro de roer, que se poderia
chamar osso do vazio.
Ordem e desordem
EDGAR MORIN – Mas não é assim, simplesmente, que tocamos os limites da
nossa razão? Kant não os indicou? Desde que se pensa no universo, surgem as
idéias de começo e de eternidade. Uma e outra parecem racionais. Mas, se existe
um começo, de onde surge o começo e, se existe eternidade, como pôde começar?
Daí o problema epistemológico que coloca, hoje em dia, o nosso novel universo,
e que é preciso admitir como tal. Estamos obrigados a conjugar noções que se
contradizem. Estamos obrigados a considerar o quanto são aproximativas as
noções que nos são indispensáveis. Assim, para compreender nosso universo,
este cosmo que é o nosso, é preciso apelar para uma outra disciplina, a
microfísica, que obedece a princípios, a regras que não são aquelas da física
comum, a macrofísica, a qual igualmente se distingue da megafísica da qual o
objeto é o universo. Esses níveis de realidade, tão diferentes, são, no entanto,
inseparáveis. Nós mesmos, seres macrofísicos, não somos constituídos de
elementos microfísicos? E estes elementos, a partir de uma certa densidade,
não abandonam seu estatuto microfísico? Este é um paradoxo a mais. Nosso
universo comporta níveis de realidade diferentes que não são impermeáveis uns
aos outros mas, ao contrário, necessitam uns dos outros.
MICHEL CASSÉ – Mais ainda, uns não se explicam sem os outros.
E. M. – É o momento de colocar a questão da simplicidade e da complexidade
do universo. Na antiga concepção física, incluída a de Laplace, nosso universo
era uma máquina determinista perfeita que obedecia a leis simples, leis
fundamentais simples, e onde a aparente confusão, a aparente desordem,
resultavam de erros, de ilusões do nosso conhecimento imperfeito. Esta visão
voou em cacos, não é? Mas como conceber, hoje em dia, que a união do simples
e do complexo continua plenamente problemática? Existe mesmo uma teoria da
grande unificação, na verdade muitas teorias pelas quais busca-se estabelecer
princípios físicos que apresentem de maneiras diferentes as interações nucleares
fortes, fracas, eletromagnéticas. Mas a unidade primeira que está assim visada
não é nem um pouco simples. Ela pressupõe não apenas equações bastante
complicadas, mas também – como você aventou – um certo número de dimensões
complementares além das três que sentimos em nossa carne. Bem mais, se é
que houve na origem uma simplicidade fundamental, seria preciso fazer uma
viagem de quatorze bilhões de anos para reencontrá-la, porque não existe mais.
O que existe hoje é um coquetel, combinações variáveis e inumeráveis entre o
simples e o complexo. No coração de uma estrela, por exemplo, para que se
forme um átomo de carbono é preciso que no mesmo momento se juntem três
núcleos de hélio.
M. C. – Três partículas alfa, sim, três núcleos de hélio. Três núcleos de hélio

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fazem um carbono, como 3 vezes 2 são 6.
E. M. – Ora, essa ligação é toda aleatória. Encontros acontecem sem parar,
mas, uma vez acontecidos, tomam um percurso determinista.
M. C. – Essa coincidência é fértil – sem ela, nada de biologia.
E. M. – Ela obedece a uma lei, a constituição de um átomo de carbono. Quer
dizer que tudo o que, sob determinado olhar, aparece como determinista,
obedecendo a uma lei, sob um outro olhar...
M. C. – ...Quer dizer que a desordem é uma ordem oculta.
E. M. – Seguro?
M. C. – Digamos que há uma aposta, um pouco à maneira de Pascal, ou ainda
um antinietzschiano e que funda a física.
E. M. – Mas tomemos o exemplo da desordem ligada ao calor. Nós sabemos
que essa desordem é uma agitação de partículas que obedece a leis puramente
estatísticas. No entanto, não se pode controlar a trajetória individual de uma
partícula.
M. C. – O princípio epistemológico diretor pretende que todos os fenômenos,
tão complexos e adornados quanto sejam, se encaminham para regras simples.
O primado cabe ao reducionismo vale-tudo – não dá para imaginar mais redutor
que a grande unificação que você lembrou.
De um a dois
EDGAR MORIN – É a primeira hipótese, a armadilha do Parmênides de Platão:
se Um é, então o múltiplo não é.
MICHEL CASSÉ – Mais ainda, quando o número de objetos tende a Um, e a
linguagem a Zero, existe perigo, porque é preciso dois para dialogar. Quando os
físicos chegarem à equação-mestra do mundo, serão engolidos por essa equação
e ninguém poderá enunciá-la. Existe uma forma de “monoteísmo” de abordagem
que, pessoalmente, me inquieta. Por que preferir o Um ao dois? Além do mais,
o dois não é o amor? A dualidade na mecânica quântica é aceita e é uma bendição
para a explicação dos fenômenos. E até oferece princípios: onda e partícula
estão dialeticamente ligadas, mas não formam um.
E. M. – Pode-se mesmo dizer que o dois é o universo. Para que haja um
universo, é preciso que se opere uma separação. Uma unidade, mesmo infinita,
não pode produzir um universo.
M. C. – A não ser que se conceba o universo como a relação que temos com
a natureza?
E. M. – Sim e não. Tomemos a noção lá onde ela aparece – o que é até divertido
–, na Bíblia, primeiro capítulo do Gênese: “No começo Eloim separou a luz das
trevas”. Não há criação ou produção, que são posteriores, mas primeiro separação.
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Quer dizer simplesmente que, para que haja um universo, são necessários pelo
menos “dois”.
M. C. – Sim, Um explode em multidão, e isto abrange o bigue-bangue e a
separação. Mas o universo continua unido pelas leis. É uma entidade legal.
E. M. – Quando existe apenas Um, nada existe.
M. C. – Claro. É nisto que a busca furiosa do Um parece preocupante. Eu
diria que não carece toda essa excitação na busca do Um.
E. M. – Sim. Ainda que haja dois no Um e ainda que o Um se divida em dois.
A multiplicidade sempre aflora na unidade. E se falamos de um cosmo, é sem
dúvida em toda a diversidade de seus múltiplos caracteres...
M. C. – Kósmos, o termo original, também pode ser aproximado de cosmético.
A etimologia grega remete à noção de ordem e de adorno no sentido de que
somos nós que secretamos a harmonia e aplicamos, vamos dizer, a maquilagem.
E. M. – Seria melhor dizer “cosmos”1 no singular. A singularidade é o Um. O
cosmo é Um, não um Um absoluto, mas uma pura singularidade que produz e
abarca multiplicidades. Você lembrou as combinações de princípios simples,
no começo. Mas também sabemos – e nisto está colocado todo o problema da
organização ao mesmo tempo do universo e no do universo – que, quando um
conjunto de partes está ligado numa organização, esta organização do todo produz
qualidades e propriedades que não estavam nas partes. É o que chamamos
emergências, e que se manifesta, penso eu, desde a criação dos núcleos, depois
dos átomos, e depois dos sóis, etc. Dito de outra forma, a complexidade, ou,
antes, a riqueza em qualidade do universo aparece justamente nesses encontros
organizacionais. Onde existe pura dispersão não existe nada.
M. C. – O que nos leva à sua questão: como é possível que num universo que
ruma globalmente para a desordem surja e se trame uma organização? Na verdade,
a organização é local, e sempre em detrimento do conjunto! Quando, numa
floresta, constrói-se uma casa de madeira, destrói-se a floresta. Pode-se pensar
que, em escala estelar, o mesmo princípio prevaleça. As estrelas brilham, mas
brilhar é desembaraçar-se da desordem, porque a luz, ao contrário ao que se
pode pensar, é um agente de desordem, uma forma de alta entropia. Vamos tomar
como imagem um lago congelado: colocando sobre esse lago uma espécie de
cúpula rebatendo a radiação infra-vermelha que ele emite, veremos que a água
não congela mais. Para que a ordem se constitua num cristal de gelo, numa estrela
ou num homem, é preciso permitir à radiação depositar a desordem em outro
lugar. E se impedimos o homem de irradiar, em outros termos, ele morre. A
desordem é evacuada pela luz, visível ou invisível – e aqui eu entendo, de maneira
genérica, tudo o que é radiação eletromagnética.
E. M. – Verdade, mas a luz não nasce de um processo que é ao mesmo tempo

1 Em francês é cosmos, plural [N. da T.].

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organizador e criador de desordem? Pensemos apenas nas reações nucleares
que acontecem no nosso sol, fenômenos ordenados e desordenados ao mesmo
tempo – não podemos mais separar as noções de ordem e de desordem. Uma
sempre reaparece num dado momento em relação a outra. Isto é importante, ao
que me parece, do ponto de vista epistemológico.
M. C. – Sim, mas pode ser mais chocante ainda o equilíbrio termodinâmico,
isto é, o fato de que haja uma temperatura idêntica em tudo, é concebido como
desordem. Mas pode-se também vê-lo como ordem social, pela razão de que ali
a democracia reina entre partículas. Dependendo do olhar, o estado de
temperatura uniforme representado pelo equilíbrio termodinâmico será
concebido como ordem ou como desordem.

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3. O UNIVERSO COMO HISTÓRIA
Escriba da natureza
MICHEL CASSÉ – Estou um tanto envergonhado porque me dou conta de que
não respondi à questão fundamental que você colocou, sobre o simples e o
complexo e sobre a entropia do universo. Mas antes de responder, gostaria de
compartilhar com vocês uma inquietação: fico chocado e até confundido pelo
hiato entre a transparência do objetivo da ciência e a opacidade do método. Os
princípios de análise estão entre as coisas melhor aceitas no mundo. Separar um
todo complexo, um problema complexo, uma coisa complexa em diferentes
fragmentos ligados racionalmente: este método é comprovado nos cenáculos
científicos, e nós o utilizamos todos os dias. Mas as técnicas físico-matemáticas
que visam àquela limpidez são tão esotéricas que não conseguimos decliná-las
em palavras. A física teórica dilui o mundo numa clareza de símbolos
matemáticos. Sendo assim, a natureza não passa de um vago sentimento – e a
teoria divorcia-se do afeto. Mas, por outro lado, o teórico se encontra na primeira
manhã do mundo. Ele dá passos na inocência. A natureza não mente, mas também
nunca comenta suas declarações. Ela fala através de relâmpagos, céus negros,
árvores. Ora, esse empenho em querer colocar tudo em equação, em glifos, essa
instância da escrita não pertenceria antes ao escriba do que à natureza? E ela nos
impede de nos lançar numa espécie de introspecção cosmológica? Pergunta por
pergunta, que doença do homem – da qual sou vítima – seria essa que nos leva a
cortejar incessantemente o infinito? Estamos doentes do espírito de busca. Que
ser é esse que se coloca incessantemente a questão do ser? A cosmologia seria
um desejo de teologia em vias de cura? Existem coisas bastante perturbadoras.
Como nos tornamos cosmologistas, por que nos tornamos cosmologistas? Será
que nos buscamos a nós mesmos na imensidão cósmica? Isto seria demonstrar
uma certa imodéstia. E, sobretudo, qual o valor desse discurso? Qual o valor da
verdade desse discurso? É o único? Podemos pelo menos designar sua
pertinência? Enfim, o que é o conceito de universo?
EDGAR MORIN – É a lição kantiana que lembrei: a descoberta dos limites da
Razão pura não esgota o desejo de metafísica, mas o confronta com a necessidade
dos limites.
M. C. – Essas perguntas remetem, então, à questão da epistemologia. Pode-
se admitir que toda clareza se paga com mistério? No entanto, o resultado está
aqui: a humanidade cinzelou um tesouro, traçou os lineamentos de uma gênese
física do cosmo.
E. M. – Uma gênese física ou material do mundo?
M. C. – Uma espécie de genealogia da matéria, a qual levou, via estrelas, a
átomos, os quais podem estabelecer ligações para criar moléculas, as quais podem
dar nascimento a formas biológicas. Todavia, pára aqui o meu discurso. Aqui se
extingue a gênese, para nós, físicos. Com efeito, não existe passagem assegurada
entre a matéria inerte e a matéria viva. Ora, o que é a vida? Pode-se esperar que
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um dia seja produzida vida em laboratório? Porque, para nós, conhecer é produzir.
A física das partículas é uma física ativa. A partir do momento em que temos,
primeiramente, os conceitos e, depois, os meios de produzir partículas, nós as
produziremos. E coloca-se a questão, por exemplo, de se criar micro-universos.
Com efeito, pode-se pensar engendrar microburacos negros – graças ao Large
Hadron Collider que entrará em operação no CERN [Centro Europeu de
Pesquisas Nucleares]. Produzir microburacos negros em laboratório, ou
partículas de um exotismo maluco, talvez sejamos capazes, mas não de produzir
a vida. A verdadeira vida está alhures. A verdadeira vida está ausente.
Para além das leis
EDGAR MORIN – Nós passamos de uma questão para outra. A primeira é
efetivamente a da inteligibilidade do universo em termos de simplicidade. Os
símbolos matemáticos que dão conta disso são cada vez mais complicados. Eles
formam uma radiografia do universo. E, como numa radiografia, vemos o
esqueleto, mas não a carne. Dito de outra forma, pela matemática retém-se o
que é matematizável – e o que não é, não cabe figurar. Então, esses símbolos
fazem menos dar conta do universo do que nos ajudar a compreender a concebê-
lo, a mostrar que não estamos totalmente impotentes. Mas eles são um aspecto
do conhecimento. Quando se trata de compreender, é preciso unir a simplicidade
e a complexidade porque, por exemplo, a ordem, noção simples, e a desordem,
outra noção simples, se combinam de maneira complexa. Nunca se poderá
eliminar o fato de que há um certo número de leis; mas, igualmente, não se
poderá nunca eliminar a complexidade – incluído o antes do começo, o vazio
que não é inteiramente vazio, já que habitado de flutuações.
MICHEL CASSÉ – Não é negligenciável que ele é infundido por leis quânticas
e relativistas.
E. M. – Existem leis. Elas subsistem, elas agem. Dito isto, a outra questão
que você coloca, a gênese da vida, vale inteiramente. Um primeiro esclarecimento
veio nos anos 1950, com a descoberta de Crick e Watson, segundo a qual não
existe matéria viva distinta da matéria físico-química. Dito de outra forma, o
que diferencia a vida da não-vida é a organização. Esta descoberta permitiu traçar
vários cenários do nascimento da vida. Um deles, plausível, pretende que, depois
da formação de macromoléculas, formaram-se turbilhões de macromoléculas.
Se se entende que todo turbilhão é uma força organizadora que tem necessidade
de uma energia externa para perseverar e admitindo-se que, num dado momento,
um turbilhão assim contém moléculas capaz de ajuntamento, de produzir energia,
então a vida se faz. Como? Não se sabe. Em troca, e isto se sabe, quando um
sistema não tem meios de tratar seus problemas, isto é, não tem os meios de
agrupar e juntar elementos cada vez mais variados, ele pode ser capaz de criar
um outro sistema mais rico, um supra-sistema, um metassistema. Então, o que
se cria é uma organização viva que dispõe de um certo número de qualidades e
de propriedades – a reprodução, o movimento, a informação, etc. Nós sabemos,

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em conseqüência, que a diferença não é material, mas organizacional.
M. C. – Não vejo diferença entre matéria e organização. A matéria está
subordinada por forças físicas conhecidas e repertoriadas. Apenas nossa
ignorância faz crer que existem cesuras entre um nível de organização e um
outro. Mas não queria interromper... por favor, continue.
Carbono, ADN e acaso
E DGAR M ORIN – Seguiu-se um vasto debate. Primeiro, os biólogos
moleculares pensaram – e Monod ilustra bem isto no livro O Acaso e a
Necessidade – que é preciso uma soma de acasos incrível para que materiais
físico-químicos juntos produzam um ser vivo, à imagem de um macaco que
comporia as obras de Shakespeare batendo numa máquina de escrever. Depois,
com a termodinâmica de Prigogine, essa visão, amplamente aceita, foi
questionada. Organizações são produzidas para além do equilíbrio em certas
condições de dissipação da energia, e a organização viva pôde criar-se justamente
naquelas, turbilhonantes, de que já falei. Esta é uma primeira idéia que remove
todo caráter excepcional da criação da vida. A segunda, hoje em dia bastante
popular, é que, em razão não apenas de bilhões de sistemas solares, mas ainda de
um número infinito de planetas, dentre os quais alguns teriam condições análogas
àquelas da Terra, assim como a criação de um átomo de carbono no coração de
uma estrela requer uma miríade de encontros de núcleos de hélio, assim também
é provável que haja vida além da Terra, ou tenha havido, ou haverá. Claro que não
faltam contra-argumentos. É preciso mais do que condições excepcionais: é
preciso um verdadeiro salto para passar da não-vida à vida. Além do que, todos
os vivos têm exatamente o mesmo código genético, dependem da mesma
linguagem ADN, o que parece indicar que houve um ancestral único, e que a vida
não pôde nascer várias vezes na Terra, mesmo nas condições excepcionais que
reinavam há quatro bilhões de anos. O carbono, que pode ser polarizado
indiferentemente à direita e à esquerda na natureza, está polarizado à esquerda
na organização dos seres vivos. Quer dizer...
MICHEL CASSÉ – ... E é sabida a razão da discriminação entre esquerda e direita?
E. M. – Não. Porque na natureza é o acaso. O que se sabe, em todo caso, é
que há sempre levogiro nos seres vivos e que ele não existe na natureza.
M. C. – E não se sabe por quê?
E. M. – Não sei, mais uma vez. A única explicação seria que, na origem, esse
carbono levogiro estava presente na primeira organização viva e se reproduz tal
qual. A idéia não é neutra enquanto constitui um argumento a favor da origem
única.
M. C. – Mas não menos verdade que ele seria levogiro, na origem, pelo mais
puro dos acasos. Custa a acreditar.

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Uma curiosidade original
EDGAR MORIN – De minha parte, diante dessas coisas, considero algumas
questões indecidíveis. Existe uma forte probabilidade de que a vida seja única –
ainda que muitas vezes o improvável sobrevenha. Isto é verdade na história
humana, mas também na cósmica, como você disse. Mas, até maior informação,
penso que a vida só pôde nascer uma vez na Terra e, se não é impossível que
tenha nascido ou nasça em outro lugar, acho que não teremos uma mensagem
desse outro lugar e que estamos sozinhos no universo.
MICHEL CASSÉ – O que faria tesouros de nós. Mas pode-se considerar que a
questão continuará sem resposta?
E. M. – Não. Haverá novos elementos. Claro, bastará uma mensagem de um
ser vivo, mesmo que ele não seja feito de ADN e de aminoácidos, mas de silício
ou de outro componente, apenas uma mensagem deste ser vivo, um ser pensante,
para que a questão tenha uma resposta.
M. C. – Mas esta não é toda a questão. Eu me preocupo em saber se existe
inconhecível definitivo.
E. M. – Também acho. Mas nós não sabemos onde passa a fronteira entre o
inconhecível provisório e o inconhecível definitivo, a fronteira entre o enigma
que algum Édipo poderia enfim desatar e o mistério que nenhum espírito poderia
elucidar. Penso, evidentemente, que existe mistério no universo. Você lembrou
os nossos olhos, produzidos nos marcos da irradiação solar. Mas o que dizer do
nosso espírito, produzido nos marcos de uma evolução em que os vivos,
notadamente os hominídeos, depois os humanos, tiveram de resolver problemas
práticos, problemas técnicos? Então aconteceu uma espécie de doença no
cérebro do Sapiens. A curiosidade já existia entre os chimpanzés, entre os ratos,
entre os nossos primos mamíferos, mas Sapiens a superdesenvolveu
perguntando-se sobre as estrelas desde as primeiras civilizações, na mais alta
antiguidade. Essa curiosidade exploradora do mundo transformou-se em
exploração do planeta com Colombo ou Vasco da Gama, para tornar-se, hoje em
dia, uma exploração do universo. No entanto, o problema continua. Acho que
sempre continuará, até mesmo mais que o do desconhecido, do mistério.
Tomemos uma metáfora, aquela do matemático Spencer Brown. Imaginemos
que o universo queira se conhecer. Ora, ele não pode em razão do seu próprio
imediatismo. Para que ele tenha conhecimento, é preciso que haja uma certa
distância. Então, o universo teria que fazer surgir uma espécie de pedúnculo, de
pseudópode fora de si mesmo e estendê-lo...
M. C. – ...Dotando-o de um olho...
E. M. – É isto. No fim desse pseudópode ele colocaria um olho, um cérebro
mesmo, mas, no momento em que a operação tivesse êxito, naquele momento,
enfim, em que essa extremidade teria um cérebro, um olho, e fosse capaz de
olhar o universo, o êxito se revelaria um fracasso, porque o distanciamento se

26
revelaria muito grande. Este é todo o problema.
M. C. – Magnífica metáfora!
A memória da memória
EDGAR MORIN – Nós somos, ao mesmo tempo, filhos do universo e estranhos
ao universo. Você se lembra de um jantar no castelo de Beychevelle, durante o
qual, entre comidas e bons vinhos, um conviva perguntou: “E o senhor astrofísico,
o que vê em minha taça?”.
MICHEL CASSÉ – Eu respondi que numa gota de vinho, mas também numa gota
de água, bebe-se o universo inteiro porque transborda de hidrogênio, jorrado da
explosão original, e de oxigênio exalado das estrelas...
E. M. – ...E você continuou, falando do carbono surgido de um sol anterior ao
nosso, a desenrolar a cadeia das macromoléculas que se juntaram na Terra
primitiva na evolução biológica, notadamente evolução vegetal, de onde surgiu a
vinha selvagem, a humanidade mediterrânea cultivando essa vinha, espremendo
o suco da uva, até os procedimentos técnicos mais modernos para controlar a
fermentação – você convidou seu interlocutor a ver em sua taça...
M. C. – ... O universo inteiro...
E. M. – ...Toda a história da humanidade, a história da vida, e a história do
cosmo. Por isso você fala em antropocosmo. Cada um dentre nós é um
microcosmo, e todos contemos a totalidade do universo. Mas nem por isso o
microcosmo é o espelho em que acreditavam os antigos hermetistas. Ele
corresponde, segundo o desenvolvimento que fiz em O Método, ao princípio do
holograma, isto é, de um ponto contendo a totalidade da informação continuando
a ser singular. Assim como uma simples célula de nossa pele ou de nosso fígado,
em sua singularidade, contém todo o patrimônio genético. Nós somos
hipersingulares, tendo o universo-em-nós. Isso tem conseqüências. Voltando,
para lembrar suas palavras, àquelas cóleras do universo, àquela violência, como
você disse, contemplando aquela história cósmica cheia de som e fúria, como
não pensar na história humana segundo a fórmula de Shakespeare?
M. C. – Absolutamente!
E. M. – Ao falar da vida humana e da história humana vem aos nossos olhos o
desfile incessante dessas explosões, dessas colisões de estrelas, dessas galáxias
canibais que devoram outras, esse espetáculo lembra inevitavelmente o espetáculo
da natureza e, particularmente, aquele oferecido pela humanidade. Tanto quanto
nossos conhecimentos nos levam a repudiar o antropocentrismo, quer dizer, a
idéia de que estaríamos no centro do mundo, quanto impõe-se o recurso ao
antropomorfismo na medida que existem as analogias...
M. C. – ...Uma busca que poderíamos chamar de poesia...
E. M. – ...É a poesia. A busca é metafórica. Transportamos uma imagem de

27
um ponto para outro. Por exemplo, quando se reprova uma velhinha por
“conversar” com seu cachorro como se tratasse de um ser humano, isto se trata
de antropocentrismo ou de antropomorfismo? Nós mesmos somos mamíferos
e sabemos que os mamíferos têm sentimentos, afeições, sentem cólera, alegria,
etc. Então, aquela vovó se mostra, no fundo, mais científica que um cientista
reducionista.
M. C. – E com isto escapa ao cartesianismo!

Elogio da reliança

EDGAR MORIN – Faz tempo que o cartesianismo está ultrapassado. Daí a


questão: devemos prosseguir nesse universo com todo seu furor, sua violência,
e também sua criatividade, ou podemos escapar a esta história tão cruel e de
alguma maneira nos civilizar? Nos ecossistemas naturais acontecem regulações
espontâneas. Claro, elas acontecem muitas vezes pelo massacre, a destruição e
a morte, que se revela a grande reguladora. Pensemos nesses ovos de peixe, de
insetos, aniquilados. Mas nós, sociedade humana, nós tentamos regular de outro
jeito que não pela morte, mas pelo recurso às instituições, à justiça, à
solidariedade. Levadores dessa violência do cosmo, nós não podemos nos abstrair
do seu caráter criador e organizador, mas, ao mesmo tempo, tentamos nos
civilizar. E não conseguimos – mas deveríamos.
M. C. – Entendo em suas palavras um apelo à metafísica a posteriori. Ao
invés de fixar o mundo, de fazê-lo passar pelo crivo dos nossos prejulgamentos,
dos nossos preconceitos, sua linguagem convida a um mais profundo respeito
em relação à estrutura que se poderia chamar mundo – termo que prefiro,
definitivamente, àquele de realidade, palavra oca que tem necessidade de ser
mobiliada.
E. M. – Existem muitas formas de realidade, e mesmo várias realidades, este
é o problema!
M. C. – Mas você não deixa de dizer que a observação atenta das coisas
poderia nos ajudar. Para isso se exige um olho que não seja monocromático e
que, então, autorizaria uma omnividência.
E. M. – Eu disse, escrevi que o cosmo nos havia feito à sua imagem, mas
escrevi também que nós somos seus órfãos. Filhos do céu e órfãos do cosmo!
M. C. – Órfãos do zodíaco, de fato. Isto me dá a oportunidade de sublinhar o
quanto a astrologia – aliás, de um simbolismo suntuoso – não poderia ser mais
falsa na própria concepção dos elementos. Associar o ferro a Marte, sob o
pretexto de que o ferro enferruja, e esse pobre Saturno ao chumbo e à morte,
isto é uma aberração, porque o chumbo vem das estrelas, o ferro e o ouro também.
Quando ao mercúrio prata-vivo, ele não tem nada a ver com o dito-cujo planeta.
Então, se a astrologia, historicamente ligada à alquimia, deve subsistir –
pessoalmente não sou nem um pouco favorável a que ela perdure, mas
demonstremos tolerância – deveria ser corrigida. A origem dos elementos liga-
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se às estrelas, não aos planetas.
Esta simples incidência me leva à aflição do espírito de busca. Que significa
isto? Eu estou na incompletude, e como o universo criou o homem à sua imagem,
o universo está incompleto. Mas, em troca, o que cria a incompletude? A busca
da alteridade. O universo está em expansão, talvez infinita, ele continua se
estendendo. Então, que conceito pode corresponder a isso? De minha parte,
digo que é o poema ou o amor. O que pode estender-se infinitamente afora o elã
amoroso ou poético?
E. C. – Mas então não podemos pensar que as formas arcaicas do amor se
encontram nas atrações constituídas desde os primeiros segundos do universo,
entre partículas, ao mesmo tempo que surgiam as formas arcaicas do ódio e da
destruição?
M. C. – Esta é uma maneira de ver.
E. M. – Existe essa palavra reliança2, da qual gosto muito, introduzida por
Maurice Bolle de Balle, que, a meu ver, vale perfeitamente para denotar tudo o
que pode nos ligar – solidariedade, amizade, amor, etc. Desde o começo do
universo existe ao mesmo tempo conflito e complementaridade entre o que
disjunta, separa, destrói, e o que junta, une, liga. Existem moléculas que, depois
de criadas a partir de vários átomos, se atraem, apegam-se umas às outras, se
ligam. Tanto quanto acredito que se deve utilizar com reserva – mas não ter
medo disso – a projeção metafórica, creio – para talvez concluir sobre essa
idéia de antropocosmo – que os vínculos no universo são inauditos, que os
vínculos entre o universo e nós são múltiplos. Que, no fundo, somos
inconscientes do fato de que levamos o universo em nós.
M. C. – E pode-se morrer de carência de universo, como diz meu amigo Yves
Simon.
E. M. – Como se pode morrer de excesso de universo. É por isso que, hoje,
como ontem, as cosmologias são constitutivas da história. No seio das “grandes”,
bem como das “pequenas” civilizações, elas religam o homem ao universo – ou
a tudo o que elas pensavam que isto fosse. Havia mesmo essa idéia de que os
humanos deviam ajudar o universo a prosseguir sua rota. Daí os sacrifícios
humanos cumpridos pelos sacerdotes astecas – sobretudo nos grandes anos
solares –, arrancando o coração de jovens. Essa crueldade tinha uma função
social, vital. Para eles, se não fosse aquele ritual o Sol morreria.
M. C. – Paradoxalmente, a sociedade ocidental, durante séculos, nunca se
colocou a questão da alimentação do Sol. Foi somente no século XX, graças à
física nuclear, que se chegou a explicar as miríades de casamentos que se
produzem em seu coração, e cujos suspiros de exultação e os gritos de alegria
se chamam luz.

2 Reliance, no original; palavra de origem inglesa: reunião, união. Mas existe em português
liança: aliança, atadura; daí a possibilidade de reliança [N. da T.].

29
4. A SETA DO TEMPO
Um retorno paradoxal
EDGAR MORIN – Nossa situação presente é das mais interessantes do ponto
de vista do pensamento e do conhecimento. Nós assistimos a um retorno do
tempo. Uma volta que é primeiro visível nas ciências humanas e mesmo, de
maneira notável, nas ciências históricas, enquanto que, fenômeno curioso, no
começo do século XX toda uma corrente da história pretendeu eliminar o
acontecimento reduzindo-o a espuma das coisas. As guerras, as batalhas, os reis,
nada disso era interessante ou importante. Contavam apenas as estruturas
econômicas, as evoluções lentas. Era uma história quase imóvel, bastante
determinista. De alguns anos para cá, os historiadores voltaram-se para o factual,
e o próprio factual volta através da biologia – e também da física...
MICHEL CASSÉ – ...Onde esse retorno aconteceu sob o signo da flecha.
E. M. – Sim. No que diz respeito à biologia, o tempo foi introduzido no
século XVIII, a partir do momento em que foi ultrapassada a fixidez das espécies,
e quando apareceram, com Lamarck, as teorias da evolução. Aqui existe uma
história, uma história da vida, uma história em que o acaso desempenha um papel
– desde Darwin, mas com um elemento de racionalidade que é a seleção natural
–, uma história em que existe lugar para as catástrofes. Por exemplo, foi um
cataclismo, sem dúvida ligado à chegada de um meteorito, que talvez tenha
revelado um vulcanismo, que provocou a extinção dos dinossauros e de inúmeras
espécies vivas. Essa história da vida, duas imensas catástrofes, antes do terciário,
também a mudaram, modificaram-na, porque, se os dinossauros desapareceram
com a extinção da vegetação, eles também serviram de alimento abundante,
durante longo tempo, a pequenos mamíferos carniceiros que foram nossos
ancestrais. Então, pode ser que estejamos aqui porque os dinossauros foram
mortos. O tempo e a história semeiam a biologia. Além do mais, como diz
François Jacob, quando observo a divisão de uma célula, vejo toda uma história
que sabemos, atualmente, ter começado antes mesmo dos pluricelulares, à época
dos unicelulares, com a diversificação das bactérias. Nós estamos em cheio na
história, uma história que a física clássica também tinha expulsado de seu
domínio. As leis físicas eram irreversíveis. A primeira perturbação aconteceu
com o segundo princípio da termodinâmica porque este indicava, como já
dissemos, que havia uma flecha do tempo, que quando se quebravam os ovos, os
ovos não podiam se reconstituir. Calhou à cosmologia, da qual você é um
representante brilhante, restabelecer o tempo no universo. Agora o elemento
fundamental, o tempo, está por todo lado, na física e na biologia, no mundo do
homem. O espaço é que parece estar se perdendo.
M. C. – Exatamente. O espaço está perdido porque, in fine, todos os lugares
se equivalem. Em troca, o tempo foi reencontrado. Mas o tempo ligado ao espaço!
A melhor flecha do tempo – já que existe um para cada ser, um tempo para o
conjunto dos seres e que um e outro coincidem – continua aquela do tempo

30
regido pela extensão do espaço. O espaço se dilata, e assim a escala de distância
fornece uma medida do tempo. No começo, a escala era pequena, na medida que
os objetos estavam bem próximos porque o espaço era estreito, enquanto que
agora eles estão bastante distantes porque a expansão fez o seu trabalho. Então,
o espaço é do tempo. Por exemplo, se tomamos duas galáxias, sempre as mesmas,
e as seguimos e medimos constantemente seu afastamento, temos uma medida
do tempo. Mas, se invertemos o propósito, se fazemos passar o filme de trás
para frente, com as galáxias se aproximando até se juntarem, então podemos
estimar a idade do universo. Quando elas estavam juntas, era o começo, pelo
menos o começo da expansão, ou, antes, o começo do universo conhecível, ou,
ainda, o começo do discurso sobre a origem do universo e não a origem radical,
que continua indizível no sentido de que o tempo zero é um instante num tempo
que não mais existe.
E. M. – Mas é razoável supor que antes do tempo, se houve flutuações naquele
vazio primordial, estas flutuações constituem pequenos acontecimentos.
M. C. – Sim, mas a noção de tempo não se aplica a essa etapa em que o
universo é quase quântico. As belas caravelas deterministas da cosmologia, do
nosso pensamento racional clássico, se perdem na espuma do tempo porque se
produz uma verdadeira catástrofe conceitual – que talvez não seja definitiva,
pela razão de que é puramente conceitual –, ligada ao fato de que o próprio
tempo torna-se uma entidade quântica e, portanto, flutuante. Mas se o tempo
flutua como a língua, não se pode dizer mais nada e, então, pensar.
Da eternidade e da entropia
EDGAR MORIN – Aqui, precisamente uma coisa me parece estranha. Você fez
alusão à não-localidade; ao fato de que, na microfísica, não há causalidade local.
Ora, desse ponto de vista microfísico, tudo o que interage no passado se encontra
em conexão imediata numa velocidade infinita. Quer dizer que naquele
momento...
MICHEL CASSÉ – ...Mas não se trata de um sinal físico, mas antes de um
conhecimento que se estende...
E. M. – ...Um conhecimento mais imediato, que ultrapassa a velocidade da
luz. Isto significa que tudo o que está separado é, de certa maneira, inseparável.
M. C. – É justo, mas não me sentiria à vontade falar disso.
E. M. – Nós verificamos isso, sem nos darmos conta, na profundeza da nossa
realidade social. Quando, no seio de uma sociedade, consideramos os indivíduos,
eles surgem manifestamente separados uns dos outros; mas, se mudamos de
óptica, se passamos do indivíduo para a sociedade, os mesmos indivíduos
parecem apêndices inseparáveis no seio da organização social. É igualmente o
paradoxo do indivíduo e da espécie: a noção de espécie é uma noção de
continuidade através da reprodução, através do ADN; mas cada indivíduo está
claramente separado de qualquer outro indivíduo, inclusive, e sobretudo, no
31
tempo. Dito de outra forma, tudo o que está separado é ao mesmo tempo
inseparável. Que paradoxo! Então, não se pode considerar que tudo está no tempo,
mas que tudo o que está no tempo está ao mesmo tempo num além ou num
aquém do tempo?
M. C. – Tudo o que está no tempo não existe verdadeiramente, diria um
autêntico platônico. Mas o aristotélico replicaria que a física é a ciência do
tempo, o tempo é a medida da mudança sem a qual não existe tempo – o que
volta a se inscrever numa visão totalmente evolutiva ou evolucionista das coisas.
Mas não existe eternidade na física como testemunham as leis de conservação?
Nada se perde, nada se cria, a energia é uma quantidade que se conserva.
E. M. – Mas apenas a partir do momento em que o universo existe.
M. C. – Sim.
E. M. – Então, ela seria eterna?
M. C. – Existe eternidade para a bolha. Existe eternidade no futuro, mas não
existe eternidade no passado porque ela nasceu, ao que parece. Mas o que é esse
nascimento e qual é o destino da bolha? Você colocou a noção crucial, aquela de
entropia. Para além da questão local, para um universo que é totalmente
inomogêneo, que é infinito, que contém uma infinidade de universos eles próprios
infinitos, pode-se aplicar as regras clássicas da entropia que se endereçam a
sistemas fechados? Isto não sei.
Quando morrem os astros
EDGAR MORIN – No entanto, as regras clássicas da entropia valem para os
diferentes sistemas organizados que estão no universo.
MICHEL CASSÉ – Mas, e se o universo é um buquê infinito de cosmos infinitos?
E. M. – ...Não se poderá fazê-los valer para o próprio universo. Mas para o
sistema solar...
M. C. – ...Também não, porque ele está aberto, o Sol está aberto, tudo está
aberto. Em tudo se estabelecem comunicações e, já que nós mencionamos as
dimensões suplementares, a questão também se coloca a esse respeito. Tudo
escapa, à maneira de um balde furado. Em tais condições, a famosa lei da entropia
seria aplicável ao universo multidimensional? E o que dizer, conseqüentemente,
sobre aquela da conservação da energia? E aliás, o que é energia do universo? A
energia de um sistema fechado, um sistema definido, um objeto, eu consigo
representá-la com equações clássica da física. Mas o sistema que o nosso diálogo
pretende explorar, quer dizer, o cosmo, não estou seguro de que se possa aplicar
a ele a noção de energia. Porque a entidade pertinente em relatividade geral não
é a energia, mas um misto de energia e de quantidade de movimentos representado
pelo tensor energia-impulsão.
E. M. – Vamos retomar aquela idéia de fechamento e de abertura. É certo que

32
a entropia é definida, primeiro, para sistemas fechados, mas ela pôde ser
generalizada em sistemas organizados quando os físicos começaram a refletir
sobre a vida a partir do segundo princípio da termodinâmica. Schrödinger, para
ficar só num exemplo, apegou-se ao paradoxo segundo o qual o ser vivo deve
começar a se degradar desde seu nascimento enquanto que, ao contrário, ele
pode se desenvolver. A solução – aparentemente, com muita habilidade –
consistiu em afirmar que o fenômeno de decrescimento de entropia, ou de
neguentropia, constatável em tal ou qual ser, faz crescer a entropia de seu
ambiente. Por exemplo, o Sol constitui-se uma reserva, se alimenta dele mesmo,
mas uma vez que ele tiver devorado sua matéria, acabará por explodir e
desaparecer.
M. C. – O Sol não vai explodir, mas depositar um cadáver, que se chama anã
branca, quase que eterna. Fala-se da morte do Sol, e isto é um grave desprezo. A
morte de uma estrela é uma passagem, pode-se dizer, de uma “perfeição luminosa”
para uma “perfeição obscura”. Assim, alguma coisa continua.
E. M. – Certamente, mas a morte de um ser vivo é a passagem de uma
organização para fragmentos dispersos. Quer dizer que nada morre materialmente.
M. C. – Nós somos seres mortais feitos de elementos imortais, de fato.
E. M. – Alguns deles são imortais. Seria interessante saber o que restaria do
universo num tal estado final de dispersão. Alguns prótons enormes?
M. C. – O futuro em tão longo prazo depende da eternidade ou não do próton,
suporte material de qualquer coisa. Duas possibilidades se apresentam. Ou bem
o próton é eterno, ou bem o próton é instável, o que não é impensável. Claro, ele
durou até o presente. Mas as teorias das grandes unificações pretendem que, a
despeito de uma esperança de vida extravagante – que se escreve 10 à potência
35 anos, portanto 1 seguido de 35 zeros! –, a priori o próton não é imortal.
Aliás, os buracos negros, que se acreditava serem coisas definitivas, à imagem
da morte no céu, se evaporariam e não seriam mais nem buracos nem negros,
mas gris nas bordas. A termo, tudo seria completamente desfeito, e não
subsistiriam se não fótons e neutrinos, formas eternamente estáveis porque
idealmente leves. O que significa que nada existe de absoluto. Nem morte
absoluta, nem vida absoluta. Nem nada absoluto, nem presença absoluta.
E. M. – T. S. Eliot, num verso fulgurante, diz que o universo está chamado a
morrer num sussurro. É verdade que não existe vida absoluta, nem morte absoluta,
mas relação inseparável entre estes termos.
M. C. – Exato, não há mais retorno absoluto do mesmo. E, à luz da ciência, da
cosmologia contemporânea, o mito ateu de eterno retorno está desacreditado.
E. M. – No momento, ele mesmo foi varrido. Se ao período de dilatação
segue-se um período de contração, o novo universo não seria o mesmo.
M. C. – Com toda a possibilidade, ele não seria necessariamente idêntico.

33
O círculo e a espiral
EDGAR MORIN – Assim, o erro fundamental de Nietzsche, pensador dos mais
profundos, dos mais fecundos, com intuições fabulosas, continua...
MICHEL CASSÉ – ...Sua idéia de eterno retorno.
E. M. – Um tanto mecânica, rotativa...
M. C. — ...Mas ele não é o único. Platão fez o mesmo com sua teoria do
grande ano, os indianos também. O tempo foi concebido como ou flecha ou
círculo; no entanto, triunfa atualmente a concepção judeu-cristã da flecha.
E. M. – Mas essa flecha também tomou uma forma espiróide.
M. C. – No coração dos homens, um tanto à maneira da evolução, como, por
exemplo, na concepção do marxismo, mas não no cosmo.
E. M. – Essa forma de espiral, então, que é uma forma no nosso mundo
terrestre, é ao mesmo tempo organizadora e desorganizadora. Criam-se partículas
em que moléculas juntas formam um turbilhão que se mantém através, digamos,
do fato de que as partículas e as moléculas se dispersam. Existe um fluxo e uma
estabilidade. Aliás, essa forma energética formidável, da rotação turbilhonante,
os humanos quiseram utilizá-la em seus moinhos e turbinas. E essa forma
espiróide, essa forma turbilhonante, é chocante encontrá-la tão freqüentemente
em fotos, como as que você me mostrou, de formação de galáxias e estrelas. O
importante é o momento em que há um fechamento sobre si, quer dizer, quando
se cria um si. Para que haja si, alguma coisa que seja uma entidade, é preciso que
haja um fechamento, se não é uma dispersão sem fim.
M. C. – Você dizia que o além está amarrado com o aqui-embaixo. É agradável.
Mas do que realmente exploramos do além, até agora, nós chegamos à idéia de
que o lá-em-cima é como aqui, e que é perfeitamente inútil buscar o paraíso.
Não sei se se deve alegrar-se com isto, mas não há mais algures e todos os
pontos se equivalem, o tempo é linear e não voltaremos ao doce calor da infância.
O além, quer seja platônico ou não, é aqui.
E. M. – Uma idéia que continua impensável, a meu ver, é a da ressurreição
dos corpos, idéia que aparece com os fariseus e Paulo, na virada do império
Romano. O além de uma vida para além da morte me parece pouco credível,
ainda que eu possa manter pontos de interrogação. O além já está entre nós.
Todo o universo que você descreve é um além de nossos sentidos imediatos.
M. C. – Não estamos mais no deserto dos sentidos pela razão de que nós
inventamos próteses. Nós não estamos mais no deserto do espírito pela razão
de que já existe muito de espírito aqui nesta matéria.
A consciência como emergência
EDGAR MORIN – O espírito, já que não somos teístas, não está na origem. É
uma emergência, uma emergência de emergência, sem dúvida. A língua francesa,
34
infelizmente – e diferentemente do inglês – tem a mesma palavra para dizer
duas coisas diferentes: o espírito, o princípio mental, the mind, e o espírito, o
princípio espiritual, the spirit. Mas o espírito, no sentido de mind, emergiu do
cérebro num momento da hominização, no momento em que a linguagem, a
cultura, foram necessárias para que as virtualidades daquele cérebro humano
pudessem tornar-se efetivas. O espírito emerge do cérebro porque existem
sociedade, cultura, linguagem. Dito de outra forma, é a ligação entre o cérebro
humano, a sociedade e a cultura humanas que o faz emergir. O espírito, desde
que emergido, com tudo o que isto comporta de psiquismo, tem essa capacidade
reflexiva. Ele pode refletir sobre o que ele sabe, assim como Montaigne
refletindo sobre ele próprio. O que chamo espírito, então, é essa capacidade
reflexiva de segundo grau de se distanciar de si e de se reencontrar depois desse
distanciamento. O espírito, em sua reflexividade, aparece então como a
emergência suprema. Ora, tudo o que é último é também o que é mais precioso
e o mais frágil – a flor, a juventude, a beleza. A consciência fragilíssima é ao
mesmo tempo a qualidade mais preciosa. Quando você se pergunta se o homem
é perfectível, a resposta, acho, é que ele só pode melhorar se melhorar sua
consciência.
Michel Cassé – Em todo caso, o homem resgata a amnésia cósmica com a
ciência, já que a matéria que pensa, que fala – quer dizer, nós, você, eu –, pende
para seu passado de matéria inerte, estelar, nuviosa, e seu passado de vazio.
E. M. – Pode ser que nos iludamos muito sobre nossa capacidade de memória.
Ainda que ela seja real, nem por isso deixamos de esquecer, salvo exceção, a
cada manhã, os inúmeros sonhos que tivemos à noite. Nós funcionamos com
amnésia. Não sabemos o que sabemos. Nós sabemos sem saber que temos em
nós todo o universo físico e biológico. Nosso espírito não o sabe. E também
aqui, acho eu, devemos unir duas noções...
M. C. — ...O saber e o desconhecimento.
E. M. – O conhecimento e o desconhecimento. Dado que o nosso modo de
conhecer está fundado em especializações múltiplas e separadas, na disjunção
dos elementos de conhecimento disso que, no entanto, é uno – por exemplo, o
rosto ou a condição humana –, nós temos necessidade, para compreendê-los, de
mobilizar a cosmologia, microfísica, a física...
M. C. – ...Todas disciplinas para as quais você sempre deu grande espaço...
E. M. – ...Mas também as ciências biológicas, claro que também as ciências
humanas (também separadas umas das outras) e, enfim, a literatura e a poesia.
Trata-se de buscar tecer, buscar encontrar um rosto humano sem anular todas
essas dificuldades, todas essas zonas de sombra, mas através delas, religando os
conhecimentos que foram produzidos em diferentes ciências. Eu penso que se
pode conseguir isso, e tentei em meu livro A identidade humana, Claro, o
trabalho está inacabado e, num certo sentido, inacabável, mas sempre pode ser
continuado, alguns elementos teriam de ser destruídos, substituídos por outros
35
ao longo da evolução dos conhecimentos. Hoje em dia, o imperativo é religar o
humano – sempre reconhecendo sua originalidade, sua especificidade, sua
unicidade – à sua natureza animal e biológica e à sua natureza psicológica e
cósmica.
M. C. – Isto se junta a um dos meus sonhos, uma de minhas intenções mais
profundas, que, infelizmente, às vezes é mal-compreendida no cenáculo da
astrofísica. Eu desejaria um humanismo estelar e, portanto, pretendo que nós,
físicos, escalemos uma encosta bastante escarpada, mas cujo cimo já está
ocupado pelos poetas e pelos matemáticos. Alguns caem para trás de temor, mas
eu me alegro com isso. Então, permita-me dizer que vejo em você um marrano
coperniciano.
E. M. – Aceito a fórmula que, saiba você, muito me agrada.

36
5. RUMO AO ANTROPOCOSMO
A expansão, o freio e a aceleração
MICHEL CASSÉ – Para voltar a proporções mais justas, eu gostaria de fazer um
balanço geral sobre a cosmologia, uma espécie de inventário do universo partindo
da observação. Os átomos são como violinos. Eles emitem notas de luz como
os instrumentos emitem notas de música. Nós aprendemos a ler seu alcance
musical estudando, nos laboratórios, as flamas e os clarões artificiais que podem
ser produzidos por descargas elétricas. Cada átomo possui sua assinatura – isto
que se chamam raios de emissão ou de absorção. Em outros termos, quando se
decompõe a luz vemos aparecer, nisso que se chama espectro, assinaturas claras
de átomos variados que não são, nem mais, nem menos, do que os átomos que
compõem nosso corpo. Então, por que se deslocar já que a luz vem até nós? É
uma apologia da preguiça. Mas quando se observa a luz que vem das galáxias
distantes, ela está descaída. Os comprimentos de onda – portanto, as notas da
partitura – estão ligeiramente desviados, como que o apito de um trem que está
vindo em nossa direção: quando o trem está chegando, de frente, a nota é mais
aguda; quando ele se afasta, a nota é mais grave. É o mesmo com a luz. Então,
adquirimos a convicção de que o universo está em expansão porque a luz das
galáxias longínquas desvia para o vermelho. Ela é mais vermelha que aquela
observada nos mesmos átomos em laboratório. Dizer, por exemplo, que uma
estrela está a quatro anos-luz significa dizer que a luz que nos atinge gastou
quatro anos para chegar até nós. Existe aí um anacronismo. Quanto mais se
observa o longe – portanto em descaimentos espectrais elevados –, mais
remontamos no tempo. E assim se lê, de próximo em próximo, a história do
universo. Mas, por outro lado, a velocidade de distanciamento dos objetos – já
que as galáxias parecem separar-se de nós – aumenta em função de sua distância.
Pode-se estabelecer uma espécie de vínculo entre o descaimento espectral e a
expansão do espaço. Mas, recentemente, estudando essas estrelas explodidas
que chamamos supernovas, e que são como faróis nos permitindo estabelecer
marcos no universo, nós percebemos que a expansão do universo se acelera. Até
então, nós pensávamos que a expansão do universo iria desacelerar sob o efeito
da atração da matéria pela matéria, que chamamos gravitação. Existe, então, um
agente que acelera a expansão do universo. O universo está dotado de um freio,
que é a atração da matéria, mas também de um acelerador. É um soberbo Cadillac.
EDGAR MORIN – Que se apóia sobre os dois pedais ao mesmo tempo.
M. C. – Pois é. Esse universo nada simples tem capacidades de aceleração e
de retração. E acontece que a época atual é de aceleração. Estamos num momento
de diáspora. Uma diáspora cósmica às custas de um distanciamento certamente
irreversível das galáxias, a menos que o acelerador sofra uma avaria. Os físicos
e cosmologistas dos novos tempos, então, são anunciadores de grandes novidades,
de novidades de envergadura cósmica, nem boas, nem más: eles vão pelos
caminhos todos proclamando a expansão eterna das três dimensões do espaço
que nos são perceptíveis. Sobre as dimensões ocultas, se é que existem, não

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podemos falar, porque ainda ignoramos sua história que está à parte. No entanto,
com os teóricos do microcosmo anunciando urbi et orbi a existência de seis a
sete dimensões do espaço, completamente inaparentes, insuspeitas, isto leva a
pensar que o efetivo de dimensões do espaço-tempo poderia ser dez ou doze.
Estas novidades astrofísicas e cosmológicas só poderiam rejubilar os Giordano
Bruno germinantes, os homens de sandálias de vento. A tendência, como eu já
disse, é resolutamente à diáspora, ao descentramento progressivo, à
multiplicidade sutilmente única, para falar com suas palavras, Edgar Morin – ao
recorte do Um de múltiplos universos, à embocadura dos “pluriversos”.
No plano afetivo e humano, o universo geme por se ver separado em indivíduos,
e os povos perderam a alegria de sua infância. O despertar dos espíritos será o
começo de uma nova história do mundo.
As dimensões por vir
EDGAR MORIN – Aqui nos encontramos, de maneira decisiva, diante de um
universo estanho. De uma parte, sabemos que o Sol é mortal, sabemos que a vida
é mortal, sabemos que a humanidade é mortal, mas aqui é o nosso cosmo que se
descobre mortal – ele nasceu e morrerá. Nós temos o mesmo destino, que é
medido apenas em escalas de tempo bastante diferentes. De outra parte, continua
esta questão importante, sobre a qual não se sabe se é enigma que poderá ser
decifrado ou mistério que continuará inconhecido, sobre a existência de seis ou
sete dimensões suplementares que podem oferecer sonhos dos mais malucos.
MICHEL CASSÉ – O que se trama dentro dessas dimensões? O transmundo
dimensional está sendo investigado. Por enquanto, ele é pura necessidade lógica,
como os neutrinos antes de serem descobertos.
E. M. – A única certeza é que a própria noção de realidade se encontra afetada
pela cosmologia. Afetada e questionada. Primeiro, ela se fragmenta em vários
tipos ou níveis de realidade. Existe um microfísico; existe um outro, o nosso,
que chamamos macrofísico, e ainda mais, que se poderia dizer megafísico ou
cosmofísico. Em seguida vem o vazio, grau de realidade na fonte de tudo, que
questiona radicalmente nossa realidade, porque, se há alguma realidade, o que é
a nossa? Isso me faz pensar na obra de Fang Yi Si, o pensador chinês do século
XVI que buscou unificar o pensamento búdico com o pensamento taoísta. Duas
idéias particulares se confrontavam: de um lado, o samsara, o mundo dos
fenômenos que tem sua realidade, mas que não é plenamente real; de outro, o
nirvana, o mundo sem forma, análogo ao nosso vazio, que é plenamente real,
ainda que não tenha realidade. O que afirmou Fang Yi Si? Que o samsara e o
nirvana são duas polaridades do mesmo. Isto que poderíamos dizer, do nosso
lado, sobre o vazio primordial e o universo material. Mas o que significa, enfim,
no plano humano, compreender nossa nova afinidade com o universo, já que o
pobrezinho também é mortal? O problema do grau de realidade de nossas vidas,
que nos parecem o que de mais real existe, foi colocado há muito tempo pelos
filósofos e os escritores. Vejamos Calderón naquela peça maravilhosa, A vida é
sonho, onde no fim o herói não sabe mais se sonha ou se está acordado. Vejamos

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aquela fórmula tão densa de Heráclito, que sempre me espantou, talvez uma das
mais fortes de toda a biblioteca filosófica: “Despertos, eles dormem”. Nós
pressentimos a veracidade desta fórmula quando pensamos que uma enorme
parte de nós mesmos é sonâmbula. Nosso coração funciona em si mesmo sem
que tenhamos consciência disso. Nosso cérebro – eu mesmo, neste momento
em que falo com você – funciona automaticamente com miríades de choques
sinápticos. Existem tantas e tantas coisas que fazemos à maneira pela qual
Büchner definiu magnificamente em A morte de Danton: “Somos marionetes
agitadas por forças desconhecidas”. Quando sonhamos, não pensamos que
estamos sonhando, nós só sabemos disto posteriormente. Não estamos, nisto,
numa espécie de samsara? Isto que os místicos vêem num êxtase sem forma é
uma realidade absoluta, mas ela própria é vazia. O sentimento que tiro disto é
que nossa realidade profunda, dos humanos, está na afetividade, isto é, no amor,
na amizade, no sofrimento, no riso, no sorriso.
M. C. – Nós somos alucinados do transmundo, segundo a acusação que
Nietzsche lança contra Platão, ainda que esse transmundo seja visível,
contrariamente ao que se pode pensar. Mas você falou em duas polaridades que
eu traduziria, como físico, como divisão entre a relatividade geral e a mecânica
quântica, sem omitir a promessa de reliança que existe também entre elas. A
perspectiva de seis ou sete dimensões suplementares deve ser encarada como
uma oferenda que é preciso saber aceitar. Com isto, segundo seus próprios
termos, Edgar Morin, a ditadura da simplificação disjuntiva e redutora estaria
revirada.
Conhecer de outro jeito
EDGAR MORIN – Se tudo o que disjunta, ou melhor, separa, é tudo o que reduz
conjuntos à sua base constitutiva, eu chamo isto de simplificação. E é isto que,
hoje em dia, parece condenado, ainda que se possa encontrar alguns princípios e
leis simples que regem nosso universo, as quais estão fundadas, não num solo,
em terra firme, mas no vazio, no máximo num vaso. Popper já afirmava que as
teorias científicas, enquanto teorias, estão fundadas sobre pilotis que repousam
sobre um vaso. Toda conquista, a grande conquista do pensamento contemporâneo
começa com Nietzsche, que você acaba de citar, toca a descoberta de que não
existe fundamento primeiro de toda verdade, fundamento de certezas. Até a
declaração nietzschiana, os pensadores ocidentais buscaram obsessivamente a
Deus; depois vagaram desesperadamente ao perderem Deus. Então eles quiseram
acreditar que a ciência tinha um fundamento de certeza. Mas, afora as certezas
examinadas nos fatos, aconteceu que ela não autorizava uma certeza fundamental.
Todos os grandes filósofos da ciência, Bachelard, Popper, Lakatos, demonstram
isso.
MICHEL CASSÉ – E Gödel, nas matemáticas.
E. M. – E estamos aqui, num universo sem fundamento – e este “sem
fundamento” se parece, estranhamente, do ponto de vista conceitual, com o vazio

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primeiro e fundamental. Note-se, então – e você é o primeiro a sabê-lo – que
nós podemos pensar e conhecer sem fundamento. O termo fundamento remete
a uma metáfora arquitetural, ontológica, enquanto que, no fundo, nós podemos
pensar e conhecer sobre o modelo da sinfonia musical, que não toca mais a
terra, começa com o movimento, se espande na orquestração, deixa os
instrumentos responder uns aos outros. Penso que o conhecimento e o
pensamento são dessa ordem. É preciso aprender sem fundamento, lição que
nos deram Nietzsche, no fim do século XIX, Popper e os outros em meados do
século XX, e que, hoje, nos dá o cosmo. Existe um fundamento sem fundamento.
M. C. – Toda presunção realista acaba impossível, como sublinha este verso
de Apollinaire que me vem à memória: “Deslizai pontes sobre as águas”. O
espírito renuncia ao absoluto no sentido de que, como eu disse, o que existe
absolutamente absolutamente não existe.
E. M. – Mas seria dito isto, por exemplo, dos nossos amores? O amor, que
existe absolutamente para aquele que ama, ou para o casal em que um ama o
outro, este amor não existe absolutamente?
M. C. – O absoluto do amor está na renúncia de si. Ora, si é um outro.
E. M. – Também aqui não se requer absoluto absoluto. Mas, por falar de
amor, falemos de poesia, já que você emprega naturalmente uma linguagem
poética para evocar o cosmo. Uma poesia que você junta ao universo não para
enfeitá-lo, mas com a qual você mostra, como um revelador, que ele está
carregado, e de maneira fabulosa. Isto nos incita, talvez, a manter a qualidade
poética dos nossos espíritos – mas eu sublinharia ainda mais o quanto, para
compreender ou, antes, para raciocinar, uma vez que se tenham os conhecimentos
necessários obtidos por meio de cálculos, se impõe a ressonância poética. Nós
subentendíamos isso falando dessa violência, dessa crueldade, e ao mesmo tempo
dessa reliança, dessas afinidades múltiplas no universo. É preciso manter essa
idéia, não para nos afogar nesse universo dissolvendo-nos aí, mas para
continuarmos humanos, estes seres muito singulares, muito curiosos, que somos
nós, como dizia Monod, ciganos do universo e, ao mesmo tempo, integralmente
seus filhos.
M. C. – Eu continuo a dizer que é preciso revestir as verdades úteis com
formas agradáveis. Falta à ciência uma certa forma de generosidade. Ora, a missão
do homem de ciência é tripla: ele deve, primeiro, pesquisar – mas esta é sua
faina; depois, descobrir – mas os caminhos da descoberta são impenetráveis;
enfim, dizer – nós devíamos ser todos animados pelo instinto profundo de um
dever sagrado que é a partilha do tesouro. Só existe tesouro se ele pode ser
partilhado. Ora, o tesouro mais inestimável não é outro senão o conhecimento.
Quanto ao maravilhamento poético despertado pelo universo, maravilhamento
partilhado, porque o céu constelado não cessa de iluminar a paixão dos homens
em busca de clareza, sobre este segredo Van Gogh escreveu ao irmão Théo:
“Isto mexe com a questão eterna, a vida é inteiramente visível por nós ou só

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conhecemos dela um hemisfério? A vida das estrelas me faz sonhar tanto quanto
simplesmente me fazem sonhar os pontos negros representando, no mapa
geográfico, cidades e vilas. Por que, dizia-me eu, os pontos luminosos do
firmamento não seriam menos acessíveis que os pontos negros no mapa da
França?”. Seria preciso juntar alguma palavra a isto?
A carne do mundo
EDGAR MORIN – Aqui também bate essa espécie de reciprocidade, de anel no
seio do espírito que, partindo de nós, deste círculo, vai rumo ao céu e volta do
céu para nós. Pode ser que um dos aspectos maiores da poesia seja o de manter
em nós essa capacidade de circularidade, quando somos enviados às estrelas
que olhamos no meio da noite, e estas estrelas nos mandam para nós mesmos e
assim sucessivamente.
MICHEL CASSÉ – Não seria abusar das palavras de Van Gogh se citarmos, como
contraponto, Poincaré. O sábio reforça a palavra do artista quando afirma que o
Um é mais sorridente e cúmplice do que nunca: “A natureza é uma obra prima
incomparável, cuja beleza vem do contraste entre a variedade das aparências e a
unidade profunda da realidade subjacente”.
E. M. – A isto eu replicaria que o ponto central é o Um que contém ou produz
o diverso. Eu não consideraria nem o Um superior à variedade que é aparência,
nem, como esses que fazem classificações e perdem o sentido da unidade, a
variedade mais importante que o Um. Nós nos encontramos sempre submetidos
a esta espécie de alternativa por causa da maneira pela qual nos ensinaram a
pensar, e isto começou na Antiguidade: ou bem se vê o Um e não se vê mais o
diverso, ou bem se vê o diverso e não se vê mais o Um. Ora, na realidade, é
preciso colocar o Um múltiplo, o unitas multiplex. Este é o mistério do nosso
universo, totalmente um, todavia múltiplo.
M. C. – Ele é omniversum.
E. M. – Exatamente.
M. C. – E, portanto, é um e múltiplo.
E. M. – É um e múltiplo ao mesmo tempo.
M. C. – No entanto eu me coloco a questão de saber por que existe um só 2.
Se 2 é igual a 1, 2 e 2 não somam 4.
E. M. – Sou incapaz de responder a essa questão.
M. C. – Eu também não.
E. M. – Mas Dostoievski notou que o incomodava que 2 e 2 sempre somam
4 e a idéia de que 2 e 2 possam somar 5 lhe parecia uma coisa charmosa. Foi
Lautréamont que exaltou a beleza das matemáticas – “Ó matemáticas severas” –
e deixou uma página lírica sobre isso. Também a poesia não pode ser considerada
entidade separada. Existe uma poesia, e uma poesia profunda, da matemática.
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Vejamos poesia em tudo onde ela se encontra, e sobretudo mantenhamos em
nós a poesia como substância de vida porque sentimos em demasia a prosa das
atividades que nos contrariam, que nos cansam, que fazemos por obrigação, para
sobreviver. Mas sobreviver não é viver. Viver é viver poeticamente, e aqui talvez
esteja uma mensagem cósmica.
M. C. – Para continuar neste seu sentido, o que é esse oceano cujo vazio é a
margem? A carne invisível e fluida do cosmo jaz sem imagem, não deixemos
sem sepultura o grande corpo invisível do cosmo. Mesmo que respondamos de
maneira diferente a essa pura questão. Thibault Damour e Jean-Claude Carrière
abriram várias novas portas do espaço multidimensional. Marc Lachièze-Rey
retomou o discurso sobre o além do espaço-tempo. Jean-Pierra Luminet e Roland
Lehoucq tendem a estendê-lo sobre nós. Finito e infinito têm seus partidários.
Mas cada homem continua um herói solipsista.
E. M. – Não apenas sua imagem é soberba, mas também me parece participar
dessa mensagem.
Celebração da ciência
MICHEL CASSÉ – Resta esta palavra de Nietzsche – ainda ele – que remeto a
você como forma de última interrogação: “Dizer que tudo volta é aproximar ao
máximo o mundo do futuro daquele do ser, signo da contemplação”. Por que
eternizar, qual o sentido da vontade de eternizar?
EDGAR MORIN – Tempo rotativo ou tempo linear? Nós vivemos os dois, e não
apenas nós. A Terra gira em tono dela mesma, ela gira em rotação; a Terra gira
em torno do Sol, ela gira em rotação e, vivendo estes tempos rotativos, ela vive
o tempo linear. Uma civilização participa semelhantemente do tempo rotativo,
pelas estações, as festas, as cerimônias, os aniversários, mas esse tempo rotativo
faz funcionar o tempo linear do qual ela igualmente vive. Não se pode opô-los
um ao outro. Mas pode-se duvidar, e mais ainda, de que a rotação controle tudo
e seja eterna. É preciso inverter a proposição nietzschiana, dizer que o tempo
irreversível é capaz de produzir rotações que, de alguma maneira, mantém e faz
viver isso que, de outro jeito, se dispersaria imediatamente. Se na origem está
uma catástrofe, isto que você chama de cólera do vazio, então é preciso considerar
que logo nasceram do coração dessa catástrofe tentativas de desacelerá-la,
corrigi-la. Estas tentativas de desacelerá-la, corrigi-la, são evidentemente as
grandes leis do universo, as interações, as relianças, são as contrações
gravitacionais, são as estrelas que vivem elas mesmas num tempo rotativo. Dito
de outra forma, tudo o que tenta viver, chegar à existência, isto é, lutar contra a
morte, vive no tempo rotativo. Mas temos a tendência a esquecer que o tempo
irreversível existe. Os astecas também viveram o tempo rotativo, mas quando
chegaram os conquistadores espanhóis, o tempo irreversível destruiu sua
civilização, decretando o seu fim.
M. C. – Mas nem por isso o tempo irreversível anula esse desejo de eternidade
que nasce da contemplação das estrelas. Deixo aos filósofos o cuidado de
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descobrir por que. No entanto, e nosso diálogo mostra que você mesmo está
convencido disto, caro Edgar Morin, eu demarcaria com prazer o círculo da
metafísica tendo a fraqueza de considerar, por somente uma e única vez, que, em
nos abrindo para a celebração do antropocosmo, a física vai para além da
metafísica.

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POSFÁCIO

Na seqüência dos nossos primeiros encontros em Beychevelle, este livro


pretendeu primeiro ser um banquete. Eu estava feliz por reencontrar Edgar Morin,
o mais letrado dos convivas, vigia e pastor de seu tempo, e recolher de sua boca
reflexões que provocam as soluções cosmológicas modernas com enigmas tão
velhos quanto as civilizações. Juntos, mergulhamos no rio cosmológico. E, como
que de volta do banho, dissertamos sobre estrelas sob os olivais de perfume de
verão antigo.
O céu-cosmo ressoa, como vimos, em questões imemoriais: a criação se fez
de uma vez para todas e tudo de uma vez? Como o Um estilhaçou-se em multidão?
Restam vestígios do Um neste mundo aqui embaixo? O que havia antes do bigue-
bangue? O universo é finito ou infinito? Sua expansão continuará sem remissão?
A morte térmica do universo é inelutável? O cosmo é único?
Mas de todas estas questões, particularmente uma continuou de viático em
mim no caminho de volta. Lembrando por duas vezes o ritual asteca de sacrifícios
humanos ao Sol, Edgar Morin não estaria me convidando a determinar se a morte
térmica do universo é ou não inelutável? Uma interrogação das mais
contemporâneas se juntava a uma angústia das mais arcaicas. As reflexões que
se seguiram, no entanto, tratavam menos de trazer uma resposta para uma e outra
do que circunscrever um campo de pesquisas.
Primeiro, o buraco negro. É ele um mundo, um cosmo mascarado? Não estou
longe de pensar assim. Mas disto não sei nada. Buraco negro em meu
conhecimento. Quanto ao próton, é ele um mundo? Existe mundo num próton,
seguramente: quarks, glúons, partículas mensageiras, em relações complexas...
Podemos chamar de cosmo a um próton? O próton partilha com o cosmo o
mesmo espaço-tempo e as mesmas influências (forças). Próton, então, é um
fragmento do cosmo. Talvez se possa dar uma definição mais estrita do conceito?
Seguramente.
Um cosmo é definido como espaço-tempo, provido de um certo número de
dimensões, domínio de atividade de uma série de partículas elementares de
identidade precisa e subordinadas a determinadas forças, elas próprias veiculadas
por partículas ancilares. O nosso cosmo pode ser caracterizado pela seguinte
lista: três dimensões de espaço, uma de tempo; três famílias de partículas, dentre
elas apenas uma é durável e cujos membros formam duplas (quark u e d, neutrino
e elétrons). Estas partículas, verdadeiras pedras de construção do mundo, estão
em relação por quatro forças diferenciadas, que talvez fizessem apenas duas ou
mesmo uma no passado longínquo, e cujos agentes são os fótons, os glúons, os
bósons intermediários e os hipotéticos grávitons.
A entropia é uma medida do número de estados microscópios possível numa
dada energia. Assim, se uma só entidade (campo ou partícula) concentra toda a
energia, a entropia é baixa. Se, por outro lado, ela se divide para dar uma multidão
de partículas, a entropia é alta. Este crescimento de entropia (transformação do
um em múltiplo) parece prevalecer em todo o universo observável. O Sol dá a
prova mais evidente disso: a energia emitida sob forma de raios gama pelo artifício
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das reações nucleares emerge na superfície do astro sob forma de uma
multiplicidade de grãos de luz acariciando o olho. Os raios gama de muito alta
energia estão, por assim dizer, divididos em múltiplos fótons visíveis. Desse
fato decorre o aumento da entropia.
Quanto mais elevado o número de partículas, mais elevada a entropia. Num
sistema fechado, sem relação com o exterior – cujo mais evidente e belo exemplo
é o próprio cosmo – ela está fadada a permanecer constante ou a aumentar. Ela
jamais decresce, tal é em substância o segundo princípio da termodinâmica. A
energia cai em cascata para tomar formas cada vez mais fúteis, cada vez menos
utilizáveis.
A ordem se constitui naquilo que brilha: com efeito, a luz transporta para
longe a desordem. E o objeto brilhante se estrutura internamente.
Um buraco negro é um poço onde se perde a informação: toda estrutura
elaborada e complexa das coisas que ele engole, flores, copos de cristal, cabelos,
porta-aviões, é transformada em sopa indistinta, indecifrável. Toda matéria
seqüestrada por um buraco negro perde seus atributos distintivos. Mas, em troca,
o buraco negro regurgita de fótons de alta entropia, a se dar crédito a Hawking.
A informação que se perde num buraco negro é proporcional à superfície de seu
horizonte (esfera de não-retorno, de raio 2GM/c2). A fórmula do raio do horizonte
de um buraco negro é um pouco mais difícil de memorizar do que E = mc2, que
escrevemos como um pequeno poema. É igual a duas vezes o produto da constante
da gravitação universal (G) pela massa do buraco negro (M) dividido pelo
quadrado da velocidade da luz (c). A título de aplicação numérica, o leitor pode
tomar a massa do Sol (2.1033 g) para obter um raio de 3 km.
A informação engolida no buraco negro é proporcional à superfície da esfera
de não-retorno (horizonte). Esta superfície é, então, uma medida de sua entropia.
Quando dois buracos negros se chocam, eles se fusionam para formar um único
buraco negro cujo horizonte é superior à soma dos horizontes iniciais. Isto pode
ser facilmente assegurado.
A massa do buraco negro resultante é a soma das massas dos buracos negros
individuais M = M1 + M2. Sendo o raio do horizonte proporcional à massa, e a
área proporcional ao raio ao quadrado, a superfície do horizonte final é
proporcional à M2, isto é (M1 + M2)2, que é maior que M12 + M22. Imediatamente
se vê que a superfície do horizonte do buraco negro formada pela reunião dos
dois buracos negros individuais é superior à soma das superfícies de seus
horizontes. Assim, como na entropia, a superfície do horizonte dos buracos
negros não pode decrescer. Um buraco negro não pode jamais se dividir em
dois, senão a superfície total do horizonte diminuiria. Infere-se disto que esta
superfície é uma medida da entropia. Para além deste argumento simples, o
pensamento fica nublado. Apesar de esplêndidos avanços imputados à teoria das
supercordas, a suspeita recai sobre o valor da entropia dos buracos negros e,
portanto, sobre aquela do universo que os contém.
Continuo em dúvida sobre o fato de que se confira uma entropia ao horizonte
imaterial dos buracos negros. A partir do momento em que sejam suprimidas as
partes de discurso, quando seja abolido o escuro conceitual, a situação se clareia.
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O cosmo mudou de rosto em vários momentos, e isto de maneira radical. No
começo, há muito tempo (14,7 bilhões de anos), ele era constituído de um campo
muito puro que viveu de maneira fugaz, V, o Vazio quântico; depois uma espessa
mistura de partículas tomou seu lugar, do qual restaram apenas as mais leves,
fótons e neutrinos, com – como se grãos de pimenta – os núcleons e elétrons. A
imensa energia liberada pela desintegração do primeiro vazio (Ë) (falso vazio
sobre o qual devemos celebrar as metamorfoses) se encontra, hoje em dia,
essencialmente sob forma de fótons e de neutrinos cósmicos esfriados pela
expansão do universo. O que não quer dizer que eles governem o destino do
universo, porque sua densidade de energia é, hoje em dia, ínfima em relação
àquela da matéria escura e da quintessência (energia escura). No entanto, eles
constituem a quase totalidade da entropia do universo observável. A radiação
cósmica fóssil e o fundo de neutrinos fantasmas, que nos parecem tão
insignificantes hoje em dia, são vestígios da energia inimaginável que existiu no
universo primordial, enquanto que a matéria que tanto nos impressiona é resultado
de uma ínfima diferença de comportamento (entre matéria e antimatéria que se
inverteu em detrimento desta última) que então, naqueles tempos, não tinha
nenhuma importância.
O número de fótons e de neutrinos, partículas leves e estáveis, é constante,
ou quase, mas sua energia (comprimento de onda) não o é. O comprimento de
onda se alonga no diapasão da expansão do espaço. Tanto que, se for invertida a
flecha do tempo, a energia por centímetro cúbico dos fótons e neutrinos de
espaço aumentaria a ponto de dominar todos os outros. No começo é a luz, mas
o que restará no fim?
Uma teoria da gênese, ainda que seja o bigue-bangue, lembra imediatamente
uma teoria do apocalipse e do fim último. Dito isto, para iniciar o discurso
sobre o fim, voltemos sobre o ofício da sempiterna questão da entropia do
universo e de sua morte térmica.
Primeiro, precisemos os termos. A entropia, como já dissemos, é uma medida
do número de maneiras de ser de um sistema físico isolado, de dada energia.
Quanto mais o sistema se atomiza, se divide em objetos distintos, mais sua
entropia é elevada, mais ele pode perder configurações microscópicas variadas
sem modificar sua aparência exterior. Os físicos associam tradicionalmente a
noção de entropia àquela de desordem.
Morte térmica significa uniformidade de temperatura e cessação de toda
atividade criativa no cosmo, porque as diferenças de temperatura (gradientes)
são necessárias para que a evolução continue. Assim, se o céu fosse tão quente
quanto as estrelas, estas não irradiariam. Ora, para uma estrela, brilhar é uma
necessidade absoluta.
As questões de apocalipse ou de morte lenta relativas ao universo, eu as
abordaria sem grande convicção, porque continuo agnóstico sobre a noção de
entropia aplicada aos objetos muito especiais (e bastante aparentados) que são o
universo e o buraco negro. Não podemos dizer nada de sensato sobre a entropia
do cosmo? Podem-se dizer muitas coisas, talvez demais. A língua se bifurca. Eis
aí o nó.
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Em primeiro lugar, pode-se mostrar a seguinte posição, sem grande risco de
engano: o número de fótons no cosmo é uma medida da entropia do universo
observável (se, por um instante, colocamos de lado os buracos negros) e este
continua constante, ou pouca coisa diferente. O que significa que o cosmo atingiu
seu estado de equilíbrio definitivo, no que ele está morto (ou quase) desde seu
nascimento, ou, mais precisamente, desde o fim da inflação cosmológica, quando
todas as partículas foram engendradas.
Nessa ordem de idéias, poder-se-ia dizer que o cosmo está quase morto,
porque a entropia acrescida pela radiação das estrelas e dos buracos negros é
negligenciável em relação àquela que guarda seus fótons e neutrinos originais,
saídos da transmutação do Vazio primeiro, pai de todas as coisas, em partículas.
Uma outra posição possível é a seguinte: a matéria e a radiação têm uma
temperatura que declina diferentemente em função do fator de escala que mede
o engrandecimento do universo sob o efeito da expansão (1/R2 e 1/R,
respectivamente), e deste fato não pode haver temperatura única para os dois
componentes. E então, não equilíbrio térmico. Em qualquer caso, é vão esperar
uma morte térmica que nunca acontecerá.
Apesar de minha prevenção, a perspectiva mais estimulante e talvez a mais
pertinente é a aplicação da. lei da termodinâmica dos buracos negros ao universo.
Esta aproximação pode parecer estranha, mas ficamos surpresos ao constatar
que, se o universo não é um buraco negro, ele não está longe de sê-lo. O raio do
universo observável está próximo daquele do horizonte de um buraco negro de
mesma massa, algo como um fator 2 (o próprio leitor pode fazer o cálculo).
Atribui-se ao horizonte uma entropia proporcional à sua área.
A analogia entre superfície do horizonte e entropia nos conduziu a isto: nem
uma nem outra pode decrescer. Quando dois buracos negros M1 e M2 se fundem,
a superfície de seu horizonte (proporcional ao quadrado da soma das massas) é
superior à soma das áreas dos horizontes individuais (proporcional à soma das
quadrados das massas).
Esta similitude de comportamento levou Jacob Bekenstein a generalizar a
segunda lei da termodinâmica e a enunciar assim: a soma da entropia dos
buracos negros e da entropia da matéria exterior não decresce em nenhuma
circunstância. Esta lei toma uma forma mais precisa depois da descoberta de
Hawking segundo a qual um buraco negro irradia a uma temperatura inversamente
proporcional à sua massa. Constata-se que o buraco negro não é nem buraco
nem negro, mas gris nas bordas, mas logo nos desencantamos: a entropia calculada
para um buraco negro de massa similar à do Sol (horizonte de 3 km de raio)
atinge a extravagante cifra de 1078, o que faz recuar de susto!
Mas não é a única dificuldade. Tudo o que cai num buraco negro perde seus
atributos distintivos. A ignorância cresce, a informação se perde, a entropia
aumenta... mas isto deve ser corrigido a partir do momento em que se admite,
como Hawking, que os buracos negros se põem a irradiar quando se coloca um
elemento quântico em sua descrição. Todavia, se esses objetos irradiam, eles
perdem massa, portanto o raio de seu horizonte (proporcional àquela) se
reabsorve, e nestas condições o que eles têm no interior deve surgir. Mas quando?
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Buraco negro no conhecimento, disse eu ao começar estas reflexões que não
têm qualidade de tratado, mas pretendem sugerir a complexidade de um
questionamento. Cortinas baixadas, então? Não. Como nós cuidados de mostrar,
o universo, quer seja ele finito ou infinito, só pode nos inspirar, a nós, filhos do
céu, infinitas conversas. O universo é verbo. Nós continuamos no mundo, ainda
que tão longe prossiga a viagem dentro e fora dele.
MICHEL CASSÉ

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