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ANTONIO ROMANE
DO CAFAJESTE AO
CACHORRO DE CYRULNIK
3 De la parole comme d’une molécule, Eshel, Paris, 1995, col. « Points Essais ».
expressão e, estendendo errance (grafo com dois erres e a), percebo que é a
nossa errância: différence, errance / diferença, errância: diferrância.
Imaginamos uma aglutinação, um sintagma. Mas nisso que ouvimos
aglutinação, sintagma, outros podem ouvir trocadilho, calembour. Aliás, o
Petit Robert define calembour como “jogo de palavras baseado na différence
de sentido entre palavras pronunciadas de maneira idêntica ou aproximada”.
Bom, revenons à nos moutons – sendo “nos moutons”, como sabemos,
“vaca fria”.
Vamos supor que, por um ou mais motivos, diferrância seja julgada
não-satisfatória, e até mesmo inconveniente. Então, vamos tentar buscar
três sufixos assonantes: -ança (com cê-cedilha, como em “duvidança”), -
ância (com circunflexo e cê, como em “discordância”) e -ência (também com
circunflexo e cê, como em “diligência”). O primeiro sufixo daria “diferança”;
o segundo, “diferância”, e o terceiro, “diferência”.
O que é diferança? Diferança é herança diferida? Diferança é
ferocidade diferente? Diferança é ferocidade duplicada? Diferança é herança
diferente?
O que é diferância? Diferância é ânsia diferente? Diferância é ânsia
diferida?
O que é diferência? Diferência é uma deferência diferente? Diferência
é uma diferença que fere? Diferência é uma diferença abrangente?
Está bem, nem diferrância nem diferança nem diferância nem
diferência! Vamos tentar com prefixos: podemos ter disferença, diaferença,
multiferença, poliferença.
Observemos que o uso destes prefixos não é arbitrário como pode
parecer à primeira vista, digo, audição. Acontece que usamos o elemento de
composição interpositivo -fer-, do latim fero, que desembocou em coisas
como proferir, aferir, conferir e diferir. Também não vamos confundir com
os dois elementos de composição antepositivos fer-, no sentido de selvagem,
bravio, e no sentido de fértil, fecundo.
Podemos recapitular todas essas palavras inventadas, mas
imaginando cada uma delas escrita – não mais voz, mas silencioso grafema.
E que seja em escrita cursiva, com lápis em papel off-set, com lápis de cor
em papel cuchê fosco, ou na tela do computador; figuradas cada uma em
MAIÚSCULAS, minúsculas, Cx A, Cx b, VERSALETE, com serifa, sem serifa,
redondo, negrito, itálico, negrito itálico, em pedra, em argila, em
bronze, em prata, em ouro, em baixo relevo, em alto relevo, com pincel ou
cinzel, com o dedo indicador na água ou no ar: diferrância, diferança,
diferância, diferência, disferença, diaferença, multiferença, poliferença...
Então, onde estariam as diferenças? Onde está a di-ferença? Diferença
já não é di-ferença, errância? Este foi um pecado deste tradutor: pressupor
que o leitor leia diferença e perceba que já é contentora de errância
movimento tempo e espaço. Ou Derrida não diz [diff]errance?
Traduzir um texto de Derrida sem ouvido interno é tarefa impossível,
ou pelo menos bastante insatisfatória. E sempre haverá double bind, sim,
mas no limite do double bind, double blind: que se salvem o ético, o poético
e o noético! Devo confessar que a expressão double bind me faz lembrar
menos sua aplicação ao fazer tradutório (nem pensar em traducianismo!) e
mais seu significado nas pesquisas de Gregory Bateson sobre a esquizofrenia,
o duplo vínculo. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Chupa e
assopra.
Admitamos perder a árvore, mas não podemos perder a floresta. Ou
melhor: admitamos perder alguma nota, mas não a riqueza de toda a
audição.
Digo audição porque, no caso das duas traduções de Derrida com as
quais trabalhei4, são discursos orais pós-escritos? pré-escritos? Nosso autor
leu, está lendo. Paradoxo: é possível um discurso oral escrito? Que dicotomia
é esta, oral/escrito, escrito/oral? Oralescrito? Escritoral? E olhem que
discurso, do latim discursu-, é isso mesmo, dis-curso: ato de correr de um
lado para outro, de se espalhar para diversos lados; no sentido figurado,
agitação, esforço; e idas e vindas e também, vuuff!, discurso propriamente
dito, conversação.
Mas há uma outra face do pecado de pressuposição: o leitor não sabe.
Então caberia a nota de pé de página. Mas o leitor realmente não sabe? Claro,
o nosso leitor não sabe a língua original do texto – se não, para quê tradução?
6In Aux origines de l’humanité, obra coletiva sob a direção de Yves Coppens e Pascal
Picq, vol. 1, « De l’apparition de la vie à l’homme moderne », Fayard, 2001.
9 http://www.repubblicaletteraria.net/ClettoArrighi_CangliaMilano.html
10 “António de Faria, vendo o que lhe disse este moço cafre, o qual lhe afirmara por muitas
vezes que toda a gente de peleja o perro ali trouxera consigo e que no junco não tinham
ficado mais que quarenta marinheiros chins, determinou de se aproveitar daquele bom
sucesso. E depois de fazer dar a morte ao Similau e aos outros seus companheiros, que foi
a lhes mandar lançar os miolos fora com uma tranca, assim como ele fizera em Liampó a
Gaspar de Melo e aos outros portugueses, se embarcou logo com trinta soldados no batel,
e nas manchuas em que os inimigos vieram, e com conjunção de maré e de bom vento, em
menos de uma hora chegou ao junco em que estava surto dentro no rio uma légua adiante
donde nós estávamos, e arremetendo a ele sem estrondo de grita nenhuma se assenhoreou
Então a espiral se volta bruscamente para um texto de Cortázar,
“Diario para un cuento”11 – o narrador tem vontade de traduzir um
fragmento de Derrida, “de difícil compreensão como costuma ser chez
Derrida” – isto depois de um tal Lucas e seus sonetos12 – e, neste abril,
enquanto trabalhava em Beso en el asfalto, o poeta Luis Gruss recebeu a
notícia de ter sido ganhador do primeiro prêmio para peças inéditas de uma
associação de gente de teatro em Buenos Aires. A peça chama-se Oscura
Clarice, sobre a nossa Clarice Lispector. A vida como ela é: um portenho às
voltas com Nelson Rodrigues e Clarice Lispector a um só determinado
tempo.
E já que estamos em Buenos Aires: “Por consiguiente, tanto en el
terreno político como en el terreno de la traducción poética o filosófica, el
acontecimiento que hay que inventar es un acontecimiento de traducción.
No de traducción en la homogeneidad unívoca, sino en el encuentro de
idiomas que concuerdan, que se aceptan sin renunciar en la mayor medida
posible a su singularidad. En todo momento se trata de uma elección
difícil.”13
do chapitéu de popa, donde só com quatro panelas de pólvora que lhes lançou no convés
onde a canalha estava deitada, os fez lançar todos ao mar, de que morreram dez ou doze,
e os mais por andarem bradando na água que se afogavam, mandou António de Faria que
os recolhessem, por serem necessários para a mareação do junco que era muito grande e
muito alteroso.”
12 Idem, idem, Un tal Lucas, “Lucas, sus sonetos”, idem. O narrador fala da
correspondência de Haroldo de Campos que, tendo traduzido para o português um desses
sonetos, observa: “La métrica, la autonomía de los sintagmas, la ziplectura al revés, sin
embargo, quedaran a salvo sobre las ruinas del vencido (aunque no convencido)
traditraduttore; quien así, ‘derridianamente’, por no poder sobrepasarlas, difiere sus
diferencias (différences)...”.
de France Culturel producido por Antoine Spire, del 19 de diciembre de 1997, traducción
de Cristina de Peretti y Francisco Vidarte en DERRIDA, J., ¡Palabra!, Trotta, 2001, pp.
49-56”. http://personales.ciudad.com.ar/Derrida/