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COLÓQUIO

Traduzir Derrida – Políticas e Desconstruções


Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp - Agosto de 2003

ANTONIO ROMANE
DO CAFAJESTE AO
CACHORRO DE CYRULNIK

“Ne croire à aucun savoir constitué, a posteriori et de


façon exclusive, pour ne pas
fermer la porte a priori à la possibilité de croire en
d’autres formes de savoir.”
Henri Atlan, A tort et à raison

Em março deste ano, um amigo de Buenos Aires, Luis Gruss, poeta e


jornalista, enviou um e-mail me pedindo para dar u’a mão na versão para o
espanhol portenho de O Beijo no Asfalto de Nelson Rodrigues. Confiando
em que obteria um “sim”, logo vinha a primeira dúvida: “Qué cosa es
‘cafajeste’? Y por encima ‘cafajeste dionisiaco’?”. O espectador, no teatro,
não ouve esta qualificação do personagem Amado Ribeiro, o jornalista, mas
o leitor lê. A questão valia pelo menos uma brincadeira – foi o que fiz
perguntando a outros amigos em São Paulo, via e-mail: o que você entende
por “cafajeste dionisíaco”?
Um amigo jornalista paulistano acha que não significa nada. Mas, diz
ele, “quem lê assim, de repente, pode até parecer algo cheio de conteúdo,
subtextos, etc. e tal. Coisa de Nelson Rodrigues”.
A paulistana historiadora descobriu que existe uma apropriação
feminina do vocábulo cafajeste, pois não seria exatamente atributo de mau
gosto, vulgaridade ou canalhice, mas aquele que se relaciona com a mulher
de maneira oportunista, atingindo níveis inacreditáveis de cinismo – e que,
no entanto, se apresenta com algum encanto. Já o dionisíaco é redundância,
ou então, algo diabólico que ela não alcança.
O cineasta documentarista, carioca de nascimento, lembrou que Dziga
Vertov dizia que quem não tem nada a dizer hipertrofia o cenário.
A amiga formada em Letras, nascida numa cidade perto de Campinas,
afirmou que cafajeste dionisíaco é uma boa demonstração do imenso
pleonasmo que é a obra de Nelson Rodrigues. “Só faltou acrescentar
‘mulherengo’”, diz ela.
Outra, engenheira, cearense, acredita que estou de sacanagem com
Nelson Rodrigues, porque se trataria de uma pequena derrapagem no texto
“do grande dramaturgo”.
O estudante de Física na USP, paulistano, alega que isso só reforça a
ideia dele de que o teatro brasileiro nunca foi muito mais longe do que isso
mesmo. E o jovem de 16 anos, também paulistano, devolve a pergunta: “um
cara muito escroto bizarro?”
Para a psicanalista, paulistana que viveu anos no Vale do Paraíba,
trata-se de um sujeito cuja vida é pautada na realização do gozo – todas as
suas ações se justificam pela busca dessa realização.
Até onde posso observar – não sendo um especialista –, estas frases
levam água ao moinho de Roland Barthes quando, numa de suas últimas
entrevistas, respondendo sobre o que quer dizer leitura, afirmou que “há
uma enorme desproporção entre o nosso conhecimento da escrita e o
conhecimento, ou desconhecimento, que temos da leitura”, lembrando que,
“diante da leitura, do lado da leitura, não temos nenhuma ciência, nenhuma
arte que corresponda à retórica. Isto tem uma grande incidência sobre nossa
concepção de literatura, porque sempre concebemos a literatura, até o
presente, como arte do autor, jamais como arte do leitor1”.
Justamente a questão do leitor é algo que, explícita ou implicitamente,
perturba o tradutor muito mais que ao autor, se é que este se preocupa e
quando se preocupa.
O tradutor, tendo que lidar com o termo no original, tem de cuidar
para que uma coisa seja uma coisa, outra coisa outra coisa: uma rosa é uma
rosa é uma rosa, mas uma prosa não é uma prosa não é uma prosa. Cambonos
do original em nossa língua própria, sabemos que angústia não é medo,
1In L. Decaunes, Clefs pour la lecture, Seghers, 1976, incluída em Roland Barthes,
Œuvres complètes IV, Seuil, 2002
saudade não será nostalgia e até posso dar pedrada com âmbar, pedra que
não é pedra, cheira e nem fede, maldoso, mau, mal e malvado. Daí, muita vez
– se você quer acertar – o quase pânico diante de um expert, termo banal,
quando se sabe que Camões, n’Os Lusíadas, já usara experto. É evidente que
também pode fingir que não sabe, por exemplo, que connection já foi, em
algum momento e circunstância, baldeação (não sendo o simples uso de
balde; debalde já é outra coisa, como bem sabemos). Claro que, hoje, um
personagem de Dostoievski não faria uma conexão em português brasileiro
– e quem garante para daqui a cinquenta, cem anos? Qual o seu destino, sua
destinação?
Sabe-se que temos perto de 400 termos para designar um tipo de
aguardente obtido com a destilação do caldo da cana-de-açúcar. Cachaça?
Em qual texto e contexto? Convenhamos, se fosse necessária apenas uma
denominação “pênis”, Mário Souto Maior não teria pensado na Geografia
vocabular do pau através da língua portuguesa2. Quer dizer, ficaria restrito
ao propriamente dito, o que não é pouco, mas não garantiria o título, aquele
título. Engenhoso, esse título, mas contém uma autoesculhambação que não
sei se intencional: trata-se de uma felação: Geografia vocabular do pau
através da língua portuguesa. E o que dizer do escritor que “come” de tudo?
Por exemplo, José Condé comeu uma tarde em dezembro: Como uma tarde
em dezembro, o romance.
Os poetas também são onívoros. O grande João Cabral de Melo Neto,
no “Cão sem plumas”, chega a comer uma rua, o próprio cão sem plumas,
uma mucosa, e vai comendo. Manuel Bandeira não parece a fim, mas come
um pesar medonho e o céu escuro. Drummond duvida: “Como raro animal
de espécie extinta?”, pergunta-se ele em “Praia Palma Paz”. Até a nobre
Cecília Meireles come uma exígua lançadeira. Castro Alves come as asas de
um anjo caído, entre outras inefáveis coisas. Como é difícil deixar de comer!
Como são estranhos, mesmo, o destino e a destinação da palavra –
para desespero dos adoradores da palavra. Boris Cyrulnik mete a mão na

2Geografia vocabular do pau através da língua portuguesa, 20-20 Comunicação e


Editora, Recife, 1994.
cumbuca, numa longa entrevista3: lá pelas tantas, falando de Babel e contra-
Babel, diz o psiquiatra e psicanalista que “aprender duas línguas, duas
culturas, visitar seus domínios, isto é um esforço intelectual acessível, não é
Babel”. Ao que o entrevistador, Émile Noël, pergunta: “Não podemos contar
com a tradução?” “Falemos sobre isso”, retruca Cyrulnik. “Por simples efeito
de tradução, as palavras podem tomar um novo sentido. Por exemplo:
Unbewusst foi traduzido por inconscient, mas devia ter sido traduzido por à
l’insu de. Se o Unbewusst freudiano tivesse sido traduzido por à l’insu de, a
psicanálise francesa teria sido mudada. Descritos como expressos sem
ciência do sujeito, o ato falho, o lapso, tornam-se coisas que podem ser
observáveis. Ora, a tradução de Unbewusst por inconscient atribui a este um
sentido que só é verdadeiro para a psicanálise francesa. Isto explica por que
esta teve, durante anos, ódio à observação direta: a realidade não era
analisável. A psicanálise francesa conheceu uma história diferente da
psicanálise alemã ou americana por efeito de tradução. Com uma outra
acepção, as observações tornar-se-iam lícitas.”
“Por quê?”, parece espantar-se Émile Noel.
“Porque pode tornar observável aquilo que se expressa à l’insu da
pessoa, do sujeito, do corpo falante: os gestos, as mímicas... Então, a
psicanálise teria podido se organizar, na França, de forma diferente em
função da tradução de uma palavra”, rebate Cyrulnik.
Permitam-me observar que, num dado momento do que acabo de ler,
traduzi à l’insu de por sem ciência, isto é, sem o conhecimento de, sem que
a coisa seja sabida por, sem estar ciente de, sem ciência de. E “sem ciência”
buscando uma certa assonância com inconsciência. Insciência não seria o
caso – e o termo exigiu uma nota de pé de página.
Permitam-me também um exercício com uma palavra muito próxima
de todos vocês: différence. Gostaria que me perdoassem de antemão se isto
soar cansativo, tão acostumados que vocês devem estar com différence – mas
para mim é brinquedo novo.
Digo différence e vocês não sabem, não podem saber se é com e ou a
entre o erre e o ene (nê, se estivéssemos no Nordeste). Agora decomponho a

3 De la parole comme d’une molécule, Eshel, Paris, 1995, col. « Points Essais ».
expressão e, estendendo errance (grafo com dois erres e a), percebo que é a
nossa errância: différence, errance / diferença, errância: diferrância.
Imaginamos uma aglutinação, um sintagma. Mas nisso que ouvimos
aglutinação, sintagma, outros podem ouvir trocadilho, calembour. Aliás, o
Petit Robert define calembour como “jogo de palavras baseado na différence
de sentido entre palavras pronunciadas de maneira idêntica ou aproximada”.
Bom, revenons à nos moutons – sendo “nos moutons”, como sabemos,
“vaca fria”.
Vamos supor que, por um ou mais motivos, diferrância seja julgada
não-satisfatória, e até mesmo inconveniente. Então, vamos tentar buscar
três sufixos assonantes: -ança (com cê-cedilha, como em “duvidança”), -
ância (com circunflexo e cê, como em “discordância”) e -ência (também com
circunflexo e cê, como em “diligência”). O primeiro sufixo daria “diferança”;
o segundo, “diferância”, e o terceiro, “diferência”.
O que é diferança? Diferança é herança diferida? Diferança é
ferocidade diferente? Diferança é ferocidade duplicada? Diferança é herança
diferente?
O que é diferância? Diferância é ânsia diferente? Diferância é ânsia
diferida?
O que é diferência? Diferência é uma deferência diferente? Diferência
é uma diferença que fere? Diferência é uma diferença abrangente?
Está bem, nem diferrância nem diferança nem diferância nem
diferência! Vamos tentar com prefixos: podemos ter disferença, diaferença,
multiferença, poliferença.
Observemos que o uso destes prefixos não é arbitrário como pode
parecer à primeira vista, digo, audição. Acontece que usamos o elemento de
composição interpositivo -fer-, do latim fero, que desembocou em coisas
como proferir, aferir, conferir e diferir. Também não vamos confundir com
os dois elementos de composição antepositivos fer-, no sentido de selvagem,
bravio, e no sentido de fértil, fecundo.
Podemos recapitular todas essas palavras inventadas, mas
imaginando cada uma delas escrita – não mais voz, mas silencioso grafema.
E que seja em escrita cursiva, com lápis em papel off-set, com lápis de cor
em papel cuchê fosco, ou na tela do computador; figuradas cada uma em
MAIÚSCULAS, minúsculas, Cx A, Cx b, VERSALETE, com serifa, sem serifa,
redondo, negrito, itálico, negrito itálico, em pedra, em argila, em
bronze, em prata, em ouro, em baixo relevo, em alto relevo, com pincel ou
cinzel, com o dedo indicador na água ou no ar: diferrância, diferança,
diferância, diferência, disferença, diaferença, multiferença, poliferença...
Então, onde estariam as diferenças? Onde está a di-ferença? Diferença
já não é di-ferença, errância? Este foi um pecado deste tradutor: pressupor
que o leitor leia diferença e perceba que já é contentora de errância
movimento tempo e espaço. Ou Derrida não diz [diff]errance?
Traduzir um texto de Derrida sem ouvido interno é tarefa impossível,
ou pelo menos bastante insatisfatória. E sempre haverá double bind, sim,
mas no limite do double bind, double blind: que se salvem o ético, o poético
e o noético! Devo confessar que a expressão double bind me faz lembrar
menos sua aplicação ao fazer tradutório (nem pensar em traducianismo!) e
mais seu significado nas pesquisas de Gregory Bateson sobre a esquizofrenia,
o duplo vínculo. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Chupa e
assopra.
Admitamos perder a árvore, mas não podemos perder a floresta. Ou
melhor: admitamos perder alguma nota, mas não a riqueza de toda a
audição.
Digo audição porque, no caso das duas traduções de Derrida com as
quais trabalhei4, são discursos orais pós-escritos? pré-escritos? Nosso autor
leu, está lendo. Paradoxo: é possível um discurso oral escrito? Que dicotomia
é esta, oral/escrito, escrito/oral? Oralescrito? Escritoral? E olhem que
discurso, do latim discursu-, é isso mesmo, dis-curso: ato de correr de um
lado para outro, de se espalhar para diversos lados; no sentido figurado,
agitação, esforço; e idas e vindas e também, vuuff!, discurso propriamente
dito, conversação.
Mas há uma outra face do pecado de pressuposição: o leitor não sabe.
Então caberia a nota de pé de página. Mas o leitor realmente não sabe? Claro,
o nosso leitor não sabe a língua original do texto – se não, para quê tradução?

4 Estados-da-alma da psicanálise. O impossível para além da soberana crueldade,


junto com Isabel Kahn Marin, Escuta, 2001; Da Hospitalidade, com revisão técnica de
Paulo Ottoni, Escuta, 2003
Ok, vamos em frente. Vamos apanhar um exemplo: Derrida faz uma
referência implícita ao Que fazer? de Lênin. O tradutor descobre isto e
gostaria de partilhar com o leitor. Deve fazê-lo, sob pena de quebrar a
fluência da oração? Uma nota é sempre uma quebra na fluência, salvo na
música, se colocada justamente – é evidente que não são as mesmas notas,
mas são, se considerarmos a gênese da palavra escrita. Aí bate à porta o
demônio da ironia: será que o leitor/ouvinte na língua original percebeu, só
porque está em sua língua, seu idioma, seu dialeto? Eis aí o perigo da soberba
na contramão.
Melhor nos socorrer de uma certa dose de humildade.
Aqui está uma observação do sinólogo Simon Leys, tradutor dos
Analectos de Confúcio para o francês e para o inglês: “Só se percebe o
tradutor quando ele fracassa. Seu sucesso é fazer-se esquecer5”. É o homem
invisível.
No entanto, quem conhece algum texto de Simon Leys sabe de seu
extremo zelo... com as notas. É bem verdade que aquele homem invisível de
Leys é o da literatura. Mas os Analectos de Confúcio seriam, hoje em dia,
apenas literatura? Não, não são – mas este tradutor começa a abandonar a
diferença pela confusão dos diabos. Voltemos ao pecado, que pelo menos
garante um referencial. E mesmo porque, observa Simon Leys, “Confúcio
desconfiava da eloquência: desprezava o belo fraseado, detestava a destreza
sofística. Achava que uma língua ágil parecia refletir um espírito superficial:
para ele, quando a reflexão se aprofunda, o silêncio nasce”.
Confúcio foi aquele que, ao ser perguntado pelo discípulo Zilu sobre
qual seria sua primeira medida caso o soberano lhe confiasse o poder,
respondeu: “Retificar os nomes”. Retificar as denominações, isto é, o uso
correto da linguagem funda a ordem social e política. Esta é a parte do
diálogo mais conhecida, mas a coisa continua:
“Realmente? Vós ireis longe! Retificá-los para quê?”, retrucou Zilu.
Confúcio definiu: “Zilu, não passas de um rústico. Um homem de
qualidade nunca se pronuncia sobre o que ignora. Quando os nomes não são
corretos, a linguagem torna-se sem objeto. Quando a linguagem é sem

5 L’ange et le cachalot, Seuil, Paris, 1998


objeto, os negócios não podem ser bem encaminhados. Quando os negócios
não podem ser bem levados, os ritos e a música se depauperam. Quando os
ritos e a música se depauperam, as penas e os castigos perdem sua finalidade.
Quando as penas e os castigos perdem sua finalidade, o povo não sabe mais
em que passo dançar. Por isso, tudo o que o homem de qualidade concebe,
deve dizê-lo; e o que ele diz, deve poder fazê-lo. Quando se trata da
linguagem, o homem de qualidade não deixa nada ao acaso”. Assim falou
Confúcio.
Pois era uma vez uma galinha confuciana que repreendeu a galinha
taoísta:
– Você não tem vergonha de botar ovos tão pequenos? Olha só os
meus: são o dobro dos teus, valem uma grande piastra. Pelos teus ovos eu
não daria nem uma piastra pequena.
E a galinha taoísta, na bucha:
– Por uma pequena piastra de diferença, qual a vantagem de
arrebentar o rabo?
Estas galinhas antropomorfizadas são exemplo da mais do que milenar
diferença confucionismo-taoísmo.
Curioso que confucionismo derive de um nome próprio, enquanto que
taoísmo não deriva do autor de um livro (o Laozi autor do Dao de jing). E
nesta espiral, ainda lembrando Simon Leys, sendo irresistível uma leve
provocação, se vocês dão licença a este hóspede que promete não abusar da
hospitalidade:
“Ao se considerar os grandes mestres do pensamento da humanidade
– Buda, Confúcio, Sócrates, Jesus – espanta-se com um curioso paradoxo:
hoje em dia, nenhum deles conseguiria o menor cargo de ensino numa das
nossas universidades. A razão disto é simples: suas qualificações são
insuficientes – eles não publicaram nada. É possível que Confúcio tenha
editado alguns textos, mas, como todo universitário sabe, trabalhos de
edição são figuras decorativas num curriculum vitæ – não se pode dizer que
realmente tenham maior importância”.
Mas por que, como é que eles, esses grandes mestres, estão por aí,
estão aqui? Pelo quê, se não foi por que deixaram palavra escrita?
Sim, alguém acabou por escrever por eles, em nome deles, sob a égide
deles, sob a autoridade deles. Mas, antes de escreverem sobre eles,
certamente devem ter pensado neles – numa tradução deles! Traduzir é
interpretar, mas pode ser que a recíproca também seja verdadeira.
Aí está porque não tiro o cachorro antropomorfizado de Cyrulnik do
bolso do colete. Considero importantes seus trabalhos sobre a interface bios
e psico, a semiotização-encantamento, o que antecede a palavra, a passagem
para a palavra – a inteligência antes, junto, depois e para além da palavra.
E acontece que eu também tenho um cachorro, um beagle chamado
Quincas (ainda não está definido se Borba ou Berro d’Água) e, juntos, ele e
eu temos uma boa poltrona móvel que mandei fazer. Também eu, toda vez
que tenho de me desviar da poltrona para não dar uma canelada, eu me
desvio da poltrona e o Quincas, para não dar uma focinhada, se desvia de
algo que não sei como lhe parece. Que assim seja, se lhe parece. Mas o meu
cachorro e eu temos uma poltrona. Aliás, o Quincas (às vezes Berro d’Água,
outras, Borba), posso observar que, num cruzamento de ruas, quando um
automóvel vem em nossa direção, o Quincas também parece não ver naquele
automóvel um fenômeno tecnológico nem fenômeno sociológico nem
fenômeno relativo à filosofia da cultura nem fenômeno algum, mas ambos
sabemos que se trata de um automóvel real que pode nos atropelar
realmente. Quer dizer, para mim um automóvel, para o Quincas não sei
como se lhe parece. Assim é, segundo nos parece, embora eu, sim, possa
considerar (com a palavra) o automóvel fenômeno tecnológico, o automóvel
fenômeno sociológico, o automóvel fenômeno relativo à filosofia da cultura,
etc. Desde quando isto? Não sei, não me lembro desde quando, mas a partir
de que adquiri e me adquiriram para a palavra, mas não apenas com a
palavra – minha memória com certeza não se reduz à palavra.
E quando dizemos palavra, dizemos línguas, idiomas, dialetos,
ágrafos e não-ágrafos – e os analfabetos? Os ágrafos também apresentam
questões fascinantes, até porque o que parece ágrafo pode não sê-lo. É o que
também pode nos ensinar um pequeno grande trabalho intitulado “As
primeiras artes na Terra6” do professor Emannuel Anati, diretor do Centro
de Estudos Pré-históricos em Valcamonica, Itália:
“Para os conjuntos do período arcaico, definido na Europa como
aurignaciano, sintaxe e gramática parecem simples, ainda que não possamos
conhecê-las plenamente. Ao longo do período magdaleniano europeu, como
em outras fases superiores da arte dos caçadores arcaicos da Tanzânia ou do
Oriente Próximo, a sintaxe se revela muito mais complexa. Todavia, em
todos os casos os signos representados são de três tipos gramaticalmente
diferentes: pictogramas, ideogramas e psicogramas.”
Anati descreve cada um dos signos7 e, sob essa luz, apresenta alguns
exemplos, como o da mensagem dos cavalos de Altamira, de cerca de 25 mil

6In Aux origines de l’humanité, obra coletiva sob a direção de Yves Coppens e Pascal
Picq, vol. 1, « De l’apparition de la vie à l’homme moderne », Fayard, 2001.

7 Emmanuel Anati explica: pictogramas, ideogramas e psicogramas constituem as três


grandes categorias de signos. “Os pictogramas ou imagens se dividem em quatro tipos:
antropomorfas, zoomorfas, topográficas e objetos. Eles refletem quatro preocupações
principais: a identidade do homem; a significação das características e das especificidades
dos diversos modos de vida conhecidos pelo homem no mundo animal; a significação do
território; a capacidade exclusiva do homem em produzir instrumentos para reforçar suas
próprias capacidades físicas. Ao lado deles se encontram muitas vezes ideogramas, por
vezes intencionalmente associados às figuras. Sua significação é objeto de estudos e de
discussão entre os pesquisadores. Diversas teorias foram formuladas a propósito disso.
Por outro lado, não oferece lugar para debates o fato de que essas associações seguem,
durante 40 mil anos, a mesma lógica que as primeiras escrituras ideográficas. “Os
ideogramas são signos repetitivos e sintéticos evocados por discos, retângulos,
triângulos, flechas ou bastonetes, ou ainda signos em forma de árvore ou arboriformes –
‘signos fálicos’ ou ‘signos vulvares’. Existem duas dezenas de signos distribuídos
mundialmente. Sua repetição e a maneira pela qual eles estão associados parecem indicar
a presença de conceitos induzidos e convencionais. Os ideogramas se dividem em três
tipos que, por falta de uma terminologia melhor, são qualificados de ‘anatômicos’,
‘numéricos’ e ‘conceituais’. Eles refletem três preocupações de um outro gênero: a função
real ou simbólica dos órgãos do corpo humano, como a mão ou os órgãos genitais; a
‘aritmética’ original, a quantificação do real, do hipotético e do imaginário; a
materialização das ideias. Uma recente análise estrutural mostrou que esses tipos
esgotam a quase totalidade dos grafemas identificados tanto na arte rupestre quanto na
arte mobiliária do mundo inteiro, e isso ao longo de todos os períodos que precedem a
anos. Vamos nos aproximar para que professor traduza para nós – de qual
língua, idioma ou dialeto? O professor Anati nos indica a afásica reprodução
da gravura no livro e nós vemos, na muda análise gramatical do desenho: 1.
os pictogramas (duas figuras de animais, dois cavalos); 2. os ideogramas
(dois signos masculinos, ramo e flecha, e dois signos femininos, lábios e
olho) e 3. Os psicogramas (feixes de linhas sinuosas). Logo abaixo, a análise
sintática: 1. o animal vertical com ideograma masculino, 2. o animal
horizontal com ideograma feminino, 3. a união de um ideograma feminino
(lábios) e masculino (flecha) e 4. o psicograma de linhas sinuosas:
exclamação ou alegria — associação metafórica: o vedor, digo, o leitor é
convidado a ler a mensagem.
Faltaria nisto o som das palavras? O professor Anati conta que, “para
quem teve a ocasião de recolher-se por um momento diante deles [dos
signos], no silêncio daqueles desvãos, o conceito de psicograma é
perfeitamente claro. Aqui, não se trata de intelectualizações, mas de signos
que têm o poder de fazer vibrar o coração e o espírito, sem comportar
associação específica. Eles representam a quintessência de alguma coisa que,
ainda que difícil de ser definida, está profundamente ancorada em nós. Eles
formam uma parte viva e reativa do nosso subconsciente – e nos revelam o
poder criativo da arte que continua a nos falar 20 mil anos depois”.
Segundo Ivo, o louquinho, o último personagem na última fala do
último filme de Fellini, se houvesse um pouco mais de silêncio, se todos
fizéssemos um pouco de silêncio, de certo a gente poderia entender alguma
coisa. Se bem me lembro, cito de memória.
Bem, o professor Emannuel Anati lembra que, mesmo que não sejam
encontrados sequer dois desses psicogramas idênticos, alguns dentre eles

aparição da escrita. Enfim, os psicogramas, sobretudo presentes na arte dos caçadores


arcaicos, são signos que visam a transmitir as sensações daquele que os desenha àquele
que os observa, as expressões visuais de sensações e de conceitos. O nível é mais abstrato
ainda que aquele do símbolo. Se pudesse ser visualizado, o psicograma tomaria a forma
de um espanto, uma violenta descarga de energia, exprimindo sensações como o calor ou
o frio, a vida ou a morte, o amor ou o ódio, e mesmo percepções mais sutis ainda. Mesmo
que não encontremos sequer dois deles idênticos, alguns dentre eles são recorrentes em
pequenas grutas pintadas na Tanzânia central, em grutas ornadas na região franco-
cantábrica e nas pinturas dos aborígines australianos.”
são recorrentes em pequenas grutas pintadas na Tanzânia central, em grutas
ornadas na região franco-cantábrica e nas pinturas dos aborígines
australianos. Isto mostra a extensa geografia do trabalho do tradutor. De
resto, como lembra Étiemble, “enquanto nossas crianças quebram a cabeça
para reter nomes de montanhas chinesas que não lhes dizem nada, o
chinesinho, graças aos ideogramas, aprende a existência de um pai-chan,

A mensagem dos cavalos de Altamira (Espanha)


Duas figuras animais, uma vertical, outra horizontal, associadas a dois
ideogramas de tipo repetitivo com valor masculino (ramo) e feminino (olho). Acima das
figuras, a união de um ideograma masculino (flecha) e de um ideograma feminino
(lábios).
Arte de caçadores arcaicos, cerca de 25.000 anos. (Arquivos WARA.) Aux origines de
l’humanité obra coletiva sob a direção de Yves Coppens e Pascal Picq, vol. 1, «De
l’apparition de lavie à l’homme moderne», Fayard, 2001.
nosso Mont Blanc; ora, pai-chan, , traduz exatamente monte branco, e
o Oceano Pacífico torna-se simplesmente mar da Grande Paz, ”8
Já caminhando para o fim, enfim, por fim, não posso esquecer: a
versão para o espanhol portenho de “cafajeste dionisíaco” ficou sendo
canalla dionisiaco. Dionisíaco – quanta errância!
Mas a espiral não para: existe um romance italiano chamado La
canaglia felice, publicado em 1884, de Cletto Arrighi (anagrama do
jornalista milanês Carlo Righetti). A resenhista Lydia Pavan lembra que o
título faz pensar no termo canaglia que, derivando de cane, se hoje indica
uma pessoa desprezível, no romance de Cletto Arrighi tem conotações
diversas, mais flexíveis e vagas, pois, segundo o autor, nem sempre deve ser
tomado como mais vil [più vile], porquanto entre os pobres existe uma
canaglia felice, no sentido de viver de modo mais livre, desinibido e
autêntico diante dos chamados signori, estes definidos como canaglia
infelice9.
E a espiral sobe – ou desce – para canalha em Fernão Mendes Pinto
(aquele de quem Machado de Assis diz ter descoberto um capítulo inédito,
atestado em “O Segredo do Bonzo”). Está lá, no capítulo 40 das
Peregrinações, publicadas em 1614, com seus causos que começam em
1521, quando Fernão Mendes Pinto tinha dez ou doze anos de idade em
“miséria e estreiteza”10.
8 Étiemble, Au secours, Athéna!, Hermann, 1996

9 http://www.repubblicaletteraria.net/ClettoArrighi_CangliaMilano.html

10 “António de Faria, vendo o que lhe disse este moço cafre, o qual lhe afirmara por muitas
vezes que toda a gente de peleja o perro ali trouxera consigo e que no junco não tinham
ficado mais que quarenta marinheiros chins, determinou de se aproveitar daquele bom
sucesso. E depois de fazer dar a morte ao Similau e aos outros seus companheiros, que foi
a lhes mandar lançar os miolos fora com uma tranca, assim como ele fizera em Liampó a
Gaspar de Melo e aos outros portugueses, se embarcou logo com trinta soldados no batel,
e nas manchuas em que os inimigos vieram, e com conjunção de maré e de bom vento, em
menos de uma hora chegou ao junco em que estava surto dentro no rio uma légua adiante
donde nós estávamos, e arremetendo a ele sem estrondo de grita nenhuma se assenhoreou
Então a espiral se volta bruscamente para um texto de Cortázar,
“Diario para un cuento”11 – o narrador tem vontade de traduzir um
fragmento de Derrida, “de difícil compreensão como costuma ser chez
Derrida” – isto depois de um tal Lucas e seus sonetos12 – e, neste abril,
enquanto trabalhava em Beso en el asfalto, o poeta Luis Gruss recebeu a
notícia de ter sido ganhador do primeiro prêmio para peças inéditas de uma
associação de gente de teatro em Buenos Aires. A peça chama-se Oscura
Clarice, sobre a nossa Clarice Lispector. A vida como ela é: um portenho às
voltas com Nelson Rodrigues e Clarice Lispector a um só determinado
tempo.
E já que estamos em Buenos Aires: “Por consiguiente, tanto en el
terreno político como en el terreno de la traducción poética o filosófica, el
acontecimiento que hay que inventar es un acontecimiento de traducción.
No de traducción en la homogeneidad unívoca, sino en el encuentro de
idiomas que concuerdan, que se aceptan sin renunciar en la mayor medida
posible a su singularidad. En todo momento se trata de uma elección
difícil.”13

do chapitéu de popa, donde só com quatro panelas de pólvora que lhes lançou no convés
onde a canalha estava deitada, os fez lançar todos ao mar, de que morreram dez ou doze,
e os mais por andarem bradando na água que se afogavam, mandou António de Faria que
os recolhessem, por serem necessários para a mareação do junco que era muito grande e
muito alteroso.”

11 Cortázar, Cuentos completos 2, “Deshoras”, Alfaguara, Buenos Aires, 1997.

12 Idem, idem, Un tal Lucas, “Lucas, sus sonetos”, idem. O narrador fala da
correspondência de Haroldo de Campos que, tendo traduzido para o português um desses
sonetos, observa: “La métrica, la autonomía de los sintagmas, la ziplectura al revés, sin
embargo, quedaran a salvo sobre las ruinas del vencido (aunque no convencido)
traditraduttore; quien así, ‘derridianamente’, por no poder sobrepasarlas, difiere sus
diferencias (différences)...”.

Jacques Derrida, “Sobre la Hospitalidad”, “Entrevista en Staccato, programa televisivo


13

de France Culturel producido por Antoine Spire, del 19 de diciembre de 1997, traducción
de Cristina de Peretti y Francisco Vidarte en DERRIDA, J., ¡Palabra!, Trotta, 2001, pp.
49-56”. http://personales.ciudad.com.ar/Derrida/

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