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Osman Lins na televisão

Ermelinda Maria Araújo Ferreira*


Adriano Siqueira Ramalho Portela**

Resumo Osman Lins e a


O escritor pernambucano Osman Lins
indústria cultural
(1924-1978), romancista, contista e
Referindo-me às sugestões no sentido
dramaturgo, foi um acirrado defen-
sor da palavra e um crítico ferrenho de o escritor utilizar meios da indústria
da indústria cultural. Nos anos 1970, cultural, declarei: poderá um romancis-
entretanto, a convite da Rede Globo, ta, um poeta, ocasionalmente, levar-
produziu três roteiros para o progra- -lhes contribuições: não, porém, a eles
ma “Caso Especial”, que foram adap- aderir, abandonando o livro.
tados e exibidos no horário nobre da Osman Lins
emissora. Infelizmente, esse foi um
de seus últimos trabalhos, tendo o
autor falecido vítima de um câncer,
deixando para trás vários projetos
inacabados, como o romance A cabe-
ça levada em triunfo e o seu ingresso
– como “sabotador”, segundo ele – no
*
mercado do entretenimento “massi- Professora doutora do Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal de Pernambuco, líder
ficado” que crescia vertiginosamente do Núcleo de Estudos em Literatura e Intersemiose
no Brasil da ditadura militar. Neste (Neli/CNPq), colaboradora do Instituto de Estudos
artigo, comentamos sobre a incursão Modernistas da Universidade Nova de Lisboa. Autora,
entre outros, de Cabeças compostas, a personagem fe-
do autor no gênero policial, a partir
minina na narrativa de Osman Lins (São Paulo: Edusp,
da análise de um de seus textos es- 2005) e organizadora, entre outros, de Vitral ao sol: en-
critos para a televisão: “Uma ilha no saios sobre a obra de Osman Lins (Recife: Edusp, 2004),
espaço”, publicado em 1978 pela Edi- e Osman Lins 85 anos: a harmonia de imponderáveis
(Recife: Edusp, 2007). E-mail: ermelindaferreir@uol.
tora Summus. com.br
**
Formado em Jornalismo, Cineasta, Mestre em Teoria da
Palavras-chave: Osman Lins. Casos Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco
Especiais da Rede Globo. Indústria com a dissertação “Escritas em Movimento: os “Casos
Cultural. Uma ilha no espaço. especiais” de Osman Lins para a televisão”, defendida
em 2017. E-mail: reporterportela@gmail.com

Data de submissão: jun. 2017 – Data de aceite: set. 2017


http://dx.doi.org/10.5335/rdes.v13i3.6871

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É ponto pacífico entre os críticos que do texto digital da era do computador
o escritor Osman Lins foi um arquiteto doméstico.
da palavra: sabia que o ato de escrever Entretanto, a sua breve passagem pela
é fruto de um trabalho insistente para indústria cultural e pelos mass media
atingir a perfeição. Em seu livro Guerra parece ter sido esquecida, restando um
sem testemunhas (1969), ele afirmou que silêncio sobre essa aventura que seria a
só escrevendo era capaz de aferir concei- derradeira em sua breve existência, tendo
tos, revisar valores, pesar o imponderá- o escritor falecido aos 54 anos, em con-
vel, desfiar o tecido das ideias e avançar sequência de um câncer, deixando para
na obscuridade das coisas. Entretanto, trás vários projetos inacabados, como o
a crítica também concorda que o autor romance A cabeça levada em triunfo, e o
era um “homem do seu tempo”: um inte- seu incipiente – e surpreendente – traba-
lectual atuante e engajado nas questões lho como roteirista de televisão.
prementes de sua história e de seu país, Nascido em Vitória de Santo Antão,
Pernambuco, Osman Lins é autor de
responsável por uma produção criativa e
contos, romances, narrativas, ensaios e
ensaística que não deixa dúvidas sobre
peças de teatro. O romance Avalovara
a sua inserção na realidade.
(1973) é considerado sua obra-prima.
A epígrafe é explícita: a lealdade do
O livro intercala oito narrativas que
escritor é para com o seu meio, com o
permeiam tempos e espaços distintos,
livro. Isso não significa, porém, que não
tendo como ponto de partida o modelo
possa incursionar noutras áreas, ex-
gráfico de uma espiral e um quadrado
plorar outras possibilidades e conhecer
e é um exemplo acabado do impulso
outras formas de dizer. Sua ligação com
artístico experimentalista desse autor.
as artes plásticas, com o teatro e com a As influências das artes plásticas e da
música, por exemplo, já foram apontadas música nesta obra já foram muito do-
em inúmeros trabalhos acadêmicos. Seu cumentadas. Também há estudos sobre
vínculo com o cinema foi documentado a presença da oralidade em seu último
em estudos sobre as influências do nou- romance publicado, A rainha dos cárce-
veau roman e da nouvelle vague nos seus res da Grécia (1976), jogo de encaixes
experimentalismos narrativos. Existem abissais onde uma personagem é descri-
estudos que abordam o caráter protohi- ta como “locutora de rádio”.
pertextual de sua escrita fragmentária, Entretanto, a presença da mídia tecno-
estruturada como um jogo; e até um site lógica na ambientação de suas narrativas
que transforma o romance Avalovara é rara. Ouvimos o som de uma vitrola
num produto multimídia e interativo tocando em disco de vinil a ópera Catulli
na internet, mostrando como a sua Carmina, de Carl Orff, na sala de um
linguagem antecipava o funcionamento apartamento em São Paulo, disputando

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com o ruído do tráfego e das britadeiras a incentivou à reedição da peça, bem como o
audiência da música de Avalovara. Ainda recrudescimento do interesse dos leitores
nesse romance, vemos os protagonistas de pela obra do pernambucano.
um dos capítulos, pegos de surpresa no Infelizmente, essa publicidade parece
café de uma praça em frente à Catedral ser esporádica e momentânea, retornan-
Notre-Dame de Paris, tentando escutar a do a obra ao reduto fechado dos estudos
orquestra e o coro de uma apresentação acadêmicos, e da admiração dos críticos
do salmo In convertendo dominus, de e leitores mais especializados. A relação
Campra, “triturados pelo barulho dos veí- de Osman Lins com as massas não parece
culos”, sobretudo dos canos de escape das destinada a uma grande intimidade; em-
motocicletas. A tecnologia está presente, bora essa, talvez, não fosse a vontade do
assim, como “invasora” do silêncio, do en- autor. Apesar de ter dedicado sua vida ao
contro, do diálogo e da meditação próprios trabalho burocrático no Banco do Brasil
da literatura. É quase sempre uma rival – o que consumiu grande parte do tempo
da escrita, e do trabalho árduo, lento e que desejaria ter dedicado à sua obra
recompensador da criação artística. –, não são raras as vezes em que ele se
Por outro lado, a indústria cultural manifesta com indignação sobre a inexis-
sempre rondou o escritor e sua obra. Antes tência de financiamentos específicos na
da produção das narrativas adaptadas, a área cultural para a produção literária no
TV Cultura produziu e exibiu uma teleno- país. Seu entendimento é que a produção
vela baseada no premiado romance O fiel de textos criativos é um trabalho, uma
e a pedra (1961), de sua autoria, levada atividade como outra, e como tal deveria
ao ar de agosto a setembro de 1981, às ser encampada, apoiada, valorizada e re-
21h, com adaptação de Jorge Andrade e conhecida. Para espanto geral, costumava
direção de Edison Braga. Desse trabalho identificar-se como “escritor” sempre que
só restaram, arquivados no centro de indagado sobre sua profissão.
documentação da emissora, alguns ca- Não surpreende, pois, que, ao cons-
pítulos esparsos dentre os 30 originais. tatar o vertiginoso avanço dos meios de
Mais recentemente, porém, assistimos à comunicação na sociedade da segunda
bem-sucedida investida do diretor Guel metade do século XX, com a penetração
Arraes, que transformou uma peça teatral da “caixa de imagens”, substituindo
de Osman Lins, a comédia Lisbela e o pri- rapidamente a “caixa dos sons” na de-
sioneiro (2003), numa minissérie exibida coração das salas e na intimidade das
pela Rede Globo em 1994. Posteriormente, famílias brasileiras, Osman Lins tenha
em 2003, o texto foi adaptado pelo mesmo vislumbrado no veículo uma enorme
diretor para o cinema, transformando-se potencialidade para a educação e para
num filme de grande bilheteria, com ato- a inserção de conteúdos num país de tão
res conhecidos do grande público, o que vasta extensão, com tão grande carência

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de escolas, mestres e bibliotecas, e tão Figura 1
alarmantes índices de analfabetismo –
preocupação que não cessou de denun-
ciar em seus artigos jornalísticos. Na
introdução à edição de seus roteiros, ele
afirmou que a chance de escrever para
um veículo de massa representava até
mesmo uma pausa no “angustiante iso-
lamento” que padecia enquanto escritor:
O criador da literatura não se define, uni-
camente, por uma certa maneira de dizer; e
sim, também, por uma certa maneira de ver.
Inserido no mundo, ele pensa a sua condição
e a dos seus semelhantes. Num país como
o nosso, o escritor que lida com um mate-
rial de fruição mais difícil, e, para muitos,
inacessível, sofre na carne uma espécie de
segregação. Há um abismo quase infran-
queável entre ele e a imensa maioria do
povo. Então, uma tentativa como esta, sig-
nifica uma pausa em nosso angustiante iso-
lamento. Uma realização que é, ao menos,
mais sincera e mais honesta, vence a massa
de produtos realizados com fins comerciais
e sem qualquer respeito pelo público. E é
possível que não só algumas preocupações
temáticas do autor, mas também algo do seu Fonte: banco de imagens do Google
envolvimento com as palavras, alcancem
O lazer das famílias no alvorecer do século XX: as caixas
os espectadores. Os quais, em sua maioria, tecnológicas de transmissão invadem as salas de estar,
não havendo chegado ao estágio de leitores, estabelecendo novos comportamentos e modificando a
nunca tiveram e dificilmente terão nas mãos percepção dos indivíduos.
uma obra literária (LINS, 1978, p. 8).

Mas também é possível que o autor Inaugurada em 18 de setembro de


tenha vislumbrado, no rápido avanço das 1950, por Assis Chateaubriand, fundador
tecnologias da informação midiática, a do primeiro canal do Brasil, a TV Tupi
abertura de uma oportunidade concreta de São Paulo, a televisão cresceu no país
para a sua tão almejada profissionaliza- como um símbolo de avanço e moder-
ção, com a sua inserção num meio onde nização – anunciada, mesmo, como “A
pudesse propagar suas ideias e suas his- máquina de ir à lua”, numa referência à
tórias, multiplicando sua ação no mundo transmissão mundial do dia 20 de julho
para muito além do que o veículo do livro de 1969 da viagem da Apolo 11, divulgada
impresso lhe permitiria alcançar, no con- como a maior conquista técnica e científi-
texto cultural de seu país e de sua época. ca da história da humanidade, que contou

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com mais de 500 milhões de espectadores formação da “opinião pública”. Os Estados
assistindo “ao vivo” ao acontecimento. Unidos, que disputavam com a União So-
Maior audiência conseguida até então viética a liderança na Terra e, quiçá, fora
em escala mundial, a televisão foi o in- dela, devem muito de sua hegemonia ao
grediente fundamental do primeiro marco domínio da informação massiva. As em-
verdadeiramente planetário de conquista presas produtoras e revendedoras do apa-
do “espaço midiático”, talvez mais do que relho transmissor também absorveram
do “espaço sideral”.1 a mensagem da conquista desse novo e
Uma rede de vinte estações terrestres fundamental “espaço” de mobilização das
interconectadas com satélites sobre o “massas”. A verdadeira “viagem”, assim,
Atlântico, o Pacífico e o Índico, permiti- não foi tanto a do foguete para a Lua, mas
ram levar o sinal gerado pela Nasa aos a do aparelho de televisão para o interior
telespectadores dos Estados Unidos, das mentes e das percepções humanas em
América Latina, Europa, Norte da África, escala mundial. As propagandas da Te-
Ásia e Austrália. O distante Alasca rece- lefunken e da General Eletric adquirem,
beu a cobertura por meio de um satélite assim, conotações divinatórias, procla-
da força aérea e de uma antena do exérci- mando a todos, ironicamente, a verdade
to. A televisão se posicionou, assim, como a respeito das viagens espaciais tão em
um meio ideal, em plena Guerra Fria, de voga nos anos 1960.

Figura 2

Fonte: banco de imagens do Google.


Propagandas da Telefunken e da General Eletric, afirmando que “o televisor Apollo 23, irmão
gêmeo das naves espaciais Apollo, trabalhou muito para ajudar a levar você até a Lua: obrigado,
Neil, por tudo que você fez”.

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O avanço da televisão no Brasil ticos para censurar o jornalismo. Muitos
ocorreu durante os chamados “Anos de materiais foram censurados. Algumas
Chumbo”, numa atmosfera de rigorosa reportagens de publicações impressas
censura dos produtos culturais. No dia eram vetadas e, nos trechos deixados em
31 de março de 1964, um golpe pôs fim à branco, eram publicadas receitas culi-
frágil democracia brasileira, dando início nárias ou poemas. O órgão responsável
a uma ditadura militar. Temendo um pela censura dos meios de comunicação
golpe de esquerda do então presidente era o Contel, comandado pelo Serviço
João Goulart, os militares tomaram o Nacional de Informações (SNI) e pelo
poder, com apoio de boa parte da popula- Departamento de Ordem Pública e Social
ção influenciada pela mídia. O início da (DOPS).
censura no Brasil ocorreu durante o cha- A violência do regime era notada nos
mado “milagre econômico”, fase em que o confrontos policiais e nos desapareci-
país teve um crescimento significativo. A mentos de perseguidos políticos sem mo-
censura foi um dos acontecimentos mais tivo aparente. Mas nem todos percebiam
marcantes, e mostrou a rigidez do regime as proporções reais de tudo isso. Durante
autoritário. O controle governamental o AI-5, a censura vetou cerca de seiscen-
era intenso, com a proibição explícita da tos filmes, peças de teatro, programas de
divulgação de notícias contra a ditadura rádio, novelas, músicas. Muitos artistas
militar, assim como eram violentas as e compositores tiveram suas obras cen-
formas de perseguição. suradas e foram perseguidos. A televisão
A partir da promulgação do Ato funcionou como instrumento efetivo de
Institucional Número 5 (AI-5) em 1968 controle social, favorecendo a propa-
inaugurou-se a pior fase da repressão ganda política estatal e promovendo a
militar. O AI-5 foi decretado pelo presi- difusão de uma história pré-fabricada,
dente Costa e Silva e cancelava todos os e a disseminação da versão dos fatos
dispositivos da Constituição de 1967 que controlada pela censura.
pudessem ser usados pela oposição. O Foi nesse ambiente hostil que Osman
Conselho Superior de Censura foi criado Lins enveredou na aventura televisiva,
para julgar os órgãos de comunicação com a produção de três textos escritos,
que não cumprissem as leis, podendo ser roteirizados e adaptados para o pro-
fechados imediatamente. Após o AI-5, grama “Caso Especial” da Rede Globo:
todos os veículos de comunicação deve- “A ilha no espaço”, “Quem era Shirley
riam ter suas pautas aprovadas pelos Temple?” e “Marcha fúnebre”, reunidos e
militares, antes de serem publicadas. publicados por Raul Wasserman, diretor
As agências de notícias eram sujeitas à da Editora Summus, em 1978. Foram
inspeção local por pessoas autorizadas. produzidos, ao todo, 172 episódios, com
O regime militar usou de critérios polí- cerca de uma hora de duração cada,

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entre 10 de setembro de 1971 e 5 de emitido com período regular, integrando
dezembro de 1995, com periodicidade a “Quarta Nobre”.
variada. Os “Casos Especiais” eram mo- A produção de textos curtos para o
dernizações do antigo formato do teletea- suporte televisivo do “Caso Especial”
tro, com cenas em estúdio, apresentando obrigou o autor a um novo desafio: aban-
uma história completa por episódio. Os donar a sofisticação estilística criada aos
textos podiam ser inéditos, mas, em ge- moldes da escrita oulipiana francesa,
ral, consistiam de adaptações literárias que teria inspirado a coletânea de nar-
em segunda mão, de contos, romances e rativas Nove, novena (1966) e o romance
peças teatrais de autores consagrados, Avalovara (1973). A compreensão de
como Machado de Assis, Graciliano Ra- que o “hermetismo” desses procedimen-
mos e Jorge Amado, inexistindo à época tos não corresponderia ao horizonte de
a profissão do roteirista de TV no país. expectativas da recepção massificada
Fascinado pela proposta, Osman Lins prevista para o incipiente teleteatro na-
não apenas cedeu seus originais para as cional teria levado o escritor a explorar
adaptações: assumiu ele mesmo o desafio outros caminhos; mais próximos, talvez,
de aprender as técnicas de expressão do das soluções encontradas pelo mestre da
meio audiovisual, redigindo de próprio literatura de mistério e suspense, Edgar
punho os seus episódios, e gabando-se, Allan Poe. Como se sabe, os contos de
inclusive, de ter sido “o primeiro dos Poe com o personagem C. Auguste Dupin
autores adaptados a produzir um texto forneceram a base para as futuras histó-
diretamente pensado para a televisão”. rias de detetive da literatura, o gênero de
O primeiro programa gravado e exibido massa por excelência da modernidade.
totalmente em cores da televisão brasi- Tal empreitada teria levado o autor,
leira foi um “Caso Especial”: o episódio também, a um maior aprofundamento
“Meu primeiro baile”, transmitido em 31 nos problemas levantados pela incipiente
de março de 1972.2 Em 1979, o progra- indústria cultural no Brasil, motivan-
ma abandonou a grade da Rede Globo, do-o a produzir artigos inspirados pelos
sendo substituído por “Aplauso”, que filósofos e sociólogos alemães da Escola
apresentava teleteatros. Nos dois anos de Frankfurt – à qual pertencia Walter
seguintes foram exibidos apenas três Benjamin (1985), autor do famoso ensaio
episódios, até que, em 1983, a atração “A obra de arte na era da sua reproduti-
voltou a ser transmitida com regulari- bilidade técnica”, que tantas luzes ainda
dade. Entre 1984 e 1987, houve uma trazem às reflexões sobre a autonomia
nova interrupção no programa, que só e o poder crítico das obras artísticas na
teve dois episódios exibidos. De 1988 até sociedade capitalista industrial e pós-in-
1995, ano no qual o programa encerrou dustrial. O termo “indústria cultural” foi
definitivamente, passou novamente a ser empregado pela primeira vez no capítulo

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“O iluminismo como mistificação das o seu desejo de dormir. O espetáculo é o
massas”, no ensaio Dialética do esclareci- guardião deste sono” (1997, p. 19).
mento, de Adorno e Horckheimer, escrito
em 1942 e publicado em 1947. O isolamento do escritor e
Para esses pensadores, a autonomia
e o poder crítico das obras artísticas
a escrita como resistência
derivam de sua oposição à sociedade de A indústria cultural tem boas saídas
massa. No entanto, a fácil assimilação para repelir as objeções feitas contra
comercial dessas obras acabou corroen- ela como as contra o mundo que ela du-
do seu valor contestatório. A máquina plica sem teses preconcebidas. A única
capitalista de reprodução e distribui- escolha é colaborar ou se marginalizar.
ção da cultura estaria apagando, aos ... A indústria oferece ao consumidor
que viu culturalmente dias melhores o
poucos, a arte erudita e a arte popular,
sucedâneo da profundidade há muito
neutralizando o potencial crítico dessas liquidada, e, ao espectador comum, a
duas formas artísticas ao impedir tanto escória cultural de que deve dispor por
a criação livre de seus produtores como motivos de prestígio. ... Aquele que re-
a participação intelectual de seus consu- siste só pode sobreviver integrando-se.
midores. Como disse Osman Lins: (ADORNO, 2002, p. 25).
Desaparece, no seio da indústria cultural,
a maior satisfação do artista, que é a de se Que tem de fazer o escritor? Jamais cola-
identificar com a sua obra, isto é, de se jus- borar com o outro lado, com os inimigos
tificar através da sua obra, de fundar nela da literatura. Não colaborar em cará-
sua própria transcendência. Margem, por ter permanente com rádio, TV, cinema
assim dizer, inexistente, na mass media, de industrial. Entrar nesses campos, mas
afirmação e desafio. Padronização inflexível,
como sabotador. Orientar-se pela censura
subserviência às expectativas, ou seja, fusão
estática com o público, lisonjeado sem o mí- e ludibriá-la. Bater-se, por todos os meios
nimo pudor (LINS, 1969, p. 198). possíveis, como faço neste momento, pois
estou aqui lutando por uma aproximação
Essa indústria encorajaria, portanto, com possíveis leitores pela elucidação das
uma visão passiva e acrítica do mundo, suas posições e de sua tarefa.
fomentando continuamente necessidades Osman Lins (Arquivo IEB/USP, 1972)
artificiais e superficiais a serem rapida-
mente satisfeitas, de modo a promover Em seu ensaio Guerra sem testemu-
a formação de um público hedonista e nhas, Osman Lins reflete profundamen-
pouco exigente, desestimulado para o te sobre a situação do escritor no mundo
esforço pessoal e para os desafios propos- contemporâneo, num contexto geral que
tos por uma nova experiência estética. proclamava a morte do romance e numa
Como diria Guy Debord: “O espetáculo é realidade local dominada pela repressão
o mau sonho da sociedade moderna acor- política à criação e ao pensamento. Se-
rentada, que ao cabo não exprime senão
gundo Ana Luiza Andrade:

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A ensaística de Lins distingue-se por sua um incondicional amor à palavra. A ins-
preocupação cultural. Guerra expressa a tituição acadêmica, segundo ele, também
missão cultural do escritor no mundo, des-
crita em termos de um combate sem tréguas concorre para o declínio da qualidade das
e sem possibilidades de reconhecimento, produções culturais, encontrando-se os
pois, como ele mesmo diz, o “mundo neces- professores minados pelo tédio e pelo de-
sita de seus escritores na exata medida em
que tende a negá-los, pelo sacrifício ou pelo sencanto com o seu objeto. Apesar do qua-
esquecimento” (GST, p. 251). Esta posição dro desanimador, Osman Lins defende
marginalizada do escritor em relação ao veementemente o escritor que se recusa
mundo é explicada por fatores condicionan-
à conquista do êxito no sentido mundano
tes da produção literária no Brasil e na nossa
época em geral: a indústria editorial (em “O e materialista. Nesse aspecto, alinha-se à
escritor e o editor”), a censura e a crítica (em tendência mais recentemente encabeçada
“O escritor e as várias formas de crítica”), o pelo espanhol Enrique Vila-Matas, que
livro (em “O escritor e o livro”). No último
capítulo, “O escritor e a sociedade”, Osman vai buscar na pulsão negativa do perso-
Lins resume estes problemas ou obstáculos nagem Bartleby, de Herman Melville – o
exteriores que pressionam mais diretamente copista que se recusa a copiar, causando
o escritor no Brasil expondo claramente a
temática social (ANDRADE, 1987, p. 54).
uma reviravolta na vida de seu patrão,
um advogado de Wall Street – inspiração
Além de problematizar a indústria para uma escrita em suspenso.
editorial interessada sobretudo nos lu- Como no texto de Jean de La Bruyère
cros, Osman Lins ataca frontalmente a posto na epígrafe no seu livro Bartleby e
censura vigente na época, sobre a qual Companhia, Vila-Matas defende que, en-
afirma: “Não temos força bastante para quanto “[...] a glória ou o mérito de certos
destruir a Besta, mas a inquietamos. homens consiste em escrever bem, a de
Ela galoparia sobre o mundo com mais outros consiste em não escrever” (2004,
desembaraço – e talvez o devorasse – se p. 7). Levada ao extremo noutra de suas
não existíssemos” (LINS, 1974, p. 237). obras, Suicídios exemplares (2009), a
Para Lins, uma sociedade tolhida pelas negação, dessa feita da própria vida,
imposições da censura, por maiores que reitera a ideia da resistência:
sejam seus avanços noutros campos,
[...] a possibilidade do suicídio, essa faísca de
sofrerá uma esclerose precisamente nas mistério regozijante com a qual o projeto de
fontes em que pode renovar-se. um morrer original, ou tortuoso, ou sofisti-
Entretanto, não é à censura que o cado, ou cruel, acende uma vida apagada e a
faz reviver, tornando-a tensa de energia, ex-
autor atribui o maior problema da perda cepcional, apaixonante, como a corda de aço
de espaço da literatura no mundo: é à de onde os equilibristas nos fazem perder o
indiferença dos leitores, considerada “o fôlego (PAULS apud VILA-MATAS, 2009,
não paginado).
principal óbice à criação literária”. “Uma
indiferença que é a nossa morte” – afirma Os escritores desistentes ou suicidas
ele, preso na solidão de sua trincheira, na elencados nessa obra são sempre fracas-
sua guerra sem testemunhas, movida por sados, ou seja: não conseguem morrer. A

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ideia de não conseguirem se matar su- levado ao ar em 1975 e em 1978, quando
gere incapacidade, fraqueza, impotência. foi também publicado, na versão conto,
E, no entanto, é justamente essa impos- pela editora Summus, que reuniu os
sibilidade que coloca os personagens em três textos do autor transformados em
ação, que os enche de inspiração, humor, noveletas televisivas. Nesse conto, um
ansiedade, adrenalina. Como diz Alan dos poucos na sua carreira voltado para
Pauls no prefácio à obra: o gênero de massa por excelência – o po-
Sofisticada ou impulsiva, ponderada ou licial –, a frustração do personagem ecoa
captada no ar em um instante de tédio, a também a do autor, que ganhou a vida
ideia do suicídio nunca é um signo de derro- como funcionário público, como confessa
ta. É um princípio de potência: algo na vida
range, se abre e começa a ser possível – algo no seu ensaio Guerra:
desconhecido, que até então não tinha rosto Em vinte anos, segundo calcula, passou,
nem forma, e que agora, de repente, parece lidando com fichas, memorandos, arquivos
exercer uma sedução irresistível – quando de madeira, cifras indicativas de fortunas
alguma das criaturas que povoam estas alheias e quase sempre iníquas, máquinas
páginas se deixam possuir pela ideia de se de calcular, formulários, carimbos e protoco-
matar. Isto é o bel morir: a deliciosa, a ab- los borrados, 28.800 horas, não computando
surda toxicidade estética que um sonho de fins de semana e férias. Atribuindo-se ao
morte bem sonhado inocula na vida que foi dia dezesseis horas, descontadas as oito
chamado a ceifar (PAULS apud VILA-MA- de repouso, passou exatamente, em vinte
TAS, 2009, não paginado). anos, sessenta meses encerrado num Ban-
co, sessenta meses em que não escreveu,
Esses suicídios simbólicos jamais são não aprendeu, não pôde locomover-se, nada
frutos de uma desistência, mas o seu colheu do que o mundo oferece, não viveu
oposto. A insistência na qual se encar- (LINS, 1974, p. 29).
na a grande vontade que anima toda a Tal como o Bartleby de Melville,
ficção: a vontade de viver uma vida dife- retratado em transe a olhar paralisado
rente. Essa vontade – também ancorada através da janela do escritório que se
a um suicídio simbólico – atravessa a abre para um vão sombrio e uma parede
história do personagem Cláudio Arantes de tijolos – sem esperança e sem futuro
Marinho, bancário, casado, com quaren- –, o escritor real e figurado neste conto
ta e um anos de idade, desaparecido em é um personagem aprisionado a uma
setembro de 1958 do seu apartamento vida estéril e artificial, que não lhe diz
no 18º andar de um prédio de luxo cons- respeito, mas da qual não consegue se
truído em Recife: o majestoso “Edifício desvencilhar. Sua escravidão se estende
Capibaribe”. à vida privada, onde se sente explorado
Escrito e reescrito por Osman Lins por uma família ambiciosa, mulher e
desde os anos 1960, o conto “A ilha no filhas desejosas de habitar um imóvel
espaço” será o primeiro texto adaptado muito acima de suas posses. Para agra-
por ele para a televisão, num episódio dá-las, contudo, endivida-se, adquire o
da série “Caso Especial” da Rede Globo, apartamento cobiçado, cenário do enredo

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de ação e suspense que se desenrolará a A construção de “Dois caminhos que
partir da mudança. se bifurcam”, de Borges, por exemplo
É bem verdade que o autor já vi- – com suas idas e vindas no labirinto
sitara esse tipo de enredo em alguns de um crime anunciado e descrito com
momentos de sua carreira. Mas a sua requintes especulativos e fantásticos
escrita, nesses exercícios, deveria mais –, difere completamente da estrutura
a um Jorge Luis Borges do que a um dos contos do detetive Dupin. Como diz
Edgar Allan Poe. Apesar de Borges ser Lucas Antunes Oliveira (2016, p. 7), as
devedor de Poe – como de resto o são narrativas policiais ditas metafísicas,
todos os herdeiros do “Assassinatos na como as de Borges e da maioria de
rua Morgue” – narrativa de ficção que seus herdeiros hispano-americanos, de
deu origem ao gênero policial no século Julio Cortázar a Roberto Bolaño, e até
XIX, inaugurando a figura emblemática do brasileiro Osman Lins dos contos e
do detetive Dupin –, o caminho seguido narrativas anteriores à experiência do
pelo argentino desvia-se num sentido roteiro televisivo:
erudito e filosófico da história de enigma, [...] subvertem o modelo formal da narrativa
enquanto o caminho aberto pelo norte-a- policial para tratar da ruína dos discursos
mericano vai francamente no sentido da ideológicos da modernidade, da experiên-
cia da vivência em um mundo no qual é
ficção massificada de mistério, com todos impossível encontrar um sentido último e
os ingredientes de apelo e vulgaridade totalizante, e das diversas manifestações do
que depois inflamariam a literatura de Mal e do crime em nossa realidade, dando
destaque à figura do intelectual como novo
grande consumo e os enlatados em série detetive (OLIVEIRA, 2016, p. 92).
produzidos para a televisão.
Poe, muito mais do que Borges, pa- Mas na sua vertente original, o gêne-
recia pressentir o futuro da indústria ro pretendia guiar-se para a indústria do
cultural e não teve escrúpulos de incor- entretenimento “fácil”. Ainda segundo
porar a sua sistemática em seu próprio Oliveira, o policial pretendia apresentar:
benefício. Segundo Adorno: [...] um mistério aparentemente insolucio-
nável que rompe com a ordem do cotidiano
A indústria cultural pode se vangloriar de e instaura o desconhecido; a polícia oficial
haver atuado com energia e de ter erigido incapaz de desvendar o mistério; a figura
em princípio a transposição – tantas vezes do excêntrico detetive amador que resolve o
grosseira – da arte para a esfera do con- enigma por meio do método dedutivo racio-
sumo, de haver liberado a diversão da sua nal; a história narrada por um companheiro
ingenuidade mais desagradável e de haver do detetive, menos sagaz do que este; o mo-
melhorado a confecção das mercadorias. tivo do quarto fechado; o reestabelecimento
Quanto mais total ela se tornou, quanto da ordem ao final da narrativa; além de ou-
mais impiedosamente obriga cada marginal tras convenções. Alguns teóricos discordam
à falência ou a entrar na corporação, tanto dessa posição, alegando que, apesar de tudo
mais se fez astuciosa e respeitável (2002, isso, Poe não foi capaz de dar uma forma
p. 30). concreta ao gênero, cabendo esse papel a
Arthur Conan Doyle, com seu Sherlock Hol-

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mes. Contudo, se não é possível determinar da roda-viva. A arte “leve” acompanhou a
com exatidão o ano em que surgiu o romance arte autônoma como uma sombra. Ela repre-
policial, ao menos se pode dizer com certeza senta a má-consciência social da arte séria.
a época e a mentalidade ao qual ele perten- ... A diversão é o prolongamento do trabalho
cia: o século XIX e a mentalidade burguesa e sob o capitalismo tardio. Ela é procurada
moderna (OLIVEIRA, 2016, p. 92). pelos que querem se subtrair aos processos
de trabalho mecanizado, para que estejam
Para Adorno, a arte “leve” como tal, de novo em condições de enfrentá-lo. ...O
a distração, não é uma forma mórbida e prazer da violência contra o personagem
degenerada, apesar do seu formato fútil. transforma-se na violência contra o espec-
tador, o divertimento converte-se em tensão
A temática do crime está intimamente (ADORNO, 2002, p. 30-35).
relacionada com as mudanças sociais e
ideológicas que a derradeira ascensão da “O divertimento promove a resigna-
burguesia ao poder e o implemento da ção que nele procura se esquecer” – di-
industrialização nos países desenvolvi- zem os filósofos. O modelo da narrativa
dos trouxeram ao século XIX. As novas esquemática de Poe, com seus apelos
relações sociais, fundamentadas na ex- sensoriais maiores do que as provocações
ploração massiva da classe trabalhadora intelectuais, já apontava para a estrutu-
pela burguesia, obrigada a trabalhar ra das narrativas televisivas, cujo ritmo
por encomenda em condições inumanas, vertiginoso, cenas superpostas e espeta-
insuficientemente remunerada, mal ali- culosas, economia de diálogos, exibição
mentada e condenada a viver na miséria indiscriminada de sexo e violência – a
e no amontoamento das grandes cidades, intervalos eivados pela agressividade da
fomentaram o incremento do delito ur- propaganda –, criariam um produto inca-
bano e a consciência pública do mesmo, paz de viabilizar a serenidade e o tempo
e, consequentemente, a insegurança necessários à construção de uma ideia.
dos cidadãos, despertando o interesse A comparação de três exemplos extraí-
de grandes escritores como Dostoiévski, dos da produção osmaniana na categoria
Stendhal, Balzac e Dickens. “conto” permite que se estabeleça como o
Fugindo ao realismo crítico desses autor dominava e manipulava a estrutura
autores, porém, Poe estabelece as bases do gênero, e como revelava consciência
de uma narrativa de consumo mais des- de sua necessária adaptação para o novo
critiva e menos reflexiva, mais adequada suporte midiático. Seu primeiro livro, Os
a um público cansado e desmotivado, que gestos (1957), reúne contos tradicional-
busca na literatura um modo de aliena- mente concebidos, mostrando o conheci-
ção da sua realidade, segundo a visão mento do autor das regras expostas para o
dos ensaístas da Escola de Frankfurt: gênero, de André Jolles (Formas simples)
a Ricardo Piglia (Formas breves), que o
A arte séria foi negada àqueles a quem a ne-
cessidade e a pressão da existência tornam a italiano Ítalo Calvino (2015) subsome
seriedade uma farsa e que, necessariamente, nas suas Seis propostas para o próximo
se sentem felizes nas horas em que folgam milênio: “leveza”, “rapidez”, “exatidão”,

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“visibilidade”, “multiplicidade” e “consis- Entrecortadas pela velocidade do
tência”. Embora escritas para falar da veículo, as cenas do passado, resgatadas
literatura em geral na era pós-moderna, da memória e reconstruídas a partir do
os títulos desses capítulos – que foram as choque com as impressões do presente na
conferências ministradas (à exceção da cabine do trem, fornecem apenas flashes
última) pelo escritor na Universidade de de uma história não revelada. O relato
Harvard às portas do ano 2000 – suma- sugere que alguma suspeita paira sobre o
rizam as características esperadas para sujeito observado. Entretanto, o narrador
a narrativa curta. descreve a presença fantasmagórica de
Em Os gestos encontramos uma amos- um “velho magro e comprido”, que corre
tra de um conto “policial”: “O perseguido ao lado do trem, com ódio e imensa sede
ou conto enigmático”. Conciso – não mais de vingança. Esse velho encarna uma
que quatro páginas –, discorre com rapi- culpa que se pressente no observador
dez, acentuada pelo fato de a narrativa narrador: “Felizmente ele corre, corre
ocorrer no interior de um trem em mo- sem cansar, mas não pode apanhar o trem
vimento, sobre as percepções múltiplas em velocidade.”. Percebe-se que o próprio
de um narrador que observa um homem narrador, e não o homem observado, é que
suspeito, sentado à sua frente. O recurso tem algo a esconder. O leitor infere que o
à visibilidade é intenso: imagens da morte observador e o observado talvez sejam a
se sobrepõem, desde o aspecto do próprio mesma pessoa, e que o “trem” talvez seja
homem que dorme, cuja cabeça “oscila uma imagem da própria fuga do crimino-
como a de um cadáver recente”, até as so de sua consciência pesada. No final, o
sugestões de um crime nunca revelado, narrador é apanhado por três homens que
que perpassa a memória do narrador: os vêm ao seu encontro na estação sombria.
sulcos na madeira que lembram os galhos Toda a atmosfera do conto resgata o
onde “alguém enforcou uma criança”, e clima do cinema noir, subgênero de filme
uma sucessão de “visões”: a de um ataú- policial que teve seu ápice nos Estados
de pequeno estendido numa sala, a de Unidos, entre os anos 1939 e 1950. A
uma corda sobre um lençol de criança, a expressão foi aplicada pela primeira
de uma chave ou atiçador “balançando vez a um filme pelo crítico francês Nino
sem cessar como um corpo de enforcado Frank em 1946, por analogia com os
ao vento”, a silhueta de uma garota de romances policiais da Série Noire, uma
pé sobre uma janela, vislumbrada na coleção criada por Marcel Duhamel
passagem do trem por um grupo de pe- para a Gallimard em 1945, cujos livros
quenas casas: “como um boneco de papel, tinham capa preta, e cujas histórias se
seus braços pendem, seu corpo balouça, constituíam, em sua maioria, em tradu-
balouça no ar”, e um nome: “Luci”. ções de histórias produzidas por Dashiell
Hammett, Raymond Chandler, James

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M. Cain, Cornell Woolrich e outros es- à estética do conto tradicional, Osman
pecialistas anglo-saxões. A expressão Lins reelabora muitas de suas histórias
era desconhecida dos diretores e atores publicadas uma década antes. Segundo
à época em que foram produzidos esses afirma Sandra Nitrini (1987), em Poéti-
clássicos, tendo sido introduzida poste- cas em confronto, enquanto bolsista da
riormente pelos críticos de cinema. Os Aliança Francesa nos anos 1960, o autor
filmes eram rodados em preto e branco, não só teve a oportunidade de ler as obras
segundo a estética cinematográfica do do experimentalismo francês do nouveau
expressionismo alemão, afeita à tensão roman, como de entrevistar os grandes
e aos jogos de luz e sombra. Segundo A. expoentes do movimento, como Michel
C. Gomes de Matos: Butor e Alain Robbe-Grillet. É conhecida
Tomando emprestado do cinema expres- a parceria desse último com o diretor Alain
sionista alemão e o estilo visual dark, que
Resnais e com a criação do movimento
oferece um correlativo preciso para suas
narrativas pessimistas, inspiradas na tradi- cinematográfico da nouvelle vague, não
ção literária hard boiled, os filmes noirs re- sendo improvável que Osman Lins tenha
velam o avesso daquela versão glamouriza-
tido acesso, também, a essas produções.
da da vida nos Estados Unidos apresentada
por Hollywood. Mostram a confusão, o medo, Chama a atenção, nas narrativas de
a ansiedade e a paranoia existentes em um Nove, novena, a fuga ao critério da con-
momento específico da história americana.
cisão aplicado ao conto. Tem-se, nessas
Sexo, ganância e poder tendem a ocupar o
lugar do amor. Os filmes sondam as áreas peças literárias, um exercício de excesso,
mais sombrias da mente, pondo em foco as tanto na extensão do texto quanto no seu
obsessões e as neuroses que geram a violên- flagrante ornamentalismo decorativo.
cia, o niilismo, a crueldade, a luxúria. As
autoridades estabelecidas são corruptas e a Consideremos brevemente, aqui, uma
metrópole habitada por pessoas viciadas e dessas narrativas: “Conto barroco ou
amorais (GOMES DE MATOS, 2001, p. 12). unidade tripartita”. Das regras de Ítalo
Apreciador confesso da sétima arte, Calvino restam, neste texto, apenas a
não é de duvidar que Osman Lins, em multiplicidade e a visibilidade, em de-
sua empreitada “sabotadora” da indús- trimento da leveza, rapidez, exatidão
tria cultural, também tenha recorrido e consistência. A palavra “barroco”, no
a algumas técnicas do filme noir – que título, não é casual. O enredo é o elemen-
retrata uma sociedade na qual o sonho to menos importante, afundado numa
americano de sucesso é invertido e a escrita rebuscada, plástica e suntuosa,
alienação e o fracasso são os tons domi- e fragmentado em três opções separadas
nantes – para compor esse breve e tenso pela conjunção “ou”, de modo a assinalar
conto policial “enigmático”. a indecisão do autor como uma caracte-
Já em Nove, novena (1966) – coletâ- rística determinante no processo da es-
nea de textos que o autor faz questão de critura. Não temos mais um demiurgo no
identificar como “narrativas”, fugindo controle da história, mas o agenciamento

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de perspectivas múltiplas sobre um fato, linear, e para o uso da metalinguagem na
ou vários; o que, ao contrário de conduzir desconstrução do ilusionismo mimético,
à verdade e à solução do enigma, mais se responsável pela alienação do receptor de
distanciam dessa possibilidade. sua realidade, pela imersão no realismo
Neste aspecto, a narrativa implode fictício do livro/filme. A nouvelle vague,
o esquema corrente do conto policial, que não era considerada uma “escola”
que tende a resolver-se na solução do por seus idealizadores, fazia a constru-
mistério, na revelação do criminoso e na ção cinematográfica tendo consciência
sua merecida punição, restabelecendo, do cinema enquanto aparato. A sátira
assim, a ordem social rompida. Numa sobre a própria linguagem cinematográ-
franca, deliberada e calculada guerra fica (onde se firmam os clichês visuais) é
contra o sistema nivelador da cultura percebida em filmes que se caracterizam
e da liberdade de pensamento, Osman como adeptos do gênero. As cenas focam o
Lins ataca frontalmente as estratégias aspecto psicológico dos personagens, suas
da indústria, produzindo em suas “nar- impressões cotidianas e banais, levando
rativas” a desautomatização dos “ges- o sujeito a se sobrepor à lógica das cenas.
tos”. Conforme Adorno: A leitura de “Conto barroco ou uni-
As massas desmoralizadas pela vida sob dade tripartita” sugere uma influência
pressão do sistema e que se mostram ci- desse estilo cinematográfico. A presença
vilizadas somente pelos comportamentos algo irônica da palavra “conto” chama a
automáticos e forçados, das quais gotejam
relutância e furor, devem ser disciplinadas atenção, quando se considera o alerta de
pelo espetáculo da vida inexorável, e pela Osman Lins sobre a natureza exótica dos
contenção exemplar das vítimas. A cultura textos, exemplarmente definidos por João
sempre contribuiu para domar os instintos
revolucionários bem como os costumes
Alexandre Barbosa em seu prefácio à obra:
bárbaros. A cultura industrializada dá algo Quer fazendo transparecer estruturas pic-
mais. Ela ensina e infunde a condição em tóricas, quer desenvolvendo linhas de um
que a vida desumana pode ser tolerada. O verdadeiro atonalismo musical, as narrati-
indivíduo deve utilizar o seu desgosto geral vas não são dadas ao leitor, mas, permitido
como impulso para abandonar-se ao poder o trocadilho, dados, conjuntos de sinais
coletivo do qual está cansado. As situações linguísticos ou tipográficos, por onde o leitor
cronicamente desesperadas que afligem o se sente escoar durante a leitura, como que
espectador na vida cotidiana transformam- fisgado numa teia de construções superpos-
-se na reprodução, na garantia de que se tas. Novelos de significados (BARBOSA,
pode continuar a viver (2002, p. 57). apud LINS, 1987, p. 4).

Frontalmente contrário a esse papel Nessa história, o crime ainda está por
da “arte”, Osman Lins busca promover acontecer, ao contrário do que se observa
o oposto, o desconforto do público com a no conto policial clássico, que trata da
realidade infamante da vida que lhe é investigação retrospectiva de um even-
imposta. Apela, assim, para a surpresa to passado, pela análise das “provas” e
do espectador na quebra da narrativa “pistas”. Não há, ainda, um cadáver – o

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que contraria mais profundamente a do crime. O cenário principal é a cidade
regra policialesca: “Não há crime sem histórica de Ouro Preto, em Minas Ge-
cadáver”. Viva, a vítima se desdobra e rais. Entretanto, há no enredo verdadei-
se multiplica ao longo da narrativa: há ras ekphrasis das obras do Aleijadinho
os duplos José Gervásio e José Pascásio, dispostas no santuário do Bom Jesus de
primos de grande semelhança. Há o velho Matosinhos, em Congonhas, sugerindo
pai de José Gervásio, que se oferece para que a temática cristã impera no bojo des-
morrer em seu lugar. Há as testemunhas sa história “policialesca” transplantada
de acusação, como a negra amante de para a realidade moral, ética e estética
José Gervásio e mãe do seu filho, morto do Brasil profundo, ignorante das leis e
recentemente, a quem ele negou reconhe- princípios urbanos, laicos e estrangeiros
cimento e assistência, gerando grande res- de outros territórios dominados pela
sentimento na mulher. E há o assassino ideologia maquínica do desenvolvimento
que não se oculta, antes, se impõe aber- industrial. Na realidade encenada, os
tamente, designando-se como “matador aspectos psicológicos, afetivos, filosóficos
profissional”, contratado a soldo, hábil e humanos é que estão em jogo, muito
na sua função e destituído de quaisquer mais do que as considerações rasteiras
pruridos íntimos morais ou de consciência. e as intenções pedagogizantes do gênero
Extremamente jovem, não tem nome, mas policial, que versa sobre a natureza das
deita-se com a negra a quem encomenda a regras de conduta social estabelecidas
traição da vítima, valendo-se de sua dor. pelos homens, a investigação sobre os
Deita-se na mesma cama onde morreu o efeitos de sua eventual ruptura e a exem-
filho enjeitado de José Gervásio, que moti- plaridade da condenação dos elementos
va a vingança doída da negra desprezada desviantes.
e humilhada, descrita com grande beleza Com sua riqueza ornamental e con-
plástica e exuberância de cores. teudística, o ilusionismo barroco con-
O assassino guarda semelhanças com fronta, nesta soberba narrativa erudita
a vítima: também tem um filho morto a e popular, a indigência do ilusionismo
quem abandonou. A vítima ora é descrita produzido pela estandardização das téc-
como um ser implacável, homem despre- nicas de produção da cultura de massa.
zível que deseja desfazer-se da amante Tal preciosismo, posto em prática no
para casar-se com outra; ora como um “Conto barroco ou unidade tripartita”,
ser explorado por pais desprezíveis, que sofre profunda guinada na realização do
lhe impunham como ganha-pão a tarefa roteiro para a televisão por Osman Lins,
de representar o imolado pelo interior da como se pode perceber pela análise do
Bahia, repetidamente, ludibriando os in- conto “A ilha no espaço”, exemplo de sua
cautos. As causas do assassinato são des- percepção da adequabilidade da forma
conhecidas, assim como os mandantes ao meio. Assim, encontramos no enredo

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dessa obra um vínculo muito mais explí- trancado por dentro, mas pelo tom in-
cito ao conto policial de Edgar Allan Poe: vestigativo adotado na narração, e pela
Quatro das testemunhas, tendo sido convo- explicação final do mistério. Apesar de
cadas, depuseram que a porta do quarto em não incluir um detetive – uma vez que
que foi encontrado o corpo de Mademoiselle o foragido precisava escapar, a fim de
L’Espanaye estava trancada por dentro
quando o grupo chegou até lá. Ao forçarem recomeçar uma vida mais verdadeira
a porta, não viram ninguém. As janelas, e feliz –, o esquema geral da narrativa
tanto da sala da frente como do quarto dos atende aos princípios do gênero policial.
fundos, estavam com os postigos fechados e
firmemente trancadas por dentro. A porta
Eventualmente, durante a narrativa,
que dava da sala da frente para o corredor Osman Lins flerta com o fantástico,
de acesso estava trancada, com a chave do particularmente com a vertente identi-
lado de dentro (POE, 1997, p. 68).
ficada como o “estranho” na definição de
O cenário do crime em “A ilha no Tzvetan Todorov:
espaço” é descrito de modo semelhante: Sabemos que Poe deu origem à novela po-
A princípio, acreditou-se que ele houvesse licial contemporânea, e esta cercania não
morrido: seu apartamento no 18º andar é fruto da casualidade; frequentemente se
estava fechado por dentro, a trinco e chave. afirma, por outro lado, que os contos poli-
Repórteres vieram, gente da polícia, e ar- ciais substituíram os contos de fantasmas.
rombaram a porta: a janela da frente, que Esclareçamos a natureza desta relação. A
dava para o rio e para o mar, estava aberta, novela policial com enigmas, em que se trata
a cortina barata esvoaçando, mas não havia de descobrir a identidade do culpado, está
ninguém no apartamento. Supor que um construída da seguinte maneira: por uma
homem com a sua idade e não afeito a exer- parte, propõem-se várias soluções fáceis, a
cícios físicos pudesse haver descido numa primeira vista tentadoras, que, entretanto,
corda de tão grande altura, era absurdo. E resultam falsas; por outra parte, há uma
depois, onde estava a corda? (LINS, 1978, solução absolutamente inverossímil, a qual
p. 12). só se chegará ao final, e que resultará ser a
única verdadeira. Vimos já o que emparen-
Apesar da confessa intenção alegóri- ta a novela policial com o conto fantástico.
Recordemos as definições de Soloviov e de
ca do texto – que confirmaria a história
James: o relato fantástico tem também duas
como uma melancólica alusão ao isola- soluções, uma verossímil e sobrenatural, e a
mento do escritor na cidade moderna –; outra inverossímil e racional. Na novela po-
e apesar do desejo confesso de Osman licial, basta que a dificuldade desta segunda
solução seja tão grande que chegue a “desa-
Lins de invadir o meio audiovisual na fiar a razão”, para que estejamos dispostos
condição de “sabotador” do sistema; o a aceitar a existência do sobrenatural mais
que se observa é a criação de um texto que a falta de toda explicação (TODOROV,
1981, p. 27).
mais raso que os anteriores, mais dire-
to, sem a mesma elaboração estilística, Segundo o autor, a novela policial com
de fácil e rápida leitura, e sem maiores enigmas se relaciona com o fantástico,
exigências interpretativas. O recurso mas é, ao mesmo tempo, seu oposto: nos
aos clichês do gênero de massa é eviden- textos fantásticos, inclinamo-nos, de
te não só pela clássica cena do quarto todos os modos, pela explicação sobre-

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natural; enquanto a novela policial, uma conhecido engajamento à literatura de
vez concluída, não deixa dúvida alguma qualidade, ele confessa, em prefácio à
quanto à ausência de acontecimentos publicação do texto pela editora Sum-
sobrenaturais. Por outro viés, essa mus:
comparação só é válida para um certo Foi-me oferecida, como a outros autores, a
tipo de novela policial com enigmas (o possibilidade de experimentar a televisão
local fechado) e um certo tipo de relato através da série “Caso Especial”, que procu-
ra fugir à rotina dos enlatados e onde a ter-
estranho (o sobrenatural explicado). rível luta pela conquista de altos índices de
Tal é o que acontece com o enredo de “A audiência, se não desaparece, é atenuada. A
ilha no espaço”: flerta-se com a dúvida oportunidade interessava-me, exatamente
devido a este duplo aspecto: permitia-me a
crescente sobre as mortes que vão mis- experiência e não gerava compromissos. ...
teriosamente acometendo os moradores Escrevi “A ilha no espaço” a intervalos mais
das torres gêmeas; depois, flerta-se ou menos amplos, vários desfechos, nenhum
dos quais me satisfez. Por uma razão sim-
com eventos inexplicáveis (toques de
ples: a história, a meu ver, esgota-se o capí-
telefone, ruídos no elevador, lâmpadas tulo XI, beneficiando-se exatamente do que
acesas, canário que aparece morto) tes- fica na sombra. Afinal, um mistério revelado
temunhados pelo morador, o único que é coisa morta. Entretanto, como este já foi
divulgado em jornal, e como a adaptação
fica no prédio, atendendo à proposta dos para a TV em grande parte se apoiava nele,
proprietários que lhe oferecem o aparta- optei por conservá-lo na publicação (LINS,
mento de graça caso lá permanecesse, 1978, p. 6).
atestando a improvável segurança do O que Osman Lins não confessa é a
imóvel. Então, passa-se ao esclarecimen- espécie de catarse que opera no âmbito
to sobre a solução do enigma: o relato do dessa história, denunciando não só a
procedimento de fuga do bancário, num aridez do trabalho burocrático imposto
plano mirabolante e inverossímil, fruto aos habitantes da cidade moderna, mas
de um arriscado esquema para forjar o o esfacelamento das relações familiares,
seu sumiço surreal; não dando margens, esgotadas nas questões financeiras;
talvez, à vingança dos proprietários. substituída a alegria de ser pela vaidade
Assegurava, assim, o patrimônio a uma de ter, que é o verdadeiro “vírus” que se
família mesquinha e sem amor, da qual espalha nos corredores do espigão, enve-
se desvencilhava com alívio e esperança nenando a alma das pessoas. As figuras
de um recomeço. dos capitalistas frios e calculistas, com
Se a dúvida continua a persistir para sua proposta cínica e indecorosa, per-
os personagens do conto, ela absoluta- dem em crueldade na comparação com
mente não existe para os leitores, que as figuras dos familiares mais próximos
são plenamente esclarecidos. Sobre do protagonista, que celebram a decisão
essa incursão num projeto tão distante sacrificial do marido e pai de permane-
de suas investidas anteriores e do seu cer no prédio condenado, arriscando a

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própria vida, apenas para garantir a esmo para os moradores desavisados,
propriedade do apartamento. provocando mortes seriadas até o esva-
Assim, para além da pirotecnia de ziamento dos prédios por ele cobiçados,
superfície, esse despretensioso conto os quais viria a adquirir pela metade do
não consegue ocultar a indiscutível preço –, ainda o submetia ao ridículo de
marca da agudeza crítica osmaniana. uma encenação vulgar, digna da arro-
Em sua simplicidade e absoluta falta gância dos poderosos convictos de que o
de ornatos, em sua deliberada indigên- público já não reage às provocações. É
cia, o texto é profundamente amargo e como o “riso ruim” de que fala Adorno:
gravemente acusatório. Preferiria, como “o riso ruim é o eco do poder como força
é do seu estilo, concluir na penumbra, inelutável. Ele vence o medo enfilei-
com a discrição que lhe é peculiar. Os rando-se com as instâncias que teme”
que optassem por acreditar nos falsetes (2002, p. 38).
das notícias inverídicas – que acusavam Osman Lins, no entanto, deixa bem
a presença de contaminações exóticas e estabelecido que “este final não lhe
outras histórias – que o fizessem. Mas dizia respeito”. Referia-se ele ao trecho
aos bons entendedores, o verdadeiro em que Marinho (transformado, aqui,
lamento se faria ouvir: a doença que não mais num alter ego do escritor
atingia os moradores do “Edifício Capi- “sabotador”, mas num agente do sis-
baribe” – monumento de ostentação e tema, pago por ele e a ele submisso:
poder incrustado na acanhada e humilde daí, talvez, a partilha do sobrenome,
realidade recifense – era de ordem ética incorporado que foi à “família”) pede ao
e anímica. rico assassino que sorria, e aperta um
Assim, compreende-se que o capítulo botão de uma câmera, estourando-lhe
XII parecesse não só desnecessário, mas os miolos. O recurso, grosseiro demais
até insultuoso ao autor, na medida em para trazer a marca osmaniana, não
que transformava o seu personagem passa de uma afirmação da impossibi-
num inadvertido cúmplice do crime lidade de lutar. Talvez por isso, o rico
perpetrado pelos seus algozes. Supos- assassino é cinicamente identificado,
tamente, conferia-se a Claudio Arantes neste capítulo, como o “salvador” do
Marinho – não escapando, aqui, a clara ex-bancário: aquele que lhe permitiu
alusão ao sobrenome da família detento- evadir-se de uma vida monótona e tris-
ra do império global que se instalava no te, recomeçando em outro lugar. Ri-se,
Brasil – o “poder” de vingar-se, simbo- assim, mais uma vez, o rico assassino
licamente, do assassino confesso. Além dos recursos fantasiosos e inúteis dos
de ser obrigado a ouvir a confissão do seus contraventores. Como afirma
golpe perpetrado pelo capitalista – que Adorno:
envenenava envelopes enviando-os a

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Na falsa sociedade, o riso golpeou a felicida- Figura 3 – Regina Viana e Cecil Thiré em “A ilha
de como uma doença, arrastando-a na sua no espaço”
totalidade insignificante. Rir de alguma coi-
sa é sempre escarnecer; a vida que, segundo
Bergson, rompe a crosta endurecida, passa
a ser, na realidade, a irrupção da barbárie, a
afirmação de si que, numa ocasião social, ce-
lebra a sua liberação de qualquer escrúpulo.
A coletividade dos que riem é a paródia da
humanidade (2002, p. 39).

Considerações finais
Em relação ao roteiro do episódio,
não se sabe se o diretor, Cassiano Ga-
bus Mendes, chegou a adaptar o texto
original de Osman Lins, ou se apenas
fez anotações de planos de filmagem.
No arquivo da Rede Globo já não en-
contramos nem a cópia do episódio nem
a do roteiro. Osman Lins comenta, no Fonte: Mendes (1975).

prefácio à publicação da obra, que o


capítulo XII, embora a seu contragosto, Figura 4 – Reportagem de Artur da Távola sobre
teria norteado a adaptação para a TV. O o episódio
fato é que, modificada por Cassiano ou
não, a narrativa precisou ser adaptada
do formato conto para o formato roteiro,
e é possível que o próprio Osman Lins
tenha realizado esse trabalho, preferindo
publicar a versão conto.

Fonte: Jornal O Globo (1975).

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Em 1/8/1975, no dia seguinte à estreia Artur da Távola percebe, na adapta-
do “Caso Especial” em questão, o colunis- ção, a intenção de falar do isolamento,
ta do jornal O Globo, Artur da Távola, não só do escritor, mas do “homem de
publica uma resenha sobre o episódio. classe média enleado pela ilusão consu-
Apesar de analisar com mais afinco a mista”. O fato é que a alegoria da prisão
direção de Cassiano Gabus Mendes, ele nas alturas, por assim dizer – criada
enaltece o nome de Osman Lins logo no por Osman Lins através da imagem do
segundo parágrafo: sujeito enclausurado num arranha-céu
Tenho grande dificuldade de escrever sobre – funciona de maneira eficaz para tra-
o “Caso Especial” exibido anteontem. Muita duzir uma forte percepção de abandono,
coisa junta, importante. Vamos ver no que desamparo, segregação e ostracismo,
dá: bom ver a Globo voltando uma política
definida nos “Casos Especiais”, principal- aberta a múltiplas leituras. Os dois
mente trazendo escritores como Osman imensos monólitos de pedra impõem-se,
Lins. Digo voltar, porque em 1975 a política como protagonistas, tanto no conto como
da emissora em relação a este programa foi
muito inferior à de anos anteriores onde ele
no filme, reduzindo o humano a um índi-
se constituiu numa de suas principais atra- ce irrisório a eles escravizado. A vaidade
ções (TÁVOLA, 1975, p. 130). e a ambição levam o sujeito a alugar seu
No decorrer do artigo, Távola ressalta destino e sua história às apólices de um
que “A ilha no espaço” contou com a ha- banco.
bilidade técnica e dramática do diretor: No decorrer de seu texto, o colunis-
“um escultor de atores capaz de colocá- ta elogia ainda a inclusão de algumas
-los no ponto máximo da tensão latente cenas, como a de Arantes falando ao
exigida pela obra”, pontuou o comunica- papagaio; mas critica veementemente
dor. Mais adiante, ele pondera críticas ao a retirada de outras, como aquela em
ritmo e aos excessos do episódio: que o protagonista conversa com a filha.
Suas observações mostram o quanto
[...] excessivo ritmo inicial prejudicou o
entendimento pleno da exposição: um corte essa análise, escrita para o jornal, foi
errado da edição ao fim do primeiro quadro criteriosamente construída a partir da
interrompeu abruptamente a fala de Re- leitura comparada do texto e do filme.
gina Vianna: alguma indecisão estilística
entre o tratamento realista dos atores e o do
Reconhece o crítico, em sua leitura,
absurdo (o indicado) tornou sutil demais a a superioridade do conto em face da
simbologia buscada pelo autor como forma adaptação, sobretudo pela supressão do
de expressar o esmagamento, o terrível
discurso na cena gravada, onde deveria,
esmagamento e solidão do homem de clas-
se média enleado nas ilusões do sistema, na sua opinião, “ter imperado porque
hiperexcitado em seu nível de aspiração e estava muito bem escrito”:
sempre nas mãos de novos e mais hábeis
portadores de promessas e bens (TÁVOLA,
1975, p. 130).

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Em compensação, não passou a cena na qual de arte, boa sonoplastia, e respeito pela
Arantes começa a olhar os seus parentes e inteligência do receptor, com a utilização
dizer-lhes verdades de vida, principalmente
à filha de dezesseis anos com marcas de um de uma “obra aberta”.
envelhecimento interior do qual ela não Esse belo artigo deve ter enchido
tinha culpa mas lavrava, infernal. E não Osman Lins de esperanças, pois se
passou porque toda a força do texto e do dra-
ma, sei lá, me pareceu aqui minimizada pela alinhava com as suas próprias ambi-
direção. Era uma cena belíssima, onde o ções de ingresso no meio audiovisual
discurso tinha que imperar principalmente como “sabotador”, entre outras coisas,
porque muito bem escrito (TÁVOLA, 1975,
daquilo que Távola identifica com os
p. 130).
“esquemas arrumadinhos e certinhos”.
O desfecho do artigo dá a entender Tais esquemas são apontados, inclusive,
que o jornalista não só apreciou o valor como os responsáveis por uma guinada,
literário dessa pequena e despretensiosa para pior, na condução do próprio “Caso
peça osmaniana, identificando a beleza Especial” naquele mesmo ano de 1975
das cenas e dos diálogos; mas também – depois do que se supõe ter sido uma
fez questão de registrar a sua percep- época de grande investimento no formato
ção do papel que os textos de autores e no nível da programação. A entrada de
consagrados poderia exercer para uma Osman Lins é, portanto, saudada como
(desejada!) reformulação qualitativa da um marco de “retorno”, como a esperança
programação levada ao grande público de uma “volta” a um direcionamento que
brasileiro: a emissora, infelizmente, já não conside-
Em síntese: fizeram uma televisão mo- rava como prioritário ou desejável para
derna, participante, fora dos esquemas os seus propósitos – como se verificaria
arrumadinhos e certinhos, um espetáculo
de estrutura aberta, deixando muito para a seguir.
o telespectador completar, como deve ser
em se tratando de arte. Mas nem sempre
conseguiram a clareza necessária. Uma
nota final, indispensável: genial a música Osman Lins in television
incidental de Julio Medaglia. Das melhores
sonoplastias que tenho visto em tevê (TÁ- Abstract
VOLA, 1975, p. 130). Osman Lins (1924-1978), brazilian
novelist, short story writer and play-
Não há dúvidas sobre a natureza
wright, was a keen advocate of the
das expectativas de Artur da Távola, word and a staunch critic of the cul-
que consistiam numa efetiva cobrança tural industry. In the 1970s, however,
por uma televisão “moderna”: isto sig- at the invitation of Rede Globo, he
nificando, surpreendentemente, uma produced three scripts for the “Caso
Especial” television program, which
programação de entretenimento acessí- were adapted and displayed in the
vel, mas bem trabalhada, com roteiros prime time of the station. Unfortuna-
esteticamente concebidos, boa direção tely, this was one of his last works,
the author having died as a cancer

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victim, leaving behind several un- trole remoto. O consumo televisivo das classes
finished projects, such as the novel mais baixas foi ampliado. Só em 1996, foram
Uma cabeça levada em triunfo, and vendidos oito milhões de televisores no Brasil.
his entrance – as a “saboteur”, accor-
ding to him – in the massive enter-
tainment market that was growing
Referências
fastly in Brazil during the military
dictatorship. In this article, we com- ADORNO, Theodor. Indústria cultural e
ment on the author’s foray into the sociedade. Seleção de textos de José Mattos
police genre, from the analysis of Brito de Almeida. São Paulo: Paz e Terra,
one of his written texts for TV: “Uma 2002.
ilha no espaço”, published in 1978 by ANDRADE, Ana Luiza. Osman Lins: crítica
Summus. e criação. São Paulo: Hucitec, 1987.

Keywords: Osman Lins. Rede Globo’s BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e
política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
“Casos Especiais”. Cultural Industry.
“Uma ilha no espaço”. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o pró-
ximo milênio. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015.
Notas
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo.
1
Uma experiência similar de alcance massifi- Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
cado, embora mais localizada, de uma notícia
GOMES DE MATOS, A. C. O outro lado da
inverossímil já havia sido testada no âmbito do
rádio, em 30 de outubro de 1938, no programa noite: filme noir. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
da Columbia Broadcasting System (CBS), na LINS, Osman. Casos especiais de Osman
transmissão simulada de uma “edição extraor- Lins. São Paulo: Summus, 1978.
dinária” com o aviso sobre uma suposta invasão
de marcianos, coordenada pelo jovem escritor e _____. Guerra sem testemunhas. São Paulo:
diretor Orson Welles, desconhecido à época, que Ática, 1974.
teria adaptado o livro de H. G. Wells, A guerra
dos mundos, para uma radionovela. A “inva- _____. O fiel e a pedra. São Paulo: Summus,
são” durou apenas uma hora – com todas as 1961.
características do radiojornalismo às quais os
ouvintes estavam acostumados –, mas marcou
_____. Os gestos. São Paulo: Melhoramentos,
definitivamente a história do rádio, ajudando 1957.
a CBS a bater a NBC, emissora concorrente, _____. Nove, novena. Rio de Janeiro: Gua-
e levando pânico a incríveis dois milhões de
nabara, 1966.
pessoas em diversas cidades norte-americanas,
que acreditaram piamente na veracidade da _____. Avalovara. São Paulo: Melhoramen-
transmissão. tos, 1973.
2
Em 1971, o governo baixou uma lei determi-
nando o corte da concessão das emissoras que _____. A rainha dos cárceres da Grécia. São
não transmitiam uma porcentagem mínima de Paulo: Melhoramentos, 1976.
programas em cores. Foi um período de tran-
sição, de mudanças e inovações nas televisões _____. Lisbela e o prisioneiro. São Paulo:
brasileiras. Com a Copa do Mundo de 1974, a Planeta, 1963.
venda de receptores coloridos coloca definitiva- NITRINI, Sandra. Poéticas em confronto:
mente o Brasil no mundo da TV colorida. Com
Nove, novena e o Novo Romance. São Paulo;
o Plano Real, em 1994, ocorreu a explosão das
vendas de aparelhos de TV, agora com o con- Brasília: Hucitec, 1987.

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OLIVEIRA, Lucas Antunes. Labirinto sem
minotauro: Roberto Bolaño e a narrativa
policial na contemporaneidade. Tese (Dou-
torado em Teoria da Literatura) – Programa
de Pós-Graduação em Letras, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2016.
POE, Edgar Allan. Ficção completa, poesia e
ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
TÁVOLA, Artur da. A ilha no espaço. Jornal
O Globo, Caderno de Cultura, Rio de Janeiro,
1º ago. 1975, p. 130.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura
fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1981.
VILA-MATAS, Enrique. Bartleby e compa-
nhia. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
_____. Suicídios exemplares. São Paulo: Co-
sac Naify, 2009.

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