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S
Jean Pierre Chauvin
o mundo era a Europa; do século XIX em -prima do cineasta russo Andrei Tarkóvski
diante, nosso universo mais familiar cons- (1972), aclamada por público e crítica. Nas
tituir-se-ia da Europa e dos Estados Unidos telas, a narrativa de Stanislaw Lem sintetiza
da América. As consequências dessa abor- e reforça o impacto sugerido pelas descrições
dagem, algo limitada e limitadora, são sig- impressionantes do romance. Como captar,
nificativas. Para começar, a maior parte de definir e entender aquela massa liquefeita de
nós ignora outros modos de ser e conceber tons amarelos com dimensões planetárias?
determinadas coisas. Além disso, tendemos Nem o relativo amparo de todos os recur-
a julgar com menor benevolência o que diz sos culturais e tecnológicos seria capaz de
respeito ao chamado “Oriente”: rebaixamos responder: “Estação Solaris para o visitante:
o Leste Europeu, o Oriente Médio, a Índia, a preparar-se para o pouso no momento zero,
China, o Japão, as Filipinas, a Austrália, etc. atenção, começando a contagem regressiva:
Em termos mais estritos, isso talvez ex- 250, 249, 248… As palavras eram pontua-
plique o relativo esquecimento a que de- das por pequenos miados, dando mostras de
terminadas obras literárias foram relegadas que não se tratava de voz humana” (Lem,
por aqui. Refiro-me, em particular, a dois 2017, p. 17).
romances recentemente traduzidos e (re)edi- Na teoria literária, Nós e Solaris são clas-
tados no Brasil: Nós (1924), do engenheiro sificados como romances distópicos, ou seja,
russo Ievguêni Zamiátin, e Solaris (1961), obras de ficção em que as pequenas grandes
do médico polonês Stanislaw Lem. Nós foi ações das personagens sugerem a inexorabi-
resenhado por ninguém menos que George lidade do ambiente, a postura repressiva dos
Orwell. Em 1946 (três anos antes de 1984 governos e o tempo, praticamente sem refe-
chegar às livrarias, portanto), o jornalista e renciais do passado: “[…] levamos a eles a
romancista inglês dizia que: felicidade matematicamente infalível, o nosso
dever é obrigá-los a serem felizes. Mas antes
“[…] a semelhança [de Nós] com Admi- de recorrermos às armas, empregaremos a
rável Mundo Novo é impressionante. No palavra” (Zamiátin, 2017, p. 16). Felizmente,
entanto, embora o livro de Zamiátin seja as referências continuam valendo, no âmbito
menos coeso – a trama é um tanto frouxa da crítica literária. Vale lembrar que Nós,
e episódica, e complexa demais para ser de Zamiátin, apareceu oito anos antes de
resumida –, tem um ponto político que falta Admirável Mundo Novo, de Huxley, e an-
no outro. No livro de Huxley, o problema tecedeu em 25 a obra máxima de Orwell.
da ‘natureza humana’ é, em certo sentido, Solaris foi editado 12 anos após 1984: este,
resolvido, pois supõe que, por meio de um considerado até hoje um dos maiores best-
tratamento pré-natal, medicamento e suges- -sellers do gênero.
tão hipnótica, o organismo humano possa se Se nos ativermos apenas a essas quatro
especializar em qualquer modo desejado” obras, perceberemos que elas constituem uma
(Orwell, 2017, p. 319). espécie de continuum temático, transcorri-
do no espaço de menos de 40 anos. Elas
Por sua vez, Solaris inspirou algumas ver- abarcam, portanto, o período entreguerras, a
sões cinematográficas, dentre as quais a obra- Segunda Guerra Mundial e a polarização do
de forças, para eles inéditas. A aparição de de que ela própria não tinha consciência
I-330 na vida sem surpresas de D-503 segue disso” (Lem, 2017, p. 94). O mundo do tra-
em paralelo com a imagem de Harrey, no balho, planificado, ordenado e calculado,
quarto de Kelvin. Em ambos os casos, a sofre a interferência do onírico – imprevi-
representação do feminino impele-os a co- sível, subversivo e imensurável. A perturba-
meter atos até então impensados. Não se ção emocional e mental dos protagonistas
trata de pieguice, mas de sensibilidade: o é emoldurada pela descrição algo surreal
número do Estado Único se torna ansioso; do ambiente em que estão imersos. De um
a seu turno, o psicólogo deixa de compreen- lado, formas gigantescas, associadas à figura
der a si mesmo. Dito de outro modo, Eros e imponente do Benfeitor (possível inspiração
Tânatos estão em conflito. A possibilidade para o Grande Irmão, de 1984). De outro,
de cultivar os afetos contrasta radicalmen- um oceano inteligente, capaz de alterar a
te com as condições regradas de ambos os paleta dos dias e afetar o raciocínio do pu-
protagonistas. Essa contraposição entre o nhado de tripulantes a bordo da estação
ilógico, pela falta, e o racional, pelo exces- – superequipada, mas ineficaz contra outra
so, é um dos fios condutores dos romances lógica que não a terráquea: “Dito de outro
e acarretam consequências similares. Ape- modo, ele não precisou se adaptar ao meio
quenados pelo ambiente – onde reproduzem ambiente durante centenas de milhões de
rotinas com horários demarcados –, há que anos – assim como fizeram os organismos
se considerar que a sua ligação física com as terrestres, para somente depois desse imenso
mulheres (I-330 e Harrey) também fosse um período dar origem às espécies racionais
modo de representar a disputa entre restri- –, de imediato exerceu controle sobre seu
ção contingencial do trabalho e a expansão entorno” (Lem, 2017, p. 38).
propiciada pelo amor. Inseguros, também Ambos os romances são enunciados em
porque impelidos pelo poder dos afetos, as primeira pessoa, alternando seções de exten-
personagens vivem sob a (i)lógica do talvez: sões variáveis, ora singelas, ora pretensiosas:
“Mas, meus queridos leitores, é preciso pen-
“Não: ponto final. Tudo isso são tolices, to- sar um pouco, isso ajuda muito. É evidente
das essas sensações ridículas são delírios, que toda a história da humanidade, pelo que
resultado do envenenamento de ontem… Mas sabemos dela, é uma história de transição
com quê: com o gole de veneno verde, ou de uma forma de vida nômade para outra,
com ela? Tanto faz. Anoto isso apenas para cada vez mais sedentária” (Zamiátin, 2017,
mostrar como se pode, de maneira estranha, p. 28). O romance de Zamiátin estrutura-se
se emaranhar e perder a tão precisa e afiada em “Anotações” do número D-503, acompa-
razão humana” (Zamiátin, 2017, pp. 90-1). nhadas de brevíssimos resumos. Por sua vez,
a obra de Lem se organiza em capítulos que
Uma das consequências é que tanto levam o nome da coisa ou acontecimento
D-503 quanto Kelvin passam a discernir em destaque – “um solarista da cibernética
mal os estados de vigília e sono: “Agora não conseguia mais se entender com um
eu já tinha quase certeza de que ela não solarista da simetridologia” –, daí a ques-
era Harrey; também estava muito seguro tão essencial dessa narrativa: “Como vocês
semelhantes a focos inflamatórios da me- ce, ele não nos parece amistoso, acolhedor
mória (Lem, 2017, p. 118). ou justificável.
Um conjunto de premissas orienta as
No romance de Zamiátin, o Benfeitor trajetórias de D-503 e I-330, dentre as quais
faz as vezes dos demiurgos da Antiguida- a “obrigação de ser feliz”. Já em Solaris,
de greco-latina. Travestido como máquina é a compulsão por compreender o indefi-
superpoderosa, ele paira no alto das cabe- nível que contagia a narrativa. No primei-
ças dos números e aplica os castigos aos ro caso, os constantes elogios ao mundo
recalcitrantes: ordenado, simétrico e planejado sobre a
crescente interferência do desejo (ilógico,
“Um dia claro e festivo. Em dias como es- imprevisto e incontrolável), o que impede
te você esquece as próprias fraquezas, im- a D-503 restabelecer o percurso retilíneo
precisões e enfermidades, tudo é cristalino e cronometrado em que vivia. No caso
e inquebrantável, eterno como nosso novo de Kris Kelvin, a esfera dos sentimentos
vidro… A Praça do Cubo. Sessenta e seis é retroalimentada por uma figura que (re)
potentes círculos concêntricos: as tribunas. aparece sem qualquer aviso:
E sessenta e seis fileiras: rostos quietos e
iluminados, os olhos refletindo o resplendor “Todo ‘hóspede’, quando aparece, é quase
do céu, ou, quem sabe, o resplendor do Es- um espectro, além de uma mistura caótica
tado Único” (Zamiátin, 2017, p. 73). de lembranças e imagens extraídas de seu
próprio… Adão é, na verdade... vazio. Quan-
Na obra de Lem, não há espaço para a to mais tempo fica aqui com você, mais se
metafísica, o que não impede que os tri- humaniza. Também vão se tornando inde-
pulantes mirem, num misto de fascínio e pendentes, até um certo limite, é lógico”
horror, o planeta abaixo deles, como se se (Lem, 2017, pp. 230-1).
tratasse de uma entidade inapreensível. Ape-
sar de sua aderência ao sistema em que vive, Em Nós, graças à presença da mulher/
supostamente feliz, D-503 registra pensa- número I-330, o enredo tensiona e rela-
mentos cada vez mais complexos, inclusive tiviza a lógica e a desrazão, o que re-
sobre a lei que rege o Estado Único: “Até dunda num dos mais belos episódios do
os antigos, sobretudo os mais adultos, sa- romance russo:
biam: a fonte do direito é o poder, o direito
é uma função do poder” (Zamiátin, 2017, “Estava maduro. E, de maneira inevitável,
p. 160). A exemplo do que aconteceria em como o ferro e o ímã, com uma doce obe-
Admirável Mundo Novo e 1984, palavras diência às suas leis precisas e imutáveis,
estranhas semeiam as páginas. À proporção desaguei-me nela. Não havia talão cor-de-
que avançamos ao ritmo das anotações do -rosa, não havia conta, não havia Estado
narrador D-503, vamos nos familiarizando Único, não havia eu. Havia apenas seus
com a terminologia empregada pelo Estado dentes cerrados, suavemente pontiagudos,
Único: situação contraditória, já que, embora os olhos dourados totalmente abertos para
reconheçamos o mundo retratado no roman- mim” (Zamiátin, 2017, p. 108).
Bibliografia
CAMUS, Albert. A Peste. 6a ed. Tradução Valerie Rumjanek Chaves. Rio de Janeiro,
Record, s/d.
LEM, Stanislaw. Solaris. Tradução Eneida Favre. São Paulo, Aleph, 2017.
LONDON, Jack. O Tacão de Ferro. Tradução Afonso Teixeira Filho. São Paulo,
Boitempo, 2011.
ORWELL, George. “Resenha de Nós”, in Ievguêni Ivánovitch Zamiátin. Nós. Tradução
Gabriela Soares. São Paulo, Aleph, 2017.
ZAMIÁTIN, Ievguêni Ivánovitch. Nós. Tradução Gabriela Soares. São Paulo, Aleph, 2017.