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Antologia Cósmica

Primeiros contatos com seres extraterrestres

Fausto Cunha (organizador)


Índice
Contatos de diversos graus e nem sempre imediatos
A Guerra Dos Mundos
Primeiro contato
Homo Sol
Missão de salvamento
Berom
Viagem às fronteiras do infinito
Contatos de diversos graus e nem sempre imediatos
Autor – Fausto Cunha

Uma das razões que explicam a obsessão dos discos-voadores (dos quais já se disse que é
preciso crer para ver) é o anseio humano de libertar-se da prisão terrestre. A comunicação com seres
vindos de fora tem sua correspondência na comunicação com os mortos: se ocorrer, provará que há vida
no além — além-túmulo, além-Terra. Vai mesmo certa humildade patética de nossa parte em acreditar
que existem seres mais evoluídos, os quais generosamente um dia entrarão em contato conosco.
Esse é um dos temas favoritos da ficção científica. O primeiro encontro da raça humana com
extraterrestres foi imaginado de quase todas as formas possíveis. As inúmeras variantes nem sempre
escondem os velhos estereótipos. Diz Demètre Ioakimidis, no breve prefácio a Histoires
d’Extraterrestres (LGF, 1974) que o tema do contato com extraterrestres está inevitavelmente ligado à
idéia da pluralidade dos mundos, e esta é bem anterior à ficção científica. É claro que para os antigos o
conceito de mundos habitados diferia do nosso. Mas não deixa de ser curioso que, há 700 anos, um papa
tenha condenado a proposição segundo a qual não poderia Deus criar essa multiplicidade de mundos.
Para a ciência de hoje, o Universo possui incontáveis bilhões de estrelas, milhões de galáxias, não sendo
mesmo impossível que haja vários universos. E a convicção de que há, no cosmo, outros planetas
habitados por seres inteligentes se tornou oficial, tanto assim que a bordo das naves automáticas Pioneer
10 e 11 segue um discurso do Presidente dos Estados Unidos, manifestando o desejo da raça humana de
entrar na Fraternidade Galática ...
Uma das histórias incluídas nesta Antologia trata justamente do oposto: na concepção de Isaac
Asimov, em Homo Sol, o homem pode recusar-se a aderir à Federação Galática, e terá de ser forçado.
Escrita quando Asimov tinha apenas vinte anos, essa história continua sendo das mais curiosas de toda a
ficção científica, e tem a particularidade de ser contada do ângulo dos extraterrestres. (Mais tarde, em Os
Amáveis Abutres, Asimov figuraria alienígenas com intenções menos pacíficas.)
Também Missão de Salvamento (Rescue Party), de Arthur C. Clarke, é narrado do ponto de vista
alienígena. Clarke mais de uma vez se queixou pelo fato de o considerarem "o autor de Rescue Party",
como se ele não tivesse feito nada melhor. É verdade que ele escreveu depois histórias tão boas quanto
essa, mas também é verdade que Missão de Salvamento permanece como uma das páginas que fixaram
os cânones e a mitologia científica. Basta mencionar o ser coletivo de Palador. O primeiro contato só se
estabelece, ironicamente, no fim. Ao mesmo tempo, estamos diante de uma história impressionantemente
realista sobre o desaparecimento da Terra como planeta. O sentido cósmico que Arthur C. Clarke
imprime à sua ficção e aos seus trabalhos científicos faz com que nos sintamos contemporâneos do futuro.
Enquanto Asimov e Clarke inventam grandes civilizações galáticas, Murray Leinster realiza uma
história de primeiro contato no sentido mais rigoroso do termo. Duas naves, uma terrestre e outra
alienígena, se encontram na vastidão do espaço sideral. Ou chegam a um acordo de paz sem risco para
nenhum dos lados ou se destroem. O soviético Ivan Iefrémov não se conformou com a solução de Murray
Leinster e escreveu uma versão oposta, Cor Serpentis ("O Coração da Serpente"), que incluí em minha
coletânea Encontro no Espaço, junto com a noveleta de Leinster. À luz da História do Homem, antiga e
moderna, os encontros entre culturas diferentes sempre resultaram no extermínio ou submissão da mais
fraca. Há cientistas como o Dr. Albert R. Hibbs que se mostram temerosos quanto a respondermos a
sinais extraterrestres. Adverte-nos que "mesmo uma civilização extraterrestre pacífica pode encarar-nos
como pouco mais que animais domesticados". Já o pessoal da NASA, à frente Carl Sagan, não hesitou em
colocar no Pioneer todas as indicações possíveis sobre a localização do planeta Terra, seus habitantes,
línguas, músicas e até os hábitos reprodutivos.
Mas um comandante, sozinho no espaço diante de uma nave desconhecida, deve tomar suas
próprias decisões. E Primeiro Contato (First Contact), de Murray Leinster, tornou-se uma história
clássica pela maneira como abordou o problema. "Uma das histórias centrais da ficção científica",
escreveu William Sloane ao incluí-lo na sua famosa antologia Stoires for Tomorrow (1954). "Desde sua
publicação, tem servido como pedra de toque para o que outros fizeram depois dele", prossegue Sloane.
"Já apareceu e continuará a aparecer em muitas antologias, porque nenhum escritor depois dele conseguiu
tratar com igual maestria uma das mais fascinantes dentre todas as especulações sobre o futuro: que
acontecerá quando os seres humanos tiverem o primeiro contato com seres alienígenas tão avançados,
cientificamente, quanto eles próprios?". Vale a pena lembrar que, na votação feita entre os membros da
SPWA (Science Fiction Writers of America), Primeiro Contato ficou entre as cinco melhores histórias
de todos os tempos.
Nesse Panteão da Fama se acha também um conto que não foi escrito por um autor de ficção
científica e sim por um poeta e ensaísta: Berom, de John Berryman. (Seu caso não é excepcional: alguns
dos melhores livros de SF foram escritos por gente "de fora".) É uma das melhores histórias sobre o
problema da comunicação já publicadas até hoje: e, a meu ver, no estrito campo da comunicação com
alienígenas, a mais perfeita e de maior rigor científico e metodológico. A chave da comunicação repousa
numa idéia brilhantíssima. Berom é também uma denúncia da guerra fria e da intolerância (foi escrito à
época do macartismo) e um libelo contra a incapacidade humana de superar suas dissensões políticas e
seus conflitos ideológicos. De algum modo, opõe-se também à concepção de Wells em A Guerra dos
Mundos: uma raça capaz de atravessar o espaço em avançadas astronaves certamente já ultrapassou a
fase da guerra, pensa John Berryman.
O ideal seria incluir nesta Antologia A Guerra dos Mundos na íntegra. Esta é a mais célebre
história da ficção científica, somente igualada, em fama, por outro romance do mesmo autor, A Máquina
do Tempo . Escritos em fins do século passado, são precursores e modelos do que o gênero viria a
produzir. A Guerra dos Mundos é uma história de horror, mais do que uma antecipação, e o fato de
sabermos que não houve a invasão prevista e que ela hoje seria improvável nas condições descritas em
nada reduz sua força de persuasão. O texto continua a envolver-nos, a arrepiar-nos. E pode causar
pânico, como aconteceu quarenta anos depois de publicado, quando um jovem ator e diretor genial
chamado Orson Welles, com sua equipe do Mercury Theatre da CBS, levou ao ar o excelente script
radiofônico de Howard Koch. Creio que esta é a primeira vez que esse famoso texto é traduzido e
publicado no Brasil — e bastaria sua inclusão para justificar esta Antologia Cósmica.
A palavra Cósmica não está aí por acaso. Além de contos clássicos e criações de mestres (no
caso de A Guerra dos Mundos, esses mestres chegam a ser três), pareceu-me importante selecionar
autores que tivessem uma visão cósmica do lugar do homem no Universo e do Cosmo em si como uma
coisa viva e palpitante. O silêncio dos espaços infinitos não deve assustar-nos, porque ele é certamente
modulado por um coro quase infinito de vozes.
A propósito de seres extraterrestres, gostaria de glosar aqui o estudo curiosíssimo de W. T.
Williams, professor da Universidade de Southampton, divulgado há uns quinze anos no boletim da
UNESCO. Segundo ele, os principais mundos imaginários dos autores de ficção científica são os do
cloro, que têm este como atmosfera e cujos mares possuem ondas de ácido clorídrico; do silício, cuja
química básica exigiria altíssimas temperaturas (a da ebulição da água seria demasiado baixa para ele) e
aquele para cujos habitantes o Oxigênio é tóxico. Para uma criatura do mundo do cloro, a água seria tão
corrosiva como para nós o é a iperita (o terrível gás de mostarda). Seus mares não podiam ser de ácido
clorídrico, e sim de um cloreto ou oxicloreto de fósforo, enxofre ou arsênico. Poderiam respirar oxigênio
tranqüilamente. Um ser de silício viveria bem no planeta Mercúrio (Stanley G. Weinbaum, no clássico A
Martian Odyssey, criou algo semelhante em Marte, que é relativamente frio). Quanto à última categoria,
ilustrada para Williams pelo conto Hands Off de Robert Sheckley, um ser que temesse o oxigênio como o
mais venenoso dos elementos teria que ser constituído de uma liga de metais.
O professor Williams observa que a maioria dos autores distingue o reino animal do vegetal.
"Não seria possível imaginar", pergunta ele, "um ser que recebesse sua energia vital do Sol por meio de
uma forma qualquer de fotossíntese e que, não obstante, seria inteligente e mesmo, quem sabe, capaz de
deslocar-se?" Na verdade, há bons exemplos de utilização dessa idéia na ficção científica: Próxima
Centauri, outra história de primeiro contato de Murray Leinster. Star King, de Jack Vance (incluído em
nossa Coleção Mundos da Ficção Científica) e meu próprio Mobile, que data de 1959 e foi reescrito em
1975 como O Lobo do Espaço. Williams cita de passagem os homens-árvores de Stapledon e as trífides
de John Wyndham.
O mais interessante para nós (e sobretudo para Asimov, que se especializou em mundos de
química semelhante à da Terra) é a conclusão do professor W. T. Williams. "Às vezes", declara ele, "são
considerados um pouco ingênuos os autores de obras de antecipação científica que imaginam planetas de
tipo terrestre em que os viajantes descobrem estranhos personagens, não raro muito inteligentes. Sem
embargo, o estado atual de nossos conhecimentos científicos nos faz pensar que essas antecipações são as
mais verossímeis e que suas criaturas extraterrestres são as que contam com mais possibilidades de que
um dia as deparemos na realidade".
Falei em cinco histórias, mas o leitor encontrará uma sexta, que não é de mestre e muito menos
clássica (porque até inédita em livro). Mas ela trata de um primeiro contato muito especial e que, a meu
ver, não pode ser descartado. É tradição de organizadores de antologias de ficção científica que são
também autores, e basta citar os exemplos de Isaac Asimov e Robert Silverberg, incluírem trabalhos
seus, por várias e óbvias razões. Não era minha intenção imitá-los. Mas diante de um filme recente
(como já acontecera com Eu Te Amo, Eu Te Amo e minha noveleta O Dia Que Já Passou), achei que
devia retirar a Viagem às Fronteiras do Infinito de seu humilde sono: em nota final, explico por quê.
Parece que haverá sempre um irmão Wright para cada idéia brasileira . ..
A Guerra Dos Mundos
Autor – H. G. Wells & Howard Koch — Tradução - Eglê Malheiros

Script radiofônico de Howard Koch, em adaptação livre do romance A Guerra dos Mundos, de
H. G. Wells, e levado ao ar por Orson Welles e seu "Mercury Theatre", através do Columbia
Broadcasting System, a 30 de outubro de 1938.

Narrador: Sabemos agora que, desde os primeiros anos do século vinte, nosso mundo vinha
sendo observado por inteligências superiores às do homem e, ainda assim, tão mortais quanto nós.
Sabemos agora que enquanto os seres humanos viviam entregues aos seus afazeres, eram examinados e
estudados, talvez quase tão de perto quanto um homem ao microscópio pode examinar os organismos
efêmeros que pululam e se multiplicam numa gota d'água. Com infinita satisfação as pessoas andavam
para cá e para lá, tratando de seus pequenos negócios terrenos, na tranqüila certeza de seu domínio sobre
este pequeno e rodopiante fragmento de matéria solar, que por acaso ou destino o homem herdou do
negro mistério do Tempo e do Espaço.
No entanto, através do imenso abismo etéreo, mentes que estão para as nossas como as nossas
para as feras na selva, imensos cérebros frios, sem simpatia, fitavam esta terra com olhos invejosos e, de
modo lento e seguro, traçavam seus planos contra nós. No trigésimo nono ano do século vinte ocorreu a
grande desilusão.
Foi pelos fins de outubro. Os negócios iam melhor. O pavor da guerra estava superado. Maior
número de homens voltavam ao trabalho. As vendas subiam. Nesta noite em especial, 30 de outubro, a
agência Crossley calculou que trinta e dois milhões de pessoas ouviam rádio.
Deixa do locutor: ... nas próximas vinte e quatro horas pouca alteração de temperatura. Há
informações de uma ligeira perturbação atmosférica de origem indeterminada sobre a Nova Escócia,
provocando o deslocamento de uma área de baixa pressão com certa rapidez sobre os Estados do
nordeste, trazendo previsão de chuva acompanhada de ventos de rajadas leves. Temperatura máxima 19
graus centígrados, mínima, 8 graus. Este informe meteorológico é de responsabilidade do Instituto de
Meteorologia.
Locutor Dois: Agora vamos transmitir do Meridian Room, do Park Plaza Hotel, bem no centro de
Nova Iorque, onde ouviremos a música de Ramon Raquello e sua orquestra.
(Entra tema hispano-americano ... Some.)
Locutor Três: Boa noite, senhoras e senhores. Diretamente do Meridian Room, do Park Plaza de
Nova Iorque, levamos para vocês a música de Ramon Raquello e sua orquestra. Com seu toque muito
pessoal, Ramon Raquello inicia com "La Cumparsita".
(Começa a música.)
Locutor Dois: Senhoras e senhores, interrompemos nosso programa de música de danças para
levar a vocês um boletim especial da Agência de Notícias Intercontinental. Às dezenove horas e quarenta
minutos, hora central, o professor Farrell, do Observatório de Monte Jennings, Chicago, Illinois,
comunicou estar observando a ocorrência de várias explosões de gás incandescente, a intervalos
regulares, no planeta Marte.
O espectroscópio indica que o gás é o hidrogênio e está se movendo com enorme velocidade
rumo à Terra. O professor Pierson, do Observatório de Princeton, confirma a observação de Farrell, e
descreve o fenômeno como (abre aspas) igual a um jato de chama azul lançado de uma espingarda (fecha
aspas). Agora fazemos com que voltem à música de Ramon Raquello, tocando para vocês no Meridian
Room do Park Plaza Hotel, bem no centro de Nova Iorque.
(A música toca por alguns momentos até que o número acaba ... Sons de palmas.)
Agora uma melodia que ninguém esquece, a sempre popular "Star Dust", com Ramon Raquello e
sua orquestra. ..
(Música.)
Locutor Dois: Senhoras e senhores, dando prosseguimento às notícias de nosso boletim de
momentos atrás, o Instituto de Meteorologia solicitou aos principais observatórios do país que se
mantenham em vigília astronômica para detectar quaisquer perturbações que ocorram no planeta Marte.
Devido à natureza incomum dessa ocorrência, conseguimos uma entrevista com o conhecido astrônomo
professor Pierson, que nos dará as suas impressões do fato. Daqui a momentos nós os levaremos até o
Observatório Princeton, em Princeton, Nova Jérsei. Enquanto isto voltamos à música de Ramon Raquello
e sua orquestra.
(Música.)
Locutor Dois: Estamos prontos para levá-los ao Observatório de Princeton, em Princeton, onde
Carl Phillips, nosso comentarista, entrevistará o famoso astrônomo professor Richard Pierson. Levamos
vocês agora para Princeton, Nova Jérsei.
(Câmara de eco.)
Phillips: Boa noite, senhores e senhoras. Aqui Carl Phillips, falando-lhes do Observatório de
Princeton. Encontro-me de pé numa vasta sala semicircular, negra como breu, a não ser por uma fenda
oblonga no teto. Através desta abertura posso ver o cintilar de estrelas, que lançam uma espécie de brilho
gelado sobre o intrincado mecanismo do enorme telescópio. O tiquetaquear que ouvem é a vibração do
relógio. O professor Pierson está diretamente acima de mim, numa pequena plataforma, espiando através
das lentes gigantes. Peço-lhes que tenham paciência, senhoras e senhores, com qualquer demora que
possa ocorrer durante nossa entrevista. Além da incessante observação dos céus, o professor Pierson
pode ser interrompido pelo telefone ou outro meio de comunicação. Durante este período, ele está em
constante ligação com os centros astronômicos mundiais. Professor, posso dar início às perguntas?
Pierson: Quando queira, senhor Phillips.
Phillips: Professor, poderia, por favor, contar a nossos ouvintes exatamente o que o senhor vê
quando observa o planeta Marte através de seu telescópio?
Pierson: Nada fora do comum, no momento, senhor Phillips. Um disco vermelho nadando em mar
azul. Riscas transversais no disco. Muito claras agora, porque acontece que Marte está no ponto de maior
proximidade da Terra — em oposição, como dizemos.
Phillips: Em sua opinião, o que significam essas riscas transversais, professor Pierson.
Pierson: Não são canais, asseguro-lhe, senhor Phillips, embora seja esta a crença generalizada
daqueles que imaginam que Marte é habitado. Do ponto de vista científico, as riscas não passam de um
resultado de condições atmosféricas peculiares ao planeta.
Phillips: Quer dizer que o senhor como cientista está absolutamente convencido de que não existe
em Marte inteligência viva tal como a conhecemos?
Pierson: Diria que as possibilidades em contrário são de mil para um.
Phillips: Sendo assim, que explicação tem para estas erupções de gás que estão ocorrendo na
superfície do planeta a intervalos regulares?
Pierson: Senhor Phillips, não sei como explicá-las.
Phillips: Aproveitando a oportunidade, professor, para esclarecimento de nossos ouvintes,
quanto dista Marte da Terra?
Pierson: Aproximadamente 64 milhões de quilômetros.
Phillips: Bem, parece uma distância bastante tranqüilizadora. Um momento, senhoras e senhores,
alguém acaba de entregar um telegrama ao professor Pierson. Enquanto ele lê, deixem-me lembrar-lhes
que estamos lhes falando do Observatório de Princeton, Nova Jérsei, onde entrevistamos o mundialmente
famoso astrônomo, professor Pierson... Um momento, por favor, ele passou-me o telegrama que acaba de
receber. Professor, posso ler o telegrama para os ouvintes?
Pierson: Certamente, senhor Phillips.
Phillips: Senhoras e senhores, lerei agora um telegrama dirigido ao professor Pierson pelo Dr.
Gray, do Museu de História Natural de Nova Iorque: "9,15 p.m. Hora padrão ocidental. Sismógrafo
registrou choque de intensidade quase de terremoto ocorrendo dentro de um raio de trinta e dois
quilômetros em torno de Princeton. Por favor investigue. Assinado Lloyd Gray. Chefe da Divisão
Astronômica". Professor Pierson, poderia esta ocorrência ter algo a ver com as perturbações observadas
no planeta Marte?
Pierson: Dificilmente, senhor Phillips. Isto é provavelmente um meteorito de tamanho fora do
comum, e sua chegada nesta hora em particular não passa de uma coincidência. No entanto, efetuaremos
uma pesquisa, assim que a luz do dia o permitir.
Phillips: Obrigado, professor. Senhoras e senhores, nos últimos dez minutos temos estado lhes
falando do Observatório de Princeton, levando até seus lares uma entrevista especial com o professor
Pierson, o conhecido astrônomo. Aqui fala Carl Phillips. Voltaremos agora para nossos estúdios em
Nova Iorque.
(Piano ao fundo.)
Locutor Dois: Senhoras e senhores, aqui o último boletim da Agência de Notícias
Intercontinental: "Toronto, Canadá. O professor Morce, da Universidade Macmillan, relata ter observado
um total de três explosões no planeta Marte, entre 7,45 p.m. e 9,20 p.m., padrão de tempo ocidental. Isto
confirma relatórios anteriores recebidos de observatórios americanos. Agora, de mais perto de casa, vem
uma notícia de Trenton, Nova Jérsei. Às 8,50 p.m. um enorme objeto flamejante, que se julga ser um
meteorito, caiu numa fazenda nas vizinhanças de Grovers Mill, Nova Jérsei, distante trinta e cinco
quilômetros de Trenton. O clarão no céu foi visível dentro de um raio de várias centenas de quilômetros
e o estrondo do impacto foi ouvido até em Elizabeth, no norte.
Despachamos uma equipe volante para o local, e nosso comentarista, senhor Phillips, lhes fará
uma descrição a viva voz logo que chegue lá, vindo de Princeton. No meio tempo, nós os levaremos ao
Hotel Martinet em Brooklyn, onde Bobby Millette e sua orquestra estão oferecendo um programa de
música para dançar.
(Banda de swing por 20 segundos... Corta.)
Locutor Dois: Agora os levaremos a Grovers Mill, Nova Jérsei.
(Barulhos de multidão... Sirenes da polícia.)
Phillips: Senhoras e senhores, este é mais uma vez Carl Phillips, na Fazenda Wilmuth, Grovers
Mill, Nova Jérsei. O professor Pierson e eu fizemos os dezessete quilômetros de Princeton em dez
minutos. Bem, eu... eu nem sei como começar, para pintar-lhes com palavras a estranha cena que tenho
diante de mim, algo como que saído de uma moderna história das Mil e Uma Noites. Bem, mal acabo de
chegar. Ainda não tive ocasião de examinar o ambiente. Acho que está ali. Acho que é a... Coisa, bem na
minha frente, meio enterrada num imenso buraco. Deve ter batido com uma força terrível. O chão está
coberto de lascas de uma árvore que ela atingiu quando tombava. Pelo que posso ver o.. . objeto não se
parece muito com um meteorito, pelo menos com os meteoritos que já vi. Parece mais um cilindro de
enorme tamanho. Deve ter um diâmetro de... calcula em quanto, professor Pierson?
Pierson (off): Uns vinte e sete metros, por aí.
Phillips: Uns vinte e sete metros... O metal do revestimento é ... bem. Nunca vi nada igual. A cor
é uma espécie de branco-amarelado. Espectadores curiosos se amontoam em torno do objeto, apesar dos
esforços da polícia para mantê-los afastados. Estão obstruindo minha linha de visão. Por favor, não
poderiam chegar para o lado?
Policial: Para o lado, vamos, para o lado.
Phillips: Enquanto os policiais empurram para trás a multidão, aqui está o senhor Wilmuth,
proprietário da fazenda. Ele deve ter coisas interessantes para acrescentar. Senhor Wilmuth, poderia ter a
gentileza de contar aos ouvintes tudo o que se lembra com relação a este visitante tão fora do comum que
caiu em seu quintal? Um passo à frente, por gentileza. Senhoras e senhores, este é o senhor Wilmuth.
Wilmuth: Eu estava escutando rádio ...
Phillips: Mais perto e mais alto, por favor.
Wilmuth: Como disse?
Phillips: Mais alto, por favor, e mais perto.
Wilmuth: Sim, senhor... eu estava ouvindo no rádio uma lengalenga que o professor ali falava
sobre Marte, de modo que eu meio que cochilava ...
Phillips: Sim, sim, senhor Wilmuth. E então o que aconteceu?
Wilmuth: Como estava dizendo, eu estava ouvindo rádio assim meio distraído...
Phillips: Sim, senhor Wilmuth, e então o senhor viu uma coisa.
Wilmuth: Não vi logo. Primeiro ouvi.
Phillips: E o que é que o senhor ouviu?
Wilmuth: Um som sibilante. Assim: sssssss . .. como um foguete de festa ...
Phillips: E daí?
Wilmuth: Virei minha cabeça para a janela e teria jurado que estava dormindo e sonhando.
Phillips: É?
Wilmuth: Vi uma espécie de risco esverdeado e então pumba! Alguma coisa beijou o chão. Me
jogou para fora da cadeira!
Phillips: Bem, o senhor se assustou, senhor Wilmuth?
Wilmuth: Bem, eu... eu não tenho muita certeza. Reconheço que eu.. . eu estava um tanto
apalermado.
Phillips: Obrigado, senhor Wilmuth. Obrigado.
Wilmuth: Quer que lhe conte mais alguma coisa?
Phillips: Não ... está bem assim, isso chega ... Senhoras e senhores, acabaram de ouvir o senhor
Wilmuth, proprietário da fazenda onde caiu a Coisa. Gostaria de ser capaz de transmitir a atmosfera ... o
ambiente desta ... coisa fantástica. Centenas de carros estão estacionados num ponto atrás de nós. A
polícia está tentando bloquear a rodovia que conduz à fazenda. Mas não adianta. Eles chegam de
qualquer jeito. Seus faróis lançam um enorme foco luminoso sobre o buraco em que o objeto está meio
enterrado. Algumas pessoas mais ousadas se aventuram perto da beirada. Suas silhuetas se desenham
contra o resplendor metálico.
(Leve som de zumbido.)
Um homem quer tocar a Coisa... está tendo uma discussão com o policial. O policial vence ...
Agora, senhoras e senhores, algo que eu não mencionei em toda esta barafunda, mas que está se tornando
mais nítido. Talvez seus rádios já o tenham captado. Escutem (longa pausa) ... Ouviram? É um curioso
zumbido que parece vir de dentro do objeto. Vou chegar o microfone mais para perto. Aqui (pausa).
Agora não estamos afastados nem oito metros. Podem ouvir agora? Oh! Professor Pierson!
Pierson: Sim, senhor Phillips?
Phillips: Podemos esclarecer o significado desse barulho rascante dentro da Coisa?
Pierson: Possivelmente o esfriamento desigual de sua superfície.
Phillips: O senhor ainda acha que é um meteorito, professor?
Pierson: Não sei o que pensar. O invólucro é positivamente extraterrestre, feito de metal não
encontrado em nosso planeta. A fricção com a atmosfera da terra costuma fazer buracos num meteorito. A
Coisa é lisa e, como se vê, de forma cilíndrica.
Phillips: Um minuto! Algo está acontecendo! Senhoras e senhores, isto é assustador! A
extremidade da Coisa está começando a abrir. O topo está começando a rodar como um parafuso! A
Coisa deve ser oca!
Vozes: Ela está. se mexendo! O diabo dessa coisa está se desparafusando.
Para trás, vocês aí! Para trás, estou dizendo.
Quem sabe há homens lá dentro tentando escapar!
Está rubro de tão quente, vão virar cinza.
Para trás aí! Faça esses idiotas se afastarem.
(Subitamente, o ressoar de um enorme pedaço de metal que cai.)
Vozes: Ela caiu! A tampa se soltou!
Cuidado! Fiquem afastados!
Phillips: Senhoras e senhores, esta é a coisa mais aterradora que jamais testemunhei... um
momento! Alguém sai engatinhando pela abertura de cima. Alguém ou alguma coisa. Posso ver que de
dentro do buraco negro dois discos luminosos espiam... são olhos? Pode ser um rosto. Pode ser..,
(Grito de pavor da multidão.)
Deus do céu, algo está saindo da sombra como uma serpente. Agora outro, e mais outro. Parecem
tentáculos. Agora, posso ver o corpo da Coisa. É grande como um urso e brilha como couro molhado.
Mas o rosto. Ele ... ele é indescritível. Mal consigo continuar olhando. Os olhos são pretos e luzem como
os de uma cobra. A boca tem a forma de V, com saliva escorrendo de seus lábios disformes, que parecem
tremer e pulsar. O monstro ou seja lá o que for mal pode se mover. Parece puxado para baixo... talvez
pela gravidade ou algo parecido. A Coisa está se levantando. A multidão recua. Já viram bastante. É a
experiência mais extraordinária. Não encontro palavras ... estou arrastando o microfone comigo enquanto
falo. Tenho de interromper a descrição até me colocar em outra posição. Aguardem, por favor. Voltarei
num minuto.
(Entra música de piano.)
Locutor Dois: Estamos apresentando aos senhores um testemunho ocular do que está acontecendo
na Fazenda Wilmuth, em Grovers Mill, Nova Jérsei.
(Mais piano.)
Agora voltamos a Carl Phillips em Grovers Mill.
Phillips: Senhoras e senhores (estou no ar?) ... Senhoras e senhores, aqui estou eu, em cima de um
muro de pedra, que cerca o jardim do senhor Wilmuth. Daqui tenho uma visão da cena toda. Comunicarei
aos senhores cada pormenor, enquanto possa falar. Enquanto possa ver. Chegaram mais policiais
estaduais. Estão formando um cordão de isolamento diante do objeto, uns trinta deles. Não é preciso
empurrar para trás a multidão agora. As pessoas querem manter distância. O capitão está conferenciando
com alguém. Não podemos ver com quem. Oh, sim, creio que é com o professor Pierson. Sim, é ele.
Agora se separaram. O professor anda para um lado, estudando o objeto, enquanto o capitão e dois
policiais avançam com algo nas mãos. Posso ver agora. É um lenço branco atado a uma vara — uma
bandeira de paz. Se aquelas criaturas souberem o que isso significa o que alguma coisa significa! ...
Esperem! Algo está acontecendo!
(Um silvo seguido de um zumbido que alimenta de intensidade.)
Uma forma encurvada está se elevando do buraco. Posso distinguir um pequeno raio de luz contra
um espelho. O que é isso? É um jato de fogo brotando daquele espelho, e que vem na direção dos homens
que empunham o lenço branco. O jato agora os atinge de frente! Santo Deus, eles estão em chamas!
(Gritos de horror. Guinchos não-humanos.)
Agora todo o pasto está em chamas (Explosão). As árvores ... os celeiros... os tanques de
gasolina dos automóveis ... o fogo está se espalhando por tudo. Está vindo para cá. Uns seis metros à
minha direita...
(Estrondo do microfone.. . Depois, silêncio mortal.)
Locutor Dois: Senhoras e senhores, devido a circunstâncias fora de nosso controle, não podemos
continuar a transmitir diretamente de Grovers Mill. Evidentemente há alguma dificuldade com nossa
transmissão local. No entanto, voltaremos àquele local com a maior brevidade possível. No meio tempo,
temos um boletim atrasado de San Diego, Califórnia. O professor Indellfloffer, falando num jantar da
Sociedade Astronômica da Califórnia, expressou a opinião de que as explosões em Marte sem dúvida
nada mais são do que violentas perturbações vulcânicas na superfície do planeta. Continuaremos agora
com nosso interlúdio pianístico.
(Piano ... Depois corta.)
Senhoras e senhores, acaba de me ser entregue o noticiário que veio de Grovers Mill por
telefone. Um momento. Pelo menos quarenta pessoas, inclusive seis policiais estaduais, jazem mortas
num campo a leste da vila de Grovers Mill, seus corpos arderam e estão totalmente irreconhecíveis.
Ouvirão a seguir a palavra do General Montgomery Smith, comandante da Milícia Estadual de Trenton,
Nova Jérsei.
Smith: O Governador de Nova Jérsei solicitou-me que colocasse os condados de Mercer e
Middlessex, no oeste até Princeton e no leste até Jamesburg, sob lei marcial. A ninguém será permitido
penetrar nessa área a menos que tenha passe emitido por autoridades do Estado ou militares. Quatro
companhias da Milícia Estadual estão se deslocando de Trenton para Grovers Mill e ajudarão a evacuar
os moradores dentro dos limites das operações militares. Obrigado.
Locutor: Acabaram de ouvir o General Montgomery Smith, comandante da Milícia Estadual de
Trenton. No meio tempo estão chegando mais pormenores da catástrofe de Grovers Mill. As estranhas
criaturas, depois de desfechar seu assalto mortal, esgueiraram-se de volta para sua cova e não fizeram
tentativa de impedir os esforços dos bombeiros para resgatar os corpos e extinguir o fogo. Bombeiros de
todo o condado de Mercer estão combatendo as chamas, que ameaçam os campos em volta.
Não conseguimos estabelecer contato com nossa unidade móvel em Grovers Mill, mas esperamos
poder levá-los de volta ao local no menor prazo possível. No meio tempo levamos até ... oh, um
momento, por favor.
(Pausa longa ... Murmúrios.)
Senhoras e senhores, acabo de ser informado de que finalmente estabelecemos comunicação com
uma testemunha ocular da tragédia. O professor Pierson foi localizado numa casa de fazenda perto de
Grovers Mill, onde estabeleceu um posto de observação de emergência. Como cientista ele nos dará sua
explicação da catástrofe. A voz que escutarão a seguir é do professor Pierson, trazida diretamente a
vocês. Professor Pierson.
Pierson: Sobre os seres dentro do cilindro do foguete em Grovers Mill não lhes posso dar
nenhuma informação positiva — quer sobre sua natureza, sua origem, quer sobre seus propósitos aqui na
Terra. Sobre seu destruidor instrumento posso aventurar uma explicação baseada em mera hipótese. Na
falta de termo melhor, me referirei à arma misteriosa como um raio de calor. É por demais evidente que
essas criaturas têm conhecimento científico muito mais avançado que o nosso. Tenho o palpite de que são
capazes de gerar, de alguma forma, um intenso calor numa câmara de praticamente absoluta não-
condutividade. Esse intenso calor eles o projetam num raio paralelo contra qualquer objeto que
escolhem, por meio de um espelho parabólico polido, de composição desconhecida, de maneira muito
semelhante àquela pela qual o espelho de um farol projeta um raio de luz. Essa é minha conjectura sobre
a origem do raio de calor.
Locutor Dois: Obrigado, professor Pierson. Senhoras e senhores, aqui temos um boletim de
Trenton. É um breve comunicado informando-nos que o corpo carbonizado de Carl Phillips, o
comentarista de rádio, foi identificado num hospital de Trenton. Agora, outro boletim de Washington, DC.
O gabinete do diretor da Cruz Vermelha Nacional comunica que dez unidades de trabalhadores de
emergência da Cruz Vermelha foram enviadas ao quartel-general da Milícia Estadual estacionado nas
imediações de Grovers Mill, Nova Jérsei. Agora um boletim da Polícia Estadual, Princeton Junction. O
incêndio em Grovers Mill e vizinhanças já foi dominado. Batedores constatam que tudo está tranqüilo no
local e que não há sinal de vida aparente no topo do cilindro. E agora, senhoras e senhores, temos uma
declaração especial do senhor Harry Mc Donald, vice-presidente encarregado das operações.
Mc Donald: Recebemos um requerimento da Milícia de Trenton para colocar à sua disposição
todos os nossos recursos de transmissão. Em vista da gravidade da situação e acreditando que o rádio
tem uma responsabilidade definida de servir ao interesse público em todas as ocasiões, estamos
transferindo nossos recursos para a Milícia Estadual em Trenton.
Locutor: Levaremos os senhores agora para o quartel-general de campanha da Milícia Estadual
perto de Grovers Mill, Nova Jérsei.
Capitão: Aqui fala Capitão Lansing, do Corpo de Sinaleiros, ligado à Milícia Estadual agora
empenhada em operações militares nas vizinhanças de Grovers Mill. A situação provocada pela presença
de certos indivíduos de natureza não identificada está agora sob completo controle.
O objeto cilíndrico caído dentro de um buraco diretamente embaixo de nossa posição está
rodeado por todos os lados por oito batalhões de infantaria, sem artilharia pesada, mas fortemente
armados com rifles e metralhadoras. Qualquer razão para alarme, se é que razão existiu, é agora
inteiramente injustificada. As coisas, sejam o que forem, não se arriscam a mostrar as cabeças acima do
buraco. Posso ver perfeitamente seu esconderijo ao clarão dos holofotes. Com todos os seus falados
recursos, estas criaturas mal podem enfrentar um cerrado fogo de metralhadora. De qualquer forma, é um
interessante treino para as tropas. Posso perceber seus uniformes caquis cruzando de cá para lá diante
das luzes. É quase como se fosse uma guerra verdadeira. Parece haver uma ligeira fumaça nos bosques
que margeiam o rio Millstone. Provavelmente fogueiras acesas por gente acampada. Bem, teremos de ver
logo alguma ação.
Uma das companhias está se deslocando no flanco esquerdo. Um golpe rápido e tudo estará
acabado. Agora esperem um minuto! Vejo algo no alto do cilindro. Não, é apenas uma sombra. Agora as
tropas estão na borda da Fazenda Wilmuth. Sete mil homens armados apertando o cerco em torno de um
tubo de metal. Esperem, não era uma sombra! É alguma coisa se movendo — metal sólido — é uma
espécie de coisa parecida com um escudo se levantando para fora do cilindro... Está cada vez mais alto.
Epa, está ficando de pé ... quer dizer, na verdade se elevando sobre um arcabouço metálico. Agora a
coisa está por cima das árvores e as luzes dos holofotes incidem sobre ela! Esperem!
(Silêncio.)
Locutor Dois: Senhoras e senhores, tenho uma notícia muito grave para transmitir. Por mais
incrível que pareça, tanto as observações da ciência como a evidência de nossos olhos conduzem à
conclusão irrecusável de que aqueles estranhos seres que aterrissaram hoje à noite na região agrícola de
Jérsei são a vanguarda de um exército invasor vindo do planeta Marte. A batalha que ocorreu esta noite
em Grovers Mill terminou com uma das mais aterradoras derrotas jamais sofridas por um exército nos
tempos modernos: sete mil homens armados com rifles e metralhadoras investiram contra uma única
máquina de combate dos invasores vindos de Marte. São conhecidos cento e vinte sobreviventes. O resto
jaz espalhado pelo campo de batalha, de Grovers Mill a Plainsboro, os corpos esmagados e
despedaçados sob os pés metálicos do monstro, ou transformados em cinzas por seus raios de calor. O
monstro agora tem o controle da parte central de Nova Jérsei e cortou efetivamente o Estado ao meio. As
redes de comunicação caíram desde a Pensilvânia até o Oceano Atlântico. Trilhos ferroviários foram
retorcidos e os serviços de Nova Iorque para Filadélfia estão interrompidos, exceto alguns trens
passando por Allentown e Phoenixville. As estradas reais para o norte, sul e oeste estão coalhadas de
frenético tráfego humano. A polícia e o Exército são impotentes para controlar a fuga desordenada.
Calcula-se que pela manhã os fugitivos darão a Filadélfia, Camden e Trenton o dobro de sua população
normal.
Neste momento, toda Nova Jérsei e o leste da Pensilvânia estão sob lei marcial. Passaremos
agora a transmitir, de Washington, um programa especial sobre a Emergência Nacional. O Secretário do
Interior ...
Secretário: Cidadãos dos EUA: Não tentarei encobrir a gravidade da situação que nosso país
enfrenta, nem a preocupação de nosso Governo em proteger as vidas e a propriedade de nosso povo. No
entanto, desejo que todos se compenetrem — cidadãos, autoridades e funcionários de todos os escalões
— da necessidade urgente de calma e ação bem orientada. Felizmente este inimigo temível ainda está
confinado a uma área relativamente pequena, e devemos confiar nas forças militares para mantê-los lá.
No meio tempo, confiando em Deus, devemos continuar a desempenhar nossas obrigações, cada um de
nós sem exceção, para que possamos enfrentar este adversário destruidor com uma nação unida, corajosa
e consagrada à preservação da supremacia humana nesta terra. Muito obrigado.
Locutor: Acabaram de ouvir o Secretário do Interior, falando de Washington. Boletins por
demais numerosos para que possamos lê-los se amontoam aqui no estúdio. Estamos informados de que a
parte central de Nova Jérsei está sem comunicação pelo rádio por causa do efeito do raio de calor sobre
as linhas de força e o equipamento elétrico. Aqui um boletim especial de Nova Iorque. Cabogramas
recebidos de entidades científicas inglesas, francesas e alemãs oferecendo assistência. Astrônomos
relatam continuadas erupções gasosas em intervalos regulares sobre o planeta Marte. A opinião da
maioria é que o inimigo será reforçado por novas máquinas lançadas por meio de foguetes. Foram feitas
tentativas para localizar o professor Pierson de Princeton, que observou os marcianos de perto. Teme-se
que tenha morrido em batalha recente. Langham Field, Virgínia: Aviões de reconhecimento dão conta de
três máquinas marcianas visíveis acima das árvores, movendo-se para o norte em direção de Somerville,
com a população fugindo à sua aproximação. Não estão usando o raio de calor. Embora avançando à
velocidade de trem expresso, os invasores escolhem sua rota com cuidado. Parecem estar fazendo
esforço deliberado para evitar destruição de cidades e campos. No entanto, param para desmantelar
linhas de força, pontes e trilhos ferroviários. Seu aparente objetivo é quebrar a resistência, paralisar as
comunicações e desorganizar a sociedade humana.
Aqui temos um boletim de Basking Ridge, Nova Jérsei: Caçadores acabam de descobrir um
segundo cilindro, idêntico ao primeiro, enterrado no grande pântano a 32 quilômetros ao sul de
Morristown. Peças de artilharia do Exército dos EUA estão vindo de Newark para arrasar a segunda
unidade invasora antes que o cilindro possa ser aberto e a máquina de guerra ativada. Estão tomando
posição no sopé das Montanhas de Watchung. Outro boletim de Langham Field, Virgínia. Aviões de
reconhecimento localizam máquinas inimigas, agora em número de três, aumentando sua velocidade para
o norte, tropeçando em casas e árvores na pressa evidente de fazer junção com seus aliados ao sul de
Morristown. Máquinas também divisadas por operador telefônico a leste de Middlessex num círculo de
16 quilômetros de Plainfield. Agora um boletim de Winston Field, Long Island: Esquadrilha de
bombardeiros do Exército carregando explosivos pesados voando para o norte em perseguição do
inimigo. Aviões de reconhecimento agem como guias. Mantêm sob observação inimigo em marcha
acelerada. Um momento, por favor, senhoras e senhores, fizemos ligação especial com a linha de
artilharia em povoações adjacentes, para dar-lhes relatórios diretos da área do avanço inimigo. Em
primeiro lugar falamos da bateria da 22ª Artilharia de Campo, nas Montanhas de Watchung.
Oficial: Alcance — trinta e dois metros.
Artilheiro: Trinta e dois metros.
Oficial: Projeção, trinta e nove graus.
Artilheiro: Trinta e nove graus.
Oficial: Fogo!
(Estrondo de artilharia pesada... Pausa.)
Observador: Cento e vinte e cinco metros à direita, senhor.
Oficial: Muda alcance — trinta e um metros.
Artilheiro: Trinta e um metros.
Oficial: Trinta e sete graus.
Oficial: Fogo!
(Estrondo de artilharia pesada... Pausa.)
Observador: Bem no alvo, senhor! Atingimos a trípode de uma delas. Pararam. As outras estão
tentando consertá-la.
Oficial: Rápido, o alcance. Mudança trinta metros.
Artilheiro: Trinta metros.
Oficial: Projeção — vinte e sete graus.
Artilheiro: Vinte e sete graus.
Oficial: Fogo!
(Estrondo de artilharia pesada... Pausa.)
Observador: Não posso ver o local da cápsula, senhor. Estão deixando escapar uma fumaça.
Oficial: O que é que é?
Observador: Uma fumaça preta, senhor. Está vindo para cá. Bem rente ao chão. Se movendo
ligeiro.
Oficial: Coloquem máscaras contra gases. (Pausa). Apontar fogo. Muda para vinte e quatro
metros.
Artilheiro: Vinte e quatro metros.
Projeção: Vinte e quatro graus.
Oficial: Fogo! (Estrondo.)
Observador: Ainda não consigo ver, senhor. A fumaça está mais perto.
Oficial: Prepare o alcance. (Tosses.)
Observador: Vinte e três metros. (Tosses.)
Oficial: Vinte e três metros. (Tosse.)
Observador: Projeção — vinte e dois graus. (Tossindo.)
Oficial: Vinte e dois graus. (A tosse vai sumindo.)
(Som passa para ruído de motor de avião.)
Comandante: Avião bombardeiro do Exército, V-8-43 saído de Bayonne, Nova Jérsei. Tenente
Voght, comandando oito bombardeiros, Fazendo relatório para Comandante Fairfax, Langham Field.
Máquinas inimigas, de três pernas, agora à vista. Reforçadas por três máquinas do cilindro de
Morristown. Seis no total. Uma máquina parcialmente avariada. Decerto foi atingida por projétil de
metralhadora do Exército na operação de Watchung. Metralhadoras agora silenciosas. Pesada bruma
negra pairando rente à Terra, de extrema densidade, natureza desconhecida. Nenhum sinal de raio de
calor. Inimigo se desloca para leste, atravessando o rio Passaic em direção aos pântanos de Jérsei. Outro
se escarrancha sobre o Viaduto Pulaski. Nova Iorque é o objetivo evidente. Estão derrubando uma usina
de alta-tensão. Máquinas agora muito juntas, e estamos prontos para atacar. Aviões sobrevoando, prontos
para bombardear. Uns 900 metros e estaremos sobre a primeira ... 700 metros... 500 metros ... 300 metros
... 150 metros ... Estão nos varrendo com chamas! Seiscentos metros. Motores falhando. Impossível
lançar as bombas... Somente uma das Coisas ficou para trás... Vamos mergulhar com avião e tudo.
Estamos mergulhando no primeiro. Agora o motor se foi! Oito...
Operador Um: Aqui Bayonne, Nova Jérsei, chamando Langham Field... Aqui Bayonne, Nova
Jérsei, chamando Langham Field... Contato, por favor... Contato, por favor...
Operador Dois: Aqui Langham Field... prossiga.
Operador Um: Bombardeiros do Exército encontraram máquinas de combate inimigas sobre as
planícies de Jérsei. Motores inutilizados pelos raios de calor. Tudo despedaçado. Uma máquina inimiga
destruída. Inimigo agora descarregando pesada fumaça preta na direção de ...
Operador Três: Aqui Newark, Nova Jérsei... Aqui Newark, Nova Jérsei... Cuidado! Fumaça
preta venenosa chegando dos pântanos de Jérsei. Alcança South Street. As máscaras contra gases são
inúteis. Urgente transferência da população para espaços abertos... automóveis usem estradas 7, 23, 24...
evitem áreas congestionadas. Fumaça agora se espalhando sobre Raymond Boulevard ...
Operador Quatro: 2X2L ... chamando CQ... 2X2L ... chamando CQ... 2X2L chamando 8X3R ...
do CQ... 2X2L chamando 8X3B ...
Operador Cinco: Aqui 8X3R... devolvendo chamada a 2X2L...
Operador Quatro: Que tal a recepção? Que tal a recepção? K, por favor. Onde é que está,
8X3R? O que é que há? Onde é que você está?
(Sinos tocando pela cidade, diminuindo gradualmente.)
Locutor: Estou falando do terraço do Broadcasting Building, cidade de Nova Iorque. Os sinos
que ouvem estão tocando para que o povo evacue a cidade, enquanto os marcianos se aproximam.
Calcula-se que nas últimas duas horas três milhões de pessoas fugiram para o norte pelas estradas, a
avenida do Rio Hutchison ainda está aberta para tráfego motorizado. Evitem as pontes para Long Island...
estão completamente inutilizadas. Toda a comunicação com a costa de Jérsei interrompida há dez
minutos. Não há mais defesa. Nosso Exército varrido... artilharia, Força Aérea, tudo varrido. Esta pode
ser a última transmissão. Vamos ficar aqui até o fim. O povo está rezando lá embaixo... na Catedral.
(Vozes cantando um hino.)
Estou olhando para os lados do porto. Embarcações de todo tipo invadidas pela população em
fuga. Deixam o cais, superlotadas.
(Som de apitos de barco.)
Ruas na maior confusão. Multidões se atropelam como numa véspera de Ano Novo. Um
momento... Inimigo à vista agora acima de Palisades. Cinco grandes máquinas. A primeira está cruzando
o rio. Posso vê-la daqui, vadeando o Hudson como um homem vadeia um regato ... Um boletim acaba de
me ser entregue... Cilindros marcianos estão caindo por todo o país. Um nos arredores de Buffalo, um em
Chicago, St. Louis — parecem com tempo e distância calculados ... Agora a primeira máquina alcança a
margem. Fica de pé contemplando a cidade. Sua descomunal cabeça metálica alcança a altura dos
arranha-céus. Espera pelas outras. Erguem-se como uma linha de novas torres na zona oeste da cidade...
Começam a levantar as suas mãos metálicas. É o fim. Fumaça... uma fumaça negra se alastra por toda a
cidade. As pessoas que estão nas ruas agora percebem. Estão correndo em direção ao rio... milhares
delas se afogando como ratos. Agora a fumaça está se espalhando mais depressa. Alcançou Times
Square. O povo tenta fugir dali, mas não adianta. Caem como moscas. Agora a fumaça atravessa a Sexta
Avenida... a Quinta Avenida... aproxima-se ... está a 90 metros ... está só a uns 15 metros...
Operador Quatro: 2X2L chamando CQ... 2X2L chamando CQ ... 2X2L chamando CQ ... Nova
Iorque ... Não há ninguém no ar? Há alguém ... 2X2L...

Pierson: Enquanto ponho no papel estas notas, sinto-me obcecado pelo pensamento de que posso
ser o último homem vivo sobre a Terra. Tenho estado escondido nesta casa vazia perto de Grovers Mill
— uma pequena ilha de luz solar recortada dentro da fumaça negra do resto do mundo. Tudo que
aconteceu antes da chegada dessas criaturas monstruosas à Terra parece agora parte de outra vida — uma
vida sem continuidade com o presente, furtiva existência do náufrago solitário que grava estas palavras
nas costas de algumas notas astronômicas que levam a assinatura de Richard Pierson. Baixo os olhos
para minhas mãos enegrecidas, meus pés descalços, minhas roupas em frangalhos, e tento relacioná-los
com um professor que vive em Princeton e que, na noite de 30 de outubro, observou de relance, através
de seu telescópio, um espocar de luz alaranjada num distante planeta. Minha mulher, meus colegas, meus
alunos, meus livros, meu observatório, meu... meu mundo... onde está tudo isso? Será que ainda existem?
Sou mesmo Richard Pierson? Que dia é hoje? Será que os dias existem sem calendário? O tempo passa
quando não sobrou mão humana para dar corda aos relógios? Estou relatando minha vida diária porque
disse a mim mesmo que devo preservar a história humana sob a capa preta deste livrinho que era
destinado à anotação do movimento das estrelas. Mas para escrever eu tenho de viver e para viver tenho
de comer... achei pão duro na cozinha e uma laranja que ainda podia ser aproveitada. Estou sempre de
olho na janela. De tempos em tempos percebo um marciano acima da fumaça negra.
A fumaça ainda prende a casa em sua espiral negra, mas a espaços ouve-se um som sibilante, e
súbito vejo um marciano montado em sua máquina, borrifando o ar com um jato de vapor, como se fosse
para dissipar a fumaça. Me esgueiro para um canto, enquanto suas enormes pernas metálicas quase dão
de encontro à casa. Exausto de pavor, pego no sono.
É de manhã. Raios de sol penetram pela janela. A negra nuvem de gás ergueu-se, e os campos
estorricados ao norte dão a impressão de que uma tempestade de neve negra os assolou. Aventuro-me
para fora de casa. Encaminho-me para uma estrada. Nenhum tráfego. Aqui e ali um carro arrebentado,
bagagem revolvida, um esqueleto enegrecido. Me arrasto para o norte. Por alguma razão sinto-me mais
seguro nos rastros destes monstros do que fugindo deles. E me mantenho alerta. Eu vi de que é que os
marcianos se alimentam. Se alguma dessas máquinas se mostrar por sobre o topo das árvores, estou
pronto para me deitar rente ao solo. Chego a uma nogueira. Outubro, as nozes estão maduras. Encho os
bolsos. Preciso me manter vivo. Há dois dias perambulo numa vaga direção norte por um mundo
desolado. Finalmente percebo uma criatura viva — um esquilinho vermelho numa faia. Fixo os olhos nele
e fico imaginando. Ele me devolve o olhar. Creio que naquele momento o animal e eu compartilhamos a
mesma emoção — a alegria de descobrir um outro ser vivo... prossigo para o norte. Encontro vacas
mortas num pasto cercado. Além, as ruínas requeimadas de uma fazenda. O silo permanece de guarda
sobre a terra devastada, qual um farol abandonado pelo mar. No alto do silo se empoleira um galo de
catavento. A seta aponta para o norte.
No dia seguinte chego a uma cidade vagamente familiar por seus contornos. Contudo, seus
prédios diminuíram de tamanho, estranhamente, foram nivelados como se um gigante houvesse cortado
suas torres mais altas com um desdenhoso golpe de mão. Alcanço os arrabaldes. Vejo que Newark não
foi arrasada, mas só decapitada por algum capricho dos marcianos em seu avanço.
Agora, com a estranha sensação de estar sendo observado, percebo algo acocorado num portal.
Dou um passo em sua direção, ele se levanta e vejo que é um homem armado com um facão.
Estranho: Pare ... De onde é que veio?
Pierson: Eu vim de ... muitos lugares. Há muito tempo, de Princeton.
Estranho: Princeton, é? Mas isso é perto de Grovers Mill!
Pierson: É sim.
Estranho: Grovers Mill... (Ri como de uma boa piada.) Não há comida aqui. Este é meu
território — desta ponta da cidade até o rio. Só há comida para um... Para onde está indo?
Pierson: Não sei. Acho que estou procurando... procurando gente.
Estranho (nervoso): Que foi isso? Ouviu alguma coisa bem ali?
Pierson: Apenas um pássaro ... um pássaro vivo!
Estranho: Precisa saber que nos dias de hoje os pássaros nunca vêm sozinhos... Olhe, estamos a
céu aberto aqui. Vamos engatinhar para este portal e conversar.
Pierson: Tem visto algum marciano?
Estranho: Foram-se para Nova Iorque. À noite o céu fica todo claro com suas luzes. É como se
as pessoas ainda estivessem vivendo ali. De dia não dá para vê-los. Há cinco dias dois deles passaram
carregando um troço bem grande pela planície, vindos do aeroporto. Acho que estão aprendendo a voar.
Pierson: Voar!
Estranho: Isso mesmo, voar.
Pierson: Então acabou-se a humanidade. Estranho, sobramos você e eu. Somente nós dois.
Estranho: Eles atacaram sabendo o que faziam: transformaram em ruínas a maior nação do
mundo. Aquelas estrelas verdes provavelmente estão caindo em algum lugar cada noite. Eles perderam
apenas uma máquina. Não há nada a fazer. Estamos vencidos. Estamos liquidados.
Pierson: De onde é que você veio? Está de uniforme.
Estranho: Com o que sobrou dele. Estava na milícia — Guarda Nacional. Na guerra. Como se
pudesse haver guerra entre homens e formigas!
Pierson: E nós éramos formigas comestíveis. Descobri isso. Que vão fazer conosco?
Estranho: Tenho pensado nisso tudo. Agora nos pegam de qualquer jeito. É só o marciano andar
uns quilômetros e lá está uma multidão em fuga. Mas não vão continuar fazendo isso. Começarão a nos
pegar de modo sistemático... conservando os melhores e nos armazenando em jaulas e coisas assim.
Ainda não começaram a cuidar de nós!
Pierson: Não começaram?
Estranho: Não começaram. Tudo o que aconteceu até agora é porque não temos o bom senso
necessário para ficar quietos — ficamos incomodando-os com armas e essa tralha toda, e perdendo a
cabeça e fugindo em bandos. Agora, em vez de sair por aí às cegas, temos de nos adaptar às coisas como
são agora. Cidades, nações, civilização, progresso...
Pierson: Mas se é assim, para que viver?
Estranho: Durante um milhão de anos ou pouco mais, nada de concertos, ou jantares elegantes
nos restaurantes da moda. Se está atrás de diversão, acho que a festa acabou.
Pierson: E o que é que sobra?
Estranho: A vida — sobra a vida! Eu quero viver. E você também. Não vamos ser exterminados.
E também não quero ser agarrado, domesticado e cevado como um boi.
Pierson: Que vamos fazer?
Estranho: Eu vou adiante... bem debaixo do nariz deles. Tenho um plano. Nós homens, como
homens, estamos acabados. Não sabemos bastante. Temos de aprender um bocado para criar uma
oportunidade de salvação. Temos de dar um jeito de viver e em liberdade enquanto aprendemos. Pensei
nisso tudo, está vendo?
Pierson: Me conte o resto.
Estranho: Bem, nem todos foram feitos para a vida selvagem, e assim tinha de ser. É por isso que
eu o observava. Todos esses funcionariozinhos que viviam nestas casas — eles não serviam para nada.
Tinham a cuca vazia. Só sabiam correr para o trabalho. Via centenas deles correndo feito loucos para
pegar seu trem de cada dia pela manhã, com medo de chegar atrasados no emprego; correndo de volta à
noite, com medo de não chegar a tempo para o jantar. Seguro de vida e um pouco de dinheiro investido
para o caso de acidente. E aos domingos, preocupados com o futuro. Os marcianos serão uma bênção
celestial para esses caras. Jaulas confortáveis, boa comida, bom tratamento, nada de preocupações.
Depois de uma semana ou duas de andanças pelo mato com estômago vazio, eles ficarão contentes de ser
apanhados.
Pierson: Você pensou em tudo, não pensou?
Estranho: Se pensei! E não é só. Estes marcianos farão de alguns deles animaizinhos de
estimação, ensinando-lhes gracinhas. Quem sabe? Ficarão cheios de problemas por ter de matar o menino
de estimação que já cresceu demais. Talvez treinem alguns para que nos cacem.
Pierson: Não, isso é impossível. Nenhum ser humano...
Estranho: Sim, treinarão. Há homens que farão isso, alegremente. Se algum vier no meu
encalço...
Pierson: No meio tempo, você e eu e outros como nós..... onde iremos viver enquanto os
marcianos dominam a Terra?
Estranho: Já pensei em tudo. Vamos ter vida clandestina. Pensei nos esgotos. Debaixo de Nova
Iorque há quilômetros de esgotos. Nos maiores qualquer pessoa cabe. E depois há adegas, caixas-fortes,
depósitos de alimentos subterrâneos, túneis ferroviários, metrôs. Está percebendo, não? Vamos arranjar
um punhado de homens fortes. Nada de fracotes, fora com eles.
Pierson: E quer que eu vá?
Estranho: Bem, eu lhe dei uma oportunidade, não dei?
Pierson: Não vamos brigar por causa disso. E daí?
Estranho: Temos de arranjar lugares seguros para nós, compreende, e arranjar todos os livros
que pudermos — livros científicos. É aqui que entram homens como você, percebeu? Faremos incursões
nos museus, espionaremos os marcianos. Talvez não tenhamos de aprender muito para... imagine só:
quatro ou cinco das máquinas de combate deles de repente se põem a funcionar... raios de calor à direita
e à esquerda, e nenhum marciano dentro. Nenhum marciano, percebe? — Mas homens — homens que
aprenderam a lidar com elas. Pode mesmo ser ainda em nosso tempo. Que beleza! Imagine uma dessas
coisas maravilhosas, com seus raios de calor em nosso poder! Vamos disparar contra os marcianos,
vamos disparar contra outros homens. Todo mundo vai ter de se ajoelhar diante de nós.
Pierson: É esse o seu plano?
Estranho: Você e eu e mais uns poucos seremos donos do mundo.
Pierson: Estou percebendo.
Estranho: Fale, o que é que há? Para onde vai?
Pierson: Não para o seu mundo. Adeus, Estranho ...
Depois de ter rompido com o artilheiro, acabei dando no Túnel Holland. Entrei naquele tubo
silencioso, cheio de ansiedade para conhecer o destino da grande cidade do outro lado do Hudson.
Cauteloso, saí do túnel e caminhei pela rua que margeia o canal.
Alcancei a Rua Quartorze, e de novo era pó negro e numerosos corpos, e um cheiro fétido e de
mau agouro que vinha dos porões de algumas casas. Vagueei por vários trechos; contemplei, solitário,
Times Square. Vi de relance um cachorro magro correndo Sétima Avenida abaixo, com um pedaço de
carne enegrecida entre as mandíbulas, e um punhado de vira-latas esfaimados no seu encalço. Fez um
grande círculo em torno de mim, como se temesse que eu fosse mais um competidor. Subi a Broadway na
direção daquele pó estranho... passando por vitrinas silenciosas, que apresentavam sua muda mercadoria
às calçadas desertas... passando pelo Capitol Theatre, silencioso e às escuras... passando por uma galeria
de tiro ao alvo, onde uma fileira de espingardas vazias apontava para uma linha imóvel de patos de
madeira. Perto do Columbus Circle vi automóveis modelo 1939 nas salas de exposição olhando para as
ruas sem ninguém. Por sobre o edifício da General Motors observei um bando de pássaros negros voando
em círculos no céu. Apressei-me. De súbito, divisei a parte superior de uma máquina marciana, parada
num ponto qualquer do Central Park, luzindo aos últimos raios do sol vespertino. Uma idéia louca me
veio à mente! Saí em corrida desabalada pelo Columbus Circle em direção ao Central Park. Subi uma
colina acima do reservatório d'água da Rua Sessenta. De lá pude ver, parados em fila silenciosa ao longo
do Mall, dezenove daqueles imensos Titãs de metal, com suas torretas vazias, seus braços de aço
pendendo indiferentes. Procurei em vão os monstros que habitam essas máquinas.
Súbito, meus olhos foram atraídos pelo imenso bando de pássaros negros que volteavam
diretamente abaixo de mim. Faziam círculos para o chão, e ali, diante de meus olhos, rígidos e
silenciosos, jaziam os marcianos, com os pássaros famintos bicando e arrancando tiras de carne de seus
cadáveres.
Mais tarde, quando seus corpos foram examinados em laboratórios, descobriu-se que haviam sido
mortos pelas bactérias da putrefação e das doenças contra as quais seus organismos não tinham
proteção... mortos, depois que todas as defesas do Homem haviam fracassado, pela coisa mais humilde
que Deus em Sua sabedoria colocou sobre esta terra.
Antes que o cilindro caísse, havia uma convicção geral de que por todo o imenso espaço não
havia vida a não ser na insignificante superfície de nossa minúscula esfera. Agora vemos mais longe.
Obscura e maravilhosa é a visão que formei em minha mente: a vida se espalhando lentamente desta
pequena sementeira do Sistema Solar por toda a vastidão inanimada do espaço sideral. Mas isso é um
sonho remoto. Pode ser que a destruição dos marcianos seja apenas uma moratória, Talvez o futuro esteja
reservado para eles e não para nós.
Agora parece estranho estar eu aqui sentado em meu tranqüilo estúdio, em Princeton, escrevendo
o último capítulo do relatório começado numa fazenda deserta em Grovers Mill. Estranho ver de minha
janela as torres da universidade esfumaçadas e azuis através da névoa de abril. Estranho contemplar
crianças brincando nas ruas. Estranho ver gente passeando pelo gramado, onde a nova relva primaveril
cicatriza as últimas escaras negras de uma Terra combalida. Estranho observar os turistas que entram no
museu para ver as partes desmontadas de uma máquina marciana em exposição. Estranho quando me
lembro da primeira vez que a vi, recortada contra a paisagem, brilhante, dominadora e silenciosa, no
amanhecer daquele último grande dia.
Primeiro contato
Autor – Murray Leinster — Tradução – Mario Salviano

Tommy Dort entrou na cabina de comando com suas últimas estereofotos.


— Acabou-se, comandante — disse. — São estas as duas últimas fotografias que posso fazer.
Passou as fotos ao comandante e olhou com interesse profissional para os visoramas que
mostravam todo o espaço que circundava externamente a nave. Uma amortecida luz vermelho-escura
indicava os controles e outros instrumentos necessários para a viagem da Llanvabon. A cabina tinha
ainda uma poltrona almofadada e uma porção de espelhos curiosos, dispostos em ângulos diversos, que
permitiam ao tripulante fixar a vista nos visoramas sem precisar virar a cabeça. Havia também enormes
visores panorâmicos, através dos quais se tinha uma direta visão do espaço.
A Llanvabon estava a considerável distância da Terra. Os visoramas, onde desfilavam todas as
estrelas de magnitude visual e que podiam ser graduados para o tamanho desejado, mostravam estrelas de
todos os graus imagináveis de brilho, na surpreendente variedade de cores com que elas se apresentam
fora da atmosfera. Mas todas eram desconhecidas. Somente duas constelações podiam ser reconhecidas
como eram vistas da Terra, assim mesmo reduzidas no tamanho e distorcidas. A Via-láctea parecia
vagamente fora de lugar. Mesmo tais singularidades, entretanto, eram secundárias ante o que se via nos
visoramas dianteiros.
Tinham pela frente um vasto nevoeiro. Era um nevoeiro luminoso, que parecia imóvel. Levou
muito tempo para ser mais distintamente captado, embora o velocímetro da nave indicasse uma incrível
velocidade. O nevoeiro era a Nebulosa do Caranguejo, com seis anos-luz de comprimento, três e meio
anos-luz de espessura e com os apêndices que a tornavam parecida com o animal que lhe dá o nome. Uma
nuvem de gás, infinitamente tênue, em cujo centro ardiam duas estrelas, uma das quais da cor amarela do
sol da Terra, e a outra de um branco que não se podia classificar de imaculado.
Tommy Dort disse, pensativo:
— Estamos marchando para um abismo, senhor.
O comandante estudou as duas últimas estereofotos tiradas por Tommy e as pôs de lado, voltando
inquieto à observação dos visoramas dianteiros. A Llanvabon estava desacelerando a todo o vapor.
Achava-se apenas a meio ano-luz da nebulosa. O trabalho de Tommy era guiar o curso da espaçonave,
mas isto ele já havia feito. Durante o tempo em que a nave exploradora permanecesse na nebulosa, ele
nada teria a fazer, mas já havia pago um bom preço por essa ociosidade.
Tommy acabara de realizar um feito sem precedente — um completo registro fotográfico de uma
nebulosa durante um período de quatro mil anos, tomado por um indivíduo com o mesmo aparelho e com
exposições devidamente controladas para detectar e registrar quaisquer erros sistemáticos. Era em si
mesma uma realização digna da intrépida jornada. Além disso, porém, ele também acabara de
documentar quatro mil anos da história de uma estrela dupla, e quatro mil anos da história de uma estrela
em plena degenerescência, que lhe reduziria consideravelmente a dimensão.
Não é que Tommy Dort tivesse quatro mil anos de idade. Ele estava, com efeito, na casa dos
vinte. Mas a Nebulosa do Caranguejo está a quatro mil anos-luz da Terra e as duas últimas fotografias
tinham sido tiradas com luz que não chegaria à Terra senão no sexto milênio da Era cristã. A caminho
daqui, na marcha alucinante de múltiplos da velocidade da luz, Tommy Dort havia registrado todos os
aspectos da nebulosa com luz que dela havia partido desde quarenta séculos até apenas seis meses atrás.
A Llanvabon continuava a furar o espaço. Lenta e lentamente, a incrível luminosidade começava
a tomar conta dos visoramas, suprimindo a visão de metade do universo. Na frente era uma cerração
brilhante e atrás um vácuo salpicado de estrelas. A cerração ocultava três quartos de todas as estrelas,
percebendo-se apenas o brilho esmaecido de algumas das mais luminosas. Atrás, ficava apenas uma
profunda escuridão contra a qual se destacava o brilho fixo das estrelas. A Llanvabon mergulhou na
nebulosa e era como se furasse um túnel de escuridão com paredes de cerração luminosa.
Que era exatamente o que estava fazendo a nave espacial. As fotografias tomadas de maior
distância tinham revelado características estruturais na nebulosa, como, por exemplo, que ela tinha forma.
Quando a Llanvabon chegou mais perto, as indicações de estrutura se tornaram mais distintas e Tommy
pediu uma aproximação em curva por motivos de fotografia. A nave aproximou-se então da nebulosa
numa vasta curva logarítmica, o que permitiu que Tommy fizesse sucessivas fotografias de ângulos
ligeiramente diferentes e conseguisse estereopares mostrando a nebulosa em três dimensões, inclusive os
seus acidentes, e todo o seu complicado formato. Havia lugares em que a nebulosa apresentava
convulsões semelhantes às do cérebro humano. Numa de suas imensas fendas é que a nave estava
mergulhando agora e esse mergulho veio em boa hora.
As fendas eram assim chamadas por analogia com as rachaduras enormes encontradas no fundo
do mar. E elas foram de grande utilidade.
O comandante pôs-se à vontade. Uma das funções de um comandante é pensar em coisas que
causem preocupação e depois preocupar-se com elas. O comandante da Llanvabon era homem
consciencioso. Só quando um instrumento parava definitivamente de registrar informações é que ele se
descontraía.
— Parece quase impossível — disse pesadamente — que aqueles abismos possam ter sido gases
não-luminosos. Mas eles estão vazios. Assim poderemos ligar o overdrive enquanto estivermos dentro
deles.
Era de ano-luz e meio a distância entre a extremidade da nebulosa e as proximidades da estrela
dupla que se achava no seu centro. Aqui estava o problema. A nebulosa é um gás. É tão tênue que a cauda
de um cometa é sólida em comparação, mas um veículo se deslocando em overdrive precisa de um vácuo
puro, como o que existe entre as estrelas, e não de um vácuo parcial. Mas a Llanvabon não podia render
muito neste imenso nevoeiro com sua velocidade limitada àquela que o vácuo parcial permite. A
luminosidade parecia bloquear a retaguarda da nave, que diminuía gradativamente de velocidade. O
overdrive terminou e, quase instantaneamente, campainhas estrídulas ressoaram em todos os ângulos da
nave, as quais só deixaram de tocar quando portas automáticas foram fechadas uma a uma. Tommy Dort
olhou fixamente para o comandante, que tinha os punhos cerrados. Um aparelho entrava aparentemente em
convulsões, enquanto outros registravam nervosamente suas descobertas. Um ponto no difuso e brilhante
nevoeiro estampado num visorama tornou-se mais destacado quando o esquadrinhador automático se
fixou nele. Foi a direção do objeto que fez soar o alarma de colisão. Mas o próprio indicador do objeto
— segundo a leitura do seu gráfico — mostrava um corpo sólido a cerca de oitenta mil milhas de
distância, e de pequeno tamanho. Havia, porém, outro objeto cuja distância ia do ponto mais extremo da
escala a zero, avançando e recuando.
— Aumente a graduação do aparelho — disse o comandante.
O ponto extraluminoso veio logo para o primeiro plano, obliterando a imagem imprecisa ao
fundo. Ampliação pronta. Mas nada aparecia. Absolutamente nada. Entretanto, o rádio insistia em que
algo invisível e monstruoso fazia loucos arremessos na direção da Llanvabon, em velocidade que
inevitavelmente implicavam colisão, recolhendo-se em seguida na mesma velocidade.
A graduação do visorama foi aumentada ao máximo. Nada ainda. O comandante mordeu os lábios
e Tommy Dort disse, pensativo:
— Escute, comandante, vi algo parecido com isto numa viagem certa vez entre a Terra e Marte,
quando estávamos sendo localizados por outra espaçonave. Sua transmissão era feita na mesma
freqüência que a nossa e sempre que a captávamos parecia-nos estar diante de algum corpo sólido e
monstruoso.
— Isso mesmo — disse o comandante, excitado —, é exatamente o que está acontecendo conosco.
Temos sobre nós alguma coisa assim como um localizador de rádio. Estamos sendo atingidos por essa
transmissão e além disso por nosso próprio eco. Mas a outra nave é invisível. Quem estaria aqui numa
nave invisível com instrumentos de localização? Não seriam homens, certamente!
Apertou o botão do comunicador preso na manga do seu traje e transmitiu a ordem:
— Atenção! Guarneçam todas as armas. Alerta total em todos os departamentos imediatamente!
Suas mãos se fechavam e se abriam. Fixou de novo o visorama, que nada mostrava a não ser uma
luminosidade informe.
— Não seriam homens"? — perguntou Tommy Dort com certa perplexidade. — O senhor quer
dizer...
— Quantos sistemas solares há em nossa galáxia? — perguntou o comandante com azedume. —
Quantos planetas apresentam condições de vida? E quantas espécies de vida pode haver? Se essa nave
não vem da Terra — e não vem — sua tripulação não será humana. E coisas que não são humanas, mas
que têm condições para empreender viagens pela vastidão do espaço, devem possuir uma civilização
nada desprezível.
As mãos do comandante estavam trêmulas. Ele não devia ter falado tão livremente diante de um
membro de sua própria tripulação, mas Tommy Dort pertencia ao seu quadro de observadores. E mesmo
um comandante, cujas tarefas incluem o dever de se preocupar, precisa, por vezes desesperadamente,
desabafar com alguém. Algumas vezes, também, ajuda muito pensar em voz alta.
— Coisa parecida tem sido objeto de discussões e especulações durante anos — disse
brandamente. — Matematicamente, é quase certo que em alguma parte da nossa galáxia haja outra raça
dotada de civilização igual ou superior à nossa. Ninguém pode jamais suspeitar onde ou quando a
encontraremos. Mas parece que coube a nós realizar essa proeza agora!
Os olhos de Tommy adquiriram brilho incomum.
— O senhor acha que eles serão cordiais? — perguntou. O comandante olhou para o indicador de
distância. O objeto fantasma ainda fazia seus loucos arremesses na direção da Llanvabon, recuando na
mesma incrível velocidade.
— Está se movendo — disse secamente. — Vindo em nossa direção. Exatamente o que faríamos
se uma nave espacial estranha aparecesse em nossa tela de observação. Amigos? É possível. Vamos
tentar entrar em contato com eles. É o que temos a fazer. Mas suspeito que isto será o fim de nossa
expedição. Graças a Deus pelos desintegradores.
Os desintegradores são correntes de arrasadora destruição, que têm por fim limpar da presença
de meteoritos a rota da nave espacial. Embora não tenham sido concebidos como armas, podem servir
como tal. Podem entrar em ação a cinco mil milhas de distância e têm um tal poder destruidor que podem
abrir uma enorme fenda num asteróide de pequeno tamanho que se ache no caminho do veículo espacial.
Mas não em overdrive, naturalmente.
Tommy Dort aproximou-se do visorama traseiro. E voltando a cabeça disse:
— Desintegradores, senhor? Para quê?
O comandante fez uma careta para o visorama vazio.
— Porque não sabemos as suas intenções e não podemos nos arriscar! Eu sei — continuou, com
azedume. — Vamos fazer contatos e tentar descobrir tudo o que pudermos sobre eles — especialmente de
onde procedem. Acho que tentaremos fazer amigos, mas não temos muita chance. Não podemos depositar
neles o mínimo de confiança. Não ousaremos. Eles têm localizadores. Talvez possuam rastreadores
melhores que os nossos. Quem sabe se eles não acompanharam o nosso trajeto desde a Terra sem o
sabermos. Não podemos arriscar que uma raça não-humana saiba onde fica a Terra, a menos que
estejamos seguros a respeito dela. E como podemos adquirir essa segurança? Eles poderiam vir para
negociar — ou também precipitar-se em overdrive com um verdadeiro exército capaz de nos aniquilar
antes de sabermos o que teria acontecido.
Tommy fez um ar de espanto.
— Isso tudo foi repetidamente trocado em miúdos, na teoria — disse o comandante. — Ninguém
jamais conseguiu encontrar uma resposta satisfatória, mesmo no papel. Ninguém pensou, porém, na
possibilidade de um encontro na vastidão do espaço sem que nenhum dos lados soubesse a procedência
do outro. Mas temos que encontrar uma resposta. Que é que vamos fazer com eles? Talvez estas criaturas
sejam maravilhas estéticas, distintas, amáveis e polidas, possuindo entretanto a brutal ferocidade de um
canibal. Ou talvez sejam rudes como um camponês sueco, mas com o espírito de justiça e de decência
que é a marca do seu caráter. Talvez sejam uma mistura dos dois. Mas iria eu arriscar o futuro da
humanidade na presunção de que é possível confiar neles? Deus sabe que valeria a pena fazer amigos
com uma nova civilização. Isto poderia estimular a nossa e talvez lucrássemos enormemente. Mas eu não
posso correr riscos. Em hipótese alguma eu concorreria para que eles soubessem o caminho da Terra. E
eles devem pensar da mesma forma.
Apertou de novo o botão do comunicador e disse:
— Oficiais navegadores, atenção! Todos os mapas estelares neste veículo devem ser preparados
para destruição imediata. Isto inclui fotografias e diagramas pelos quais nossa rota ou ponto de partida
possam ser deduzidos. Quero que todos os dados astronômicos sejam reunidos e dispostos para serem
destruídos em fração de segundo. Trabalhem com rapidez e me informem quando estiverem prontos.
Desligou o comunicador e dava a impressão de ter subitamente envelhecido. O primeiro contato
do ser humano com uma raça de outra parte era um fato que fora previsto de muitas maneiras, mas nunca
de forma tão embaraçosa quanto esta parecia ser. Duas naves solitárias, uma da Terra e outra de um
mundo diferente, encontravam-se numa nebulosa que devia se achar a remotíssima distância do planeta de
origem de cada uma. Elas poderiam desejar paz, mas não se podia distinguir bem entre a linha de conduta
que preparava um ataque traiçoeiro e uma aproximação amistosa. Pôr de lado a suspeita poderia resultar
na desgraça da raça humana — e, no entanto, uma permuta pacífica dos frutos da civilização seria o
maior benefício imaginável. Qualquer erro seria irreparável, mas não ficar alerta poderia ser fatal.
Reinava profundo silêncio na cabina do comandante. O visorama da traseira estava tomado com a
imagem de uma pequeníssima fração da nebulosa. Era tudo um nevoeiro difuso, sem contornos, luminoso.
Subitamente, Tommy Dort exclamou:
— Ali, senhor!
Distinguia-se uma pequena forma no nevoeiro. Era um objeto preto, sem lustre, ao contrário, por
exemplo, do casco da Llanvabon. Tinha a forma aproximada de uma pêra. Apresentava uma tênue
luminosidade, mas seus detalhes eram imperceptíveis. Era certo que não se tratava de um objeto natural.
Tommy olhou então para o indicador de distância e disse calmamente:
— Está se dirigindo para nós em alto grau de aceleração, senhor. Claro que eles devem estar
pensando a mesma coisa que nós, isto é, que nenhum de nós ousará permitir que o outro volte à sua base.
O senhor acha que tentarão um contato conosco, ou usarão suas armas tão logo estejam em condições de
nos atingir?
A Llanvabon não se achava mais num abismo de vácuo na fina substância da nebulosa, mas
deslizava num mar luminescente. Não havia outras estrelas senão as duas de intenso brilho que ocupavam
o centro da nebulosa. Nada mais se via senão uma luz que a tudo envolvia, e a coisa era tão
surpreendente que fazia os tripulantes imaginar estarem sob a água nos trópicos da Terra.
O estranho veículo fizera um sinal que demonstrava intenções amigáveis. Ao chegar perto da
Llanvabon desacelerou. Esta, depois de aproximar-se o máximo que a prudência permitia, parou. Essa
parada era tanto um sinal de cordialidade como uma precaução contra ataque. Relativamente imóvel, ela
podia girar sobre seu próprio eixo para se expor o mínimo possível a um assalto devastador. Por outro
lado, assim procedendo, teria muito mais tempo para fazer fogo com êxito, do que se as duas naves
passassem uma pela outra em suas velocidades combinadas.
O momento da real aproximação, contudo, foi dominado por uma profunda tensão. A proa em
forma de agulha da Llanvabon apontava firmemente para o casco da outra nave.
A um simples gesto agressivo, o comandante podia instantaneamente lançar os desintegradores
com toda a potência. Tommy Dort observava com o sobrecenho carregado. Aqueles desconhecidos
deviam possuir um alto nível de civilização para terem naves espaciais, e a civilização não se
desenvolve sem prudência. Deviam levar em conta todas as implicações deste primeiro contato de duas
raças civilizadas, tal como o faziam os seres humanos a bordo da Llanvabon.
É possível que o contato pacífico e a troca de suas respectivas tecnologias tenham ocorrido tanto
aos tripulantes da estranha nave como aos da Llanvabon. Quando culturas humanas dessemelhantes estão
em contato, uma geralmente deve estar subordinada ou há guerra. Mas entre raças oriundas de planetas
diferentes a subordinação não pode ser estabelecida pacificamente. Os homens, pelo menos, jamais
consentiriam em ficar subordinados, nem é provável que outra qualquer raça altamente desenvolvida o
admitisse. Os benefícios que resultam do comércio jamais podem compensar a condição de
inferioridade. Algumas raças — os homens, quem sabe? — talvez preferissem o comércio à conquista.
Talvez, também, o mesmo acontecesse com esses alienígenas. Mas mesmo certos tipos de seres humanos
teriam preferido a guerra. Se o veículo estranho agora se aproximando da Llanvabon voltasse à sua base
com a notícia da existência de humanidade e de naves como a Llanvabon, isto daria à sua raça a
alternativa de negociar ou guerrear. Como se sabe, para se fechar um negócio bastam dois, mas um
apenas para fazer uma guerra. Eles podiam não ter certeza das intenções pacíficas dos homens, nem os
homens do pacifismo deles. A única segurança para ambas as civilizações estaria na destruição de uma
ou de ambas as naves ali e já.
Mas a própria vitória não seria bastante. Os homens precisariam conhecer o planeta natal dessa
raça estranha para evitá-la ou para combatê-la. Precisariam conhecer suas armas e seus recursos, se eram
uma ameaça, e como eliminá-la em caso de necessidade. Os desconhecidos sentiriam as mesmas
necessidades relativamente à humanidade.
Por isso o comandante da Llanvabon não apertou o botão que possivelmente teria destruído a
outra nave. Não ousou fazer fogo. O suor escorria-lhe pelo rosto, denotando a extrema tensão que o
envolvia.
Ouviram-se vozes da sala de controle.
— A outra nave está parada, senhor. Absolutamente imóvel. Os desintegradores estão
centralizados nela.
Era um pedido para fazer fogo. Mas o comandante balançou a cabeça para si mesmo. A nave
estranha, inteiramente apagada, não estava a mais de vinte milhas de distância. Todo o seu exterior era de
um abissal pardo-escuro, no qual nada se refletia. Não se podia ver qualquer detalhe, exceto variações
insignificantes no seu perfil em contraste com a cerração da nebulosa.
— Está completamente parada, senhor — disse outra voz. — Eles enviaram em nossa direção
uma onda curta modulada. Freqüência modulada. Aparentemente um sinal. Não tem força suficiente para
causar qualquer dano.
O comandante cerrou os dentes.
— Estão fazendo alguma coisa agora — disse. — Há movimento do lado de fora da nave.
Observem o que eles mandam para fora. Concentrem sobre este alvo os desintegradores auxiliares.
Algo pequeno e redondo saiu vagarosamente da estrutura oval da nave escura. Esta começou a
mover-se.
— Está se afastando, senhor — disse o controlador. — O objeto que eles puseram do lado de
fora se acha estacionário no lugar em que eles o deixaram.
Outra vez interrompeu:
— Mais sinais em freqüência modulada, senhor. Ininteligíveis.
Os olhos de Tommy Dort brilharam. O comandante olhou para o visorama, enquanto gotas de suor
lhe desciam da testa.
— Tanto melhor, senhor — disse Tommy, confiante. — Se enviassem alguma coisa em nossa
direção, poderia parecer um projétil ou uma bomba. Assim, eles chegaram perto, largaram um salva-vida
e afastaram-se de novo. Calculam que podemos mandar um barco ou um homem para fazer contato sem
risco para o nosso veículo. Eles devem pensar mais ou menos igual a nós.
O comandante, sem tirar os olhos do visorama, disse:
— Sr. Dort, o senhor não se importaria de sair da nave para examinar o objeto? Eu não posso
ordenar-lhe isto, mas preciso de toda a minha tripulação para emergências. O pessoal de observação ...
— Pode ser sacrificado. Muito bem, senhor — disse Tommy, rapidamente. — Não quero tomar
um barco salva-vida. Basta um traje com dispositivo de propulsão. Creio que devo levar um
esquadrinhador.
A outra nave continuava a se afastar. Quarenta, oitenta, quatrocentas milhas. Aí parou e ficou
esperando. Enquanto vestia o seu traje espacial com propulsão atômica, Tommy ouvia as informações
transmitidas para todos os compartimentos da nave. O fato de o outro veículo ter parado a quatrocentas
milhas de distância era altamente tranqüilizador. Não podia possuir armas que alcançassem maior
distância, portanto ele estava seguro. Mas justamente quando este pensamento se formava em sua mente, a
estranha nave recomeçou a se afastar ainda mais e precipitadamente. Seria porque estavam mesmo
fugindo ou queriam apenas dar esta impressão? — pensou.
Tommy lançou-se para fora da sua prateada espaçonave, penetrando num vácuo de um brilho tão
intenso como jamais fora dado contemplar a qualquer ser humano. Atrás dele, a Llanvabon, balançando,
afastava-se como um dardo. Pelos fones do seu capacete, Tommy ouviu a voz do comandante.
— Estamos recuando também, Dort. É possível que eles possuam alguma reação atômica
explosiva que não possam usar de sua nave, mas que tenha poder destruidor mesmo dessa distância. Nós
recuaremos. Continue com o seu esquadrinhador assestado para o objeto.
O raciocínio estava certo, embora não fosse confortador. Um explosivo capaz de destruir
qualquer coisa num raio de vinte milhas era teoricamente possível, mas os seres humanos não o possuíam
ainda. Por medida de precaução convinha que a Llanvabon se afastasse mais do local.
Tommy Dort sentiu uma profunda solidão. Precipitou-se através do vácuo rumo à pequena mancha
negra que se destacava em meio à incrível luminosidade. A Llanvabon desapareceu. Sua couraça polida
se confundiria de qualquer forma com o brilho do nevoeiro a uma distância relativamente curta. A outra
nave, também, não era visível a olho nu. Tommy nadava no vácuo, a quatro mil anos-luz da Terra, para
encontrar uma pequenina mancha negra que era o único objeto sólido que podia ser visto em todo o
espaço.
Tratava-se de uma esfera ligeiramente distorcida, com um diâmetro não muito superior a l,80m.
Pulou quando Tommy desceu sobre ela, tocando-a primeiro com os pés. Possuía pequenos tentáculos, ou
chifres, que se projetavam em todas as direções. Pareciam muito com os detonadores de uma mina
submarina, mas havia um brilho de cristal na ponta de cada um.
— Estou aqui — disse Tommy, pelo fone do seu capacete.
Segurou um dos chifres e se aproximou do objeto. Era todo de metal, inteiramente preto.
Apalpou-o com suas luvas, não percebeu qualquer sinal de textura, nada de novo.
— Impasse, senhor — disse ele. — Nada a informar que o esquadrinhador já não tenha feito.
Nesse momento, através do seu traje, sentiu vibrações que se traduziam em ruídos estridentes.
Uma parte da couraça circular do objeto abriu-se. Ele deu a volta, curioso de olhar para dentro, a fim de
ver os primeiros seres civilizados não-humanos que jamais fora dado a um homem observar.
Mas o que viu foi simplesmente uma chapa plana, na qual luzes vermelho-escuras se projetavam
sem uma aparente finalidade. Ouviu então uma exclamação de surpresa. Era a voz do comandante:
— Muito bem, Dort. Ajeite o esquadrinhador de maneira a poder assestá-lo para essa chapa. Eles
lançaram um robô com um visor infravermelho para comunicação. Se fizéssemos qualquer coisa
estragaríamos apenas um mecanismo. Talvez esperem que nós o tragamos para bordo — e pode ser que
encerre uma bomba que venha a explodir quando eles estiverem prontos para regressar à sua base.
Mandarei um visor para ficar frente a frente de um de seus aparelhos de esquadrinhamento. Volte para a
nave.
— Sim, senhor — disse Tommy. — Mas onde está a nave?
Não havia estrelas. A nebulosa as obscurecia com a sua luz. A única coisa visível para quem
estava junto ao robô era a estrela dupla no centro da nebulosa. Tommy já não conseguia mais se orientar.
Só tinha um ponto de referência.
— Afaste-se em linha reta partindo da estrela dupla — veio a ordem pelo fone do capacete. —
Nós o apanharemos.
Passou por uma outra figura solitária, um pouco mais tarde, que rumava para a estranha esfera
com um visorama. As duas espaçonaves, sabendo que não ousariam arriscar sua própria tripulação pela
mínima falta de precaução, comunicar-se-iam com a outra através desse pequeno robô esférico. Os seus
diferentes sistemas de visibilidade lhes permitiriam permutar todas as informações que ousassem dar,
enquanto poderiam discutir o meio mais prático de garantir que sua própria civilização não seria posta
em perigo por este primeiro contato com uma outra. O método verdadeiramente mais prático seria a
destruição da outra nave num ataque fulminante e mortal — em defesa própria.
A Llanvabon, depois disto, tornou-se um veículo empenhado em duas tarefas ao mesmo tempo.
Viera da Terra com a missão de observar do ponto mais próximo possível os componentes menores da
estrela dupla no centro da nebulosa. Esta fora o resultado da mais violenta explosão que já ocorreu no
universo e de que o homem tem notícia. A explosão teve lugar no ano 2946 a.C. e sua luz alcançou a
Terra no ano 1054 da Era Cristã, fato que foi devidamente registrado em anais eclesiásticos e com um
pouco mais de precisão pelos astrônomos chineses. Era tão brilhante a sua luminosidade que pôde ser
vista à luz do dia durante 23 dias consecutivos. Sua luz — e distava quatro mil anos-luz — era mais
brilhante do que a de Vênus.
Com estes elementos, os astrônomos puderam calcular 900 anos depois a violência da detonação.
A matéria expelida do centro da explosão teria viajado à razão de dois milhões e trezentas mil milhas por
hora, mais de trinta e oito mil milhas por minuto, um pouco mais de seiscentas e trinta e oito milhas por
segundo. Quando os telescópios do século vinte foram assestados para a cena dessa vasta explosão,
restava apenas uma estrela dupla — e a nebulosa. A estrela mais brilhante das duas tinha na sua
superfície uma temperatura sem precedente, a tal ponto que não apresentava absolutamente linhas
espectrais. A temperatura da superfície do Sol é de cerca de 7.0009 absolutos. Na superfície daquela
estrela é de 500.0009. Ela tem aproximadamente a massa do Sol, mas somente um quinto do seu
diâmetro, de modo que sua densidade é 173 vezes a da água, 16 vezes a do chumbo e 8 vezes a do irídio
— a substância mais pesada que se conhece na Terra. Mesmo esta densidade, entretanto, não é a de uma
anã branca, como a companheira de Sirius. A estrela branca da Nebulosa do Caranguejo é uma anã
incompleta; continua em processo de contração. Ela bem merecia ser examinada de perto — incluindo a
análise de uma coluna de sua luz de quatro mil anos. Fora para fazer esse exame que a Llanvabon viera
da Terra. Mas o encontro de uma espaçonave estranha na mesma região tinha implicações que punham em
segundo plano o propósito inicial da expedição.
Um pequeno robô esférico flutuava no tênue gás da nebulosa. Os tripulantes da Llanvabon,
tomados por grande tensão, achavam-se nos seus postos em estado de alerta. A equipe de observação
dividia-se. Uma parte realizava com todo o empenho as observações que eram a missão da Llanvabon. A
outra metade aplicava-se ao problema da nave espacial recém-surgida, a qual devia representar uma
cultura tão desenvolvida que já realizava viagens em escala interestelar. A explosão de cinco mil anos
atrás devia ter destruído todos os vestígios de vida na área agora tomada pela nebulosa. Portanto, os
ocupantes da nave negra eram procedentes de um outro sistema. Sua viagem devia ter sido, como a do
outro veículo terrestre, por motivos puramente científicos. Nada havia que pudesse ser extraído da
nebulosa.
Os tripulantes da nave estranha achavam-se perto do nível da civilização humana, pelo menos, o
que significava que eles possuíam ou podiam desenvolver técnicas e artigos de comércio que os homens
gostariam de permutar em termos cordiais. Mas necessariamente haveriam de se dar conta de que a
existência da civilização humana era uma ameaça potencial à sua própria espécie. As duas raças podiam
ser amigas, mas também podiam ser inimigas mortais. Cada uma, mesmo inconscientemente, era uma
monstruosa ameaça para a outra. E a única coisa segura a se fazer ante uma ameaça é destruí-la.
Na Nebulosa do Caranguejo o problema era agudo e imediato. As futuras relações entre as duas
raças seriam estabelecidas agora. Se se pudesse iniciar um processo de amizade, uma das raças, de outra
forma condenada, sobreviveria e ambas se beneficiariam imensamente. Mas esse processo tinha que ser
estabelecido, a confiança mútua tinha que ser estimulada, sem o mínimo perigo de uma traição. A
confiança precisaria ser estabelecida sobre os alicerces de uma total desconfiança. Nenhuma das duas
naves ousaria retornar à sua base se a outra pudesse prejudicar sua raça. O certo era que a única coisa
segura para ambas seria destruir a outra ou ser destruída.
Mesmo no caso de guerra, porém, era necessário mais do que a pura destruição. Com o domínio
da navegação interestelar, os alienígenas deviam conhecer a energia atômica e alguma forma de
overdrive para viajarem acima da velocidade da luz. E além da radiolocalização, de visoramas e
comunicações por onda curta possuiriam, naturalmente, muitos outros dispositivos. Que armas teriam
eles? Qual a verdadeira extensão de sua cultura? Poderia ser estabelecido um intercâmbio de comércio e
de amizade, ou seriam as duas raças tão dessemelhantes que só a guerra pudesse existir entre elas? Se a
paz fosse possível, como poderia ela ser iniciada?
A tripulação da Llanvabon precisava de fatos — o mesmo acontecendo com os que viajavam no
veículo desconhecido. Eles deveriam colher o máximo de informações possível. A mais importante de
todas seria a localização da outra civilização por precaução, em caso de guerra. Esta informação poderia
ser o fator decisivo numa guerra interestelar. Mas outros fatos seriam por igual valiosíssimos.
O trágico em tudo isso era que não podia haver informação possível capaz de levar à paz.
Nenhuma das duas tripulações podia expor a existência de sua própria raça na convicção da boa vontade
ou da honra da outra.
Fez-se assim uma curiosa trégua entre as duas naves. A alienígena continuava no seu trabalho de
observação, tal como a Llanvabon. O pequeno robô flutuava no vácuo brilhante. Um esquadrinhador da
Llanvabon estava focalizado para um visorama da nave desconhecida, que também mantinha um
esquadrinhador assestado para um visorama da Llanvabon.
A comunicação entre as duas naves assim começada progrediu rapidamente. Tommy Dort foi um
dos que fizeram o primeiro relatório sobre esse progresso. Sua missão especial na expedição tinha
terminado. Agora recebera a incumbência de trabalhar no problema da comunicação com as entidades
desconhecidas. Juntamente com o solitário psicólogo de bordo, dirigiu-se à cabina do comandante para
transmitir a notícia do sucesso.
Essa cabina, como de costume, era um lugar silencioso, com indicadores luminosos de cor
vermelha e grandes visoramas nas paredes e no teto.
— Estabelecemos comunicações bastante satisfatórias — disse o psicólogo, que dava sinais de
cansaço. — Seu trabalho na viagem era avaliar fatores pessoais de erro na equipe de observação, para a
redução de todos os dados ao decimal mais próximo possível do absoluto. — Podemos dizer-lhes quase
tudo o que desejarmos e podemos compreender o que eles dizem em resposta. Mas, naturalmente, não
podemos ter certeza de que seja verdade tudo quanto nos digam.
O comandante voltou-se para Tommy Dort.
— Montamos um certo mecanismo — disse Tommy — que corresponde a um tradutor mecânico.
Temos visoramas, naturalmente, e correntes diretas de onda curta. Eles usam modulação de freqüência
combinada com algo, provavelmente variação em formas de onda — como os sons das nossas vogais e
consoantes. Nunca fizemos uso de qualquer coisa semelhante, por isso nossas bobinas não conseguem
operar satisfatoriamente, mas aperfeiçoamos uma espécie de código, que não corresponde à linguagem de
nenhum de nós. Eles emitem suas informações em onda curta com modulação de freqüência, e nós as
gravamos como som. Quando respondemos à transmissão, ela é reconvertida para freqüência modulada.
O comandante franziu a testa.
— Por que a forma da onda se converte em ondas curtas? Como você sabe?
— Mostramos-lhes nosso gravador nos visoramas e eles nos mostraram o deles. Eles gravam a
freqüência modulada diretamente. Penso — disse Tommy prudentemente — que eles não usam o som,
nem mesmo para falar. Montaram uma sala de comunicações e nós os observamos quando se
comunicavam conosco. Não fizeram movimentos perceptíveis de qualquer coisa que correspondesse a um
órgão de fonação. Em vez de usarem microfones, simplesmente se colocam perto de alguma coisa que
funcione como uma antena. Minha impressão, senhor, é que eles usam microondas para o que se pode
chamar conversação pessoa-a-pessoa. Acho que produzem ondas curtas como nós produzimos sons.
O comandante fixou-lhe o olhar algo surpreso:
— Isto significa que eles são telepatas?
— Hum ... Sim, senhor — disse Tommy. — Significa que nós somos telepatas também com
relação a eles. Provavelmente são surdos. Certamente não têm qualquer idéia de ondas sonoras no ar
para comunicação. Simplesmente não usam ruídos para nenhum fim.
O comandante guardou a informação.
— Que mais?
— Bem, senhor — disse Tommy com um ar de dúvida —, creio que estamos combinados.
Estabelecemos, de comum acordo, símbolos arbitrários para objetos, por meio dos visoramas, e
elaboramos relações e verbos com diagramas e fotografias. Possuímos cerca de duas mil palavras que
têm significação mútua. Montamos um analisador para selecionar os seus grupos de onda curta, que
introduzimos numa máquina decodificadora. Em seguida, o terminal de codificação recebe as gravações
para produzir os grupos de onda que precisamos enviar de volta. Quando o senhor quiser falar com o
comandante da outra nave, é só dizer, pois acho que estamos preparados.
— Hum, que impressão você tem da psicologia deles? — perguntou o comandante ao psicólogo.
— Não sei, senhor — disse, embaraçado. — Parecem absolutamente francos. Mas não deixaram
transparecer o menor sinal da tensão em que se acham e que nós sabemos que existe. Agem como se
estivessem simplesmente estabelecendo um meio de comunicação para conversação amigável. Mas há . ..
bem ... há qualquer coisa ...
O psicólogo era competente em matéria de mensuração psicológica, o que é um campo bom e útil.
Mas não estava preparado para analisar um tipo de pensamento completamente desconhecido.
— Se não me engano, senhor... — disse Tommy, meio inibido.
— Fale.
— Eles respiram oxigênio como nós — disse Tommy — e não são muito diferentes nas outras
coisas. Parece-me, senhor, que tem ocorrido uma evolução paralela. Talvez a inteligência se desenvolva
em linhas paralelas, tal como... bem... as funções básicas do corpo. Quero dizer — acrescentou com
convicção — que qualquer ser vivo de qualquer espécie deve ingerir, metabolizar e expelir. Talvez todo
cérebro inteligente deve perceber, aperceber e encontrar uma reação pessoal. Estou certo de que percebi
um tom de ironia. Isto implica senso de humor, portanto. Em resumo, senhor, creio que se possa gostar
deles.
O comandante pôs-se de pé.
— Hum — falou —, vamos ver o que é que eles têm a dizer.
Seguiu para a sala de comunicações e passou em frente do esquadrinhador assestado para o visor
do robô. Tommy Dort sentou-se à máquina de código e começou a operá-la. Dela provinham ruídos
altamente improváveis, que foram dirigidos a um microfone para reger a modulação de freqüência de um
sinal enviado através do espaço para a outra nave. Quase instantaneamente, a tela de visada — a qual,
por meio de um relê no robô, mostrava o interior da outra nave — iluminou-se. Um ser daquela raça
extraterrestre apareceu diante do esquadrinhador, parecendo olhar curiosamente fora da tela. Parecia-se
extraordinariamente com um homem, mas não era humano. A impressão que dava era de extrema calvície
e de uma franqueza bem-humorada.
— Eu gostaria de dizer — começou o comandante com voz pesada — as coisas adequadas sobre
este primeiro contato de duas raças civilizadas e diferentes, e sobre minhas esperanças de que disso
resulte um intercâmbio cordial entre os nossos dois povos.
Tommy Dort hesitou. Em seguida, encolheu os ombros e operou com mãos hábeis o codificador.
Mais ruídos improváveis.
O comandante da outra nave pareceu receber a mensagem. Fez um gesto que se afigurava de pleno
assentimento. A máquina codificadora da Llanvabon entrou em funcionamento com o seu zunido
característico e cartões com palavras caíram no quadro de mensagens.
Disse Tommy, conservando a serenidade:
— Ele diz, senhor, que "tudo está muito bem, mas haverá algum meio capaz de permitir que o
outro volte vivo à sua base? Ficaria feliz com a notícia. Veja se pode descobrir tal meio. Por enquanto
parece-me que um de nós deve ser morto".
Era de confusão a atmosfera. Havia perguntas demais e ninguém sabia responder imediatamente a
qualquer delas. Mas todas deviam ser respondidas.
A Llanvabon podia começar a voltar para casa. A nave desconhecida poderia ou não multiplicar
a velocidade da luz por uma unidade a mais do que o veículo terrestre. Se pudesse, a Llanvabon chegaria
muito perto da Terra para revelar o seu destino — e só então lutaria. Poderia vencer ou não. Mesmo que
vencesse, os alienígenas poderiam ter um sistema de comunicações pelo qual o destino da Llanvabon
lhes fosse dado a conhecer antes de se travar a batalha. Mas a Llanvabon poderia também perder a luta.
E se ela estava fadada a ser destruída, melhor que o fosse ali, sem deixar qualquer vestígio da
procedência dos seres humanos.
A outra nave estava passando pelos mesmos apuros. Também ela podia iniciar a marcha de volta
ao seu planeta. Mas a Llanvabon podia ser mais veloz e, de resto, há sempre o recurso ao overdrive, que
pode entrar em funcionamento quando ligado com a devida antecipação. Os alienígenas também não
sabiam se a Llanvabon podia se comunicar com a sua base sem voltar. Se a nave deles, seres de outra
raça, tivesse que ser destruída, que o fosse ali mesmo, pelo menos assim impediria que um provável
inimigo viesse a localizar a sua civilização.
Nenhuma das naves, portanto, podia pensar em fuga. A rota da Llanvabon na nebulosa podia ser
conhecida pelo outro veículo, mas acontecia que tal rota fora a ponta de uma curva logarítmica, cujas
propriedades os alienígenas não podiam conhecer. Não podiam deduzir de onde a nave terrestre tinha
partido. Nesse momento, pois, as duas naves estavam em igualdade de condições. Mas a pergunta
continuava no ar. "Que ia acontecer agora?"
Não havia resposta específica. Os alienígenas trocavam informação por informação — e nem
sempre se davam conta dos dados que forneciam. Os seres humanos, por seu turno, também trocavam
informação por informação. Tommy Dort suava a camisa na ansiedade de suprimir qualquer indicação
sobre a posição da Terra.
Os alienígenas viam por luz infravermelha, daí porque os visoramas e esquadrinhadores no relê
de comunicação do robô tinham que adaptar suas respectivas imagens para que elas fizessem algum
sentido. Não ocorrera àqueles estranhos que sua visão indicava ser o seu sol uma esfera vermelha, que
emitia luz de altíssima energia, justamente abaixo do espectro visível a olhos humanos. Mas depois que
chegou a esta conclusão, a tripulação da Llanvabon se deu conta também de que os desconhecidos
poderiam deduzir o tipo espectral do sol da Terra pela luz à qual os olhos do homem mais se adaptavam.
Havia um dispositivo para gravações em onda curta que era tão comum entre os alienígenas
quanto um gravador de som entre os homens. Os seres humanos precisavam muito daquele dispositivo.
Enquanto isso, os alienígenas estavam fascinados com o mistério do som. Podiam perceber a luz
infravermelha pela sensação de calor que ela produz, mas eram incapazes de distinguir a variedade dos
tons, como tampouco o homem sabe diferençar entre duas freqüências de radiação de calor. Para eles, a
ciência humana do som era uma admirável descoberta. Encontrariam para os ruídos aplicações que os
seres humanos jamais haviam imaginado — se escapassem vivos.
Mas isto era uma outra questão. Nenhuma das naves podia partir sem primeiro destruir a outra.
Mas enquanto se processava a permuta de informações, nenhuma nave podia se permitir essa destruição.
Havia o problema da cor externa das duas espaçonaves. A Llanvabon era brilhante como um espelho. Já
a nave desconhecida era toda negra à luz visível. Absorvia calor com perfeição e devia irradiá-lo
igualmente, mas não o fazia. A couraça negra não era da cor de um "corpo negro", nem era desprovida de
cor. Era um perfeito refletor de certos comprimentos de onda infravermelha, que ao mesmo tempo se
tornava fluorescente justamente naquelas faixas de onda. Na prática, ela absorvia as freqüências mais
elevadas de calor, convertia-as em freqüências mais baixas que não irradiava — e permanecia na
temperatura desejada, mesmo em pleno vácuo.
Tommy Dort continuava a trabalhar no seu setor de comunicações. Descobriu que os processos de
pensamentos dos alienígenas não eram tão misteriosos que não pudesse acompanhá-los. A discussão dos
detalhes técnicos chegou ao assunto da navegação interestelar. Precisou-se de um mapa para ilustrar o
processo. Teria sido lógico usar um mapa estelar da sala de cartografia — mas pelo mapa estelar poder-
se-ia estabelecer o ponto do qual o mesmo fora projetado. Tommy tinha um mapa feito especialmente
com figuras de estrelas imaginárias, porém convincentes. Traduziu as instruções para o seu uso pela
máquina. Em troca, os alienígenas apresentaram um mapa estelar próprio diante do visorama. Copiado
instantaneamente por fotografia, os oficiais de navegação o estudaram, tentando estabelecer em que ponto
da galáxia as estrelas e a Via-láctea poderiam ser vistas de um determinado ângulo. Mas nada
conseguiam e estavam surpresos.
Foi Tommy quem se deu conta, afinal, de que os alienígenas haviam feito também um mapa estelar
especial para demonstração e que este era o falso mapa que Tommy lhes havia mostrado anteriormente.
Tommy esboçou um sorriso. Começava a gostar desses desconhecidos. Eles não eram humanos,
mas tinham um senso muito humano do ridículo. Com o correr do tempo, Tommy ensaiou um gracejo bem
leve. Teve que ser traduzido para números de código e estes para grupos de impulsos de onda curta e
freqüência modulada, depois do que foi transmitido para a outra nave. Um gracejo transmitido com tantas
formalidades provavelmente não haveria de ter graça. Mas os alienígenas o entenderam.
Havia um tripulante da nave negra para o qual a comunicação era coisa tão normal quanto para
Tommy. Esse alienígena e Tommy fizeram uma estreita amizade, conversando por meio de códigos e
ondas curtas. Quando as mensagens oficiais envolviam excessivos detalhes técnicos, o alienígena às
vezes fazia interpolações estritamente não técnicas, parecidas com gíria. Muitas vezes, esclareciam a
confusão. Tommy, sem nenhuma razão especial, resolveu apelidar o desconhecido de "Buck", nome com
o qual este passou a assinar suas mensagens.
Na terceira semana de comunicações, o decifrador subitamente estampou no quadro a seguinte
mensagem:
Você é um grande sujeito. É pena que tenhamos de nos matar um ao outro — BUCK.
Tommy estivera pensando a mesma coisa. Sua resposta, pesarosa, não tardou:
Não vemos como evitar isso. Que acha você?
Após uma pausa, a máquina recebia nova mensagem:
Se pudéssemos acreditar um no outro, sim. Nosso comandante ficaria feliz com isso. Mas nós
não podemos acreditar em vocês, nem vocês em nós. Sendo possível, seguiríamos vocês para sabermos
de onde vieram, e vocês igualmente nos seguiriam com o mesmo propósito. Sentimos muito — BUCK.
Tommy Dort levou as mensagens para o comandante.
— Olhe aqui, senhor! — disse ele, precipitadamente. — Esses desconhecidos são quase humanos
e são tipos de quem se pode gostar.
O comandante estava ocupado em sua importante tarefa de pensar em coisas que preocupam e em
se preocupar com elas. Disse, demonstrando fadiga:
— Eles respiram oxigênio. Seu ar contém 28 por cento de oxigênio em vez de vinte, mas eles
podem passar muito bem na Terra. Seria uma conquista altamente desejável para eles. E nós ainda não
sabemos que armas possuem ou o que podem desenvolver. Você lhes diria como achar a Terra?
— Não, não — disse Tommy, desconsolado.
— Eles provavelmente pensam da mesma maneira — disse o comandante secamente. — E se
procurássemos fazer um contato amistoso, por quanto tempo ele permaneceria amistoso? Se suas armas
fossem inferiores às nossas, eles tratariam de melhorá-las para sua própria segurança. E nós, sabendo
que eles tencionavam nos alcançar, os esmagaríamos enquanto pudéssemos — para nossa própria
segurança. Se a situação fosse inversa, eles tratariam de nos aniquilar antes que os alcançássemos.
Tommy estava silencioso, mas se mexeu com inquietação.
— Se destruirmos esta nave negra e regressarmos — continuou o comandante —, o Governo da
Terra ficará contrariado porque não saberemos lhe dizer a procedência dela. Mas que podemos fazer?
Teremos muita sorte se voltarmos vivos com a notícia da nossa descoberta. Não é possível extrair
daquelas criaturas mais informações do que podemos fornecer-lhes, e é claro que não lhes vamos dar o
nosso endereço. Nós as encontramos casualmente. Talvez — se destruirmos essa nave — não haja outro
contato por milhares de anos. E é uma pena, porque o intercâmbio poderia significar tanto! Mas são
precisos dois para fazer as pazes, e não podemos nos arriscar a confiar neles. A única solução é matá-los
se pudermos, e se não pudermos, certificarmo-nos de que quando eles nos matarem nada encontrarão que
os possa levar à Terra. Não gosto disso — disse o comandante, cansado —, mas simplesmente não há
outra coisa a fazer.
Na Llanvabon, os técnicos trabalhavam freneticamente em duas divisões. Uma preparada para a
vitória, a outra para a derrota. Os que trabalhavam para a vitória não podiam fazer muito. Os grandes
desintegradores eram as únicas armas em que se podia confiar. Sua montagem foi cautelosamente alterada
para que não ficassem fixos. Através de controles eletrônicos, seriam mantidos com absoluta precisão
voltados para o alvo, não obstante as manobras da nave. Graças à inesperada descoberta de um
engenheiro mecânico, a produção normal de energia das máquinas da espaçonave podia ser
instantaneamente acumulada e liberada em ondas de energia muito acima do normal. Em teoria, o alcance
dos desintegradores seria multiplicado e sua força destruidora consideravelmente aumentada. Mas não
havia muito mais a fazer além disso.
Os que trabalhavam para a derrota tinham mais tarefas. Mapas estelares, instrumentos de
navegação com anotações, o registro fotográfico que Tommy Dort fizera dos seis meses de viagem desde
a Terra, e todos os demais memorandos dando detalhes pelos quais se podia deduzir a posição da Terra
foram preparados para destruição. Esses documentos foram colocados em arquivos rigorosamente
fechados, e se alguém os abrisse sem observar todo um complicado processo, seu conteúdo ficaria
reduzido a cinzas. Naturalmente, se a Llanvabon saísse vitoriosa, haveria um método secreto de reabri-
los em segurança. Em torno do casco da nave havia bombas nucleares e, se os tripulantes fossem mortos
sem a completa destruição da nave, as bombas detonariam caso a Llanvabon fosse rebocada pela nave
desconhecida. Não havia a bordo bombas prontas, mas sim unidades atômicas avulsas, as quais, quando
fossem ligadas, ao invés de emitirem um moderado fluxo de energia, explodiriam, para surpresa dos
tripulantes da outra nave. Além disso, quatro homens do veículo terrestre envergavam sempre trajes
espaciais com os capacetes fechados, a fim de lutarem pela sua nave, caso ela sofresse perfurações num
ataque de surpresa.
Tal ataque, contudo, não seria traiçoeiro. O comandante da nave havia falado francamente. Sua
maneira era a de alguém que admite a inutilidade de mentiras. O comandante da Llanvabon, por seu
turno, admitia claramente a virtude da franqueza. Cada um insistia — talvez sinceramente — em que
desejava amizade entre as duas raças. Mas nenhum podia confiar no outro, daí porque faziam todo o
esforço imaginável para descobrir aquela coisa que cada um procurava mais desesperadamente ocultar
— a localização do seu planeta de origem. E nenhum ousava acreditar que o outro fosse incapaz de segui-
lo e descobri-lo. Porque cada um considerava seu dever praticar aquele ato (para o outro) intolerável,
assim como não podia por simples boa fé, pôr em risco, provavelmente, a sobrevivência de sua raça.
Deviam lutar porque não podiam fazer outra coisa.
Podiam impedir o combate mediante a permuta de informações antecipadas. Mas havia limites
para concessões de parte a parte. Nenhum dos dois daria qualquer informação sobre armas, população ou
recursos. Nem mesmo a distância entre os seus planetas de origem e a Nebulosa do Caranguejo seria
fornecida. Trocavam informações, é verdade, mas sabiam que uma luta mortal devia seguir-se. Daí
porque cada um se esforçava por representar sua própria civilização de tal modo poderosa que pudesse
dissuadir o outro de suas idéias de conquista. Aparentando ser uma terrível ameaça ao outro, ambos
procuravam tornar a luta evitável.
Era curioso, contudo, como aqueles cérebros desconhecidos podiam enredar-se. Tommy Dort,
suando diante das máquinas codificadoras, encontrou uma equação pessoal emergindo dos cartões de
palavras que se arranjavam a si mesmas no quadro próprio. Vira os alienígenas somente na tela de
imagem, apenas em luz pelo menos um oitavo afastada da luz que eles percebiam. Estes, por sua vez, o
viram de maneira muito estranha, por iluminação transposta do que para eles seria o extremo ultravioleta.
Mas seus cérebros funcionavam semelhantemente, o que era de surpreender. Tommy Dort sentia simpatia
e mesmo uma quase amizade por aquelas criaturas que tripulavam o negro veículo espacial.
Por causa desse parentesco mental, estabeleceu — embora sem esperança — uma espécie de
gráfico dos aspectos do problema que enfrentavam. Não acreditava que os desconhecidos tivessem
qualquer desejo instintivo de destruir o homem. Com efeito, o estudo das comunicações dos
extraterrestres havia produzido na Llanvabon um sentimento de tolerância parecido com o que se verifica
entre soldados inimigos durante uma trégua na Terra. Os homens não sentiam inimizade e era provável
que tampouco os alienígenas a sentissem. Tinham que matar ou ser mortos por motivos estritamente
lógicos.
O trabalho de Tommy era específico. Fez uma lista dos objetivos que os homens deviam tentar
realizar por ordem de importância. O primeiro era levar de volta a notícia da existência da cultura
desconhecida. O segundo era a localização daquela cultura desconhecida na galáxia. O terceiro era levar
o máximo de informações sobre aquela cultura. O terceiro objetivo estava sendo realizado, mas o
segundo era provavelmente impossível. O primeiro — e todos, afinal — dependia do resultado da luta
que deveria travar-se.
Os objetivos dos alienígenas seriam exatamente semelhantes, de maneira que os homens deviam
evitar, primeiro, que a notícia da existência da cultura da Terra fosse levada para o seu planeta; segundo,
a descoberta da localização da Terra e, terceiro, a aquisição de informações que os ajudassem ou
estimulassem a atacar a humanidade. E ainda aqui o terceiro objetivo estava em execução, o segundo
seria provavelmente cumprido, mas o primeiro devia aguardar a luta.
Não havia meio possível de evitar a sombria necessidade da destruição da nave negra. Os
ocupantes desta, por sua vez, não viam outra solução para seus problemas que não fosse a destruição da
Llanvabon. Mas Tommy Dort, olhando com certo amargor para o seu gráfico, deu-se conta de que mesmo
a completa vitória não seria a solução perfeita. O ideal seria que a Llanvabon levasse consigo a nave
desconhecida para estudos. Só assim o terceiro objetivo estaria plenamente cumprido. Mas Tommy
chegou à conclusão de que era odiosa a idéia de uma vitória tão completa, mesmo que ela pudesse ser
obtida. Odiosa a possibilidade de matar criaturas não-humanas que compreendiam um gracejo humano.
Além disso, repelia a idéia de uma frota de espaçonaves despachadas da Terra para destruir uma cultura
desconhecida porque a sua existência era perigosa. O puro acaso desse encontro entre povos que se
podiam estimar mutuamente criara uma situação capaz de resultar apenas em incalculável destruição.
Tommy Dort empenhava-se em busca de uma solução do impasse. Mas o problema parecia
insolúvel. Era por demais absurdo que duas espaçonaves entrassem em luta — sabido que nenhuma das
duas tinha por missão principal a guerra — para que o sobrevivente levasse consigo informações que
induziriam um povo a realizar preparativos para uma guerra com um adversário desprevenido.
E se ambas as raças pudessem ser advertidas, e uma soubesse que a outra não queria lutar, e
pudessem comunicar-se uma com a outra, não se localizando mutuamente senão depois que tivessem
encontrado motivos para confiança recíproca?
Era impossível. Era quimérico. Era sonhar em plena luz do dia. Uma tolice. Mas era uma tolice
tão sedutora que Tommy Dort não hesitou em codificar uma mensagem para o seu correspondente
desconhecido. E a resposta não tardou:
— Certo — disse Buck. — É um belo sonho. Mas eu gosto de você e entretanto ainda não
acredito em você. Se eu lhe dissesse isto primeiro, você gostaria de mim, mas tampouco acreditaria em
mim. Eu lhe digo a verdade mais do que você acredita, e talvez você também me fale a verdade além da
minha capacidade de acreditar. Mas não há meio de se saber. Sinto muito.
Tommy Dort decifrou a mensagem com grande pesar, sentindo-se vergado ao peso de um terrível
senso de responsabilidade. O mesmo acontecia a todos os demais tripulantes da Llanvabon. Se esse
encontro fosse frustrado, a raça humana correria um sério risco de ser exterminada no futuro. Se fosse
bem-sucedido, a raça dos desconhecidos seria provavelmente a que iria enfrentar a destruição. Milhões
ou bilhões de vidas estavam na dependência das ações de uns poucos homens.
De repente, Tommy Dort pareceu ter descoberto a solução.
Seria de uma simplicidade surpreendente, se funcionasse. Quando menos, poderia dar uma vitória
parcial à humanidade e à Llanvabon. Sentou-se silencioso, não ousando fazer o mínimo movimento para
não interromper o fio do pensamento que dava continuidade à primeira idéia tenuemente esboçada.
Entregue às suas reflexões, ele mesmo levantava objeções e as refutava, procurava transpor com
segurança todas as dificuldades, ainda as que pareciam impossíveis. Finalmente, sentiu-se seguro de sua
solução.
Emergindo quase tonto de suas lucubrações, caminhou aliviado para a cabina do comandante, a
quem pediu permissão para falar.
É função de um comandante, entre outras, descobrir coisas para se preocupar. Nas três semanas e
quatro dias desde o primeiro contato com a nave espacial desconhecida, a face do comandante enrugara-
se e envelhecera. É que ele não se preocupava apenas com a Llanvabon, mas com toda a humanidade.
— Senhor — disse Tommy Dort, sentindo a boca seca devido ao grande esforço mental que fizera
—, posso propor um método de ataque à cosmonave negra? Eu mesmo o realizarei, e se não der certo,
nossa nave não será molestada.
O comandante voltou-se para ele, quase indiferente.
— As táticas já foram todas elaboradas, Sr. Dort — disse com enfado. — Estão sendo passadas
em fita agora. É um jogo terrível, mas tem que ser feito.
— Acho que encontrei um meio de evitarmos jogo tão perigoso — disse Tommy. — Suponhamos
que eu envie uma mensagem à outra nave, oferecendo ...
Continuou a falar na silenciosa cabina do comandante, enquanto os visoramas mostravam apenas
um vasto nevoeiro do lado de fora e as duas brilhantes estrelas no centro da nebulosa.
O próprio comandante acompanhou Tommy. É que, por um lado, a ação que ele sugerira
precisaria de sua autorização. Por outro lado, o comandante se preocupara mais intensamente do que os
outros na Llanvabon, e já estava cansado disso. Se acompanhasse Tommy, ele mesmo praticaria a ação, e
se fracassasse seria o primeiro a ser morto — por isso mesmo a fita com instruções para as manobras da
nave terrestre já tinha sido colocada no quadro de controle, devendo funcionar sincronizada com o
cronômetro. Se Tommy e o comandante fossem mortos, um simples controle lançaria a Llanvabon num
furioso ataque, que acabaria na completa destruição de uma nave ou de outra — ou de ambas. Assim, o
comandante não estava desertando do seu posto.
A escotilha de ar externa abriu-se para aquele brilhante vazio que era a nebulosa. A vinte milhas
de distância, o pequeno robô circular pendia do espaço, numa incrível órbita em torno dos dois sóis
centrais, flutuando cada vez mais perto. Jamais atingiria qualquer delas, naturalmente. Sozinha a estrela
branca era de tal modo mais quente do que o sol da Terra, que o efeito do seu calor produziria as
temperaturas da Terra em um objeto cinco vezes mais longe dela, como Netuno do Sol. Mesmo na
distância a que se encontra Plutão, o pequeno robô ficaria em brasas com o calor tremendo da anã
branca. Não podia aproximar-se dela nem 90 milhões de milhas, que é a distância da Terra ao Sol, pois
se chegasse a tal distância seu revestimento metálico se derreteria e ferveria como vapor. Mas a meio
ano-luz balouçava, indene, no vácuo.
As duas figuras em trajes espaciais deslizaram para fora da Llanvabon. Os pequenos propulsores
atômicos, que faziam deles minúsculos veículos espaciais, tinham sido ligeiramente alterados, mas a
modificação não interferira som o seu funcionamento. Dirigiram-se para o robô de comunicação.
— Sr. Dort — disse o comandante rispidamente —, durante toda a minha vida sonhei com
aventura. Esta é a primeira vez que pude justificá-la para mim.
Tommy limpou os lábios e disse:
— Isso não me parece aventura, senhor. Desejo desesperadamente que o plano seja bem-
sucedido. Sempre me pareceu que aventura era quando a gente pouco estava ligando para o resultado.
— Oh, não! — disse o comandante. — Aventura é quando você coloca sua vida na balança do
acaso e espera o ponteiro parar.
Alcançaram o objeto circular, segurando na extremidade dos seus tentáculos.
— Inteligentes, essas criaturas — disse o comandante pesadamente. — Devem estar desejando
alucinadamente conhecer nossa nave por dentro, além da sala de comunicações, para concordarem com
essa troca de visitas antes da luta.
— Sim, senhor — disse Tommy. Mas interiormente suspeitava que Buck, seu amigo de guelras,
gostaria de vê-lo em carne e osso antes que um ou ambos morressem. E parecia-lhe também que entre as
duas espaçonaves se formara uma curiosa tradição de cortesia, como a que existia entre os antigos
cavaleiros antes de um torneio, quando trocavam expressões de admiração mútua, antes de descarregarem
um sobre o outro todo o peso de suas armas.
Esperaram.
Surgiram, então, do nevoeiro, duas outras figuras, cujos trajes eram também dotados de
propulsão. Os alienígenas eram de menor estatura que os homens, e as aberturas dos seus capacetes
revestidas de um material que filtrava os raios visíveis e ultravioletas que para eles seriam mortais. Não
se podia ver, portanto, mais do que as sombras de suas cabeças.
Pelo fone do capacete, Tommy recebeu esta mensagem da sala de comunicações da Llanvabon:
— Eles dizem que sua nave o está esperando, senhor. O comandante ponderou:
— Sr. Dort, o senhor viu antes os trajes espaciais deles? Esta certo de que não carregam qualquer
coisa extra, como bombas?
— Sim, senhor — disse Tommy. — Mostramos um ao outro o nosso equipamento espacial. Eles
não pretendem outra coisa senão informações normais.
O comandante fez um gesto para os dois alienígenas. Ele e Tommy Dort mergulharam no espaço
rumo à nave negra. Embora não pudessem divisá-la muito claramente a olho nu, foram guiados até ela por
instruções emanadas da sala de comunicações da Llanvabon.
Daí a momentos, apareceu a nave dos extraterrestres. Era gigantesca, do mesmo comprimento da
Llanvabon, porém muitíssimo mais larga. Os dois passaram para dentro, pisando no seu interior com
botas de solado magnético. A porta exterior fechou-se, produzindo um jato de ar e simultaneamente os
efeitos da gravidade artificial. Em seguida fechou-se a porta interna.
Tudo era escuridão. Tommy acendeu a luz do seu capacete no mesmo instante que o comandante.
Como os alienígenas viam por infravermelho, uma luz branca teria, sido insuportável para eles. A luz dos
capacetes era, portanto, o vermelho-escuro usado para iluminar painéis de instrumentos, para que não
haja ofuscamento dos olhos daqueles que devem poder detectar as mais diminutas manchas de luz branca
num painel de navegação. Os alienígenas estavam esperando. Piscavam muito, ofuscados pelo brilho das
luzes dos capacetes. O receptor do fone espacial disse ao ouvido de Tommy:
— Eles dizem, senhor, que o comandante está à sua espera.
Tommy e o comandante da Llanvabon estavam num longo corredor com um piso macio sob os
pés. As luzes mostravam detalhes cada qual o mais exótico.
— Acho que vou retirar meu capacete, senhor — disse Tommy.
Ele o fez e notou que o ar era bom. Continha trinta por cento de oxigênio em vez de vinte como é
o caso do ar da Terra, mas a pressão era menor. Achou perfeito. A gravidade artificial, também, era
menor do que a mantida na Llanvabon. O planeta de origem dos desconhecidos seria menor do que a
Terra, e — pelos dados infravermelhos — orbitava perto de um sol quase extinto, de um vermelho
pálido. O ar encerrava odores bastante estranhos, mas não desagradáveis.
Uma abertura em arco. Uma rampa com o mesmo piso macio. Luzes que espalhavam em volta uma
claridade fraca, de um vermelho mortiço. Os desconhecidos haviam aumentado a iluminação de alguns
dos seus equipamentos como prova de cortesia. A luz podia ofender seus olhos, mas era um gesto de
consideração que tornava Tommy ainda mais ansioso de que seu plano desse certo.
O comandante anfitrião olhou para eles com um gesto que pareceu a Tommy de apelo bem-
humorado. Da Llanvabon vinha para Tommy a tradução:
— Ele diz, senhor, que os saúda com prazer, mas que só conseguiu pensar em um único meio pelo
qual o problema resultante do encontro dos dois veículos pode ser resolvido.
— Ele está querendo dizer uma luta — falou o comandante. — Diga-lhe que eu estou aqui para
lhe oferecer uma alternativa.
Os dois comandantes estavam face a face, mas sua comunicação era feita por meios
fantasticamente indiretos. Os extraterrestres não usavam som para se comunicarem. Sua conversação,
com efeito, era por microondas e telepatia a curta distância. Mas não podiam ouvir, no sentido comum da
palavra: portanto, a fala do comandante e de Tommy aproximava-se da telepatia, também, no que lhes
dizia respeito. Quando o comandante falava, seu fone espacial enviava as palavras para a Llanvabon,
onde elas eram introduzidas na máquina codificadora e os equivalentes em onda curta eram remetidos de
volta à nave negra. A resposta do comandante alienígena era enviada à Llanvabon, passava pelo
decodificador e era retransmitida, por fone espacial, em palavras estampadas no quadro de mensagens.
O pequeno e corpulento comandante da nave negra fez uma pausa.
— Ele está ansioso por ouvir, senhor.
O comandante tirou o capacete. Pôs as mãos no cinto numa atitude beligerante. Naquela luz
mortiça, seu adversário parecia uma figura irreal.
— Olhe aqui! — rugiu ele para a calva e estranha criatura. — Parece que vamos ter que lutar e
nos destruir parcial ou totalmente. Estamos preparados para uma tal eventualidade. Mas se vocês
ganharem, tomamos tais precauções que jamais saberão onde fica a Terra. Se ganharmos, a dificuldade
não será menor. E se vencermos e voltarmos ao nosso planeta, nosso governo aparelhará uma frota para
sair à procura do planeta de vocês. E se o encontrarmos estaremos prontos para arrasá-lo. Se vocês
vencerem, farão o mesmo conosco. Mas tudo isso é loucura! Estamos aqui há um mês, trocamos
informações e não nos odiamos mutuamente. Não temos qualquer motivo para lutar, exceto pelo restante
de nossas duas raças.
O comandante parou para respirar, com o sobrecenho fechado. Tommy Dort discretamente pousou
as mãos no cinturão do seu traje espacial e aguardou desesperadamente que o truque funcionasse.
— Ele afirma que tudo que o senhor diz é verdade. Mas que a raça dele tem que ser protegida, da
mesma forma que o senhor acha que a sua deve ser.
— Naturalmente! — disse o comandante, zangado. — Mas a coisa sensata a fazer é encontrar o
modo de protegê-la. Jogar com o futuro dela numa luta não é sensato. As nossas raças devem ser
advertidas da existência uma da outra. Isto é verdade. Mas cada um deve ter prova de que a outra não
deseja lutar, antes quer manter relações cordiais. E embora não fôssemos capazes de nos localizar
reciprocamente, poderíamos nos comunicar para encontrarmos os motivos da necessária confiança mútua.
Se os nossos governos quiserem ser loucos, isto é lá com eles. Mas nós devemos dar-lhes a oportunidade
de fazerem amigos, ao invés de iniciarem uma guerra no espaço.
Nova mensagem pelo fone espacial:
— Ele diz que a dificuldade consiste em confiarmos agora um no outro. Estando em jogo a
sobrevivência de sua própria raça, ele não pode correr o mínimo risco, nem tampouco o senhor pode
conceder-lhe qualquer vantagem.
— Mas a minha raça — bradou o comandante, fixando o olhar no comandante alienígena —,
minha raça tem uma vantagem agora. Viemos para bordo de sua nave em trajes espaciais propelidos por
energia nuclear. Antes de virmos, alteramos os propulsores. Podemos provocar uma espantosa explosão
aqui mesmo neste momento, ou essa explosão pode ser comandada por controle remoto de nossa
espaçonave. Em outras palavras, se você não aceitar minha proposta no sentido de uma solução razoável
para este impasse, Dort e eu provocaremos uma explosão nuclear e a sua nave ficará muito danificada, se
não for literalmente destruída. Dois segundos após a explosão, a Llanvabon estará atacando com toda a
capacidade ofensiva de que é dotada.
A cabina do comandante da nave alienígena presenciava uma cena estranha, com a sua iluminação
mortiça e os calvos tripulantes de guelras observando o comandante, à espera da tradução das palavras
que não podiam ouvir. O comandante alienígena fez um gesto. Os fones do capacete transmitiram as suas
palavras.
— Ele pergunta, senhor, qual é a sua proposta?
— Trocar de naves! — trovejou o comandante. — Trocar de naves e regressarmos aos nossos
planetas. Podemos ajustar os nossos instrumentos de maneira que não possam fazer rastreamento. Ele
também poderá fazer o mesmo. Ambos retiraremos nossos mapas estelares e gravações. Ambos
desmantelaremos nossas armas. O ar não oferece problema e nós ficaremos com a sua nave e eles com a
nossa, e nenhuma poderá prejudicar ou acompanhar a outra. Assim, cada uma levará de volta mais
informações do que obteria de outra forma. Podemos tomar a Nebulosa do Caranguejo como ponto de
encontro quando a estrela dupla tiver completado mais uma rotação. Esta é a minha proposta. Ou ele a
aceitará, ou Dort e eu explodiremos sua nave, encarregando-se a Llanvabon de destruir o que restar.
Dito isto, o comandante ficou na expectativa aguardando que a tradução chegasse ao seu
interlocutor, que parecia tomado de profunda tensão. Notou que a tradução chegara ao conhecimento do
seu interlocutor pela mudança ocorrida no ambiente. As figuras corpulentas dos alienígenas ficaram
excitadas. Fizeram gestos. Um deles entrou em movimentos convulsivos. Sentou-se no piso fofo e deu
pontapés. Outros se apoiavam contra as paredes sacudidos por estremecimentos de todo o corpo.
A voz recebida nos fones do capacete de Tommy Dort fora antes concisa e profissional, mas
agora encerrava um certo ar de espanto.
— Ele diz, senhor, que a pilhéria tem graça. Porque os dois tripulantes que ele enviou à nossa
nave e pelos quais o senhor passou, também têm os seus trajes guarnecidos com explosivos atômicos, que
ele pretendia fazer a mesma oferta e ameaça! Naturalmente ele aceita, senhor. A Llanvabon vale mais
para ele do que o seu próprio veículo, e este tem mais valor para o senhor do que a Llanvabon. Parece,
senhor, que é negócio fechado.
Só então Tommy Dort se deu conta do que significavam os movimentos convulsivos dos
alienígenas. Eram gargalhadas.
Mas as coisas não eram tão simples como o comandante havia descrito. A própria execução da
proposta era complicada. Durante três dias, as tripulações dos dois veículos se misturaram, os
alienígenas aprendendo o funcionamento das máquinas da Llanvabon e os homens aprendendo a controlar
os mecanismos da nave negra. Era divertido, mas não se tratava de uma brincadeira. Havia homens na
outra nave e alienígenas na Llanvabon prontos para destruir as duas a qualquer instante. E fariam isso,
caso surgisse a necessidade. Era, entretanto, uma solução muito melhor ter duas expedições voltando a
duas civilizações, conforme o acordo, do que uma ou outra regressando isoladamente.
Havia divergências, também, como a que se verificou sobre a retirada dos arquivos. Na maioria
dos casos a disputa foi resolvida com a destruição dos arquivos. Houve discussão também por causa dos
livros da Llanvabon e o equivalente de uma biblioteca no veículo extraterrestre, onde havia obras que se
aproximavam das de ficção na Terra. Mas tais itens eram de grande valor no caso de uma possível
amizade, porque eles revelariam as duas culturas uma à outra, do ponto de vista de cidadãos normais e
sem propaganda.
Foi grande a tensão durante aqueles três dias. Os alienígenas descarregavam e inspecionavam os
gêneros destinados aos homens, que iam passar para a nave negra. Os homens transferiam os gêneros de
que os alienígenas precisariam para voltar ao seu planeta. Houve uma infinidade de detalhes a ser
resolvidos, desde a troca do equipamento de iluminação para adaptar-se à visão dos tripulantes
intercambiados, até uma verificação final do aparelho. Uma turma conjunta de inspeção de ambas as
raças certificou-se de que todos os aparelhos de detecção tinham sido inutilizados mas não retirados,
para não poderem ser usados depois para rastreamento. E, naturalmente, os alienígenas estavam ansiosos
para não deixar qualquer arma na nave negra, o mesmo fazendo os homens da Llanvabon. Curioso é que
cada tripulação estava perfeitamente qualificada para tomar exatamente as medidas que impossibilitavam
qualquer quebra do acordo.
Houve uma conferência final antes das duas naves se separarem, na sala de comunicações da
Llanvabon.
— Diga a esse pigmeu — falou o ex-comandante da Llanvabon — que ele ganhou uma ótima nave
e que é bom que a trate muito bem.
A resposta não tardou a aparecer na máquina decodificadora.
— Creio — respondeu o comandante alienígena — que a sua nave é tão boa quanto a minha.
Espero encontrá-lo aqui quando a estrela dupla tiver completado uma órbita.
O último homem deixou a Llanvabon. Esta deslizou para dentro do nevoeiro da Nebulosa antes
que os homens houvessem regressado à nave negra. Os visoramas desta haviam sido adaptados para
olhos humanos e os tripulantes procuravam ciumentamente divisar um vestígio qualquer de sua antiga
nave, mas esta já desaparecera, em manobra evasiva, rumo a qualquer parte remotíssima da Nebulosa.
Depois de atravessar uma fenda do nada, a nave negra subiu celeremente para o espaço aberto. Passado o
instante em que a respiração é suspensa, quando entra em funcionamento o overdrive, ela mergulhou
alucinadamente no vácuo a muitas vezes a velocidade da luz.
Dias depois, o comandante viu Tommy Dort examinando um dos estranhos objetos equivalentes a
livros. Era fascinante tentar decifrá-los. O comandante estava satisfeito consigo. Os técnicos da antiga
tripulação da Llanvabon estavam descobrindo coisas excitantes sobre a nave negra e sem dúvida os
alienígenas não estavam menos satisfeitos com suas descobertas na Llanvabon. Mas a nave alienígena
era preciosa — e a solução encontrada muito superior até mesmo à luta em que os terrestres tivessem
sido vitoriosos por larga margem.
— Hum, Sr. Dort — disse o comandante. — O senhor não tem material para fazer o registro
fotográfico da volta. Ficou a bordo da Llanvabon. Mas felizmente trouxemos o seu arquivo quando
saímos. Falarei favoravelmente sobre a sua sugestão e sobre a sua ajuda para executá-la. Eu o tenho na
mais alta conta.
— Muito obrigado, senhor — disse Tommy Dort, e ficou esperando.
O comandante temperou a garganta.
— O senhor... ah... foi quem primeiro notou a estreita semelhança de processos mentais entre os
desconhecidos e nós — observou. — Que é que o senhor pensa sobre as perspectivas de um acordo
amigável, se tivermos um encontro com eles na Nebulosa, conforme combinado?
— Oh, nós nos entenderemos muito bem, senhor! — disse Tommy. — Já demos um passo muito
construtivo para essa amizade. Afinal, como eles vêem por infravermelho, os planetas que eles
ambicionariam não serviriam para nós. Não há motivo para que não nos entendamos. Somos quase
semelhantes em psicologia.
— Hum... O que é que o senhor quer dizer com isto, exatamente? — perguntou o comandante.
— É que eles são quase iguais a nós, senhor! — disse Tommy. — É certo que respiram por meio
de guelras e vêem por meio de ondas de calor. Seu sangue tem uma base de cobre em vez de ferro e
outros pequenos detalhes assim. Mas, exceto isso, somos exatamente como eles. Havia só homens em sua
tripulação, mas eles têm dois sexos como nós, e têm famílias, e são dotados de senso de humor. De fato
...
Tommy hesitou.
— Continue — animou o comandante.
— Bem... Havia aquele que eu chamava de Buck, porque seu nome não tem correspondente em
ondas sonoras. Nós nos demos muito bem. Não teria a menor dúvida de chamá-lo meu amigo. Estivemos
juntos duas horas antes das naves se separarem e não tínhamos nada em particular a fazer. Então fiquei
convencido de que nós, os seres humanos, e esses extraterrestres estamos fadados a ser bons amigos,
bastando que nos dêem uma pequena oportunidade. Porque, sabe o senhor o que fizemos durante essas
duas horas? Ficamos contando anedotas picantes um para o outro.
É uma pena que não possamos incluir também, nesta antologia, a noveleta O Coração da Serpente, de Ivan Iefrémov. As duas
histórias demonstram que talvez seja mais fácil conciliar as razões de duas raças absolutamente estranhas em pleno espaço do que a dos
soviéticos e americanos aqui na Terra. Murray Leinster e Iefrémov são dois autores otimistas e que pertencem à linha semididática da ficção
científica dos anos 30 e 40, embora um seja de 1945 e o outro de 1959. Americano e pragmático, embora não-belicista, Leinster defende uma
posição de extrema cautela diante de uma raça desconhecida (apoiado, de resto, nos fatos pouco pacíficos da História humana). Não por
acaso, é um indivíduo, e não o grupo, que encontra a solução. Leinster acredita, por fim, como muitos políticos de seu país, que uma boa piada
é ainda a melhor diplomacia. Para Iefrémov (como para John Berrymau; v. Berom), raças na era cósmica já superaram seus medos atávicos
e deixaram para trás a agressividade capitalista. A astronave alienígena é branca e não negra, e todos os membros da tripulação da nave
terrestre participam. No próprio texto, Iefrémov critica duramente a posição de Murray Leinster. Mas Sam Moskowitz observa que, de algum
modo, Iefrémov esquivou o problema, ao imaginar uma raça que respira flúor e que, portanto, não poderia cobiçar um planeta como a Terra,
cuja atmosfera é de oxigênio. E vice-versa. (N.E.)
Homo Sol
Autor – Isaac Asimov — Tradução – Ruy Jungmann & Fausto Cunha

A sétima milésima qüinquagésima quarta sessão do Congresso Galático foi instalada,


solenemente, no vasto salão semicircular de Eron, o segundo planeta de Arcturus.
Lentamente, o delegado-presidente levantou-se. Sua larga face arcturiana traía um pouco de
excitação, enquanto ele observava os delegados em volta. Seu senso teatral levou-o a esperar durante um
momento ou dois antes de fazer a comunicação oficial — porque, afinal de contas, a aceitação de um
novo sistema planetário na grande família galática não constitui fato que ocorra duas vezes na vida de um
homem.
Durante a pausa reinou silêncio total. Os duzentos e oitenta e oito delegados — um delegado de
cada um dos duzentos e oitenta e oito mundos possuidores de atmosfera de oxigênio e química baseada na
água — aguardaram-lhe, pacientes, as palavras.
Encontravam-se reunidos ali seres de todos os tipos e formas assemelhados ao homem. Alguns
eram altos e esqueléticos, outros largos e corpulentos e ainda outros baixos e atarracados. Havia aqueles
coroados de cabelos longos e duros, outros com uma rala penugem cinzenta que cobria a cabeça e o
rosto, alguns com cachos grossos e louros arrumados no cocuruto, e ainda os que eram inteiramente
calvos. Alguns possuíam orelhas longas, cabeludas, em forma de trombeta, ao passo que outros tinham as
membranas dos tímpanos alinhadas com as têmporas. Havia alguns de grandes olhos de gazela, de
profunda luminosidade púrpura, e outros com olhos que pareciam contas pretas. Um delegado possuía
pele verde, outro uma tromba de dezesseis centímetros e um terceiro um vestígio de cauda. Internamente,
as variações eram quase infinitas.
Mas eram semelhantes em duas coisas.
Eram todos humanóides. Possuíam todos inteligência.
A voz do delegado-presidente trovejou:
— Delegados! O Sistema do Sol descobriu o segredo das viagens interestelares e, por esse ato,
tornou-se elegível para o ingresso na Federação Galática.
Uma tempestade de brados de aprovação ergueu-se da assembléia. O arcturiano ergueu a mão,
pedindo silêncio.
— Tenho aqui — continuou ele — o relatório oficial, enviado por Alpha Centauri, em cujo quinto
planeta desceram os humanóides do Sol. O relatório é absolutamente satisfatório e, dessa forma, a
proibição de viagens ao Sistema Solar e a comunicação com seus habitantes estão revogadas. O Sol está
livre e aberto às naves da Federação. Agora mesmo, encontra-se em preparativos uma expedição ao Sol
sob a liderança de Joselin Am, de Alpha Centauri, com a finalidade de convidar oficialmente esse
Sistema a ingressar na Federação.
Fez uma pausa e de duzentas e oitenta e oito gargantas subiu um brado estentóreo:
— Salve, Homo Sol! Salve, Homo Sol! Salve!
Eram as boas-vindas tradicionais da Federação a todos os novos mundos.
Tan Porus ergueu-se em toda sua estatura de um metro e cinqüenta e cinco — era alto para um
rigeliano — e seus agudos olhos verdes piscaram de aborrecimento.
— É isso, Lo-fan. Há cinco meses essa maldita aberração, essa lula de Beta Draconis IV tem-me
deixado perplexo.
Com um longo dedo, Lo-fan acariciou suavemente a testa e uma de suas cabeludas orelhas tremeu
várias vezes. Viajara oitenta e cinco anos-luz para chegar a Arcturus II e encontrar-se com o maior
psicólogo da Federação — e, principalmente, para conhecer o estranho molusco cujas reações haviam
deixado perplexo o grande rigeliano.
Tinha-o diante de si naquele momento: uma fofa massa de carne mole, de uma cor púrpura sem
brilho, que enrolava seus tentáculos com total desinteresse, dentro do enorme tanque de água. Com
imperturbável serenidade, alimentava-se das folhas verdes de uma samambaia aquática.
— Parece bastante comum — comentou.
— Ah! — fungou Tan Porus. — Observe isto.
Puxou a cortina e mergulhou a sala na escuridão. Somente uma mortiça luz azul brilhava sobre o
tanque e, na escuridão, a lula draconiana mal podia ser vista.
— Agora vou aplicar o estímulo — grunhiu Porus. A tela acima de sua cabeça explodiu em suave
luz verde, focalizada diretamente sobre o tanque. Persistiu durante um momento e foi substituída por um
vermelho-baço e, depois, quase imediatamente, por um amarelo-brilhante. Durante meio minuto
percorreu rapidamente o espectro e, em seguida, com um brilho final de ofuscante luz branca, soou um
claro som de sineta.
No momento em que o eco da nota morria, um estremecimento sacudiu o corpo da lula. Ela
relaxou-se e mergulhou lentamente até o fundo do tanque.
Porus puxou para o lado a cortina.
— Está em sono profundo — rosnou. — Não falhou ainda uma única vez. Todos os espécimes
que conseguimos caem como se baleados no momento em que soa aquela nota.
— Dormindo, hem? Isso é estranho. Tem os dados relativos ao estímulo?
— Certamente! Aqui mesmo. Estão listados os exatos comprimentos de onda de luz necessários,
além do tempo de duração de cada unidade luminosa, bem como o timbre exato da nota tocada no fim.
O visitante examinou as notas com ar de dúvida. Enrugou a testa e empinou surpreso as orelhas.
De um bolso interno, tirou uma régua de cálculo.
— Que tipo de sistema nervoso possui o animal?
— Dois-B. Um comum, simples, ordinário Dois-B. Mandei que anatomistas, fisiologistas e
ecologistas verificassem isso até eles ficarem quase malucos. Dois-B é tudo o que conseguem. Malditos
idiotas!
Embora permanecesse calado, Lo-fan empurrou com todo o cuidado o cursor da régua para a
frente e para trás. Interrompeu-se, examinou o resultado com toda a atenção, encolheu os ombros e
estendeu a mão para apanhar um dos grandes volumes na prateleira acima de sua cabeça. Folheou
algumas páginas e conferiu números impressos em caracteres bem miúdos. Mais uma vez, voltou à régua
de cálculo.
Finalmente, interrompeu-se.
— Não faz sentido — disse, desanimado.
— Eu sei disso! Tentei seis vezes, de seis maneiras diferentes, explicar essa reação — e
fracassei todas as vezes. Mesmo que consiga elaborar um sistema que explique por que o animal cai no
sono, não consigo explicar a especificidade do estímulo.
— É altamente específico? — perguntou Lo-fan, subindo sua voz às notas mais altas da escala.
— Essa é que é a pior parte — berrou Tan Porus. Inclinou-se para a frente e deu uma palmadinha
no joelho do interlocutor. — Se mudamos o comprimento de qualquer uma das unidades luminosas em
cinqüenta angstroms, para cima ou para baixo, qualquer um deles — o animal não adormece. Se
mudamos o comprimento da duração de uma unidade luminosa em dois segundos, em qualquer direção —
não adormece. Se mudamos o timbre do tom ao fim de um oitavo em qualquer direção — ele não
adormece. Mas, usando a combinação certa, o animal entra imediatamente em coma.
As orelhas de Lo-fan eram duas cabeludas trombetas, rigidamente empinadas.
— Galáxia! — exclamou. — Como foi que você conseguiu algum dia encontrar a combinação?
— Não encontrei. A coisa aconteceu em Beta Draconis. Um professor qualquer estava dando a
seus calouros uma aula de laboratório sobre a reação dos moluscóides à luz — eles vêm fazendo isso há
anos. Um estudante procedeu às suas combinações luz-som e esse maldito espécime caiu no sono.
Naturalmente, o rapaz ficou apavorado e levou o resultado ao professor. Este tentou a mesma coisa com
outra lula — e ela caiu no sono. Mudaram a combinação — e coisa alguma aconteceu. Voltaram à
combinação original — e a lula adormeceu. Depois de darem tratos à bola com o problema, até chegarem
à conclusão de que não o compreendiam em absoluto, enviaram-no para Arcturus, onde o assunto caiu em
minhas mãos. Já faz seis meses que eu não sei o que é dormir uma boa-noite de sono.

Uma nota musical soou e Porus voltou-se impaciente.


— O que é?
— Um mensageiro do delegado-presidente do Congresso, senhor — disse em tom metálico uma
voz no videofone sobre a escrivaninha.
— Mande-o subir.
O mensageiro permaneceu apenas o suficiente para entregar a Porus um envelope
impressionantemente selado e dizer em voz cheia de entusiasmo:
— Grandes notícias, senhor. O Sistema do Sol foi aprovado para ingresso.
— E daí — fungou Porus baixinho quando o visitante saiu. — Todos nós sabíamos que isso ia
acontecer.
Rasgou a folha externa de celofane do envelope e tirou os documentos que se encontravam em seu
interior. Lançou-lhes um rápido olhar e fez uma careta.
— Oh, Rigel!
— O que foi que houve? — perguntou Lo-fan.
— Esses políticos continuam a me importunar com as coisas mais sem importância. A gente
pensaria que não há outro psicólogo em Eron. Escute! Estivemos esperando nestes últimos séculos que o
Sistema Solar solucionasse o princípio do hiperátomo. Conseguiram finalmente e uma expedição solar
desembarcou em Alpha Centauri. Imediatamente, há um feriado político! Precisamos enviar uma
expedição para convidá-los a ingressar na Federação. E, naturalmente, precisamos enviar um psicólogo
para fazer o convite com todo o jeito, de modo a termos certeza da reação certa porque, para ser exato,
não há um único homem no exército que jamais tenha recebido o treinamento apropriado em psicologia.
Lo-fan inclinou, sério, a cabeça.
— Eu sei, eu sei. Temos também o mesmo problema. Eles não precisam de psicologia até que se
metem em encrencas e, nesses casos, vêm procurar-nos às carreiras.
— Bem, é claro como água que eu não vou ao Sol. Essa lula dorminhoca é importante demais
para ser posta de lado. De qualquer maneira, será um trabalho de rotina — esse negócio de atrair novos
mundos: uma reação Tipo A que qualquer primeiranista poderá resolver.
— Quem é que você enviará?
— Não sei. Tenho vários bons alunos que podem realizar esse tipo de trabalho de olhos fechados.
Enviarei um deles. Enquanto isso, vê-lo-ei na reunião do Conselho amanhã, não?
— Certamente... e me ouvirá também. Vou fazer uma palestra sobre estímulos digitais.
— Ótimo! Estudei também esse assunto e ficarei interessado em ouvir o que você tem a dizer. Até
amanhã, então.

Mais uma vez a sós, Porus voltou a examinar o relatório oficial sobre o Sistema Solar, entregue
pelo mensageiro. Folheou-o preguiçosamente, sem interesse especial e, por fim, colocou-o de lado com
um suspiro.
— Lor Haridin pode fazer isso — murmurou para si mesmo. — Ele é um bom garoto... Merece
uma oportunidade.
Ergueu da cadeira seu pequenino volume e com o relatório sob um dos braços, deixou o gabinete
e desceu apressado o longo corredor externo. Ao parar em frente a uma porta na extremidade do
corredor, a sinalização automática acendeu-se e uma voz mandou-o entrar.
O rigeliano abriu a porta e enfiou a cabeça pela fresta.
— Ocupado, Haridin?
Lor Haridin ergueu os olhos e levantou-se imediatamente.
— Oh, pelo espaço! Não tenho nada a fazer desde que concluí aquele trabalho sobre reações de
cólera. Será que o senhor tem alguma coisa para mim?
— Tenho... se você pensa que está à altura dela. Ouviu falar no Sistema Solar, não?
— Claro! Os visores só falam nisso. Descobriram as viagens interestelares, não?
— Isso mesmo. Dentro de um mês, uma expedição vai partir de Alpha Centauri em direção ao
Sol. Precisará de um psicólogo para fazer o trabalho delicado e eu estava pensando em você.
O jovem cientista enrubesceu de satisfação até o alto da cabeça calva.
— Está falando sério, chefe?
— Por que não? Isto é... se você acha que pode realizar o trabalho.
— Naturalmente que posso. — Haridin ergueu-se em ofendida altivez. — Reação Tipo A! Não
posso errar.
— Você terá que aprender a linguagem deles, como sabe, e administrar o estímulo na língua solar.
Nem sempre isso é trabalho fácil.
Haridin encolheu os ombros.
— Ainda assim, não posso errar. Em um caso como este, a tradução precisa ser apenas setenta e
cinco por cento do desejado resultado. Esse foi um dos problemas que tive que resolver no meu exame
vestibular. Assim, o senhor não tem como me assustar.
Porus soltou uma gargalhada.
— Muito bem, Haridin. Sei que você pode fazer o trabalho. Arrume tudo aqui na universidade e
peça uma licença por tempo indeterminado. E se puder, Haridin, escreva algum trabalho sobre esses
habitantes do Sistema. Se for bom, você poderá conseguir status superior com ele.
O jovem psicólogo fez uma carranca.
— Mas, chefe, isso é coisa velha. As reações humanóides são tão conhecidas como ... como ...
Não se pode escrever coisa alguma sobre elas.
— Há sempre alguma coisa quando se procura devidamente, Haridin. Coisa alguma é bem
conhecida. Lembre-se disso. Se você examinar a página 25 do relatório, por exemplo, descobrirá um
item sobre o cuidado com que os solarianos se armaram ao descer da nave.
O interlocutor procurou a página indicada.
— Isso é razoável — disse. — Uma reação inteiramente normal.
— Certamente. Mas eles insistiram em conservar as armas durante toda a estada, mesmo quando
foram recebidos de braços abertos por outros humanóides. Isso é um desvio muito perceptível do normal.
Investigue isso. Talvez valha a pena.
— Como quiser, chefe. Muito obrigado pela oportunidade que me está dando. E, por falar nisso...
como é que está indo a lula?
Porus enrugou o nariz.
— Minha sexta tentativa terminou e morreu ontem. É revoltante. — Com essas palavras,
despediu-se.

Tan Porus, de Rigel, tremia de raiva enquanto dobrava em dois um punhado de folhas de papel,
rasgava-as e lançava-as para outro lado da sala. Com um movimento brusco, ligou o videofone.
— Ligue-me imediatamente com Santins, no Departamento de Matemática — disse secamente.
Seus olhos verdes despediram chamas em direção à plácida figura que apareceu quase
imediatamente na tela. Sacudiu o punho para a imagem.
— Qual, em nome de Eron, é a idéia daquela análise que você acaba de me enviar, seu verme de
lama betelgeusiano?
As sobrancelhas da imagem ergueram-se em leve surpresa.
— Não me culpe, Porus. As equações eram suas, não minhas. Onde foi que as arranjou?
— Não importa onde as consegui. Isso é questão do Departamento de Psicologia.
— Muito bem! E resolvê-las é questão do Departamento de Matemática. Foi o sétimo conjunto de
equações mais malucas que jamais vi. O pior de todos. Você fez pelo menos dezessete suposições que
não tinha o direito de fazer. Precisamos de duas semanas para resolvê-las e, finalmente, reduzimo-las ...
Porus saltou como se houvesse sido picado.
— Eu sei a que foi que você a reduziu. Acabo de rasgar aquelas folhas. Você toma dezoito
variáveis independentes, em vinte equações, representando dois meses de trabalho, e soluciona-as no
último termo da última, na última página, com essa jóia de sabedoria oracular: — "a" é igual a "a". Tanto
trabalho — e tudo que eu consigo é uma igualdade.
— Não é culpa minha, Porus. Você argumentou em círculos e em matemática isso significa uma
identidade e não há nada que você possa fazer a esse respeito. — Seus lábios se contraíram num lento
sorriso. — De qualquer maneira, por que é que você está tão agitado? "a" é igual a "a", não?
— Cale-se! — O videofone foi apagado, o psicólogo cerrou os lábios e ferveu por dentro. O
sinal luminoso sobre o videofone piscou novamente.
— O que é que você quer agora?
Como resposta ouviu a voz calma e impessoal do recepcionista no térreo:
— Um mensageiro do governo, senhor.
— O diabo leve o governo! Diga-lhe que morri.
— É importante, senhor. Lor Haridin acaba de voltar do Sol e quer falar com o senhor.
Porus franziu as sobrancelhas.
— Sol? Que Sol? Oh, lembro-me. Mande-o subir, mas diga-lhe para não se demorar. — Entre,
Haridin — disse um momento depois, em voz mais calma, quando o jovem arcturiano, um pouco mais
magro, um pouco mais cansado do que seis meses antes, quando deixara o Sistema Arcturiano, passou
pela porta.
— Bem, jovem, escreveu aquele trabalho?
O arcturiano olhou atentamente para as unhas.
— Não, senhor.
— Por que não? — Os olhos verdes de Porus examinaram atentos o interlocutor. — Não me diga
que teve dificuldades.
— Um bocado, chefe. — Falava com esforço. — O próprio Conselho de Psicologia mandou
convocá-lo depois de ouvir meu relatório. O núcleo do assunto é que o Sistema Solar... recusou-se a
ingressar na Federação.
Tan Porus saltou da cadeira como um boneco de mola e aterrou, por puro acaso, sobre os
próprios pés.
— O quê!
Haridin inclinou tristemente a cabeça e pigarreou.
— Ora, pela Grande Nebulosa Negra — praguejou o rigeliano, desanimado — isso é o que eu
chamo um belo dia! Em primeiro lugar, dizem-me que "a" é igual a "a" e, depois, vem você e me diz que
a sua furada reação Tipo A ... furou completamente!
O jovem psicólogo irritou-se.
— Eu não furei coisa alguma. Há algo de errado com os próprios solarianos. Eles não são
normais. Quando aterramos, eles ficaram malucos. Houve uma celebração fantástica ... inteiramente
frenética. Coisa alguma era boa demais para nós. Entreguei o convite no parlamento deles, falando na
própria língua deles... uma língua simples que chamam de Esperanto. Aposto minha vida que minha
tradução foi noventa e cinco por cento correta.
— Bem? E então?
— Não posso compreender o resto, chefe. Em primeiro lugar, houve uma reação neutra e fiquei
um pouco surpreso. Depois — ele tremeu, lembrando-se — em sete dias apenas, chefe — todo o planeta
mudou inteiramente de opinião. Não consegui compreender-lhe a psicologia de forma alguma. Trouxe
exemplares dos jornais, nos quais eles se manifestam contra a aliança com "monstruosidades alienígenas"
e recusam-se a ser "governados por seres inumanos que vivem em mundos a parsecs de distância". Eu
pergunto: isso faz sentido?
"E isso foi apenas o princípio. A situação foi anos-luz pior do que isso. Ora, valha-me a Galáxia,
apliquei todos os tipos de Reação A, tentando compreendê-los, e não consegui. No fim, fomos obrigados
a partir. Estávamos correndo perigo físico de parte daqueles... terráqueos, como eles se chamam a si
mesmos.
Tan Porus mordeu os lábios.
— Interessante! Trouxe o relatório?
— Não. Está com o Conselho de Psicologia. Estão examinando-o a microscópio o dia inteiro.
— E o que é que eles dizem?
O jovem arcturiano contorceu-se todo:
— Não dizem coisa alguma abertamente, mas deixam uma forte impressão de acreditar que o
relatório é inexato.
— Bem eu decidirei sobre isso depois de lê-lo. Enquanto isso, venha comigo ao Salão
Parlamentar e, no caminho, você pode responder a algumas perguntas.

Joselin Am, de Alpha Centauri, esfregou o queixo barbado com a imensa mão de seis dedos e
olhou sob as sobrancelhas eriçadas para o semicírculo de numerosas faces que o fitavam. O Conselho de
Psicologia era composto de psicólogos procedentes de uma dezena de mundos e aquele olhar fixo geral
não era a coisa mais fácil do mundo de suportar.
— Fomos informados — começou Frian Obel, Presidente do Conselho e nativo de Vega, o
planeta dos homens de pele verde — que as partes do relatório a respeito do estado de preparação
militar do Sol constituem trabalho seu. Joselin Arn inclinou a cabeça em silenciosa anuência.
— E o senhor está disposto a confirmar o que declarou aqui, a despeito de sua inerente
improbabilidade? O senhor não é psicólogo, como sabe.
— Não! Mas sou um soldado. — As mandíbulas do centauriano cerraram-se enquanto sua voz
trovejava pelo salão.
— Não conheço equações, nem sei coisa alguma sobre gráficos — mas conheço naves espaciais.
Examinei as deles, examinei as nossas e as deles são melhores. Visitei a primeira nave interestelar que
construíram. Dê-lhes cem anos e eles terão melhores hiperátomos do que nós. Conheci-lhes as armas.
Têm quase tudo o que temos, isso em um estágio de sua história que se encontra a milênios atrás de nós.
O que não têm ainda, conseguirão... e logo. O que têm, aperfeiçoarão.
— Inspecionei suas fábricas de munições — prosseguiu — as nossas são mais avançadas, mas as
deles são mais eficientes. Conheci-lhes os soldados — e eu antes preferiria lutar ao lado deles do que
contra eles. Disse tudo isso no relatório e confirmo agora.
Interrompeu suas bruscas sentenças e Frian Obel esperou que cessasse o murmúrio de vozes em
volta.
— E no tocante ao resto da ciência deles: medicina, química, física? O que tem o senhor a dizer?
— Eu não sou o melhor juiz nesses assuntos. Mas o senhor tem o relatório dos especialistas e, de
acordo com o meu melhor julgamento, confirmo-o.
— E, bem, esses solarianos são verdadeiros humanóides?
— Pelos mundos circulantes de Centaurus, sim!
O velho cientista recostou-se na cadeira com um gesto mal-humorado e lançou um rápido e
carrancudo olhar para cima e para baixo da mesa.
— Colegas — disse —, estamos fazendo pouco progresso em requentar essa confusão de
impossibilidade. Temos uma raça de humanóides com uma extraordinária capacidade tecnológica,
possuidora, ao mesmo tempo, de uma crença intrinsecamente anticientífica em forças sobrenaturais, uma
predileção incrivelmente infantil pela individualidade, isoladamente e em grupos e, pior que tudo, falta
de visão suficiente para abarcar uma cultura de âmbito galático.
Olhou irritado para o centauriano sentado em plano mais baixo à sua frente.
— Tal raça deve existir, se acreditamos no relatório — e com isso axiomas fundamentais da
psicologia vêm por água abaixo. Mas eu pelo menos me recuso a acreditar — para ser vulgar a esse
respeito — nessas baboseiras. Trata-se claramente de um caso de má gestão, a ser investigado pelas
autoridades competentes. Espero que todos concordem comigo quando digo que esse relatório deve ser
lançado na cesta de papéis e uma segunda expedição enviada, dirigida por um especialista em seu campo
de trabalho, e não por um psicólogo iniciante e um soldado ...
O tom monótono da voz do cientista foi abafado subitamente pelo estrondo de um punho de ferro
sobre a mesa. Joselin Am, com o seu grande corpo tremendo de raiva, perdeu a cabeça e explodiu em
fúria marcial.
— Não, pelos vermes de Templis e todos os outros vermes, eu não admito isso! Os senhores
sentam-se aí com suas teorias e sua sabedoria remota e negam o que vi com meus próprios olhos? Devem
os meus olhos — e eles lançavam fogo enquanto falava — negar a evidência que viram, por causa de
alguns rabiscos que as mãos trêmulas dos senhores traçam no papel?
— Que vão para o inferno de Centaurus esses sábios de gabinete, é isso o que digo, — e os
psicólogos antes de todos. Que o inferno receba esses homens que se sepultam em seus livros e
laboratórios e se tornam cegos para o que acontece no mundo exterior vivo. Psicologia é isso? Podre,
pútrida...
Uma pancadinha em sua cintura fê-lo voltar-se, de olhos fixos e punhos cerrados. Durante um
momento olhou sem resultado em volta. Em seguida, baixando os olhos, viu os enigmáticos olhos verdes
de um pigmeu, um homem cujo olhar perfurante parecia afogar-lhe a raiva em água gelada.
— Eu o conheço, Joselin Am — disse Tan Porus em voz lenta, escolhendo com cuidado as
palavras. — Você é um homem corajoso e um bom soldado, mas você não gosta dos psicólogos, pelo que
vejo. Isso é um erro de sua parte, pois é da psicologia que depende o sucesso político da Federação.
Elimine-a e nossa União desmorona, nossa grande Federação derrete-se e nosso Sistema Galático se
despedaça. — Sua voz desceu de tom e transformou-se em um zumbido macio, líquido. — Você prestou o
juramento de defender o Sistema contra todos os seus inimigos, Joselin Am... e agora você mesmo se
tornou o maior deles. Você lhe ataca os próprios alicerces. Escava-lhe as raízes. Envenena-lhes a fonte.
Você está desonrado. Você está degradado. Você é um traidor.
O soldado centauriano sacudiu a cabeça, impotente. Enquanto Porus falava, enchia-o um profundo
e amargo remorso. A recordação das palavras que pronunciara momentos antes pesava-lhe na
consciência. Quando o psicólogo terminou sua tirada, Arn curvou a cabeça e chorou. Lágrimas correram
pela face enrugada, coberta de cicatrizes de guerra, lágrimas às quais, durante quarenta anos, fora um
estranho.
Porus falou novamente e, desta vez, sua voz ribombou como um trovão.
— Acabe com esse vagido, seu covarde. O perigo está próximo. Às armas!
Joselin Arn tomou imediata posição de sentido. A mágoa que o avassalara pouco menos de um
segundo antes desapareceu como se nunca houvesse existido.
A sala sacudiu-se de riso e o soldado compreendeu a situação. Fora a maneira de Porus castigá-
lo. Com seu completo conhecimento dos tortuosos caminhos da mente humanóide, precisara apenas
apertar o botão certo e...
Embaraçado, o centauriano mordeu o lábio, mas nada disse.
O próprio Tan Porus, porém, não riu. Arreliar o soldado; era uma coisa; humilhá-lo, outra
inteiramente diferente. Com um salto, subiu numa cadeira e pôs a pequena mão sobre os ombros maciços
do centauriano.
— Não houve intenção de ofender, meu amigo ... Foi uma pequena lição, só isso. Combata os
subumanóides e no meio hostil em cinqüenta mundos. Desafie o espaço numa banheira furada, que você
chama de nave. Desafie quaisquer perigos que quiser. Mas nunca, nunca ofenda um psicólogo. Ele pode
ficar realmente zangado na próxima vez.
Arn lançou a cabeça para trás e riu — um rugido gigante de divertimento, que sacudiu a sala com
uma força de terremoto.
— O seu conselho será levado em conta, psicólogo. Quero ser queimado com um hiperátomo se
não reconheço que tem razão. — Saiu da sala com os ombros ainda subindo e descendo com o riso
abafado.
Porus saltou da cadeira e voltou-se para o Conselho.
— É interessante essa raça de humanóides que descobrimos por acaso, colegas.
— Ah — disse seco Obel —, o grande Porus considera-se obrigado a correr em defesa de seu
aluno. A sua digestão parece ter melhorado, uma vez que você se sente em condições de engolir o
relatório de Haridin.
Haridin, de pé, cabeça baixa, em um canto, enrubesceu furioso, mas não se moveu.
Porus fez uma carranca, mas manteve calmo o tom de voz.
— Melhorei e o relatório, se devidamente analisado, provocará uma revolução na ciência. Trata-
se de uma mina de ouro psicológica. O Homo Sol é a descoberta do milênio.
— Seja específico, Tan Porus — disse alguém em voz arrastada. — Os seus truques são ótimos
para um centauriano estúpido, mas nós não estamos impressionados.
O temperamental psicólogo rigeliano emitiu um gorgolejo de raiva. Sacudiu um pequeno punho
em direção do último interlocutor.
— Serei mais específico, Inar Tubal, sua barata espacial cabeluda. — A prudência e a raiva
travavam nele uma visível batalha. — Há mais em um humanóide do que você pensa, certamente muito
mais do que vocês, aleijões mentais, podem compreender. Simplesmente para mostrar a vocês, ressecado
grupo de fósseis, o que não sabem, eu demonstrarei um pouco de psicotecnologia que vai apavorá-los.
Pânico, seus débeis mentais, pânico! Pânico mundial!
Caiu um terrível silêncio.
— Você falou em pânico mundial? — gaguejou Prian Obel, tornando-se cinza sua pele verde. —
Pânico?
— Sim, seu papagaio. Dê-me seis meses e cinqüenta assistentes e eu lhes darei um mundo de
humanóides em pânico.
Obel fez uma vã tentativa de responder. Sua boca contorceu-se numa heróica tentativa para
permanecer séria — e falhou. Como se houvesse recebido um sinal, o Conselho inteiro pôs de lado a
dignidade e recostou-se na cadeira em uma única explosão de gargalhadas.
— Lembro-me — disse Inar Tubal, de Sirius, em voz entrecortada, com a face estriada de
lágrimas de puro divertimento — de um estudante meu que certa vez alegou que havia descoberto um
estímulo que induziria pânico mundial. Quando lhe conferi os resultados, descobri um expoente com um
ponto decimal mal colocado. Ele se enganara apenas em dez ordens de magnitude. Quantos pontos
decimais colocou erradamente, colega Porus?
— E a Lei de Kraut, Porus, que diz que não se pode induzir o pânico em mais de cinco
humanóides de cada vez? Será que devemos aprovar uma resolução, revogando-a? E talvez também a
teoria atômica, enquanto estamos tratando do assunto? — cacarejou alegre Semper Gor, de Capella.
Porus subiu na mesa e arrancou o martelo cerimonial da mão de Obel.
— O próximo que rir vai levar isto em cima da cabeça vazia. — Caiu um súbito silêncio.
— Vou levar cinqüenta assistentes — berrou o rigeliano de olhos verdes — e Joselin Arn vai
conduzir-me ao Sol. Quero que cinco de vocês me acompanhem — Inar Tubal, Semper Gor e três outros
— para que lhes possa observar as caras estúpidas quando eu fizer o que disse que faria. — Ergueu
ameaçador o martelo. — Bem?
Frian Obel olhou placidamente para o teto.
— Muito bem, Porus. Tubal, Gor, Helvin, Prat e Winson irão com você. Ao fim do tempo
marcado, presenciaremos um pânico mundial, o que será muito agradável — ou observaremos você
engolir suas próprias palavras, e isso será ainda mais agradável. — E com essas palavras, riu
silenciosamente para si mesmo.
Tan Porus olhou pensativo pela janela. Terrápolis, a capital da Terra, esparramava-se aos seus
pés até os próprios confins do horizonte. O seu rugido abafado chegava mesmo à altura de meia milha,
onde ele se encontrava.
Havia algo pairando sobre aquela cidade, invisível e intangível, mas nem por isso menos real. A
sua presença era mais do que evidente para o pequeno psicólogo. O manto sufocante de pegajoso medo
que se espalhava sobre a metrópole embaixo era uma de suas próprias criações — um horrível manto de
sombria incerteza, que agarrava com dedos viscosos os corações da humanidade e apenas se detinha —
apenas — a pouco menos do autêntico pânico.
O rugido da cidade incluía vozes e as vozes eram as vozes sumidas do medo.
O rigeliano voltou-se, cheio de nojo.
— Hei, Haridin — rugiu.
O jovem arcturiano desviou a vista do televisor:
— Chamando, chefe?
— O que é que você acha que estou fazendo? Falando comigo mesmo? Quais são as últimas
notícias da Ásia?
— Nada de novo. O estímulo simplesmente não foi suficientemente forte. Os amarelos parecem
ser de natureza mais impassível do que os brancos dominantes da América e Europa. Ainda assim, dei
ordens para que não fosse aumentado o estímulo.
— Não, eles não devem — concordou Porus. — Não podemos arriscar-nos a pânico ativo. —
Ruminou em silêncio durante algum tempo. — Ouça, estamos quase terminando. Diga-lhes para aplicar o
estímulo em umas poucas grandes cidades — são mais susceptíveis — e depois parar. — Voltou-se mais
uma vez para a janela. — Pelo espaço! Que mundo... que mundo! E abriu-se um campo inteiramente novo
na psicologia — um campo com o qual ninguém jamais sonhou. Psicologia de massa, Haridin, psicologia
de massa. — Sacudiu vivamente a cabeça.
— Apesar disso, há muito sofrimento, chefe — murmurou o jovem. — Este pânico passivo
paralisou inteiramente o comércio e os negócios. A vida empresarial de todo o planeta está inteiramente
estagnada. O pobre governo está impotente — não sabe o que é que está errado.
— Ele descobrirá... quando eu estiver pronto. E quanto ao sofrimento... bem, eu não gosto disso,
tampouco, mas tudo isso são meios para um fim, um fim imensamente importante. — Seguiu-se um curto
silêncio, quebrado por Porus, cujos lábios se crisparam em um cruel sorriso. — Aqueles cinco imbecis
voltaram ontem da Europa, não?
Haridin sorriu por seu turno e inclinou vigorosamente a cabeça.
— E saltando como se tivessem calos! Seus prognósticos foram confirmados até a quinta casa
decimal. Eles estão doidos varridos.
— Ótimo! Sinto apenas não poder ver a cara de Obel agora, depois da última mensagem que lhe
enviei. E, por falar nisso, — a sua voz caiu para um tom mais baixo — quais são as últimas notícias
sobre eles?
Haridin ergueu dois dedos.
— Duas semanas, e estarão aqui.
— Duas semanas... duas semanas — disse Porus, num murmúrio de júbilo. Ergueu-se e dirigiu-se
para a porta. — Acho que vou encontrar meus queridos, queridíssimos colegas, e passarei com eles o
resto do dia.

Os cinco cientistas do Conselho ergueram os olhos de suas notas e caíram em embaraçado


silêncio no momento em que Porus entrou.
Porus sorriu travessamente.
— Notas satisfatórias, cavalheiros? Encontraram, sem dúvida, cinqüenta ou sessenta falácias em
minhas suposições fundamentais?
Hybron Prat, de Alpha Cepheus, alisou a gaforinha cinzenta que chamava de cabelo.
— Eu não confio nesses vergonhosos truques criados por suas malucas notações matemáticas.
O rigeliano soltou um curto riso seco.
— Invente melhores, então. Até agora, têm feito um bom trabalho explicando as reações, não?
Ouviu-se um áspero coro de pigarros, mas nenhuma resposta definida.
— Têm feito, não? — trovejou Porus.
— Bem, e se têm feito? — retrucou em desespero Kim Winson. — Onde é que está o seu pânico?
Está tudo muito bem. Estes humanóides são aberrações cósmicas, mas onde é que está o grande
espetáculo que você ia montar? Até que você destrua a Lei de Kraut, toda esta sua exibição não vale um
meteorito do tamanho da cabeça de um alfinete.
— Vocês estão derrotados, cavalheiros, estão derrotados — disse, exultante, o pequeno mestre-
psicólogo. — Eu provei meu argumento — este pânico passivo é tão impossível de acordo com a
psicologia clássica como a sua forma ativa. Vocês estão agora tentando negar os fatos e manter as
aparências, apegando-se a uma minúcia. Voltem para casa, voltem para casa, cavalheiros, e escondam-se
debaixo da cama.
Os psicólogos são apenas humanos. Podem analisar os motivos que os impulsionam, mas são
escravos desses motivos da mesma forma que o mais comum dos mortais. Esses psicólogos, famosos
numa galáxia inteira, contorceram-se sob o azorrague do orgulho ferido e da vaidade despedaçada e sua
cega obstinação era apenas a reação mecânica daí derivada. Sabiam que era isso e sabiam que Porus
sabia — e isso tornava o caso ainda mais difícil.
Inar Tubal voltou para ele seus irritados olhos orlados de vermelho.
— Pânico ativo, ou nada, Tan Porus. Foi isso o que você prometeu e é só isso o que aceitaremos.
Queremos exatamente o prometido, ou não nos deteremos em qualquer minúcia. Pânico ativo, ou
comunicaremos o fracasso!
Porus inchou como se fosse explodir, mas, com um tremendo esforço, conseguiu falar em voz
tranqüila:
— Sejam razoáveis, cavalheiros. Nós não temos o equipamento para produzir pânico ativo.
Nunca combatemos antes esta superforma que eles têm aqui na Terra. E se a coisa escapar ao controle?
— Sacudiu vivamente a cabeça.
— Isole-a, então — rosnou Semper Gor. — Inicie o pânico e abafe-o. Faça todos os preparativos
que quiser, mas faça-o!
— Se puder — grunhiu Hybron Prat.
Tan Porus, porém, tinha o seu ponto fraco. O seu temperamento irritável se desencadeou. Sua
língua ágil crestou a atmosfera e inundou os mal-humorados psicólogos com onda após onda de
invectivas coléricas.
— Como quiserem, seus cabeças ocas! Como quiserem, e que vão para o espaço exterior. —
Estava sem fôlego de tanta raiva. — Iniciaremos o pânico aqui mesmo em Terrápolis logo que todo o
pessoal regressar. Apenas, seria melhor que vocês procurassem esconder-se!
Com um rosnado final de despedida, saiu em passos duros da sala.

Tan Porus abriu as cortinas com um movimento rápido da mão e os cinco psicólogos à sua frente
desviaram os olhos. As ruas da capital da Terra estavam desertas de civis. A marcha pesada e regular
dos militares de patrulha nas ruas da cidade parecia um canto de finados. O baixo céu de inverno cobria
uma cena de detritos espalhados e corpos dispersos e silêncio, o silêncio que se segue a uma orgia de
alucinada destruição.
— Foi muito arriscado durante algumas horas lá embaixo, colegas. — Porus falava em voz
cansada. — Se houvesse transbordado dos limites da cidade, jamais teríamos conseguido detê-lo.
— Horrível, horrível! — murmurou Hybron Prat, — uma cena que um psicólogo teria dado o
braço direito para presenciar — e a vida para esquecer.
— E eles são humanóides! — gemeu Kim Winson. Semper Gor ergueu-se numa súbita decisão.
— Percebeu a significação disso, Porus? Esses terráqueos são pura atomita descontrolada. Não
se pode lidar com eles. Mesmo que fossem duas vezes os gênios tecnológicos que são, eles seriam
inúteis. Com sua psicologia de massa, seu pânico de massa, seu superemocionalismo, eles simplesmente
não se enquadram no tipo humanóide.
— Tolice! Individualmente, somos tão emotivos como eles. Eles levam a emoção para a ação de
massa, o que nós não fazemos. Esta é a única diferença.
— E é suficiente! — exclamou Tubal. — Nós tomamos nossa decisão, Porus. Tomamo-la a noite
passada, no auge de... daquilo. O Sistema Solar deve ser deixado entregue à sua própria sorte. É um foco
de peste e nada queremos com ele. No que interessa à Galáxia, Homo Sol será posto em rigorosa
quarentena. O assunto está encerrado. O rigeliano riu baixinho.
— Para a Galáxia, pode estar encerrado. Mas, para o Homo Sol?
Tubal encolheu os ombros.
— Eles não nos interessam. Porus riu novamente.
— Ouça, Tubal. Justamente aqui entre nós dois, tentou você por acaso uma integração temporal da
Equação 128, seguida por expansão com tensores karolianos?
— Não, não posso dizer que o tenha feito.
— Bem, então simplesmente examine estes cálculos e divirta-se.
Os cinco cientistas do Conselho curvaram-se sobre as folhas de papel entregues por Porus. As
expressões mudaram de interesse para confusão e, em seguida, para algo que se aproximava do pânico.
Naru Helvin rasgou de alto a baixo as folhas com um movimento espasmódico.
— É uma mentira — guinchou.
— Nós estamos mil anos à frente deles e, por essa época, teremos avançado mais duzentos anos!
— disse secamente Tubal. — Eles não poderão fazer coisa alguma contra a massa das populações da
Galáxia.
Tan Porus riu em tom monótono, o que é difícil de fazer mas muito mais desagradável de ouvir.
— Vocês ainda não acreditam na matemática. Isso é fruto da formação de vocês. Muito bem,
vejamos se os especialistas podem convencê-los — o que devem fazer, a menos que o contato com esses
estranhos humanóides os tenha deformado. Joselin — Joselin Arn — venha até aqui.
O comandante centauriano entrou, bateu uma automática continência e ficou esperando.
— Uma de suas naves poderia derrotar uma das naves do Sol em uma batalha, se necessário?
Arn sorriu com amargura.
— Nenhuma possibilidade disso, senhor. Esses humanóides revogam a lei de Kraut no pânico... e
também no combate. Temos em nossas naves um corpo de especialistas, que as dirigem. Essa gente tem
uma única tripulação que funciona como uma unidade, sem individualidade. Eles adotam uma forma de
luta — pânico, acho, é a melhor palavra. Todos os membros da nave transformam-se em órgãos da nave.
Conosco, como os senhores sabem, isso é impossível.
— Além disso — continuou — este mundo é uma massa de gênios loucos. Eles reuniram, e disso
tenho absoluta certeza, nada menos do que vinte e dois dispositivos interessantes, mas inúteis, que viram
no Museu Thalsoon quando nos visitaram, viraram esses dispositivos pelo avesso e produziram, com
base neles, alguns dos mais desagradáveis dispositivos militares que já vi. Conhecem o traçador linear
gravitacional de Julmun Thill? Usado — de modo bastante ineficaz — para localizar depósitos de
minério antes do aparecimento do método moderno de potencial elétrico? Eles o transformaram — de
alguma maneira — em um dos mais letais dispositivos automáticos de direção de artilharia que tive o
desprazer de conhecer. Aponta automaticamente um canhão, ou um projetor, sobre um alvo inteiramente
invisível no espaço, no ar, na terra ou na rocha.
— Nós — disse Tan Porus, num tom exultante — temos frotas muito maiores do que as deles.
Poderíamos esmagá-los, não?
Joselin Arn sacudiu a cabeça.
— Derrotá-los agora — provavelmente. Mas não seria um esmagamento total, e eu não contaria
demais com isso. Certamente eu não quereria me meter nisso. O problema é que, do ponto de vista
militar, esse bando de maníacos por dispositivos inventa coisas com uma rapidez horrível.
Tecnologicamente, eles são tão instáveis como uma onda de água; a nossa civilização assemelha-se a
uma duna de areia. Vi suas fábricas de carros instalarem uma completa linha de montagem para produção
de um novo modelo de automóveis — e botá-la abaixo seis meses depois porque se tornou inteiramente
obsoleta!
— Bem, entramos em contato com a civilização deles apenas por pouco tempo. Aprendemos os
métodos de uma nova civilização para acrescentá-los aos das nossas duzentas e oitenta e tantas — uma
pequena vantagem percentual. Eles acrescentaram toda uma nova civilização à sua — um avanço de cem
por cento!
— O que me diz — perguntou suavemente Porus — de nossa situação militar se simplesmente os
ignorarmos por completo durante duzentos anos?
Joselin Arn soltou uma pequena e explosiva gargalhada.
— Se pudéssemos... o que significa, se eles nos deixarem — respondo logo e com segurança: eles
são tudo o que eu me aventuraria a enfrentar agora. Duzentos anos de exploração dos novos caminhos
sugeridos pelo breve contato deles conosco e eles farão coisas que nem consigo imaginar. Esperemos
duzentos anos e não haverá uma batalha: haverá uma anexação.
Tan Porus curvou-se cerimoniosamente.
— Obrigado, Joselin Arn. Esse foi o resultado de meu trabalho matemático.
Joselin Arn bateu continência e deixou a sala. Voltando-se para os cinco cientistas, inteiramente
petrificados, Porus continuou:
— Tenho esperança de que, como cavalheiros cultos, ainda reajam de uma maneira vagamente
humanóide. Estão convencidos de que não nos cabe decidir o encerramento de todo o intercâmbio com
essa raça? Nós poderemos fazer isso ... mas eles não farão.
— Loucos! — falou como se cuspisse a palavra. — Vocês pensam que vou desperdiçar meu
tempo discutindo com vocês? Sou eu quem dita a lei, compreendem? Homo Sol ingressará na Federação.
Durante duzentos anos ele vai ser treinado para alcançar a maturidade. E não lhes estou pedindo opinião:
estou dizendo o que vai ser feito! — O rigeliano fitava-os truculentamente. — Venham comigo! —
rosnou.
Seguiram-no submissos e penetraram no quarto de dormir de Tan Porus. O pequeno psicólogo
puxou uma cortina e expôs um quadro em tamanho natural.
— Sabem por acaso o que é isso?
Era um retrato de um terráqueo, mas de um terráqueo como nenhum dos psicólogos havia ainda
visto. Digno e austeramente belo, com uma das mãos acariciava uma barba regia e com a outra prendia
uma dobra do traje ondulante que vestia. Parecia a majestade personificada.
— Esse aí é Zeus — disse Porus. — Os terráqueos primitivos criaram-no como personificação
da tempestade e do raio. — Voltou-se para os cinco confusos colegas. — O retrato lembra-lhes alguém?
— Homo Canopus? — aventou, incerto, Helvin. Durante um momento a face de Porus relaxou-se
em momentânea satisfação e, em seguida, endureceu-se.
— Naturalmente — disse em voz seca. — Por que hesita a esse respeito? É o Canopus redivivo,
até a barba amarela cheia. — Fez uma pausa. — Há mais alguma coisa. — Puxou outra cortina.
Desta vez o retrato era de uma mulher. Seios fortes e largos quadris. Um inefável sorriso
adornava-lhe o rosto e suas mãos pareciam acariciar talos de cereal que cresciam viçosos em torno de
seus pés.
— Deméter! — disse Porus. — A personificação da fertilidade agrícola. A mãe idealizada. Quem
é que ela lembra?
Não houve hesitação dessa vez. Cinco vozes soaram simultaneamente.
— Homo Betelgeuse!
Tan Porus sorriu deliciado.
— Acertaram. Bem?
— Bem? — repetiu Tubal.
— Não compreendem? — o sorriso desapareceu. — Não está claro? Patetas! Se cem Zeus e cem
Deméteres desembarcassem na Terra como parte de uma "missão comercial" e fossem psicólogos
treinados... Compreendem agora?
Semper Gor riu inesperadamente.
— Espaço, tempo e pequenos meteoros! Naturalmente! Os terráqueos seriam como manteiga às
mãos de sua própria personificação da tempestade e da maternidade redivivas. Em duzentos anos... ora,
em duzentos anos poderíamos fazer qualquer coisa que quiséssemos.
— Mas, a respeito dessa sua chamada "missão comercial", Porus, — observou Prat — para
começar, como e que você vai levar o Homo Sol a aceitá-la?
Porus inclinou a cabeça para um lado.
— Querido colega Prat, — murmurou — você acha que criei o pânico passivo apenas pelo
espetáculo... ou para agradar cinco estúpidos? O pânico passivo paralisou a indústria e o governo da
Terra está a braços com uma revolução — outra forma de ação de massa que merece uma investigação.
Ofereça-se a eles comércio galático e prosperidade eterna e o que é que vocês acham que eles farão? A
matéria tem, ou não, consistência?
O rigeliano interrompeu com um gesto impaciente a excitada conversação que se seguiu.
— Se vocês não têm mais coisa alguma a perguntar, cavalheiros, vamos iniciar nossos
preparativos para a partida. Para ser franco, estou cansado da Terra e, mais do que isso, estou
ansiosíssimo para voltar àquela minha lula.
— Abriu a porta e berrou: — Hei, Haridin! Diga a Arn para aprontar a nave para dentro de seis
horas. Vamos embora.
— Mas... mas... — O coro de confusas objeções cristalizou-se em ação súbita quando Semper
Gor correu para Porus e agarrou-o no momento em que ele ia sair. O pequeno rigeliano debateu-se em
vão nas mãos poderosas do colega.
— Solte-me.
— Nós já agüentamos o bastante, Porus — disse Gor — e agora, simplesmente, acalme-se e
comporte-se corno um humanóide. Diga você o que quiser, nós não vamos partir até que tenhamos
terminado. Temos que combinar com o governo terrestre a questão da missão comercial. Precisamos
conseguir aprovação do Conselho. Precisamos escolher nossos psicólogos. Precisamos ...
Com uma sacudidela súbita, Porus soltou-se.
— Vocês acham, por um momento sequer, que eu esperaria que seu precioso Conselho começasse
a pensar em iniciar alguma providência sobre a situação dentro de duas ou três décadas? A Terra
concordou incondicionalmente com meus termos há um mês. O grupo de canopianos e betelgeusianos
partiu há cinco meses e pousou aqui anteontem. Foi somente com a ajuda deles que conseguimos abafar o
pânico de ontem — embora vocês nunca houvessem desconfiado disso. Provavelmente, pensaram que
vocês mesmos o fizeram. Hoje, cavalheiros, eles têm a situação sob absoluto controle e os serviços dos
senhores não são mais necessários. Vamos voltar para casa.
Missão de salvamento
Autor – Arthur C. Clarke — Tradução – Ruy Jungmann

De quem era a culpa? Durante três dias inteiros os pensamentos de Alveron retornaram àquela
pergunta e ele não encontrara ainda resposta. O filho de uma raça menos civilizada, ou menos sensível,
jamais teria permitido que ela lhe torturasse a mente e se teria satisfeito com a garantia de que ninguém
poderia ser responsável pela ação do destino. Mas Alveron e sua raça haviam sido senhores do Universo
desde os albores da história, desde aquela distante era em que a Barreira do Tempo fora lançada em
volta do cosmo por poderes desconhecidos, que se perdiam para além do Começo. A ela fora dado todo
o conhecimento — e com o conhecimento, uma responsabilidade infinita. Se enganos e erros haviam sido
cometidos na administração da Galáxia, a culpa caía sobre a cabeça de Alveron e de seu povo. E aquilo
não era um simples erro: era uma das maiores tragédias da história.
A tripulação nada sabia ainda. Mesmo Rugon, seu mais íntimo amigo e Imediato da nave, fora
informado apenas de partes da verdade. Mas, naquele momento, os mundos condenados encontravam-se a
menos de um milhão de milhas à frente. Dentro de horas, eles desembarcariam no terceiro planeta.
Mais uma vez, Alveron leu a mensagem enviada pela Base. Em seguida, com um movimento
rápido de um tentáculo que nenhum olho humano poderia ter acompanhado, apertou o botão de "Atenção
Geral". Através do cilindro de uma milha de comprimento que constituía a Nave de Pesquisa Galática
S9000, criaturas de numerosas raças interromperam o trabalho para escutar as palavras do Capitão.
— Sei que todos vocês andam se perguntando — começou Alveron — por que recebemos ordem
de abandonar nossa pesquisa e dirigir-nos com tal aceleração para esta região do espaço. Alguns de
vocês talvez compreendam o que significa esta aceleração. A nossa nave realiza sua última viagem; os
geradores estão funcionando há sessenta horas em Carga Máxima Final. Teremos muita sorte se
voltarmos à Base com nossos próprios meios.
— Estamos nos aproximando de um sol que está prestes a transformar-se em uma nova. A
explosão ocorrerá dentro de sete horas, com uma margem de incerteza de uma única hora, deixando-nos
um máximo de apenas quatro horas para os serviços de exploração. Há dez planetas no sistema que está
prestes a ser destruído — e existe uma civilização no terceiro deles. Esse fato foi descoberto há apenas
alguns dias. Constitui nossa trágica missão entrar em contato com essa raça condenada e, se possível,
salvar alguns de seus membros. Sei que é muito pouco o que podemos fazer em um tempo tão curto com
esta única nave. Nenhuma outra máquina pode, de forma alguma, alcançar o sistema antes que ocorra a
explosão.
Seguiu-se uma longa pausa, durante a qual não poderia ter sido ouvido o menor som ou
movimento na poderosa nave que, em silêncio, se dirigia para os mundos à frente. Alveron sabia o que
seus companheiros estavam pensando e fez um esforço para responder-lhes à silenciosa pergunta:
— Vocês estarão se perguntando como se permitiu que tal catástrofe, a maior de que temos
registro, viesse a ocorrer. Sobre um ponto, posso tranqüilizá-los. A culpa não cabe ao Serviço de
Pesquisa.
— "Como vocês sabem, com nossa atual frota de menos de doze mil naves, é possível revisitar
cada um dos oitenta milhões de sistemas solares da Galáxia a intervalos de cerca de um milhão de anos.
A maior parte dos mundos muda muito pouco num período de tempo tão curto assim.
— "Há menos de quatro mil anos passados, a nave de pesquisa S5060 visitou os planetas do
sistema do qual estamos nos aproximando. Não encontrou inteligência em nenhum deles, embora o
terceiro planeta estivesse fervilhando de vida animal e dois outros mundos houvessem sido certa vez
habitados. Foi apresentado o relatório usual e o sistema deveria passar pelo exame seguinte dentro de
seiscentos mil anos.
— "Parece agora que, no período incrivelmente curto desde a última visita, vida inteligente
apareceu no sistema. A primeira indicação disso ocorreu quando sinais de rádio desconhecidos foram
captados no planeta Kulath, no sistema X29.35, Y34.76, Z27.93. Posições foram determinadas no tocante
a eles e verificou-se que provinham do sistema à nossa frente.
— "Kulath situa-se a duzentos anos-luz a partir daqui, de modo que essas ondas de rádio
estiveram em movimento durante dois séculos. Desta maneira, pelo menos durante esse período de
tempo, uma civilização existe em um desses mundos — uma civilização que pode gerar ondas
eletromagnéticas e tudo o que isso implica.
— "Foi feito um exame telescópico imediato do sistema e verificado que o sol se encontra no
estágio instável de pré-nova. A explosão pode ocorrer a qualquer minuto e, de fato, isso pode ter
acontecido enquanto as ondas de luz se encontravam a caminho de Kulath.
— "Ocorreu uma pequena demora enquanto os monitores de supervelocidade localizados em
Kulath II eram focalizados no sistema. Mostraram eles que a explosão não havia ocorrido ainda, mas que
aconteceria dentro de horas. Se Kulath estivesse situado a uma fração de anos-luz mais distante desse sol,
jamais teríamos conhecido a existência dessa civilização até que ela houvesse deixado de existir.
— "O Administrador de Kulath entrou imediatamente em contato com a Base do Setor e recebi
ordem para me dirigir imediatamente para o sistema. Nosso objetivo consiste em salvar os membros que
pudermos da raça condenada, se realmente sobraram alguns. Mas supomos que uma civilização que
possui rádio poderia ter-se protegido de qualquer elevação de temperatura que talvez já tenha ocorrido.
— "Esta nave e duas lanchas auxiliares explorarão cada uma delas uma seção do planeta. O
Comandante Torkalee capitaneará a Número Um e o Comandante Orostron a Número Dois. Terão eles
pouco menos de quatro horas para explorar este mundo. Ao fim desse tempo, terão que voltar à nave. Ela
partirá nessa ocasião, com ou sem eles. Darei aos dois comandantes instruções detalhadas imediatas na
ponte de comando.
— "Isto é tudo. Penetraremos dentro de duas horas na atmosfera.

No mundo outrora conhecido como Terra iam-se apagando uma a uma as fogueiras; nada havia
mais para queimar. As grandes florestas que haviam coberto o planeta, como um macaréu após o
desaparecimento das cidades, nada mais eram agora do que braseiros ardentes e a fumaça de suas piras
funerárias ainda toldava o céu. Mas a última hora não chegara, pois as rochas da superfície não haviam
ainda começado a fundir-se. Os continentes eram obscuramente visíveis através do nevoeiro, embora
seus contornos nada significassem para os vigias da nave que se aproximava. Os mapas que possuíam
estavam desatualizados por uma dezena de Idades Glaciais e mais de um dilúvio.
A S9000 passara por Júpiter e verificara logo que nenhuma vida poderia existir naqueles oceanos
semigasosos de hidrocarbonetos comprimidos, naquele momento fervendo furiosamente sob o anormal
calor do sol. Haviam ignorado Marte e os planetas exteriores. Alveron compreendera que mundos mais
próximos do sol do que a Terra já deviam estar derretendo. No fundo do coração achou que isso talvez
fosse o melhor a acontecer. A nave poderia transportar apenas umas poucas centenas de sobreviventes e
o problema da seleção lhe estivera martelando a mente.
Rugon, Chefe de Comunicações e Imediato, entrou na sala de comando. Na última hora estivera
tentando captar sinais de irradiações na Terra, mas em vão.
— Chegamos tarde demais — anunciou, sombrio. — Varri toda a faixa e o éter está morto, com
exceção de nossas próprias estações e de alguns programas velhos de duzentos anos de idade, irradiados
de Kulath. Coisa alguma neste sistema está irradiando mais.
Dirigiu-se para a gigantesca tela de visada com um gracioso movimento ondulante que nenhum
mero bípede jamais poderia ter a esperança de imitar. Alveron permaneceu calado; estivera à espera
dessa notícia.
Uma parede inteira da sala de controle era ocupada pela tela, um grande retângulo preto que dava
a impressão de uma profundidade quase infinita. Três dos esguios tentáculos de controle de Rugon,
inúteis para o trabalho pesado, mas incrivelmente rápidos em toda a espécie da manipulação, moveram-
se com um veloz movimento sobre a face dos seletores e a tela acendeu-se com mil pontos de luz. O
campo estelar passou em vertiginoso movimento enquanto Rugon ajustava os controles, focalizando o
projetor sobre o próprio sol.
Homem algum na Terra poderia ter reconhecido a forma monstruosa que encheu a tela. A luz do
sol não era mais branca: grandes nuvens azul-violetas cobriam-lhe metade da superfície e dela longas
línguas de chamas irrompiam pelo espaço. Em um ponto, uma elevação enorme subira e se projetara da
fotosfera, penetrando mesmo nos distantes véus da corona.
Era como se uma árvore de fogo houvesse lançado raízes na superfície do sol — uma árvore de
meio milhão de milhas de altura e cujos ramos eram rios de fogo, varrendo o espaço a centenas de milhas
por segundo.
— Acho — disse imediatamente Rugon — que você acredita absolutamente nos cálculos dos
astrônomos. Afinal de contas...
— Oh, estamos em perfeita segurança — respondeu confiante Alveron. — Falei com o
Observatório de Kulath e eles estiveram fazendo verificações complementares através de nossos
próprios instrumentos. Aquela incerteza de uma hora inclui uma margem privada de segurança que não
me querem dizer, dada a possibilidade de que eu me sinta tentado a permanecer aqui um pouco mais.
Lançou um olhar para o painel de instrumentos.
— O piloto deve ter-nos trazido agora à atmosfera. Focalize novamente o planeta, por favor. Ah,
lá está!
Ocorreu nesse momento um súbito tremor sob os seus pés e um rouco estridor de alarmes,
imediatamente silenciados. Sobre a face da tela, dois esguios projéteis mergulharam em direção à massa
em crescimento da Terra. Durante algumas milhas viajaram juntos e separaram-se em seguida,
desaparecendo abruptamente um deles quando penetrou na sombra do planeta.
Lentamente, a imensa nave-mãe, com sua massa milhares de vezes maior, desceu após eles e
mergulhou nas furiosas tempestades que já estavam destruindo as desertas cidades do Homem.
Era noite no hemisfério sobre o qual Orostron dirigia sua minúscula naveta. Da mesma forma que
no caso de Torkalee, sua missão consistia em fotografar, registrar e comunicar o progresso da missão à
nave-mãe. Sua pequena nave de reconhecimento não tinha espaço para recolher espécimes ou
passageiros. Se fosse estabelecido contato com espécimes desse mundo, a S9000 desceria
imediatamente. Não haveria tempo para parlamentação. Caso ocorresse algum problema, o salvamento
seria feito à força, vindo depois as explicações.
A Terra arruinada embaixo estava envolvida por uma luz bruxuleante e sobrenatural, pois uma
grande aurora cobria, furiosa, metade do mundo. A imagem na tela de visada, porém, era independente da
luz externa e mostrava claramente uma desolação de rochas mortas que, aparentemente, jamais haviam
conhecido qualquer forma de vida. Presumivelmente, essa terra deserta devia ter chegado ao fim em
algum período anterior. Orostron aumentou a velocidade até o mais alto valor que ousava numa atmosfera
tão densa.
A máquina mergulhou veloz na tempestade e, logo depois, o deserto de rocha começou a subir
para o céu. Uma grande cadeia de montanhas estendia-se à frente com os picos perdidos nas nuvens
carregadas de fumaça. Orostron apontou os monitores para o horizonte e, na tela, a linha de montanhas
pareceu de súbito muito perto e ameaçadora. Começou a subir rapidamente. Era difícil imaginar uma
terra menos promissora que pudesse abrigar uma civilização e se perguntou se não seria prudente mudar
de curso. Resolveu que não. Cinco minutos depois, teve sua recompensa.
Milhas abaixo viu uma montanha decapitada, com todo o cume cortado por imenso prodígio de
engenharia. Subindo da rocha e a cavaleiro do platô artificial, distinguiu uma intrincada estrutura de
longarinas de metal, sobre a qual repousavam massas de maquinaria. Deteve a nave e desceu em espiral
em direção à montanha. A leve mancha Doppler havia desaparecido nesse momento e era muito clara a
imagem na tela. O rendilhado servia de base a algumas dezenas de grandes espelhos de metal, apontando
para o céu a um ângulo de quarenta e cinco graus em relação ao plano horizontal. Eram ligeiramente
côncavos e todos possuíam complicados mecanismos no foco. Havia algo de impressionante e de muito
significativo na grande massa de instrumentos; todos os espelhos estavam orientados precisamente para o
mesmo ponto no céu — ou mais além.
Orostron voltou-se para os colegas.
— Acho que aquilo é alguma espécie de observatório — disse. — Vocês viram antes alguma
coisa parecida com isso?
Klarten, uma criatura trípede, multitentacular, originária de um conglomerado globular nas
fronteiras da Via-láctea, tinha uma teoria diferente.
— Aquilo é equipamento de comunicação. Aqueles refletores são usados para focalizar feixes
eletromagnéticos. Vi antes a mesma espécie de instalação em centenas de mundos. Talvez seja mesmo a
estação que Kulath captou — embora isso seja bastante improvável, pois os feixes seriam muito estreitos
se produzidos por espelhos daquele tamanho.
— Isso explicaria por que Rugon não conseguiu captar irradiações antes de aterrarmos —
acrescentou Hansur II, um dos seres geminados do planeta Thurgon.
Orostron discordou inteiramente.
— Se aquilo é uma estação de rádio, ela deve ter sido construída para comunicação
interplanetária. Observem a maneira como os espelhos estão apontados. Não acredito que uma raça que
tem rádio há apenas dois séculos possa ter cruzado o espaço. Meu povo precisou de seis mil anos para
fazer isso.
— Conseguimos isso em três — disse humilde Hansur II, falando alguns segundos antes do irmão
gêmeo. Antes que pudesse surgir a inevitável discussão, Klarten começou a agitar, excitado, seus
tentáculos. Enquanto os demais falavam, ele havia posto em funcionamento o monitor automático.
— Olhem aqui! Escutem!
Apertou um comutador e a pequena sala foi invadida por um som rouco e chiante, mudando
continuamente de timbre, mas ainda assim conservando certas características difíceis de definir.
Os quatro exploradores escutaram atentos durante um minuto. Orostron disse em seguida:
— Isso não pode ser, de forma alguma, qualquer espécie de fala! Nenhuma criatura poderia
produzir sons com tal rapidez!
Hansur I chegara à mesma conclusão:
— Isso é um programa de televisão. Concorda Klarten?
Klarten concordou.
— Sim, e cada um desses espelhos parece estar irradiando um programa diferente. Para onde se
dirigem? Se estou certo, um dos outros planetas do sistema deve situar-se ao longo desses feixes.
Podemos verificar isso logo.
Chamou a S9000 e comunicou a descoberta. Rugon e Alveron ficaram muito excitados e
procederam a uma rápida verificação dos registros astronômicos.
Com resultados surpreendentes — e decepcionantes. Nenhum dos demais nove planetas situava-
se perto da linha de transmissão. Ao que parecia, os grandes espelhos apontavam cegamente para o
espaço.
Ao que parecia, somente uma dedução poderia ser tirada e Klarten foi o primeiro a anunciá-la.
— Eles possuíam comunicação interplanetária — disse.
— Mas a estação deve estar deserta agora e os transmissores não se encontram mais sob controle.
Não foram desligados e estão simplesmente apontando para a zona onde foram deixados.
— Bem, descobriremos isso logo — respondeu Orostron.
— Vou pousar.
Desceu devagar para o nível dos grandes espelhos de metal, passou por eles e pousou na rochosa
montanha. A uns cem metros de distância, um edifício branco acachapava-se sob o labirinto de longarinas
de aço. Não possuía janelas, mas diversas portas se abriam na parede à frente.
Orostron observou os companheiros a vestirem os escafandros e sentiu vontade de segui-los. Mas
alguém precisava permanecer na máquina a fim de manter contato com a nave-mãe. Tais eram as
instruções de Alveron, e instruções muito prudentes. Nunca se sabia o que podia acontecer em um mundo
que estava sendo explorado pela primeira vez, especialmente em condições como aquelas.
Com toda cautela, os três exploradores desceram da câmara de compressão e ajustaram o campo
antigravitacional de seus trajes. Em seguida, cada um deles usando o sistema de locomoção peculiar à
sua raça, o pequeno grupo dirigiu-se para o prédio, com os gêmeos Hansur à frente, enquanto Klarten
fechava bem de perto a retaguarda. Seu controle de gravidade estava aparentemente lhe causando
problema, pois ele de súbito tombou, provocando risos dos colegas. Orostron viu-os parar durante um
momento ante a porta mais próxima. Em seguida, ela se abriu lentamente e eles desapareceram.
Esperou com a paciência que conseguiu reunir, enquanto a tempestade rugia em volta e a luz da
aurora tornava-se ainda mais brilhante nos céus. Nas ocasiões combinadas, chamava a nave-mãe e
recebia curtos avisos de recepção de Rugon. Gostaria de saber como estaria se saindo Torkalee, a meio
caminho em volta do planeta, mas não conseguiu entrar em contato com ele através das explosões e
trovões da interferência solar.
Não precisou muito para que Klarten e os Hansurs descobrissem que suas teorias estavam, na
maior parte, corretas. O prédio era uma estação de rádio e encontrava-se totalmente abandonado.
Consistia de um único e imenso salão, que dava para alguns pequenos gabinetes. Na câmara principal,
fileira após fileira de equipamentos elétricos perdiam-se na distância; luzes piscavam e tremeluziam em
centenas de painéis de controles. Um brilho mortiço era emitido pelos elementos de uma grande fileira de
válvulas.
Klarten, porém, não se deixou impressionar. O primeiro aparelho de rádio construído por sua
raça encontrava-se agora fossilizado em estratos de um milhão de anos de idade. O homem, que possuíra
máquinas elétricas por apenas alguns séculos, não podia competir com aqueles que as haviam conhecido
durante metade de toda a vida da Terra.
Apesar disso, o grupo conservou seus gravadores em funcionamento enquanto explorava o prédio.
Havia ainda um problema a ser resolvido. A estação deserta irradiava programas, mas de onde vinham
eles? O painel de controle fora rapidamente localizado. Destinado embora a controlar simultaneamente
dezenas de programas, a origem dos mesmos estava perdida no labirinto de cabos que mergulhava no
subsolo. Na S9000, Rugon tentava analisar as irradiações e talvez suas pesquisas lhes revelassem as suas
origens. Era impossível seguir cabos que poderiam cruzar continentes.
O grupo pouco tempo perdeu na estação abandonada. Nada havia que lhes pudesse fornecer
informação e procuravam antes vida do que dados científicos. Minutos depois, a pequena nave subiu
rapidamente do platô e dirigiu-se para as planícies que deviam se estender para além das montanhas.
Dispunham ainda de quase três horas.
No momento em que o emaranhado de enigmáticos espelhos desaparecia da vista, ocorreu um
súbito pensamento a Orostron. Seria imaginação sua, ou haviam eles se movido em um pequeno ângulo
enquanto estivera à espera, como se estivessem ainda compensando a rotação da Terra? Não podia ter
certeza e afastou da mente o assunto, como sem importância. Isso significaria apenas que o mecanismo
direcional continuava a funcionar, de certo modo.
Descobriram a cidade quinze minutos mais tarde. Era uma grande e esparramada metrópole,
construída em torno de um rio que desaparecera, deixando uma feia cicatriz que serpenteava entre
grandes edifícios e sob pontes que, naquele momento, pareciam extremamente absurdas.
Mesmo do ar a cidade parecia deserta. Mas sobravam apenas duas horas e meia e não havia
tempo para exploração ulterior. Orostron tomou uma decisão e aterrou próximo à maior estrutura que
conseguiu localizar. Parecia razoável supor que algumas criaturas pudessem ter procurado abrigo no
mais forte dos edifícios, onde ficariam em segurança até a hora fatal.
As cavernas mais profundas — o coração do próprio planeta — não dariam proteção quando
ocorresse o cataclismo final. Mesmo que essa raça houvesse alcançado os planetas exteriores, o seu
destino final seria retardado apenas pelas poucas horas de que as vorazes frentes de onda precisariam
para cruzar todo o Sistema Solar.
Orostron não podia ter sabido que a cidade estava deserta não por algumas semanas ou dias, mas
por mais de um século. Isto porque a cultura das cidades, que sobrevivera a tantas civilizações, fora
finalmente condenada quando o helicóptero trouxera o transporte universal. Dentro de poucas gerações,
as grandes massas da humanidade, sabendo que podiam alcançar todas as partes do globo em questão de
horas, voltaram aos campos e florestas pelos quais sempre haviam anelado. A nova civilização possuía
máquinas e recursos com as quais idades anteriores jamais haviam sonhado, mas era essencialmente rural
e não mais presa ao aço e às coelheiras de concreto que haviam dominado a paisagem séculos antes. As
cidades que ainda permaneciam eram centros especializados de pesquisas, administração ou diversão;
haviam deixado que as demais entrassem em decadência nos casos em que daria trabalho demais para
serem destruídas. A dezena ou mais das maiores de todas as cidades e as antigas cidades universitárias
mal haviam mudado e teriam durado ainda séculos. Mas havia passado a época de cidades fundadas
sobre o vapor, o aço e o transporte de superfície, juntamente com as indústrias que as haviam alimentado.
Assim, enquanto Orostron esperava na lancha de reconhecimento, seus colegas corriam por
infindáveis corredores vazios e saguões desertos, tirando inumeráveis fotografias mas nada aprendendo
sobre as criaturas que haviam usado esses edifícios. Havia bibliotecas, locais de reunião, salas de
conselho, milhares de escritórios — todos vazios e cobertos de pó. Se não houvessem visto a estação de
rádio encarapitada na montanha, os exploradores poderiam ter acreditado que esse mundo não conhecera
vida durante séculos.
Durante os longos minutos de espera, tentou Orostron imaginar para onde poderia ter ido essa
raça. Talvez houvesse praticado suicídio, sabendo que a fuga era impossível; talvez houvesse construído
grandes abrigos nas entranhas do planeta e mesmo naquele instante se escondessem, aos milhões,
acovardados, bem sob seus pés, esperando o fim. Começou a recear que nunca pudesse descobrir a
verdade.
Sentiu quase alívio quando, finalmente, teve que dar a ordem de regresso. Logo depois saberia se
o grupo de Torkalee havia tido mais sucesso. E estava ansioso para voltar à nave-mãe, pois à medida que
os minutos se escoavam o suspense se tornava mais e mais insuportável. Um pensamento não lhe deixara
a mente nem por um momento: E se os astrônomos de Kulath houvessem cometido um engano? Começaria
a sentir-se tranqüilo quando as paredes da S9000 se fechassem em volta dele. E ficaria ainda mais
quando se encontrassem bem no coração do espaço e esse agourento sol estivesse bem afastado da nave.
Logo que os colegas penetraram na câmara de descompressão, Orostron lançou a minúscula
máquina nos céus e ajustou os controles para a volta à S9000. Em seguida, voltou-se para os amigos.
— Bem, o que foi que vocês descobriram? — perguntou. Klarten tirou um grande rolo de lona e
estendeu-o sobre o chão.
— Eles eram assim — disse em voz tranqüila. — Bípedes, com apenas dois braços. Parecem ter-
se saído bem, a despeito dessa desvantagem. Somente dois olhos também, a menos que houvesse outros
nas costas. Tivemos sorte de encontrar isto. Foi mais ou menos a única coisa que deixaram.
O antigo quadro a óleo fitava com seus olhos parados as criaturas que o examinavam com tanto
interesse. Por ironia da sorte, a inteira falta de valor do mesmo o havia salvo do esquecimento. Quando a
cidade fora evacuada, ninguém se dera ao trabalho de levar o retrato do Vereador John Richards, 1909-
1974. Durante século e meio ele estivera acumulando pó, enquanto muito longe das velhas cidades a nova
civilização alçava-se a alturas que culturas anteriores jamais haviam conhecido.
— Isso foi praticamente tudo o que encontramos — disse Klarten. — A cidade deve estar deserta
há anos. Receio que nossa expedição tenha sido um fracasso. Se há quaisquer seres vivos neste mundo,
eles se esconderam bem demais para que possamos achá-los.
O comandante foi obrigado a concordar.
— Era uma missão quase impossível — disse. — Se dispuséssemos de semanas, em vez de
horas, poderíamos ter obtido êxito. Pelo que sabemos, eles podem mesmo ter construído abrigos sob o
mar. Aparentemente, ninguém pensou nisso.
Lançou um rápido olhar aos indicadores e corrigiu o curso.
— Chegaremos lá em cinco minutos. Alveron, ao que parece, está-se movendo com grande
rapidez. Gostaria de saber se Torkalee encontrou alguma coisa.
A S9000 encontrava-se parada a algumas milhas sobre a costa de um continente em chamas
quando Orostron dirigiu-se para a nave. O limite de perigo estendia-se a trinta minutos e não havia tempo
a perder. Com toda a habilidade, manobrou a pequena nave até dentro de seu tubo de lançamento e o
grupo saiu da câmara de descompressão.
Eram aguardados por uma pequena multidão. Isso era de esperar, mas Orostron notou logo que
algo mais do que a simples curiosidade havia trazido ali seus amigos. Antes mesmo que uma única
palavra fosse pronunciada, teve certeza de que havia algo errado.
— Torkalee não voltou. Perdeu seu grupo e vamos em socorro dele. Venha imediatamente à ponte
de comando.

Desde o início, Torkalee tivera mais sorte do que Orostron. Seguira a zona de penumbra,
guardando distância do brilho intolerável do sol, até que chegou às praias de um mar mediterrâneo. Era
um mar muito novo, uma das últimas obras do Homem, pois cobria terras que haviam sido desertas menos
de um século antes. Dentro de horas seria outra vez deserto, pois a água fervia e nuvens de vapor subiam
aos céus. Mas não podiam velar o encanto da grande cidade branca, a cavaleiro daquele mar sem ondas.
Máquinas voadoras estavam ainda estacionadas em boa ordem em tomo da praça onde pousou.
Decepcionantemente primitivas, embora com belo acabamento, eram sustentadas por pás giratórias. Em
parte alguma havia sinal de vida, mas o local dava a impressão de que seus habitantes não se
encontravam muito longe. Luzes brilhavam ainda em algumas janelas.
Os três companheiros de Torkalee deixaram sem demora a máquina. O chefe do grupo, por
antigüidade de posto e raça era T'sinadree que, como o próprio Alveron, nascera em um dos antigos
planetas dos Sóis Centrais. Em seguida, vinha Alarkane, filho de uma raça que era das mais jovens do
Universo e disso derivava um impertinente orgulho. Por último, havia um dos estranhos seres do sistema
de Palador. Não possuía nome, como todos de sua espécie, pois não tinha identidade própria. Era apenas
uma célula móvel mas ainda dependente da consciência de sua raça. Embora ele e seus companheiros
houvessem, muito tempo antes, se dispersado pela galáxia na exploração de incontáveis mundos, algum
elo desconhecido ainda os aglutinava de forma tão inexorável como as células vivas de um corpo
humano.
Quando uma criatura de Palador falava, usava sempre o pronome "Nós". Não havia, nem poderia
haver jamais, qualquer primeira pessoa singular na língua de Palador.
As grandes portas do esplêndido edifício deixaram atônitos os exploradores, embora qualquer
criança humana lhes houvesse conhecido o segredo. T'sinadree não perdeu tempo com elas e chamou
Torkalee no transmissor pessoal. Apressados, os três se afastaram para um lado enquanto o comandante
manobrava a máquina para uma posição mais favorável. Ocorreu uma curta e intolerável explosão de
chamas; o maciço trabalho de ferro luziu uma vez na extremidade do espectro visível e desapareceu. As
pedras brilhavam ainda quando o ansioso grupo correu para dentro do edifício, abrindo em leque os
feixes de seus projetos luminosos.
Não havia necessidade de lanternas. Diante deles estendia-se um grande saguão, iluminado por
linhas de tubos dispostos no teto. De cada lado, o saguão abria para longos corredores, enquanto uma
branca, reta e maciça escada subia majestosamente para os andares superiores.
Durante um momento Tsinadree hesitou. Em seguida, desde que um caminho era tão bom como
outro, conduziu os companheiros pelo primeiro corredor.
O sentimento de que havia vida próxima tornou-se agudo nesse momento. A qualquer momento, ao
que parecia, poderiam ver-se à frente de criaturas desse mundo. Se elas demonstrassem hostilidade — e
pouco se podia censurá-las se o fizessem — seriam imediatamente usados os paralisadores.
Em meio a grande tensão, o grupo penetrou na primeira sala e apenas relaxou quando notou que
ela nada mais continha senão máquinas — fileiras após fileiras delas, nesse momento imóveis e
silenciosas. Pelo enorme salão havia milhares de arquivos de metal, formando uma parede contínua até
onde a vista podia alcançar. Isso era tudo. Não havia mobília, nada mais que arquivos e as misteriosas
máquinas.
Alarkane, sempre o mais rápido dos três, já examinava os arquivos. Todos eles continham muitos
milhares de peças de um material fino e resistente, perfurado por inumeráveis, orifícios e entalhes. O
paladoriano apanhou um dos cartões enquanto Alarkane registrava a cena, juntamente com alguns close-
ups das máquinas. Deixaram em seguida o aposento. O grande salão, que fora uma das maravilhas do
mundo, nada significava para eles. Nenhum olho vivo jamais veria outra vez aquela maravilhosa bateria
de quase humanos analisadores Hollerith e os cinco bilhões de cartões perfurados, contendo tudo que se
podia registrar sobre cada homem, mulher e criança do planeta.
Era claro que o edifício fora usado bem recentemente. Tomados de crescente excitação, os
exploradores dirigiram-se apressados para o salão seguinte. Descobriram aí uma imensa biblioteca, onde
milhões de livros se estendiam por quilômetros de estantes. Aí, embora os exploradores não pudessem
saber disso, jaziam os registros de todas as leis que o Homem jamais havia promulgado e todos os
discursos jamais pronunciados em suas assembléias.
Tsinadree pensava que plano de ação seguir quando Alarkane lhe atraiu a atenção para uma das
prateleiras, a uma centena de metros de distância. Encontrava-se semivazia, ao contrário de todas as
demais. Em torno dela, livros empilhavam-se no chão como se derrubados por alguém com imensa
pressa. Os sinais eram inconfundíveis. Não muito tempo antes, outras criaturas haviam passado por ali.
Leves marcas de rodas eram claramente visíveis no chão para os agudos sentidos de Alarkane, embora os
demais nada pudessem ver. Alarkane podia mesmo distinguir pegadas, mas, nada sabendo das criaturas
que as haviam deixado, não podia dizer para onde se dirigiam.
A sensação de proximidade tornou-se ainda mais forte nesse momento, embora fosse uma
proximidade de tempo, não de espaço. Alarkane deu voz aos pensamentos do grupo:
— Esses livros devem ter sido valiosos e alguém veio até aqui para recuperá-los — quase, creio
eu, como se tivesse voltado a pensar. Isso significa que deve haver um local de refúgio, possivelmente
não muito distante. Talvez possamos descobrir outras pistas que nos levem a ele.
T'sinadree concordou, mas o paladoriano não se mostrou entusiasmado.
— Talvez seja assim — disse —, mas o refúgio pode localizar-se em qualquer local do planeta, e
nós temos apenas duas horas de sobra. Não percamos mais tempo se temos esperança de salvar essa
gente.
O grupo saiu apressado mais uma vez, parando apenas para reunir alguns livros que talvez fossem
úteis aos cientistas da Base — embora fosse duvidoso que jamais pudessem ser traduzidos. Logo depois,
descobriram que o grande edifício era composto principalmente de pequenas salas, todas elas mostrando
sinais de ocupação recente. A maioria encontrava-se limpa e arrumada, embora uma ou duas
demonstrassem justamente o contrário. Os exploradores ficaram especialmente confusos com uma sala —
evidentemente um escritório de algum tipo — que parecia haver sido inteiramente saqueada. Papel cobria
o chão, a mobília fora destruída, pelas janelas quebradas entrava a fumaça de fogueiras que ardiam do
lado de fora. Tsinadree estava um pouco alarmado.
— Certamente nenhum animal perigoso poderia ter entrado em um local como este! — exclamou,
agarrando nervoso o cabo do paralisador.
Alarkane não respondeu. Começou a emitir aquele irritante som que sua raça chama de "riso".
Passaram-se vários minutos antes que ele pudesse explicar o que o havia divertido tanto.
— Não acredito que animal algum tenha feito isto — disse. — Na verdade, a explicação é muito
simples. Suponhamos que você tenha estado trabalhando toda a vida nesta sala, lidando com inumeráveis
papéis, ano após ano. Subitamente, é informado de que nunca mais a verá, que seu trabalho está
terminado, e que pode deixá-lo para sempre. Mais do que isso — que não haverá mais ninguém depois de
você. Está tudo acabado. De que maneira iria você embora. Tsinadree?
O interlocutor pensou durante um momento.
— Bem, acho que simplesmente deixaria as coisas bem arrumadas e iria embora. Isso é o que
parece haver acontecido em todos os outros cômodos.
Alarkane riu outra vez.
— Tenho absoluta certeza de que você faria isso mesmo. Mas alguns indivíduos têm uma
psicologia diferente. Acho que teria gostado da criatura que usou este cômodo.
Não se explicou mais e os dois colegas procuraram deslindar suas palavras durante bastante
tempo antes de desistirem.
Foi uma espécie de choque quando Torkalee deu a ordem de regresso. O grupo havia levantado
grande quantidade de informações, mas nenhuma pista que pudesse levá-los aos desaparecidos habitantes
daquele mundo. O problema continuava tão renitente como sempre e parecia, naquele momento, que
nunca seria solucionado. Havia apenas quarenta minutos de tolerância antes que a S9000 partisse.
Encontravam-se a meio caminho da lancha espacial quando notaram uma passagem semicircular
que conduzia para as profundidades do edifício. Era de um estilo arquitetônico inteiramente diferente do
usado por toda parte e o chão em ligeiro declive constituía uma atração irresistível para criaturas dotadas
de muitas pernas e já cansadas de escadas de mármore, que apenas bípedes podiam ter construído em tal
profusão. Tsinadree fora o que mais sofrera, pois normalmente usava doze pernas e podia usar vinte
quando apressado, embora ninguém o houvesse jamais visto realizar tal façanha.
O grupo parou interdito e olhou para a passagem embaixo com um único pensamento. Um túnel,
conduzindo para as profundidades da Terra! Na sua extremidade, poderiam ainda encontrar gente desse
mundo e salvar alguns deles do destino irrecorrível. Pois havia ainda tempo de chamar a nave-mãe se
surgisse necessidade.
T'sinadree comunicou-se com seu comandante. Torkalee trouxe a pequena máquina imediatamente
para cima do local. Talvez não houvesse tempo para que o grupo refizesse seus passos através do
labirinto de passagens, tão meticulosamente gravados na mente paladoriana que não havia possibilidade
de se perderem. Se fosse necessária rapidez, Torkalee poderia abrir caminho através de uma dúzia de
andares acima do grupo. De qualquer modo, não demorariam muito a descobrir o que havia no fim da
passagem.
A operação durou apenas trinta segundos. O túnel terminou de maneira abrupta em uma sala
cilíndrica muito curiosa, com assentos magnificamente acolchoados ao longo das paredes. Não havia
saída, salvo aquela pela qual haviam entrado e passaram-se vários segundos antes que a finalidade da
câmara ocorresse subitamente a Alarkane. Era uma pena, pensou, que não tivessem tempo de usar aquilo.
O pensamento foi de chofre interrompido por um grito de T'sinadree. Alarkane virou e viu que a porta se
fechara silenciosamente por trás deles.
Mesmo naquele primeiro momento de pânico, Alarkane descobriu que pensava com certa
admiração: quem quer que fossem, eles sabiam construir máquinas automáticas.
Coube ao paladoriano a primeira palavra. Com um dos tentáculos, indicou os assentos.
— Nós pensamos que seria melhor nos sentarmos — disse. A mente múltipla do paladoriano já
analisara a situação e sabia o que estava a caminho.
Não tiveram de esperar muito, antes que um zumbido baixo surgisse em uma grelha no alto e, pela
última vez na história, uma voz humana, embora destituída de vida, foi ouvida na Terra. As palavras não
tinham sentido, embora os encurralados exploradores pudessem imaginar-lhe, com grande clareza, a
mensagem:
— Escolham suas estações, por favor, e sentem-se.
Simultaneamente, iluminou-se um painel na parede da extremidade do compartimento. Sobre ele
havia um mapa simples, consistindo de uma série de dezenas de círculos ligados por uma linha. Cada
círculo possuía uma legenda, dois botões de cores diferentes.
Alarkane olhou interrogativamente para o chefe.
— Não toque neles — advertiu Tsinadree. — Se não tocarmos nos controles, as portas talvez se
abram novamente.
Enganou-se. Os engenheiros que haviam projetado o metrô automático tinham presumido que
todos que nele entrassem queriam, naturalmente, ir a alguma parte. Se não escolhessem uma estação
intermediária, o seu destino somente poderia ser o fim da linha.
Ocorreu outra pausa enquanto relês e tiratrons lhes aguardavam as ordens. Naqueles trinta
segundos, se o grupo houvesse sabido o que fazer, poderia ter aberto a porta e deixado a linha
subterrânea. Mas eles não sabiam e máquinas sincronizadas com a psicologia humana agiram por eles.
Não foi grande o aumento de aceleração; os grossos acolchoados eram um luxo, não uma
necessidade. Uma vibração, quase imperceptível, apenas indicou a velocidade com que viajavam pelas
entranhas da terra numa jornada cuja duração sequer podiam imaginar. E em trinta minutos a S9000
estaria deixando o Sistema Solar.
Caiu um longo silêncio na máquina acelerada. Tsinadree e Alarkane pensavam freneticamente. O
mesmo fazia o paladoriano, embora de modo diferente. O conceito de morte pessoal não tinha sentido
para ele, pois a destruição de uma única unidade não significava mais para a mente coletiva do que a
perda de uma raspa de unha para um homem. Mas podia, embora com grande dificuldade, compreender a
situação angustiosa de inteligências individuais como as de Alarkane e Tsinadree e estava ansioso para
ajudá-los, se pudesse.
Alarkane conseguiu entrar em contato com Torkalee com seu transmissor pessoal, embora o sinal
fosse muito fraco e parecesse morrer rapidamente. Em curtas palavras, explicou a situação e, quase
imediatamente, os sinais tornaram-se mais claros. Torkalee seguia o caminho da máquina, voando acima
do solo sob o qual ela corria a grande velocidade para um destino desconhecido. Foi essa a primeira
indicação do fato de que viajavam a quase mil milhas por hora. Logo depois, Torkalee deu-lhes a notícia
ainda mais desalentadora de que se aproximavam rapidamente do mar. Enquanto se encontravam sob a
terra havia esperança, embora tênue, de que pudessem deter a máquina e escapar. Mas, sob o oceano —
nem todos os cérebros e a maquinaria a bordo da grande nave-mãe poderiam salvá-los. Ninguém poderia
ter imaginado uma armadilha mais perfeita.
T'sinadree estivera examinando com grande atenção o mapa na parede. O seu significado era
óbvio e ao longo da linha que ligava os círculos arrastava-se um minúsculo ponto de luz. A máquina já se
encontrava a meio caminho da primeira das estações assinaladas.
— Vou apertar um desses botões — disse ele finalmente. — Não fará mal algum e poderemos
descobrir alguma coisa.
— Concordo. Qual é o que você vai tentar primeiro?
— Há apenas dois deles e não importará se tentarmos primeiro o errado. Acho que um deles se
destina a dar partida à máquina e o outro a pará-la.
Alarkane não se mostrou muito esperançoso.
— A máquina partiu sem que botão algum fosse apertado. — disse. — Acho que ela é
inteiramente automática e não podemos controlá-la absolutamente daqui.
Tsinadree não concordou.
— Esses botões estão claramente associados às estações e não há sentido em instalá-los, a menos
que se possa usá-los para parar a máquina. A única questão é, qual é o botão certo?
Sua análise foi inteiramente correta. A máquina poderia parar em qualquer das estações
intermediárias. Eles viajavam havia apenas dez minutos e se pudessem partir naquele instante, nenhum
mal teria sido feito. Foi apenas azar que a primeira escolha de T'sinadree tenha sido apertar o botão
errado.
A pequena luz no mapa rastejou lentamente sobre o círculo iluminado sem diminuir a velocidade.
No mesmo momento, Torkalee chamou-os da nave na superfície:
— Vocês acabam de atravessar uma cidade e estão dirigindo-se para o mar. Não poderá haver
outra parada por quase mil milhas.

Alveron renunciara a toda esperança de encontrar vida nesse mundo. A S9000 vagueara por
metade do planeta, jamais parando em um único lugar, descendo repetidamente num esforço para atrair
atenção. Não houvera resposta. A Terra parecia inteiramente morta. Se algum de seus habitantes
estivesse ainda vivo, pensou, devia ter-se escondido em profundidade onde nenhuma ajuda lhe podia
chegar, embora seu destino final fosse, apesar de tudo, inevitável.
Rugon trouxe-lhe a notícia do desastre. A grande nave interrompeu a infrutífera busca e voou de
volta, através da tempestade, para o oceano sobre o qual a pequena lancha de Torkalee ainda seguia a
trajetória da máquina subterrânea.
O cenário era realmente apavorante. Desde os dias em que a terra nascera jamais houvera mares
como aquele. Montanhas de água corriam à frente da tempestade que, nesse momento, alcançara
velocidades de centenas de milhas por hora. Mesmo a essa distância do continente, o ar estava cheio de
detritos turbilhonantes — árvores, pedaços de casa, chapas de metal, tudo aquilo que não estava preso ao
solo. Nenhuma máquina aérea poderia ter sobrevivido por um momento sequer naquela tormenta. De vez
em quando, mesmo o rugido do vento era abafado quando montanhas de água colidiam de frente, em um
estrondo que parecia sacudir os céus.
Por sorte, não houvera ainda terremotos violentos. Muito abaixo do leito do oceano, a
maravilhosa peça de engenharia que fora o metrô privativo, a vácuo, do Presidente do Mundo ainda
funcionava perfeitamente, sem ser afetada pelo tumulto e a destruição que devastavam a superfície.
Continuaria a funcionar até o último momento da existência da terra, o qual, se os astrônomos tinham
razão, não se encontrava a muito mais de quinze minutos de distância; quanto era exatamente esse pouco
mais, Alveron teria dado tudo para saber. Passaria quase uma hora antes que o grupo encurralado
pudesse chegar à terra e ainda assim com uma mínima esperança de socorro.
As instruções de Alveron haviam sido precisas, embora mesmo sem elas ele jamais tivesse
sequer pensado em assumir qualquer risco com a grande máquina que lhe fora confiada. Fosse ele
humano, a decisão de abandonar os membros encurralados de sua tripulação teria sido extremamente
difícil. Mas ele era originário de uma raça muito mais sensível do que a humana, uma raça que de tal
modo amava as coisas do espírito que, muito tempo antes, e com infinita relutância, assumira o controle
do Universo desde que só assim poderia ter certeza de que a justiça seria feita. Alveron precisaria de
todos os seus dons sobre-humanos para sobreviver às próximas horas.
Entrementes, uma milha abaixo do leito do oceano, Alarkane e Tsinadree encontravam-se muito
ocupados com seus comunicadores privados. Quinze minutos não é muito tempo para arrematar os
assuntos de uma vida inteira. Na verdade, mal dá para ditar mais do que umas poucas mensagens de
despedidas que, em tais momentos, são tão mais importantes do que todos os assuntos.
Durante todo o tempo o paladoriano permanecera em silêncio, imóvel, sem pronunciar palavra.
Os dois companheiros, resignados com o destino e absorvidos em seus assuntos pessoais, ignoraram-no.
Por isso ficaram muito espantados quando, de súbito, ele começou a falar em sua voz peculiarmente sem
expressão.
— Nós percebemos que vocês estão tomando certas providências a respeito da esperada
destruição. Isso será provavelmente desnecessário. O Capitão Alveron espera salvar-nos se pudermos
parar esta máquina quando chegarmos novamente à terra.
Durante um momento, Tsinadree e Alarkane ficaram surpresos demais para dizer alguma coisa.
Em seguida, o último falou em voz entrecortada:
— Como é que você sabe?
Era uma pergunta tola, pois lembrou-se imediatamente de que havia vários paladorianos — se era
acaso possível usar essa frase — a bordo da S9000 e, conseqüentemente, seu companheiro sabia de tudo
o que ocorria na nave-mãe. Assim, não esperou por uma resposta e continuou:
— Alveron não pode fazer isso! Ele não ousará assumir tal risco!
— Não haverá risco — respondeu o paladoriano. — Nós lhe dissemos o que fazer. É realmente
muito simples.
Alarkane e Tsinadree olharam para o companheiro com algo parecido com reverência, e
compreenderam nesse instante o que devia ter acontecido. Em momentos de crise, as unidades isoladas
que compreendem a mente paladoriana podem ligar-se umas às outras em uma organização não menos
fechada do que a de qualquer cérebro físico. Nesses momentos, formam um intelecto mais poderoso do
que qualquer outro do Universo. Todos os problemas comuns podem ser solucionados por umas poucas
ou milhares de unidades. Em casos muito raros, milhões são necessárias e em duas históricas ocasiões os
bilhões de células de toda a consciência paladoriana haviam sido encadeados para enfrentar emergências
que ameaçavam a própria raça. A mente de Palador constituía um dos maiores recursos mentais do
Universo; a sua plena força só em raros casos era necessária, mas o conhecimento de que ela existia
constituía algo supremamente confortador para as demais raças. Alarkane perguntou-se a si mesmo
quantas células se haviam coordenado para enfrentar aquela emergência especial. Perguntou-se também
por que um acidente tão trivial lhes havia despertado a atenção.
A essa questão jamais saberia a resposta, embora pudesse ter desconfiado se houvesse sabido
que a mente inapreensível e estranha dos paladorianos possuía um traço quase humano de vaidade. Muito
tempo antes, Alarkane escrevera um livro tentando provar que, um dia, todas as raças inteligentes
acabariam sacrificando a consciência individual e que algum dia somente mentes coletivas
permaneceriam no Universo. Palador, escrevera, era o primeiro desses intelectos finais e a vasta e
dispersa mente não ficara com isso em absoluto aborrecida.
Não tiveram tempo para mais perguntas porque o próprio Alveron começou a falar através de
seus comunicadores:
— Alveron chamando! Vamos ficar neste planeta até que as ondas de detonação o alcancem, para
que possamos salvá-los. Vamos dirigir-nos para a cidade na costa que vocês alcançarão em quarenta
minutos à atual velocidade. Se não puderem parar nessa ocasião, vamos destruir o túnel atrás e à frente
de vocês para cortar a energia. Em seguida, abriremos um poço para tirá-los daí — o engenheiro-chefe
diz que pode fazer isso em cinco minutos com os projetores principais. Assim, vocês devem estar em
segurança dentro de uma hora, a menos que o sol venha a explodir antes.
— E se isso acontecer, vocês também serão destruídos! O senhor não deve assumir tal risco!
— Não se preocupem com isso. Estamos em perfeita segurança. Quando o sol explodir, a onda da
explosão precisará de vários minutos para alcançar seu máximo. Mas, à parte isso, estamos no lado
escuro do planeta, por trás de um anteparo de oito mil milhas de rochas. Quando chegar o primeiro aviso
da explosão, aceleraremos para fora do Sistema Solar, mantendo-nos à sombra do planeta. Utilizando
nossa força máxima, atingiremos a velocidade da luz antes de deixar o cone de sombra e, nessa ocasião,
o sol não nos poderá atingir.
Tsinadree receava ainda alimentar esperanças. Outra objeção ocorreu-lhe imediatamente:
— Sim, mas como o senhor receberá o aviso, aqui do lado escuro do planeta?
— Muito facilmente — replicou Alveron. — Este mundo possui uma lua, que é agora visível
deste hemisfério. Temos telescópios apontados para ela. Se ela acusar qualquer súbito aumento de brilho,
nossa principal propulsão entrará em ação automaticamente e seremos lançados para longe do Sistema.
A lógica era impecável. Alveron, cauteloso como sempre, não estava correndo riscos. Passariam
muitos minutos antes que o escudo de oito mil milhas de rochas e metal pudesse ser destruído pelos fogos
da explosão do sol. Nesse intervalo, a S9000 poderia alcançar a segurança da velocidade da luz.
Alarkane premiu o segundo botão quando se encontravam ainda a várias milhas da costa. Não
esperava que coisa alguma acontecesse nesse momento, supondo que a máquina não podia parar entre
estações. Pareceu bom demais para ser verdade quando, minutos depois, a leve vibração da máquina
morreu e ela parou.
Silenciosamente, as portas se abriram, antes mesmo que se abrissem inteiramente, os três já
estavam fora do compartimento. Não iam correr mais riscos. Ante eles, um longo túnel estendia-se para
longe, elevando-se suavemente e desaparecendo da vista. Iam seguir por ele quando, inesperadamente, a
voz de Alveron chamou pelos comunicadores:
— Fiquem onde estão! Vamos abrir caminho!
O solo tremeu uma vez e muito à frente ouviu-se o estrondo de rochas que desmoronavam. Mais
uma vez, a terra tremeu — e cem metros de passagem adiante desapareceram abruptamente. Um tremendo
poço vertical fora aberto com toda precisão através da pedra.
O grupo correu novamente para a frente até chegar ao fim do corredor, onde permaneceu tenso à
espera. O poço onde terminava o corredor media mil pés de largura e mergulhava na terra tanto quanto as
lanternas podiam alcançar. Acima, nuvens de tempestade fugiam sob uma lua que homem algum teria
reconhecido, tão ofuscante era o brilho de seu disco. E, o mais glorioso de todos os espetáculos, a S9000
pairava no alto enquanto os grandes projetores que haviam aberto aquele enorme buraco ainda brilhavam
em vermelho-vivo.
Uma sombra escura destacou-se da nave-mãe e desceu rapidamente até o chão. Torkalee voltava
para buscar os amigos. Pouco tempo depois, Alveron recebia-os na sala de comando. Indicou com um
gesto a grande tela de visada e disse calmamente:
— Estão vendo? Escapamos por um fio.
O continente abaixo mergulhava lentamente sob ondas de milhas de altura que lhe atacavam as
costas. A última coisa que jamais alguém veria da Terra era uma grande planície, banhada pela luz
prateada de uma lua anormalmente brilhante. Através de sua superfície, as águas se derramavam em uma
faiscante inundação em direção a uma distante cadeia de montanhas. O mar obtivera sua vitória final, mas
seu triunfo seria de curta duração, pois dentro de pouco não haveria mar nem terra. No exato momento em
que o grupo silencioso na sala de comando observava a destruição embaixo, a catástrofe infinitamente
maior de que aquilo era apenas o prelúdio desceu veloz sobre eles.
Era como se a aurora houvesse rompido subitamente sobre aquela paisagem banhada pela lua.
Mas não era a aurora: era a própria lua, brilhando com o fulgor de um segundo sol. Durante talvez trinta
segundos aquela luz apavorante, antinatural, calcinou feroz a terra condenada. Nesse momento
relampejaram de súbito as luzes indicadoras do painel de controle. A propulsão principal estava em
ação. Durante um segundo, Alveron olhou para os indicadores e conferiu a informação. Quando olhou
novamente para a tela, a Terra havia desaparecido.
Os magníficos geradores, de que se tinha exigido desesperadamente o máximo, se extinguiram
docemente quando a S9000 passou pela órbita de Perséfone. Não importava, o sol jamais poderia causar-
lhes danos naquele momento e embora a nave estivesse mergulhando com os motores parados na solitária
noite do espaço interestelar, seria apenas uma questão de dias antes da chegada do socorro.
Que ironia nesse fato! Um dia antes, haviam sido os salvadores, indo em ajuda de uma raça que
não mais existia. Não era a primeira vez que Alveron pensava consigo mesmo no mundo que acabara de
perecer. Tentou, em vão, imaginar o que fora ele em sua glória, as ruas de suas cidades borbulhando de
vida. Primitivo embora como houvesse sido o seu povo, poderiam ter oferecido muito ao Universo. Se
apenas pudessem ter feito contato! A pena era inútil. Muito antes de que sua nave chegasse, o povo desse
mundo devia ter-se sepultado no coração de ferro do planeta. E agora ele e sua civilização
permaneceriam como um mistério até o fim dos tempos.
Ficou satisfeito quando seus pensamentos foram interrompidos pela entrada de Rugon. O chefe de
comunicações estivera muito ocupado desde a partida, tentando analisar os programas irradiados pelo
transmissor descoberto por Orostron. O problema não era difícil, mas exigira a construção de
equipamento especial, e isso custara tempo.
— Bem, o que foi que você descobriu? — perguntou.
— Um bocado — respondeu o amigo. — Há algo misterioso aqui que eu não entendo. Não foi
preciso muito tempo para descobrir como as transmissões de imagem eram feitas e conseguimos
convertê-las para adaptá-las ao nosso equipamento. Parece que havia câmaras por todo o planeta,
filmando pontos de interesse. Algumas delas localizavam-se aparentemente em cidades, no alto de
grandes edifícios. As câmaras giravam continuamente, fazendo tomadas panorâmicas. Nos programas que
gravamos há umas vinte cenas diferentes.

— Além disso — continuou —, há certo número de transmissões de tipo diferente, sem som nem
imagem. Parecem puramente científicas — possivelmente leituras de instrumentos ou algo parecido.
Todos esses programas eram transmitidos simultaneamente, em diferentes faixas de freqüência.
— Bem — prosseguiu —, deve ter havido um motivo para isso. Orostron pensa ainda que a
estação simplesmente não foi desligada quando abandonada. Mas estes não são o tipo de programas que
tal estação normalmente irradiaria. Foi certamente usado para transmissão interplanetária. .. e Klarten
teve toda razão no particular. Assim, esse povo deve ter cruzado o espaço, desde que nenhum dos outros
planetas possuía qualquer tipo de vida por ocasião do último levantamento. Concorda?
Alveron seguia-lhe atento as palavras.
— Sim, isso parece bastante razoável. Mas é certo também que o feixe não apontava para nenhum
dos demais planetas. Eu mesmo verifiquei isso.
— Eu sei — concordou Rugon. — O que eu quero descobrir é por que uma gigantesca estação
interplanetária estava transmitindo, sem parar, imagens de um mundo prestes a ser destruído, imagens que
seriam de imenso interesse para cientistas e astrônomos. Alguém teve o trabalho de dispor todas aquelas
câmaras panorâmicas. Estou convencido de que esses feixes se dirigiam para algum ponto.
Alveron mostrou-se surpreso.
— Você acha que pode haver um planeta exterior que não foi ainda descoberto? — perguntou. —
Se assim, sua teoria é certamente errônea. O feixe não estava sequer apontando para o plano do Sistema
Solar. E mesmo que estivesse ... simplesmente olhe para isto.
Ligou a tela de visada e ajustou os controles. Na cortina veludosa do espaço pairava uma esfera
azul-branca, aparentemente composta de numerosas camadas concêntricas de gás incandescente. Mesmo
que a distância imensa tornasse todos os movimentos invisíveis, ela claramente se expandia a uma taxa
imensa. Em seu centro fulgurava um cegante ponto de luz — a estrela anã branca em que o sol se
transformara.
— Você provavelmente não compreende o grande tamanho daquela esfera — disse Alveron. —
Olhe para isto..
Aumentou a ampliação até que somente a parte central da nova tornou-se visível. Bem perto do
seu âmago havia, duas minúsculas condensações, uma de cada lado do núcleo.
— Aqueles são os dois planetas gigantes do sistema.. Conseguiram ainda conservar a existência...
de certo modo. E eles se encontravam a várias centenas de milhões de milhas do sol. A nova continua a
expandir-se... e já tem provavelmente duas vezes o tamanho do Sistema Solar.
Rugon permaneceu silencioso durante um momento.
— Talvez você tenha razão — reconheceu com certa má vontade. — Você liquidou minha
primeira teoria. Mas ainda, não me convenceu.
Fez vários e rápidos círculos em volta da sala antes de falar novamente. Alveron esperou com
toda paciência. Conhecia os poderes quase intuitivos do amigo, que amiúde podiam solucionar
problemas quando a simples lógica parecia, insuficiente.
Com grande lentidão, Rugon voltou a falar:
— O que é que você acha disto? — disse. — Suponhamos que tenhamos subestimado demais
aquele povo. Orostron fez isso uma vez... Achou que ele nunca poderia ter cruzado o espaço, desde que
somente há alguns séculos conhecia o rádio. Hansur II contou-me isso. Bem, Orostron enganou-se
redondamente. Talvez estejamos todos errados. Examinei o material que Klarten trouxe do transmissor.
Ele não ficou impressionado com o que encontrou, mas constitui uma realização maravilhosa para um
período tão curto. Havia dispositivos na estação que pertenciam a civilizações milhares de anos mais
antigas. Alveron, podemos seguir aquele feixe para descobrir até onde ele conduz?
Durante um minuto inteiro Alveron permaneceu calado. Estivera mais do que esperando a
pergunta que não era fácil de responder. Os geradores principais haviam parado por completo. Não
adiantava tentar repará-los. Mas havia ainda energia disponível e enquanto há energia qualquer coisa
pode ser feita, no devido tempo. Seria necessário um bocado de improvisação e algumas manobras
difíceis, pois a nave, conservava ainda sua enorme velocidade inicial. Sim, podia ser feito e a atividade
evitaria que a tripulação ficasse ainda mais deprimida, agora que a reação ocasionada pelo fracasso da
missão começava a ser sentida. A notícia de que a nave-oficina mais próxima somente poderia alcançá-
los em três semanas provocara também uma queda no moral.
Os engenheiros, como sempre, levantaram uma terrível celeuma. Mais uma vez, como sempre,
realizaram o trabalho em metade do tempo que haviam considerado como absolutamente impossível.
Com toda lentidão, durante muitas horas, a grande nave começou a perder a velocidade que a propulsão
principal lhe dera em um número igual de minutos. Em uma tremenda curva, com um raio de milhões de
milhas, a S9000 mudou de curso e os campos estelares giraram à sua volta.
A manobra consumiu três dias, mas, ao fim desse período, a nave começou a arrastar-se ao longo
de um curso paralelo ao feixe que fora outrora emitido pela Terra. Dirigiam-se para o vazio enquanto a
esfera ofuscante que fora o sol sumia lentamente atrás deles. Pelos padrões do vôo interestelar, eles
estavam quase parados.
Durante horas Rugon trabalhou com seus instrumentos, enviando feixes de detecção muito à frente
no espaço. Certamente não havia planetas num raio de muitos anos-luz. Nenhuma dúvida quanto a isso.
De tempos em tempos, Alveron vinha visitá-lo e, sempre, recebia a mesma pergunta:
— Nada a comunicar.
Uma vez em cada cinco, a intuição de Rugon abandonava-o completamente. Ele começou a se
perguntar se não era essa uma daquelas ocasiões.
Somente uma semana depois as agulhas dos detectores de massa tremeram levemente na
extremidade de suas balanças. Rugon, porém, nada disse, nem mesmo ao comandante. Esperou até ter
certeza e continuou a esperar mesmo depois que os feixes monitores de curta distância começaram a
reagir e a formar as primeiras borradas imagens na tela. Esperou ainda pacientemente até poder
interpretar as imagens. Depois, quando teve certeza de que até mesmo suas fantasias mais desvairadas
ficavam aquém da verdade, convocou os colegas para a ponte de comando.
A imagem que apareceu na tela era a conhecida de intermináveis campos estelares, sol após sol,
até os próprios limites do Universo. Perto do centro da tela, uma distante nebulosa desenhava uma
mancha de vapor que o olho mal podia distinguir.
Rugon aumentou a ampliação. As estrelas desapareceram do campo. A pequena nebulosa
expandiu-se até que encheu a tela... e não era mais uma nebulosa. Um arquejo simultâneo de espanto
subiu de todos os presentes à vista daquilo que contemplavam.
Por léguas e léguas de espaço, alinhados numa imensa disposição tridimensional de fileiras e
colunas, com a precisão de um exército em marcha, viam-se milhares de pequeninos lápis de luz.
Moviam-se rapidamente e todo o imenso rendilhado conservava sua forma como se fosse uma única
unidade. Enquanto Alveron e seus companheiros observavam, a formação começou a sair da tela e Rugon
foi obrigado a recentrar os controles.
Após uma longa pausa, ele falou:
— Aquela é a raça — disse em voz baixa — que conhece o rádio há apenas duzentos anos — a
raça que acreditávamos que rastejara para morrer no coração de seu planeta. Examinei essas imagens sob
a mais alta ampliação possível.
— Aquela — continuou — é a maior frota da qual jamais se teve conhecimento. Cada um
daqueles pontos de luz representa uma nave maior do que a nossa. Naturalmente, são muito primitivas... e
o que vêem na tela são os jatos de seus foguetes. Sim, ela ousou usar foguetes para transpor o espaço
interestelar! Os senhores compreendem o que isso significa? Centenas de séculos passarão antes que eles
cheguem à estrela mais próxima. A raça inteira deve ter iniciado esta jornada na esperança de que seus
descendentes a completem, gerações depois.
— Para aferir a extensão do que eles realizaram, pensem no tempo de que precisamos para
conquistar o espaço e no tempo ainda mais longo, antes que tentássemos alcançar as estrelas. Mesmo que
estivéssemos ameaçados de aniquilamento, poderíamos ter feito tanto em tão pouco tempo? Lembrem-se
que esta é a civilização mais jovem do Universo. Há quatrocentos mil anos ela nem mesmo existia. O que
será ela dentro de um milhão de anos a partir de agora?
Uma hora depois, Orostron deixou a avariada nave-mãe para fazer contato com a grande frota
mais além. Enquanto o torpedo desaparecia entre as estrelas, Alveron voltou-se para o amigo e fez uma
observação que Rugon lembraria com freqüência nos anos seguintes.
— Como serão eles? — perguntou pensativo. — Serão nada mais do que maravilhosos
engenheiros, sem nenhuma arte ou filosofia? Que surpresa vão ter quando Orostron os alcançar. Presumo
que será um grande golpe para o orgulho deles. É engraçado como todas as raças isoladas julgam que são
as únicas no Universo. Mas eles nos devem ser gratos. Vamos poupar-lhes muitas centenas de anos de
viagem!
Alveron lançou um olhar para a Via-láctea, que se estendia como um véu de névoa prateada
através da tela. Apontou para ela com o movimento de um tentáculo que abarcou todo o círculo da
galáxia, dos Planetas Centrais até os solitários sóis da Borda.
— Sabe, — disse a Rugon — sinto grande medo dessa gente. E se eles não gostarem de nossa
pequena Federação? — Mais uma vez apontou para as nuvens estelares que se estendiam compactas pela
tela, brilhando com a luz de incontáveis sóis.
— Algo me diz que eles formam uma gente muito resoluta — acrescentou. — É bom sermos
polidos com eles. Afinal de contas, somos mais numerosos que eles apenas na proporção de um bilhão
para um.
Rugon riu ao ouvir a pequena piada do comandante. Vinte anos depois, a observação já não
parecia engraçada.
Berom
Autor – John Berryman — Tradução – Fausto Cunha

(Extraído do processo de Corte Marcial do Coronel Benjamin L. Harwood, Fort Meyer,


Virgínia, EUA, 8 de junho de 2038.)

Auditor: — Não tenho mais nada a perguntar, Coronel.


Advogado de Defesa: — Com a permissão da Corte, gostaria de esclarecer um ponto através de
novas perguntas ao Coronel Harwood, o que acho oportuno que se faça agora, em vez de deixar o seu
depoimento para depois.
A.: — De pleno acordo.
A.D.: — Coronel Harwood, voltando ao dia 4 de maio deste ano, o senhor quer dizer à Corte
como recebeu as ordens do General Fairbank?
Réu: — Não entendi.
A.D.: — De que maneira lhe foram transmitidas essas ordens?
Réu: — De viva voz. O senhor compreende, não havia tempo material para se confirmar o que
quer que fosse. Em algumas frases apressadas, contaram-me tudo que o General Fairbank sabia sobre a
nave, ao mesmo tempo que me comunicavam suas ordens.
A.D.: — Lembra-se delas?
Réu: — Claro que sim. Não palavra por palavra, mas do seu conteúdo me lembro bem. Quer que
as repita?
A.D. (dirigindo-se à Corte): — Gostaria que a Corte compreendesse que se trata apenas de
apresentar de maneira correta o ponto que desejamos esclarecer.
A.: — Assim sendo, o réu pode continuar.
Réu: — Fui incumbido de descobrir quais eram, no país, os maiores especialistas em lingüística e
comunicação, tendo em vista o problema dos visitantes, da forma como o General Fairbank o conhecia.
Em seguida, devia localizar esses especialistas, obter as devidas credenciais junto ao Chefe do Estado-
Maior, e transportá-los imediatamente para o local do pouso.
A.D.: — Em outras palavras, Coronel, sua escolha devia basear-se exclusivamente nas
qualificações desses especialistas, era assim?
Réu: — Exato.
A.D.: — E nada se falou quanto aos aspectos emocionais ou políticos dessas pessoas?
Réu: — Não creio que os regulamentos do Exército levem essas coisas em consideração.
(Risos.)
A.: — Atenção! O Coronel deve conter a sua mordacidade.
Réu: — Peço desculpas à Corte. Não, senhor, não se fez qualquer referência a esses fatores.
A.D.: — É só, Coronel. Pode descer. (À Corte.) Eis aí a própria essência de nossa defesa. Nós
sustentamos que o Coronel Harwood executou satisfatória e fielmente as ordens que recebeu. Homem
nenhum pode ser acusado de negligência deliberada, em razão apenas de uma aberração mental de outra
pessoa. Com a permissão da Corte, eu gostaria...

* * *

Com a louça do jantar arrumada na máquina de lavar pratos, a Sra. Johnson deu início à ronda dos
cinzeiros, no estúdio abarrotado de livros, e foi esvaziando-os um a um na pazinha de lixo. Era sempre a
última coisa que fazia, antes de ir embora — pensou Yancey, levantando-se da espreguiçadeira. Quando
chegou à porta, a empregada já havia vestido o casaco e caminhava, a passos rápidos, pelo corredor em
direção a ele. Deteve-se para receber o pagamento da semana, como em todas as noites de sábado.
— Boa noite, Professor Yancey — disse ela, com fingida zanga, enquanto recebia o dinheiro. —
Mas por favor, não fique lendo pela noite adentro!
— Boa noite, Sra. Johnson — respondeu ele, esboçando pela primeira vez em todo aquele tempo
algo que estava próximo de um sorriso. Depois que ela saiu, correu a tranca de segurança e,
pensativamente, percorreu os velhos quartos de teto baixo até a varanda do lado. Na capela da
universidade, o carrilhão batia a meia hora. Embora o disco avermelhado do sol já tivesse baixado por
trás do monte Pelhan, ainda havia, no céu de primavera, uma luminosidade que só deixava aparecer as
estrelas mais brilhantes. A brisa da noitinha sussurrava tristemente por entre as flores perfumadas do
pomar de macieiras e fazia ondular o extenso gramado, que já devia ter sido aparado desde muito.
Yancey suspirou e tirou o cachimbo da boca, a fim de sentir melhor o cheiro das flores. Como
Madge adoraria esse pomar, pensou ele. Era duro acreditar que dezessete anos se tinham passado, num
vôo rápido, desde que ele revolvera aquele solo pela primeira vez, e como aquele chão logo se abrira
para receber o corpo de sua mulher. O triste aroma da primavera sempre lhe trazia de volta essas
lembranças agridoces. Chupou com força o cachimbo para que ele não se apagasse. Mais e mais, à
chegada de cada primavera com seus vermelhos maduros, ele sentia que o mundo o estava deixando para
trás. Mais e mais ele se sentia deslocado num tempo em que os acontecimentos rolavam
apocalipticamente por sobre sua cabeça. Com o desalentado pensamento de que se sentiria feliz quando a
vida resolvesse abandoná-lo, recordou o verso de David Morton, que tinha morado naquela mesma casa
havia cem anos: Menos te quero a cada novo dia, menos e não mais.
Um ruído, num crescendo irritante, veio tirá-lo de suas cismas. O rrrrruuuu inconfundível de um
motor a jato, na direção do campus, fê-lo esticar o pescoço descarnado para tentar localizar o aparelho.
O som era agora mais alto e de mais perto. Então viu o brilhante feixe de luz varrendo a copa das
árvores. Embora o aparelho não fosse claramente visível na escuridão que se adensava, dele partia um
poderoso jato de luz que clareava o solo. Voava perigosamente baixo, observou Yancey, pulando num
salto ágil por cima da varanda e correndo até à cerca. Pela maneira como o aparelho sobrevoava os
olmeiros de South Pleasant Street, viu que se tratava realmente de um helicóptero a jato. O ofuscante
feixe de luz passou sobre ele e logo retornou, obrigando-o a baixar a cabeça, com dor nos olhos.
Agora o ruído ensurdecedor estava diretamente sobre ele. A violenta corrente de ar provocada
pelos rotores quase o derrubava e, à proporção que o aparelho descia, as flores do pomar se
desvaneciam num turbilhão de pétalas. Seus gritos zangados mal foram ouvidos, afogados pelo ruído dos
jatos. O helicóptero já havia pousado no gramado. A luz cegante foi-se amortecendo, até apagar-se de
todo. Os olhos ofuscados de Yancey mal podiam enxergar as figuras uniformizadas que saltaram do
aparelho e corriam em direção a ele. Nas habitações vizinhas começaram a surgir retângulos de luz,
portas se abriram, emoldurando as silhuetas dos curiosos.
— Professor Yancey? — gritou um dos recém-chegados.
— Sou eu. Veja o que fizeram com o meu pomar! Vocês ...
— Sim, sim, sem dúvida. Rápido, Professor, o senhor tem que entrar logo.
O tom era imperioso, mas deixava transparecer toda a cortesia de quem falava. Yancey deixou-se
empurrar de volta à sua varanda.
— Evans! — ordenou em voz baixa o oficial. — Mantenha todos afastados. Rocco (e foi
empurrando delicadamente a Yancey pelo estúdio adentro), faça as malas do Professor.
O soldado chamado Rocco galgou vigorosamente a escada. Yancey nem teve tempo de formular
um protesto.
— Peço-lhe mil desculpas — falou o oficial, e sentia-se em sua voz a mais pura sinceridade. —
O senhor é o Professor George Yancey, o lingüista?
— Claro que sou. Olhe aqui...
— Por favor, Professor. Eu lhe suplico que me compreenda. O tempo é tão curto! Acredite. —
Mesmo nas circunstâncias tensas em que se achavam, era impossível deixar de notar suas maneiras
polidas. — Eu sei que isto é uma invasão imperdoável de seu domicílio, mas recebi ordens da Casa
Branca. Professor, o senhor tem que vir conosco imediatamente.
Por seu rosto bonito e bem barbeado perpassou um grave sorriso, que serviu para mostrar a
Yancey o quanto o assunto, para o jovem oficial, era realmente sério.
— Mas que diabo! — falou Yancey, num arquejo. — De que se trata, afinal?
Ouviu passos apressados na escada da frente. Alguém pôs-se a tocar insistentemente a campainha
da porta.
— Por favor, não atenda! — pediu Harwood, detendo-o delicadamente com a mão. — Professor,
trata-se um caso de vida ou de morte para o nosso país. Neste momento, estamos precisando
urgentemente de seus serviços. Estou autorizado a incorporá-lo solenemente ao Exército, com a patente
de tenente-coronel. Queira, por favor, erguer a sua mão direita.
— Não ergo, não! — retrucou Yancey, obstinadamente. — Não estou habituado a ver um
relações-públicas do Exército falando manso e invadindo minha casa para me dar ordens. Que diabo está
acontecendo aqui?
Lá fora, o oficial chamado Evans estava aos berros, ordenando que todos se mantivessem
afastados da cerca. Seus gritos eram ouvidos através da porta. Quando Yancey estava prestes a reclamar
contra a maneira como seus vizinhos eram tratados, os que estavam na porta da frente se cansaram de
tocar a campainha e passaram a golpear com a pesada aldraba de prata. Eram estudantes, tinha certeza,
jovens e impacientes.
— Não vá! — pediu Harwood, ofegante. Professor, uma espaçonave vinda de fora do Sistema
Solar acaba de pousar no Kansas. Estamos tentando desesperadamente entrar em comunicação com eles.
Precisamos do senhor. Temos de convencê-lo a ajudar-nos.
Levou algum tempo até que Yancey pudesse absorver o que Harwood lhe dizia. Suas feições
angulosas estreitaram-se ainda mais, enquanto seu cérebro procurava analisar o fato inacreditável.
— Quer dizer que vocês do Exército estão tentando falar com eles? — perguntou, e diante de seus
olhos passou a visão irônica de um grupo de militares bitolados querendo fazer-se entender por seres de
uma civilização extraterrestre.
— Isso mesmo — respondeu Harwood, sem sentir a farpa na pergunta de Yancey. — Por incrível
que pareça, eles têm bastante semelhança conosco e parecem convencidos de que podem comunicar-se
com a nossa raça. Convencidos, Professor, chega a ser patético. É uma corrida contra o tempo.
— Por que tanta pressa? — indagou Yancey, acidamente.
— Em parte, porque eles insistem. Fizeram sinais com as mãos, Professor. Ao que tudo indica, é
alguma coisa com a energia que eles usam. Achamos que ela se desgasta sob a ação de um campo
gravitacional. Não conseguimos entender exatamente o que eles querem dizer-nos, mas ficam apontando
para o Sol e ...
— Compreendo — falou Yancey, escarninho, enquanto procurava mentalmente dar uma coerência
semântica ao que Harwood dizia com a mais infantil seriedade. — E eles parecem estar certos de que
podem comunicar-se conosco? Por que é que o senhor diz que eles parecem estar convencidos de que
sabem como nós nos comunicamos? — Fez uma pausa, enquanto sua mente retrocedia ao que Harwood
havia falado. — O senhor disse em parte. Qual é o outro motivo da pressa?
— Por favor, Professor! — insistiu Harwood, sempre atencioso. — Eu lhe responderei a tudo
isso durante a viagem. Os outros estão nos esperando em Westover Field.
Rocco desceu rapidamente a escada. Yancey observou que ele carregava a sua maleta de viagem.
— Pronto, senhor! — avisou o soldado, que sem esperar nenhum sinal saiu correndo porta afora,
em direção ao helicóptero.
— Muito bem — disse Yancey, intrigado com a idéia de conversar com um ser absolutamente
estranho. — O senhor se encarrega de avisar a Universidade?
Apagou as luzes e bateu o trinco da porta lateral.
— Sem dúvida, Professor.
Antes mesmo de entrarem na cabina do helicóptero, o motor de arranque já pusera os rotores em
movimento. Os jatos foram acionados e num instante passaram de uma vibração rouca a um gemido
contínuo de aceleração. Yancey respirou profundamente, vendo a casa sumir por baixo deles. Viu de
relance o carrilhão da Capela Johnson, antes de guinarem para o sul. Não era possível travar nenhuma
conversa sob o ruído ensurdecedor dos jatos. Enquanto cruzavam o Vale de Connecticut, em direção à
grande base da Força Aérea, Yancey recapitulava suas idéias.
Tudo que ele sabia de lingüística e semântica era repassado, em seqüência ordenada, por sua
mente de professor e especialista. Mas seus pensamentos voltavam sempre ao mesmo ponto: os seres
vindos do espaço pareciam convencidos de que podiam comunicar-se com os habitantes da Terra. Essa
idéia era um desafio à sua inteligência.
Um pesado bombardeiro a jato os esperava. Quando o helicóptero pousou, o próprio Harwood
apanhou a maleta de Yancey e empurrou-o em direção à silhueta ameaçadora do avião militar, perto do
qual havia um pequeno grupo de pessoas. As apresentações foram breves e se misturaram com as
reclamações dos professores, que encontravam dificuldades para transpor com suas pernas desajeitadas a
estreita portinhola do bombardeiro.
— Este é o Professor Cottwold, o calígrafo — disse Harwood às pressas. — Apresento-lhe o ...
— Olá, Cottwold! — Yancey adiantou-se. — Prazer em revê-lo.
Apertaram-se as mãos rapidamente e Cottwold virou-se para entrar no avião.
— E o Professor Pratt — continuou Harwood, empurrando-os escada acima. — É de sua área,
Professor Yancey.
— É — disse Yancey num tom ácido. — Já nos conhecemos.
Pratt riu meio sem graça.
— Claro que nos conhecemos — falou, com uma cordialidade forçada. Continuou falando,
enquanto apertava os cintos de segurança. As turbinas estavam ligadas. — Como andam as coisas
ultimamente, lá em Amherst, Yancey?
— Cale a boca! Você nem se dá conta de que estamos à beira de uma guerra atômica.
O riso duro de Pratt tinha algo de condescendente quando ele respondeu ao irascível homenzinho:
— Em Yale a coisa é um tanto diferente. Lá em New Haven estamos um pouco mais próximos da
realidade. Não entendo como você poderia perder tempo num negócio como essa Revisão do Sânscrito,
que acaba de publicar. Lá ninguém parece ignorar o que se passa em sua volta, como vocês das cidades
pequenas.
A réplica ferina de Yancey foi abafada pelo troar dos jatos. O avião correu suavemente por entre
as filas de luzes amarelas da pista, até o final da longa faixa de concreto, acelerou com uma violência que
os esmagava de encontro às poltronas, e subiu a uma velocidade atordoante, mergulhando na escura noite
de primavera. As luzes vermelhas da pista ficaram piscando na distância. Somente depois que o
bombardeiro ultrapassou a barreira do som é que eles puderam voltar a conversar. A tremenda força de
empuxo das turbinas, que dominava todo a aparelho, ainda podia ser sentida, mas aquele som
terrivelmente estridente havia ficado para trás.
Harwood esgueirou-se a custo pelo compartimento congestionado, em direção à cabina dos
pilotos, onde se pôs a conversar pelo rádio. Depois voltou, quase rastejando, para junto dos passageiros.
— Ainda está lá! — informou num sopro, seus distintivos brilhando palidamente à luz difusa do
compartimento.
— Onde?
— Perto de Emporia, no Kansas. Toda a área foi isolada. Nem aviões, nem carros. Agora ouçam!
— continuou Harwood, em voz alta, pondo-se de pé num assento vazio. — Os senhores todos têm de
compreender a necessidade do máximo de rapidez para este caso. Creio que todos já sabem que os
visitantes nos fizeram ver por meio de sinais que eles só podem permanecer por cinco dias.
— Não se preocupe! — era a voz pomposa de Pratt. — No momento em que eles souberem que
têm diante de si um grande especialista em comunicação, vão acalmar-se.
— Desculpe — protestou Harwood, com aquela polidez que a Yancey parecia tão fora de
propósito. — Mas o senhor não pode pensar dessa forma. Há outros motivos para a pressa.
— E quais são eles? — quis saber Yancey, lembrando-se da promessa que o oficial lhe fizera
ainda em casa.
Harwood engoliu em seco, visivelmente embaraçado.
— Os russos — disse, numa quase lamúria. — Eles estão fazendo uma confusão dos diabos por
causa da nave.
— Então mande-os de uma vez para o inferno! — explodiu Pratt. — Eles pousaram aqui, e não na
Rússia, o que para mim demonstra um extraordinário bom senso.
— Sim eu sei — disse Harwood. — Mas não é tão simples assim.
— Como é que os russos vieram a saber? — inquiriu Yancey.
— Os radares soviéticos devem ter detectado a nave, como os nossos. Foi a coisa mais esquisita.
A nave apareceu assim de repente, debaixo do maior jorro de energia radiante que se possa imaginar, a
cerca de 80 milhões de quilômetros ao norte da eclíptica. Baixou sobre a Terra sem qualquer hesitação.
Não parecia haver dúvidas quanto ao planeta em que estavam interessados. Não se afobaram para chegar,
usaram apenas um quarto de G. de aceleração, e freavam ou aceleravam calmamente durante todo o
percurso. Como se tudo estivesse bem calculado. Sem dúvida alguma possuem algum tipo de propulsão
atômica. Não usam foguetes. Devem dispor de uma energia imensa. As perturbações elétricas que
provocaram na descida afetaram os radares e detectores de todo o Sistema.
— Propulsão atômica interestelar! — suspirou Pratt. — Até que enfim!
— Eu sei — gemeu Harwood. — Mas é claro que os russos estão pensando exatamente o mesmo.
No instante em que a nave pousou aqui, começamos a receber intimações para que ela fosse
internacionalizada. Exigem igualdade de representação para a entrevista dos visitantes.
— Ha! ha! — Pratt riu, sarcástico. — Bem, eles sabem o que isso significa. Mas era só o que
faltava, dividirmos o segredo da propulsão interestelar com esses loucos sanguinários!
Yancey sentiu o coração gelado: as implicações dessa conversa eram muito claras. Era aquela
mesma xenofobia, o mesmo chauvinismo irracional que, mais cedo ou mais tarde, levaria as duas maiores
nações do mundo a um confronto final. Da última vez isso quase tinha acontecido; e recordou com
amargura que fora assim que perdera sua mulher.
Harwood, em voz baixa e tensa, ainda estava tentando persuadir os demais:
— Eles não são nada tolos. Já disseram que vão bombardear a área, vão reduzi-la a pó, a menos
que concordemos imediatamente. É de se imaginar que os russos prefeririam ver perdido o segredo da
propulsão interestelar a saber que nós o obteríamos antes deles.
— Mas que diabo! — protestou Cottwold. — Quer dizer que corremos o grande risco de ser
bombardeados enquanto estivermos lá? Boa hora para nos avisar, rapaz. Eu considero isso...
— Não, não — Harwood tranqüilizou-o. Podemos contemporizar por um dia ou dois. É claro que
eles ignoram o fato de que os visitantes não podem permanecer aqui. Quando tudo estiver acertado para a
coisa ser internacionalizada, a nave já terá ido embora. E nós teremos o segredo. Assim espero —
concluiu. — Tudo depende dos senhores.
Yancey deu uma gargalhada desdenhosa.
— Loucos, vocês todos! Logo que os russos perceberem que foram logrados, dispararão seus
mísseis contra nós. Não ficarão esperando que acabemos de construir e instalar o sistema de propulsão
atômica que os visitantes nos ensinaram. Para eles, será agora ou nunca.
— Podemos contê-los — disse Harwood, firmemente. — Não pense que ficamos o tempo todo
sentados. Nossa rede de radar ao norte ...
— Caramba! — explodiu Yancey. — Então o senhor admite que a guerra vai começar? Bem, eu
não quero ter nada a ver com ela. Ouça, Pratt, você deveria ser insensível aos apelos nojentos desse
camaradinha de voz adocicada. Cottwold, e você também.
Cottwold ficou calado. Mas o sorriso zombeteiro de Pratt era ainda mais acintoso naquele
ambiente quase lúgubre do bombardeiro em pleno vôo.
— Como você pode defender um intelectualismo que não tem relação, antes de tudo, com a
liberdade política, eis o que escapa à minha compreensão — disse Pratt, lentamente.
Yancey afundou no assento, invadido pelo desespero. Todo mundo estava ficando louco. Quando
os intelectuais davam seu apoio às proposições insensatas de um militarismo constitucionalmente cego,
então não havia mais lugar para pessoas como ele. No entanto, a despeito de lhe ser odiosa a idéia de que
estaria contribuindo para a eclosão de uma nova guerra, sua curiosidade intelectual era grande demais
para que se deixasse ficar de fora, enquanto os outros eram levados ao encontro dos visitantes do espaço.

Não poderia haver dúvidas quanto ao enorme desenvolvimento científico daqueles seres. A
gigantesca astronave se estendia por uns trezentos metros sobre o verdejante trigal; seu bojo tinha mais de
sessenta metros de diâmetro. Uma escada coberta, de surpreendente semelhança com as usadas nos
navios, havia sido baixada de uma portinhola redonda na parte inferior, a poucos metros do solo. Na
proa, via-se lima pequena plataforma ou balcão, suficiente para acomodar algumas pessoas.
O Exército, com todas as conotações desagradáveis que tinha para Yancey, lá estava em peso.
Barracas de campanha já se aglomeravam ao pé da escadinha da nave e multiplicavam-se por baixo do
enorme casco cilíndrico. As tenras hastes de trigo haviam sido brutalmente amassadas sobre o solo
lamacento. Os sulcos profundos das rodas das viaturas comprovaram a umidade do terreno e explicavam
por que os veículos que formavam um anel em torno da astronave, a fim de manter à distância os
curiosos, estavam todos agora providos de lagartas.
Yancey pôde ver, com uma reflexão mordaz sobre a mentalidade militar, que todas as câmaras
fotográficas tinham sido confiscadas. Nenhum negativo fotográfico poderia jamais fixar a impressão que
a gigantesca astronave estava gravando, indelevelmente, na retina de todos os circunstantes. Mas o
Exército — e Yancey teve um movimento de irritação — poderia querer confiscar também isso.
Patinando na lama, Harwood guiou-os até o pé da escadinha. Lá se encontrava um grupo de pára-
quedistas com seus fuzis-metralhadoras ameaçadoramente pendurados no ombro, os rostos jovens
contraídos numa dura determinação. Como Yancey odiava tudo isso! Vão morrer cedo, refletiu. Tão cedo
e tão moços.
Um jovem oficial, muito agitado, veio recebê-lo. Os generais ficaram lá atrás, em seus
alojamentos, como é do hábito dos generais — registrou Yancey, em silêncio.
— Capitão, diga-lhe que apareça — ordenou Harwood. O outro oficial virou-se para a portinhola
da nave. Sua voz vibrava de excitação quando gritou bem alto:
— Berom!
Cottwold aproximou-se do oficial:
— Que quer dizer isso? — perguntou.
— Como é que vou saber? — redargüiu o outro. — Foi a primeira coisa que ele falou quando
saiu da nave. E mostrou-nos uma tabuleta em que estava escrita essa palavra. Já conseguimos ensinar-lhe
como se pronunciam as letras do alfabeto, mas isso foi tudo. Não nos deixa subir a bordo. E parece que
não vai mesmo deixar que entremos, até que consigamos nos entender um ao outro.
A despeito do que dissera Harwood sobre a aparência humana dos visitantes, Yancey não estava
preparado para o aspecto da criatura que descia rapidamente até o patamar no alto da escada. O bom
senso de Yancey dizia-lhe que seria um milagre encontrar habitantes de outros planetas que fossem
parecidos com o homem até o detalhe de serem eretos e bípedes. O visitante, porém, era muito mais do
que isso. Não se tratava de um simples antropóide. A diferença entre ele e Yancey não era quase
perceptível. A pele era mais escura, porém não muito. Dois olhos, um nariz e uma boca bem humanos. Os
cabelos, finos e de um louro platinado, pareciam formar um halo em torno da cabeça. Numa das mãos
trazia uma espécie de tabuleta ou quadro; na outra uma varinha ou bastão, preso entre os dedos longos,
que pareciam seis em vez de cinco.
— Berom! — respondeu o visitante espacial, olhando para os recém-chegados e exibindo o que
era fora de dúvida um sorriso.
— Fale Berom para ele — disse o capitão. — Ele gosta.
— Berom — pronunciou Pratt, com sua voz grave e pausada. Subiu à frente dos colegas pela
escada até a plataforma. Yancey era o último dos três. Por um longo momento, os seres de dois mundos
permaneceram em mútua contemplação, tão próximos entre si que podiam tocar-se com o braço, a mesma
curiosidade estampada nos seus rostos.
— Berom? — repetiu o homem da nave espacial, e da maneira como falava parecia estar fazendo
uma pergunta. O objeto que tinha numa das mãos era na verdade uma espécie de tira-linhas e com ele se
pôs a escrever cuidadosamente no quadro que segurava com a outra. A ponta do tira-linhas era de um
formato curioso; uma alavanca minúscula na haste do instrumento permitia controlar a largura do traço. O
desenho das letras era tão perfeito que Yancey não pôde conter a admiração. Com espantosa destreza, o
visitante reproduzia caracteres tipográficos do alfabeto latino, só usando maiúsculas, de pouco mais de
dois centímetros de altura. O talhe das letras era algo antiquado, parecendo tipo das velhas máquinas de
escrever. BEROM — compôs ele no quadro.
Os três homens da Terra ficaram olhando para as letras, pensativamente. Cottwold foi o primeiro
a falar:
— Que será isso? Tem algum sentido para vocês? Yancey e Pratt entreolharam-se.
— Está identificando a palavra? — perguntou Pratt a Yancey.
As sobrancelhas deste contraíram-se em momentânea perplexidade.
— Se é que é uma palavra. — Disse Yancey cautelosamente. — Talvez seja hindustani. A raiz
bero, em sânscrito ...
— Oh, não! Por favor — cortou Pratt.
— Você conhece a raiz? — indagou Yancey com voz glacial.
— Não, mas por favor, nada de sânscrito. Em hindustani, que sentido teria?
— Berom é uma cunha, geralmente usada para prender bem a picareta ao cabo. — explicou
Yancey. — Mas não creio que isso tenha alguma coisa a ver.
Pratt teve um resmungo de irritação.
— Olhe aqui, meu amigo — disse ele, em inglês, para o visitante. — É melhor que você fale
conosco. Fale! Fale!
E apontou repetidamente para os próprios lábios. A compreensão foi instantânea. Com um sorriso
amável, o ser de cabelos platinados começou a falar. Sua voz era mansa e melodiosa, de timbre não
muito acentuado, um registro algo feminino. As frases sucediam-se numa torrente informe como soa
quando se ouve uma língua totalmente estranha.
— Mais devagar. Bem devagar — pediu Pratt, articulando pausadamente as sílabas. Por cima do
ombro falou para Yancey: — É uma língua com alto grau de flexão.
O resultado foi surpreendente. Uma expressão de desapontamento sombreou o rosto do visitante
do espaço, que se pôs a apontar com excitação a palavra que escrevera no quadro.
— Berom! — bradou. — Berom! — Com seu estranho tira-linhas e uma rapidez ainda maior,
voltou a escrever a palavra em letras de imprensa. Fazia-o sem o menor esforço.
— Olhe só as serifas! — falou Cottwold. — É uma forma absolutamente nova de trabalhar a
caligrafia.
Yancey avançou, abrindo caminho entre os dois companheiros. Ergueu as mãos espalmadas, no
que esperava fosse o gesto universal de amizade. Para surpresa de todos, inclusive do próprio forasteiro,
ele o abraçou de manso e manteve-o abraçado por alguns segundos. Endereçou-lhe o sorriso mais amigo
que pôde. Delicadamente tirou de entre os longos dedos do outro o objeto com que ele escrevia. Yancey
pôde verificar que a carne dele era quente, rija e musculosa, devia ter uma ossatura tão firme quanto a
sua. Tomou da mão do visitante e colocou-a sobre seu peito, dizendo várias vezes: "Yancey". Como da
vez anterior, o estranho entendeu logo.
— "Yancey" — repetiu ele, com excelente reprodução da pronúncia. Retirando sorridentemente
sua mão, levou-a ao próprio peito e falou: — "Gonish".
Yancey fez sinal com a cabeça para dar a entender que compreendera. Segurou o quadro que o
outro mantinha numa das mãos e nele escreveu BEROM em caracteres romanos simples, já que era
incapaz de reproduzir as letras com serifas que o visitante traçava com tanta facilidade. Escreveu depois
o próprio nome e, apontando para ele, voltou a repeti-lo várias vezes. Fez o mesmo com o nome de
Gonish.
Foi a vez deste fazer com a cabeça que entendera. Pediu o instrumento de volta e, na mesma
perfeita caligrafia que deixara Gottwold maravilhado, escreveu uma série de palavras no quadro:
— BEROM FANID ERPOT SIDAR YEVAH.
Pratt imediatamente copiou as palavras em seu bloco de notas, mas os três fizeram logo sentir que
não haviam compreendido a mensagem. Gonish não escondia o seu desânimo. Apontou para o sol e fez
uma série de movimentos amplos com a mão.
— Sim, sim — e Yancey sacudiu a cabeça, num sinal de entendimento que parecia comum às duas
raças. — Compreendemos. Dê-nos só quatro dias mais.
Virou as costas e desceu do patamar, deixando Pratt e Gottwold entregues à infrutífera tentativa
de estabelecer comunicação com o intérprete dos visitantes.
— E então? — quis saber Harwood, quando Yancey colocou os pés no chão lamacento.
— Ainda não posso dizer nada — respondeu Yancey, pensativamente. — Vocês devem ter
trazido para aqui toda a espécie de cientistas, não é mesmo?
— Sem dúvida.
— Então me arranje um astrônomo — pediu. — Acho que posso conseguir mais do que aquele
desastrado Pratt, junto aos homens da nave.
Pratt e Gottwold haviam descido do patamar, após haverem copiado várias outras mensagens que
Gonish escrevera. Yancey conduziu o astrônomo até a escada da astronave.
— Sorria quando o vir, Skinner — disse, limpando a lama dos sapatos. — Acho que ele entende
a maioria de nossos gestos, nossa linguagem não falada.
Chegando ao patamar, absteve-se de gritar "Berom!", conforme fizera o capitão para chamar o
visitante.
— Gonish — gritou ele. — É o Yancey.
Instantes depois a portinhola da nave se abria e o homem de cabelos platinados dava um passo à
frente.
— Yancey! — disse ele, com visível prazer. — Caminhou agilmente até junto do professor e
abraçou-o como este fizera com ele. Yancey sorriu cheio de satisfação e retribuiu o abraço simbólico.
A seguir, Yancey pediu o relógio do astrônomo. Era do tipo militar, com um mostrador de vinte e
quatro horas. Apontando para o sol e fazendo um gesto para significar o seu curso completo em torno da
Terra, mostrou o relógio e fez girar o ponteiro das horas até perfazer uma volta. Reajustou o relógio e,
manejando o ponteiro dos minutos fez ver que ele dava uma volta completa para cada movimento do
ponteiro menor.
Gonish pediu o relógio a Yancey e ficou mexendo nele até familiarizar-se com o mecanismo. Por
meio de gestos mostrou que havia compreendido a relação entre o ponteiro das horas e a rotação do
planeta.
— Dê-lhe uma idéia do Sistema Solar visto do norte da eclíptica — pediu Yancey a Skinner.
Com a cabeça, Gonish deu logo a entender que compreendera a representação do Sol, para o qual
Skinner apontava, cercado por círculos que indicavam as órbitas elípticas dos três primeiros planetas,
com setas assinalando a direção do movimento de translação. Ao desenhar o terceiro círculo, Skinner
apontou, de forma significativa, para o chão. Gonish fez que sim, vigorosamente, com a cabeça.
Foi preciso algum tempo para que o visitante captasse a explicação do sistema decimal, mas ele
acabou compreendendo que eram necessários quase 400 dias para que a Terra completasse uma volta em
torno do Sol.
Sob a constante orientação de Yancey, Skinner desenhou linhas onduladas para indicar a natureza
vibratória da luz e com o auxílio do relógio mostrou que ela precisava de sete minutos para percorrer a
distância entre o Sol e a Terra. Gonish cronometrou o movimento do ponteiro dos segundos do relógio de
Skinner com o instrumento que ele trazia no pulso, e manifestou sua imediata compreensão. Desenhou um
símbolo.
— Sem dúvida é a constante da velocidade da luz — falou Skinner, com admiração.
— Sim — concordou Yancey. — Agora precisamos descobrir quanto tempo leva a luz daqui até a
estrela dele.
Foi um lento trabalho de gestos, lento até o instante em que Gonish percebeu o que eles
desejavam saber. E prontamente se deu conta de que a unidade de tempo que devia usar era o período de
translação da Terra. Rabiscou uns cálculos rápidos na borda do quadro com uma espécie de lápis que
tirara de dentro de sua vestimenta e em algarismos arábicos, meticulosamente, escreveu o número 65.
— Sessenta e cinco anos-luz! — exclamou Skinner. — Yancey, isso é fabuloso. É uma distância
quase inconcebível. Descubra quanto tempo eles gastaram para chegar até aqui.
— Isso não tem importância — falou Yancey. Com o dedo indicador bateu várias vezes na
própria testa, balançando afirmativamente a cabeça e sorrindo para Gonish. — Espero que ele entenda
isto — disse para Skinner. — É para que ele saiba que compreendi. — Mais uma vez apontou para o
relógio e marcou duas voltas completas do ponteiro das horas. — Dois dias — falou para Gonish,
indicando o algarismo 2 no quadro. Gonish assentiu com a cabeça.
— Vamos — disse Yancey para Skinner.
— Por que desistir? — protestou o astrônomo. — Logo agora que estávamos começando a
compreender alguma coisa?
— Já compreendemos — cortou Yancey, meio ríspido. — Estamos perdendo tempo. Vamos logo.
Desceu os degraus apressadamente.
Harwood já não se encontrava mais embaixo.
— Onde é que está o Coronel? — perguntou Yancey ao capitão da guarda.
— Estão todos com o General Swift, Professor — informou o oficial. — Parece que temos
novidades.
Skinner acompanhou-o pelo atoleiro. Várias vezes tiveram que afastar-se do caminho para fugir
das guinadas dos tanques ligeiros que avançavam, as antenas quase batendo no emaranhado de linhas
telefônicas, que se estendiam entre os postes colocados precipitadamente.
Harwood saudou-os no momento em que cruzaram a porta.
— Yancey! — gritou ele, num arquejo. — A situação está ficando cada vez pior.
— Que aconteceu? — indagou Yancey, juntando suas pegadas de lama às centenas que já sujavam
o rústico piso de madeira.
— Tudo indica que os russos estão sabendo do que se passa. Informaram que vão mandar seus
representantes para aqui, terça-feira pela manhã, e sob escolta. Insistem em que autorizemos seu pouso, a
fim de participarem da entrevista conjunta com Gonish e a tripulação da nave espacial.
— E se nós não autorizarmos? — perguntou Yancey. sabendo de antemão qual seria a resposta.
— Considerarão nossa negativa um ato de guerra. O que eles chamam de "escolta" é
evidentemente todo o seu poderio aéreo. E não o acionam desde já certamente porque não podem fazê-lo
com tanta rapidez.
— Vão deixá-los aterrissar? — a voz de Yancey traía sua irritação. Sentou-se para limpar a lama
dos sapatos.
— Depende do senhor e dos outros — disse Harwood, muito agitado. — Será que podem entrar
em comunicação com os visitantes antes disso?
— Hoje é domingo — lembrou Yancey. — Tenho que ir a Chicago para consultar algumas obras.
— Consultar algumas obras? — berrou Pratt, que estava numa mesa com o General Swift e outros
homens de uniforme, junto com alguns cientistas.
— Foi o que eu disse, Pratt — retrucou Yancey.
— Deixe de tolices! Trovejou o General Swift. — Não podemos perder tempo com essas tais
pesquisas. Temos de fazer com que essa gente compreenda.
— Compreenda o quê? — indagou Yancey, num tom acídulo.
— Que nós queremos o segredo do vôo interestelar e que os russos não podem tê-lo! — grunhiu
Swift ameaçadoramente.
— E se eles não nos derem? — insistiu Yancey.
— Recebi as devidas instruções — disse o General, entre dentes.
Yancey não conteve o pasmo:
— Não me diga que nesse caso invadiria a nave!
— Eles não sairão daqui sem nos entregarem o segredo ou sem que fiquem incapacitados de
passá-lo adiante — retrucou Swift. — E o senhor, que é que conseguiu com eles?
— Nada de especial — respondeu Yancey. — Mas já tenho umas idéias. Preciso fazer algumas
pesquisas, como lhe disse.
— Como, "nada de especial"? — protestou Skinner, numa excitação. — Da maneira como
estávamos progredindo, poderíamos saber tudo o que quiséssemos em duas ou três horas!
— É verdade? — perguntou Swift.
— Absolutamente — respondeu Yancey com frieza. — Apenas trocamos informações sobre nossa
maneira de medir o tempo e descobrimos que a estrela de onde vieram está a uns 65 anos-luz da Terra.
O General Swift pôs-se de pé.
— Aí está! Skinner, você compreendeu a coisa?
— É fácil, General. Gonish está querendo nos informar tudo que perguntemos a ele.
— Então, vamos! — bradou Swift, apanhando seu quepe.
— Ainda assim, tenho que ir a Chicago — fez ver Yancey. — Skinner pode prosseguir nos
contatos, se é isso que vocês querem. Estarei de volta amanhã à noite ou na terça-feira.
— Como o senhor pode pensar, em sair numa hora destas? — rosnou Swift. — Será que não lhe
resta nem um pingo de patriotismo?
— Sou da mesma idade que você embora ache que meu cérebro não esteja tão esclerosado. — A
cólera fervia na voz de Yancey. — Tenho minhas próprias idéias sobre o patriotismo, idéias solidamente
alicerçadas e, sem dúvida alguma, nascidas de reflexões das quais o senhor nunca seria capaz. Não
preciso que me ensine qual é o meu dever. O senhor está querendo me dizer que não posso ir?
Todos os militares presentes se imobilizaram num silêncio de morte, galvanizados pela tensão. O
rosto de Swift avermelhara-se até o púrpura, o corpo a tremer na cólera reprimida.
— Pois então vá! — gorgolejou, com um movimento furioso do braço. — Mas mantenha fechada
essa boca idiota! E isto é uma ordem, que tenho como fazer cumprir.

Os russos chegaram antes que o helicóptero trouxesse Yancey de volta de Chicago. Outros
helicópteros, em grande número, estavam pousados nas imediações da gigantesca nave espacial. No céu,
até onde os olhos podiam ver e os ouvidos ouvir, as esquadrilhas soviéticas patrulhavam
ameaçadoramente.
Harwood foi ao seu encontro tão logo ele saltou do aparelho, os sapatos afundando na lama.
— Conseguiu descobrir? — perguntou Harwood, num tom desesperançado, o rosto vincado e
macilento.
— Consegui — respondeu Yancey com impaciência, lutando para varar o lamaçal. — Claro que
consegui. Por isso estou de volta. Foi mais difícil do que eu imaginava. Leve-me ao General Swift.
— Professor — protestou Harwood, enquanto se arrastavam laboriosamente sob o bojo imenso
da astronave — ele está lá dentro com os russos. É a maior briga que já se viu. Os russos postaram uma
guarda junto à escada da nave e não deixam ninguém passar. Nós também não deixamos que eles entrem.
Exigem três dias com Gonish antes que tornemos a vê-lo, baseando-se no fato de que nós já tivemos esses
três dias. É uma loucura!
Yancey franziu a testa, e ambos se afastaram do caminho de um tanque e seu estrépito infernal.
— Isso altera as coisas um pouco. Mesmo assim, é melhor você tirar Swift dessa reunião por
alguns minutos.
O General apareceu, em companhia de Pratt. Seu rosto vermelho estava empapado de suor. A
tensão daquele dia estampava-se na face de um e outro. — E então? — perguntou Swift.
— Posso me comunicar com Gonish — disse Yancey.
— Agora não — falou o General, sombriamente.
— O quê?
— O senhor me ouviu bem. Se tivesse ficado aqui e cumprido o seu dever ... Mas não! De
qualquer forma, não podemos ter qualquer diálogo com aquele boboca da cabeça branca, enquanto não
chegarmos a um acordo com os russos. E o Secretário de Estado deve estar aqui a qualquer momento.
— Gonish terá ido embora antes que vocês cheguem a qualquer acordo — disse Yancey
azedamente.
— Não irá, não. Dentro de uma hora, ou concordamos ou discordamos de uma vez por todas —
rosnou Swift. — E eu acho que a guerra vai começar exatamente naquela sala. Major, dê-me sua arma. —
Recebeu-a com o coldre e o cinto, que afivelou compenetradamente sobre o uniforme. — Esses generais
russos estão armados até os dentes — informou, virando-se para ir embora.
— Um momento — pediu Yancey, entregando-lhe uma folha de papel datilografada. — Aqui está
o que eu propunha que se dissesse a Gonish.
Swift olhou com irritação para a mensagem ininteligível. Via apenas uma curta seqüência de
palavras, de cinco letras cada uma, sem nenhum sentido.
— Que é que diz aqui? — perguntou.
— Está em código — explicou Yancey, com um sorriso vingativo em direção a Pratt. — É o
Código Comercial Telegráfico Bentley, hoje obsoleto, mas que durante cinqüenta anos, no século
passado, esteve em pleno uso. Tente traduzir o senhor mesmo.
Não lhe disse que tinha no bolso um exemplar do Código.
— O quê? — vociferou Pratt. — Mas é inconcebível!
— Quem sabe quantos milhares de fac-símiles telegráficos eles receberam, quantos diagramas
foram transmitidos? Talvez tenham tentado durante anos e anos, mas afinal conseguiram decifrá-los.
Afinal de contas, um código telegráfico é também uma linguagem.
— Ridículo! — disse Pratt, o sangue subindo-lhe ao rosto só de pensar que a solução lhe havia
escapado.
— Pois é! — Yancey arreganhou os dentes, num sorriso ferino. — Naturalmente você devia ter
descoberto em menos de um minuto. Grupos de palavras de cinco letras. Nenhuma flexão visível,
embora, como você mesmo notou, a língua deles seja muito mais flexionada que a nossa. E outra coisa —
continuou Yancey: — a certeza dele de que nós entenderíamos. Um estranho, no sentido mais absoluto,
sai daquela nave e escreve, com as nossas próprias letras, uma série de palavras que ele pensa que nós
vamos entender. E vindo de sessenta e cinco anos-luz de distância! Quase saltava aos olhos que sua raça
estivera captando transmissões de telegramas. E, é claro, essas transmissões deviam datar, na sua origem,
de mais de sessenta e cinco anos atrás, isto é, o tempo que elas levaram para atravessar o espaço até o
planeta deles. Já não usamos esse sistema — explicou. — Toda a comunicação comercial se faz agora
através de emissões privativas, a fim de garantir o sigilo. Mas por muitos anos, depois de 1954 ou 1955,
quase todos os radiogramas comerciais eram transmitidos em fac-símiles, assim como ainda fazemos com
as nossas radiofotos. O código era usado para comprimir a mensagem tanto quanto possível e para evitar
que simples curiosos a lessem sem dificuldade. Muitas palavras do Código Bentley representam frases
inteiras. Como, por exemplo, BEROM.
— E que é que significa? — indagou Pratt, com relutância, enquanto Swift franzia as
sobrancelhas, acentuando ainda mais a expressão de cansaço do seu rosto.
— Significa: Propomos que vocês e nós permutemos informações, uma frase comercial de rotina
— disse Yancey, com suavidade. — Uma coisa que era evidente em cada gesto de Gonish.
— Isso resolve tudo! — decidiu Swift.
— Resolve o quê?
— Os russos não chegarão a falar com Gonish. — disse o General, sem rodeios. — Aquele
maluco da cabeça branca tanto poderia dar como não dar a eles o segredo do vôo cósmico.
Girou sobre os calcanhares e encaminhou-se de volta para a sala de conferência, seguido de perto
por Pratt.
Yancey afastou-se, desconsoladamente, da enervante atmosfera da barraca, onde eles tinham
entrado. Mais sentiu do que viu o bojo arredondado da espaçonave, enquanto se dirigia para o ponto em
que ela se encurvava na grande depressão aberta no solo úmido.
A guarnição ao pé da escada de acesso havia sido reforçada, como Harwood bem lhe dissera.
Eram dois grupos carrancudos de soldados postados frente a frente, de um lado os russos, do outro os
pára-quedistas americanos, em mútua e estreita vigilância.
Yancey caminhou lentamente em direção a eles, lutando contra a lama pegajosa. Um dos soldados
russos imediatamente apontou seu fuzil-metralhadora, num gesto de ameaça. Yancey parou e olhou
pensativamente para a guarnição russa. Podia-se ver que era uma tropa de elite, os largos rostos eslavos
e os cabelos louros bem aparados. Todos, menos um. O achatado nariz mongólico e os olhos repuxados
revelavam sua origem tártara. Yancey enviou-lhe um sorriso desanimado.
Com a facilidade quase inconsciente de um poliglota consumado, ele começou a falar em tártaro,
uma língua que não praticava havia mais de vinte anos, desde os tempos em que, estudante, viajara pelas
estepes do norte do Tibete.
— Saudações, meu amigo tártaro — e, ao ouvir a língua materna, o soldado tártaro teve um
sobressalto de surpresa. — Não se assuste — continuou em voz bem alta. — Sou eu só, Yancey. Apenas
o YANCEY. Não vou fazer nada contra você, meu camarada soviético.
O efeito de seu nome pronunciado em voz alta foi elétrico. Gonish apareceu imediatamente no
alto da escada, sem ser visto pelos soldados, que estavam de costas para a nave. Yancey ergueu os olhos.
E gritou quatro palavras:
— BEROM BODAD VEMAN WEGOT.
Gonish ficou petrificado. Lentamente voltou para dentro da nave fazendo apenas um gesto com a
mão, para que Yancey esperasse. Tarde demais os soldados russos se aperceberam de que ele havia
falado com a nave. A consternação e o medo estamparam-se nos seus rostos até então impenetráveis.
Yancey não se mexeu, aguardando numa expectativa incerta. Teria ele superestimado a capacidade dos
visitantes?
Mas não ficaria desapontado. Um raio de tração jorrou da espaçonave e apanhou-o num abraço de
ferro, que ele sentiu como um gesto da mais profunda amizade. Ouviu a portinhola da nave fechar-se por
trás dele. Um terrível impulso de aceleração arremessou-o contra o piso da câmara, e por alguns minutos
o manteve como que esmagado, incapaz de qualquer movimento e mal podendo respirar. Quando
diminuiu aquela pressão esmagadora, deu-se conta de que já estavam muito além da estratosfera. Mas o
alívio foi apenas momentâneo. De repente, toda a estrutura da nave ondulou e tudo em torno de Yancey
pareceu desmanchar-se, para logo voltar ao normal. Seu corpo tinha perdido quase todo o peso. "É a
propulsão interestelar", falou Yancey consigo mesmo.

* * *

(Continuação do Excerto do "processo de Corte Marcial do Coronel Benjamin L. Harwood,


Fort Meyer, Virgínia, EUA, 8 de junho de 2038).

Advogado de Defesa: — ... de apresentar, como provas, dois documentos que se relacionam
fundamentalmente com o mesmo assunto.
Auditor: Parece-me que isso foge à ordem dos trabalhos, e que as provas documentais deverão
ser apresentadas quando do interrogatório direto do acusado.
A.D.: — Com a permissão da Corte, o novo interrogatório a que pretendo submeter a testemunha
General Swift, o qual, segundo me parece, vai ser o próximo a depor, faz com que seja preferível que
essas provas documentais sejam apresentadas agora.
A: — Muito bem. Pode continuar.
A.D.: — Estas duas mensagens estavam originariamente em código. Um exemplar do livro
Códigos Comerciais Bentley, décima sétima edição, de 1961, já foi apresentado a esta Corte como
Instrumento de Prova C. Esse livro foi utilizado para decodificar ou traduzir as provas documentais em
questão.
A primeira delas decodifica as palavras que o Professor Yancey gritou para Gonish, o visitante
do espaço, pouco antes de ser atraído ou sugado para dentro da nave, e que segundo as melhores
interpretações da gravação recolhida foram estas: "BEROM BODAD VEMAN WEGOT". Cada uma
dessas palavras do Código Bentley representa uma frase-padrão, dentre as que eram usadas com
freqüência no intercâmbio comercial. Segundo a prova documental, a mensagem foi a seguinte: Proponho
troca de informações. Vocês correm grande perigo. Partam imediatamente. Levem-me com vocês .
Apresento-a como Instrumento de Prova L.
A segunda prova documental é também uma decodificação processada da mesma forma. Trata-se
da mensagem que o Professor Yancey, ao voltar de Chicago, sugeriu ao General Swift para levar a
Gonish. Sabemos agora que em Chicago ele pesquisou numerosos códigos antigos, até descobrir que
Gonish somente conhecia o Bentley. Ao contrário da outra, esta mensagem se constitui principalmente de
palavras em código tiradas do Bentley, representando um único vocábulo ou período simples em inglês.
Diz ela: Visitantes do espaço: sentimo-nos honrados e satisfeitos com vossa generosa oferta
para trocar informações. Infelizmente, nosso mundo não atingiu o estágio de maturidade política em
que lhe possam ser confiados os segredos da imensa energia que evidentemente possuis. Estamos
ainda divididos em tribos guerreiras, cada uma tentando arrebatar da outra o domínio do planeta. A
idéia de cooperação entre povos separados pelos nossos mares custa a ganhar corpo. Para evitar que
irrompa um conflito de proporções catastróficas entre nossas tribos, deveis partir imediatamente ."
Apresento-a como Instrumento de Prova M.
Desejaria, agora, que esta Corte compreendesse que não pretendemos defender a exatidão do
ponto de vista do Professor Yancey, de que a partida imediata da nave nos livraria da guerra. Somente os
esforços sobre-humanos do General Swift, como todos nós sabemos ...
Viagem às fronteiras do infinito
Autor – Fausto Cunha

A nave ergueu-se no ar com terrível fragor. Por um momento ficou imóvel, como se hesitasse em
subir, ou como se estivesse presa numa teia de aranha armada pela gravidade terrestre. Repentinamente
se desprendeu e mergulhou de golpe no espaço, desaparecendo em segundos.
Oficialmente se chamava ESO-1 e era a primeira de uma série de naves destinadas à exploração
do espaço extra-solar. Mas, em homenagem a um astronauta morto em 1966, quando o homem ainda se
preparava para a conquista da Lua, fora carinhosamente batizada com o nome de Virgil. Como escrevera
um poeta na ocasião do desastre: "para o céu ou para o inferno, todos os guias se chamam Virgílio".
Dessa vez iam a caminho do céu.
A nave permaneceu dois dias em órbita terrestre, para a derradeira verificação de todos os
instrumentos, do material de pesquisa, do estado físico dos membros da tripulação, de mil e um pequenos
detalhes.
— Dêem uma última olhada para dentro de casa. Depois apaguem as luzes e fechem a porta da
frente. Não voltaremos tão cedo — falou o comandante, em tom de brincadeira, mas advertindo sua
tripulação de que para muitos, ou para quase todos, não haveria retorno. — Recomendo particularmente
às mulheres que fiquem em dia com relação à moda. Ela não vai mudar a bordo durante muito tempo.
Em órbita já se encontrava um tandem, sem autonomia de vôo, que foi acoplado à ESO-1. Era
uma espécie de tanque de reserva e podia, em último recurso, servir de refúgio temporário para a
tripulação, em caso de avaria grave da nave principal desde que o acidente não se desse muito longe da
Terra.
Virgil voltou a acelerar e partiu em direção a Marte, sem se deter na Lua. Os vôos a Marte já
eram uma rotina. Duas naves de socorro estavam estacionadas em órbita marciana, prontas para ajudar
em qualquer emergência.
A colonização de Marte não se dera como esperavam alguns sonhadores mais otimistas. Tudo
quanto se podia dizer de verdadeiro era que não havia marcianos e, se existia um céu, este positivamente
não ficava em Marte. O homem encontrara no Planeta Vermelho (que visto de perto não era tão vermelho
assim) claros vestígios de passagens estranhas, mas não se poderia dizer que fossem de seres
extraterrestres. Tinham sido descobertas algumas formas rudimentares de vida vegetal e isso já era um
consolo. Mas todas as especulações sobre a vida animal e sobre vida inteligente num passado
remotíssimo — e elas davam para encher uma biblioteca — não resistiam a um passeio de algumas horas
naquele solo árido e poeirento. Marte era apenas menos tétrico do que Vênus, lugar ideal para um Deus
que desejasse instalar seu inferno. "Afastar-se cada vez mais do sol": o homem descobrira muito cedo
que, para sua sobrevivência cósmica, não havia outra saída. Aberta a porta da jaula solar, estava livre o
caminho para o infinito.
Marte ficaria como um bom porto espacial, até que o homem o abandonasse por instalações
melhores e mais seguras nos satélites maiores de Júpiter e Saturno. Mas se a raça humana algum dia
alcançasse as estrelas, os planetas do Sistema seriam etapas demasiado próximas para valerem a pena de
uma escala obrigatória. A ESO-1 era a primeira tentativa para sair do espaço dominado pelo Sol.
Ao se aproximarem de Marte, a equipe de comando — depois de nova inspeção — chegou à
conclusão de que a escala era desnecessária. Até Júpiter, as duas naves marcianas podiam chegar em
pouco tempo, se fosse preciso. A penetração no cinturão de asteróides, embora causasse temor,
sobretudo nos que não tinham experiência de vôos espaciais, era menos arriscada do que parecia. O
comandante, em breve explicação, comparou os asteróides a icebergs, cujo choque com os navios eram
altamente improváveis.
— Menos perigosos até, porque não têm parte submersa. Virgil possui meios de detectá-los a
grande distância e de evitá-los em curso normal. As sondas automáticas têm cruzado esta região sem
problemas. Mas se alguém quiser rezar para que nada aconteça, o comando desta nave não se opõe.

Percorrendo o espaço como um relâmpago, praticamente transformado em novo integrante do


Sistema Solar, Virgil sugava as distâncias rumo à densa noite do cosmo. Para um observador que tudo
pudesse ver do infinito, ele seria apenas mais um asteróide ou, talvez, um minúsculo cometa, aprisionado
pelos tentáculos do Sol, e com ele seguindo a lenta rotação dentro da galáxia e da galáxia dentro do
Universo. Seu comportamento misterioso, afastando-se aceleradamente do centro do Sistema, sugeriria
um corpo formado de gases muito diluídos. Mas como o espaço percorrido por esse corpo dentro da
galáxia era virtualmente imperceptível, talvez o mesmo observador o visse apenas como um vagalume,
ou algo assim minúsculo, piscando imóvel dentro da noite estrelada.
A contemplação de Júpiter, ainda a milhões de quilômetros, transformou-se numa espécie de
programa coletivo durante vários dias. Uma coisa era saber que ele era maior do que todos os outros
planetas reunidos e outra vê-lo girar com sua massa esmagadora. Custava acreditar que aquele imenso
olho cósmico, injetado de vermelho na região da Mancha, fosse muitíssimo menor que o Sol. Vista da
nave, aquela esfera achatada, carregada de metano e amoníaco — onde tantos haviam suposto que a vida
não era impossível — parecia o próprio centro do Universo. Ainda mais impressionante era a velocidade
com que girava aquela massa colossal: seu dia inferior a dez horas podia quase ser acompanhado a olho
nu. Pouco restava a saber sobre aquele imenso caldeirão primordial; a própria Mancha já entregara o seu
mistério.
A beleza do espetáculo era intensificada pela presença dos numerosos satélites e pelo
aparecimento, aqui e ali, de pequeninos cometas, integrados na órbita jupiteriana. A proximidade de
satélites enormes, como Ganimedes e Calisto, que a Terra se aprestava para ocupar em definitivo,
aumentava o impacto da grandeza do planeta e fazia com que os cosmonautas sentissem um pouco de pena
de sua Terra longínqua, tão solitária e desprotegida no espaço, apenas com a fiel companhia de uma Lua
toda esburacada, que lhe oferecia eternamente a mesma face amorosa. Enquanto isso, aquele verdadeiro
cortejo de astros parecia adorar Júpiter como seu sol e ignorava desdenhosamente o restante do Sistema.
Um dos astrônomos começou a fornecer, pela rede interna de som, explicações sobre o planeta e
seus satélites. Mas até a beleza cansa e aquele blá-blá-blá científico pouco acrescentava ao que os olhos
haviam contemplado. A maioria desligou ou trocou de faixa, preferindo música. Como outrora, nas
viagens de navios, os passageiros logo se fatigavam com os encantos do mar e do céu, e trancavam-se
nos camarotes ou iam para as salas de jogo, a bordo da ESO-1 quase todos foram aos poucos retomando
os vícios e manias da rotina terrestre.
— Por que não há pássaros por aqui? Teriam tanto lugar aí fora onde pousar!
A observação da jovem bióloga fez com que seus companheiros rissem. Traduzia a falta que
sentiam de animais a bordo. Havia plantas, e mesmo uma espécie de jardim, dentro da nave. Mas são
poucas as pessoas que sabem dialogar com as plantas. Os animais pelo menos podem ouvir e ser
ouvidos. A idéia de pássaros voando na vastidão sideral provinha da curiosa sensação de que eles
poderiam aparecer a qualquer momento naquele espaço vazio, materializando-se a partir das sombras,
das formas misteriosas e repentinas que se dissipavam à aproximação da nave.
Os que pensavam ter visto o mais belo em matéria de esplendor cósmico tomaram um choque
quando Virgil passou por Saturno. Com seus anéis girando a velocidades diferentes, Saturno parecia um
rei bêbado cambaleando em meio das estrelas. A sombra dos anéis na superfície do planeta e a sombra
deste nos anéis criavam uma ilusão perfeita de imagem em três dimensões e ao mesmo tempo lembrava
um pião colorido a girar em direção à própria nave.

Na passagem por Saturno houve a primeira operação extraveicular. A turma astronômica deixou a
nave em um módulo de excursão, a fim de tirar fotografias do planeta e de seus satélites e proceder a uma
série de análises da matéria interplanetária. Era um simples aperitivo científico, porque a verdadeira
missão da ESO-1 começaria depois de Plutão.
Nessa mesma noite (uma noite convencional, estabelecida pelos calendários da Terra), o
comandante falou à tripulação, através dos alto-falantes. Agradeceu a cooperação de todos até ali e pediu
que continuassem o que estavam fazendo enquanto ele falava. Depois, quem tivesse alguma dúvida ou
algum problema podia procurá-lo ou, se preferisse, expor o assunto ao seu chefe imediato. Com seu
habitual bom humor, disse que a ESO-1 como uma grande casa, não muito firme nos alicerces mas pelo
menos a salvo de terremotos, e seus ocupantes como uma família de que ele era o chefe, com a vantagem
— que não tinha em sua casa na Terra — de que todos lhe deviam obediência.
— Estamos viajando há quase um ano, ainda cautelosamente, porque não foi ainda descartada a
hipótese de uma ordem de regresso do comando da missão na Terra. Somente depois de Netuno é que
começaremos a acelerar ao máximo de nossa capacidade e, pela posição de Plutão nessa época, sairemos
do Sistema Solar sem cruzar com esse planeta.
— Em que hipótese haveria ordem de regresso? — indagou uma voz pelos alto-falantes.
— Na Terra continuam pesquisando novos sistemas de propulsão interplanetária. Se se
desenvolver um sistema que renda, vamos dizer, o triplo de nossa velocidade atual, não haveria vantagem
em prosseguir dentro de nossa atual capacidade. Essa é a hipótese em que estou pensando. Mas depois
que sairmos do Sistema, as comunicações se tornarão de tal maneira difíceis, como sabem, que o retorno
só se fará no limite de segurança. Quanto tempo será, não sei dizer. O que posso garantir é que se a
viagem durar cinqüenta anos — e sinceramente espero não ficar tanto tempo ausente da Terra, porque já
estou sentindo falta de meu cachorro e de minha vara de pesca ...
— E eu de minha garota! (Outra voz no alto-falante.)
— Daqui a cinqüenta anos ela não será mais garota. Nem você provavelmente se lembrará dela.
Mesmo se a viagem durar cinqüenta anos — período suficiente para que esqueçamos todas as garotas da
Terra, que a meu ver não valem as que estão aqui a bordo (risos, aplausos, protestos) — não haverá
problemas de sobrevivência em nosso Virgil. Com o tandem que nos acompanha, estamos preparados
para enfrentar a própria eternidade. Pois se ficarmos aqui eternamente, nossos físicos e cozinheiros
acharão um meio de transformar as chapas de aço do casco em excelentes bifes.
Houve um tumulto de risos e vozes pelos alto-falantes.
— Pelo ruído que fazem, vejo que estão todos ocupadíssimos em suas tarefas. Nosso alvo
paramétrico são os planetas de Alpha Centauri. Isso não quer dizer que haja planetas habitáveis ali, nem
sequer que devamos chegar até lá. Na hipótese ideal de encontrarmos planetas habitáveis,
desembarcaremos. Então, não haverá retorno, pelo menos para o grupo sabido. A segunda hipótese é que
poderemos prosseguir em direção a outros sistemas. Tudo dependerá dos primeiros resultados. Atrás de
nós vem a ESO-2, que será lançada brevemente, e a intervalos de um ano terrestre as outras da série, a 3,
a 4. A idéia básica é estabelecer uma espécie de relê de naves para exploração do espaço extra-solar.
Supõe-se que cada nave seguinte apresentará um sistema de propulsão mais aperfeiçoado, de maneira que
em dado momento da seqüência uma nave lançada depois alcançará a nave anterior e lhe levará os meios
para adaptar os novos propulsores. Teoricamente podemos ser alcançados pela nave que será lançada
daqui a vários anos. E voltaremos à Terra em condições melhores do que partimos.
— Uma viagem às cegas — interpôs uma voz rouca;
— Até certo ponto uma viagem às cegas, mas com um alvo. O principal é testar nossa capacidade
de resistência e sobrevivência em vôos prolongados. No passado, o homem mostrou que podia resistir a
viagens por mar e por terra que duravam anos e às vezes séculos, em busca de novos lares. Pisavam o
chão firme ou tinham a relativa segurança do mar, porém viajavam perseguidos por seus terrores atávicos
ou religiosos e pela incerteza de encontrarem novas terras. Como comandante, não gostaria de estar no
lugar dos antigos marinheiros, a quem os sábios ensinavam que a Terra era plana e, se se afastassem
muito em certa direção, cairiam no abismo. Nossa vantagem é sabermos que fazemos parte de um todo e
se viajarmos sempre numa direção, seja ela qual for, encontraremos sempre novos mundos.
— Diziam também que a Terra era cercada por uma carapaça, da qual não podíamos sair.
— Exatamente. É por isso que o homem tem de seguir em frente, sem achar que a ciência já disse
a palavra final. Com permissão dos astrônomos e dos astrofísicos aqui a bordo, acredito que o Universo
ainda nos reserva muitas surpresas, espero que agradáveis.
— Talvez um planeta feito de chocolate, com oceanos de cerveja.
— Chocolate não, por favor. Feito de um bom queijo, e as montanhas de pão.
As sugestões se multiplicavam. O comandante esperou que terminassem. Tudo que contribuísse
para desviar as tensões era importante.
— Como não gosto de chocolate nem de cerveja, eu me contentaria com alguns lagos de bom
vinho do Reno. Se encontrarmos um solo adequado, teremos trigo. O nosso departamento de Biologia diz
que pode produzir vacas em pouco tempo. Enquanto não chegamos ao Paraíso, o jeito é vivermos com o
que temos a bordo, e parece-me que não é pouco. Até o jogo preferido pelos homens e as mulheres — e
uma gargalhada geral reboou pela nave, antes mesmo que ele concluísse o seu pensamento — pode ser
disputado sem qualquer limitação. Embora tenhamos previsto uma creche e disponhamos de excelentes
médicos, espero que o planeta Virgil não duplique sua população nesta viagem...

À noite, no grande salão que servia para tudo, o astrônomo-chefe discutiu livremente outros
aspectos da missão. Podia-se ver que cada um reagia de acordo com a ciência em que se especializara.
Para os astrofísicos, a viagem se fazia num constante estado de excitação, pois estavam no seu elemento.
Monotonia era palavra que não entrava no seu vocabulário. Os biólogos conhecem a virtude da
paciência, pois lidam com matéria viva, mas ansiavam mais que todos pelo desembarque em outro corpo
celeste. Da Terra já haviam trazido a técnica de reprodução de seres vivos em laboratório. Os
engenheiros eram os mais expostos ao tédio, menos um, o mecânico-chefe, que recebera do comandante
autorização para aperfeiçoar o sistema de propulsão da ESO-1, desde que não a fizesse ir pelos ares. Ele
sustentava — e era um ponto de honra — que com os recursos da nave seria possível alcançar uma
fração da overdrive, isto é, da velocidade acima da luz no espaço sideral. Havia um enorme desperdício
de energia nos propulsores e a própria nave se comportava como um peso morto, quando sua massa
podia acrescentar um impulso à propulsão. Existia um único problema: eliminar o tandem ou agregá-lo ao
corpo da nave. A primeira experiência resultou num estremecimento geral da ESO-1, o que deixou o
comandante alarmado. "Pensei que o estrondo fosse pior", comentou o engenheiro calmamente. "E vai ser
pior, se funcionar."
— Nossa missão é muito modesta. Tudo que temos a fazer é sair do sistema solar, dar uma
espiada lá fora e voltar. Exatamente como na história da raposa: é só um passeio e nada mais. Estamos
agora a uma distância de um bilhão e meio de quilômetros do Sol. Para Plutão ainda nos faltam quase
seis bilhões de quilômetros. Uma estirada. Mas vocês sabem que a órbita de Plutão é muito excêntrica,
chega em seu periélio a ser inferior à de Netuno, como aconteceu não há muitos anos, em fins do século
vinte. A missão de Virgil, no que nos toca, é deixar o espaço solar e fazer uma série de experiências no
espaço extra-solar. Onde começa o espaço extra-solar não é fácil dizer. Iremos o mais longe que
pudermos, dentro da prudência determinada pela nossa logística. E existem as hipóteses mencionadas
hoje pelo comandante.
— Temos interesse em descobrir alguma coisa sobre Quíron, mas é pouco provável que ele
apareça, mesmo de longe, em nossa trajetória. Esperamos determinar, com a aproximação possível, a
heliopausa — aquela zona onde cessa por completo a atração do Sol e começa o domínio dos campos
magnéticos estelares. Todos sabem que depois de Plutão existe uma região habitada, vamos dizer assim,
por ovos de cometas, e pessoalmente considero essa região muito mais perigosa do que a do cinturão de
asteróides, que atravessamos sem nenhum problema.
— Não é inteiramente impossível que encontremos corpos perdidos, desgarrados, entre o Sol e
nossos vizinhos de Centaurus, vestígios de estrelas desintegradas, ou corpos celestes de tipos até agora
desconhecidos. Embora do ponto de vista astronômico a distância telescópica entre Plutão e a Terra seja
insignificante, talvez no espaço extra-solar haja melhores condições para estudarmos a habitabilidade ou
a existência de planetas nos sistemas de Alpha Centauri, Epsilon Eridani e mesmo em estrelas longínquas
como Eta Cassiopeiae, Delta Pavonis e 82 Eridani. Os quatro anos-luz que nos separam de Alpha
Centauri parecem-me longos demais para o fôlego de Virgil, mas são até muito curtos para alguns de
nossos instrumentos de observação. Tivemos excelente prova disso em Saturno, em cujos anéis quase
pude esvaziar o meu cachimbo.
— Você teria formado um novo anel! Nunca imaginei que fossem tão delgados, alguns deles
parecem mais finos que uma lâmina de serra elétrica.
— Um astrobotânico me falou que os anéis de Saturno lhe deram uma idéia: plantar trigo no
vácuo. Sem a presença da gravidade, ou com uma gravidade muito reduzida, as plantas nascem até de
cabeça para baixo, o que nos dá a esperança de ter espigas nas duas extremidades...

Alguns problemas sérios começaram a surgir com os módulos de excursão. Havia perigo nas
atividades extraveiculares. O uso quase exclusivo pelos engenheiros encarregados da inspeção externa
da nave e do tandem tinha sua razão de ser pelo fato de que eles haviam sido treinados para isso. Podiam
levar, de cada vez, um ou dois cientistas e seus instrumentos, mas o risco era sempre grande. A
disposição ao heroísmo em nome da ciência era a pior virtude, porém mais freqüente do que se
imaginara, e se tornava necessário vigiar constantemente os que faziam experiências fora da nave. Alguns
candidatos não podiam justificar sua saída, exceto se invocassem o tédio do confinamento. A preferência
pelos astrofísicos parecia, aos recusados, um privilégio intolerável. Mas a três bilhões de quilômetros da
Terra qualquer ato de bravura seria a melhor maneira de não voltar a vê-la.
Foi o grande computador central que se revelou o maior foco de atritos. Era tratado como um
integrante humano da tripulação e chamavam-no de Jonas. Porque estava no ventre da baleia.
Receava-se que as constantes manobras de aceleração o tivessem afetado ou que sua grande
sensibilidade houvesse sido perturbada pela proximidade de massas enormes como as de Júpiter e
Saturno. Os responsáveis por ele ficavam indignados com essas hipóteses e mais ainda quando se
insinuava que ele tivera uma programação bitolada e defeituosa. A verdade é que Jonas funcionava com a
mais honesta perfeição. Sem ele a vida a bordo seria quase impossível. Não falava nem lia poemas,
porque ninguém explorara ainda toda a sua capacidade criadora, mas já servira de amigo secreto em
vários casos amorosos.
Esses casos, que pareciam generalizar-se e complicar-se à medida que a nave se distanciava da
Terra, davam algumas dores de cabeça ao comando. Embora houvesse a bordo a maior liberdade de
união, surgiam sempre essas paixões repentinas que perturbavam momentaneamente a missão de Virgil.
Mais de uma vez o computador foi chamado a decifrar complexas mensagens científicas — que no fim
pouco mais eram do que bilhetes de colegiais apaixonados.
Foi quando se aproximavam de Urano que viram pela, primeira vez o Objeto.

Deslocava-se num curioso movimento retilíneo, em sentido oposto ao da nave. Fora detectado
desde vários dias pelo sistema radar de Virgil e analisado com o auxílio de Jonas. Um asteróide
desgarrado?
Tudo indicava que seria um meteoro — a rigor, um siderólito, com elevado teor de ferro e níquel,
vestígios de cobalto e — o que era assombroso — uma quantidade enorme de oxigênio aparentemente
livre. Mais do que tudo, intrigava sua luminosidade, que parecia vir de dentro. Dirigia-se para o Sol.
Jonas recusava-se a identificá-lo como um corpo celeste. Era improvável que fosse algum
planetóide ou cometa no início de sua metamorfose, algum extravagante satélite de Urano. Mas fosse o
que fosse, ele estava ali e precipitava-se como um bólide na direção da ESO-1. De onde viria?
E fosse o que fosse, sua simples presença bastara para transformar era expectativa a rotina que se
ia apossando de Virgil. Alguns dias depois, já se tinham análises espectrográficas completas do Objeto e
na semana seguinte ele podia ser visto pelo telescópio. Sua luminosidade era maior do que se poderia
esperar de um corpo de dimensões tão reduzidas e a uma distância de bilhões de quilômetros do Sol. Às
vezes parecia uma estrela cadente que prescindisse de atmosfera para traçar o seu risco luminoso. Tinha
qualquer coisa de fosforescente, com a diferença de que não parecia emitir luz absorvida do Sol e sim luz
própria. Essa luz não apresentava diminuição de emissão sob a temperatura baixíssima do espaço
interplanetário.
Todo esse raciocínio mais ou menos óbvio para os cientistas queria apenas mascarar o que Jonas
já dissera com a sua doce irresponsabilidade de máquina sem problemas filosóficos: tratava-se de um
objeto artificial ou, para dizer tudo, de outra nave!
Não tinha havido nenhum outro lançamento do tipo ESO. Sua tecnologia era recente e, para que
uma nave estivesse de volta, era preciso que houvesse partido muitos anos antes. Por suas características,
entre elas a luminosidade, não podia ser uma das numerosas sondas lançadas no século anterior.
Nenhuma tinha sua forma e sua massa.
O temor inicial, ante sua aparente rota de colisão, dissipou-se quando o Objeto abriu seu ângulo,
aumentando a distância entre as duas naves. Pois não havia mais dúvida de que era outra nave espacial
(ou algum enorme fragmento). Restava saber sua origem.
As comunicações com a Terra faziam-se cada vez mais lentas. E a lentidão começou a enervar o
comandante. Logo percebeu que não se tratava apenas de distância do planeta-mãe. Na sede do Programa
ESO as opiniões estavam divididas.
"Siga o curso normal, procurando não perder de vista o OBJETO" — foi a ordem ambígua. Não
havia também um pouco de ironia? Parecia evidente que, na Terra, não se dava muita importância à
descoberta. Podia ser um dos inúmeros pequenos corpos celestes desconhecidos que vagavam dentro do
Sistema Solar — ou uma ilusão espectroscópica (conjectura que irritou o próprio Jonas, o qual
obstinadamente repetiu seus pontos de vista). De qualquer forma, a Terra achava que, se a "Coisa" se
dirigia para o Sol, poderia ser interceptada facilmente ao passar por Marte, se não se perdesse antes
entre Saturno e Júpiter.
A bordo de Virgil, havia quem temesse uma reação hostil do Objeto, que podia transportar algum
armamento perigoso para a indefesa nave terrestre, devendo esta colocar-se o mais longe possível de seu
alcance. Outro grupo era favorável a uma inspeção de mais perto. O comandante ouvia em silêncio,
tornara-se de súbito um homem fechado, a estudar pensativamente os relatórios, as imagens e as
projeções do computador central. Se tinha alguma idéia, guardava-a para si mesmo.
Foi uma sugestão do mecânico-chefe que fez o comandante decidir-se.
— Parece-me que o Objeto se comporta como se dispusesse de overdrive. Viaja sob o impulso
de um resíduo dessa velocidade. Se Virgil pudesse fazer uma aproximação cautelosa, eu estudaria melhor
o seu sistema de propulsão.
Como chegara a essa conclusão, ninguém sabia nem ele explicou. Apenas advertiu que, na
manobra destinada a ajustar as rotas de Virgil e do Objeto, podia ocorrer um estrondo ainda maior que o
primeiro. Acelerando em direção à outra nave, Virgil descreveria uma curva fechada, que a levaria de
volta à posição inicial. Em dado momento da curva, a aproximação do Objeto seria máxima.
Havia alguma coisa de familiar na imagem que a grande tela sucessivamente decompunha. O
Objeto tinha o formato de um longo charuto amassado, e era possível que fosse apenas uma parte do
veículo primitivo. Só uma raça inteligente pode construir naves espaciais e a inteligência, seja qual for o
ser, deve ter linhas comuns. O simples fato de a nave estar iluminada mostraria o desejo de ser vista. Os
seres que a haviam construído e lançado deviam também saber que não estavam sozinhos no cosmo.
Podia ser e podia não ser uma coincidência o rumo firme que seguia. Era como se seus construtores ou
seus tripulantes — se havia tripulantes — soubessem que existia vida inteligente no Terceiro Planeta.
As tentativas de comunicação com a nave desconhecida foram abandonadas. Comportava-se
como uma sonda automática. Se havia passageiros em hibernação, para suportarem as longas viagens
interestelares, eles já deveriam ter despertado à entrada no Sistema Solar. Talvez usassem formas de
comunicação ou possuíssem sentidos inteiramente diferentes dos humanos.
Mas estava ali, e Virgil foi no seu encalço. O estremecimento que, pela segunda vez, abalou a
nave pareceu que ia desintegrá-la. A estrutura da ESO-1 não fora prevista para acelerações tão violentas,
mas os engenheiros, examinando os danos, logo encontraram resposta. Virgil começou a ser reconstruído
no espaço. O tandem partira-se em vários lugares, mas não tinha havido perda substancial de nada.
Quando o Objeto reapareceu diante de Virgil, o comandante tomou um susto. Parecia imóvel, á
espera, impressionantemente próximo. Teriam seus tripulantes adivinhado a manobra da nave terrestre,
colocando-se num ponto exato? As velocidades das duas naves eram agora quase iguais, rumavam ambas
para o Sol vertiginosamente.
Enquanto isso, da Terra, as mensagens eram lacônicas. O comando do Programa ESO parecia
pouco interessado em discutir o aparecimento daquele corpo desconhecido, mais preocupado que estava
com o lançamento da ESO-2. O computador de Virgil era, constantemente alimentado com uma infinidade
de dados técnicos, melhorias ou inovações introduzidas na ESO-2 e que podiam ser aplicadas na 1.
Aparentemente não haviam tomado conhecimento da decisão do comandante de fazer meia-volta e
aproximar-se do Objeto. Previa-se para o comando da ESO-1 uma certa margem de autonomia de
decisões no espaço.
A lista de voluntários para sair e levar a efeito uma exploração de "Dante" (como algum poeta a
bordo se lembrou de batizar o inesperado companheiro de viagem) cresceu o suficiente para que o
comandante os recusasse a todos. O risco de uma abordagem era enorme; além disso, quem entrasse em
contato com o Objeto não poderia regressar à nave, ficando de quarentena no tandem. Isso criaria
problemas tremendos.
O sistema direcional de "Dante" era ainda desconhecido. Uma aproximação maior entre os dois
veículos podia ter como resultado uma colisão súbita. Com os instrumentos de Virgil se fazia uma análise
milimétrica do casco de "Dante". Não havia mais dúvida de que viam apenas uma parte do que devia ter
sido a nave original. Não havia sinais de sistema de propulsão, como se ela viajasse sob o efeito de um
impulso inicial, como um barco descendo uma correnteza. As luzes internas indicavam que existia alguma
fonte de energia. Mas absolutamente nada naquela fuselagem marcada por um incontável número de
riscos e mossas sugeria que obedecesse a qualquer forma de comando ou fosse tripulada. Um tronco de
árvore à deriva. O que mais intrigava era seu aspecto familiar, como se a engenharia que o construíra
fosse muito semelhante à do homem. No espaço sideral a forma de um veículo não tem maior
importância, exceto para os que estão dentro dele. Mas todo ser, mesmo o menos inteligente, tende a
identificar-se com o seu habitáculo.
No interior, sob a luz uniforme, percebiam-se formas estranhas e difusas. Instrumentos, máquinas,
câmaras de hibernação — ou apenas efeitos de luz? A nave, ou o que dela restava, parecia ter sido
construída havia milhares de anos.
Quando Virgil manobrou para permitir que se examinasse "Dante" pelo outro lado, veio o grande
choque.
As letras.
Ainda que só restassem vestígios, não havia dúvida de que eram inscrições, e não riscos,
manchas, queimaduras do metal, como parecera no lado oposto do casco. Os sinais e diagramas
indicavam claramente como proceder ou identificavam setores da nave. Se havia instrumentos externos,
estes tinham sido destruídos por choques ou pelo tempo. Os caracteres pareciam singularmente
"humanos", embora não se aparentassem a nenhuma escrita conhecida. As letras maiores deviam ser o
"nome" da nave ou de quem a construíra. Outros caracteres, muito repetidos, deviam ser números.
— Quase diria — falou o astrossemântico, sem esconder a excitação, a um comandante que
olhava, absorto, para fora — quase diria que foi escrito por seres como nós, que usamos as mãos. A
escrita revela o caráter de um povo, de uma raça, e até sua aparência física. Mesmo na Terra, com tantos
alfabetos distintos ao longo da História ...
Era uma escrita harmoniosa, que talvez pudesse ser reconstituída. Um módulo poderia fotografá-
la a curta distância, quem sabe um tratamento químico da superfície desenhada ... O comandante autorizou
a saída do módulo, quando Virgil se encontrava a apenas alguns quilômetros. A bordo havia uma tensão
mesclada de expectativa. O módulo igualou rapidamente a velocidade de "Dante" e pareceu colar-se a
ele como um inseto. E as imagens começaram a afluir.
A excitação dos ocupantes do módulo propagou-se por toda a tripulação da ESO-1. Até Jonas
parecia excitado ao analisar os dados que recebia. Depois veio um profundo silêncio, de admiração e
respeito. O comandante apareceu no vídeo:
— Como comandante desta nave — havia na sua voz uma emoção que ele não procurava
esconder — cabe-me, em casos extremos, a decisão final. E estamos diante de um caso extremo. Já tomei
uma decisão ao mudar de rota. E ante o que estamos vendo agora, e do que certamente veremos quando a
nave for aberta por técnicos que já pedi à chefia da missão na Terra — possivelmente em Marte, —
tomei outra decisão. Vamos voltar. Vamos acompanhar nosso irmão em seu retorno a casa. Porque acho,
e creio que vocês todos pensam como eu, que "Dante" foi construído por um ser igual a nós. Como certos
pássaros, como certos peixes, que retornam ao lugar de nascimento, o homem está voltando ao planeta de
onde saiu. Sempre acreditei que o homem era a origem do homem. E que nossa civilização não foi a
primeira, ou a única, a surgir na Terra em tantos milhões de anos. Por isso tomei a decisão de voltar. —
A missão de Virgil terminou.

* * *

NOTA FINAL
Esta história, apresentada simplesmente como "reportagem fantástica" e em versão
superficialmente modificada, apareceu na revista Enciclopédia (ed. Bloch) em dezembro de 1968. Em
1973, Arthur C. Clarke publicava Encontro com Rama, narrando a descoberta e exploração de uma
nave desconhecida dentro do Sistema Solar. A diferença essencial {além da óbvia superioridade de
Clarke como autor de ficção científica) é que Rama é praticamente a descrição de uma nave
alienígena, enquanto eu jogo com o elemento surpresa no fim.
Há dois anos, foi feito o filme Star Trek, sobre roteiro de Gene Roddenberry e Harold
Livingston. Aqui, a idéia é exatamente a mesma: o que os astronautas da Enterprise encontram, e
supõem que seja uma superentidade cósmica, não passa de modesta sonda Voyager, identificada a
partir do que resta das letras — como "Dante". Os admiráveis efeitos especiais e os acréscimos à
sonda feitos por uma civilização de robôs não encobrem a idéia original: tanto para mim (há dez
anos) como para Roddenberry, em vez dos alienígenas de Clarke, Asimov, Leinster e outros, o
primeiro contato do homem no espaço pode ser... com o homem.
Table of Contents
Folha de Rosto
Índice
Introdução
A Guerra Dos Mundos
Primeiro contato
Homo Sol
Missão de salvamento
Berom
Viagem às fronteiras do infinito

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