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OSMAN LINS, CAOS E CRIAÇÃO

LEONARDO MONTEIRO TROTTA

“O senso comum tende a afirmar que to-


do evento é causado por um evento que
o precede, de modo que se poderia pre-
dizer ou explicar esse evento...Por outro
lado, o senso comum atribui às pessoas
sadias e adultas a capacidade de escolher
livremente entre várias vias de ação dis-
tintas...”. (POPPER, 1984. p. xv)

RESUMO:

Este trabalho tem como objetivo promover uma discussão


entre o livro “Avalovara”, de Osman Lins, a Teoria do Caos de
Ilya Prigogine e as possibilidades do homem contemporâneo.
Especificamente o debate é o capítulo de Avalovara que leva o
título Cecília entre os Leões, onde entra em questão a possibilida-
de de fuga ou não de um destino.
As irmãs gêmeas Hermelinda e Hermenilda tecem o desti-
no de Abel e Cecília, sua segunda grande paixão no livro. Mani-
festações do ser; o caos como suporte da phýsis e devaneios do
homem contemporâneo aproximam o capítulo das idéias de Mar-
tin Heidegger e Ilya Prigogine. Idéias essenciais se quisermos
pensar este momento que alguns chamam de Pós-modernidade.
O futuro é dado ou está em perpétua construção? É uma i-
lusão a crença em nossa liberdade? É uma verdade que nos separa
do mundo? A questão do tempo está na encruzilhada do problema
da existência1. Este pequeno texto é uma tentativa de apresentar
algumas idéias que vem sendo discutidas em um trabalho maior
sobre “Avalovara”, de Osman Lins. A proposta principal é apro-
ximar-se da questão essencial: o Tempo. Não há como se manter
fora da órbita de tal questão. É um problema latente para o conhe-
cimento humano. Do apriorismo newtoniano às idéias atuais da
Cosmologia, a ciência moderna vem tentando responder a esta
questão que como afirma Prigogine está na nossa encruzilhada.2
No campo da filosofia, pensadores como Heidegger, Popper e
Bergson mostraram a incompatibilidade do apriorismo com o
indeterminismo da realidade. Hoje mais do que em qualquer tem-
po é necessário que esses dois campos se aproximem para tentar
colocar novas luzes na questão. Sem dúvida, “Avalovara” é uma
tentativa de O/L3 de entender e responder a algumas perguntas,
que neste trabalho reduzo a duas: a questão do tempo e a origem
do Universo.

1
Cf. PRIGOGINE, 1996.
2
Para maiores detalhes sobre as discussões sobre o tempo na ciência,
ver NOVELLO, Mario. O círculo do tempo. Rio de Janeiro: Campus,
1997
3
Uso aqui a mesma nomenclatura utilizada pelo autor e por sua mulher
Julieta de Godoy Ladeira no livro “La Paz Existe?” (São Paulo: Sum-
mus, 1977) onde eles relatam uma dura viagem pela América Latina.
2
Baseado numa geometria inédita4 em termos cosmológicos,
O/L divide a questão do Espaço/Tempo em “Avalovara”, em sub-
temas: A espiral e o quadrado, que se divide em dez partes no
livro, “O relógio de Julius Heckethorn” que se divide em outras
dez partes5 e de maneira indireta o capítulo Cecília entre os leões
que se divide em 17 partes6. A espiral de origem logarítmica par-
te, como tudo o que existe, do princípio das curvas, que rege a
espiral, mantendo seu movimento uniforme. Ignora-se sua origem
e seu fim, é uma entidade sem limites. A mecânica que rege a
espiral é tão rígida quanto a que rege os astros.
Com o que foi colocado até aqui é possível afirmar:

A) O Universo de Avalovara obedece ao princípio das curvas


que rege uma espiral em movimento uniforme.

B) Esta espiral não tem começo, nem fim: Idealmente, ela come-
ça no Sempre e o Nunca é seu termo7.

4
As idéias sobre a geometria do romance podem ser esclarecidas em
GHYKA, Matila. The geometry of art and life. New York: Dover pub-
lications, inc ou COOK, Theodore Andrea. The curves of life. New
York: Dover publications, inc.
5
Para um melhor entendimento das divisões de “Avalovara” ler:
DELCASTAGNÉ, Regina. A garganta das coisas: Movimentos
de Avalovara. Brasília: Editora Universidade de Brasília: São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
6
Na verdade, todos os capítulos tratam da questão como está sendo
discutido no trabalho que está sendo elaborado.
7
LINS, Osman. Avalovara. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, pg
23. Importantíssimo destacar a questão da edição em “Avalovara”.
3
O Cosmos de “Avalovara” é eterno e em constante
movimento. A espiral obedece a uma rígida mecânica que impede
o seu colapso ou paralisia. Labirintos seriam a exemplificação de
uma arritmia no movimento. O/L afirma que a espiral é o tempo e
que o espaço é o quadrado. Então podemos concluir que, primei-
ro, o tempo é eterno, segundo, que está em constante movimento
e terceiro, e mais fantástico, que o espaço deriva desse tempo que
inicia no sempre e o nunca é o seu termo. Isso dito, surge uma
abertura para formular a seguinte questão: Se a espiral-tempo é
eterna, está em constante movimento uniforme, e o espaço-
quadrado do romance é uma manifestação nesta espiral, pergunto:
O Tempo em Avalovara é um axioma? Temos aqui um aprioris-
mo? Diante do que foi exposto acima é inegável a existência de
um Tempo eterno que serve de arcabouço para a manifestação do
real. O movimento das curvas e a espiral funcionam como uma
convenção nos moldes de Poincaré8. Sobre o campo instável, o
mundo, reina uma vontade imutável9.

Como o romance segue uma cosmogonia geométrica-temporal é de


suma importância respeitar a forma imposta pelo autor. Infelizmente
nem todas as edições do romance respeitaram as idéias originalíssimas,
ou nem tanto, de Osman Lins. Recomendo desde já a leitura de duas ou
três edições diferentes do livro.
8
Poincaré: Os axiomas geométricos, portanto, não são nem juízos sinté-
ticos, nem fatos experimentais. São convenções. DAHMEN, Silvio
Renato. O Cientista filósofo. In: Filosofia. São Paulo: Escala, ano I,
número 4. p. 36-43.
9
Cf. “Avalovara”, p. 37.
4
Em “Avalovara”, além da espiral existem dois outros ele-
mentos marcantes, que regem o romance: a frase latina SATOR
AREPO TENET OPERA ROTAS10 e a mitologia guiada pelo
Deus Jano11. Tanto a frase quanto Jano são caracterizados no ro-
mance pela ambigüidade, o que parece abrir um precedente na
rigidez e uma possibilidade de reversibilidade.
O improvável surge no sistema que rege “Avalovara”
quando nos aventuramos pela história de Julius Heckethorn, um
relojoeiro do início do século XX, que tem na sua família uma
tradição de montadores de relógios. Julius constrói um relógio
que trabalha com o imprevisível12, reproduzindo o que seria uma

10
No romance aparecem duas traduções: O lavrador mantém cuidado-
samente a charrua nos sulcos e O Lavrador mantém cuidadosamente
o mundo em sua órbita. Uma discussão sobre estas traduções será
motivo de um trabalho futuro.
11
Janeiro, cujo nome vem do deus Jano, foi acrescentado ao calendário
por Numa Pompílio (715- 672 a .C.), sucessor de Rômulo, persona-
gem histórico-mítico que, segundo Plutarco, teria fundado Roma em
21 de março de 753 a .C. Figura das mais singulares, Jano é exceção
no panteão romano, visto não haver seu correlato entre os gregos.
Tampouco o encontramos nas mitologias indo-européias, e seu sur-
gimento está envolto em incerteza. Uns dizem que nasceu na Cítia
(Ásia Menor), outros que seja proveniente de Perrébia, na Tessália
(região da Grécia). Algumas versões o fazem filho de Apolo e de
Creusa, filha de Ereteu, um dos reis de Atenas. Sua imagem é repre-
sentada como uma figura de dois rostos.
12
Importante ressaltar que o que chamamos aqui de sistema são as indi-
cações dadas pelo próprio autor de como funciona o livro. Este lado
da imprevisibilidade é indicado pelo próprio Osman. Obviamente que
o romance e seus personagens traduzem o improvável a cada instante.
5
introdução de uma sonata de Scarlatti. Ele monta o relógio de
acordo com a manifestação do real que na sua concepção é a da
imprevisibilidade como em um eclipse.
Assim quando se espera que se escute a frase musical intei-
ra da sonata de Scarlatti, o imponderável pode acontecer e a frase
não ser executada. O relógio de Julius é o marcador do tempo do
improvável. Aos saltos ele marca a possibilidade de manifestação
do real. Que momento é esse que marca o improvável? Sem dúvi-
da o aparecimento dos dois personagens principais. Os dois per-
sonagens principais do romance penetram uma sala, advindos do
movimento rígido da espiral: natureza infinita, como um eterno
processo13.
A forma quadrangular da sala é um corte no movimento
espiralado e onde se justifica toda a trama, seus movimentos e
personagens14.
Os temas que surgem a princípio de retorno arbitrário são
regidos pela já dita frase: SATOR AREPO TENET OPERA RO-
TAS e obedecem a uma Topologia de compensação ao movimen-
to da espiral. O quadrado mágico (sala) é a terra, os personagens
são a manifestação do não-equilíbrio. Concluindo e tentando en-
tender o sistema criado em “Avalovara”: De um lado temos uma

Este trabalho se preocupa apenas com a cosmogonia criada pelo au-


tor.
13
“Avalovara”. p. 23.
14
De maneira simples e bela, Osman Lins apresenta o surgimento do
humano colocado no espaço.
6
espiral que, ao lado de uma frase em latim e regidas pelo Deus
Jano, mantém (ou não?) uma vontade temporal imutável. Não
representa a espiral, igual a Jano, um simultâneo ir-e-vir, não
transita simultaneamente do Amanhã para o Ontem e do Ontem
para o Amanhã?15
Por Julius nós temos um relógio que marca o imponderá-
vel, que vaga pelo mundo emitindo notas musicais de forma caó-
tica. Nem sequer ocorre (a quem ocorreria?) que as engrenagens
ajustadas e expostas à falha calculada, voluntária, do mecanismo
imperfeito marcham calmamente para esse milagre: a confluência,
o eclipse. Em outras palavras, num arcabouço temporal rígido ou
nem tanto, nós temos a manifestação do real que é da ordem do
imprevisível.
O Cosmos se movimenta uniformemente e o devir se mani-
festa de maneira irreversível. É possível pensar hoje numa cos-
mogonia que tem um universo em movimento uniforme e fenô-
menos locais caóticos ou imprevisíveis ou uma cosmogonia que
derive diretamente do desequilíbrio?
Os caminhos apontados por Prigogine ou por Mário Novel-
lo, cientistas que estão hoje no cerne da questão cosmológica,
desmistificam a certeza, incorporam elementos até então estra-
nhos ao cientista como o não-demonstrável e apresenta uma con-
cepção cosmológica de universo muito próxima a de “Avalova-

15
“Avalovara”. p. 57.
7
ra”. Uma divergência surge: Seria o Tempo irreversível em “Ava-
lovara”?
A temporalidade no livro trabalha com a possibilidade de
idas e vindas dentro do sistema, o que se concretiza no duplo
nascimento da personagem principal. Mas é uma questão ainda a
ser pensada. Para Prigogine o tempo é irreversível, para Mário
Novello as viagens no tempo são uma possibilidade ensaiada por
Gödel, motivado pelas equações de Einstein (NOVELLO, 2006).
Para encerrar essa introdução o que não se pode deixar de
constatar é a atualidade do pensamento e da estrutura de “Avalo-
vara” diante dos novos caminhos apontados pela Ciência. O mais
impressionante é que O/L afirma que a estrutura de seu livro é
derivada de uma estrutura poética de dois mil anos descoberta na
Biblioteca Marciana em Veneza. Estiveram os poetas a par do
Cosmos durante todo este tempo e permaneceram em silêncio ou
O/L é um viajante no tempo? Difícil nestes tempos atuais estabe-
lecer uma linha limítrofe entre a poética e a ciência.
Não deve causar espanto ao leitor que tiver a coragem de se
aventurar por essas linhas uma fusão de saberes. Todo ônus de tal
fusão cabe a mim, o autor dessas linhas. Importante repetir o ar-
cabouço cosmogônico criado pelo autor: uma espiral rígida de
origem logarítmica que rege o universo do livro e as possibilida-
des de manifestações incrustadas no palíndromo SATOR AREPO
TENET OPERA ROTAS.

8
Tais manifestações acontecem em quadrados mágicos que
obedecem ao movimento da espiral e são os capítulos do livro. A
priori tal espiral escreve o destino de nossas personagens. São
situações que elas são obrigadas a passar. O universo de “Avalo-
vara” segue um movimento uniforme que escreve a sorte de nos-
sos heróis.
Diante disso, a possibilidade de fugir ao destino seria nula.
Seria nula porque o que está destinado se torna o único resultado
possível.
Esta fórmula de universo está plenamente de acordo como
Newton a entendeu. A relação passado e futuro neste sistema é
desprezível. Em outras palavras o processo é reversível. Se co-
nhecermos as causas, com certeza saberemos o que vamos ter
como conseqüência.
A minha intenção aqui é acabar com a certeza do resultado
final, introduzindo novas possibilidades neste resultado.Na ver-
dade o objetivo dessa operação é introduzir as possibilidades ao
invés das certezas. Diante disso é imprescindível o papel da Seta
do Tempo. É ela que vai possibilitar abrir uma clareira de discus-
são. Esta clareira é importante porque é nela que se pode questio-
nar a cosmogonia criada por O/L: Como se comporta tal universo
de criação diante das importantes idéias contemporâneas de Ilya
Prigogine16 a respeito do Caos e das Leis da Natureza? Isto pro-

16
Dois livros são fundamentais nesta aventura: “O fim das certezas”.
São Paulo: Unesp, 1996 e “As leis do caos”. São Paulo: Unesp, 2002.
9
blematizado poderia concluir que o sagrado da obra de arte, ele-
mento tão necessário estaria reduzido a uma possibilidade física?
O ateísmo da nova cosmologia afasta as possibilidades do artista
contemporâneo? Respostas não serão dadas de maneira convin-
cente.
Cabe aqui fomentar a discussão que é árdua. Que tire o lei-
tor dessas poucas páginas a sua própria conclusão, mas reafirmo
que é impossível pensar a poesia hoje longe dessa discussão, por
respeito a nossa origem e ao nosso destino.

Cecília como origem do mundo

Este trecho é dedicado à discussão do capítulo Cecília entre


os leões, momento em que Abel encontra o amor pela segunda
vez agora na sua Recife. Na verdade esse segundo amor já tinha
sido previsto durante um lançamento de rede de pesca, na cisterna
da sua casa, durante a sua adolescência:

Os passos da Leve! Acaso não serei o quem, Abel? O onde?


O porquê? Não é a mim que procuras? Estendido ainda à bei-
ra da cisterna, inventando essas perguntas e percebendo esses
passos, não me acodem expressões ou idéias de terror, de gra-
tidão, de alívio. (“Avalovara”)17

17
Todos os trechos de “Avalovara” correspondem à passagem Cecília
entre os leões. Como já foi colocado obedece ao movimento da rígida
espiral.
10
A rede ficara presa no fundo da cisterna. Abel despe-se e
resolve mergulhar para ver o que prende a rede. Uma mão, envia-
da pelo destino evita o mergulho do jovem Abel que nesse mo-
mento não tem consciência que escapou da morte. Um nome sur-
ge refletido no fundo da cisterna “Cercília” ou talvez Cecília.
Cecília é o segundo grande amor de Abel e diferente do primeiro
vai se tornar amor concebido18. Cecília é andrógina, hermafrodita
(é o universo um andrógino?) e carrega em seu corpo a formação
do universo. O destino de nosso casal é a morte, tecido pelas fi-
andeiras Hermelinda e Hermenilda, homônimas de Hermes e que
cosem o destino das nossas personagens. Isso posto vamos pensar
no destino de Abel diante do universo que é arquétipo do roman-
ce. Dois caminhos são possíveis19: o primeiro indicado pelo pró-
prio O/L, como já foi dito, num capítulo do livro, estabelece co-
mo estrutura uma rígida espiral logarítmica que possibilita a re-
versibilidade temporal.
Repetindo mais uma vez o universo de “Avalovara” esta
conceitualmente de acordo com as idéias Newtonianas de univer-
so. Por outro lado o capítulo é paradoxal, e aqui ocorre a tão pro-
curada fenda, porque tem o advento de uma abertura criada pela
idéia de Caos incorporada por Abel, que se agarra nela para con-

18
O primeiro romance cronológico de Abel é com uma alemã de nome
Roos. Na verdade é uma paixão platônica que nunca se consuma.
19
Na verdade, o caminho é um só, o outro será especulado nestas pági-
nas.
11
sumir o seu romance. O desafio de Abel é imenso, é um confronto
com aquela que não tem metade do rosto e que tem seus passos
costurados pelas fiandeiras e como seu fiel escudeiro o ajudante
Cara de Calo.20 Não se pode acusar Abel de falta de coragem:

Os fios soltos no mundo serão mesmo o reverso do tapete a


que se reporta um pensador? Quem pode garantir que existe,
oculta aos nossos olhos, a face do desenho? Predominam, ve-
jo bem, a senectude e o avesso. Mesmo assim, um ponto ou
um ato existem no qual tudo se ordena e começa. Não? (Ibi-
dem, p. 89)

A idéia de que o universo é fixo ou está em movimento u-


niforme é padrão na física. Nos dois casos o que se apresenta é
um perfeito equilíbrio onde ocorrem eventos reversíveis que são
todos explicados por movimentos anteriores e que sempre apre-
sentam o mesmo resultado. A idéia de aceleração ou desacelera-
ção em nada muda o conceito de equilíbrio, de previsibilidade, ou
seja, de destino.
Este movimento é o que rege a história de Abel. Ele,
naquela noite na cisterna, recebe o caminho a ser traçado. E ele é
traçado de forma inexorável, com um final bastante doloroso. Ao
longo do capítulo pistas colocadas reafirmam a força da Leve e
reificam a idéia do destino. O pai morto que está sempre acompa-

20
O desafio de Abel é tão grande quanto foi o do físico o do físico vie-
nense Ludwig Botzmann que aplicou as idéias de Darwin no campo
da física.
12
nhando o casal. A visita da mesma ao Tesoureiro, não por acaso
atendida por Abel.
As milhares de línguas e vozes que exalam do corpo de Ce-
cília, personagens de uma Torre de Babel contemporâneas ao
primeiro Abel. Diante de tanta força restaria a Abel cumprir o seu
destino, ou refugar ainda na adolescência. De maneira corajosa,
ele resolve desafiar o que está escrito.Lutando contra as imposi-
ções que regem o universo, Abel apregoa a idéia do Caos como
plataforma de salvação para a sua vida. Mais uma vez no romance
ele age de forma desesperada, no limite do inteligível, jogando
dados em busca de novos resultados.

Pode ser, o mundo, um tapete despedaçado e também um ta-


pete que nunca realmente foi tecido: só na idéia o seu desenho
seria coerente e completo. Sim, pode ser. O caos é insalubre e
mesmo repugnante. Não? (Ibidem, p. 162)

O senso comum entende a idéia de Caos como desordem. O


cotidiano numa visão generalizada deve ser regido pelo equilí-
brio. Ilya Prigogine, prêmio Nobel de química, afirma que o equi-
líbrio está longe de ser um retrato fiel do que acontece na nature-
za, mas do que isso até, ele afirma de maneira categórica que nós
só existimos por conta do desequilíbrio que acontece nos eventos
físicos (PRIGOGINE, 1996).
Não deve ser difícil de entender: Que possibilidade a vida
teria se as coisas permanecessem em perfeito equilíbrio? Respos-
ta: Nenhuma. Que fator é então o causador de tal desequilíbrio e
13
por conseqüência o vetor vital de nosso universo? Resposta: O
tempo.
Pensando a partir deste instante o tempo como agente irre-
versível, como causador de processos irreversíveis. A maior difi-
culdade de qualquer cosmologia ou cosmogonia não é estabelecer
um começo, mas como explicar o permanente equilíbrio do sis-
tema diante da seta do Tempo.

Resta saber, ao olharmos de perto as manifestações, artificiais


ou não, onde prevalecem os ameaçadores contrários daquelas
mesmas noções, não estamos devassando a real natureza do
universo, expressa justamente no desordenado, no ilegível.
(Ibidem, p. 163)

O paradoxo causado por um tempo irreversível diante de


um universo em equilíbrio foi solucionado no romance com uma
associação à responsabilidade divina. O universo de “Avalovara”
é gerido por um Deus que é mantenedor/provocador desse univer-
so equilibrado/desequilibrado.

Os dois rostos de Jano, gravados em tantas efígies monetárias,


representam leio talvez em Ovídio, um vestígio do seu estado
primitivo: nas trevas onde o mundo ainda não existe, quando
tudo é pesado e leve ao mesmo tempo, Jano, deus dos limia-
res-e portanto das partidas e das voltas-, chama-se Caos. Li-
ga-se, simultaneamente,à ordenação e à desordem. Minhas
indagações nesse caso, estão escritas em Cecília? (Ibidem, p.
252)

14
Fica claro que é a partir da experiência que Abel tem com
Cecília que nosso poeta entra em contato com a questão da ori-
gem do mundo. Diante das certezas tecidas pelas gêmeas setuage-
nária resta a Abel jogar sua vida na convicção de que o Caos é
aquele que pode criar um escape do resultado final. Nosso herói
busca de maneira desesperada e comovente uma fuga da certeza.
Ele tenta, sem sucesso porque sua amada morre, uma aproxima-
ção com a teoria das possibilidades. Porque sem dúvida algumas
delas apontavam um outro caminho.

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