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Aplicando o Modelo Actancial em “O Boi dos Chifres de Ouro”, de Ivo Bender

Márcio Silveira dos Santos


Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, Florianópolis/SC, Brasil
E-mail: marccioss@yahoo.com.br

Resumo Abstract

O presente trabalho propõe exercitar a aplicação The present work proposes to exercise the application
de um sistema de modelo actancial sobre o texto of a actantial model system on the theatrical text O
teatral O Boi dos Chifres de Ouro: uma comédia Boi dos Chifres de Ouro: uma comédia pampeira em
pampeira em 1 ato, de Ivo Bender. O modelo a ser 1 ato, by Ivo Bender. The model to be used is the one
utilizado é o desenvolvido pela pesquisadora Anne developed by the researcher Anne Ubersfeld, in the
Ubersfeld, em forma de esquemas a partir do es- form of schemas from the actant scheme developed
quema de actantes desenvolvido por Algirdas-Ju- by Algirdas-Julius Greimas (1917-1992), which start-
lius Greimas (1917-1992), que por sua vez partiu ed from the research of two other narrative theorists:
das pesquisas de outros dois teóricos das narrati- the Russian Vladimir Propp (1895-1970), scholar
vas: o russo Vladimir Propp (1895-1970), estudioso on Wonderful Tale Morphology (1984); and from the
sobre a Morfologia do Conto Maravilhoso (1984); e French Étienne Souriau (1892-1979), in his work The
do francês Étienne Souriau (1892-1979), em sua Two Hundred Thousand Dramatic Situations (1993).
obra As Duzentas Mil Situações Dramáticas (1993).

Palavras-chave Keywords
Anne Ubersfeld. Dramaturgia. Ivo Bender. Anne Ubersfeld. Dramaturgy. Ivo Bender.
Modelo Actancial. Actancial Model.
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Introdução Federal do Rio Grande do Sul, em 1961, e obteve


boa recepção. A peça seguinte, A Terra Devorada,
No campo dos estudos e da análise do texto tea- estreou no Theatro São Pedro em 1963, mas sem
tral, no Brasil, um assunto que tem produzido bons boa receptividade. Após renegar a peça Os Alcatru-
debates nas primeiras décadas do terceiro milênio é zes, Ivo Bender escreve, em 1967, Auto das Várias
sobre a qualidade do texto dramatúrgico a ser ence- Gentes no Dia de Natal (1988a), para o público in-
nado. Visto que um bom texto dramático tem a força fantil, que foi censurada no ano seguinte. Depois de
de segurar a atenção dos espectadores, um bom en- criar uma comédia musical que jamais foi publicada
cadeamento de cenas, nós dramáticos consistentes, ou encenada, Bender escreveu, em 1969, A Casa
a evolução dos conflitos e suas resoluções, perso- atrás das Dunas e, em 1971, o seu primeiro sucesso
nagens marcantes, enredo coeso e estruturado, ou comercial, Queridíssimo Canalha, onde a trama era
seja, elementos que constituem uma trama potente. ambientada em um país fictício da América Latina.
Por isso, a questão sobre esse tema, entre tantas ou- Em 1972 escreveu Quem Roubou Meu Anabe-
tras, que me vali como ponto inicial de reflexão neste la?, dramaturgia que aborda uma história de traição
presente trabalho foi: como verificar a potência do e aspectos sobrenaturais. No mesmo ano, Bender
texto dramático através de seus elementos actantes? cria O Auto do Pastorzinho e Seu Rebanho, O Ma-
Para tal reflexão procurei partir de um exercício caco e a Velha (1988b), A Invasão das Tiriricas e A
de aplicação do modelo actancial desenvolvido pela Estrelinha Cadente, todas direcionadas para crian-
pesquisadora Anne Ubersfeld, que possibilita uma ças. Sexta-Feira das Paixões, de 1975, retoma o
melhor aferição da potência da narrativa do texto tea- sobrenatural e faz uma crítica à situação política do
tral por meio dos seus elementos actantes. O estudo país, então sob o poder da ditadura militar. O Cabaré
de Ubersfeld (2010) está presente em sua obra, tra- de Maria Elefante, de 1981, reúne figuras pitorescas,
duzida para o português do Brasil, Para Ler o Teatro. como um vampiro, freiras e um travesti, com uma lin-
A dramaturgia que escolhi para a aplicação do mode- guagem bastante paródica e irônica. A maioria des-
lo actancial foi O Boi dos Chifres de Ouro, do drama- tas obras foram publicadas em livros, como na cole-
turgo gaúcho Ivo Bender (1998), que foi um dos meus tânea Teatro Escolhido Ivo Bender (BENDER, 2005).
mestres na arte da escrita do texto teatral e sempre A Trilogia Perversa (1988c), de 1988, inaugura
uma referência para as artes cênicas do sul do Brasil. uma nova fase na carreira de Ivo Bender, o ciclo das
tragédias modernas. As três peças são inspiradas
O Dramaturgo nos mitos gregos, transpostos para diferentes con-
textos históricos do Rio Grande do Sul, em específi-
Ivo Cláudio Bender nasceu em 23 de maio de co a colônia alemã, da qual o autor era descendente.
1936 na cidade de São Leopoldo, região metropolita- No texto teatral 1941 – Colheita de Cinzas, aborda o
na de Porto Alegre no Rio Grande do Sul. Foi profes- mito grego de Electra e Orestes, num sítio de colonos
sor universitário, tradutor de teatro e de poesia e um alemães durante uma grande enchente; Em 1874 –
dos mais importantes dramaturgos do teatro gaúcho. As Núpcias de Teodora, a trama se passa no período
Influenciado pelo teatro do absurdo, Bender come-
çou a escrever peças na década de 1960, chegando
a produzir ao todo 36 textos dramáticos, cuja fase
de maior produção se deu nos anos de 1970 e 1980.
Sua primeira peça, As Cartas Marcadas ou
Os Assassinos, foi escrita quando ele ainda era um
estudante do Instituto de Letras da Universidade

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da Revolta dos Muckers1, com base na tragédia de ra dramática pela peça  Mulheres Mix,  da Co-
Eurípedes, Ifigênia em Aulis, mostrando o sacrifício leção Dramatúrgica Contemporânea RS, pu-
de Teodora em prol da causa de Jacobina Maurer; blicada pelo IEL – Instituto Estadual do Livro.
Em 1826 – A Ronda do Lobo, a partir do mito origi- Caio Fernando Abreu,  outro importante es-
nal de Atreu e Tiestes a história se transporta para critor e dramaturgo gaúcho, que conviveu com Ivo
os primórdios da imigração alemã no interior sulino. Bender, afirmou em depoimento que “passando do
Sobre a importância e significado da Trilogia cômico ao trágico, do subjetivo ao objetivo, capaz
Perversa, quando da publicação dos textos dramá- de esmiuçar em profundidade não só os tormen-
ticos em livro, a professora de Teoria da Literatura e tos individuais como as mazelas sociais, [...] o tea-
Teoria da Literatura Dramática do Instituto de Letras tro de Ivo derrama-se por vários níveis de leitura,
da UFRGS, Doutora Maria da Glória Bordini disse: passível de inúmeras interpretações.” (1984, p 22).
Para o crítico e jornalista Antônio Holfeldt, Ivo
Pela inovação temática, que desvenda, Bender era sem exagero um digno sucessor do pio-
para o palco, possibilidades inexploradas
de nosso passado colonial, pelo extremo neiro Qorpo Santo3,
despojamento formal e pela concepção
dramatúrgica à grega, seca e transparen- A obra dramática de Ivo Bender é múltipla,
te, essa obra representa uma contribuição pois reúne textos para adultos e crianças.
para o teatro brasileiro de caráter inco- Mas, ao mesmo tempo, é extremamente
mum, pela feliz associação entre a tradi- uníssona, pois apresenta, com clareza, uma
ção trágica do Ocidente e um universo de visão de mundo que se expressa através de
colonos que fascina pela fereza e pela so- uma perspectiva irônica e crítica, articulan-
lidão radicais. (BORDINI, 1988, 2ª orelha). do imagens aparentemente absurdas que
camuflam, na verdade, reflexões sérias a
respeito da realidade imediata. Do ponto de
Após Trilogia Perversa, Bender publica textos vista de uma história da dramaturgia no Rio
como Marcos IV, 23 (adaptação de um conto de Jor- Grande do Sul, Bender é um digno sucessor
do pioneiro Qorpo Santo: como ele, Bender
ge Luis Borges) (CRUZ; BENDER, 1988), O Boi dos trabalha com cenários de seu entorno, refe-
Chifres de Ouro: uma comédia pampeira em 1 ato re-se a um tempo semelhante ao seu (e a
(em homenagem a Simões Lopes Neto2) (1998) de seus leitores ou espectadores), apresen-
ta-se com a aparência da descomprometida
e a comédia em 1 ato Mulheres Mix (2001). Em comédia para articular uma leitura profun-
2002, recebeu o prêmio Açoriano de literatu- damente arguta do contexto imediato em
que encontra. (HOLHFELDT, 2018, p. 03).
1 Revolta dos Muckers (1873-1874) foi um conflito lide-
rado pelo casal Jacobina Mentz Maurer e João Jorge
Maurer que fundaram uma seita religiosa e que entrou
em confronto com o poder público estadual. A Linha
Ferrabraz, atualmente situada no município de Sapiran- 3 José Joaquim de Campos Leão (1829-1883), mais co-
ga (RS), foi o palco deste evento, que estendeu a sua nhecido pelo nome de Qorpo Santo, natural de Triunfo
abrangência para uma série de outros municípios da (RS) foi escritor, jornalista, dramaturgo, tipógrafo. Es-
região do Vale do Rio dos Sinos. O nome da revolta é creveu o compêndio Enciclopédia, ou Seis Meses de
oriundo do apodo pelo qual ficaram conhecidos os en- uma Enfermidade (1877), dividida em três tomos onde
volvidos no conflito. Os participantes da Seita liderada constam obras como a dramaturgia Hoje sou um; ama-
por Jacobina Maurer eram apelidados de “mucker”, que nhã outro, considerada pelos críticos como umas das
no dialeto originário da região de Hunsruck, na Alema- peças fundamentais para chamar Qorpo Santo de pre-
nha, significa “falso religioso”. (GEHRKE, 2016, p. 311). cursor do Teatro do Absurdo, antes mesmo de Alfred Jar-
ry (1873-1903). Yan Michalski em 25-10-1970 disse no
2 João Simões Lopes Neto (1865-1916) foi escritor, jor- Jornal do Brasil (RJ): Qorpo Santo (...) é um dos mais
nalista, dramaturgo pelotense que escreveu entre outras poderosos e imaginativos dramaturgos brasileiros de
obras, os livros: Contos Gauchescos (1912) e Lendas do todos os tempos, e um dos mais autênticos precurso-
Sul (1913), obras referenciais de uma literatura que abor- res do atual Teatro do Absurdo que tenham surgido, no
da as lendas, costumes e tradições da região do pampa. mundo inteiro, no século passado. (CESAR, 1986, p. 35).

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Como tradutor, Ivo Bender traduziu para o por- Étienne Souriau (1892-1979), a partir de sua obra
tuguês a poesia de Emily Dickinson e dramaturgias As Duzentas Mil Situações Dramáticas (1993).
de Jean Racine e Harold Pinter. Por influência das Greimas (1973) no tocante à semântica estrutu-
traduções da obra de Dickinson escreveu aquele que ral do texto, desenvolve inicialmente o modelo actan-
seria seu último texto teatral Diálogos Espectrais, de cial que irá possibilitar a compreensão da estrutura
2004, que retrata uma conversa imaginária com a das narrativas, seja qual for o tipo de narrativa: roman-
poetisa norte-americana4. Depois deste último tra- ce, novela, teatro, etc., pois onde houvesse um jogo
balho com a dramaturgia trocou o teatro pela pro- entre actantes motivados por seus desejos, amores,
sa e publicou duas antologias de narrativas breves: religiões, disputas de poder, políticas, etc., haveria a
Contos (L&PM, 2010) e Quebrantos e Sortilégios possibilidade de estabelecer um sistema que esclare-
(Terceiro Selo, 2015), com o qual foi laureado com o cesse as relações mais profundas destas narrativas.
Prêmio Açorianos de Literatura, na categoria Conto. O linguista lituano vai chamar a atenção de
O Doutor em Letras Ivo Bender teve também Anne Ubersfeld quando na proposta de seu esque-
uma carreira por décadas como docente na área aca- ma, ele já estabelece o corte da 7ª função (“casa” no
dêmica até os anos de 1990 quando se aposentou modelo que veremos a frente), do árbitro ou ponto
como professor do Departamento de Artes Cênicas de vista, proposta por Étienne Souriau, que de certa
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O forma, segundo a autora, o próprio Souriau “perce-
escriba Ivo Bender veio a falecer em 25 de junho de beu que este [ponto de vista] é expresso por outra
2018, aos 82 anos, em Porto Alegre. Deixou um livro casa” (UBERSFELD, 2010, p. 35). Ainda que Souriau
de contos inédito: Rosa Noturna (Movimento, 2018), tenha como obra máxima As Duzentas Mil Situações
que foi lançado em 31 de agosto de 2018 no Theatro Dramáticas, o mesmo vai dizer que no bojo destas
São Pedro, local onde estrearam suas primeiras pe- situações dramáticas existem funções dramatúrgi-
ças, juntando uma boa quantidade de ex-alunos, ami- cas essenciais que não são encontradas em grande
gos e artistas que têm Ivo Bender como grande mestre. número “elas não são mais que seis ou sete que va-
lham a pena distinguir” (PALLOTTINI, 2015, p. 169).
O Modelo Actancial Partindo dessas reformulações anteriores,
Ubersfeld realizou uma série de estudos, analises e
A pesquisadora Anne Ubersfeld (1918-2010), sutis adaptações para aplicação do modelo actancial
que foi professora-emérita da Universidade Paris à estrutura do texto teatral no intuito de colaborar e
III/Sorbonne Nova (Institut d’Études des Théâtres), enriquecer a leitura, a análise e a prática do teatro.
dentro do campo dos estudos do texto teatral e da Nos estudos sobre a articulação entre a es-
representação desenvolveu um sistema de análise trutura e a história no texto dramático, em deter-
actancial do texto dramático, a partir do esquema minado momento, Anne Ubersfeld vai dizer que os
de análise dos actantes em narrativas não dra- actantes são unidades abstratas no esquema de
máticas desenvolvido por Algirdas-Julius Greimas aplicação, mas que na encenação ganham vida por
(1917-1992). O linguista lituano de origem russa meio dos atores ou do cenário e demais elemen-
por sua vez partiu das pesquisas sobre as funções tos que irão constituir o espetáculo. No entanto, no
da narrativa de outros dois teóricos: O russo Vla- esquema de aplicação, os actantes, não necessa-
dimir Propp (1895-1970), estudioso sobre a Mor- riamente serão identificados-representados pelos
fologia do Conto Maravilhoso (1984); e do francês personagens-atores, e podem ser de outra ordem:

4 Esta informação e outras podem ser consultadas no a. um actante pode ser uma abstração (a
verbete “Ivo Bender” (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, Cidade, Eros, Deus, a Liberdade) ou uma
2017). personagem coletiva (o coro antigo, os sol-

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dados de um exército), ou então uma reu- de cada elemento actante. Seja na dosagem dos
nião de várias personagens (esse grupo de seus desejos ou quem são seus adjuvantes, des-
personagens podendo ser, como veremos,
um oponente a um sujeito e à sua ação)!; tinadores e opositores, como também na cons-
b. uma personagem pode assu- tatação das forças e conflitos. O conflito é fun-
mir simultaneamente ou sucessiva- damental na base estrutural do texto dramático.
mente funções actanciais diferentes;
c. um actante pode ser cenicamente au- Importante frisar que mesmo consciente de
sente e sua presença textual pode es- que o método proposto pela autora tem certas res-
tar inscrita apenas no discurso de outros trições enquanto ferramenta de análise de drama-
sujeitos da enunciação (locutores), en-
quanto ele mesmo nunca é sujeito da turgias mais contemporâneas, no entanto ainda
enunciação. (UBERSFELD, 2010, p. 35). afigura-se muito útil como análise de textos teatrais,
como a exemplo do propósito do presente trabalho.
A definição dos actantes pode ser configura- No esquema desenvolvido pela autora, esta-
da num sistema de casas, seis no total, onde se- belecendo as conexões de verificação desses con-
tas indicam o caminho nas estruturas de forças flitos entre actantes, podemos perceber também o
da narrativa, as ligações e ações de um actante que o dramaturgo deseja comunicar e qual o seu
sobre o outro. Como neste esquema apresentado discurso. Compreendem-se melhor as ações e o
por Ubersfeld, tal como concebido por Greimas, encadeamento das cenas, e por consequência, o
para aplicar o modelo actancial no texto dramático: cerne que tece a obra e as subcamadas da histó-
ria a ser encenada, lida ou representada. Segundo
Figura 1 – Esquema do Modelo Actancial. Ubersfeld (2010), essa análise possibilita também
ao encenador e atores, a determinar o lugar actan-
cial da personagem enfatizando as funções maciças
da personagem em sua relação com as outras e
com a ação, e até mesmo propicia um maior apu-
ro do espectador na apreciação de um espetáculo.
Explanei aqui, de forma sintética, sobre o
modelo de sistema actancial desenvolvido por
Anne Ubersfeld, visto que na sequência do traba-
Fonte: Ubersfeld (2010, p. 35). lho poderemos verificar melhor na prática a aplica-
ção do modelo no texto dramático de Ivo Bender.
Enquanto funcionamento do esquema a autora
elucida que: O texto dramático

Se desenvolvermos a frase implícita no es- Nos verdes campos do pampa
quema, encontraremos uma força (ou um ser Rola uma história malina,
D1); conduzido por sua ação, o sujeito S pro- Rola um assombroso conto
cura um objeto O no interesse ou em favor Sobre um touro e seu destino
de um ser D2 (concreto ou abstrato); nessa Foge a xucra aparição,
busca, o sujeito tem aliados A e oponentes Foge o errante fantasma,
Op. Toda narrativa pode se reduzir a esse es- Na testa exibe dois cornos
quema de base. (UBERSFELD, 2010, p.36). Em ouro fino moldados.
(BENDER, 1998, p. 08).
Seguindo esse esquema podemos, com o
propósito de um estudo minucioso do texto dra-
mático, checar com mais clareza a potência motriz

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O Boi dos Chifres de Ouro A trama central da obra mostra as relações de in-
teresse através de casamentos arranjados, típicos do
A dramaturgia O Boi dos Chifres de Ouro do interior profundo do Rio Grande do Sul, por meio dos
gaúcho Ivo Bender foi publicado em 1998 pela Edi- personagens centrais: Ordália, Brau Lopes, Eritreu
tora Mercado Aberto (RS) dentro da série: Peque- e Antenor Antunes. No enredo geral do texto teatral,
nas Grandes Obras. Classificada pelo dramaturgo a jovem Ordália é filha do bolicheiro Antero Antunes,
como uma “comédia pampeira em um ato”, onde que deve dinheiro ao velho estancieiro Eritreu que
o autor procura por em questão certas tradições pede a mão de Ordália em casamento em troca da
gaúchas, desde vestimentas e costumes até os va- dívida. Entre relutâncias de Ordália que ameaça fugir
lores morais. Valores estes muito explorados pelo para cidade do Alegrete a fim de arrumar emprego,
autor ao longo de toda sua obra dramatúrgica, pois Eritreu manda o peão Brau Lopes para vigiar e algu-
percebia que no universo das relações humanas mas vezes se vestir de Boi dos chifres de ouro para
“as falhas apontadas ficam circunscritas ao âmbi- convencer Ordália a aceitar o acordo feito por seu
to dos princípios morais, dos impulsos da vonta- pai. Ordália inicia um namoro com Blau Lopes e de-
de e operações mentais” (BENDER, 1996, p. 56). sarticulam os planos e intenções do estancieiro e sua
mãe Eritréia que sempre pressiona o filho, já velho, a
Figura 2 – Capa da Edição de 19985. arrumar logo uma nora e muitos netos que povoem
a gigantesca estância da família no pampa gaúcho.
Como pano de fundo para os quiproquós, o au-
tor utilizou uma lenda antiga do pampa platino, terri-
tório este que se estende pelo Rio Grande do Sul e
partes do Uruguai e Argentina, sobre um boi que te-
ria chifres de ouro e que vagava como alma penada
pelos campos. O boi assombrava a todos, insatisfei-
to com a ganância dos homens que um dia o mata-
ram para arrancar, sem sucesso, os chifres de ouro.
No pequeno lugarejo chamado de São Judas,
que segundo indicações iniciais “fica distante do Ale-
grete” (cidade um pouco mais populosa na região pró-
xima do Uruguai), em certas épocas que o boi aparece
o povo daquela cidade fictícia oscila entre os senti-
mentos de medo e desejo em capturar o boi e ganhar
fortunas com as aspas douradas. Vocês, leitores e
leitoras, saberão um pouco sobre o desenrolar desta
trama quando acompanharem mais a frente a leitura
dos esquemas apresentados de quatro personagens.
Fonte: Foto do próprio autor.

5 Figura 2 – Capa de autoria de Leonardo Menna Barre-


to Gomes sobre detalhe de Parando Rodeo, de Molina
Campos, Porto Alegre: Editora Mercado Aberto,1998.

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Os personagens desta dramaturgia são: Sendo Ordália o sujeito (S), vejamos como
fica o esquema de verificação da estrutura de actan-
Ordália, filha de Antenor Antunes e namorada de tes da peça:
Brau Lopes.
Brau Lopes, peão da Estância de Eritreu.
Eritreu, dono da Estância Quero-Quero.
Antenor Antunes, dono do bolicho.
Dona Eritréia, mãe de Eritreu.
Mãe Chininha, agregada do bolicho.
Oscarina, dona do bordel.
Amparito, a travesti do bordel de Oscarina.
Uma Benzedeira.

A estreia da primeira encenação do texto O Boi


dos Chifres de Ouro foi no ano de 1998, no Teatro
Renascença, da Prefeitura Municipal de Porto Alegre,
com a Cia. Teatral Face & Carretos (1982), sob a Leitura do esquema: Ordália como Sujeito tem
direção de Camilo de Lélis. Com produção de Arthur como Motivo (Destinador) o amor e atração (Eros)
Schreinert, Cia Teatral Face & Carretos e Luciane pelo Brau Lopes (Objeto), sendo ambos Beneficia-
Panisson, o elenco naquele ano foi constituído por: dos (Destinatário) por este amor. Seus Oponentes,
Carlos Azevedo/ Renata de Lélis/ José Luiz Santos/ para que esse amor não se concretize: Eritreu, Eri-
Lígia Rigo/ Luciane Panisson/ Meme Meneghet- tréia, Antenor Antunes e Mãe Chininha, pois dese-
ti/ Paulo Gaiger/ Raquel Pilger/ Stella Bento. jam que ela case com Eritreu. Sendo assim Brau Lo-
O espetáculo permaneceu no repertório da Cia pes, seu amado, é seu único ajudante (Adjuvante).
Teatral Face & Carretos por algumas temporadas e Já Brau Lopes como sujeito principal no es-
até o momento desta escrita não tenho conhecimen- quema, se configura assim:
to de outra montagem profissional deste texto teatral.

Aplicando o Modelo Actancial

Como exercício, para a aplicação dos esque-


mas do modelo actancial de Anne Ubersfeld, selecio-
nei quatro personagens principais da dramaturgia de
Ivo Bender: Ordália, Brau Lopes, Eritreu e Antero An-
tunes. Friso que a ideia aqui não é analisar cada se-
quência narrativa destes personagens, entre si, pois
necessitaria de muito mais espaço. Sendo assim, a Leitura do esquema: Enquanto Sujeito
opção escolhida foi por uma aplicação mais ampla, Brau Lopes deseja Ordália (Objeto) tendo como
das forças actantes de cada um dos quatro persona- Motivo (Destinador) o amor e atração sexual por
gens no escopo geral da trama de Ivo Bender. Vamos ela. O que torna ambos beneficiários (Destina-
à prática de verificação d’O Boi dos Chifres de Ouro tário). Ordália é sua única ajudante (Adjuvante)
enquanto texto dramático e suas forças actanciais. para a efetivação deste amor. Seus Oponentes
na trama são Eritreu, Eritréia, Antenor Antunes,

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Mãe Chininha que desejam que Ordália se case Antenor Antunes como Sujeito:
com Eritreu, pois assim beneficia mais a família.
Por outro lado, para Eritreu, dito o algoz na
história, se configuraria assim o esquema actante:

Eritreu como sujeito:

Leitura do esquema: Sendo Antenor Antunes


o Sujeito, seu desejo enquanto Objeto é casar a
filha com o estancieiro mais rico do lugarejo para
quitar sua ampla dívida contraída através de emprés-
Leitura do esquema: Eritreu sendo Sujei- timo financeiro feito com Eritreu para abrir o Bolicho.
to tem como Objeto (foco) Ordália, pois já estan- Em comum acordo entre os dois senhores, assim
do velho com mais de 60 anos a sua motivação que a filha casasse a dívida seria quitada (Destina-
(Destinador) é casar-se para ter filhos que possam dor). Seus Oponentes são Ordália e Brau Lopes
herdar as suas terras. Seus oponentes são Ordá- que se amam, como vimos nos esquemas anterio-
lia e Brau Lopes que desejam ficar juntos. Eritréia, res. Devido à dúbia situação de Brau Lopes, que se
sua mãe de 99 anos é sua ajudante e beneficiá- disfarça de boi para conversar com Ordália e que
ria, pois deseja também ter netos herdeiros da es- diante da ideia de Ordália em se mudar para a ci-
tância que construiu durante toda vida. Antenor e dade do Alegrete ele a convence a casar com Eri-
Chininha são também Adjuvantes e Destinatários, treu para assim ficarem mais perto um do outro na
pois com o casamento a dívida do bolicho (peque- estância, ele acaba por figurar no esquema como
no comércio de varejo) é saldada com Eritreu. In- oponente e como ajudante. Os beneficiados (Des-
teressante notar que nesta situação o Brau Lopes tinatários) são o próprio Antenor e Mãe Chininha
figura como adjuvante e também como oponente, que terão uma vida mais tranquila no bolicho sem
pois inicialmente seu patrão o mandou se vestir de dívidas, e Eritréia que terá seu filho casado e tam-
Boi dos chifres de ouro para convencer Ordália a bém netos que irão herdar a estância Quero-Quero.
aceitar o casamento com Eritreu, mas Brau Lopes
com sagacidade se utiliza do disfarce para assim Considerações
ele e Ordália combinarem artimanhas que os pro-
porcionará ficarem juntos na Estância Quero-Quero. Por meio do sistema do modelo actancial de-
Nosso quarto personagem, Antero Antunes, senvolvido pela pesquisadora Anne Ubersfeld, a par-
a ser configurado no modelo actancial fica assim: tir dos estudos de Greimas, verificamos uma possí-
vel leitura da qualidade da trama de Ivo Bender. Na
estrutura narrativa do texto os conflitos mostram-se
bem definidos, o enredo coeso, personagens mar-
cantes, a trama bem entrelaçada e um olhar aguça-
do do dramaturgo, elementos que constituem assim
uma peça dramática consistente. Nesse trabalho

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optei por quatro personagens, mas ressalto que a Referências


aplicação do sistema de actantes no campo dos es-
tudos do texto teatral, segundo a autora, tem seus ABREU, Caio Fernando. In: BENDER, Ivo C. Autores
“procedimentos de determinação do modelo actancial Gaúchos. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro,
amplamente artesanais e intuitivos”, pois “às vezes, 1984.
nada mais do que a intuição justifica a presença de
certa ‘personagem’ nesta ou naquela casa actan- BENDER, Ivo C. Auto das várias gentes no dia do
cial” (UBERSFELD, 2010, p. 60). Portanto é acon- natal. Porto Alegre: L&PM, 1988a.
selhável testar cada personagem do texto dramático
como sujeito possível dentro de um modelo actancial. ______. O Macaco e a velha: uma trilogia para crian-
Quanto à história elaborada pelo autor, po- ças. 5ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988b.
demos afirmar que tem seu final dentro de uma
perspectiva marcadamente presente nas obras de ______. Trilogia Perversa. Porto Alegre: Editora da
Bender, passando com graça e ironia pelo ques- Universidade/UFRGS; MEC/SESu/PROEDI, 1988c.
tionamento dos valores morais e a ruptura com
os costumes conservadores de uma determinada ______. Comédia e Riso: uma poética do teatro cô-
época. Não poderia ser outro o desfecho de O Boi mico. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS/
dos Chifres de Ouro senão um que surpreendesse EDPUCRS, 1996.
a todos. Embora tortuoso o caminho do casal de
oprimidos, após passar a trama inteira lutando para ______. O Boi dos Chifres de Ouro: uma comédia
ficarem unidos, diante de uma sociedade oportunis- pampeira em 1 ato. Porto Alegre: Mercado Aberto,
ta e capitalista, tem seu objetivo alcançado. Mes- 1998.
mo que a estratégia inicialmente seja noivar com
o patrão pra ficar perto do peão, nesse misterioso ______. Mulheres Mix. Dramaturgia Contemporânea
triângulo de amor entre animal, mulher e homem, RS. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro/CORAG,
como canta Amparito no encerramento do causo: 2001.

Vestida de tule e de rendas, ______. Teatro Escolhido Ivo Bender. Apresentação


Consigo traz seu tesouro:
Doce encanto disputado por Carlos Alexandre Baumgarten. Porto Alegre: Ins-
Por seu noivo e por seu touro. tituto Estadual do Livro Instituto Estadual do Livro;
Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2005.
Por certo nunca se viu,
E nunca mais se verá
Animal, mulher e homem, CESAR, Guilhermino. Qorpo Santo. (Org. e estudo
Unidos num laço igual. crítico de Guilhermino Cesar). Porto Alegre: Instituo
É três vezes mais amor, Estadual do Livro, 1986.
O amor que se vive a três:
Atura-se bem a paixão, CRUZ, Claudio.; BENDER, Ivo C. Marcos IV, 23. Co-
Repartindo a quem se tem!
Atura-se bem a paixão, leção Teatro: textos & roteiros. Porto Alegre: IGEL/
Repartindo a quem se tem! IEL, 1988.
(BENDER, 1998, p. 87).

147 Santos // Aplicando o Modelo Actancial em


“O Boi dos Chifres de Ouro”, de Ivo Bender
Revista Cena, Porto Alegre, nº 31, p. 139-148 mai./ago. 2020
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 31

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Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em: < http://
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ciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7.

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UBERSFELD, Anne. Para Ler o Teatro. Tradução de


José Simões Almeida Júnior (Coord.). 1ª reimpres-
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Recebido: 05/11/2019
Aprovado: 28/04/2020

148 Santos // Aplicando o Modelo Actancial em


“O Boi dos Chifres de Ouro”, de Ivo Bender
Revista Cena, Porto Alegre, nº 31, p. 139-148 mai./ago. 2020
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena

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