Você está na página 1de 3

O sonho nunca acaba em Once Upon a Time in Hollywood

Tarantino e eu temos história. Kill Bill foi o filme que me seduziu para o universo do
cinema. Assim que tive a consciência do que era direção e roteiro decidi procurar mais
sobre o criador daquela obra de arte. Na verdade, virei fã. E quando achava que não
poderia ver um filme do meu diretor favorito em tela cheia, Once Upon a Time in
Hollywood foi lançado. Por causa desse background, escolhi o nono filme de Quentin
Tarantino para abrir nosso especial de críticas do Oscar 2020.
Muitos podem achar que o filme é apenas uma obra criada para satisfazer corações
saudosistas de velhos da academia, mas eu discordo. Acredito que quanto mais pessoal
é o projeto, quanto mais paixão houver nele, mais as chances de ser um produto de
qualidade. Óbvio que essa não é a regra, já que existem filmes comerciais muito
melhores que projetos independentes, mas Tarantino faz cinema quase que
exclusivamente para si. E acho que ele ainda demorou até demais para fazer um filme
sobre a própria indústria do cinema.
O cenário é 1969. Depois de um tempinho em off, Tarantino voltou aos holofotes para
anunciar seu nono filme que foi amplamente anunciado como “uma adaptação dos
assassinatos de Charles Manson”. Em seguida Margot Robbie foi anunciada como
Sharon Tate e logo acionou-se uma luzinha vermelha do que poderia sair desse projeto.
Metade de mim sentia medo pelo caminho sangrento que Tarantino gosta de seguir, mas
a outra metade acreditava que ele podia reescrever a história como fizera em Bastardos
Inglórios. Felizmente, ele escolheu a segunda opção.
Depois de visitar o universo dos bandidos, dos grupos de extermínios, da segunda
guerra mundial e da escravidão americana, Tarantino decidiu focar seu filme em
Hollywood, mas ele não queria simplesmente fazer um filme comum. Ele queria fazer
um conto de fadas, o que é explicitado no título da obra. Assim, ele criou uma história
original se aproveitando do background que já conhecemos. Estados Unidos, 1969, a
ascensão do movimento hippie e Hollywood em completa ascensão. Mergulhando nas
características da época, Tarantino vai caracterizando os personagens do filme. A dupla
protagonista é formada por Leonardo DiCaprio interpretando Rick Dalton, e Brad Pitt
interpretando Cliff Booth, enquanto Margot Robbie encarna uma Sharon que é
coadjuvante de luxo, mas também representa a essência de Once Upon a Time in
Hollywood..
Assim como Feud, minissérie de Ryan Murphy, que expôs como a indústria trata os
atores que envelhecem, o filme concentra seus esforços em nos mostrar a vida pós-auge
de Rick Dalton, que fez um enorme sucesso na televisão, migrou para o cinema e voltou
com o rabo entre as pernas para as telas pequenas. Ao seu lado, Cliff Booth é o mais
próximo que temos de uma pessoa normal naquele mundo de estrelas. Ele é o dublê,
conhecido por ficar “atrás das cenas”, o que a montagem enfatiza bem mostrando que
Cliff mora atrás de um cinema drive-in.
O que define muito bem esse conto de fadas proposto por Tarantino é o sonho
hollywoodiano. Rick Dalton passa o filme inteiro querendo se provar como um ator de
verdade, e DiCaprio segura bem a barra mostrando a diferença entre o Rick atrás e na
frente das câmeras. Enquanto acompanhamos suas tentativas de voltar ao estrelato, fica
claro que ele quer viver esse sonho ensolarado de estrela de cinema. É por essa razão
que insiste em ter uma casa em Hollywood e começa a enxergar a televisão como algo
vergonhoso em seu currículo. Rick quer fazer filmes de verdade, quer ser uma estrela
reconhecida por todos assim como Sharon Tate e seu marido Roman Polanski. Os dois
são a representação viva do que é alcançar o sonho hollywoodiano, por isso vemos
ambos chegando na cidade com glamour da cabeça aos pés, indo a uma festa de
celebridades promovida pela Playboy. Essa é a festa em que Rick queria estar.
Em contraponto temos Cliff. Um homem simples, que entende aquele universo mais
prefere vê-lo por fora. Cliff é o responsável por entrar no lado negro desse conto de
fadas ao fazer uma visitinha ao Rancho Spahn, local onde a seita de Charles Manson se
refugia. É interessante notar como ele é o único dos protagonistas que faz algo “ruim”
ao ser acusado de matar sua esposa, história essa inspirada na morte da atriz Natalie
Wood. Se Rick e Sharon são os mocinhos incorruptíveis, Cliff é a dose de realismo que
toda história tarantinesca precisa.
Como dito anteriormente, até que demorou para Tarantino falar de cinema. O cineasta
que começou trabalhando em uma locadora de filmes, se tornou um verdadeiro
admirador do fazer cinematográfico, consumindo com a mesma vontade desde o filme
mais trash até o mais clássico. Então não me espanta ele gastar um tempo absurdo na
ambientação da obra, passeando pelas ruas, pelos letreiros e até mesmo pela rádio. Se
nos outros filmes, os personagens comandavam a trama, aqui a trama que conduz os
personagens por se inspirar em um evento muito conhecido. O assassinato de Sharon
Tate em 9 de agosto de 1969.
O diretor poderia seguir sua veia sangrenta e criar a própria versão desse assassinato?
Poderia. E possivelmente iria fazer rios de dinheiro. Porém, seria uma escolha sádica.
“The Hauting of Sharon Tate” foi um desses filmecos apoiados na morte da atriz,
apelando para a violência e deixando a trama em segundo plano. O que Tarantino faz
aqui é justamente o inverso, deixando Manson e seus seguidores como um pano de
fundo para a história que ele quer realmente contar.
Assim que estreou em Cannes houveram muitas críticas ao tempo de tela de Sharon,
mas depois que revi o filme ficou claro o porquê das suas aparições serem tão pontuais.
Ela é uma estrela e por isso não podemos ficar ao seu lado durante toda a história.
Quando Sharon aparece é quase como se fosse um presente poder acompanhá-la indo ao
cinema para ver sua própria atuação, ou vê-la feliz dançando em sua própria casa.
Devido ao final trágico da vida real, esses momentos alegres adicionam um pouco a sua
história no cinema além da crueldade sofrida.
Paralelamente, vamos acompanhando a jornada de Rick e Cliff nos bastidores de
Hollywood.
Rick não é um ator que confia no seu próprio talento. Ele gagueja, chora e duvida do
seu próprio futuro. Porém, quando as câmeras são ligadas, ele encarna o personagem e
Rick Dalton mostra o porquê de ele ser “o cara”. Apesar de ser o trecho mais parado do
filme, a parte da gravação de Bounty Law, essa é uma grande homenagem ao gênero
faroeste. Claro que quem estuda cinema ou tem mais conhecimento vai entender logo
isso de cara, mas o carisma de Leonardo DiCaprio nos fascina de uma forma que não dá
para não prestar atenção nele.
Enquanto isso, Cliff Booth é o herói não-perfeito de Tarantino. Ele é o fio condutor que
conecta a trama de Charles Manson ao restante da história, visitando o Rancho Spahn e
percebendo que aquela comunidade de hippies esconde muito mais do que parece. Cliff
é violento quando necessário, é sarcástico, porém não é um homem orgulhoso. Ele se
sente bem em ser apenas o motorista de Rick, pois para ele o sonho hollywoodiano não
é nada além de uma grande baboseira.
Ainda assim, Cliff passa grande parte do seu tempo encorajando Rick a continuar com
suas ambições. É por isso que ao final da gravação do piloto, Rick aceita a proposta de
filmar faroestes italianos e se torna um ator de renome no exterior. Pode parecer uma
trama comum, mas é legal de ver um ator na década de 60 vencendo a xenofobia
inerente dos estadunidenses para ir atrás da sua chance de brilhar. É também um retrato
de como homens mais velhos ainda são valorizados na indústria, em contraponto à Rick
Dalton existe uma Bette Davis que precisa colocar um anúncio em jornal para procurar
emprego. Como Tarantino queria mostrar apenas o aspecto do “belo” em Hollywood o
filme pode parecer superficial nessas questões, mas discordo porque essa não é a
proposta dele. Tarantino nunca quis fazer um retrato fiel daquele lugar, ele queria fazer
sua versão.
E que baita versão!
A fotografia em conjunto com a caracterização da época tornou o filme uma verdadeira
obra de arte. Parece até que Tarantino conseguiu voltar no tempo e gravar diretamente
dos anos 60. Desde as ruas com os letreiros icônicos até a reconstituição de roupas,
como o terno roxo de Roman Polanski. Uma curiosidade é que o filme que a Sharon de
Margot assiste no cinema, é o filme real “The Wrecking Crew”, permitindo uma
metalinguagem entre a Sharon real e a personagem.
No ato final, Tarantino volta a trabalhar no estilo que o consagrou em Pulp Fiction,
apostando mais em aspectos técnicos e um roteiro altamente emocional. Afinal, quem
não vibrou na cena final em que os ripongas assassinos tem o seu destino reescrito e
morrem da maneira mais cruel possível? É uma violência que faz bem justamente por
ser fictícia. (Porque pasmem, teve gente que acusou o filme de misoginia por essa
parte!.
Por causa de todos esses motivos que eu citei acima, considero justo se Once Upon a
Time in Hollywood ganhar o Oscar de Melhor Filme. Ele é muito bem feito em todos os
aspectos e presta uma homenagem digna e honrosa não só a cidade-mãe do cinema, mas
a uma grande atriz que teve sua vida ceifada injustamente.
Vida longa à Sharon Tate, eternizada na memória do cinema. Enquanto ela viver, o
sonho continua...

Você também pode gostar