Você está na página 1de 6

Clube do Livro #1: Normal People e a Beleza da Normalidade

Eu confesso que me parece um pouco irônico iniciar o clube do livro com um romance
adolescente, mas este é “o” romance adolescente. Então confiem em mim, ok?
Normal People é o segundo livro da autora irlandesa Sally Rooney, e provavelmente eu
nunca o leria se não fosse a recomendação da minha amiga Ana Paula (que também é
blogueira e vocês podem ler os textos maravilhosos dela clicando aqui).
Meio receoso, principalmente pelo fato de que romance não é meu gênero favorito, eu
aceitei a indicação e decidi ler o livro de uma tacada só. E MEU DEUS, COMO EU
PAGUEI COM A LÍNGUA.
A sinopse é a seguinte:
Normal People acompanha os encontros e desencontros de Marianne e Connell, dois
jovens de origens distintas que acabam se apaixonando um pelo outro durante diferentes
fases da vida, como o ensino médio em uma pequena cidade da Irlanda e a universidade
em Dublin.
Até aí temos uma premissa como qualquer outra. Garoto conhece garota e os dois se
apaixonam, ponto final. No entanto, é a forma na qual a história é escrita que consegue
diferenciar a obra dos inúmeros livros de clichês adolescentes que são lançados todos os
anos. E não que esses livros sejam ruins, afinal eles são feitos para um público no qual
eu não faço parte, mas se eles estão sendo publicados e lidos, então a literatura está
sendo difundida, o que já os torna válidos. Mas, vez ou outra surge uma obra que se
destaca dentro do seu próprio gênero e alcança um patamar mais elevado entre seus
livros irmãos, que é o caso aqui.
Como nem todo mundo chegou a esse texto tendo lido o livro, irei escrever essa
primeira parte sem spoilers para convencer você leitor a lê-lo, e depois vou avisar
quando começar a me aprofundar mais na história dando alguns spoilers pontuais para
discutir o final da obra. Por isso, leiam despreocupados.
Escrevendo Um Livro Adolescente…
Eu costumo dividir a maioria dos livros adolescentes em dois tipos: os que falam sobre
uma jornada pessoal e os que são sobre uma história de amor. Normalmente, eles se
encaixam em apenas um dos tipos, mas existem casos em que eles são uma mistura dos
dois. Uma ilusão que existe é que as histórias de romance são todas iguais, o que é uma
grande mentira, visto que cada autor tem uma sensibilidade diferente o que ocasiona
histórias bastante singulares.
Usando como exemplo Jogos Vorazes, em meio a toda a guerra existente em Panem,
Katniss e Peeta se apaixonaram. A história de amor entre os dois é um dos principais
fios narrativos da saga Jogos Vorazes, mas mesmo ele sendo super político, no final
tudo se trata sobre a jornada pessoal de Katniss. Tanto que toda a saga é contada a partir
do ponto de vista dela. Mas retire o pano de fundo de uma guerra entre nações, a
distopia futurista e os próprios jogos para focar exclusivamente na questão romântica.
Como tornar esse amor algo interessante?
Parafraseando Clarice Lispector, “Que ninguém se engane, só se consegue a
simplicidade através de muito trabalho.”
E trabalho foi algo que Sally Rooney teve em Normal People. Para começar a falar
sobre a escrita desse livro, preciso destacar o uso dos diálogos que são inteiramente
escritos de maneira unida ao texto, como um enorme fluxo de consciência que nos
incumbe de separar o que é narração e o que é conversação. Pode parecer meio estranho
para o leitor médio que está habituado com o estilo clássico de escrita, mas para quem já
leu algo da própria Clarice Lispector ou do José Saramago vai tirar esse detalhe de letra.
Eu não considero um obstáculo já que à medida que a leitura progride, o cérebro se
acostuma com isso e já vai separando os diálogos quase de forma automática.
Dito isso, podemos seguir em frente.
Normal People tem uma linguagem muito crua. Como ele é curtinho, a escrita é bem
direta e não há nenhum tipo de firula ou momentos de barriga durante o texto. Tudo que
está na folha importa e isso é muito bom, porque demonstra um cuidado extra no que foi
para a edição final. Em uma história como essa, que abarca vários períodos de tempo,
era muito fácil perder o fio da meada, mas a autora nos consegue levar de forma muito
consistente de um capítulo para o outro. O que não exclui o fato de que quem ler com
mais pressa do que o necessário pode se sentir meio perdido quando a cronologia
avança.
Conhecemos os nossos protagonistas ainda no final do ensino
médio. Connell e Marianne são duas pessoas normais, como o próprio nome do livro já
indica, e a apresentação dos dois é feita de maneira super direta, já estabelecendo o tom
e a dinâmica que vai se perpetuar durante todo o restante da história.
Eu que estou acostumado com o estilo bem prolixo de se escrever, fiquei meio perdido
com o ritmo da história, mas assim que captei passei a gostar muito de tudo o que estava
acontecendo. Digamos que em apenas 30 páginas você já vai estar torcendo para o casal
protagonista. E esse é um dos grandes triunfos que a autora possui, porque ao nos inserir
em uma narrativa que já acompanhamos várias e várias vezes nas mais diferentes
mídias, ela pode escrever apenas o essencial e deixar o que não importa para o nosso
subjetivo.
Aliás, subjetivo é algo importantíssimo aqui. Dez pessoas podem ler “Normal People” e
ainda assim cada uma vai ter uma interpretação diferente do livro devido as brechas que
ele nos dá sobre o universo físico e psicológico dos personagens que aqui existem.
Nenhum deles age de maneira binária, principalmente Connell e Marianne que estão em
constante mudança a cada novo capítulo. E mesmo sendo bem direto, o livro não é
redundante ou explicativo demais, deixando tudo o que a gente precisa saber nas
entrelinhas, tudo para ser interpretado.
Provavelmente, vai ter muita gente que não vai gostar disso, mas eu acho legal quando
um livro é escrito dessa maneira porque ele gera debates muito mais interessantes.
Dependendo das experiências de vida do leitor, tanto Connell quanto Marianne podem
ser pessoas totalmente diferentes, com ações sendo justificadas por pensamentos
diferentes e isso altera até a percepção sobre o final da história. Porque qualquer um que
não tivesse o controle absoluto sobre o que está escrevendo, não poderia abrir a história
para a participação do leitor, e por isso que eu digo que Sally Rooney teve muito
trabalho, porque o que existe no miolo desse livro é uma das histórias mais simples e
complexas que eu já li em toda a minha vida.
Nem Connell é o típico protagonista masculino, assim como Marianne não é a menina
perfeita que existe aos montes em obras infanto-juvenis. O que me parece que existe
aqui é uma desconstrução dos estereótipos que visa justamente tornar transformar os
dois protagonistas em “pessoas normais”.
Não há uma glamourização em cima de nenhum tópico. Marianne é uma menina rica,
mas ela não é mais popular da escola e muito menos a mais bonita. Connell é o menino
relativamente pobre, mas não é o que a gente espera que ele seja. E juntos, os dois
sempre são imprevisíveis porque a gente sempre espera que algo X aconteça e então
somos levados até algo Y que sempre fora o caminho mais plausível e real.
Devido as inúmeras obras sobre “amor” que consumimos, nosso cérebro já é
condicionado a acreditar que certos acontecimentos vão acontecer em uma história do
gênero. Por essa razão, que Normal People é tão diferente, porque ele pega essa
expectativa e a deixa de lado para focar nos seus personagens e nas suas trajetórias.
Tanto, que temos grandes pedaços em que eles estão separados e os eventos vão se
afunilando para uni-los, toda vez em algum contexto diferente. Até mesmo as cenas de
sexo aqui são utilizadas para demonstrar as mudanças psicológicas e comportamentais
dos personagens, evoluindo cada vez mais até o amadurecimento que nos leva ao final
da história.
Então, eu concluo essa primeira parte dizendo que Normal People não é tão inovador
assim dentro da proposta de livros adolescentes. Ele é sobre a jornada pessoal dos seus
protagonistas. Ele é uma história de amor, mas no fundo ele é muito mais. Ele é sobre
conflitos reais que existem na vida, como o bullying, famílias tóxicas, autoestima, saúde
psicológica e no fundo é também sobre posse. Talvez esse último ponto seja o que
resuma a história por completo.
Então, se você está procurando uma leitura leve (que toca em temas pesados) que lhe
traga um misto de emoções a cada capítulo, então Normal People é justamente o que
você estava procurando. É aquela farofinha adolescente muito bem feita que gera uma
identificação instantânea. O melhor de tudo? É um livro curtinho, do estilo que você
consegue ler em um dia.
Então corre e compra, ou dá seu corre e lê de qualquer jeito.
Já leu? Então fica aí que vamos pra parte com spoilers.
ALERTA: SPOILERS DA OBRA A PARTIR DESSE PONTO!
Escrevendo um Amor Adolescente…
Depois de milhares, talvez milhões de livros já escritos com a fórmula do “garoto
conhece garota”, como escrever um amor adolescente que seja singular? De memória, o
último romance que gerou um hype imenso na comunidade literária foi o livro escrito
por André Aciman, “Call Me By Your Name”, que eu particularmente amo mesmo
detestando o autor por causa das suas problemáticas. Mas enfim… Normal People
chegou sem a pretensão de quebrar a roda ou estabelecer uma revolução no campo
literário, mas o que faz o romance aqui ser tão bom é que ele é…
Normal.
Simples assim. Connell é um típico garoto que poderia existir em qualquer bairro. As
situações em que ele vivem não são fora da nossa realidade. Marianne também pode
existir aos montes, gerando uma identificação com várias garotas que irão ler o livro. E
ainda assim, a Sally os escreveu de uma maneira tão real que a gente acredita que esses
personagens são de carne e osso. Lendo o livro, parecia que eu tinha entrado no mundo
particular dos dois e estava acompanhando suas vidas como um observador externo. O
que é uma conquista gigantesca para qualquer escritor. Mas, como ela conseguiu fazer
isso?
A resposta é: se aprofundando no psicológico dos personagens. Para Sally, o que
importa não é o que está acontecendo, mas como esse acontecimento impacta os seus
protagonistas e como eles reagem. Esse é o ponto do livro, por isso que até mesmo as
falas são conectadas ao texto, porque parece que estamos dentro da cabeça deles. Um
dos detalhes que eu mais gostei é de como o livro consegue alternar facilmente de ponto
de vista entre Connell e Marianne sem precisar necessariamente trocar de capítulo,
mostrando quão unida a vida dos dois se tornou depois que eles conheceram. É a partir
do relacionamento que eles desenvolvem que um ciclo de evolução se inicia. O que
pode ser expresso ao fim do capítulo “Seis Semanas Depois (Abril de 2011)”.
“(Marianne) Nunca se achou digna de ser amada por alguém. Mas agora tem uma vida
nova, da qual este é o primeiro momento, e mesmo depois que muitos anos se passarem,
ela ainda vai pensar: Sim, foi aí o começo da minha vida.”
Confesso que foi nessa parte aqui que eu senti o baque desse livro e me vi fisgado de
uma vez por todas pela história. De pouco em pouco, Sally vai construindo nossa
percepção da história de que Marianne é uma pessoa fragilizada, instável e que precisa
ser cuidada. Isso tanto pelo ponto de vista de Connell, mas dos personagens
coadjuvantes, como os amigos da escola dele que acham que Marianne é louca e até
mesmo da sua mãe que repete várias vezes que a menina é muito sensível. No entanto,
quando a história avança vemos que não é bem assim.
Apesar da narrativa episódica, Normal People se divide em um período escolar do
ensino médio, um período da faculdade e um período meio pós-faculdade em que os
personagens estão entrando na fase adulta de procurar novas oportunidades. Nesse
primeiro período é que Connell e Marianne se conhecem e se apaixonam. Aqui ele não
tem a coragem de assumi-la devido a necessidade da aprovação alheia e a manutenção
do seu status quo perante a escola. É por causa disso, que no Baile ele decide convidar
outra menina, deixando Marianne extremamente magoada. Nesse momento, Connell a
perde pela primeira vez devido a sua covardia.
Depois disso, avançamos até a faculdade onde Connell e Marianne se encontram
novamente como pessoas diferentes. Ele, que era extremamente popular durante a época
da escola, se vê perdido no ambiente universitário devido as diferenças de uma cidade
grande. Ela, que sempre fora a excluída, ascende ao ser parte de um grupo social que se
interessa pela sua pessoa. E é muito bom ver como a dinâmica dos dois se altera e de
como eles representam muito bem essa dualidade de reações a uma das maiores
mudanças que todo mundo passa, que é sair da escola para entrar na faculdade.
Aqui eu aplaudo a escritora porque por mais que a história se passe na Irlanda e assuma
muitas vezes a questão geográfica, a realidade dos personagens não se torna algo
distante, mas sim universal. A própria faculdade é universal, o amor é universal e a dor
também é universal, e aliando esses três pilares é que a tudo vai se construindo de uma
maneira que nos identificamos.
Entretanto, mesmo que a dinâmica dos nossos protagonistas se alterem, o sentimento
que eles possuem um pelo outro ainda é o mesmo. Connell aprende que foi um babaca
por não ter assumindo Marianne e ela aprende que por ter sido tão condescendente com
os atos dele, estava levando a algo que não faria bem para nenhum dos dois. Então,
graças ao aprendizado que eles tiveram, decidem se relacionar novamente em um
contexto em que estão mais maduros. O problema é que maturidade não significa
perfeição e o problema de comunicação dos dois persiste, levando a outro rompimento e
o início de uma amizade profunda e constante.
Connell e Marianne então seguem em frente. Ela com um namorado que não lhe faz
bem, mas presa nesse relacionamento devido a pressão do seu círculo social. Ele com
uma namorada que é o que ele sempre desejou, mas que não lhe dá a emoção de viver.
Por isso, que os dois se acomodam por um tempo, até que essas decisões vão
sufocando-os e eles explodem de uma vez.
Marianne se torna mais independente e forte de si, mesmo regredindo aos olhos
externos por ter voltado a morar com a sua família por um tempo. Já Connell entra em
uma depressão gravíssima ao receber a notícia do suicídio de um amigo do colégio. Os
dois se reencontram no último período meio pós-faculdade na cidade natal em que tudo
começou. Lá, eles voltam a se aproximar, mas as coisas já não são mais como antes.
Aquela inocência que havia na primeira vez que eles se apaixonaram se perdeu.
Marianne já passou por muita coisa, Connell também, e o máximo que eles podem fazer
é continuar seguindo em frente, lidando com a vida da maneira que conseguem.
E isso dói.

Dói pra caralho, porque a gente que já tá acostumado com as milhares de histórias de
amor que vimos, esperamos que eles se declarem um para o outro e terminem juntos
para sempre, mas não é o que acontece. Ao fazer uma busca pela frase “eu te amo”
percebi que quem diz isso é apenas Connell para Marianne, sendo que ela nunca
responde da mesma maneira, mas o ama de uma forma mais silenciosa e que é exposta
nas ações que comete. Como quando ele revela que está com alguém, e mesmo ela
namorando, cai no choro e pede que ele vá embora. Porque o amor que ela sente é real,
ele tá ali, mesmo não se manifestando em palavras explícitas e isso tem muito a ver com
o sentimento de posse e o final da história.
Em determinado momento, temos o seguinte trecho no capítulo “Dois Meses Depois
(Abril de 2012):
Marianne arrasta a cadeira para longe da mesa e se senta. Os homens são possessivos,
ela diz.
Esse trecho poderia não ser grande coisa, mas analisando o final do livro, essa frase é
praticamente um grande spoiler do que acontece. Nos últimos capítulos, Connell e
Marianne estão juntos, mesmo sem darem nome a relação que estão tendo. Ele já
recuperado da depressão que teve e ela em um momento até que confortável da sua
vida. Por isso, ambos tem uma última conversa em que Connell diz:
Para falar a verdade, eu não sei o que fazer, ele confessa. Me diz que você quer que eu
fique e eu fico.
E então, a última frase do livro inteiro é a resposta de Marianne:
Você devia ir, ela diz. Eu vou estar sempre aqui. Você sabe disso.
O que me deixou extremamente triste, ao mesmo tempo que eu estava feliz, porque
interpretei como sendo um sinal positivo. Para quem espera uma história de amor
clássica, definitivamente esse não era um final esperado ou previsível, mas é isso que o
faz ser tão bom. Sally construiu seus dois personagens para eles serem duas linhas que
se encontram em diversos pontos nos mais diferentes períodos de suas vidas. Ambos
são constantes, assim como o amor que eles sentem um pelo outro, no entanto esse amor
é livre de posse. Marianne é alguém que não quer ter Connell, mesmo amando-o
fortemente e tendo a oportunidade de mantê-lo ao seu lado.
Mas, não. Ela abre mãe disso em prol da liberdade que ele precisa ter para ser ele
mesmo. Porque ela sabe que onde quer que ele esteja, ela vai estar ao seu lado. E ela
reforça isso com o “Você sabe disso” porque é uma certeza tão grande que ela não
precisa reafirmar para si, mas para ele. E claro, essa é a minha interpretação, e eu me
sinto livre para conversar com vocês sobre outros pontos de vista.
Porque do meu, o amor precisa andar lado a lado com a liberdade e não com a posse.
Essa é a moral da história, mesmo que a autora diga que não há uma específica. Porque
no fim a vida é assim como o livro descreve, totalmente imprevisível, cheia de surpresas
e um pouco agridoce. Porque a perfeição…
Ah, ela só existe nas histórias de amor.
LEITURA COMPLEMENTAR
* Entrevista com Sally Rooney (em Inglês).
* Texto sobre Henn Kim, ilustradora que fez as artes usadas no texto (em Inglês).

Você também pode gostar