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Resenha: Gostaria Que Você Estivesse Aqui, Fernando Scheller

SINOPSE: Quando a década de 1980 começa a dar as caras no Rio de Janeiro, o


tempo é de contradições. À efervescência musical e a uma febril vontade de viver,
unem-se a instabilidade política, a aterrorizadora epidemia de aids e o aumento do
tráfico nas favelas. E cinco personagens, de idades diferentes, aspirações diferentes,
mundos diferentes, veem a vida mudar completamente. Inácio, apaixonado por Baby,
larga a faculdade de engenharia quando conhece César, produtor musical gay que,
como Baby, busca encontrar o próprio lugar no mundo. Selma, mãe de César, lida com
o abandono do marido e o medo de perder o filho. Em seu prédio, trabalha Rosalvo,
paraibano recém-chegado à Rocinha em busca do assassino de sua filha trans.
Gostaria que você estivesse aqui é um romance sobre perder a inocência e entregar-se
ao mundo por inteiro.
*
Rio de Janeiro.
A cidade maravilhosa. Quem nunca ficou tentado de conhecer esse lugar imortalizado
em diversas obras? Quem nunca sonhou em ser uma Helena do Maneco pra poder andar
por Copacabana despreocupada com a vida ao som de uma bossa nova? Se você nunca
teve essa fantasia que atire a primeira pedra, porque foi com ela que Fernando Scheller
me conquistou a ler seu segundo livro, Gostaria Que Você Estivesse Aqui.
A primeira vez que vi esse título foi em um post de facebook sobre lançamentos
editoriais. A capa me chamou a atenção, o nome do livro também, mas o que me
conquistou de imediato foi aquela sinopse que prometia uma trama cheia de
personagens se cruzando e temas delicados. Não vou mentir que me interessei. O tempo
foi passando e eu não consegui comprar o livro. Pra minha sorte, Mariah, minha melhor
amiga, comprou o livro e ao término da leitura revelou que “esperava mais”. Eu já
fiquei com uma orelha em pé, não querendo começar a leitura com um pré-conceito,
mas relaxei e esperei o momento certo pra pegar o livro emprestado. Feito isso li ele em
cinco dias, mas poderia ter lido em menos.
O primeiro ponto que eu observei é que a prosa de Fernando Scheller não é pra todo
mundo. Ele é um bom escritor, a maneira como ele consegue conjugar cenários e
sentimentos com o mínimo de palavras possíveis é de outro mundo, mas o mar que
Scheller constrói com essa obra pode ser raso demais ou profundo demais dependendo
de quem se aventura nele. Na minha opinião é um meio-termo. Gostaria Que Você
Estivesse Aqui é um livro bem conceituado, daqueles em que você sente que tem
histórias que poderiam ter sido contadas ou que uma sequência poderia ser facilmente
escrita porque não faltaria material. O problema é como o escritor utilizou-se desse
material base para construir a história desse livro.
Temos 5 protagonistas. Começamos com Inácio, depois vamos pra Baby, depois
conhecemos César, sua mãe Selma e por último Rosalvo. Tendo esse número de
protagonistas, o mínimo que se espera é um bom desenvolvimento de cada, mas não é
isso que recebemos. Claro, quem já leu o livro pode discordar de mim, mas eu vou
tentar explicitar o que me fez achar os protagonistas do livros subdesenvolvidos, e pra
isso tenho que citar a linha do tempo em que a história se passa.
O livro é divido em 3 partes, sendo que a primeira é ambientada entre 1980 e 1982, a
segunda entre 1983 a 1986 e a terceira entre 1987 e 1989. Praticamente uma década.
Uma década de vida de 5 personagens diferentes que acontece em mais ou menos 300
páginas. É óbvio que é pouco, mas na escrita não é necessário mostrar todos os
momentos da vida de um personagem, é por isso que se utiliza as elipses temporais,
focando em momentos chaves que realmente importam para a história em geral. O livro
possui esse momentos, tanto que a importância de certos protagonistas vai alternando-se
conforme os anos se passam. Alguns ganham mais capítulos e outros meio que
desaparecem para dar lugar a histórias mais importantes.
E eu estaria OK em relação a isso se fosse bem feito, mas em diversos momentos da
leitura eu senti que personagem A ia de um ponto a outro sem um desenvolvimento
apropriado. Diversos capítulos do livro me pareciam mais resumos do que realmente
capítulos. O que disfarça essa impressão é a prosa elegante do autor, mas deixando ela
de lado haviam capítulos em que muito se dizia, mas pouco acontecia e isso em um
livro pequeno como esse é um pecado mortal. Gostaria Que Você Estivesse Aqui tem
um material base incrível. O background carioca é muito bem escrito, além de que as
tramas de cada protagonista poderiam alçar voos muito maiores do que os que o livro
traça. É por isso que quando eu finalizei a leitura, entendi o que minha amiga quis dizer
com o “esperava mais”. Definindo a obra em uma metáfora, eu poderia dizer que o
livro é como um bolo muito bem confeitado, com uma receita incrível, mas que utiliza
ingredientes de segunda mão. Dessa forma, é óbvio que o resultado não ia sair muito
bom, mas mesmo assim... Ainda dá pra saboreá-lo.
Então, se possível, leia Gostaria Que Você Estivesse Aqui. Essa não é uma obra que vai
mudar o mundo, mas tem sensibilidade o suficiente para te fazer viajar por alguns horas
para o Rio de Janeiro dos anos 80. Eu recomendo. Tanto é que a partir daqui quero falar
do livro COM SPOILERS, por isso só fique se você já tiver lido ou não se importar
com revelações sobre a história e seus significados.
*
O título de um livro é sempre algo que me deixa curioso. É sempre uma palavra ou uma
frase que carrega todo o significado daquela história. Tem livros que eu só li porque
gostei do título (essa é pra você Querida Konbini), mas como dito anteriormente, o que
me fez ler Gostaria Que Você Estivesse Aqui foi a sinopse. Porém, só quando eu
terminei a leitura que eu entendi o significado do título. Toda a obra é sobre ausência. É
sobre estar sentindo falta de algo, e todos os protagonistas sentem falta de algo ou
alguém durante a história. Esse é o segredo deles, e eu achei foda como em nenhum
momento o Fernando Scheller verbaliza isso, mas esse é fio condutor das cinco tramas.
Tudo ali, bonitinho e implícito.
Comecemos com a história dos dois protagonistas “maiores”, entre aspas porque um
deles mal aparece durante o miolo do livro, mas se torna importantíssimo no começo e
no final. Inácio é o hetero top que conquista corações com sua beleza e ingenuidade,
enquanto Baby é um protótipo de Femme Fatale que ainda não se garante o suficiente
para brincar com o coração alheio. O primeiro capítulo narra como eles se beijaram em
uma festa, selando aquele que seria o romance da vida de ambos. Inácio começou sua
vida amorosa com Baby, enquanto Baby já tinha diversos dilemas antes mesmo de se
apaixonar pelo rapaz. É na história dos dois que eu senti o primeiro pecado do livro
sendo cometido. Baby não é uma Mary Sue, mas Inácio é um Gary Stu. Aquele tropo de
personagem perfeitinho que serve como alicerce para todos as suas voltas. De tão
perfeito, bonito e inteligente que Inácio é ele se torna chato. Mas, o autor foi esperto.
Ele preenche os capítulos de Inácio com Baby, César e Selma, nunca deixando o
personagem sozinho por muito tempo. Ele é um protagonista que demorar a engatar
algum tipo de sentimento com quem está lendo-o. Inácio é o típico playboy, e se não
houver nada interessante sobre ele, por qual razão eu vou querer acompanhá-lo?
É aí que entrar a amizade dele com César.
César é o protagonista moral do livro. Ele é o que melhor tem um arco definido com
começo, meio e fim, mesmo tendo alguns atropelos ali pelo meio. O livro começa com
ele lidando e assumindo sua sexualidade enquanto frequenta uma sauna gay. São nos
capítulos com Henrique, seu primeiro amante, que o livro tinha cem por cento da minha
atenção. Mas não era pelo erotismo, já que Fernando Scheller nunca cai no vulgar, mas
na forma como ele escrevia César de uma maneira que espelha a experiência de diversos
membros da comunidade LGBTQIA+. Claro que César ainda é muito privilegiado, não
só financeiramente, mas por ter uma mãe que sempre esteve ali por ele. Mesmo com
essas questões, César ainda é um pouco inseguro, carente e curioso. Três características
que o livro explora de uma maneira até que boa, visto que ele não se preocupa muito em
desenvolver os seus personagens. Ele até expõe o que cada um sente, mas não direciona
esses sentimentos em prol de um arco de evolução. César é o único que chega perto a ter
esse arco.
Ele se apaixona por Inácio que não retribui, mas diferente dos outros homens heteros
que sentem medo de tudo o que é diferente, Inácio ama César. A amizade dos dois
sempre caminha naquele sentido de amor impossível que nunca vai se concretizar, mas
pelo menos o autor não aposta em um queerbait barato, sempre deixando claro que
Inácio gosta mesmo é de mulheres e que César teve seus amantes e suas paixões.
O que me deixa um pouco zangado na história de César é a trama dele com HIV. Ficou
mais do que óbvio que o autor do livro se inspirou na história de Cazuza, que é citado
no livro, e sua mãe (Aliás, se quiserem eu posso roubar o Só as mães são felizes de uma
amiga minha pra resenhar aqui. É a biografia do Cazuza escrita pela mãe dele, muito
boa, aliás!), mas esse é um detalhe que só quem conhece a história dos dois a fundo vai
perceber. Meu ponto é que Fernando Scheller retratou a doença e a comunidade gay
(que foram os mais afetados na época) de uma maneira bastante negativa. Isso vai desde
a morte de personagens gays que acontecem a rodo na história até a representação de
Valongo e o relacionamento de César e Henrique. Tudo bem que não há esperança
naquele momento, porque tudo era novo e assustador, mas o vírus HIV não é mais uma
sentença de morte. Nós como sociedade já evoluímos muito para saber que essa é sim
uma doença feia, mas ela não é o fim do mundo. Pose, a série do FX, soube muito bem
retratar a morte, mas também trazer a esperança de viver. E não que eu quisesse que o
César terminasse vivo, mas faltou esse detalhe.
Ter utilizado uma doença que já causou tanto medo em uma trama batida me pareceu
um artifício bobo e previsível que eu veria em alguma novela dos anos 2000. Da forma
como é escrito, Gostaria Que Você Estivesse Aqui celebra apenas os casais
heterossexuais, já que os mesmos terminam juntos e felizes, enquanto os gays e as
transexuais terminam doentes e mortas. Ainda marginalizadas. Novamente, tudo bem
retratar dessa forma SE houvesse uma intenção de criticar o panorama e o pensamento
da época, mas não é como se o livro incitasse uma reflexão mais profunda no leitor. E
esse é um problema grave que pra mim respinga mais ainda nas histórias dos outros dois
protagonistas.
Selma é a quarta protagonista do livro e a que eu defino como sendo a mais 8 ou 80.
Minha amiga não curtiu muito os capítulos dela, mas eu senti muito mais empatia pela
personagem do que pelos protagonistas mais jovens. Selma é a que melhor encapsula o
significado da ausência da história quando a mesma é abandonada pelo marido, que
foge de casa para viver outra vida com medo da sexualidade do filho. Assim, Selma
vive em função de César, numa relação que espelha muito o que Lucinha Araújo sentia
pelo seu filho Cazuza. Meu problema com Selma é que ela é como Inácio, muito menos
um personagem por si só e mais um alicerce para os outros. Tanto é que meus
momentos favoritos dela vieram de capítulos introspectivos, quando ela refletia sobre
sua solidão e covardia em enfrentar a realidade ao seu redor. Eram em momentos como
esse que eu sentia a força da personagem transbordar, diferente de quando ela se tornava
uma coadjuvante da vida de César ou uma admiradora de Inácio. Essa parte pra mim
ficou muito esquisita porque eu jurei que os dois iam ter algo a mais, mas graças ao bom
pai não houve. Selma até tem uma história de romance sendo desenvolvida e eu acho
fofa, porque minha mãe passou pelo mesmo após a morte do meu pai, se envolvendo e
casando com um cara mais novo. E não sei se é por já ter esse contexto que eu esperava
algo diferente para Selma. Talvez seja a própria criação dela que a condicionou a querer
viver uma história de amor, como o próprio livro menciona. O que eu sei é que eu
esperava que ela fosse amadurecer sozinha e se fortalecer antes de se dedicar a amar
alguém. Pra uma trama que critica tanto o machismo e a sociedade patriarcal, não
parece que o autor inovou muito no andamento de Selma, que termina em um novo
relacionamento, se dedicando mais uma vez a um homem que define sua vida, causando
mudanças que ela enxerga como benéficas.
Nesse ponto eu até digo que pode ser um exagero meu. Selma é uma personagem
feminina escrita por um homem, e a minha visão também é masculina. Aí mora minha
curiosidade em ver o que uma autora faria com a história dela. Manteria a mesma?
Modificaria? Acho que o que faltou nela foi verossimilhança. Selma não parecia uma
mulher de verdade, mas uma colagem de uma mulher. Assim como César não parece
um homem gay de verdade, mas o estereótipo de gay dos anos 80 que transou a torto e a
direito até pegar HIV e morrer. São tramas batidas, dignas de uma novela de Maneco e
não de um livro lançado em 2021.
Mas se tem uma trama que Maneco não escreveria, essa é a de Rosalvo. Vocês podem
achar que eu estou citando muitos defeitos do livro, mas se tem algo que me faz querer
recomendá-lo, esse algo é a história de Rosalvo. Ele é um senhor de idade que chega ao
Rio de Janeiro com a missão de vingar sua filha Eloá, uma travesti que foi assassinada
na rocinha.
Mesmo eu tendo criticado a representação na parte do César, o autor me ganhou pela
sensibilidade que ele teve ao retratar a comunidade trans nessa trama aqui. Ouso até a
supor que ele deve ter conversando com mulheres trans, já que o livro possui uma
personagem chamada Margot que é a peça-chave para Rosalvo entender que sua filha
sempre foi uma mulher, e é a partir de uma conversa entre os dois que o homem enterra
de vez o nome morto da filha e se refere a ela apenas no feminino. Um toque muito
bonito que pode parecer meio desconfortável para quem é trans, mas que se revela como
necessário ao longo da história.
Rosalvo por si só conseguia segurar o livro. É através dele que conhecemos Margot e
sua esposa Elza, que se transforma em uma cristã fervorosa na metade do livro. É nessa
parte que Rosalvo descobre que o pastor da sua igreja tem uma raiva pulsante contra
mulheres trans e travestis. Uma raiva que não combina com um homem de fé. Isso faz
com que Rosalvo pegue o pastor no flagra fazendo sexo com uma travesti e ligando um
ponto ao outro, descobre que o mesmo foi o responsável pela morte da sua filha. Isso
não chega a ser explicitamente dito, mas há indícios claros, e Rosalvo não teme em
eliminar um transfóbico da face da terra, sendo um aliado da comunidade, ele mete a
faca no homem e escapa do crime, o que me deixou feliz... Até que veio o fechamento
da história dele.
Rosalvo comete suicídio e toda a história dele me pareceu vazia nesse ponto. Parece que
o autor estava com medo em dar um final feliz ao personagem, julgando que seria mais
realista que ele se suicidasse após cumprir sua missão. Rosalvo, porém, tinha construído
uma nova vida no Rio de Janeiro e parece que nada disso importou no momento em que
o livro decide matá-lo. O que me fez ir do amor ao ódio rapidamente, deixando um
gosto amargo no finzinho da refeição.
Um gosto que apesar de ruim, não elimina o sabor do livro como um todo. Como eu
disse, ele é muito bem escrito e mesmo tendo seus defeitos, é um livro que eu
recomendaria. Afinal, todo mundo um dia vai sentir a ausência de um amor como
Inácio, Baby e César, ou a ausência de um propósito como Selma ou até mesmo a
ausência de alguém que já se foi, assim como Rosalvo sentiu. Todos eles gostariam que
alguém estivesse ali por eles, e em alguns casos foram felizes, em outros não. A vida é
assim. Cheia de momentos felizes e tristes, mas uma rotina no fim das contas E por
capturar tão bem esse sentimento que Gostaria Que Você Estivesse Aqui é um livro que
merece ser lido. Porque a arte pode ser certa ou errada, mas não pode ser chata.
E esse livro aqui é tudo, menos chato.
ESTRELAS: 3,5 / 5

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