Você está na página 1de 144

TENTAÇÕES

de

SER

1
A alguém que não pode ser nomeado, exceto se for por

J.P.G.,

heróis secreto destas histórias

tears dry on their own

Amy Winehouse

Belo Horizonte

2016

2
3
PRIMEIRA PARTE:

História que não pode ser contada

Prólogo

Gostaria de escrever uma história que não pode ser contada de uma jovem que
conheci. Se fosse escrever essa história muito improvável, por que todas as histórias
reais são improváveis, começaria dizendo do seu desprendimento para com as coisas;
ela não se apegava a nada, quando muito, usava por um tempo, depois descartava como
fazia com lixas de unha. Quando desejava por descuido um objeto além de suas posses,
não pensava nesse por mais de meia hora. Esquecia sem ficar triste não se sabe como.
Essa jovem adorava sexo e ria de suas trepadas como num segundo orgasmo enquanto
contava para nós.

Se fosse descrevê-la, não falaria de sua beleza loura, quase perfeita de tão
ofuscante, mas de seu charme e mais ainda, de sua liberdade que seduzia a todos que
desejara. Seus olhos penetrantes, mais que a cor azul, entram nos de seus interlocutores,
devassando-os, desvendando-os, permanecendo os próprios indevassáveis, ela, o
enigma. Saudades loucas, não planejava nada, e quando esboçava um plano, saía o
reverso. Às vezes acho que por sua própria perícia. Gosta do inusitado. Disso não
duvido.

Nos conhecemos em um pub. Eu e meus companheiros dissidentes jogando


sinuca até altas horas cervejas charutos papos de contracultura metidos a intelectuais.
Enveredamos para literatura. Duras expressa a solidão como ninguém. Para quê assistir
uma mosca morrendo? Prefiro o corvo de Poe. Nunca mais este momento. Nós cinco,
aqui, jogando sinuca deste jeito. Nunca mais. Você diz até semana que vem? Não, é
nunca mais mesmo; este instante é irrecuperável. Cada um escorre e se liquefaz. Daqui a
pouco você vai comer barata, não? Eu já vejo todas as civilizações e não me satisfaço;
até os índios maias na pré-história. Você precisa de uma injeção de neorrealismo na
veia. Não, isto não é literatura. My dear, um lance de dados jamais abolirá o acaso. A
gente constrói o acaso a todo instante. Chega de algaravia, era a voz de uma jovem
dissidente ainda não integrada ao grupo e pôs uma garrafa na mesa de sinuca. Eu
desafio.

4
Não sei transmitir o conhecimento que tenho. Você não formou em Letras,
professor? Mas não é pra isso. Como contar dela? Claro que não vou e não estou, mas
se fosse? Começaria pelo fim, meio ou início?

Ela deitou no meu colo, e fomos felizes.

Seu descomprometimento me fascina; sua amoralidade às vezes me assassina;


mas o que me aniquila varrendo meus restos é sua mortalidade. Queria ela eterna, não
que a ame, embora seja fascinado e intrigado pela capacidade desse ser de me atingir de
tantas formas.

Naquela noite do primeiro encontro ela nos ganhou. Uma mulher dissidente,
como nós!? Ela se achegou para o meu lado. OLA!!! Jacques, prazer. Já o que? Que
culpa eu tenho? Minha família tem ascendência francesa. Nos últimos tempos nos
víamos pouco. Sabia de si por outros que contavam para os meus camaradas que me
contavam, e gostaria de saber se era tudo verdade, ou o quanto de verdade continha.
Tinha horas de espera. Quase não suportava essa maturação e me enganava; inventava
para mim as histórias pelo que já vivemos, apesar de que era tudo sempre inusitado e
ocasional.

Eu.

Desafio.

Desafio.

Agora penso que o desafio era algo mais amplo, e talvez, mais abstrato.
Competimos quem fumava mais, quem bebia mais. Ela existiu de fato? Ou era algo na
minha cabeça como no filme Clube da luta, que assistimos diversas vezes. Antes havia
os fatos, ela escrevia, eu também, antes de abandonarmos a escrita, ou foi ela que nos
abandonou? Falo em nós, no entanto, nós não existimos por muito tempo. Para mim foi
o bastante; ao menos para lembrar. Não estou contando; se fosse, não saberia por onde
começar e ficaria enrolando, falando genericamente dela, do pouco que fomos nós.

Jacques, você faz massagem em mim? Estávamos na quitinete que alugava de


um amigo. Desce mais. Desce mais. Você quer transar comigo? Não, por quê, você
quer? Uhm, sim. Então vamos! Vem cá. Fizemos gostoso. Ela é úmida e macia.
Ficamos conversando por mais de hora, enrolando na cama, mentindo, se conhecendo,

5
os dois, até que fizemos de novo. Você agora é profissional. Só porque você quer!
Ahahaha Foram dias alegres e noites quentes. Seria talvez mais ou menos assim, se
pudesse descrever, contudo, a impossibilidade mesmo.

Viver junto, hoje, é possível? Não sei se vivemos juntos alguma vez, apesar de
termos habitado o mesmo sítio por um tempo. Não o do calendário, mas o nosso.
Nosso? Assim mesmo espero e quero crer. Então é. Verdade é o que a gente julga como
verdade. Essas são imagens que a gente cria. Fazia calor e nossos corpos melados um no
outro davam prazer. Acho que o prazer, a gente nunca pensa na hora, é prazer triste. Por
quê não dura? Não pode durar. A gente esquece; só lembra depois, daí o abatimento
após o gozo. Não sei porque me explico. Era uma mania dela. Contaminação por
penetração. Não é só HIV, zica, sífilis, herpes, etc que são transmitidos, mas os
costumes, hábitos, manias quando o contato é alongado um pouco mais além de umas
trepadas casuais. Minhas manias de perversão foi ela quem inventou, assim também a
loucura na qual caí e emergi. Passei pelo seu inferno e seus furores e soergui para dar
um testemunho. Nunca fui normal, mas também, não precisava ficar catatônico por um
tempo. Bem, e essa escrita íntima de confissão? Pra quê? Isso é papo de mulher, não?
Nós os loucos pensamos numa sintaxe avessa ao sentido e, por isso, temos de achar
explicações malucas para nossos atos. Somente uma escrita avessa causará uma
revolução nas estruturas cristalizadas, sacou? É nosso dever checar a escrita íntima à
exaustão, provocando uma revolução nos indivíduos e, por conseguinte, nas sociedades.
Através da perscrutação de si ocorrerá a anulação de si e seremos salvos na condenação.
E mais ainda, parecia doutrinar. As escritas de si terão o ensaio como forma. Vida e
teoria. Tudo misturado, os gêneros as vidas as literaturas e ganharemos nos perdendo,
como sempre, como sempre. Sim, como sempre. Uma perna roça a outra e não haverá
mais pessoas, e sim um todo informe. À beira da praia, cigarros e vinho, discutimos
essas causas e outras mais de não caber na memória. Tinha um jeito de dizer que digo
tudo e vou embora e vem outro depois outro dizer no lugar de mim, sempre indo
embora. É que nunca sou eu mesmo. E espero sempre alguém que deixou de vir,
bebendo vinho salgado. O negócio é relembrar, pior que esqueço quase tudo, fica aquela
coisa pulsando, que atrapalha a fluência. Mas dela não esqueço. Não posso esquecer.
Não. Assim não tenho que lembrar.

Ela é

6
eu e o reverso também é verdade. Como madame Bovary e seu protagonista
Flaubert. Só que aqui, nesse escrito sem meias palavras, é tudo real. Eu a sinto em mim
e eu nela. O uno do mito original. Só que não tão simples; não nos acomodamos em
tensão. É urgente, sacou? Urge. E não dá para não falar. Medra como um trauma em
mim. Quanto mais falo, maior a vertigem e a falta imperial não me deixa serenar. Não
obstante, impossível parar e me dar por satisfeito. Pensei em falar da minha vida
regressa. Talvez isso explicasse como ela se tornou uma afecção em mim. Precisamos
nos explicar, mesmo as razões mais irracionais; inconsciente falando? Permite indícios
do incognoscível? A literatura incomparável? Seminário do qual participei em ausência.

Repetir repetir repetir até ser outro. A primeira lembrança mesmo é de uma
mulher indo embora. Engraçado como as coisas ruins permanecem. De mais a mais,
deve de ter uma pontinha de prazer na dor. Será? É porque eu é um outro? Chega de
questões. Estou aqui para não me resolver. São tantos caminhos. Depois veio a
sensação de vazio, depois sensação nenhuma. Estive em orfanatos. As crianças de lá não
eram como eu, indiferentes. Estava alheio, no país do alheamento. Ninguém me
escolhia; os outros iam. Um casal quase me quis, mas notaram meu olhar e viram o
nada. Correram, assustados. Eu não era desse mundo. Então comecei a avacalhar. O
garoto impossível.

Mentia, furtava, comecei a roubar as crianças mais novas. O terror me


satisfazia e proporcionava alguma emoção, ainda que mínima. Até então não tinha nome
e já contava com sete anos. Era chamado Rebelde, ou simplesmente R..

Teve uma vez que uma mulher, dessas de filme, apenas parecia, foi lá e me viu.
Bastou bater os olhos em mim e não teve dúvidas. Seria o desajuste? O insólito da
situação? Inadmissibilidades? Algum reflexo? Nem me preocupei. Voltaria a sentir...

Era dona Sheila Bitencourt. As freiras nem se preocuparam com a


documentação e me empurraram logo que puderam. Já começava a dar trabalhos
maiores dos que as freiras sabiam lidar. Na nova casa, vendo aquela mulher exuberante,
perguntei-lhe, mãe?

Ela olhou-me. Ou prefere que eu lhe chame outra coisa... Ela sorriu. Sabe,
temos que te registrar. Adoro nomear e fez comigo como se faz com um cachorro. Logo
mais iremos ao cartório. Te escolhi, sabe, porque sei que é diferente só de te olhar. Sou

7
atriz e conheço as pessoas só de vê-las. Você assistirá um de meus filmes, o que mais
gosto, o que mais me deu prazer em fazer. Corpos melados é o nome. Foi filmado em
uma academia. Ah, lá fora me chame de mãe. Em privado, pode me chamar de Perereca,
como sou conhecida. Uma nova libido foi despertada. Entendi seu sobrenome, também
forjado. Bit-em-court. Sheila me lembra um pouco a jovem dissidente; ou esta àquela?
Tanto faz. E só agora percebo. Procuramos nas mulheres nossas mães? Não que algum
dia essa atriz tenha sido, embora seja o mais perto que cheguei de uma imagem materna.

Nós, os disfuncionais. Não trabalhamos nós para o sistema. Trabalhamos


contra? Penso que apenas somos. Não é como um projeto de vida. É mais uma maneira
de ser. Há quem procure nos homens o pai? Então todas as relações sexuais seriam de
incesto? Uma grande sociedade de pervertidos, isto é que é. Oh, penso que fiz uma
grande descoberta nunca pensada antes pelas civilizações. Nada de cópia, nada de
plágio, sequer retorno. Mais do mesmo não. Isto é a novidade. Me surpreendam se
forem capazes. Vou esconder este escrito, vale milhões; uma descoberta científica!
Científica! Vale milhões! Escondo e não me roubam. Depois que eu morrer meu nome
será lembrado! Farei história! Lembrado! Agora, e é para sempre! Já sinto a
imortalidade nas canecas que virão! Se encontrar minha jovem dissidente talvez fale só
com ela, e ela me quererá como nunca. Como nunca! Nunca! Vou morrer. E nada disso
importa. Cadê meu vinho salgado? Ela rirá de mim, das minhas descobertas. Ao menos
vou escrever para não perder o elo. É o que dá.

A maneira de ela me acariciar a perna, jovem, jovem, jovem, tenho uma foto
tirada escondido que congelou e este retrato é a alegoria do prazer, com índices de tudo
que vem antes e imagens invisíveis e fúnebres do que vem depois.

Perereca me ensinou seus segredos. A criança pródiga. O veneno da paixão me


liberta dos apuros da ternura. Que frase mais boba. Serve para colocar no diário de uma
adolescente, que diz ―querido diário‖... Escrita de mulherzinha, sai fora. Tchau querida!
Não, isto não é literatura. Isto é metaintrospecção. Falar da viagem ao dentro. Seria bem
melhor falar de entrar dentro dela, naquelas carnes macias. Falar dela abrindo as pernas
é o mesmo que falar de mim. Não, isto também não é paixão. Paixão era a gente
bebendo horas adentro, trocando os bares e quando tinha que pagar a conta, ups! Fugia
um por um. Paixão é o grito dentro da noite, na hora em que a coragem das estrelas cai.
O que nós tínhamos transando, acho, não era paixão. Era o desespero da fuga do

8
desespero da solidão desesperada de fugir do desespero da vida sem esperanças. E como
é bom. Ela me fazia falar quando não tinha palavra e me faz escrever quando meu
desejo é outro. É só a presença. Uma presença que se faz na ausência.

Como contaria tudo, se quase tudo está apagado pelo álcool e outras drogas e o
que resta é uma sensação? Na verdade, sensações variadas, mas como narraria se as
sensações não se transmitem? São apenas esboços intangíveis. Se apegar ao resto
porque se faz uma obrigação imperial falar, e, se não falasse, cairia em outra
impossibilidade. Vivemos de intangíveis e a própria existência é o intangível
primordial. Ou seja, cerveja. Escrever para me perder e nessa perca encontrar não uma
salvação, mas uma sobrevida nesse estado de perdição. Caosmose. O caos nascendo de
uma falha acertada, era o que mais queria, não? Perereca tinha um método ímpar de
lidar com as coisas. Por causa desse método vivíamos mudando.

Meus dias de prazeres juvenis terminaram abruptamente quando Perereca foi


presa. Pulei de orfanato em orfanato. Minha rebeldia agora incluía perversões sexuais.
Alguns crimes que não quero contar como foi fácil praticar o ato. O difícil é por em
linguagem. Sim, algumas coisinhas devem de ser indizíveis.

Me descubro à medida em que escrevo um ser tal, que seja qual for, não
importa. Nós não importamos, absolutamente, minha cara. Quando chegar ao ponto de
pedir desculpas, estarei acabado. Cheguei à idade de ir parar na FEBEM. Dei conta de
fugir e cometer novas infrações e consequentemente por um lapso fui detido. Obrigado.
Fiz ligações. Esses centros às vezes são úteis e escapei novamente. Me deem um pouco
mais de vinho salgado, que preciso de um pouco de vertigem. Certo, errado, posso
continuar. Me perdi em mim para falar desta guria. E não é pouco. Não é pouco, esta
artista que se pinta a meus olhos. Tu e Perereca são iguais, idênticas hipócritas. Só que
tu estás no começo. Não falarei contigo porque dentro não há palavra. Colocar na
terceira, embora seja a primeira. Ela não se deu conta de como a alcancei em inocência
e virtude, procrastinando. Esses crimes são de bondade. De mim para com ela. Dela
para comigo. Seremos um mesmo negro coração?

Sinto mais os últimos tempos. Lembra que lembrar é sentir? O que eu acho
uma fraqueza era nossa utopia de delirar. Estou cansado de ouvir as mesmas conversas;
e os papos difíceis e enfraquecidos de arrependimento! Como se arrependimento
servisse para algo! Passou, e daí? Arrependimento para mim deveria se equivaler a uma

9
ação, senão, vira papo de demagogo. E como tenho visto esses canalhas por aí!,
pregando o que não entendem e não fazem! Hipócritas! Bebo a eles!

Eu e os dissidentes organizávamos festas, em que se bebia e drogava a noite


toda, pela manhã, e aterrissávamos somente no final da tarde. Sempre mudávamos de
local, geralmente residência de colegas, porque o barulho era ensurdecedor. Meu ouvido
não funciona mais muito bem e às vezes ouço distorções. Contratávamos bandas de
rock, indie rock, e blues, por pedido da jovem; quando as cabeças estavam altas demais
dizia ela, é bem bom um blues para aterrissar e ouvir o som do desespero da vida; é a
única saída. Possível, vem e nos leva. Extremamente possível. É como uma carta fora
do baralho entrando num jogo de xadrez. Possível, trunfo coringa. Vem e nos leva. Ela
tinha dessas sacações.

Estávamos virando promoters. Organizávamos esses bailes, em que se drogava


e dançava ininterruptamente. Contratávamos três bandas para cada evento. Às vezes
duas tocavam juntas numa super Jam-session. Era uma reprodução fajuta dos bailes de
San Francisco, California, de 1966. Brincávamos que éramos a Family dog dos anos
2000. Os ingressos eram baratos. Cobrávamos o custo e só uns 15% a mais para nossas
despesas particulares e o suficiente para os próximos dois bailes.

Na programação, além das bandas, havia um momento de música eletrônica,


em que nós contratávamos os DJ´s mais baratos e modernos da cidade. Na verdade, os
iniciantes, já que, afinal, com tanta droga e bebida as pessoas dançavam até sem música.
Também havia incluso no ingresso um vale ticket com direito a um coquetel, chamado
coquetel de iniciação. Pagávamos a propina da polícia, que não nos enchia o saco e aos
jornais para não divulgarem o que ocorria em nossos eventos.

Era perfeito.

O primeiro baile mesmo foi um fracasso. Desordem total. Os membros das


bandas caíam de tão drogados; a energia acabou. Ficamos no escuro e a turba
ensandecida rodopiava no caos. Choveu. Tivemos infiltração. As pessoas caíam
escorregando. Talvez aquilo fosse um sinal. Porem, não fomos impedidos.

Nós, os ineptos, não seriamos derrotados assim tão facilmente. Hoje acho que
penso que deveríamos ter parado, mas adorava fracassos. Quanto maior, mais imerso
nele queria ficar; até afogar. Só que para surpresa de todos, começou a dar certo. E aí,

10
resolvemos nos organizar para que ficasse mais que perfeito. Inclusive estudamos como
os americanos beatniks faziam a fim de emulá-los. Era uma antropofagia sem limites de
loucura. E aqui, neste país de merda, é até mais fácil, já que não há punição e todos têm
seu preço.

A garota, que não aguento falar seu nome, estava no papo. Transávamos uns
com os outros, contudo, entre nós se desenvolvia, além do sexo, uma cumplicidade.
Assim ao menos pensava. Até que. Sempre a existência de um até que, ou um certa vez,
a peripécia imperando, tirando o chão. Gozado como a peripécia é sempre mudança
para o lado negativo. Não se vê uma peripécia de um cara azarado, que tudo dá errado
com ele, ficando rico e cheio de mulheres. É sempre para o pior. Da fortuna para a
desgraça. Às vezes num rompante, entretanto, aqui acho que sinto foi gradual. Já nasci
com esses sentimentos mesmo. Que venha a natureza então. Não quero passar para essa
parte da viagem. É voltar ao pior do caos, ela dizia, voltar é impreciso, desejo
inacabado, ficar, deixar; deitar sobre o passado que flutua, imperial. Depois que o tempo
passa, a gente se apega às pequenas coisas. Um banho de mar, andar de bicicleta,
caminhar, dormir.

Em sonhos a vejo deitando no meu peito, como antigamente, nós falávamos do


dia. O futuro? Era uma interrogação que não dávamos a mínima por ele. Teve um baile
em que antes de estarmos drogados, peguei sua mão e dançamos uma valsa lenta,
embora o pano de fundo musical tenha sido o de uma banda de hard rock. Pouco nos
fudíamos para o que estava tocando; meus olhos brilharam um pouco mais e gritei em
seu ouvido esquerdo, o melhor, quero ficar contigo sempre; ela sorriu; e gritou de volta,
não estrague esse momento; então nos apertamos um pouco mais.

Achava que sexo com os outros era só um jogo; sua maneira de expressar sua
liberdade. Entre nós o que seria? Tinha ciúmes, mas não tanto como depois. Era tudo
diversão e quanto mais diversificado melhor, não? Não. O que você está a fazer? Eu
estou esperando. O quê? A morte. Se esperava a morte, enchia-se de vida e os cacos
pelo chão.

É como olhar um retrato que se move. Sabemos nós de que é feita a dor!? Seu
veneno insólito é orgasmo? Não sei como fazer para evitar o que passou. E se, se, se, se,
e se

11
Fica-se louco, e continua retornando. Mais? De um jeito diferente; explode o
que não contém. E foi assim.

No dia em que dançamos aquela valsa, com pano de fundo de uma banda de
hard rock, havia também um saxofone solitário, chorando um blues em meio à pauleira.
Era exatamente uma banda indie. Aquele sax me lembrava da tristeza da vida num dos
momentos mais felizes.

É, se se rapara, tem sempre alguma coisa para acabar com a perfeição dos
momentos. Nada é perfeito. Hoje acho que aquele sax já sinalizava a peripécia, e que
isso torna esse momento perfeito em sua imperfeição. Ainda hoje fecho os olhos e sinto
a gente bailando ao sax, guitarra, baixo, bateria e todo resto lá batendo cabeça.

Cara, isso parece papo de mulherzinha. É, vai rememorar e resentir pra ver.
Confessional iguala a papo de mulher? Cara, cadê meus culhões?! E eu tenho à beça. A
parada é que quando a gente envelhece, se torna mais sensível. Eu hein. Agora virou
papo de viado.

Não tem isso não. Somos todos pessoas, embora alguns tenham se tornado
coisa. A reificação de que a professora tanto falava. Entre pessoas humanas, e não
pessoas coisas, existe uma certa sensibilidade. Alguns escrevem com uma dicção mais
seca, apesar de que esse tipo de escrita pode conotar um sentimento ainda mais
profundo do que os que escrevem com uma escrita emotiva, chorosa e piegas.

Nó, descoberta cabal, o cafona sou eu.

Há quem misture o coloquial e o erudito na escrita seca, assim como na


emotiva. Chega! Isso não é um livro técnico, nem ensaio como forma em uma
confissão. Em uma confissão! Nunca pensei que fosse me confessar; nem ao menos sou
religioso, embora acredite em Deus e o diabo azucrine.

Não se confessa os próprios sentimentos. Por isso faço. Gosto de trabalhar com
impossíveis, na medida em que me crio. À medida em que me escrevo me descubro
diverso.

Não que vá escrever em verso. Se não, daqui a pouco

Estou pondo o salto.

12
Em verso não. Não em mim.

É coisa de baitola. Eu hein!

Eu não sei, mas estou embromando e enrolando o que está por vir. É que é bem
bom ficar aqui com ela dançando a valsa e nossos narizes respiram juntos um quase
dentro do outro. É como um filme em câmera lenta que eu posso ficar assistindo,
sentindo, e a cena não ousa prosseguir over over and over again. Hollywood que dá
prêmio and the Oscar goes to. Um tea for two total. Parei! Não dá!

Se continuar assim, não consigo terminar isso que dói. Ficarei impessoal,
altivo. Vou contar o que sei e o que ouvi de pessoas que inventam. Afinal, somos todos
uns drogados vivendo alucinações. Pois é. Pois é.

Depois que Jacques, seria o Hold? Dançou coladinho a valsa com a jovem
descomprometida e dissidente e o cara quase chorou, Mané! Deve ter sido
nessa mesma noite. Assim parece. Quando a banda de blues começou a tocar, a garota
estava nos bastidores e viu, ela viu, pela primeira vez a banda tocando, e estava
arrebatada, os olhos como que hipnotizados pelo guitarrista. Pelo guitarrista! Já não
piscava. Entre uma música e outra, ela lhe oferecia vinho para refrescar. Tamanha
solicitude nunca se vira. Parecia uma groupie. Não era mais a mesma. Os que não
estavam doidões não a reconheciam. Jacques chora. Chora, neném! Sentiu esse
sofrimento como se fossem dias, semanas, meses em agonia resumidos a um
amanhecer, insuportável, como se pode ver.

O tempo é uma abstração. Os dias e as noites se sucedem, no entretanto, cada


um tem uma noção dessa passagem. Ou melhor, sensação. Um diz o dia voou. O outro
foi interminável. Calendários servem somente para celebrações e repetições de ciclo. Só
que se esquecem que não há ciclo possível. Vai-se direto ao fim, salvo alguns ápices.

Quando a banda acabou de tocar e foi para o camarim, o que na verdade era um
quarto com dois sofás e um espelho rachado na parede, ela foi atrás travar colóquio.
Conversaram por bastante tempo; no que Jacques após um longo suplício foi lá também
e viu ela já no colo do guitarrista. Ele, Jacques, ficou sabendo o nome desse guitarrista,
Renato, vinha de uma longa temporada nos EUA, onde aprendera o blues de raiz;
explicava para ela sua dor. Sua dor! E a dor de Jacques? Engoliu com uma dose de
uísque e se retirou.

13
Alarmes. Sirenes. A polícia! A propina não adiantou, já que a filha do prefeito
morrera de overdose durante um desses eventos e o prefeito, homem de bem, resolvera
fazer algo a respeito.

A festa tinha que acabar.

A polícia entrando e prendendo todo mundo. O quiosque no fundo, onde se


vendia as drogas e distribuía o coquetel de iniciação. Tudo apreendido. Ela e Renato
conseguiram escapar pelo porão. Um monte de caixas; desceram ao esgoto, ratos e
foram. Os que tentaram sair pelos fundos foram presos, pois que a polícia havia cercado
o local.

Ele detido, Jacques, o representante legal dos bailes. Seu nome estava em tudo.
Queriam esclarecimentos. Onde arranjara a droga? Quem o ajudava? Quem patrocinava
essas festas, por que ele não teria dinheiro? Através de uma delação premiada, muito em
voga nesses dias, lograria a liberdade. Liberdade de quê, se já estava enredado? Os
traficantes não perdoam. Sorte que bolara um estratagema que perdera os traficantes
rivais dos seus próprios fornecedores, e conseguiu assim, a proteção dos seus. Após
algumas reviravoltas foi posto em liberdade. Mudara de nome para sua própria proteção.
E continuava sem.

Ela e Renato erraram pelo esgoto por um longo tempo até que emergiram de
um bueiro. Estavam de fezes até as orelhas. Riram com nojo e foram à praia, lugar mais
próximo onde se lavar. As ondas carregavam as fezes deles, olhos arregalados para a
liberdade das fezes. Quando estavam quase ressecados saíram do mar, frescos e
contentes.

O sonho acabou.

Ou é apenas o começo?

Respondeu com uma pergunta o que não era exatamente uma questão, os olhos
sensuais provocantes e indevassáveis, estudando-o. O mundo se originou do caos. Todo
grande começo vem de uma grande explosão. Completavam-se, como um oráculo? Qual
o destino dos oráculos? Só que depois de uma explosão dessas, é difícil dizer. O Japão
se recuperou da guerra. Só que as pessoas ainda morrem de câncer, lá. As pessoas
morrem de câncer em todo lugar. É difícil contigo, hein? Tenta, e verás? Que um filho

14
teu não foge à luta? Nós fugimos da pior maneira, pelo esgoto! E como ratos! Riram. Já
se acariciavam, sentados na praia a ver o mar. Tu voltas? Eu estou sempre a ver o mar,
mesmo quando não estou defronte do mar de defronte. Riram. Tu nunca falas a sério?
Eu só falo a sério. Veja, sou seriíssima; dos pés, das pernas, longas, dos seios, veja, até
a cabeça. Sobretudo de perfil. Já estou a ver há um tempão. Não. Eu não tenho para
onde voltar. Moro com Jacques e ele deve estar preso, ou coisa pior. No apartamento
deve haver polícias. Se fosse, temo que me prendessem. Sou fiel antes de tudo à minha
liberdade. Minha namorada morava comigo. Tens mulher! Adoro! Até terminarmos e
ela se mudar de volta para casa dos pais. Ela ainda não pegou as roupas todas. Borá lá
em casa, tomar banho, tu vestes umas roupas limpas e vemos o que fazemos. Vamos
tomar banhos juntos!? Não era isso o que mais queria, então? Puxou-a para si. Só que
não com areia, que dói.

No apartamento se despiram e já no chuveiro, abraçados, se deu o primeiro


beijo. Se abraçaram um pouco mais e penetraram-se.

Cada um faz o que é possível. Tem gente de fazer impossíveis, mas aí já não é
impossível. É que cada um faz o que dá conta; e têm uns que se apegam ao ódio, à
inveja, ao ciúme; têm outros de fazerem mal a outros, e, se aniquilam diversas vezes;
tem gente, poucos, embora tenha, de ajudar; e tem , inclusive, gente de se autodestruir;
têm também pessoas como ela de gostar de sexo e serem felizes com outro dentro.

No sexo, ele a descobria diversa do que aparentava. Mais intensa, profunda,


séria e ao mesmo tempo relaxada, quase solene. O sexo a maravilhava; nesse e por esse
momento, tornava-se estrela. Sabia que não desapontava; ao contrário. Mais e mais
fascinado o outro ficava. E o corpo dele enchendo-a de encanto. Em seguida se amaram
na cama. Por cima, de lado, papai-mamãe, beijavam-se. Seus corpos suavam, e
convergiam no gozo da paixão.

Felicidade é droga passageira. Não é um estado de espírito... que perdure.

Nada perdura. Se é feliz, talvez, um pouco hoje; outro tanto se foi ontem.
Amanhã é expectativa.

Naquele dia do apartamento, àquelas horas, em que se abraçaram um pouco


mais, eles foram felizes. Após copularem incontáveis vezes, prostraram. Ficaram vazios
e exaustos. Ela aconchegada a seu tórax macio. O que fazer?

15
Telefonemas. Os outros da banda ficaram detidos? Foram levados e logo
liberados, exceto o baterista, Davi, que estava com três papelotes de cocaína. Os
integrantes da banda fizeram vaquinha e pagaram fiança. Ela? Ficou no apartamento
dele.

Renato foi ao apartamento de Jacques, que sumiu da história por razões óbvias,
para averiguar. Estava interditado, mas não havia viva polícia vigiando. Ela lhe dera as
chaves. Ele entrou; tudo revirado, as poucas coisas no chão. Não sabia por onde
começar, se até as teias de aranha estavam reviradas. A televisão em mil pedaços. Isso
ela contou já estava assim antes. As roupas dela na cama. Pegou uma bolsa, a maior que
achou, e foi colocando tudo dentro: calcinhas, sandálias, calças, blusas, vestidos,
sapatos, toda parafernália de mulher que ele não entendia muito bem. No banheiro
achou um pouco de maquiagem e levou também.

Quando ia sair, escutou uns passos subindo, e se escondeu. De repente, não


mais que de repente um barulho no apartamento, ele saiu pela janela, com a bolsa nas
costas, quase caiu e o apartamento era no quinto andar. Seria como a música, só que
trocando os sexos? Não seria desta vez. Conseguiu se agarrar a um parapeito e entrou
por outra janela no apartamento vizinho.

Um adolescente no quarto. Cara, tu és o Renato, da Moondog!? Ou é o


Homem-Aranha disfarçado de Renato? Sou eu mesmo. Tu me conheces? Estava no teu
último show, em que foi todo mundo preso e fecharam a casa. Vocês não tocaram mais
depois daquele incêndio!? Que incêndio? Não ficaste sabendo? Depois que a polícia
prendeu todo mundo e fechou a casa, ela pegou fogo. Dizem que o fogo veio do esgoto.
Mas sei lá. Se a polícia não tivesse nos prendido, tinha todo mundo morrido queimado.
Malditos porcos fardados, enfim fizeram algo de útil? Parece que dois corpos ficaram
carbonizados no esgoto. Credo. Morrer assim, ruim demais. Gritou Zelda do outro
quarto, alegria alegria, algoz inesperado, o que fezes? Estou trocando uma ideia com o
guitarrista da Moondog, respondeu de volta. Ou seja, estás viajando, berrou Zelda. Não
ficaste sabendo do incêndio? Juras? Desde então, nada de vocês e o som da Moondog
fica ainda reverberando em meus ouvidos. Cara, o vosso som! Já se passaram dois
meses e ainda tá aqui. Pulsando! É, acho que nós demos um tempo. As coisas ficaram
meio confusas depois. Tenho de ir. Já? É. Bah! Vou pela porta. É ali, no fim do
corredor. Até. Salve.

16
De volta ao aconchego do lar, ela ficou feliz de ver suas tralhas novamente. Tu
sabias que já se passaram dói meses do acidente e que a casa pegou fogo logo depois
que saímos? Pois é, pensei ter ouvido alguma coisa a respeito, mas deixei pra lá. Mas de
todo modo, achava que tinha comentado contigo. Hum, é verdade. Acho que esqueci.
Diminuir com as drogas. Não é? Se beijaram. Se beijavam sempre e ao se beijarem
trocavam ardentes carícias que geralmente terminavam em sexo cálido. Desta vez não.

Sua ex esteve aqui. Queria as roupas e falar contigo. Devolvi-lhe as roupas e


disse que tu só mais tarde. Vai me entregar assim de bandeja? Ele pegava o jeito dela.
Todos são livres; cada um que cuide do seu; o corpo é o primeiro e único bem. Gosto de
deixar meus pássaros soltos. Se os trato bem e me estimam, hão de voltar. Estavas
brincando. Mas tu, hein, tens mais além de mim!? Safada! Riu, ela riu, engraçadinho.
Sabes que agora és o único. Só arranjo mais de um quando moro sozinha. Então já
tiveste!? Já cheguei a transar com três diferentes em diferentes horas do mesmo dia.
Nenhum deles sabia de outro. Ele ficou mais branco ainda. Ela riu, desconversando,
claro que não. Certas coisas os garotos não precisam saber. Estás muito ciumento hoje.
Ela o beijou; encostou-o contra a parede; pegou em seu pênis que já estava duro;
masturbou-o; e o chupou com vontade. Então se consumiram veemente ali mesmo na
sala; ela em cima dele até gozarem. Abraçaram-se, serenados. A campainha tocou. Ela
atendeu, nua. Renato chegou? Ela olhou para trás, ainda estava deitado no chão,
completamente nu. Rê, sua ex. Vais falar com ela? A ex empurrou a jovem, que riu, e
foi entrando. Renato, que vida é esta? Agora nem te vestes mais? A ex-namorada olhou
para a jovem e viu pingar de seus lábios vaginais. Ai, não me digas nada. Teus
companheiros de banda te ligam. Tu não atendes... Hum? O telefone estava fora do
gancho hà semanas e o celular, onde estaria? Estou mais preocupada com outra coisa.
Há quanto tempo está transando com essazinha? Péra lá! Essazinha não, que te enfio a
mão! Pois é. Bem, foi depois que terminamos, eu juro. Se não, te falava na cara. Não
temos mais nada mesmo! Ups, eu me enganei... Ah, já estou com tantos problemas.
Começou a chorar, a ex. O que foi? Não sei como aconteceu! E chorava. Estou com
AIDS. Tua tá maluca!? Como assim? Fiz uns exames e me descobri por acaso soro
positivo. Quem é zinha aqui? A ex-chorava. Achei que tu tivesse passado a Renato e eu
contraído dele. Chorava convulsivamente. Péra lá, eu posso ter pego de ti! Quê! Vadia!
Sai já da minha casa! Porca! E saiu, escorraçada. Ele se sentou, nu, e caiu no choro.
Meu bem, me perdoa! Ela se sentou junto a ele. Como poderíamos saber?! Por que não

17
fazem uma camisinha que possibilite o prazer? –tantos casos seriam evitados—e não
aquele plástico que parece que estamos a fazer sexo com um robô. Pior que punheta.
Chorava, agora, ele, convulsivamente. Como, Rê, primeiro temos que saber se tu pegou
dela e se eu peguei de ti. Aí que ele chorou mais profundamente. Ela o acolheu em seu
regaço e fazia cafuné em seus cabelos enquanto ele se entregava ao desespero. A
campainha soou novamente. Quem será? Ele dava murros no chão, agonizando a dor de
ser portador de um vírus fatal. Calma, Rê! Ele grunhia, não suporto mais, tanta dor!
Desgraças não vêm sozinhas. Calma, veja, não estou desesperada. Tentava ser forte. Sei
que você não me transmitiu. Era para estar desesperada, ainda mais que tu! Eu sei. A
campainha soou de novo, e de novo, e de novo. Ele não conseguia segurar o choro. Se
quiseres, não vamos atender. Eu sei, mais amolações, não dá. Barulhos na porta.
Arrombaram. Eram os caras da banda. Cara, pensamos que tu estava morto! Vendo eles
nus, o que acontece? Ela falou, muitas coisas. Vocês estão drogados? Cara, vocês estão
pelados! Vocês estão bem? Cada um lançava sua pergunta. Eu estou com AIDS. Tu
ainda não sabes! Mas eu estava transando com minha ex e ela está. Então, se for assim,
eu também estou!? Novo choro. Eu não estou entendendo mais nada. Cara, vocês estão
pelados! Tentaram se vestir, embora isso não fizesse mais sentido. Colocaram mal umas
roupas que viram. O telefone só dá ocupado; o celular sempre desligado. Todas as vezes
que viemos ninguém em casa. O lance da AIDS é de hoje? Renato não conseguia mais
chorar; estava vazio. Foi agora, ele falou. E por que sempre que vínhamos não havia
ninguém? Não deram sorte. Às vezes saímos para buscar droga, comprar bebida ou
comida. Essas coisas. E os telefones, fixo e celular? Na verdade, estivemos meio
ausentes depois daquele incidente. Nem sabíamos que tu estava com ela! Pois é, desde
então ela tem morado comigo. E tu, é alguma espécie de Courtney Love ou Yoko Ono?
Eu não sou nenhuma Courtney Love, nem muito menos Yoko Ono! Ninguém nunca sai
em lua de mel? Mas vocês nem se conheciam!? Já casaram!? Paixão fatal à primeira
vista! E a banda, cara? As mulheres eram para vir depois. Uma coisa e aí a outra. Tudo
é a mesma coisa, resplandecendo, e não dá para controlar. O que querem que eu diga!?
Eu vou morrer! Me deem um tempo! Tu vais morrer um dia, como todos, mas não
necessariamente de AIDS. Primeiro os exames. Aquele caso do show, do incêndio, já
está tudo encerrado. Já não procuram por ela, que se sentiu mais livre. Amanhã os
exames. Em seguida veremos o que fazemos da banda. Tu és um excelente guitarrista.
Não queremos te perder. E não vamos! Eles se foram. O casal ficou com a porta
arrombada. Apenas encostaram e se beijaram, uma última lágrima caiu do rosto de

18
Renato, não, não podemos mais até descobrirmos. Ah, como não queria estar com
AIDS! Renato, presta atenção, tu não tens nada! Eu não estou com AIDS! O
cérebro comanda. Se tu pensares que não está, então não estás! Ou tu queres ter AIDS?
Deus me livre! Pela primeira vez falava em Deus. Então, pensa positivamente, ela se
sentia uma adulta aconselhando. Se tu pensares somente coisas boas, somente coisas
boas acontecerão. É que sou um realista-pessimista. Deixa disso. Vamos sair dessa
juntos. Ela mudara, nascia um sentimento, sentia-se forte, pronta para apoiar, mas e se
ela, e não ele, portasse o vírus? Praticara tanto sexo sem camisinha. Contudo, não,
desanuviou desses pensamentos e seria forte; forte para ele. Precisava beber, entretanto,
e não poderia por causa dos exames e apenas acariciou-lhes os cabelos e suspirou. Vai
dar tudo certo, desse ele titubeando. Claro, ela lhe sorriu, querendo-lhe bem.

Colheram material juntos, um ao lado do outro. Já não tinha dúvidas. Ele era
seu carma. Todos os outros foram uma preparação para esse que seria, de uma vez por
todas, e até que morressem, seu homem. Renato, já o via velhinho consigo tentando
relembrar as loucuras daqueles dias e só veriam lacunas. As noites mágicas apagadas
pelo excesso de bebidas, drogas, e, juventude, esta outra droga tão mais letal. Sorriu.
Estava convencida de sua felicidade. Só poderia ser ali, a seu lado. Teriam filhos. Um
casal, por capricho se chamariam Kurt e Courtney.

Em casa, Renato tocou. Ficou tocando guitarra, fazendo-a chorar a fim de


aplacar a espera. Não a queria beijar, porque senão dava vontade. Gravou as horas. Ela
cantou; ele cantou; cantaram juntos. Saíram horas de angústia, serenas delicadas e
tristes, de uma beleza inacreditável.

Depois do choque; depois do horror; depois de toda aquela aflição; depois de


tudo, porque é sempre uma coisa depois da outra, quando os ânimos estavam um pouco
mais sobre controle, resolveram fazer algo com aquele material.

Procuraram a gravadora que lançara o álbum da Moondog e mostraram. O


produtor achou uma maravilha. Alguns cortes, algumas mixagens e o álbum estava
pronto. Os autores seriam He and She, pseudônimos, e o título, Waitting care.

Ela escrevia e já havia publicado na grande imprensa. Desse modo, não queria
que seu nome interferisse na apreciação do trabalho; o que não foi possível evitar
durante muito tempo.

19
Pegar o resultado foi um choque. A serotonina atingia picos culminantes; as
mãos tremiam. Receberiam a sentença de vida ou morte, os dois. O preço de brincar
com a vida pode ser sua perda. Aguentar as consequências não é saída, mas apenas o
que se pode fazer. Agora tinham medo. Não queriam ver o resultado e combinaram: eu
pego o teu; tu pegas o meu; daí falamos, seja o que for.

Olharam.

Ele silvou. Não tens cousa alguma, minha querida, brincou! E a beijou,
aconchegando-a a si. Então também não tenho! Beijou-a novamente. Ela lhe deu um
abraço apertado; o mais caloroso de toda sua vida. Ele sentiu seu bem querer. Olhou-a
longamente. Eu não tenho nada, não é? Uma lágrima caiu do rosto dela. Preferira reter
consigo aquele vírus maligno a dizer-lhe o pior. Quais palavras? De que palavras usar
para transmitir uma sentença de morte prematura? Não era o fim, ainda, embora o
sentisse dando um abraço forte demais que lhe tirava o ar.

Era escritora, no entanto, a linguagem faltava-lhe. Que isso? Me deixas


apreensivo! Minha dama! Se tu não tens, logo eu não tenho. Lembra, penso logo existo?
Dois e dois não são sempre quatro? Na matemática pode até ser; na vida a equação é
outra. Lógica não se aplica à vida. Na verdade, a lógica da vida é ser ilógica. Ela quis
abraçá-lo e beijá-lo. Não conseguia dizer palavra. Tentava, em vão; ele a repeliu e
tomou-lhe o exame.

Caiu de joelhos, gritando profundamente; tanto que vieram enfermeiras


socorrê-lo, e, como ele estava muito agitado, aplicaram-lhe um sedativo. Enquanto ele
estava inconsciente, ela pediu que repetissem os testes, a fim de confirmar aquela
sentença de morte nefasta que lhe encerrava o destino. Os médicos lhe diziam que a
AIDS é muito diferente hoje; antigamente morria-se facilmente de HIV, mas agora,
tomando os devidos cuidados pode-se viver até normalmente, como qualquer outra
pessoa. Ela escutava não escutando; seu choque era tamanho; e perguntava-se por que
logo agora que entrava na vida adulta lhe coubera esse homem com HIV. Não
renunciaria. Todas as passagens se dariam através da dor. E somente pela dor viveriam
algo. Preferiria que ela mesma, e não ele, portasse o vírus. Ele desesperava muito fácil.

E se fosse ao contrário, ele ficaria a seu lado? Não tinha tempo para pensar em
inutilidades. Afinal, suposições não mudam fatos. Ela seria forte para ele; por ele.

20
Todos os outros homens foram uma mera preparação para este, que estava deitado numa
maca de hospital. Estava convicta deste papel. No entanto, precisava de mais uns goles
e pararia.

As mulheres, na história, fazem sacrifícios por seus homens; e eles, os homens,


raras vezes reconhecem. Isto estava mudando, mas ela, ela queria e estava disposta a
renunciar e fazer o que fosse preciso por este homem que lhe coube o destino. Até
acreditou nisso de destino; ressonâncias da tristeza trágica.

Ao abrir os olhos a primeira coisa que viu foi ela; ela, a coisa. Iria perguntar o
quê aconteceu; antes que as palavras lhe viessem à garganta lembrou e calou-se. Em
vez, falou-lhe de um sonho. Sonhei que isso tudo era um pesadelo do qual nós ríamos,
aconchegando-nos um ao outro; aí sentamos na areia da praia e ficamos olhando o mar e
tu deitou tua cabeça no meu ombro e fomos felizes.

Vem, possível! Nós iremos! Saindo daqui direto para praia. Isto! Claro. O dia
lá fora está lindo. O médico veio; passou recomendações; entregou umas folhas
esquisitas; e deu alta ao paciente.

Na praia, eles fizeram exatamente como no sonho, mas não foram felizes. O sol
ficou negro vendo-os chegar, embora brilhasse exatamente como antes. Melancolia, este
veneno entorpecia as veias deste casal; apesar de serem formas diferentes de afecção.
Um não via saída e tinha o sentimento do fim; a outra só via um caminho e tinha o
sentimento da perda da sua liberdade. Ficaram assim, por mais de hora contemplando o
refluir das vagas, em silêncio, com uma vaga saudade; era um voltar à origem, onde
tudo começou. Como poderia durar tão pouco? Foi ele quem quebrou o silêncio. Isto
não está certo! Aqui nos separaremos, onde decidimos ficar juntos. O início e o fim no
mesmo lugar. O quê!? É, meu bem, minha querida, tu não podes ficar com um doente.
Ainda há o risco de eu vir a te contaminar. Oi? É sério! Vamos ter que nos separar.
Quero te preservar, meu bem. Não posso ser egoísta e te privar da tua vida para viver a
minha. Agora é fácil. Ainda não começou, mas vai chegar o dia em que minha rotina
será entrar e sair de hospitais. Não poderei tocar, trabalhar, ou coisa que o valha. O
doutor disse que não é assim, mas só porque ele quer, né? Quem engole aquele papo
furado? A verdade é que como não vou poder trabalhar, passarei fome e morrerei. Há de
chegar o dia Chega! Para de falar bobagens! Tu seria um baita de um
egoísta se me expulsares assim da tua vida. Digamos que seja como tu disseste, embora

21
eu não acredite. Eu não quero saber do amanhã! Me importa hoje! Eu vivi o teu melhor!
Quero também viver o teu pior! Me deixa contigo. Só assim se poderia chegar a se
conhecer uma pessoa. Aquele mito do uno, toda aquela bobajada do dois que são um,
mesmo que não exista, buscava chegar o mais perto. Nós não casamos. Nos
conhecemos há pouco tempo, mas quero te conhecer pelo tempo que restar. E isto de tu
morrer primeiro é um grande papo-furado. E se eu for atropelada amanhã? Ou hoje
mesmo? E se eu te infectar? Não me importa; não quero saber; nós vamos todos morrer,
não vamos? Tomava a decisão mais corajosa e louca de sua vida. Ultrapassava em tudo
àqueles anos de loucura desenfreada que vivera. Estava mais sóbria, apesar dos goles,
crescia em humanidade. E a minha posição, tu não pensas? Se eu te contaminar, vou me
culpar o resto da minha vida. Não será muito tempo, segundo tu dizes; brincou e riu.
Riram. Vamos entrar no mar. Se sentiram mais libertos.

Talvez a vida não fosse assim tão terrível, quem sabe? Foi talvez o melhor
banho de mar do casal. Aliviaram um peso que já estava insuportável. Ela ficaria com
ele, e disso, não abriria mão. Ele tinha seus próprios demônios com que lidar e a queria
por perto. Precisava dela, mas temia lhe fazer mal, uma aporia inevitável. Como ela
fazia questão de estar a seu lado, não tinha forças para afastá-la e a deixava ficar.

Ficaram um tempo sem transar; só que ela não estava mais aguentando;
acostumara ao sexo com ele e necessitava como do ar. Não iria com outros caras, apesar
de ele ter sugerido. Estava envolvida demais. Iriam de camisinha, mas ele brochava
porque não a sentia. Não queria fazer sem, lógico, dadas as circunstâncias.

Renato, tu não vais me contaminar! Eu te quero dentro! Não quero saber!


Relaxa e façamos como nos velhos tempos. Nem tão velhos assim. Demoraram um
pouco até atingir a sintonia, mas finalmente alcançaram. Ele se martirizava depois de
cada vez.

E foram muitas.

Queria que ela fizesse exames. Ela se recusava. Não quero saber! Quero ficar
aqui, contigo! Ele acreditava que a contaminara porque não cria no insólito da situação.
Transaram tantas vezes; ela só podia ter adquirido. Assumia a responsabilidade dela
para si. Queria protegê-la. Ela seria agora sua responsabilidade. Ela fazia o mesmo por
ele, embora os motivos diferissem.

22
Ele contatou a banda para comunicar os resultados após uma semana. Primeiro,
digerir o choque, mesmo que não completamente. Eles retomariam até quando desse.
Estavam em processo de iniciar um novo álbum. Poderiam contar com ele. A gravadora
seria a mesma. Quando fossem excursionar, viajar por qualquer motivo, ela iria junto.
Tornava-se quase sua sombra, ela, a mulher que era seu porto, onde estava
completamente ancorado.

Redescobriram aquelas gravações e resolveram fazer algo a respeito. Waitting


care, projeto paralelo de Renato; saiu primeiro que o álbum da banda. Emplacou alguns
hits; posto que o país mergulhara numa onda de insegurança e melancolia, esse álbum
seria sua trilha sonora.

Foram a programas de televisão. Renato silenciara sua doença; não queria que
ficassem com pena e, por isto, comprassem o trabalho.

Renato começou a perder peso. O novo álbum da Moondog já se arrastava por


nove meses e eles só tinham prontas, definitivamente, três canções. Os componentes da
banda se envolveram mais e mais com drogas pesadas. Renato quase não os via. E eles
ainda nutriam um misto de inveja e ressentimento pelo casal-dupla; até chegar ao ponto
que o baixista, Carlos, avançou em Renato e lhe deu um soco. Ela estava lá, e pegou de
uma guitarra; quebrou-a em Carlos, que caiu inconsciente. Depois dessa, ele, Renato,
saiu oficialmente da banda. O álbum nunca viria a se concretizar e a banda se
desintegrou.

Renato parara com as drogas quando soube do resultado; ela só usava de vez
em quando para segurar a onda, quando pesava demais. Não se importava de ser sua
sombra. Existia nele e nas coisas e essas existências lhe pesavam menos que a sua.

A primeira vez que ele teve que ser hospitalizado foi por uma gripe que virara
pneumonia. Ela estava lá, como se prometera fazer, vivendo a impossibilidade de um
casamento com um aidético. Ali, olhava-o na maca, inconsciente; quê sonhos não
viveria de contos-de-fadas? Não deveria sentir dor, posto que sua face estava serena.
Deveria sonhar ele na praia, sempre aquela praia que lhes selava o destino, ou então, os
mesmos dias em que acordavam e tomavam café, um olhando o outro, em silêncio—por
longo tempo—segundos que viravam minutos e virariam horas? até rirem e se
entregarem ao prazer da carne. Ante esse pensamento, inclusive ela rira, ali, assistindo-

23
o. E como durara pouco! Sempre dura pouco; pudessem perdurar o tempo! Felicidade
assim não é para durar; do contrário, não seriam do vivo. Diante da morte imanente tudo
perde em importância. Ele se recuperou bem, graças às insistências dela perante os
médicos. Ganhou, inclusive, um pouco de peso; ou melhor, recuperou um pouco.

Ela lembrava de antes; das risadas fáceis; da leveza; de como gostava de ficar
gozada, com seu sêmen dentro, fazendo outro dentro. A viagem do esperma que não
viria a se concretizar; no entanto, só de estar ali, com aquele sopro de vida dentro de si,
sentia-se renovada e revigorada. Sorria a essas lembranças. Não que não gostasse mais,
mas a face de Renato demonstrava o sopro de morte que era. Gozava difícil, a despeito
do alívio, sentia simultaneamente pesar. Pesar e medo, pois sabia da inevitabilidade do
que estava para acontecer e que, embora provavelmente já tivesse acontecido, não dava
mostras.

Iam bem, às vezes quase se esqueciam do inevitável rondando. Ele só não


podia adoecer. Todos os cuidados eram tomados a fim de evitar. Quando adoecia, o
menor dos males, uma infecção de garganta, a mais simples que fosse, levava-os
imediatamente ao hospital. E eram dias de sofrimento. Quando ele ia bem, tudo ia bem.
Já pensavam em gravar um novo álbum; as reservas estavam acabando; o real sondava.

Sabe, tanto tempo que não vou à Europa; eles estavam na cama depois de uma
trepada excepcional; acarinhavam-se. O orgasmo se tornava bom. Por que não vamos
lá? E o dinheiro, está se acabando. Deixa disso, nunca ligamos para o dinheiro! Além do
mais, o álbum vende bem. Pois é, mas quase não vemos um centavo. Exagerada! Riram.
Nunca mais fizemos um show... Ai, é que não curto tocar enquanto a plateia está lá, a
espera que eu caia... para sempre. Nossa! Vira esta boca linda para lá! Mas é! A notícia
de sua doença vazara na imprensa. Provavelmente uma vingança da banda. Aqueles
babacas! Quiseram te prejudicar, mas o tiro saiu pela culatra! Nosso álbum dobrou nas
vendas. E tu não deste uma palavra sobre isto! Ah, não quero falar da minha morte.
Esquece isso, meu querido. Pensa que tu vais viver; brinca com a doença. Até parece
que não gostas de viver; de me comer. Este o ponto único de eu ainda viver. Riram,
gargalhadas gostosas, como as de antigamente; alisaram-se um pouco mais e transaram
novamente. Gozaram simultaneamente; era incrível essa capacidade dos dois, uma
sintonia poucas vezes sequer vislumbrada. Vamos à Europa! Que se foda o dinheiro!
Quando voltarmos, brincarei com a doença. Sorriam um ao outro.

24
E foram verificar se as ruínas da Europa continuavam as mesmas após a
invasão síria. Nunca mais se soube uma notícia desse casal. Eu, Jacques, mudei-me para
terras de França e em cada café pensei avistá-los, sem jamais, contudo, encontrá-los.

Eles se perderam no mundo? Eu me perdi deles?

O que sei é que esta história que não pode ser contada porque real, seria
contada, se isso fosse possível, porque o real, além de indizível, é impossível, com
alguns acréscimos e alguns cortes, mais ou menos assim.

By the way, meu nome não é Jacques. Meu nome não tem importância.

Meu nome pode ser o de um qualquer; meu nome pode ser o de qualquer um;
meu nome pode ser

teu.

Prazer.

25
26
SEGUNDA PARTE:

Depoimento

pausa da brevidade para um café

Nós não temos culpa! Era ela quem queria, e nos enredou. A culpa é dela! Esta
garota, sempre foi impossível! Os seus pais não a suportavam. Teve uma vez, porque
sempre tem uma vez, né, meritíssimo senhor juiz, teve uma vez, não que fosse a última,
ela, criança, bem pequenininha, oh, céus, como pôde? Ela arrancou a cabeça de uma
boneca; se cortou e pôs a culpa na empregada; vejam bem, na que toma conta dela.
Olhem só, se faz isso com pessoas que a cuidam, como conosco, essa infâmia,
imaginem o que não fará com estranhos! Com idade de apenas quatro anos, queria pegar
o pênis do pai! e chorava porque não podia; porque lhe impediam; porque é imoral! Nós
nunca a forçamos a nada; ao contrário, ela que se impunha sobre nós, com sua
arrogância e desprezo. A nós! A nós! que tanto a cuidamos! Antes não tivesse nascido!
Foi um suplício para os pais, a filha subversiva! Não poderiam imaginar! Se soubessem,
se soubéssemos o que nossos filhos viriam a ser, alguns interromperiam antes que o pior
acontecesse; mesmo aqueles que são contra. E acreditamos, piamente, que se seus pais
soubessem, não hesitariam em pôr o ponto final. Claro, claro; tentamos educá-la!
Corrigi-la, mas não era suficiente! Ansiava pela subversão! E nós não sabemos donde
lhe veio isso. Nós não a queríamos também; nos veio como um fardo. Alguma coisa
desse tipo tinha que aprontar! E logo sobre nós! É indizível! Nem em pensamento!
Choramos sobre isso. Uma vez, ela, a criança, veio até a minha casa, corria, tremia e eu
vi lagrimas em seus olhos. Isso foi pouco antes. Como eu poderia saber!? Eu perguntei e
ela não falava. Só tremia e eu vi que ela, ela, a menina, tentava segurar e engolir as
lágrimas. Agora tudo faz sentido. Tamanha força e coragem! Como suportou sozinha?
Fico me perguntando. E isto tudo me deixa triste, muito triste. Deveria ter investigado
mais; feito alguma coisa, que fizesse alguma diferença. As pessoas, e aí eu me incluo,
ficam tão presas nas próprias vidas e focalizadas em seus problemas, que se esquecem
de olhar para o lado e reparar que há gente sofrendo mais, muito mais. Gente sofrendo,
é, é isto, gente sofrendo; e esta menina, uma criança! E por quê não ajudar? Socorrê-la,
de qualquer forma que desse, seria já alguma coisa, mas agora já é tarde; ela está
marcada; talvez pelo resto de seus dias. O que eu quero dizer aqui, é que, hum, o mundo

27
deveria ser outro. Esta vizinha é uma intrigueira mentirosa; não viu nosso amor. Este
amor está estampado em todas as páginas! Ela inventa porque queria meu esposo
quando mais nova. Essa é sua grande vingança. Não estou com vontade. Não quero
falar; só falando. Como quem ousa abrir o baú e achar o tesouro que se esconde;
tentaram camuflar; tentaram apagar. Eu não sei o que você está fazendo aqui. Fala a
sério!? Eu sou a voz do crime; atrás da montanha. Devo confiar na minha própria pele?
Os jornais dão o veredicto antes do julgamento. Que país é este? Você se foi muito
cedo. Não. Ela não é um fantasma que retorna. É hora da justiça. Que justiça, se todos
estão corrompidos, e não há ninguém para apontar? Ele é um gangster! Qual a
novidade? Todo mundo faz isso. Alto lá que eu não sou dos seus! Aqui ninguém é de
ninguém! Quem quer muito, se complica ainda que consiga. Não tem muita lógica. Para
quê? Eu e ela vimos um Elfo. Isso não faz o menor sentido. Depende em qual real se
entra. Você quebra a verossimilhança e a pertinência. Não era o real o que mais queria,
então? Não? As cartas estão marcadas. A dama de copas é carta fora. Bem que uma vez
ela queria mais e mais. Conseguiu? Valeu a pena? Nada é o que vale a pena. E é para
isto que estamos aqui? Esse discurso tem de seu o quê? Nunca vi nada igual. Esse
homem não transava, nem com a própria esposa. É um homem que simplesmente não
transa; não se sabe porquê. Tinha que compensar com alguma coisa. Dizem que seu
filho é de outro, o que ainda não foi verificado. E ela, a tia, era uma mulher que não
bebia. Simplesmente não bebia. Como aguentou? Tinha que participar. É tudo quanto
sei; uma questão de senso. Eu não vou falar; não; meu coração é mudo. Você não
precisa falar, encontramos seu caderno, a única prova deste crime:

O caderno rosa de Enzo Bertô:

Não deveria escrever isto aqui; se me pegam. Minha prima chegou ontem,
coitada. O que a espera não é bom. Não posso nem ficar feliz, posto que serei menos
amolado. Não posso, tenho pena da guria. Vou escrever sobre outras coisas para passar
o tempo, meu caderno quase ilegível. Qualquer legente há de saber que se escreve para
passar o tempo, para conservar memórias idas, para entender o ininteligível, para
recuperar a despeito do impossível, e etc. Gosto de conservar o tempo; inda mais porque
tenho, como dizem, uma memória falhante. Por isto, no momento em que acontece, ou
pouco depois, escrevo; do contrário, esqueço. Também não posso datar este caderno
porque datar um escrito, como diria uma amiga querida, é tirar-lhe o significado. Então
escrevo, rememorando, ou quando da hora exata do acontecimento. A ponte ainda não
28
caiu e já se está lá, transladando o acontecimento para o papel. Esta é nossa época, e
ainda há coisas que se antecipam, anyway.

Vou à faculdade; estudo; evito ficar em casa; tenho medo de que me peguem,
embora haja outro alvo bem mais vulnerável do que eu. Deveria ajudar? Prestar
socorro? Era o mínimo. Não devo prestar; é que me sinto tão impotente nesta situação,
porque querendo ou não, convivo com eles e não trabalho. Assim, parece, vou continuar
nesta situação durante um bom (ou mau) tempo. Ouço seus gritos; aumento o volume. É
tudo quanto posso fazer.

Não sou o homem de nenhuma situação.

Antes procuro um. Entrei num aplicativo para tentar descolar. Por enquanto,
nada.

Acho que sou escritor; escrevo, ao menos, como meu tio fazia; talvez não tão
bem; que importa? Li uma vez que o importante é escrever; o que resulta disso é
posterior; como uma queda. Cai-se; foco na sensação de cair; abrir os braços, ir. O que
acontece quando se atinge o solo é posterior; pode-se morrer, quebrar um braço; nada
também é opção que cabe aqui. Escrever escrever escrever; não haver um leitor, pode
acontecer; ou então, ser como um desastre sobrevindo, atinge, um clarão em meio às
trevas e faz eclodir um tanto de afeto. Nunca se sabe, no entanto, escrever como única
premissa possível; talvez único fármaco. E se escreve.

Na outra noite eu me fartei. Não, não, não. Você não é Marguerite Duras, que
escreve e aprisiona o nada, a solidão, a morte e faz disso uma promessa obscura de não
entendimento. O não lugar aonde não se foi está prenhe da minha não existência. Ouço
os signos coléricos da noite. Vem. A promessa é outra; me dê a mão, o interlocutor é
fundamental, está aqui, presente, aniquilamento. O pêndulo do relógio é uma lâmina,
ceifando nossas horas. Qualquer instante e nos decapta. Copulemos, isto, vazio. Não era
um olhar de costas, nem mesmo a guerra não declarada, nem ainda a grande depressão,
muito comum, não era também alguma e toda doença e certas desgraças análogas. O
quê, então? Problema de gênese; dizer eu sem saber a qual instância me refiro.

Hoje chove forte e não ligo a mínima pelo tempo. Uma nova estação de águas
virá, densa e soturna. Não adianta lutar contra o tempo. Aceitar, como único remédio.
Tempo pode ser calendário de nossos sentimentos, mas eu não sinto nada; o problema é

29
esse. Viver e não viver é o mesmo. Houve um menino os sons da noite era o que mais o
encantava. Não obtinha sucesso em nenhum de seus empreendimentos. Tudo o que
tentava era um novo desastre. Parou de desejar após tantas frustrações. Tudo lhe era
difícil; tudo lhe era penoso. Cansou. Desistiu. Buscou a morte. Até mesmo esta lhe
fugia. Cada tentativa resultara num fracasso maior. Passou por hospitais; ficou um
tempo em coma; outro tempo paralisado. Por fim desistiu até mesmo da morte. Este
menino fica segurando a pena. Ele sente pena. E não faz nada dela. É um menino que
simplesmente não faz. Ele se viu ao espelho e se emudeceu. Ele esquece porque se
emudece. Não tem palavra. A voz não lhe sai e desiste de se lembrar que
se emudeceu porque desistiu. Esse menino dá canseira; ataque de nervos.

Eu falo tudo; emudecer? Jamais. Acho que a gente tem que falar, mesmo que
besteira; não dá para calar. A gente diz algumas coisas depois de outras. É como um
pecado. Esse excesso de linguagem não diz uma falta? Eu falo tudo, escrevo tudo para
não falar do essencial, como um subterfúgio. Não posso dizer certas coisas, como minha
prima. Faço somente obliquamente. Por ser mulher, talvez ela aguente. Eu, na minha
vez, meu psicológico foi-se para que lugar? Partido em
vários. Eis-me.

Desistir da fluidez. Pensar que é uma falsa grávida. Ao menos mulher, já que
atualmente. Fascinamos naquele olhar, gravita como um fluído e evapora. Cheio de
segundas intenções. Ao menos Eva se dizia. Eram outros tempos. Não se escreve mais
como antigamente. Também, os frutos eram outros. Na era dos transgênicos as pessoas
reclamam mais. Quer dizer, mais velhos; porque os novos não ligam nem a TV, exceto
se for por uma série; por quê ainda há gente de ficar séria?

Este caderno é terapêutico, só isso. Quisera escrever O livro, mas O livro é


impossível, imenso ilusório
irreal.

Falaria da nossa inexistência dolorosa, mas só para mim; entendeu? Estive


pensando nesse plural de primeira pessoa; é porque eu é um outro. Só assim faz sentido.
Soutantos que não posso ser só eusozinho? Mesmo você, que eu amei e chorei e perdi
sem nunca ter te tocado é apenas um corpo morto porque quando eu amei e chorei e
perdi foi há uma década e aquele corpo que amei e chorei e perdi não é este de agora,
baby. (O corpo morto se junta ao meu?) Falei, passou; não sinto nada, mamãe. Já não

30
incorporo. Não posso parar agora. Aja fôlego. Difícil esquecer amores de outrora, quiçá
impossível. Acho que à medida que os amores vão passando fica sempre um resto de
um amor passado que perdura no seguinte.

Não encontro no meio de tantas metáforas nenhuma que diga meu imenso
vazio. É um vazio incolor; nem branco; nem negro. É de uma profundidade. Não há
palavra que o diga. O meu vazio; tampouco uma expressão. Meu vazio não significa.
Não se alcança a intensidade de vazio, não apenas interior, mas também por fora,
contornando. Esta é a primeira confissão.

Segunda confissão do dia. Hoje faz oito anos que tentei o suicídio e matei meu
outro eu. É porque tem de chegar. Não explico. Mamãe ficou histérica e queria saber o
que eram aqueles traços no punho. Seria uma nova tatuagem? Havia cigarros. Mas ele
não fuma! Ai, ele voltou a fumar? Ela desfalece. É porque chega. O outro falece. Têm
mais alusões. Não se deve brincar com espíritos; o contrário não é verdade. Há
tentações às quais não se pode evitar. Das outras não falo.

Tensão súbita. Ver a face ao espelho. O quê os outros verão? Com certeza não
se verá as horas de solidão gastas com bichos; as noites torpes e insones; os delírios de
ser um outro que não este e sim o de uma outra vida com histórias completas e felizes e
amargas e intensas; os lugares em que não estive estando, embora uma coisa não anule
outra; as vidas que vivi sem ter vivido; as horas desperdiçadas na improdutividade e no
vazio; as noites de alheamento de uma mente infértil e dilacerada; não se verá. Com
certeza, não se verá. Não se verá. Não se vê.
Não?

A loucura loura dos meus tristes vinte e nove anos agora me constrange os
membros em transe, pois amanhã morrerei. É sempre amanhã que morro pelas próprias
mãos. A morte de hoje se dá de outra forma. É uma sucessão lenta de casos e acasos que
dão a impressão do efêmero e repentino, mas não é pelas próprias, não, jamais. E tudo é
falso.

Me conta alguém de verdade.

Dilacero pouco a pouco. Escrevo coisas absurdas para não falar de minha
prima, em cárcere privado. Não, ela está bem. Assim quero crer, espero crer. Este
caderno poderia ser uma salvação se a libertasse? Estamos encarcerados. Eu sou mais

31
um. Na vida todos esperam alcançar alguma coisa, nem que seja paz. Qual a meta?
Minha carne arde no silêncio pouco a pouco. Entre espíritos se comprime. Lá fora era
dia, mas aqui, a noite aterradora cumpre sua missão. Lá fora, é sempre lá fora que me
perco à razão e engano os dias transfigurado, pois aqui, a ordem é loucura e os
desavisados que se cuidem, pois muitos já se perderam para sempre e fica sempre mais
e mais impossível dissociar o fora e o dentro.

Me arrependi de coisas compradas. Televisão, sofá, mesa, mp3 ressoando não


preenchem a sala. É vazio aqui. Me desfiz de objetos raros; não tinham valor. O ex-
namorado desceu pela privada; o amante da esquina não ficou sabendo e não se viu
mais por aqui; a ex-melhor amiga que jamais amei foi digerida rápida demais e
terminou entre fezes. Não se deram. Não me dei. Aqui é fantástico, sabe? O maior
êxtase!

Nossa! Já se passaram três meses—e nada—e começou ontem. Eu vou para o


escuro então. Achava que já se estava não estando, que é o melhor método. Porém,
conclusões (des)necessárias empurram, empurram, empurrão. À meia luz.
Eu tive uma ideia.
Eu não tenho a menor ideia.
Escrever a coisa é outro detalhe.

Aonde agora? Hah


têm dias que a gente sabe que não vai ser bom, e vive-os, apesar, e, no entanto. Esta
perspectiva toda errada. O asfalto revelava minha ausência e ela desandava, esta colega.
Sentia um ciúme puxado do Júlio. Ela pensou que eu pensava nele, no Júlio. Se
enganava; pensava no entulho, e você retrucou tão simples. Será o mesmo, o entulho, o
Júlio, quando ela terminar com ele. Júlio é um rapaz forte, de riso fácil, uma juventude
alegre que não faz outra coisa a não ser esbanjar sua liberdade e não entende as outras
pessoas; aceita-as e as ama, sim, AMA, com tudo da palavra, mas não se apega, porque
se apegar é se aprisionar—lembremos—
Júlio é livre o que não satisfaz muito as
outras pessoas pois bem pois bem
Júlio anda vê olha interage beija
penetra
faz a coisa na coisa ser mais uma vez coisa e se coisifica também

32
Júlio usa os cabelos curtos.
Júlio não é uma pessoas de carne e osso.
Júlio é uma pessoa de prazer e ventura.
Isso não acaba bem.

Não se sabe mais no que acreditar. Não é sabido. Vejo transbordante através do
espelho. Minha prima, ai, a prima, bem, ela passou por vários quartos; viu pessoas
ausentes, absortas de sentir. Acho; acredito, ela terminará assim; que ela fuja! Para
onde? Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez! Ela viu, ela assimilou, demência se
casou com ignorância e andam bem, passam mau e contagiam os que veem, como
medusa. Ela se despiu de mim e não me reflete; segue sem mim um caminho que creio
sem volta. Não sei o que fazer. Estou perdendo o foco. Ela não deveria ver demência;
olhá-la é senti-la: isto é assombro, na distância de uma parede. Não deveria escrever
isso aqui. Tenho que parar com esse hábito mortífero.

Consultei outro dia por causa de umas enxaquecas. A secretária perguntou com
que trabalhava. Respondi-lhe, com dor. E isso rende? De repente, surpreende, foi minha
cortante resposta. Voltei para casa pensando. As pessoas têm direito a serem estúpidas
uma vez ou outra—depois me ocorreu—isso não é um direito, é apenas o que elas são.
Não todas, é certo, no entanto. Vou falar do passado para ver se me distraio. Marco de
surpresa vital

aos 16 anos.
16 anos é uma idade perigosa.
Tudo pode acontecer aos 16 anos, ou não, dependendo é a metade para a vida adulta;
aos 16 fui preso por ser usuário de cocaína. Não foi bem isso; foi por portar a droga. Só
que no final, dá no mesmo. A delegada disse para papai que era só o daquela noite
porque amanhã teria mais. Claro, mas não durante muito tempo; uma juventude perdida.
Aos 16 anos a festa que se iniciou aos 12 pode acabar e aos 16 anos pode-se ser
internado numa clínica para dependentes químicos, onde pela primeira vez se consegue
dar o ânus aos 16 anos chorei como nunca chorara e como nunca mais voltaria a chorar,
com toda dor e inocência e inconsequência e ardor e selvageria e delicadeza que se pode
ter
ah

os 16 anos.

33
E agora chega. Pediram-me para falar o que achava da felicidade. Eu sempre
acho que há mais lágrimas do que prazer. Não acontece muita coisa.

Peleja vai; peleja vem, tive um crush num desses aplicativos. O cara falou para
adicioná-lo no whatsapp, o que fiz, relutante. Vai que é um hacker? Nunca se sabe.
Agora sorrio ante essa ideia; o quê seria pior? Não sei o que dizer. Não tenho uma
palavra. Etiene me pediu que dissesse alguma coisa para ouvir minha voz, mas
desconfio que seu desejo fosse outro. Conversamos no chat, whatsapp, etc. Divagações.
Qual o fascínio da ausência? O real quebra. Ele veio se aninhando, pantera feita, vai dar
o bote, e me estraçalhar. Não por maldade, mas porque deve. Talvez ele quisesse ouvir
o som da voz antes de destruir; talvez por instinto. Mais, como supor? A fera não fala
uma língua em comum. Minha terapeuta aconselhou-me a metaforizar as
situações/sentimentos; talvez por em verso, se fica melhor para você a abstração.

Eu não posso fazer nada.

Sim, escrevi sobre você.

Sim, componho, vou compondo para esquecer.

Não, não escrevo para uma impossível libertação.

Se não disser, não sai. E me consome. Fogo que me deixa em cinzas.

Eu sou o ansioso, sim, o que posso fazer?

Não, não é invenção.

Não, não menti por maldade.

Todo mundo mente sim quando era não, mas não tem importância.

Nenhum de nós tem importância; você não vê e sabe que o mentiroso sou eu.

Tento deixar um pedaço do que sou, mas fica faltando sempre.

Você dizia que não sou real.

Insisto nessa abstração. Insisto muito. Quase perco o ar.

É aí então que perco

34
você.

―nada aconteceu― e

já estou lembrando com saudosismo ingrato dos parques a que fomos; dos
algodões-doces roda gigante―doces, por sinal, enjoativos demais, dos rituais de
acasalamento, ah, a arte da sedução. Das artes da sedução. Da sedução! Era eu quem
pensava seduzir, mas terminei enredado na própria arapuca que urdia. E enquanto nada
acontece, urdem-se as horas da espera com melancolia feroz. Ataque, fera. Me dê a
mão, a taça e me tire dessa espera

maluca. Não sei, esse cara me enrolando; tento metaforizar,


mas mesmo assim fica faltando; bem, melhor que lembrar da prima.

Etiene,
estou vendo algumas coisas; outras adivinho; algumas não quero ver. As horas de
espera e solidão dão cansaço. Aperta a minha mão! Os anos que não passamos juntos
estão nesta mão. Os anos que se seguirão, quem sabe dizer, não diz. E enquanto um
oráculo e outro tentam adivinhar, vou sangrando, sim, vou sangrando, em êxtase.

Esse cara tem me consumido. Ele não é um outro, como Rimbaud, que ele não
conhece, queria. Ele supera o poeta. Ele é vários. Há o anjo pornográfico, que me
excita, atiça e voa. Para bem longe? Nunca talvez. Há o médico adulto, responsável, que
cuida. Há também por outro lado a criança zombeteira e alheia
que anseia somente ser feliz; há ainda o excêntrico meio doido que parece querer
apavorar, mas já não assusta; e tantos, tantos mais a
esfinge que dilacera por ser enigma e não se deixar

adivinhar,

mas sabe, de todos, todos, todos


esses que o formam, eu se pudesse,

não abriria mão de nenhum.

A vida dele é tão efêmera que às vezes me esqueço de sonhar. Me concentro,


me concentro, aí desfoco.

35
Perco o jogo para sempre, esquecendo-me de viver meus livros. Todos os
mortos que ressuscitam antes da hora; todos os sonhos que morrem antes de serem
sonhados, que ficam como fagulhas mínimas ensandecidas me repercutem por inteiro,
deixando sobras e riscos suprimidos. Foi tão rápido essa história de romance que se
queria. Todas as histórias são reais desde que cridas. Eu creio em você. Então te levanto
destas linhas e te ponho numa face de pessoas conhecida que ninguém conhecesse
para meu alívio.

Não terá que ceder. Abrigo meus sentimentos cortantes de lâmina afiada, mais
a pessoa crescendo que não muda de tamanho. Foi bom enquanto não durou. Escrevo
sobre alguém que prometia prometia prometia tanto, que confundi seu nome com o de
Prometeu. Ele dizia que salvaria, bom de mais, tanto que caí nessa fraude. E ainda
espero, o coração ardente, sem ilusões, mas guardando a ultima, porque, afinal, quem
sabe?

Etiene me contou uma história, dizendo ser sua. Era mais ou menos assim:

Eram da mesma turma. Namoravam. Se vestiam igual igual às irmãs gêmeas da


vida real. Aqui tudo é real, menos a nota no bolsa dela. Ela se revirava em agonia
porque queria a mulher; e beijavam-se. Os colegas da escola começaram a avacalhar
porque o lance estava ficando quente demais. Onde haveriam de achar que estavam?
Lésbicas! Sapatonas! Podem parar! Essas lésbicas acham que estão no bordel, mas opa!
Quê isso! Começa a arrancar a roupa. Primeiro foram os tênis all-star azuis, seguidos
pelas calças. Ela usa cueca?! Mas como!? E com enchimento?! Nossa, mas tem muito
enchimento! Muito mesmo! Depois foi a camisa. Ué, mas não tem seios?! Cadê os seios
da rapariga!? Não pode! Não pode! Cortados ao meio? Começa a tirar a cueca. O
diretor, os professores vieram intervir, mas já uma turba de alunas fizeram uma roda
envolta, gritando tira! Tira! Tira! Pois que era um homem! E belo! E grande! Ele quase
foi expulso. Virou notícia. Aluno causa reboliço ao questionar questões de gênero, posto
que de agora em diante não existiriam roupas de mulher ou homem, qualquer coisa seria
válida. Quiseram saber se ele tinha plena consciência da revolução que causara não
apenas na escola, mas na vida da cidade, no que ele respondeu que só queria dar uns
pegas na menina. A mulher, a mulher mesmo, a lésbica, já toda bamba, mas eu quero é
mulher; ele beija como uma mulher, que é o melhor jeito. Até a conclusão do ensino
médio o povo comentava sua atitude subversiva; alguns viam nele um herói; outros um

36
doidão; muitos se apaixonaram; poucos acharam que ele só queria aparecer, mas no
fundo o que ele queria mesmo é que as pessoas fossem elas mesmas, se aceitassem
como tais e se divertissem sem tabus, porque, afinal, o que importa mesmo é curtir.

Eu quis entrar no mundo de Etiene. Fora-me dito que era um mundo muito
erótico e científico, mas desconfio que seja um mundo vazio, onde só eu me encontro

com minhas ilusões. Estou vazio; fui contaminado. Meu Deus, não sinto nada.
É esse meu sintoma? Ou será a própria doença? Quisera abraçar, saudades loucas;
extirpar esse excesso de vida; quisera outro contato último de outra ordem que não fosse
apenas corpos se entrechocando, mas encontro de paridade imponderável.

Quisera.

Quis.

Não confundir com a banda Kiss.

Não querer mais?

O primeiro encontro mesmo foi pela manhã. Nascia o dia com sentimentos
espalhados, como reflexos espelhados de cima para baixo, indicando a única saída
possível. Possível. Vem. Digo, possível, o impossível tomando forma.

O segundo encontro de verdade pulou a tarde e já era a noite pusilânime, com


lâminas cegas decepantes. Tivemos de nos desviar. Foi numa estação terminal de
ônibus, defronte para um metrô. Ele veio de metro. Nos abraçamos de acordo. Ele se
fazendo tímido, resfriado e blá blá blá. Fui embora num ônibus para o Espírito Santo.
Ele cético, não crê nessas coisas.

O terceiro encontro não houve. Talvez Jamais haverá. É desde então que eu
sofro amargamente pelo que não acontece; mais do que pelas tragédias abissais,
como o caso da prima, entretanto, entretanto. Talvez me perca novamente; e esta seja
minha recompensa.

Etiene, és uma espécie de abismo, onde se lançam almas perdidas. Sugas todas
feito vampiro; é porque não tens densidade.
Um abismo raro, raso, superficial, que quanto mais suga, mais insaciável permanece,
medrando, às custas de um e outro e mais.

37
Eu não me queixo; eu deixo star.

O café dentro da xícara aquece minhas mãos, mas é com meu coração o perigo.
Adivinho certas coisas que não quero, moléstias. Atira insensatez, doces rubores, não
sei mais o quê. O meu desejo trai, posições que se equivocam. Nesse lance, nenhum
lance; para mais tarde conta um conto. Essa política de suspensão causa fadiga.
arrisca arisca arrisca arranha uma aranha atrás do sofá nos deu um medo
impávido
e nos abraçamos mais e mais na pressa de espantar seu espírito contra o meu. Mas não
me queixo, apenas deixo estar.

Ele queria inserir mais pessoas na relação, mas nós dois para mim já é muito.
Mais, é demais.

As lágrimas me extirparam de você, que eu já vejo torto e sem luz. As


lágrimas, elas, limpam o que era sujo e dão um toque quase erótico para esse começo
exótico. Ela dizia encontrei a cura do amor no álcool. Eu não acreditei. Até cair nessa
outra vez e desaparecer.

Li vários começos de livros sob lençol. Não tinha frio. Tinha esperma, seiva
para nada. Orvalha, atemoriza, medra a espada fincada em nossos corações negros. Tão
de repente foi o susto; na pressa da contê-los ficaram emparedados um defronte para o
outro querendo uma aproximação mais tenra, mas o solo distendido entre eles.

Breve se irá descobrir


--a pergunta é a resposta—

Foi tão rápido feito o sonho mal esboçado e já findado. O que completaria um
par permanece enigma, porém
é assim mesmo para si,
como para outros.

Eu gostaria de escrever a história de Etiene. Disse-lhe isso, mas Etiene dissera-


me que nela eu não figuraria. Não aceitei. Quis saber o porquê; não fora-me dito.
Relutei. Reluto. Caio em mim; dela não participo. Contra isso, não luto. Em breve,
Etiene não fará meu luto.

38
Tenho escrito longamente sobre este assunto, que nem era pra ser longo, visto
que nele não tem nem coisa nenhuma. Acho que é por isso mesmo que escrevo. Quanto
menos tem, mais tem. Urge pelas paredes. Ruge não som de princípio, que não vai
começar e cai, materializando-se na palavra príncipe. E a prima passa; acha que não
escapa destas quatro paredes.

Sabe, Etiene me pediu que esperasse um pouco.


Não sabia que isso queria dizer por toda vida. A morte também estaria incluída?
Raspo minhas feridas; é para que doam bastante; tanto que não tenha que pensar; tanto
que o insuportável vire ninharia; tanto que já não sinta tanto;
Etiene dizia que era angústia, mas na verdade, é urgência mesmo.

Meus olhos ardiam; é esse o problema. Quanto à coragem, não subsiste num
cavalo à toa. Paragens de melancolia, meus cabelos ao vento. Belo belo, esta paisagem é
para nós uma súbita fúria. Depois dizem, o angustiado sou eu: não ter lugar marcado,
fala entupida, esquecer, desejos ardentes me abrir facas entrando e um sussurro ao pé do
olvido dramatizando.
Mas não, isto era uma interpretação da máxima alegria!

E chega,
metaforizar não está dando certo. Escrevo desordenadamente. Este caderno é minha
terapia. Pois bem, pois bem.

Etiene me mandou mensagens enquanto estava no aniversário de uma amiga;


fiquei dividido entre a atenção à amiga e as mensagens trocadas pesando o coração.
Quer me contar tudo porque não aguenta mais! E eu? Pergunto-me, e eu!? Nos
encontramos duas vezes e Etiene sempre me mandando mensagens, por quase dois
meses. Perguntou se eu tinha preconceitos. Não conhece minha vida errada?! Aí veio
com um papo de que fazia atendimentos. Sua profissão informal. Ajudava caras com
solidão; ejaculação precoce; e etc. Entenda, não é prostituição. Mas eu, como um cara
da área da saúde, gosto de ajudar os outros. Agora mesmo, voltei de um atendimento
que fiz com tristeza no coração; atendi um amigo que era virgem. Ele precisa de mais
atendimentos; goza rápido demais. Sim, eu não tenho problema nenhum. Insisti para
que nos encontrássemos. Mas Etiene continuaria inexorável. Por fim, resolvi pagar um
atendimento. Porém, não quis me atender e veio com uma conversa fiada de que gostava
de mim de um jeito especial. Eu pago seu preço. Não, não vou te atender. Seríamos

39
amigos; gosta de ir devagar. Não suportei; tirei-o do face; bloqueei no zap, enfim,
apaguei-o da minha vida.

O quê dizer? Que não é o bastante? Que não é o que quero? Que pensei que
fosse mais? Que por trás há um enorme posso vazio? Que rio quando a vontade era de
choro? Que não é possível mais nenhum decoro depois de tudo? Que mesmo estando
mudo me morro? Que qualquer socorro é vão? Que não posso mais? Que não sei o que
quero? Que nunca será o bastante? Dizer, o quê?

Passado um tempo, minha prima cada vez mais magra, procurei um site de
garotos de programa. O primeiro foi uma decepção, já nas primeiras negociações se
revelou um estúpido e não fui adiante. Encontrei outro, com esse deu certo. Ele é
atencioso, carinhoso, e por enquanto só conversamos ao telefone! Não preciso
metaforizar mais; as palavras vêm prontas, agarradas ao sentimento do momento. E se
escreve.

Ontem o beijei na boca diversas vezes. Parecia normal, sem gosto, seu gosto
natural. No entanto, isso foi mudando; parece uma nova dimensão distendida. Ele tentou
me guiar, ensaios nas artes do beijo, mas temo não ter pego direito
e minha face obsequiosa ao espelho.
Seu pênis duro em mim machucou, lá, na hora; agora, oh, tenho saudades. Será o
primeiro passo para o masoquismo? Ontem paguei meu primeiro boy num chalet;
nossos corpos na hidro. Eu coloquei o pé em seu rosto e o afaguei, como fazia com meu
cachorro; ele revidou. Então peguei seu pé
e chupei o dedão.

Estávamos no chalet; ele metia, ardia um pouco; ganhei então algo que me
pertencia. Um anel de caveira. Enquanto ele fazia em mim, dentro, tirei o anel e pedi
que o beijasse e colocasse em meu dedo; o que fez e acrescentou, enquanto fazia, agora
somos marido e mulher para sempre! E riu. Guardo comigo o anel e o momento.

Ele me falou que seu aniversário seria na semana seguinte. Então, comprei
presentes; fiz uma dedicatória especial e guardei para entregar em nosso próximo
encontro. Eis o bilhete:

―O que me encanta em você não é o porte altivo; os olhos intensos; a feição nobre e
europeia; os cabelos louros; a pele bronzeada, além de torneada e belamente definida,

40
linda, esculpida para dar prazer; nem as mãos macias que sabem onde pegar; muito
menos os lábios finos, mapa de navegação para o prazer. Sim, tudo isso é aperitivo;
ingredientes que adicionam como uma roupa que lhe cai bem, mas o que realmente me
instiga em você é seu jeito
moleque, vivo; nossa, tanta vida tão raro se vê, você doa vida respirando (que
exagerado!) rsrs; seu desarmamento, nunca na defensiva, sempre pronto para conduzir,
uma liberdade que poucos possuem, você tem, e faz uso de todas as formas, sim, como
bem entende, e isso é sempre uma felicidade.
Se eu tivesse um único pedido, hesitaria entre suas visitas em mim e a conservação
desse dom, porque é um dom que você seja tão humilde e carismático e chega porque
não posso mais, risco
de afogamento.
Parabéns atrasado pelos seus anos, belo rapaz!‖
Nós estávamos na cama, nus; ele segurou minha mão; esse é o começo e o fim
de tudo. Eu sempre acho que há mais mentira do que verdade, mas que importa?
Importa tanto que abro minha porta. E é engraçado, na primeira transa nenhum de nós
gozou. Foram momentos; eu estava descobrindo, não que fosse virgem, ele percebeu,
mas sentia, como num abscesso em abismo.

Estou triste. Escrever não salva, ou redime. Para que então você escreve? Para
fracassar; é este um outro modo. Não cabe nas culpas duvidosas do ser, nem nas lides.
─não sei o que espero
que não acabo logo com isso—
Me perguntaram o que era isso, como explicar, como dizer a coisa; minhas falas
avessas. Não saber o que se quer, dói; sexo não satisfaz. Pensei que se tivesse o pênis de
um homem belo em meu ânus estaria resolvido, mas não, não é este ainda o ponto.
Estou chegando a um clímax em que penso sobrevém o desastre.

Pensei falar com ele. Deixa eu te ajudar. Deixa eu ficar ao teu lado. Deixa eu
desnudar para ti; feridas e cicatrizes. Mesmo assim, deixa. Tua pessoa, não se olha de
frente os próprios pecados. Tu é tu mesmo. Eu quero
o transporte. Depois desanuviei. Ele ouvia, assentindo sem dizer nada e nos
comunicávamos com os olhos. Era um pedaço. Depois caí em mim. Deixa.

Preferi ficar irmanado a buscar outra claridade. O dominó que joguei estava
errado; e perdi o jogo para sempre. Céus, perdi o jogo para sempre! A face de pureza
abstrata. Os meus tristes decantados anos. Não fosse isso, não estaria sempre sentado a
tomar chávena, em acordo com as coisas. Não fosse a falta de luz, que mal suporto, não

41
seria para sempre o errante deslocado, aqui, como em todo lugar. Não fossem meus
planos infrutíferos, não sublimaria para sempre uma dor que quase já não pulsa. Não
fossem os sonhos errados, não estaria sempre defronte de um sol negro que faz os pelos
eriçarem. Não fosse para sempre uma espera que nunca se cumpre, não viveria de
ilusões. Mas se não fosse tudo isso, onde estaria a graça?

Uma melancolia invade de tardinha.

Desisti da fluência. Escrever, como sai. Ontem talvez tenha sido a noite mais
feliz e a mais infeliz de minha vida; indo até às 13 horas de hoje. Tanta precisão assim
mede tanto o prazer quanta a dor. Comparamos os pênis. O dele, um pouco maior, o que
não tem tanta importância... mesmo porque ele soube onde tocar; tocou meu indizível e
fê-lo baloiçar. Ele metia no compasso da música, que espero ouvir novamente um dia.
Ainda não encontrei a frequência. Ontem ele atrasou; fiquei desesperado no ermo da
noite. Ondas, as luzes, trevas. Quase tateei. Ele me encontrou com a saída/entrada
para que paraíso?
Eis a questão. Foi mais insólito. Foi a coisa, que só o silêncio da surpresa! Ele me
conduziu bosques alegrias delícias um quarto de motel e Vênus na parede nos olhando.
Ontem foi ontem: hidromassagem que não teve hoje. Eu já estava feliz, felizmente
melancólico, pois que as horas escoavam e a união tinha prazo de validade. Ele comeu
gostoso; eu bem que tentei, mas inconvenientes de camisinha naufragaram meus planos.
Chupei, sim, não mais do que pude. Ficamos conversando até às 4, 5 de hoje. Tudo com
hora para acabar. Trocamos confidências. Ele é o homem da situação. Eu me deixei
enganar. Acordei-o às 7; ele não gostou. A despeito do café da manhã que tomou com
gosto, ficou dormindo até às 10. Aí fui obrigado a despertá-lo para a vida real.
Compromissos. Nossa união quase esfacelando, embora mais uma transa: primeiro eu
faria o papel ativo, para o qual, descobri, não levo jeito. Não tem sabor. Em seguida,
invertemos os papéis. Ele gozou em mim, êxtase supremo! Meus olhos brilharam e aí
ele me mostrou a seiva na camisinha que um dia será um futuro filho seu, vindo de um
ventre de mulher. Coisas óbvias e desnecessárias; tem um valor intrínseco. Fui seu
confidente. Ele planeja rodar o Brasil: uma temporada em São Paulo; outra em
Uberlândia; mis uma por aí à fora; e um coração destroçado aqui.

PS: Peguei uma camisa e uma cueca sua, usadas; fiquei sentindo seu cheiro o
restante do dia. O cheiro já foi embora, mas a melancolia, esta não.

42
A terapeuta insiste nessa história de metaforizar a dor! Eu já falei que sou o
zero! Que ontem, à minha esquerda, para regozijo total, posicionou-se o cem. Fomos
um número perfeito. Dormimos juntos, agarradinhos. Senti-o roncar, um ressonar de
vida. Eu seria bem sucedido não tivesse me arruinado na juventude. Cem ainda pode ter
um futuro brilhante, desde que não se acabe. Foi uma noite em que fui completo;
acabava doída. Já sentia antes, pois que não se para e não sou inconsciência. Talvez, se
fosse, aproveitaria melhor. De qualquer modo, se faz o que se pode. Cem mordiscou
meus lábios e os chupou; isso ficará gravado na memória? Ou somente se trasladado
para o papel? Ele dança entre sensual e canastrão; vejo-o dançando aqui na minha
frente, bem agora, esse ordinário! Quero conservar
por quanto tempo conseguirei
este momento

Ele se anuncia como acompanhante de luxo luxo. Fosse só isso!


Recebi um chupão do vampiro; tivesse cravado os dentes, agonizaria em luxúria, doce
veneno. Anyway, meu pagamento foi prazer. Duas mãos que se pagam: a minha e a sua.
Moedas díspares, convertidas na casa de câmbio. Dinheiro versus prazer. O prazer, eu já
consumi. A grana, por quanto tempo ele conserva?
O pagamento foi antes de iniciarmos os trabalhos. Como rimos! Ele queria o dinheiro.
Ache-o! Onde está? Mostrei a bota. Ele a tirou sorrindo. Não tinha; vazia. Aquele olhar
incrédulo. Cadê? Balancei o pé novamente. Rimos. Ele tirou a meia; o dinheiro caiu;
havia outra meia por baixo. Mas por quê? Dinheiro é sujo; pode contaminar meus
pezinhos. O dinheiro foi contado; recontado. Mas só tem metade! Cadê o resto?
Balancei o outro pé. Ele sorriu e foi direto. Rimos. Achado o restante, ele contou o
dinheiro diversas vezes. Mas para quê isso? Eu gosto de contar dinheiro. Rimos. A cada
um a sua mania. No dia seguinte quando o acordei, ele chiou. Isso é jeito de acordar um
príncipe!?

No motel, um teto solar deu para a escuridão. Era a noite completa, sem lua; o
desastre sobreviera, deixando a noite nua. Esta era somente uma imagem, ou a alegoria
para nossa relação? Eu insistia. Deve haver algo; ele ordenou que fechasse. Vai esfriar;
está começando a gelar. Eu obedeço a tudo, exceto à minha felicidade. Fechei e fui para
a hidromassagem, que queimava a pele; ele estava lá, imerso. Não está quente. Não,
não, não está; está fervendo! Eu sinto muito frio; meu nível de gordura corporal é baixo.
No fim da madrugada ele pegou sua blusa de frio e fez uma toca na cabeça a despeito do

43
capuz. Depois que o acordei, quis um cobertor. Liguei para a recepção. Estava feito. Me
vi feio, deslocado, sem me ver. Enquanto velava seu sono, seu celular tocou de
mensagem, no que ele acordou; olhou para o celular e depois para mim; viu minha face;
então segurou minha mão; se aninhou mais um pouco a mim, mas não demais e voltou a
dormir. Nossa, como devia estar desolado!

Devia falar em mim, mas não posso. Não porque o foco seja o outro, nem por
causa dos objetos em si, que contornam nossa relação: óleos de massagem;
lubrificantes; camisinhas; anestésicos; canetas para sexo oral; motéis; uber; e sabe-se lá
o que mais; nem porque a passagem dessas horas seja efêmera, embora intensa; nem
ainda por causa da tristeza que vem junto com o prazer, alargando abismos de solidão
imponderável em profundeza. Então, o quê? É que simplesmente
eu

não existo.

O que antes era em mim está morto. Eu mudei. Precisei morrer para nascer
novamente. Ele metia; eu morria; nascia um outro. É isto a transfiguração? Estou frio
como se soubesse a verdade; estou lúdico como se meus olhos abarcassem a ignomínia
do mundo e não tivesse mais parte com as coisas. Permaneço lúcido; a vida será meu
fármaco. Sei que permanecerei lúcido, ainda que no hospício. Não reclamo mais; as
sombras são apenas sombras. Nada livrará. E nem é para livrar.

Insisto na abstração, minha fala entupida. Não alcançar o alvo; não procurar
pela meta; não desejar em vão, que eu me deixe em paz! Fantasmas são assim: quando
menos se espera, dá-se com eles. Caio, sei que vou cair, estou caindo, mas de pé. Ao
menos este buraco negro, onde caio, não tem fundo.

Já estou começando a ficar de saco cheio. A vida! Não quero pensar; não quero
ter que pensar, embora caia nessa arapuca quando menos me dê por mim. E começa: os
pensamentos vêm com as indagações. Quase todas idiotas. Nem ouso reproduzir. Antes
havia uma esperança, uma perspectiva; tudo podia dar certo. Não deu. Nunca vai dar. É
a vida, único embuste. Um dia, um dia você vai se olhar no espelho e não se
reconhecerá. Talvez o espelho se parta, ou você apenas se petrifique. Mas é assim
mesmo; é assim mesmo. Longe de si é tudo sem cor.

44
Acabou o que apenas tinha se esboçado. Nem era para durar... nada é; no
entretanto, muita coisa podia se dar. Eu me dou inteiro; causa um arrombo. Que nem
precipício! O corpo, o suor; eu me falho! –um filho vindo de um ventre de mulher—
palavras dolorosas, apesar de naturais. O sol despenca, embora esteja em seus cabelos
loiros. É que ele vai embora, e nunca mais nos veremos. Um sonho bom tornado
pesadelo. E não sei quando! Que novela! O último capítulo encerra meu fim.
Engraçado. Eu só não sabia que eu era o vilão.

Eu nunca poderei dar a vida que ele merece. E quer! Não posso dar vida
alguma; nem eu possuo a minha. Eu poderia dar palavras; enchê-lo de poemas. Isto não
faria diferença alguma; talvez ele risse. Minhas palavras pedantes; ou usasse algumas
para fim
diverso. Enxergo claro no escuro; só a ele vejo. A vida toda dependendo de alguém, ou
de algo que falta. Espera.
Eu é falta. Última descoberta do dia. Até que esse caderno terapêutico serve para
alguma coisa. O que fazer dessa descoberta. Eu é falta, mas todos somos constituídos
pela falta; o desejo do ser humano é sempre por algo que falta; é isso o que o move. O
problema é que em alguns, como em mim, essa falta causa um poço fundo sem vazão. O
que fazer disso? Nada propriamente e de tudo um pouco. Preencher-se. Eis a saída?
Com poemas, vinho, vida!? Outra vida? Estou chegando perto; a sua vida. Sei que isto é
nocivo, mas é o que quero fazer por enquanto... e enquanto der!

De volta para casa andando fino sobre o paralelepípedo, em equilíbrio, cheguei


à conclusão de quanto maior o prazer, maior será a dor. E é bom que seja assim para nos
lembrarmos de nossa condição precária e humana. Eu já chorei, amei, não possuí o
objeto amado. Era normal não ter; sentir a ausência, pois que sempre fora assim. Mas
amar, ter, possuir o ser desejado é a plenitude—não dura—depois choro, enlouqueço,
me rasgo, pois que a ausência do outro após o prazer é a bomba que detona. É uma nova
Hiroshima.

A psicóloga me pediu para falar de si; como se não fizesse isso o tempo todo.
Seriam coisas que fizessem eu tomar partido para ver se ele é ou não bom para mim,
posto que já de antemão o considerei como benéfico à minha saúde. De qualquer forma,
resolvi escrever neste caderno algumas coisas dignas de nota

45
na primeira vez em que me comeu, sujei-o de fezes; ele me disse que a culpa
fora sua, posto que, segundo o próprio, tirara o pau de um jeito errado.

quando passamos a noite juntos, fizemos a maior bagunça no quarto de motel;


pratos e copos espalhados; embalagens de camisinha pelo chão, toalhas para todos os
lados. Antes de irmos embora, ele começou a arrumar as coisas: juntando o lixo e as
toalhas. Disse-me apenas: vamo dar uma moral pra camareira.

enquanto tomávamos uma ducha, ele me contou seus planos mirabolantes de


ficar rico. Mandará 2, 3 mil para a mãe, a fim de ajudá-la.

ao som de uma música deliciosa, ele subiu em cima da cama e começou a


dançar: Imagina eu, o GO GO boy mais famoso da cidade. Vou deixar os outros caras
tudo morrendo de inveja.

O som de sua gargalhada; está ecoando em mim.

Deitados na cama, nus, ele ficou brincando com meu anel em meu dedo.

quando terminei de meter, ele segurou a camisinha para que tirasse meu pênis
e não me sujasse de fezes; a camisinha ficara em seu ânus; só depois ele tirou

Estou cansado do trabalho artístico: fazer; refazer; criar. A cabeça dói quando a
tarde se alonga mais do que gostaria. Daqui vejo sem pensar gatos que confundem seu
sexo. Estou longe; me chame agora, se puder.
É preciso me atar ao velame, antes que perca a razão. Estou catando segundo a segundo,
com imenso pavor. E se ele desistir do negócio? E se ele ver que não vale a pena? E se
ele ver que é muito pouco? Esse negócio é minha vida; se ele se impacientar, sinto que
naufrago de vez, sem bote de salva-vidas ou qualquer remissão. Acontecesse isso, pra
que também salvar-se?

Estou em cima da hora, mas não posso deixar de escrever que vou vê-lo.
Clímax pré-encontro. Tesão-angústia de dar gosto. A vida meio vertigem virada sonho
por igual no instante em que encontrá-lo. Fico considerando se é assim entre
namorados, a perspectiva da espera; os segundos que parecem horas; e tenho muita
coisa para arrumar ainda—antes—por isso vou—entre a grafia da vida vivida e a grafia
da vida por viver—e se ele não aparecer? Deu certeza; mas se acontecesse algo? Deixa
disso—agora é agora—intensidade de segundos—carinho da paixão—a delicadeza da
hora—demora—já queria estar lá.

Sinto que caminho para um impasse, e, que, cedo ou tarde, me desfaço. Não
quero falar do último encontro. Simplesmente não quero. Não por causa disto ou

46
daquilo; é que simplesmente não posso. Acho que não. Por acaso conseguiria pisar o
terreno pantanoso do indizível? Ele começou a meter no ritmo; acho que do silêncio.
Não havia música. Também não houve hidromassagem; a hidro estava cheia de cinzas.
Seriam cinzas do amor que pensei sentir? Ou a paixão queimou ali? Enquanto ele metia,
ardia. Seria o fogo queimando? Não sei. Não tenho como saber, mas acho que preferiria
queimar sob o fogo dessa paixão desastrosa a me deparar comigo mesmo e meu vazio
aterrador.

Acho que não sei mesmo quem sou. Estou aberto a suposições. Não adianta
nem reclamar. Já disse que não reclamo mais depois da última desilusão; venha o que
vier, ou não. Por quê haveria de encontrar-me na saída? Este não é o fim. Ainda não.
Fico escrevendo até mais tarde palavras que são imagens; que se tornam alegorias? Que
Sá eu desaprendo a língua! Já disse que sou outro! Mas quem é esse outro? Meu
vampiro mora a seu lado. Talvez não importe tanto saber quem é; aceitar como único
ato de amor. No entanto, a questão é outra. Volto ao impasse. Ele gosta de tomar bud na
balada e dança descomprometidamente. A dança aqui é o primeiro rito de acasalamento,
perecível por natureza. Dura menos que fruta madura. Sinto seu cheiro confundido com
o meu. É esse outro eu?

Fala-se muito em mudança, mas no final, nada muda.

Estou numa encruzilhada; os caminhos não se bifurcam... De um lado, a ilha do


Campeche, a promessa de um paraíso jamais experimentado; do outro, ele, o ser que me
põe em ventura, para o bem e para o mal. Arriscar? Valerá à pena? Por enquanto será
meu tema. Não há decisões erradas. Todas as escolhas estão desde antes alojadas no
coração. Hesitar pode ser um modo de ver. E sinto que estou recobrando a visão. Ele
está cobrando caro. O prazer tem preço? Está ficando claro. Um dia terei apreço por
mim e isso será um começo e o fim de tudo que houve antes. Sabia que não poderia
abrir mão tão facilmente. Se você chegou ao ponto de duvidar, é porque já sabe a
resposta, embora seja penoso aceitar o que não será.

Estranho, sentir você sem você. Mexeu tanto, parece—mexe—ainda—


parece—prece—parece— Quando estou prestes a dormir é a hora mais difícil—
perigo—o coração arfa—a náusea—sinto rumurejar—e sem você—sinto você—o ar
perco—loucura toma razão—e caio—submisso—

47
Ando; vejo toda gente; uns me agradam; outros nem tanto, mas sigo andando.
O asfalto rola sob meus pés como escada rolante vejo um outro e mais um que se me
assemelha mas não paro sigo em frente vejo a mancha vermelha em meus pulsos e não
me abalo vou em direção à balada ando corro caminho vou sei que vou em direção a
você Te acho que você não é real como alguma coisa que falta tento te dar vida mas fica
faltando sempre Não desisto a meta a seta em vão dou cambalhota pulo na sua frente te
aperto abraço beijo mas você permanece rindo
Ele não sabe muita coisa; só o que perdeu. Pedi que arranjasse um pouco de pó.
Foi-me negado. O que fazer até chegar a hora? Ficar escrevendo? Vai passar? As
mesmas coisas. Deixar o discurso fluir como único ato de amor possível. Nesses dias
talvez nem assim. Ele não gosta de ficar comigo; não quer; me evita o máximo possível,
mas a renúncia total a mim não alcança por causa da transação. Devo deixá-lo para trás?
Ele diz que é minha droga. Quero tomar uma overdose ou romper com o vício! Isso era
pra ser uma pergunta, mas agora, nem isso. Devo fazer os dois. Ele me revela o pior de
mim.

Tem gente que faz crochê, tem gente que borda, tem gente que joga paciência
ou palavras-cruzadas, ou de tudo isso um pouco. Eu simplesmente escrevo.

Estranho como um pouco mais de convivência, de álcool no dia seguinte e de


paz interior mudam toda perspectiva. Achava que o amava; ledo engano. É mais
carência e alguma outra coisa que ainda não consigo nominar. Ontem surtei; era quinta-
feira. A fúria do desespero me invadiu as entranhas; mal respirava. Saí; comprei o vinho
que Duras bebia. Inspiração ou cópia? Em casa, pensei que não conseguiria abrir; o
inepto sou eu! Saca-rolha em mãos, fiz força, e para minha surpresa abri o veneno. Pus
a gelar. Não estava satisfeito. Marquei com o boy um pernoite sábado; que transferi para
sexta. Não foi o bastante. Tinha decidido fazer um programa em seu local; queria sentir
o rugido do leão em sua toca. Falaria com ele no pernoite, marcando um programa para
domingo, pela manhã. Não aguentei. Começaram as negociações para que fosse ontem.
Às 17 acertamos a transação, que se iniciaria às 19. Corri a fazer a chuca, tomar banho,
juntar os utensílios e às 18 estava no ônibus com um pouco de angústia na goela. Só
bebera um gole no gargalo antes de sair para tentar aplacar a fúria. E nem dava tempo!
Lá, ele me levou ao Éden novamente, esse safado! Terminado o programa, a população
da toca fora, ele quis que eu permanecesse e até dormisse consigo. Havia o empecilho
das lentes, mas o que seriam umas lentes perto do compromisso de dormir a seu lado?

48
Quando apagamos as luzes, ele pediu que eu colocasse uma perna em cima de si para ter
a certeza de que eu estava lá. Lacrimejei. Antes pedimos lanche no X-Tudo que estava
delicioso. Mandaram três molhos; só usamos um. Ele guardou o restante para a
comunidade da casa. Roncou gostoso; conversamos muito; disse que quer sair da casa;
talvez dessa vida. Se ele soubesse meu maior desejo. Depois que acordamos, quando foi
tomar banho, pediu que o acompanhasse, porque não gosta de ficar sozinho. Vi-o
banhar-se; as paredes pareciam mover-se; seu corpo adquiria formas nunca vistas; era
todo o meu bem cristalizando. Quis que o seguisse aonde fosse; acho que temia aquela
casa, ou seria a comunidade em si? Antes falou que nessa casa há muita energia
negativa. Será por isso que durante nosso sexo borrei sua cama de fezes? Teve de tirar o
lençol; dormimos sobre o colchão puro. Ele fez três incursões em mim, saborosas, mas a
cada vez eu sujava mais; tanto que me chamou de cagão, que situação! De qualquer
modo, disse que está acostumado com isso; antes brincou que me cobraria mais pelos
contratempos; mas já pensou se eu atendo sete e os sete fazem isso? Aprendi que nem
sempre a chuca dá certo. Somente nada é certo. O pernoite será hoje. Ele aparecerá? Se
vier, será a terceira noite que dormiremos juntos. Há algo de simbólico no três que ainda
não desvendei. Espero não sujá-lo de fezes se formos para motel. Ao chegar em casa,
hoje, bebi do vinho, serenei e vi que não o amo, apesar de gostar de si, que, segundo o
próprio, está cada vez mais magro. Ele fica adiando me dar da sua goza para beber. Será
que tem medo de possuir alguma doença? A hora corre; tenho muitas coisas de fazer
hoje antes de esperá-lo. Será assim com as mães?

Ele não suporta mais ser fotografado por mim. Dou canseira até nos mais
fortes; e olha que sou a parte fraca! Imagina se fosse forte! Essa minha insistência em
fotografá-lo e filmá-lo não sei o que é. Sei e não sei. Talvez esteja tentando apreender
algo inapreensível, que nem na escrita.

Caminhando e andando chego às mais inusitadas conclusões. Será isso refletir?


Por isso os gregos antigos davam aulas ao ar livre? Caminhar, estar em comunhão com
os cosmos é um modo de se aproximar de Deus?

Ele fala muito que o que faz é pecado; que mesmo quando fica com várias
meninas só de curtição está pecando porque isto também é se prostituir; que ficar por
ficar é prostituição; que se você parar para pensar, o mundo se sustenta por prostituição;
só que ele não para.

49
Vou escrever para passar o tempo; a minha roupa errada. Quando fui sacar
dinheiro, um mendigo na porta da farmácia me abordou, teria algum trocado? Sacara
400 reais e balancei a cabeça em negativa. Poderia comprar uma fralda? Pra quê ele
quereria uma fralda? Uma breve hesitação e neguei novamente. O menino me abençoou
na saída. Seria o prenúncio do assalto? Ou ele apenas indicou meu pecado, esse delicado
irônico? Fiquei com medo e apressei o passo. Estou numa praça de alimentação,
bebericando um suco de goiaba; a garrafa de vinho do porto na bolsa. Essa bolsa é um
excesso. Metáfora das minhas inseguranças ou metonímia da minha pessoa? Vi várias
mulheres hoje e me peguei pensando se elas o agradariam. O assunto não para. Ele
mudou para o quarto do andar de baixo. Essa decida pode ser subida. Ninguém vai
incomodar; agora só ele possui as chaves. Não divide mais o quarto com Camila, a
travesti peituda. Eles namoraram um tempo; ele diz que foi só de zueira; apesar de ter
um carinho, não tem amor. Ele diz muitas coisas. Quase todas duvidosas; transar com
homem, só se houver dinheiro envolvido; é parte da excitação? Mas e Camila? Vou
perguntar hoje. Queria ser seu amigo; me sinto só. Hoje o clima à noite está agradável, a
brisa e etc.. Do ônibus vi um casal de homens aos beijos numa rua de barzinhos e
perguntei-me se um dia haverá tal homem para mim, para mim! Mas o ar insiste em não
responder. Espero por ele; a cabeça dói um pouco. Sei que esperarei por ele, minha vida
misturada. Até quando? Importa saber? Quanto? Estou defronte para uma loja de joias.
Um casal lá dentro pescoçando; talvez nunca terão dinheiro para comprar nenhum
daqueles brilhantes. Não me faz falta nenhuma daquelas joias. Minha falta é anterior.
Nem eu sei de quê; várias pessoas passando. Estou para existir de lado. Agora estou
defronte para um rapaz lindo, que olha para o lado e faz charme. Tenho medo de piscar
e ele vir tirar satisfação.

Estou no motel com meu boy; ele dorme. Acabamos de comer. Ele veio de
maconha; comeu até e agora dorme. Eu bebo vinho e o vejo dormir. Minha grande
história passada num motel para lá dos tempos. Voltaríamos à década de 60, que não é
mais 50, mas e aquela televisão ali? Brincamos e debochamos antes. Será que ele vai
acordar? Que ele seja feliz! Eu pareço um balão. E faz todo o sentido. A noite é suja; há
tanta inspiração no ar.

Volto à brincadeira de escrever. O boy ainda dorme; diz que nunca mais vai
usar drogas; até quando? Não quero mais saber. Vim escrever no banheiro, sentado na
hidromassagem que não ligamos. Tanta coisa por tocar. Olhei para o meu corpo e me

50
esqueci. O vinho ao lado; à mão. A mão que escreve é a mão com que se assassina.
Minha psicóloga diz que eu me boicoto; um pouco pior do que masoquismo. Que eu me
boicote! Um dia aprendo. Acho que não quero, que nego qualquer chance de felicidade,
mesmo que aparente. Bem poderia ter ido à ilha do Campeche, um paraíso dentro do
mapa. Estaria infeliz lá como aqui. Bem ou mal, aqui tem um boy. E quando ele for
embora? E aí? Minha psicóloga pergunta muito e aí? Eu não sei. E mesmo que
soubesse. Tenho mesmo que saber? Me choro. Sei que vou chorar, e sem lágrimas.
Andam tão escassas ultimamente. Fico com dor nas costas e remorso de vampiro. Bebo
de um trago. Eta vida besta, meu Deus. Não transei ontem com o boy. Ele disse que
estava derrotado. Três dias sem dormir e fumou maconha ontem; inclusive, comeu bolo
da erva. Achou que ficaria normal, e etc. Vai passar mais tempo comigo para
compensar. O orgasmo é suplementar. Me sinto uma mulher. A dor na corcunda, e etc.
A dor me subjuga. Estivesse só, seria pior. Não entendo. Nunca me entenderei. Minhas
pegadas são estas. No caminho do conhecer não vejo luz; vejo uma solidão. Do que
adianta ele ser top, se está inutilizável? Eu me contento com pouco; é o que dizem,
embora seja apenas uma questão de visão. No dia em que me abarcar com o olhar tudo
será diferente.

Dessa vez ele veio relapso. Não trouxe nada, também nada perguntou. Não se
depilou; não trouxe escova de dentes. Ele é o homem. Eu já vim com minha bolsa
excessiva. Trouxe tudo. Nada poderia faltar; e faltou o essencial. Eu pareço um balão.
Isso não sai da cabeça, ou seria do balão? Ele disse isso enquanto estava doidão; não
quer me levar na rave porque não se leva cliente para sair, mas queria ser seu amigo, só.
Ele nunca vai ser meu homem; nem quero isso; não tem voz como diz a psicóloga. Será
que ele acha que não tenho valor porque nunca trabalhei, nem quando tinha bolsa? Que
papo-de-bêbado. E nem estou de pileque! Gosto de ir bebendo... vendo uma coisa...
vendo outra... não chego ao ponto de não ver cousa alguma. Troco vogais, mera questão
de nacionalidadi. Ou seria estrangeridade? É tudo a mesma coisa. O estranho sou eu!
Ouvindo Florence no banheiro e, segundo ele, chapando. Não quer que peça o café da
manhã agora. Então tá. Eu bebo. It´s Just a little pain. Tentei fazer um vídeo tocar, mas
não deu. Fiquei um pouco alto. O michê falou que também não sabe. No outro tocou.
Que se foda. Eu vou. Depois volto. Estou acabando de tomar café e ele nada. Dorme
igual pedra. Pernoite nunca mais. Nunca mais é palavra que se diga? Na verdade são
duas. De qualquer modo, já ouvi nunca diga nunca. E mais. Mais é uma adição,

51
repetição, sei lá. Então é para que ocorra mais vezes. A gente anulamos (ixi) o não, mas
acho que não saio mais com ele. É simplesmente que ele me prende sem nem saber. Só
faz dormir. Pensei que fosse forte, mas é fraco, se não for mais do que eu. Quase não
enxergo minha caligrafia; escrevo a despeito disso. Aumentei o volume e ele virou. Não
está dormindo tanto assim. Que cretino! Ele dorme tão bonito. Que posso dizer?
Dormindo com meu inimigo fatal? Será um novo filme? Quero sumir; devia deixá-lo
aqui e me mandar, mas cumpro minha sina até o fim. Minha vida é um círculo
imperfeito. Tudo rui ainda. Eu sabia desde o primeiro pernoite que ele dorme até tarde;
não sei porque marquei o segundo. Eu que devo ter problemas. E vários! Não sei como
meus tênis foram parar em baixo da cama. Não sei o que escrevo; é o que vejo. A
bateria dele está quase no saco. Nem carregador! Veio como se estivesse na
mendicância. E não me dá atenção!

Ele acordou e não fala nada com nada. Fico cansado só de pensar em como isso
me faz mal. Jogo na sua cara a atenção que não me dá.

A gente transamos como ele diria. Tomei da sua goza. Será que assinei minha
sentença de morte? O sabor foi de vida, mas vai saber. Ele não gostou de saber que
mostrei suas fotos para minha psicóloga. –fica conversando no whatsapp—não me dá
atenção—cansei—saí—pari—morri—

Sua goza é quente e salgada. Metemos um pouco. Eu gosto. Minha cabeça dói
e tenho vontade de vomitar.

Cheguei à casa e o coração bate entre destroços. Ele metia ao som de uma
música estrangeira com significado estrangeiro para mim; dizia que seu parceiro a fazia
sentir como se fosse a única pessoa no mundo, a única que ele teria amado. Transamos
três vezes; ele gozou duas. Foi ótimo. Ele mete tão bem. Não fosse assim, já o teria
mandado para o raio que o parta! E tomei do seu sêmen! Que louco! Pra quê fui fazer
isso? Se minha psicóloga souber. Faço isso por não ter pena de mim? Tenho que fazer
exames. E sabia dos riscos. Lido com aporias: eu é falta; não gosto de mim; ele sempre
vale à pena no fim. Como lidar com isso tudo? É tudo.

Todas as vezes desse pernoite antes de transarmos passei lidocaína; ele me


recomendou que não passasse tanto, porque tudo que é em excesso faz mal.

52
Emily dickinson disse ter morrido pela beleza. Talvez beleza também será
causa de minha morte. Para que fui beber de seu sêmen? A semente da vida será
também semente de morte? Tanta urgência de viver levando direto ao fim. Como sou
clichê. Me perder por um michê? Não resisti à rima. Ai ai, é cada enrascada que me
aparece! A comida fica entalada na garganta. É tudo.

─O sêmen saindo de seu pênis—bote da serpente—direto para minha boca—o


veneno quente pousado na língua—engoli com desejos secretos—senti o gosto salgado
e sua temperatura—fiquei revigorado—acho que enrubesci—

Eu beijo aflito; pode ser a última vez. Como está meu hálito? Nos veremos em
vez. Eu vejo sem ver; esta história, talvez.

Ele falou que seria a última vez; que não ficaria mais comigo por dinheiro
algum porque está me afetando e fazendo mal. Fiz ele ver que eu sou o afetado, com ele
ou sem. Depois de um longo lero lero, chegou à conclusão de que eu me arranjo os
problemas; eu é que procuro me destruir. Então, por quê deixar de me atender? Eu não
sei para quê esse teatro, mas enfim, pergunto-me se será a última vez. Existe isso de
última vez?

Enquanto me comia, perguntou: por você eu ficaria o dia inteiro aqui, te


comendo, né? Sorri.

Ele quer que haja um prostíbulo de homens, onde será o acompanhante de luxo
da suíte presidencial. Ele permanecerá mudo, deitado na cama, nu—um lençol cobrirá
um pouco—o cliente entra; vê os preços escritos na tabela da parede piscando; então
joga o dinheiro conforme o serviço escolhido. Os trabalhos se iniciam.

Ele gosta muito de sexo quando envolve dinheiro; acostumou a transar com
homens somente se houver dinheiro envolvido e cogita a possibilidade de quando sair
dessa vida atender os clientes antigos, se houver dinheiro, claro.

Você não pode ir em rave não; tá doido!? Se fosse, ia me dar trabalho; e


balançou a cabeça rindo. Quando tô dançando na balada, as mulher fica tudo doida
comigo e eu não dou muita moral não. Eu sou um Brad Pitt, né? Haha

Aiai, o que te estraga é você ser convencido! Eu não sou convencido não. Você
que me deixou assim! Cafajeste! Você é muito gostoso! Seu mal é esse! Ah

53
Ele chegou com chulé, mas até isso era perfume. Vai entender. Fiz massagem
com óleo em seus pés, pernas, costas. Cheirei os pés e gostei da fragrância. Cheirei sua
cueca, suas calças, sua camisa; queria absorvê-lo; pô-lo inteiro em mim. Como estava
emaconhado, não se arrumou, não se depilou, nem a barba fez; veio como estava. Não
trouxe as chaves, ou sequer sua mochila. Eu adorei, seu carregador para trás. Ele estava
ali, sem subterfúgios, e era um pedacinho do céu.

Ele não gostou de se ver refletido em meu caderno; e não quer saber de ir parar
nO livro. Tentei fazê-lo ver que certas coisas a gente não escolhe, que ninguém irá
reconhecê-lo. Adiantou não adiantando. Então pedi que me contasse da sua vida. Vai
sonhando. É só o que eu faço. Será que ele não vê?

Ele chama as mulheres de meu bem e diz que não consegue fazer isso com
homens.

Ele mete defronte pra mim, respirando ofegante na minha face; eu absorvo.
Outro transporte. Para que Éden jamais sonhado? Para uma Pasárgada sequer
vislumbrada. E não tenho direito a outro sabor; pra quê também quereria outro?

Tocar, fazer massagem, não violar o corpo do outro em vão; é um espaço de


profundidades; revela nuances de ser. Outra noite pediu-me que lhe fizesse massagem;
enquanto fazia, disse-me que é o cliente quem recebe a massagem, mas aproveitou que
gosto de si, e assim relaxou sob minhas mãos. Imagino como seria lhe amar e receber
amor de volta; seria um clarão lá em cima na noite completa da minha imaginação. Eu
do outro lado da rua, em desequilíbrio, como sempre, essas coisas, ele sem cessar de
porte altivo. Desisto da volúpia verbal só para ficar lhe olhando. Ele ri, sem graça, com
toda graça impossível. Me perco em pensamentos não tão claros e sem saber absorvo
sua presença confundida com olhar.

Insisti nas drogas; quero! Quero, só um pouco, por favor! Não. Você não pode
recair. Você é ruim! Quer só você curtir! Eu poderia te encher de droga; pegar seu
cartão, fácil descobriria tua senha; te deixava aí, e sairia pra gastar, mas não, não sou
desses. Você teve sorte de ter me pegado. Eu sei, muita sorte.

Ele se afasta para peidar; ri um pouco quando pergunto o porquê se afastara;


pula; balança as mãos; pega uma na outra fazendo charme; e diz que quer fazer cocô,
que vai cagar; dá um pulinho, uma risadinha e que não é para eu ir lá ver, que é

54
rapidinho; dá outro pulinho e vai. Não quer que eu o veja cagando. Ele acha que eu
queria ver? Esse é o último anteparo antes da intimidade total.

Vejo beleza até em sua ignorância-inocência. É uma maneira ingênua de estar


no mundo. Ele tem dinheiro para receber de várias pessoas. Disse que poderia contratar
uns caras para apagar quem não lhe pagou. É preciso muita coragem pra fazer isso. Ele
iria com o cara só para mostrar que foi ele quem deu a ordem; aí se a ―vítima‖ falasse
que pagaria, não aceitaria, pois que o pagamento seria a vida. Diria ao bandido, faz do
jeito que cê quiser e iria embora. Acha que para fazer isso é preciso muita coragem, no
que se engana, posto que isso seja só maldade.

O uber que chamamos estava parado defronte para o motel e não atendia ao
telefone. Então ele se virou para mim da altura de seus cabelos louros e soltou: eu não
vou sair daqui andando; estava sentado na cama; aí deitou-se e esperou o que estaria
para acontecer; será?

Num sinal, umas crianças de rua fizeram malabarismo e saíram recolhendo


trocados. Ele contou suas notas de 50 e deu uma de 2. O menino pegou sem agradecer,
nem sequer olhou para sua cara. Aí ele disse, de nada. Nunca mais dou.

Não é bom nem olhar; faz até mal; foi o dito quando paramos num sinal ao
lado de uns dez mendigos deitados ao sol em plena tarde de sábado que mais parecia
domingo; alguns bebiam; outros fumavam e bebiam; uns poucos apenas dormindo. Foi
uma cena deprimente. A droga estava por trás, mas não aparecia explicitamente.

Não deveria escrever isto aqui. Minha prima diz que não se confessa os
próprios sentimentos, mas ai, que se dane! Uma outra dor súbita me atira de braços
abertos sobre as ripas do quartinho. Fico confundido aqui, entre objetos para desuso.
Quinquilharias.

Nós brindamos a nós na hora do almoço com suco de líquido amarelo. Não me
recordo qual, mas presumo que fosse manga. Meu truque de debaixo da manga é recitar
elogios de outrora, com palavras de beleza rara; brilhantes postos à mesa. Ele escolhe
alguns; orna-se deles; vira um rapaz de porte altivo.

55
A primeira vez que nos vimos não o reconheci de imediato; é muito mais
bonito do que pensei; ele deu tchauzinho cumprimentando. Seria outra alegoria da nossa
quase relação? No encontro a despedida, indicando a não duração?

Deitei em seu peito; ouvi seu coração batendo; Tum-dum Tum-dum. Foi como
entrar na recém-mansão jamais habitada; fiquei refém desse palácio, pulsando. Eu
poderia lhe assistir por toda vida; seria minha forma íntima de existir.
Tumdumtumdumtumdumtum

O coração dele bate forte. Tum-dum-tumdumtumdum; e bem rápido.


Engraçado, isso, ele é o melhor no que faz, o mais belo, mas quer sempre a confirmação
disso. Não sei da onde vem tanta insegurança.

Eu escrevo, o porquê eu nem sei. Ânus dói; meu boy na sauna. Esqueceu-se de
mim. Que me esqueçam! Eu não sei o que faço aqui; e não quero despregar tão cedo!
Quero lágrimas ardentes, um toque mais doce que o da sodomia. Escrevo de um motel,
na sala de luxo onde me encontro; faz tempo bom. Ele se acaba na sauna. Tenho de
esquecê-lo, mas como, se ele é tudo pra mim? Ele tem sete clientes fixos. Eu sou mais
um. O que fazer até chegar a hora? E nós ainda nem almoçamos! A despeito de sua
indiferença, me consumo em lágrimas. São essas as lágrimas pretendidas? Valem a
pena? Me queimo, causa perdida, açúcar do afeto. Poderia ficar tematizando a escrita
que não cessa o veio, mas deixo para lá. A gente estamos (ah) na suíte certa? Quando a
gente viemos (ixi) da última vez tinha luz celeste um parque de prazer abominações e o
êxtase sussurrando. Ele se masturbou e gozou dentro da sauna, sem mim. Sem mim!

Depois que ele se masturbou e gozou na sauna, almoçamos; transamos;


ligamos a hidro; ficamos imersos; saímos; fizemos massagem um no outro; nos
beijamos; escutei seu coração batendo forte dentro do peito; ele cochilou; velei seu
sono, escutando seu ressonar de vida; acordei-o; transamos mais uma vez; nos lavamos;
pedi o uber. Depois de tudo isso enquanto esperávamos o uber, pedi um beijo de
despedida; ele falou que o programa já estava findo; deu uma risadinha e me beijou.
Agora, em casa, me pego pensando se aquele foi realmente um beijo de despedida e
sinto um arrombo puxando para o nada. A solidão é abissal?

56
Ele disse que se não trabalhasse e vivesse disso, em seu quarto só ia se dar
porta batendo; gente entrando e saindo, e como é foguento e dono do axé, enriqueceria
fácil.

Vai sair para uma balada; não aguenta ficar em casa. Esta vida é pra curtir,
sabe, deixa eu te dar uma ideia, para e pensa, dá pra curtir tudo e tudo é pra curtir. O
mundo vive de curtição, e pra quê outra vida? Revirei os olhos em agonia. Já curti tanto,
mais tanto, que acho que passei do ponto.

Ele acha que depois que transamos duas vezes, na terceira, não teria
necessidade de ele ficar lá, em cima de mim, porque já viu pela minha cara que não
estou curtindo tanto assim, mas ele não percebe, ou finge não perceber, que sou a
própria necessidade.

Não entendo essa mania que ele tem de querer sair sempre por cima. Ontem ele
combinou de atender um cara; só que depois esse cara ligou, desmarcando. Quando
voltávamos de motorista particular, ele falou ao telefone com Camila que dispensou o
cara porque queria ir direto à casa da mãe. Ele e Camila, a travesti peituda; segundo ele,
ela é mulher. Apesar de ter mudado de quarto, essa semana transaram três vezes. Camila
tem namorado; um play que desconhece a relação deles; ficou sabendo por alto de um
rolo, nada demais. Meu boy diz que transar com Camila é o mesmo que transar com
mulher; só que tem um pinto na parte da frente, que ele é homem, porra! Que só transou
com Camila porque ela ficou atentando muito, e que muitas mulheres não gostam de dar
o cu, então, você sabe, né! Camila diz amá-lo e também ao namorado. Aí, no carro
desgovernado, sem destino certo, ele fica se perguntando a quem ela ama, e em seguida,
questiona a mim, a mim! Só posso dizer que ele está com ciúmes, que gosta dela. Aí, ele
vem com empecilhos, todo mundo os olharia na rua; na balada todo mundo comentaria
um cara pinta como ele com uma travesti e por aí vai seus pensamentos. Muitos caras,
homens de verdade como ele, gostam de comer travesti porque sabem que tem um pinto
ali na frente, mas gostam é do cu. Deve ser o lance de um falo dominar o outro. Será?

Ontem foi a primeira vez que ele me chamou pelo meu nome; e o disse tantas
vezes que fiquei acabrunhado. Estava tentando memorizá-lo? Não tinha necessidade. Ou
tinha?

57
Ele ficou tanto tempo na hidro que desidratou; saiu e foi se deitar na cama. Pus
meu ouvido em seu peito; ouvi seu coração Tum-dum-tum-dum-tumdumtumdum. Falei
que ouvia seu coração batendo. Ele quis saber se batia forte; se já escutei outros
corações e o dele é mais forte. Em tudo ele quer se comparar com os outros e ser o
melhor, óbvio. Escutamos uma mulher gemendo no quarto contíguo; ele morre de
curiosidade; fica indagando se o pau do cara é grande; se mete forte mesmo e fica
considerando que às vezes nem é tanto assim, que pode ser uma mulher fingindo, garota
de programa e tals. Da onde vem tanto desejo de ser o número 1? No meu coração ele já
é. Ele coloca uma barreira intransponível entre nós. Sou apenas um cliente. O quê fazer
se gosto de si, se minha vida pulsa somente por si aqui neste pulso e esqueço de minha
prima desolada? Meus pais terríveis; ele e apenas ele, vital. Não sei de mais nada. Ele é
tão seco e direto, meu namorado de aluguel. Ontem ele falou que é meu marido; depois
quando lhe joguei na cara, disse que fala isso pra todos; acho que por isso o amo. Meu
desejo de punição. Me punir, por quê? Pra quê? Primeiro/último ato de sublimação? Me
atingir por que não posso atingir o outro? Por quê não posso fazer o outro me amar? Por
quê não posso, nem ouso, castigar meus pais, que fazem da prima refém em sua própria
morada? Não deveria escrever isto aqui; se descobrem. Então é por isso que me afogo
numa paixão desmesurada de causa perdida? Por não poder salvá-la, me destruo
também? Assim, os primos caídos? Isso poderia se assemelhar ao Paraíso perdido?
Entretanto, não me lembro de ter pisado paraíso algum; exceto com ele? E já não é o
bastante?

Ontem ele disse que a água é coisa maravilhosa de Deus, prova de sua
existência, melhor coisa que Deus inventou; estávamos dentro da hidro. A água não se
pega, não tem como pegar a água, falava os olhos arregalados e demonstrava isso,
tentando pegá-la; só dá pra sentir. E não tem gosto. Se você está com sede, e bebe água,
a sede vai embora, mas você não sente o gosto da água; a água não tem gosto.
Engraçado isso, né? E a água está acabando. Um dia vai todo mundo morrer de sede.
Daí ele pulou para o assunto de morte por afogamento, que é uma das piores mortes que
tem. Antes disso, bem antes, ele pegou meu braço, cruzou suas pernas em meu pescoço
e começou a apertar, sufocando-me. Tenta sair; não consegui. Aí ele falou que era bom
eu aprender porque um dia talvez precise. O que será que quis dizer com isso?
Preocupo-me muito com o significando do que diz; o que há por trás? Seria uma ameaça
velada? Não curti ele brincando de lutinha, no entanto, seria bom aprender. Deixo para

58
depois. Ele já fez um pouco de capoeira e muay thai. Não consigo imaginá-lo jogando
capoeira; ele é tão moderno e in. Foi depois de falar de Camila que ele disse que dá pra
curtir tudo; a vida é pra curtir. Agora penso que está tudo interligado. De outro modo, a
vida não vale a pena. Como é fogoso e cheio de energia, tudo é pra curtir, e ele curte
tudo!

Perguntou se eu queria tomar da sua goza novamente; respondi perguntando se


queria que eu tomasse. Para ele tanto faz. Ele quis saber que gosto tinha; era salgado,
quente, bom. Ele não arranja namorada e quer saber porquê, e na ducha, após o sexo,
disse-me que não vou conseguir manter namorado porque sou mandão, gosto de dar
ordens, que vou falar para meu namorado quero transar agora, mesmo se ele retrucar
agora não, bem, depois, não estou com vontade, pelo meu jeito, vou exigir. Diz que
exijo muito; retruco que é sempre com as melhores intenções. Ele gostou da minha
tatuagem da língua dos Rolling Stones, a qual confundiu com a da banda Kiss. Várias
línguas para fora. Como falar-lhe da língua do amor? Pensei que não tivesse nada para
escrever sobre o dia de ontem, mas quanto menos tem, mais tem. Da segunda vez que
meteu em mim, suei frio; até ele comentou. Da segunda vez que fizemos pernoite, disse-
me que brochou dentro de mim porque ficamos conversando enquanto metia, que viu
pela minha cara que não estava curtindo tanto, e conversa-vai-conversa-vem, caiu. E era
nossa terceira transa do dia! Isso só aconteceu por isso. Ele é foguento, parece um touro;
não para quieto, sempre agitando, fazendo bagunça; a maior algazarra é por sua conta.
Até dormindo só faz mexer. Depois de falar sobre a água, quando estava sobre a
curtição, deixa eu te dar uma ideia: para e pensa, o mundo vive de pecado, a gente
pecamos quando cortamos árvores; se a gente continuarmos assim, não vai mais ter
oxigênio. Ele vê o fim do mundo na água, nas árvores e arregala aqueles grandes olhos
cor de mel. E aí a gente nos prostituímos! Todo mundo que fica só de azaração tá se
prostituindo. Para e pensa. Será que ele teme o inferno? Será que acha que o inferno é
aqui?

Ele não liga de eu gostar de si; acha até melhor; assim consegue tirar mais
dinheiro de mim, e facilmente! Eu também não ligo. Devo ser o cliente dos sonhos. A
minha pessoa trágica! Liguei o som no volume máximo, assim abafo os gritos
da minha prima, mais desafortunada. Para e pensa, tem sempre alguém mais infeliz do
que a gente.

59
Again, para e pensa. Se misturo minha vida com a de outra pessoa como estou
fazendo, ainda que em sorrateiras transações, capturo certos trejeitos, dicções do outro e
os torno meus. Para e pensa, é assim com todos? O que faz de uma pessoa, e somente
uma, uma pessoa singular, ímpar entre as demais? É o resultado da mistura das várias
convivências? E a dos livros contariam? Temo ter entrado em outro nível, mais
filosófico e escrevo sem parar. Estou tentando abafar os gritos. Ainda escuto, apesar da
música alta. Esses gritos estão dentro de mim; são meus também! Como ser feliz ante o
horror? Não só o dessa casa, mas também o das ruas e tudo o que acontece e acontece
tanta coisa; presidentes depostos, atentados, assassinatos, os assassinatos, meu Deus!
Tentei ver minha face ao espelho, mas o espelho ruiu, esfacelando-se, e vi nada menos,
nada mais, que ele, nitidamente. Eu me transformo nele? Quero virá-lo para escapar
destas quatro paredes sufocantes? Ele é mais uma fuga? Como com as drogas? Preciso
de si. Estou em crise de abstinência. E ontem tomei uma overdose!

Examinei seu ânus com lanterna; não tinha um pelo! Todo depilado, o ânus
estava fechadinho; parecia que nunca praticara sexo anal! Como pode? Para e pensa.
Tudo bem que ele prefere ser ativo, tudo bem que ele mais come do que dá, mas estava
todo fechado! Não passava nem um peido! Minha vida fechou duas vezes, antes de
fechar. Isto é símbolo para uma vida na qual nunca entrarei? E quero entrar nessa vida
para fugir da minha? Tenho tantas perguntas; sequer uma resposta. Acho que começo a
desintegrar.

Estava ao seu lado no carro; escutei-o ao celular com Camila. Eu não vou pra
aí! Ir aí, pra quê? Você chama seu namorado e eu vou ficar aí, boiando. Não, vou pra
casa da minha mãe. E desta vez foi. Ele fica nesse jogo com Camila e seu namorado. Aí
quando provoco, falando que Camila é homem, ele vem com a ladainha de que ela é
como se fosse mulher; travesti desde os dezesseis; já tem dez anos; o nariz, os seios,
tudo é de mulher; é mulher; só tem o pênis. Mas não é isso o principal? Você não
entende. Para e pensa, quem não entende é o boy. Se for assim, também sou mulher,
posto que A mulher não existe; ela não tem representação propriamente. Sua
representação viria de uma falta do objeto e em mim falta tudo, a começar pelo meu
nome, Enzo. Boy sabe disso, tanto que insiste que eu o sugo, porque tenho necessidade
de tudo. Assim acho que sou mais mulher do que as mulheres, não? Meu falo que
supostamente me representaria é apenas um entrave às minhas metas. Esse falo é o que
origina a falta. Esse falo é o problema?

60
Para ser homem não precisa necessariamente ser homem-heterossexual. Há
muitas mulheres bem mais homem do que muito homem por aí—e nem possuem
pênis!— mas não era disso que estava falando, nem muito menos falei isso para boy.
Ele não entenderia; o problema está na gênese; em se aceitar como se é; em não ser nem
segundo um tipo determinado, nem outro. Não precisar ser. Somente ser.

Acho que puxei meu finado tio. Minha prima, tão nova, tão culta, erudita
quase. Herdará os dotes literários do pai, se sobreviver? Me ocorre que muitos poucos
são os que vivem; mais se sobrevive do que o restante; é o que se pode fazer nestes dias,
sim, nestes dias, o que se pode fazer.

Falava de sexualidade e me ocorreu uma conversa que escutei nos corredores


da faculdade. Paulo conversava com um amigo de muitos anos sobre a evolução do
nosso século. Agora há muitos tipos. A pessoa pode ser hétero, gay, lésbica, trans e
recitou vários tipos de trans, como de gays, lésbicas e héteros, dizendo a maravilha da
diversificação desses tipos todos, sem contar com os bis! Artur bebericava sua bebida e
ouvia toda a listagem dos diversos tipos e a maravilha de poder ser assim ou desse jeito
ou daquele outro e como era muito legal haver todos esses tipos. Ao final da
enumeração, Artur perguntou, e se tipo assim, eu não me enquadrar em nenhum desses
tipos?

Ele passa seu pau sobre minha face, bate-o nas bochechas, no nariz, passa
sobre os olhos e faz o desenho dos lábios sobre minha boca, mas quando abro a boca
para chupá-lo, ele tira, dando-me mais vontade. Você é mau! Assim é que é bom! Dá
mais vontade! Ele sabe das artes.

Meu boy é míope. Faz questão de não usar óculos para não estragar sua beleza.
Ontem comentou comigo que precisa olhar isso, antes que fique cego.

Qual o sentido de ele mudar de quarto, se passou a semana inteira dormindo ao


lado de Camila, na mesma cama (claro), e ainda teve transa, e várias! É isso pegar
vício? Ou estar apaixonado? Por quê ele não assume o que não suporto? A dor! E virá
de uma vez! Ele vive querendo que eu contrate outro boy para eu ver como é; acha que
exijo demais de si; quero saber de sua vida; o que lhe ocorre; até seus pensamentos!
Com os outros boys é encontrar—meter—cair fora. Não há conversas, intimidade,
carinho; segundo ele a maioria nem beija na boca. E ainda supôs que eu soubesse como

61
funcionam as saunas, onde os programas são mais baratos porque se mete rapidinho e aí
acaba e os caras não são lá grandes coisas; é um ambiente sujo, pesado. Ele já cobra
caro porque seu tratamento é diferenciado; não acreditou quando afirmei desconhecer a
existência dessas saunas, cujo único objetivo é o sexo.

A música pra ele é sensual; não se importa com a letra; música seria
movimento e ritmo; e como gosta de dançar! E como dança!!!

Da última vez que me comeu não me olhou na face, e fazíamos um de frente


para o outro! Pensava em algo? Ou em alguém? Ainda me acabo, sem remissão.

Só agora paro e penso, quando dormi em seu local, ele estava comemorando e
exalando sua felicidade porque ele e Camila tinham terminado; enquanto me comia,
sorria ante esse fato. Só agora vejo, era felicidade forçada, se não desespero alegre.
Como as pessoas são! Talvez que ele mesmo se enganasse! E como fico diante disso?
Eu que sou só mais um cliente. Ele nunca me iludiu a respeito; diferentemente do jogo
sacana do outro, que não veio e ficava prometendo. Será que a despeito de ele se dizer
heterossexual, ele ama o homem na travesti? Será que não somos todos travestis,
escondidos por trás de máscaras, como no teatro grego da antiguidade? Mal vejo minha
face ao espelho, travestido que estou! De qualquer modo, prefiro sofrer e me ocupar
com este assunto a tomar parte no que se desenrola nesta casa.

Fizemos massagem um no outro; ele brincou de luta comigo, dando-me uma


gravata; apertou meu pescoço com suas coxas macias; quase sufoquei; isso tudo já foi
dito. Porém, no meio disso tudo ele subiu em cima de mim, e caminhou. Caminhou!
Tentei jogá-lo na cama ao meu lado, outra tentativa frustrada. É impossível
compreender as ressonâncias disto. Ele me pisou. É isso o que faz e tem feito todo esse
tempo. E continuará assim.

Ele mandou que tentasse sair e apertou meu pescoço com força. Estaria me
testando? Queria avaliar a força que possuo? Eu lhe disse que era fraco; queria
averiguar o quanto? Preciso temer o futuro? Seria um aviso? Não esqueço seu conselho:
é bom aprender a sair disso. Ele falava da gravata ou de nossa não-relação? O que quero
também? Eu contrato um boy diversas vezes e espero que ele se apaixone por mim?
Pelos meus atributos físicos, quase nulos? Pelos presentes que ele não dá valor? Pela
minha inteligência, sendo que demonstro sempre o contrário? Um lesado sem lugar no

62
mundo! É isso que devo ser para ele! E ainda estou querendo demais! Se eu pudesse
inspirar um pouco de afeto! Quê caderno choroso! Já estou de saco cheio!

Minha prima passou pela porta do meu quarto feito zumbi. Acho que não
dorme há dias. Meus pais estão perturbando a cabeça da guria. E será para sempre!
Incrível como eles se apoderam de crianças e acabam com suas vidas. A gente ficamos
nessa sobrevida, numa pré-existência, um poderia vir a ser que não se concretiza. O que
eu quero com isso? Primeiro preciso descobrir o que é isso? Todos meus planos
falhados... Será o peso da culpa? Se não tomo parte na ação não sou culpado; logo, me
absolvo? Não agir é uma forma de ação? Poderia ser culpado, omitindo-me? E seria
salvo de quê? Fosse condenado, qual o crime? A que sentença? A consciência pode ser
uma forma de aprisionar? Não quero pensar nisso. O boy, quando contratá-lo de novo,
pedirei que soque—faça como se eu fosse mulher—quero ser arrombado, arregaçado—
por sete minutos—e se eu pedir para parar, não pare! Falar-lhe-ei isto. Primeira
mesóclise da vida; é para que estremeça; e quero isto feito no próximo final de semana.
Esta é a primeira sentença de prazer—silêncio—adentro no reino obscuro do
masoquismo.

Ele diz que Camila é muito mais velha do que ele; sendo que ele tem 21,
enquanto ela, 26. Fico pensando, e eu? Esqueço que eu não conta.

Depois da gravata, quando ameaçou me enforcar com suas coxas macias, fiquei
arrasado. Era o horror voltando? A agressividade tomando sua forma repulsiva? Ele
veio para cima de mim; então o repeli, mas ele forçou, me abraçando e fazendo carinho;
não resisti e deixei que me tomasse em seus braços; beijamo-nos e ele teve a certeza do
tolo que sou por si. Mais tarde falou rindo que quase chorei.

A dor é uma parte tão imensurável da minha vida que ás vezes não suporto.
Não suporto suportando, pois nada mais resta a fazer. Vejo muitas semelhanças entre
ele e Etiene: a mochila, quase idêntica; a altura, quase a mesma; a segunda profissão, a
informal, diga-se de passagem, apesar de eu desconfiar que Etiene fosse mesmo michê,
posto que não quis me atender, embora eu tenha falado que pagaria seu preço; a
intenção de mensurar minha força, sendo que Etiene queria que lhe desse um soco no
braço com toda minha força, o que não fiz, enquanto que ele queria que eu saísse de
uma gravata, cuja estrutura era demais agradável, embora sufocasse, e, desta forma,
fraquejei; o hábito de roer unhas; de não conseguirem parar quietos; etc.

63
Está decidido, desisti das decisões mais graves e apenas marquei um programa
com boy em seu local. Está agendado às 19. Ele não quer que eu que me atrase ou
adiante; tem de ser em ponto, posto que não está mais gostando de dormir lá e depois de
consumado o negócio, segue para a casa da mãe, onde está pernoitando. Quando mandei
mensagem para marcar, não reconheceu quem era. Levei uma estocada no pulmão. É
que não salvo número de cliente. One more time. Ele quer me matar? Vamos consumar
um negócio, um negócio em seu local; depois ele segue para a mãe; não está gostando
de dormir lá. Brigas com Camila? Caminha para um fim? Traço conjecturas de uma
vida da qual nunca participarei, exceto em transações. Vale a pena? A terapeuta diz que
ele está no centro, ocupando o lugar da droga, que só serei livre quando eu estiver no
centro. Acontece que ele me disse que era minha droga. Sua droga sou eu. Eu acredito.

Fico catando as horas para vê-lo e contornando a ilha do prazer, em êxtase


supremo. Num delírio de arquivista lembro da viagem de seu sêmen até minha boca; seu
gosto, quente e salgado, um quê de azedinho; e a foto que não tirei desse momento fica
nítida. Não vou deletar, nem conseguiria fosse o caso. Ficou uma foto perfeita; o
cenário é o de um motel do passado—noto, não é possível precisar o tempo em que a
ação se desenrolou—é uma foto repleta de significado—a velocidade do esperma indo
direto para minha língua que não filmei aparece perfeita—é preciso rodar o filme em
câmera lenta para observar seu movimento. Revejo a cena várias vezes e sinto o
estomago aquecido.

A beleza embriaga, entorpece; quando se toma uma dose muito forte, morre-se,
pois que ninguém consegue abarcar a beleza em seu todo. Às vezes dá até raiva. Depois
de uma noite de sono, ele acorda sem remela no olho! Ele é o homem cujos olhos não
dão remela, cujo rosto nunca fica oleoso, ou ressecado, cujo único brilho é o de sua
estrela, cujos cabelos estão sempre hidratados e lindos! Desconfio que seja ele o
bailarino. Eu, já, por outro lado, prefiro nem falar. E falo. Sou seu antípoda! Olhos de
remela cheio; às vezes mesmo sem dormir. O rosto que é óleo puro! Dá até para fritar
batatas. O cabelo, Ave-Maria, com uma caspa que não dá sossego. Entra dia, sai dia, a
caspa lá, minando. E tomo todos os cuidados! Todos os tratamentos! E conforme
orientação médica! E nada resolve! E o rosto? Ora cheio de banha, ora todo ressecado,
escamando. Dizem que os opostos se atraem. Fosse assim, estaríamos casados!

64
Hoje é o dia do sétimo encontro. Acordei com muito pavor. E se ele fizer como
fez com um cliente de outra cidade? O tal cliente atravessou duas cidades só para
encontrá-lo. No entanto, ele marcou encontro com dois no mesmo horário. O que chegar
primeiro eu atendo. Esse cliente de outra cidade já estava defronte para o local, onde ele
atende; ligou para ele descer, como fora dito para fazer. Entretanto, ele falou que
começaria um atendimento com um outro que chegara primeiro. Aí o cliente da outra
cidade pediu que ele ao menos descesse para vê-lo, afinal, cruzara duas cidades só por
sua causa. Então, desceu, e mais, colocou os braços sobre o vidro do carro que estava
aberto, apoiando-se, e fez seu charme. Aqui, você tá vendo que eu valho a pena, né! Eu
peço desculpas. Isso não vai acontecer da próxima vez. O outro engoliu a seco. Aí ele
virou-se e se foi, adentrando o prédio. E se ele fizesse isso comigo? E aí? Uma pergunta
que a psicóloga adora. E aí? E aí? E aí?

Fechem portas. Ponham guizos. Meu amor permutará. Não quero pensar. É
demais. Calor excessivo, queima de carbonizar e um aperto no coração em chamas. E
chega de metáforas. Ele me ligou. Mandou mensagens. Eu estava no salão, tentando
ficar bonito, ou ao menos apresentável para ele. Para ele! E deixei o celular caro em
casa. Ao chegar à casa me deparei com as mensagens e sua ligação perdida. Respondi as
mensagens; não aguentei a espera e retornei a ligação. Ele quer que adiemos para
amanhã nosso encontro, pois sua mãe o chamou para ir a um show de Wesley Safadão,
mas se tiver problema ele sai com a mãe outro dia e vai a nosso encontro. Disse que
tudo bem; pode ser amanhã. Ele vai sair com a mãe! Ele subestima minha inteligência e
ainda diz que não está mais atendendo. Inclusive, retirou seu anúncio. Só atendeu uns
dois essa semana, e mesmo assim, só atendeu esses dois porque já o tinham procurado
há mais tempo. E eu? Hoje, bem mais cedo, mandei mensagens confirmando nosso
encontro; ele disse ok, marcado. E agora vem com essa? Que eu saiba ele dormiu em
casa da mãe; por quê só agora depois de confirmado ele mete essa? O show apareceu
agora? E aí? Mentiras sinceras me interessam? Ele não é meu namorado, muito menos
me deve explicações, mas uma vez confirmado o ―contrato‖, deveria ao menos cumprir
sua parte. Quanta falta de consideração. E nem posso reclamar a quem deveria. E se ele
não quiser mais me atender? E se ele for estar com Camila? E se me matasse? Credo,
isso tudo por causa de um pinto que nem me dá tanto prazer assim? Acho que o
problema é comigo. Devo ter alguma coisa errada para não sentir o prazer que
proporciona aos demais, o que está ainda para ser descoberto. Ouço barulhos pela casa,

65
caluda, batem à porta, aqui dentro também ouço um rufar ensurdecedor do que não sei o
que seja. Para e pensa, se nunca mais o tiver, e aí? Terei que me deparar com o redor e
ao entorno uma nebulosidade comanda; entorpece; envenena. Fixarei no amanhã, pois
amanhã serei feliz a seu lado. Ou não, sou uma cobaia da vida, pedindo perdão pelas
ruas, emudecido de existir. De todo modo, concentro-me em escrever e aumentar o som.

Sinto solidão dele; desvanece, aparece, arromba, bomba, retumba, tumba, urra
em dor; é movimento. Me consome e fico estático, seu contrário, vendo sem ver sua
face, sua pose, a respiração ofegante contra meu rosto, recebo, amo, perco a razão nesse
amor desmesurado e sofro as inconsequências dessa hybris avassaladora.

De tarde, é sempre tarde, certas fotos, nunca mais. Poderíamos ficar mais
juntos; poderíamos decifrar enigmas, talvez nos salvássemos; bem poderíamos arriscar
o que não é nosso, talvez construíssemos um lar; bem, poderíamos, poderíamos, mas só
o verdadeiro amor está por vir.

Em nosso segundo pernoite ele anotou um telefone nas páginas que eu escrevia
sobre nós, no momento, acontecendo; disse para nunca ligar para aquele número e então
riscou-o todo até desaparecer. Ele fará assim consigo sobre mim?

Marquei com o boy novamente; espero que ele não venha com lero-lero de
adiar como fez ontem; deixa-me numa suspensão maluca. Nem teço mais essa espera.
Escreverei somente depois de consumada a transação. Primeira utopia do dia. Ataque de
dar nervos. Dei bom dia; perguntei como passava; falei do meu desejo de passar mais
tempo. Ele só deu o preço e acertamos a transação. Eu deveria ser menos emotivo;
inclusive por causa do que se passa nessa casa. A prima. Bem, até tento.

Há um outro tormento que na faculdade não me veem. Vem um, outro, até
falam comigo, mas não me enxergam. Têm uns que passam por mim e esbarram, de tão
invisível. Deveria começar a escrever O livro. E fico adiando. É que diante da
impossibilidade do livro me abato e fico invisível até para mim, exterminado. Meus
colegas todos têm livros publicados, ou em vias de publicação, e dão autógrafos! Todos
felizes, com carreiras brilhantes e sorridentes; possuem namorados/namoradas. Só eu o
da mansarda, só eu o que não nasceu para isto, embora tivesse todas as oportunidades,
uma promessa que não se concretizou, boiando; quando naufraga? Fico olhando coisas
para fazer mais tarde; realizar a bula do prazer, com direito de tocar o ponto P,

66
massageando. Levar o outro aonde quero; nossos corpos são movimento. Antes, me
preparar; lavar intensamente o ânus, apesar de nem sempre dar certo. Mesmo assim,
lavar tudo como única premissa possível. É o antes do ato, tão importante quanto o ato
em si. Depois pode-se tentar outros truques, como bebericar suco de goiaba, entre outras
coisas que não digo. Parte do ritual pré. Fico aqui, aguardando e penso nas mulheres
grávidas, quanta paciência! Não sei se aguento.

Ele daria um excelente escritor, pois que gosta de misturar realidade e ficção;
faz de sua vida a autoficção exemplar. Voltando para casa de uber ele conta-inventa
para o motorista sua mudança de seu local na zona sul para a casa de sua mãe num local
afastado da cidade. E nem tinha necessidade. Ele diz que está mudando por causa de um
colega, com quem dividia o ap—esse colega desandara com as drogas e, mesmo o pai
bancando e tendo vida de play, o cara perdeu a linha; esqueceu quem eram as pessoas e
deu a loca de matar todo mundo, gritando por socorro. Quando li trechos recém-escritos
de nossos encontros para si, disse-lhe que não estava pronto, era apenas o fato cru, o
acontecimento verbalizado, depois haveria o trabalho de linguagem no qual editaria as
frases para caberem nO livro; e ele apenas me disse, eu sei como é. Agora paro e penso,
hum, é o mesmo processo que ele faz com a vida, e ele é bem mais hábil, e ele só não
escreve.

Pela manhã ele dançou sensual em cima da cama; me pisou; alisou o pé em


mim, excitando-me; provocou-me para mais tesão no jogo do sim-e-não; após essa
tortura erótica me comeu gostoso! Fiquei sem saber onde estava. Na terceira e última
deste pernoite fiquei sem saber quem eu era. Quando tiver namorada vai traí-la. Serei
seu namorado. Nem que a vaca tussa. Já viu o filme? Não. E tem? Tem, é o mesmo que
eu te digo. Eu sei; também não quero. E se eu quisesse? Claro que não resisto a você.
Você exige demais. Eu sei, é dos primórdios.

Ele anda muito cansado; quase não dorme. E a magreza? E a beleza? É nisso
que gama e se apaixona. O único e irrefutável. Acho que fomos amaldiçoados. Ele
recebeu como maldição não conseguir amar ninguém, exceto a si próprio. Minha
maldição foi um passo além, ser capaz de amar todos dotados de beleza, exceto a mim.
Procuramos uma nota simbólica que nos diga. Somos imensos; esta tristeza vem como
um refúgio. O mal que lhe fere é quase o mesmo que me atinge.

67
No uber ele disse varias vezes que era profissional e quando chegou à minha
casa, segurou minha mão e disse tamo junto.

Quando acorda, a primeira coisa que faz é olhar seu celular para saber se têm
mensagens e tals; e sempre têm! Ele não ―liga‖ para nada; paga suas contas, considera-
se adulto e pode fazer o que quiser; tem 21 anos. Recentemente foi da casa da sua mãe
até seu local de trabalho, que fica do outro lado da cidade, em pé, num ônibus lotado;
não se movia nem um passo; as pessoas fedendo que acordam cedo e se arrumam de
qualquer jeito. Cheiro forte de condicionador barato. Sua carona para ir ao serviço, o
oficial, furara e teve de se submeter. Quer uma namorada só para ficar de Love,
beijinhos e tals, mas vai traí-la, pois que o mundo é curtição. Teve uma vez que
estávamos no motel—só estamos em motéis—ele me comia e perguntei-lhe se gostava
de mim, nem que fosse só um pouquinho; balançou a cabeça em negativa, riu-se um
pouquinho e meteu com mais força.

Toquei seu ponto P com o dedo; fiz massagem. Ele não queria. Sou homem,
porra; até dou, mas morrendo de raiva. Não gosto que me peguem na bunda. Após
insistências, deixou; fiz massagem em seu períneo; focalizei o ânus, massageei;
introduzi meu dedo aos poucos, como lhe falei que era para fazer quando fosse me
comer; senti a noz, perguntei se estava muito ruim; falou que não; seu pênis cresceu um
pouco; deixou que fizesse por alguns minutos; ficou de pau duro e falou que faria em
mim. Aí pediu que parasse. Acho que tem medo de gostar. Isso não tem nada a ver com
sexualidade; é fisiológico. Mesmo homens heterossexuais sentem esse prazer. Aonde a
vergonha? Você não tem fetiche, Enzo. Fetiche fica guardado durante anos. Eu acho que
você olha as coisas no dia anterior ou hoje mesmo pra fazer. Isso é inventação de moda.
Eu tô vendo o dia em que você vai querer beijar meu cu. Acho que deseja isso; numa
outra vez ele pediu, brincando. Ele fez em mim com seu pênis, a massagem, e me levou
à abnegação total, êxtase de dar vertigem. Começo a sentir os prazeres mais
avassaladores do sexo.

As comidas que pedimos não estavam boas. O café da manhã veio paupérrimo,
e ele me disse uma verdade: nada é perfeito. E precisamos lidar com tanta imperfeição!
É possível. Sobreviver à imperfeição. Agora que o conheci lido bem; ele não liga; eu
também não. E se escreve. Fundir o viver e o escrever é assim. Fica faltando sempre
uma parte da vida na escrita e da escrita na vida. Imperfeições. Jamais seremos plenos; e

68
é assim mesmo. Aquela vontade da outra pessoa, o desejo de assisti-la, a respiração que
se capta, o sêmen que se absorve, a ilusão de possuir um outro falo, a carência
suprimida de quando o encontro com o outro; isso tudo e mais, mais ainda, não é
paixão, se não que desejo de fuga. Claro que saber isto não anula o fato de o querer, e
querer bem. Não estou disposto a esquecer seu rosto, quiçá abandoná-lo. Ficarei ao seu
lado o quanto ele quiser e puder; o quanto nossos caminhos não divergirem, afastando-
nos e impossibilitarem nossa união, ainda que efêmera, vertiginosa e intensa.

Mostrei-lhe uma foto de quando era criança. Ó, você sempre teve as pernas
grossas!? Você acha? É, a panturrilha. Na primeira vez que fez massagem em mim,
elogiou minhas panturrilhas, bonitas e grossas. Ele não vê nada de homem em Camila.
As pessoas só veem mesmo o que querem! Eu só vejo o seu fogo, seu axé me contagia e
até ilumina, deixando-me bambo, inebriado de luxúria. Ele achou ruim os trechos que li
para si, falando de si, porque eu somente reclamava; não li as partes em que o elogio e
tento descrever o prazer que me proporciona, a fim de que não fique mais convencido
do que já é. Depois que li, enquanto estava na ducha e eu reclamava de ele ter ficado no
zap, retrucou, você quer brigar!? Então vamos brigar! E jogou na minha cara a moral
que me deu e que não dá para a maioria dos outros clientes, pois que sou fixo; que ele
não divide conta de motel; sempre vai embora 9, 10 da manhã quando é pernoite e
comigo tratou de ficar até às 13; o fato de deixar eu ir mais cedo, por causa de
problemas em casa que não falo e ele não pergunta. Comuniquei-lhe meu medo de ele
fazer comigo o que fez com o cliente de outra cidade. Ele só fizera aquilo porque tinha
levado bolo de um cliente mais cedo. Aí tava puto e marcou com dois de uma vez.
Alguém ficaria a ver navios; o mais provável é que não fosse ele; sua forma de vingança
do bolo que levou anteriormente. Quando não quiser mais me atender, falará na tora
comigo.

Ele pisca tão sensual para mim, que me perco absorvido na piscada,
enrodilhado no fogo que crepita dessa piscada, sendo um cílio do olho que pisca,
inteiramente piscado—e mais, não posso—é

Ele fica excitado muito rápido; é tão foguento. Quando lhe alerto sobre a
possibilidade de perder isto, já que intenta tomar anabolizantes—quer recuperar a
forma, todo sarado-cortado—ele dá de ombros, que nada! Isso é só pra quem não sabe

69
tomar, e eu sei; teme somente as espinhas, mas vi uma nuvem passando atrás de seus
olhos.

Ele dança provocante, todo sensualizado; quando lhe chamo faz não com o
dedo indicador.

Levantei algumas vezes durante a noite para escrever. Quando lhe perguntei se
dormira bem, respondeu-me perguntando por que fui levantar várias vezes durante a
noite. Você tem o sono leve assim!? Tentei não fazer barulho. É que quando durmo com
alguém meu sono é em alerta. Não confio mais no ser humano depois de tudo que me
aconteceu—referência à vez que um dos michês do prostíbulo, onde ―morava‖ surtou de
tanto cheirar e tentou matá-lo. Ele e Camila ficaram presos no banheiro da suíte que
dividiam, várias horas de agonia. Estivesse somente ele e eu lá, falar-lhe-ia que se
morresse ali, eu ao menos poderia dizer que a vida valeu a pena, valeu porque estive
consigo. Depois daquilo a gente perde um pouco a fé no ser humano. Ele era super
gente boa, amigo de todos e aprontar uma dessas? Esse episódio contribuiu para a
mudança de volta à casa da mãe. Ele deixou seu frigobar para os michês da casa e,
enquanto estávamos no uber indo para minha residência, tratou com o motorista de
buscar seu outro frigobar na casa de um tio.

Escrevo para me manter próximo; para não perder o elo; para conservar,
guardar para mais tarde; escrevo enfim para uma impossível aproximação de eternidade.
E se escreve.

Ele viu que escrevia algo e quis que lhe mostrasse. Então li trechos; ele quis
que lesse tudo; o que fiz. Então bancou o psicólogo para mim. Para mim! E vi tanta
coisa que nunca vira, minhas cobranças desnecessárias.

Importante eu saber que a vida é bela e cruel despida. Tão desprevenida e exata
que um dia acaba. Importante se concentrar no agora e deixar amanhã para mais tarde.
Importante também planejar no agora o amanhã, porque tudo que é precipitado e feito
em cima da hora dá errado, ou não é tão bom, segundo o próprio.

Ele nunca fez as unhas, nem as sobrancelhas, e as têm perfeitas. Diz que não
tem necessidade fazer pés e mãos; fiz-lhe ver que uma vez feitas, tem-se de fazer
sempre. Acho que não entendeu muito bem, já que me acusou de frescura e disse que eu
era boiola mesmo.

70
Ele busca a confirmação de que se nasce assim em tudo—acho que teme ficar
assim—assim, se não se nasceu assim, não é, não será, uma vez que o vir a ser não cabe
em sua formulação acerca da sexualidade. Todas às vezes que nos encontramos discorre
sobre sua heterossexualidade e como tal e tal mulher são gostosas e que vai meter nessa
e naquela. Ele pode até transar com várias, e que sejam muitas! Mas para e pensa, como
as pessoas se enganam. Ele mesmo falou que as pessoas mudam. Então pra quê essa
contradição? Será por quê? Não é óbvio?

Pela manhã, na cama, gritei; uma mariposa sobrevoava nosso quarto ainda
escuro, em crepúsculo. Gritei para que ele a matasse, o mesmo que nada; sob a cocha
cochilava. O café da manhã chegou; fui receber e ele ainda de baixo das cobertas. O
bicho desaparecera para retornar quando estávamos indo para a ducha, após o sexo.
Aprontei um pequeno grande escândalo, anunciando o fim do mundo. Quê isso, Enzo?
Do jeito que você gritou pensei que fosse um monstro, mas esse negocinho? Toma
vergonha na cara, Enzo! Vira homem, porra, te dou umas porradas pra você virar
homem! Rimos. Mas você é o homem da situação! Sei. O bicho voava; ele pegou o
chinelo e não sei como matou.

Tanto horror no mundo; não sei como posso ser daqui, e sou. Tento não pensar
no terrível; concentro-me na sua beleza e o resto deixa de existir. Suas gargalhadas, seus
braços, seus lábios, suas mãos; tudo; ele me tira daqui e me leva ao reino do prazer,
onde sou seu cônjuge, ainda que por pouco tempo. Depois, quando volto, cada signo é
um alarme de calamidade que já suporto mais serenamente, desde que tenha a
perspectiva de voltar àquele reino de prazer e delícias com meu cônjuge ideal, que não
troco, não deixo, do qual não abro mão, nem por alguém, se existisse, dotado de maior
beleza. A linguagem é excessiva. Tem de ser excessiva; só sendo excessiva toca minha
paixão sufocante de dar náuseas; e fico roxo nesse desejo consumidor. O terror do
mundo fica distante, longe longe longe. Ele é minha morada exclusiva, único sítio de
totalidade.

Certa hora avolumava-se o quarto de motel, luzes em neon piscando, ele estava
na ducha, música de fundo, eu do outro lado, e considerou. Sabe, Enzo, às vezes acho
que você não é normal. Claro que não sou normal! Ri. Sou bem louco! Você ainda não
viu? Só de estar aqui! E tudo o que fiz! Não, não é isso ainda. Às vezes acho que você
tem algum problema mental. Ele devia estar falando das ressonâncias dos maus tratos

71
que sofri na infância; e sem saber! Silenciei e entrei na ducha consigo. Deixei que a
água quente me queimasse a pele, purificando. E, desta vez, não reclamei. Apenas o
abracei e deixei que a água caísse sobre nós; ele até estranhou. Você não gosta de água
quente! Por quê isso agora? Para ficar perto de si.

Quando foi meu psicólogo, durante a leitura, Enzo, você não vê!? Isso não
existe. Não existe nós. Isso não é real. Você criou uma ilusão; fantasia como se eu fosse
seu marido. Por isso te disse que não te atenderia mais, porque estou te afetando. Você
cria uma ilusão a meu respeito e se coloca como se a gente tivesse algo. Mas eu vivo de
ilusões. Eu sei o fato, mas enquanto estou aqui com você quero viver a ilusão.

Pediu-me que chupasse; havia babado. Mas aí, ó, tá babado. Vê, você já bebeu
da minha goza; tá com nojo de mim? Isso daí nunca vi! Não é nojo, gatão. É que
quando você gozou foi direto na minha boca. E assim, sei lá. Secou com uma toalha, e
chupei.

Tentei escrever a ilha obscura do prazer, onde o ninfeto louro de luxúria me


levou. Pena nossos corpos no motel não permanecerem. Pena seu corpo dentro do meu
não durar. Pena eu deitado em seu peito, ouvindo seu coração—por onde andará? Por
quem bate? Quais os meios para fixar uma morada? Ou apenas pernoitar? e que nos
esqueçamos!—não ser para sempre. Pena o escrito não alcançar com sua pena as
dimensões infinitas ressoando do fato.

Depois que gozou, ele fixou dentro de mim um pouco mais; nos abraçamos e
acolhi seu corpo sendo meu.

Passamos de uber por um cara aparentemente homossexual. Aí, ó, igual a você,


Enzo. Esse daí morde uma fronha.

Ele é ele mesmo. Ele é o que ele é e isso encanta-me. Vivi para escrevê-lo; não
o sabia até agora. Há cousas que só se descobrem escrevendo. E se escreve. Não sei
como vivi até há pouco sem o conhecer. Era por isso o vazio? Há tanto horror e miséria
no mundo, mas quando estou consigo é tudo encanto e farfalhar de risos. Estou como
morto se está longe, mas quando vem revivo vivo renasço nasço mil vezes. Do seio da
noite cai uma pérola, em forma de lágrima. Seu conteúdo serve somente para mim e ele.
Escrevemos sem pensar; ele, respondendo mensagens, marcando encontros; eu,

72
tentando a captura de uma solidão, buscando uma aproximação de delicadeza, congelar
esse momento, mas o tempo continuaria inexorável.

Temo perder o contato consigo; sua profissão é clandestina para sua família; se
demora um pouco mais para responder minhas mensagens, teço mil conjecturas,
nenhuma feliz. Vai que seu padrasto pegou seu celular; viu as mensagens e descobriu o
outro lado de boy; vai que ele desistiu de me atender, ficou de saco cheio e não quer
mais saber; vai que seus amigos descobriram e estão sacaneando; vai que ele se cansou
da profissão mesmo e deu um stop definitivo. E assim por diante. Eu sou o afoito. Mas
que felicidade quando responde; meu reino fica de ventura cheio. É verdade que o
dinheiro está minguando. É verdade que seu preço não é barato. Mas quem se importa,
se quando estou consigo é tudo da cor do paraíso? Meus pecados já nem cintilam, se
apagam. Ele respondeu! Quase terminamos de agendar. Feliz amor! Amor mais que
feliz! O não-som das palavras em mensagem falam à carne; assim aguardo, a cabeça
quente e a língua acesa. O tolo sou eu! Ébrio do vinho da paixão! E que se danem!
Perdoo e sou perdoado! Estamos todos pagos! A festa báquica tem hora para começar. E
que os sinos estralem! Trombetas mágicas do futuro! Minha fala desvairada! É o êxtase!
Comecemos, pois! Já estou vislumbrando a cena! ───────

Estive pensando em como será triste o dia em que ele deixar de me atender,
porque isso deve acontecer um dia, embora eu espera que seja num futuro bem distante,
por sua própria vontade. Ou o dia, e isto seria mais triste ainda dentre tudo, em que eu
não quiser mais seus serviços, apesar de duvidar que tal dia chegue, minha necessidade
insaciável de si; não apenas o sexo quente e duro e grande, mas sua presença, essência
da qual não abro mão.

Lembro-me de um dos dias mais felizes; falei-lhe desse dia, mas nós nem
fizemos nada, Enzo! Foi a noite em que depois de um programa catastrófico, em que
brincou comigo, chamando-me de cagão, comemos hambúrguer, e ele pediu que eu
dormisse consigo. Então, as luzes apagadas, embora uma estivesse acesa, deixando o
quarto em penumbra, pediu-me que eu colocasse uma perna em cima de si para saber
que eu estava lá. Foi mágico. E o dia após! Pediu-me que o seguisse aonde fosse pela
casa. Vi-o tomando banho; participei de sua intimidade; e era um pedacinho do céu.
Deixei-o na rua com meu uber; vi-o andar pela calçada. A hora da despedida sendo a
mais dolorosa. Mas que ventura antes! Conservar esses momentos. Guardo-os comigo.

73
Como, não sei, mas eles estão cá dentro. É vida! Acho que todos seremos felizes um
dia; até a prima! E que ele sempre me atenda!

Começo a perceber sinais em tudo; cada signo é uma calamidade da qual não
se escapa, incólume. O meu útero que não possuo, que um dia trará um filho seu arde do
desejo do perigo de viver. Devagar, ouço passos. Olheiras fundas passando de quem
aparentemente nunca dormiu. Não é indiferença. É que não posso fazer nada. Quanto a
ele, poderei? Mandou-me duas fotos de conversas com clientes, alertando-me? Não sou
o único doido consigo.

Eram clientes fixos querendo mais, mas não sabe se vai atendê-los, pois que
está parando e só retorna daqui uns oito meses, quando estiver forte, com carteira de
motocicleta e com moto. Muitas condições. E até eu, ―começa assim daqui um dia até
vc não vai me ter mais‖. Isso foi pra me castigar? Implorei; diz que continuará me
atendendo pernoite ou perdia após alguma insistência. Mas fica-se na mesma; essa
conversa corrobora o pensamento de antes. Estou perdido! Felizmente perdido! Provei
do veneno e morrerei; ou sucumbo no vício! Disse que era minha droga; então é.
Olheiras fundas passando de novo; devem querer dizer algo, ou pedir; o que é bem pior.
Fecho a porta do quarto. Não suporto suportando. Estou com infecção nas amídalas; não
posso falar. Tive dores pelo corpo. E febre! Pensei que fosse dengue, mas já estou
melhorando, obrigado, caderno terapêutico. Caderno de terapia. Já imaginou? E eu que
nunca gostei de lavar-louças! Mas o mundo dá voltas. Os tempos são outros. E a febre!?
Calafrios por todo corpo. Os pelos eriçados. Num delírio romântico abracei o
travesseiro, vendo meu homem; deitei em seu peito, e, em vez de ouvir seu coração,
trocávamos fluídos e ele abaixava-me a temperatura, como sempre. O único capaz de
cessar meu fogo. Serenado. Nunca pensei que fosse amar um acompanhante de luxo.
Mais uma vez, os tempos são outros. Tudo é pago; e o dinheiro comanda. O dinheiro é
rei; ele, o príncipe; e eu, o que sou? Ah, é, um cliente.

Um dia talvez eu não o conheça mais; depois de um tempo, quando já


separados, a terra abrir-se-á e serei enterrado. Terceira mesóclise da vida, sem nem
perceber. O mesmo não posso dizer sobre si, visto que nunca me conheceu. Permaneci
sendo um cliente, desconhecido; anônimo; singular?

Começo a acreditar no poder do pensamento. Havia dois dias que pensava em


si sem parar; no terceiro pensei com mais força. Aí no final da tarde, ele me mandou

74
uma foto sua de rosto e me cumprimentou. ―Boa tarde/ E fui‖. Do nada; sem motivo
algum fez isso. Fiquei lindamente jubilante. Numa de nossas conversas após, perguntei-
lhe se mandara a foto para me dar água na boca; disse ―não não‖. Agora acho que foi
sincero. Talvez quisesse manter contato; talvez carência; uma vez falou-me que era
carente; quisera amigos e namorada, mas como é corrido, não consegue mantê-los. Pode
ser que tenha se lembrado de mim. Poderia ficar divagando em mil e uma conjecturas; e
não acharia resposta! Deixa pra lá. Divago no amor sem fundo. Quando acho que acho,
perco. É assim também com a escrita? E se escreve. Quando está longe, gosto de
presentificá-lo aqui; minha maneira de não perder o elo. Sentir o mínimo de sua
presença na ausência. É uma presença tão ardente, que mesmo ausente, aquece. Só que
sempre quero mais, por isso o escrevo o tempo todo. Ele gosta de dizer que isso é um
problema dos humanos, sempre querer mais. Nunca é o bastante. Como costuma dizer,
sugo-o até à creatina; não é um molho; é minha necessidade. Quando diz que não tem
necessidade, anula-me. Preciso de si. Desci as escadas para cima ao seu lado. Temo
fazer o movimento inverso. Poderia perdê-lo. Isto está fora de cogitação. Ao menos por
agora. Será que se lembra de mim? Uma vez se lembrou. Será que se lembrará? Meu
coração pulsa pelo seu; é quase um só compasso; tanto acompanhá-lo, mas passo ora à
frente, ora atrás. Ao menos a mesma sintonia de quando em vez. Escrevo ao som de
Work, by Rihanna. Ouvíamos essa música indo ao motel do passado. Ele doidão, ria,
enquanto eu dançava, adoro essa música. É baitola mesmo, né!? Ria. Parei de dançar.
Então começou a dançar me animando; rimos e dançamos juntos na parte de trás do
automóvel.

Tiro tantas fotos ―suas‖. Desejo de aprisioná-lo e fazê-lo eterno. Ele não gosta,
principalmente quando o filmo. Às vezes nem deixa, mas como sou insistente! Este
caderno terapêutico assemelha-se a um Aleph; de qualquer ângulo, é possível ter a visão
da totalidade de si. Acho que falando de si, falo de mim. O que se passou antes já não
importa. O momento vital, o segundo em que minha vida adquiriu importância, ao
menos no que diz respeito a mim, a mim, o marco foi a primeira vez que nos
encontramos, quando não o conhecia tão bem para reconhecê-lo, e ele me deu
tchauzinho, cumprimentando. A partir deste momento sempre foi muito tarde para
alterar a rota. O uber que pegamos nesse dia levar-nos-ia ao nosso primeiro motel, um
chalet nos arredores da cidade; havia balas no uber; nos servimos; tocou touch me,
baby, dos Doors; eu pensava em sua beleza, em como me afetaria, e ele apenas sorriu,

75
embaraçado. O motorista aumentou o volume. Ele estava envergonhado; vinha direto do
serviço. Conseguira sair mais cedo. Eu só pensava touch me, Darling. Como seria feliz!
No quarto ele quis colocar música, mas não sei o porquê preferi o contrário. Ele disse
então, vamos deixar a natureza agir. Tomou uma ducha porque vinha do serviço e só
depois transamos. Fomos embora a noite caindo; desci do táxi e peguei um ônibus. Ele
se foi no táxi. Nessa hora pensei que todo tempo do mundo ao seu lado seria pouco.
Tentamos pedir o uber no motel, mas o uber não vinha, e a noite caía; ele preocupado
por causa de uma garota com a qual estava começando a ficar; cancelamos o uber;
atravessamos a rua e pagamos um táxi. Ele sempre preocupado, querendo ir. Só
recentemente descubro que essa garota era Camila.

Ele é a impossibilidade de me constituir enquanto sujeito, ainda que


fragmentado, posto que nunca vai me amar. Não? Não mesmo? Posto que preciso da
sua aprovação para existir, de seu carinho, seu contato; desvanecerei em lágrimas, em
pânico. Medro à sua sombra, em desespero, para depois dissipar. É este o ponto em que
me encontro, na dor. Sublime dor, poderá conter amor? Encontrar-me consigo é me
encontrar. Se soubesse que de si depende meu destino, não sei o que seria.

O fogo arde, e sem açúcar, começo a crepitar. Há zonas fronteiriças? Não


poderia sob hipótese alguma escapar Isso definitivamente não é uma pergunta; é antes
minha sentença. Vejo vertigens. Ouço seu corpo e o meu. Sinto os odores da noite. É
aqui, encontramo-nos para me perder. Uma perca continuamente dando voltas, em
êxtase. Bliss afiado de tirar o fôlego.

Este caderno secreto é minha alma, escrito num tormento. Mas, o quê fazer, se
minha alma depende da sua, e nessa dependência sofro abstêmio? Estou enredado; e
antes não me julgava sequer apaixonado!

Pedi-lhe que deixasse vê-lo cagando. Riu e balançou a cabeça em negativa. Às


vezes acho que você tem problemas mentais, Enzo. Pensei que se participasse de seu
momento mais privado, tornar-me-ia parte do seu íntimo, e lá ficaria, não saindo jamais.
Quinta mesóclise da vida, e de causar tornado!

Fico longe, Era noite e a angústia descia, mulher sozinha, talvez mais fácil.
Tinha lápis; inventava-se a ilha secreta do prazer. Terrível sede. Senti calamidades
subindo as pernas, galgando entranhas, entrando, fazendo avesso. A noite passava;

76
urdia-se a espera. Meu espanto. Escrevo para você, sim. Só você poderia entender o que
diz minha caligrafia. Só você, que me conhece tão pouco, que eu conheço tão pouco. Eu
sei da sua ansiedade pelos eventos dos quais você me deixa de fora, ou apenas me inclui
para tirar algo de mim, e você sabe da minha impossibilidade em lhe negar algo, mesmo
que seja somente um capricho seu. Conhecemo-nos tão pouco e nos entendemos tão
perfeitamente. Só você. Só você me tira da cama a hora que quer. Só você controla
meus horrores vespertinos. Sou uma marionete em suas mãos. Só você é capaz de me
tirar tudo, deixando-me em trevas, e eu deixo, e sou feliz com isso! Não posso me
queixar de você nesse quartinho. Eu criei o monstro e o berço com meu sangue. Esse
desejo é imponderável; subjuga; faz perder a visão; tem os requintes de um sádico;
esmorece; tira a razão; dá vida e morte simultaneamente; é mais que bliss. Perdi-me.

Vou tentar recuperar o fio, que diz que tem. Um dia, de repente.

Dizem que o horror é indizível, mas o amor também.

Não tenho nada para falar. Escrevo. Vou sair hoje; apenas encontrar o boy para
adiantar-lhe parte do pagamento; pediu-me, pois vai a uma festa e não quer mais atender
outros clientes por um bom tempo. Separou somente dois para atender. Como será o
outro? A frequência? As posições? A quem o boy preferiria fosse uma questão de
escolha? Ele até contou que poderia atender mais dois rapazes e um de outra cidade se
quisesse, mas não quer. Está dispensando esses e os outros que virão, pois quer férias de
uns oito meses. Não sei como chegou a esse número, mas acho que não aguentará
esperar. Uma vez que ficar sem dinheiro, acredito que volta à vida fácil. Só não sei se é
tão fácil assim. Ás 10 lhe passaria o adiantamento; contudo, mandou mensagem,
acabara de acordar e adiou o horário. Será um encontro rápido. É provável que nem me
dê a mão, quanto mais me abraçar. Fico considerando que sou uma peça móbile. É tudo.

Ele atrasou, como de costume. Quis logo o dinheiro; estava na correria.


Entreguei-lhe. Disse que iria embora; falei-lhe que também iria. Estava sem jeito de
andar comigo, mas forcei minha presença. Não tem jeito. Disse-lhe que no sábado que
vem nos veríamos e que ficaria comigo até às 15. Ele olhou para o lado e riu. Você quer
me ver? O que você acha? Eu acho que não, e riu. Subindo a passarela, você sabia que
eu viria, né? Claro, você sempre veio... por quê não viria desta vez? Você desce aqui,
Enzo, eu vou por ali. Obrigado. Tchau. Será que esse foi o adeus final? Li em algum
lugar que a gente nunca sabe quando uma despedida é para sempre. Até o próximo final

77
de semana ficarei me corroendo em expectativa entre o total abatimento e a promessa de
um júbilo extático. Não que tenha prometido algo, embora tenha dado sua palavra.
Empenho-me nessa palavra—saiu da garganta que me apraz—apresso o passo para que
o tempo passe e o dia derradeiro chegue. Ontem dormiu tarde; caiu na noite; hoje foi
malhar depois que se encontrou comigo e ainda quer descansar antes da rave. Vai com
uma prima. Minha prima é muito gata! Vocês já ficaram? Só quando éramos crianças.

Eu não vou a raves; não vou a festas; não vou a shows; não caio da noite—não
tenho companhia—e, ainda que tivesse, de que me valeria? Gostaria é de sua
companhia, todas as noites, em qualquer lugar, em qualquer tempo. Essa seria minha
versão do paraíso em terra. Isso é que nunca! Privá-lo de viver sua juventude? Nem se
eu pudesse. A despeito da paixão, não sou tão egoísta assim. Não o quero só pra mim.
Nunca quis. Ele ainda vai pra terras de Europa, enriquecerá se prostituindo. Sim, eu sei
que vai. E que ele seja feliz! Eu ficarei aqui; vivi minha juventude cedo demais; quando
o encontrei já era tarde para mim.

Talvez eu me mate, ou não, tanto faz. Que ao menos eu possa dizer da vida que
fui feliz; mais feliz que infeliz; que ao menos eu possa dizer que apesar da infelicidade
perdurar, os momentos felizes estão cristalizados e são combustível para se prosseguir.

Estava um sol insuportável, queimava a pele, e ele rejubilou. Tomara que


amanhã esteja este sol maravilhoso! Vou me acabar de dançar. Eu só assim, só assim, e
fez uns passos. Não o conhecerei jamais, posto que os homens belos são totalmente
incognoscíveis; e este talvez seja o exemplar da casta mais rara, exemplar único de uma
espécie extinta.

O ônibus agarrou no tráfego; primeira metáfora para minha vida de hoje. A


noite começou bem—e vai melhorar—mais—e de novo—as duas horas que pensei três
viraram um pernoite. Não sei o que se me deu; virei ao avesso e marquei mais um
pernoite. Está fazendo quente. Um clima muito ameno para a estação. De novo
escrevendo a espera no pátio. Ele já mandou mensagem; poderei ir mais cedo. Percebeu
que tenho pedigree, ou não, tanto faz. Diz que vai ser uma noite maravilhosa, em que
vai me dar total atenção. Serei focalizado; pela primeira vez gostarei, porque aqui, nesta
casa, folgo e não folgo por não ser mais o centro. De volta à prima. Este caderno anda
em círculos. Esta já é a segunda ou terceira volta?

78
Escrevo em folha rosa a fim de simbolizar meu cio. Muitas pessoas passando;
gargalhadas e vozes de várias camadas. Absorvo a espera. Esqueço as pessoas em volta.
Tento fixar certos rostos, mas é tudo passageiro. Quero guardar minhas energias para
mais tarde. Está chegando a hora de por a máquina em ação. Desenrolando. Engraçado
essas pessoas todas não me dizerem nada. Para e pensa, estamos em mesmo sítio e não
tomamos parte em coisa alguma. Serenar, para depois me absorver. Pensei em si e me
esqueci. Tolo Enzo, e bobo!

O boy disse que não está mais atendendo para mim; só a alguns. Ele diz muitas
coisas, todas duvidosas. Quis saber o nome do motel do passado a que fomos; depois
que disse o nome, perguntei-lhe o porquê, e ele, nada, só pra saber. Óbvio que ele me
acha um estúpido; ele ganharia muito mais sendo sincero, e ainda teve a história da
saída com a mãe! É que ele não quer que entre em sua vida, e é o que mais desejo, para
fugir da minha. Perguntei se podia chamar o uber para ir, e ele me ignora; é que não
quer ficar perto de mim. Não tivesse tanto desapreço pela minha pessoa, não me
sujeitaria a tanta coisa. Mas como sou chorão, deixai que gema.

Já estou com ele. Faço sorriso. Ele está cagando no banheiro ao lado. Não quer
que demoremos. E nem gosta de fotos. Paguei adiantado. Invento para mim certas
cenas. Ele fica conversando com mulheres, combinando encontros enquanto está no
motel comigo. Essa é a dor pretendida? Ele não está nem aqui pra mim, e eu fico
boiando. O quê fui fazer? O corte da lâmina é menor que o corte da pena. E ele ainda
nem me beijou! E olha que ele falou que eu teria uma noite maravilhosa.

Estou vendo.

Passado o stress do primeiro momento, eis-me aqui, sentado em outra hidro


que não ligamos. Talvez nem ligaremos. ───Fui compensado das agruras de ontem.
No final da noite para nós ele tocou em meu ponto P com seu pênis e massageou. Fui à
abnegação total; gozei pelo ânus e quase que sai ejaculação. Não pensei em mais nada.
Agora ele dorme. Veremos no que dá. Quero mais. Ele fala que esse é o problema do ser
humano, que todos somos assim. Então também ele?

A dor nas costas de novo.

Gosto de ouvi-lo roncar; tentei gravar, mas temo não ter pego direito. Acordei
com o rosto um bocado vermelho. O que será? Examinei o local a fundo; seu pau tinha

79
umas manchas esbranquiçadas. Nada demais; chupei a valer e nem sei por que me
perco; as desrazões das situações é dentre tudo o que mais me excita. Fico com
expectativa pela manhã. Falta uma hora para ele acordar e escrevo obstinadamente.

Sei que o entorno importa tanto quanto dentro; sei que algumas feras rugem
antes de atacar; sei que meu amor só serve para mim; sei que talvez ele me espante; sei
que o susto prenuncia a queda; sei que antes de morrer terei um dia de sol, mesmo que
apenas em takes; mas o que fazer com tanto saber?

Vou deitar a seu lado, onde gosto de estar e esperar o que está para acontecer.
Haja o que houver, decidi não impor minhas vontades.

Veremos o que dá.

Deu muito prazer.

Esqueci até de mim.

Estou de volta à casa, e já não me importo. Chove; cai uma chuva rala, lavando
pecados para que voltem a refulgir; e não me doo por uma coisa, nem por cousa alguma.
Estou satisfeito. Bem satisfeito. Ele inclusive bancou o psicólogo pra mim. Me fez ver
minhas reclamações de nada—o chorão que sou—as horas de brinde que ganhei e os
minutos que viram anos transbordando para além de mim.

Fato de extrema importância para mudar uma vida de vez.

Pela primeira vez gozei dando.

Vale a pena.

Eu reclamava de ele conversar no whatsapp, marcando encontros, mas não


contei das vezes que me deixou ir antes do horário, os carinhos, as danças eróticas, as
gargalhadas gostosas; enfim, o bem que me tem feito! –E por isso não vou deixar—Li
trechos do meu caderno rosa para ele e ele ficou de cara como escrevo, como se ele me
devesse alguma explicação, alguma coisa que nem eu saberia dizer; a forma como cobro
de si atitudes que seriam de um marido, e ele fica imaginando eu lendo para minha
psicóloga, e ela deve ficar lá, tipo, e aí? Sabe, nada a ver. Como não há o que fazer
disso! Falou de minha extrema carência, e novamente que eu o sugo até à creatina. Fico
com remorso de vampiro e a face obsequiosa ao espelho.

80
Almoçando, repentinamente tirou uma placa que estava sobre a mesa. O que
está escrito na placa? Sugestões de como melhorar nosso atendimento ou reclamações,
mande SMS ou mensagem no whatsapp. Por quê? Eu queria saber se você presta
atenção nas coisas. Minha atenção é voltada às palavras; onde há algo escrito, eu leio.
Leio tudo. Amo ler. Tento ser escritor. Eu acho que escritor, quem vive desse negócio
de escrever não tem vida não. Sabe, só ficam lá, lendo pra ter ideias—nóh, ler, ler, ler.
Eles não têm tempo pra viver. Mal sabe ele que assim vive-se mil vidas, e mais. Mas
você não gosta de ler, então? Ler, pra quê? Eu sou descolado. Não preciso ler. Você já
viu eu lendo. Eu sei ler e tals; já até peguei alguns livros pra ler, mas nunca consegui
terminar um.

Ligamos a hidro; ficamos um pouco dentro; fizemos espuma—esperamos com


fome—foram três transas. Uma melhor que a outra e a última foi o transe final. Suguei
seu sêmen. E não bebi sequer uma gota! Não desta vez. Enquanto metíamos ele ofegava
na minha face e absorvi seu odor agridoce, essa essência inebriante! Quando estava
dormindo e roncando também, foi outro transporte.

Não tenho mais o que dizer, pois o prazer, aquilo que a gente julgamos como
gozo dá somente para sentir. Transmitir essas experiências é algo de outro nível, onde se
pode apenas tangenciar, sem jamais pegar de fato e reviver a sensação. Foi tão excelente
e intenso que me esqueci do logro da prima; sua fuga inesperada que tem posto meus
pais exasperados a fim de encontrá-la.

Que ela seja feliz!

Já não me importo.

Dizem que depois da euforia vem a depressão.

Eu digo que depois do prazer vem a ausência.

81
82
TERCEIRA PARTE:

A rapariga desnomeada

ato único

Tem que ver. Haver histórias. Houve uma que desbundou. Saiu de casa com as
tralhas nas costas. Igual jumento. Estava mais para vaca. Tão jovem e foi para desgosto
de ninguém. Seus desgostos contam de antes. Na saída da rua. Blitz. O que faz uma
menina nessa hora matutina vagando pelas ruas? –Eram cinco horas do dia errado− Ia
pescar. Não vai mais? Se me impedem... como ir? Vamos ali naquela cabina resolver
essa pendenga. Voltou meia hora depois. Lágrimas nos olhos. A menina tem passe livre.
Deixem-na passar. E foi. A fúria já não a Feria tanto assim. Pensava em uma prosa de
sua poeta preferida e refletia. A mulher não abaixa ou sobe de valor conforme a bolsa de
valores. Na verdade, a mulher não tem valor. Sexo frágil qual o quê! Sexo nulo. E, no
entanto, tão cobiçado. Pé ante pé. É assim a vida adulta? Bruscamente sentiu seu corpo
mulher. Da infância para a vida adulta em meia hora. Se bem que as formas aqui e ali já
despontassem índices da mulher que já era, de alguma forma. A forma ficava melhor
nos livros. Um poema é uma coisa gráfica. Lembrou-se. Lia os grandes desde os sete. E
já sabia quais os que importavam de verdade. Sua afeição se incidia mais sobre
Rimbaud, o rapaz de seus sonhos. Tocava seu corpo e seus olhos brilhavam. Em transe.
As primeiras descobertas. Mas agora, aqui. Seu corpo sujo de todos os sonhos. Crescia
uma puta de polícia. Ah vida. Suspirou. Pensou voltar, mas para o quê? A estrela chorou
rosa. Viu uma rosa na rua de pedregulhos em que estava. Em sua volta, entulhos. Mas
ali, envolta de um gramado mínimo uma rosa furava o sujo, o nojo, e vinha para encher
de beleza o caos. Lembrava um poema de Drummond. A flor que furou o asfalto.
Contra o nojo, contra a náusea. Assimilava. Olhos grandes para a grande beleza. Tomou
coragem, não estava de todo errada, e prosseguiu.

Mulher. Todos os problemas e mais alguns que nem se pode imaginar neste
apartamento de janelas quebradas. Alguém poderia invadir... só que não! Ninguém quer
roubar a pobreza que possuímos. É como uma possessão. Ritos macabros. Sou escritora.
Por carma. Porque não posso fazer outra coisa, a não ser escrever essas memórias
puídas da garota que eu era, já mulher naquela época. E envelhecida! Leiam se forem
capazes. Ou não, taquem ao fogo; tanto faz. Somar as perdas. Fazer um inventário

83
talvez. Já desisti de apreender o é da coisa. Captar o que não sei que seja real. Assim
assim. Aquela menina. Preciso juntar os fios, fazer conexões.

E pegou um micro-ônibus chamado Conexão que a levou à rodoviária. Marx que dizia
que o capital nos aprisiona, devora e mata? Amava história, mas não guardava bem.
Esmolou. Mesmo assim não conseguia e viu uns ciganos para lá da saída. Juntou-se a
eles. Bebeu fumou drogou. Vertigens. Pensou em se matar. Mas ali,
naquele grupo disforme, embora coeso na desunião, porque deveria ser no sul do país
conheceu um garoto louro de sua idade. Ao menos pensou. Travaram um colóquio.
Pensava meu Rimbaud sem estudos! Teu nome? Rafael. Olha só, mais uma prova!
Começa com R. É meu Rimbaud. E o teu? Tamiris, menti. Quisera começar de novo.
Botei meus documentos ao fogo. Estava limpa, se bem que já um pouco encardida. Da
onde vens, guria? Da rua. E tu? Também. Teus pais estão entre nós? Morreram e vim
para cá. E os teus? Também. Tu, pareces tão limpinho. Os outros, não. Chegaste há
pouco? Nada. É que tem uma bica lá no boqueral e vou lá me lavar todos os dias. Meus
irmãos e pais não são chegados ao banho. Que esplêndido! Vocês todos formam uma
família!? Para viver é preciso. Para viver. E será que tem espaço para mais uma? Claro!
Tu podes ser minha mulher! E riu. Riram. Só que ela baixou os olhos. Ele já a penetrava
com o olhar. Estava claro o que iria acontecer, mas não ali, não já. Os pais da trupe, um
casal mais velho, batizaram-na e abençoaram a entrada da filha mais nova. Depois
caíram na bebedeira. Esses ciganos não eram como os outros mendigos. Parecia haver
certa nobreza em nada ter. Viviam de restos, e não roubavam, não matavam. Isso não. A
festa celebração varou a noite e incendiou o dia; arrefecendo somente com o final da
tarde. Acordaram podres e cansados quase no final da tarde do dia seguinte. Rafael,
logo Rafa logo simplesmente R. falou à menina moça mulher, já Tamis. Vamos tomar
banho!? Ela o olhou de soslaio, duvidosa. Isso é um convite? Bah, é sim! Os outros não
vão. Depois de um dia de vadeação é bem bom um banho para despertar pra vida. Ah,
Rafa, tens razão. E foram. Andaram lado a lado. Quase mãos dadas. Erraram por
bastante tempo ruas para si desconhecidas. Ele explicava. Foram mato adentro uma
cachoeira da qual nunca ouvira falar. Quando chegou, não se arrependeu. A beleza
indescritível desse vale. Água cristalina. Flores, parecia um jardim verdejante de algum
Éden perdido. Nossa. Como pode? Moro nesta cidade há um ano e nunca. Essa
solicitude complacente. Por quê a família não se muda para cá? É área protegida.
Poderiam nos ver. Um ou dois por alguns instantes, tudo bem. Mas onze? Agora doze,

84
acampados aqui? De mais a mais, não teríamos como vender nosso artesanato. E eles
não ligam lá muito pra banho. Mas tu, minha flor! Beijou seus lábios, no que foi
correspondido, apesar de uma breve surpresa. Não esperava. Foi só um momento. Ele
tirou as roupas e pulou nas águas. Vem! Vamos! Ela também tirou, mas não ficou nua.
Ficou de combinação. Envergonhava seu corpo nu. Não estamos indo rápido demais?
Tu achas? A vida passa tão veloz. Amanhã ou hoje podemos estar mortos. Essa
concepção Hedonista de vida não sei não. Olha, eu gosto de ti. Deveras. E acho que não
me és indiferente. Olhou longamente seus olhos indevassáveis, penetrando-a. Eu estou
pronto para ti. E tu, estás pronta para mim? Fez que sim com a cabeça e aguardou o que
estava por vir.

Ele pega sua mão, acaricia, e põe sobre seu membro duro e quente, apesar da água. Uma
tocha acesa dentro do lago. Ela, por sua vez, acaricia esse membro quente e duro e
grande. Beijam-se demorado. Ele tira sua calcinha, mergulha, procurando seu sexo,
beija-o, como o polícia não tinha feito.
Não queria lembrar-se do polícia e o apagou da memória. Vivia o presente em sua
felicidade de presente.

Quando emergiu, ela retribui o gesto, não sem antes dizer agora é minha vez. Volta à
superfície quando está quase sem fôlego. Beijam-se novamente, e penetram-se. Ele
dentro dela. Ela, aberta a ele. Suspiram o gozo mútuo. Ficam abraçados.
Um lágrima cai de seu olho, salgada. Já há quanto tempo? Alguns momentos seriam
eternos. Esse seria um deles. Aquela tarde. Inocência felicidade o gozo. Por quê sempre
há um quadrado de coisas morrendo e nós não nos apercebemos? Ou só quando é muito
tarde? Eu quis viver aquela tarde todos os dias desde então. Quero, quero demais, mas
quando a gente sabe da impossibilidade, desiste. Esse mesma impossibilidade é o que
torna a vida às vezes impossível. Somente com o tempo é possível saber, pois que já
sabia de certas coisas na teoria, mas saber na prática é completamente diferente.
Somente a prática aflora à consciência. A isso chamo experiência. E a experiência só
vem com a soma dos dias.

Subitamente mergulha. Quando volta à superfície, ele joga água na minha cara; no que
retribuo. Começamos a brincar, até que ficava de noite. Melhor irmos. Uma pena. A
tarde devia ser eterna! Estava tão bom! Mas a tarde é eterna, guria de pouca fé. É só
fechar os olhos e lembrar tudo que acontece de novo. Hum, sabichão! Rimos. É lindo
esse meu Rimbaud. Vamos. Voltaremos outros dias. Amanhã, não. Amanhã será dia de
ganhar a vida. Juntar para gastar. Dessa vez íamos mãos dadas. Pensava meu lar
desfeito se refazia enquanto caminhavam mãos dadas de volta para lugar nenhum. Já
estiveste com muitos homens? Ela riu, os garotos. Hum, só uns mil. Ele enrubesceu.

85
Brincadeirinha, meu bem, foste o primeiro. Mas não eras virgem! Eu senti. Parou. Ele
parou. Ela o olhou nos olhos, entrando-lhe. Sendo ele nela. Aquilo lá foi horrível e
nojento. Só aconteceu lá e está liquidado. Uma única vez do horror para que não
perecesse de vez. Aqui. Contigo. Me desvirginaste para a grande beleza das coisas, que
crescem espreitando uma beleza ainda maior. Me enches de esperança, Rafa. Vá lá,
calma, ele brincou. Abraçam-se ternamente o beijo longo sucedido. Voltam a caminhar
de volta a lugar nenhum. Pensava em peixes no aquário, que de volta ao mar, de onde
saíam, sentem o eterno e não sabem o que fazer com aquilo. Absolutos. Sensações
vagas repercutiram, então.
Lembrou-se vagamente de uma infância perdida. O calor materno, lá longe. As leituras
de um pai, escritor e intelectual. O mundo tomando formas. De repente um acidente. E
tudo desmoronou. Estava ali, finalmente se refazendo. Casada? Acho que sim, R. disse
que seria sua mulher e era. Casada. O narrador pai, onde estaria? Medro à sua sombra.
Uma pontada de medo no final da tarde. Só por uns momentos e passa. Estaria ele num
céu? É o que dita a vida das gentes? Uma escrita de percalços e revelações. A revelação
do sublime. Será? E volta a caminhar repleta do que não sabe bem o que é. Era, não
obstante, e naquele momento. Era de noite e o frio. Frio quente entre nós. Carícias.
Volta e meia param para se beijar. São assim também as palavras. Uma encosta na outra
e se beijam. Esfregam-se. Às vezes sai faísca. Às vezes um corte. Outras se repelem e
não se dão. Repetem os relacionamentos humanos. Nossas palavras todas no ar
acasalando-se. A cena não ousa prosseguir. R, antes Rafa, antes Rimbaud, antes Rafael,
antes o quê? Resolveu passar por caminhos insólitos, dando assim maior volta.

O tempo se faz diverso. O passado e o presente se confundem. Não ansiávamos o


futuro. Presente em sua condição de presente toma a vez do passado. Momentos de
maior intensidade e importância continuam, aqui, acontecendo. Por isso são presente.
Momentos instantes de delícia. Inclusive sujeito, a outra, ela que sou eu. Às vezes tomo
sua vez, quando a sinto mais intensa. Outras, me distancio, porque se faz muito
diferente do que sou. Chegamos de volta a lugar nenhum. Enfim. Foi o horror. O horror
não está na ordem do dizível. A ―família‖, só víamos braços cruzados, cenhos os mais
aterrorizantes. Vocês estão mancomunados?! Oi? É isso mesmo que eu disse! A polícia
veio procurar os dois, se bem que em horas diferentes. Tu, Rafael, ou seria Caim? O
polícia falou, latrocínio! Paz, pai. Eu sou inocente. E de mais a mais, paguei por esse
crime. Fiquei na Febem por um ano. Aprendendo ladroagem, né? Qual o seu nome de
verdade? O polícia falou que seria Caio. E tu ainda estás sendo procurado por assalto a
carros. Isso foi antes, pai. O que disseste a eles? Que nós não conhecemos vocês. Nunca
te vimos. Mantemos o que dissemos. Não conhecemos vocês. Não vimos nunca vocês!

86
Fora daqui! Peguem suas tralhas e sumam! Expulsos pelo bem da ordem e da moral! Já
disse! Nós não roubamos! Não matamos! Este é o lema. Enquanto dizia essas palavras
mortíferas, juntaram o pouco que tinham e foram-se de lugar nenhum para o nada. Ela
teria se enganado? Em vez de juntar-se a Rimbaud, estava amasiada com Caim? Seria
errante?! Neste instante ela o seguia, enquanto ele vituperava o mundo. Sentia o perigo
de estar ali. Ao lado de um suposto assassino, mas gostava dele e não sabia o que fazer.
Não julgava. Cada um teria sua história, seus motivos; e ele falou que era inocente.
Poderia sê-lo? Tentava não pensar nisso. Seguia-o. De repente ele parou; olhou-a
longamente. Mas enfim, por quê a polícia te procurava? O que fizeste? Não faço ideia,
atropelava-se. Talvez porque fugi de casa. Não entendo porque deram parte, mentia
obliquamente. Intuía que talvez fosse por causa da tutela, da pensão, mas não queria
deixar transparecer que viera de família rica. Assim calava esse detalhe. Temia-o um
pouco. Havia aquele misto de temor e desejo. Gostava do perigo; até imbricar-se a
ponto de não poder sair. Ali, estava enredada. Antes de sairmos o pai falou que
estávamos perdidos, que eu te perdera, que há polícias em todas as saídas da cidade,
procurando-nos, que se já não tivéssemos saído, não sairíamos mais. Por quê? Ela o
olhou, atônita. Devo ser perigoso, ele riu de escárnio. Olha, minha flor, eu sei que não
será fácil! Mas se ficarmos, rapidamente nos descobrem. Não vejo outra saída. Não
temos dinheiro, nem documentos e esses porcos fecharam a cidade. Tu terás que fazer o
mesmo que fizeste naquela vez do horror. Sinto ciúmes. E sei que é horrível dizer isto,
mas de que outro modo poderíamos fazer? Ai, céus, ele está me agenciando. Era esse o
futuro? A puta e o cafetão? E não queria voltar. Não para aquilo, se fosse para meus
pais, nem teria fugido. Não encontrava outra solução. Pensemos. Não queria pensar.
Queria sumir. Não tinham tempo. Sentia, uma vaca indo para o matadouro! E tão
jovem! No entanto, quais suas opções? Isso ou isso. Voltar não era opção. Não para
àquilo. Às vezes titubeava, mas vai. Sempre em frente. Um pé ante o outro. Um depois
o outro. Já não era uma fuga. Era toda sua vida. Estaria marcada, afinal, sem remissão,
quais quer que fossem seus gestos. E esse Rimbaud, hein? Quem diria? Caim? Bem que
dissera, eu é um outro. Rimbaud, Caim, Rafael, Caio, tudo o mesmo no final das contas.
Rimbaud também teria matado em terras de África e só não o fez em França por medo
do cárcere. Talvez até tenha. Existiria o crime perfeito? Rimbaud? Um cretino, apesar
de poeta. Seriam os poetas ordinários, como classe irrevogável? Não saberia dizer.
Ainda aprazível o contato com esse Caim. De mais a mais (bordão seu), todos os
homens deveriam ser assim. Inclusive o pai? O narrador pai, não. Apenas descrente de

87
sua existência. Tâmis, minha bela, não temos todo o tempo do mundo. O circo está se
fechando. O cerco? Não, o circo mesmo. Não sente que isso é uma palhaçada? De mais
a mais, se nos pegam, eu pego um ano de Febem e fico livre e caio na rua. Pra quê então
todo esse alarde? A não ser que a menina aqui esconde o quê? Ai, Caio, caio nesse
desfiladeiro contigo. O que mais queres? A verdade. A verdade é estarmos juntos, ou
queres que nos apartemos? Quero que partamos. Juntos! Então a beijou; enfiou a mão
em seu short jeans por dentro da calcinha; acaricia

seus lábios vaginais, como só ele sabe fazer, dando-lhe maior prazer. Agora, é agora.
Encosta-a numa parede de um prédio abandonado. Vem. Entramos no prédio no meio
do amasso já sem saber quem seria. Inunda-me o prazer dessas horas. Escorrem pelos
dedos. Os seus. Produzem-me atônita. Sem fôlego. Fôlego. Caio puxando Caio para
cima de mim. Ele penetra com seu ardor selvagem. Então, já revirada de olhos, gozamos
mutuamente os braços distendidos. Fera para isto!
Sabe, fiquei pensando se não roubei demais. Aquela menina, talvez tenha sido sacana.
Esclarecimento didático: Há o narrador pai, que pensa que controla e escreve. Há
minha pessoa, que escreve as memórias puídas daquela menina, que era eu. A outra. E
há a menina, que às vezes toma lugar com seus silvos e abismos. Três instâncias
narrativas do eu, entrelaçando-se. Impossível saber às vezes quem. Já o autor? Se virem,
se puderem. Apreender o tempo... isso já é outra história.

Ali, caída e gozada e atônita, encontrava-se ausente, sendo completa em seus braços.
Foi Rimbaud, ou melhor, Rafa, ou melhor, Rafael, ou melhor, Caim, ou melhor, Caio,
quem a trouxe para o real, depois de havê-la tirado. Então, meu bem, decidiste?
Confesso meu ciúme e pesar, mas não vejo outro modo. Não podemos simplesmente
ficar aqui? Nada é simples. Tu sabes, se não quiseres, não te obrigo. Me entrego e nos
apartamos. De mais a mais, um ano na FEBEM não é tão custoso, e, posso de quebra
aprender mais alguns truques. ... Não sejas bobo. Queria ficar aqui! Contigo! Vamos lá,
então! Cadê o matadouro!? Minha lady, siga-me. Tem certeza que isso dá certo? É
quase 100%. Gostava cada vez mais de sexo com seu Caim. Enquanto fodiam, ele a
ensinava, como se estivesse dando aula. Inclusive quanto a sexo oral. Pensou por alguns
fragmentos de instantes, será que ele? Contudo, calava e tinha um modo ímpar de
apagar pensamentos e acontecimentos, como se nunca tivessem tido existência. De
modo que esses sumiram. Seguiram, a vaca e seu condutor. Quando se aproximaram da
rodovia que dava para a saída da cidade, viram a blitz e a garota reconheceu um dos
polícias. É ele, Caio. Ele, quem? O polícia do horror! Seus olhos brilharam; não se sabe
ao certo de quê? Deslumbrava a chance mais perto? Seria ódio, por ter sido o primeiro?
Não saberia dizer. Os acontecimentos se desenrolavam, e não tinha muito controle sobre
eles. Melhor chamar a atenção só deste; depois; se ele concordar, chama os outros. O
quê!? Vou ter que dar para o batalhão inteiro!? São só cinco polícias. Se não distraíres
todos, como passaria? Não tens pena de mim? Claro, minha delícia. Passou a mão em
sua face. Mas se não fizermos assim, teremos que nos separar. Queres isto? Parou de
relutar, pensou por um momento deixá-lo; denunciá-lo. A raiva. Mas se conteve.

88
Jogaram umas pedras perto do polícia, que falou para os outros que iria ver o que
acontecia. Entrou no mato. Nenhum som, a despeito dos pássaros e outros bichos.
Minha donzela, és tu? Podemos conversar! Não te levarei! Se fores uma boa menina te
deixo passar. Caio a empurrou. Então, sabia que não te esquecerias de mim. Fiz questão
de aqui ter para ver se já havias partido. Gozo saber que ainda não. Pegou-a pelo braço.
Ela, então, mordida de raiva e despeito, resolve fazer ciúmes no outro. Beija-o e afaga
seu pênis. Nenhuma reação. Silêncio. Vamos resolver isso aqui mesmo? Não, até
poderíamos, mas não gosto do mato. Os outros me deixariam passar? Se cederes a eles...
Hum, não vejo a hora. Ah, minha putinha! E pegou em seu pênis. Vamos, então? Claro,
eu te sigo. Ela olhou para trás, o silêncio. Pegou a guria! Ela quer passar! Mas nosso
trabalho é capturá-la. Ela gentilmente vai nos fazer uns favores. Gostei! Vamos lá pra
cabina! Mas alguém tem que ficar aqui por causa do guri. Quê ficar aqui nada! Esse daí
já deve estar em outro estado... Se tu dizes. Estou louco pra experimentá-la. Foram
todos com a moça guria quase mulher pra cabina. Fecharam-na. Ficaram lá por quase
duas horas e despediram-na. Ela saiu mulher, dona de seu nariz. Se bem que um pouco
ninfomaníaca. Andou três quilômetros, até que ouviu seu nome de guerra. Tâmis! Era o
Caio. Fingi não vê-lo e prossegui. Ele foi ao meu encalço, pegou-me pela mão, puxou e
me beijou, me levando para o mato. De repente, porque tudo acontece assim meio de
repente, cuspiu. Isso é porra!? Guardei um pouco para ti. E ri. Me deu um tapa na cara.
Bah, pensei que gostasses; não era isso o que mais queria, então? Vem me dar mais um
beijo. Deu um murro nela, que caiu, inerte. Lembrava-se de uma das canções de que
mais gostava. Kiss with Feist is better than non. Virava uma canção. A puta e seu
cafetão. Sentia o gosto forte e um pouco mordaz. Desfazia-se ali, como as flores da
primavera caindo e murchando no outono. O verão foi um piscar de olhos. E já era
inverno. Pensou, em breve primavera, poderia? Ficou ali no chão. A dor extrema. Não
sabia o que fazer, aguardava. O rufião mirim começou a chorar. Essas lágrimas seriam
verdade? Não entendia muito bem o conceito de verdade. Não parou por aí. Nunca para,
bem dizer da verdade. Como não obteve reação da outra, que sou eu, controlada por não
sei o que seja, será? De qualquer modo, não obtendo resposta, ele prosseguiu, teatro?
Abraçou-a, deitando no chão, pediu desculpas. Nunca mais farei isto! Eu juro! Me
deixas louco, guria! O ciúme! Acaba comigo! Perdão! E chorava! Mas foste tu quem
pediste! Era o único jeito! Então por que te zangas? Saber que tu fazes é uma coisa. Dá
até pra controlar. Mas quando tu jogas na minha cara! Fiquei louco. Desculpa, meu
bem. Senti até remorso. Foi muito convincente. Ela então se virou para ele, olhando-o
nos olhos; no que foi correspondida. Ali, naquele breve instante viu nos olhos dele
ternura e compaixão. Não poderia ter se enganado. Entretanto, alguma coisa se partira.
Seria aos cacos? Não entendia bem. De mais a mais—pegava o jeito lá dele—os
homens seriam assim. Ô raça! De olho roxo; o quê vamos fazer? Bah, tu com este olho
roxo. Não sei ainda. Vamos fazer as pazes primeiro para que não haja nenhum rancor
entre nós e passou as mãos em suas pernas, que se abriram. Isso ele sabia como
ninguém. E ali, na floresta, dia claro, é o prazer. Vem. Foi. Para todo meu prazer. Nos
beijamos; ele vem por cima de mim, a mão já no meu sexo, me fazendo revirar os olhos.
Ele tira seu pênis duro e quente e grande e chupo longamente. Depois ele tira minha
calcinha e me penetra o coração arfando. Esse o meu homem. E como é bom. Como
representar o prazer que tenho nesse ato? Um soco no olho, como transmitir isso? Sua
dor? Aporias da representação... tocar o intangível e fazê-lo balbuciar. Cria-se então o
prazer, o soco. Alguém sente a mulher de olho roxo gemendo o prazer? Rimbaud depois
Rafael depois Rafa depois Caio depois Caim depois o quê? escuta seus urros e gemidos
e vê suas caretas de gozo. A menina agora já mulher fizera orgia com cinco homens,
mas ali, transando com este seu homem, fazia sexo simultaneamente com mil, de uma

89
vez. Mil penetrando-a. Finda o gozo, prostram-se. Ela percebe pela primeira vez que ele
não sabe o que fazer. Ela aguardou.
Ele procura em si seus dotes. Te importas de entrar no crime? Já sou foragida. Só não
mato. Apetecia-lhe a ideia da criminalidade. Todavia, não sabia de fato o que era. Não a
sentira na pele ainda, pulsando. Uma coisa eram os livros, a televisão. Outra, a vida nua
e crua. Precisamos de um carro. Vais atrair um e roubaremos. Temos de sair daqui,
senão estaremos liquidados. Seria a Isca? O único jeito. Meus caros, navegar era
preciso. Mas o que fazer, se o velame fugia? Sopra fúria. A fúria da vontade. O primeiro
carro que parou era de família. Inviável para a trama. Foi dispensado. Pensaram que a
garota estava drogada e foram embora, aliviados. O segundo já deu sorte, ao menos para
eles. O motorista era um velhinho de oclinhos. Deu até pena. Ali, na mata! Meu
irmãozinho está agarrado em farpas. Ajuda a tirar, por favor. Vamos lá, então. Não
tenho mais coragem. A mata é selvagem. Pode levar a chave. Ficarei aqui quietinha.
Cinco minutos depois volta Caio com as chaves, sorrindo. Mais fácil que pegar doce de
criança. Ah, minha cara, os velhos são crianças perdidas. Ficarás assim também. Ou
moro antes. Mas vamos, gatinha manhosa! Sabes dirigir essa coisa? Claro, não tenhas
medo. Depois de tudo que passamos, morrer num acidente automobilístico seria piada.
Calma, donzela. Está comigo, está com deus. Ela riu duvidosa. Ele riu valente. Pegaram
o carro e foram. Ele acelerou enquanto ela punha o cinto. Não esquenta, delícia, não
precisa por o cinto. Se passarmos numa blitz, já era. Não é por causa disso. Relaxa, eu
sou o Senna da estrada! E como foi que ele morreu? Bah, vai saber! Ela virou o rosto,
cansada. Ele passou a mão em suas pernas, que desta vez não se abriram. O que estava
fazendo de sua vida? Que vida? Pensou amargamente. Pensava tudo desfeito. Aquele
cara ao seu lado, ao menos. Já não sabia mais nada. Ia a 120 sem direção certa.
Passaram por uma cidadezinha miúda. Reduziu a velocidade. Estamos a dois passos do
paraíso, ele cantou. Ela pensou, esta terra é definitivamente o inferno. Vamos parar na
casa de uns conhecidos, que me devem favores. Tu vais tomar um café no bar da
esquina enquanto eu resolvo a situação. Põe na conta de Charles ô Hipócrita. Quantos
nomes ele teria? Ah, leitor, não saber o que se faz. A ignorância seria uma arma secreta.
Ou uma dádiva sagrada. O gato escaldado sai de fininho e se salva, dando o salto sem
olhar para os lados. Para trás, para trás. Às vezes atrás pode vir um caminhão. Olhos nas
costas. Enquanto tomava o café no bar da esquina ouviu o noticiário. Corpo é
encontrado em pedacinhos perto da rodovia. Não se sabe ainda de quem é. A perícia
pretende recompor o cadáver dentro de alguns dias. Tudo o que se sabe é que se trataria

90
de um homem idoso. A mulher mordeu a língua. Será? Não poderia ser. E, no entanto, o
fato estava ali, suspenso no ar. Tentou apagar a notícia, mas de repente, porque tudo
acontecia assim mesmo meio de repente—a notícia ainda pela metade do delete—outra,
o polícia que atende pelo nome de Pedro Coelho foi morto em serviço e seu corpo foi
encontrado em pedaços dentro de uma caixa preta perto do cerco que estaria sendo
montando com mais quatro polícias, a fim de encontrar a menor desaparecida e capturar
o menor foragido, mais conhecido como Degolinha. Não se sabe ao certo seu nome,
pois possui inúmeras identidades; e não se chegou ainda à sua origem. Há suspeitas de
que os crimes estariam interligados. Virou notícia. Viraram.

Era isso o que ele queria? Uma trama policial. Será isso o que o excita? Ah, meu rapaz
raro. Estariam assim tão próximos? Ele e Caim? Todos interligados? Haveria mais?
Sim, provavelmente. Pensei em Nero e rapidamente esqueço. Esse menino, tão jovem
assim. Só um ano mais velho. O que o levaria? Qual a sua infância? Talvez pior que a
minha. São os atos. Engraçado como são os atos o que fica. O que está por trás não
transparece. De repente me preocupava minha face ao espelho. O que os outros veriam?
Bela, apesar, e talvez por causa, do olho roxo. Esse mesmo olho roxo que consterna os
transeuntes. Só um pouco de piedade? De repente senti pena dessa menina. Tão jovem e
já enredada na criminalidade. Pior, amante de um serial killer? Não sabia, e nem teve
tempo de, o quê pensar? Um de seus Passatempos prediletos. Eis que entra Caim, Caio,
ou seja lá o que for, no bar, cumprimentando o dono e puxando-a pelo braço. Entrou
valente, o guri virara um homem, destemido. Pra quê essa pressa? No carro! Obedeceu,
sem pestanejar. No carro, acelerou. Pôs a mão em sua perna. Abre. Abriram-se. Ele
enfiou a mão em seus lábios vaginais, esquentando. Nisso, ficou molhada. Gostas, né?
Safada! Foste tu quem me acostumaste. Riram. Encostou o carro. Estavam na
autoestrada. Ele tira o pau pra fora, quente e duro e grande. Chupa. Eu devoro,
enlouquecida. Monto nele, e cavalgo, amazona de mim. Não entendia essas coisas
fisiológicas. Apesar dos crimes, do horror que tomava forma, estava excitada e gozava
em seu pênis. Depois que gozou, ele abraçou-a languidamente. Não entendia mais nada
daquele garoto. Beijaram-se profundamente, adentrando uma caverna não explorada.
Ele a pôs de volta a seu assento; colocou o cinto delicadamente. Sorriu, manhoso. Esta
vida, um precihospício. Precioso? Sim, ele era seu homem, apesar de brutal. Deves ter
visto o jornal. Sabes do que me acusam... sou inocente. Mas o lance é o seguinte: peguei
dinheiro. Vou pra Argentina. Cruzar a fronteira por vias não ortodoxas. Lá, já tratei com
uns caras. Pego um jatinho e vou pra Europa. Começar do zero. Vens comigo? Ou
ficas? Posso te deixar no caminho. E se te pegam? Bah, é um jogo. De mais a mais, se
me pegam, um ano na FEBEM e SUS! Saio livre e de ficha limpa. O que me dizes,
guria? Atenção na tensão. Uma coisa é o corpo, a outra, a mente. A razão. Que razão o
quê? Tudo irracional! Não? Não quero ser bio. Conta essa história apenas como pode,
apenas como consegue. Cheia de saltos e lacunas. Não entendo como funciona o próprio
corpo. Nunca fui boa em geografia. A mente diz uma coisa o corpo outra. Por quê esse
descompasso? Vamos, minha ladyday. O tempo urge. E a caravana, a caravana não
pode parar. Olhou-o. Conhecia Billie Holliday? Como? Nos olhos a esperança da
grande beleza. Talvez fosse mesmo inocente e gostasse de fugas pirotécnicas. De mais a
mais... –riu, pegara definitivamente o jeito lá dele—estava fugindo também. Seriam os
fugitivos? Por quê ris, guria? Nada de mais. Qual a canção de que mais gosta da Billie?

91
Bah, é uma que diz assim; e cantou. There ain’t nothing I can do or nothing I can say.
Cantei também. Cantamos. That folks don’t criticize me, but I’m goingto do Just as I
want to, anyway. Nessas ocasiões, esquecia de tudo. Chegaram no refrão-título ain’t
nobody business if I do. É este o título, mydear! Bah, é mesmo. Não sabia que sabias
English. Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonhas vossa vã filosofia, ó criatura
de beleza rara. Riram. Shakespeare também! O que era aquele guri? Voltava a ser seu
Rimbaud. Vou contigo, guri! Para o céu ou para o inferno. Sabes, né, estamos descendo.
De mais a mais. Descendo para subir. E não falava em inferno. Falava de um outro pai
mais ao norte. As praias de Natal. Conheces? Não. Pois é pra lá que vamos. Águas
límpidas para um destino turvo. Toda descida para uma subida maior. Decolamos, já
nesse carro. Sabias? Em todo não há um sim maior relampejando. Não. Então tu sabes.
Nesse não que dissestes gravitam todos os outros sins que puderes imaginar e outros
mais ainda. Ali, a seu lado, aquela rapariga desnomeada, que botara o nome ao fogo, se
iludia? Achava refeito seu elo perdido. Fico considerando se conto o resto. Se contei
demais. Mais palavras escapando e eu sem controle. A biografia seria ótima se parasse
por aqui. Os dois dentro do carro para a viagem sem fim. Mas nunca foi tão simples,
nunca é. De repente porque tudo acontece assim meio de repente, uma Blitz. São
muitos, senão pararia o carro. Acelerou e furou o cerco. Alguns polícias atiram, outros
seguem a carro. O presente da ação. De repente, e isso foi mesmo de repente. Um piscar
de olhos. Mais viaturas a nosso encalço. Adrenalina. Vem outra e bate em nós pelo lado,
fazendo o carro girar e ele é obrigado a parar.
Sai do carro puxando a garota que era eu e põe
uma arma em sua cabeça. Muito quietinhos aí, seus polícias de uma figa! Qualquer
deslize e estouro os miolos dela. Suou. O pinto dele duro. Ou seria outra arma? Eu
quero um carro, senão eu mato a guria. Cadê a chave? É aquele ali, ó. Calma. Tudo
correrá bem, mas a moça tem de sair intocada. Eu entoco ela aonde eu quiser. O negócio
vai ocorrer da seguinte maneira: um de vocês vem desarmado comigo, os outros ficam.
Quando chegar ao local que escolhi, deixo a moça e o polícia lá e me mando. Eu vou
contigo, então. O polícia jogou sua arma ao chão e foi junto no carro. Tudo sobre
controle. A vida da menina é o mais importante. Ele franziu o cenho sem entender. Não
tinha tempo para descobrir e foram. Depois de andar alguns quilômetros, Caio para o
carro. Ele sai com a guria e o polícia sai pela outra porta. Num breve instante o polícia
empurrou a menina e desarma o guri, mas então esse tira um facão e fura o polícia,
que cai, inerte. O menino começa a picotar o homem morto todo.
Cabeça, estômago, sai intestino. Um verdadeiro banho de sangue. Ela treme, mas pega a
arma que estava no chão e a esconde em si. Então, não se sabe como, as viaturas
apareceram. Os polícias saindo do carro, Caio vai em direção da rapariga que, assim que
percebe, saca a arma. Meu bem, vais ficar contra mim? Somos parceiros, não te
lembras? Ela mira a arma. Ele prossegue. Eu nunca te vi.
E atira. Os polícias atentos. Ele cai, inerte. Começa a estrebuchar. Ela larga a arma.
Vocês não chamarão socorro? Tu o queres salvar? Não é isso; é que geralmente. Não
chamaremos socorro. Se ele se salva, pega um pouco de FEBEM e depois sai pra
picotar ainda mais os outros. E depois que ele matou um polícia, aí é que não faremos
nada. Vai apodrecer mesmo. Saiu nos jornais: assassinato em legítima defesa pela

92
menor. Assassina. Assassina. Uiiiiiiiiiiii tinha pesadelos na madrugada e acordava,
suada. Matou seu amante uuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu, porém, ninguém sabia que eram
amantes... era uma criminosa. Matara seu cônjuge. Uuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu
não havia casado lá entre os ciganos? De mais a mais –havia pego seu jeito para
sempre?—a mulher carrega a morte nas entranhas. E só se arrependia quando lembrava
de suas mãos em seu corpo; o pênis lá dele. A mulher enlouquecia na busca do falo.
Falo, tudo se resumiria a isso? Fechava os olhos, enfiava a mão em si e se lembrava. –A
tarde no lago acontecia?—só que não! O que não a impedia de revirar os olhos com eles
fechados e se lambuzar. O liquido viscoso, quente como o pênis lá dele. Saiu na Veja:
menor de família rica, desaparecida durante um ano, teria sido sequestrada por Cleyton
Vazanno. O sequestro terminara em perseguição policial, quando então a refém teria
assassinado em legítima defesa seu algoz. Nostalgia desse um ano, aí vem junto a dor.
O algoz e a saudade dão inevitavelmente em nostalgia. Os segundos dos dias não cabem
nas páginas de um relato. Só se apreende pedaços partidos.

Eles fizeram casinha. Dormiram juntos e blábláblá. Mas isso. Isso se perdeu. Isso não
cabe nas páginas.
Queres liberdade? Queres alforria? Os tutores eram implacáveis. Pois dar-te-emos a
emancipação mediante a concessão de tua fortuna! Já que fugiste na miséria, não te
importarás de voltar a ela. É o melhor para ti. Ou vamos lá em cima tirar umas fotos? O
casal inescrupuloso. Obrigavam-na a tirar fotos nua, em poses nojentas e com comidas
repugnantes. Não sou mais boba. Virei mulher. Hum, a rapariga deu na viagem! Virou
mocinha e agora acha que está com a bola! Eu vou aos jornais, se me tocarem!
Denuncio e chamo a polícia! Ahahahahahahaha quem vai acreditar em ti? Pirralha,
vamos lá logo! O tutor a puxou pelo braço. Nesse instante polícias e jornalistas
adentram a sala. Novamente, capa de jornais e revistas. Menor milionária era abusada
por seus tutores e fugiu; nesta fuga caíra nas mãos do sequestrador Cleyton Dias. O
julgamento se arrastava por semanas; somente o flagrante não foi o suficiente, mas
enfim, em uma das buscas foi achado o caderno rosa de Enzo Bertô, prova conclusiva
desses abusos praticados pelos ex-tutores. A rapariga desnomeada leu esse caderno
várias vezes, ficando assim mais próxima do primo. Graças a ela, Enzo foi absolvido da
prisão por cumplicidade. As grandes narrativas não são mais possíveis. E se escreve.
Essa a história mínima de uma rapariga desnomeada. Quisera mata-la. Já. E, no entanto,
narrar mesmo essa impossibilidade. Eu não conheço mais que os outros essas mulheres.

93
Na verdade, nem elas se conhecem. Na verdade, em verdade, alguém se conhece? Não é
apenas o outro que é incognoscível. Eu incognoscível absoluto. E pronto. A rapariga
não imaginava assassinar seu amante e esposo. Nem a distinta dama que narra a
rapariga que era. E em absoluto o outro. Quem outro? Ninguém poderia prever as linhas
da vida. Lembrou-se de seu nome de guerra, Tamiris, e sorriu, a guria. Um mundo lhe
passara pela cabeça; corou. Correu a ver o significado. Era rica em palmeiras. Não sabia
onde, se nem o falo possuía. Constava alta também. Isso sim, era um pouco alta e
gostava de ficar grande. Então uma lágrima ao pensar em Tâmis, o nome postiço que ele
lhe dera. O quê significaria? Correu a ver. Peneira. De fato, era um tipo de peneira rara.
Quisera deixá-lo somente a ele passar, contudo, ele a obrigava a outros. Assim lhe
parecia, ao menos, e era. Não queria ficar remoendo esse passado, bom no museu. Para
observá-lo. Temia ficar nesse museu muito tempo. Tempo demais. Todas as tardes e
noites em seu quarto fechava os olhos e tudo acontecia de novo, as mãos nos lábios lá
de baixo. O Estado controlava sua tutela. O primo morava consigo. Voltou a estudar. Já
quase completando os estudos. O professor é um ser de dor. Ele está com sede? Ele cede
aos caprichos de alunos desatentos. Ele é a sede.

Uma etapa da história está completa. Mas seria alguma história completa? O quê ou
quem determina o fim da história? A morte seria um fim? Impossível. E, no entanto, no
que concerne a esta história uma etapa está finda. A história da vida em comum de um
casal de amantes. Dentro da história original, várias histórias. Essa a primeira digna de
ser contada. Estava então no último ano. Cansava sua mão. De mais a mais (argh)
conhecera um garoto. Garota encontra garoto na sala de aula. Ele era branco –mais que
o outro—fim de comparações. Se ficar assim não o esqueço. Bem branco, o sol não o
tocara. Assim parece, ele teria medo do sol, ou o sol teria medo de si? E não ousava.
Cabelos castanhos claros; quase louro; um olho verde e o outro azul. Qual seria mais
bonito? Era uma aberração? Parecia ator de novela. Talvez do filme Eclipse. Mas ai, ele
quase que se desfazia com o ar. A não ser que fosse um bruxo ou um vampiro, nada
feito. Seu nome, Leandro. Homem dócil. Estava obcecada pelos significados, iria parar?
Vira não sabia aonde que na grafia do nome estaria a grafia da vida. Ou qualquer coisa
do tipo. Homem dócil, exceto se fosse um embuste. Não era. Sabe, não era. Era dócil até
demais. E lerdo. Chegou a pensar que fosse homossexual. Mas não! Era timidez! Um
ingrediente a mais para a guria. Nem sempre bom. Ficava louca. Depois se
impacientava. Resolveu tomar atitudes. Se fechou com ele numa sala. Começaram a

94
namorar. Nada além de beijos. Beijos que a deixavam louca. Sentia o pênis de Leandro
duro. E nem assim ele ousava ir além. Certa tarde se trancou com ele. Por quê não tentas
nada? Tenho medo de te decepcionar... isso não suportaria. Por quê esse medo? Sou
virgem. Juras? Não sentes o cheiro de leite? Ela ficou ainda mais excitada. Pegou sua
mão e a enfiou em si. Ele sentiu o liquido quente e viscoso, e nela, abundante. Olha,
sente. Tu fazes isso comigo. Beijaram-se. Ele gozou. Desculpa. Tudo bem, ela mordeu
os lábios. Agora sim, da boca. Ai, que doraiva sentiu.Era uma mulher com necessidades
e seu namorado não conseguia supri-las. Paciência. Não tinha; até que tentava. Passou
por uma construção. Um pedreiro assobiou. Para tudo. Examinou o rapaz. Novo. Até
que servia. Foi em sua direção. Transou com o rapaz, enlouquecida. Cavalgou nele
como uma amazona—como há tempos não fazia, desde Não,
melhor não—domando touro e gozou, satisfeita. Passas sempre aqui, guria? Só de vez
em quando. Foi embora. Quando der vontade, volto. Estarei a tua espera, Cherri. Nem
perguntou seu nome. Ele era o pedreiro e isso bastava a ela. O namoro prosseguia sem
maiores sobressaltos. Eu não sou o homem. O que queres? Que me ames a mim. Isso é
pedir demais? Toda vez que tentavam, ele gozava antes. Começou a ir à construção
seguido. Saía de lá satisfeita. Certa vez seu namorado a viu entrar na construção e a
seguiu. Ficou a espreita. Viu-a se entregando ao pedreiro. A dor! No meio do sexo,
aparece. Por isso me deixas às tardes? Leandro, não é isso. Ele foi embora. Ela já
impaciente com o namorado que dava defeito. Resolveu terminar a transa. Leandro
pensara que ela iria atrás e aguardou. Como não foi, retornou para checar. Ela ainda
transando. Vem cá, guri. Tu és uma ninfomaníaca! Nem para vires atrás de mim!? Pra
quê, se tu não funcionas? Deixa a moça gozar, fedelho! Então foi embora para nunca
mais. Ela acabou de transar e se foi. Não iria trás dele. Pensou o namoro acabado. No
dia seguinte, na escola, falou o diretor, o aluno Leandro Rezende não está mais entre
nós. Ele faleceu ontem. Façamos um minuto de silêncio. Descobriu tarde se matou.
Seria assim a morte rondando? Parou de ir à construção. Outro dia passara por lá, estava
terminada. Nunca mais veria o pedreiro. De que valeu? Ai, a culpa era sua? Esse
namorado também!? Amor é carne. Sem, do que adianta? Ai, era uma anta. Dois
relacionamentos. O primeiro ela matara; o segundo fizera se suicidar. Começava a
acreditar que tinha a morte nas entranhas. Que culpa teria? Era mulher. E
ponto............................................................................... A culpa
assolava. Ficava horas em quartos vazios

95
olhando paredes brancas. Acharam que era por causa de seu grande afeto pelo
namorado. Namorado suicida. Seria culpa sua? Queriam confortá-la, mas calavam.
Ficou ausente.

Meio tantã por seis meses. De mais a mais (ixi a dor!) quem a compreendeu?

Quem falou-lhe no íntimo? Os homens desde o começo só queriam seu corpo. Como
poderia ser diferente com os outros, se aprendera somente essa linguagem? Qual
emoção? Como compadeceria? Alguém mostrara algo genuíno? Ela não buscava se
justificar, mas vinham e afloravam à consciência não sabia bem o quê.
Tudo misturado. Empatia seria intrínseco ou se aprende? Leu livros de simpatia para
aplacar seus furores. Nada adiantava. Da euforia extrema à completa apatia. Como
podia se compreender? Compreender, também, será bom? Pra quem? Bom... mal...
valem de algo? Parece que lhe importavam mais vontade, desejo. Agora um pouco mais
aplacado. Contudo, olhar paredes brancas! Esse era o remédio. Até que começasse tudo.
E de novo. As fúrias. Seria uma guria de rompantes. Complicados rompantes.
Desconhecia moral. Algo isso de outra ordem. Não aqui. Não neste mundo, em
absoluto. Poderia conversar com o primo, abrir-se com ele, mas Enzo estava fora desse
mundo, envolvido com o seu, bem, não saberia nomear.

Começar tudo outra vez. O mundo avança para trás. Atrás de grandes tragédias. Os
acontecimentos não se dividem.

Hoje a mixagem. Assim amanhã

e depois.

Haverá um final dos tempos? Veja. Hoje amanhã e ontem às vezes um tempo só
urge. O quê? Divisão. Não aqui. Não neste mundo, em absoluto.

A rapariga desnomeada crescera. Grande. Mulher. Os homens enlouqueciam por ela,


mas ela. Em seu mundo de paredes brancas ela estava alheia. Por quanto tempo? Não
saberia dizer. Pareceram séculos. Até que impacientara. Acabar com isso. Voltar às
ruas. Às estradas. Era nova ainda. Fazer uma última vez o bem. Depois estaria absolvida

96
e poderia cometer desatinos. Os mais que lhe apetecessem. Ficara
maior de idade. Fez tatuagens. Colocara piercing no nariz e no umbigo e doou toda sua
fortuna a instituições de caridade e um pouco ao primo, pois que esse nada fazia. E nada
fazer ocupava toda sua existência. Agora era. Sentiu o perigo da liberdade e o
gozou. Apeteceu das infinitas possibilidades. Como não era uma completa idiota,
reservou um pouco da fortuna para si. O bastante para viver. Ou sobreviver, com um
pouco de dignidade. Viraria andarilha.

Não abandonar os rascunhos. Datiloscrito, notas de guardanapo, segredos dos tempos


que estavam juntos em folhas arrancadas. Tudo vira matéria para pequenos traslados. Eu
me livro. Relíquias póstumas. O que foi feito da rapariga desnomeada. Ela um furacão.
Nunca foi tão fácil assim esse relato dos dias completos. Sintaxe, nebulosa. Ritmo,
perfeito. Coincide perfeitamente. Que sá eu danço. Quem chamou estes mortos para a
dança? Ourgia perdida, filha. Se faltam palavras, eu as crio. Crio até minha filha
renegada por displicência estudada. Só não creio na palavra, essa colega bandida.
Bandida! Me promete mundos e fundos e não preenche meus fundos! É uma
ardilosinha. Parece a rapariga, se entregando a quem lhe convir. Se falo raro rapaz
surge, acabou. Acabou. Ela rasteja. Ele um sedutor ela um furacão. Tinha que. Sabemos
o que acontece? O que acontece que sá conosco? A rapariga incógnita. Em seu desnome
a sua sina. Sofrida, suporte. Paciência. Não se deve compadecer de si. Em seu sexo
também gravada sua sorte. Ela aguenta. Prador, a vida de ninguém. Note, o prazer vem
primeiro, embora a dor seja absoluta. Então, está. Assim assim, completo. Não digo
mais a que veio. As palavras caem sem cessar. São relâmpagos beijando a terra.
Relampejam, e sei-as. Não é seita. Não é saia. Não mando ninguém embora, esta é a
vida de ninguém, pois fique! São seios, podem servir do leite. Leite de linguagem. Não
tem nata. Uma professora antiga dizia vocês são a nata. Olha só, me chamando de
gorda. Mas não, é bem magrinha. Nata light? Creme de la creme. Ainda por cima o
creme do creme? Quantos litros de banha não bastariam a essa? Digo coisas
disparatadas. Esse é um não livro de não fazer sentido. A rapariga desnomeada cresce
em outras esferas, por outros meios. Não se apegar ao referente. Mas ela. Isso só se
elide com a morte. E ainda é jovem. Assim, por enquanto não morre, a não ser que

97
algum imprevisto. E a vida é cheia deles. No entanto, não por hora, não agora. Falar
nisso agora está passando e se transformando em outro agora. Isso é muito. Isso é
demais. Nossa, isso é muito it. O primo it nem vem pra ajudar. Fica lá, impossível.
Dizem, esta sua função. Bom mesmo pra rapariga é ficar lá, nas águas do Boqueiral e já
é sabido quem. Ou ao menos se supõe. Saiu em revistas, veja, o nome Cleyton Dias é de
um idoso dado como morto por causa do rapaz raro, que se apropriara de sua identidade.
Cleyton, o verdadeiro, foi receber seu aposento e o declararam morto. Teve até uma
achando que era assombração e acendeu vela. De modo que está comprovado, o rapaz
raro que sequestrou a rapariga desnomeada possui identidade e origem desconhecidas. É
um Rimbaud mesmo. Sempre outro, escapando. A guria, também, não tem jeito. Se fez
de andarilha e caiu na estrada. Ela, a mulher que virei mora em apartamento de janelas
quebradas e, sem vintém, se vende para comer. É indizível. O dinheiro que separara
para os restos de seus dias dera conta de perdê-lo. Não quero me apegar a referentes;
não em demasia. Eu sou quase, eu sou nunca, eu sou talvez. É certo que devo relatar os
dias, mas os dias não cabem no papel. Ultrapassam a tudo em demasia. Os papéis desse
não livro estão colados. Você vira uma página, e, sem perceber, pulou várias. Não
aparece aqui que ela e Leandro fizeram literatura juntos; faziam o jornal da escola; em
alguns números levaram suspensão; e foram cúmplices. Dividiram segredos tolos e
cogitaram casamento. Esta página está colada no coração de alguém. Há muitas páginas
coladas. Aqui ali lá. O ano em que passou ao lado do rapaz raro. Ela acha que foi o
melhor de sua vida, apesar dos pesares. Contudo, só alguns fragmentos por aqui. Ele
tinha identidades de dezoito anos e até poderia ter essa idade. Conseguia fazer-se passar
por. E apresentava-a como sua irmã mais nova. O que bem poderia ser vero. Louros e
de olhos azuis. Olhos que não se deixam sondar, abissais. Claro que enganaram muito.
Trapaceavam legal. É gozado como famílias são incestuosas. Desde Édipo, todo filho
sonharia transar com a mãe. Disso se presume que tudo é sexo. Toda relação perpassa
por aí. Indivíduos são súcubos. Só querem a cópula que leva ao gozo. Gozar, a
finalidade única. Pra quê você quer outra também? Assim me perco. É preciso não se
afastar assim tanto dos dias. Teve um dia em que sonhou transar com seu pai morto. O
inconsciente seria assim batata? Mas o inconsciente não é o incognoscível? Como que
Freud, Lacan e tantos outros poderiam dizer é assim; ou é assado? É complexo de
Édipo? E o complexo funciona de determinada maneira? Incognoscível determinado?
Ora bolas, não entendia muito bem, nem se importava de entender. Que fosse o que
fosse, o que bem poderia ser. Era? Era. E ponto. Quando se fez andarilha percorreu

98
desde a costa sul até o norte desse Brasil. Gostou do Espírito Santo de maneira especial.
Passou por lá alta. Ficou quase um mês. Nem é preciso dizer que experimentou caras
por todos os estados por que passou. E outros mais que estavam ali. Chegou a ficar com
alguns, duas, três semanas. E achava difícil se desapegar de alguns deles. Sexo para ela
começa assim: trocando olhares. Em seguida um pouco de conversa. Uma mão aqui,
outa ali; só relances de vislumbramentos do que pode vir a ser; depois os lábios. Boca a
boca, apesar de não ser respiração boca a boca, isso é outra coisa. Se os lábios do outro
lhe frêmito, é porque vai. Aprendera um jeito particular de fazer sexo: começo e fim
tendo a mesma origem: o olhar. Quando está prestes ao orgasmo procura o olhar de seu
parceiro e seu orgasmo é simultâneo ao encontro. Esse o seu prazer. Um estudante de
psicanálise com quem transou, e para quem contou, lhe disse que ela procurava o rapaz
raro nos olhos dos seus parceiros. Será? Tem um conto que produzi a quatro mãos com
Leandro, do qual gosto muito. Ele dizia que é pueril, que as mulheres não são assim,
todavia ele não entende que tem mulher de todo tipo. De mais a mais, ops! Arte não é
reprodução. Arte é produção. Um quadro de Mona Lisa não me interessa, é uma cópia,
embora seja belo. Pra isso temos as fotos. Não quero apenas repetir ações humanas,
como se fossem reais. Meu objetivo é mais além. Quero o grito. Fazer o real, tocar o
intangível e fazê-lo balbuciar. O conto é esse:

TESTAMENTO

Eu me matei no silêncio, a agora nada mais resta. Esta, a minha chance. Canse
no câncer. Não tenho mais tantas palavras, como pensei mas
aqui meu testamento/testemunho. Esta História não termina num
círculo perfeito como antigamente. A fome. Conto apenas como posso, apenas como
estou, em fragmentos. Fragmentária. Esta é minha essência definitiva. Hoje estou me
desfazendo, tomada pelo câncer. A minha chance de alcançar o infinito, num relance.
Indizível. Aguentem. Leiam se forem capazes. Me chamo Clarice e escrevi grandes
romances. Todos impublicáveis. Não obstante, escrevi desde a mais terna idade; até que
descobri o silêncio e me fiz espaço vazio.

Mas não é desse ponto que quero começar. Apesar de não


controlar o que digo, escrevo. Só. Sempre fui sozinha, embora isso nunca tenha sido
problema. Meus desastres remontam aos anos do curso de Letras, em que me perdi e
nunca mais fui a mesma. Sempre brinquei com os corações que encontrava pelo
caminho, arrancando-os dos corpos no qual estavam, para vê-los sangrar. Apertava-
os com as próprias mãos, cravando-lhe unhas. Unhas não, garras. As garras da vontade.
Ria altiva e soberana. Era rainha. Enlouquecia as pessoas com meus textos, prosa e/ou

99
poema. Proema. Afinado desconcerto. Isso o resumo de meus textos de outrora. Sabia
fazer os homens chorarem piegas.

que para meu infortúnio, provei do veneno. Conheci Felipe. Era outono. Um amigo em
comum nos apresentou. Nem lembro o nome desse inamigo. Irrelevante para meu
testamento. O fato é que eu e ele conversávamos, no pátio da Faculdade de Letras;
quando então Felipe surge iluminado pelos raios do sol. Assemelhava-se a um anjo.
Anjo bem da verdade deslocado, como que vindo expulso de um céu melhor que o
nosso. Ah como era belo! Aqueles olhos perdidos contrastavam com a segurança dos
meus, bem como a cor. Os dele eram de um castanho

a pedir colo, e os meus, verdes magnetizantes. Procurava


insistentemente seu olhar, mas ele me evitava, me fugia já naquela tarde. A
primeira vez em que nos víamos. Estava flechada e desolada. Daquele
momento em diante não poderia Paz.

Felipe, porquê não vê(n)s a mim, no íntimo? Me liberta da agonia em que me colocaste
Eu era um todo e hoje só parte. Parte-me o ser à tua presença. Me revelas a mim para
que seja plena novamente. Se não deres o primeiro passo, não poderei dar
os próximos. Não suportaria ser rechaçada. Não ouso e não vê(n)s. Ah
que maçada!

Esses os pensamentos de um tempo morto. Não penso minha ferida, que só ele poderia
por, sem forças, tive de continuar. Comecei a escrever ensandecidamente, na tentativa
frustrada de ser grande. Poemas, contos, novelas e romances. Sublimar a dor na arte; a
forma poderia curar, mas não Enlouquecia cada vez mais.

ECLIPSE FATAL
Os caminhos do conhecer levam diretamente à imitação da Rosa. Não sou eu que sou
louca, pudera. Pondera um pouco mais no pensamento. Teu cérebro me diz catástrofes e
inundações. O sol dentro da lua, a ponto de explodir. Aponto para o fogo levianamente
e meu dedo apaga. Paga minha maquilagem. Meu corpo pende na tua direção, mas não
sou eu quem te deseja. O desejo é uma pontada na virilha. Vira pra mim, faz um beijo
no abdômen ─vem sê meu homem─. Quem escurece agora
sou eu. Esquece-me
no meu corpo. Aquece és
sol.

Um dos poemas daquela época, onde me enterrava viva propositalmente. Não tinha
outra saída. Na forma me acabava em noite. Quando então pensei um estratagema farta
de homens, já que só Felipe me saciaria. Fingi-me apaixonada por outra mulher para ver
se extraía dele alguma reação. Talvez que se me declarasse, mudaria minha fortuna
mas não, continuaria inexorável. Se demonstrasse paixão!

100
Você não fala? me perguntou certo dia! Ora, como se eu devesse o primeiro passo! Por
quê eu deveria? retruquei. E ele, Eu não sei. Se você escreve. Olha só! ai, que me
absorvia a paciência! Tolo!!! Não entende as mulheres nem um pouco. Fula da vida, Se
eu pudesse, jamais diria uma palavra, meu caro. E ele ainda insistiu.
Por quê você jamais falaria? E ficou olhando o chão. Pateta, fugindo-me o olhar. Então,
fiquei soberana. Poderia admitir tudo de si, mas essa fuga de olhares! Tudo tem limite!
Vê, eu não era digna nem de seus olhos que eram o céu. Quando olhava em seus olhos
era transfigurada, mas até isso me seria interdito!? Ele acendeu um cigarro; olhos no
chão. Resolvi dar uma aula.

E por quê eu deveria? Há muitas outras formas de expressar aquilo que eu vivo e sinto.
Formas mais sutis, outras nem tanto, mas existem outras formas e devem ser
exploradas, não somente a fala.

E o poeta pateta, poeteta, continuou indagando. Ele não via a ferida aberta a sangrar. A
escrita? Sim, a escrita é uma delas, respondi um tanto mais calma. Afinal, não
adiantaria. O meu amor por ele, uma causa perdida. Tentei a
professora para ver se ele me admiraria. A admiração é o primeiro passo para o amor.
Não se ama quem não se admira. Ele prosseguiu, mas não concorda comigo que a
escrita e a fala possuem um denominador comum? E não concorda comigo que a
linguagem em si não pode dizer tudo? Poeteta, já estava cansando daquilo; desse papo
que não levaria a lugar algum. De qualquer forma, ao menos estava a seu lado, aquecida
pelos seus raios de luz. Um sol de poeteta. Hahaha já ria por dentro. Expliquei, claro
que concordo com você. Por isso eu disse que existem as outras formas.

Insistente, ele ainda indagou, e você poderia me dizer outra forma? Talvez a que menos
tivesse lacunas, a sua preferida...

Obrigada, retruquei o silêncio. O que não puder ser


escrito, cabe ao silêncio expressar. Procurava-o com o
olhar, mas ele me fugia. Batalha perdida. Como não ver o meu ardor? Estava chocada;
acendia um cigarro após o outro. Dava-lhe todas as indicações, e ele nada. O silêncio,
meu caro. Nada poderia acalmar meu nervosismo em sua presença, exceto a causa. Mas
a causa continuaria fechado em copas.

Como, o silêncio? Isso é um absurdo! não faz sentido. Enfim tive uma reação sua mais
acalorada. Percebi a via, e não me fiz de rogada. Não faz para você, meu caro. Ele ficou
vermelho.

Certa vez pensei que finalmente ele percebera. Viera a meu encalço e eu, já ganha,
ansiava premiar meu vencedor. Acho que entendo o que você quis me dizer, ele
arriscou. Meu coração na mão, pronto pra lhe entregar. Mas existem outras coisas. Fui
forçada a engolir pelo rabo. Não seria dessa vez. E as pessoas? Isso é maior do que
qualquer silêncio. As pessoas. Arre que a pessoa não entende o que quero dizer! Tentei
a séria. As pessoas nunca são as mesmas a cada dia. Tudo é presente. E o presente
diverge do passado, que se acabou. Cada presente é uma configuração do agora; e cada

101
agora é diferente. Há vários agoras, o tempo todo, tanto ontem, como hoje, e amanhã.
Apreender o é da coisa, eis tudo. E no entanto, admitir essa impossibilidade. Estava
exausta; não tanto pela explicação, mas pela cara de abobado do cara que me furtou a
mim o ser. Era demais!

Sublimar a dor na escrita; o que mais? O copo de uísque sobre a escrivaninha e os dedos
dormentes de tanto digitar na máquina de escrever que ganhei de um ex-namorado cujo
nome não me lembrava, já naquela época. Só um nome me dizia e
me feria.

Decidi que precisava fazer algo mais, além de sublimar a dor. Dessa vez consigo
o meu ardil, ou naufrago de vez e me afogo.

Quando o vi fumando em seu banco, sentei-me a seu lado. Preciso que você vá até a
minha casa. É surpresa.

Não deu outra. No final de semana ele foi, levando meu uísque preferido. Estava frio e
chovia. Tenho um segredo para lhe confidenciar, Felipe. Sorri.

Estava sentada na cadeira de balanços, no alpendre que dá para os fundos. Ele foi à
cozinha abrir a garrafa. Matutei, era agora. Demorou um pouco, quando voltou, ele
acendeu dois cigarros na boca e me deu um. O melhor de todos. Senti o gosto de seus
lábios. O gosto do divino. Fumei regozijante. Estou feliz! Afirmei; ele quis saber o
porquê. Eu me sinto realizada! Como iria mentir, não procurei seus olhos. Eu e Luíza.
Estamos juntas. Provavelmente moraremos juntas depois que terminarmos o curso. E
nunca mais escreverei. Atenção na tensão. Olhei-o, examinando qual seria sua reação
mas nada. Ele apenas sentou-se e digitou em minha máquina, o que nunca saberei. E me
des-fiz em choro, por dentro.
Logo depois me des-cobri de câncer.

Poderia ter me declarado e não o fiz. Claro, ele era o Homem da situação. Ele
quem deveria vir a mim. Agora escrevo este relato para relegar a ele a
culpa por minha morte. Unicamente. Absolutamente. Ele é
o câncer em mim, me devorando toda, por dentro. Se ele tiver algum sentimento, o quê
duvido.

Esse foi o conto, mas ele dizia que Clarice é piegas. Não acho. Não concordo. Seria
bom para figurar em uma sequência de O crepúsculo. E mesmo assim o terminei à sua
revelia. É difícil fazer de quatro. Borges e Byoi são exceção. Sabe, Clarice é humana,
sentiu e se deixou levar. Felipe que era pateta e não percebeu seus gestos. É legal isso
de a arte congelar momentos e fazê-los perpétuos. Clarice era demais para ele, e ele não
suportou. Uma supermulher? Gosto de pensar que sim. Por trás de todo grande homem
há uma grande mulher? Não. Por trás do grande homem há uma supermulher. As
mulheres dão conta de tocar no indizível da linguagem. Porem, contudo, entretanto,
todavia, há mulheres que não o fazem porque são mulheres fálicas. Mulher de falo, não
pode dar certo. O próprio nome diz, são mulheres falhas. Que deram errado. A rapariga,

102
essa já não foge à sina, venha o que vier. Será que isto é de provocar perturbação? Essa
mistura de pessoas e tempos às vezes me dá certo nó no pulmão. Se o texto for
escrito em parágrafos gera menos confusão? Olha só a rima aí que só agora reparo.
Separar as ideias. Será? Por outro lado o ser é confuso de toda forma. Assim coincidiria
a estrutura com a matéria. Forma e conteúdo. Duas faces que não se opõe. É a junção
delas que torna o discurso possível. Só que ela é impossível. Essa guria de existir. Ela
quer se sobrepor a mim.

A mim. A mim! É o que todos dizem a prática da escritura serve


pra conduzir. Vou passar a escrever por parágrafos. Talvez que
saio desse lapso. O colapso está um pouco mais à frente.
Contudo, não tarda. Aguardem.
Escrever para contar o que não sei ainda. Escrita de solavancos.
A história vai se erigindo aos poucos. Junto com a sintaxe.
Alguns erros ortográficos. Nada de mais. Outros, propositais.
Adivinhar o que é o quê; isso já dá outra história. O sentido, o
sentido é a rapariga desnomeada que erra. Erra em busca de
quê? Nem ela sabe. E, no entanto, erra. Erra porque não pode
fazer outra coisa nessa via. Navegar.
Intrinsecamente humana. Têm horas que se sabe que tem, mas
não se quer. Protela-se. Adiar a hora fatal.
Por mim que os deixava lá, a rapariga e o rapaz. Alegres a
gozar as horas. Mas não! Não dá quando o enredo grita em
nós caminho diverso.
O quê fazer?
Não posso fazer nada.
Seria desse tipo de aporia
de que fala o poema de Drummond?
Escrevo por ideias o que conduz ainda são os dias, não obstante
a loucura coincidindo com o fragmento. Há também ritmo e
silêncio. A pena escreve pulsando por contornos cerebrais de
emoção. Parágrafo—fragmento? acho que sim.
Estou pensando escrever uma escrita íntima de se abismar.
Contar a vidinha como um diário, e escrever ―querido diário‖.
Mas temo as páginas se imantarem de sangue.
Por isto digo apenas querido.
E volto muitos anos. Antes.
Para o tempo que se fazia avassalador.
E aí pulo mais anos ainda. Perto da época da redação desse
livro. O último cara com quem morei. Não posso nem falar dele.

103
Não consigo. Entretanto, certa feita peguei em nossa
correspondência a seguinte missiva

A CARTA

Carta para o meu amor? Quem o amor? Meu amor. Mas quem é esse que
amo? Diviso em águas turvas seu rosto. É belo. Definitivamente. Lindo de me por
termo. Temo a distância entre nós para alcançá-lo. Temer
perder. Mas
não se trata disso.

Não se trata. Isto é uma carta de amor. Por isso devo dizer fogo. Ardor.
Sexo pela madrugada. Sedução. Por essa ser uma carta de amor, também tem
contém carinho. Cumplicidade. Também devo dizer
amizade. Perdão para algumas horas. Paciência para outras. Brigas, sim. As brigas
são fundamentais para que depois se façam pazes. Isso é
sobretudo o melhor, sabor de intensidades. Ciúmes também, sim, por quê não? Se
não houvessem ciúmes não seríamos um
casal. É tão paixão enlouquecer de ciúmes. Enlouqueça por mim, faz favor.
Nesta carta que endereço a ti, amado e já vejo teu corpo, digo como és
belo e forte. Protege-me à noite na escuridão de nós, quando fazes noite a nossos
pés e escurecemos, arde-me de fulgor. Refuljo em teus olhos que me devolvem
minha imagem, perfeita. Em teus olhos sou perfeito.
Sim, teu rosto já me é claro, Renato. O único homem que me possuiu se
chamava Renato. Isso deve querer dizer algo, não, Renato? Uma vida de Renatos;
como gostava de ouvir Renato Russo e sua Legião. Mas o Renato desse tempo
morto —me parece já há mil anos— não era como tu. Ele também se queria
hétero e tinha namorada. Só que ele me procurava quando ninguém nos veria,
embora me rechaçasse quando dia. Tu és belo, Renato, dentro, eu sei. Resplandece
por fora. A ternura e doçura que não sabes explicar te caem tão bem! Por isso digo
amor fogo ardor! Dize que pode me morde.
Nessa carta, que é de amor, devo respirar alívio e simultaneamente,
anseio. A arte da espera. Qual a resposta; se tiver... mas sei que terá, porque esta é
uma carta de amor e o silêncio é também uma resposta. Delicado como és, sei que
me dará algumas palavras, porque meu coração flameja pelo teu; e isso, sei, não
será ignorado.
De modo que real mente esta é uma carta de
amor, que alguma verdade possui, posto que o ser se dramatiza e sangra diante de
seu interlocutor. Espera-se que o interlocutor não o veja sangrar até uma
hemorragia, impunemente. Não será fácil, mas o sangue dignifica o corpo.
Já que ninguém mais duvida que essa é uma carta de amor, peço-te o
coração em uma bandeja de prata. Não como Salomé queria
seu João, morto, mas para que assim possa me unir a ti, senão em vida, ao menos
na morte, já que sangro indefinidamente para o fim.

104
Engoli a seco.

E escondi.

Assim não. Um parágrafo em cada linha também não dá. É


preciso reconectar os fios. A grafia perdida. Escrevo por
implosão.
O autor está morto. Porém, eu estou bem viva, narradora da
rapariga que eu era. Pensando bem, autor seria o narrador pai,
que pensa que controla, e, no entanto, tudo lhe escapa. Pensando
duro, papai existiu autor fálico? Será que é de um espírito que
controla a minha mão, lá do além, narradora de mim ao sol?
Muitos paradoxos de aporia. Estou low. Quite low.
Na Bahia a rapariga se viu grávida. Grávida! E pela segunda
vez! Isso foi dito, narrado e explicado, essa primeira gravidez,
embora esse capítulo de sua vida esteja colado. De todo modo, é
bom recapitular, ainda que breve.
Recapitulação da brevidade:
No ano que passou junto ao rapaz raro, engravidou.
Como vou saber que esse filho é meu? E pior!,
somos foragidos, esqueceste?! Ela esqueceu. Uma
gravidez muda tudo. Realmente mudou. Ele ficou
seco. Vamos abortar?! Eu vou te abortar da minha
vida. Sorte: após uma discussão, ela ―tropeçou‖ e
caiu. Perdeu o filho. Ficou sem falar-lhe por uma
semana, mas depois a vida voltou.
Agora, ali, na Bahia, não soube o quê fazer, porém, já sabia.
Soube no momento em que soube. Não tinha ninguém, o que
não mudou muito. Contudo, naquela época não podia nem
pensar. E foi pra mesa, apesar de já arrependida. O médico
falou-lhe, filhos, nunca mais. Saiu desnorteada, transo com
primeiro que ver! Não queria pensar. Não naquele momento, a
despeito de ser um predicado importante em si. E, no entanto,
pensava, difusa e desconexa. Vontade de ferir-se. Fez o amante
enfiar coisas nela que a levaram ao hospital. Passou duas
semanas internada. Se recuperou bem. Se recuperou ótimo. Só
não poderia outra, a próxima vez. Filhos, jamais. Não em seu
ventre.
Quem procura nestes mortos todos resquícios de mim. Eu fui
com eles. Engraçado, todos homens. Os filhos sem sexo. Nem
nexo; onde me perco em si, rapariga desnomeada.

105
Ainda não contei como a rapariga virou em mim. Fico
postergando, adiando o momento latente. Anote aí: a sensação é
o que faz o irreal possível.
Como a rapariga transformou em mim:
Quase uma metamorfose. Apesar de eu ser outro, o outro não se
transforma em outro, que não o outro do eu, tão facilmente. Para
se transformar em outro é preciso que eu faça uma multiplicação
tripla em torno da diferença. Isso gera certa problemática que
somente certos matemáticos; o que não é o caso. A gente
simplifica um pouco, simplifica legal, embora nada seja simples.
Ela e eu, deveríamos ter feito diário. Apegar-se aos dias—para
que nada se perca, proverbial—multiplicando. Cada fato
alargado. Ela virou me assim: vou contar os fatos. Os fatos são
os fatos, e só. Eu não sou só. Sou ela eu mesma e quiçá, o
narrador pai. Já o autor, não sou tão pretensiosa assim. Os
incidentes contam somente se se der importância a eles. E
repare, que sou além de tudo, @ acidente. Então, aos fatos. Não
são propriamente os fatos. É o acontecimento, me aconteceu,
apesar de ser agente. Você já reparou quando faz algo, e no
entanto, não poderia fazer diferente naquela vez e antes de fazer
já está arrependido, mas não tendo opção? Diz-se que sempre se
tem opção... não acredito, duvido, ou não quero e não posso
acreditar. São limites tênues de porosidade. Minha linguagem é
porosa. Nossa, me perdi esqueci confundi e acabei.
Não separando em parágrafos as ideias.
É que eu não tenho a menor ideia. Se já contei como a rapariga
se transformou em mim? Sim, claro, contado. Contado ao sabor
das horas. Voltem ao texto, se não pegaram. Todos pegam a
minha pessoa. A rapariga já é eu. Esta é uma história linear. Não
voltamos mais no tempo da rapariga, exceto se for por. É
interessante a conexão entre linguagem e poder.
Eu digo entro numa Brasília e isso se materializa. Qualquer um
pode ver. Até as macumbeiras. Elas rezam as coisas, o que
ocorre pela linguagem e perpassa por ela. Linguagem é feitiço.
Vamos brincar de linguagem? Enfeitiçar o it? Escrevo para
você, sim, meu igual. Quádruplo de mim. Não ficarei de quatro,
já vou logo avisando. Salvo algumas ocasiões. É você, quem
está a salvo. Eu nunca eu às vezes eu de vez em quando e só
depende. Se você pega e fica completamente dentro, é um
modelo de viagem. Natural. E veja bem que não falo de ervas.
Se bem que. É um barato um pedaço do azul que trago para
você. Fumante inveterada. A bebida nem se fala.
É curioso esse poder da linguagem. Falo em medusa e ela se
materializa aqui. Com cabeça tríplice. A do autor, do narrador
pai, e minha que narra. Acho que pensei que fiz contas erradas.

106
Sou mau em matemática. Antes então eram quatro instâncias
narrativas. Autor narrador pai eu rapariga desnomeada. Não
quero saber dessas confusões. Autor está morto e narrador pai é
um zumbido na cabeça. De modo que estou livre. Sou eu quem
comanda aqui. É preciso botar ordem na casa.
É difícil comigo, fragmento por excelência. De mais a mais,
mais. Esse vício de linguagem não sai nem mudando de pessoa!
Arre, não aguento. E, no entanto, também fiz coisas assim de
uma delicadeza que só vendo. Conheço fazendo. Se não estou,
não sei nada. Eu não sei nada. Agora mal creio que ela estava
junto ao rapaz; para o que desse e viesse. A gente inventa tanto
depois. Mesmo aqui, envolvida com o real e meu compromisso
com a verdade, após passado, acho que a gente acha que era de
um jeito, e, na verdade, era de outro. Talvez que a gente
aumente um pouco as coisas. Alguns mais, outros menos.
Exagero faz parte de outros. Eu não. Eu nunca. Tudo é como é e
ponto. Relato as coisas inclusive na ordem que aparecem. Ups.
Esqueci de dividir alguns parágrafos. Contudo, tudo exato.
Somente algumas páginas coladas. Nada que comprometa. É
tudo.
Um livro que comporte todos os outros é como um Aleph.
Marllamè deveria saber quando projetou o livro infinito da sua
impossibilidade. Não obstante, não lhe parece que todos os
livros contam a mesma história? Cada livro e todo livro em
especial é um Aleph. O único diferencial está em como, porque
os modos variam. Este aqui não é um livro: é um testemunho de
como a rapariga desnomeada se transformou em mim e minha
vida que vivo até hoje. Ainda não tenho um nome. Sou apenas
uma mulher. Posso me chamar você, ou você, o nome que
contém. Mas sou eu mesma, na minha singularidade anônima.
Têm pessoas que quando os relâmpagos caem do céu morrem de
medo e ficam zonzas. A vertigem. Nunca senti dessas fraquezas.
Quando dá uma pancada, vou à janela e fico enamorada da
tempestade. Os raios me acalmam, os olhos brilham. Fico
considerando se um raio desses caísse em cima de mim, se seria
uma grande dor, ou me fulminaria toda virando ar e nem saberia
que me atingiu.
O desnome atual é porque sou um vir a ser. Quando a rapariga
desnomeada deu o primeiro tiro em seu parceiro, suas mãos
tremeram, num breve momento trocaram olhares, ele prosseguiu
a seu encalço e ela, bem, ela descarregou a pistola em cima dele.
O rapaz raro caiu no chão e por um ínfimo momento o casal se
viu um nos olhos do outro. É esse olhar, que dizem, procuro em
meus amantes. A gente mata o que deseja com o mesmo vigor
que deseja. Se busco esse olhar, há resquícios da outra em mim?
Eu é um outro. Ah, rapaz raro.

107
Transcender para não mais transcender. Li isso num livro de
água viva. Mas não me parece que seja desse modo. Na troca de
olhares do extermínio houve a transcendência final. Ela. A
transcendência de exterminar o que mais deseja e fitar olhos, um
estonteamento indizível. Ela foi com ele. Aquele momento
selado. A última vez. Daquele ponto em diante, necessitava
transcender mais e mais. E não pode. Não posso. Não se sabe o
porquê. E fica vagando, como coisa. Seria preciso matar
novamente? Fez indiretamente, e, não obstante, nada. Somente o
vazio. Seria aquele o ponto do erotismo em que é a morte, e a
morte o último ato sexual? O fim era olhar.
O evento traumático é o qual nada mais acontece depois. Por
isso o eterno retorno, exceto se outro e outro e outro mais ainda.
Aí, nesse sem limite, não quero, não aguento. O maior de todos
é aquele do extermínio, espero; embora a perda de um último
filho que nem chegou a existir como pessoa
fira gravemente. Esse filho não tinha pai; ela era mãe e pai
simultaneamente. Não estava desprovida de sentimentos, mas
aquele que era seu companheiro expirou (por suas mãos! Suas
mãos!) e através desse ato, o qual não é sucedido por nenhum
outro, seus pecados de seda se apagaram.
Vou parar de me explicar. Explicando o que não tem explicação,
me confundo e fico sabendo ainda menos que nada. Ele me
pagava e me fazia mulher. Isso é uma explicação. Não, isso é
um fato. Mesmo morta, ela volta para atrapalhar a narrativa. O
narrador pai me mandou voltar. Às vezes voltarei com meus
silvos, sibilos e sussurros, porque minha história está repleta de
páginas coladas. O narrador pai quem mandou.
Uma desculpa e uma relação de causa e efeito. O quê poderei
fazer? Nada. Não se pode fazer nada. Essa rapariga desnomeada
é fogo. E eu ainda nem comecei a
queimar. Vou apagar esse incêndio, passemos. Olha o autor!
achando que pode. Ele não manda nada. Autor está morto.
Como a rapariga. E não obstante, aqui. Quê confusão!
Após o último colapso, passa ao fato. Esses parágrafos são
fragmentos de um discurso retorcido. Será que se embaralhá-los
resolvo alguma coisa? Lembrava-se de Leandro nas noites frias;
os jogos de acaso. Melancolias; quase chorava um pouco.
Nostalgia ou remorso? Difícil dizer. Talvez um pouco de ambos.
Talvez nenhum. Talvez.
Acho que vou começar a separar conforme a fala de cada um.
Essa confusão de vozes é a forma de demonstrar a cisão da
rapariga. A rapariga está morta. A narradora também é cindida...
De mais a mais—ixi—o narrador pai me enviou para impedir
esse descabimento. A narradora deveria controlar... Para quê?
para ser imitadora de Clarice? A narradora quer ser um sopro.
Preferiria ser antes o grito, ainda que surdo. Não entendo aonde
108
se mete o autor, que não resolve essas questões e deixa para
personagens e espíritos zumbizunzantes. O autor está morto. A
rapariga também, e, no entanto. Essa função autor é um dos
maiores logros que já vi; então fica assim. É. Desse jeito. Então
tá.
É o ocaso no lago; uma das paisagens prediletas... parece que
me integro à paisagem e vou me acabando. Quando noite,
já não sou.
Você vem sempre aqui? Acho que sou eu quem deveria lhe
perguntar... Eu estava esperando, mas nada. Impaciente! Lhe dá
mais graça! Como você sabe que sou uma deusa? Dá para notar.
Dá para notar. A lua iluminava-nos há séculos, nos loucos.
Bebemos chopes ardentes. Praia e maresia. Nossos cabelos ao
sabor do vento. Esqueci de perguntar seu nome. Rafael. A morta
em mim nem brilhou! Mãos e pés atados. Sou escritor. Eu
também escrevo. Adoraria lê-la. Beijos molhados. Você me
ganhou quando falou seu nome; abri-me toda para si. Já me
conhecia de nome? Já leu meus livros? Não. Não é isso. Seu
primeiro nome quebrou qualquer reserva que poderia ter
consigo. Ele não acreditou. Fez ar de dúvida. Mas naquela altura
já não importava. Qual seu autor favorito? Rimbaud, e o seu?
Eles combinaram. Não podia, e, contudo. Duras. A vida da
gente, a gente é quem faz. Pousou as mãos sobre as minhas
pernas. Vamos para minha casa! Moro logo ali. Fomos. O sexo
com ele era selvagem e suave. Se o sexo era melhor com esse,
que convidou ao invés de raptar, do que com o rapaz raro? Não
ouso comparar. O rapaz raro cristalizou-se na lembrança e
assim, ficou inigualável. Incomparável por excelência? Ele
somente poderia morrer pelas mãos da morta em mim. Penso
que não o conheci, conhecendo-o profundamente. Eu não sei
nada de si. Não, em absoluto. De todo modo, ele ainda vive,
mesmo que seja na ausência, mesmo que seja só em mim, até
que a morte nos separe definitivamente.
Depois que deixei o sul nunca mais voltei. Não por trauma, mas
por nostalgia. Sabia que não encontraria o que procurasse.
Morei com quem me convidou oito meses. O bastante. Nunca
mais. Pior do que o outro. Sentia cinveja do que eu escrevia e
botou ao fogo. Como assim? Ele pensava o quê? Um cara pode
até ser meu cafetão, me negociar, mas não se meta com minha
escrita! Taquei fogo em sua casa, com ele dentro, mas o
ordinário conseguiu escapar. Fiquei do outro lado da rua, vendo
as coisas pegando fogo. Me acalmei até. Olhos cintilantes. Por
causa dessa pequena vingança, passei um ano no sanatório.
Pensei que morria e isto me dá imenso prazer. Só sou feliz sendo
aqui à qualquer hora. Antes ou depois. Momentos. Minha vida é
esta que aqui escrevo, sem imagens que comprovem o que estou
pensando. Atrás do pensamento mora um silêncio que deixo
109
entre as palavras, adormecido. Quem sabe um dia virá à tona e
deixa em ruínas.
O silêncio é precioso. Vamos guardar um pouco para mais
tarde? Hoje está um dia belo e agradável para se morrer. Morro
aqui, constantemente, me formalizando. A morte eterna por vir.
Todo livro conta uma história. Inclusive os não livros como
esse. Num livro de poesia, os poemas dialogam entre si e
formam um todo, ainda que incompleto. Nem todo livro de
poesias é constituído por poemas. Eu não sei porque as
instâncias narrativas se misturam e tomam a minha vez. Os
assuntos não foram divididos em parágrafos, conforme decidido.
Eu deveria ter a liberdade de experimentar. Eu devo intervir
quando se vai longe demais. Isto aqui é um bagunça! Para todos
os efeitos eu não existo. Para todos os efeitos essas aparições
são um defeito. Ruídos.
Passo.
Não sei o que faço aqui, além de papel de boba, essa promessa
de contar os dias completos. Para quê? Me senti uma completa
idiota narrando a merda dos pacientes pelo meu quarto e passei
cola nessas páginas. Depois fechei com cadeado. Não sou
obrigada.
Um poema é um poema é um poema é um poema. Qual a
palavra que ninguém usa? Num poema a palavra é descentrada à
ultima potência. Mover sentidos. Sentido, o sentido não se deixa
apreender. Essas são ideias bem comuns. Chega de mesmice.
Mais do mesmo repetido. Cópia de segundo grau. Já deu pra
entender, rapariga. O encantamento é meu poema. O ato de
encantar. Enganar. Esta prosa que não tem fôlego. O que é que
tem? Cansei de advinhas. A que morreu em mim então nem se
fala. Sou eu. Não admito Vitória. Então quem? Não se entrega
nomes assim. São apenas instâncias. Último ato da revolta.
Cansei. Passo a vez.

Li que nas biografias dos grandes, como esta que está se
escrevendo, apesar de eu não ser muito, mas às vezes fico tão
alta que voo, que os fatos não devem ser contados à exaustão, e
somente os mais importantes. De modo que colei diversas
páginas. Do contrário, não fui totalmente sincera. Nesse livro
também li que devo falar de mim como se falasse de outro.
Adotando ares de impessoalidade, e não dizer, meu caro leitor;
minha cara leitora. A respeito do primeiro tópico já foi feito,
mas a outra morreu e tive de assumir. Não vou fazer que nem
uns e outros, que ocultam sujeito. Primeiro tópico. Não sei.
Talvez matemática/geografia não seja mesmo meu forte. –e sou
sobretudo fraca—sou mesmo é perita em sensação. Está me

110
sentindo? Espero ardentemente que alguma coisa aconteça. Se
eu não sentir, nada feito.

Esta autobiografia que está se escrevendo deveria passar ares de


biografia. Minha cara leitora, a insubordinada é eu. Nem as
regras gramaticais me importam muito. O sentido não pode ser
coercitivo. Dizem que a mulher traz a morte consigo. Mas não,
não comigo, não apenas. Não trago a morte. Eu sou a morte.
Dou uma suave morte aos homens que se deitam comigo. Este o
sentido de ser me. Não procure me corrigir; isso poderá
ocasionar uma vingança. Minha ira é terrível.

Esta autobiografia é na verdade uma biografia de todo mundo,


onde eu sou eu, eu sou você, eu sou você, eu sou aquele ali que
nunca sorri e franze o cenho, achando que é bonito. Sabe, no
meu desnome está a minha sina. Eu sou eu mesma, mas sou todo
mundo, e não sou ninguém. Quem sabe se não encontro um
nome, embora esta não seja a história da singularização. É antes
a história de uma rapariga desnomeada no seu vir a ser
o quê?
Ah! ser eu todo mundo!
E não me basto! O quê basta? O quê
bastaria? Basta de algaravia. Quando nem o autor sabe quem
está falando é sinal de terra à vista.

A verdade me queima os neurônios


Inconsequentes.
Os desenhos em S são formas de acasalamento como letras
perpetuando palavras perpetuando oração perpetuando sentenças
perpetuando textos. Quem me perpetua? Tua
mão.

Escrever. Escrever ainda que seja para cagar. Escrever já!
Escrever assuntos de brincadeira. Escrever acerca. Escrever
ainda que não aja escrita. Fica faltando sempre um pedaço. Não
se pode escrever. Não há escrita em relação ao objeto @. Não há
escrita em absoluto. Não. De modo algum. E se escreve. Um

111
pedaço do azul longe. Captar o mínimo pavio.
escreverescreverescreverescaravelho. Será possível?

Quem chamou estes mortos todos para a dança? No deserto é
noite. Absorta em volta da fogueira. Parei de dançar faz um
século. Não há luz. Muito menos índios sendo felizes. O ritual é
macabro. Acendo o candelabro,
que se apaga. Igual igual. Há um
contorno sendo traçado. Mas não é aqui. Lá fora há quadros e
paredes que silenciam.

Certa feita estava num banheiro de um bar que dava para rua e
escutei vamo arranhá aquele carro ali! Mas por quê? Arranha
esse carro aí, porra! Quê? Eles entraram no banheiro—
feminino—ninguém olhava, pega essa menina aí! Pra quê? Eu
estava num dos cubículos com privada à porta fechada; a cena se
desenrolava ali; escutei também uns gemidos abafados
pega lá! Mete nela, cara! Como, se ela não quer? Olha a cara da
guria de pavor! Foda-se! Mete nela mete nela!
Ou tu é viado?

Hoje não estou me dando com as estrelas. Há muito disso. Um


desperdício. As palavras não devem ser usadas aleatoriamente.
Aleatoriamente. O negócio se dará da seguinte maneira: escrever
objetivamente, sabe, olha lá a cotovia. Não. É um corvo. Muitas
vozes e isso me confunde um pouco. É esse estrabismo. E o tom.
Posso subir ou descer tanto faz o que se me dá. É com as corujas
meu compromisso.

Consciência de segundo grau; por enquanto é o que se permite.
Tontura. Escrita de lenga-lenga é escrita de desmaio. Ou de por
low, quite low? Não aceno aos quadrados. O censo do último dia
poderia provar mentiras.
Mas diz tudo, tudo,
Menos enganos. Mais verossimilhanças. Ops!
Não condiz com o real, fato de suprema importância. Todos
vestem gravatas e calçam sapatinhos. De cristal? Os bens
comportados sobre a justiça.

112
Havia um homem pés descalços querendo ascender o palácio.
Contudo, só os de beca—incorruptíveis possuem livre acesso—
de modo que o incêndio ficou para mais tarde.

Estou vazia como um esquife em baixo da terra. Ontem
queimava sobre a cama. E não era com você, que só se ausenta e
foge das linhas com que persigo. Mas isso também não importa.
Já desisti. Do outro lado da porta não há homens buscando o
caos por uma linha que não tem fim. Minhas cinzas,
é o que sobra. Rastejo o chão me buscando, e só encontro restos.
Se juntá-los acaso forma
uma mulher? Qualquer acaso e a forma sai
de cabeça para baixo. O ser é montagem. Dependendo como, sai
mais ou menos; de outro modo, desastre. E sou perita nesta arte.
Deixai caírem os astros.

Último astro
Me inscrevo
intangível
——obnublada——
não toda
no todo
não consigo explicar
um orgasmo se quer
Não consigo
minha ternura, entende?
Me entenda, faz favor
meu gozo
sem gozo
à beira da morte
estou à mercê do ocaso
——obnublada——
intangível
minha escrita contorna meu ser
e não encontro um eixo em que me apoiar
ausência os elementos
Ausência, os elementos
Gira mundo
meu mundo, água viva.
Aguerra-viva-de-ningúem
A morte ronda
A morte sonda
amor ausência?
——obnublada——
não entendo mais nada
essa essência de mulher
esse buraco por dizer
113
conversa de banheiro
coisa sem fundo, nem tampa
não há; não vá
É um reino
fantasia
essa escrita
dita
feminina?
ausência
mentira
torpor?
——intangível—— não se pode tocar, não se pode ir
além; só de buracos essa matéria incoerente, não obstante ausente, no
instante mesmo em que se faz presente
é a manhã com as coisas preanunciando
um fim
Descabelada esvoaçante
onde faço que digo
mais um amante
a me sobrepor
me curvando —destino de mulher—
iludida na posse de um falo
grito berro falo
de quando em quando e então me calo,
fazendo ausência
Renda de Penélope tecida ao sol
e destecida ao luar
ainda quando não os há
Rendas Exterior Noite O outro Encontro
Arrebatada
Ausência
Oco
É tudo
Nada


Uma obra em dobra é quase um ser. Indivíduos são dobráveis.
Inclusive os duros. Não há ser que não vergue. E não estou
falando se ser vesgo. E olha que sou meio estrábica. E por falar
nisso, se você achar que estou olhando para você, é que não
estarei olhando para você. A direção do olhar não é a direção da
visão. Só vejo o que me toca e só me toca o que ama.

É preciso não se apegar ao presente. Está passando. Sempre
escapa. Técnicas de apreensão.
Escrever em verso
pega mais
114
ou ilusão
e tanto faz? O que digo é na maioria das vezes o contrário do
que quero. Não estou consigo significa muitas vezes não estou
conseguindo. É uma maneira ímpar de ser. E veja bem, eu só
sou em fragmentos. Uma técnica é uma técnica é uma técnica
pateta.
Não sei se sou pior em prosa, ou se em verso. Sou, não obstante.
Aqui, lá, em todo lugar sem causa. E não é que exista pior em
uma forma que não existirei na outra. Estou para existir no ar.
Breve, aguardem. Estou pensando em adensar. Assim acho que
penso fico grande. Ser nos objetos. Será que assim consigo
apagar a sombra de mim? ♀

Deve-se parar de escrever os dias, mas não consigo. Não dá para


calar. Os tormento sou e fim. Enfim, a rapariga desnomeada. É
todos, e é ninguém. Ela não é um it; ela é ela mesma em sua
desventura. Como rosas e borboletas. Deixa rastros por onde
passa. Embora espinhos e pólen. É o melhor dela. A careta de
gozo no escuro é uma metamorfose. Ela se medusa e abismo se
alguém ver. Se petrifica. Lembra que não te digo é um apelo
rápido de não descuido. Escrevo essas quases memórias para
você sim, meu irmão hipócrita. E morto! Lembra que Caim
matou Abel? Todavia os papéis se invertem de quando em
quando. Somente pausa. Caim não está morto. Ele vive aqui, e
nos olhos dos amantes. Vazou os olhos o que não sei bem o que
seja. Sei sim, embora não exista nome para
isso. Está para ser inventado.


Estou pensando escrever uma escrita íntima. Passar a colar
notícias de jornais aqui.
Notícia de jornal: bebê explode dentro da barriga da mãe, que
sentiu leve comichão.

Estou por um triz. Será que dessa vez vai?
Não posso escrever isso aqui. Não se confessa os próprios
sentimentos.
E escrevo. Tartaruga fora do escudo de musgo
à lua.

115
A floresta em torno adensa. Pensa nisso e vai criando um
sonetilho de refrão.
Sonetilho de refrão
A floresta adensa
escura. Escuta os tigres à noite de urros
temo os bichos.
Toma a minha mão.
Você bicho de mim
acho que vou me despir
de você
assim escuro assim
o vulto
começo a ferir outra vez.

Hoje fui ao shopping, vi uma bicha através do espelho. Lavei as
mãos com água gelada até que a mão ficasse vermelha. Eu sou o
autor; aquele que move peças, não sei mais.
Impasses.

Hoje ficarei em casa, assim acho que penso. Tenho muitos
projetos de resolver. A sintaxe me envolve sem conteúdo. Às
vezes bate um medo danado de escrever. E passa. São ondas.
Escrita é risco. Mar, onde se afogar? Eu sou a rapariga afogada.
Autor tentou tomar minha vez, achando que é quem? Autor
morreu e seu corpo fede a enxofre.

Tem um bode lá fora, berrando, que não me deixa escutar a
chuva
pensando humanos são terríveis
uma raça para ser extinta
sem tinta
a náusea
e doenças como dilúvio de flores retorcidas ao luar
daninhas
tuas mãos
nas minhas

116
Vamos escrever vazios? Tocar a flor; o que dela resta. Uma
sombra onde era um corpo. A materialidade incorpórea do
signo. Ele não se decide, bem ou mal.
Este diário fica vertiginoso na medida em que me desfoco. No
mais, não é preciso.

Até as pessoas mais coisa
vão se comover
ver
um poema de fôlego
pegando
fogo

O livro se escreve à minha revelia. Essas mulheres são
impossíveis. Preciso de inventar a ilha do prazer, mas livro goza
na minha cara, me desnorteando, e não me deixa criar. Para
todos os efeitos, eu nunca gostei de beber
sêmen
inclusive literário
apesar que

Não sei que rumos dar àquela história da guria desnomeada.
Enquanto isso dedico horas à improdutividade. Com direito a
enxaqueca e tudo. Os remédios são cavaleiros azuis vindo a meu
socorro. Mas ainda não encontro a devida solução para o abismo
enredo. Enredado, divago no ócio. Mas isto já foi dito. Qual a
palavra nova?

Pensei que morria e isso me dá imenso prazer.

demito o agente e o atravessador
felicidade se chama

Na nevralgia da palavra não há coração. Tem matéria, semente
para outras. Letras são signos à espreita. Circulando formações
em ponto de p.. Pedaços partidos, poderia esquadrinhar, mas me

117
contento em ir dançando conforme os ritmos. A dança é o
prenúncio da primavera, em todos os ritos.

Não sei de mim me repetindo. Vou passar a desenhar. Ser um
puro it num quadro em flores negras. De luto, reluto. São tantos
mortos. Chega. Para a melancolia. Vou dançar. Apreenderei a
dança dos sete ventos em mim. Serei a própria dança. Primeiro
ato da sedução. Sou fera, sou bicho, sou anjo e sou mulher. Sou
minha mãe, minha irmã, minha menina. Mas só minha. Só
minha. Só! Minha! Oferto-me. Somente para alguns. Porque
procuro, acho, falo. Eles me coisam e fico it. Desenhei quadros
vários. Vários. Quem preencherá os contornos, seus vazios?
Essas lacunas, quem pinto e vira eu consigo? Coisas de
transporte com que se distrair.

Ele morreu do infarto. Tão novo; parece que foi suicídio. Uai,
mas ele não morreu do coração? Exato. O corpo opera por meios
a própria intelectualidade duvida.

Não era uma vez. Era um casal. Amigos. Se preparando para
sair à noite atrás do grande agito. Não tenho certeza. Essa roupa
serve? Aquela lá assenta mais com a situação. Você quer dizer
que eu tenho mal gosto? Você perguntou, e eu dei opinião. Lá
vai. Eu ponho esta. A piranha indo para o mar. Você vai se
matar? Oi? Piranha é de água doce. Água doce assenta mais.
Não! Eu vou para o mar. Não queria que nos apartássemos. Mas
nós vamos juntos! Para o mar eu não vou! O sêmen é salgado,
não era isso o que mais queria, então? É verdade! Quê
mansarda! Mas para onde vamos, afinal? Já estou mudada. Não
muda, não. Não Muda, não! Por favor! Gosto tanto de você
assim, aqui, falante. Mas nós não íamos sair? Lá fora os gatos.
Mas é tão difícil. Naquela boate era rapidamente. Não é mais?
Os tempos mudaram. Há quanto tempo você não sai? Nó, lá vai
tempo. ... Se você conseguir é rapidamente. Efêmero. Por
quê? Sabe, queria casar. Lá você não encontra. Complicado,
contudo, é tudo.

Os tempos são um problema. Inclusive marcar compromisso na
agenda.
Eu me comprometo
com
nada
Roda
em dissolução

118
o último que cair que dê
o grito alerta o sonho
acabou
começa
AGORA
o PESADELO
em forma de vida pré-sentida
não está doendo
estou doendo

Vamos correr com a pena. É preciso acordar o dia. É preciso é
preciso é precisopreciso tudo urgente Voltamos às ações
de um tempo que só nos satisfaz no passado. E bem longe. As
pernas e o busto
Quê susto, ela disse em português. Em alto e bom som. A
inglesa metida para sarcasmo .Preferimos o ORGASMO,
retruquei, então. Em tupiniquim. E em baixo relevo. A relva
cresce em torno. Eu quero que você me livre dela. Daí não tenho
ganas de continuar. Continua o clima ameno de chá das
cinco para inglesa não ver. A
subserviência estudada que se abisma para trás.
Traz o chá, e vê se não começa.

O fogo me atrai e me seduz. O fogo é me. Diziam da outra, essa
rapariga é fogo. Só podia se tornar, chama mulher. Difícil
entender por que aquele processo se ele queimou primeiro. Só
dei prosseguimento ao que o outro começara. Perdi o resto do
dinheiro nisso, para me salvar da prisão. E não sei onde faço.
Porém, antes alcancei louros. Publiquei na grande imprensa.
Virei personagem de romance. Mas não viro a face. Não entrego
sem pestanejar. E sai da frente que essa é uma decolagem.
—meu corpo sobe a orgasmo. —não é o fim

Ele me olha e logo me esquece. Sua mão sobre a minha, fazendo
sombra. Não me deixa o tiro de sair pela tangente. Abro e
profetizo o sol nessa chuva que não acaba mais. Parece um novo
dilúvio para o Fim. Depois a seca do deserto. Em nenhum clima
me encontro, embora seja dos extremos. A vida me ensinou o
quanto que perdi. Em suas mãos me perco. Me perderei. Me
perderia, querido?

Consequentemente ao processo, uma breve fama. 15 minutos.
Um livro de contos pela grande imprensa e um prêmio nacional.

119
Contudo, essa escritora não persegue a fama. Desistiu. Escreve,
porque não pode fazer de outro modo; não publica. Ela procura
Literatura. Um dia, acho que acha. Quando chove apenas,
melancolias. Spleen do sul, lá em baixo, névoas. Bruma e breu.
O que não encontra. O que procura? Literatura? Não é o mundo.
É um modo de vida, quando nada mais.

O tempo vai mudando a memória que se tem da gente e que a
gente tem das coisas. Havia um cara que sempre comia rápido.
Até demais. Ficamos vários anos sem nos vermos. Quando
reencontramos semana passada, saímos para comer; ele comia
lento. Não acabava mais. Não que fosse muita comida. É que ele
ruminava a refeição. Como um boi. E eu a vaca. Certa altura,
quase perguntei, não acaba mais? Mas aí ele veio com um papo
difícil de que sofrera um acidente e daí levava horas para comer;
que tudo ficara lento, de repente; que antes ele comia rápido,
que era tudo normal, como se algo fosse normal. Lembra que eu
era o primeiro a acabar? Eu já não tinha tanta certeza e apenas
balancei a cabeça. Acho que ele sempre foi assim, tartaruga. E
não recordo se em algum dia ele foi deveras rápido, porque ali,
naquela experiência de jantarmos, pareceu-me que ele é assim
porque sempre fora assim. E a memória do antes se mistura com
a do agora e tudo fica assim, meio estonteamento. Ele queria que
eu lembrasse de uma cama, onde escrevemos uma crônica, que
eu acho que confundi com a cama onde transamos. No fim dá no
mesmo. Mas uma cama era grande; a outra, pequena. Os
tamanhos se confundem. Talvez ele que era grande e nos
atrapalhamos. Ficam lacunas. Ele preencheu? Ele preencherá?
Ele preencheria? É o bastante? Preciso averiguar, mas deixo
para depois, como sempre. Sobras do jantar, fome terna que
mamãe deixou.

Quando cai, e é raro, uma chuva ralinha, dá uma saudade de
uma nostalgia perdida. A dor. Não sei se acontece só comigo. A
morte é coisa que só acontece com os outros. Mas essa saudade
de uma nostalgia já perdida é coisa de todos? É a própria coisa,
que, por isso, não tem nomeação? A coisa é intrínseca ao ser?
Dor com quê de sadomasoquismo. Um algoz por trás da dor,
alfinetando... têm horas que é bom. Comportamento
meio doentio. Impossível chamar esse algoz para as minhas
cavidades, me penetrando. Faz frio no calor. Tonteiras.
Verte os olhos pedaços do que seria eu. Me
distraio a ti, colando na hora de me
desmembrar.

120
Fiquei dias sem escrever aqui. Dias ausentes. Estou deslocada
para contar a última emboscada. Meus olhos são insuficientes
para abarcar o mundo; seu verde, ou o cinza da cidade. Preciso
fechá-los às vezes. Uma dose e poderia
contar braços a postos. É assim.
Ascese perfeita. Não ouso e não posso, tocar no
amplo do descampado. Meus olhos se perdem.
A imensidão incomensurável.
Luas sóis que parecem me engolir.
Os dias mais felizes são do seguinte modo:

121

Estava pensando reflexão. É uma maneira de se exercitar, rara.
Muito rara; apenas uns poucos se arriscam a praticar. O trauma
final só acaba quando termina e só termina nunca. Pensa nisso
um pouco, e vê se faz algum sentido. Ele está falando para mim!
Para mim! É um abandono quase sutil de grave. Não ouso falar
direto a uma instância superior. Não agora. Não por enquanto.
Por enquanto se desenha riscos que raios! É o poder desta prosa
de balbucios. Mais não pode. Mais o intangível, no qual toco
leve e viro sombra

122
desenhar palavras é uma forma de se esvair. Forma. Forma.
Forma. Até perder o significado e ser somente significante. Não
estou mais presa. Sou
livre
o que fazer com tamanha liberdade? A instância inferior está se
sublevando. Levando o pior, almejo ao menos a ilusão. Então
está. Não insisto mais. Ao menos não sou a mais inferior de
todas. Todos choram.
De rir.

Dias em que ser feliz é crime. Todo ser de luz ou de trevas, ou


de neutro deveria escutar sua própria voz. Tem gente que
procura imitar. Tem gente de fazer cópia. O plágio atroz já
satisfaz um pouco mais. Não obstante, de um jeito próprio. Se
apropriar. A despeito disso, procuro minha voz no meio dessas
vozes todas. Ainda há as das outras instâncias que se querem
superiores. Foto de complexo. Por isso, balbucio. Ainda viro
grito, aguardem. Ainda um dia. De vagar pelas instâncias.
Vagando. Uma vagabunda. Deixo rastros. Vampira que trás a
morte. A trás do descampado. De quatro no quarto.

Às vezes me pego pensando o que seria de mim, se não fugisse,
se não seguisse meus impulsos. A vida pulsa aqui neste pulso.
Há outro jeito de ser, diferente? Não entendo. Seguir
racionalmente, não dá. Sou pulsão. Chega a latejar as camadas
de pele. E o que há por baixo, então? Sou uma ideia ligeira e
passa.

123
Este livro tornar-se-á impublicável na medida em que há várias
páginas trancadas a cadeado e outras mais por vir. A emboscada
ficou pra trás. Precisei me recobrar e narrei. Tive de botar
cadeado. Se alguém achar a chave, pode destrancar. Não me
importo. É merecedor. Basta aqui ressaltar que foi um homem.
Não entendo, os homens não entendem as mulheres. Isto a tal
ponto que se lançou o livro o que quer uma mulher? Todavia
são os homens o fato complicado. Que mulher aguenta se vestir
de homem? Segurar o falo? Só mente as fálicas. Quase digo que
são os homens o problema, mas mudo de ideia todo tempo. E
não sei muito bem o que pensar de tudo quanto penso. Sinto o
corpo, apenas e somente.

Quando encontrei Vinícius, não esperava que fosse assim.
Ficamos conversando por mais de hora. Ele dentro de mim pelos
olhos. Como ele me olhava e sinto que me via a mim. A mim!
As pernas bambas e como que estremecida por dentro. Nenhum
contato físico, embora estivéssemos a nos conhecer pelos
séculos; sexo toda vez que nossos olhos cruzavam. Sabe quando
um olho entra no outro e vai e vem e vai e vem e é o êxtase; é
um vazio de plenitude. Não dá para escrever. Só sentir. Quando
se sente, toca-se o intangível e fá-lo baloiçar. Na corda bamba.
Ficamos de papo. Poderiam ser horas de sexo cálido. Suas mãos
nos meus seios. Mas passou. Horas que se escorrem de
vagar, como gotas de torneira quase fechada. Fica certo spleen.
Valeu a pena? Sim, sempre valerá. Um ser assim é raro. Cada
vez mais. Por quê não o contato físico? Tantos empecilhos. Fica
um gosto raro de promessas; da fruta que seria doce, mas
poderia ser de plástico.
Como ele falava dos loucos; e eu parte sem que ele soubesse, ou
ao menos certeza.
Pensei que ele me tocava sempre nos lugares certos. Seria o cara
certo? Vinícius, esse nome se escreveu em mim. Como apagar?
Uma coisa que não aconteceu não se apaga. Sonhei deitando em
seus ombros e era nice, sweet nice.
Abro os olhos e ele não está. É um sentimento que aprisiona um
bocado. Desejo triste de não se realizar. Espécie de
aprisionamento, por quê seria? Liberdade, ainda que
nunca. Não dá para ficar
acorrentada a isso, senão enlouqueço. Mais? É. Piração total.
Sentimentos constantemente, se não sempre, são embaralhados à
razão. Fica um laivo. Fenda não preenchida de não
conhecimento. Não conhecer dá no mesmo de não experimentar.
Há várias maneiras de experienciar. Essa é uma delas. Quem
pronuncia essas assertivas? Não sou eu, personagem de mim à
noite. Tateio no escuro. Não sei onde me encontrar, porque
incertas. Esta a essência primária que me constitui. Contudo,
não desapego do material. Falar nisso o rapaz de ontem era só
matéria. E que matéria! Ficamos estudando juntos! E blábláblá,

124
etc. De qualquer modo, estudei a valer. Ainda me formo perita e
chega de bobagem. Sexo é sacanagem. Há certo horror? Horror.
Horror porque acaba. Por quê não dura? Não pode durar. Se
durasse, seríamos super-humanos. (embora eu seja uma super-
mulher) Quanta ilusão. E há distinções. Humano e mulher não
são o mesmo, apesar de a mulher ser humana. Ladainha. É o que
penso. Só entende quem pode e só pode quem sabe. Uh, som de
lufa lufa de morrer. A noite começa relutante no coração.
Aprisionada por vontade. Em seguida, após muito relutar,
vagarosa assume o dia e traz as trevas. É isso, desde o princípio.
Na narradora a noite adensa, volumosa. As lides da palavra que
se faz perdida.

Momentos e momentos de silêncio, já. Assumo as prerrogativas


do dia. Coração nublado balança de tardinha. Me constituo
desses silêncios, molhada. Não
perca uma palavra. Custam caro.


De repente meu silêncio se torna criterioso. Percebo que adquiri
responsabilidades. Se bem que a irresponsabilidade seja minha
essência primeira. Deixei de ser persona de mim; de ser apenas
mulher. Transformei-me em narradora. Importância
ambivalente. De qualquer modo, subi de categoria. Não sou
mais mera escrevente. Existiria uma narradora mãe, cujo papel é
desestabilizar o patriarcado e a linguagem universal? Já declaro
que conheço as linguagens do corpo. Mais, não sei se sei, ou se
aprendo fazendo. Narradora mãe que me ajude. Será que existe?
Nova ambivalência. Gosto dos significados móveis. A narradora
mãe não será como o narrador pai, que pensa que controla como
os deuses gregos da antiguidade. Na verdade e em verdade,
penso que antes as civilizações e as sociedades eram regidas
pelo matriarcado. De modo que nós, do sexo frágil, já estamos a
ponto de deter o cetro outra vez. Esta quase narrativa não é uma
guerra dos sexos. Sexo guerreia sexo? Somente em locais
apropriados. A terra semeada. Não seria devastada? Este não

125
livro é de fendas a serem preenchidas. Chega de silvos, a
narrativa dos dias não está completa. É que de persona a
narradora há uma crise identitária e sei ainda menos o que sou.
Não saber é parte constitutiva do ser. Passemos.

Hora da faxina. Tirar, cortar, atemorizar limpar degolar. Falta alguma coisa? O
predicado. Minha função desestabilizadora tem de ser inabalável. Autor que se cuide. E
inclusive narrador pai. Não estou para ninguém; ou quase.

Depois que a gente vive momentos de supra real perde-se a
conectividade com as coisas comezinhas da vida cotidiana.
Permanece a frustração. Como um desapontamento inglês.
Solfejo. Não. Não apreenderei tão fácil. Extremamente fácil
fechar os olhos e viver outra vez
o passado, como entrar num museu e ir passando quadro a
quadro. Nesse fomos felizes; neste outro nem tanto. Neste—já ia
pousar a mão lá em baixo, mas deparei com o quadro final—
deixa pra lá. O horror. Abro os olhos e outra vez o apartamento
depredado. Se furasse os olhos como Édipo, viveria no passado?

Tudo. Tudo, menos a verdade neste país rechaçado. As
máquinas anunciam a solidez dos objetos. Dizem mentiras nas
quais acreditar para sermos de novo felizes. Devemos ser
felizes. Devemos; que importa? Chatice essa ordem imperial,
que descumpro com garboso prazer. Azul me aniquila, exceto se
vem vestido de homem. Este tópico é outro. Deveria ser
separado em outro fragmento, a fim de não confundir. Sou a
narradora; assumo esta narrativa como quiser. Sou fragmentária
dentro do fragmento. Tenho minhas prerrogativas. Minha
desordem não é coercitiva. Deixo ir indo fluir. A narradora tem
razão. O não sentido é já um sentido. Significados são móbiles;
não aprisionados a significantes. A narradora
Assume de vez. Veremos no que que dá. Ixi! Danou-se.
Agora é tudo meu. Nosso, né, mãe!? Quem cala não diz. As
instâncias estão quietas. É tudo meu. Posso silvar
a meu bel prazer. Nem tanto, filhinha. Ops. Passemos, mãe?

Já me garanti nessa história, que é minha afinal de contas. A
morte de Leandro, acho, é a que mais me pesa. Talvez porque
não transamos, talvez porque ele quisesse demais, talvez porque
eu quisesse demais. Com tanta pressão assim não sai, não vai.
Mesmo sendo ilógica, insisto na busca de uma explicação
racional, ou ao menos plausível. Não sei o porquê. Dizem que é
humano, mas sei lá. Outro dia a mãe de Leandro veio me

126
procurar e entregou uma carta lá dele. Tremi. Esperei que ela se
fosse para abri-la. Tive de chorar, não aguentei. Ele pedia
desculpas; o que mais queria era me satisfazer e se odiava por
não conseguir ser meu homem. Não havia ninguém olhando.
Chorei e chorei mais pelo que podia ter acontecido do que pelo
que aconteceu. Nessa noite sonhei com o rapaz raro. Os meses
que passamos vieram em flash. Seu sexo duro e quente e grande
em mim. Esses rapazes se misturavam e confundia-os num
delírio de arquivista. A morte do rapaz raro não poderia ser de
outro modo. Tentava não pensar nisso e só sentia seu corpo ao
fechar dos olhos.

Barthes fala muito de notações. Notação 1: hoje fiz totó e era o
começo do mundo. Notação 2: ontem silvei e foi o começo do
medo.
Nunca me saberei aqui, me escrevendo. Penso que acho. Achei a
memória de um canto que não me satisfaz. É a voz dele, em
falsete, que não agrada. Homem tem de falar gutural, ao pé do
olvido. Fazer estremecer, dentro. Fala é canto acerca do
acasalamento. A música vem para mim e estou úmida e mole à
espreita do que vem. É ele; esqueço-o logo que se vai. Aí fecho
os olhos, lembrarei sempre do rapaz raro? Ou de Vinícius, do
que não vivemos
boto a mão lá, o sexo ainda quente do prazer que não sacia.
Acaricia minha flor a memória fragmentária e sou feliz de novo.
Acho que penso que mudei de ideia. Me escrevendo me saberei.

Faz outro dia quente para a estação. Esses dias que são sempre
os mesmos não deixam espaços brancos de preencher. Faz mais
calor fora, ou aqui dentro? Signos ambivalentes. Estou para
apreender os silêncios dos corpos. Já sei de seus barulhos. O quê
diria o corpo do que me quis, e não obstante, não conseguiu a
mim? Já levantei hipóteses, mas qual a tese? Este será meu
doutorado. Aguardem.

Fico considerando para quem escrevo;
escrevo para me saber, todavia o interlocutor é fundamental.
Quem escreve deixa um rastro. Seria para meus mortos
queridos? Escreveria para meus homens principais mais o
Vinicius? Vinicius seria o único vivo que vai se apagando, de
qualquer modo
escreveria para todos os caras , a fim
de soubessem meu íntimo e não me consumissem apenas como
coisa. Pode ser. Pode ser.
Escrevo, enfim, e o interlocutor está incluso, sem remissão.

127

Pensava que se comandasse, mas vejo que quem manda é o
desejo. Fiquei olhando paredes brancas. Por quanto tempo, antes
de? Fico olhando paredes brancas, vendo o branco
dissociando o branco sendo absorvida pelo branco, de tal
maneira rodarodaroda e entrevejo Anais Nin de capa preta
cantando Baudelaire querido, que flana e desespera, perdendo o
jogo para sempre; e outros menos, menos ainda. Não volto.
Ficarei olhando paredes brancas. Não obstante, olho paredes
brancas. Fixa. Não. Desisto. Não resisto. Existo? Pensei que a
mente comandava, mas o corpo, e etc. O corpo urra outra coisa e
sucumbo. O quê mais fazer? Uma mulher sozinha. Sucumbo
angustiada, mais um flanco de mim. A náusea. –de toda vez—
enquanto namorava nem tanto—enquanto casada, na verdade,
posto que quando namorei?

Perverso perverso
Me deixe
a trás do verso

Vou voltar a escrever aqui. A poesia não é escrita? Por quê
outras instâncias insistem em me interpelar? Para ordenhar a
narração. Não sou nenhuma ovelha; de mais a mais, poesia é
urro. Chega. Sou livre. Mulher
moderna. E não me interessa os julgamentos de outrem. Escrevo
o romance de minha não vida. Achei que a poesia me bastava,
mas nada basta, nem o romance. Ouvi um Carneiro berrar a
literatura não me atinge. Nesse caso, se jogue do último andar.
Quando a literatura não me atingir, já sei o que fazer. E se.

Sou um artista.
Autista.
Não, artista mesmo. Escrevo palavras.
Não, escreve água.
Claro, escrevo água, fogo, paixão
morte

Imagino como seria me casar. Seria uma certa volúpia
nauseabunda. Será num campo inglês. Muito verde. Meu vestido

128
preto arrastando o chão. Os convivas estupefatos. Eu caminho
para o noivo. Um certo rapaz que subiu dos mortos, como uma
fuga. Estou maravilhosa refletindo a luz da lua e das tochas em
torno meu vestido negro. Chego
a ele. Trocamos alianças, de acordo. São ametistas do Egito
antigo. É para que o casamento dure. O noivo me crava os
dentes ao pescoço. Estou ébria desse acordo e o céu começa a
despencar em forma de vingança. Num delírio acordo, molhada
de suor.

Sonhei um casamento dos sonhos lá longe. Na infância da minha
ideia, fico meio frustrada. Assim acho que me entendo. E não
me entenderei. Palavras zero. A zerar. Acho que é uma vertigem
essa sensação. Sou sensória, só não sei que nome dar a tudo
quanto sinto. Parece alguma coisa de breu. Brear no escuro.
Mais difícil que brear no claro. Sim, aquele casamento não daria
certo. Não deu. Não dá. Não pode durar. Se tivéssemos mais
tempo, acho que acho que era bem pior. A gente fantasia muito
depois que passa. Acha que era doce quando é terror. O horror
pode satisfazer em alguns caracteres. Não no meu. Não comigo.
No entanto, como não pensar em si? Só porque ele matou
estripou roubou e etc? Os outros também não? E depois só
querem cavoucar em mim e me fazer de besta.
Melhor dizendo, mula. A besta ainda poderia causar horror.
Lembro-me de uma coisa que disse a respeito do outro. Vale
reproduzir aqui para ver se me tira desse abatimento:
O outro é sempre um problema.

Agora estou expurgada. Vou transar com meu vibrador que comprei com meu dinheiro
e ver se esqueço essa raça. Virarei misógina. Comprarei uma cabana e viverei no meio
do mato. Talvez até gere prole de uma onça. Seria o que faço de melhor. Sumir. Me
matar. Acho que consigo. Aqui é muita piração. Este século. Os seres não são mais
seres. O que seriam? Tenho medo de pensar; de quebrar essa reflexão. A massa informe.
De quê? E precisa dizer? Vou fazer voto de silêncio

Não aguento e quebro. Meu hímen pulsa. Que venham os homens bastardos e inglórios.
Deixai-os entrar. Meu espírito sai. Sou só corpo. It em último grau. Os últimos serão os
129
primeiros e os primeiros
não precisa nem dizer. Quebro a tautologia. Me rendo e quem me vence é este que me
adentrou a porta. Me materializo com esse. It mais seu corpo numa conjunção corpórea
e não aguento que fique mais de duas horas.

Não quero contar como que foi esse outro dia que saí com aquele
homem arrogante e estúpido, para dizer só coisas boas de si. Ele está
bem distante de mim.
15 minutos de conversa e já estava aborrecida com aquele papo. Tinha
uma conversa fiada, incrédula e racista. Racismo em pleno século
XXI? Ele dizia esses pretos que se acham gente. No tempo do meu pai
que era bom; crioulo ficava é na senzala. Pensei quantos anos teria.
Devia querer ser enrabado por um afro. Indagou se eu já tinha
prevaricado com um preto. Olhei-o de cima a baixo, não. Não podia e
não perdoei. Disse tudo o que faço com os pretos. Até engulo! Ele
ficou roxo, e olha que ele era quase albino. Virou a mesa e
estrebuchou. Depois que gritou o antigo testamento e pagou a conta,
me pegou pelo braço, falando que me levaria embora. Não tinha nem
como recusar. Tentei anunciar o novo testamento, mas batalha
perdida. Ele parou no meio da estrada, me bateu e me estuprou. Adoro
sexo, mas à força é outra coisa. Não é mais contato, orgasmo.
Nenhuma mulher, nenhum ser vivo merece passar por isso. É uma
violência sem limites. Ele me machucou e me deixou prostrada, a cara
no asfalto para ver se eu honrava minha ―raça‖. Com o pouco de força
que me restava, honraria minha raça, levantei, não morreria ali. Até
poderia. O asfalto quente e a noite fria me cobririam com sua
escuridão. Mas eu, colibri à vista, não desistiria, não desisto.
Cambaleei pelo asfalto. Consegui carona de uma feminista, que me
levou direto à delegacia. Estavam de greve; o atendimento demorou.
Contei a história e a delegada só olhou para mim. O que você queria
com essa minissaia? Saí dali pior do que entrei.
Por que o ser humano é assim?
As pessoas pioram a cada dia.

O fim do mundo não tarda.
O quê fazer
até que chegue a hora?
Ora,
aproveita,
que é tua última chance.
Depois

130
acaba
e é para sempre.
Nunca mais.
O fim do mundo não tarda.
Aonde haverá um pouco de amor,
posto que meu coração é sensível,
e eu não tenho com quem chorar?

O fim do mundo não tarda,


noticia os jornais.
É fato certo,
comprovado pelo calendário Maia,
e os Astecas ratificam?

Ora,
o fim do mundo não tarda.
Onde passar o último segundo do último minuto do último dia de nossas vidas?
Onde um amigo?
Onde um amante?
Onde um lar?
Ande, ande, ande;
o fim do mundo não tarda.
Passá-lo-ei nos Andes?
No Alaska? Em Nepal?
São tantos os lugares;
tanta coisa por fazer
É melhor agilizar,
não ficará pedra sob pedra.
Ou melhor,

131
não haverá pedra.

O fim do mundo não tarda,


todos anunciam
as pessoas, as pessoas
onde pessoas?
dentro em breve não haverá pessoas.
O fim do mundo não tarda.
Sem eixo, cindida,
sem nenhum amigo,
apenas uma menina,
tendo a melancolia como parceira,
entrevê no meio do fim uma esperança;
ela reluz em seu olhar.
Ela sonha com outro mundo
Talvez um pouco de luz e Nada mas

Não há mais pessoas. Há objetos sem nomes de monstruosidade. Nova reclusão.
Fiquei por meses a fitar paredes brancas, obnublada. É uma
espécie de vazio, diferente. As coisas começam a sair
meio do lugar onde estavam. Alcançara o estado de neutro, em
pedaços.
Olhar paredes brancas, me tornar parede com as paredes e ouvi-
las sangrar.

As paredes dizem um silêncio espesso. Aprendo essa linguagem.
Falo com outras paredes silêncio. Estamos irmanadas; até que a
vida fale mais forte
e o sexo me subjugue. É bela a vida na parede. Pena que não
dure. Volto aos bastardos inglórios. Porém, com outro tipo de
relação. Eu que os faço coisa e não o contrário disto. Deixo-os
sempre na medida do impossível machucados. Claro que
escolho minhas vítimas. Não obstante, a dor maior sempre cabe
a mim. E não me dou por satisfeita. A vida segue. Como parar a
máquina? Alguém trouxe a chave? Não é para os cadeados que

132
botei. É para me libertar.
Só eu posso e não consigo.
Vou ser alegre. Felicidade é para os fracos. Sou força. Vamos lá.
A dança dos sete véus. O rapazinho que não cresceu os bigodes
e quer transar. O rapazinho de bigodes que não consegue
transar. Ô, coitadinhos deles. Não sei de qual tenho mais pena.
Só querem dar uma sapecadinha. Eu que não me faço de rogada
os atiço e vou embora. Eles que se masturbem, pensando em
mim entre um movimento e outro. Vamos nos descobrir. Esse
assunto de sexo cansou. Eu quero o âmago. É que às vezes
esqueço ao que o corpo fala mais alto. Quando isso se der meto
logo um cadeado. Sim. Alegre. Só não vou para Alegrete.
Voltar, nunca. Somente em pesadelo.

Estou optando pela despragmatização da palavra. Outro vício de
linguagem. Não serei mais it. It ainda é uma espécie de ser.
Despragmatizar. Ser com as paredes. Abolir referentes. Em
seguida procederei à abolição do significado. Finalizar com a
suspensão dos significantes. Será o livro vazio, silêncio
primordial onde não há palavra.


Esse não livro funciona do seguinte modo. A ausência é indesculpável. Assim apareço ora aqui
ora ali,

fragmentada.

Assuntos de existir. Desistir é um tipo de moléstia que acomete por vez.

Vez ou outra pratico a renúncia para retornar mais forte. Sabendo que. Palavras escapam, não
poderei contar meu grande segredo. Não poderia. Não pude. Não posso. Conto:

E passo um cadeado. Sou livre em palavra para realizar o que se me


der.

133
Escrita como sirgar. Estou sirgando, mas o velame foge. A procura é
eterna. Hora acho e agarro. Verte sangue. Não tem problema. Penso.
A cicatriz é um emblema do que virá.


Futuro é repetição de passado. Devo concentrar o máximo no
mínimo. Assim penso vou indo. Não tenho medo de gastar as
palavras de que sou feita. Cada palavra é uma constituição, ilha de
terrível sede. Não acumulo. Vou gastando. Quando acabar estarei
feita. Houve uma medusa que lançou seu feitiço para a sorte. Rolou e
quedou, estrebuchada. Acho que dói. Dor é estágio para
compreensão. Não quero compreender. Regozijada na
incompreensão. Pronto. Para que se elevar, se o chão é tão bom,
último anteparo aos que caíram de vez?


Estou para dizer que existir não está com nada. Nada de real. A
psicanálise tira dias de folga e não me deixa dormir. Insone
sonhe

Um cavalo de um hotel, daquela ilha. Ilha de terrível sede.


Não nos acostumamos às grandes mudanças com veloz prazer. Inda
mais que reviravoltas nem sempre são frutíferas. Acho que penso
que cansei de fitar paredes. Voltar com o sujeito. Sujeito é corpo. Me
meduzo toda, mesmo que no fundo do abismo. Já passei da beira faz
tempos. Afora escalarei de volta. Honrar a minha raça. A fêmea que
engolirá o macho. Não que eu seja feminista. Sou mais dada ao rosa
pálido. Posso ser divina. Adivinha minha natureza ímpar. Sonhei que
uma bicha gay me penetrava e isso me dá imenso gozo. A literatura é
clè. Autor não existe. Eu, que assumi as diretrizes, danço. Agora
danço. Dançarei, então. Pista e vida onde me lanço ingrata.
Nobremente ingrata de um futuro que não percebo. Escrita é signo
de resistência para esse não livro que berrará para todo sempre.
Bezerro tolo. A faca significa. Olha, a faca. Significa. O que a faca
significa? A faca fica. Sobre a minha mão, aqui. Marcando ponto. Faz
sangue a mão que jaz. É alívio para o desespero que se me dá.
Conheci o homem das minhas circunstâncias. Ao menos pode sê-lo.
Poderia? Pôde? Ele usa aquelas calças de regueiro; é magro,
magrinho e têm os cabelos como os de Bob Sideshow dos Simpsons.
Ele é gozado e se chama Newton. Será que ele me mataria? Fiquei
meio envolvida. Tola e frágil. Cedendo à minha raça. Meus instintos
me tiram do sério. Como resistir? Não deveria escrever isto aqui.
Minha morte combina com meu ser—corpo de carne—que se faz

134
linguagem. Escreverei a ele meu corpo prometido. Não me salvarei.
Farei um safari.


A literatura atinge? O quê ou quem a literatura atinge? Por quais
meios? A cultura de massa. Na massificação não importa a qualidade,
mas a relação. A relação que mantenho com o objeto é de corpo. Um
corpo agindo no outro corpo. Dois corpos. Um corpo. A relação
termina quando me desligo doutro. Volto a ser somente eu, eu
mesma, sem a mediação do outro. Às vezes fica insuportável. É tudo
sistematizado. Automoção final.


Outro dia no passado me perguntaram de Newton. Quê Newton?
Newton que lembra o Bob Sideshow. Passou. Eu vendo TV, ele perto
de bananas. Sabe quando a gente se empolga com uma pessoa e vem
e parece o êxtase, só que depois passa a emoção e a gente vê que
não é nada daquilo? Sou mesmo uma emocionada! O que me move é
a emoção. Às vezes bate e é um turbilhão. Outras não. Se não tem,
não vem.

O céu escurece rubro.


Alguém pintou o teto do mundo
de vermelho.
Alguém? Alguns.
Cada um na sua vez.
Escuro.
Meu coração rubro
bate
bate dentro, bate. Ainda bate.
O dia claro virá,
afinal?

Deito só, por quê não? Este não livro é um poema infinito que se
abre ao vazio e um romance sem fim que se fecha com o caos.
Começo a escrita pelo silêncio que antecede, bailando. Antecipamos
os ritos. Aproximação com o real virá quando puder. Preferia a beleza
do lixo ao que se dispôs conversar. A relação dos corpos precede ao
ato de desunir. Ele ficou sem mim, na abolição. Tudo se pode dizer,
mas nem tudo se pode dizer. Quem é ele? Ah, que bom que as
intervenções, que pensei não mais existirem, estão de mais
interessantes! Mãe? A mulher não se revela por inteiro. É como um
oráculo. As advinhas são jogos masculinos, porque os homens têm
por costume falar às claras. Nós da outra raça dizemos incógnitas
ainda que dentro da razão. Fiquei estremecida, falarei. Ele é o nome.

135
Fossem os homens como nós! Calou-se. É para que
eu vá adiante. Minhas incongruências de que sou feita. Serei ali
talvez amanhã sempre me esquivando.


Este livro ficará impublicável na medida em que sou totalmente
sincera. Muitos surtos de mania. Manias de repetições. Um dia
ficará diferente? As invencionices mirabolantes são golpes de
extermínio à ficção, porque é tudo verdade. Verdade, verdade,
verde; da cor da esperança, ou seria da outra cor sinistra da
caixinha? Segunda invencionice mirabolante: escrever cartas
azedas para todos os meus amantes, dizendo o quanto não foi
ruim. Começar dizendo: querido que passou pelo meu corpo
rápido... e blábláblá cá.
Cá cácá. Não serei redimida.

Jogarei comida aos pássaros da noite.
Na tentativa maluca de encontrar minha onça, pintada ou não.
Sabe aquele prazer meio perverso de respirar o mesmo ar daquele que
não se chegou a conhecer e acontecer por isso o êxtase? Incorri nesse
delito. E quando chegamos ao motel não foi bem isso que esperei. Um
clima de frustração no corpo do sujeito. Nem consegui pegar direito.
Ele me pegava toda, tirando-me o prazer. E olha que ele queria. Fiz as
reclamações devidas. Então o segundo round: nem assim. Não deu
liga. Aprendi que quando não vai da primeira, as outras são
aprofundamento de insatisfação. Ler um livro do que quer que seja às
vezes não adianta. Incontáveis vezes o conhecimento só se dá pelo
corpo.
Me espera
numa esfera
mais sonhada.


Sonhos de pesadelos. Ouvi um chega pra lá certa vez que me
estremeceu. E nem era comigo. Comigo: não se dá da seguinte
maneira um discurso que só tem de seu palavras roubadas a que eu
não junto ao predicado o desejo do que quer que seja. Seja dada a
benção em horror aos que não seguem a fluência truncada. Eu sou
fluída ainda quando em solavancos e entraves. Por entre os cortes
passo fluxível. Tenho de meu este discurso, cuja agonia comanda.
Porém, disfarço e quase alguém não percebe. Chegarei ao meu ponto
total de elipse no que alcançar o silêncio da página em branco. Que
culpa que eu tenho se minhas páginas são negras em alto relevo, se a

136
permanência é mais agradável que a viagem, se eu só tenho essas
palavras poucas?

O mundo é tão patriarcal. Esse patriarcalismo de quando em quando
dá uma canseira... por quê se convencionou que é o homem quem
come, se é a mulher quem possui os lábios? E essa objetivação do
sexo feminino. Por quê sou coisa e não pessoa, como os homens
cidadãos? Plena e estarrecida, ao menos sou coisa de cor e não objeto
de monstruosidade. Certo que há objetos de monstruosidade do sexo
feminino, mas essas deixaram de ser mulher há tempos. Não?
Você não me deixa o tiro de sair caluda. É só uma frase, e salva. Frase
não é sujeito. Sujeito é coisa atordoada; frase, a sua essência primeira.
Lembrem-se: o verbo surgiu primeiro que o homem.

Toda coisa tem entorno uma frase; às vezes a diz; se não diz é que sua
essência está arranhada, ou podre; o que é bem melhor. A literatura
não me deixa dormir. Se durmo, temo à minha desaparição. O que
seria deste não livro se sumisse. Tantas histórias por contar quantos
cadeados nas páginas. Mas não, conto tudo tim-tim por tim-tim. Essa
fera estudada de mulher. Angela fizera o livro das coisas. Seria
cabível fazer seu antípoda: o não livro das coisas? Vou indo insone à
medida que a narradora, que sou eu mesma, me deixa aqui a silvar.
Esclarecimento didático II: havia a rapariga desnomeada; a narradora;
eu, o narrador pai e o autor. Agora no momento atual das
circunstâncias há a persona da narradora, a própria narradora; eu, o
narrador pai; uma suposta narradora mãe; e o autor.
Ih, o narrador pai dissera que a narrativa estava em minhas mãos. Era
mentira? Filha, os homens são uns inseguros, roubam sempre um
pouco mais do que estão preparados para dar. E na medida em que a
incoerência se instala, ele, o narrador, pai à força de guizos. Vamos
medir esse narrador pai para checar se ele está com essa bola toda? Eu
também acho. Cherecas não se dão conta da sua inferioridade.
Tocamos seu ponto fraco. Ou seria ponto menor? Acabou. Acabou. A
narradora tem passagem até o final, a despeito de sua incoerência.
Veremos o que se dará. A mãe tem a palavra final, que é primeira por
isso mesmo.

Outro dia ouvi um padre dizer que humildade é saber seu lugar no
mundo, mas e quem não tem lugar no mundo, como eu? Não sou
humilde, after all? Porque sou desprovida de humildade não tenho
lugar, nem marcado, nem errado. Ocupo um não lugar de perda. É esta
a minha humildade?

137

Como não direi com orgulho interdito que quem escreve deixa um
rastro de vida secreta que passa como um raio veloz demais para o
olho humano captar esse segredo não era o que mais queria. Ainda
que não fosse um queixume, seria uma porta para o abismo.
Subo aqui e não há nada aqui. Em cima do que subi? Flutuo sobre
palavras. Alguma me daria alívio? Alívio para minha sede
interminável?

Essa viagem é uma perturbação. Sobre as palavras não saberei
pensar como quando a meditação em joias raras. Os olhos
refletem, somente e apenas. Tenho mal-estar de mim mesma.
Tentei lidar muito com isso, mas não pude, olhei para mim
mesma e não resisti em absoluto.

Certa feita tentei e não consegui dar esmola a um mendigo e me
senti mal, um bocado mau-star. Tinha dinheiro, não tinha brios.
Ele veio se achegando. Eu quis, no entanto, abanei a cabeça em
negativa. Não sei achar uma explicação plausível dentre tantas.
Era dia de brisa. Me contentaria com uma mentira. Qualquer
coisa ilógica de se apegar, mas nada vem. Nada que pudesse
sossegar um peito oprimido, pelo excesso de carinho.
Nem sei mais se sou a favor das mulheres ou de homens.
Homem é tão cada vez mais joia rara; objeto em extinção, nos
caminhos do conhecer. Sabe, um homem como Vinicius que faz
você se sentir inteira e é como se só você importasse e ele
estivesse ali somente com você, apenas por você, e você sendo o
centro? Fiquei nervosa e como cadela punha a língua pra fora
nesse colóquio. E foi só uma vez; não sei se perduraria esse
sentimento se nos encontrássemos de novo.

Nos últimos anos, em dois meses, conheci, três Rafaéis. Esses
homens todos significam Rafael? E o que significa esse nome
primeiro, Rafael? Não poderei esquecer jamais o rapaz raro,
meu Rimbaud, o primeiro Rafael de uma lista enorme. O
segundo parecia um anjo, com seus cabelos encaracolados e
negros. Barba cerradinha e olhar de quero mais. Com nenhum
desses três dá certo. Fica sempre faltando um pedaço. A vida
imita a arte. O rapaz raro era uma obra de arte com seu baú
escondido repleto de horrores. Do sublime ao grotesco é o que
significa. Rafael não significa nada. É só um nome, e nem era
seu de verdade. Qual seria? Longe daqui? Tarde demais?
Nunca! Talvez! O terceiro Rafael é louro de olhos castanhos
claros. Foi passageiro e efêmero. O quarto era tão novo que nem
dava, uma criança bonita com a qual troquei apenas uns beijos.

138
Na verdade, não tinha pegada e não foi adiante. Teve um Rafael
do qual já falei, que não quero nem lembrar. Porém, contudo, no
entanto, todavia e entretanto, o Rafa 2 de cabelos encaracolados
e negros me demorou o olhar. Não pude esquecê-lo e viver a
vidinha mais ou menos como é costume que se faça. Ele me
intrigava e fomos morar juntos. As adversativas são por um
único e cabal senão: ele é gay. Oh, céus! Como fazer? Não
fazer? Isso é opção? Que tipo de opção seria esta?
Conversávamos intensamente e nos dávamos bem em tudo,
exceto na cama. Esse tipo de casamento branco já fora vivido
por Duras e tematizado por ela em livros. Não sei dela, mas não
consigo lidar muito bem com isso. Conversávamos tanto acerca
de livros, literatura e a chuva de homens que saía de seu quarto.
Tive que começar a publicar para nos manter. Ele se entregava
ao ócio, à discussão das palavras e aos homens. Eu mantinha
tudo isso, mas como não sou frígida, deixai os homens entrar.
Nossa casa era animada com um desfile rotineiro de homens,
heterossexuais e gays. Certa feita tentamos uma orgia que não
deu muito certo. Acabou que transamos um ao lado do outro,
com seus respectivos amantes, e eu fitando-o. Nisso meu
parceiro brochou. Chamou-nos doentes pervertidos e foi-se.
Tenho sim um certo modo de perversão. Mas como dizer que
desejo meu cônjuge sim e não tenho armas para lutar? Ele ficava
cordeiro como um carneiro nessas horas. Trocávamos beijos e
era um pedaço do céu. Tinha que ter mais contato... por minhas
insistências e após algumas discussões fomos transar. Chupei-o;
ele nada. Ficar chupando chup-chup descongelado não tem
graça e parei. Fomos à penetração. Usei uma cinta-liga com um
pênis de todo o tamanho pendurado. Penetrei-o. Só que não
tinha graça. Vai-e-vem, vai-e-vem, e eu nada. Parei. Desisto. Eu
sou uma mulher. Preciso de um homem. Boto ele pra fora,
dizendo poucas e boas, mas sabendo no fundo que a culpa é
minha. Fui eu quem criou essa situação em que sabia que não
teria êxito. O problema é que a gente sempre acha que vai mudar
o outro. Pensei que achei que não há rótulos, héteros ou gays. Os
seres humanos são seres vivos e se se permitirem, podem
experimentar e gozar de tudo. Sensualista tola! É que tive um
amigo gay que ocasionalmente transava com mulheres se a
situação o impulsionasse. O que mais fiz foi situações de
implosão e eu que acabei queimada.


Por muito tempo fiquei descrente, mas não sei mais. Não hoje.
Não agora. Deixei do hábito de fitar paredes brancas. É uma
inutilidade vazia. Agora dei de encarar borboletas. Se passa
uma, ou quando passa, olho-a longamente e me perco em sua
existência efêmera. Procuro alguém que me deseje com
bondade. E que seja um homem. Haverá?

139

No último quarto de hora tentei escrever meu testamento. Tive
de lidar com algumas aporias. Não tenho tantas coisas para
deixar como pensava. Afora alguns cadernos, este apartamento
esfarelando em pedaços. É alguma coisa, se penso em pessoas
que moram em lixões. O que mais me atormenta é para quem
deixar. Perdi meus filhos. Meus amantes? São tantos, que se
fosse repartir entre eles, alguns ficariam com fragmentos de ar.
Não sei por que esse assunto me incomodou. Depois que não
estiver aqui, o que importa a matéria? A mim, como coisa
morta, nada importará. O que me falta é um mais além. Acho
que penso que é a falta de herdeiros, já que não poderei mais ter
filhos. Vou adotar um... será você, meu leitor, igual, hipócrita,
singular e anônimo, como eu?

No último quarto de hora tinha luz cruel, onde me atirei de
bruços, encadernada e pronta para levar, mas quem veio achou
que era outra coisa e não teve conversa. Pela janela vejo longe
as luzes da ribalta. Quisera um palco só pra mim de encenar meu
corpo ─meu corpo linguagem─, mas aqui na luz escura da noite
medito sem parar nos ratos que urgem. Há mais ratos na minha
mente do que fora. E meu corpo se divide; essa e a que não sou
e outras que distingo bem, mas essa é determinada e ao mesmo
tempo fraca para esboçar um gesto, sequer. E não estou falando
de outras instâncias narrativas, mas de uma outra que achei aqui
neste quarto de motel. Seriam pedaços da rapariga desnomeada?
Creio que não. Elas têm alguns pontos de contato, porém,
possuem mais divergências que sinais de convergência. Acho
que mergulharemos na loucura pouco a pouco. Talvez seja este
mar, que traz uma melancolia de fardo. Álvaro, se soubesse que
a vida é isto, teria tanto trabalho em não pensá-la? Me deito ao
chão, a fumar tabaco. Sinto-o gelado. Não penso por alguns
minutos na saudade que vai longe e trota por lugares
impensados. Não imagino a vida como seria ao seu lado. Me
contento apenas em sentir o chão, gelado. Não dou por isto, nem
por aquilo, ou por coisa alguma. Acabo por concordar com
você: a vida não vale a pena. Mas ficar parada? Não. Não sou
dessas. Me desculpe, faz favor. Mas não sou dessas. Pinto o céu
de vermelho. Me desvio na cama em agonia. Mas não posso
ficar parada. Não por que não seja dada à contemplação, embora
seja uma voyeur arguta. Nem por que não me sinta bem
pensando meu vazio interior. Então, o quê? A vida. A vida pulsa
em mim e me faz dar cambalhotas em pleno ar. O sangue não
me deixa ficar quieta no meu canto, que nem tenho de meu.
Assim como sou, tenham paciência. Se fosse como você,
Álvaro, que eu nunca senti mais de perto, pode ser que me
matasse. Você não se matou, não é? Sua busca impaciente de
querer ser outro me impacientava. Já temos tantos em nós, que à

140
simples possibilidade de ser outra, desvaneço. Não. Não
comigo. Ser eu, eu mesma, já é tão difícil; eu que me
desconheço milimetricamente. Se fosse outra acho que penso
que explodia. Não, Álvaro, sermos nós já nos basta. Pra quê
complicar ainda mais? Se bem que já sou complexa por
natureza. Complicar é minha prerrogativa indelével.

Na Espanha chove muito no verão, em certas localidades. Eu,
que nunca estive na Espanha, me contento em lembrar das
chuvas de Porto Alegre no inverno e me conformo com a seca
da região. Olha, nem há mais mato. A vegetação em torno pegou
fogo. Viraremos deserto.

Estou aqui de hora em hora com muito pavor. A mulher do
pavão é pavoa? Vou me pavonear. Pavoa. Abro os braços e já
não tenho mais os pés no chão. Será que rolarei sobre o asfalto?
Se aproxima uma tempestade de areia. As fotografias são cruéis.
Nos sobrevivem. Não sei se você reparou como elas nos
lembram pessoas que costumávamos ser e já não existem. Com
orgulho, não me deixei fotografar. Essa que fui não é essa que
sou, como também não sou a que serei. Se olhasse uma foto
antiga seria o mesmo que olhar uma desconhecida, mas se
tivesse uma foto do rapaz raro, que leve torpor! Quando morrer,
não deixarei imagem...

Acho que já contei tudo. Os dias estão
completos. Apenas alguns cadeados. É assim
desde o princípio. E só. Me sei? Quem se
sabe? A gente vai indo. Cada segundo é uma
surpresa ou uma fatalidade, da qual não se
escapa
incólume.

Alguns assuntos são inenarráveis. Começo a perceber,
deveria falar do mais importante, mas escapa, vive
escapando, porque só é possível viver, apesar de tentarmos
uma aproximação, que novamente, escapou.

141

Os Rafaeis foram uma preparação, não?


Penso que me despersonalizo
Deixo IsTo que sou
Para Ti

não é

amor?

ÍNDICE ONOMÁSTICO

Ana Cristina Cesar


Arthur Rimbaud
Augusto de Campos
Billie Holiday
Cazuza
Carlos Drummond de Andrade
Charles Baudelaire
Chico Buarque
Clarisse Lispector
Donatien Alphonse François de Sade
Edgar Allan Poe
Emily Dickinson
Fernando Pessoa
Philippe Lejeune
Florbela Espanca

142
Florence Welch
Gertrude Stein
Herberto Helder
Hilda Hilst
Hyldon
Jacques Lacan
Janis Joplin
John Keats
John Milton
Jorge Luis Borges
Julia Kristeva
Katherine Mansfield
Lúcia Castelo Branco
Manoel de Barros
Manuel Bandeira
Marguerite Duras
Maria Gabriela Llansol
Marcely Costa
Maysa Figueira Monjardim
Oscar Wilde
Renato Russo
Roland Barthes
Sebastião Uchoa Leite
Sigmund Freud
Silviano Santiago
Sófocles
Stéphane Mallarmé
Thomas Stearns Eliot
Walt Whitman

143
William Shakespeare

Todos esses autores estão espalhados pelo


livro.

144

Você também pode gostar