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Projeto (de pós-doutorado): Autobiografia, confissão e testemunho em quatro

narrativas da contemporaneidade brasileira: entre o público e o privado

Rogério Silva Pereira (Universidade


Federal da Grande Dourados)

Introdução
Este projeto é uma proposta de estudo das narrativas Batismo de sangue (de Frei
Betto; publicado em 1982), Em câmara Lenta (de Renato Tapajós; publicado em 1977),
Os carbonários (de Alfredo Syrkis; publicado em 1980) e O que é isso companheiro?
(de Fernando Gabeira; publicado em 1979). Trata-se de projeto que se desdobra de
estudos feitos no âmbito do projeto de pesquisa Fronteiras da literatura brasileira
contemporânea – FLBC (FACALE/UFGD), ora em andamento, ativo desde 2007, com
desdobramentos em orientações no Mestrado em Letras da FACALE (com cerca de 9
dissertações defendidas), com orientações de PIBIC (Cerca de 6 orientandos), dentre
outros produtos (Cf. Currrículo: http://lattes.cnpq.br/4508832592714301).
FLBC vem estudando, sobretudo a partir da noção de gênero do discurso (Cf.
BAKHTIN, 2003), textos literários brasileiros produzidos ao longo dos últimos 50 anos
a fim de descrevê-los como narrativas com mecanismos discursivos próprios, aspectos
que os situariam dentro de uma periodicidade histórico-literária específica. Uma
hipótese geral é a de que esses textos são configurados em diálogo com a chamada
contemporaneidade literária brasileira, sendo eles próprios constituintes desta última.
É preciso explicitar alguns aspectos do surgimento de uma contemporaneidade
literária brasileira – que se dá, diga-se, a partir dos anos 1960.
De um lado, aparece em explícita e inescapável relação com a chamada Indústria
Cultural (naquele momento, em processo de consolidação) e com a autonomização da
produção literária via mercado. Tudo isso, no contexto político que ganha denso
contorno a partir da força institucionalizadora do regime militar brasileiro (1964-1985),
que age segundo aquilo que a sociologia e a historiografia, relativas ao tema, chamou de
“modernização conservadora” (Cf. RIDENTI, 2014, p.09). Tal institucionalização, vista
como um verdadeiro projeto de classe, alcança política, economia, cultura, e também a
literatura, determinando novos procedimentos artístico-culturais e aprofundando outros
(Cf. PELLEGRINI, 2014, p.169).
Por outro lado, a contemporaneidade literária aparece indicando rupturas com
procedimentos discursivos e ético-estéticos típicos do Modernismo artístico-cultural
brasileiro. Os índices de ruptura, que podem ser vistos com frequência como marcas
dentro dos artefatos artísticos-culturais, dizem respeito ao questionamento das
convenções de representação literária. Grosso modo, pode-se dizer que mudanças
profundas, sejam na vida social, sejam no “sistema literário”, sobretudo nas relações
entre produtores (artistas) e receptores (público e crítica), condicionam o
questionamento das convenções de representação literária do Modernismo, colocando-
as em crise, e forçando o surgimento de novas convenções. Dentro disso, destaca-se o
questionamento da representação do assim chamado “marginal”1. Narrativas como
Vidas secas e Grande sertão: veredas, p. ex., em que o intelectual modernista se punha
a representar o “homem brasileiro” do sertão, começavam a perder sua legitimidade
como paradigma de representação literária. Como tendência, esperava-se, tanto no nível
da produção quanto no da recepção, que o próprio marginal pudesse se autorrepresentar,
escrevendo e assumindo a autoria de seus textos. Aqueles textos do alto Modernismo
brasileiro, apesar de permaneceram canônicos e considerados sínteses válidas para seu
tempo, restavam agora, nos anos 1960 e 1970, como exemplo de fórmulas ético-
estéticas superadas. A partir desse período, a literatura acusou fortemente o caráter
ideológico daquelas fórmulas. A novela de 1977, A hora da estrela, de Clarice
Lispector, mostrou o quanto o intelectual modernista tinha de ficcional e artificial. Na
novela, ao morrer a marginal Macabéa, morria também aquele intelectual – invenção
das práticas discursivas do Modernismo ou, em outros termos, daquele sistema literário
plasmado nas primeiras décadas do século XX brasileiro, e que perdurou como estética
dominante até os primeiros anos da década de 1960. O intelectual modernista foi uma
figura literária umbilicalmente atada àquele marginal representado em Macabéa; como
este, o intelectual existiu, sobretudo, na ficção e no discurso literários – mas também
circulou pelos demais discursos artísticos. Ao morrerem seus fabianos, riobaldos,
severinos e macabéas, o intelectual também morre – figura historicamente datada que
era. Entrevendo isso, Clarice Lispector, na já citada A hora da estrela, faz o necrológio
do intelectual e de seus personagens, mostrando suas semelhanças, sua interdependência
e as contradições próprias dessa relação (Cf. PEREIRA, 2009, 2010). Na esteira dessa
crise, institui-se amplo espaço para discursos que se configurassem como
autorrepresentação e, ao mesmo tempo, instala-se forte questionamento em relação
àquelas narrativas que pretendessem representar o outro.

1
Usamos a palavra de modo genérico – “subalterno” e “excluído” também poderiam incidir.
Dentro deste duplo quadro, se inserem as narrativas aqui estudadas.
Configuradas no contexto da abertura do regime militar e dentro das conformações de
mercado cultural e de cultura dadas por este; configuradas, além disso, num contexto de
forte questionamento das fórmulas de representação que vigoraram desde o
Modernismo acima aludido, tais narrativas devem ser estudas dentro destes contextos.
O texto que se segue é esforço de situá-las teoricamente dentro desse quadro.
Além de abordá-las diretamente, aborda parte da fortuna crítica que as tomou como
objeto de estudo ao longo das últimas décadas. No item “1”, as narrativas são situadas
histórico-criticamente. No item “2”, são situadas quanto a sua posição frente a alguns
conceitos que fundamentam esse projeto. Assim, a posição dessas narrativas em relação
ao contexto histórico que envolve a luta entre regime militar e oposição de esquerda é
abordada em panorâmica. Também são contempladas em panorâmica as abordagens
feitas por parte da crítica literária, cultural e sociológica (acadêmicas ou não) sobre as
referidas narrativas, desde sua publicação. Alguns conceitos como os de gênero,
confissão, autobiografia e testemunho – conceitos essenciais para o desenvolvimento
desse projeto são rapidamente instrumentalizados, quase sempre tendo as narrativas sob
os olhos, com vistas a aludir possibilidades de estudos das mesmas.

1. As narrativas no seu contexto histórico-crítico


BS, ECL, OC e OQIC2 são narrativas baseadas nas vivências de seus autores
durante o regime militar brasileiro (1964-1985). São textos cujos autores militaram
dentro daquela parcela da oposição de esquerda, então amplamente fragmentada (Cf.
RIDENTI, 2014), que optou pela guerrilha e pela clandestinidade. São textos publicados
em certa medida como decorrência do abrandamento, a partir de 1976, do próprio
regime militar, em função das pressões exercidas pela sociedade civil brasileira (Cf.
SCHWARCS & STARLING, 2015, p. 588ss), no contexto de afrouxamento da Censura
(1970-1979), a qual começa a desaparecer em 1979, na esteira da outorga da Lei de
Anistia (também de 1979).
São narrativas que se fazem publicar como balanço do período imediatamente
anterior, em que o projeto de erradicação das esquerdas armadas e clandestinas,
amparado e incentivado pelo AI-5, entrava em processo de conclusão. Tal período, que

2
Doravante, usaremos siglas para nos referirmos às narrativas aqui estudadas: Batismo de sangue será
substituído por BS, Em câmara Lenta, por ECL; Os carbonários, por OC e O que é isso companheiro?
por OQIC.
teve como ápice a emboscada e a morte de Carlos Marighella (em 1969) por um
destacamento do DOI-CODI, chefiado pelo delegado Fleury, se encerraria em meados
da década de 19703.
As narrativas são produzidas pouquíssimo tempo depois do fato vivido – por
assim dizer, são disparadas “a quente”. O chamado “memorialismo dos jovens”, levado
a cabo por aqueles que, já “na primeira mocidade têm experiências terríveis para contar”
(GALVÃO, 2004, 05), é produzido por jovens autores, com pouca ou nenhuma
experiência como escritores de narrativas longas – fossem narrativas referencias ou
ficcionais. Seus autores podem ser chamados de sobreviventes quanto ao dito contexto.
Tais sobreviventes, não mais que 10 anos depois, ainda com o processo em vias de ser
consumado, se põem a narrar suas experiências sobre o referido período.
As narrativas explicitam as formas de luta usadas pelas oposições de esquerda,
ao mesmo tempo em que mostram os limites tanto dos recursos usados nessas lutas
quanto seu resultado. Por essas e outras, são textos atravessados por forte polêmica
quanto à recepção. Para ficar em dois exemplos: o caso de ECL, que, apesar de se fazer
publicar como ficção, acaba suscitando reações das autoridades do regime militar, as
quais imputam ao texto (com prisão, inquérito e processo para seu autor, Renato
Tapajós) a pecha de apologista da guerrilha4. Outro caso, o de O que é isso
companheiro?, texto que se pretende referencial, e que suscita forte reação da própria
esquerda quanto, sobretudo, à fidelidade de seus fatos (Cf. ARAÃO REIS, 1997).
Em todos os casos, são textos que escancaram as práticas de exceção do regime
militar: tortura, assassinatos, prisões arbitrárias etc.. Além de expor muitos de seus
principais agentes: torturadores, carcereiros, etc., dando seus nomes e/ou fazendo-lhes
descrição detalhada. No trecho a seguir, um exemplo; nele o delegado Sérgio Paranhos
Fleury (1933-1979) comanda a tortura de um frade dominicano:
No pau-de-arara, a cabeça e os ombros de Fernando pendiam para baixo,
posição dilacerante para as juntas e para a coluna. Segundo consta uma
invenção escravocrata aperfeiçoada pelo uso da energia elétrica. – Como é
que Marighela entra em contato com você? – indagou Freury. Fernando não
respondeu. Fios desencapados foram ligados em seu corpo e a corrente
elétrica inoculada nos músculos, qual serpente mortífera desenrolando-se nas
entranhas. As pontas dos fios prendiam-se às extremidades das mãos e dos
pés. Rodaram a manivela do telefone de campanha, e o corpo do prisioneiro
estremeceu em espasmos e dores (FREI BETTO, 2006, p.240-241).

3
Vetor da “Política de distensão” e da chamada “Abertura política”, o governo Geisel (1974-1979) não
abrandou a repressão aos grupos de esquerda clandestinos: a execução e o desaparecimento dos membros
da Guerrilha do Araguaia são sinais da força repressiva daquele governo (Cf. RIDENTI, 2014, p. 9).
4
Para discussão detalhada, Cf. a dissertação de MAUÉS, 2008.
O trecho é curto; ainda que explicite o horror e os detalhes “técnicos” da tortura,
seus agentes e vítima, não dá conta de exemplificar, quanto à extensão (às vezes, 20
páginas de texto), o esforço de representação levado a cabo pelo escritor. Tanto em BS5
como em ECL6 há longos trechos descrevendo a tortura minuciosamente, quando
possível, descrevendo vítimas e torturadores, num esforço de representação sem
precedentes na literatura brasileira.
Ao lado disso, as narrativas também expõem os bastidores da própria esquerda
armada e clandestina: seu autoritarismo inerente, seu “isolamento em relação às
massas”, os “justiçamentos”, o amadorismo artesanal, a precariedade da sua
infraestrutura etc.. Assim, por exemplo, em OC, a descrição do arsenal dos jovens
guerrilheiros se faz em registro cômico e irônico:
Porretes, correntes, atiradeiras com bilhas, sacos de clorato de
potássio, latas de gasolina, vidros de ácido sulfúrico [...] Dois
preciosos Taurus 32, foram adquiridos, a duras penas, para reforçar o
arsenal até então reduzido ao revólver niquelado, de cinco balas, da
guerra do Paraguai. Com esse armamento imponente, fomos fazer os
nossos treinamentos [...] (SYRKIS, 1981, p.101, itálico nosso).

Note-se a expressão “armamento imponente” que, em contraste com os


elementos antes listados, dão o tom de piada ao trecho, cujo estilo irônico é recorrente
nessa narrativa.
No geral, como se disse, são narrativas que impressionam pelo detalhamento e
pela explicitude quanto ao objeto que pretendem abordar, a saber, a luta entre regime e
esquerdas.
Feito esse panorama, uma questão se impõe. A seguir, seus pressupostos são
explicitados.
Não havia muito, o regime militar, à luz do AI-5 (de 1969), agia de modo
implacável com relação às liberdades. O regime censurava os veículos de imprensa
proibindo a divulgação de notícias que denunciavam a tortura e o desaparecimento de
seus adversários; a literatura que falava da realidade mais imediata (como a de Rubem
Fonseca), mas que não tocava nas questões propriamente dos embates entre esquerda e
regime, também sofria censura; por seu turno, as canções tinham que recorrer a uma
linguagem cifrada e alegórica para se fazerem ouvir e vender – recurso, sabe-se, usado
para driblar a Censura; e até as ditas músicas de apelo massificado, divulgadas por

5
Para uma análise da representação da tortura neste último Cf. PEREIRA, 2010, p.336.
6
Para uma análise da representação da tortura neste último Cf. GINZBURG, 134ss, e DALCASTAGUÈ,
1996, p. 46ss.
cantores como Waldik Soriano e Evaldo Braga (dentre outros) também sofriam censura
(Cf. ARAÚJO, 2010).
Por outro lado, é verdade que a Censura, a partir de 1976, se abrandara. “Pode-se
perceber um certo relaxamento da censura dos livros ao tempo do presidente Geisel
[1974-1979]. O ano de1977 [ano de publicação de EC, aliás] assistiu à publicação de
uma enxurrada de títulos políticos, especialmente obras de membros do MDB7 [...], e,
no final daquele ano, o número de livros proibidos baixara de 500 para 350”
(HALLEWELL, 2005, p. 595).
Visto em perspectiva histórica, o período que se inaugurava era o da chamada
“Abertura democrática” – que culminaria com a lei de Anistia e com o fim do AI-5. Era,
contudo, um tempo de “vai-e-véns”, em que, ao lado de marés de abrandamento, a
dureza autoritária das ações do governo se vê em medidas como o fechamento
temporário do Congresso, a liquidação da Guerrilha do Araguaia, dentre outros atos
graves (Cf. RIDENTI, 2014, p.09). São atos de um governo, o governo Geisel, que se
dá, por contraste, a tarefa de promover a famosa abertura “lenta, gradual e segura” do
regime. De fato, a percepção geral não era inequívoca, havia a sensação de que o quadro
de repente poderia regredir ou mesmo piorar, conforme os humores do próprio regime.
Havia, claro, fortes esperanças de que a Abertura Política viesse a se consolidar, e os
movimentos do regime pareciam indicar essa direção. Mas havia forte descrença
também.
O romance Não verás país nenhum, de Inácio de Loyola Brandão,
publicado em 1981 é exemplo. Espécie de ficção cientifica distópica,
o livro era profundamente pessimista ao reiterar ficcionalmente a
possibilidade de continuidade indefinida da Ditadura. Sua história se
passava num futuro onde as tecnocracias teriam se perenizado no
poder. O enredo do livro era verossímil. Desde o Golpe Militar,
sucessivos desalentos quanto à redemocratização foram se impondo.
Exemplos: dissera-se em 1964 que haveria eleições em 1966 – o
contragolpe de 1968, seguido do AI-5, frustrou isso; em seguida,
esperava-se que a radicalização dos grupos de esquerda pusesse fim à
Ditadura – os anos entre 1972 e 1975 frustraram isso com a quase
erradicação dos grupos de esquerda, levada à cabo pela repressão
(PEREIRA, 2010, p.337).

Nesse ponto, podemos retornar e formular a questão aludida mais acima. Nesse
contexto de “vai-e-véns” como é que textos que descreviam a tortura à exaustão, que

7
Movimento Democrático Brasileiro, partido de oposição dentro do regime bipartidário brasileiro (nota
nossa).
davam nomes de agentes, torturadores e suas vítimas se fizeram publicar com relativa
facilidade?
Para além da resposta clássica que alude ao fortalecimento da sociedade civil
que, por sua vez, enfraquece um regime militar já combalido por uma inflação alta e
pelo colapso do Milagre Econômico, que afinal lhe deu uma sobrevida (Cf. RIDENTI,
2014, p.07), talvez se possa encontrar respostas também na transformação da vida
editorial brasileira que se assentava agora dentro de uma lógica de mercado – fato
inaudito até então, cujo vetor é, em certa medida, o próprio regime militar.
Nesses termos, os textos em questão se fazem publicar, sim, no novo contexto
cultural brasileiro definido pela lógica higienizadora da Censura (em refluxo
institucional, como se disse, mas) profundamente enraizada (diria, onipresente) no fazer
cultural dos anos 1960, 1970 e 1980. Mas também se fazem publicar, talvez de modo
paradoxal, pela institucionalização das políticas culturais do regime, implantadas a
partir da criação do Conselho Federal de Cultura (1966) e da Política Nacional de
Cultura (1975) (Cf. PELLEGRINI, 2014, p.154 e ss). São políticas cuja tônica se dará
no foco da cultura como produto e mercadoria. É nesse contexto cultural relativamente
novo, via “imprensa nanica” (a editora Codecri, ligada ao jornal O Pasquim), ou via
editoras de pequeno porte, que esses livros vêm à luz. Tratava-se de um mercado leitor
que se ampliava drasticamente, fruto das políticas educacional e cultural do regime,
calcadas em seu projeto mais amplo de “modernização conservadora”. Havia, pois, um
mercado que demandava fortemente os textos em questão. Fez-se alusão, mais acima, à
publicação de livros que figuraram nas listas de best sellers, publicados por autores
ligados à oposição institucional, o MDB. Pois bem, os anos seguintes veriam o
coroamento de OQIC como sucesso de crítica e público, com 80 mil livros vendidos, só
em 1979 (HALLEWELL, 2005, p.596). OQIC é, assim, expoente de um período de
fortíssima demanda por balanços relativos ao regime militar feitos por membros da
oposição. Em suma, havia um mercado leitor em busca desse tipo de texto, que vinha se
adensando ao longo daquela década. Assim, pode-se dizer que o mercado também é
responsável por propiciar, junto com o fim da Censura, relativa autonomia à produção
memorialística de então.
Ao lado disso, há também forte demanda pelo assunto e pelo tipo de tratamento,
diria realista e referencial, que aquela literatura dava a seu objeto naquele momento. O
gosto por certo realismo que se veria nas décadas seguintes, tem sua origem nesses fins
da década de 1970 e princípios da de 1980. São duas suas origens: “de um lado, o
naturalismo evidente dos romances-reportagem [...]; de outro, a ‘literatura do eu’ dos
depoimentos, das memórias, da poesia biográfico-geracional” (SUSSEKIND, 1985, p.
42). Essas balizas realistas não se restringiriam àquelas décadas. Como já aludido, esse
conjunto de livros, que dão origem nos anos 70 ao chamado memorialismo/biografismo,
fazem escola e seus influxos vão perdurar até as primeiras décadas do século XXI, ainda
com vigor. Naquele momento de origem, forma-se amplo caudal de literatura
referencial ou semi-referencial, diluindo-se depois em biografias, reportagens longas, e
romances-reportagens (Cf. GALVÃO, 2004, p.05). A presença ou ausência de
densidade estética nesse fluxo parece importar pouco. De um modo geral, o já aludido
“memorialismo dos jovens” contrasta com o “dos velhos” (o de um Pedro Nava, por
exemplo, que também surge nos anos 1970), por um fator importante: o “alto nível
estético” deste último (Cf. GALVÃO, 2004, p.5) que não se vê no memorialismo dos
primeiros.

2. As narrativas à luz de alguns conceitos (esboço de hipóteses)


Esse novo autobiografismo se consolida em contraste com aquele que
chamaremos “velho autobiografismo”. Ao mesmo tempo, devem ser pensadas dentro
daquela nova convenção de representação literária a que referimos acima, i.é, dentro de
um regime de representação que, ao mesmo tempo em que sanciona seu discurso de
autorrepresentação, submete-o ao questionamento acerca de sua legitimidade para
representarem o “outro”. Como se sabe, esse “outro” será o exilado, o torturado, o
desaparecido e o assassinado – membros da oposição de esquerda, vítimas do regime
militar.
À exceção de ECL, que como se disse acima é romance8, os outros três livros
são, num primeiro olhar, autobiografia, ou seja, “narrativa retrospectiva em prosa que
uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual,
em particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p. 14). Dito isso,
também o romance ECL, poderia ser pensado com base numa teoria da autobiografia
por esta se relacionar em detalhes com uma teoria do romance-autobiográfico
(LEJEUNE, 2008).
Assim, todos os quatro textos podem ser pensados dentro de uma teoria
amplificada da autobiografia. Contudo, a questão se complica quando vemos que não há

8
Escrito segundo “técnica ficcional avançada” (CANDIDO, 2000, p.209), com procedimentos
modernistas (Cf. COSTA, p. 29 e ss.).
entre eles algo que se pareça com, por exemplo, As palavras, de Sartre, ou Memórias do
Cárcere e Infância, de G. Ramos, livros que são autobiografias clássicas, que aparecem
para, diria, suplementar uma obra literária reconhecida. Estes livros de Graciliano e
Sartre são, com efeito, narrativas que dão a ver a trajetória de vida de um autor enquanto
artista. Eis, aliás, o que foi chamado de “espaço autobiográfico”, (LEJEUNE, 2008,
p.30 ess), como dito, trata-se daquela parcela principal da obra de um escritor
consagrado que lhe dá credenciais junto aos receptores para que ele faça editar sua vida
escrita por ele mesmo, sua(s) autobiografia(s). Em relativa oposição, os autores das
narrativas enfocadas nesse projeto são todos de primeira viagem, por assim dizer9, não
têm obra pregressa que lhes conferiria essa legitimidade, esse “espaço autobiográfico”,
como plataforma de lançamento.
Por seu turno, parece também que falta a essa nova escrita-de-vida dos jovens
autobiógrafos aquela dimensão bildungsroman – essa típica forma moderna e
modernista de articular infância, juventude e maturidade via escritura (Cf. JAMENSON,
2002, p. 29 e ss.), gênero ficcional que serve de moldura à autobiografia. De fato, não se
vê neles um narrador que se compraz (como o fazem Sartre e G. Ramos) em narrar seus
tempos de formação juvenil e infantil como escritor/artista, seja na sua relação familiar
com pais e avós, seja na sua formação escolar, com seus mestres; seja (talvez mais
importante) no que diz respeito à constituição detalhada da vida burguesa do “gênio
literário”; com seu “avô incentivador”, sua “mãe-leitora-ávida”, suas próprias leituras na
infância, seu aprendizado de línguas, dentre outros10.
A definição de autobiografia proposta acima (LEJEUNE, 2008) contempla as
narrativas em questão. Mas é preciso, à luz do que esboçamos, mostrar suas diferenças
como gênero que fazem dessas narrativas artefatos de comunicação inseridos dentro da
“nova narrativa” (CANDIDO, 2000) e da “literatura contemporânea brasileira”
(PELLEGRINI, 2014).
A tensão entre vida pública e vida clandestina privada também atravessa as
narrativas. Há nelas um esforço grande de devassar os espaços ocultos e privados do
mundo da clandestinidade, seja dos porões da tortura e das prisões, seja dos “aparelhos”
e das reuniões das células clandestinas da guerrilha. Trata-se de esforço de tornar tudo

9
Syrkis e Frei Beto têm, é verdade, livros anteriores, mas que não os constituem, nem de longe, como
escritores que, em função de suas obras, estão credenciados a publicar suas autobiografias.
10
Aqui também Syrkis poderia entrar como exceção. Reconheça-se que seja possível encontrar o
biográfico familiar, de classe média, semi-traçado em poucos parágrafos, na abertura de OC mas é
exceção. Tudo isso é deixado de lado, na maioria das vezes, nos demais textos.
aquilo público, esforço feito por alguém que “esteve lá” e que agora não mede palavras
para configurar (traduzir) aquele mundo secreto e altamente codificado usando a
linguagem da praça pública (Cf. BAKHTIN, 2002). Sobressai em todos os quatro livros
um trabalho de “tradução”, já estudado em BS e OQIC (Cf. PEREIRA, 2006 e 2010), e
que pode ser visto também em OC e ECL. Implícito nesses textos, com efeito, há um
“leitor-modelo” (Cf. ECO, 2008) que demanda saber como se deu a guerrilha, como se
deu a tortura, etc. De fato, nas metáforas usadas nesses livros, muitas com “função
tradutória”, o leitor-modelo avulta como sendo de classe média e leitor de livros (Cf.
PEREIRA, 2006, p.2015). Tal leitor espera que o escritor lhe traduza suas vivências nos
termos de uma linguagem que um consumidor de jornais, revistas e programas de tv de
classe média possa entender; uma “linguagem desataviada [que não evita] o lugar-
comum” (GALVÃO, 2004, p.5). O narrador dos livros em questão não se faz de rogado
– entre ele e seu leitor há um pacto em que o que é pedido é dado, seja em termos de
uma forma simples e explícita, seja em termos de conteúdo detalhado ao limite. Daí a
pecha de uma literatura avessa ao estético (como se assinalou acima) e avessa às meias
palavras. Aliás, muito do “realismo feroz” (CANDIDO, 2000, p.211) presente na ficção
dos anos 70 e posteriores (segundo alguns, decalcada do jornalismo sensacionalista) faz
homologia com as longas descrições de tortura que vemos em textos dos referidos
livros, sobretudo em BS e em ECL. Nessa linha, o narrador desses livros propõe para si
fazer esse papel de tradutor entre dois mundos, a saber, o mundo privado, da guerrilha,
da clandestinidade e dos porões da ditadura, e o mundo público – um novo mundo do
qual o narrador é arauto e, por assim dizer, fundador.
Além de autobiográficos, esses textos são confessionais (Cf. FOUCAULT,
1988) de um modo geral. A confissão é um tipo de discurso, presente em muitos
gêneros, que tem a função de modificar quem a enuncia. Este o faz numa situação de
comunicação muito específica, das quais podemos propor algumas linhas gerais: a)
quem enuncia a confissão o faz a um interlocutor que ocupa uma posição superior, de
poder; b) o tema da confissão é quase sempre a própria vida deste que enuncia a
confissão, e, além disso, como dissemos, c) esse enunciador sai modificado do ato de
confissão. Exemplarmente podemos citar a própria confissão judiciária. Nesta, o sujeito
que confessa o faz perante o Estado, que esse sujeito reconhece como instância superior
a si; ao se confessar, produz um texto cujo conteúdo é frequentemente algo sobre sua
própria vida, frequentemente algo considerado criminoso; e, além disso, depois de
confessar, o enunciador se modifica – sai dali preso, ou livre, ou absolvido ou punido,
etc. (Cf. FOUCAULT, 1988, p.60ss). Um estudo pormenorizado de OQIC, revela-o
eminentemente confessional. Seu autor o faz com vistas a se inserir numa nova e
incipiente ordem pública, num momento de distensão do regime militar – ordem da qual
ele próprio se torna um dos fundadores (como se disse), em função da própria condição
de seu discurso (Cf. PEREIRA, 2007).
Isso hipoteticamente vale para as demais narrativas. Colocando-se como vetores
da fundação de um Brasil pós-ditatorial, de um Brasil contemporâneo, tais textos
confessionais e autobiográficos elegem um incipiente e redivivo espaço público para ser
seu “confessor” – para receber sua confissão. Há em todos os quatro textos, uns mais
deliberadamente, outros menos, essa disposição de inventar um espaço público, de fato,
de lançar as sementes desse espaço público, tomando-o como destinatário de um
discurso que, ao mesmo tempo que faz balanço do passado, o rejeita – seja naquilo que
faz o regime militar, seja naquilo que operam as esquerdas armadas e clandestinas.
Fazem isso negando, sobretudo, aquelas formas de política privada que norteou (seja o
regime, seja a oposição) as ações daquele tempo. É possível que ECL seja o pioneiro
desse procedimento fundador em termos de uso do material autobiográfico. Mas OQIC
é, em qualquer caso, aquele que faz isso de forma mais consciente e consequente,
advogando ao limite a vida pública (na acepção de ARENDT, 1997) como forma de luta
política, denunciando o privatismo da vida política como dimensão a ser banida (Cf.
PEREIRA, 2006, p. 213 e ss). Fazendo isso de modo confessional11, OQIC assume,
publicamente, para qualquer fim, a ruptura com o passado de guerrilha e
clandestinidade.
Em comum também entre as quatro obras pode-se perceber uma dimensão
testemunhal. Tal dimensão é com frequência aludida para se referir a alguns dos livros
em questão, mas quase sempre pouco produtiva, pela ambiguidade da terminologia e da
conceituação – apesar de extensiva e, às vezes, bem referenciada (Cf., p. ex., SILVA,
2006, p. 35-40).
Há, por outro lado, considerável esforço, feito no Brasil, para deslindar as
diferenças terminológicas e conceituais das várias acepções, mostrando-se que
testimonio e zeugnis (“testemunho”, em alemão), se referem, respectivamente, às
acepções latino-americanas e europeias do termo, e são conceitos bastante distintos.

11
Lembre-se que o subtítulo de sua primeira edição é revelador: “depoimento”.
Nessas reflexões, por um lado, o testimonio, corresponderia às narrativas
autobiográficas, mediadas por historiadores e antropólogos etc., em que falam homens e
mulheres, que em outras circunstâncias seriam anônimos, num discurso que se pretende
ser contra-histórico, i. é, em que falaria o subalterno num contra-discurso que se opõe
ao oficial; ao se lhe atribuirmos um espaço e um tempo, o testimonio se circunscreve à
América Latina, a países de língua espanhola, que, depois da Revolução Cubana (1959),
tematizam a vida em comunidades tradicionais e seu dia-a-dia no enfrentamento do
capitalismo nascente e profundamente explorador do terceiro mundismo; como gênero,
o testimonio ganha força, em muitos sentidos, pelo incentivo da revista da Casa de las
Américas, instituição cubana, fundada depois da Revolução para aprofundar contatos
culturais com os demais países latino-amaricanos.
Por outro lado, é preciso opor este testimonio ao zeugnis, o testemunho daqueles
que sobreviveram à shoah, ao extermínio dos judeus em campos de concentração da
Alemanha nazista, dos anos em torno da 2ª Guerra Mundial. Escritores como Primo
Levi, dentre dezenas que estiveram nos campos de concentração, ao mesmo tempo em
que constroem um discurso que denuncia a inominável barbárie do totalitarismo nazista,
“perlaboram” suas penosas vivências cujas características são a literalização e a
fragmentação das experiências, abordadas pela crítica, muitas vezes, como trauma (no
sentido freudiano), e teorizadas segundo um conceito de radicalidade e de singularidade
ao limite do incomparável (para os dois últimos parágrafos, Cf. SELLIGMANN-
SILVA, 2001;2003;2008).
Na esteira desta apresentação sumária, resta a pergunta sobre o alcance dos
vários conceitos de testemunho para pensarmos estes textos brasileiros em questão.
Com efeito, é preciso situar os quatro livros em termos, de um lado, de testimonio
latino-americano, de outro lado, em termos desse outro testemunho ligado ao campo de
concentração nazista.
A título de esboço e ilustração tentemos algumas aproximações. Parece que o
conceito de “sobrevivente” define certo compromisso testemunhal/narrativo presente
nas narrativas brasileiras em discussão. Espécie de ruptura discursiva com os tempos da
clandestinidade, da guerrilha armada e do regime de exceção, tais textos guardariam
ainda certo compromisso com aquele tempo – compromissos com as pessoas daquele
tempo, entendidas como vítimas de um sacrifício, como mártires (Cf AGAMBEN,
2008, p. 35ss), etc. São narrativas de ruptura e, ao mesmo tempo de continuidade –
diga-se. São espécie de continuidade afetiva e ética com as pessoas (não com a
esquerda, mas com os amigos e companheiros) que morreram durante aquele período.
Em BS vê-se o compromisso do narrador Frei Betto com alguns de seus
confrades da ordem católica dos Dominicanos, sobretudo com Frei Tito, que se suicidou
em decorrência das sequelas da prisão e da tortura. Betto, Tito e os demais foram
militantes ligados à ALN12, facção importante das então fragmentadas esquerdas
clandestinas e armadas. Na narrativa, dando voz ao morto Frei Tito, Frei Betto denuncia
a tortura, e faz aquilo que frequentemente se atribui ao G. Ramos de Memórias do
Cárcere ou aos narradores sobreviventes do campo de concentração, isto é, a denúncia e
a vingança via narrativa: “então irei me vingar, contarei a todo mundo o que aconteceu
aqui dentro” (Cf. AGAMBEN, 2008, p.25). Mas o propósito de Betto é ir além:

O livro comprava uma briga. Era preciso recontar a situação em que


morrera o guerrilheiro Carlos Marighella [que] fora surpreendido em
emboscada, e morto por agentes do DEOPS paulista, chefiados pelo
delegado Sérgio Paranhos Fleury. Da emboscada participaram frades
dominicanos, colaborando com o DEOPS, depois de submetidos a
tortura. A esquerda e a opinião pública de modo majoritário culpavam
os frades pela morte de Marighella. De algum modo, isso resvalava
também sobre a ordem dos dominicanos e sobre a própria Igreja
Católica [...]. Era preciso uma revisão que exumasse essa morte para
reexame e reparação. Era preciso mais: recompor, no quadro de um
Brasil que, dali em diante seria democrático, a imagem da participação
política dos dominicanos em particular, e da Igreja Católica em geral,
na luta contra a Ditadura (PEREIRA, 2010, p. 338).

Nesse contexto, o esforço do narrador para se colocar como representante de


Tito é significativo. Seu livro, nesse sentido, é uma tentativa de continuidade com o
passado. Rompendo os limites dos gêneros referenciais, beirando o ensaio e o
romanesco (Cf. PEREIRA, 2010, p.346ss), o narrador ali é o exemplo mais consolidado
(dentre os aqui abordados) da testemunha sobrevivente que se vê às voltas com a sua
falta de autoridade para narrar e, ao mesmo tempo, a obrigação de fazê-lo – aspecto
inerente ao conceito de testemunha que nos interessa aqui (Cf. AGAMBEN, 2008, p.
42ss).
É preciso investigar, dentro das narrativas em questão, as consequências
discursivas de se colocar como narrador, enquanto sobrevivente, daqueles fatos
vivenciados sob tortura e na prisão. Essa tensão entre se colocar como narrador e saber

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Aliança Libertadora Nacional, liderada por Carlos Marighella.
que quem tem condições de fazê-lo está impossibilitado, pois está morto, incide,
cremos, sobre a fatura de todas as narrativas aqui em questão. Inseridas no contexto
daquilo que se denominou aqui “contemporaneidade literária”, tais narrativas devem ser
pensadas dentro do contexto de “questionamento das convenções de representação
literária”, aludida nos parágrafos iniciais deste texto. Como se viu acima, elas têm forte
teor autobiográfico, o que as coloca em conformidade com a contemporaneidade
literária, uma vez que são textos de autorrepresentação. Contudo, ao mesmo tempo, elas
são textos que se prestam a ser representação de outrem. Como se disse, seus narradores
são sobreviventes e se põem a representar os torturados, exilados, desaparecidos e
mortos.
Com efeito, em relação aos narradores que testemunharam sobre os extermínios
nos campos de concentração nazistas é preciso falar em “delegação” e em “falar no
lugar de”.

As “verdadeiras” testemunhas, as “testemunhas integrais” são as que


não testemunharam, nem teriam podido fazê-lo. São os que ‘tocaram o
fundo’ [...] Os sobreviventes, como pseudotestemunhas, falam em seu
lugar, por delegação: testemunham sobre um testemunho que falta
(AGAMBEN, 2008, p. 47, itálico nosso).

Nos termos do trecho acima, as testemunhas que afinal falam e narram são
sempre pseudotestemunhas, falando sempre no lugar daqueles que teriam o direito de
falar, sobretudo os mortos. Em BS, como se viu, o compromisso do narrador-
sobrevivente é com a continuidade da fala dos mortos, no caso, seu confrade, Tito.
É útil indagar como procedem os demais narradores em questão – tarefa que só
pode ser discutida aqui, de modo ilustrativo, com ECL. Nessa narrativa vê-se outro viés
do compromisso do sobrevivente. O trecho a seguir ilustra bem o caso.

[...] desertar é largar os outros no fogo e procurar um caminho certo


quando os outros estão morrendo. Por que o meu compromisso é com
os mortos e com os que vão morrer. [...] a gente não pode mais voltar
a partir de um certo ponto porque o peso nas costas, o peso de todos os
mortos é grande demais (TAPAJÓS, 1977, 160-161, itálicos nossos).

O trecho fala de deserção e compromisso. A repressão avança e a luta parece


fadada à derrota, mas o narrador se impõe a tarefa de continuar com a luta; tarefa
imposta pelo peso “grande demais” dos “mortos” e dos que “vão morrer”.
Cabe rápida interpretação. O trecho fala do que o autor e tantos outros sentiram
no momento do avanço da repressão da ditadura. Isso ficou no passado; no presente o
autor já abandonou a luta – antes, foi preso e torturado – e agora escreveu um livro
sobre essa luta. Eis o momento em que o livro é publicado: um tempo em que a
guerrilha e a clandestinidade já estão extintas, um tempo em que muitos já estão mortos,
em que o próprio autor, já em liberdade (depois de preso e torturado), pode publicar seu
romance, falar da clandestinidade, da guerrilha, da opção pela luta armada; um tempo
em que ele pode debater esses temas e, em certa, medida, criticá-los (Cf. CANDIDO,
apud. MAUÉS, p. 192) – aliás, como o fazem as demais narrativas abordadas por este
projeto.
No trecho, se exprime a voz do jovem guerrilheiro premido pelas estratégias
(baseadas em mero voluntarismo e em avaliações erradas) dos grupos de guerrilha que,
já derrotados, decidem lutar até o último homem contra o regime ditatorial; premido
também por um ambiente de cultura política revolucionário que quer realizar a
revolução brasileira como parte da grande revolução do Terceiro Mundo, até ali, mais
uma etapa da até então vitoriosa luta contra o Imperialismo (Cf. SILVA, 2014, p. 66ss).
Dito isso, assinale-se no trecho os motivos que obrigam à tarefa de se persistir na
guerrilha contra o regime. Pouco ou nada se vê ali relativo às bandeiras do “abaixo a
ditadura”, da “libertação da classe trabalhadora”, do “fora imperialismo”, etc. Não se vê
sequer o motivo da vingança: continuar para responder com mais violência à violência
do regime – como numa vendeta. Continua-se com a luta porque os companheiros
mortos parecem forçar o narrador a continuar. Trata-se de um compromisso firmado
com os mortos, como aliás em BS.
Mas trata-se de outro tipo de compromisso. Em BS o compromisso é com a
denúncia, com a necessidade de dar voz ao morto e com certa versão dos fatos relativos
a esse morto. Em ECL o compromisso é com a continuidade da guerrilha, com a
necessidade, imposta pelos mortos, de se permanecer na luta, a despeito da derrota
iminente – “a luta continua”, apesar de tudo, diria. ECL, contudo, é livro do tempo em
que não há mais luta contra o regime; como se viu, o regime venceu, os guerrilheiros
derrotados estão mortos, presos e/ou exilados. O compromisso de continuar a luta já foi
rompido; o próprio livro, escrito para se fazer autocrítica da luta armada, é sinal disso.
Há assim, a tragédia do compromisso assumido e consciente, e a desistência (traição?)
ante esse compromisso. As questões em relação ao ECL podem ser assim formuladas:
de que modo a narrativa elabora (configura) a tensão entre compromisso de
continuidade com a luta, assumido com os mortos, e impossibilidade de fazê-lo
concretamente, uma vez que a luta já foi perdida? Em que medida ela é tentativa de
continuidade de luta à luz dos compromissos firmados com os mortos?
Tais questões são extensivas às demais narrativas. De um modo geral, BS, ECL,
OC e OQIC, apesar de romperem com as formas da luta armada, com a guerrilha e a
clandestinidade, estão amarradas a ela porque há forte vínculo entre morto e
sobrevivente-narrador. Resta saber em que medida tais narrativas são produto desse
vínculo, e como se dá este vínculo de narrativa para narrativa – tudo isso pensado à luz
de uma teoria do testemunho.
A título de fecho dessa parte, podemos dizer que esse projeto pretende estudar as
narrativas em questão indagando-as enquanto gênero. Afinal em que medida essas
narrativas são autobiográficas ou trazem aspectos autobiográficos; em que medida se
aproximam e/ou se distanciam do gênero autobiografia, como ele tem sido
classicamente conceituado; em que medida são confissão e testemunho, também ao
modo como a crítica dos últimos anos, acima aludida, tem tratado os conceitos. Como
seu discurso se articula no sentido de constituir e/ou configurar em espaço público em
contraste com os espaços privados e clandestinos do período anterior. Por fim, em que
medida, essas narrativas se inserem dentro da questão da autorrepresentação da
chamada contemporaneidade literária, que esboçamos mais acima.

Hipóteses

As quatro narrativas se inserem no contexto de distensão correspondente à chamada


“Abertura democrática” e lhe são tributárias.

São narrativas contemporâneas, i.é, por um lado, são produzidas no contexto cultural-
literário imposto pela Censura e pela modernização autoritária do regime militar,
aspecto que moldou, por assim dizer, o mercado consumidor de cultura a partir dos anos
1960; por outro lado, são produzidas no contexto de crise dos procedimentos estéticos-
éticos do Modernismo, sendo elas mesmas expressões da tensão entre representar
outrem e autorrepresentação inerente àquela conceituação; por outro,

São narrativas autobiográficas, feitas segundo novos procedimentos que, por contraste,
as distanciam da chamada velha autobiografia, codificada, sobretudo, pela teoria de
Lejeune (2008);

São narrativas confessionais (no sentido dado por FOUCAULT, 1988); confessam
elegendo o incipiente espaço público brasileiro dos anos 1980 (majoritariamente) como
destinatário de sua confissão que é feita nos termos autobiográficos propostos acima;
As narrativas trazem em seus discursos traços de testemunho (Cf. AGAMBEN, 2008;
SELIGMANN-SILVA, 2001, 2003, 2008), sobretudo quanto à condição de
sobreviventes de seus autores que (uns mais, outros menos), enunciam sua autobiografia
como espécie de compromisso de denúncia e de dar voz àqueles que não tiveram voz
(por estarem mortos, desaparecidos, etc).

Objetivos: Cotejo das narrativas com teorias (todas fundadas em noções correntes de
gênero e discurso) sobre autobiografia, confissão, testemunho, a fim de problematizar e
detalhar a hipótese principal desse projeto, a saber, a de que se afirmam como literatura
brasileira contemporânea, produto da crise dos procedimentos estéticos do Modernismo
e fruto do novo contexto cultural imposto pela modernização conservadora do regime
militar.

Produtos esperados

Quatro artigos (no mínimo) de análise sobre as quatro narrativas propostas para estudo.

Metodologia

1) Levantamento da bibliografia relevante sobre as narrativas abordadas (já em curso


como se pode ver pelas referências desse projeto).

2) Levantamento bibliográfico sobre os temas da autobiografia, confissão, testemunho e


público-privado (já em curso como se pode ver pelas referências desse projeto).

3) Levantamento bibliográfico sobre os temas relativos à cultura durante o regime


militar (já em curso como se pode ver pelas referências desse projeto, partindo de
Ridenti, 2000);

4) Explicitação e problematização dos conceitos de:

a) Público/privado (principalmente a partir de Hannah Arendt);


b) Definição de um conceito sumário de gênero (com base em Bakhtin);
c) Autobiografia como gênero (com base em Lejeune, 2008 e outros);
d) Confissão como discurso (com base em Foucault, 1988);
e) Testemunho como discurso e gênero (com base em Agamben, Seligmann-Silva,
Jamenson, Morales, Achugar&Berveley);

5) Análise das narrativas, enquanto gêneros, a partir de uma teoria dos gêneros e do
discurso (que privilegia Bakhtin e Foucault) tendo em vista a voz narrativa e as marcas
definidoras dos vários gêneros a partir de das definições clássicas.

6) Escrita de 4 artigos sobre as narrativas tendo em vista os estudos propostos acima.

Cronograma

CRONOGRAMA 2016
Ação m A m j j a
1) Levantamento da bibliografia relevante sobre as narrativas X
abordadas (já em curso como se pode ver pelas referências
desse projeto).
2) Levantamento bibliográfico sobre os temas da autobiografia, X
confissão, testemunho e público-privado (já em curso como se
pode ver pelas referências desse projeto).
3) Levantamento bibliográfico sobre os temas relativos à X X
cultura durante o regime militar (já em curso como se pode ver
pelas referências desse projeto, partindo de Ridenti, 2000);
4) Explicitação e problematização dos conceitos de: X X X
a) Público/privado (principalmente a partir de Hannah
Arendt);
b) Definição de um conceito sumário de gênero (com base
em Bakhtin);
c) Autobiografia como gênero (com base em Lejeune,
2008 e outros);
d) Confissão como discurso (com base em Foucault,
1988);
e) Testemunho como discurso e gênero (com base em
Agamben, Seligmann-Silva, Jamenson, Morales,
Achugar&Berveley);

5) Análise das narrativas, enquanto gêneros, a partir de uma X X X


teoria dos gêneros e do discurso (que privilegia Bakhtin e
Foucault) tendo em vista a voz narrativa e as marcas
definidoras dos vários gêneros a partir de das definições
clássicas.
6) Escrita de 4 artigos sobre as narrativas tendo em vista os X X X
estudos propostos acima.
7) Encaminhamento dos artigos para publicação em periódicos X

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