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Ch ögyam Trungpa

MEDITAÇÃO
NA AÇÃO
— O grande despertar da mente —

UNIVERSALISMO
Sumário

1 — A Vida e o Exemplo de Buddha


2 — O Adubo da Experiência e o Campo de Bodhi
3 — Transmissão
4 — Generosidade
5 — Paciência
6 — Meditação
7 — Sabedoria
O Homem que pode observar sua mente sem distração
Não precisa tagarelar ou conversar.
O homem que consegue absorver-se em autoconsciência
Não precisa sentar-se com rigidez cadavérica.
Se ele conhecer a natureza de todas as formas
Os oito anseios mundanos desaparecem por si mesmos.
Se ele não tiver desejo ou ódio no coração
Não precisará exibir-se ou fingir.
O grande Despertar da mente de Bodhi,
Que vai além do Samsara e do Nirvana,
Nunca pode ser atingido pela busca e pelo desejo.

Da canção de Milarepa para o Dharma Bodhi do Nepal.


1
A Vida e o Exemplo
de Buddha

É um dia claro e quente de verão, e os espessos galhos das tamargueiras


carregados de frutas brilham em flores. O cenário é selvagem e rochoso, com
muitas grutas, e a cidade mais próxima está a mais de cem milhas de distância.
Em algumas das grutas encontram-se iogues com longos cabelos emaranhados
e apenas envoltos por leve tecido branco de algodão. Alguns estão meditando,
sentados sobre peles de cervos. Outros estão executando diversas práticas
iogues, tais como sentar no meio de uma fogueira quando da meditação, o que
é uma conhecida prática ascética. Outros ainda estão recitando mantras ou
cânticos devocionais. O local apresenta uma atmosfera de paz, de isolamento,
e de tranquilidade, além de ser também um tanto quanto impressionante. Pode
ser que o lugar tenha permanecido inalterado desde antes da criação do mundo.
O lugar é totalmente calmo e silencioso. Não existem nem mesmo pássaros
cantando. Há um grande rio nas proximidades, porém não existem pescadores.
O rio é tão grande que parece ter pelo menos sete milhas de largura. Na margem,
ascetas praticam o ritual sagrado de purificação. Pode-se vê-los meditando e
banhando-se no rio. Esse era o cenário, dois mil e quinhentos anos atrás, num
determinado lugar chamado Nairanjana na província de Bihar, na Índia.

Certo príncipe, chamado Siddhartha, se aproxima. Sua aparência é aristocrática;


acabara de tirar a coroa, os brincos e ornamentos, de forma que se sente um
tanto nu. Ele acabou de mandar embora seu cavalo e o último acompanhante, e
agora veste uma roupa limpa de algodão branco. Olha à sua volta e tenta imitar
os outros ascetas. Ele deseja seguir os seus exemplos, de forma que se
aproxima de um deles e pede instruções quanto à prática da meditação. Em
primeiro lugar, explica que é um príncipe e que descobriu que a vida no palácio
não tinha sentido. Ele vira que existe o nascimento, a morte, a doença e a
velhice. Também vira um Sábio andando na rua e isso o inspirou. Esse era o
exemplo e o modo de vida que ele desejava seguir. Tudo é novo para ele e, a
princípio, não podia aceitar que isso estivesse realmente acontecendo. Ele não
conseguia esquecer o luxo e os prazeres sensuais que tinha no palácio e que
ainda se revolviam na sua mente. Esse era o príncipe Siddhartha, o futuro
Buddha.

Ele recebeu então as instruções deste seu Guru, que as passou, talvez, com
bastante relutância. A prática ascética lhe foi apresentada por um Rishi e
ensinaram-lhe a sentar-se com as pernas cruzadas, a empregar as sete posturas
da Ioga, e a praticar exercícios de respiração iogue. No início as coisas eram tão
novas para ele que representavam quase que um jogo. Ele também apreciava a
sensação de realização por ter finalmente conseguido abandonar os seus bens
mundanos para adotar esse maravilhoso modo de vida. A lembrança da esposa
e do filho e dos pais permanecia forte em sua mente, o que deve ter perturbado
a sua prática de ioga, porém parecia não haver nenhuma maneira de controlar a
mente. Os iogues nunca lhe disseram nada, a não ser que seguisse a prática
ascética.

Essa foi a experiência de Buddha na ocasião, aproximadamente há dois mil e


quinhentos anos. Encontraríamos mesmo hoje um cenário bastante semelhante
e teríamos experiências muito parecidas, se decidíssemos abandonar as nossas
casas, renunciar a banhos de água quente e de água fria, esquecer a comida
caseira e os passeios de automóveis, ou mesmo os passeios nos meios de
transporte público, o que ainda representa um grande luxo. Alguns de nós
poderíamos ir de avião e levar apenas algumas horas para chegar lá: antes que
nos déssemos conta, estaríamos no interior da Índia. Alguns, mais aventureiros,
poderiam, talvez, resolver pedir carona. Entretanto tudo ainda pareceria irreal, a
jornada seria continuamente excitante, e não haveria um só momento monótono.
Por fim chegaríamos à Índia. Em alguns pontos, talvez, ela fosse decepcionante.
Veríamos uma certa dose de modernização, e veríamos o esnobismo da classe
alta, dos indianos mais instruídos, que ainda imitam a Soberania Britânica.
Poderíamos achar a situação um tanto quanto irritante no início, porém a
aceitaríamos de algum modo, e tentaríamos deixar a cidade o mais rapidamente
possível e ir para a selva. (Nesse caso poderíamos ir para um Mosteiro tibetano
ou para um ashram indiano.) Poderíamos seguir o mesmo exemplo e talvez
tivéssemos a mesma experiência do príncipe Siddhartha. A primeira coisa que
nos chamaria a atenção seria o seu aspecto ascético, ou melhor, a ausência de
luxo. Ora, aprenderíamos alguma coisa nesses primeiros dias ou meses? Talvez
aprendêssemos alguma coisa sobre o modo de vida. Porém, como nunca
tivéssemos visto um país assim, talvez tendêssemos mais a ficar excitados.
Costumamos interpretar todas as coisas, e uma conversa interior acontece na
mente enquanto nos debatemos para rompermos as barreiras de comunicação
e de linguagem. Vivemos ainda muito circunscritos aos nossos próprios mundos.
Exatamente como ocorreu com Buddha, a excitação e a novidade de estar num
país estranho não se apagariam durante vários meses. Escreveríamos para casa
como se estivéssemos possuídos pelo país, inebriados com o excitamento e a
estranheza de tudo isso. Dessa forma, se algum de nós retornasse apenas
alguns dias ou semanas depois, não teria aprendido muito, teria apenas visto um
país diferente, um modo de vida diferente. O mesmo teria acontecido com
Buddha, se ele tivesse deixado a selva de Nairanjana e voltado ao seu reino em
Rajgir.

No caso de Buddha, ele praticou a meditação por um longo período sob a


supervisão de mestres hindus, e descobriu que o ascetismo e a mera adaptação
a uma organização religiosa não ajudava especificamente. Ele não obteve a
resposta. Bem, talvez tenha obtido algumas respostas. Em certo sentido, essas
perguntas já haviam sido respondidas em sua mente, porém ele estava vendo
mais ou menos o que desejava ver, em vez de ver as coisas como realmente
eram. Assim, para seguir o caminho espiritual, devemos em primeiro lugar
superar o excitamento inicial, e isso é algo indispensável. Pois, a menos que
sejamos capazes de superar essa excitação, não seremos capazes de aprender,
porque qualquer forma de excitamento emocional tem efeito ofuscante.
Deixamos de ver a vida como ela é porque temos a tendência de arquitetar a
nossa própria versão sobre ela. Consequentemente, não devemos jamais nos
comprometer com qualquer estrutura política ou religiosa, ou a ela nos
adaptarmos, sem antes descobrir a verdadeira essência do que estamos
procurando. O fato de nos rotularmos, de vivermos um tipo de vida ascético ou
de mudarmos os nossos hábitos — não ocasiona qualquer transformação real.

Depois de alguns anos, Buddha resolveu partir. Em certo sentido ele havia
aprendido muito, porém havia chegado a época de dizer adeus a seus mestres,
os Rishis indianos, e seguir sozinho. Ele se dirigiu a um local bem distante
daquele, embora ainda à margem do rio Nairanjana, e sentou-se sob um pipal
(que também é conhecido como a árvore de Bodhi). Ele permaneceu ali por
longos anos, sentado numa grande pedra, comendo e bebendo muito pouco. Ele
não fez isso porque julgasse necessário seguir a prática de ascetismo rigoroso,
mas porque sentiu que era preciso ficar sozinho e descobrir as coisas por si
mesmo, em vez de seguir o exemplo de outra pessoa. Ele deve ter chegado às
mesmas conclusões por meio de diferentes métodos, porém não é esse o
problema. A questão é que o que quer que alguém esteja tentando aprender, é
necessário que tenha a experiência de modo direto, em vez de extraí-la de livros
ou de mestres, ou apenas com a adaptação a um padrão já estabelecido. Foi
isso que ele descobriu e, nesse sentido, Buddha foi um grande revolucionário na
sua maneira de pensar. Ele negou até mesmo a existência de Brahma, ou Deus,
o Criador do mundo. Ele se propôs a não aceitar nada que não tivesse primeiro
descoberto por si mesmo. Isso não quer dizer que ele tenha menosprezado a
grande e antiga tradição da Índia. Ele a respeitava muito. Sua atitude não era
anarquista em nenhum sentido negativo, nem revolucionária como o comunismo.
Sua revolução era real e positiva. Ele desenvolveu o lado criativo da revolução:
não se trata da tentativa de obter ajuda de nenhuma outra pessoa, mas sim de
descobrir por si próprio. O budismo é talvez a única religião que não está
baseada na revelação de Deus, nem na fé e na devoção a Deus ou a deuses de
qualquer espécie, Isso não significa que Buddha fosse um ateu ou um herege.
Ele nunca discutiu doutrinas teológicas ou filosóficas. Ele ia diretamente ao
âmago do assunto, ou seja, como ver a Verdade. Nunca perdeu tempo com
especulações inúteis.

Ao desenvolver uma atitude assim revolucionária, aprendemos muito. Por


exemplo, suponhamos que alguém não almoce em determinado dia. Essa
pessoa poderá estar sem fome, poderá ter comido muito no café da manhã,
porém a idéia de não ter almoçado a afeta. Determinados padrões são formados
dentro da estrutura da sociedade e tendemos a aceitá-los sem discutir. Estamos
realmente com fome, ou apenas desejamos preencher esse período do meio-
dia? Esse é um exemplo bem simples e direto. Mas quase o mesmo se aplica
quando tratamos da questão do Ego.

Buddha descobriu que não existe algo como o “Eu”, o Ego. Poderíamos dizer,
talvez, que não há algo como “sou”, “Eu sou”. Ele descobriu que todos esses
conceitos, idéias, esperanças, receios, emoções e conclusões são criados a
partir dos nossos pensamentos especulativos, das nossas heranças
psicológicas, da nossa educação e assim por diante. Tendemos apenas a
colocá-los todos juntos, o que é causado, em parte, é evidente, pela falta de
qualificação do nosso sistema educacional. Dizem-nos o que pensar, em vez de
nos ensinarem como realizar buscas verdadeiras em nosso íntimo. Dessa forma,
como o ascetismo significa a experiência da dor física, não é de forma alguma
uma parte essencial do budismo. O importante é transcendermos o padrão de
conceitos mentais que formamos. Isso não quer dizer que tenhamos de criar um
novo padrão ou tentar ser particularmente não-convencionais e sempre ficarmos
sem almoçar e tudo o mais. Não temos de virar tudo de cabeça para baixo em
nosso padrão de comportamento e no modo como nos apresentamos às outras
pessoas. Isso também não resolveria especificamente o problema. A única
maneira de resolver o problema é examinando-o por completo. Desse ponto de
vista temos determinado desejo — ou nem mesmo algo tão forte como um desejo
— temos mais um sentimento de desejar se conformar com alguma coisa. Aliás,
nem pensamos sobre isso, somos apenas levados a isso. Dessa forma, é
necessário introduzir a idéia da conscientização. Podemos então nos indagar
todas as vezes, e podemos ir além das meras opiniões e das supostas
conclusões de bom-senso. Temos de aprender a ser cientistas qualificados e a
não aceitarmos nada. Tudo deve ser visto através do nosso próprio microscópio
e temos de chegar às nossas próprias conclusões, e do nosso modo. Até que
façamos isso, não há Salvador, nem Guru, nem bênçãos e orientação que
possam servir de auxílio.

É natural que sempre exista este dilema: se não há ajuda, então o que somos?
Não somos nada? Não estamos tentando atingir algo mais elevado? O que é
esse algo mais elevado? O que é, por exemplo, o estado de buddha? O que é a
Iluminação? Representam algo, não representam? Bem, temo não ser de fato
uma autoridade para responder a isso. Sou apenas um dos viajantes, como
todas as outras pessoas aqui. Porém, a partir da minha experiência própria — e
o meu conhecimento é, como descreve a Escritura —, “como um único grão de
areia no Ganges” — eu diria que quando falamos de coisas “mais elevadas”
predispomo-nos a pensar em termos do nosso próprio ponto de vista, uma
versão maior de nós mesmos. Quando falamos de Deus, inclinamo-nos a pensar
em função da nossa própria imagem, apenas maior, colossal, uma espécie de
expansão de nós mesmos. É como nos olharmos num espelho de aumento:
ainda pensamos em termos de dualidade. Eu estou aqui, Ele está ali. Assim, a
única forma de nos comunicarmos é tentar pedir Sua ajuda. Podemos sentir,
algumas vezes, que estamos entrando em contato, porém de certa forma nunca
podemos realmente nos comunicar dessa maneira. Nunca podemos alcançar a
união com Deus, porque existe um conceito fixo, uma conclusão pré-fabricada,
que já aceitamos e estamos apenas tentando colocar essa coisa enorme num
recipiente menor. Não podemos fazer um camelo passar pelo buraco de uma
agulha, de forma que temos de encontrar outros meios. A única maneira de fazer
isso é retornar à mera simplicidade de nos analisarmos. Isso não é uma questão
de tentarmos ser “religiosos”, ou de assegurar que somos bondosos com o nosso
próximo, ou de dispensar o máximo possível de dinheiro à caridade, embora
essas coisas também possam ser muito boas. O ponto principal é que não
devemos simplesmente aceitar tudo como se fôssemos cegos e tentar colocar
as coisas no escaninho certo, e sim tentar ver tudo primeiro a partir da nossa
experiência.

Isso nos traz à prática da meditação, o que é muito importante. Neste caso o
problema é que normalmente verificamos que os livros, os ensinamentos, as
palestras e assim por diante estão mais preocupados em provar que estão certos
do que em mostrar como a meditação deve ser feita, que é o elemento essencial.
Não estamos particularmente interessados em divulgar os Ensinamentos, mas
sim em fazer uso deles e colocá-los em ação. O mundo está se movendo tão
depressa que não há tempo para provar, mas o que quer que aprendamos,
devemos trazer, cozinhar e comer logo em seguida. A questão como um todo,
então, é que devemos ver com nossos próprios olhos e não aceitar nenhuma
tradição apresentada, como se ela possuísse algum poder mágico inerente. Não
existe nada mágico que possa nos transformar de um momento para outro. No
entanto, como temos uma mente mecanizada, sempre procuramos por algo que
funcione a um leve aperto de um botão. Existe uma grande atração pelo atalho,
e se existir algum método de profundidade que ofereça um caminho rápido,
preferiremos segui-lo a suportar jornadas árduas e práticas difíceis. Vemos
assim a verdadeira importância do ascetismo: a punição não leva a nenhum
lugar, porém algum trabalho manual e esforço físico são necessários. Se formos
a pé a algum lugar, conheceremos perfeitamente o caminho, ao passo que se
formos de automóvel ou de avião praticamente não estaremos ali, tudo se torna
apenas um sonho. De forma semelhante, para podermos ver o padrão contínuo
de desenvolvimento, temos de passar manualmente por ele. Essa é uma das
coisas mais importantes, e é onde a disciplina se torna necessária; temos de nos
disciplinar. Seja na prática da meditação ou na vida do dia-a-dia, existe a
tendência de sermos impacientes. Ao iniciarmos alguma coisa, estamos
inclinados apenas a prová-la e então abandoná-la; nunca temos tempo para
comê-la e digeri-la adequadamente e de observar o efeito posterior. É claro que
temos de experimentar por nós mesmos e descobrir se a coisa é genuína ou útil,
porém antes de descartá-la temos de avançar um pouco mais, de forma que pelo
menos obtenhamos uma experiência direta do estágio preliminar. Isso é
absolutamente necessário.

Foi isso também que Buddha descobriu; e é por isso que ele se sentou e meditou
à margem do Nairanjana durante vários anos, praticamente sem se mover do
lugar. Ele meditou a seu próprio modo, e descobriu que a única resposta era
voltar para o mundo. Quando descobriu o Estado de Vigília da mente, verificou
que levar uma vida ascética e punir a si próprio não ajudava em nada, de forma
que se levantou e foi mendigar algo para comer. A primeira pessoa que
encontrou, perto de Bodhgaya, foi uma mulher muito rica que possuía muitas
vacas. Ela lhe deu um pouco de leite condensado fervido com mel, que ele bebeu
e achou delicioso. Além disso, ele também achou que essa bebida aumentava
de forma sensível a sua saúde e a sua energia e, como resultado, ele pôde
realizar grandes progressos na prática da meditação. O mesmo ocorreu no caso
do grande iogue tibetano, Milarepa. A primeira vez que saiu e recebeu uma
refeição preparada com cuidado percebeu que ela lhe dava novas forças e foi
capaz de meditar de forma adequada.

Buddha, então, olhou à sua volta e procurou um lugar confortável para sentar,
pois havia chegado à conclusão de que sentar numa pedra era muito duro e
doloroso. Um fazendeiro lhe deu um feixe de grama kusa, e Buddha espalhou-a
ao pé de uma árvore em Bodhgaya, sentando-se ali. Ele havia descoberto que
tentar alcançar algo peta força não era a resposta e, na verdade, pela primeira
vez, aceitou o fato de que não havia nada a alcançar. Abandonou completamente
toda ambição; tomou a bebida, sentou-se e acomodou-se da forma mais
confortável possível. Nessa mesma noite, ele por fim atingiu o Sambodhi, o
Estado de total Vigília. Isso contudo não era suficiente; não tinha realmente
superado tudo. Todos os receios ocultos e tentações lhe vieram na forma de
Mara, a Maligna. Em primeiro lugar, Mara enviou as suas belas filhas para seduzi
-Io, porém sem sucesso. Depois vieram as tropas violentas de Mara, a última
tática do Ego. Buddha, porém, já havia atingido o estado de Maitri, a bondade.
Em outras palavras, ele não estava sendo apenas compassivo no sentido de
desprezar Mara como uma tola — pois Mara era a sua própria projeção — porém
tinha atingido o estado da não-resistência, o estado da não-violência, em que se
identificou com Mara. Dizem as Escrituras que cada seta de Mara se transformou
numa chuva de flores que caiu sobre ele. Assim, por fim, o Ego se rendeu e ele
atingiu o Estado de Vigília da mente. Nós mesmos podemos ter uma experiência
desse tipo, talvez num breve lampejo de lucidez e de paz — o estado aberto da
mente — mas isso não é o bastante. Temos de aprender como colocar isso em
ação, temos de utilizar isso como uma espécie de centro a partir do qual
possamos nos expandir. A pessoa tem de criar a situação em torno de si mesmo,
de forma que não tenha de dizer: “Eu sou a pessoa Desperta.” Se alguém tiver
de dizer tal coisa e demonstrá-la verbalmente, essa pessoa não estará Desperta.

Buddha, então, caminhou durante, aproximadamente, sete semanas. Em certo


sentido, ele estava apenas sozinho, e poderíamos dizer que era uma pessoa
muito solitária, pois era o único que enxergava e que havia alcançado algo. Ele
conhecia algumas das respostas para lidar com a vida e encontrar o verdadeiro
significado, ou tathata, no mundo de Samsara. Ele não estava bem certo, porém,
de como apresentar isso e quase decidiu não falar. Existe um gatha, ou pequeno
verso, num dos Sutras onde ele diz, “Paz profunda sem limite, esse é o
Ensinamento que encontrei. Ninguém, contudo, seria capaz de compreender
isso e, assim, permanecerei em silêncio na selva”. Então, a consolidação final e
verdadeira da compaixão surgiu, e ele percebeu sua habilidade de criar a
situação correta. Até esse instante ainda tinha o desejo de ensinar (como ele
tinha alcançado algo, sentia que deveria salvar o mundo — se é que podemos
usar essa expressão). Ele teve, contudo, de abandonar a idéia de salvar todos
os seres sencientes. Então, exatamente no momento em que havia decidido
deixar o mundo e voltar para a selva, a verdadeira compaixão altruísta lhe surgiu.
Ele não estava mais consciente de si mesmo como um Mestre, não alimentava
mais a idéia de ter de salvar pessoas, mas sempre que uma situação se
apresentava, ele lidava com ela de forma espontânea.

Ele pregou e ensinou durante aproximadamente quarenta anos, e passou a vida


andando por toda a Índia. Não montou num elefante ou num cavalo e nem andou
de carroça, mas simplesmente andou descalço por toda a Índia. Creio que se
algum de nós o tivesse visto ou ouvido falar, não acharíamos suas preleções
nada parecidas com discursos da forma como nós os entendemos. Tratava-se
apenas de simples conversação. Não era a conversa que era importante e sim
toda a situação que ele criava; não era porque havia atingido tal poder espiritual
que ele dominava toda a cena, mas sim devido ao fato de simplesmente estar
sendo sincero — como qualquer um de nós poderia ser. Portanto, o Ensinamento
havia sido transmitido antes que ele abrisse a boca. É por isso que encontramos
nos Sutras que os deuses, os Asuras e todos os tipos de pessoas de diferentes
partes da Índia iam às suas palestras, viam-no e conversavam com ele. Eles não
tinham de lhe fazer perguntas, mas recebiam automaticamente as respostas.
Esse é um maravilhoso exemplo de comunicação. Buddha nunca alegou ser uma
Encarnação de Deus, ou qualquer tipo de Divindade. Era apenas um simples ser
humano que tinha passado por certas coisas e que tinha alcançado o estado de
vigília da mente. É possível, pelo menos parcialmente, para qualquer um de nós,
fazer essa experiência.

Com esse exemplo podemos ver que a linguagem por si só não é o único método
de comunicação. Já existe comunicação antes de dizermos qualquer coisa,
mesmo quando se trata de um simples “Alô”, ou “Como vai você?” De certa
forma, a comunicação também continua depois que terminamos de falar. A
questão toda deve ser conduzida de um modo bastante habilidoso, devemos ser
autênticos e não egocêntricos. Nesse caso, então, o conceito de dualidade
estará ausente e o padrão correto de comunicação será estabelecido. É somente
através da experiência própria de busca que isso pode ser alcançado, e não
através da simples imitação do exemplo de outra pessoa. Nem o ascetismo, nem
qualquer outro padrão pré-concebido fornecerá a resposta. Nós mesmos temos
de efetuar o primeiro movimento em vez de esperar que ele venha do mundo
fenomenal ou de outras pessoas. Se estivermos meditando em casa e morarmos
no meio da High Street, não podemos parar o tráfego apenas porque desejamos
paz e quietude. Podemos, porém, parar a nós mesmos, podemos aceitar o
barulho: o barulho também contém silêncio. Temos de nos concentrar nele e não
esperar nada que venha do exterior, exatamente como fez Buddha. E
precisamos aceitar qualquer situação, enquanto enfrentarmos a situação, ela
sempre se nos apresentará como um veículo e poderemos fazer uso dela. Como
se diz nas Escrituras, “O Dharma é bom no começo, o Dharma é bom no meio e
o Dharma é bom no final”. Em outras palavras, o Dharma nunca se torna
desatualizado, pois fundamentalmente a situação é sempre a mesma.
2
O Adubo da Experiência
e o Campo de Bodhi

Como fazer nascer o Bodhi, o Estado de Vigília da Mente? Existe sempre uma
grande incerteza quando você não sabe como começar e parece estar
perpetuamente preso na torrente da vida. Surge uma pressão constante de
pensamentos, de pensamentos errantes e surgem todas as espécies de
confusões e todos os tipos de desejos. Se você fala em termos do homem da
rua, ele não parece ter nenhuma chance pois, com efeito, nunca é capaz de se
voltar à introspecção; a menos talvez que leia algum livro a respeito do assunto
e sinta o desejo de ingressar num modo de vida disciplinado. Mesmo assim,
parece não haver qualquer chance, nenhum modo de começar. As pessoas
tendem a fazer uma distinção muito acentuada entre a vida espiritual e a vida
cotidiana. Elas rotularão um homem de “mundano” ou “espiritual” e geralmente
fazem uma rápida e rígida divisão entre os dois. Assim sendo, se uma pessoa
falar sobre meditação, consciência e compreensão, a pessoa comum, que nunca
ouviu falar dessas coisas, obviamente não terá uma pista e provavelmente nem
mesmo estará interessada o bastante em ouvir com atenção. Devido a essa
distinção, ela achará quase impossível dar o passo seguinte e não poderá jamais
comunicar-se realmente consigo mesma ou com os outros desse modo
particular. Os Ensinamentos, as Instruções, os escritos místicos, podem ser
todos muito profundos, mas de certa forma essa pessoa nunca é capaz de
penetrá-los e chega assim a uma espécie de beco sem saída. Ou o homem
apresenta “tendências à espiritualidade” ou é uma “pessoa mundana” e parece
não haver nenhuma maneira de transpor essa lacuna. Creio ser este um dos
principais obstáculos ao nascimento do Bodhi. Também pode ocorrer que as
pessoas que se iniciaram no caminho comecem a ter dúvidas e desejem
abandoná-lo. Talvez elas possam pensar que seriam mais felizes se deixassem
a senda e permanecessem agnósticas.

Existe então algo que não flui o suficiente; não se consegue relacionar uma coisa
com a outra, e é isso que impede que façamos nascer o Bodhi. Temos então de
estudar esse problema; temos de fornecer alguma pista para o homem das ruas,
algum modo de descobrir, algum conceito que ele possa entender e que esteja
relacionado com a sua vida e ainda seja parte dela. Naturalmente, não existe
uma palavra mágica ou algo miraculoso que possa mudar de forma repentina o
seu modo de pensar. Gostaríamos que fosse possível dizer algumas palavras
apenas para iluminar alguém, mas mesmo os grandes Mestres como Cristo ou
Buddha foram incapazes de realizar esse milagre. Eles sempre tiveram de
esperar pela oportunidade certa e criar a situação adequada. Se examinássemos
o caráter da pessoa e estudássemos os seus bloqueios e dificuldades,
simplesmente avançaríamos cada vez mais, pois estaríamos tentando desatar
um nó que já está ali, e seriam necessários séculos e séculos para desfazer esse
emaranhado e essa confusão. Temos assim de fazer uma análise, partindo de
outro prisma, e começar simplesmente aceitando o caráter daquela pessoa, que
poderá ser completamente mundana e, então, escolher um aspecto específico
da sua atividade ou da sua mentalidade e utilizá-lo como uma escada, uma
âncora ou um veículo, de uma forma tal que mesmo o homem das ruas seria
capaz de fazer nascer o Bodhi. É ótimo dizer que Buddha foi uma pessoa
Desperta e que ele continua a viver na medida em que a essência de Buddha e
os Seus Ensinamentos — a Lei Universal que tudo permeia — entram em
questão, e é muito bom também tudo falar de Sangha, a mais elevada e a mais
aberta Comunidade capaz de influenciar as coisas. Todavia, a maioria das
pessoas não poderia jamais pensar em refugiar-se nesses ensinamentos. Assim
sendo, de alguma forma temos de encontrar a abordagem adequada. Sempre
descobrimos que uma pessoa tem dentro de si um caráter específico; podem
achar que ela não é inteligente e não tem personalidade, mas cada pessoa, na
verdade, tem sua qualidade particular própria. Pode ser um grande tipo de
violência, ou de preguiça, mas temos de aceitar essa característica específica e
não encará-la necessariamente como uma culpa ou um bloqueio, pois esse é o
Bodhi inerente à pessoa; é a semente, ou melhor, a total potencialidade de dar
à luz — essa pessoa já está impregnada pelo Bodhi. Como determinada
Escritura diz: “Já que a natureza de Buddha permeia todos os seres, não existe
candidato que não seja adequado.”

Essa Escritura foi composta após a morte de Buddha, depois do Parinirvana. No


mundo de deuses e de homens todos começaram a duvidar quanto à
permanência dos Ensinamentos de Buddha pois, ao que tudo indicava, agora o
maravilhoso Mestre havia partido e tudo o que restava era um grupo de monges
mendicantes, e eles não pareciam estar fazendo muito, ou não eram capazes de
fazê-lo. Assim sendo, um dos discípulos se lamentava dizendo que agora o
mundo de Samsara continuaria para sempre, com suas ondas de paixão, de
desejo, de ódio e de ilusões; nunca mais teremos a oportunidade de ouvir o
Ensinamento de Buddha e as suas instruções, estamos novamente mergulhados
na escuridão. O que faremos então? Enquanto ele se lamentava, as respostas
vieram lhe à mente: Buddha não havia morrido, Seu Ensinamento estava sempre
presente e o nascimento e a morte de Buddha eram um simples conceito, uma
idéia. De fato, ninguém está excluído e todos os seres — qualquer pessoa que
tenha consciência, qualquer um que tenha uma mente, ou a mente inconsciente
— todos são candidatos à Condição de Bodhisattva, qualquer um pode se tornar
uma pessoa desperta.

Nesse sentido, não existe nada que se assemelhe a uma “Doutrina Secreta” ou
um Ensinamento que seja apenas para alguns. No que se refere ao
Ensinamento, ele está sempre aberto; na verdade tão aberto, tão comum e tão
simples que está contido no caráter daquela pessoa específica. Ela poderá estar
habitualmente bêbada, ou ser quase sempre violenta, porém esse caráter é a
sua potencialidade. Para contribuir para o nascimento do Bodhi temos, em
primeiro lugar, de respeitar o caráter dessa pessoa a abrir nossos corações para
a violência nela presente. Devemos, então, procurar entendê-la bem e respeitá-
la de forma que o aspecto energético, dinâmico, da violência possa ser utilizado
como o aspecto de energia da vida espiritual. Desse modo, o primeiro passo é
dado e o elo inicial é formado. Provavelmente a pessoa se sinta muito mal, sente
que está fazendo algo errado, ou que alguma coisa não está correta. Ela poderá
sentir que tem grandes dificuldades, que tem um problema que deseja resolver.
Porém não pode resolvê-lo e, provavelmente, na sua procura por uma solução,
simplesmente substitui por outras atividades aquelas a que renunciou. Portanto,
é através de coisas simples, diretas e comuns na mente e no comportamento da
pessoa que ela chega à obtenção do Estado de Vigília da mente.

Naturalmente, não podemos aplicar isso de forma indiscriminada. Não adianta


nada generalizar ou tentar explicar conceitos filosóficos a um homem no seu
estado. Temos de estudar o momento específico da pessoa, o exato momento
do agora. Sempre existe também uma espécie de fagulha, um tipo de brecha.
Seu caráter não é único: há o comportamento ativo, a seguir o passivo, outra vez
o ativo, que muda continuamente, e o primeiro momento produz e dá origem ao
momento seguinte. Assim, há sempre um intervalo entre esses dois períodos, e
temos de aceitá-lo como o ponto de partida. É bastante provável termos de
começar com alguma forma de teoria, porque sem respeitar Samsara, o mundo
da confusão, não se pode descobrir o Estado de Vigília da mente, ou o Nirvana.
Pois Samsara é a entrada, Samsara é o Veículo para o Nirvana. Portanto,
devemos dizer que o caráter violento é bom. É uma coisa maravilhosa, é algo
positivo; e então a pessoa começa a perceber isso, embora, a princípio, possa
ficar perplexa e se perguntar o que há de bom nisso; mas, de certa forma, se ela
for além desse fascínio, pelo menos começará a se sentir bem; e começará a
perceber que não é apenas “pecadora” e sim que possui um lado muito positivo.
Ocorre exatamente o mesmo quando praticamos a meditação; uma pessoa
poderá começar a perceber sua própria fraqueza. Isso pode acontecer de uma
forma suave, como uma mente que vagueia ou que elabora planos para o futuro,
mas certas coisas começam a vir, e é como se estivéssemos sentados
especialmente para pensar nessas coisas em vez de praticar a meditação. Com
esse processo, descobrimos determinadas coisas, o que é muito valioso, pois
representa uma oportunidade maravilhosa.

Menciona-se, com frequência, nas Escrituras que, sem teorias e sem conceitos,
não podemos sequer começar. Assim, comece com os conceitos e, em seguida,
elabore a teoria. Nesse caso, então, você esgota a teoria e gradualmente ela
cede lugar à sabedoria, ao conhecimento intuitivo e esse conhecimento, por fim,
se une à Realidade. Para começar, então, devemos aceitar e não reagir às
coisas. No caso de querermos ajudar alguém, por exemplo, existem duas
maneiras de fazê-lo: uma é que você deseja ajudá-la porque quer que ela seja
diferente, você gostaria de moldá-la de acordo com a sua idéia, você desejaria
que ela seguisse o seu caminho. Trata-se ainda de Compaixão pelo ego,
Compaixão por um objeto, enfim, Compaixão por resultados que também lhe
trarão benefícios — e isso não é de fato a verdadeira Compaixão. Esse plano de
ajuda a outras pessoas pode ser muito bom; contudo, a abordagem emocional
de querer salvar o mundo e trazer paz não é suficiente; tem de existir mais do
que isso, tem de haver mais profundidade. Dessa forma, temos de começar por
respeitar conceitos e, então, construir a partir daí; embora, na verdade, os
conceitos nos Ensinamentos budistas sejam geralmente encarados como um
obstáculo. Porém, ser um obstáculo não significa que isso evite alguma coisa. É
um obstáculo e também é o Veículo — é tudo. Assim sendo, temos de prestar
especial atenção aos conceitos.

Diz-se, creio que no Sutra Lankavatara, que os fazendeiros inexperientes jogam


fora os resíduos e compram adubo de outros fazendeiros, mas os experientes
recolhem seus próprios detritos, apesar do cheiro ruim e do trabalho sujo e,
quando está pronto para ser usado, o espalham sobre suas terras e, assim,
preparam as colheitas. Esse é o modo hábil. Exatamente do mesmo modo, diz
Buddha, os inexperientes separarão o limpo do sujo, tentarão jogar fora Samsara
e procurar o Nirvana, mas os Bodhisattvas experientes não jogarão fora o desejo,
as paixões e todo o resto, mas antes os ajuntarão. É o mesmo que dizer que
deveríamos, em primeiro lugar, tomar conhecimento deles, aceitá-los, estudá-los
e torná-los reais. Dessa maneira, o Bodhisattva experiente tomará conhecimento
e aceitará todas essas coisas negativas; e, nesse momento, ele realmente sabe
que tem todas essas coisas terríveis dentro dele e, embora seja muito difícil e
anti-higiênico, por assim dizer, continuar trabalhando, essa é a única maneira de
começar. Então ele as espalhará no campo de Bodhi. Por ter estudado todos
esses conceitos e elementos negativos, na ocasião propícia, ele não os retém
mais e sim os dispersa e emprega como adubo. Assim, dessas coisas sujas,
nasce a semente que é a Realização. É assim que temos de fazer nascer; e a
própria idéia de que os conceitos são maus, ou de que tal coisa é má, divide toda
a situação, com o resultado de que não se lhe sobra nada para lidar. Nesse caso,
você tem de ser completamente perfeito ou, então, lutar contra todas essas
coisas e tentar derrotá-las todas. Porém, quando você tem essa atitude hostil e
tenta reprimir as coisas, cada vez que derrubar uma delas, outra surgirá em seu
lugar e, quando você atacar essa última, aparecerá outra vinda de outro lugar.
Existe esse ardil contínuo do Ego, de modo que quando você tenta desfazer uma
parte do nó, você puxa o cordão e só faz com que o nó fique mais apertado em
outro lugar; dessa forma, você estará continuamente preso dentro dele. Portanto,
o negócio é não lutar mais, não tentar separar as coisas ruins e só realizar as
boas, respeitá-las e tomar conhecimento delas. Teoria e conceitos são então
muito bons, como um maravilhoso adubo. Ao longo de milhares e milhares de
vidas temos recolhido tantos detritos que temos agora uma maravilhosa riqueza
nesse adubo. Ele tem tudo dentro dele, de forma que esse adubo seria
exatamente a coisa certa a ser utilizada, e seria uma pena jogá-lo fora, pois, se
você fizer isso, então toda a vida anterior até hoje, talvez vinte, trinta ou quarenta
anos, terá sido desperdiçada. E isso não é tudo, pois vidas e vidas terão sido
desperdiçadas, de forma que teríamos a sensação de fracasso. Todo esse
esforço violento e toda essa acumulação teriam sido perdidos e você teria de
começar tudo desde o início. Ocorreria então uma grande sensação de
desapontamento e existiria muito mais uma derrota do que qualquer vitória.
Temos, assim, de respeitar o padrão contínuo. Podemos ter nos desprendido da
origem e todos os tipos de coisas podem ter acontecido; podem não ser coisas
particularmente boas mas, pelo contrário, bastante indesejáveis e negativas.
Nesse estágio existem coisas boas e más, porém esse conjunto contém coisas
boas disfarçadas em más e coisas más disfarçadas em boas.

Temos de respeitar o padrão que flui até hoje de todas as nossas vidas passadas
e da primeira parte da nossa vida atual; nelas há um padrão admirável. Já existe
uma corrente muito forte onde muitos regatos se encontram num vale; e esse rio
é muito bom; esse rio contém essa poderosa corrente que corre ao longo dele.
Portanto, em vez de tentar obstruí-la, devemos nos juntar a essa corrente e fazer
uso dela. Isso não significa que devemos continuar a colecionar esses elementos
para sempre. Quem quer que fizesse isso, careceria de consciência e de
sabedoria, não teria compreendido a idéia de ajuntar adubo. Essa pessoa
poderia recolhê-lo e, ao saber que ele existe, por ter tomado conhecimento dele,
alcançar determinado ponto e entender que esse adubo está pronto para ser
usado.

Nos Ensinamentos do Tantra, há uma história a respeito de dois amigos íntimos


que desejavam buscar a Verdade. Eles foram a um Mestre, e o Mestre disse:
“Não abandonem nada, aceitem tudo e, uma vez que o tenham aceito, utilizem-
no da maneira correta.” O primeiro então pensou, “Bem, isso é maravilhoso.
Posso continuar a ser exatamente como sou”. Assim sendo, montou centenas
de bordéis, centenas de açougues e centenas de bares, o que na Índia era
considerado um empreendimento só conveniente para alguém que pertencesse
a uma casta inferior. Ele começou a administrar todos esses grandes negócios;
e pensou que era isso o que deveria fazer. O outro amigo, porém, achou que
isso não estava correto e começou a se examinar; e, através desse exame,
chegou à conclusão de que já tinha material suficiente e que não tinha de ajuntar
mais nada. Ele não teve de realizar nenhuma prática especial de meditação mas,
por tomar conhecimento do volume já existente, atingiu a iluminação ou, pelo
menos, um certo estágio de realização, uma espécie de Satori. Um dia, então,
eles se encontraram, conversaram e compararam as suas experiências. O
primeiro não estava, em absoluto, desperto; ainda estava lutando, reunindo e
fazendo coisas do tipo. Na verdade, havia caído numa armadilha ainda pior e
não havia nem começado a se examinar. Ambos, contudo, estavam seguros de
estarem certos. Assim sendo, ambos decidiram consultar o Mestre. E o Mestre
disse para aquele que havia montado os negócios: “Tenho receio de que o seu
caminho esteja errado.” Ele ficou tão desapontado que tirou a espada e
assassinou o Mestre no mesmo instante.

Existem essas duas maneiras possíveis, e talvez possa haver alguma confusão
entre as duas. Contudo, se uma pessoa for habilidosa o suficiente — não
necessariamente inteligente —, porém bastante habilidosa e muitíssimo paciente
para peneirar o seu lixo e estudá-lo por completo, então ela será capaz de usá-
lo. Dessa maneira, voltando ao assunto dos conceitos, que é um exemplo muito
importante, a idéia aí subjacente é desenvolver uma perspectiva positiva e
reconhecer a sua grande riqueza. Após haver reconhecido os nossos conceitos
e as nossas idéias, temos também, num certo sentido, de cultivá-los. Inclinamo-
nos a fazer uma tentativa e depois abandoná-los ou jogá-los fora, porém,
deveríamos cultivá-los, não no sentido de ler mais livros, ou de participar de mais
discussões e debates filosóficos — isso seria o outro caminho, o caminho do
amigo que tinha os negócios — mas simplesmente, desde que já possui riqueza
suficiente, examinar os conceitos, assim como faz uma pessoa que deseja
comprar alguma coisa e tem primeiro de verificar quanto dinheiro possui. É como
voltar aos seus velhos diários, estudá-los e observar suas diferentes fases de
desenvolvimento; ou subir ao sótão, abrir todas as caixas velhas e descobrir as
velhas bonecas e os velhos brinquedos que lhe foram dados quando tinha três
anos, e observá-los e examiná-los com as suas associações. Desse modo, você
chega a uma completa compreensão do que você é, e isso é mais importante do
que a criação contínua. O que importa na Realização não é só tentar conseguir
e entender o Estado de Vigília e fingir não entender o outro lado, porque isso se
torna um modo de enganar-se a si mesmo. Veja bem, você é o seu melhor amigo,
o seu único amigo mais íntimo, você é a melhor companhia para você mesmo.
Conhecemos nossas próprias fraquezas e incoerências, sabemos o quanto já
erramos, sabemos de tudo isso com detalhes, de forma que não adianta fingir
que não sabemos, ou tentar não pensar nesse lado e pensar apenas no lado
bom; isso ainda significaria estarmos guardando o nosso lixo. Se você o
estocasse assim, não teria adubo suficiente para produzir uma colheita nesse
maravilhoso campo de Bodhi. Você deveria então examinar-se e estudar-se com
firmeza retornando à infância e, naturalmente, no caso de você possuir a grande
habilidade de retornar às suas vidas passadas, deveria fazê-lo e tentar
compreendê-las.

Existe também uma história a respeito de Brahma, que veio um dia ouvir Buddha
pregar, e Buddha perguntou: “Quem é você?” Brahma, pela primeira vez,
começou a se observar e a voltar-se para dentro de si mesmo (Brahma
personificando o Ego) e quando pela primeira vez olhou para dentro de si
mesmo, não pôde suportar a visão. Ele disse: “Sou Brahma, o Grande Brahma,
o Supremo Brahma.” Buddha então perguntou: “Por que você vem me ouvir?”
Brahma disse: “Não sei.” Buddha então disse-lhe: “Olhe para o seu passado.”
Brahma, com sua maravilhosa habilidade de ver suas inúmeras vidas passadas,
olhou; e não pôde suportá-lo. Ele simplesmente prostrou-se diante de Buddha e
chorou. Buddha então disse: “Bem executado, bem executado, Brahma! Isso é
bom.” Veja bem, essa era a primeira vez que Brahma havia usado sua
maravilhosa habilidade de vislumbrar o seu passado distante e, assim,
finalmente ele viu as coisas com clareza. Isso não quer dizer que uma pessoa
tenha de sucumbir e se sentir mal a esse respeito, porém é muito importante
verificar e examinar tudo de modo que nada fique inexplorado. Ao começarmos
a partir daí, obtemos uma visão global da questão — como uma vista aérea que
abrange toda a paisagem, todas as árvores, a estrada e todo o resto — sem que
exista coisa alguma para alegarmos que não estamos vendo.

Temos de analisar o medo e a expectativa. Se existe o medo da morte, temos


de examiná-lo; se temos medo de envelhecer, também o examinamos. Se não
nos sentimos bem a respeito de determinada deficiência em nós mesmos, de
certa falta de habilidade, ou de qualquer tipo de fraqueza física, devemos
também examiná-las. Deveríamos também analisar a nossa própria imagem
mental, e qualquer coisa diante a qual nos sintamos mal. É muito doloroso no
início — como Brahma mostrou ao sucumbir — quando você se examina pela
primeira vez e se vê. Porém, essa é a única maneira de fazê-lo. Algumas vezes
tocamos num ponto muito doloroso para o qual somos tímidos demais para olhar,
mas temos de examiná-lo de algum modo; e, penetrando nele, por fim
conseguimos obter um verdadeiro domínio sobre nós mesmos e, pela primeira
vez, adquirimos um completo conhecimento de nós mesmos. Agora já
exploramos os aspectos negativos, e é provável que obtenhamos alguma idéia
do lado positivo. Ainda não atingimos nada, apenas começamos a coleta básica
de adubo, e agora temos de estudá-la e verificar o modo de utilizá-la.

Até o momento já desenvolvemos uma perspectiva positiva e alcançamos certa


dose de entendimento, e é isso que se conhece como verdadeira teoria. É teoria
ainda, mas você não a joga fora. Na verdade, você cultiva esse tipo de teoria e
trabalha com o intelecto de modo contínuo; intelectualizando somente até certo
ponto, é claro, mas ainda assim trabalhando sempre — e sem se basear em
livros, palestras ou debates. Tem de ser uma espécie de contemplação e de
estudo direto; nossas teorias começam então a se desenvolver e a tomar forma
própria. Nessa ocasião, você começa a descobrir, não só as coisas positivas que
você fez, como também o elemento de Bodhi que está em você. Começa a
perceber que tem a grande habilidade de criar uma teoria tão maravilhosa. Nesse
estágio, com efeito, uma pessoa muitas vezes sente que alcançou um estado de
Iluminação, um estado de Satori, porém trata-se de um engano. Naturalmente,
quando ocorre essa primeira descoberta, existe um grande excitamento, uma
grande alegria e bem-aventurança, mas a pessoa ainda tem de continuar. Assim,
depois de divisar essas coisas, e de tê-las estudado e explorado, descobrimos
que a nossa teoria não pára, como acontece com as teorias comuns ou após a
leitura de livros de filosofia — inclusive as Escrituras. Essa teoria, porém,
continua; existe uma investigação que não se interrompe, uma descoberta
contínua. Algumas vezes, contudo, essa teoria pára; atingimos determinado
ponto em que ficamos fascinados demais pela coisa toda; procuramos com
ansiedade demasiada e, então, chegamos a uma parada e não conseguimos
prosseguir. Isso não quer dizer que ocorra um colapso ou um bloqueio. Isso
significa que estamos insistindo demais numa idéia, que estamos trabalhando
muito com a mente inquisitiva. Temos, então, de canalizar as coisas de modo
diferente, sem avidez nem deslumbramento, porém caminhando passo a passo
— com marcha de elefante, como se diz nas Escrituras. Você tem de caminhar
muito devagar, impassível, porém com dignidade, passo a passo, como um
elefante que anda na selva.

Dessa forma, sua luta constante poderá ser muito lenta, porém Milarepa diz:
“Apresse-se devagar e você chegará logo.” Nessa ocasião, a teoria já não é mais
teoria. Bem, é também uma espécie de imaginação. Inúmeras coisas imaginárias
surgem; e essa imaginação pode até ser um tipo de alucinação, mas novamente,
não a abandonamos. Não encaramos esse tipo de alucinação como uma trilha
errada, como se tivéssemos de voltar ao caminho certo; na verdade, usamos a
imaginação. Assim, a teoria traz a imaginação, que é o começo do conhecimento
intuitivo. Descobrimos, então, que possuímos um grande potencial imaginativo
e, assim, continuamos, gradualmente, passo a passo. No estágio seguinte,
vamos além da imaginação — e isso não é, em absoluto, uma alucinação. Existe
algo em nós que é mais real que a simples imaginação, embora seja por ela
colorido. Esse algo é de certa forma ornamentado por esse tipo de contorno
imaginário mas, ao mesmo tempo, existe alguma coisa nele. É como ler uma
obra de literatura infantil, por exemplo; o livro é escrito para crianças e é
completamente imaginário, mas também existe algo nele. Talvez o autor
simplifique sua experiência, ou tente ser infantil, de modo que encontremos
alguma coisa nele. Aliás, o mesmo é válido para qualquer história. Essa
imaginação não é alucinação apenas, mas sim verdadeira imaginação. Se
olharmos novamente para a teoria, ou se remontarmos aos primeiros passos que
tomamos, tudo poderá parecer um pouco cansativo ou mesmo desnecessário,
mas isso não é verdade. Não perdemos tempo em absoluto.
Você espalhou o adubo sobre o campo de maneira uniforme e agora é chegada
a ocasião de semear e esperar que venha a colheita. Essa é a primeira
preparação, e estamos prontos para descobrir; e a descoberta já está a caminho.
Muitas perguntas gostaríamos de fazer e muitas coisas ainda não estão certas.
Porém, na verdade, não precisamos de fato fazer quaisquer perguntas nesse
estágio; talvez necessitemos apenas de outra pessoa para nos dizer que isso é
assim, embora a resposta já esteja em nós. A pergunta é como a primeira
camada, como a casca da cebola e, quando você a remove, a resposta está ali.
Isso é o que o grande lógico e filósofo do budismo, Asanga, descreveu como “A
Mente Intuitiva”. Na mente intuitiva, se estudarmos a verdadeira lógica,
descobriremos que as respostas — e a atitude do oponente — estão em nós.
Dessa maneira, não temos de procurar a resposta, porque a pergunta já a
contém em si. É uma questão de penetrar mais a fundo nela; esse é o verdadeiro
significado da lógica. Nessa fase alcançamos uma espécie de sentimento; a
imaginação se torna um tipo de sentimento; e, com esse sentimento, é como se
tivéssemos alcançado o vestíbulo.
3
Transmissão

Assim, após toda a sua preparação, você finalmente está pronto para fazer
nascer o Bodhi; e o próximo passo é procurar um Guru, um Mestre, e pedir que
ele lhe mostre o Estado de Vigília — como se ele possuísse a sua riqueza. É
como se alguma outra pessoa estivesse de posse dos seus pertences e você lhe
pedisse que os devolvesse. Bem, é assim mesmo na verdade, porém temos de
passar por esse ritual. Depois que você lhe pedir, o Mestre o instruirá. Isso é o
que sé conhece por “Transmissão”. O termo “Transmissão” ou “Abhisekha” é
usado particularmente nos ensinamentos Vajrayana e nos da Ioga budista. É
muito usado na tradição tibetana e também na tradição Zen. A Transmissão não
significa que o Mestre esteja conferindo o conhecimento dele a você — isso seria
impossível, pois nem mesmo Buddha poderia fazê-lo. O importante, porém, é
que paramos de colecionar ainda mais coisas, e conseguimos jogar fora o que
temos. Para evitar juntar mais coisas, para evitar a sobrecarga do Ego, é
necessário pedir a alguma outra pessoa que nos dê alguma coisa, de maneira
que você sinta que algo está sendo dado a você. Nesse caso, você não encarará
isso como a sua riqueza que lhe está sendo devolvida, e sim como algo muito
precioso que pertence a essa pessoa. Portanto, temos também de ser muito
gratos ao Mestre; e isso é uma grande proteção contra o Ego, pois você não
considerará tudo isso como algo descoberto em você, e sim como algo que outra
pessoa lhe deu. Ela lhe dá esse presente, embora a transmissão não seja, como
já dissemos, algo dado a você, mas simplesmente descoberto em nós mesmos.
Tudo o que o Mestre pode fazer é criar a situação; ele criará a situação correta
e, devido a ela e ao ambiente, a mente do aluno também estará no estado
adequado, por ele já estar ali. É o mesmo que ir ao teatro: as coisas já estão
construídas para você — as poltronas, o palco e assim por diante — de modo
que, mesmo pelo próprio fato de entrar ali, sentimos, de forma, automática, que
estamos participando, de um evento particular. Sempre que vamos a algum lugar
ou participamos de alguma coisa, nós nos tornamos parte dela, porque o
ambiente já está criado. No caso da Transmissão, contudo, a situação pode ser
um tanto quanto diferente, mas ainda existe um determinado ambiente. O Mestre
poderá não utilizar quaisquer palavras; ou talvez ele se estenda demais na
explicação do assunto; ou ele poderá desenvolver algum tipo de cerimônia ou,
ainda, poderá fazer algo bastante ridículo.
Existe a história de Naropa, o Grande Pândita indiano, o Maha Pândita, ou
Grande Pândita da Universidade de Nalanda. Ele foi um dos quatro grandes
pânditas desse período específico da história do budismo e era conhecido como
o Grande Pândita da Índia — do mundo todo, aliás. Ele podia recitar todas as
sagradas Escrituras de cor e conhecia a filosofia e todo o resto, porém não
estava satisfeito consigo mesmo, porque estava simplesmente divulgando o que
havia aprendido; nunca havia, contudo, penetrado a fundo no assunto. Assim
sendo, um dia, quando passeava na sacada da Universidade, ele ouviu um grupo
de pedintes conversando na entrada principal. Ele os ouviu dizer que havia um
grande iogue chamado Tilopa e, quando ouviu esse nome, teve a certeza de que
esse era o Guru adequado para ele, de forma que decidiu procurá-lo. Ele
presenteou essas pessoas com comida e perguntou-lhes onde Tilopa morava.
Elas lhe disseram onde ele vivia. Mesmo assim, entretanto, teve de levar cerca
de doze meses na busca. Cada vez que pensava ter encontrado o lugar correto,
informavam-lhe que fosse a outro local. Finalmente, chegou a uma pequena
aldeia de pescadores e perguntou pelo grande iogue Tilopa. Um dos pescadores
disse: “Bem, eu nada sei a respeito de ‘um Grande iogue’, mas há um Tilopa que
mora perto do rio. Ele é muito preguiçoso e nem sequer pesca, e vive apenas do
que os pescadores jogam fora — as cabeças e as vísceras dos peixes, e tudo o
mais.” Naropa seguiu suas indicações, mas quando chegou ao lugar, tudo o que
viu foi um pedinte, uma figura de aspecto muito suave, que não parecia capaz
nem mesmo de falar. Entretanto, prostrou-se ao chão e pediu o Ensinamento.
Durante três dias Tilopa não disse nada, porém, finalmente inclinou sua cabeça.
Naropa tomou esse movimento como um sinal de que ele o havia aceito como
discípulo. Tilopa então disse: “Siga-me”, e ele o seguiu por doze longos anos e
passou por muitas privações e dificuldades durante essa época. Em determinada
ocasião, Tilopa disse que estava com muita fome. (Menciono isso porque faz
parte da Transmissão; como você vê, ele estava criando o ambiente adequado.)
Ele pediu então a Naropa que encontrasse alguma comida. Ora, Naropa era uma
pessoa muito refinada — havia nascido numa família Brahmin — mas tinha de
levar esse tipo de vida, seguindo o exemplo de Tilopa. Ele se dirigiu, então, a
uma localidade onde celebravam uma festa de casamento, ou alguma festa
especial. Primeiro tentou mendigar, mas era proibido mendigar nesse dia de
festa. Esgueirou-se para a cozinha, roubou uma tigela de sopa; depois fugiu e
levou a sopa para o seu Guru. Tilopa pareceu muito satisfeito; na verdade, era a
primeira vez que Naropa via tal expressão sorridente na face dele. Pensou:
“Bem, isso é maravilhoso. Creio que irei buscar uma segunda tigela.” Tilopa
expressou sua aprovação e disse que gostaria de outra tigela. Dessa vez, porém,
eles pegaram Naropa, o surraram, quebraram as suas pernas e os seus braços,
deixando-o caído no chão, semimorto. Alguns dias mais tarde Tilopa apareceu
dizendo: “Bem, o que há com você? Por que não voltou?” Ele parecia bastante
zangado. Naropa então disse, “Estou morrendo”. O Guru, porém, falou:
“Levante-se! Você não está morrendo, e ainda tem de me seguir durante muitos
anos.” Ele levantou sentindo-se bem e, de fato, nada havia de errado.
Em outra ocasião, eles chegaram a um profundo canal que estava infestado de
sanguessugas. Tilopa disse que desejava ir para o outro lado e pediu a Naropa
que se deitasse sobre o canal servindo de ponte. Ele, então, deitou-se na água.
Depois de Tilopa ter passado por cima dele, Naropa descobriu que o seu corpo
estava coberto por milhares de sanguessugas; e, mais uma vez, foi deixado
caído ali por vários dias. Coisas como essa aconteceram durante todo o tempo
até que, finalmente, em certo dia do último mês do décimo segundo ano, Tilopa
estava sentado ao lado de Naropa. Repentinamente, Tilopa tirou sua sandália e
golpeou o rosto de Naropa com ela. Nesse exato momento os Ensinamentos do
Mahamudra, que significam o Grande Símbolo, surgiram como um relâmpago na
mente de Naropa e ele alcançou a Realização. Depois disso, houve uma grande
festa, e Tilopa lhe disse: “Isso é tudo o que posso lhe mostrar; todos os meus
ensinamentos lhe foram transmitidos. No futuro, se alguma pessoa quiser seguir
o Caminho de Mahamudra, deverá aprender e receber instruções de Naropa.
Naropa é como um segundo Rei depois de mim.” Somente depois disso foi que
Tilopa lhe explicou os Ensinamentos com detalhes.

Isso é um exemplo de “Transmissão”. Naturalmente, naquela época, as pessoas


eram mais pacientes, podiam dar-se ao luxo de gastar tanto tempo e também
estavam preparadas para fazê-lo. A idéia, porém, não é que Naropa tenha
recebido o Ensinamento somente no momento em que o sapato acertou sua
cabeça, e sim que o processo estava ocorrendo durante todo o tempo nesses
doze longos anos passados junto ao Mestre. Todas as dificuldades por que
passou e as diferentes fases que atravessou foram parte da Transmissão. É uma
questão de construir e criar a atmosfera. Do mesmo modo, determinadas
cerimônias de Transmissão, as cerimônias Abhisekha, pertencem ao processo
de criação de um ambiente, que inclui a sala, a pessoa e o próprio fato de dizer:
“Eu o instruirei durante três dias e, em seguida, ocorrerá a Transmissão.” Desse
modo o discípulo se abrirá mentalmente e, quando isso tiver ocorrido, o Mestre
dirá algumas palavras que, provavelmente, não significarão muita coisa. Ou
talvez não diga nada. O importante é que se crie a situação correta tanto da parte
do Mestre como da parte do aluno; e, quando a situação adequada for criada,
Mestre e aluno não mais se encontrarão ali. O Mestre atua como uma entrada e
o discípulo como outra e, quando ambas as portas estiverem abertas, ocorrerá
um completo vazio, uma Unidade completa entre os dois. Isso é o que, na
terminologia Zen, se conhece como “O encontro de duas mentes”. Quando
finalmente é solucionado o último koan, ambos ficam em silêncio. Nesse caso, o
Mestre Zen não dirá: “Você está certo”, ou “Agora você conseguiu.” Ele pára. E
o discípulo simplesmente pára. E ocorre um momento de silêncio. Isso é
Transmissão — criar a situação adequada é tudo o que um Guru exterior pode
fazer. Também é tudo o que você pode fazer. Transmissão significa apenas abrir
de ambos os lados, abrirmos tudo. Nós nos abrimos completamente de tal modo
que, embora seja apenas por alguns segundos, de certa forma, isso significa
muito. O que não quer dizer que tenhamos atingido a Iluminação, porém temos
um vislumbre do que é a Realidade. E isso não é particularmente excitante ou
sensacional, não é necessariamente uma experiência muito comovente. Alguma
coisa se abre apenas, ocorre uma espécie de lampejo, e isso é tudo. No entanto,
vemos essa experiência descrita nos livros como “A Grande Bem-Aventurança”,
“Mahamudra”, “O Estado de Vigília da Mente” ou “Satori” — dão-se todos os tipos
de rótulos e de nomes. De certa forma, porém, o momento em si é muito simples,
muito direto. É simplesmente o encontro de duas mentes. Duas mentes tornam-
se uma só.
4
Generosidade

A generosidade, Dana, é um dos seis Paramitas, ou ações transcendentes. “Par”


significa literalmente “A outra margem”. Na verdade, esse termo ainda é usado
de forma coloquial na Índia; “par” significa o outro lado do rio. “Mita” é aquele que
chegou lá. Paramita significa, portanto, aquele que alcançou a outra margem.
Certos eruditos se referem aos Paramitas como “As Seis Perfeições”. Em certo
sentido, eles são as ações perfeitas, mas a palavra “perfeição” tem também
outras conotações que não são pertinentes. A meta não se constitui na tentativa
de conseguir a perfeição; consequentemente, é melhor olhar para os Paramitas
em função da transcendência — de como ir além.

Essas seis “Ações Transcendentes” são as ações do Bodhisattva. “Bodhi”


significa o Estado de Vigília da Mente; “Sattva” representa a pessoa que está a
caminho do Estado de Vigília. Assim, a palavra “Bodhisattva” se refere àqueles
que já atingiram o Caminho da Compaixão, o Caminho do Amor, e também
àqueles dotados de inclinação para segui-lo. O Caminho Hinayana, o Veículo
Menor — conhecido como caminho elementar ou caminho estreito —
fundamenta-se na disciplina, a primeira exigência para o desenvolvimento da
Liberdade. Esse Caminho, aliás, disciplina não só a mente, através da prática da
meditação, mas também a fala e o comportamento físico. Esse tipo de disciplina
é bastante diferente daquele que estabelece uma lei de código moral ou, ainda,
daquele que moraliza no sentido de “pecado” e de “virtude”; diz respeito à ação
adequada, à ação verdadeira, à ação conforme a Lei do que é. Devemos então
ver esse conceito de disciplina ou Sila Paramita com clareza. Ele se torna a base
de tudo. Ele é, poderíamos dizer, o Caminho Estreito, que em si mesmo é uma
espécie de simplicidade. Por exemplo, se houvesse apenas uma pequena trilha
cortando um desfiladeiro e o resto do terreno estivesse completamente coberto
por árvores, arbustos e assim por diante, não teríamos, então, dificuldade
alguma para decidir qual o caminho a escolher. Se só há um caminho, você
continua ou volta; a questão toda é simplificada num único evento, ou numa
continuidade. Portanto, a disciplina não limita as nossas atividades declarando
que tal e tal coisa é contra a Lei Divina, ou é imoral; ocorre apenas que só existe
um caminho de simplicidade verdadeira à nossa frente. Em sua essência, a
disciplina se reduz à Prática Samatha de desenvolvimento da consciência,
através da qual só vemos o que é. Todos os momentos são agora, e agimos
através da experiência do momento presente. Acabamos de falar sobre o
Caminho Estreito.

Deste passamos ao Mahayana, o Grande Veículo, que é o caminho aberto, o


Caminho do Bodhisattva, O Caminho Estreito não é apenas simples e direto,
mas também é dotado de grande caráter e dignidade. Ao construir sobre esses
alicerces, desenvolvemos a Compaixão. Na realidade, a Compaixão não está
relacionada de modo específico com o fato de sermos compassivos, no sentido
de sermos caridosos ou bondosos para com o nosso próximo, com o fato de
fazermos doações regulares a refugiados, ou com o fato de pertencemos a
diversas organizações religiosas, embora tudo isso possa também estar incluído.
Essa caridade é fundamental; ela resulta no desenvolvimento do entusiasmo
dentro de nós. É a partir dessa simplicidade e dessa percepção que o
Bodhisattva desenvolve fervor altruísta dentro de si mesmo; ele não pensa de
modo algum em termos do seu próprio benefício psicológico; ele não pensa: “Eu
não gostaria de vê-lo sofrer.” O “Eu” não está absolutamente envolvido na
questão. Ele fala, pensa e age de forma espontânea, sem nem mesmo pensar
em termos de ajuda, ou de preenchimento de qualquer finalidade específica. Ele
não age movido pela “religião” ou pela “caridade”. Age apenas de acordo com o
momento presente, verdadeiro, através do qual desenvolve uma espécie de
fervor. Existe, aliás, um grande fervor nessa percepção e também grande
criatividade. Suas ações não têm limites e todos os tipos de impulsos criativos
apenas surgem dentro dele e são, de certa forma, adequados exatamente para
aquele momento particular. As coisas apenas acontecem e ele simplesmente
navega no meio delas, de forma que existe, nele, uma tremenda e contínua
criatividade. Esse é o verdadeiro ato do Karuna — termo sânscrito que significa
“Coração Nobre”, ou “Coração Compassivo”. Nesse caso, então, a Compaixão
não se refere apenas à delicadeza e sim à compaixão fundamental, altruísta. Ele
não está de fato ciente de si mesmo e, assim, a compaixão tem uma
oportunidade maior para se expandir e se desenvolver, porque aqui não existe o
que irradia, mas apenas a irradiação; e, quando existe somente essa irradiação,
sem um que a irradie, ela pode continuar indefinidamente, e a energia nunca irá
se esgotar. Ela é sempre transformada e, à medida que se expande cada vez
mais, sempre se converte em outra coisa, numa nova atividade criativa, de modo
que continua ininterruptamente. Essa transformação criativa não é um conceito
meramente teórico ou filosófico, mas ocorre de fato num sentido prático, algumas
vezes de um modo muito simples.

Podemos passar agora à generosidade, que surge quando o Bodhisattva está


inebriado pela compaixão e não tem mais consciência de si mesmo. Sua mente
não está apenas cheia de compaixão; ela se torna a compaixão, ela é
compaixão. Existem seis atividades relacionadas com isso: a generosidade, a
moralidade ou disciplina (disciplina espontânea, que é agir de acordo com a
verdadeira Lei), a paciência, a energia e a clareza (que é também sabedoria ou
conhecimento da situação). Essas são as virtudes conhecidas por Paramitas
que, como já dissemos, significam ações transcendentes. Deixem-me repetir que
o Bodhisattva não age com o intuito de se tornar virtuoso ou de superar o Pecado
ou a Maldade; sua mente não se ocupa com o fato de estar do lado do Bem ou
do Mal. Em outras palavras, sua atividade não é limitada, não está presa nem
condicionada ao bem ou ao mal; de forma que é transcendental, algo que está
além. Isso poderá parecer um tanto abstrato, um pouco difícil de entender, e
poderá surgir a pergunta: “Como pode um ato de generosidade ser
transcendental? Essa não é apenas uma definição filosófica?” Bem, não; nesse
caso, não é, porque não se refere apenas à ação. A mente dele simplesmente
não funciona dessa forma. Quando ele age, é totalmente espontâneo, livre e
situado no presente; assim ele é completamente aberto e, no que diz respeito à
sua mente, é não-ativa. A atividade só surge no momento em que a situação se
apresenta. Ele poderá não estar continuamente num estado de consciência
altruísta mas, pelo menos, age de modo espontâneo, de acordo com o Dharma.
Nesse sentido, a definição de Dharma é a Verdadeira Lei, a Lei do Universo. A
impassibilidade representa o Dharma. Isso quer dizer que o Dharma não envolve
qualquer forma de desejo pela realização, de modo que o ato da generosidade
é realizado sem referência a qualquer recompensa especial. Generosidade
significa, portanto, não possuir.

Se um homem vier a possuir riqueza, poderá dizer: “Bem, agora tenho a


oportunidade de praticar a generosidade porque tenho com que praticá-la.” Isso
não ocorre, em absoluto, com o Bodhisattva; não é uma questão de possuir algo.
A generosidade é apenas uma atitude da mente na qual não desejamos possuir
e, então, distribuímos entre as pessoas. Além do mais, a generosidade não se
refere apenas a uma prática de meditação, onde podemos sentir uma espécie
de desprendimento por não retermos nada, mas também representa algo de
positivo. Nas Escrituras, Buddha fala a respeito da prática da generosidade
esticando o braço e encolhendo-o depois. Há uma história do tempo de Buddha
que fala sobre uma mendiga, das mais pobres da Índia, já que era pobre em
espécie e também em espírito. Ela desejava tanta coisa que isso a fazia sentir-
se mais pobre ainda. Certo dia, ela ouviu dizer que Buddha havia sido convidado
para a casa de Anathapindika, no Bosque de Jeta. Anathapindika era um rico
chefe de família e um grande benemérito. Ela decidiu, então, seguir Buddha,
porque sabia que ele lhe daria comida, o que quer que sobrasse. Ela
compareceu à cerimônia de oferecimento de comida ao Sangha, a Buddha e,
então, sentou-se ali na expectativa de que Buddha a visse. Ele se voltou e
perguntou-lhe: “O que você quer?” Ele sabia a resposta, naturalmente, porém
ela devia admiti-lo de fato e dizê-lo. E ela disse: “Quero comida. Quero que você
me dê o que sobrou.” Então Buddha disse: “Nesse caso, você tem primeiro de
dizer Não. Você tem de recusar quando eu a oferecer a você.” Ele estendeu a
comida para ela, mas ela achou muito difícil dizer Não. Percebeu que, em toda
a sua vida, nunca havia dito Não. Todas as vezes que alguém tinha algo ou lhe
oferecia alguma coisa, ela sempre havia dito, “Sim, eu quero”, de forma que
achou muito difícil dizer Não, pois não estava familiarizada com essa palavra.
Depois de grande dificuldade, ela finalmente disse Não e só aí Buddha lhe deu
a comida. Com isso, ela percebeu que a verdadeira fome em seu interior era o
seu desejo de ter, de agarrar, de possuir e de querer. Esse é um exemplo de
como podemos praticar a generosidade; e a partir desse ponto de vista, podemos
praticar a generosidade conosco mesmos, porque o que interessa, no caso, é
nos livrarmos dessa possessividade, desse querer contínuo.

Então, naturalmente, o próximo passo consiste em nos desfazermos dos nossos


bens. Mas isso não está necessariamente ligado à austeridade. Não significa
que você não deva possuir nada ou que deva dar tudo o que tiver imediatamente.
Você poderá ter grande riqueza e muitas posses e poderá até mesmo apreciá-
las e gostar de possuí-las; é provável que você tenha interesse pessoal nelas —
como o brinquedo de uma criança, aliás, como o brinquedo de um adulto. Não é
uma questão de não ver o valor das posses, o fato é que deveria ser da mesma
forma fácil desfazer-se delas. Se alguém lhe pedir um objeto específico de que
você goste muito, você não deve, de maneira alguma, hesitar; apenas deve dá-
lo. Na verdade, a questão é abandonar esse conceito de posse, pois existe uma
espécie de ansiedade em ação. Existe uma história no Tibete a respeito de dois
irmãos; um deles possuía noventa e nove iaques, enquanto o outro tinha apenas
um. O irmão pobre estava bastante contente com o seu único iaque; estava muito
feliz e acreditava que era possuidor de grande riqueza. Possuía um iaque e isso
era de fato tudo o que precisava; era o bastante e ele não tinha nenhum receio
em particular de perdê-lo. Na verdade, o prazer de possuí-lo era maior que o
medo de perdê-lo, enquanto o outro irmão estava sempre com receio de perder
os seus iaques. Ele sempre tinha de cuidar deles e, nas Terras Montanhosas do
Tibete, normalmente existem muitos lobos e ursos montanheses e os iaques
muitas vezes morrem com as privações do inverno. No que se refere aos
cuidados com os animais, existem muito mais problemas lá do que nesta parte
do mundo. Assim sendo um dia, o irmão rico pensou: “Bem, acho que vou pedir
um favor ao meu irmão.” Entendam, ele não tinha apenas medo de perder seus
iaques, mas também tinha muita ganância de possuir mais. Dirigiu-se então a
seu irmão e disse: “Bem, sei que você tem apenas um iaque que não faz muita
diferença para você. Assim, se você não tivesse nenhum, isso não teria muita
importância. Porém, se você me der o seu iaque, terei então cem iaques, o que
significa muito para mim. Quero dizer que cem iaques de fato significam algo. Se
eu possuísse tantos iaques assim, seria realmente uma pessoa rica e famosa.”
Assim, ele pediu o favor, e o outro irmão desistiu do seu iaque com facilidade.
Ele não hesitou, apenas o deu. Essa história, então, tornou-se conhecida no
Tibete ilustrando o fato de que, quando alguém tem muito, deseja mais e, quando
tem pouco, está preparado para dar. Aí está a possessividade, a ânsia
psicológica; e isso se refere não só ao dinheiro e à riqueza, mas também ao
sentimento profundamente arraigado de desejar possuir, de desejar manter as
coisas, de desejar que as coisas pertençam de modo definitivo a você. Por
exemplo, analisemos o fato de olhar vitrinas. Uma pessoa poderá ser infeliz o
tempo todo, e quando vê coisas de que gosta, sente uma espécie de dor no
coração porque pensa: “Se eu tivesse dinheiro, poderia comprar aquilo!” Assim,
durante todo o tempo em que caminha pelas lojas, essa ansiedade causa uma
grande dor. Outra pessoa, porém, poderá apreciar as coisas apenas olhando
para elas. Esse desejo de ter, de possuir e esse não estar preparado para dar
não é realmente uma fraqueza por nenhuma coisa em particular; de modo mais
genérico, é um desejo de nos ocuparmos com alguma coisa e, se perdemos o
interesse por essa coisa específica, sempre desejamos substituí-la por outra.
Não é que você não possa ficar sem um automóvel, aquecimento central ou
outras coisas desse tipo. Existe sempre algo por trás disso, algo fundamental,
uma espécie de desejo de ter, desejo de possuir, que está sempre mudando, se
desenvolvendo e substituindo uma coisa por outra. Assim sendo, essa é a
verdadeira fraqueza — embora não se trate exatamente de uma fraqueza, e,
sim, de uma espécie de hábito que tendemos a formar através de um processo
neurótico de pensamentos. A questão se resume nessa superposição de
pensamentos que ocorre o tempo todo em nossas mentes. Nunca permitimos
que algo realmente aconteça ou ocorra na nossa mente. Surge um pensamento
e, antes mesmo que desapareça, surge outro que se sobrepõe a ele e assim por
diante. Assim, nunca deixamos que exista um intervalo que nos permita ser livres
e digerir de fato as coisas. Como consequência, isso se torna uma demanda
constante, um processo contínuo de criação e de desejo de possuir; e é por isso
que temos de desenvolver a generosidade de realmente nos abrirmos.

A fase seguinte é, talvez, uma forma mais profunda de generosidade. O que quer
dizer estarmos preparados para partilhar nossa experiência com os outros. Ora,
isso é algo bastante capcioso porque também existe o perigo de você tentar
ensinar o que aprendeu a outra pessoa; é um assunto um tanto quanto delicado.
Você poderá revelar algo, em parte, devido ao fato de gostar de falar a respeito;
pode ser bastante excitante e, talvez, você saiba mais a respeito dessa coisa do
que a outra pessoa, e deseje exibir-se! Isso é um tanto quanto capcioso.
Entretanto, a codificação desse algo em palavras — o que quer que você tenha
alcançado — e a sua transmissão a outra pessoa é o único modo de se
desenvolver. Isso se aplica de forma específica aos mestres; e para mestres
adiantados, aliás para quaisquer mestres, é necessário não apenas aprender as
coisas e guardá-las, mas sim utilizá-las e coloca-las em ação passando-as
adiante, mas sem a idéia de receber qualquer recompensa. Isso é o que se
conhece como o Dana do Dharma, onde você doa o tempo todo. É natural que
você tenha de ser muito cauteloso para não dar o presente errado para a pessoa
errada. Suponha, por exemplo, que a pessoa não aprecie muito ouvi-lo falar
sobre as suas experiências, especialmente no que diz respeito à meditação, e
assim por diante; e, se você continuar falando sobre isso, não haverá de fato
nenhum Dana. Talvez fosse mais apropriado dar outra coisa a essa pessoa que
não o Dharma. Temos de analisar isso de forma inteligente, clara e sábia; o
Prajna Paramita terá de lidar com isso. Porém, de um modo geral, temos de dar,
se desejamos receber; ocorre um processo contínuo de transformação. Existe
uma tradição no Tibete segundo a qual, se você deseja receber algum
ensinamento ou instrução, em geral terá de dar algum presente ao Guru. Isso
não significa, a propósito, que desejo arrecadar dinheiro da audiência. O conceito
aí subjacente, contudo, é o de que, quando você deseja alguma coisa — “Eu
gostaria de receber o Ensinamento. Quero saber algo” — nesse caso terá de dar
alguma coisa em troca. Isso também traz à baila o fato de você não ser um
pobrezinho completamente dependente de alguém nem se sentir humilhado
apenas por querer ajuda; isso significa que você tem algo de grande para dar.
Na tradição tibetana do budismo, quando as pessoas iam à Índia para traduzir
textos e receber ensinamentos dos Mestres indianos, passavam primeiro cerca
de dois anos recolhendo ouro por todo o Tibete. Elas sempre davam algo antes
de serem instruídas. O que realmente importa, no caso, é que temos de perceber
o valor dos Ensinamentos, embora não possamos em absoluto avalia-los em
termos de riqueza material. Temos, porém, de estar preparados para dar alguma
coisa e uma das mais importantes de todas, naturalmente, é nos desfazermos
do Ego, um dos nossos bens mais preciosos e valiosos. Temos que nos desfazer
dele. Existem determinadas práticas na tradição tibetana, como prostrações, nas
quais, antes que possamos praticar qualquer estágio posterior de meditação,
temos de fazer cem mil prostrações — isso está relacionado com a prática da
ioga budista. A idéia da prostração é render-se, entregar-se, abrir — uma espécie
de processo de esvaziamento, ou preparação do vaso ou recipiente, a fim de
poder receber. Você tem de abrir e esvaziar uma taça que já esteja cheia. Isso
é o que você terá de oferecer e, em seguida, poderá receber tudo intacto com
valor integral, com qualidade total.

Isso é muito importante, naturalmente, no caso de um Mestre, e tenho certeza


de que todos somos mestres de algum modo, e estou certo de que sempre
podemos ensinar pessoas em diferentes graus. Os professores, inclusive, têm
de estar preparados para aprender com os alunos, e isso é muito importante. Do
contrário, não há realmente progresso da parte dos estudantes porque, de certa
forma, estaríamos muito ansiosos e interessados pelo processo de fazer com
que os discípulos recebessem a expansão do nosso próprio Ego e desejosos de
produzir um outro nós, em vez de ajudá-los a desenvolver a própria habilidade.
Desse modo, os mestres devem estar preparados para aprender com seus
alunos; assim, haverá uma comunicação constante. As trocas ocorrem o tempo
todo; e, então, os alunos não se aborrecem enquanto você ensina porque você
também se desenvolve. Há sempre algo diferente, algo novo a cada momento,
de forma que o material nunca se esgota. Poderíamos aplicar isso até a estudos
técnicos e no modo de ensinar as coisas. Isso acontece com a matemática, a
ciência ou com qualquer assunto. Se o professor estiver preparado para
aprender com o aluno, nesse caso o aluno também fica ansioso por dar; ocorre
então o amor verdadeiro, e acontece a comunicação legítima. Essa é a maior
generosidade. Na vida de Buddha, podemos ver que ele nunca ensinou
simplesmente com uma espécie de autoridade pomposa. Ele nunca utilizou sua
autoridade como Buddha, como a Pessoa Desperta. Ele nunca ensinou dizendo:
“Você está errado e eu estou certo.” Apesar de, algumas vezes, ter indicado qual
o caminho correto e qual o errado; usando de perspicácia, ele de certa forma
sempre encorajava os debates entre seus discípulos. Os discípulos sempre
contribuíam com alguma coisa para o seu Ensinamento, e ele sempre se
comunicava de determinada maneira e fazia certas perguntas: “É isso mesmo,
ou não é?” E o julgamento era deixado aos discípulos. Ele dizia, então, “Sim” ou
“Não”, mas qualquer que fosse a resposta, Buddha apenas construía a partir
dessa resposta. Assim, ocorria um processo contínuo de dar e de receber, e
estou certo de que também podemos fazer isso de modo bastante semelhante.
Naturalmente, quando temos algo a dizer, gostamos de ler direto até o final antes
de receber críticas ou qualquer tipo de reação da outra pessoa, o que, na
verdade, está fundamentado numa espécie de medo secreto, pois não temos
plena confiança em nós mesmos; temos receio de mostrar a insensatez do Ego.
Tendemos, então, a apresentar os tópicos como evidentes e a deixá-los assim.
Nesse caso, quando o aluno não pode participar efetivamente do processo de
aprendizado, o mesmo se torna bastante formal, difícil e solene, e os discípulos
passam então a não gostar de aprender. Tornam-se conscientes de que estão
sendo ensinados, de que isso e aquilo está sendo dito a eles e, então, o ensino,
de certa forma, deixa de ser criativo, não penetra realmente em suas
personalidades, nem possibilita que desenvolvam suas próprias habilidades e
seu próprio conhecimento.

A generosidade de riqueza material, então, como dissemos, não é simplesmente


uma questão de desfazer-se de um objeto ou de dar dinheiro, e sim muito mais
a atitude que está por trás disso. Em geral, descobrimos que no Oriente (e não
estou dizendo que o modo oriental de fazer as coisas é sempre correto; não
estou usando isso como uma espécie de autoridade, como se esse modo fosse
a única e autêntica maneira de lidar com as coisas, mas apenas como outra
sugestão) uma pessoa normalmente dará algo porque essa é a coisa que mais
ama, e a dá porque ela realmente representa o seu coração. São muito
estranhas as coisas que acontecem no caso de uma pessoa como eu, que fui
abade de um mosteiro e viajei por vários distritos do Tibete. Recebi toda espécie
de coisas, como toucas de cabelo e ornamentos, aventais, sapatos de mulher,
anéis e assim por diante. Não que pensassem que eu realmente estivesse
precisando dessas coisas, mas eram os objetos preciosos que tinham, algo que,
de fato, os simbolizava. Eles têm em si esse desejo de possuir e é por isso que
dão as coisas dessa forma. A doação e o conceito de Punya, o mérito, não são
apenas uma questão de nos desfazermos dos objetos e de gastarmos uma
grande quantia de dinheiro, mas também de participar desse processo de
doação de modo físico e de estar completamente envolvido nele. Como acontece
em outras situações, nesse tipo de trabalho, tal como a prática da meditação,
você tem de deixar-se envolver por completo, tem de se tornar uma coisa só com
aquilo que estiver fazendo. O mesmo ocorre quando nos desfazemos das coisas:
não importa quão pequena seja a coisa em termos de valor, temos de estar
completamente envolvidos no ato da doação, de forma que também nos
desfaçamos de uma parte do nosso Ego. Com isso alcançamos o Paramita, o
ato transcendental, que é algo além. Aí, então, não estamos conscientes da
“virtude” e de nos desfazermos de coisas num esforço de sermos “religiosos”, e
não estamos cientes de receber qualquer recompensa específica por algum
merecimento especial. Se estivermos dando apenas para ganhar méritos,
estaremos nos inclinando a construir o nosso Ego em vez de realmente nos
desfazermos de algo. Assim, se somos capazes de jogar fora o nosso Ego, uma
parte dessa possessividade, dessa paixão, estamos realmente praticando o
Dharma, que é impassível, e o merecimento automaticamente se torna um
subproduto, e não ficamos o tempo todo tentando alcançá-lo.
5
Paciência

A paciência, Ksanti em sânscrito, em geral é vista como tolerância e como


resistência à dor e à miséria. Porém, na verdade, ela significa muito mais do que
isso. É tolerante no sentido de ver a situação e verificar que é correto haver o
controle e o desenvolvimento da paciência. Desse modo, Ksanti tem um aspecto
de inteligência que contrasta, poderíamos dizer, com um animal carregado de
fardos que poderá continuar andando pela estrada até simplesmente cair morto.
Esse é o tipo de paciência sem sabedoria, sem lucidez. Estamos nos referindo,
aqui, à paciência com perspicácia e à energia sob a luz do entendimento. Em
geral, quando falamos a respeito da paciência, pensamos num indivíduo
isolador, que esteja sendo paciente, mas a paciência também está muito
relacionada com a comunicação. A paciência prospera se existir disciplina e se
pudermos criar a situação adequada. Não nos controlamos, então, simplesmente
porque é doloroso, desagradável, e porque estamos apenas tentando conseguir
fazer algo, mas a paciência pode se desenvolver com facilidade com a ajuda de
Virya, ou Energia. Sem energia, não podemos desenvolver a paciência, porque
não haveria força para sermos pacientes, e essa energia surge da criação da
situação correta, que está ligada à consciência. Talvez a palavra Consciência
seja um pouco ambígua pois, com frequência, tem a conotação de
autoconsciência ou de consciência do que estamos fazendo. Porém, nesse caso,
consciência significa apenas ver a situação de modo correto. Não significa que
você tenha particularmente de se observar enquanto fala ou age, e sim que você
veja a situação como um todo, como a visão aérea de uma paisagem que revele
o traçado da cidade, e assim por diante. Desse modo, a paciência está
relacionada com a disciplina que, por sua vez, está ligada à consciência.

A disciplina é, na verdade, a chave para tudo, e a moralidade Sila é a fonte da


disciplina e sua principal função. Existem aí duas escolas de pensamento: de
acordo com uma delas, a disciplina é necessária, e somente através dela
podemos aprender e encontrar o caminho certo; de acordo com a outra escola,
deve-se permitir que as coisas se desenvolvam a seu próprio modo e, se houver
menos disciplina, se as coisas forem deixadas ao gosto do indivíduo ou ao seu
instinto, este desenvolverá então um interesse pessoal pelo assunto e não será
necessário que qualquer coisa lhe seja imposta. Ambos os pontos de vista são
radicais. Não que os budistas gostem de fazer concessões em todos os casos;
é mais uma questão de ver as coisas de forma clara. Sempre que há disciplina
em demasia, ela é invariavelmente imposta por outra pessoa; existem regras e
regulamentos, estamos sempre sendo observados e sempre estão nos dizendo
o que fazer e, assim, não estamos de fato sendo aquilo que somos — alguma
outra pessoa está simplesmente expandindo o seu Ego e impondo as suas idéias
sobre nós. Isso seria uma espécie de ditadura e não uma disciplina, porque seria
obrigar as coisas a se desenvolverem em lugar de permitir que se desenvolvam
de modo natural. Por outro lado, se a disciplina for deixada inteiramente ao
indivíduo e ele tiver de achar seu próprio caminho, ele achará isso muito difícil
— exceto no caso muito raro da pessoa que é muito inteligente e altamente
controlada, no sentido de não ser influenciada por um padrão irregular ou
neurótico de pensamentos, de opiniões e de emoções. Isso não quer dizer que
a maioria seja psicologicamente perturbada, mas esse elemento encontra-se em
todos. Em geral, existe um aspecto neurótico que faz com que reajamos de um
modo ou de outro a uma determinada situação e desenvolvamos uma maneira
neurótica de lidar com ela. Esse não é, em absoluto, o caminho verdadeiro. Isso
significa agir de acordo com o nosso condicionamento e não de acordo com o
que existe. Nesse caso, então, a pessoa não teria a habilidade de desenvolver
a liberdade, porque a liberdade não lhe foi apresentada de modo adequado; a
liberdade tem de ser apresentada de forma correta. Na verdade, a própria
palavra “Liberdade” é um termo relativo: liberdade em relação alguma coisa,
caso contrário não existe liberdade. Como é liberdade em relação a algo,
precisamos criar, em primeiro lugar, a situação correta, que é a paciência.

Esse tipo de liberdade não pode ser criado por uma outra pessoa ou por uma
autoridade superior. Temos de desenvolver a habilidade de conhecer a situação;
em outras palavras, temos de desenvolver uma consciência panorâmica, uma
percepção que penetra em tudo, conhecer a situação naquele exato momento.
É uma questão de conhecer a situação e de abrir nossos olhos ao momento
presente, e isso não é particularmente uma experiência mística ou qualquer
coisa misteriosa, e sim apenas uma percepção direta, aberta e clara do que
existe agora. Quando uma pessoa é capaz de ver o que existe agora sem deixar-
se influenciar pelo passado ou por qualquer expectativa em relação ao futuro,
vendo apenas o próprio momento do agora, nesse momento então não há mais
barreiras, pois uma barreira só poderia surgir de associações com o passado, ou
de expectativas com relação ao futuro. Desse modo, o momento presente não
tem nenhuma barreira; então a pessoa descobre que dentro dela existe uma
grande energia, uma tremenda força para pôr em prática a paciência. Ela se
transforma num guerreiro. Quando um guerreiro vai para a guerra, ele não pensa
no passado ou nas suas experiências anteriores de guerra, nem pensa nas
consequências com relação ao futuro; apenas a enfrenta e luta, e esse é o modo
correto de ser guerreiro. De forma análoga, quando está ocorrendo um tremendo
conflito, temos de desenvolver essa energia, combinada com a paciência; e isso
é o que se conhece como a paciência correta com o olho que tudo vê: a paciência
com lucidez.

É natural que achemos possível a consciência do momento presente quando


ficamos sozinhos ou quando se apresenta a situação adequada — digamos, num
dia ensolarado ou numa noite agradável, em boa companhia, lendo um livro
apropriado ou qualquer coisa dessa natureza, onde a situação está próxima do
que desejamos fazer — nesse caso, é mais fácil. Muitas vezes, porém, as coisas
não acontecem desse modo. Talvez estejamos na companhia errada, ou talvez
estejamos terrivelmente deprimidos ou de algum modo muito perturbados, mas
temos de ver a identidade dos dois aspectos. Naturalmente, é muito fácil falar
sobre isso, mas bastante difícil fazê-lo. O que ocorre é que, mesmo quando a
situação parece favorável, tal como acontece no campo onde tudo está quieto e
não há qualquer barulho, de certa forma, nunca somos capazes de fugir dos
distúrbios emocionais, da depressão e da grande coleção de coisas em nossa
mente. Em parte, essas coisas são interdependentes quando se referem às
outras pessoas e, em parte, isso ocorre porque não conseguimos nos abrir e
desenvolver suficientemente a nossa paciência. Portanto, a situação toda tende
a se dividir como uma entidade separada, em vez de constituir-se numa parte do
modelo completo de uma Mandala. Isso quer dizer que devemos sempre
permanecer no centro e não reagir à situação. Achar que algo vai mal, e querer
ver esse algo feito de forma correta, pode ser um pensamento muito caridoso;
existe, porém, o elemento “Eu” envolvido: “‘Eu’ gostaria que ele fosse feliz”, ou
“Se isso o faz feliz então eu também serei feliz” — de modo que há a idéia de
ambos experimentarem essa felicidade. De qualquer forma, isso é uma maneira
de sermos condescendentes com a felicidade. Assim, muitas vezes ocorre que
não nos colocamos no centro da roda do oleiro, por assim dizer, e se alguém por
acidente jogar argila na borda da roda do oleiro, ele se desprende. Não há nada
de errado com a argila e nada há de errado com a roda; você simplesmente
atirou a argila no lugar errado. Se você jogar a argila no centro, lindos potes
serão feitos. O que importa, no caso, é que você fique o tempo todo no centro, e
não espere que outra pessoa ou alguma situação exterior aja por você. Em
outras palavras, aquele que desenvolve uma paciência altamente qualificada
jamais esperará algo de alguém, não porque seja desconfiado, mas porque sabe
como ficar no centro, e ele é o centro. De maneira que, para alcançar o silêncio,
você não terá de afugentar os pássaros porque fazem barulho; para ficar
tranquilo, você não terá de parar o movimento do ar ou do rio impetuoso, mas
aceitá-los, e você mesmo perceberá o silêncio. Aceite-os simplesmente como
parte da instituição do silêncio. Assim, o aspecto mental do ruído dos pássaros
afeta o aspecto psicológico dentro de você. Em outras palavras, o ruído que os
pássaros fazem é um fator e o nosso conceito psicológico de barulho é outro.
Quando conseguimos lidar com esse lado, o ruído dos pássaros se torna um
silêncio audível. Tudo se resume no fato de que não devemos esperar nada de
fora, de que não devemos tentar mudar a outra pessoa nem tentar impor nossas
opiniões. Não devemos tentar convencer uma pessoa no momento errado,
quando sabemos que ela tem uma idéia própria já formada, ou quando
simplesmente não é o momento adequado para que suas palavras a atinjam.
Existe uma analogia entre isso e duas pessoas que caminhavam descalças por
uma estrada muito acidentada. Uma delas achou que seria muito bom cobrir toda
a estrada com couro, de modo e torná-la bastante suave; a outra, porém, mais
sensata, disse: “Não; acho que se cobríssemos nossos pés com couro seria a
mesma coisa.” Assim é a paciência, que não significa desconfiador mas, não
esperar nada. Esta é a única maneira de criar paz no mundo. Se você estiver
preparado para fazer isso e aceitar a situação, então outra pessoa dará a mesma
contribuição. Assim, se cem pessoas fizerem o mesmo, a questão toda se
tornará certa.

Existe uma história tibetana que conta que havia uma vez cento e um soldados,
um deles bastante jovem, era o filho do comandante. Em certa ocasião, seu pai
lhe disse: “Você parece estar atrasado. Todos os outros já selaram seus cavalos,
e você?” O jovem respondeu, dizendo: “Bem, se cem pessoas podem selar cem
cavalos tão depressa, uma pessoa, por certo, não demorará muito para fazê-lo.”
Contudo, é natural, todos haviam selado seus cavalos ao mesmo tempo, de
forma que ele foi deixado para trás. Assim se esperarmos que a situação exterior
se altere, a situação toda se inverte e descobrimos que estamos sendo
rechaçados por toda parte e derrotados. É como caminhar sobre o gelo. É claro
que, algumas vezes, podemos alterar a situação com determinadas pessoas —
talvez passando por uma série de etapas dolorosas, como fazendo queixas à
pessoa, ou tendo um trabalho enorme para explicar que uma coisa nos perturba
e que outras não são aceitáveis. Porém, quando terminamos de passar por esse
longo processo, a própria meta que estávamos tentando alcançar — ou seja, a
paz e a quietude — já desapareceu há muito tempo, e não conseguimos nada.
A situação toda, portanto, se transforma numa contínua e exaustiva rotina.
Consequentemente, a paciência é o modo de estabelecer o exemplo da paz. Se
desejássemos criar uma atmosfera tranquila em algum lugar, teríamos de
desenvolver a paciência — não apenas suportando a dor, mas vendo o lado
divertido da situação com a qual nos sentimos irritados. Se formos capazes de
ver esse aspecto particular, o aspecto irônico (que também é um aspecto
interessante), então de algum modo a situação deixará de ser irritante e não mais
se intrometerá na nossa qualidade de silêncio. O fato de sermos capazes de
aceitar a circunstância com tranquilidade, com calma, é o primeiro passo no
sentido de criar um clima de paz e uma atmosfera de tranquilidade; nesse caso,
alguém poderá senti-la mesmo sem falar nada.

Dessa forma, a paciência é a chave para o desenvolvimento de um centro aberto


e da elaboração de uma base estável para a prática da meditação. Além disso,
ela é muito importante para lidar com a vida, para lidar com as pessoas e para
viver no mundo em que você tem de viver. Para a maioria das pessoas, a
paciência tem uma conotação bastante diferente, quase puritana, de sermos
frios, ingênuos e de não falar muito: a vida pode ser difícil, mas nós a suportamos
com um falso sorriso; isso não significa em absoluto paciência, porque, se não
estamos preparados para nos sintonizarmos com a situação e para ver seu
aspecto divertido, então, um dia, esse controle puritano estará sujeito a se
quebrar, estará sujeito a explodir e, então, não haverá nenhum lugar para a
paciência.
6
Meditação

A meditação é um assunto muito amplo que se desenvolveu ao longo das épocas


e sofreu muitas variações entre as diferentes tradições religiosas.
Genericamente falando, porém, o caráter básico da meditação assume uma de
duas formas. A primeira tem sua origem nos ensinamentos relacionados com a
descoberta da natureza da existência; a segunda refere-se à comunicação, com
o conceito de Deus exterior ou universal. Nos dois casos, a meditação é o único
modo de colocar em prática os ensinamentos.

Onde existe o conceito de um Ser “mais elevado”, exterior, existe também uma
personalidade interior — que é conhecida como “Eu” ou Ego. Nesse caso, a
prática da meditação torna-se um meio de desenvolver a comunicação com um
Ser exterior. Isso significa que nos sentimos inferiores e estamos tentando
estabelecer contato com algo mais elevado. Essa meditação tem por base a
devoção. Essa é uma prática de meditação basicamente interior ou introvertida,
muito conhecida nos ensinamentos hindus, onde a ênfase está no fato de
chegarmos ao estado interior de samadhi, de chegarmos às profundezas do
coração. Encontramos uma técnica semelhante praticada nos ensinamentos
ortodoxos do cristianismo, onde se faz uso da prece do coração e se enfatiza a
concentração no coração. Esse é um modo de nos identificar mos com um Ser
exterior e há a necessidade de nos purificarmos. A crença fundamental é a de
que estamos separados de Deus, mas que ainda existe um elo, que ainda somos
parte Dele. Às vezes surge essa confusão e, para esclarecê-la, temos de
trabalhar interiormente e tentar elevar o padrão de individualidade a um nível
superior de consciência. Essa abordagem utiliza práticas emocionais e
devocionais que visam fazer contato com Deus, com os deuses ou com algum
santo específico. Essas práticas devocionais poderão incluir também a recitação
de mantras.

A outra forma principal de meditação é quase que inteiramente oposta na sua


abordagem, embora, na sua conclusão, possa levar aos mesmos resultados.
Nela não existe crença em algo mais elevado ou inferior; a idéia de níveis
diferentes ou de estarmos num estado subdesenvolvido não ocorre. Não nos
sentimos inferiores, e o que estamos tentando alcançar não é algo mais elevado
do que nós. Assim, a prática da meditação não requer uma concentração interior
voltada para o coração; não há um conceito centralizador. Mesmo práticas como
a concentração nos chakras, ou nos centros psíquicos do corpo, são abordadas
de modo diferente. Embora, em certos ensinamentos do budismo, mencione-se
o conceito de chakras, as práticas com ele relacionadas não estão baseadas no
desenvolvimento de um centro interior. Essa forma básica de meditação está
relacionada com a tentativa de vermos o que é. Existem muitas variantes dessa
forma de meditação, mas elas em geral baseiam-se em diversas técnicas de
abertura de si mesmo. A compreensão desse tipo de meditação não é, portanto,
o resultado de alguma prática longa e árdua, por meio da qual nos elevamos a
um estado “superior”; nem necessita de que entremos em algum tipo de estado
interior de transe. Essa meditação é o que poderíamos denominar de “meditação
ativa” ou de meditação voltada para fora, na qual métodos competentes e
sabedoria têm de ser combinados, como as duas asas de um pássaro. Não se
trata de tentarmos nos retirar do mundo. Na verdade, sem o mundo exterior, sem
o mundo dos fenômenos aparentes, seria quase impossível praticar a meditação,
pois o indivíduo e o mundo exterior não são separados, mas simplesmente
coexistem. Consequentemente, a idéia de tentarmos nos comunicar e de
tentarmos nos tornar um com um Ser mais elevado não ocorre.

Nesse tipo de prática de meditação, o conceito do agora tem um papel muito


importante; ele é, na verdade, a essência da meditação. O que quer que
façamos, o que quer que pratiquemos, não estamos, com isso, visando a
obtenção de um estado mais elevado ou tentando levar avante alguma teoria ou
determinado ideal; estamos simplesmente, sem qualquer objeção ou ambição,
procurando ver o que existe aqui e agora. Temos de nos conscientizar do
momento presente através de métodos como a concentração na respiração,
prática que foi desenvolvida dentro da tradição budista. Ela se baseia no
desenvolvimento do conhecimento do agora, pois cada respiração é única, é
uma expressão desse momento. Cada respiração é separada da seguinte, é
vista por inteiro e sentida em sua totalidade, não de uma forma visualizada, não
apenas como auxílio à concentração, porém de forma completa e adequada.
Exatamente como um homem que está com muita fome; quando ele está
comendo, não tem nem mesmo consciência de que está ingerindo comida. Ele
está tão absorto no ato de comer que se identifica completamente com o que
está fazendo e quase se torna um com o sabor do alimento e com o prazer de
ingeri-lo. O mesmo ocorre com a respiração; tudo se resume na tentativa de
descobrir aquele exato momento no tempo. Dessa maneira, a idéia de tentar se
transformar em algo mais elevado não surge, de modo algum, e as opiniões não
têm muita importância. Em certo sentido, as opiniões fornecem uma forma de
escapar; elas criam uma espécie de indolência e toldam a clareza da nossa
visão. A lucidez da nossa consciência está velada por conceitos
preestabelecidos e tentamos guardar tudo o que vemos ou, de algum modo,
fazer que as coisas se ajustem às nossas idéias preconcebidas. Assim, os
conceitos e as teorias — e, aliás, a teologia — podem se transformar em
obstáculos. Poderíamos perguntar, contudo, por que então estudar a filosofia
budista? O fato de existirem as escrituras e os textos e, com certeza, alguma
filosofia básica, isso também não seria um conceito? Isso depende do indivíduo,
mas fundamentalmente a situação não é bem essa. Tentamos, desde o começo,
transcender conceitos, e procuramos, talvez de modo muito crítico, descobrir o
que é. Temos de desenvolver uma mente crítica que estimule a inteligência. À
primeira vista, isso poderá fazer com que rejeitemos o que os mestres dizem ou
o que está escrito nos livros; porém, de forma gradual, começamos a sentir
alguma coisa e a encontrar algo para nós. É isso que se conhece como o
encontro entre a imaginação e a realidade, onde o sentimento relativo a
determinados conceitos e palavras se encontra com o conhecimento intuitivo,
talvez de modo vago e impreciso. Pode ser que não tenhamos certeza se o que
estamos aprendendo está correto ou não, mas existe um sentimento vago de
que estamos para descobrir alguma coisa. Não podemos, de fato, começar
sendo perfeitos, mas temos de começar com algo. Se cultivarmos essa
compreensão inteligente e intuitiva, de forma gradativa, etapa por etapa, o
sentimento intuitivo verdadeiro se desenvolverá e o elemento imaginário ou
alucinatório será esclarecido aos poucos e, finalmente, desaparecerá. Por fim,
aquele vago sentimento de descoberta se tornará bastante claro, de forma que
quase não restarão dúvidas. Mesmo nesse estágio, é possível que não
consigamos explicar verbalmente nossa descoberta nem mesmo descrevê-la de
modo claro, por escrito; na verdade, se tentássemos fazê-lo, estaríamos
limitando nosso objetivo, o que seria bastante perigoso. Entretanto, à medida
que esse sentimento cresce e se desenvolve, finalmente obtemos o
conhecimento direto, em vez de alcançarmos algo que está separado de nós.
Como na história do homem faminto, você se torna uma coisa só com o objeto.
Isso só pode ser atingido através da prática da meditação. Consequentemente,
a meditação é muito mais uma questão de exercício — é uma prática de trabalho;
não significa nos aprofundarmos interiormente, e sim nos abrirmos e nos
expandirmos para o exterior.

Essas são as diferenças básicas entre os dois tipos de práticas de meditação. A


primeira poderá ser mais adequada para algumas pessoas e a segunda para
outras. Não é uma questão de sermos superiores ou mais precisos do que outras
pessoas. Porém, para cada tipo de meditação, temos, primeiro, de superar o
grande sentimento de exigência e de ambição que funciona como um forte
obstáculo. Exigir coisas de uma pessoa, como o faz um Guru, ou termos a
ambição de alcançar algo fora do que estivermos fazendo, surge do incremento
de um desejo ou de uma carência; e essa carência é uma noção centralizada.
Essa noção centralizada é basicamente cega; é como se tivéssemos apenas um
olho, estando esse olho situado no peito. Quando você tentar andar, não poderá
virar a cabeça e só poderá enxergar uma área limitada. Como você só pode olhar
numa direção, falta-lhe a inteligência de virar a cabeça e, portanto, correrá um
grande risco de cair. Essa carência age como um véu e se torna um obstáculo à
descoberta do momento do agora, porque a deficiência está baseada no futuro
ou na tentativa de continuar algo que existia no passado, de forma que o agora
cai no completo esquecimento. Poderá haver certo esforço no sentido de
concentrar-se no agora, mas talvez apenas vinte por cento da consciência tem
como base o presente; o restante está espalhado pelo passado e pelo futuro.
Não existe, portanto, força suficiente para enxergar com exatidão o que está ali.

Neste caso, o ensino do altruísmo também exerce um papel muito importante.


Não se trata apenas de uma questão de negar a existência do Ego, pois o Ego
é uma coisa relativa. Onde existe uma pessoa exterior, um Ser superior, ou onde
há a idéia de algo que é separado de nós, tendemos a pensar que, como existe
alguma coisa do lado de fora, deve haver algo aqui também. O fenômeno exterior
algumas vezes se torna irresistível e parece ter todos os tipos de qualidades
tentadoras ou agressivas, de forma que montamos uma espécie de mecanismo
de defesa contra esse fenômeno, e não percebemos que isso é uma continuação
da coisa exterior. Tentamos nos isolar do exterior, e isso cria dentro de nós um
tipo de bolha gigantesca, que se compõe apenas de ar e de água ou, nesse caso,
de medo e do reflexo da coisa exterior. Essa grande bolha evita que qualquer ar
fresco penetre, e isso é o “Eu” — o Ego. Logo, nesse sentido, o Ego existe, mas
trata-se na verdade de uma existência ilusória. Tendo estabelecido isso,
normalmente desejamos criar algum ídolo ou refúgio exterior. No subconsciente,
sabemos que esse “Eu” é apenas uma bolha que pode estourar a qualquer
momento, de modo que tentamos protegê-la ao máximo — quer de forma
consciente, quer de forma inconsciente. Na verdade, atingimos tal capacidade
para proteger esse Ego que conseguimos preservá-lo por centenas de anos. É
como se uma pessoa possuísse um par de óculos muito preciosos e que os
colocasse numa caixa ou em vários recipientes para mantê-los seguros, de
forma que, mesmo que outras coisas se quebrassem, eles seriam preservados.
Ela poderá sentir que outras coisas poderiam faltar, mas sabe que essa não
poderia, de modo que deverá durar mais. Da mesma forma, o Ego dura mais,
exatamente porque sentimos que ele poderia estourar a qualquer momento.
Existe o medo de que ele seja destruído, porque isso seria demais; nós nos
sentiríamos excessivamente expostos. Existe esse caráter, há um padrão tão
fascinante que se estabelece fora de nós, embora seja, na verdade, o nosso
próprio reflexo. É por isso que, na idéia de ausência do Ego, o que está em
questão não é realmente se existe ou se não existe um “Eu” ou, aliás, se existe
Deus ou não; é, antes, o afastamento do conceito da bolha. Feito isso, nem
temos de destruir o Ego, nem temos de condenar Deus de forma deliberada;
quando essa barreira é removida, podemos nos expandir e ir adiante
imediatamente. Isso, porém, só pode ser obtido através da prática da meditação,
que deve ser abordada de um modo muito prático e simples. Então, a experiência
mística de felicidade e de Graça, ou seja ela qual for, poderá ser encontrada em
cada objeto. É isso o que tentamos alcançar com o Vipassana, ou a prática da
meditação do conhecimento intuitivo. Uma vez estabelecido um padrão básico
de disciplina e desenvolvido um modo regular de lidar com a situação —
respirando, andando, ou seja lá como for —, então, em alguma etapa, a técnica
desaparece de forma gradual. A realidade se expande aos poucos, de forma que
não temos em absoluto de utilizar nenhuma técnica; nesse caso, não temos de
nos concentrar em nosso íntimo, mas podemos nos expandir exteriormente
sempre mais. Quanto mais nos expandirmos, mais perto chegamos da
percepção da existência descentralizada.

Esse é o modelo básico desse tipo de meditação, que está baseado em três
fatores fundamentais: primeiro, não se centralizar interiormente; segundo, não
deixar-se dominar por nenhum desejo de se tornar mais elevado; e, terceiro,
identificar-se completamente com o aqui e o agora. Esses três elementos
acompanham todo o período da prática da meditação, desde o início até o
momento da realização.

P. O senhor mencionou o agora na sua palestra, e fiquei me perguntando como


seria possível tornarmo-nos conscientes do absoluto através da consciência de
um momento relativo no tempo?

R. Bem, temos de começar por trabalhar o aspecto relativo, até que, por fim,
esse momento presente absorva tal qualidade de vida que não dependa mais de
um modo relativo de expressar o agora. Poderíamos dizer que esse momento
existe sempre, além da idéia da relatividade. Porém, como todos os conceitos
estão baseados na idéia da relatividade, é impossível descobrir palavras que
transcendam isso. Assim sendo, o agora é a única maneira de ver a coisa de
forma direta. Primeiro, ele está entre o passado e o futuro — é o agora. Depois,
gradualmente, descobrimos que o agora não depende, em absoluto, da
relatividade; descobrimos que o passado não existe, que o futuro não existe e
que tudo acontece agora. De modo semelhante, para expressar o espaço,
poderíamos ter primeiro de criar um vaso e, depois, quebra-lo; aí então veríamos
que o vazio dentro do vaso é o mesmo que o vazio que há do lado de fora. Esse
é todo o sentido dessa técnica. A princípio, o agora, de certa forma, não é
perfeito. Poderíamos até dizer que a meditação não é perfeita, que ela é apenas
uma prática inventada pelo homem. Sentamo-nos, tentamos ficar imóveis,
tentamos nos concentrar na respiração, e assim por diante. Mas, depois de
termos começado dessa forma, descobrimos gradativamente algo além disso.
Desse modo, o esforço que temos de envidar — na descoberta do agora, por
exemplo — não seria perdido, embora, ao mesmo tempo, possamos ver que
esse esforço foi bastante tolo; esse, porém, é o único modo de começar.

P. Um estudante tem de se livrar do Ego antes de iniciar a prática da meditação,


ou isso acontece naturalmente enquanto ele estuda?

R. Isso vem de forma natural, pois não é possível começar sem o Ego; e o Ego
não é essencialmente mau. Na verdade, o bem e o mal não existem em lugar
algum; são coisas secundárias, apenas. O Ego, de certa forma, é uma coisa
falsa, mas não é necessariamente mau. Você tem de começar com o Ego, fazer
uso dele e, a partir daí, ele se desgasta, aos poucos, como um par de sapatos.
Você terá porém, de usá-lo e gastá-lo totalmente, de forma que não seja
preservado. Se, pelo contrário, você tentar colocar o Ego de lado e começar
perfeito, poderá tornar-se cada vez mais perfeito de uma maneira unilateral;
todavia, a mesma quantidade de imperfeição estará se acumulando do outro
lado, do mesmo modo que uma luz intensa cria também uma escuridão intensa.

P. O senhor mencionou que existem duas formas básicas de meditação — a


prática devocional, que significa tentar a comunicação com algo mais elevado, e
a outra, que é simplesmente a consciência do que é. Contudo, essa prática
devocional também tem seu papel no budismo, e existem cantos piedosos e tudo
o mais; mas não estou bem certo de como isso se encaixa nele. Quero dizer,
parece que as duas formas são diferentes; então podem, de fato, ser
combinadas?

R. Sim, porém o tipo de prática devocional encontrada no budismo é apenas um


processo de abertura, de rendição do Ego; é um processo de criação de um
recipiente. Não pretendo condenar o outro tipo de devoção mas, se o
considerarmos do ponto de vista de uma pessoa que tenha um modo pouco
habilidoso de usar essa técnica, então a devoção se transforma num desejo de
liberdade. A pessoa se sente muito isolada, presa e imperfeita. Ela se considera
basicamente má, e tenta se libertar. Em outras palavras, a sua parte imperfeita
é identificada com o “Eu”, e o que quer que seja perfeito é identificado com algum
ser exterior; dessa forma, tudo o que resta tenta se libertar da prisão. Esse tipo
de devoção representa uma consciência superenfatizada do Ego, o seu aspecto
negativo. Existem, porém, centenas de variações da prática devocional no
budismo, e há muitos relatos de devoção a Gurus, da capacidade de
comunicação com o Guru e da obtenção do Estado de Vigília da mente por meio
da devoção. Mas, nesses casos, a devoção sempre começa sem a centralização
no Ego. Em quaisquer cantos ou cerimônias, por exemplo, que utilizem o
simbolismo, ou a visualização de Buddhas, antes de qualquer visualização ser
criada, há primeiro uma meditação sem forma, que cria um espaço
completamente aberto. No final, sempre se recita aquilo que é conhecido como
A Roda Tríplice: “Eu não existo; a eterna visualização não existe; e o ato de
visualização não existe” — a idéia é a de que qualquer sentimento de
visualização seja revelado de volta, de modo que não tenhamos a sensação de
estar colecionando algo. Creio que esse é o ponto básico. Podemos sentir uma
grande devoção, mas essa devoção é uma espécie de forma abstrata de
devoção, que não se centraliza interiormente. Apenas nos identificamos com
esse sentimento de devoção, e isso é tudo. Esse talvez seja um conceito
diferente de devoção, onde não existe um centro, mas tão somente a devoção,
enquanto, no outro caso, a devoção contém uma exigência. Existe a expectativa
da obtenção de algo em troca.
P. Não surge um grande medo quando chegamos a esse ponto de abertura e de
entrega?

R. O medo é uma das armas do Ego; ele protege o Ego. Se alcançarmos o


estágio em que começamos a ver a insensatez do Ego, surgirá então o medo de
o perdermos, e esse medo é uma das suas últimas armas. Além desse ponto, o
medo não existe, porque a finalidade do Ego é assustar a pessoa e, quando essa
pessoa não está ali, o medo perde sua função. Veja bem: o medo é alimentado
continuamente pela sua reação e, quando não há ninguém para reagir a ele —
o que significa a derrota do Ego — então ele deixa de existir.

P. O senhor está falando a respeito do Ego como um objeto?

R. Em que sentido?

P. No sentido de que ele faz parte do ambiente exterior.

R. O Ego, como já disse, é como uma bolha. Até certo ponto é um objeto porque,
embora não exista de fato — trata-se de uma coisa transitória —, na verdade,
mostra-se mais como um objeto do que na realidade o é. Esse é um outro modo
de não tentarmos manter o Ego.

P. Esse é um aspecto do Ego?

R. É.

P. Então o senhor não pode destruir o Ego ou perderia o poder de reconhecer,


o de conhecer.

R. Não, não necessariamente. Como o Ego não contém entendimento, não


contém igualmente qualquer conhecimento intuitivo. O Ego existe todo o tempo
de modo falso e só pode criar confusão, ao passo que o conhecimento intuitivo
é algo mais do que isso.

P. O senhor diria que o Ego é um fenômeno secundário em vez de um fenômeno


primário?

R. Sim, é isso mesmo. Em certo sentido, o Ego é sabedoria, porém ele também
é ignorante. Veja bem: quando você perceber que é ignorante, esse será o início
da descoberta da sabedoria — será a própria sabedoria.

P. Em que momento decidimos dentro de nós se o Ego é ignorância ou


sabedoria?

R. Não se trata na verdade de decidir. Simplesmente vemos a situação por esse


prisma. Veja bem: em essência, não existe substância sólida, embora falemos a
respeito do Ego como se ele fosse uma coisa sólida, que possui vários aspectos.
Na verdade, porém, ele apenas vive ao longo dos tempos como um processo
contínuo de criação. Ele está constantemente morrendo e renascendo todo o
tempo; portanto, o Ego não existe. O Ego, contudo, também age como um rei de
sabedoria: a morte do Ego é a própria sabedoria, e a formulação inicial do Ego
representa o início da ignorância. Desse modo, a sabedoria e o Ego não estão,
de forma alguma, separados. Isso parece bastante difícil de definir e, de certa
forma, seríamos mais felizes se tudo fosse bem delineado, bem definido, mas
esse não é o padrão natural da existência. Não existe nada definido e todas as
coisas são interdependentes. A escuridão é um aspecto da luz, e a luz um
aspecto da escuridão, de modo que não podemos com efeito condenar um lado
e elevar tudo do outro. Fica a cargo do indivíduo encontrar seu próprio caminho,
e é possível fazê-lo. O mesmo ocorre com um cachorro que nunca nadou — se
ele for jogado repentinamente na água, nadará. De modo análogo, temos uma
espécie de instinto espiritual dentro de nós e, se quisermos nos abrir, teremos
de encontrar o nosso caminho de forma direta, seja lá como for. É apenas uma
questão de nos abrirmos e não precisamos absolutamente ter uma definição
bem-formulada.

P. O senhor poderia resumir o objetivo da meditação?

R. Bem, meditar é lidar com o objetivo em si. Não que a meditação tenha um
objetivo, mas ela lida com o objetivo. De um modo geral, temos um objetivo em
tudo o que fazemos: algo acontecerá no futuro; logo, o que vou fazer agora é
importante. Tudo está relacionado com isso. Contudo, a idéia da meditação é a
de desenvolver um modo inteiramente novo de lidar com as coisas, de modo a
não ter nenhum objetivo. Na verdade, a meditação lida com a questão da
existência ou não de algo como o objetivo. Quando aprendemos uma maneira
diferente de lidar com a situação, não precisamos mais ter um objetivo. Não
estamos mais nos dirigindo para algum lugar; ou melhor, estamos a caminho e,
ao mesmo tempo, chegamos ao destino. É para isso que a meditação existe.

P. O senhor diria, então, que isso seria uma fusão com a realidade?

R. Sim, porque a realidade está ali o tempo todo. A realidade não é uma entidade
separada, sendo, dessa forma, uma questão de se tornar um com a realidade,
ou de estar na realidade — não de atingir a unidade, mas de identificar-se com
ela. Já somos parte dessa realidade e, assim, tudo o que resta a fazer é eliminar
a dúvida. Nesse caso, descobrimos que estivemos ali o tempo todo.

P. Seria correto descrever isso como a constatação de que o visível não é uma
realidade?

R. O visível? Você poderia definir isso um pouco melhor?

P. Tenho em mente a teoria de William Blake a respeito da fusão do observador


com o objeto observado, não sendo o visível, em absoluto, a realidade.
P. As coisas visíveis são realidade nesse sentido. Não há nada além do agora;
consequentemente, o que vemos é a realidade. Mas, devido ao modo pelo qual
costumamos ver as coisas, não as vemos exatamente como são.

P. O senhor diria, então, que cada pessoa é um indivíduo e deve encontrar um


caminho individual nessa direção?

R. Bem, creio que isso nos traz de volta ao problema do Ego, a respeito do qual
estivemos falando. Veja bem: de certa forma, existe algo que podemos chamar
de personalidade, mas não somos realmente indivíduos separados do ambiente,
ou separados dos fenômenos exteriores. É por isso que uma abordagem
diferente se torna necessária. Ao passo que, se fôssemos indivíduos e não
tivéssemos qualquer ligação com o restante das coisas, então não haveria
necessidade de uma técnica diferente que levasse à unidade. A questão é que
existe uma aparência de individualidade, mas essa individualidade está baseada
na relatividade. Se a individualidade existe, a unidade também tem de existir.

P. Sim, mas é a individualidade que favorece a unidade. Se não fôssemos


indivíduos não poderíamos ser um. Não é assim?

R. Bem, a palavra “indivíduo” é um tanto quanto ambígua. No início, a


individualidade poderá ser muito enfatizada, porque existem vários aspectos
individuais. Mesmo ao atingirmos o estágio da realização, talvez exista um
elemento de compaixão, um elemento de sabedoria, um elemento de energia e
todos os tipos de variações diferentes. Porém, o que descrevemos como um
indivíduo é algo que vai além disso. Inclinamo-nos a vê-lo como um caráter, que
tem muitas coisas estruturadas dentro de si, o que é um modo de tentar
encontrar alguma espécie de segurança. Onde existe sabedoria, tentamos
acumular tudo nela, e surge, então, uma entidade completamente separada,
uma pessoa separada — que, na verdade, não o é. Ainda existem, contudo,
aspectos individuais, existe o caráter individual. Assim, no hinduísmo,
encontramos diferentes aspectos de Deus, diferentes divindades e diversos
símbolos. Quando alcançamos a união com a realidade, essa realidade não é
apenas uma coisa única, mas podemos vê-la a partir de um ângulo muito amplo.

P. Se um estudante tem uma mente receptiva e deseja se tornar um com a


Natureza, a meditação poderá ser-lhe ensinada, ou ele terá de desenvolver o
seu próprio método?

R. Natureza? O que você quer dizer?

P. Se ele deseja estudar, poderá aceitar os ensinamentos de outras pessoas, ou


deverá desenvolvê-los sozinho?

R. Na verdade, é necessário receber instrução oral, ensinamento oral. Embora


essa pessoa deva aprender a dar, antes de poder receber qualquer coisa, ela
tem de aprender a se entregar. Em segundo lugar, ela descobre que a idéia de
aprender, como um todo, estimula o seu entendimento. Isso também evita que
se forme um grande sentimento de conquista, como se tudo fosse “meu trabalho”
— o conceito do self-made man.

P. Isso não é razão suficiente para que recebamos instrução de um mestre,


apenas para evitar o sentimento de que, do contrário, tudo seria self-made.
Quero dizer, no caso de alguém como Ramana Maharshi, que obteve a
realização sem um mestre exterior; ele certamente não deveria procurar um Guru
apenas para não se tornar, quem sabe, vaidoso, não é mesmo?

R. Não, mas ele é excepcional, e isso é o que importa. É possível que exista um
modo, e, em essência, não podemos transmitir ou conferir nada a ninguém.
Temos de descobrir as coisas dentro de nós mesmos. Assim, em alguns casos
talvez, as pessoas possam fazer isso. Porém, apoiarmo-nos em nós mesmos é
algo de certa forma semelhante ao caráter do Ego, não é? Acabamos por ficar
num terreno um tanto quanto perigoso; tudo poderia facilmente se tornar uma
atividade do Ego, pois já existe o conceito do “Eu” e, então, desejamos nos
apoiar mais nesse aspecto. Creio — e isso poderá parecer pouco mas, na
verdade, é tudo — que aprendemos a nos entregar gradualmente, e que a
rendição do Ego é algo muito grande. O mestre também age como uma espécie
de espelho; ele devolve o nosso próprio reflexo. Pela primeira vez, portanto, você
poderá ver o quão bonito, ou o quão feio você é.

Talvez eu devesse mencionar aqui um ou dois pontos importantes a respeito da


meditação, embora já tenhamos discutido as bases gerais do assunto.

De um modo geral, a instrução da meditação não pode ser fornecida numa aula;
tem de haver um relacionamento pessoal entre mestre e aluno. Existem também
determinadas variantes dentro de cada técnica básica, assim como na
consciência da respiração. Talvez, porém, eu devesse mencionar rapidamente
o método básico de meditação e, então, se você deseja continuar, tenho a
certeza de que poderá fazê-lo e receber outras instruções de um mestre de
meditação.

Como já mencionei, essa meditação não pretende tentar desenvolver a


concentração. Embora muitos livros sobre budismo falem a respeito de práticas
— Samatha, por exemplo — como o desenvolvimento da concentração, creio
que esse termo, de certa forma, é enganoso. Poderíamos ter a idéia de que a
prática da meditação pode ser usada de forma comercial, e que poderíamos nos
concentrar em cálculos monetários ou em algo desse tipo. A meditação, contudo,
não se destina, em absoluto, a fins comerciais; trata-se de um conceito diferente
de concentração. Veja bem: normalmente não podemos de fato nos concentrar.
Se persistimos na tentativa de nos concentrar, então precisamos do pensamento
de que estamos concentrados no assunto, e também de alguma coisa que faça
com que isso se acelere ainda mais. Assim, existem dois processos envolvidos,
e o segundo processo é um tipo de sentinela que assegura que tudo está sendo
realizado do modo correto. Essa parte tem de ser afastada, caso contrário,
acabamos ficando mais conscientes de nós mesmos e apenas conscientes de
que estamos nos concentrando, em vez de realmente estarmos num estado de
concentração. Isso se transforma num círculo vicioso. Consequentemente, não
podemos desenvolver a concentração sozinhos, sem afastarmos a vigilância, a
tentativa de sermos cuidadosos — que é o Ego. Desse modo, a prática do
Samatha, a consciência da respiração, não está envolvida com a concentração
na respiração.

No Oriente, costuma-se adotar a postura de pernas cruzadas. Se pudermos nos


sentar nessa posição, é preferível que o façamos. Podemos, assim, sentar e
meditar em qualquer lugar, mesmo no campo, e não precisamos estar
conscientes de ter um assento ou de encontrar alguma coisa onde sentar. A
postura física também tem certa importância. Por exemplo, se nos deitarmos,
poderemos ficar com vontade de dormir; se ficarmos em pé, poderemos nos
sentir inclinados a andar. Porém, os que encontram dificuldade em se sentar de
pernas cruzadas podem muito bem sentar-se numa cadeira. Aliás, na iconografia
budista, a postura de sentar numa cadeira é conhecida como Maitreya asana, de
forma que é bastante aceitável. O importante é manter as costas retas, de forma
a não haver esforço ao respirar e, quanto à respiração em si, não temos de nos
concentrar nela, como já foi dito, mas temos de tentar nos tornarmos um com a
sensação da respiração. No começo, é necessário algum esforço, mas depois
de algum tempo de prática, a consciência simplesmente é mantida no limite do
movimento da respiração; ela segue a respiração com bastante naturalidade e
não tentamos particularmente vincular a mente à respiração. Tentamos sentir a
respiração — expirar, inspirar, expirar, inspirar — e a expiração costuma ser mais
longa do que a inspiração, o que ajuda a nos tornarmos conscientes do espaço
e da expansão da saída do ar.

É muito importante também evitar que nos tornemos solenes e evitar o


sentimento de estarmos participando de algum ritual especial. Deveríamos nos
sentir bastante naturais e espontâneos, e simplesmente buscar a identificação
com a respiração. Isto é tudo, sem necessidade de idéias ou análises. Sempre
que os pensamentos surgirem, observe-os apenas como pensamentos, em vez
de encará-los como objetos. O que ocorre quando temos pensamentos é que
não estamos absolutamente conscientes de que sejam pensamentos.
Suponhamos que estejamos planejando a nossa próxima viagem de férias:
deixamo-nos absorver tanto pelos pensamentos que é quase como se já
estivéssemos viajando, e não estamos nem mesmo conscientes de que se trata
de pensamentos. Ao passo que, se verificarmos que tudo isso é apenas um
pensamento que cria essa imagem, começamos a descobrir que ele tem uma
qualidade menos real. Não devemos reprimir os pensamentos na meditação,
mas apenas observar sua natureza transitória e translúcida. Não devemos nos
envolver com eles, nem rejeitá-los, mas simplesmente observá-los e, então,
voltarmos à consciência da respiração. O importante é cultivar a aceitação de
tudo, de modo que não sejamos parciais nem nos envolvamos com qualquer
espécie de contenda. Essa é a técnica básica da meditação, e é bastante simples
e direta. Não deve haver nenhum esforço deliberado, nenhuma tentativa de
exercer o controle e nenhuma tentativa de sermos passivos. É por isso que a
respiração está sendo utilizada. É fácil sentir a respiração, e não temos de estar
conscientes de nós mesmos, nem precisamos tentar fazer alguma coisa. A
respiração simplesmente está disponível e devemos apenas sentir isso. É por
essa razão que a técnica é importante para começar. Esse é o modo primário de
iniciar mas, em geral, ele continua e se desenvolve do seu próprio modo.
Algumas vezes nos surpreendemos fazendo a coisa de forma um pouco
diferente do que quando começamos, de modo bastante espontâneo. Essa
técnica não se classifica como avançada ou como uma técnica para
principiantes; ela apenas cresce e se desenvolve gradualmente.
7
Sabedoria

Prajna. Sabedoria. Esta palavra em tibetano — “Sherab” — tem um significado


exato: “She”, conhecimento, conhecer, e “Rab” significa fundamental — assim,
conhecimento primário ou primeiro, o conhecimento supremo. Dessa forma,
“Sherab” não representa um conhecimento específico em qualquer sentido
técnico ou educacional da teologia do budismo, ou de saber como fazer
determinadas coisas, ou do aspecto metafísico do Ensinamento. Neste caso,
conhecimento significa conhecer a situação, o ato de conhecer, e não o
conhecimento em si. É conhecimento sem um “Eu”, sem a consciência de que
estamos conhecendo — o que está relacionado com o Ego. Assim, esse
conhecimento — Prajna ou Sherab — é amplo e sagaz, embora seja, ao mesmo
tempo, tremendamente penetrante e exato, e entre em todos os aspectos da
nossa vida. Portanto, ele exerce um papel muito importante no nosso
desenvolvimento, como o faz o “Upaya” método, que é a maneira competente de
lidar com as situações de forma adequada. Essas duas qualidades, na verdade,
algumas vezes são comparadas às duas asas de um pássaro. Upaya também é
descrito nas escrituras como se fosse a mão, que é habilidosa, e o Prajna como
tendo a forma de um machado, por ser afiado e penetrante. Sem o machado,
seria impossível cortar a madeira: simplesmente machucaríamos as mãos.
Dessa forma, poderemos ter os métodos adequados e não sermos capazes de
colocá-los em ação. Porém, se existe o Prajna, que é como um olho, ou como a
luz, então somos capazes de agir de forma adequada e hábil. De outro modo, os
métodos qualificados poderão tornar-se insensatos, pois somente o
conhecimento nos torna sábios. Na verdade, o próprio Upaya poderia criar o
maior dos tolos, pois tudo ainda seria baseado no Ego. Poderíamos enxergar a
situação até certo ponto, e sermos parcialmente capazes de lidar com ela; porém
não poderíamos vê-la com clareza sem sermos afetados pelo passado e pelo
futuro, e perderíamos o agora imediato da situação.

Talvez pudéssemos estudar um modo de desenvolver esse ato de conhecer, ou


sherab, antes de entrar em maiores detalhes. Existem três métodos que são
necessários para o cultivo do sherab, e eles são conhecidos em tibetano como
töpa, sampa e gompa. Töpa significa estudar o objeto, sampa quer dizer
contemplá-lo e gompa significa meditar e desenvolver o samadhi por meio dele.
Assim, primeiro temos töpa — estudar — que costuma estar associado com o
conhecimento técnico e com o entendimento das Escrituras, e assim por diante.
O verdadeiro conhecimento, porém, vai muito além disso, como já pudemos ver,
e a primeira exigência com relação ao töpa é desenvolver um tipo de bravura,
tornar-se um grande guerreiro. Já mencionamos esse conceito, mas talvez
devêssemos nos aprofundar mais em seu estudo. Ora, quando o grande
guerreiro vai para a batalha, ele não se preocupa com o seu passado ou com
lembranças da sua força e da sua grandeza anteriores; nem pensa nas
consequências com relação ao futuro, nem está preocupado com pensamentos
de vitória e de derrota, ou de dor e de morte. O guerreiro mais eminente se
conhece e tem grande confiança em si; ele simplesmente tem consciência do
seu oponente. Ele está bastante aberto e completamente consciente da
situação, sem pensar em termos de bem e de mal. O que o torna um grande
guerreiro é o fato de ele não ter opiniões; ele apenas tem consciência, ao passo
que seus oponentes, por estarem emocionalmente envolvidos na situação, não
poderiam encará-lo, porque ele está agindo de modo verdadeiro, sobrelevando
qualquer medo, por isso ele é capaz de atacar o inimigo com eficácia.
Consequentemente, töpa, o estudo e a compreensão, exige a qualidade de um
grande guerreiro. Devemos tentar desenvolver o conhecimento teórico, sem nos
preocuparmos com o passado ou com o futuro. A princípio, nossas teorias
poderão estar inspiradas na leitura de livros, de forma que não descartamos
completamente o aprendizado e o estudo, que são muito importantes e podem
fornecer uma fonte de inspiração. Porém, os livros podem se transformar apenas
numa maneira de escapar da realidade; eles podem propiciar uma desculpa para
não nos esforçarmos realmente no sentido de examinar as coisas,
detalhadamente, por nós mesmos. Ler pode ser como comer. Até certo ponto,
comemos por necessidade física; mas, além desse ponto, o fazemos por prazer,
porque gostamos do sabor da comida, ou talvez apenas para preencher o tempo:
é hora do café, do almoço, do chá, ou do jantar. No desenvolvimento do sherab
é óbvio que não lemos apenas para obter informação. Devemos ler com grande
abertura e sem fazer julgamentos, tentando apenas receber. Algumas vezes,
faz-se a analogia com uma criança numa loja de brinquedos. Ela fica tão
interessada por tudo que se torna uma coisa só com todos os brinquedos da loja
e, afinal, tem grande dificuldade para decidir qual deles comprar. Eia perde o
próprio conceito de ter uma opinião, tal como “Eu quero comprar isso, ou não
quero comprar aquilo”. Ela se torna uma coisa só com tudo de tal maneira que
não consegue decidir. O aprendizado deve ser assim — sem opiniões (“Eu gosto
disso, eu não gosto daquilo”), mas aceitando apenas — não porque esteja nas
Escrituras ou porque algum Mestre o diz, e você tem de aceitá-lo como uma
autoridade; nem porque você não tenha o direito de criticar — mas aceitando
como resultado de uma pura e simples abertura, sem quaisquer obstáculos. Leia,
então, e desenvolva, a partir daí, uma espécie de inspiração. Você poderá
aprender bastante em todos os tipos de livros, porém existe um limite e, quando
você desenvolver um tipo de inspiração genérica e também de autoconfiança,
você deverá parar de ler.

Essa é a primeira fase de töpa, durante a qual desenvolvemos a teoria. Muitas


vezes, acontece de, num determinado ponto, essa teoria aparecer disfarçada de
experiência, e assim pensamos que atingimos um estado de êxtase espiritual ou
de iluminação. Há grande excitação e nos sentimos quase como se tivéssemos
visto a própria Realidade. Podemos ficar tão entusiasmados que começamos a
escrever longas dissertações sobre o assunto. Nesse estágio, porém, temos de
ser muito cuidadosos e tentar não enfatizar demasiadamente a crença de que
fizemos uma grande descoberta. Não devemos dar demasiada importância à
parte excitante de tudo isso; o aspecto principal está no fato de como colocar o
seu conhecimento em ação pois, do contrário, nos tornamos como um pobre
mendigo que acaba de descobrir um saco cheio de ouro. Ele está excitadíssimo
com a descoberta, pois em sua mente o ouro está vagamente relacionado com
comida. Mas ele não tem a menor idéia de como colocá-lo em uso, por meio da
compra e da venda para obter a comida. Ele nunca lidou com esse aspecto da
coisa antes, de modo que o problema torna-se difícil. Analogamente, não
devemos ficar excitados em excesso com a nossa descoberta. Temos de
aprender a nos moderar, embora essa experiência possa até ser bem mais
excitante que atingir o estado de Buddha. O problema reside no fato de atribuir
um valor muito elevado a esse conhecimento e, por ficarmos tão excitados com
relação a ele, somos impedidos de transcender a maneira dualista de ver a
situação. Damos muita importância às nossas conquistas, e daí resulta o fato de
esse excitamento ainda se basear no Ego. Assim, temos de lidar com ele de
forma hábil e até aplicar o sherab, a sabedoria, para poder suportar a situação.
Desse modo, o que descobrirmos deverá ser colocado em prática
imediatamente; não deve tornar-se uma espécie de instrumento que apenas
exibimos às outras pessoas. Nem tampouco devemos nos habituar a ele, mas
só usá-lo quando surgir a necessidade.

É natural que esse conhecimento teórico seja muito interessante. Podemos falar
bastante sobre ele — existem muitas palavras envolvidas — e há um grande
prazer em falar sobre ele com as outras pessoas. Podemos passar horas e horas
falando, discutindo e tentando demonstrar nossa teoria e provar sua validade.
Até mesmo desenvolvemos uma espécie de atitude evangélica, tentando
converter outras pessoas à nossa descoberta por estarmos inebriados por ela.

Isso ainda é teoria; e, a partir daí, chegamos ao sampa, que é a meditação


reflexiva, ou a contemplação e ponderação a respeito do objeto. Sampa não
significa meditar no sentido de desenvolver a observação, e assim por diante, e
sim meditar sobre o objeto e digeri-lo de forma adequada. Em outras palavras, o
que aprendemos ainda não está desenvolvido o bastante para permitir que
lidemos com as coisas práticas da vida. Por exemplo, podemos estar
conversando sobre a nossa grande descoberta quando ocorre um acidente;
digamos, o leite ferve e transborda, ou algo assim. Pode ser uma coisa bastante
comum mas, de certa forma, parece muito excitante e terrível; e a transição entre
a discussão daquele assunto e o controle do leite é simplesmente demais. Um
assunto é tão elevado e o outro tão comum e mundano que, de algum modo,
achamos muito difícil colocar em prática o nosso conhecimento nesse nível. O
contraste é grande demais e, em consequência, ficamos irritados, mudamos
repentinamente de atitude e voltamos ao nível comum do Ego. Assim, nesse tipo
de situação, existe grande espaço entre as duas coisas, e temos de aprender a
lidar com isso e fazer, de alguma maneira, a ligação com a vida do dia-a-dia, e
identificar nossas atividades com o que aprendemos relativamente à sabedoria
e ao conhecimento teórico. Naturalmente, nossa teoria está bem além da teoria
comum, que pode ter sido resolvida de forma matemática a fim de produzir uma
proposição viável. Estamos envolvidos nela e há um grande sentimento nisso.
Contudo, ainda se trata de teoria e, justamente por essa razão, achamos difícil
colocá-la em prática. Ela parece verdadeira, parece transmitir algo, enquanto se
pensa sobre o assunto, mas tende a permanecer estática. Dessa forma o sampa
ou a meditação reflexiva torna-se necessário porque precisamos nos acalmar,
depois da excitação inicial da descoberta; além disso, temos de descobrir um
meio de relacionar conosco num nível prático o conhecimento recém descoberto.
Suponhamos, por exemplo, que você esteja sentado em casa com a sua família,
tomando uma xícara de chá. Tudo corre de maneira normal e você se sente
bastante à vontade e satisfeito. De que forma você vai fazer a ligação da sua
excitante descoberta a respeito do conhecimento transcendental com essa
situação particular, com o sentimento desse momento específico? Como
podemos aplicar o sherab, a sabedoria, a esse ambiente em particular?
Naturalmente, costumamos associar a “sabedoria” com alguma atividade
especial, e rejeitar de imediato a situação presente. Inclinamo-nos a pensar:
“Bem, o que tenho feito até agora não é o verdadeiro; portanto, o que tenho de
fazer é sair daqui e ir para este ou aquele lugar. Preciso praticar e assimilar o
meu conhecimento nas regiões agrestes da Escócia — num mosteiro tibetano.”
Mas alguma coisa não está bem pois, mais cedo ou mais tarde, você tem de
voltar para a mesma rua familiar e para as mesmas pessoas, e a vida cotidiana
continua; nunca podemos escapar dela. Não se trata de tentar mudar a situação
— aliás, não podemos fazê-lo. Como você não é um rei, que poderia dar uma
ordem e parar os acontecimentos, você só pode lidar com o que está mais perto
de você, que é você mesmo. Você ainda tem um certo grau de liberdade
aparente para tomar decisões, e pode resolver partir. Porém, na realidade, esse
é outro modo de tentar parar o mundo, embora, é evidente, tudo dependa da sua
atitude. Se estivermos pensando somente em tentar aprender mais alguma coisa
e não em rejeitar nosso ambiente, então tudo bem. A dificuldade surge porque
temos a tendência de nos afastar, depois de algum incidente específico em que
as coisas parecem bastante irreais e desagradáveis; adotamos a idéia de que,
se estivéssemos num ambiente especial ou numa situação diferente, veríamos
tudo com mais clareza. Isso, porém, é uma maneira de adiar as coisas para o
dia seguinte, o que de forma alguma resolverá o problema. Isso não significa, é
claro, que não devamos ir a um centro de meditação para estudar ou fazer retiro
por algum tempo, mas não devemos ir lá para tentar escapar. O fato de sermos
capazes de nos abrir mais nesse lugar em especial não significa que a situação
exterior por si só seja capaz de possibilitar que mudemos e nos desenvolvamos.
Não deve mos culpar o nosso ambiente, nem as pessoas, nem as condições
exteriores, mas apenas entrar na situação e tentar observá-la. Eis o verdadeiro
sampa, a legítima contemplação do objeto. Quando conseguimos superar a
atitude romântica e emocional, descobrimos a verdade até mesmo na pia da
cozinha. Assim sendo, tudo se resume não em rejeitar esse exato momento. Mas
sim em usá-lo, seja qual for a situação, aceitá-lo e respeitá-lo.

Se você puder ser tão aberto assim, então sem dúvida aprenderá alguma coisa
— isso eu posso garantir, não porque eu seja uma autoridade para dizê-lo, mas
porque se trata de um fato. Isso foi experimentado durante milhares de anos,
testado e posto em prática por todos os grandes Adeptos do passado. Não se
trata de algo que tenha sido conseguido apenas pelo próprio Buddha; trata-se
de algo que tem uma longa tradição de observação, de estudo e de
experimentação por parte de grandes Mestres, como o longo processo de
purificação do ouro pelo bateamento, pela martelagem e pela fusão. Ainda
assim, não é suficiente aceitar isso com base na autoridade de alguém; devemos
ir a fundo e verificar por nós mesmos. Dessa forma, a única coisa que temos a
fazer é colocá-lo em ação e começar a meditar sobre o tema do Prajna que,
nesse caso, é muito importante pois somente o Prajna pode nos libertar da
autocentralização, ou seja, do Ego. Sem o Prajna, os ensinamentos nos
aprisionariam ainda, pois eles simplesmente significariam um acréscimo ao
mundo do samsara, o mundo da confusão. Poderíamos até praticar a meditação,
ler as Escrituras, comparecer às cerimônias; contudo sem o Prajna não haveria
Liberação; sem o Prajna, não seríamos capazes de ver a situação com clareza.
Isso significa que, sem o Prajna, poderíamos iniciar do ponto errado; poderíamos
começar pensando: “Eu gostaria de conseguir tal coisa e, uma vez que eu tenha
aprendido, como ficarei feliz!” Nesse estágio, Prajna significa conhecimento
intuitivo crítico, que é o oposto da ignorância, de ignorar nossa verdadeira
natureza. A ignorância muitas vezes é representada, simbolicamente, por um
porco, porque o porco nunca se volta para trás; apenas funga o tempo todo e
come tudo o que é colocado à sua frente. Assim, Prajna nos torna capazes de
não consumir o que é colocado à nossa frente; pelo contrário, nos torna capazes
de enxergar por meio de um conhecimento intuitivo crítico.

Finalmente, chegamos ao gompa, a meditação. Primeiro, tivemos a teoria,


depois a contemplação e, agora, a meditação no sentido de samadhi. A primeira
etapa do gompa consiste em nos questionarmos: “Quem sou eu?” — embora
isso não seja realmente uma pergunta e sim uma declaração, porque “Quem sou
eu?” contém a resposta. O importante é não começar do “Eu” e, então, tentar
alcançar alguma coisa, mas começar diretamente pelo objeto. Em outras
palavras: iniciarmos a verdadeira meditação sem nenhuma meta, sem o
pensamento de “Eu quero conseguir”. Como não sabemos “Quem sou Eu?”, não
poderíamos começar pelo “Eu”, de modo algum, e começamos até a aprender a
partir desse ponto. O que resta, então, é começar com o objeto, iniciar com o
que é, que não se trata realmente de “Eu sou”. Assim, vamos direto àquilo, direto
ao “é”. Isso poderá parecer um pouco vago e misterioso, porque esses termos
têm sido bastante usados por muitas pessoas; temos, então, de esclarecer a
situação relacionando-a conosco. Em primeiro lugar, não devemos pensar em
termos de “Eu”: “Eu quero conseguir.” Como não há ninguém para conseguir
alguma coisa, e ainda nem mesmo entendemos isso, não devemos tentar
preparar nada para o futuro. No Tibete, existe uma história a respeito de um
ladrão que era um grande tolo. Um dia ele roubou um grande saco de cevada e
ficou muito satisfeito consigo mesmo. Ele o pendurou em cima da sua cama,
suspenso no teto, porque achou que ali o saco estaria a salvo dos ratos e de
outros animais. Um rato, porém, era muito esperto e conseguiu chegar até o
saco. Enquanto isso o ladrão pensava: “Agora vendo essa cevada para alguém
talvez para o meu vizinho, e obtenho algumas moedas de prata em troca.
Poderei, então, comprar outra coisa e vendê-la com algum lucro. Se eu continuar
assim, em breve estarei muito rico e, então, poderei me casar e ter uma casa
decente. Depois disso, poderei ter um filho. Sim, terei um filho! Mas que nome
darei a ele?” Nesse momento, a Lua havia acabado de nascer e ele viu o luar
passando através da janela, iluminando a sua cama. Ele pensou então: “Ah, vou
chamá-lo de Dawa” (que é a palavra tibetana para Lua). Nesse exato momento,
o rato terminou de roer a corda pela qual o saco estava pendurado e o saco caiu
em cima do ladrão e o matou. Analogamente, como não temos um filho e nem
mesmo sabemos “Quem sou Eu?”, não devemos explorar os detalhes dessas
fantasias. Não devemos começar esperando nenhum tipo de recompensa. Não
deve haver esforço, nem tentativa de alcançar qualquer coisa. Poderíamos então
pensar: “Como não há um objetivo determinado e não há nada a atingir, isso não
seria um tanto quanto enfadonho? Não é o mesmo que não estar em nenhum
lugar?” Bem, esse é o ponto principal. Normalmente, fazemos as coisas porque
desejamos conseguir algo; nunca fazemos alguma coisa sem antes pensar:
“Porque....” “Estou tirando férias porque quero relaxar, quero um descanso.”
“Vou fazer tal coisa porque acho que seria interessante.” Assim, cada ação, cada
passo que damos está condicionado pelo Ego. Está condicionado pelo conceito
ilusório do “Eu”, que nem sequer foi questionado. Tudo é estruturado nessas
bases e tudo começa com o porquê. Esse é o ponto principal. Meditar sem
nenhuma finalidade pode parecer maçante, mas o fato é que não temos coragem
suficiente para nos dedicarmos a isso e fazer uma tentativa. Temos de ser
corajosos de alguma forma. Como estamos interessados e desejamos
prosseguir, a melhor coisa seria fazê-lo com perfeição e não começar com
muitos objetos, mas apenas com um e nos envolvermos completamente com
ele. Pode não parecer interessante, pode não ser excitante o tempo todo, mas
excitação não é a única coisa a ser obtida e temos também de desenvolver a
paciência. Temos de nos predispor a correr o risco e, nesse sentido, a usar a
força da vontade.

Temos de evoluir sem temer o desconhecido e se, efetivamente, formos um


pouco além, descobriremos que é possível começar sem pensar “porque...” —
sem pensar “vou conseguir algo”, sem viver somente no futuro. Não devemos
criar fantasias em torno do futuro e utilizar apenas isso como estímulo e como
fonte de incentivo, mas devemos tentar obter o sentimento real do momento
presente. Isso é o mesmo que dizer que a meditação só pode ser colocada em
prática se não estiver condicionada por nenhum dos métodos que normalmente
usamos para lidar com as situações. Devemos praticar a meditação de modo
direto, sem expectativas nem julgamentos e, sem pensar, de maneira alguma,
em termos de futuro. Apenas salte para dentro da meditação; pule sem olhar
para trás. Comece a usar a técnica sem pensar duas vezes. É claro que as
técnicas variam muito, pois tudo depende do caráter da pessoa.
Consequentemente, não se pode sugerir técnicas generalizadas.

Bem, esses são os métodos pelos os quais a sabedoria, sherab, pode ser
desenvolvida. Ora, a sabedoria enxerga tão longe e tão profundamente que
consegue ver antes do passado e depois do futuro. Em outras palavras, a
sabedoria começa sem cometer erros, porque vê a situação com nitidez. Assim
sendo, pela primeira vez, temos de começar a lidar com as situações sem
incorrer no erro cego de começar a partir do “Eu” — que nem ao menos existe.
Tendo dado esse primeiro passo, descobriremos um conhecimento intuitivo mais
profundo e faremos novas descobertas porque, pela primeira vez, veremos uma
espécie de nova dimensão: descobriremos que podemos chegar de fato ao
resultado final, ao mesmo tempo que percorremos o caminho. Isso só pode
ocorrer quando não existe um “Eu” para começar, quando não há expectativas.
Toda a prática da meditação está baseada nesse fundamento; e, nesse caso,
você pode ver, de forma bem clara, que a meditação não é uma tentativa de
escapar da vida, não é uma tentativa de atingir um estado utópico da mente, não
é uma questão de ginástica mental. A meditação é uma tentativa de ver o que é,
e não há nada de misterioso a respeito dela. Consequentemente, temos de
reduzir tudo à prática da presença imediata do que estivermos fazendo, sem
expectativas, sem julgamentos e sem opiniões. Também não devemos ter em
mente quaisquer conceitos de que estamos envolvidos numa batalha contra o
“demônio”, ou de que estamos lutando ao lado do “bem”. Ao mesmo tempo, não
devemos pensar em termos de limitação, no sentido de não nos ser permitido ter
pensamentos ou mesmo de pensar sobre o “Eu”, porque isso seria o mesmo que
nos confinarmos num lugar tão pequeno que equivaleria a uma extrema forma
de Sila ou disciplina. Existem basicamente dois estágios na prática da
meditação. O primeiro envolve a idéia de nos disciplinarmos para que
desenvolvamos o ponto inicial da meditação; e aqui são empregadas
determinadas técnicas, como a de observar a respiração. No segundo estágio,
transcendemos e enxergamos a realidade que se esconde na técnica da
respiração ou em outra, e, através dela, nos aproximamos da verdadeira
realidade, uma espécie de sentimento de nos tornarmos um com o momento
presente.

Isso poderá parecer um tanto vago. Mas acho que é melhor deixar as coisas
assim porque, em se tratando dos detalhes da meditação, não creio que seja
bom generalizar. Como as técnicas dependem das necessidades da pessoa,
elas só podem ser discutidas individualmente; não podemos administrar aulas
sobre a prática da meditação.

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