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O Budismo Tibetano e a Psic.

Analítica de Jung
Palestra proferida por Antonio Carlos Jorge, na Loja Liberdade, em 30/03/07

O tema que iremos desenvolver está ligado ao segundo objetivo da Sociedade Teosófica, que é o estudo de religiões
procurando-se fazer paralelos com a ciência, no sentido de encontrarmos os pontos de conexões, convergências e
similaridades existentes.

A palestra, dentro deste enfoque, irá abordar elementos do budismo, da escola tibetana, assim como elementos da psicologia
analítica fundada por Jung.

Inicialmente vamos falar um pouco da história do Budismo.

Há mais de 2.500 anos, nascia no norte da Índia, em uma região próxima à fronteira com o Nepal, no reino de Sakia, um ser
muito especial, chamado Siddharttha Gautama, filho de Maya-devi e do rei Suddhodana. Aos sete dias após seu nascimento,
sua mãe veio a falecer e seu pai, no sentido de protegê-lo, criou-o dentro de um cuidado especial, confinando-o dentro dos
muros palacianos, a fim de que ele não pudesse vir a sentir qualquer tipo de sofrimento em contato com o mundo exterior.
Aos 29 anos, curioso em conhecer o que se passava fora do ambiente em que vivia e ajudado por seu cocheiro, ele sai do
palácio e se depara com uma realidade desconhecida, pois dentro do reino não existiam velhos, assim como qualquer tipo de
doença ou motivações que pudessem levar ao sofrimento, pois seu pai afastava qualquer tipo de iniqüidade possível. Nos
primeiros passos fora do palácio ele vê um ancião e, surpreso, procura falar com esse ancião. O ancião assustado foge e
Siddharttha o segue. Na caminhada Siddharttha encontra pessoas doentes e ainda na busca do ancião, pois ele queria
conversar com ele, no sentido de conhecer o que era aquilo, ele se depara com uma pessoa morta, sendo cremada.

Até então ele não conhecia a velhice, a doença e a morte e essa visão deixou seu espírito profundamente abalado, passando a
questionar a real natureza da vida e abandona todos os prazeres, indo buscar as explicações para as anormalidades humanas,
as motivações do sofrimento humano.

Ele busca durante seis anos as respostas e após manter contato com inúmeros filósofos, sábios e eruditos, sem êxito, acaba
assumindo uma vida ascética, vivendo na floresta, em total abstinência, comendo em bebendo do que fosse fornecido pelo
ambiente. Após esses seis anos ele percebe que essa vida de rigor físico não o estava levando a nenhum lugar. Ele
experimentou sim a espiritualidade, o desprendimento, mas à custa do seu corpo físico, que estava depauperado, não
respondendo mais aos seus anseios internos.

Diz a história que ele tem essa percepção, quando escuta um instrutor de cítara falando para sua aluna que as cordas do
instrumento deveriam estar na tensão adequada para produzir o diapasão, para propagar o som na medida exata, pois uma
corda muito frouxa não tem capacidade de produzir som algum e uma muito estirada romperia, não produzindo também o
som necessário.
Siddharttha percebe que ele estava exatamente impondo ao seu corpo físico o rigor exagerado da tensão de uma corda.
Percebe que o seu corpo o incapacitava, impedindo a expressão de sua vontade espiritual.

Visto isso, ele toma banho, faz uma alimentação adequada e senta sob uma árvore, uma figueira chamada Bodhi, conhecida
como a árvore da sabedoria, e entra em um processo de profunda meditação. Neste processo de meditação ele sofre três
tentações de Mara, assim como Jesus que sofre as tentações pelo Demônio. Ele resiste a essas tentações e atinge o grau de
iluminado, o nível do desperto, o de Buddha.

Naturalmente essa história é rica em simbolismos, pois nos mostra o ciclo da evolução do espírito, que nasce puro, vive os
prazeres do paraíso, vive em seguida o sofrimento e, após a compreensão da natureza da realidade e sofrer a noite escura da
alma, atinge a iluminação.

O Senhor Buddha, assim como os grandes mestres, não deixou nada escrito. Foram seus discípulos que escreveram sobre os
ensinamentos ministrados através dos discursos proferidos. O primeiro discurso proferido foi o de Sarnath, local próximo à
Benares, em que é lançado o fundamento do budismo, ligado à natureza do sofrimento.

O Sr. Buddha, para expor a natureza do sofrimento, estabelece as quatro nobres verdades e o caminho óctuplo, que são a
base de todo ensinamento budista. É um ensinamento simples, altamente profundo, mas difícil de ser praticado em toda a sua
plenitude.

A primeira nobre verdade é a de que existe o sofrimento. Isso é inconteste, pois somos testemunhas vivas desse processo. Não
viemos aqui para sermos felizes. Naturalmente não iremos nos atemorizar diante do sofrimento, mas temos que admitir que
isso faz parte da natureza humana. Quem não sofre? O sofrimento é a vida. Nós sofremos para nascer, assim como em toda a
trajetória até a morte, que pode ser a libertação suprema. Platão falava que “o corpo é o sepulcro de espírito”. Ora, se o corpo
é o sepulcro do espírito a morte, então, é libertação do espírito, talvez para a vida eterna e a iluminação.

A segunda nobre verdade diz que a fonte de todo o sofrimento reside no apego. Apego de qualquer natureza. Às posses
materiais, às paixões, ou mesmo a uma vida hedonista, ou seja, toda submissão aos desejos do ego psicológico, aos atributos
inferiores do homem, que é a sua personalidade. Este ego psicológico é diferente do Ego falado pela teosofia que corresponde
ao verdadeiro homem, a sua essência espiritual, que é, portanto, incorruptível.

A terceira nobre verdade diz que é possível se libertar do sofrimento e a quarta nobre verdade nos revela o método a ser
seguido para que isso seja conquistado que é o caminho óctuplo e é aqui que as coisas começam a se complicar.

Para esta questão do sofrimento, a fim de que possamos compreendê-la melhor, está apresentado no diagrama, dentro de
uma visão cartesiana, própria de nós ocidentais, mas que serve para ilustrarmos de forma didática.

Estão colocados no histograma, com uma coordenada correspondendo à linha da vida, do tempo, e a outra à linha dos valores,
tangíveis e não tangíveis.
Nascemos e vivemos na busca pela satisfação de prazeres materiais e não materiais, como obtenção de poder, sensações
sensoriais, necessidade de sermos  reconhecidos e outros. Quando elegemos o objeto de prazer sofremos para obtê-lo e
quando conseguimos, esse objeto nos dá uma felicidade, mas extremamente passageira, pois o desejo foi saciado e, em
seguida, nós já estamos a eleger um segundo objeto de conquista.

E agora sofremos duplamente, pois sofremos para obter o novo e sofremos para manter o conquistado. E, quanto mais
vivemos, mais vamos agregando coisas inúteis à nossa existência.  A lógica do sofrimento é esta. É ilógica!

Como podemos fazer para cessar o sofrimento?

Evitar a viver neste processo!


Fala-se no Budismo que vivemos em Samsara, cujo termo tem duas conotações. Temos a roda de Samsara que é a roda de
nascimentos e mortes, mas tem por significado também o andar em círculos e é este o sentido que estamos aplicando. É o
perpétuo móbile, que tem a origem na ignorância, na ilusão centrada na permanência nas coisas, promovida pelo eu ávido.

Nós não temos a nítida compreensão de que tudo isso, esse processo de obtenção e acúmulo, é na realidade efêmero.
Normalmente nós percebemos isso quando chegamos ao fim da vida; a perspectiva de vida agora é limitada e nós
questionamos os porquês de se ter tanto para viver.

A vida é tão simples e podemos viver com muito pouco, embora alguns até mesmo à beira da morte continuam a ser ávidos
pelo poder e apegados as suas posses.

Assim, o caminho óctuplo envolve estas assertivas:

É necessário que se tenha o entendimento correto, passando pela compreensão de todo esse mecanismo do sofrimento.

Ora, se eu entendo corretamente as coisas, as relações de causas e efeitos, eu tenho que pensar de forma correta, envolvendo
tanto o propósito de atitudes, como aquilo que eu aspiro da vida, em consonância com o entendimento correto.

Se eu entendo e penso corretamente eu devo zelar pela minha fala. Não posso vir a falar coisas de forma a afrontar à reta
compreensão e ao reto pensamento.

A mal fala envolve desde o comentário maledicente até a fala de coisas inúteis, vazias, que nada agregam ao desenvolvimento
sadio de nossas vidas.
Percebemos que este processo é uma escada, cujos degraus vão impondo uma dificuldade maior na caminhada.

Assim temos, em seguida, a ação correta, o modo de vida correto, o esforço correto, diligência e atenção corretas e por último,
concentração e meditação corretas.

Eu vejo que muitas vezes esse processo é subvertido em sua ordem, pois têm muitas práticas de apelo comercial que
compelem às práticas da meditação, sem contudo observar todas as exigências que o caminho impõe. Estou falando de
algumas “escolas” de Yoga e o mercado que se instalou em nossos dias, explorando essas coisas. Como eu posso entrar em
um processo de interiorização, reflexão meditativa, se eu não atendo aos aspectos éticos que o caminho me exige.
Naturalmente não vai ser uma meditação saudável, não atingindo ao objetivo que se propõe. Às vezes as pessoas passam a
vida inteira meditando, mas cometem atrocidades contra seus semelhantes.

Estes princípios estabelecidos pelo Sr. Buddha resultaram em uma série de interpretações. O Budismo é multifacetado,
existindo diversas escolas, diversas tendências, diferentes filosofias que se desenvolveram, mas podemos fazer algumas
divisões, mais para a compreensão didática.

Os dois primeiros fundamentos estão ligados à sabedoria, pois é sábio quem entende e pensa corretamente. No entanto isso
não é uma questão intelectiva, pois às vezes encontramos pessoas muito simples, iletradas, mas profundamente sábias e que
entendem essas questões de maneira intuitiva e as praticam.

Os quatros fundamentos seguintes estão ligados mais aos aspectos éticos, pois a fala correta, a ação correta, o modo de vida
correto e o esforço correto remetem a questões atitudinais, lembrando que ética está ligada a ações praticadas que não levem  
prejuízos a qualquer semelhante e para a ética teosófica e budista essa questão tem um envolvimento mais amplo, pois não
se pode levar esse prejuízo também para outros seres senciente, incluindo os animais, que é o princípio da ahimsa, a doutrina
da não-violência.

Os últimos dois fundamentos dizem respeito à disciplina mental.

Dentro da prática budista tivemos dois grandes desdobramentos, que são as escolas Hinayana e Mahayana. A Hinayana
envolve mais os aspectos ligados aos seis primeiros fundamentos e a Mahayana aos dois últimos. Todas, naturalmente,
praticam os oito fundamentos, mas as ênfases são diferentes. A escola Hinayana, a Theravada, que é a mais antiga,
desenvolveu-se mais no sul da Índia e no Sri-Lanka e a Mahayana, que se desenvolveu posteriormente, tendo como precursor
Nagarjuna, que foi um monge e grande filósofo, um reformador que pavimentou a criação da escola Mahayana que prosperou
ao norte da Índia, no Tibet, no Nepal, na China, no Japão, ramificando em outras escolas como a Terra-Pura, o Zen-Budismo.
O ideal do adepto da escola Hinayana é atingir a condição de Arhat, ou seja aquele que se iluminou e saiu da roda de Samsara,
não necessitando mais voltar.

O ideal do adepto da escola Mahayana é atingir a condição de Boddhisattva, pois não basta ser Arhat. Ele sai da roda, mas por
compaixão ao ser humano ele retorna. É a história dos Mestres e dos seres iluminados que transcenderam e continuam a
ajudar à humanidade na busca da salvação.

Dentro da escola Mahayana, no Tibet, desenvolveu-se outra escola que é a Vajrayana, o coração esotérico do budismo. Antes
da entrada do Budismo no Tibet, que se deu por volta do VII século d.c., já existia uma religião xamânica nativa denominada
Bon que em certa medida influenciou essa nova escola, embora o atual Dalai Lama diga que o Lamaísmo seja o mais puro e
sublime Budismo, mas eu acredito que foram incorporados sim alguns aspectos, haja vista a consulta a oráculos cujo principal
é Dordje Drakden, uma divindade protetora que fornece conselhos. Essa divindade é incorporada por um monge. O Budismo
no Tibet encontrou um terreno fértil para o desenvolvimento das manifestações esotéricas.

Vajrayana corresponde ao caminho diamantino, sendo que segundo os Budistas Tibetanos sua prática pode levar ao processo
de iluminação em uma única vida. O Vajrayana é também conhecido por Tantrayana, mas sem a conotação errônea da
maithuna que se dá.

A sua prática requer três componentes: A renúncia, a motivação iluminada e visão concreta da realidade.

Jung também fala que todos nós ansiamos pela iluminação, independente do nível de evolução que nós tenhamos. O que nos
puxa para baixo é o eu ávido, atrações contrárias do que realmente nós procuramos, mas no centro do coração de todos os
seres encontra-se a chama divina, que um dia irá se manifestar na busca da iluminação. Muitos não sabem disso, mas chegará
o momento em que serão tocados.

O Budismo fala de dois estratos, que é o da consciência, o da mente desperta, que está em contato com a realidade da vida e o
estrato da inconsciência, que é a escuridão da mente, o que a pessoa desconhece, não só em termos cognitivos, como também
espirituais, ou seja, a falta de percepção do que é divino, do que é espiritual, aquilo que não é tangível e compreendido pela
natureza na consciência, da mente desperta para as coisas materiais da vida.
A emancipação do sofrimento, então, requer a renúncia não somente aos desejos como também de todas as formas de
alienação, a moldarmos artificialmente aos padrões esperados pela sociedade e pelas relações impostas pelos outros,
descaracterizando a nossa real aspiração.

A emancipação do sofrimento requer também a motivação iluminada, Bodhichitta, que é a empatia pelo sofrimento alheio e
que leva a atingir a iluminação em prol do outro, ou seja a compaixão.

A emancipação do sofrimento requer, por último, a visão correta da realidade que é a visão do vazio, chamado Sunyata, que
depende do desenvolvimento da sabedoria intuitiva e do conhecimento da não-dualidade. O vazio não significa a vacuidade
simples, mas sim o vazio que envolve o todo. A percepção clara de que não existe dualidade e que estamos todos integrados
com o todo, pois nada existe fragmentado.

Para isso são praticados os mantrans que estão correlacionados com a fala, os mudras que estão correlacionados com o corpo
e a meditação correspondendo à mente. Trabalha-se então com a fala, com o corpo e com a mente, que são os fundamentos a
serem observados. Mantrans têm poderes vibracionais permitindo-se adentrar nos planos sutis, enquanto mudras abrem e
fecham circuitos e polaridades energéticos.

O método usa muito a meditação e a visualização, sendo que a imaginação é fundamental. A meditação acalma, domestica e
disciplina a mente, para alcançar a concentração em um ponto, cultivando a concentração e conscientizando-se. Já a
visualização envolve a construção de imagens mentais, que podem ser divindades serenas e belas, mas que podem ser
também coléricas e aterradoras, que a pessoa se identifica, sendo pura criação da imaginação, mas que servem de guia no
processo de libertação, pois tem função arquetípica fundamental.
Temos a presença do guru que é fundamental no processo, pois é ele quem constrói e dá ao discípulo a figura mental
necessária, sendo a divindade protetora para a sua caminhada, que pode ser um velho sábio, uma imagem feminina, a grande
deusa. No processo, entretanto, estas imagens podem se transformar, razão pela qual isso deve ser exercido dentro de muitos
cuidados, pois existem perigos latentes. A princesa adormecida pode se transformar em uma devoradora. A grande deusa
pode se transformar em Mara. Essas imagens acabam sendo autônomas, tendo vida própria e se não houver os necessários
cuidados podem se transformar em perigos ao praticante.

Nos templos budistas vemos uma série dessas expressões antropomórficas, que são Dakinis, Yidans, Vajra Yogini, Taras. Não
se trata de um panteão de divindades. Mas são expressões arquetípicas. Dakini significa éter, vazio, não tem forma, mas sim a
forma mental impregnada pelo discípulo. Podemos compará-las aos elementais artificiais, com todos os perigos que eles
oferecem. Isso tudo tem que ser muito bem orientado. Vajra Yogini é a correlata a Anima de Jung, que é a parte feminina da
natureza masculina, assim como as Taras constituem-se no aspecto feminino de Brahma.

Todo esse reino tem por função fazer emergir o espiritual na pessoa. O transpessoal.

Para se evitar os perigos falados, a prática é precedida por um processo de esvaziamento da mente, aí passa-se pela
construção da imagem e antes do término da prática passa-se novamente pelo esvaziamento, pelo desfazimento da imagem
que foi objeto da mentalização.

O caminho da espiritualidade é árduo, pois muitas pessoas se enveredam por determinadas trilhas estando sujeitas a cair nas
garras desse mundo desconhecido, que é o mundo do inconsciente. Pode-se desenvolver patologias, como a esquizofrenia,
por exemplo.
Quanto ao aspecto visual temos as mandalas, que têm uma grande importância, pois apresentam as polaridades e os
paradoxos existentes na vida.

A mandala permite se realizar a síntese das polarizações, dos conflitos humanos.

Quem já não fez mandalas aqui?… É uma forma de transpor de forma inconsciente para o papel os seus próprios conflitos.

O nome mandala é sânscrito, mas está presente em todas as culturas, às manifestações xamânicas, na arte gótica, na islâmica,
enfim, é inerente ao homem, ao inconsciente coletivo.

No Tibet o uso da mandala talvez tenha alcançado o ápice, pois sintetiza justamente os aspectos tratados pelo Budismo, que é
a polaridade e a impermanência, a efemeridade da vida.

Lá, as mandalas são construídas em areia, para depois de concluídas serem desmanchadas, como a representação desta
transitoriedade das coisas. É uma visão muito bonita. 

A libertação não é alcançada pelos livros ou pelo conhecimento abstrato, mas sim requer um mestre espiritual, um amigo, que
irá estimular o despertar da consciência. O guru representa um modelo que é próprio guru supremo, o Senhor Buddha.
Embora esse guru seja uma representação projetada, na realidade o guru está no interior de cada um e isso que deverá ser
encontrado. É o Cristo interior.

Bom, falamos um pouco de Budismo e agora vamos à Jung.


Após mais de dois mil anos, nascia na Suíça, no ano de 1875, Carl Gustav Jung, um ser também muito especial, que desde
pequeno já percebia no seu interior algo que o fazia diferente de outras crianças, pois ele encara a vida dentro de uma ótica
mais amadurecida, como se tivesse outra personalidade que ao longo de sua vida foi desabrochando, ganhando força e vida
com o decorrer de sua existência.

Jung faz medicina e se torna psiquiatra, que na época era uma área de especialização médica muito nova, inexplorada e pouco
procurada.

No início do século XX ele conhece aquele que seria o seu mentor e maior amigo que é Freud. Dizem que no primeiro contato
com Freud, os dois conversaram ininterruptamente por mais de 12 horas, pois a identificação entre os dois foi muito grande.

Freud era quase 20 anos mais velho. Essa parceria foi muito profícua, mas desde o início já existiam algumas diferenças que
mais tarde motivaram a separação entre eles, depois de muito tempo, lá pelos anos trinta. As questões divergentes
correspondiam à visão de Freud de que os traumas psicológicos tinham sempre uma raiz de natureza sexual, coisa que Jung
nunca aceitou. Freud, por sua vez, não aceitava o interesse de Jung pelo universo metafísico, pela espiritualidade, coisa que
para a sua mente científica, não cabia.

O rompimento ocorrido, embora traumático para Jung, na realidade se demonstrou benéfico, pois a partir daí é que ele
fundamenta toda a sua teoria. Mas não foi fácil. Ele permanece durante 6 anos, praticamente confinado em uma torre que
manda construir e é lá que ele tem suas piores crises, a sua noite escura da alma, o processo que antecede as transformações
espirituais.

Neste período ele chegou a desenhar uma mandala por dia, como uma forma de reintegrar os seus conteúdos inconscientes.
Jung teve muito contato com o conhecimento oriental, ocorrendo fenômenos de sincronicidades. Ele pensava em um assunto e
um amigo o presenteava com um livro sobre o tema. Foi assim como um livro de preceitos taoístas, denominado “O Segredo
da Flor Dourada”, tem também o “Bardo Todol” que é o “Livro Tibetano dos Mortos”, que temos aqui na livraria da Loja. Bardo
significa entre marcos ou entre ilhas, sendo um tratado sobre a erraticidade da alma que é um guia orientativo para a morte,
mas eu diria que é o livro tibetano da vida, pois segundo ele existe vida após a morte. Enfim todo esse universo, assim como o
mundo da alquimia, impregnou muito as suas idéias. Todo esse legado, taoista, budista e alquímico o influenciou.

Segundo Jung a estrutura da psique constitui-se pelo ego psicológico, que denomina sombra, a animus que é o aspecto
masculino na mulher e anima que já falamos, é o aspecto feminino no homem, assim como o si mesmo, que o Self ou a
individualidade.
Para nós teosofistas, a psique envolve tudo o que está entre o corpo físico e o Ego teosófico, ou o Eu-Superior. Atma, Buddhi e
Manas. Buddhi e Manas correspondem ao Self.

Jung classifica quatro tipos humanos: o pensativo, o sentimental, o intuitivo e o perceptivo. Os dois primeiros ligados a
funções racionais e os dois últimos ao irracional. Todos nós nos enquadramos em um destes tipos, eventualmente em dois e
às vezes alguns poderão dominar três, mas os quatro juntos não é possível dentro de uma condição normal.

O processo de individuação leva à integração destes quatro tipos, sendo utilizada a linguagem do inconsciente coletivo, que
envolve os mitos, os sonhos, ou seja, o mundo dos arquétipos que são conteúdos do inconsciente coletivo. São imagens
primordiais sem conteúdo, formas de pensamento, gravadas na constituição psíquica, que já eram de conhecimento dos
budistas, conforme já mencionamos.
Sem este fator, segundo Jung, é impossível de se chegar ao Self. O Self é a quintessência dos arquétipos, sendo o princípio
organizador, guia e unificador que dá direção à personalidade e sentido à vida. É o ápice do crescimento pessoal que leva a
auto-realização, ou seja, é o homem eterno, a divindade no homem. É atemporal, único, eterno e universal.

O inconsciente coletivo, que é parte da psique, deve-se à hereditariedade e não às experiências pessoais. Isso está numa
camada, num estrato, que todos podem acessar de uma maneira inconsciente. Podemos fazer uma analogia aos registros
Akashicos ou registros búdicos. Ele diz que o inconsciente é constituído por material esquecido ou reprimido. Jung fala ainda
em psique subjetiva que é o inconsciente pessoal e a psique objetiva, impessoal, transpessoal, essa sim o inconsciente
coletivo.

Essa foi a maior contribuição de Jung; a descoberta do inconsciente coletivo.

O conceito de ego segundo Freud e isso se aplica às condições da psique de Jung, é um coitado, pois está pressionado pelo Id,
que é o aspecto de desejos inconscientes, hereditários, transcendentes, que leva ao prazer. O ego submetido ao id vive uma
vida de prazeres, condicionado àquela estrutura que vimos no início. A roda de prazer e dor, que leva ao sofrimento. Por outro
lado Freud diz que existe o superego, que é o que impõe as regras, os limites, o castrador. A pessoa também que é submetida
ao superego também vai sofrer. O ego também é confrontado com o mundo exterior, com todos os perigos latentes. O ego
então fica confinado a essas condições da vida, duas internas e uma externa.

O desenvolvimento do método de Jung foi desenvolvido através da sua própria experiência. Ele percebe que o método
funcionou para ele e conclui que é possível ser aplicado a outros, constituindo-se em um modo revolucionário de analisar
essas questões da espiritualidade sob o prisma científico, dentro de uma metodologia controlada.
O método é chamado de psicologia analítica. Inicialmente ele chamou de psicologia dos complexos.

Jung diz que a pessoa que passa pelo processo tem que necessariamente assumir um compromisso ético, pois uma vez que se
tenha descoberto a sua patologia o paciente tem um compromisso ético em relação àquilo, que é a idéia do budismo. Pois se
você se conscientiza, entende e pensa corretamente, tem que assumir uma postura ética que é a fala, a ação, o modo de vida e
o esforço corretos.

A função de todo o processo é curadora, tanto é que em seu livro “Memórias, Sonhos e Reflexões” Jung diz   “A Cura das Almas
é minha missão”.

A psicologia de Jung cura a alma e não é simplesmente um processo de ajuste da personalidade e cura de sintomas.

É um processo de Integração da personalidade, autônomo e inconsciente, que determina um impulso natural e espontâneo
para auto-realização, podendo tornar-se atividade consciente. A personalidade permeia-se de luz e o consciente estende-se e
amplia-se mais.

O processo, embora seja inconsciente, pode tornar-se atividade consciente, direcionado pela própria pessoa. É o princípio da
função transcendente, como no Budismo, existindo uma luta contra as forças opostas, entre o inconsciente e o inconsciente,
representada pelas mandalas.

Esse processo de alimentação mútua, onde o consciente clareia o inconsciente e este nutre o consciente, harmonizando
conteúdos, permitindo que o inconsciente fale no silêncio e se perceba pacientemente as mensagens. Isso faz com se
transforme a personalidade. Desenvolve-se a plenitude do indivíduo.
Isso arredonda a personalidade e faz com que se contate o numinoso, ou seja, tudo aquilo que foge da esfera do fenômeno
material, o universo que é o que é, sem conceitos, a percepção budista da vacuidade, o não temporal e não local, o uno,
Sunyata, conforme já vimos.

Nós falamos de desenvolvimento e é interessante conceituarmos o que é desenvolvimento, já que muitas vezes não prestamos
muita atenção no significado das palavras.

O conceito é um pouco diferente que normalmente estamos habituados a considerar. Pode-se acreditar que para o
desenvolvimento são requeridas ações externas ao meio, mas na realidade desenvolvimento requer uma interiorização.
Vamos analisar o que é desenvolver. O que significa embrulhar? É revestir algo com alguma coisa. O que é desembrulhar? É
tirar o revestimento de algo. O que é envolver? O mesmo que revestir, embrulhar. Desenvolver-se, então, é desembrulhar-se.
Nós temos que desembrulharmos de nosso corpo físico, astral e mental, para atingirmos a pedra preciosa e incorruptível que
está no âmago de nosso ser. Não no sentido de negligenciarmos esses corpos, mas de submetê-los à vontade do nosso Eu
verdadeiro.
 Nós devemos ser os jogadores, mestres de nosso tabuleiro da vida, e não meros peões. Não devemos nos submeter aos
condicionamentos sociais. 

Mas voltando ao processo…

Na realidade não existe um método rígido, sendo que o terapeuta é um facilitador do desenvolvimento das possibilidades
criativas do paciente. O terapeuta deve ser livre de preconceitos e teorias, deve compreender o indivíduo e deixar que a
natureza seja o guia.

A criatividade é um fator importante no processo, através da arte é possível se fazer a síntese. Muitas pessoas têm medo de
serem criativas, por egoísmo. O ato de criar, o objeto da criação, uma vez concebido, não pertence mais a quem criou. Uma
música, uma pintura, um poema, um filho. Depois de criado não pertence mais ao criador. As pessoas às vezes reprimem a sua
capacidade criativa por egoísmo.

O processo além de estimular o extravasar do que está reprimido, provoca um estado mental calmo e livre de pensamentos e
sem julgamentos e a observar os desdobramentos dos conteúdos inconscientes, que é similar à meditação.

Ele diz também que as experiências resultantes dos contatos mantidos com o universo do inconsciente devem ser registradas
por escrito ou por desenhos, expressões criativas.

A ação deve ser pautada pela não-ação, ou seja, deixar-se ir, deixar fluir, pois isto é a chave que abre a porta do caminho, pois
o consciente está a sempre interferir e não permite a fluidez. Podemos associar o consciente com a mente concreta, que
analisa, critica e julga. O que Blavatsky menciona na “Voz do Silêncio” que  “A mente é a grande assassina do real. Que o
discípulo mate a assassina”.

Com esse processo de interfusão e união dos opostos resulta-se na consciência crescente e na amplitude da personalidade
transformada, emergindo um novo.

Emerge um novo centro de personalidade, o Self, o Eu superior, diminuindo a tendência do ego, do eu Inferior, atraindo para si
tudo que pertence à unicidade, cessando o superficial e o não essencial.

Na realidade, segundo Jung,  todo esse processo é de auto-educação, não existindo cura pessoal sem a retomada da
perspectiva religiosa da vida. Vejam o caráter místico no qual é revestida a sua psicologia.

Jung menciona em seu livro “A Prática da Psicoterapia” que  “O processo de individuação leva ao nascimento de uma
consciência da comunidade humana, justamente porque nos torna cônscios do inconsciente, que une e é comum a toda a
humanidade. A individuação é uma reconciliação consigo mesmo e ao mesmo tempo com a humanidade, visto que somos
parte dela”.

Para concluirmos, nos quadros temos uma síntese dos aspectos similares e diferenças apresentadas entre os dois sistemas.  

Budismo Psicologia de Jung Comentários feitos sobre as diferenças

Visa acabar com o sofrimento Visa curar as feridas  


psíquicas do homem

Solução deve ser procurada dentro da psique Idem  


de cada indivíduo

Acredita na liberação do sofrimento O sofrimento encontra-se na Aqui para estes três aspectos existe uma divergência
natureza da vida, sendo comum, porque o Budismo é um sistema religioso e
ingrediente necessário que filosófico e o do Jung não. Com relação aos princípios de
não pode ser eliminado por opostos, Jung talvez tenha razão, pois o mesmo existe
completo enquanto estivermos em um manvantara.

Meta final é a iluminação = estado de Buddha É alcançar a plenitude.  


Realização o Self (processo
que não termina).

Pode-se desenvolver completamente a Jung não acreditava que a  


consciência. Nenhum conteúdo pode consciência pura possa ser
perturbar a mente. atingida. O princípio de
opostos sempre irão existir.
Emoções e paixões não suprimidas, mas Idem  
transformadas. Contradições e paradoxos não
são considerados importantes.

Desenvolvimento progressivo da consciência Idem  


através da introspecção.

Uso abundante de símbolos como veículos e Idem  


meios de transformação de natureza
ordinária para significante

Exige que cada aspecto do indivíduo seja Idem  


considerado no processo, nada sendo
rejeitando.

O entendimento e conhecimento intelectual Idem  


são relevantes no início do caminho, porém
devem ser complementados pelo sentimento
e intuição, estimulados pela contemplação e
meditação
O Sr. Buddha se calava diante das questões O caminho começa e acaba Embora o Sr. Buddha não discutisse estas questões, não
filosóficas ou metafísicas, pois as mesmas na psique, não envolvendo tem como desassociá-las. Nagarjuna, por exemplo, que 
geram discórdias e confusões. Mas lida afirmações filosóficas ou tinha uma dialética apurada, filosofa sobre a natureza
necessariamente com essas questões metafísicas. da realidade, questionando e derrubado os conceitos do
niilismo e do eternalismo.

O guru é um guia espiritual no caminho e não Idem – terapeuta  


é visto como autoridade.

O guru não se deixa influenciar pelo discípulo. O terapeuta se enriquece no  


processo.

A autoridade é a mente. Instrumento único Idem  


pelo qual se experiencia a realidade.

Adverte-se para os perigos e recomenda-se Idem  


precauções no controle das forças interiores
que são poderosas. Podem destruir a
estrutura psíquica da personalidade
Quem quiser aprofundar mais no estudo do tema, recomendamos a leitura, além dos livros de Jung, os livros “Psicologia de Jung e o Budismo
Tibetano” de Radmila Moacanin e “A Sincronicidade e o Tao” de Jean Shinoda Bolen, estes dois da Cultrix.

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