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Transferência e aspectos clínicos na psicologia junguiana

Guilherme Scandiucci

Concepção de clínica em Jung

A temática da transferência é, como se sabe, essencial para qualquer


corpo teórico que considere a ideia de inconsciente. Ainda que não se trate de
um fenômeno exclusivamente presente na clínica (na relação paciente-
analista), a transferência, desde Freud, recebeu grande atenção daqueles que
pensam o tratamento analítico.

Jung (vol.16/1) coloca que pessoa é um sistema sistema psíquico;


atuando sobre outra pessoa, entra em interação com outra sistema psíquico. A
psique depende do corpo, e o corpo depende da psique (cancela a fronteira
clara entre o psíquico/espiritual e o corporal/material).

O terapeuta deveria, no limite, renunciar a todos os seus pressupostos e


técnicas e limitar-se a um processo puramente dialético, isto é, evitar todos os
métodos. O terapeuta não é mais um sujeito ativo, mas ele vivencia junto um
processo evolutivo individual.

Pelo método dialético, o terapeuta se relaciona com outro sistema


psíquico, não só para perguntar, mas também para responder; não mais como
superior, perito, juiz e conselheiro, mas como alguém que vivencia junto, que
no processo dialético se encontra em pé de igualdade com aquele que ainda é
considerado o paciente.

Cura significa transformação (curar é ser transformado pelo tempo). Na pior


das hipóteses, o paciente poderá chegar a aceitar sua neurose, porque
entendeu o sentido de sua doença.

A terapia que não leva em conta a qualidade da personalidade do médico


pode, quando muito, ser concebida como uma técnica racional; como método
dialético, porém, torna-se impraticável, pois exige que o médico saia do seu
anonimato e preste contas a si mesmo, exatamente como faz com o paciente.
“O meu esforço consiste justamente em fantasiar junto com o paciente” (Jung,
vol.16/1).
“Nada mais ineficaz do que ideias intelectuais. Mas quando uma ideia é
uma realidade psíquica, ela vai penetrando furtivamente nas mais diversas
áreas, aparentemente sem a menor relação causal histórica. Nessa hora, é
bom prestar atenção. Porque as ideias que são realidade psíquicas
representam forças irrefutáveis e inatacáveis do ponto de vista da lógica e da
moral. São mais poderosas do que o homem e sua cabeça. É verdade que ele
acredita que é ele quem produz essas ideias; na realidade, porém, são elas

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que o produzem, de tal forma que, inconscientemente, ele se torna
simplesmente seu porta-voz” (Jung, vol.16/1).

É preciso perceber o que a alma poderia exigir, além e acima de tornar-se


um ser social normalmente ajustado (a coisa mais útil e conveniente que se
pode conceber). A simples noção de “normal” ou “ajustado” já implica limitar-se
à média – só tem sentido como progresso para aqueles que não conseguem
dar conta de sua vida dentro do mundo que os cercam.
Projeção e ação doinconsciente

A relação analítica é um palco privilegiado para projeções.


Evidentemente, toda relação importante para uma pessoa envolverá projeções
em ambas as direções: sabemos que frequentemente projetamos nossa
sombra nos outros (amigos, colegas, professores, cônjuges, familiares...). O
médico pode ser alvo de projeções do paciente, como Freud observava desde
antes da fundação da psicanálise. Em síntese, ao enxergar o outro, enxergarei
parte de mim mesmo, sobretudo quando a relação com o outro envolve
sentimentos ou emoções; aliás, é tarefa impossível estabelecer definitivamente
a fronteira entre o que é meu e o que é do outro.

Como coloca Jacoby (2011, pp.19-20), para explorar o inconsciente não


é importante investigar apenas a relação entre a consciência do paciente e as
respostas inconscientes ou compensações que surgem nos sonhos.
Cedo ou tarde também se tornará importante considerar o que está ocorrendo
entre as duas pessoas envolvidas nesse processo. A chamada relação
analítica entre parceiros é absolutamente necessária para o processo
terapêutico, porem alguns de seus aspectos impulsionam o processo enquanto
outros tendem a atrasá-lo.

Jacoby (2011) lembra das pioneiras constatações de Freud a respeito do


fenômeno. Freud percebeu que a transferência reativava experiências e
desejos reprimidos da infância, podendo assim levar ao centro da neurose.
Freud passa a encarar então a transferência como necessária para o sucesso
de qualquer “cura psicanalítica”, em sua linguagem. Contudo, este processo
não é simples e sem sempre favorável ao tratamento, pois Freud notava que
alguns pacientes, ao se vincularem ao analista, estabelecem uma relação de
dependência, que pode eximi-lo de toda a responsabilidade pessoal. “Ele pode
sentir-se o bebê amado do pai ou mãe-analista e inconscientemente não
querer abrir mão dessa dependência. [...] A transferência também pode causar
resistência ao processo de cura” (p.24).
Em Freud, portanto, a transferência é uma forma de neurose, um desejo
de se manter dependente do analista e não encontrar suas próprias respostas
para a vida.Daí vem a conhecida neutralidade e “frieza” do analista freudiano:

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se este atende as demandas do paciente, corre o risco de mantê-lo
dependente por mais tempo.Assim, o trabalho do analista consiste na
interpretação dos motivos por trás de tal dependência chamada de
transferência (Jacoby, 2011).

Jung tem outra concepção em torno da transferência, afastando-se da


ideia freudiana da transferência como repetição de experiências reprimidas da
infância. Jung evidentemente considera os conteúdos arquetípicos do
inconsciente coletivo. Jacoby (2011) lembra o caso descrito por Jung em que
uma paciente o colocava num lugar divino, espiritual – o que levou o psiquiatra
a enxergar a projeção do self (arquétipo da totalidade).
Ora, se os conteúdos arquetípicos inconscientes estão envolvidos na
transferência, segue-se que os temas por trás da transferência não podem ser
apenas repetições de situações da vida pessoal. No inconsciente encontramos
também as sementes do desenvolvimento futuro que podem ser levadas à
atenção da consciência e serem gradualmente integradas a ela. A transferência
é, na verdade, uma forma de projeção; de fato, o termo transferenceé apenas
tradução do termo projectioem latim, ou “projeção”. Utilizamos a palavra
transferência como um termo técnico para as projeções que ocorrem na
relação paciente-analista. De acordo com Jung, falamos de projeção quando
conteúdos psíquicos pertencentes a experiências subjetivas e intrapsíquicas
são vivenciados no mundo externo em relação a outras pessoas ou objetos.
Isso significa que não estamos conscientes de que esses conteúdos façam
realmente parte de nossa própria estrutura psíquica (Jacoby, 2011, p.29).

O processo analítico envolve tanto analista quanto paciente,


efetivamente. O primeiro deve estar consciente de seus impulsos de poder, de
suas necessidades paternais ou maternais, de modo a não buscar satisfazê-las
inconscientemente através da relação analítica.

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O fator mais complexo presente nesta representação é o eixo de relação
entre o inconsciente de P e o inconsciente de A, já que está no escuro para
ambos. É o estado definido por Jung de participationmystique. É importante
para todo psicoterapeuta saber que essa área está sempre presente, para ficar
atento para os sinais que ele tiver a respeito disso.
Por exemplo, ambos podem se tornar presas de um arquétipo (isto é, se
identificarem com ele), que juntos passam a atuar inconscientemente. Tomem
o arquétipo do curador divino. De uma forma ou outra, sempre nos infectamos
com o pedido de ajuda do paciente, e o arquétipo do curador pode já se
constelar. Queremos ajudar. Podemos exagerar ao sugerir coisas que possam
ajudar o paciente a se sentir melhor – ele deveria pintar, fazer imaginação
ativa, deixar o emprego no qual ele tem dificuldades, sair da casa da mãe, etc.
As coisas deveriam se mover, nossas sugestões deveriam iniciar uma melhora
na condição do paciente – então podemos nos sentir ajudando de uma maneira
terapêutica. Às vezes isto pode até funcionar; mas, frequentemente, não
funciona e decepção é o resultado. O analista pode culpar o paciente por não
ter a atitude certa em relação à terapia, ou ele pode se desesperar com suas
próprias capacidades como analista. O sentimento é de que ele simplesmente
não sabe ajudar o paciente. Ora, qualquer analista junguiano sabe que não é
seu trabalho curar. A ajuda só pode vir através da transformação da atitude do
paciente, do encontro de uma relação acertada com seu inconsciente. Mas,
uma vez que o analista é tomado inconscientemente pelo arquétipo do curador,
esse conhecimento pode ser usado de forma exageradamente zelosa e
prematura. A necessidade emocional de ajudar quer um escape (Jacoby, 2011,
pp.42-43).

Como escreve o próprio Jung (1998, pp.45-46):


O fato de o paciente transmitir ao médico um conteúdo ativado do inconsciente,
também constela neste último o material inconsciente correspondente, através
da ação indutiva regularmente exercida em maior ou menor grau pelas
projeções. Médico e paciente encontram-se assim numa relação fundada na
inconsciência mútua. [...] A rotina, o “já saber de antemão” são inseparáveis da
persona, requisitos apreciadíssimos pelo clínico experiente, como aliás por
toda autoridade infalível. Esta falta de percepção, porém, não nos é propícia,
visto que com a contaminação inconsciente nos é oferecida uma possibilidade
terapêutica de inestimável valor, por realizar a transferência da doença para
quem está tratando dela.

Jung fez declarações polêmicas sobre a transferência, em alguns


momentos minimizando sua importância – e até mesmo afirmando-se a mesma
ser um obstáculo ao tratamento, que ocorreria apesar da transferência e não
devido a ela. Contudo, em seus escritos a respeito do fenômeno destacaremos
algumas indicações valiosas.

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Sobre a questão da sexualidade presente na relação analítica, como
aponta Fordham (1974/2016, p.4), Jung concebe
[...] as fantasias sexuais mais favoravelmente como analogias relacionadas à
empatia, à adaptação e a um “impulso em direção à individuação”.[...] Aqui, o
caráter aparentemente sexual da transferência leva até uma ponte rumo a um
maior patamar de empatia, ao valor da personalidade e, deste modo, à “estrada
da liberdade”.

Diante da transferência positiva ou negativa em relação à imago paterna,


Jung dá valências positivas e negativas para amor, hostilidade e rebelião. Isto
é, a transferência positiva pode ser uma realização para o paciente que é uma
“criança rebelde”; para o paciente que é uma “criança obediente”, a
transferência positiva é repetição.

A relação transferencial pode ter enorme valor no processo de


individuação, no caso de uma análise bem-sucedida.Como aponta Fordham
(1974/2016), tendo dado sua visão do problema, que pode ainda incitar
analistas, Jung continuou com seus termos muito definidos. Uma análise
redutiva devidamente conduzida é essencial, pois “o fenômeno da transferência
é um atributo inevitável de toda análise minuciosa...” (Jung, vol.16, p. 136) e o
relacionamento é impossível até que todas as projeções tenham sido
conscientemente reconhecidas e resolvidas.

A pedra de toque de toda análise [bem-sucedida] consiste na existência


perene desta relação direta entre pessoas, uma relação psicológica em que o
paciente enfrenta um analista em iguais termos e com a mesma crítica
implacável que ele deve imprescindivelmente aprender com seu analista no
curso de seu tratamento”. Desta forma, ao invés de uma “submissão
humanamente degradante e escrava”, o paciente “descobre que sua própria e
única personalidade tem valor, que ele foi aceito pela pessoa que ele é, e que
ele pode levar esta aceitação consigo para adaptar-se às situações da vida”
(Jung, vol.16, p. 137). “Nossa tarefa é [...] cultivar e transformar este elemento
em crescimento até que ele desempenhe seu papel na totalidade da
psique”(Jung vol.16, p. 138). Esta é uma clara constatação de que a
transferência tem um objetivo a atingir e que o analista torna-se uma pessoa
real tanto o quanto se torna um profissional, o recipiente de projeções a que ele
é reduzido (Fordham, 1974/2016).

Na visão de Fordham, Jung seguiu com Freud quanto a reconhecer as


características incestuosas, eróticas e infantis da transferência, assim como a
aceitar seu fenômeno de resistência. Sua contribuição para além da psicanálise
reside em sua ênfase da função teleológica e terapêutica da transferência na
qual a real personalidade do analista se torna altamente significativa. Sua
ênfase na transferência como uma situação potencialmente terapêutica e na

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real personalidade do analista parece ter sido sua particular contribuição. A
ideia de que uma ponte para a realidade pode ser feita com o objetivo de atingir
autonomia moral quando as projeções já foram reconhecidas e resolvidas,
definida mesmo em 1913 como “um impulso rumo à individuação”, é
característica e central no desenvolvimento de sua tese. Os sentidos sociais e
religiosos, morais e éticos da transferência são também muito mais importantes
para Jung do que para Freud.

O contraponto que Jung faz às ideias freudianas a respeito da


centralidade da transferência no processo analítico parece vir, parcialmente, de
da necessidade de se diferencias da psicanálise. Quando ele parece diminuir a
importância da transferência, não é à toa que ele o faz sobretudo numa das
conferências de Tavistock em Londres, feita para um público de psicanalistas.

Entretanto, Jung evidentemente não desloca sua concepção de


transferência apenas para ser diferente dos freudianos. Ele elabora uma nova
visão do fenômeno, tirando o foco da ideia de repetição e relacionamento
subjetivo na troca entre analista e paciente.

Fordham (1974/2016) aponta que Jung subdivide a terapia entre


métodos de influência e “... O terapeuta não mais é agente do tratamento, mas
um passageiro companheiro do paciente um processo de desenvolvimento
individual” (Jung, vol.16, p. 8). Essa distinção é relacionada à própria ação
prática, pois ele escreve:“Todos os métodos de influência, incluindo o analítico,
requerem que o paciente seja visto com a maior frequência possível. Contento-
me com o máximo de quatro consultas por semana. Mas, como regra,
contento-me com duas sessões e, uma vez que o paciente tenha sido adiante,
reduzo a uma sessão” (Jung, vol.16, pp. 26-27). Aqui, ele define um objetivo ao
reduzir entrevistas: servem para que o paciente “se libere da autoridade médica
o mais rápido possível” (Jung, vol.16, p. 27). Este padrão de terapia,
dependente do desenvolvimento da dialética interna entre ego e arquétipo,
dominou muito da psicoterapia conduzida por analistas junguianos.

Neste método, o paciente e o analista trabalham juntos no material


atribuindo sentido principalmente para sonhos através de imaginação ativa. Foi
provavelmente esta ideia que fez Jung enfatizar a importância de nada fazer
para sublinhar, externalizar ou, ainda pior, provocar a transferência. Seguindo
esta linha de pensamento, o efeito terapêutico viria não da transferência, mas
da apreciação adquirida das qualidades pessoais do terapeuta, de sua
introjeção e identificação como modo de construir uma ponte para a realidade.
Deve-se também acrescentar a evolução arquetípica a esta avaliação,
representada pela transferência, que conduz o paciente para uma maior
individuação.

O principal texto de Jung sobre a transferência é o vol.16 (nas obras


completas da edição brasileira, vol.16/2: “Ab-reação, análise dos sonhos,

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transferência”). Leitura densa e pouco penetrável para aqueles que não têm
conhecimento sobre alquimia e sobre as ideias do próprio autor – que, por
sinal, logo adverte que não é um livro para iniciantes. Mas é preciso passar por
algumas reflexões aí presentes.

Como mostra Fordham (1974/2016), a despeito destas dificuldades, a


tese geral é clara: a transferência pode revelar todos os estágios do processo
de individuação: os alquimistas projetavam sobre a matéria, o paciente projeta
sobre o analista que, através da experiência de sua própria individuação, torna-
se envolvido com a dialética emocional do paciente.

Em geral, a prática de Jung permanece a mesma: deve-se fazer redução


analítica das projeções de maneira que a real relação com o analista possa
emergir à medida que a auto realização do paciente aumenta.

Novamente, há o pressuposto de que haja um estágio preliminar de


confissão e análise de insights antes que o conteúdo inconsciente seja
constelado e a transferência comece. Jung sugere que muitos feitos podem ser
realizados deste modo, e até mesmo uma quantidade de objetivos preliminares
podem ser atingidos; nós lemos que existem aqueles que pensam que os
atingiram “uma vez que os conteúdos inconscientes foram trazidos à
consciência e teoricamente avaliados” (Jung vol.16, p.278). Seja como for, o
estopim da transferência arquetípica se dá no inconsciente. Ele pode não ser
reconhecido em absoluto no começo e somente aparecer em
sonhosanunciando seu início. Jung dá exemplos ilustrativos de seus
importantes conteúdos:“Inicia-se um incêndio no porão, ou um ladrão invade a
casa, ou... o pai do paciente morre ou [um sonho] pode retratar uma situação
erótica ou alguma outra situação ambígua” (Jung vol.16, p. 183).
Transferência e sexualidade

Como bem aponta Fordham (1974/2016), no que se refere às


concepções de Jung, destaca-se a importância da personalidade real do
analista ser um instrumento disponível para o paciente curar a si mesmo. Jung
foi o pioneiro mais consistente e enérgico, senão o único pioneiro, deste
conceito seminal. Nele, ele demonstra sua capacidade penetrante de agarrar e
permanecer com o essencial e assim abrir caminho para elaborações mais
detalhadas.

A insistência de Jung no erro da interpretação “exclusiva” das raízes


sexuais da transferência é relevante neste contexto porque ele pode ter
contribuído para os estados confusionais. Esta técnica, se é que alguma vez
ela já foi usada em demasia, não mais deveria ainda inspirar ataques porque
ninguém mais acredita que as pulsões sexuais residem sozinhas na raiz das
desordens mentais; então, este tópico poderia ser reexaminado. Jung não quis
dizer – como algumas vezes se diz – que os impulsos sexuais na transferência
erótica devessem ser ignorados ao ponto de deixar o paciente ansioso, culpado

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ou envergonhado sem que o analista perceba; de fato, seja lá o que possa ser
inferido a partir de seus escritos, a informação que reuni de alguns de seus
pacientes convenceu-me de que esta crítica está desprovida de
fundamentação. Então, o que devemos fazer de sua observação – porque
assim me parece – de que pacientes cuja sexualidade é analisada podem
desenvolver os mais terríveis ressentimentos e romper com a análise: isto seria
devido a um grande erro técnico? É evidente que quando ele usa a palavra
“exclusivo”, ele quer dizer que a transferência arquetípica não foi contemplada,
mas ao mesmo tempo ele não dá qualquer indicação de inveja, ciúme e
possessão que possa ser digna de nota. Se estes componentes da sexualidade
não forem contemplados, os afetos agressivos e frequentemente destrutivos
que são liberados acabam por não ser interpretados, o paciente de fato se
torna confuso e desorientado e rompe com a análise ao modo como Jung
descreve (Fordham, 1974/2016).
Contudo, Jung foi correto em um aspecto muito importante. Não é a
sexualidade enquanto descarga física, orgásmica entre dois adultos que seja o
ponto, mas, ao invés, a necessidade incestuosa de intimidade corporal e
espiritual, irrealizável por adultos por meio da carne, porque ela somente pode
ocorrer entre mãe e filho (Fordham, 1974/2016).

Jung claramente sabia alguma coisa de tudo isso, pois os textos


alquímicos contêm referências à mescla de amor e ódio (dos elementos);
entretanto, estes são concebidos como opostos que podem ser transcendidos,
e não fui capaz de achar se ele discorre sobre formas mais intensas de
transferência negativa em algum momento de sua obra. Na “Psicologia da
transferência” ele faz, no entanto, uma afirmação clara de que a transferência
pode tanto ser negativa quanto positiva, de modo que o princípio pode ser
reconhecido, mas o que ele quer dizer por negativo é amplamente relegado à
imaginação (Jung, vol.16, p. 165).

Se um analista descobre-se no mesmo estado de confusão que ele


constata ser o de seu paciente, pressupostos racionais, que formam a base
sobre a qual os sistemas conscientes parcialmente residem, claramente seriam
de pouquíssimo uso. Entretanto, a confusão não pode ser concebida ou
experienciada sem uma concepção ou uma experiência de ordem ou razão e,
se isto ainda for mantido como um objetivo mesmo quando não mais
apropriado, então os jogos contraditórios dos afetos inconscientes que
rapidamente se alteram, quando dispostos em oposições, se parecerão com
desordens e o analista que se apoia em um sistema racional rapidamente será
arrastado para eles em sua confusão. É claro, alguma consistência deve ser
mantida e Jung confiava em virtudes éticas e na consciência (Fordham,
1974/2016).

Sem negar a importância destes valores e especialmente da ética que


ele repetidamente invoca, é importante lembrar que eles podem se tornar

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defensivos e conduzir à negligência dos conteúdos afetivos que os destacam.
Em outras palavras, eles podem cegar o analista com a contratransferência
que o paciente evoca. Para prevenir seu uso defensivo, requerimentos éticos
podem ser proveitosamente colocados para se relacionarem com a parte
infantil do paciente que evoca o amor maternal do analista – mas, deve-se
acrescentar, também com toda a sua sombra. Ao fazer investigações nesta
posição, muito pôde ser aprendido na medida em que não somente o cuidado
amoroso, mas também a raiva, a irritação, a depressão, o desespero e a
desesperança podem partilhar na experiência de analisar pacientes que
demonstram elementos psicóticos em seu Si-mesmo. Se a análise não superar
estes sentimentos, eles podem ser compreendidos como indicadores de
contratransferência e, como tais, são naturais a qualquer análise radical. A
ética analítica não deve então sustentar os elementos benignos da
contratransferência – ele deve estar certo deles como um resultado da análise
–, mas compreendê-los em conjunção com suas sombras e interpretá-los no
tempo em que o paciente pode se servir de suas informações (Fordham,
1974/2016).

Segundo Jung, o inconsciente pessoal, quando experienciado na


transferência, é feito de pessoas – pai, mãe, irmão, irmã e por aí segue. Nesta
região, as projeções podem ser interpretadas e reduzidas porque há uma
pessoa lá que pode organizar e livrar-se do passado, sobretudo, através do
insight. Este procedimento pode ser empregado quando há uma neurose de
transferência. Posteriores regressões podem, contudo, ser necessárias e levam
a psicose de transferência na qual o Si-mesmo não pode ser assumido: ela tem
de ser descoberta e de receber uma forma porque a autorrepresentação no
ego não foi ainda adquirida. O material de Jung mostra muitas facetas dos
estados infantis desta região e suas interpretações do quaternio como
representando a prima materia na qual os elementos do Si-mesmo não estão
integrados é um deles: ela representa a desintegração do Si-mesmo resultando
na identidade de sujeito e objeto tal como achamos na infância e na alquimia.
Mas na regressão, a cisão do ego toma o lugar e mascara a desintegração. É
sobre o processo de cisão que a ênfase de Jung recai ao mostrar que ele
conduz a estados de integração e à formação do hermafrodita – um símbolo do
Si-mesmo (Fordham, 1974/2016).

Referências

FORDHAM, M. A concepção de transferência de Jung. Trad. Daniel Yago (não


publicada, 2016). Texto original: Jung's Conception of Transference. The
Journal of Analytical Psychology, v.19, n.1, p.1-21,1974.
JACOBY, M. O encontro analítico.Transferência e relacionamento humano.
Petrópolis: Vozes, 2011. (ColeçãoReflexõesJunguianas)

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JUNG, C.G. A prática da psicoterapia. Vol. 16/1. . Petrópolis: Vozes, 1988.

JUNG, C.G. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. Vol. 16/2.


Petrópolis: Vozes, 1998.

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