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A DOENÇA COMO SÍMBOLO DE TRANSFORMAÇÃO 1

Denise Amorelli Silveira2


Resumo
Apresenta-se a Psicossomática Analítica, uma abordagem de saúde e doença
como parte de um mesmo processo. Introduz-se a discussão da doença como
algo mais do que um acidente desagradável. Encara-se o ser humano como
um todo, afirmando não existir separação entre corpo e mente; a psique está
no corpo como o corpo está na psique. Sendo assim, encara-se a doença
como uma representação da energia psíquica que não encontrou outra forma
de se expressar, porque a pessoa doente não descobriu outra maneira de
simbolizar seu desequilíbrio. Considera o símbolo como máquina
transformadora da energia psíquica buscando encontrar o núcleo do complexo
onde repousa um arquétipo, que poderá dar luz tanto ao significado (o que é)
da doença na vida daquele indivíduo, quanto ao sentido (qual a direção) a
doença tomará. Conclui-se que a direção conferida à vida pela doença é dada
na medida do significado encontrado e que é para isto que serve a doença:
para descobrir sobre o Si-mesmo (servindo ao Processo de Individuação), e
que tudo depende do quanto se suporta desta descoberta.
Palavras-chave: Psicossomática; Psicologia Analítica; Doença; Símbolo;
Individuação.

DISEASE AS SYMBOL OF TRANSFORMATION

Abstract
Analytical Psychosomatics is introduced as an approach to health and disease
as part of the same process. The discussion of health as something more than
an unpleasant accident is brought forward. The human being is faced as a
whole, with the assurance that there is no separation between body and mind;
the psyche is in the body as the body in the psyche. Therefore, disease is faced
as a representation of the psychic energy which did not find any other way to
express itself, because the diseased person did not find out another way to
symbolize his or her unbalance. The symbol is considered as a machine that
transforms psychic energy, trying to find the nucleus of the complex where an
archetype lies, which could enlighten both the meaning of the disease (what it
is) in the life of that individual, and the direction (which way it will go through) it
will take. It is concluded that the direction rendered to life by disease is given in
the measure of the encountered meaning and that is what disease serves for:
discovering oneself (as a part of the process of individuation) and that all
depends on how much one can take of such discovery.
Key-Words: Psychosomatics; Analytical Psychology; Disease; Symbol;
Individuation.

1
Artigo extraído da Tese de Doutorado “A descoberta dos Significados da Doença e Processo de Cura: Um Estudo
Fenomenológico” PUC Campinas, SP, 2003.
2
Docente Unifenas. Doutora em Psicologia – Psicologia como Profissão e Ciência pelo Centro de
Ciências da Vida, PUC Campinas. Analista do Instituto de Psicologia Analítica de Campinas, Filiado a AJB
e IAAP – Internacional Association of Analytical Psychology – Zurique – Suíça .
INTRODUÇÃO

Este trabalho diz respeito a uma abordagem da Psicossomática iniciada

no mestrado da PUC Campinas, que originou posteriormente tema de

doutorado. Tem o objetivo de introduzir e dar base à discussão de que a

doença é algo mais do que um acidente desagradável e indesejável em nossas

vidas. Ao abordarmos o ser humano como um todo, podemos afirmar que não

existe separação entre corpo e mente; a psique está no corpo como o corpo

está na psique. Sendo assim, encaramos a doença como uma representação

da energia psíquica que não encontrou outra forma de se expressar, porque a

pessoa doente não descobriu outra maneira de simbolizar seu desequilíbrio

(Silveira, 1997).

Acrescentamos que esta deveria ser uma abordagem "em quatro

dimensões" (somato-psico-sócio-cultural) e inerente aos conceitos da Medicina,

conforme foi desde os seus primórdios e que deveria prevalecer até os dias de

hoje. A Psicossomática hoje não necessita ser mais uma especialização, mas

sim, um conceito internalizado, sobretudo por quem não concebe o homem em

pedaços, ou seja, por quem trata do doente e não da doença.

Embora deseje a saúde, o indivíduo adoece exatamente nos momentos

em que não poderia adoecer, para se castigar, usufruir de algum benefício

afetivo, lutar por algum desejo, ou ainda, enfrentar alguma dificuldade. Isso

mostra que não se pode contar com o ego como senhor de si. O ego é

submisso ao domínio dos complexos, por assim dizer, é o terreno da crise e do

mal-estar, onde se confrontam os desejos conscientes e inconscientes.

Jung (1971) sempre chamou a atenção sobre os perigos da


unilateralidade da psique, os perigos de nos prendermos excessivamente à

consciência e sermos surpreendidos pelo inconsciente. Em sua função

simbólica, a doença é parte integrante de uma cultura da mesma maneira que

qualquer outra produção de ordem artística, ou um arquétipo.

Considerando que a proposta junguiana é exatamente a de se colocar

diante do símbolo e deixar-se transformar por ele, isso é, na medida em que o

concebemos como máquina transformadora de energia. Ele é um veículo que

conduz a transformação ou um meio de transformação. Dessa forma, o símbolo

apenas colabora com a análise, não a impossibilita jamais.

Só aceitamos como símbolo aquilo que se faz presente, desde o

inconsciente para a consciência, como um facilitador da consciência e da

integração do conteúdo inconsciente. É necessário significar o símbolo e

colocá-lo à disposição da consciência, decifrar sua mensagem e deixá-lo agir,

transformando a própria estrutura da psique. Mas, a proposta junguiana exige

que isto seja feito da forma menos racional possível, pois o símbolo só é

símbolo quando promove uma comunicação consciente-inconsciente, ou

quando faz sentido atualizando algum material do inconsciente, tornando-o

disponível à consciência. Entretanto, o que possibilita a conscientização,

melhor dizendo, o que aumenta a comunicação consciente-inconsciente?

É o fato de estarmos, no processo de individuação, sempre retornando ao

início, retomando conteúdos esquecidos ou reprimidos. Como se

descrevêssemos uma espiral atingindo sempre um ponto "à frente" no

desenvolvimento (diferenciação) para cada novo conteúdo atualizado, é como

um retorno ao início para dar um passo à frente. Sabemos que, por meio do

Uroboros, símbolo do início e do fim em si mesmo (símbolo da indiferenciação)


presente no princípio da estruturação da libido, estaremos representando o

constante retorno ao inicio, sempre que atingimos o último ciclo do processo: o

ciclo cósmico (Neumann, 1968).

Além disso, o Self é considerado o arquétipo central, organizador da

psique para onde tenderá o ego, sempre. Desta forma, afirmamos que a

estruturação da psique se dá no eixo Ego-Self, e que o reconhecimento de um

complexo inconsciente leva à integração. Conseqüentemente, isto possibilita a

transformação, o que pode levar à solução de problemas, ou ao

encaminhamento normal da energia.

Há muita resistência, por parte da Medicina e da Ciência em geral (uma

das exceções é a escola junguiana que considera o inconsciente como fonte de

todas as transformações), em aceitar que podemos adoecer porque

precisamos ou queremos algo num certo sentido. Que existe uma consciência

paralela muito mais poderosa do que nós mesmos e que tudo que nos

acontece tem um sentido nem sempre conhecido. Isto parece difícil de aceitar,

para a maioria dos cientistas, pois significa perder, por assim dizer, sua

pretensa autonomia.

Na visão de Debray (1995), o inconsciente como produtor de certos

sintomas chama a atenção contra alguns narcisismos. Visto que provoca o

sentimento de insuficiência do saber ou prática naqueles que permanecem

presos aos domínios tradicionais, bem como nos que se encontram em

momentos cuja mudança de hábitos e formas de pensar são tarefa difícil. Mais

ainda traz novo golpe aos nossos aspectos megalomaníacos, acrescentando a

carga de um questionamento pessoal ao determinismo, por si mesmo pesado,

em nossas vidas. "É mais ameno invocar elementos patogênicos externos do


que analisar fatores íntimos de nossos episódios depressivos". (Debray, 1995,

p.XII)

Torna-se difícil, pensando assim, aceitar nossa hipótese de que a doença

serve para a transformação e integração dos conteúdos ídeo-afetivos

inconscientes. Tendemos a uma abordagem da doença que se propõe a ver

saúde e doença como manifestações a favor da vida ou da morte, dependendo

do quanto de verdade se suporta sobre si mesmo. Em suma, a doença é um

símbolo que, em seu dinamismo, favorece a saúde.

A Função dos Complexos

Encontrar o núcleo do complexo onde repousa, certamente, um arquétipo,

poderá dar luz tanto ao significado (o que é) que a doença tem na vida daquele

indivíduo, quanto ao sentido (qual a direção) que a doença tomará na sua vida.

Isso nos proporcionará saber, portanto, o lugar que a doença ocupa e qual a

direção a ser dada para a vida a partir desta descoberta.

Sabemos que um complexo tem autonomia para mudar o rumo das

coisas ou a direção de toda uma vida e que o ciclo de uma vida pode ser

interrompido por idéias de forte tonalidade afetiva, isto é, firmemente

associadas a emoções. Os chamados afetos realmente nos atingem (ou

‘influenciam’), como numa situação de perigo ou ameaça, ou mesmo quando

colocam de lado qualquer boa intenção ou projeto consciente de vida. Somos

tomados por nossos afetos ou por nossos complexos autônomos, não só no

caso das psicoses e das neuroses, mas também nos casos das doenças

orgânicas. Seja qual for o caso, trata-se de uma completa, mesmo que

temporária, inconsciência, provocada pela autonomia do complexo, sempre


inconsciente.

Jung (1971) diz que numa situação de perigo ou ameaça, o perigo

concreto pode passar; o complexo logo perde a tonalidade afetiva de atenção,

as sensações logo se tornam aparentemente normais, mas o complexo

continua vibrando por um certo tempo em seus componentes corporais, e

conseqüentemente, nos psíquicos também. Por exemplo, quando "os joelhos

continuam a tremer'', o coração ainda fica disparado, as mãos pingam de suor,

o rosto permanece vermelho ou pálido, enfim, tudo ocorre como se a pessoa

não se refizesse do medo, levando-nos a crer que algumas doenças orgânicas

estão relacionadas a esta perseverança de que trata Jung: “Juntamente com a

forte carga emocional, essa perseveração do afeto constitui uma razão para o

aumento proporcional da riqueza das associações relacionadas ao afeto”

(Jung, 1971, p. 34-35).

Dessa forma, sempre que somos intensamente mobilizados por algum

acontecimento, sofremos uma afetação em três níveis, como se fossem um só,

idéias/emoções/corpo, nos quais as associações são simultâneas e a vibração

continua por tempo indeterminado. Por isso, nunca sabermos ao certo o quanto

somos atingidos, mas sentimos, inclusive no corpo, que somos. O que não

sabemos, na verdade, é qual aspecto do acontecimento foi atraído por algum

elemento do complexo; provavelmente será uma idéia semelhante, presa em

alguma associação inconsciente, visto que o complexo é formado de idéias

semelhantes que se atraem e se aglutinam.

Um complexo pode atuar sobre a psique sem ser reconhecido,

continuando a atuar até se descarregar e até que a energia psíquica, nele

armazenada, transfira-se, isto é, seja emocionalmente assimilada. Uma vez


conscientizado, o complexo tem mais chance de ser entendido e assimilado, já

que, mantendo-se inconsciente, pode prejudicar a unidade da psique. Por outro

lado, um complexo não resolvido pode atuar sobre a psique sem ser

reconhecido. Esse, porém, quando assimilado, transforma-se em energia

renovada. Via de regra, o processo de tornar consciente um complexo

normalmente encontra resistência. Assim, o entendimento apenas intelectual

não tem força sobre o complexo, a transformação se dá somente por meio da

emoção. Portanto, conscientizando-nos do complexo que possui a doença,

estaremos liberando a energia, antes presa, que servirá para transformação,

reestruturando a psique.

McNeely (1987, p. 22) reflete sobre essas noções relacionadas aos

complexos e suas manifestações no corpo: "todos os complexos podem

apresentar sintomas somáticos ou psíquicos, e até uma combinação de ambos.

É possível detectar a presença de um complexo por posturas características do

corpo, assim como por reações emocionais crônicas, sintomas somáticos,

doenças crônicas ou cíclicas e outras manifestações fisiológicas de tensão. O

Ego pode assumir uma das seguintes atitudes com relação aos complexos:

inconsciência total de sua existência; identificação; projeção; enfrentamento" .

A conscientização requer o enfrentamento, pois é a única atitude que

possibilita a solução, embora esteja sempre acompanhado de sofrimento.

Acontece que o complexo permanece inconsciente em conseqüência do

conflito com os valores do ego. Não querendo sofrer, evitamos o

enfrentamento. A doença psicossomática pode ser uma forma de adiar o

enfrentamento, transferindo para o corpo a vivência do conflito. Por outro lado,

ao conhecermos o conflito, poderemos encontrar o complexo e desmanchá-lo,


ampliar a consciência e liberar a energia. De outra forma surgirão os sintomas

físicos, psicológicos, ou ambos. Jung (1971) alerta para o fato de que isso é

facilmente explicável: por um lado, os complexos com muita força afetiva

compreendem em si inúmeras inervações corporais e, por outro, os afetos

fortes constelam um grande número de associações, graças ao estímulo

poderoso e persistente que provocam no corpo. Ainda mais que normalmente

os afetos podem durar por tempo indeterminado provocando sintomas ou

distúrbios gástricos e cardíacos, insônia, tremedeiras, enxaquecas, por

exemplo.

Provavelmente, o que chamamos de sensibilidade do complexo faz com

que prevaleça o estado de vibração e continue determinando a doença, a qual

servirá, na verdade, ao propósito inconsciente de fuga ou de defesa do

indivíduo. As associações vão desaparecendo aos poucos da consciência e

tomando um lugar nas malhas intrínsecas dos complexos, ou seja, nas teias

das idéias e emoções aglomeradas, agrupadas ou amontoadas, permanecendo

inconscientes. Todo este processo faz parte daquilo que Jung chama de efeito

crônico dos complexos.

Ademais, Jung (1971) diz que estímulos diversos podem sempre atualizar

um complexo. Por exemplo, em situações de estresse, observamos que os

complexos são facilmente atualizados: quando um estímulo estressor (um

susto) aciona uma associação inconsciente da malha do complexo que é

atualizado e a pessoa tem uma descarga tanto orgânica quanto emocional,

guiada pelo complexo. Afirma-se isto porque a maioria dos complexos

encontra-se em estado de repressão e pode se revelar a qualquer momento,

tanto psíquica quanto organicamente. O que ocorre é que a associação foi


perdida, mas apenas momentaneamente, no caso dos sintomas, porque o que

escapa é o “ideocomplexo”, quer dizer, apenas a idéia daquele complexo. A

emoção está resguardada, como carga afetiva que continua "afetando" o corpo

e a psique ao mesmo tempo.

Jung (1971) sustenta que a reintegração de um complexo pessoal tem

efeito positivo e terapêutico sobre a personalidade. No entanto, se ele continuar

inconsciente, seu efeito será nocivo. Quer dizer que o complexo tem duplo

aspecto. E mais, se houver invasão de um complexo vindo do inconsciente

coletivo, ela significará uma ameaça perigosa e danosa para o indivíduo,

quanto ao funcionamento do seu ego. Isto nos leva a crer no seguinte: se, por

meio da conscientização, conseguirmos desmanchar o complexo no processo

analítico, encontraremos sempre o arquétipo correspondente a cada complexo,

por exemplo, o arquétipo do Herói, no caso de um indivíduo portador de

complexo paterno, ou mesmo o arquétipo do Curador-Ferido, no caso de um

portador de doença psicossomática.

Os antigos conceitos sobre a doença, descobertos por Méier (1999),

analista junguiano, indicam que a doença era vista como castigo ou punição

dos deuses, por erros e pecados cometidos, ou como sacrifício aos deuses. Já

na cultura afro-brasileira, esta moléstia é vista como a simples manifestação de

uma divindade, sem o cunho patológico (Salles,1997), significando que aquele

deus deve ser cultuado. Essas são simples manifestações do inconsciente

coletivo.

Em nossas investigações clínicas, observamos que inúmeras vezes as

pessoas usam a doença em benefício próprio, por exemplo, quando precisam

descansar ou parar suas atividades e não sabem fazê-lo de outra forma. O


homem civilizado não costuma saber ouvir seu corpo, segundo suas

necessidades, por isso ultrapassa sempre seus limites. Entendemos que isso

seja uma forma de reagir culturalmente valorizada, que está, por assim dizer,

registrada em nosso inconsciente coletivo. De acordo com essa idéia ficamos

doentes quando fazemos algo que entra em desacordo interno, dependendo da

idéia do pecado ou do erro cometido. O castigo parece estar sempre associado

com os erros do passado; a doença seria, portanto, uma forma de se redimir.

Por sua vez, o sacrifício estaria associado ao investimento no futuro.

A doença, assim, está relacionada à tarefa do Herói, enquanto Arquétipo,

que pode estar também a serviço da estruturação da psique. É nesse sentido

que estamos abordando o homem comum, como um herói por si mesmo,

dentro da simples complexidade do seu cotidiano. Dessa forma, a doença não

seria uma recusa à saúde e nem a ausência de saúde, mas algo produtivo.

Neste caso, o inconsciente produz sintomas, e isso já significa algo em si

mesmo, que pode ser uma estratégia para parar, respirar, forçar uma mudança

de ritmo (que o indivíduo não consegue por outros meios), ou provocar uma

transformação. A exemplo do estresse, considera-se hoje toda a gama de

doenças que dele advém, simplesmente para descansar, dar uma “paradinha”.

O doente passa a se permitir prazeres ou liberdades que não se permite

normalmente. Tudo isto para resolver ou decifrar o sentido da doença, na

própria vida e se transformar, sucumbir de vez ou continuar o enfrentamento.

Podemos pensar a doença, então, como o escudo do Herói cotidiano para

se defender de dores, as quais, ao serem decifradas, estarão operando a favor

da vida. Neste caso, a doença funciona como defesa que impede o indivíduo
de enfrentar os conflitos, também o impedindo de reconhecer seus conflitos

maiores e se transformar com a assimilação do novo conhecimento.

Vista também como espada, a doença deve ser compreendida, como já

foi dito, como uma forma de transformação no processo de individuação, ou

seja, uma oportunidade de alargamento da consciência. A atualização dos

Arquétipos do Herói e do Curador-Ferido, ou mesmo qualquer outro, auxilia

nesse alargamento, relacionado aos arquétipos da individuação. Nesse caso

específico da relação do indivíduo com a doença, a atualização desses dois

arquétipos promove a transformação e o alargamento da consciência.

Saúde e Doença: As Duas Faces da Mesma Moeda.

Saúde e doença são parte de um mesmo processo, assim como a morte

faz parte da vida e o sofrimento também é parte da felicidade. Quando nos

referimos à trajetória do Herói, temos consciência tanto da sua jornada

brilhante como do seu fim trágico. Mas, ressaltamos que, tanto um fim como o

outro, estão a favor da consciência na nossa abordagem.

Historicamente, observamos que o desenvolvimento ocidental recente

enfatizou em excesso o pensamento abstrato e racional (Whitmont, 1969).

Dessa forma, preocupou-se, predominantemente, com a utilização prática de

objetos e de necessidades externas, culminando, em nossos dias, no

positivismo orientado para o fato e para a lógica. Negligenciaram-se, em

grande parte, os aspectos emocionais e intuitivos do homem, ou pelo menos,

esses ficaram relegados a uma posição de menor importância. A capacidade

de sentir e de intuir não receberam valor moral adequado, isto é, a

capacidade de vivenciar um relacionamento consciente com emoção - que é

um impulso ou uma força autônoma - e a capacidade de perceber, por meios


que não sejam os nossos cinco sentidos, ficaram relegadas aos românticos

ou místicos. Os sentimentos são, atualmente, considerados algo dispensável

e as intuições não são consideradas "reais", como se fossem secundários em

nossas vidas. Assim, deixamos de observar o que está a olhos vistos: que se

adoece, chamando a atenção para a quantidade, a qualidade ou a

intensidade de afeto experimentado. Essa desvalorização e negligência

tradicionais em favor da razão voltada para o mundo exterior, forçaram o

homem ocidental a deixar de cultivar adequadamente métodos conscientes

de orientação “(...) no mundo psíquico interior, das emoções, ethos e

significado: pois o que não é conscientemente desenvolvido permanece

primitivo e regressivo e pode constituir-se em ameaça" (Whitmont, 1969,

p.16).

Acreditamos que a maioria dos nossos contemporâneos não seja capaz

de reconhecer, em si ou nos outros, as respostas de intuição ou de

sentimento. Em especial a nossa cultura brasileira, sul-americana,

atualmente, talvez devido à grande influência norte-americana, é

conseqüentemente, muito materialista. Devemos ressaltar que, já as culturas

com influência européia, embora extremamente desenvolvidas, aproximam-

se das práticas mais primitivas. As pessoas conservam os hábitos mais

relaxados e uma capacidade de se relacionarem com o tempo, o que para

nós soa "como antigamente". Talvez isso se deva ao fato de que estas

culturas perderam muitas coisas com as guerras e autodestruições. Assim,

após se reconstruírem, permitiram-se também saberem a importância de

alguns valores. Em vista disto, tudo indica que parece necessitarmos perder,

para realmente valorizarmos o que temos.


Observamos, no consultório, a dificuldade inicial de diferenciar

sentimento de pensamento que têm as pessoas. O indivíduo típico de hoje

não consegue descobrir uma saída para seu estado emocional

desequilibrado, pois as mais intensas experiências podem parecer

insignificantes.

Estamos vivendo, em nossos dias, claramente, uma invasão de novas

doenças. O estilo de vida que prevalece facilmente promove o estresse,

atingindo, em cheio, o funcionamento do sistema imunológico, o sistema de

relação do indivíduo com o meio e com o outro (Mello Filho, 1992). É

impressionante como a era da informatização e globalização mostra que é a

relação do homem consigo mesmo, com o outro e com o meio que o adoece.

Poderíamos citar: as doenças do sistema imunológico, as auto-imunes, as

depressões, as neuroses, etc.

Hoje, temos a tranqüilidade de poder afirmar, devido à grande quantidade

de pesquisas no setor, que a intermediação dos sistemas endócrino e

imunológico se faz por meio do hipotálamo. Essa descoberta possibilitou o

estudo da interação dos três sistemas, nervoso, endócrino e imunológico,

considerados partes do tripé homeostático, tão importantes na compreensão da

maioria das doenças (Mello Filho, 1992). Portanto, a desorganização da vida

coletiva e os problemas pessoais, cada vez menos resolvidos por falta de

tempo ou espaço, indicam uma mudança nos meios naturais de cuidarmos da

saúde e da doença. As doenças alérgicas (respiratórias e de pele), infecções,

neoplasias, auto-imunes (artrite reumatóide, o lúpus eritematoso sistêmico, a

esclerose sistêmica progressiva, etc.) são exemplos que tornam impossível


negar a ocorrência de fatores ligados ao estilo de vida, como concorrentes em

sua etiologia.

Ao que parece, perdemos nossos mecanismos reguladores, não

sabemos mais parar para descansar sem culpa, conversar na porta da casa

no fim do dia, contar nossas mágoas sem desconfiança, sem medo de

competição. Mandatos do tipo "tempo é dinheiro", "vence quem cedo

madruga" parecem imperar sobre outros mais relaxados, ligados ao tempo e

ritmo natural da vida, como "devagar e sempre", “o apressado come cru”. A

competição instaurou uma nova cultura, a ordem vigente é “trabalhar sem

descanso”, não perder tempo, não confiar e “levar sempre vantagem em

tudo”. Assim, perdemos o jeito de brincar, dançar, rir, pular, sentir, cantar,

principalmente depois que nos tornamos adultos. E o que é pior,

especializamo-nos como seres civilizados; em nome de nossa civilização

reprimimos em nós o que tínhamos de mais natural e humano. Não

contentes, vivemos reprimindo, em nome da manutenção de uma “ordem

social”, os outros também e principalmente as crianças. Enfim, deixamos de

fazer coisas que são "normais" ou "naturais" na infância, mas que, no fundo,

são apenas próprias de pessoas felizes. Teríamos apenas ficado sérios? Ou

algo se rompeu com a nossa humanidade?

Quando perdemos os nossos mecanismos reguladores, estamos

perdendo também a comunicação consciente-inconsciente. Estamos perdendo

a oportunidade de estar em contato com o Self, o Si-Mesmo e atualizar os

arquétipos do inconsciente coletivo. O que não acontece em determinadas

culturas que não valorizam extremamente o racional, precipitando a

unilateralidade da psique.
Para Quê Serve a Doença?

O que apresentaremos agora será um resumo do resultado da pesquisa

em sala de espera de consultórios médicos feita para a dissertação de

mestrado de Silveira (1997). Esse trabalho motivou o tema do doutorado,

conforme esclarecemos anteriormente.

Ao escutar um de nossos sujeitos, pudemos pensar a gastrite como um

esforço constante, resultando numa superprodução de ácido ou suco gástrico,

assim, o excesso acaba ferindo. Os sintomas e a forma como estes são

descritos pelos doentes são claros para o bom escutador. Isso nos remete ao

que Ávila (1997) concluiu sobre a linguagem doença, vista como hieróglifo

corporal, que tão nitidamente aparece na fala do nosso colaborador: - "Ah!

Quero descobrir, quero me curar. Ah! Quero me curar, quero ir até o fim, quero

descobrir o que é que pode ser isto. Uma gastrite ou um começo de câncer?

Nem que o meu fim ‘tá perto’, mas eu quero saber o que é que pode ser isto, o

que é que pode estar me prejudicando (...) (...) Eu quero que a médica me diga

o que é essa dor de estômago”.

O indivíduo doente quer um parceiro que escute o que ele tem e que o

ajude a decifrar essa linguagem apresentada pelo seu corpo como signos

corporais. Ele, em seu discurso, tem todas as respostas, como pudemos

constatar também nos casos que acompanhamos. Desta forma, o colaborador

é o receptor e o primeiro tradutor das mensagens enunciadas através de

questões subjetivas que precisam ser interpretadas por alguém especializado.

Assim, por meio desta relação, ele tem a oportunidade de atualizar o Arquétipo

do Curador-Ferido. O papel do médico, nesse caso, seria não só atender à


demanda explícita de tratar a dor de estômago, mas ajudar a decifrar o que é

que ele tem, além da gastrite ou do câncer.

O que significa, naquele momento, o medo ou o desejo de morrer?

Observamos que, além da conformidade com os significados de castigo e

punição já estudados por outros autores (Méier, 1999), foi claramente

observado que a doença também atualiza esses significados, quando, ao falar

sobre o que pensa da sua doença, o indivíduo faz uma revisão de sua vida.

Estas reminiscências passam inevitavelmente pelas culpas, atualizando,

portanto, o significado de castigo ou punição. É o que pudemos comprovar no

caso da gastrite: nosso colaborador fez uma espécie de confissão de possíveis

erros cometidos no passado, mostrando a doença como conseqüência desses

erros (Eu até hoje, me arrependo, no caso, de muita besteira que eu fiz).

É nessa confissão que está a participação do doente, entregue,

mostrando o seu escudo. Aos escutadores é dada a chance de fazer o herói

“cravar a sua espada”, trazendo para a consciência o significado que está ali

para saber. Não é só do diagnóstico que estamos falando, já que o doente

oferta ao médico a doença e o diagnóstico, como diz Balint (1988), mas do

algo além, daquilo que promove a conscientização e que pode ser incorporado

à sua personalidade.

É na revisão, ao falar para o médico, que ele se conscientiza da sua

batalha ou trajetória, de tudo que já fez na vida, dos aspectos positivos e

negativos, do que deixou de fazer, dos seus sonhos não realizados e do por

que não conseguiu realizá-los. A parada que é obrigado a fazer, em nome da

doença, é a chance de se perguntar para quê serve tudo isso e de incorporar

na consciência o novo significado que poderá mudar o sentido das coisas.


Conclusões do tipo “hoje em dia eu não durmo fora de hora”, “não uso mais

veneno”, “não bebo mais daquele jeito” ou “não arrisco tanto a vida como

antes”. Da sala de espera até o consultório do médico, os dois arquétipos

(Curador-Ferido e Herói) estão mobilizados ou constelados, prontos para

serem atualizados e assimilados pela consciência ou para voltarem às malhas

do complexo ideo-afetivo, de cujo núcleo emergiram.

Mostramos até aqui que a doença funciona como uma linguagem, mas

uma linguagem simbólica, um material simbólico. É como o conteúdo de um

sonho ou qualquer outra forma de expressão para canalizar nossa energia

vital (libidinal) de forma progressiva ou regressiva. Enquanto essa energia ou

estes símbolos estiverem presos ou associados nos complexos

inconscientes, permanecerão impedindo o curso normal de nossa libido e

estarão atuando ainda como um escudo ou defesa.

Se, por acaso, o doente está fugindo, esquivando-se, se não tem

condições de encarar seus conteúdos, é também uma espécie de escolha que

poderá ser feita. Nessa batalha, a doença poderá vencer, ou encontrar espaço

para se instalar com todo seu poder. Como foi dito, sabemos que um dos fins

que esperam o Herói é a morte. Isto faz parte de sua trajetória; só não morrem

aqueles que se eternizam, isso é, os deuses. Essa é uma ferida de Asclépio,

que herdamos enquanto humanos.

No caso do portador da gastrite, por mais que se tenha mostrado valente

como herói invencível ou imbatível (no futebol, na natação, nos esforços para

agradar o pai ou na idéia de que poderia descer da goiabeira de cabeça para

baixo, porque a brincadeira estava fácil demais), teve o devido limite. O que

queremos dizer é que algum acontecimento (lei) realmente o fez parar, seja o
tombo da goiabeira que o fez parar a escola, o pai que não permitia que ele

fosse jogador de futebol, o irmão que é visto como o preferido da mãe, ou o

medo da morte. Diante de uma simples e pequena gastrite, cada uma destas

coisas, mais a fragilidade diante da morte da avó, o coloca no seu devido lugar

de humano e falível. Agora tem sua vida limitada, não pode beber a cachaça ou

a cerveja de que gosta, comer ou dormir fora de hora, comer na beira do rio ou

galinhada e carne de porco das ceias. Definitivamente, não pode fazer o que

fazia e isto inclui "(...) sair sem rumo, me divertir com os amigos. Agora, com a

vida de casado, não posso fazer o que quero, faço sempre as mesmas

coisas(...)" (Silveira, 1997). É daí que podemos constatar sua culpa do que já

fez e de seus desejos, hoje insatisfeitos.

Ao escutarmos nossos sujeitos, ouvimos, insistentemente, que eles

querem que o médico escute e traduza a sua dor. Os médicos sabem disso,

mas a maioria apenas faz rapidamente o diagnóstico e, então, medica. Nessa

relação, vemos uma preocupação voltada apenas para remediar a situação.

Respondendo às nossas principais indagações feitas ao longo deste

trabalho de pesquisa para a dissertação de mestrado (Para quê serve a

doença?), concluímos que há um significado da doença na vida do indivíduo

quando esta se apresenta ou ocupa um lugar importante no contexto do dia-a-

dia desta pessoa, definindo estruturas e metas. Sentindo-se mal, o doente vai

em busca de ajuda de alguém que o escute e o auxilie a encontrar uma saída.

Desta forma, quando um especialista encontra o significado da doença na vida

de cada indivíduo, ela pode funcionar como um símbolo estruturante da

personalidade, definindo o sentido ou a direção da vida. A partir daí, é possível

encontrar, no discurso dos doentes, manifestações da imagem arquetípica do


Curador-Ferido, levando sempre em consideração a bipolaridade inerente ao

arquétipo que atua no eixo Ego-Self.

Levando em conta os nossos sujeitos, encontramos evidências para

crer que a doença estará sempre ligada a um complexo materno e/ou

paterno, ou, ainda, aos dois, o que podemos chamar de complexo de

Édipo. Em função disto, vimos a doença como símbolo estruturante no

processo de individuação. Em meio a esta relação, podemos identificar as

marcas típicas dos ciclos matriarcal, patriarcal e de alteridade.

Podemos, enfim, concluir que a direção conferida à vida pela doença

é dada na medida em que o significado é encontrado. Entendemos, assim,

que é para isto que serve a doença, para “vizualizarmos” o que pudermos

sobre nós mesmos (sentido da vida), suportando o quanto pudermos desta

descoberta ou visualização Algumas pessoas querem viver, então pagam

o preço da vida. Outras querem evitar a morte, então pagam o preço da

morte. A escolha é de cada um (Alvarenga,1988).

REFERÊNCIAS

Alvarenga, W., Bola de Gude, Poesias e Toques, Org. Evandro de Castro,


Nova Lima, M.G., 1988.
Ávila, L.A., Doenças do corpo e doenças da alma: investigação psicossomática
psicanalítica, São Paulo, Escuta, 1996.
Balint, M., O Médico, seu paciente e a doença, trad. Roberto Musachio, São
Paulo, Livraria Atheneu, 1988.
Debray, R., O equilíbrio psicossomático, e um estudo sobre diabéticos, trad.
José Werneck, São Paulo, Casa do Psicólogo, 1995.
Jung, C.G.,1917, Estudos De Psicologia Analítica, Obras Completas, vol. VII,
Ed. Vozes, Petrópolis, 1971.
Mcneely, D. A., Tocar - Somatoterapia e psicologia profunda, trad. Cláudio
Giordano, São Paulo, Cultrix.
Meier, C. A. Ancient incubation and modern psychotherapy, Evanston,
Northwestern University Press, 1967.
Mello Filho, J., (e colaboradores) Psicossomática hoje, Porto Alegre, Artes
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Neumann, E., História da origem da consciência, trad. Margit Martincic, São
Paulo, Cultrix, 1968.
Salles, C. A. C., A individuação, São Paulo, Imago, 1995.
Silveira, D. A., A Doença Como Símbolo De Transformação, Significados e
Sentidos da Doença na Vida do Herói Cotidiano. Dissertação de mestrado
Puc Campinas, 1997.
Whitmont, E. C., A busca do símbolo. Conceitos básicos de psicologia analítica,
trad. Eliane Fittipaldi Pereira e Kátia Maria Orberg, São Paulo, Cultrix,
1969.

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