Você está na página 1de 14

SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN PS0105 2016.

1 Véra Motta 1

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA


DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS I
CURSO DE PSICOLOGIA
DISCIPLINA: SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN
PROFESSORA: VÉRA DANTAS DE SOUZA MOTTA
SEMESTRE 2016.1

A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud: comentário

O sentido da letra
Desde sua fundação por Freud, a psicanálise enquanto teoria tem seus
pressupostos básicos fundamentados na linguagem humana, cujas leis são correlativas
às que regem o inconsciente freudiano. Com seu retorno a Freud, Jacques Lacan vem
operar uma revolução nos conceitos e postulados da teoria e prática psicanalíticas,
radicalizando, por assim dizer, o pensamento freudiano. Sua máxima, hoje tornada
quase universal, segundo a qual o inconsciente é estruturado como uma linguagem, é
por si só definidora da posição que ocupa a linguagem na psicanálise com Lacan.
No parágrafo inicial da Parte I, cujo título se anuncia acima, Lacan (1998a)
reitera sua tese: o que a experiência psicanalítica desvela, no inconsciente, é toda a
estrutura da linguagem. E o que ela encontra? A letra. Em sua definição primeira, letra é
o “suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem” (LACAN,
1998a, p. 498).
Por materialidade da letra, entende Márcio Peter Leite (1998) não no sentido
molecular da matéria, de corpo, mas no sentido de “tudo aquilo que produz efeito”.
Trata-se, para este autor, da ideia de letra como uma construção psíquica e teórica para
falar de algo que produz efeitos, mas que não é passível de ser vista. Por discurso,
adotemos a leitura de Jorge Massanet (1998), para quem o discurso localiza-se de forma
equidistante, a meio caminho entre a linguagem e a fala de Saussure. O discurso
participa, a seu ver, do caráter transindividual da língua e do sujeito intersubjetivo da
fala.
Importa considerar aqui a dupla condição para a definição proposta por Lacan:
a) que a linguagem não se confunde com as funções somáticas e psíquicas que se
produzem no sujeito falante; e b) que a linguagem, com sua estrutura, preexiste à
entrada do sujeito num dado momento de seu desenvolvimento mental.
O sujeito é assim servo da linguagem e do discurso, tendo seu lugar inscrito
desde o nascimento, sob a forma do nome próprio. Basta ver como na trajetória de um
SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN PS0105 2016.1 Véra Motta 2

indivíduo, por exemplo, a designação de seu nome traz consequências que o fazem
interrogar, na análise, a razão dessa escolha, vendo aí não um simples acaso ou
circunstância, mas sobredeterminações ou múltiplas causalidades que certamente
surpreenderiam aquele ou aquela que tramou, sem o saber, tal designação.
O conceito de letra na teoria lacaniana conhece diferentes acepções. Em “A
instância da letra...”, que se situa num período qualificado pelos comentadores da obra
de Lacan como próprio do Simbólico, pode-se definir a letra dentro da noção de cadeia
significante. Por cadeia significante, entende-se uma sequência ao infinito de tal sorte
que é necessário, para produzir uma cadeia, isolar algo que valha por uma unidade.
Assim, “anéis cujo colar se fecha no anel de um outro colar feito de anéis” (LACAN,
1998a, p. 505) são a modalidade que constitui uma cadeia significante, deduzida da
segunda propriedade do significante.
Para amparar sua definição de letra em “A instância...”, Lacan recorre às duas
dimensões apontadas por Jakobson (1995) em seu artigo de importância capital para a
reviravolta lacaniana da teoria psicanalítica: “Dois aspectos da linguagem e dois tipos
de afasia”. Trata-se da combinação e da seleção, ou, no dizer de Lacan, “duas vertentes
do efeito significante do que aqui chamamos de letra, na criação da significação”.
(1998a, p. 498).
A tese de Jakobson (1995) no artigo que mencionamos, é a de que a afasia é um
problema linguístico, retomando os pressupostos de Hughlings Jackson (1915). Em
primeiro lugar, Jakobson reconhece a regressão afásica como um espelho da aquisição
de sons da fala pela criança, ou seja, ela nos mostra o desenvolvimento de uma criança
ao inverso. Ademais, adverte que a pesquisa sobre a ordem das aquisições e das perdas
e sobre as leis gerais de implicação não pode ser limitada ao sistema fonológico, mas
deve estender-se ao sistema gramatical.
Para Jakobson (1995), os modos de arranjo do signo linguístico se repartem em
dois: a combinação e a seleção. Esses modos de arranjo estabelecem o duplo caráter da
linguagem, aspectos essenciais também na fala. A combinação pressupõe a concorrência
de entidades simultâneas e a concatenação de entidades sucessivas, sob os quais os
constituintes linguísticos se combinam em unidades cada vez mais complexas, do nível
fônico ao sintático. Isso significa que qualquer unidade linguística serve, ao mesmo
tempo, de contexto para unidades mais simples e/ou encontra seu próprio contexto em
uma unidade linguística mais complexa. Combinação e contextura são as duas faces de
uma mesma operação. A exemplo, podemos dizer que uma unidade linguística como a
SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN PS0105 2016.1 Véra Motta 3

sílaba [ba] pode servir de contexto para uma unidade mais simples, como o fonema [b]
e encontra por sua vez seu contexto em uma unidade mais complexa, como a palavra
bala; esta, por sua vez, inclui-se numa unidade de complexidade maior, como a frase A
bala do garoto é de hortelã ou ainda em A bala perdida atingiu o garoto.
A seleção, por sua vez, implica a possibilidade de um termo substituir outro,
equivalente ao primeiro num aspecto e diferente noutro. A exemplo, podemos retomar a
sílaba [ba] do primeiro modo de arranjo, e substituir o fonema [b] pelo fonema [p], uma
consoante igualmente oclusiva, bilabial, mas diferente de [b] apenas pelo traço de
sonoridade, presente neste último e ausente em [p].
Seleção e substituição, como combinação e contextura, são faces de uma mesma
operação. Os constituintes de qualquer mensagem estão necessariamente ligados ao
código por uma relação interna e à mensagem por uma relação externa. A linguagem,
em seus diferentes aspectos, utiliza os dois modos de relação.
O exemplo que trazemos para ilustrar os dois modos de arranjo do signo é
retirado do próprio Jakobson (1995). Trata-se do diálogo entre Alice e o Gato de
Cheshire (capítulo 6, “Porco e pimenta”) da obra de Lewis Carroll (1980), Aventuras de
Alice no país das maravilhas. Na versão que utilizamos da obra, a fala do Gato é a
seguinte: “–Você disse ‘leitão’ ou ‘letão’? perguntou o Gato. – Eu disse ‘leitão’,
respondeu Alice”. (CARROLL, 1980, p. 83) Na versão dos tradutores do artigo de
Jakobson, temos: “‘Você disse porco ou porto?’ perguntou o Gato. ‘Eu disse porco,
respondeu Alice’”.(JAKOBSON, (1995), p. 37)
Dentro desses enunciados, o destinatário felino esforça-se por captar uma
escolha linguística feita pelo remetente. No primeiro caso, leitão/letão, a diferença
repousa entre, de um lado, uma vogal oral média, anterior, fechada, seguida de uma
semivogal linguopalatal, e, de outro, apenas uma vogal oral média, anterior, fechada. Na
segunda versão, porco/porto, a diferença reside entre uma consoante oclusiva velar
surda e uma consoante oclusiva linguodental surda. No último exemplo, graças apenas a
um traço distintivo, velar/linguodental, pôde Alice escolher (seleção) um dos dois
termos opostos e, no mesmo ato de fala, ela combinou (combinação) essa solução com
alguns outros traços simultâneos: /k/ é surdo, em oposição a /g/, sonoro; oclusivo,
distinto de /x/, fricativa velar surda. Desse modo, todos esses atributos foram
selecionados e combinados em um feixe de traços distintivos no que se chama um
fonema. O fonema /k/ em porco é precedido pelos fonemas /p/ /o/ /x/ e seguido por /o/,
sendo todos esses fonemas conjuntos de traços distintivos produzidos simultaneamente.
SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN PS0105 2016.1 Véra Motta 4

Os constituintes de um contexto ou do modo de arranjo da combinação têm um


estatuto de contiguidade, ao passo que num grupo de substituição, próprio do modo de
arranjo da seleção, os signos se ligam entre si por diferentes graus de similaridade.
Contiguidade e similaridade são os dois grandes eixos da linguagem, que se repartem
em dois polos semânticos e que encontram sua expressão mais condensada na
metonímia e na metáfora, respectivamente. No artigo sobre afasia, Jakobson (1995)
encontra no distúrbio de similaridade e no distúrbio de contiguidade modos de reunir os
principais distúrbios afásicos, até então submetidos a princípios classificatórios pouco
consistentes.
O trabalho de Jakobson (1995) retoma as primeiras definições de Ferdinand de
Saussure (1979, p.95), mais precisamente o eixo das cartesianas, das simultaneidades e
das sucessões.
C

A B

Neste esquema, o eixo das simultaneidades é representado pelo vetor AB,


enquanto o eixo das sucessões se passa no vetor CD. O eixo das simultaneidades
concerne às relações entre coisas coexistentes, de onde o tempo se exclui, enquanto o
eixo das sucessões considera uma coisa a cada vez, mas aí se situam todas as coisas do
primeiro vetor, com suas respectivas transformações. Para Saussure (1979), interessado
em estabelecer o estudo dos fatos sincrônicos da língua, o eixo das simultaneidades, ou
das combinações, apoia-se na extensão, e seus constituintes podem ser chamados de
sintagmas. Daí que o vetor AB neste esquema bem pode ser identificado ao eixo
sintagmático, ou eixo em que os termos se combinam numa cadeia consecutiva.
O eixo das sucessões, ou eixo das palavras que oferecem algo em comum na
memória e formam assim grupos, dentro dos quais imperam relações de associação as
SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN PS0105 2016.1 Véra Motta 5

mais diversas, constitui o eixo que veio a ser designado posteriormente de eixo do
paradigma, embora Saussure (1979) não lhe tenha emprestado tal designação.
Relações sintagmáticas e relações associativas ou paradigmáticas, para Saussure
(1979) definem-se segundo dois aspectos: “A relação sintagmática existe in praesentia;
repousa em dois ou mais termos igualmente presentes numa série efetiva. Ao contrário,
a relação associativa une termos in absentia numa série mnemônica virtual”. (p.143).
Voltemos ao texto lacaniano. A reviravolta teórica procedida por Jacques Lacan,
encontrando suporte na teoria linguística, não se contenta em reconstituir os passos de
Saussure (1979) e Jakobson (1995), mas, ao contrário, estende ao máximo os limites da
teoria, numa formalização cada vez mais rigorosa. Neste artigo, Lacan (1998a, p. 500)
aponta o algoritmo da ciência linguística:
S
s
e “que se lê significante sobre significado, correspondendo ‘o sobre’ à barra que separa
as duas etapas”. (LACAN, 1998a, p. 500)
O algoritmo é, na ciência matemática, um processo de cálculo ou de resolução
de um grupo de problemas semelhantes, em que se estipulam, com generalidade e sem
restrições, regras formais para a obtenção do resultado ou da solução do problema. O
recurso à formalização matemática em Lacan aparece desde cedo, e vai encontrar sua
expressão máxima nos matemas. De acordo com Geneviève Morel (1989), a pretensão
da psicanálise com relação ao matema se justifica por uma analogia, não por uma
identidade entre a matemática e o discurso analítico: as duas não operam senão pela
linguagem, e fabricam um saber que dá acesso ao real.
Como vemos, o algoritmo da ciência linguística recebe de Lacan tratamento
diverso da concepção do mestre genebrino. Em Saussure (1979, p.80), o esquema do
signo define as relações associativas entre seus dois elementos, uma relação íntima e
estreita, em que um reclama a presença do outro, de tal modo que um sem o outro não
pressupõe a existência sígnica.
Em Lacan, o algoritmo define uma prevalência, ou seja, uma posição dominante
do significante sobre o significado, de maneira que a barra entre essas duas ordens de
elementos tem uma função: a de resistir à significação. (LACAN, 1998a, p. 500).
Roland Barthes, em Elementos de semiologia (1979), analisa o tratamento
lacaniano do esquema do signo em Saussure, afirmando que o grafismo utilizado por
Lacan é espacializado, diferente da representação saussuriana em dois pontos: a) o
SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN PS0105 2016.1 Véra Motta 6

significante é global, constituído por uma cadeia de níveis múltiplos (cadeia


metafórica): significante e significado estão numa ligação flutuante e só coincidem por
certos pontos de ancoragem; b) a barra de separação entre o significante S e o
significado s tem um valor próprio: representa o recalcamento do significado.
Jorge Massanet (1998), em comentário sobre “A instância...” assinala, por sua
vez, a respeito do signo saussuriano, que Lacan realiza três operações: a) retira a elipse
que em Saussure (1979, p.80) indicava a unidade estrutural do signo; b) rompe o
paralelismo entre os dois termos e, no lugar do significante, põe a letra S maiúscula e,
no do significado, s minúscula. É um algoritmo, ou seja, procedimento de cálculo
algébrico, notação diferencial ou simplesmente conceito como abstração; c) acentua a
barra, que separa as duas ordens distintas. Com isso, adverte o autor, somente se alcança
a autonomia do significante a depender da resistência exercida pela barra.

Conceito

Imagem
acústica

Daí Lacan afirmar: “Por essa via, as coisas não podem fazer mais que
demonstrar que nenhuma significação se sustenta a não ser pela remissão a uma outra
significação”. (1998a, p. 501). Neste sentido, considera ilusória a pretensão de que o
significante possa atender à função de representar o significado, ou seja, de que o
significante responda de algum modo por uma significação qualquer.
Para melhor ilustrar sua posição, Lacan recorre ao exemplo saussuriano da
representação do signo, em que, na parte superior, aparece o desenho de uma árvore, e,
no piso inferior, a palavra latina arbor (árvore, em português). (SAUSSURE, 1979, p.
81)

Arbor
SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN PS0105 2016.1 Véra Motta 7

Observe-se que, no texto de “A instância...” (LACAN, 1998a, p. 502), este


desenho aparece com as posições invertidas, de tal modo que o significante “árvore”
indicado por Saussure aparece no piso superior do esquema, e o desenho da árvore no
piso inferior. Isso poderia parecer sem importância, mas, como vimos anteriormente, a
inversão do esquema saussuriano por Lacan tem uma direção e um sentido: o de
estabelecer a primazia do significante sobre o significado, o que terá consequências na
teoria psicanalítica.
Deve-se também ressaltar que a barra, elemento funcional do algoritmo
lacaniano e tomada de empréstimo ao esquema de Saussure, encontra ressonância com o
significante árvore: arbre e barre, em francês, são anagramáticos, tal como assinala
Lacan mais adiante: “Assim é que, retomando nossa palavra arbre, não mais em seu
isolamento nominal, mas ao término de uma dessas pontuações, veremos que não é
apenas pelo fato de a palavra barre ser seu anagrama que ela transpõe a barra do
algoritmo”. (LACAN, 1998a, p. 507).
Numa outra passagem de conteúdo poético, Lacan irá encontrar dois outros
signos, carvalho e plátano (em francês, respectivamente, robre e platane) e, tal como
fizera Saussure, realiza sua arte combinatória, seu jogo de linguagem, apontando, no
trabalho de decomposição sígnica, a presença das vogais e consoantes comuns ao signo
árvore (em francês, arbre). Igualmente, comete poesia ao retomar o símbolo Y, a
mesma runa que Saussure apontara nos seus estudos (Saussure apud Starobinski, 1974,
p. 13), para aproximá-la da árvore mítica, árvore vital do cerebelo, de Saturno ou de
Diana. (LACAN, 1998a, p. 507).
Lacan considera a ilustração saussuriana da árvore “incorreta”, propondo outra
em seu lugar.

HOMENS MULHERES
SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN PS0105 2016.1 Véra Motta 8

O exemplo que traz é valioso, porquanto oferece ao sujeito a possibilidade de


uma escolha, que irá decidir do seu destino, de sua sexualidade, de sua relação com a
vida e a morte.
Um trem chega à estação. Numa cabine, um menino e uma menina,
irmão e irmã, estão sentados um em frente ao outro, do lado em que a
vidraça dando para o exterior descortina a visão das construções da
plataforma ao longo da qual o trem parou: “Olha! diz o irmão,
chegamos a Mulheres!”; ‘Imbecil! responde a irmã, não está vendo
que nós estamos em Homens?’ (LACAN, 1998a, p. 503)

Lacan estabelece, a partir do singelo exemplo, sua tese: o significante entra de


fato no significado, sob uma forma que coloca a questão de seu lugar na realidade,
como se pode depreender dos seguintes elementos:
 Os significantes que se apresentam são universais: Homens, Mulheres;
 Esses termos designam coleções de indivíduos;
 Para as crianças do exemplo, esses significantes não comportam ideias
pré-existentes às palavras, de tal modo que a forma pela qual o
significante se materializa na letra (na tabuleta) faz com que ele penetre
no significado. É a letra, portanto, que decide do sentido;
 A divisão que se estabelece entre esses dois universais, Homens e
Mulheres, não deve ser tomada como uma divisão de sentido, mas uma
divisão estabelecida pela ordem significante;
 A escolha do menino e da menina é presidida não por uma ordem de
sentido, mas por uma posição do sujeito, ou seja, o que é determinante é
a relação do sujeito com a letra, vale dizer, em relação à escrita do
inconsciente. Neste sentido, Homens e Mulheres, mais que propriamente
escolhas subjetivas, são lugares em que o olhar do sujeito, pela posição
que cada um ocupa durante seu percurso, encontra ancoragem,
equivalendo a estações percorridas.
 A visão da letra Homens do lado da menina permite supor que este
significante, a partir daí, carregue-se de sentido, tal como, do lado do
menino, a visão do significante Mulheres o fará;
 A escolha dos sujeitos, escolha significante, ilustra a relação do sujeito
humano com o Outro sexo, questão essencial na experiência analítica.
Retomemos a noção de cadeia significante em Lacan, assinalada anteriormente a
propósito da noção de letra: “anéis cujo colar se fecha no anel de um outro colar feito de
SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN PS0105 2016.1 Véra Motta 9

anéis”. (LACAN, 1998, p. 505). Trata-se, em Saussure, do duplo sistema em jogo no


discurso, o das solidariedades sintagmáticas e o das séries associativas (mais tarde,
conhecidas como paradigmáticas), observações contidas no capítulo VI do Curso...
(SAUSSURE, 1979, p. 148-155)
Ora, a cadeia significante, com seu duplo sistema em jogo, conduz Lacan (1999)
a uma topologia, que irá se desenhar no seu ensino no mesmo ano de realização da
conferência sobre “A instância da letra...”, quando da apresentação do Seminário sobre
as formações do inconsciente, e cuja formalização definitiva encontra-se em “Subversão
do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, (LACAN, 1998b)
comunicação feita no congresso em Royaumont, em setembro de 1960. Trata-se do
‘grafo do desejo’. Para representar a cadeia significante, Lacan (1999) inicia sua marcha
em direção à formalização matemática com um esquema a princípio bem simples, mas
que irá resultar na complexidade final do grafo do desejo. Inicialmente, o esquema se
desenha como um traço que reúne os dois elementos do algoritmo lacaniano: S/s.

S ...............
s................ (LACAN, Anexo ao Seminário livro 5, 1999, p.527)

Uma torção na cadeia significante produz o seguinte movimento:

S s (id.ibid.)

Para Lacan (1999, p.527), a partir do momento em que há cadeia significante,


existe frase, e ela só se realiza quando algo se fecha no nível do significante, ou seja,
quando tudo aquilo foi enunciado de significante, em seu lugar, entre o começo e a
pontuação. Decorre daí uma operação de retroação do significante, fechando o sentido.

S S’

S  (LACAN, Subversão do sujeito, 1998b, p. 819)


SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN PS0105 2016.1 Véra Motta 10

Nesse esquema articula-se para Lacan (1998b) o que ele designa de ponto de
basta, pelo qual o significante detém o deslizamento da significação, de outro modo
indefinido. Desse ponto de basta, assinala o autor, encontra-se a função diacrônica na
frase, “na medida em que ela só fecha sua significação com seu último termo, sendo
cada termo antecipado na construção dos outros e, inversamente, selando-lhes o sentido
por seu efeito retroativo”. (LACAN, 1998b, p. 820). Daí Lacan afirmar, em “A
instância...”, “que o significante, por sua natureza, sempre se antecipa ao sentido,
desdobrando como que adiante dele sua dimensão”. (1998a, p. 505)
Dois pontos de cruzamento nesse primeiro grafo interessam-nos aqui: um,
conotado por A, é o lugar do tesouro do significante, o que Lacan (1998b) faz não
equivaler ao código, na medida em que, para ele, “o significante só se constitui por uma
reunião sincrônica e enumerável, na qual qualquer um só se sustenta pelo princípio de
sua oposição a cada um dos demais” (LACAN, 1998b, p. 820). O outro ponto, ele o
designa por s (A), significado do Outro, equivalente à pontuação, ponto em que a
significação constitui-se como produto acabado.
Cumpre assinalar na teoria lacaniana a dissimetria entre A e s (A): o primeiro,
um local, mais lugar do que espaço; o outro, um momento, mais escansão do que
duração. “Ambos participam da oferta ao significante que o furo no real constitui, um
como um oco de receptação, outro como brocagem para a saída” (LACAN, 1998b, p.
822). Em A, Lacan institui o lugar do Outro, sítio prévio do puro sujeito do significante,
que ocupa a posição mestra de dominação.

S s(A) A
S’

S ∆

O esquema do ponto de basta foi apresentado por Lacan no seu seminário sobre
as psicoses, na aula de 6 de junho de 1956, quase um ano antes da escrita do artigo “A
instância da letra...”. Para ilustrá-lo, Lacan (1985, p.295) recorre ao esquema de
Saussure da língua, em que este faz representar a língua em seu conjunto, como uma
SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN PS0105 2016.1 Véra Motta 11

série de subdivisões contíguas marcadas simultaneamente sobre o plano indefinido das


ideias confusas (A) e sobre o plano não menos indeterminado dos sons (B). Este
esquema evoca o ar em contato com a superfície da água, modulando-a em ondas, que
por sua vez dão ideia de união, de acoplamento entre o pensamento e a matéria fônica,
duas massas amorfas. (SAUSSURE, O valor linguístico, 1979, p.130-131)

Para exemplificar os fenômenos decorrentes da retroação do significante, Lacan


(1998a) recorre aos enunciados produzidos por Schreber em seu delírio, objeto de uma
extensa análise por Sigmund Freud em 1911, em artigo de fôlego intitulado “Notas
psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia”. Trata-se, não de
um caso clínico sob a responsabilidade de Freud, propriamente, mas de uma
investigação psicanalítica a partir do relato feito pelo autor de Memórias de um doente
dos nervos, Daniel Paul Schreber, e publicado em 1903.

Metonímia e metáfora
Quanto às duas figuras de estilo indicadas por Jakobson (1995) como modos de
arranjo do signo linguístico, e apontadas por Lacan (1998a) para representar as
modalidades de funcionamento do aparelho linguageiro que estrutura o inconsciente,
vejamos a seguinte passagem:
O que essa estrutura da cadeia significante revela é a possibilidade que
eu tenho, justamente na medida em que sua língua me é comum com
outros sujeitos, isto é, em que essa língua existe, de me servir dela
para expressar algo completamente diferente do que ela diz. Função
mais digna de ser enfatizada na fala que a de disfarçar o pensamento
(quase sempre indefinível) do sujeito: a saber, a de indicar o lugar
desse sujeito na busca da verdade. (LACAN, 1998a, p. 508, grifo do
autor)
Para Lacan (1998a), a função propriamente significante que se desenha na
linguagem tem um nome, que ele encontra entre as figuras de estilo, ou tropos: é a
metonímia, e o exemplo que dá é retirado de Quintiliano: “trinta velas”, metonímia para
“barco”. (LACAN, 1998a, p. 509). Sua explicação, logo a seguir, dá indicações seguras
SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN PS0105 2016.1 Véra Motta 12

de que se trata, em realidade, de uma sinédoque: “Com efeito, a parte tomada pelo todo,
dizíamos a nós mesmos, se a coisa é para ser tomada no real, não nos deixa uma grande
ideia do que convém entender sobre a importância da frota que, no entanto, essas trinta
velas supostamente aquilatam”. (LACAN, 1998a, p. 509)
Tomemos o trabalho de Sigmund Freud (1897, p. 361), mais exatamente um
exemplo de sonho, referido por este na Carta 73 a Wilhelm Fliess, datada de 31 de
outubro de 1897, em que Freud faz referência a um sonho de Ana, sua filha de um ano e
meio à época, como um sonho de realização de desejo: “Molangos, com molangos,
omelete, pudim”. O cardápio recitado no sono tem a ver com a abstinência forçada da
criança, que havia vomitado em razão de ter comido morangos na véspera. Trata-se de
recurso metonímico.
Em “A instância...”, vemos aparecer o primeiro exemplo de metáfora: “Seu feixe
não era nem avaro nem odiento...” (LACAN, 1998a, p. 510), em que se verifica a
presença da metáfora a partir da atribuição de qualidades (avaro e odiento) a um mero
feixe, que outro não é senão Booz, personagem de Victor Hugo, de onde foi extraído o
verso do poema. Se feixe remete a Booz, ele o substitui na cadeia significante, ou seja,
ele equivale, no enunciado, ao outro. Vejamos a definição de metáfora de Lacan e sua
aplicação ao exemplo.
A centelha criadora da metáfora não brota da presentificação de duas
imagens, isto é, de dois significantes igualmente atualizados. Ela brota
entre dois significantes dos quais um substituiu o outro, assumindo
seu lugar na cadeia significante, enquanto o significante oculto
permanece presente em sua conexão (metonímica) com o resto da
cadeia (LACAN, 1998a, p. 510).
Se a metáfora brota, por assim dizer, entre dois significantes, feixe e Booz, dos
quais um substitui o outro, o significante oculto – Booz – permanece presente pela sua
conexão metonímica com o resto da cadeia – seu feixe. Uma palavra por outra, eis a
fórmula da metáfora para Lacan: "Se o feixe remete a Booz, como efetivamente faz, é
por substituí-lo na cadeia significante, no exato lugar que o esperava, por ter-se elevado
em um grau mediante a remoção do entulho da avareza e do ódio. (LACAN, 1998a, p.
511).
Nessa operação, diz Lacan (1998a), há uma espécie de usurpação, em que o feixe
usurpa, por assim dizer, as qualidades que seriam atribuíveis a Booz. Adiante, declara:
Portanto, é entre o significante do nome próprio de um homem e
aquele que o abole metaforicamente que se produz a centelha poética,
ainda mais eficaz aqui, para realizar a significação da paternidade, por
reproduzir o evento mítico em que Freud reconstruiu a trajetória, no
inconsciente de todo homem, do mistério paterno (LACAN, 1998a, p.
SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN PS0105 2016.1 Véra Motta 13

511).
Outro exemplo de metáfora utilizado por Lacan no mesmo artigo é “O amor é
um seixo rindo ao sol” (LACAN, 1998a, p. 512), em que a metáfora se coloca no ponto
exato em que o sentido se produz no que Lacan define como não sentido, não senso,
cujo exemplo exemplar é o dito do espírito, ou chiste, ao qual Freud dedicou uma
alentada análise 1. O esclarecimento dessa questão nos remete ao Seminário de Lacan
(1985) sobre as psicoses, mais exatamente às aulas de 2 e 9 de maio de 1956, que
constituem, respectivamente, os capítulos “Metáfora e Metonímia (I): ‘Sa gerbe n'était
point avare, ni haineuse” e “Metáfora e Metonímia (II): articulação significante e
transferência de significado”.
Nessas aulas, Lacan (1985) irá analisar, entre outros aspectos, a estrutura de
discurso de um psicótico, a partir de exemplos coligidos do escrito produzido por
Daniel Paul Schreber, em que frases como “Agora é o momento que... ele seja
mortificado!” (LACAN, 1985, p. 246) são interrompidas, para que as vozes d’almas as
completem.
Segundo Lacan (1985), a voz se detém no ponto em que obriga o sujeito a
proferir a significação de que se trata na frase, ou seja, as vozes forçam, por assim dizer,
Schreber a enunciar a frase que atenta contra ele próprio. O sujeito, desse modo, no
discurso da alucinação é, ao mesmo tempo, agente e paciente, pois o delírio é tanto mais
sofrido por ele quanto menos ele o organiza.

1
Ver FREUD (1905). Os Chistes e Sua Relação com o Inconsciente.
SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN PS0105 2016.1 Véra Motta 14

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. Tradução de Izidoro Blikstein. São
Paulo: Cultrix, 1979.
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice. Tradução e organização de Sebastião Uchoa
Leite. São Paulo: Summus, 1980.
FREUD, Sigmund (1897). Carta 73. Extratos dos documentos dirigidos a Fliess (1950
[1892-1899]). In: _____. Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos (1886-
1899). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977, v. I, p. 360-361.
_____ (1905). Os chistes e sua relação com o inconsciente. Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1977, v. VIII.
_____ (1911). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de
paranoia (dementia paranoides). In: _____. O caso de Schreber, artigos sobre técnica
e outros trabalhos (1911-1913). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XII.
JAKOBSON, Roman. Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. In: _____.
Linguística e Comunicação. Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São
Paulo: Cultrix, 1995, p. 34-62.
LACAN, Jacques (1985). O seminário livro 3; as psicoses. Tradução de Aluísio
Menezes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
_____ (1998a). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: _____.
Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998a, p.496-533.
_____ (1998b). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In:
_____. Escritos, op. cit., p.807-842.
_____ (1999). O seminário livro 5; as formações do inconsciente. Tradução de Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
LEITE, Márcio Peter de Souza (1998). A última instância da letra. Disponível em
<www.marciopeter.com.br> Acesso em 16/04/2009.
MASSANET, Jorge. Una presentación de Instancia de la letra de Jacques Lacan.
Mediodicho, Publicación mensual de la E.O.L. Escuela de la Orientación Lacaniana,
Sección Córdoba, año II, no. 10, abril de 1998, p. 3-7.
MOREL, Geneviève. Escrituras do matema. La lettre mensuelle, 80, Paris, França,
jun/1989, p.19-21.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. Organizado por Charles Bally
e Albert Sechehaye. 9 ed. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro
Blikstein. São Paulo: Cultrix, [1979].
STAROBINSKI, Jean. As palavras sob as palavras; os anagramas de Ferdinand de
Saussure. São Paulo: Perspectiva, 1974.

Você também pode gostar