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RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE PALAVRAS

Relações de Sentido Entre Palavras

A linguística da chamada linha "formalista" submeteu o seu objeto de estudo a um processo de ideali-
zação que o retirou de qualquer contexto de uso, o homogeneizou, o regularizou e o sistematizou
dentro de moldes aceitáveis de cientificidade (Halliday,1985). Isso significou, segundo Sampson
(1980), que os estudos da linguagem passaram a abordar o seu objeto como uma "espécie de enti-
dade que pudesse ser descrita objetivamente da mesma forma que os outros elementos do mundo
natural" (:17).

O estudo do significado, entretanto, não parecia se adequar aos moldes formalistas da linguística es-
truturalista. Talvez por essa razão, a linguística dita "dura" tenha excluído a semântica justamente
pela natureza multidimensional e plural de seu objeto: o significado.

As diversas concepções do que seria "significado" parecem apontar para a dificuldade de se definir e
de se investigar sistematicamente um objeto dessa natureza. Algumas dessas concepções tratam o
significado como "unidade cultural" (Eco, 1974), "representação mental" (Jackendoff, 1992), "invari-
ante semântico" (Jackobson, 1988), ou ainda, um "conjunto determinado de interpretações de um
símbolo" (Sperber, 1974).

O clássico estudo de Ogden e Richards (1923,1985) identifica 16 diferentes "significados para signifi-
cados". Essa pluralidade significativa fez, e ainda faz, com que o significado represente "uma palavra
suja para os linguistas" (Ullmann, 1987: 148), como também uma área bastante negligenciada pelos
estudos linguísticos. Como coloca Jackobson (1988:33):

"Os linguistas fizeram o impossível para excluir a significação e todo recurso à significação, da lin-
guística. Dessarte o campo da significação permanece uma terra de ninguém. Esse jogo de esconde-
esconde deve terminar.

Por anos e décadas temos lutado no sentido de anexar os sons da fala à fonologia. Devemos agora
abrir uma segunda frente: estamos diante da tarefa de incorporar as significações linguísticas à ciên-
cia da linguagem".

A semântica "incorporada à ciência da linguagem" ressurge, assim, dentro dos moldes dessa mesma
ciência. Para isso, a noção de significado só pode ser introduzida na ciência "após ter sido suficiente-
mente circunscrita" (Sperber, ibid).

Enquanto o estruturalismo buscava a identificação de regularidades em um objeto descontextualizado


no âmbito da sintaxe, a semântica colocava o seu objeto em uma dimensão também bastante formal,
criando assim o que Marques (1990) chama de "semântica abstrato-conceitual". Nesse paradigma,
podemos identificar a análise componencial (ver, por exemplo, Pottier, 1978 e Bendix, 1966), onde os
componentes semânticos da palavra são investigados, a análise da "representação mental" do con-
ceito (Jackendoff, 1982) e o estudo das relações de sentido entre palavras dentro de um campo se-
mântico.

Em todos esses casos, parte-se do pressuposto da possibilidade de um "núcleo significativo" inerente


ao signo. Em outras palavras, para usar o conceito da metáfora do canalintroduzido por Reddy
(1990), o signo linguístico como elemento denotativo seria uma espécie de "receptáculo" de um ou
mais significados, dependendo do grau de polissemia da palavra.

Assim, a palavra, em última análise, conteria um "significado" (um conteúdo) que seria compartilhado
pelo léxico mental dos falantes de uma língua. Caberia ao semanticista, dentro de um recorte compo-
nencial, por exemplo, identificar as marcas específicas desse núcleo como também os seus traços
semânticos mais característicos que o distinguiriam de um outro similar.

O objeto de estudos linguísticos, no entanto, tem sido, nas últimas décadas, re-inserido no que pode-
mos chamar de "dimensão contextual". A sociolinguística, a linguística textual, a gramática funcional,
a teoria da enunciação e as diversas tendências da análise de discurso, por exemplo, ampliaram esse
objeto, introduzindo diferentes aspectos do "contexto" em suas investigações. Apesar desses aspec-
tos serem de naturezas diversas, e caracterizarem também diferentes dimensões contextuais, eles

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têm em comum o fato de não pressuporem uma literalidade inerente à palavra, irem além da frase en-
quanto unidade de análise linguística, e levarem em consideração a natureza dinâmica da linguagem.
A linguística textual de Halliday, por exemplo, estuda os aspectos linguísticos que estabelecem a coe-
são textual. O objeto, no caso o texto definido como "co-texto", ainda pode ser considerado bastante
formal, já que Halliday opta por uma abordagem que exclui os aspectos "exofóricos" do texto (o que
não é marcado linguisticamente no texto, isto é, o que estaria na dimensão do contexto não verbal e
não do co-texto).

Mesmo assim, a frase, a unidade primordial da sintaxe, não está mais isolada de um contexto de sig-
nificação. O texto em si forneceria vários elementos para uma análise linguística que pudesse levar
em conta a produção de sentidos através de relações ou elos de coesão.

Dentro dessa perspectiva, o objetivo deste trabalho é propor uma possível interface entre a semântica
e a linguística textual a partir da relação entre dois de seus principais conceitos, respectivamente: a
sinonímia, baseado no significado denotativo, e a referência, que define e é definida pelo significado
textual. Serão feitas também considerações acerca da função expressiva da referência, normalmente
vista a partir de sua função referencial no âmbito do texto. Uma análise sucinta de exemplos retirados
de um texto servirá de ilustração para as questões a serem aqui tratadas.

A Sinonímia

A sinonímia é um dos conceitos mais tradicionais e conhecidos da semântica. Parte até mesmo da
metalinguagem popular, a sinonímia é também bastante explorada como recurso pedagógico para a
expansão de vocabulário. A artificialidade e a pouca eficácia desse recurso já foram apontadas por
linguistas e educadores (Hatch e Brown,1996).

Mesmo assim, a sinonímia ainda representa um conceito recorrente nos estudos semânticos, além de
ser essencial no âmbito da lexicografia, onde palavras sinônimas (ou hiperônimas) são usadas em
definições de dicionários.

Há também, no discurso metalinguístico, as referências explícitas a possíveis sinônimos de um termo


e até mesmo dicionários de sinônimos. Neste trabalho pretende-se discutir como esse conceito pode
iluminar alguns aspectos da questão da referência na coesão textual, mostrando-se assim uma possí-
vel interseção entre diferentes recortes analíticos: um mais, o outro menos contextualizado.

Segundo Lyons (1995) e Hatch e Brown, podemos dizer que duas ou mais expressões são sinônimas
se compartilham o mesmo significado, isto é, se tiverem não apenas semelhança, mas total identi-
dade de significado (:60). No entanto, como propõe Lyons, a sinonímia absoluta teria que satisfazer
as seguintes condições:

a) todos os significados das expressões envolvidas teriam que ser idênticos.

b) as expressões teriam que ser sinônimas em todos os contextos, e

c) teriam que ser semanticamente equivalentes em todas as dimensões do significado (descritivo e


não-descritivo) (:61).

Veremos mais abaixo a distinção entre esses dois últimos conceitos. No momento, é importante notar
que essas condições limitam bastante a possibilidade de sinonímia absoluta. Para Lyons, a maioria
dos exemplos de sinonímia apresentados em dicionários, especializados ou não, tratam de casos do
que ele chama de "quase-sinônimos", ou "sinônimos parciais", isto é, expressões que têm significa-
dos similares, porém não idênticos. Além disso, variáveis colocacionais, regionais, estilísticas, emoci-
onais, ou até mesmo gramaticais praticamente impossibilitam a total identidade entre os termos em
questão.

Uma outra definição de sinonímia, dentro da teoria de campos semânticos, seria a total compatibili-
dade de traços semânticos característicos de dois termos, o que envolveria, segundo Lehrer (1974),
"uma implicação bilateral" ou ainda a "propriedade desses termos de poderem ser substituídos um
pelo outro sem prejuízo do que se pretende comunicar" (Câmara, 1979: 222). Mais uma vez, estabe-
lece-se condições que praticamente anulam a possibilidade de uma sinonímia total. Afinal, poder-se-

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ia perguntar, a sinonímia é uma condição relativizável, um fenômeno que pode ter maior ou menor
intensidade? Há termos mais ou menos sinônimos em relações a outros, ou apenas mais ou menos
semelhantes? Expressões são sinônimas ou não, ou podem ser apenas "um pouco sinônimas", ou
"mais ou menos" sinônimas, como propõem Hatch e Brown (1995)?

Essas questões parecem pertinentes se formos pensar a sinonímia como um construto a ser legiti-
mado apenas dentro de uma perspectiva linguística bastante formal que exclua aspectos relativos ao
contexto e ao uso da linguagem. Isto é, a própria noção de sinonímia implicaria a descontextualização
do objeto linguístico, uma vez que essa relação de significado seria estabelecida a partir de um
campo semântico abstrato e teoricamente concebido.

No entanto, quando a questão se volta para a identidade de referência no discurso, isto é, a lingua-
gem em uso, a noção de sinonímia, como a de outras relações de campos semânticos, perde o seu
principal suporte conceitual: a abstração e, consequentemente, a invariância ou estabilidade do sen-
tido.

Como a linguística, a semântica ampliou o nível de contextualização do seu objeto de estudo a partir
da inclusão de aspectos pragmáticos e situacionais, antes não levados em consideração. Assim, não
é incomum falar-se hoje de uma "semântica discursiva". Nessa perspectiva, como se situaria uma no-
ção abstrata como a sinonímia, e que relação teria com noções discursivas como "referência" em
uma linguística textual?

O Léxico no Contexto Linguístico

Como vimos acima, a contextualização dos estudos da linguagem pode ser evidenciada através das
novas tendências no campo da pragmática e nas diversas linhas da análise de discurso. No caso do
léxico, podemos dizer que esse tornou-se essencial para a caracterização de gêneros linguísticos
(genres), atos de fala, marcadores do discurso e outras unidades relativas à linguagem em uso.

No entanto a relação entre itens lexicais no contexto do texto (co-texto) foi conceituada mais sistema-
ticamente por Halliday e Hasan (1976), Hasan (1985) e Hoey (1990) a partir da noção de coesão lexi-
cal.

Em primeiro lugar, parte-se do pressuposto de que o significado do texto como um todo só pode ser
estabelecido através de relações de natureza semântica a serem criadas a partir de elementos que
co-ocorram no próprio texto. Dessa forma, não haveria significado nas proposições independente-
mente do contexto/co-texto onde essas se inseririam.

A rede lexical de um texto formaria o seu universo semântico, e relações de significado entre itens só
poderiam ser identificadas como tal a partir desse universo. No entanto, sabemos que, em última aná-
lise, o significado de qualquer prática discursiva ultrapassa as fronteiras do texto, mesmo sendo esse
concebido como uma unidade dinâmica de sentidos inter-sentencial: há inúmeros fatores extra co-
textuais, isto é, do contexto não verbal, que determinam a significação. Halliday denomina essa di-
mensão não co-textual de contexto exofórico (conhecimento do mundo, informação compartilhada,
etc.), diferenciando-a docontexto endofórico, que seria o texto verbal propriamente dito.

Essa conceituação de contexto exofórico é muito geral e, portanto, pouco esclarecedora, uma vez
que parece se referir a tudo aquilo que está fora do texto e que, de alguma forma, afeta a linguagem.
A natureza desse contexto extra-linguístico tem sido bastante estudada, e hoje já podemos determi-
nar com mais clareza pelo menos dois de seus planos :

a) Contexto imediato da situação de fala (contexto micro-situacional): aspectos da situação de enunci-


ação: participantes, canal, força ilocucionária do discurso, gênero discursivo, etc. Ou, como resume
Lyons (1995:413), "a situação espaço-temporal que inclui o falante, o ouvinte, as ações que esses
estão desempenhando, e os vários acontecimentos e objetos presentes".

b) Contexto macro-situacional: conhecimento de mundo em geral, incluindo o da língua, e do tópico


específico do texto (parte dos chamados "schemata"), conhecimento acumulado do que foi dito anteri-
ormente, historicidade da linguagem e sua relação com a cultura, ideologia, crenças e valores presen-
tes na comunidade de fala à qual os participantes pertencem (Toolan,1996)

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Como veremos a seguir, o contexto exofórico não pode ser desvinculado da significação textual.
Quando Halliday exclui esse nível de contexto de sua teoria de coesão, o faz principalmente por ra-
zões teóricas e metodológicas: afinal, a coesão é caracterizada, sobretudo, por marcas linguistica-
mente explicitáveis (pronomes, elipses conjunções e itens lexicais) encontradas no texto e, além
disso, seria impossível ter como objeto de estudo fatores extratextuais que "levariam a comentários
intuitivos, e não a uma análise teoricamente coerente" (Halliday, 1984: xvii).

Coesão Lexical e Referência

Em um estudo clássico na filosofia da linguagem ordinária, Strawson (1964) conceitua a referência


como um ato através do qual identifica-se a referência daquilo a que um estado de coisas qualquer se
refere.

A proposição, por exemplo, "Cesar está morrendo", além de ter a função geral de identificar um fato
ou uma situação histórica, tem, como parte dessa função, a sub-função de designar um item histórico,
Cesar, que a situação envolve essencialmente.

O filósofo chama essa função da linguagem de "referência identificadora", que pressupõe o "princípio
da assunção do conhecimento compartilhado" sobre o que ou a quem a situação relatada se refere
("conhecimento identificador", p. 86). Nomes próprios, alguns pronomes pessoais e demonstrativos
seriam exemplos de expressões linguísticas que manifestariam a "referência identificadora". Aqui, a
referência, apesar de presente linguisticamente no co-texto, só poderia ser estabelecida plenamente,
isto é, tornar-se sentido, através do "contexto" não verbal extra-linguístico.

A referência no âmbito da coesão textual, isto é, a referência endofórica ou co-referência,seria a ca-


racterística de certos itens linguísticos de, ao invés de serem interpretados por seus traços semânti-
cos e/ou por um "conhecimento identificador", fazerem referência a outro item a ser encontrado no
próprio texto para a sua interpretação.

Esse item, em torno do qual a referência se manifesta, é chamado de referente linguístico (Hasan,
1985). Os pronomes pessoais não dêiticos e os demonstrativos, o artigo definido, e os comparativos
seriam exemplos de manifestações de co-referencialidade. Ao contrário da referência tratada por
Strawson, a referência coesiva pode ser estabelecida através do co-texto; isto é, não há uma assun-
ção a priori (pre-texto) de um conhecimento sobre o que está sendo referido.

Os casos de referência citados (pronomes pessoais, artigo definido, comparativos e demonstrativos),


como também os de outros tipos de coesão (elipse e substituição) são basicamente de natureza gra-
matical.

Hasan (1985) explicita essa característica introduzindo a noção de "mecanismos implícitos", que se-
riam aqueles itens cuja interpretação se dá somente a partir de um ambiente linguístico que possa
fornecer algum tipo de co-referencialidade.

Itens linguísticos que não necessitariam de um contexto para sua interpretação seriam as chamadas
palavras plenas ou de conteúdo.

Como a co-referência, segundo Halliday e Hasan , só se manifesta através de mecanismos implícitos,


os autores conceituam um outro nível de coesão, a coesão lexical, para se referirem aos casos de re-
lações coesivas de base semântica estabelecidas pela seleção de vocabulário (palavras "plenas").

As relações semânticas entre esses vocábulos (a repetição, a sinonímia, a antonímia, a meronímia ou


a hiperonímia/hiponímia) estabeleceriam a coesão lexical.

Hasan (1985), define também a coesão lexical como um fenômeno textual com uma função de co-
extensão e não de co-referência. Segundo a linguista, a coesão lexical somente se manifesta através
de relações de sentido ("sense relations") entre "palavras de conteúdo", relações essas que transcen-
deriam o texto.

A coesão, nesse caso, estaria na rede semântica formada pela relação entre esses itens lexicais pre-
sentes em um determinado co-texto. Entre os exemplos sugeridos por Halliday e Hasan (1976), so-
mente o "d" seria um caso de co-referencialidade.

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O menino está subindo na árvore:

a) Estes meninos estão sempre aprontando.

b) Há outro menino bem embaixo.

c) A maioria dos meninos adora árvores.

d) O menino pode cair.

Entretanto, esses exemplos de modo algum representam todos os casos possíveis de coesão lexical,
e nem podem ser considerados os mais típicos. Na verdade, a própria noção de coesão lexical não é
consensual (ver, por exemplo, Koch,1989 e Fávero, 1993) uma vez que grande parte dos casos de
coesão lexical desempenha uma função essencialmente referencial no texto e por isso deveria fazer
parte da categoria geral de co-referência, ou simplesmente referência.

Vejamos então alguns exemplos sugeridos por Koch (:46-47):

a) O bandido disparou um tiro. Esse tiro acertou uma mulher que passava despreocupada pela cal-
çada. (repetição)

b) A porta se abriu e apareceu uma menina. A garotinha tinha olhos azuis e longos cabelos dourados.
(sinonímia).

c) Vimos o carro do ministro se aproximar. Alguns minutos depois, o veículo estacionava diante do
palácio do Governo. (hiperonímia).

Podemos ver que, em todos esses casos, a função referencial anafórica é clara (tiro-tiro, menina-ga-
rotinha, carro-veículo). O uso de um pronome seria até aceitável, mas o uso de um vocábulo pleno
muitas vezes impede uma possível ambiguidade.

Nos exemplos a: Ele acertou uma mulher (o tiro ou o bandido?); e

b: Ele estacionava (o carro ou o ministro?), essa ambiguidade em potencial é evidenciada. Além


disso, na nossa língua (norma culta) e cultura, é estilisticamente recomendável evitar um uso exces-
sivo de pronomes (o que não parece ser o caso da língua inglesa, onde os pronomes pessoais são
usados como co-referência sem qualquer economia).

Pode-se também observar que em qualquer narrativa onde haja um ou mais agentes explícitos, por
exemplo, a coesão lexical referencial é claramente predominante, a não ser em eventuais comentá-
rios do narrador:

"O carro finalmente pegou. Carro velho é assim mesmo, né? Pois é, mas aí ele saiu disparado pela
Rio-Bahia como se estivesse dirigindo uma BMW! O carro parecia mais um saco de batata rolando
ladeira abaixo. . ." (programa Rádio Globo ao Vivo, Janeiro,1996).

O primeiro "carro" faz parte de uma interrupção da narrativa com comentário; já o segundo, retorna à
referência original da narrativa, sendo que o termo "finalmente" sugere um referente linguístico ainda
anterior.

Assim, a função co-referencial do léxico parece indiscutível em um grande numero de casos de repe-
tição ou substituição lexical. Porém, nesse último caso, a seguinte questão poderia ser colocada: se
há uma identidade plena de referência, não poderíamos dizer que haveria em termos funcionais um
caso de sinonímia, mesmo que os itens não sejam sinônimos em uma dimensão "abstrato concei-
tual"? Não é a sinonímia a possibilidade de "dois ou mais itens serem substituídos um pelo outro sem
prejuízo do que se quer comunicar" (Câmara Jr.)?

Poder-se-ia dizer que a referência, no caso da sinonímia "pura", denotativa, ou "experiencial", seria
relativa a um conceito abstrato de caráter genérico compartilhado socialmente: palavras sinônimas
teriam a mesma referência conceitual ("sense", denotação, significado "experiencial") ou os mesmos
componentes semânticos. Por outro lado, no caso da referência coesiva, ou co-referência, aquilo a
que se refere está explicitado no texto anaforica ou cataforicamernte em uma situação específica: a

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referência se exaure no texto. A sinonímia textual, então, parte de uma relação sintagmática entre ter-
mos co-referenciais e a sinonímia descritiva, por sua vez, define-se através de uma relação paradig-
mática entre termos com a mesma "denotação" no sistema de signos.

Estamos, por conseguinte, tratando de diferentes recortes teóricos: um, abstrato-conceitual onde a
estabilidade de sentidos é dada como pressuposto; outro, contextual, ou co-textual, onde o sentido só
se estabelece através da co-referencialidade.

A sinonímia no primeiro caso seria uma "sinonímia denotativa" ou "sinonímia descritiva" que, segundo
Lyons, representaria a "identidade de significado descritivo"(:63) ou "identidade de denotação"(:79),
isto é, termos que compartilham um significado que independe do uso da linguagem em situações es-
pecíficas.

No caso da "sinonímia textual", o que as expressões linguísticas teriam em comum seria a referência
(e não o "significado") em uma determinada situação linguística. Assim, diferentes formas de coesão
lexical em um texto assumem um caráter de sinonímia por envolverem o que essa tem de essencial:
a identidade de referência. Nesse caso, a sinonímia se esgota no próprio texto, pois não pertence a
campos semânticos comuns no "sistema linguístico" abstrato-conceitual.

Dentro de uma perspectiva abstrato-conceitual, por exemplo, "carro" e "veículo" manteriam uma rela-
ção semântica de hiperonímia/ hiponímia, mas não seriam termos sinônimos. No entanto, quando fa-
lamos:

"O carro desapareceu na avenida. O veículo não foi mais visto desde então"; ou "O carrodesapareceu
na avenida. Nunca mais ouviu-se falar daquele veículo", os itens em questão, ao assumirem identi-
dade de referência através da anáfora, adquirem uma função de sinonímia.

Até mesmo paráfrases complexas, mesmo metafóricas, desempenhariam essa função, apesar de, no
plano abstrato-conceitual, não terem nem o caráter de uma possível "definição":

O carro desapareceu na avenida. A lata enferrujada nunca mais foi vista.

Se usarmos os critérios para a co-referência propostos por Hasan, poderíamos concluir que esse fe-
nômeno não parece estar muito evidente no exemplo acima. O artigo encerra um pressuposto de
existência da entidade por ele introduzida, nesse caso, no próprio contexto. O restante do sintagma
nominal ("lata enferrujada") poderia ser considerado, do ponto de vista funcional, sinônimo de "carro",
através da identidade de referência.

Além disso, o emprego de tais paráfrases está claramente relacionado com a atitude do falante diante
do tópico em questão: a relação de referência não é tão "neutra" (ou "descritiva", Lyons,1995) como
no caso de "veículo".

Até mesmo Halliday e Hasan apontam para a influência da função interpessoal da linguagem ao trata-
rem do uso de substantivos gerais como elementos de coesão lexical. Vemos assim a inevitável in-
fluência do contexto exofórico na coesão.

A identidade de referência no exemplo acima, apesar de se manifestar no texto, assume fatores inde-
pendentes desse texto, isto é, pressupostos acerca de carros, de latas, do efeito do tempo sobre me-
tais, além do posicionamento ou atitude do sujeito em relação ao carro, ou ao dono do carro ou,
ainda, à situação descrita como um todo.

Nesse sentido, tanto a natureza da referência, ou co-referência, quanto a da sinonímia seriam deter-
minadas em grande parte pela função da linguagem que predomina em uma determinada situação
discursiva.

Para usarmos a terminologia clássica de Buhler (1934) ou a de Halliday (1985), podemos dizer que,
quando a função representacional (ou experiencial) está em foco, a referência e a sinonímia adquirem
um caráter mais "descritivo", ou "denotativo", que pressupõe a natureza convencional do signo. O que
importa aqui é, principalmente, identificar a referência: sobre o que está se falando. A sinonímia seria
puramente descritiva (Lyons,1995), mesmo estabelecendo maior ou menor identidade entre os ter-
mos em questão, e pode ser evidenciada tanto em casos de co-referência (menina/ garota) como no

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caso de exemplos em dicionários. A co-referência pronominal seria outro caso típico da função expe-
riencial da linguagem.

Por outro lado, quando a função expressiva (ou inter-pessoal) predomina no discurso, a co-referência
passa a admitir uma série de paráfrases que deixam vir à tona mais explicitamente o sujeito do dis-
curso. Na verdade, como veremos nos exemplos abaixo, a referência motivada pela função expres-
siva da linguagem ultrapassa o seu valor puramente "identificador", para poder desempenhar outros
"atos ilocucionários", como criticar, elogiar, ironizar ou até mesmo informar.

Dessa forma, a identidade de referência que se manifesta na co-referência ou na "sinonímia textual"


se reveste, muitas vezes, de um valor pragmático que vai além de seu papel coesivo. Mais uma vez,
podemos ver como o contexto exofórico não pode ser excluído da interpretação de muitos casos de
referência ou de coesão como um todo.

Procuraremos abaixo analisar alguns exemplos de casos de co-referência lexical (ou usos diversos
de "sinonímia textual"), e levantar algumas hipóteses acerca das possíveis influências exofóricas na
escolha lexical em questão.

Análise de Casos de "Sinonímia Textual"

O texto escolhido foi uma reportagem sobre os setenta anos do ator americano Paul Newman, publi-
cada na revista Domingo (n. 983: 20-26). O critério para essa escolha foi a hipótese de que o texto,
por ter um conteúdo biográfico, apresentaria vários casos de referência ao ator em questão. Sendo a
referência quase sempre a mesma, esperou-se encontrar exemplos do que se chamou aqui de "sino-
nímia textual", isto é, diferentes formas nominalizadas que compartilhariam a mesma referência em
um determinado texto. Foram identificadas as seguintes expressões usadas como formas de referên-
cia ao ator:

O jovem galã dos anos 50


Paul Newman
O dono dos olhos azuis mais bonitos do mundo
O ator
O artista
Paul
Newman
Ele
O galã
O grande ator
O filho de um próspero comerciante de Cleveland.
O homem mais bonito do mundo.

A identidade de referência textual é clara, mas, como em todos os casos de sinonímia (mesmo nos
da denotativa ou descritiva), fatores estilísticos e pragmáticos, ou funcionais, fazem com que as dife-
rentes escolhas referenciais não sejam totalmente substituíveis umas pelas outras. No caso especí-
fico da reportagem, encontramos um maior número de formas "neutras", como "Paul Newman", "New-
man", "ele"," "o ator" , "o artista" e "Paul".

Substantivos próprios (repetição), pronomes e substantivos comuns com artigo definido representam,
aqui, formas mais diretas de se remeter ao referente linguístico "Paul Newman". Na verdade, umas
poderiam substituir as outras sem grandes rupturas na significação. Dessa forma, a sinonímia textual
se adequa à definição de sinonímia proposta por Câmara Jr. mencionada acima: "a propriedade de
certos termos de poderem ser substituídos um pelo outro sem prejuízo do que se pretende comuni-
car".

Por outro lado, as outras expressões utilizadas não parecem se limitar à "função identificadora" da co-
referência, como nos seis casos citados acima. Quando usamos como sujeito de uma oração "o ho-
mem mais bonito do mundo" e "o grande ator", estamos não só identificando a referência (sobre
quem iremos fazer um comentário), remetendo-a anaforicamente ao referente linguístico, mas como

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também informando sobre uma crença supostamente consensual e, ao mesmo tempo, comparti-
lhando dessa crença. Usando esse sintagma como tópico e não comentário (como predicativo do su-
jeito, por exemplo), cristalizamos o atributo em questão: a beleza de Newman, sendo parte integrada
do referente, se confunde com a própria pessoa.

No caso de "o grande ator", "o jovem galã dos anos 50" e "o dono dos olhos azuis mais bonitos do
mundo", a função da referência torna-se ainda mais complexa.

Além de identificarem o referente, e o colocarem sob um foco bastante positivo através do uso de lo-
cuções adjetivas, como "grande" "galã "e "mais bonitos do mundo", as expressões passam informa-
ções, a um possível leitor pouco informado, acerca de determinados fatos sobre o ator: ele é (ou foi)
considerado um bom ator, fez muito sucesso nos anos 50, e tem olhos azuis.

Se o leitor já tiver essas informações, o teor "elogioso" da referência predomina em relação ao infor-
mativo. Esse último, no entanto, manifesta-se plenamente na expressão: "o filho de um próspero co-
merciante de Cleveland", onde, além de identificar a referência (como em todos os casos de co-refe-
rência), a expressão desempenha a função de informar sobre um aspecto do passado do ator prova-
velmente desconhecido para a maioria dos leitores.

Assim, passa-se uma informação sem precisar colocá-la como foco do comentário (predicado), ou
como uma informação complementar explicativa ou informativa (oração adjetiva ou aposto).

Na maior parte da reportagem, no entanto, o teor narrativo se impõe, e, por isso, verbos na terceira
pessoa, no pretérito perfeito, aparecem com muita frequência (cresceu, trabalhou, escolheu, por
exemplo).

Em nenhum desses casos o sujeito é linguisticamente explicitado: a desinência do verbo o indica sem
ambiguidades, o que torna a narrativa estilisticamente mais leve (podemos dizer que o verbo carrega-
ria em si a referência quando esta apresenta-se clara no texto). No entanto, a própria narrativa (rela-
tos da vida do ator) vai, implicitamente, modificando, acrescentando, estendendo e ratificando o "refe-
rente linguístico".

O "Newman" do último parágrafo, por mais "neutro" linguistica e referencialmente que possa ser, cer-
tamente não é mais, para o leitor, o mesmo Newman do primeiro parágrafo. A identidade de referên-
cia se reveste de historicidade através da construção de sentidos decorrente não só do texto em si,
mas de sua leitura.

Mais uma vez, pode-se observar o papel, não só complementar, como também constitutivo, do con-
texto exofórico no fenômeno da coesão lexical. A abordagem que trata a co-referência apenas a partir
de suas marcas textuais restringe esse fenômeno a sua função puramente identificadora e experien-
cial, descartando assim a sua função expressiva e interpessoal.

Como vimos no início desse trabalho, a contextualização característica das recentes tendências dos
estudos do léxico e do significado implica a inclusão de aspectos do contexto tanto intersentencial
quanto não verbal ou exofórico.

A breve análise aqui desenvolvida, a título de exemplificação, apontou para a possibilidade de se bus-
car em vários aspectos desses diferentes níveis de contexto as variáveis que determinariam a coesão
lexical de natureza referencial.

Pôde-se observar que a função referencial só se limitaria à coesão textual caso se restringisse a sua
dimensão endofórica uma vez que, com a inclusão do sujeito do discurso, outras possibilidades funci-
onais (expressivas ou interpessoais) são evidenciadas.

Acredita-se que haveria um contínuo de funções linguísticas a ser manifestado na referência textual.
Esse contínuo incluiria desde o sentido mais experiencial, onde haveria o predomínio da função "iden-
tificadora" da referência, até o mais expressivo, onde o sujeito do discurso torna-se mais transpa-
rente, ao marcar linguisticamente a sua posição perante aquilo a que se refere.

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RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE PALAVRAS

Além disso, mesmo quando não se trata de casos de co-referência, a própria escolha paradigmática
do léxico pode evidenciar esse mesmo contínuo. Por conseguinte, até mesmo as relações semânti-
cas, particularmente a sinonímia, seria determinada pela função linguística que predomina em uma
determinada situação de uso linguístico.

A distinção entre sinonímia expressiva e sinonímia descritiva proposta por Lyons (1995) expressa
esse espectro de possibilidades funcionais da linguagem: o abstrato e o contextual se complemen-
tam.

Podemos ver, assim, uma possível relação entre o objeto da semântica abstrato-conceitual e o da se-
mântica discursiva. Se por um lado, do ponto de vista epistemológico, seria não só conveniente como
também necessário estabelecer limites teóricos entre diferentes áreas de investigação da linguagem,
por outro, a interseção entre essas áreas parece inevitável ao tratarmos de fenômenos que clara-
mente pressupõem esses diversos níveis. A "sinonímia textual" aqui tratada poderia ser vista, então,
como um, entre muitos outros, desses fenômenos, onde a linguagem surge em sua perspectiva multi-
dimensional.

De forma recente, as categorias de sentido e significado têm tido uma ampla profusão na literatura
psicológica. Mesmo que elas sejam categorias gerais da psicologia usadas por várias teorias, des-
taca-se o fato de que também são categorias usadas pela linguística e pela análise do discurso, o
que determina uma ampla gama de significados diferentes, em particular associados com a categoria
de sentido.

Evidentemente, que as categorias são peças do pensamento que tomam significados diversos na his-
tória das teorias que as empregam e, portanto, não pretendo com este artigo desqualificar alguns dos
usos dessa categoria para reivindicar outros. Pelo contrário, pretendo apenas esclarecer a forma
como o termo evoluiu na perspectiva histórico-cultural, com o objetivo de evitar a sua banalização, o
que ocorre quando uma categoria entra em moda e começa a ser usada acriticamente, sem respeitar
seu campo de significação.

Como tenho colocado em escritos anteriores (González Rey, 1999, 2000, 2002, 2005 e 2006), a cate-
goria de sentido na perspectiva histórico-cultural foi introduzida por Vygotsky na última etapa de seu
pensamento científico e, inacreditavelmente, ela foi ignorada na Psicologia soviética até a década dos
anos oitenta e substituída pela categoria de sentido pessoal de A. N. Leontiev, mas que tomou um
caminho diferente daquele que a categoria de sentido sinalizava na obra de Vygotsky.

Na psicologia ocidental, essa categoria aparece identificada com o caráter singular do significado, in-
terpretação que nos parece muito influenciada pelo viés linguístico e cognitivo que tiveram muitas das
interpretações de Vygotsky, principalmente entre autores da psicologia norteamericana (Bruner, Valsi-
ner, Werscht, Cole, Rogoff e outros), e que, mesmo pelas diferenças entre eles, evidencia-se que se
centraram na ação e na mediação semiótica, ignorando outras contribuições do pensamento de
Vygotsky.

Longe de compreender o pensamento de Vygotsky como um sistema complexo em desenvolvimento,


muitos dos autores ocidentais que mais têm contribuído com a divulgação da obra de Vygotsky, se
orientaram para destacar apenas as consequências da ação e da mediação semiótica para o desen-
volvimento da psicologia, com o que colocaram a ênfase na linguagem acima da constituição com-
plexa de uma nova definição de psique, o que foi uma aspiração recorrente em Vygotsky, ao longo de
seu trabalho.

Neste artigo pretendo não apenas esclarecer a evolução da categoria de sentido na obra de
Vygotsky, tema ao qual tenho dedicado vários trabalhos (González Rey, 2000, 2002, 2006 e 2007),
mas apresentar como foi a evolução dessa categoria na própria Psicologia soviética. Com isso tento,
mais uma vez, evidenciar que a obra de Vygotsky não foi a expressão de um gênio isolado, mas um
momento genial de um sistema teórico em desenvolvimento, do qual esse pensamento é inseparável.

O Conceito de Sentido na Obra de Vygotsky

O conceito de sentido não aparece nos primeiros trabalhos de Vygotsky. Ele vai aparecer na última
fase de sua obra e, em pouquíssimo tempo, vai se expressar de formas diferentes, desprendendo-se

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RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE PALAVRAS

progressivamente da palavra, em relação à qual aparece definido em Pensamento e Linguagem. É


nesse momento que Vygotsky toma o termo do psicólogo alemão Paulhan, que tinha avançado na
construção da relação entre o significado e o sentido da palavra no marco do uso da linguagem.
Nesse contexto Vygotsky afirma (1987):

Paulhan afirma que o sentido da palavra é complexo, fluido e está em mudança permanente. De al-
guma maneira ele é único para cada consciência e para uma consciência individual em circunstâncias
diferentes.

Nesse aspecto, o sentido da palavra é inesgotável. A palavra adquire sentido numa frase. A frase em
si mesma adquire sentido, porém no contexto do parágrafo, o parágrafo no contexto do livro, e o livro
no contexto dos trabalhos escolhidos do autor. Finalmente, o sentido da palavra é determinado por
tudo o que na consciência está relacionado com aquilo expresso na palavra. (p. 276)

Algo que se destaca muito nas reflexões de Vygotsky em Pensamento e Linguagem é sua ênfase nos
aspectos processuais da relação entre pensamento, palavra e linguagem, e sua relação com a cons-
ciência como sistema, como um todo.

Isso se une à sua tendência em compreender a psique como sistema (sistema que tem sua base em
unidades que reproduzem em si mesmas as características dinâmicas do todo) e nos leva a pensar
que, com a apropriação da categoria de sentido da obra de Paulham, e com a sua ênfase na relação
entre o sentido da palavra e o sistema da consciência, Vygotsky estava gestando, naquele momento,
um novo tipo de unidade da vida psíquica, envolvida com uma compreensão mais sistêmica da psi-
que.

Essa minha interpretação encontra um apoio na seguinte afirmação de Luria, no epílogo das Obras
Escolhidas de Vygotsky publicadas em inglês. Ele escreve (1987):

Não é só o sentido que está além da palavra. O sentido não é o elemento final dessa cadeia. Além da
palavra estão as expressões dos objetivos e os motivos. Além da palavra estão os afetos e as emo-
ções. Sem a exploração das relações da palavra com o motivo, a emoção e a personalidade, a aná-
lise do problema de "Pensamento e Linguagem" fica incompleto. (p. 369)

Sem dúvida que ficaria incompleta, não apenas a análise do problema colocado por Vygotsky
em Pensamento e Linguagem, mas um aspecto principal que ele perseguiu ao longo de seu trabalho
e que, na minha opinião, só conseguiu com o desenvolvimento da categoria de sentido: a relação en-
tre o cognitivo e o afetivo.

Por uma razão ou outra, mesmo que ele declare a unidade do cognitivo e o afetivo, desde o início de
sua obra, ele não consegue desenvolvê-la de forma congruente ao longo de seu trabalho. Isso se deu
pelas próprias armadilhas decorrentes das representações hegemônicas a partir das categorias que
usou em momentos anteriores de sua obra como unidades do desenvolvimento e da consciência, res-
pectivamente, as categorias de vivência e de significado.

Uma análise crítica muito interessante sobre a categoria de vivência, com a qual, num momento ante-
rior de sua obra, pretendeu resolver a questão da unidade do afetivo e o cognitivo, pode ser encon-
trada na obra de Bozhovich (1976).

Uma vez mais concordo parcialmente com Luria quando, na mesma produção acima citada, escre-
veu:

Vygotsky não foi capaz de explorar todas essas questões em detalhe. É importante enfatizar, porém,
que a relação entre sentido e significado, e a relação entre o intelectual e o afetivo foram os focos de
grande parte de seus trabalhos nos últimos anos de sua vida. (1987, p. 369)

É indubitável que Vygotsky, como Luria coloca na citação, centrou-se, na última parte de sua obra,
precisamente na parte mais inexplorada da tradução ocidental, na complexa relação entre afeto e
emoção, e entre sentido e significado, o que, conhecendo a lógica do pensamento vygotskyano, faz
pensar que nesse esforço ele tentaria encontrar uma unidade da vida psíquica capaz de envolver de
forma inseparável essa nova unidade cognitivo-afetivo. Essa nova unidade, que, como disse Luria,

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RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE PALAVRAS

Vygotsky foi incapaz de desenvolver em detalhes, ficando em aberto para ulterior elaboração da psi-
cologia, é a própria categoria de sentido, em relação à qual já não compartilho a interpretação apre-
sentada por Luria.

Vygotsky, que no princípio manteve-se dentro dos mesmos limites de Paulhan na análise do sentido,
associando-o essencialmente ao uso da palavra e à sua relação com as estruturas de significado,
dentro das quais se produz na linguagem, vai enfatizando, cada vez mais, a relação do sentido com a
personalidade e com a vida psíquica como um todo. Isso o leva, no último capítulo de Pensamento e
Linguagem, intitulado "Pensamento e Palavra", a apresentar vários matizes sobre a categoria de sen-
tido, apesar de algumas incongruências nessas definições.

Assim, numa das formas mais acabadas em que consegue definir o sentido nessa obra, o autor, rela-
cionando o sentido à análise psicológica da linguagem interna, destaca:

O sentido de uma palavra é o agregado de todos os fatos psicológicos que aparecem em nossa cons-
ciência como resultado da palavra. O sentido é uma formação dinâmica, fluida e complexa, que tem
várias zonas que variam na sua estabilidade.

O significado é apenas uma dessas zonas do sentido que a palavra adquire no contexto da fala. Ele é
o mais estável, unificado e preciso dessas zonas. Em contextos diferentes, o sentido da palavra
muda. Em contraste, o significado é comparativamente um ponto fixo e estável, ele se mantém está-
vel com todas as mudanças do sentido da palavra que estão associados ao seu uso em diferentes
contextos. (Vygotsky, 1987, pp. 275-276)

Na citação anterior, fica evidente um atributo importante na definição do sentido - o fato de ele ser
uma formação -, o que já aponta a sua análise dentro de uma organização da psique como um todo,
e não apenas a uma função da linguagem. Essa idéia se faz mais forte pela afirmação, também con-
tida na citação, de que o sentido é "o agregado de todos os fatos psicológicos que aparecem na cons-
ciência como resultado da palavra".

Nessa afirmação, Vygotsky desloca a categoria sentido da fala para a consciência, e a apresenta
como o conjunto de todos os elementos psicológicos que aparecem na consciência como resultado
do uso da palavra, o que leva implícita a presença das emoções e dos motivos no sentido, algo que
Luria não percebeu ao se referir à categoria, na citação apresentada acima.

É certo que o próprio Vygotsky não foi claro ao fazer essa afirmação, a qual, inclusive, é contraditória
com outros momentos de sua própria definição no mesmo trabalho, portanto, a nossa afirmação só
ganha valor como hipótese que pretendemos legitimar neste artigo, na forma como a categoria sen-
tido aparece em outras obras do próprio Vygotsky, que foram escritas nesse mesmo período.

O sentido toma forma na representação conceitual de Vygotsky na relação com a fala interior, a qual
ele apresenta como uma verdadeira produção psicológica, e não apenas como função, nem da lin-
guagem, nem do pensamento tomadas isoladamente.

Esse esforço para apresentar a complexa articulação entre pensamento, linguagem, fala, personali-
dade e consciência como sistema em movimento, representa, em si mesmo, um novo caminho para a
reconstrução do mental.

Um caminho orientado, não pela análise das partes, mas pela compreensão delas numa relação dinâ-
mica que passa a constituir uma unidade qualitativa diferenciada que só toma significado dentro do
próprio processo de construção do problema.

Esse significado, porém, adquire um valor heurístico que vai além do problema que constituía seu
foco naquele momento.

O que eu disse fica evidente quando Vygotsky, ainda no mesmo capítulo que estamos discutindo
de Pensamento e Linguagem, expressa:

O aspecto de sentido da fala, de fato, o aspecto interno completo da fala que está orientado à perso-
nalidade não tem sido até tempos muito recentes um território da psicologia (...) O resultado tem sido

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RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE PALAVRAS

que as relações entre pensamento e palavra se têm compreendido como constantes, relações eter-
nas entre coisas, não como relações internas, dinâmicas e móveis entre processos. (1987, p. 283)

Algo surpreendente em Vygotsky é sua extraordinária capacidade para articular questões que, histori-
camente, foram analisadas de forma parcial e estática, dentro de sistemas em movimento, nos quais
essas funções adquirem diferentes significados para a psicologia.

É essa precisamente uma das razões que fez Vygotsky usar tanto o termo personalidade, no qual ele
via uma forma de integrar as funções em novas dimensões psicológicas, mas indo em sentido total-
mente contrário à forma estática e exclusiva com que a categoria personalidade tinha sido tratada na
psicologia, quando era apresentada, de forma dominante, como uma estrutura intrapsíquica.

Essa inovação presente nas construções teóricas de Vygotsky, orientada a gerar uma nova represen-
tação da psicologia como ciência, é um dos aspectos de sua obra que aparece como mais difícil de
ser compreendido por aqueles que a têm interpretado.

Entre eles predomina a tendência de valorizar categorias concretas de seu pensamento, mais do que
uma tendência para compreender o novo sistema que estava sendo proposto pelo autor, para pensar
a psicologia e as consequências desse sistema, que resistiu a toda tentativa de substancialização da
psique humana.

Em outra citação, presente no capítulo 1 de "Pensamento e Linguagem", Vygotsky (ibid.) afirma algo
que consideramos outro desdobramento audacioso na evolução da categoria sentido, no caminho de
torná-la uma nova unidade de análise para o estudo da psique:

A primeira questão que emerge quando consideramos a relação entre pensamento e linguagem e os
outros aspectos da vida da consciência, tem a ver com a conexão entre intelecto e afeto. Entre os
maiores defeitos básicos das aproximações tradicionais ao estudo da psicologia tem estado o isola-
mento do aspecto intelectual dos aspectos volitivos e afetivos da consciência.

A inevitável consequência do isolamento dessas funções tem sido a transformação do pensamento


numa corrente autônoma. O pensamento transforma-se a si mesmo no pensador de pensamentos. O
pensamento foi divorciado da completa vitalidade da vida, dos motivos, interesses e inclinações do
pensamento individual. O pensamento foi convertido tanto num epifenômeno inútil, um processo que
não modifica nada na vida individual e no comportamento. (p. 50)

Nesse parágrafo se expressa, com toda sua força, a idéia de Vygotsky de compreender as funções
psíquicas em termos do sujeito concreto, considerado na integridade de seus processos psíquicos,
dentro da dimensão processual de seu comportamento concreto. Vygotsky insiste na necessidade de
considerar o pensamento integrado de forma inseparável dos processos afetivos da pessoa, o que foi
muito bem colocado por Luria, na citação anterior, como um aspecto de muito peso no último período
de sua obra.

Essa preocupação com a integração do pensamento, a linguagem, os afetos e o comportamento, foi


levando-o à idéia de um sistema capaz de integrar essas dimensões da psique humana. Isso fica
claro quando Vygotsky afirma (ibid.):

A direção em que devemos nos mover em nosso intento de resolver este problema vital [refere-se a
essa complexa relação entre o pensamento, o afeto e o comportamento] está indicada pelo método
que confia na análise do todo complexo em suas unidades.

Existe um "sistema dinâmico de significados" que constitui uma unidade dos processos afetivos e in-
telectuais. Toda idéia contém alguma reminiscência das relações afetivas individuais daquele aspecto
da realidade que ela representa.

Dessa maneira, a análise em unidades permite ver a relação entre as necessidades individuais ou in-
clinações e o pensamento. Essa unidade permite-nos também ver a relação oposta, a relação que
vincula seus pensamentos às dinâmicas do comportamento, à atividade concreta da personalidade.
(pp. 50-51)

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RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE PALAVRAS

A idéia de Vygotsky, de abordar o novo problema nesse sistema complexo que integra pensamento,
comportamento e personalidade a partir de sua orientação sistêmica e dinâmica, apoiada no estudo
das unidades do sistema, leva-me a pensar que está associada com a forma progressiva e rápida
com que a categoria sentido se apresenta na produção dos seus últimos trabalhos.

Contudo, antes de continuar aprofundando na lógica que norteia o pensamento de Vygotsky naquele
momento, queria deter-me numa diferença entre os termos da citação anterior, tomada das Obras Es-
colhidas de Vygotsky, publicadas nos Estados Unidos na sua tradução ao inglês, e uma reflexão so-
bre essa citação feita num trabalho de A.A. Leontiev (1992), no qual aparecem de forma textual cer-
tas palavras entre aspas do original de Vygotsky em russo. Em seu trabalho, Leontiev comenta:

De forma geral, não é o da unidade do afetivo e o cognitivo como tal, mas a realização dessa unidade
em forma de um "sistema dinâmico de sentidos", o qual relaciona a "dinâmica do pensamento" (inte-
lecto) assim como a "dinâmica do comportamento e a atividade concreta da personalidade. (p. 42)

É interessante que, se referindo à mesma citação da obra, Leontiev, que, aliás, foi o primeiro psicó-
logo soviético a trazer em toda a sua significação a categoria sentido da forma como Vygotsky a defi-
niu para a psicologia, traduziu como "sistema dinâmico de sentidos", o que na edição americana apa-
rece como "sistema dinâmico de significados".

Esse "pequeno equívoco", caso a tradução do autor russo seja a correta, pode ser em grande parte
responsável pelas distorções na interpretação da categoria de sentido e de muitas outras interpreta-
ções da obra de Vygotsky no momento atual na psicologia norte-americana, com o seu lastro de con-
sequências para todas as traduções de Vygotsky na América Latina, a maioria das quais assume as
fontes norte-americanas.

É também interessante perceber que esse trabalho de A. A. Leontiev, filho de A.N. Leontiev, mesmo
que traduzido para o inglês, não teve praticamente nenhum impacto na Psicologia ocidental, nem na
própria Psicologia soviética, na qual os trabalhos sobre o sentido tiveram um ressurgimento nos anos
oitenta do século passado, particularmente entre discípulos mais jovens de A.N. Leontiev ligados à
teoria da atividade (Bratus; Asmolov; Stolin; Subotsky, entre outros).

Esses trabalhos, mesmo que orientados essencialmente pelo conceito de sentido pessoal de Leon-
tiev, e sem explicitar de forma contundente a contribuição de Vygotsky em relação à categoria de
sentido, como o fizera em seu trabalho A. A. Leontiev, de fato, levou-os a linhas de pesquisa relacio-
nadas com a personalidade, tema que, no marco ortodoxo tradicional da teoria da atividade, não foi
muito desenvolvido. Esse caminho levou-os a questionamentos sobre os próprios limites do conceito
de sentido pessoal, o que iremos analisar no próximo tópico.

Ao continuar analisando o rumo que a categoria sentido tomou nos últimos trabalhos de Vygotsky,
nos deparamos com seu artigo "K voprocy o psikhologii tvorchestva aktera" (Sobre a questão da psi-
cologia da criatividade do ator), Vygotsky (1984) escreveu:

No processo da vida socioetal (...) as emoções entram em novas relações com outros elementos da
vida psíquica, novos sistemas aparecem, novos conjuntos de funções psíquicas; unidades de uma
ordem superior emergem, governadas por leis especiais, dependências mutuas e formas especiais de
conexão e movimento. (p. 328)

Em relação a essa citação, que também A. A. Leontiev (1992) usa em seu artigo, ele comenta: "Preci-
samente esse conjunto é a 'unidade de cognição e afeto'. Ele forma o sistema dinâmico de sentidos!"
(p. 42).

Eu, nesse ponto, concordo com o autor, mesmo considerando que sua afirmação seja mais uma con-
sequência necessária do caminho de construção teórica de Vygotsky que a expressão de uma plena
consciência teórica dele em relação ao termo.

Eu considero que a citação anterior representa o momento mais evoluído do pensamento de


Vygotsky antes de sua morte. Nessa citação ele consegue algo que, ao meu ver, é essencial para
uma refundação ontológica da questão da subjetividade na perspectiva histórico-cultural; ele atribui

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RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE PALAVRAS

um caráter gerador à psique e reconhece a autonomia relativa das emoções nesses espaços de pro-
dução psicológica que, sem dúvidas, apontam à conversão do sentido numa nova unidade do sistema
da psique humana. É nesse ponto que a obra de Vygotsky permaneceu, e é precisamente esse mo-
mento carregado de idéias inovadoras um dos momentos cruciais que a sua obra deixou em aberto
para o posterior desenvolvimento da psicologia.

Em decorrência da análise que Vygotsky nos traz em Pensamento e Linguagem, é possível concluir
que, em sua compreensão, o sentido e o significado são processos diferentes, capazes de se articu-
larem de formas diferentes no funcionamento psíquico do sujeito.

Os significados, mesmo que com grande frequência representem vias de expressão dos sentidos,
não expressam de forma direta nem linear o sentido associado ao conteúdo significado. Por essa ra-
zão, o significado desdobra-se de diferentes formas na linguagem e aparece no pensamento sempre
associado a determinados sentidos.

Nos meus trabalhos, tenho enfatizado essa relação, assumindo o pensamento não como uma função
cognitiva, mas como uma função de sentido do sujeito. Daí a importância das reflexões dos sujeitos
para os estudos dos sentidos subjetivos (González Rey, 2000, 2002, 2004a, 2004b, 2005).

A Categoria de Sentido e a Forma Como Apareceu Posteriormente na Psicologia Soviética

O último momento da obra de Vygotsky, ao que nos referimos no tópico anterior, foi pouquíssimo tra-
balhado e compreendido no interior da Psicologia soviética, já dividida por diferentes posições teóri-
cas, entre as quais podemos destacar as desenvolvidas pelos seguidores do próprio Vygotsky, Ru-
binstein, Uznadze e Ananiev, entre outros.

Vygotsky, mesmo tendo muitos pontos de coincidência com a obra desses autores, permaneceu his-
toricamente oculto em relação a esse momento de sua obra, o que não aparece destacado pelos se-
guidores de nenhuma dessas tendências, inclusive nem pelos seus próprios seguidores.

Podemos dizer que essa situação definiu o fato de Vygotsky continuar sendo criticado por momentos
anteriores de sua obra que ficaram superados nessa etapa final de sua produção.

Diante do peso que foi ganhando a teoria da atividade de Leontiev, e pela relação explícita que Leon-
tiev e seus seguidores defendiam com os trabalhos de Vygotsky, a obra deste passou a ser de certa
forma criticada pelas limitações vistas na teoria da atividade, as quais, apesar de terem conexão com
certo momento da obra de Vygotsky que representou, de certo modo, um importante antecedente
para a teoria da atividade, na realidade, representa um caminho teórico diferente ao seguido pela teo-
ria da atividade (Bozhovich, 1976; Zinchenko, 1997). Nesse sentido, uma das figuras mais importan-
tes da Psicologia soviética das últimas três décadas, e que foi discípula de Rubinstein, Abuljanova
(1980) colocou:

Uma diferença real de posições se descobre na comparação dos enfoques para a análise do psicoló-
gico de Rubinstein em relação a Vygotsky e Leontiev.

A diferença entre estes dois enfoques é maior que as diferenças entre essas escolas: os princípios
sobre os quais elas se fundamentam, levam a diferentes modos de construção do objeto da psicolo-
gia, as que têm um significado metodológico decisivo (....) S.L. Rubinstein posiciona-se contra a abso-
lutização de qualquer tipo de característica unilateral da psique, enfatizando a sua multiplicidade

No enfoque de Vygotsky e Leontiev na base do psicológico se considera apenas uma qualidade, de-
duzida do principio da atividade e por isso todo o edifício da psicologia se apóia num só ponto. (p. 57)

Como se pode observar, a crítica vai endereçada ao momento da obra de Vygotsky em que maior se-
melhança ela teve com a concepção de Leontiev, que foi o momento em que o autor fez a sua fa-
mosa afirmação, pela qual muitas pessoas o reconhecem até hoje, de que toda função intrapsíquica
foi primeiro interpsicológica.

Essa afirmação corresponde ao momento em que ele deu uma ênfase primordial à interiorização
como a via para a formação dos conteúdos psicológicos. Porém, ao reconhecer de forma implícita o
caráter gerador da psique, quando afirmou os diferentes desdobramentos entre pensamento e afeto e

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RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE PALAVRAS

sua relação com a personalidade e o sistema de atividades do sujeito, colocação que vai tomando
forma no que se projetava como uma nova unidade da vida psíquica na evolução da categoria sen-
tido, Vygotsky aproxima-se muito mais dos outros autores da Psicologia soviética pela sua ênfase no
caráter sistêmico, complexo e múltiplo da psique.

Ênfase essa que, da mesma forma que Rubinstein e Ananiev, Vygotsky expressa num movimento
que introduz uma redefinição ontológica da categoria personalidade, na qual os conteúdos psicológi-
cos deixam de ser inerentes ao indivíduo para expressar o seu mundo social.

A categoria de sentido introduzida por Vygotsky, poderia ter representado um novo tipo de unidade
psicológica para o estudo da personalidade, como afirmou muitos anos depois Asmolov (1984), ape-
sar de ele ainda se apoiar na definição de sentido pessoal de Leontiev.

O Sentido Pessoal Na Teoria da Atividade de Leontiev e o Ocultamento da Categoria de Sen-


tido na Obra de Vygotsky

O desenvolvimento da categoria de sentido pessoal na obra de A. N. Leontiev orientou-se para a


compreensão do sentido pessoal como momento da atividade, e não como unidade para compreen-
der a complexa organização do sistema psíquico da pessoa. Leontiev, que também apresentou de
várias formas o conceito de sentido pessoal, destaca, em relação a essa categoria, no seu último li-
vro:

À diferença dos significados, os sentidos pessoais, da mesma forma que a trama sensorial da consci-
ência, não possuem uma existência "supraindividual", não psicológica". Enquanto a sensorialidade
vincula os significados com a realidade do mundo objetivo na consciência do sujeito, o sentido pes-
soal os vincula com a realidade de sua própria vida neste mundo, com os seus motivos. O sentido
pessoal é o que cria a parcialidade da consciência humana. (1978, p. 120)

No entanto, mesmo que nessa citação o autor pareça fugir da conotação objetivista de sua definição
de sentido pessoal, na mesma obra e em correspondência com sua primeira definição dessa catego-
ria, ele expressa que o sentido pessoal é o reflexo da relação do motivo da atividade com o fim da
ação.

Mesmo que na aparência seja percebido que uma definição é muito diferente da outra, na realidade
não é, pois quando ele afirma na citação anterior que o sentido pessoal é a relação dos significados
com os motivos do sujeito, os que o autor define como os objetos da atividade, de fato não reconhece
no motivo algo ontologicamente diferente ao objeto que orienta a ação.

Dessa forma, o motivo é compreendido apenas no marco da atividade, como momento desse pro-
cesso. A relação com o mundo não é compreendida por Leontiev como uma produção simbólica dos
sujeitos, mas como uma interiorização de operações com objetos sensorialmente definidos, o que, de
fato, mantém a subjetividade como refém da objetividade, sem entender a complexa relação dialética
entre ambos os momentos de organização da realidade humana.

A minha análise dessa limitação na compreensão da categoria de sentido pessoal na obra de Leon-
tiev evidencia-se nas reflexões de seus discípulos, empenhados em usar a categoria para o desen-
volvimento de unidades de análise mais complexas e subjetivas para o estudo da personalidade, num
caminho que os levou à definição das "formações de sentido". Assim Asmolov (1984) escreveu:

O sentido pessoal representa o reflexo individualizado do mundo, que inclui a relação da personali-
dade com aqueles objetos pelos quais se desenvolve sua atividade e sua comunicação. As mais di-
versas manifestações da cultura, e mais amplamente, das relações sociais, assimiladas pelo sujeito
no processo de interiorização das normas sociais, conceitos, papéis, valores e ideais percebidos por
ele nos atos e ações de outras pessoas, podem adquirir para ele sentido pessoal, se transformando
em "significados para mim". (p. 63)

Nessa citação aparecem de forma concentrada todos os defeitos da definição de sentido pessoal de
Leontiev. Defeitos que aparecem com toda clareza não apenas pelos seus aspectos explícitos, mas
pelas consequências da institucionalização de seu pensamento na "vanguarda" de seus próprios se-
guidores. Em primeiro lugar, evidencia-se muito claramente a compreensão do sentido pessoal como

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RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE PALAVRAS

reflexo das relações da "personalidade" com "os objetos", enfatizando que o lugar do sujeito é o lugar
da assimilação, não da produção nem da criação, em segundo lugar fica claro que os sentidos pesso-
ais se formam como resultado da internalização, não representando nada além do que o "significado
para mim", o que vai numa direção totalmente contrária à definição de sentido na obra de Vygotsky.

Num ato de um valor histórico sem precedentes na Psicologia russa, pois já foi posterior à desapari-
ção da União Soviética, A. A. Leontiev, filho de A. N. Leontiev, escreveu em 1992, em artigo já citado
antes:

Muitas das ideais teóricas nesses trabalhos [refere-se aos trabalhos da última etapa de sua vida, es-
critos entre 1933 e 1934] porém não foram levantadas pelo grupo de Jarkov ou foram só parcialmente
aceitas. Elas foram apenas percebidas pelos historiadores de Vygotsky e foram deliberadamente ig-
noradas por seus críticos. A mais importante dessas idéias foi a idéia de "sentido" ou de "campo de
sentido". (p. 41)

O próprio filho de A. N. Leontiev reconhece que a idéia de sentido não foi assumida pelo grupo de
Jarkov que foi liderado pelo seu pai, e que reunia Galperin, Luria, Bozhovich, Zaporochets e Elkonin,
entre outros. Sendo assim, para A. A. Leontiev, a categoria de sentido pessoal proposta por A. N. Le-
ontiev não poderia ser considerada como uma continuação da categoria de sentido na obra de
Vygotsky.

Na década de 1980 do século XX, o tema do sentido foi retomado com força, como já foi dito, por um
grupo de jovens seguidores da teoria da atividade, os quais, de forma gradual, foram tomando consci-
ência dos limites da categoria de sentido pessoal para o desenvolvimento dos temas mais complexo
da personalidade. Nesse sentido, em artigo conjunto meu e de Bratus (1982), um daqueles seguido-
res jovens de Leontiev, escrevemos:

Evidentemente é preciso separar o conceito de sentido dos limites de uma atividade isolada, como
tinha sido definido o conceito de sentido pessoal num primeiro momento por A. N. Leontiev e con-
vertê-lo numa categoria mais universal e generalizada, que inclua em si mesma, tanto os casos do
sentido pessoal, como compreendido por Leontiev, assim como outras das relações de sentido mais
complexas. Para designar esta categoria foi proposto o termo de formações de sentido da personali-
dade. (p. 56)

Mesmo com consciência das limitações da categoria sentido pessoal para o desenvolvimento de uma
teoria mais complexa da personalidade como sistema psicológico, o termo ainda não representava
uma alternativa em relação ao conceito de motivo, senão que se definia as formações do sentido
como complexas relações entre motivos.

Porém, o uso do termo "formações de sentido da personalidade" teve muitas interpretações diferen-
tes, no desenvolvimento das quais podiam ser observadas as dificuldades para considerar essas for-
mações como verdadeiras produções subjetivas da personalidade.

As barreiras para compreender o caráter subjetivo dessas formações de sentido estavam dadas pela
impossibilidade que alguns daqueles autores, formados nos marcos da teoria da atividade, tinham
para se separar do caráter objetivo do sentido pessoal e da representação sobre o vínculo direto e
imediato entre as formações de sentido e a atividade. Essas dificuldades são percebidas claramente
na seguinte afirmação de Asmolov (1984):

A determinação dos sistemas dinâmicos de sentido [termo empregado com frequência como sinô-
nimo de formações de sentido] pela posição social e considerando o condicionamento desta posição
pela atividade do sujeito determina outras particularidades de sua natureza psicológica: a mediação
dos câmbios dos sistemas dinâmicos de sentido pelas mudanças na atividade que se encontram na
sua base (o princípio da mediação pela atividade dos sistemas de sentido da personalidade). (p. 64)

Percebe-se na citação a dependência direta que o autor estabelece entre os sistemas dinâmicos de
sentido e a posição social do sujeito condicionada por sua atividade.

A atividade aparece sempre numa relação direta com os sistemas dinâmicos de sentido, mesmo que
autores como Bratus tivessem sido mais audaciosos na procura de uma independência relativa das

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formações do sentido em sua relação com a atividade. A partir daqueles anos, mesmo reconhecendo
a necessidade de ir além da categoria de sentido pessoal, o que havia sido uma das razões para a
fundação da nova categoria de formações do sentido, a nova categoria foi se expressando das for-
mas mais diversas, sem levar a uma discussão profunda sobre as suas diferentes bases ontológicas
em relação à atividade humana, no que representou uma dificuldade para compreender seu caráter
subjetivo e levantar uma discussão sobre o tema da subjetividade na teoria histórico-cultural.

Assim, conhecedores de que se estava inaugurando uma produção teórica que permitia subverter o
próprio estado da Psicologia soviética da época, trazendo um tema novo à psicologia em geral, ten-
tava-se trabalhar com a nova categoria dentro dos termos de categorias tradicionais da psicologia,
mesmo querendo destacar atributos que não podiam ser visualizados por essas categorias tradicio-
nais. Assim, por exemplo, no artigo já referido antes (Bratus e González Rey, 1982) afirma-se:

Assim, por exemplo, a honestidade como uma formação de sentido, não é um motivo concreto, não é
um conjunto de motivos, mas determinado princípio de interação de motivos, fins e meios da ativi-
dade em curso, princípio que numa forma ou noutra realiza-se em cada nova situação concreta. (p.
60)

Nessa citação, diferenciávamos a categoria de formação de sentido da categoria de motivo, como


esse termo foi desenvolvido pela psicologia tradicional, essencialmente apoiado pelo valor dinâmico
de um conteúdo concreto, ao qual se associavam de forma imediata os comportamentos de sujeito
em relação a esse conteúdo, mas que não considerava as complexas articulações de conteúdos psi-
cológicos que estão na base de cada comportamento concreto.

Nessa citação, também defendíamos a idéia de que essas organizações psicológicas mudavam se-
gundo os contextos da ação, com o qual estávamos diferenciando a produção psicológica associada
às formações de sentido, dos motivos associados a conteúdos invariáveis situados no plano intrapsí-
quico.

Porém, não tínhamos definido em que aspectos se diferenciavam essencialmente as formações de


sentido e as tendências orientadoras da personalidade (González Rey, 1982), em sua própria consti-
tuição psicológica, de outros tipos de conceitos psicológicos.

Dessa forma, a nossa ênfase era colocada na inter-relação entre processos psíquicos diferentes,
mesmo que tenhamos sido tímidos em avançar para uma nova proposta ontológica na consideração
da psique humana.

Nesse mesmo sentido, tentamos nos afastar do objetivo imediato e da atividade, na forma como se
compreendia o conceito de sentido pessoal, e que o próprio Asmolov reproduz em relação à definição
de "sistemas dinâmicos de sentido". Inclusive, tentamos ir além da própria definição apresentada por
mim, tanto em meu trabalho conjunto com Bratus (1982) como no meu primeiro livro Motivação moral
em adolescentes e jovens (1982).

Nessa obra introduzi o conceito de tendência orientadora da personalidade como uma forma de com-
preender as unidades psicológicas mais complexas sobre as quais se organizava a motivação hu-
mana nas esferas da vida mais importantes para o sujeito. Em 1995, introduzi o conceito de sentido
psicológico na minha definição do conceito de configuração subjetiva. Assim escrevi (1995):

No momento atual, no enfoque configuracional da personalidade, entendendo por configuração a inte-


gração dos múltiplos elementos dinâmicos da personalidade ao redor de um sentido psicológico es-
pecífico, pelo que se pode incluir uma configuração dentro de outra, não como elementos diferentes
que se integram, mas como parte de um novo nível qualitativo de organização psíquica. (p. 59)

Nesse momento de meu trabalho, mesmo que sem especificar com toda clareza a nova natureza
desse sentido psicológico que estava definindo, enfatizava a complexidade dinâmica da organização
da personalidade, onde as configurações subjetivas significavam integrações de processos e elemen-
tos psicológicos diferentes em torno de um sentido psicológico. Nesta definição afastei-me definiti-
vamente de qualquer associação estática e determinista entre conteúdo psicológico e comporta-

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mento. Reconheço no conceito de configuração relações múltiplas entre diferentes elementos psicoló-
gicos em torno de um sentido psicológico particular. As bases para avançar numa proposta teórica de
maior alcance estavam criadas.

Do sentido psicológico ao sentido subjetivo: o resgate da questão da subjetividade numa pers-


pectiva histórico-cultural

Mesmo que a fundação e o desenvolvimento da categoria de sentido subjetivo esteja se constituindo


no centro de meu trabalho nos últimos dez anos (González Rey, 1999, 2000, 2002, 2004a, 2004b,
2005), ainda vejo que as categorias sentido e sentido subjetivo são usadas de forma indistinta e que
o pouco rigor no conhecimento das origens do tema e o uso pouco fundamentado da categoria sen-
tido na psicologia pode levar à sua banalização.

Ciente das limitações da teoria da atividade e tendo entendido no percurso gradual de minha aproxi-
mação à questão do sentido na última parte da obra de Vygotsky, concordo com A. A. Leontiev, sobre
o fato de que essa categoria levava, não apenas a uma nova compreensão do trabalho de Vygotsky,
mas a novos desdobramentos e linhas de pesquisa na psicologia.

Foi assim que comecei a me interessar pelas possibilidades de desenvolvimento da categoria sen-
tido, a qual ficou num momento inicial de desenvolvimento na obra de Vygotsky. Nesse processo,
aprofundando no percurso do desenvolvimento dessa categoria, percebi sua significação para o de-
senvolvimento de uma teoria da subjetividade de base histórico-cultural. Foi nesse caminho que defini
as categorias de sentido subjetivo e de configuração subjetiva (González Rey, 1995), sobre as quais
trabalho até hoje numa nova definição do tema da subjetividade.

A categoria de sentido subjetivo, diferenciando-se da categoria de sentido em Vygotsky, afasta-se da


relação imediata sentido-palavra, da qual Vygotsky também começou a se afastar em seus últimos
trabalhos (Vygotsky, 1984), mas sem se deter teoricamente nas consequências dessa separação em
relação a sua própria teoria, para o qual, desafortunadamente, não dispôs de tempo de vida.

Por outro lado, na categoria sentido subjetivo fica enfatizada a relação do simbólico com o emocional,
e não apenas entre o intelectual e o afetivo, que tinha sido o foco de Vygotsky. Finalmente, a partir da
categoria de sentido subjetivo, em sua relação com a categoria de configuração subjetiva, estabeleci
uma relação inseparável entre o sentido subjetivo e a subjetividade como sistema.

No caminho de desenvolvimento da categoria de sentido subjetivo parti do conceito de configuração


subjetiva, o que já tinha definido em 1995. A minha primeira definição da categoria de sentido subje-
tivo foi no ano 2000, quando escrevi:

A nossa definição da categoria sentido subjetivo orienta-se a apresentar o sentido como momento
constituinte e constituído da subjetividade, como aspecto definidor desta, enquanto é capaz de inte-
grar formas diferentes de registro (social, biológico, ecológico, semiótico, etc.) numa organização sub-
jetiva que se define pela articulação complexa de emoções, processos simbólicos e significados, que
toma formas variáveis e que é suscetível de aparecer em cada momento com uma determinada forma
de organização dominante. (p. 18)

Nessa definição, que já tinha um caráter ontológico diferenciado em relação à categoria de motivo,
assim como de atividade, estava destacando um dos atributos essenciais do sentido subjetivo, quer
seja, expressar em forma de produção simbólica emocional a multiplicidade de registros objetivos que
afetam ao homem em sua integridade vital.

Queria separar-me de qualquer tipo de relação linear e direta entre essa produção psicológica e qual-
quer um dos processos e eventos envolvidos com sua gênese, o que considero um aspecto central
na especificidade ontológica do subjetivo.

Mais à frente, essa definição sintetiza-se, quando formulo uma definição de sentido subjetivo como a
"relação inseparável do emocional e o simbólico, onde um evoca ao outro sem ser a sua causa"
(González Rey, 2002, p. 168). Essa definição centra-se no aspecto ontológico do sentido subjetivo,
sem ter nenhuma diferença substancial com a anterior. A categoria de sentido subjetivo nos permitiu
avançar no caminho daquela citação de Vygotsky destacada acima (1984, p. 328), onde mostra que

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RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE PALAVRAS

"no processo da vida societal, as emoções entram em novas relações com outros elementos da vida
psíquica, novos sistemas aparecem, novos conjuntos de funções psíquicas; unidades de maior ordem
emergem", o que, na opinião de A. A. Leontiev (1994), representam os sistemas dinâmicos de sen-
tido.

Porém, essa colocação não teve uma continuidade teórica consistente até hoje, precisamente pela
impossibilidade dos seguidores de Leontiev, como foi analisado anteriormente, se despojarem do viés
objetivista associado à categoria do sentido pessoal.

O desenvolvimento da categoria de sentido subjetivo permitiu-me aproveitar o legado de Vygotsky na


abertura da questão da subjetividade no marco histórico-cultural. Esse tema é totalmente congruente
com a preocupação da Psicologia soviética, na qual, de forma geral, sempre houve uma compreen-
são da psique como sistema, o que esteve associado tanto em Vygotsky como em outros destacados
representantes daquela psicologia com a categoria personalidade (Vygotsky, Rubinstein, Ananiev,
Abuljanova, Miasichev, Vygotsky, entre outros).

O conceito personalidade nesses autores perdeu seu caráter de estrutura intrapsíquica apoiada no
desdobramento de tendências universais do indivíduo, como foi compreendido na psicanálise e ou-
tras aproximações dinâmicas ao termo. A personalidade, dessa forma, convertia-se num referente
para o desenvolvimento de uma psicologia geral, não sendo mais uma categoria essencialmente as-
sociada com a clínica.

O conceito de sentido subjetivo em sua organização como sistema nas configurações subjetivas, le-
vou-me à definição configuracional da personalidade, entendendo-a, como um sistema de configura-
ções em desenvolvimento permanente, dentro do qual uma configuração pode, sob determinadas
condições, se converter em um sentido subjetivo de outra.

O sentido subjetivo permitiu-me compreender a personalidade com a forma de organização da subje-


tividade individual, mas, no percurso de meu trabalho, não reduzi o conceito de subjetividade ao indi-
vidual, pois defini a subjetividade social como aquelas produções sociais carregadas de sentido sub-
jetivo que estão configuradas por processos emocionais e simbólicos produzidos nas mais diferentes
esferas da sociedade.

Essa forma de compreender os sentidos subjetivos e as configurações subjetivas permitiram-me com-


preender o caráter social das produções subjetivas sem reduzir uma à outra, assim como superar a
visão linear e determinista com que essa relação tinha sido compreendida através do conceito de in-
teriorização, tanto em Vygotsky como em Leontiev, o que foi um dos elementos que levaram à repre-
sentação de uma forte associação entre a teoria histórico-cultural e a teoria da atividade.

O sentido subjetivo não representa uma expressão linear de nenhum evento da vida social, pelo con-
trário, ele é o resultado de uma rede de eventos e de suas consequências colaterais, que se expres-
sam em complexas produções psíquicas.

Portanto, a consideração da importância das práticas sociais de caráter simbólico não me levou à ne-
gação da psique como definição ontológica, mas a uma nova definição qualitativa da organização psí-
quica humana, que defini como subjetividade, já que as produções de sentido subjetivo são insepará-
veis da organização subjetiva atual dos sistemas humanos que se interpenetram na produção de
qualquer ato humano.

Nenhum sistema de práticas em abstrato ou de eventos objetivos, tomados em seu caráter externo,
tem o poder de determinar as consequências subjetivas de seu impacto.

A categoria de sentido subjetivo permitiu-me, assim, compreender a subjetividade como um nível de


produção psíquica, inseparável dos contextos sociais e culturais em que acontece a ação humana.

Nessa compreensão, ela não é um sistema determinista intrapsíquico, situado apenas na mente indi-
vidual, mas a qualidade de um tipo de produção humana que permite penetrar em dimensões ocultas
do social e da cultura, que só se tornam visíveis na sua dimensão subjetiva. A subjetividade não é
apenas um tema da psicologia, mas das ciências sociais em geral.

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RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE PALAVRAS

A subjetividade, portanto, é uma produção humana, não uma internalização. Nada do que acontece
em nossas práticas se internaliza, pois acima delas nós produzimos, e essa produção, mesmo sendo
resultado de nossas práticas e relações, não é um resultado linear, mas uma produção diferente.

Dela participam tanto as consequências dessas ações, que podem ter referentes não visíveis a partir
das práticas atuais, como as configurações subjetivas que fazem parte da ação do sujeito, ou seja,
aquelas que são fonte da produção subjetiva associada a essa ação.

O aspecto subjetivo das produções humanas aparece de forma crescente nos trabalhos de muitos
dos sociólogos mais importantes do momento atual tais como Touraine (1999); Giddens (2002); Beck
(1995) e Ferraroti (2003), entre outros.

Numa afirmação que me pareceu muito interessante para ilustrar o conceito de subjetividade social,
Beck (1995) escreve:

Esta crise das ficções da segurança da sociedade industrial implica que as oportunidades e compul-
sões para a ação se abram, e entre elas uma deve permanentemente decidir, sem qualquer reivindi-
cação de soluções definitivas um critério pelo qual viver e agir na incerteza torna-se uma espécie de
experiência básica. Quem pode fazer e aprender isso, como e por que, ou por que não, torna-se por
sua vez uma pergunta biográfica e política fundamental da época atual. (p. 23)

Essa mudança a que o autor se refere é uma mudança essencial na subjetividade social de uma
época, pois ela gera marcas múltiplas em todos aqueles que vivem nessa mesma época, sem que
por isso apareça uma subjetividade individual uniforme, como expressão linear dessa subjetividade
social. Uma característica essencial da subjetividade é sua capacidade para subverter a ordem insti-
tucional que caracteriza a organização hegemônica de qualquer ordem social.

Tem sido precisamente essa tensão e contradição permanente um dos elementos principais da cons-
tante mudança da sociedade. Negar a subjetividade é equivalente a desconsiderar a força da produ-
ção humana mais genuína, e nos submeter ao domínio do instrumental.

Como bem coloca Beck na citação anterior "quem pode fazer e aprender isso, como e por que, ou por
que não, torna-se por sua vez uma pergunta biográfica e política fundamental da época atual", não é
apenas uma pergunta biográfica, pois a biografia em sua sequência descritiva não brinda a chave do
problema.

Antes de tudo é uma pergunta aberta à nova ordem da subjetividade que permitirá aos sujeitos a aos
seus respectivos espaços de vida social gerarem uma produção subjetiva que possibilite responder a
esse novo momento da subjetividade social e as suas consequências.

O sentido subjetivo é a forma pela qual a multiplicidade de elementos presentes na subjetividade so-
cial, assim como todas as condições objetivas de vida do mundo social, se organizam numa dimen-
são emocional e simbólica, possibilitando ao homem e a seus distintos espaços sociais novas práti-
cas que, em seus desdobramentos e nos processos emergentes que vão se produzindo nesse cami-
nho, constituem o desenvolvimento humano em todos os seus aspectos, dentro dos novos contextos
de organização social que, por sua vez, participam da definição desses processos e se transformam
no curso dos mesmos.

O sentido subjetivo e as configurações subjetivas são importantes, não apenas porque nos permitem
compreender a ação individual em seu caráter sistêmico, aspiração associada de uma forma ou outra
ao conceito de personalidade, mas é importante porque nos permite entender a sociedade numa
nova dimensão, ou seja, em seu sistema de consequências sobre o homem e sobre a organização de
seus diferentes espaços de vida social.

O esvaziamento da dimensão subjetiva que preconizam muitos dos representantes do construcio-


nismo social, longe de reforçar a dimensão social na análise dos problemas humanos, na realidade a
debilitam, ao privá-la de um aspecto sem o qual a análise social fica incompleta.

A definição do sentido subjetivo e suas correspondentes formas de organização em configurações


subjetivas na qual transitam de forma simultânea o social e o individual, coloca a psicologia de forma

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RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE PALAVRAS

necessária num espaço transdisciplinar que se alimenta por diferentes canais que hoje são enfatiza-
dos por ciências sociais diferentes.

Algumas Reflexões Finais:

• O tema do sentido na perspectiva histórico-cultural realmente foi introduzido por Vygotsky e repre-
sentou um giro, um novo momento qualitativo de sua obra que não encontrou uma continuidade na
psicologia. Na obra de Vygotsky, o sentido não representa uma categoria a mais, mas significa uma
nova unidade para a compreensão da psique, a qual ficou inconclusa pela morte prematura do autor.

• O sentido é inseparável de uma tendência geral da Psicologia soviética de compreender a personali-


dade humana como sistema que se forma e desenvolve na vida social e cultural do sujeito. Na última
parte de sua obra, Vygotsky retoma o interesse que também marcou o momento inicial de seus traba-
lhos em relação à personalidade humana, sendo o sentido uma nova unidade para o desenvolvi-
mento dessa categoria. Os temas da ação e da linguagem, mesmo sendo centrais na obra de
Vygotsky, sempre estiveram subordinados ao desenvolvimento de uma teoria complexa da mente de
caráter cultural.

• O desenvolvimento do sentido pessoal na teoria da atividade de A. N. Leontiev não representa uma


continuidade da categoria de sentido na obra de Vygotsky, senão que, pelo contrário, é uma constru-
ção orientada à definição de relações funcionais na atividade com objetos. A Psicologia soviética ape-
nas retoma o tema do sentido nos anos oitenta do século XX, e, fundamentalmente, essa categoria é
assumida a partir do sentido pessoal, mesmo reconhecendo as suas limitações para o desenvolvi-
mento dos temas da personalidade e da motivação humanas.

• Com a categoria de sentido, Vygotsky reconhece pela primeira vez o caráter gerador da psique,
rompendo com uma tendência que caracterizou momentos anteriores de sua obra, de estabelecer
uma relação linear e direta entre as operações externas e as internas, princípio que depois radicali-
zou A. N. Leontiev em sua teoria da atividade.

• A categoria de sentido subjetivo, mesmo tendo sua origem na categoria de sentido de Vygotsky, di-
ferencia-se dela por enfatizar a unidade do simbólico e emocional como via de integração da experi-
ência social do sujeito, o que não acontece apenas por experiências objetivas pontuais, e muito me-
nos norteadas por objetos, mas representam novas produções em relação com as experiências vivi-
das, as que são inseparáveis da organização subjetiva dos sujeitos e dos múltiplos contextos em que
acontece sua vida social.

• A categoria de sentido subjetivo envolve, para sua compreensão, o conhecimento de configurações


subjetivas da personalidade que são parte de sua gênese. O sentido subjetivo representa uma impor-
tante unidade para entender consequências da vida social sobre o homem, tornando-se uma catego-
ria que abre uma nova dimensão para compreender os processos humanos e, neste sentido, não é
privativa da Psicologia.

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