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SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN PS0105 2016.

1 Véra Motta 1

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA


DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS I
CURSO DE PSICOLOGIA
DISCIPLINA: SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN
PROFESSORA: VÉRA DANTAS DE SOUZA MOTTA
SEMESTRE 2016.1

A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud: comentário

A letra no inconsciente
No segundo capítulo de “A instância da letra...”, Lacan (1998a) irá discutir, a
partir dos vetores de análise estabelecidos no capítulo anterior, e com base na estrutura
da metáfora e da metonímia, a função do sujeito. Para tanto, irá recorrer aos livros
canônicos da obra freudiana em matéria de inconsciente: “a Traumdeutung, a
Psicopatologia da vida cotidiana e O chiste (Witz) em suas relações com o
inconsciente”. (LACAN, 1998a, p. 526)
De início, Lacan (1998a) retoma A Interpretação dos sonhos de Freud (1900-
1901), a Traumdeutung referida acima, de onde extrai uma das máximas freudianas: “A
interpretação dos sonhos é a via real para o conhecimento das atividades da vida
anímica” ou, como quer a edição em papel: “A interpretação dos sonhos é a via real que
leva ao conhecimento das atividades inconscientes da mente” (FREUD, p. 647). Ou
ainda, como assinala Lacan, o texto sobre o sonho abre “a via régia para o
inconsciente”. (LACAN, 1998a, p. 513)

O trabalho do sonho
A tese de Freud (1900-1901) repousa nas seguintes considerações iniciais.
O sonho, como descobrimos, toma o lugar de diversos pensamentos
que derivam de nossa vida cotidiana e formam uma sequência
completamente lógica. Não podemos duvidar, portanto, de que esses
pensamentos se originem de nossa vida mental normal. Todos os
atributos que tanto valorizamos em nossas cadeias de pensamento e
que as caracterizam como realizações complexas de ordem superior
são reencontradas nos pensamentos oníricos. Não há, porém,
necessidade de presumir que essa atividade de pensamento seja
executada durante o sono, possibilidade esta que confundiria
gravemente o que até aqui constituiu nosso quadro aceito do estado
psíquico de sono. Ao contrário, é bem possível que esses pensamentos
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tenham-se originado no dia anterior, passado despercebidos por nossa


consciência desde o início, e talvez já se tenham completado ao
iniciar-se o sono. O máximo que podemos concluir daí é que isso
prova que as mais complexas realizações do pensamento são possíveis
sem a assistência da consciência — um fato de que não poderíamos
deixar de nos inteirar, de qualquer modo, através de toda psicanálise
de um paciente que sofra de histeria ou de ideias obsessivas. (FREUD,
1900-1901, grifo do autor)
Duas outras referências merecem que nos detenhamos a respeito da teoria dos
sonhos em Freud: trata-se da Carta 107 e da Carta 119, respectivamente datadas de 28
de maio e 21 de setembro de 1899. Tais cartas fazem parte do acervo de
correspondências de Sigmund Freud dirigidas ao seu colega e amigo Wilhelm Fliess,
infelizmente excluídas da Obra Completa de Freud editada pela Imago, mas recuperadas
na edição de Jeffrey Moussaieff Masson (1986), que as reuniu em um volume intitulado
A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887-1904.
Na Carta 107, Freud refere que o livro do sonho está tomando forma, e que
decidiu não abrir mão dele, afirmando: “Nenhum outro dos meus trabalhos foi tão
completamente meu, meu próprio monte de esterco, meu arbusto e, ainda por cima, uma
nova especies mihi”. (FREUD apud MASSON, 1986, p. 354) O autor alude a sonhos
sonhados por ele, e que configuram parte de sua análise pessoal na obra sobre os
sonhos. 1
Na Carta 119, Freud (apud MASSON, 1986, p. 374-375) menciona o livro sobre
sonhos, censurando-se pelas frases tortuosas, “com seu desfile de orações indiretas e
olhadelas oblíquas para as ideias”, o que ofendia profundamente um dos seus ideais, ou
seja, o amor à verdade. Por recomendação de Fliess, Freud havia suprimido um dos
sonhos sonhados por ele do rol de sonhos analisados, fato que lhe repugnava. Nesta
carta, Freud reconhece em Fliess a alteridade terceira, que será objeto de
conceitualização teórica em Lacan.
Entretanto, lamento ter que sacrificar meu leitor favorito e melhor
dentre todos, entregando-lhe provas, pois como se pode gostar de uma
coisa que se tenha que ler nas provas? Infelizmente, não posso
prescindir de você como representante do Outro – e, mais uma vez,

1
Ver o sonho “Privada ao ar livre”, em Os afetos nos sonhos, Capítulo VI de A interpretação dos sonhos
de Freud (1900-1901). Mihi é palavra latina, caso dativo de ego.
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tenho outras sessenta páginas para você. (FREUD apud MASSON,


1986, p. 375).
Outra menção à obra A interpretação dos sonhos feita por Lacan (1998a) diz
respeito ao Capítulo VI “O trabalho do sonho”, ocasião em que Freud (1900-1901)
estabelece os modos de arranjo do sonho, constituído de duas partes: o conteúdo
manifesto – conforme é apresentado em nossa memória, e o conteúdo latente, ou os
pensamentos oníricos. Em primeiro lugar, adverte o autor, é dos pensamentos oníricos e
não do conteúdo manifesto de um sonho que podemos depreender o seu significado. A
tarefa, de acordo com Freud, é verificar de que modo os pensamentos oníricos latentes
transmudam-se em conteúdo manifesto, de tal sorte que podemos admitir que uns e
outros constituam duas versões do mesmo assunto, em linguagens diferentes.
O conteúdo do sonho, por outro lado, é expresso, por assim dizer,
numa escrita pictográfica cujos caracteres têm de ser individualmente
transpostos para a linguagem dos pensamentos do sonho. Se
tentássemos ler esses caracteres segundo seu valor pictórico, e não de
acordo com sua relação simbólica, seríamos claramente induzidos ao
erro. Suponhamos que eu tenha diante de mim um quebra-cabeça feito
de figuras, um rébus. Ele retrata uma casa com um barco no telhado,
uma letra solta do alfabeto, a figura de um homem correndo, com a
cabeça misteriosamente desaparecida, e assim por diante. Ora, eu
poderia ser erroneamente levado a fazer objeções e a declarar que o
quadro como um todo, bem como suas partes integrantes, não fazem
sentido. Um barco não tem nada que estar no telhado de uma casa e
um homem sem cabeça não pode correr. Ademais, o homem é maior
do que a casa e, se o quadro inteiro pretende representar uma
paisagem, as letras do alfabeto estão deslocadas nele, pois esses
objetos não ocorrem na natureza. Obviamente, porém, só podemos
fazer um juízo adequado do quebra-cabeça se pusermos de lado essas
críticas da composição inteira e de suas partes, e se, em vez disso,
tentarmos substituir cada elemento isolado por uma sílaba ou palavra
que possa ser representada por aquele elemento de um modo ou de
outro. As palavras assim compostas já não deixarão de fazer sentido,
podendo formar uma frase poética de extrema beleza e significado. O
sonho é um quebra-cabeça pictográfico desse tipo, e nossos
antecessores no campo da interpretação dos sonhos cometeram o erro
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de tratar o rébus como uma composição pictórica, e como tal, ela lhes
pareceu absurda e sem valor. (FREUD, 1900-1901)
Freud (1916a) retorna a esta questão em muitos momentos de sua obra,
notadamente em suas Conferências introdutórias sobre psicanálise, ao recordar que o
trabalho do sonho executa uma versão dos pensamentos oníricos segundo um modo de
expressão primitivo, semelhante à escrita pictográfica. No entanto, adverte o autor,
todos esses sistemas primitivos de expressão se caracterizam por indefinição e
ambiguidade.
Naturalmente, deve-se admitir que o sistema de expressão por meio de
sonhos ocupa uma posição muito mais desfavorável do que qualquer
desses idiomas e escritas antigos. Pois, afinal, destinam-se estes,
fundamentalmente, à comunicação; ou seja, por qualquer método e
com qualquer recurso, destinam-se a ser compreendidos. Precisamente
esta característica, porém, está ausente nos sonhos. Um sonho não
pretende dizer nada a ninguém. Não é um veículo de comunicação;
pelo contrário, destina-se a permanecer não compreendido. Por essa
razão, não devemos nos surpreender ou ficar perplexos ao
verificarmos que permanecem sem solução numerosas ambiguidades e
obscuridades dos sonhos. (FREUD, 1916a)
Para ilustrar, o autor recorre a um exemplo de sonho em que uma de suas
pacientes, que havia perdido seu pai durante o tratamento, sonhou que seu pai apareceu
e disse: “São onze e quinze, são onze e meia, são quinze para as doze”. (FREUD,
1916a) Tudo o que acudiu à mente da paciente foi que seu pai gostava que seus filhos
adultos chegassem pontualmente às refeições da família. No decorrer das associações
seguintes, aparentemente distantes do sonho, ela contou como, no dia anterior, tinha
havido um bocado de conversa sobre psicologia, em sua presença, e um seu parente
havia comentado: “O Urmensch [homem primitivo] sobrevive em todos nós”. (id.ibid.)
No sonho, ela o transformou no Uhrmensch [‘homem do relógio’] fazendo-o anunciar
os quartos de hora do meio-dia.
Outro sonho exemplar desta conferência e que teve importância histórica, tendo
sido referido por Plutarco e Artemidoro de Daldis, com ligeiras variações, foi o sonho
de Alexandre Magno. Quando o rei estava sitiando a cidade de Tiro (322 a. C.), sonhou
“que vira um sátiro dançando”. Aristandro, o intérprete de sonhos que se encontrava
presente junto com o exército, interpretou o sonho dividindo a palavra ‘Satyros’ em σα
Τυρος [sa Tyros] (tua é Tiro), prometendo que Alexandre iria triunfar sobre a cidade.
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Por esta interpretação, Alexandre foi levado a continuar o cerco e, finalmente, capturou
Tiro.
No capítulo II da obra sobre os sonhos Freud (1900-1901) examina os métodos
populares de interpretação dos sonhos mais comuns desde a Antiguidade, em que os
sonhos são considerados como uma espécie de criptografia, e em que cada signo pode
ser traduzido por outro signo de significado conhecido, de acordo com um código fixo.
Suponhamos, por exemplo, que eu tenha sonhado com uma carta e
também com um funeral. Se consultar um “livro dos sonhos”,
verificarei que “carta” deve traduzir-se por “transtorno”, e “funeral”,
por “noivado”. Resta-me então vincular as palavras-chave que assim
decifrei e, mais uma vez, transpor o resultado para o tempo futuro.
Uma modificação interessante do processo de decifração, que até certo
ponto corrige o caráter puramente mecânico de seu método de
transposição, encontra-se no livro escrito sobre a interpretação dos
sonhos [Oneirocrítica] de Artemidoro de Daldis. Esse método leva em
conta não apenas o conteúdo do sonho, mas também o caráter e
situação do sonhador, de modo que um mesmo elemento onírico terá,
para um homem rico, um homem casado ou, digamos, um orador, um
sentido diferente do que tem para um homem pobre, um homem
solteiro ou um negociante. A essência do método de decifração
reside, contudo, no fato de o trabalho de interpretação não ser aplicado
ao sonho como um todo, mas a cada parcela independente do
conteúdo do sonho, como se o sonho fosse um conglomerado
geológico em que cada fragmento de rocha exigisse uma análise
isolada. Não há dúvida de que a invenção do método interpretativo de
decifração foi sugerida por sonhos desconexos e confusos. (FREUD,
1900-1901)
Numa nota de rodapé datada de 1914, Freud (1900-1901) acrescenta uma
observação preciosa aos comentários feitos em relação ao método oneirocrítico da
Antiguidade. Baseado nos estudos de Theodor Gomperz (1866), ele verifica ser o
método de interpretação de sonhos de Artemidoro em tudo assemelhado ao proposto por
ele, por via da associação. Uma coisa no sonho significa o que ela recordar à mente do
intérprete. Contudo, assinala Freud, sua técnica difere da de Artemidoro num ponto
essencial: ela impõe a tarefa de interpretação à própria pessoa que sonha.
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Em outra conferência do mesmo conjunto das Conferências introdutórias sobre


psicanálise, Freud (1916b) salienta que os contrários são tratados da mesma forma que
as semelhanças nos sonhos, de tal modo que um elemento no sonho manifesto pode
estar se expressando a si próprio, ou seu contrário, ou a ambos conjuntamente: apenas o
sentido pode decidir qual a versão que se deve escolher. Para o autor, isto se vincula
com o fato adicional de que, nos sonhos, não se encontra uma representação para ‘não’
— ou, de qualquer modo, uma representação isenta de ambiguidade.

A linguagem do inconsciente
Em “A instância da letra...”, Lacan (1998a) assinala que o método de
interpretação de sonhos, mais que propriamente uma decodificação, ao modo de uma
criptografia, constitui antes uma decifração, e de uma modalidade linguageira que em
nada se aproxima de uma língua perdida. Neste sentido, propõe algumas paradas, que
outra coisa não é senão o exame de algumas características da linguagem do
inconsciente, realizando, nesse sentido, um retorno a Freud.
A primeira parada de Lacan (1998a) é o conceito de Entstellung, ou deformação,
traduzida por ele como transposição, e que constitui a condição geral do sonho. No
trabalho do sonho, o conteúdo onírico latente deforma-se, por força da censura onírica,
em conteúdo manifesto, tal como vimos nos exemplos de sonhos da obra freudiana.
Para Lacan, trata-se do deslizamento do significado sob o significante, em ação
inconsciente no discurso.
Em sua releitura de Freud, Lacan (1998a, p. 515) retoma os dois principais
modos de arranjo estabelecidos pelo mestre vienense: a condensação, ou Verdichtung, e
o deslocamento, ou Verschiebung. Contudo, para uma melhor apreciação dessas
modalidades de funcionamento do aparelho psíquico na teoria freudiana, não
poderíamos deixar de examiná-los à luz da contribuição de Todorov (1996), em seu
formidável escrito “A retórica de Freud”.
Nesse artigo, Todorov (1996) procede à análise exaustiva de exemplares de
chistes extraídos da obra freudiana, centrando o debate nos argumentos retóricos de
Freud, em que os mecanismos ditos de condensação e deslocamento presidem.
Interessa-nos aqui recortar apenas uma passagem, tendo em vista o interesse de nossa
exposição, o de demarcar os campos da metáfora e da metonímia, que Lacan faz
coincidir, seja em “A instância da letra...”, ou ainda em muitos seminários que
compõem o seu ensino, aos da condensação e do deslocamento freudianos.
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Vê-se, com base nesse fato, como são parciais as tentativas, feitas nas
pegadas de Lacan, de juntar os dois conceitos freudianos, condensação
e deslocamento, a categorias retóricas como a metáfora e a metonímia
[...] A condensação engloba todos os tropos, tanto a metáfora quanto a
metonímia, assim como outras relações de evocação de sentido; o
deslocamento não é uma metonímia, não é um tropo, pois não é uma
substituição de sentido, e sim uma correlação de dois sentidos
copresentes. (TODOROV, 1996, p. 329-330)
Advertidos quanto à superposição incorreta da condensação à metáfora e do
deslocamento à metonímia, retomemos a contribuição lacaniana ao debate. Para Lacan
(1998a), o que distingue os mecanismos da condensação e do deslocamento presentes
no sonho de sua função no discurso é o que Freud designa por Rücksicht auf
Darstellbarkeit, cuja tradução foi objeto de exame em nossa Tese de Doutorado
(MOTTA, 2006), e que parece encontrar melhor acolhida em Lacan como
“consideração para com os meios de encenação”. É na dimensão da cena do sonho que
Lacan encontra oportunidade para tratar do mecanismo freudiano da Rücksicht auf
Darstellbarkeit: “O fato de o sonho dispor da fala não modifica nada, visto que, para o
inconsciente, ela é apenas um elemento de encenação como os demais”. (LACAN,
1998a, p. 515)
Em nossa tese, ao examinarmos a cena no sonho, verificamos que o sonho é de
natureza particularmente substantiva, pouco atendendo às conjunções que ligam os
pensamentos oníricos, cabendo à interpretação restaurar as conexões que a elaboração
onírica destruiu. Essas conexões aparecem no sonho sob a forma de atualização de tal
modo que, numa única imagem, amalgamam-se vários elementos que na vida de vigília
poderiam estar subordinados, daí Freud (1900-1901) afirmar que os sonhos reproduzem
a ligação lógica pela simultaneidade no tempo.
A simultaneidade temporal reclama, por sua vez, a máxima condensação dos
pensamentos oníricos, por força da economia psíquica e também da censura onírica, o
que se expressa numa imagem visual com múltiplas entradas e determinações. Este fator
é denominado por Freud de Darstellbarkeit, traduzido nas edições brasileiras por
representabilidade ou figurabilidade do sonho. Por representabilidade, entende-se com
Freud que uma expressão abstrata do pensamento onírico pode ser trocada por uma
expressão pictórica e concreta, com grande vantagem: “Uma coisa pictórica é, do ponto
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de vista do sonho, uma coisa passível de ser representada” (FREUD, 1900-1901), de


ser encenada, portanto. O trabalho do sonho segue as leis do significante.

Tópica do inconsciente
A conclusão de Lacan (1998a, p. 515), é que “[...] o trabalho do sonho segue as
leis do inconsciente”. Adiante, declara: “Pois, na análise do sonho, Freud não pretende
dar-nos outra coisa senão as leis do inconsciente em sua extensão mais geral”.
(LACAN, 1998a, p. 518, 3º§) Contudo, esclarece o autor, o inconsciente não é
coextensivo à ordem psicológica ou às funções de relação do indivíduo, embora o autor
não exclua de seu campo nenhuma das ações humanas.
Para definir a tópica do inconsciente, Lacan (1998a, p. 518) recorreu, no capítulo
anterior, ao algoritmo da ciência linguística:
S
s

É a partir deste algoritmo que ele irá definir a tópica do inconsciente:

f (S) I
s

A partir dessa notação, pode-se ler: a função do significante (f (S)) é pôr um


termo qualquer (I) sobre uma barra resistente à significação (s). De acordo com Lacan
(1998a, p. 518), esta fórmula pôde ser elaborada graças à incidência do significante
sobre o significado (S/s), tal como demonstrado no algoritmo acima.
A partir dessa fórmula, que define a função significante, Lacan (1998a, p. 519)
estabelece duas outras: a da metonímia e a da metáfora. Para a primeira, a estrutura
metonímica, temos:

f (S...S') S  S (−) s

Detenhamo-nos aí a tentar elucidar a descrição dessa fórmula que nos oferece


Lacan (1998a, p. 519). Em primeiro lugar, o autor demarca o território da metonímia
como o eixo da simultaneidade de Saussure (1979), da sincronia significante, do
deslizamento, enfim, infinito, atemporal, da cadeia significante. Essa conexão entre
significantes (S...S’), tão bem marcada por Jakobson (198?) como o eixo da
combinação, do contexto, das relações de contiguidades, é confirmada por Lacan:
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“conexão do significante com o significante”. (LACAN, 1998a, p. 519)


Os efeitos dessa conexão, marcados pelo sinal matemático da congruência []2,
estabelecem que o significante S elide o significado s de tal modo que este pode
designar o objeto do desejo como a “falta a ser”, e graças ao qual o desejo do humano se
vê condenado a funcionar como a devolução, ao largo da cadeia, da metonímia desta
falta. Nesta fórmula, o sinal (−) mantém-se como forma de demonstrar que a resistência
da significação aí opera, e que a barra representa, tal como no algoritmo S/s, que o
significado desliza incessantemente sob o significante, de tal maneira que precisar uma
significação é uma operação, se não impossível, de resto inútil, já que toda sorte de
significações pode ocorrer.
A segunda fórmula, a da metáfora, é:

f ( S’ ) S  S (+) s
S
Nesta, os significantes já não se alinham na cadeia sob a forma de uma conexão,
mas se substituem um ao outro (S’/S). Salta à vista o sinal (+), a demonstrar que algo
transpõe a barreira representada pela barra, constituindo o que Lacan designa de
transferência de significado. Se a metonímia está condenada a funcionar ao largo da
cadeia, no eixo da contiguidade jakobsoniana ou da simultaneidade saussureana, a
metáfora, por sua vez, ao realizar a transposição da barra, faz emergir uma
significação, por efeito de substituição de um significante por outro, efeito que é,
segundo Lacan, de poesia ou de criação – efeito de significação, situando-se, portanto,
no eixo da sucessão saussureana, da similaridade jakobsoniana.
Vimos, no capítulo anterior, que a metonímia e a metáfora por substituição
exigem que o termo latente, que não aparece na cadeia significante, seja de certa forma
subentendido pelos significantes manifestos ou patentes, como assinala Lacan. (1998a,
p. 519, Nota 27) Desse modo, uma relação semântica entre um termo manifesto,
patente, e um termo latente (continente e conteúdo, parte e todo, etc.) contribui para

2
O símbolo matemático da congruência foi desenvolvido por Carl Friedrich Gauss (1777-1855),
matemático, astrônomo e físico alemão que escreveu várias obras, entre as quais Disputationes
arithmeticae. Nelas, Gauss estabelece que, se um número m divide a diferença a-b (ou b-a) de dois
números a e b sem resto, então a e b dizem-se congruentes módulo m, segundo a fórmula a  b (mod m),
que se lê: a é congruente com b módulo m. A relação é chamada congruência, e m é chamado de módulo
da congruência. O número b é chamado de resto de a módulo m, e, inversamente, a é chamado de resto de
b módulo m. A noção de congruência é mais inclusiva do que a noção de igualdades. Disponível em
<http://www.miniweb.com.br/ciencias/artigos/gauss5.html> Acesso em 09/05/2009.
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evocar o termo latente. Para Lacan, o símbolo S’ indica o termo produtor do efeito
significante, e sua posição na metonímia é latente, ao passo que na metáfora é
manifesto, patente.
No exemplo lacaniano de metáfora – “Seu feixe não era avaro nem odiento” –
(LACAN, 1998a, p. 510), o que se pode depreender é que se trata de uma metáfora por
substituição, com base numa metonímia. “Seu feixe” é metonímico em relação a
“Booz” – objeto e proprietário –, compondo, ao nível da frase, uma metáfora. Os
elementos produtores do efeito significante podem ser assim identificados: “Booz” é o
S’ da metonímia, latente, ao passo que “feixe” constitui o S’ da metáfora, patente,
manifesto. Em “O amor é um seixo rindo ao sol”, metáfora por extensão, o termo
‘amor’ é patente, produtor do efeito de significação.

O cogito lacaniano
Trata-se, agora, de debater a função do sujeito: “Essa transposição exprime a
condição da passagem do significante para o significado, cujo momento assinalei, mais
acima, confundindo-o provisoriamente com o lugar do sujeito”. (LACAN, 1998a, p.
519). Um pouco antes, ele havia declarado: “Mas todo esse significante, dirão, só pode
operar por estar presente no sujeito. É justamente a isso que respondo ao supor que ele
passou ao patamar do significado”. (LACAN, 1998a, p. 508, 2º§)
A ruptura da concepção lacaniana em relação à categoria de sujeito constitui um
marco da experiência analítica. Em seu ensino, Lacan busca uma compreensão da noção
de sujeito como efeito da conexão entre dois ou mais significantes, de tal sorte que um
significante representa o sujeito para outro significante. Essa concepção, que rompe
com a tradição cartesiana do sujeito, desloca o “cogito ergo sum” (“Penso, logo existo”)
de tal modo que torna o homem excêntrico ao seu próprio ser, razão pela qual Lacan aí
se indaga: “O lugar que ocupo como sujeito do significante, em relação ao que ocupo
como sujeito do significado, será ele concêntrico ou excêntrico?” (LACAN, 1998a, p.
520, 5º§)
A resposta, Lacan (1998a) a conhece, e a oferece a nós, no seu modo subversivo,
relembrando Freud: “penso onde não sou, logo sou onde não penso” (LACAN, 1998a,
p. 521, 6º§) Em outras palavras: “eu não sou lá onde sou joguete de meu pensamento;
penso naquilo que sou lá onde não penso pensar” (id.ibid) Para melhor entender a
subversão que opera o autor no cogito cartesiano, descentrando o sujeito de sua
consciência de ser, necessário recorrermos a outros momentos do seu ensino, em
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especial a um dos seus seminários ainda inéditos, em que ele se dedica a examinar essa
questão.
Trata-se de Problemas cruciais para a psicanálise, mais exatamente a lição de
02 de dezembro de 1964 do Seminário XII. Lacan (1964) procura aí demonstrar que o
sujeito nada mais é do que aquele que pensa “logo sou”. O que quer dizer que o ponto
de apoio deste termo do sujeito não é senão o momento em que ele evanesce sob o
sentido, ou seja, o sentido do “logo sou”. É justamente o sentido que faz o sujeito
desaparecer como ser, ou melhor, é quando o sujeito imagina compreender que ele já
não se reconhece enquanto tal.
Ao cogito cartesiano “Penso, logo sou”, Lacan propõe: “Sou onde não penso e
penso onde não sou”. A primeira parte desta formulação explica-se em razão de que, se
o centro da vida psíquica está no inconsciente, para a psicanálise, ou seja, se o centro da
vida psíquica está “onde não penso”, é aí, muito justamente, onde se radica o verdadeiro
ser. É aí, nesse lugar genuíno, onde verdadeiramente acontece o que, psiquicamente,
caracteriza o sujeito.
A segunda parte da formulação lacaniana – “penso onde não sou” – deriva do
fato de que, se o eu, a consciência, essa suposta cartesiana nada mais é do que o lugar
das aparências, do engano, do equívoco, então “aí não sou”, aí “parece que sou”.

A metáfora paterna
Lacan irá desenvolver a fórmula da metáfora paterna a partir da tópica do
Inconsciente no artigo “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose” (1998b), retomando a fórmula da metáfora desenvolvida em “A instância da
letra...” (1998a), e formalizando-a ainda mais.

S . S’ → S (I)
S’ x s

Lacan (1998b, p. 563) explica o desenvolvimento dessa fórmula: os S são


significantes, x é a significação desconhecida e s o significado induzido pela metáfora,
que consiste na substituição, na cadeia significante, de S’ por S. A elisão de S’, que se
representa na metáfora pelo riscado, é a condição de sucesso da metáfora. Desse modo,
ele chega à metáfora do Nome-do-Pai, metáfora de criação do sujeito na psicanálise, e
aquela que fornece o significante do desejo, fazendo emergir a significação fálica e
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permitindo ao sujeito dar significação aos seus significantes.

Nome-do-Pai . Desejo da Mãe → Nome-do-Pai ( A )


Desejo da Mãe Significado para o sujeito Falo

Ao construir a fórmula da metáfora paterna, Lacan (1998b, p. 563) põe o Desejo


da Mãe no lugar dos significantes que deverão ser elididos, e o sujeito aparece,
inicialmente, como significado do Desejo da Mãe. Com o advento da metáfora paterna,
o Desejo da Mãe é barrado, ou riscado, e o resultado dessa operação é a inclusão do
Nome-do-Pai, significante da lei no Outro – A – e da significação fálica, testemunha,
no sujeito, da inscrição da castração. O Nome vem em substituição ao lugar
primeiramente simbolizado pela operação da ausência da mãe.
Para precisar melhor a natureza do falo, podemos recorrer a outro artigo de
Lacan datado de 1958, “A significação do falo” (LACAN, 1998d), em que o autor assim
o define:
Na doutrina freudiana, o falo não é uma fantasia, caso se deva
entender por isso um efeito imaginário. Tampouco é, como tal, um
objeto (parcial, interno, bom, mau etc.), na medida em que esse termo
tende a prezar a realidade implicada numa relação. E é menos ainda o
órgão, pênis ou clitóris, que ele simboliza. E não foi sem razão que
Freud extraiu-lhe a referência do simulacro que ele era para os
antigos. Pois o falo é um significante, um significante cuja função, na
economia intrassubjetiva da análise, levanta, quem sabe, o véu
daquela que ele mantinha envolta em mistérios. Pois ele é o
significante destinado a designar, em seu conjunto, os efeitos de
significado, na medida em que o significante os condiciona por sua
presença de significante. (LACAN, 1998d, p. 696-697)
O fato de o falo ser um significante impõe que seja no lugar do Outro que o
sujeito lhe tenha acesso, que lhe é dado pela linguagem, na medida em que o
inconsciente fala. Mas esse significante do falo só pode aparecer ao sujeito de forma
velada e como razão do desejo do Outro (como se observa na experiência do fort/da),3 e
é esse desejo do Outro, como tal, que se impõe ao sujeito reconhecer.

3
Ver, a propósito, o artigo de Freud (1920) “Além do princípio do prazer”.
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Lacan (1998a) ainda estabelece outra correlação: o sintoma como metáfora e o


desejo como metonímia. No primeiro caso, assinala o autor, o duplo gatilho da metáfora
permite a comparação com o sintoma: trata-se da substituição de um significante por
outro e a emergência da significação. No segundo, o deslizamento incessante do
significado sob o significante possibilita a fixação do desejo nas reticências da cadeia
significante, dando como exemplo a lembrança encobridora.
Durante o tratamento analítico, os pacientes trazem à tona inúmeras recordações
espontâneas de sua infância, por cujo aparecimento o terapeuta não se sente
inteiramente responsável, na medida em que não fez qualquer tentativa no sentido de
uma construção dessa natureza: “Elas podem ser verdadeiras; muitas vezes, porém, são
distorções da verdade, intercaladas de elementos imaginários, tal como as assim
chamadas lembranças encobridoras, que são preservadas espontaneamente”. (FREUD,
1918)
Em artigo específico sobre o tema, Freud (1899) assinala o fenômeno de
amnésia que recobre eventos de grande magnitude na vida do sujeito infantil, ao passo
que permanecem de modo claro aquelas de natureza indiferente. Na maioria dos casos,
uma lembrança anterior é encoberta por outra posterior, desvelando-se no processo de
análise o evento primeiro afetado pela amnésia. Em outros, curiosamente, lembranças
anteriores — em realidade, construções laboriosas do sujeito de caráter inconsciente, a
que damos o nome de fantasias — encobrem eventos que se dão a posteriori.
Essa questão nos remete a outra, imediatamente, também entrevista por Lacan
em “A instância...”: trata-se da função da rememoração, que não se confunde com a
função propriamente dita da memória. Em nossa tese de Doutorado (MOTTA, 2006),
verificamos que o caráter tanto regressivo quanto progressivo, por assim dizer, das
fantasias inconscientes pode determinar o encobrimento de lembranças anteriores por
outras que se lhes sucederam ou ainda mergulharem no esquecimento eventos
posteriores a outros que, através da análise, revelam-se como construções imaginárias
do sujeito.
O trabalho de análise opera no sentido inverso ao da construção imaginária, ou
seja, por meio de “transferências” — mecanismo que permite o deslocamento das
intensidades psíquicas dos elementos —, uma análise possibilita seguir dois caminhos:
em direção ao passado e ao futuro. Desse modo, recuperam-se, pela via da análise,
eventos que foram encobertos por outros que se lhes sucederam e que não escaparam ao
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recalque, bem como se desfazem os constituintes imaginários que deram corpo às


fantasias projetadas do sujeito.
A experiência analítica, tal como Lacan a vê em “A instância...”, é uma operação
em que se desvela o modo pelo qual o humano esgota “todas as formas possíveis de
impossibilidades encontradas no equacionamento significante da solução”. (LACAN,
1998, p. 523-524). Ou seja, o desenvolvimento do sintoma e a sua solução pela
experiência analítica revelam a natureza da neurose, seja ela fóbica, histérica, ou
obsessiva, permitindo ao autor supor que a neurose é uma questão que o ser coloca para
o sujeito “lá de onde ele estava antes que o sujeito viesse ao mundo” (p. 524, 1º§)
Em conferência datada de 1933, designada “A dissecção da personalidade
psíquica”, Freud (1933 [1932]), conclui que os esforços da psicanálise direcionam-se a
fortalecer o ego, fazê-lo mais independente do superego, ampliar seu campo de
percepção e expandir sua organização, de maneira a poder assenhorear-se de novas
partes do id. “Onde estava o id, ali estará o ego” (Wo Es war, sol Ich werden). É uma
obra de cultura, afirma o autor.

A retórica lacaniana do inconsciente


Lacan (1998a) reencontra na linguagem o ponto de partida para o retorno a
Freud, não somente através dos tropos da metáfora e da metonímia, mas de outros
elementos da retórica. Neste sentido, inclui no seu campo de interesse figuras como a
perífrase, o hipérbato, a elipse, a suspensão, a digressão, a antecipação, a retratação, a
denegação, e a ironia. Entre os tropos, a catacrese, a litote, a antonomásia e a hipotipose.
Todas essas figuras e tropos constituem mecanismos do inconsciente encontrados em
ato na retórica do discurso do analisando.
Sem pretender uma análise exaustiva desses elementos da retórica, reavivemos a
memória com alguns exemplos recolhidos em Mattoso Câmara (1986), Reboul (2000) e
Todorov (1982). “Um amigo do alheio” por “ladrão” constitui uma perífrase lexical; “a
grita se levanta ao céu da gente”, por “a grita da gente se levanta ao céu”, um hipérbato;
“E, enquanto eu estes canto e a vós não posso/ sublime Rei, pois não me atrevo a tanto”,
uma elipse; “aquele se chamará bom prelado que tiver letras, reputação e virtudes”, um
exemplo de antecipação; “Como sois corajoso!”, dirigida a um covarde, ironia; “Vogais
sem esqueleto”, isto é, sem consoantes, uma catacrese (mau uso, no grego); “Tu não
estás bom, José Rodrigues”, para atenuar o que se quer dizer, como exemplo de litote;
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“o mestre de Viena”, por Freud, como antonomásia. 4


Com relação à hipotipose, ou mais simplesmente quadro, é uma das figuras mais
explosivas, consistindo em pintar o objeto de que se fala de maneira tão viva que o
interlocutor tem a impressão de tê-lo diante dos olhos. Sua força de persuasão provém
do fato de que ela “mostra” o argumento, segundo Reboul (2000), associando patos ao
logos. Em nossa tese de doutorado (MOTTA, 2006), o emprego desse recurso é
analisado em detalhes, a partir da observação de Boileau-Despréaux (1979), segundo o
qual o relato é um expediente recomendado no teatro, o que permite ao espectador
poupar-se de visões horrendas. 5
A denegação, embora presente em Quintiliano, não comparece, infelizmente, nos
tratados de retórica que nos são acessíveis. Contudo, merece que nos detenhamos,
brevemente, nesta figura sententiarum, pela sua importância na teoria psicanalítica com
Freud e Lacan. De acordo com Chemama (1995), a denegação (alemão Verneinung) é a
atitude psicológica que consiste, para um sujeito, em rejeitar um pensamento por ele
enunciado, negando-o.
Em psicanálise, a denegação aparece na obra freudiana em 1925, num artigo
intitulado “A negativa”, e está ligada ao recalcamento na medida em que, se nego
alguma coisa em um juízo, isso significa que preferiria recalcar essa mesma coisa. O
juízo, nesse caso, é um substituto intelectual do recalcamento. O paciente que, a respeito
de alguém que aparece em um sonho diz que ela não é sua mãe, leva Freud (1925) a
concluir: então ela é sua mãe.
Lacan (1998a) conclui o capítulo II com a nomeação das obras canônicas de
Freud em matéria de inconsciente: A interpretação dos sonhos (1900-1901), Sobre a
psicopatologia da vida cotidiana (1901) e Os chistes e sua relação com o inconsciente
(1905). Tais obras, no seu entender, constituem um tecido de exemplos exemplares do

4
Brevemente, as figuras e tropos acima indicadas encontram as seguintes definições: perífrase: conceito
vocabular apresentado por meio de uma construção sintática; hipérbato: inversão da ordem das palavras;
elipse: omissão, numa enunciação linguística, do termo presente em nosso espírito, porque se depreende
do contexto geral ou da situação; suspensão: desloca a ideia principal para o fim da frase; antecipação: o
determinante antecede o determinado; digressão: parte facultativa do discurso judiciário que consiste em
sair do assunto, mas para maior esclarecimento do auditório; ironia: figura que consiste em dizer o
contrário do que quer dizer, não para enganar, mas para ridicularizar; catacrese: emprego abusivo de uma
palavra ou expressão fora da sua significação adequada; litote (ou atenuação): diminuição quantitativa de
uma das propriedades do objeto, de um estado; antonomásia: sinédoque que designa uma espécie pelo
nome de um indivíduo ou um indivíduo pelo nome de uma espécie; hipotipose: figura que consiste em
descrever um espetáculo ou um acontecimento de modo tão vivo que o auditório acredita tê-lo diante dos
olhos. Ver a propósito Mattoso Câmara Jr. (2000); Todorov (1982) e Reboul (2000). Em Todorov (1996),
a paronomásia se define como figura que reúne na mesma frase palavras cujo som é quase idêntico, mas
com sentido diferente. O autor assinala que se trata de ocorrência múltipla de significantes semelhantes.
5
“O que não deve ser visto, que um relato no-lo exponha” (BOILEAU-DESPRÉAUX,1979, p. 42).
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significante em sua função de transferência, conceito que inicialmente aparece em Freud


na obra sobre os sonhos para, em seguida, assumir o laço intersubjetivo entre analisando
e analista.
Portanto, parece plausível supor que, no trabalho do sonho, está em
ação uma força psíquica que, por um lado, despoja os elementos com
alto valor psíquico de sua intensidade, e, por outro, por meio da
sobredeterminação, cria, a partir de elementos de baixo valor
psíquico, novos valores, que depois penetram no conteúdo do sonho.
Assim sendo, ocorrem uma transferência e deslocamento de
intensidades psíquicas no processo de formação do sonho, e é como
resultado destes que se verifica a diferença entre o texto do conteúdo
do sonho e o dos pensamentos do sonho. O processo que estamos aqui
presumindo é nada menos do que a parcela essencial do trabalho do
sonho, merecendo ser descrito como o “deslocamento do sonho”. O
deslocamento do sonho e a condensação do sonho são os dois fatores
dominantes a cuja atividade podemos, em essência, atribuir a forma
assumida pelos sonhos. (FREUD, 1900-1901)
Por fim, mencione-se o caso examinado por Freud (1927) em seu artigo
“Fetichismo”, em que a noção de significante é fundamental na análise freudiana, em
que pese ao fato de o conceito somente vir a público posteriormente.
O caso mais extraordinário pareceu-me ser aquele em que um jovem
alçou certo tipo de ‘brilho do nariz’ a uma precondição fetichista. A
explicação surpreendente para isso era a de que o paciente fora criado
na Inglaterra, vindo posteriormente para a Alemanha, onde esquecera
sua língua materna quase completamente. O fetiche, originado de sua
primeira infância, tinha de ser entendido em inglês, não em alemão. O
‘brilho do nariz’ [em alemão ‘Glanz auf der Nase‘] era na realidade
um ‘vislumbre (glance) do nariz’. O nariz constituía assim o fetiche,
que incidentalmente, ele dotara, à sua vontade, do brilho luminoso que
não era perceptível a outros. (FREUD, 1927)
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BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
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