Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Intelecção Textual
3. Na obra em questão, Macabéa é uma nordestina que migra para o Rio de Janeiro.
Como esse tema social é visto na obra? Ele é muito, ou pouco, explorado se
comparado à prosa da segunda fase modernista?
A imigração de Macabéa do Nordeste para ao Rio de Janeiro não é necessariamente
reforçada ao longo do texto, entretanto, as consequências dessa imigração e como ela
afetou a vida de Macabéa estão sempre presentes no texto, mesmo que não sejam
reforçados a todo momento. Em relação a outras prosas da segunda fase, esse tema social
é sim bem explorado, porém de uma maneira completamente diferente, se comparado
diretamente com a maneira que o regionalismo é apresentado em outras obras. Pois na
obra, o sentimento de miséria e mazela social é quase que infundido no leitor, de uma
maneira mais subjetiva que em outras obras.
Trecho I
Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa
tão exterior e explícita. De onde no entanto até sangue arfante de tão vivo de vida poderá
quem sabe escorrer. [...]
Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que o nunca vivi?
É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no
rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste.
Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe.
[...]
Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei [...].
O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre
milhares delas. É dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida. [...]
Quero antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se
tivesse a tolice de perguntar "que sou eu?" cairia estatelada e em cheio no chão. É que
"que sou eu?" provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é
incompleto.
Clarice Lispector. A hora da estrela. Rio de janeiro: José Olympio, 1981, pp. 16-20.
Trecho II
Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor. Ela
somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na verdade - para que mais
que isso? O seu viver é ralo. Sim. [...]
Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de um não-sei-o-quê com
ar de se desculpar por ocupar espaço. [...] Ninguém olhava para ela na rua, ela era café
frio. [...]
Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é
cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não sabia para que,
não se indagava. [...]
Talvez a nordestina já tivesse chegado à conclusão de que vida incomoda bastante, alma
que não cabe bem no corpo, mesmo alma rala como a sua.
Clarice Lispector. Idem, pp. 30-40.
A epifania no texto vai ser realizada pelo próprio leitor, fazendo com que ele se coloque
diretamente em um lugar de miséria, incentivando o mesmo a refletir sobre os mais
diversos aspectos de sua condição de vida e seu papel social, como o próprio narrador faz
na obra. Alguns trechos que reforçam isso essa epifania do narrador são:
"Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que o nunca vivi?"
"É dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida."
"Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na verdade - para que
mais que isso? O seu viver é ralo. Sim."
b) Rodrigo S.M. avisa que vai tratar de uma personagem que vive "à toa". Por que essa
personagem "cairia estatelada e em cheio no chão" caso se questionasse?
Para o narrador, a personagem vive à toa, fadada com uma ignorância que a torna incapaz
de refletir sobre a sua própria vida, e que, caso o fizesse, não suportaria o peso de entender
que a sua vida é incolor, incompleta, e que não aguentaria viver com a angústia de refletir
sobre suas carências.
7. Identifique duas metáforas por meio das quais o narrador expressa a insignificância da
vida de Macabéa.
8. Como Macabéa vive num estado de quase inconsciência, reduzida a uma condição tão
rudimentar de existência, somente expirando e inspirando, o narrador a imagina livre dos
desconfortos existenciais? Justifique sua resposta.
Trecho III
[...] Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar
em vez de um sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para
vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás - descubro
eu agora - também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria.
Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar
piegas.
Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num
quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente
substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu
saiba nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe?
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 19-20
10. Qual das alternativas não se refere ao trecho que você leu? Justifique sua
resposta.
a) Apresenta a voz do narrador sobre o processo de escrever: metalinguagem.
b) O narrador antecipa o sofrimento que a personagem Macabéa vai viver.
c) O narrador não se identifica com Macabéa.
d) Macabéa é um símbolo das mulheres anônimas, tratadas como "coisas/objetos"; sem
consciência de sua situação.
e) narrador refuta uma narradora do gênero feminino por atribuir às mulheres uma visão
romântica da realidade.
Resposta: Alternativa C.
A própria fala do narrador revela que o mesmo se identifica com o trecho que descreve
Macabéa. Ele diz: "[...] também eu não faço a menor falta, [...]."
O trecho faz uma referência à prostituição feminina como uma forma de sobrevivência.
Trecho IV
[...] Sentavam-se no que é de graça: banco de praça pública. E ali acomodados, nada os
distinguia do resto do nada. Para a grande glória de Deus.
Ele: — Pois é.
Ela: — Pois é o quê?
Ele: — Eu só disse pois é!
Ela: — Mas "pois é" o quê?
Ele: — Melhor mudar de conversa porque você não me entende.
Ela: — Entender o quê?
Ele: — Santa Virgem, Macabéa, vamos mudar de assunto e já!
Ela: — Falar então de quê?
Ele: — Por exemplo, de você.
Ela: — Eu?!
Ele: — Por que esse espanto? Você não é gente? Gente fala de gente.
Ela: — Desculpe mas não acho que sou muito gente.
Ele: — Mas todo mundo é gente, meu Deus!
Ela: — É que não me habituei.
Ele: — Não se habituou com quê?
Ela: — Ah, não sei explicar.
Ele: — E então?
Ela: — Então o quê?
Ele: — Olhe, eu vou embora porque você é impossível!
Ela: — É que só sei ser impossível, não sei mais nada. Que é que eu faço para conseguir
ser possível?
Ele: — Pare de falar porque você só diz besteira! Diga o que é do teu agrado.
Ela: — Acho que não sei dizer.
Ele: — Não sabe o quê?
Ela: — Hein?
Ele: — Olhe, até estou suspirando de agonia. Vamos não falar em nada, está bem?
Ela: — Sim, está bem, como você quiser.
Ele: — É, você não tem solução. Quanto a mim, de tanto me chamarem, eu virei eu. No
sertão da Paraíba não há quem não saiba quem é Olímpico. E um dia o mundo todo vai
saber de mim.
Ela: — É?
Ele: — Pois se eu estou dizendo! Você não acredita?
Ela: — Acredito sim, acredito, acredito, não quero lhe ofender.
A fala I revela a presunção de Olímpico, bem como o complexo de superioridade que ele
tem em relação a Macabéa, além da arrogância e orgulho de sua fama no interior da
Paraíba.
A fala II revela a insegurança de Macabéa em refletir sobre sua condição incompleta, bem
como a falta de identidade que isso lhe traz.
Trecho V
I.
"Melhor mudar de conversa porque você não me entende."
"Santa Virgem, Macabéa, vamos mudar de assunto já!"
"Pare de falar porque você só diz besteira!"
"Olhe, eu vou embora porque você é impossível!"
"É, você não tem solução. Quanto a mim, de tanto me chamarem, eu virei eu. o sertão da
Paraíba não há quem não saiba quem é Olímpico. E um dia o mundo todo vai saber de
mim."
II.
"Desculpe mas não acho que sou muito gente."
"Ah, não sei explicar."
"E que só sei ser impossível, não sei mais nada. Que é que eu faço para conseguir ser
possível?"
"Acho que não sei dizer."
De certo modo sim, porém, devido à ignorância por parte da Macabéa em refletir sobre o
seu estado atual, o diálogo se torna carente de fluidez.
d) O nome Olímpico pode ser associado a "jogos olímpicos, campeão, vencedor". Com
base na passagem que você leu, é possível associar a personagem Olímpico de Jesus a
esses sentidos?
Não, pois o nome é muitas vezes relacionado a atitudes heroicas, e a postura de Olímpico
no trecho revela uma personalidade oposta às virtudes de um clássico herói de literatura.
e) Qual é a função das expressões "pois é'; "o quê'; "e então'; "hein"?
13. Releia:
"E ali acomodados, nada os distinguia do resto do nada. Para a grande glória de Deus."
O que essa passagem revela?
A passagem revela que para o narrador, Macabéia e Olímpico são iguais entre si, ambos
não possuindo uma identidade própria, ambos sem nada que os distinguissem do nada.
14. Leia o trecho de A hora da estrela em que Macabéa se olha no espelho após ser
despedida do emprego de datilógrafa, e descreva o que se pode depreender desse
fragmento.
[...] Depois de receber o aviso foi ao banheiro para ficar sozinha porque estava toda
atordoada. Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e rachada,
cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o espelho baço e
escurecido não refletia imagem alguma. Sumira por acaso a sua existência física? Logo
depois passou a ilusão e enxergou a cara toda deformada pelo espelho ordinário, o nariz
tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão. Olhou-se e levemente pensou:
tão jovem e já com ferrugem. [...]
(LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 32