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SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN PS0105 2016.

1 Véra Motta 1

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA


DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS I
CURSO DE PSICOLOGIA
DISCIPLINA: SISTEMAS PSICOLÓGICOS – LACAN
PROFESSORA: VÉRA DANTAS DE SOUZA MOTTA
SEMESTRE 2016.1

A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud: comentário

INTRODUÇÃO
O texto-base selecionado por nós para comentário foi “A instância da letra no
inconsciente ou a razão desde Freud”, de Jacques Lacan, por sua importância no
conjunto da teoria lacaniana, em especial na sua Teoria do Signo, a partir da precisão
conceitual dos termos tomados de empréstimo à teoria linguística para o seu retorno a
Freud. Essa experiência inaugura-se com o artigo “Função e campo da fala e da
linguagem em psicanálise”, escrito em 1953.
“A instância da letra...” foi escrita para uma conferência pronunciada em 9 de
maio de 1957 no anfiteatro Descartes, na Sorbonne, a pedido do Grupo de Filosofia da
Federação dos Estudantes de Letras. Sua redação data de 14-16 de maio de 1957, tendo
sido publicada no volume 3 de La Psychanalyse (sobre o tema “Psicanálise e ciências
humanas”, Paris, PUF, 1957, p.47-81).
Em sua tese de medicina, Da psicose paranoica em suas relações com a
personalidade, de 1932, Lacan descreve, de forma exaustiva e seguindo orientação
fenomenológica, um caso rumoroso em Paris envolvendo Marguerite Anzieu (1892-
1981), denominado “caso Aimée”. Em abril de 1931, dez anos depois da gravidez de
seu filho, Didier Anzieu, Marguerite julga-se perseguida por Huguette Duflos, célebre
atriz do teatro parisiense, e decide matá-la com uma facada. A atriz esquiva-se do golpe
e Marguerite é então internada no Hospital Sainte-Anne, onde foi confiada a Jacques
Lacan, que fez dela um caso de erotomania e de paranoia de autopunição.
Até 1953, Lacan integrava os quadros da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP),
ligada à Associação Psicanalítica Internacional (IPA), esta fundada por Sigmund Freud
em 1901. Com a cisão interna da associação francesa, em torno da criação de um novo
instituto de psicanálise e da questão da análise leiga, um grupo liderado por Daniel
Lagache, entre os quais se incluem Jacques Lacan, Didier Anzieu, Octave e Maud
Mannoni, Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis, funda a Sociedade Francesa de
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Psicanálise (SFP), dissolvida em 1963. Em 1964, Lacan funda a École Freudienne de


Paris (EFP), dissolvida em 1980.
Segundo Roudinesco (1988), Lacan efetua duas leituras sucessivas da obra
saussureana. Uma primeira, em que se inscreve o chamado Discurso de Roma, que
outro não é senão “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”,
pronunciado em Roma em setembro de 1953, e uma segunda, que se revela em “A
instância da letra...”, em 1957, ao reler Saussure à luz de Jakobson.
O encontro entre Lacan e Jakobson, fundamental para o nascimento do
lacanismo (Roudinesco, 1988), deu-se pela primeira vez em 1950, por ocasião de uma
viagem de Jakobson à França. Meses antes de pronunciar sua conferência sobre “A
instância da letra...” Lacan descobriu os Fundamentals of Language, publicados por
Jakobson e Morris Halle, em Haia. Entre os artigos que compõem o livro, inclui-se
“Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia”, a partir do qual Lacan irá burilar
sua hipótese do inconsciente como linguagem.

ABERTURA
O conceito de instância é introduzido por Sigmund Freud em A interpretação
dos sonhos, com o objetivo de ordenar as regiões do aparelho psíquico percorridas pelo
processo de elaboração do sonho.
Por conseguinte, representaremos o aparelho mental, como um
instrumento composto, aos componentes do qual daremos o nome de
‘instâncias’, ou (por amor a maior clareza) ‘sistemas’. Deve-se prever,
a seguir, que estes sistemas podem talvez ficar numa relação espacial
regular uns com os outros, da mesma maneira pela qual os diversos
sistemas de lentes de um telescópio são dispostos um atrás do outro.
Falando de modo estrito, não há necessidade da hipótese de que os
sistemas psíquicos sejam realmente dispostos numa ordem espacial.
Seria suficiente que fosse estabelecida uma ordem fixa pelo fato de,
num determinado processo psíquico, a excitação passar através dos
sistemas numa sequência temporal especial. Noutros processos, a
sequência poderá talvez ser diferente e essa é uma possibilidade que
deixaremos em aberto. A bem da brevidade, no futuro falaremos dos
componentes do aparelho como ‘sistemas-ψ’. (FREUD, 1900a,
Capítulo VII, Regressão, p. 573, grifo do autor)
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Podemos ainda encontrar nessa mesma parte do Capítulo VII outras referências
ao termo instância:
As provas fornecidas pelos sonhos, contudo, auxiliar-nos-ão na
compreensão de outra parte do aparelho. Já vimos que só podemos
explicar a formação dos sonhos aventurando a hipótese de existirem
duas instâncias psíquicas, uma das quais submeteu a atividade da
outra a uma crítica que envolveu a sua exclusão da consciência. A
instância crítica, concluímos, permanece numa relação mais estreita
com a consciência do que a instância criticada, colocando-se como
uma tela entre a última e a consciência. Ademais, encontramos razões
para identificar a instância crítica com a instância que dirige nossa
vida de vigília e determina nossas ações voluntárias e conscientes. Se,
de acordo com nossas suposições, substituirmos essas instâncias por
sistemas, então nossa última conclusão terá de conduzir-nos a
localizar o sistema crítico na extremidade motora do aparelho.
(FREUD, 1900a, Capítulo VII, Regressão, p. 576-577)
Em “A instância da letra...”, Lacan (1998a) irá retomar os postulados da doutrina
freudiana para reconduzir a teoria e prática psicanalíticas ao que propunha o mestre
vienense. No interior da IPA, a direção do tratamento seguia o curso de uma psicanálise
adaptativa, em que o ego era o centro da atenção. Para retornar a Freud dentro de uma
perspectiva inversa à da psicologia do ego, tratava-se de reinventar o inconsciente,
reerguendo a doutrina com o auxílio de uma teoria do sujeito que tornasse impossível
qualquer recobrimento do inconsciente pela consciência: a linguística servirá para isso.
(ROUDINESCO, 1988, p. 321)
Neste sentido, é ilustrativo o termo de abertura do artigo em tela por uma citação
de Leonardo da Vinci, em que a incompreensão pela linguagem reúne ambas as
situações discursivas: a dos Cadernos de Leonardo e a proposição lacaniana. Embora
escrito, o texto “A instância...” situa-se, para o seu autor, “entre o escrito e a fala”.
(LACAN, 1998a, p. 496) Trata-se, em realidade, de um estilo que marca o pensador
francês: seu ensino dá-se por transmissão oral, como o demonstram os seus muitos
seminários, realizados entre 1951 e 1978.
De acordo com Roudinesco, (1988, p. 613) Lacan sempre manteve com seu
ensino oral uma relação curiosa: para ele, a passagem da fala à escrita levantava um
sério problema. Ao redigir um texto, Lacan o concebia como uma condensação de seu
seminário. Na maior parte do tempo, não improvisava e redigia de antemão as
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conferências que tinha de proferir. Desde o início, os seminários de Lacan eram


estenografados, e, a partir de 1962, gravados. Em 1972, depois de infrutíferas tentativas
de transcrição de sua fala para o escrito, Lacan autoriza seu genro Jacques-Alain Miller
ao que este chamou, desde então, de “estabelecimento do texto”.
Se o intento de Lacan (1998a) é de que seu ensino não se distancie demais da
fala, seu interesse, contudo, volta-se em “A instância...” para o campo da letra como
essencial à formação dos analistas, lembrando a propósito as palavras de Freud (1919)
no artigo “Sobre o ensino da psicanálise nas universidades”, em que este sustentava a
contribuição feita pela psicanálise a outros campos do saber.
Nessa direção [a psicanálise] já produziu diversos novos pontos de
vista e deu valiosos esclarecimentos a temas como a história da
literatura, a mitologia, a história das civilizações e a filosofia da
religião. Assim, o curso psicanalítico geral seria também aberto aos
estudantes desses ramos do conhecimento. Os efeitos fecundadores do
pensamento psicanalítico sobre essas outras disciplinas certamente
contribuiriam muito para moldar uma ligação mais estreita, no sentido
de uma universitas litterarum, entre a ciência médica e os ramos do
saber que se encontram dentro da esfera da filosofia e das artes.
Para resumir, pode-se afirmar que a universidade só teria a ganhar
com a inclusão, em seu currículo, do ensino da psicanálise. (FREUD,
1919, p. 219)
No artigo “A questão da análise leiga: conversações com uma pessoa imparcial”,
Freud (1926) argumenta em favor de o tratamento analítico ser conduzido por não-
médicos, e aponta algumas disciplinas necessárias à formação do analista.
O tratamento analítico, é verdade, cruza o campo da educação médica,
mas um não inclui o outro. Se — o que pode parecer fantástico hoje
em dia — alguém tivesse de fundar uma faculdade de psicanálise,
nesta teria de ser ensinado muito do que já é lecionado pela escola de
medicina: juntamente com a psicologia profunda, que continua sempre
como a principal disciplina, haveria uma introdução à biologia, o
máximo possível de ciência da vida sexual e familiarização com a
sintomatologia da psiquiatria. Por outro lado, a instrução analítica
abrangeria ramos de conhecimento distantes da medicina e que o
médico não encontra em sua clínica: a história da civilização, a
mitologia, a psicologia da religião e a ciência da literatura. A menos
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que esteja bem familiarizado nessas matérias, um analista nada pode


fazer de uma grande massa de seu material. (FREUD, 1926, p. 278-
279)
Quase vinte anos depois da Conferência na Sorbonne, é a vez de Lacan (2003)
reiterar a afirmação freudiana sobre o estudo das letras na formação dos analistas. Em
1975, faz publicar no primeiro número da revista Ornicar?1 um artigo cujo título
prenuncia a direção da transmissão em psicanálise: “Talvez em Vincennes...”. Em
Vincennes, no Departamento de Psicanálise da universidade, Jacques-Alain Miller
ministrava aulas como professor assistente, propondo a Lacan uma operação de
reorganização do departamento. No artigo, Lacan reúne os ensinamentos nos quais o
analista deveria apoiar-se para sua formação, elencando quatro campos do saber: a
linguística, a lógica, a topologia e a antifilosofia, advertindo-nos antes quanto à função
desse intercâmbio.
Agora não se trata somente de ajudar o analista com ciências
propagadas à moda universitária, mas de que essas ciências encontrem
em sua experiência uma oportunidade de se renovar.
Linguística – Que sabemos ser aqui a principal. O fato de um
Jakobson justificar algumas de minhas posições não me basta como
analista.
Ainda que a linguística se dê por campo o que denomino de a língua
para sustentar o inconsciente, ela procede nisso com um purismo que
assume formas variadas, justamente por ser formal. Ou seja, por
excluir da linguagem não apenas a “origem”, dizem seus fundadores,
mas também o que aqui chamarei de sua natureza.
[...]
Aponto aqui a convergência: (1) da gramática, na medida em que faz
rasgo do sentido, o que me permitirão traduzir dizendo que ela faz
uma sombra da presa do sentido; (2) equívoco2, com o qual acabo
justamente de jogar, quando nele reconheço a abordagem predileta do

1
De acordo com Roudinesco (1988), a palavra que dá título à revista Ornicar?, proposto por Jacques-
Alain Miller, deriva de um truque entre as crianças do sistema de ensino francês para a memorização das
conjunções aditivas, que consiste em transformar a sequência em que costumam ser apresentadas (ou, est,
donc, or, ni, car) numa frase fácil de decorar: “Où est donc or ni car?”. Recurso mnemônico semelhante
era empregado nas lições sobre acentuação dos verbos em que duas vogais idênticas se sucediam, como
nos verbos ler, ver, dar e crer, nas formas da terceira pessoa do plural: leem veem, deem, creem (agora
sem acentuação, consoante o Novo Acordo Ortográfico). Daí porque o recurso era: levedecrê, palavra
composta com as primeiras sílabas dos verbos assinalados.
2
A editora lembra que o termo original équivoque não comporta o sentido de erro, tal como em
português, mas apenas de ambiguidade, dubiedade.
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inconsciente para reduzir o sintoma (cf. minha topologia): contradizer


o sentido. (LACAN, 2003, p. 316-317)

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
FREUD, Sigmund (1900). Regressão. In: _____. A interpretação dos sonhos (1900-
1901). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972, v.V, p. 569-585.
_____. (1919[1918]). Sobre o ensino da psicanálise nas universidades. In: _____.
História de uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1919). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1976, v. XVII, p.215-220.
_____. (1926). A questão da análise leiga: conversações com uma pessoa imparcial. In:
_____. Um estudo autobiográfico, Inibições, sintomas e ansiedade, A questão da
análise leiga e outros trabalhos (1925-1926). Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XX, p. 205-
293.
LACAN, Jacques (1987). Da psicose paranoica em suas relações com a
personalidade. Tradução de Aluísio Menezes e outros. Rio de Janeiro: Editora Forense
Universitária, 1987.
_____. (1998b). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In:
_____. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998b,
p.238-324.
_____. (2003). Talvez em Vincennes... In: _____. Outros escritos. Tradução de Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p.316-318.
ROUDINESCO, Elisabeth. História da psicanálise na França; a batalha dos cem
anos. 2v. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.

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