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INTRODUÇÃO
O texto-base selecionado por nós para comentário foi “A instância da letra no
inconsciente ou a razão desde Freud”, de Jacques Lacan, por sua importância no
conjunto da teoria lacaniana, em especial na sua Teoria do Signo, a partir da precisão
conceitual dos termos tomados de empréstimo à teoria linguística para o seu retorno a
Freud. Essa experiência inaugura-se com o artigo “Função e campo da fala e da
linguagem em psicanálise”, escrito em 1953.
“A instância da letra...” foi escrita para uma conferência pronunciada em 9 de
maio de 1957 no anfiteatro Descartes, na Sorbonne, a pedido do Grupo de Filosofia da
Federação dos Estudantes de Letras. Sua redação data de 14-16 de maio de 1957, tendo
sido publicada no volume 3 de La Psychanalyse (sobre o tema “Psicanálise e ciências
humanas”, Paris, PUF, 1957, p.47-81).
Em sua tese de medicina, Da psicose paranoica em suas relações com a
personalidade, de 1932, Lacan descreve, de forma exaustiva e seguindo orientação
fenomenológica, um caso rumoroso em Paris envolvendo Marguerite Anzieu (1892-
1981), denominado “caso Aimée”. Em abril de 1931, dez anos depois da gravidez de
seu filho, Didier Anzieu, Marguerite julga-se perseguida por Huguette Duflos, célebre
atriz do teatro parisiense, e decide matá-la com uma facada. A atriz esquiva-se do golpe
e Marguerite é então internada no Hospital Sainte-Anne, onde foi confiada a Jacques
Lacan, que fez dela um caso de erotomania e de paranoia de autopunição.
Até 1953, Lacan integrava os quadros da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP),
ligada à Associação Psicanalítica Internacional (IPA), esta fundada por Sigmund Freud
em 1901. Com a cisão interna da associação francesa, em torno da criação de um novo
instituto de psicanálise e da questão da análise leiga, um grupo liderado por Daniel
Lagache, entre os quais se incluem Jacques Lacan, Didier Anzieu, Octave e Maud
Mannoni, Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis, funda a Sociedade Francesa de
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ABERTURA
O conceito de instância é introduzido por Sigmund Freud em A interpretação
dos sonhos, com o objetivo de ordenar as regiões do aparelho psíquico percorridas pelo
processo de elaboração do sonho.
Por conseguinte, representaremos o aparelho mental, como um
instrumento composto, aos componentes do qual daremos o nome de
‘instâncias’, ou (por amor a maior clareza) ‘sistemas’. Deve-se prever,
a seguir, que estes sistemas podem talvez ficar numa relação espacial
regular uns com os outros, da mesma maneira pela qual os diversos
sistemas de lentes de um telescópio são dispostos um atrás do outro.
Falando de modo estrito, não há necessidade da hipótese de que os
sistemas psíquicos sejam realmente dispostos numa ordem espacial.
Seria suficiente que fosse estabelecida uma ordem fixa pelo fato de,
num determinado processo psíquico, a excitação passar através dos
sistemas numa sequência temporal especial. Noutros processos, a
sequência poderá talvez ser diferente e essa é uma possibilidade que
deixaremos em aberto. A bem da brevidade, no futuro falaremos dos
componentes do aparelho como ‘sistemas-ψ’. (FREUD, 1900a,
Capítulo VII, Regressão, p. 573, grifo do autor)
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Podemos ainda encontrar nessa mesma parte do Capítulo VII outras referências
ao termo instância:
As provas fornecidas pelos sonhos, contudo, auxiliar-nos-ão na
compreensão de outra parte do aparelho. Já vimos que só podemos
explicar a formação dos sonhos aventurando a hipótese de existirem
duas instâncias psíquicas, uma das quais submeteu a atividade da
outra a uma crítica que envolveu a sua exclusão da consciência. A
instância crítica, concluímos, permanece numa relação mais estreita
com a consciência do que a instância criticada, colocando-se como
uma tela entre a última e a consciência. Ademais, encontramos razões
para identificar a instância crítica com a instância que dirige nossa
vida de vigília e determina nossas ações voluntárias e conscientes. Se,
de acordo com nossas suposições, substituirmos essas instâncias por
sistemas, então nossa última conclusão terá de conduzir-nos a
localizar o sistema crítico na extremidade motora do aparelho.
(FREUD, 1900a, Capítulo VII, Regressão, p. 576-577)
Em “A instância da letra...”, Lacan (1998a) irá retomar os postulados da doutrina
freudiana para reconduzir a teoria e prática psicanalíticas ao que propunha o mestre
vienense. No interior da IPA, a direção do tratamento seguia o curso de uma psicanálise
adaptativa, em que o ego era o centro da atenção. Para retornar a Freud dentro de uma
perspectiva inversa à da psicologia do ego, tratava-se de reinventar o inconsciente,
reerguendo a doutrina com o auxílio de uma teoria do sujeito que tornasse impossível
qualquer recobrimento do inconsciente pela consciência: a linguística servirá para isso.
(ROUDINESCO, 1988, p. 321)
Neste sentido, é ilustrativo o termo de abertura do artigo em tela por uma citação
de Leonardo da Vinci, em que a incompreensão pela linguagem reúne ambas as
situações discursivas: a dos Cadernos de Leonardo e a proposição lacaniana. Embora
escrito, o texto “A instância...” situa-se, para o seu autor, “entre o escrito e a fala”.
(LACAN, 1998a, p. 496) Trata-se, em realidade, de um estilo que marca o pensador
francês: seu ensino dá-se por transmissão oral, como o demonstram os seus muitos
seminários, realizados entre 1951 e 1978.
De acordo com Roudinesco, (1988, p. 613) Lacan sempre manteve com seu
ensino oral uma relação curiosa: para ele, a passagem da fala à escrita levantava um
sério problema. Ao redigir um texto, Lacan o concebia como uma condensação de seu
seminário. Na maior parte do tempo, não improvisava e redigia de antemão as
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De acordo com Roudinesco (1988), a palavra que dá título à revista Ornicar?, proposto por Jacques-
Alain Miller, deriva de um truque entre as crianças do sistema de ensino francês para a memorização das
conjunções aditivas, que consiste em transformar a sequência em que costumam ser apresentadas (ou, est,
donc, or, ni, car) numa frase fácil de decorar: “Où est donc or ni car?”. Recurso mnemônico semelhante
era empregado nas lições sobre acentuação dos verbos em que duas vogais idênticas se sucediam, como
nos verbos ler, ver, dar e crer, nas formas da terceira pessoa do plural: leem veem, deem, creem (agora
sem acentuação, consoante o Novo Acordo Ortográfico). Daí porque o recurso era: levedecrê, palavra
composta com as primeiras sílabas dos verbos assinalados.
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A editora lembra que o termo original équivoque não comporta o sentido de erro, tal como em
português, mas apenas de ambiguidade, dubiedade.
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BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
FREUD, Sigmund (1900). Regressão. In: _____. A interpretação dos sonhos (1900-
1901). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972, v.V, p. 569-585.
_____. (1919[1918]). Sobre o ensino da psicanálise nas universidades. In: _____.
História de uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1919). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1976, v. XVII, p.215-220.
_____. (1926). A questão da análise leiga: conversações com uma pessoa imparcial. In:
_____. Um estudo autobiográfico, Inibições, sintomas e ansiedade, A questão da
análise leiga e outros trabalhos (1925-1926). Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XX, p. 205-
293.
LACAN, Jacques (1987). Da psicose paranoica em suas relações com a
personalidade. Tradução de Aluísio Menezes e outros. Rio de Janeiro: Editora Forense
Universitária, 1987.
_____. (1998b). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In:
_____. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998b,
p.238-324.
_____. (2003). Talvez em Vincennes... In: _____. Outros escritos. Tradução de Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p.316-318.
ROUDINESCO, Elisabeth. História da psicanálise na França; a batalha dos cem
anos. 2v. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.