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HERANÇA E SUBVERSÃO
Milner (1996) retoma Lacan e sua equação que sustenta que o sujeito sobre o
qual opera a psicanálise é o sujeito da ciência, de modo a demonstrar que essa equação
enuncia três afirmações: 1) a de que a psicanálise opera sobre um sujeito e não sobre um
eu [moi]; 2) a de que há um sujeito da ciência; e 3) a de que esses dois sujeitos fazem
um.
Essas afirmações se aproximam por abordar um sujeito e por extrair um axioma
dele: “há algum sujeito, distinto de toda forma de individualidade empírica” (MILNER,
1996, p. 35) e que a equação, enquanto tal, baseia-se também em correlações históricas
acerca da fundação da psicanálise e do seu lugar na ciência moderna, a partir da
abordagem do inconsciente e de sua verdade.
Lacan avança em sua investigação sobre a verdade, agora articulada ao saber e
ao gozo, de modo a demonstrar a inconsistência do Outro e a tese da impossibilidade de
universo do discurso a partir da formalização lógica.
Torres (2012) recorda que Lacan promoveu um deslocamento da técnica
psicanalítica – criada por Freud – para a práxis psicanalítica, de modo a nomear o
campo no qual opera o psicanalista na experiência da psicanálise, práxis esta que,
enquanto direção do tratamento, como abordou no seminário A ética da psicanálise
(1959-1960/1997), é orientada para o real.
Ora, Lacan abordou o real em sua relação com a sua invenção, o objeto a, e com
o sujeito, o qual é alvo de uma destituição ao final do percurso de uma análise. Esse
processo acontece em decorrência do ato para a entrada em análise com o
endereçamento do sintoma analítico e também do ato como interpretação que se orienta
para o real, a qual comporta uma lógica, nomeada como uma lógica da interpretação, o
que também levou Lacan ao caminho da formalização da práxis psicanalítica.
É por isso, também, que Lacan, no seminário De um Outro ao outro (1967-
1968/2008), recorreu à formalização a partir da lógica moderna, por identificar o real na
própria estrutura, ou seja, que há uma lógica concernente ao real. É essa estrutura que
começa a ser interessante para Lacan, por comportar um impasse que aborda a partir da
relação do par ordenado S1-S2 com o paradoxo de Russell, não com o objetivo de
encontrar uma solução para o paradoxo, mas no sentido de mantê-lo no deslocamento
entre o primeiro par de significantes que inaugura a cadeia. O fato de recorrer à lógica
não é sem consequências para situar o lugar da psicanálise no âmbito científico.
Checchia (2004) adverte que Lacan buscou fundamentar a psicanálise no campo
da ciência a partir da experiência analítica, como pronunciou já em Função e campo da
fala e da linguagem (1953/1998) pois a experiência precisava ser resgatada para
estabelecer a psicanálise como uma ciência. Essa experiência se baseia em uma relação
de linguagem que ocorre a partir de uma linguagem artificial e não de uma linguagem
natural, de modo a operar desde um dispositivo. Essa relação artificial é a própria
análise que se monta para que o inconsciente possa aparecer, já que não é anterior a essa
relação. Nogueira (1997 apud CHECCHIA, 2004) assinala que é justamente por isso
que é impossível fazer uma ontologia do inconsciente, já que ele não é anterior à
linguagem e sim a seu efeito. E já que não era possível essa abordagem ontológica do
inconsciente, Lacan foi buscar instrumentos na prática analítica, situando-a no campo da
ciência moderna. E vai, cada vez mais, comparecer à formalização baseada em uma
linguagem artificial para dar conta da experiência analítica: uma linguagem artificial, a
lógica, tal como é concebida na modernidade, mais precisamente, na ciência moderna.
De acordo com Checchia (2004), a lógica se origina na Grécia Antiga, sendo
esse termo empregado pela primeira vez pelos estóicos e por Alexandre de Afrodisia.
No entanto, Aristóteles já abordava a lógica no Órganon – instrumento – a partir do
termo analíticos [analytikós]. A lógica aristotélica não era classificada como ciência
porque não buscava nenhum conhecimento teorético, muito menos prático de qualquer
objeto. Assim, pode-se dizer que a lógica é concebida enquanto um instrumento do
pensamento para o ato de conhecer um instrumento para a ciência, pois é capaz de
indicar uma proposição, um raciocínio, uma prova, uma definição ou uma demonstração
que uma determinada ciência deve utilizar (CHAUÍ, 2002 apud CHECCHIA, 2004).
No entanto, Lacan demonstra preferência pelo uso da lógica moderna em
detrimento da lógica clássica por conta dos impasses que foi encontrando ao longo de
sua construção teórico-clínica, de modo a buscar uma linguagem que desse conta da
formalização, função que a lógica moderna cumpriria muito bem. E de acordo com
Chauí (1997 apud CHECCHIA, 2004, p. 327):
[...] a lógica passou a dedicar-se menos ao pensamento e muito mais à
linguagem, seja como tradução, representação ou expressão do
pensamento. Seu objeto passou a ser o estudo de um tipo determinado
de discurso: a proposição e as relações entre proposições.
Referências Bibliográficas
______. (1966). A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1998. p. 869-892.
SAUSURRE, F. (1916). Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 278.
TORRES, R. O que pode ser uma lógica do real? Stylus: Revista de Psicanálise, Rio
de Janeiro, n. 24, p. 85-92, 2012.