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ou pela mecânica quântica decorre de ter sido nesses campos que se discutiu mais
a sério a noção de compromisso ontológico; desde a convenção de Copenhague
até a notação de Dirac, desde as teses de Einstein até a equação de Schrödinger,
os problemas da física moderna cativam corações e mentes simplesmente porque
mobilizam compromissos ontológicos ancestrais.
Digo que a epistemologia lacaniana fracassou porque a filosofia de Frege
tomou outro rumo, inspirando a filosofia analítica. As estruturas sintáticas de
Noam Chomsky168, não uma “filosofia da linguagem habitada pelo sujeito”,
como queria Lacan, fizeram o progresso das ciências da linguagem. Depois de
um início promissor com Michel Pêcheux e Algirdas Greimas, elas abandonaram
a complexidade categorial lacaniana, na medida mesma em que os psicanalistas,
com raras exceções, deixaram de ler linguística contemporânea.
Hoje, Frege, Cantor, Dedekind e a topologia fazem parte de um tipo de ciên-
cia e de entendimento da lógica que nenhum lacaniano está disposto a admitir.
A lógica casou-se com a neurociência169 e com a filosofia da mente170, não com
uma “prática da letra”. Nenhum avanço foi feito na lógica, na matemática nem,
muito menos, na topologia graças a Lacan. Inversamente, as ideias lacanianas
têm se frutificado na filosofia, em particular na teoria política e nas ciências
sociais, bem como na teoria estética e em algumas áreas da teoria dos discursos.
Na antropologia, a psicanálise é um capítulo de sua arqueologia, ainda que várias
ideias lacanianas pudessem ser reincorporadas em seu debate contemporâneo.
Ao que parece, estamos mais preocupados em transmitir a psicanálise a psica-
nalistas, em sua área própria de existência e a seu campo interno de circulação,
que em continuar o espírito de invenção e crítica da metafísica, presentes tanto
em Freud quanto em Lacan.
Dito isso, pode-se entender a crítica lacaniana da metafísica aristotélica como
uma crítica da positividade do ser, do “ser enquanto o que é”. Isso não é falso,
mas diz pouco sobre a potência da ontologia negativa em Lacan.

O fetichismo da transmissão
Poucos atentaram para o fato de que Lacan altera gradualmente a própria defi-
nição do que vem a ser psicanálise. Percebendo o modo como a psicanálise se

168
Noam Chomsky, Estruturas sintáticas (trad. Gabriel de Ávila Othero e Sérgio de Moura Menuzzi,
Petrópolis, Vozes, 2018).
169
Steven Pinker, Como a mente funciona (trad. Laura Teixeira Motta, 2. ed., São Paulo, Companhia
das Letras, 1998).
170
John Searle, O mistério da consciência (trad. André Yuji Pinheiro Uema, São Paulo, Paz e Terra,
1997).

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infiltrava na cultura ocidental, tomando parte em seus processos mais decisivos
de individualização, como a educação, o trabalho, as artes e as modalidades de
amor, Lacan expande a definição de psicanálise de sua acepção freudiana como
um método de tratamento e investigação, ou seja, um ramo da medicina ou
da ciência, para a tese de que ela é uma ética (práxis) e um discurso (logos). Ao
fazer isso, reconhece, foucaultianamente, que a psicanálise saiu do controle dos
psicanalistas. A fronteira epistemológica não garante imunidade metafísica.
O argumento de que o campo psicanalítico se refere à experiência dos
psicanalistas e ao exercício de seu método no que concerne a sua área ou sua
disciplina gera um último inconveniente. Analistas não escrevem, não pu-
blicam, não declaram nada na esfera pública. Eles atuam como psicanalistas
com seus pacientes e tão somente. Mesmo Lacan dizia que se colocava como
analisante em seus seminários. Então, o que eles fazem quando escrevem
obras completas, proferem seminários ou redigem ensaios sobre metafísica
da psicanálise? A resposta é: eles transmitem a psicanálise, o que é uma con-
tradição em termos.
Qual é exatamente a diferença entre a transmissão da psicanálise e um pro-
fessor transmitindo conceitos? Qual é exatamente a diferença, posto que estudos
sobre conceitos ou matemas em psicanálise não acusam, por si só, a presença de
um psicanalista (um psicanalista sem analisantes)? Ou estaríamos envoltos na
mística de que só um analista está à altura de reconhecer outro analista? O que
haveria de analítico na forma como alguém escreve livros ou compila ensaios? São
os temas que ele aborda ou a forma peculiar de seu estilo? Funciona por auto-
declaração ou pela eficácia da recepção? A hipertrofia da noção de transmissão,
assim como a de estilo, é um dos traços mais salientes da metafísica lacaniana.
Aqui voltamos ao primeiro mito metafísico, ou seja, o da unidade da psicanálise.
Não é a identidade de quem escreve nem sua adesão profissional ao campo
da psicanálise, muito menos seu currículo Lattes, o que faz um psicanalista in-
terrogar seus problemas como um cientista, discutir criticamente suas premissas
como um filósofo ou dar testemunho de sua prática como um clínico. Há um
equívoco pelos próprios argumentos, que nos fizeram admitir que o único ser é o
ser do significante, não o do conceito ou o do conjunto empírico de psicanalistas
e sua ontologia social.
Percebe-se, mais uma vez, o compromisso entre metafísica e política na ex-
pressão corrente “o analítico”. Muitas vezes esta é empregada para designar um
modo genérico de estar com os outros e operar trocas sociais, consoante com a
ética da psicanálise. Noutras vezes isso designa um código moral de obediência
injustificada. É assim que surgem os síndicos do “analítico”, seus guardiões, suas
regras tácitas e tão frequentemente opressivas em termos de lógica do reconheci-
mento. Pois, aos que não tiveram acesso ao “analítico”, resta confiar naqueles que

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possuem a prerrogativa de reconhecer, segundo seu próprio personalismo, onde
está e onde não está “o analítico”. Com isso não advogo apenas mera dispersão,
multiplicidade ou pluralidade do campo psicanalítico, mas defendo que “A”
psicanálise não existe, porque ela é não toda.
Lembremos que quando Lacan usa a expressão “campo lacaniano”, equivalente
à teoria dos campos de Maxwell171, ele faz alusão ao fato de que as equações de
Maxwell permitem unificar as forças que compõem o universo da física172. Nesse
mesmo momento, brinca com sua metafísica, dizendo que, se tivesse que escolher
uma, seria a metafísica da luz. É uma aparente alusão ao dualismo partícula-onda,
mas também uma metáfora para a tradição das luzes, ou seja, do Iluminismo
(Aufklärung) e da crítica na qual ele declaradamente inscreve seus Escritos. Daí
que muitos autores tenham mobilizado o pensamento de Lacan para enfrentar a
crise de confiança na razão, na democracia e na palavra que caracterizou o avanço
dos programas totalitários pelo mundo a partir de 2013.
A atitude onívora de Lacan tornou utilizáveis pela psicanálise qualquer teo-
ria, conceito ou autor. Com isso, dissolvem-se separações clássicas entre teoria
e prática, autor e obra, conceito e experiência, disciplinas e áreas. Dissolve-se o
próprio conceito de teoria, substituído pelo de discurso, ensino, estilo ou ética.
Esse é também o problema da substituição do conceito freudiano de formação
(Bildung) pela noção lacaniana de transmissão (transmission). Nas últimas e
decisivas vezes que Lacan emprega essa noção, em nenhuma delas encontramos
qualquer desenvolvimento metapsicológico:
1) “A filosofia em sua função histórica é essa traição, eu quase diria, do saber
do escravo para obter sua transmutação em saber de senhor.”173
Ou seja, a filosofia como metafísica que se coloca no lugar do buraco da polí-
tica, entre senhor e escravizado, expolia o saber escravo para torná-lo um saber de
segunda ordem. Assim como o escravizado domina a natureza, o senhor domina
o escravizado. Questão que se coloca agudamente na transmissão psicanalítica,

171
Jacques Lacan, O seminário, Livro XVII, cit., p. 77.
172
As formulações de James Clerk Maxwell (1865) unificam cerca de vinte equações de vinte
variáveis, incluindo: 1) Lei de Ampère corrigida, uma equação de três componentes, 2) a Lei
de Gauss para carga, descrita por uma equação, 3) a relação entre densidade de corrente total
e de deslocamento, descrita por três equações, 4) a relação entre campo magnético e o vetor
potencial, descrita por uma equação de três componentes, 5) a relação entre campo elétrico
e os potenciais escalar e vetorial, descrita por equações de três componentes, que implicam a
Lei de Faraday, 6) a relação entre campos elétricos e de deslocamento, descrita por equações de
três componentes, 7) a Lei de Ohm, que relaciona intensidade de corrente e campo elétrico,
descrita por equações de três componentes, e 8) a equação de continuidade, que relaciona a
intensidade de corrente e densidade de carga.
173
Jacques Lacan, O seminário, Livro XVII, cit., p. 19.

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pois, como analista, estamos do lado do escravizado e, como pesquisadores ou
ensinantes da psicanálise, do lado dos senhores. Entre essas duas posições, seria
mais franco falar em dialética e contradição que remeter à polaridade unívoca
do outro, como aquele a quem se destina a transmissão, seja no divã, seja na sala
de supervisão. “Então, trata-se de fazer sensível de que maneira a transmissão de
uma letra tem alguma relação com algo essencial, fundamental, na organização
do discurso, qualquer que seja o saber do gozo.”174
2) Letra é um conceito que alude a um programa de crítica do sentido e de
rarefação da significação. Insere-se como mais um capítulo da crítica lacaniana do
conceito de conceito, como cerne de sua antifilosofia. A letra pura é o matema, e
esta seria a grande ambição do segundo programa epistemológico de Lacan; aqui
a transmissão tem por objetivo apagar os efeitos ligados à pessoa, ao personalismo
e ao grupo, bem como o sistema de identificações que prende os conceitos a seus
enunciadores, gerando um sistema deformado de autoridade e obediência. A
letra teria essa função de antídoto tanto pelo que convoca de público (a letra se
escreve e passa ao público) quanto pelo sentido de que, como carta, sempre chega
a seu destino – e ainda: a letra como potência de rasura e apagamento permite
que o jogo da escrita funcione de forma subversiva em relação à racionalidade
genealógica e aos poderes instituídos. “Naturalmente, ela [a criança] recebe a
coisa, ela, sem saber que é por isso, recebe em sua primeiríssima infância, e este
é um caso bem frequente de transmissão de desejo de saber, mas é algo adquirido
de uma maneira totalmente secundária. […] Esse desejo de saber, na medida em
que toma substância, toma substância do grupo social.”175
Um flagrante exemplo do emprego da noção metafísica de substância no
contexto da transmissão simbólica, ou seja, uso social da palavra, tal como em
“é essencialmente desta maneira que”, é uma transmissão manifestamente sim-
bólica, que Freud se refere a essa ideia de castração e à dimensão coletiva e social
do saber176. Outra vez, o último Lacan reafirma o laço de castração e desejo com
a transmissão simbólica.
3) “Há ainda assim uma coisa que permite forçar esse autismo, é justamente
que lalangue é um assunto comum […] é justamente onde sou capaz de me
fazer entender por todo mundo aqui […] é por isso que pus na ordem do dia

174
Ibidem, p. 20.
175
Idem, Os não tolos erram/Os nomes do pai (trad. Frederico Denez e Gustavo Capobianco Volaco,
Porto Alegre, Fi, 2018), p. 205.
176
Idem, O seminário, Livro XXIII: O sinthoma (trad. Sergio Laia, Rio de Janeiro, Zahar, 2007
[1975-1976]). Também em “a transmissão do Nome do Pai, ou seja, no que dá com a trans-
missão da castração” (idem, O seminário, Livro XVI: De um Outro ao outro (trad. Vera Ribeiro,
Rio de Janeiro, Zahar, 2008 [1968-1969], p. 150).

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a transmissão da psicanálise – é a garantia de que a psicanálise não se encaixe
irredutivelmente em um autismo a dois’.” 177

Mais uma vez a noção de transmissão aparece ligada à passagem e ao com-


partilhamento do saber, sem que se defina explicitamente nada sobre a teoria ou
o modo de saber próprio da psicanálise. Nada sobre formação de psicanalistas.
Nada sobre a dimensão de formalização ou matema, apenas e tão somente o
apelo à língua comum.
4) “Não sou daqueles que retrocedem ante o tema de sua certeza. O que me
permitiu romper com o que estava congelado da prática de Freud numa tradição
que claramente impedia qualquer transmissão.”178
A declaração parece convergir para a ideia aqui defendida de que o que Lacan
busca na filosofia é seu método crítico. Sua serventia é separar-nos da metafísica
e seus efeitos de grupo, de fechamento ideológico e de reificação conceitual.
Acrescento aqui a consideração de que o próprio projeto de formalização integral,
seja pelo matema ou pelos impasses lógicos da matemática, seja pelo conceito e sua
realização dialética, seja ainda pela transmissão pelo conceito prático da transferência
ou da escrita, faz parte da perspectiva crítica representada pela ciência. No entanto,
a evitação do caso clínico e das narrativas de sofrimento, assim como a identificação
estilística com a retórica lacaniana, parece mais um giro formalista que não resiste à
crítica política, que ao lado da ciência formam a banda moebiana da transmissão.
Lembremos que o conceito de formação nasce da consciência crítica do sujeito
moderno sobre sua própria divisão. Pelo diagnóstico inicial de Schiller, caberia
à estética reconciliar a potência ética da verdade com a ambição cognitiva de
conquista do outro, do objeto ou da natureza. Goethe teria dado a este programa
uma forma narrativa conhecida como romance de formação, ou seja, a história
de como me tornei quem eu sou. Foi preciso Diderot, em sua ironia de O sobrinho
de Rameau, para descobrirmos que nem sempre a formação terminará em uma
obra de arte superior ou na mestria sobre si mesmo. De toda maneira, formação
(Bildung), em sentido hegeliano, não é educação (Erzihen). A primeira envolve
alienação tanto enquanto estranhamento (Enfremdung) como enquanto não
reconhecimento (Entäusserung), depois autodilaceração do eu (Entzweiunug) e
finalmente retorno rememorativo da consciência a si mesmo (Selbstbewusstsein).
A formação psicanalítica como uma verdadeira formação do inconsciente envolve

177
Idem, Le séminaire, Livre XXIV: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre [1976-1977].
Staferla, p. 66. Ver também idem, O seminário, Livro XXIII, cit.
178
“Je ne suis pas de ceux qui reculent devant le sujet de leur certitude. C’est ce qui m’a permis de rompre
avec ce qui s’était gelé de la pratique de Freud dans une tradition dont il est clair qu’elle tamponnait
toute transmission.” Idem, Le séminaire, Livre XXVII: Dissolution [1979-1980]. Staferla.

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a transmissão, como processo social, tal qual no chiste, mas também a criação
de um novo desejo.
A apropriação da noção de transmissão pelo pós-lacanismo, em estrita opo-
sição à formação, serve a uma espécie de fetiche para justificar prerrogativas de
uso e abuso do saber em jogo na psicanálise. Um franco efeito ideológico, cuja
metafísica ainda está por ser desfeita.
Neste contexto, a tese lacaniana de que a metafísica tapa (bouche) o furo da
política179 torna-se cada vez mais uma ideia profícua. É a vingança do filósofo
de roupão furado, tapando os buracos do edifício mundo. Só que agora ele saiu
do quarto escuro e está iluminando os buracos do mundo político com sua an-
tifilosofia e sua antimetafísica. Lacan elevou a noção de buraco à dignidade de
uma consistência simbólica, assim como a de ex-sistência à dimensão de real. Por
isso seria crucial que o lacanismo abandonasse a identificação entre metafísica e
filosofia aristotélica, bem como seu entendimento variável, contingente e quiçá
ameríndio da ideia ser.

179
Idem, “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos”, cit., p. 552.

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