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A Interpretação na
Psicanálise Lacaniana
Interpretation in
Lacanian Psychoanalysis REGINA CLÁUDIA MELGES PUGLIA
Psicóloga formada pelo Instituto
de Psicologia (USP). Psicanalista,
RESUMO – O artigo apresenta, em uma visão lacaniana, as transformações ocor- membro-correspondente da
ridas com alguns conceitos psicanalíticos, a partir de Freud, relacionados ao pro- Escola Brasileira de Psicanálise-SP
pusch@sti.com.br
cesso analítico e à interpretação. Discute a função do analista enquanto intérprete.
Faz distinção entre psicoterapia e psicanálise, apontando algumas de suas diferen-
ças.
Palavras-chave: Lacan – psicanálise – interpretação – processo analítico.
ABSTRACT – This article presents a Lacanian perspective on the changes that have
occurred since Freud’s statement of principles in some psychoanalytical concepts
related to both the analytical process and interpretation. It also discusses the func-
tion of the analyst as an interpreter, distinguishing psychotherapy from psychoa-
nalysis.
Keywords: Lacan – psychoanalysis – interpretation – analytical process.
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INTRODUÇÃO
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FANTASIA E SINTOMA
Freud observou como o sujeito não podia dizer nada sobre sua
fantasia, uma vez que falar sobre ela lhe causa vergonha e vai contra
seus valores ideais. Dificuldade esta que só poderia ser resolvida atra-
1 Ver também alguns comentários sobre a construção de chistes em FREUD, 1969c, p. 280s.
2 LACAN, 1998a, p. 591.
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vés de uma nova abordagem, que será proposta por Lacan, abordagem
fundada na diferenciação dos três registros: o Real, o Simbólico e o
Imaginário. Com a conceituação dos três registros, a fantasia se trans-
formou também num conceito fundamental para o avanço da psica-
nálise.
Freud, em seus últimos textos, e em particular em Análise Ter-
minável e Interminável, se perguntava o que fazer com a inércia frente
ao trabalho analítico. A questão da fantasia comprometia a psicanálise
quanto a seu fim e quanto a seu estatuto em relação a outras discipli-
nas. Lacan elaborará para a fantasia um matema fundamental. Este
matema aparece como um dos elementos que estruturam a direção do
tratamento no discurso analítico. Ao introduzir o objeto Real (a) na
fantasia ($<>a )[articulação do sujeito barrado com o objeto causa do
desejo (para sempre perdido)], Lacan dá à fantasia uma causalidade so-
bre o sintoma.
Lacan, durante seu ensino, fez inúmeras modificações na sua for-
ma de pensar o funcionamento psíquico. Num primeiro momento,
pensou que a imagem, e não o significante, atraía a libido. Haveria
uma inércia da libido articulada à imagem bloqueando o funciona-
mento da cadeia significante. Foi o momento da predominância do
Imaginário em seu ensino.
Num segundo momento, Lacan abordou o aspecto do gozo,
vendo que havia uma conexão direta entre significante e libido. O que
atraía a libido, então, seria uma imagem significantizada, a qual cha-
mou de identificação fálica. Existiria um significante especial, que no
Simbólico, atrairia o investimento libidinal. Lacan fez do falo esse sig-
nificante investido pelo fator quantitativo da libido.
A terceira maneira que Lacan pensou essa relação significante/li-
bido trouxe a fantasia como o lugar onde estes se juntam, pois a fan-
tasia é uma articulação significante na qual, de um lado, está presente
o sujeito dividido ($) e, de outro, a quantidade libidinal (a), sendo a
pulsão o articulador deles ($<>a ).
A única forma de fazer com que o sujeito se desembarace desse
gozo presentificado na imagem, no significante e na fantasia, é dar
condições para que, em sua análise, ele ultrapasse o Imaginário, dei-
xando cair as identificações idealizadas, e atravesse a fantasia que cons-
truiu. É justamente na fantasia que incide o destino do investimento li-
bidinal, e o final da análise depende do desinvestimento libidinal da
fantasia.
Lacan, no Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, não inclui a fantasia entre os quatro conceitos fundamen-
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A INTERPRETAÇÃO
Freud, no início de suas descobertas, concebia a interpretação
dos sonhos e das formações inconscientes como a busca de um signi-
ficado, obtido apenas pelo próprio sonhador através das associações
que fizesse, que proporcionariam acesso a algum conteúdo recalcado,
oculto. O sujeito, com certeza, estabeleceria essas associações com o
que originasse diretamente de sua vida mental, de fontes que lhe eram
desconhecidas, derivadas provavelmente de algum complexo. Todo
trabalho interpretativo considerava que as lembranças que acometidas
ao sujeito a partir do sonho trazido para a análise eram dependentes
de idéias e de emoções inconscientes. O trabalho interpretativo visava
tornar consciente o inconsciente. Para Freud, a elaboração onírica7 é
o trabalho que o sujeito faz para transformar o sonho latente em so-
nho manifesto. Para tanto, lança mão de condensações, deslocamentos
e transformações regressivas de pensamentos em imagens. O trabalho
que opera em sentido oposto e que é realizado numa sessão de análise,
em que a transferência está instalada, é o trabalho interpretativo. Freud
nos alerta, entretanto, que, “quanto mais o sujeito adquire conheci-
mento neste campo, tanto mais obscuros serão seus sonhos”.8 A cen-
sura leva em conta o saber adquirido com a interpretação dos sonhos.
O trabalho de elaboração do sonho incorpora esse saber, o que pro-
voca um fechamento do inconsciente, ou uma alienação do sujeito no
significante.
Lacan, em “Função e campo da palavra e da linguagem em psi-
canálise”, retoma uma afirmação feita por Freud na Traumdeutung: “o
7 A totalidade do cap. VI de A Interpretação dos Sonhos (mais de um terço de todo o livro) dedica-se ao
estudo da elaboração onírica (FREUD, 1969a, p. 297s).
8 FREUD, 1969b.
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O que faz com que uma intervenção seja interpretação? Toda in-
terpretação provoca efeitos, é operante. Mas somente “no depois”
(après-coup) se saberá quais serão esses efeitos.
Lacan não é diretamente contra a interpretação significativa.
Apenas afirma não ser ela capaz de resolver de modo algum o enigma
do sujeito: ela apenas o desloca. O que não quer dizer que seja proi-
bida ou de todo descartada. Ela pode ser útil. Para Lacan (Seminário
11), o que uma interpretação como significação possui de mais inte-
ressante não é a significação por ela produzida, mas os significantes pe-
los quais é formulada. Sua conclusão é a seguinte: “o interesse da in-
terpretação significativa é o decifrar, fazer aparecer um significante que
estava faltando ao sujeito, mas que se encontrava latente em seu dis-
curso”.12
Lacan evoca a pontuação como um modo de interpretação. A
pontuação garante a significação, marcando uma enunciação do sujei-
to em particular.
O corte da sessão, como oposto à pontuação, recorta as signifi-
cações, entalha-as, esculpe-as. Interromper o sujeito no meio de uma
frase impedindo que as significações, que as explicações proliferem,
causa um efeito de perplexidade e até de desagrado. Para lançar mão
desse modo de interpretação é preciso levar em conta as diferenças in-
dividuais. Num sujeito que tem dificuldade em falar ou naquele que
está muito aderido à significação, pode não provocar os efeitos dese-
jados. O intuito é provocar um efeito non sense. O não-senso possui
a sua fecundidade.
Outra maneira de intervir é por alusão, um enunciado que par-
ticipa do silêncio, que deixa a entender sem formular, que designa, que
mostra. Lacan também fala em recorrer à polissemia, à pluralidade de
sentidos.
Em seu Seminário 17: o avesso da psicanálise, Lacan fala em cita-
ção, que consiste em sublinhar algo enunciado pelo sujeito, como se se
colocasse aspas em seu dizer; e também em enigma: um enunciado
sem mensagem, um dizer sem proposição.
O que esses modos de interpretar têm em comum é um “dizer
nada”. O que não significa que eles nada profiram. O dizer do analista,
na interpretação, deve ser esquecido na medida em que é silencioso.
Lacan afirma que o discurso do analista é um discurso sem palavras.
Pela interpretação, conduz-se o sujeito, no percurso da experiência
12 LACAN, 1988, p. 231.
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