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HUBERTO ROHDEN

COSMORAMA
Estranhas vivências na ilha do homem integral
UNIVERSALISMO
Sumário

Advertência

Reaparecendo

Naufrágio

Íris Fala-me dos Videntes

Ritos e Ritmos Sacros

Em Harmonia com o Infinito

Auscultando a Vida da Natureza

Assim Dizia o Rajah

O Mistério do Além-de-Dentro

A Luz no Alto do Candelabro

Cosmocracia

Equidistante da Ásia e da América

Almah Fala da Atlântida

Regresso ao Mundo dos Telúricos

Ecos Cósmicos Entre os Telúricos – O Clube dos Amigos da Verdade

O Nosso Supremo Ideal


Advertência

A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar


é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e
dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior,
porque deturpa o pensamento.

Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a


transição de uma existência para outra existência.

O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é um criador de gado.

Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores.

A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se
aniquila, tudo se transforma”; se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa,
mas se escrevemos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.

Por isto, preferimos a verdade e a clareza do pensamento a quaisquer


convenções acadêmicas.
Reaparecendo...

Após o primeiro aparecimento deste livro enigmático recebi numerosas cartas;


muitos dos meus leitores querem saber se eu morri realmente naquele
naufrágio a que se refere o primeiro capítulo.

Não lhes pude responder nem sim nem não, porque nenhum destes vocábulos
teria sentido exato; porquanto, o que se pode pensar e dizer não é a verdade.
Somente uns poucos que tiveram a rara felicidade de morrer e ressuscitar
poderão compreender o sentido real das minhas palavras paradoxais. Nos
capítulos finais, aliás, encontrará o leitor uma insinuação da verdade.

A uma jovem, que fora minha aluna e desejava entrar na vida real do Eu divino,
escrevi-lhe diversas cartas insistindo em que naufragasse corajosamente, a fim
de ressuscitar gloriosamente em Cosmorama. Mas, ao que parece, ela teve
medo desse naufrágio espontâneo; continua agarrada às praias do velho ego e
às tépidas querências habituais...

Quem não morreu espontaneamente antes de ser morto compulsoriamente não


pode viver gloriosamente – é esta a mensagem de Cosmorama. É também
esta a quintessência da sabedoria do Cristo e de todos os grandes mestres da
humanidade.

Quem puder compreendê-lo compreenda-o!...


Naufrágio

Não sei quantos dias fiquei inconsciente, após aquela tremenda catástrofe.

Quando, finalmente, recobrei um tênue fio de consciência, tive a estranha


impressão de emergir, gradualmente, de um tenebroso abismo. Ainda eram
densas as trevas em derredor, mas já havia uma ligeira mescla de luz, ou semi-
luz, que foi crescendo lentamente, semelhando tímida alvorada em horizontes
longínquos. Tudo, aliás, parecia-me longínquo – e o mais longínquo de tudo
era meu próprio Eu...

Depois de mais algumas horas – ou dias, quem sabe? – já havia dentro de mim
luz suficiente para que eu conseguisse concatenar, com certa lógica, os
trágicos acontecimentos ocorridos naquela imensa solidão do Oceano Pacífico.

Fora pela madrugada... Percebeu-se horrível estampido – um choque tremendo


– gritos de centenas de lábios... “Um torpedo!...” “Uma mina!...” E nada mais vi
nem ouvi...

Só mais tarde, muito mais tarde, consegui recompor sofrivelmente os fatos. O


nosso navio devia ter dado, de improviso, numa mina flutuante, que se
desprendera de sua base, após a guerra, e vagava pelo mar.

Nada cheguei a saber dos meus companheiros de viagem. Ignoro se algum


deles sobreviveu. Menos ainda sei como foi que escapei à morte. Por mais que
pense e esquadrinhe, não há possibilidade de desvendar o mistério. Havia,
sim, botes de salvamento a bordo, mas não me lembro de ter saltado em algum
deles. Será que alguém me recolheu, já sem sentidos, num desses barcos?
Mas quem, se todos estavam morrendo? E onde teriam ficado os outros?...

Por isto, tenho até hoje grande dificuldade em crer se estou realmente vivo, ou
se morri, isto é, se tenho ainda o meu corpo terrestre, porque nunca acreditei
que pudesse estar realmente morto, algum dia; mas é possível que eu não
tenha mais o meu invólucro físico e viva apenas na antiga sensação habitual
como se ainda tivesse um corpo palpável... Quem sabe se estou sonhando?...
Talvez que tenha ultrapassado a extrema fronteira d’além do país dos sonhos e
viva agora no mundo da realíssima realidade, para além de todas as vigílias e
de todos os sonos e sonhos?... E se também isto fosse um sonho apenas?...
Tudo isto passou, confusamente, pela tela longínqua, semi-escura, da minha
consciência interna, enquanto eu conservava ainda os olhos fechados, nem
percebia som algum ao redor de mim. O silêncio era absoluto, universal...

Depois de muitas horas – ou de muitos dias, quem sabe? – ouvi vozes suaves,
esvaídos ecos, como que vindos a mim de infinita distância – vozes, mas sem
palavras distintas...

E outra vez, silêncio profundo e universal...

Finalmente, tive força suficiente para entreabrir os olhos. Havia diante de mim
algo como uma neblina tecida de verde, azul e ouro. Sentia-me docemente
embalado nessa nebulosa irreal – ou talvez ultra-real – e tive a impressão de
que uma mão suave e cálida, indizivelmente suave e querida, me passasse
mansamente pelas faces... Quem sabe se isto era o céu?...

Por fim, consegui abrir os olhos de todo. Por cima de mim pendiam enormes
flabelas de verdes palmeiras sustentadas por esguios estípites brancos e
pardacentos. Ao longe, espraiava-se o céu azul. E ao redor de mim havia luz,
muita luz, bela e cariciosa, como uma primavera de amor e benevolência...

Por largo tempo, como calculo, me quedei nessa sensação estranha,


impessoal, de estar diluído em algo verde, azul e cor de ouro... Nisto percebi
nitidamente uma coisa suave e quente afagar-me o rosto, e uma voz forte e
aveludada dizia algo que não entendi, mas que sabia ser belo e luminoso.

Quando consegui erguer os olhos, encontrei-me com um par de estrelas


engastadas num céu sereno – um rosto humano...

Não podia deixar de ser um sonho...

Sim, eu estava sonhando... Não era possível que, no meio daquele imenso
deserto de águas, o maior do globo, em que eu me afogara, houvesse seres
humanos, olhos luzentes, mãos cariciosas. Reunindo todas as forças, levantei
a mão direita e coloquei-a firmemente sobre a fronte, para me certificar de que
eu ainda existia e estava acordado. Consegui também colocar a minha mão
sobre aquela que me acariciava as faces – era real como a minha, com sangue
quente e pulsações de vida real como a minha – mas, quem sabe? se também
isto era sonho, um sonho sonhado?...

Andei marcando passo nesse círculo vicioso, não sei quanto tempo. Depois
recaí ao silencioso abismo das trevas anteriores.

Quando tornei a emergir da escuridão, não mais vi os clarões auri-verde-


cerúleos. Melodias suaves, entremeadas de palavras ininteligíveis, enchiam o
ambiente. Percebi que alguém me introduzia um líquido por entre os lábios,
que a custo enguli – e senti logo uma onda de vida inundar-me o coração.
Pela primeira vez olhei pleniconscientemente ao redor. Havia perto de mim
seres humanos, pequenos e grandes, todos de fascinante beleza e irresistível
simpatia.

– Onde estou? – perguntei – estou vivo? não morri? quem sois vós, seres
queridos?...

Em vez duma resposta, todas as lindas creaturas em derredor de mim


ergueram ao céu as mãos e os olhos e cantaram um jubiloso hino, enquanto
moviam ritmicamente os braços e o corpo, lembrando as graciosas ondulações
das louras espigas de um trigal maduro tangido pelas brisas estivais.

Só mais tarde, muito mais tarde, cheguei a saber de tudo; a princípio, era
necessário que eu vivesse num ambiente de grande calma, para refazer as
forças.

Soube, então, que estava numa ilha, que seus habitantes chamavam
“Cosmorama”. Estranhei o nome grego, que quer dizer “visão mundial”, tanto
mais que a língua que meus ignotos hospedeiros e amigos falavam não era
grega, embora, de vez em quando, ocorressem vocábulos de origem helênica.
Eu não entendia o que eles diziam, mas, ao que pude verificar repetidas vezes,
sabiam perfeitamente o que eu dizia.

No terceiro dia depois de eu voltar à consciência de mim, trouxeram-me uma


intérprete, que traduzia para minha língua o que os ilhéus diziam, mas não era
necessário que ela traduzisse o que eu dizia.

A minha intérprete era ainda mais linda que o nome que usava – Íris.

Íris, Íris!... fui repetindo de mim para mim. Faz lembrar arco-íris, símbolo de paz
e bonança – e, mais forte que dantes uma voz íntima me dizia que tudo isto
não era um sonho. Paz e bonança embalam tua vida, dizia essa voz, depois de
muitas tormentas e dum inesperado naufrágio... Não tentes acordar!... Continua
a dormir e a sonhar esse sonho, que é mais real que todas as pseudo-
realidades dos que ainda não naufragaram para as ilusões nem arribaram
ainda à ilha da grande verdade...

Não, não era sonho! Lá estava diante de mim, concreta e tangível, essa jovem
sobremaneira bela, mas duma beleza tal que me fazia amá-la sem o mais leve
desejo de a possuir. Aliás, mais tarde, durante todo tempo que vivi em
Cosmorama, verifiquei que o amor entre esses seres era como puríssima luz
solar, e não como alguma fumegante tocha de piche; não amavam para
explorar o ente amado nem para satisfazer por meio dele os seus instintos.
“Luz sem fumaça” – foi esta a expressão que se estereotipou em minha alma, e
que lancei no meu diário íntimo, ao presenciar os amores desses homens e
dessas mulheres. Se os meus companheiros terrestres lerem isto, pensarão
que o amor em Cosmorama seja algo enfadonho, descolorido, anêmico,
artificial; mas é exatamente o contrário; é um amor de intenso colorido, cheio
de ardor e vitalidade. Mas, para crer coisa tão incrível, seria necessário
experimentá-la pessoalmente; porque, afinal de contas, o homem só sabe
realmente aquilo que saboreou e sofreu nas íntimas profundezas do seu ser...
Seria necessário naufragar – para viver tão intensamente.

Íris não tardou a tornar-se a minha melhor amiga, e me dizia coisas tão
estupendas e com tamanha simplicidade que nenhum homem de nossa terra o
poderá acreditar, e dirá que tudo foi sonho meu. Nem eu insisto em que algum
leitor deste livro creia na realidade do que vou contando. Peço-lhe apenas que
não se esqueça de que há muitos sonhos, cujo conteúdo é infinitamente mais
real e verdadeiro do que todas as chamadas realidades dos homens que nunca
viveram, plenamente acordados, no mundo dos sonhos.
Íris Fala-me dos Videntes

Após alguns dias, sentia-me eu tão revitalizado que estava possuído do


dinamismo realizador de um jovem de vinte primaveras, embora tivesse mais
que o dobro dessa idade. Íris, porém, que, além de intérprete e mestra, era,
nos primeiros tempos, também uma espécie de enfermeira, cerceava os meus
ímpetos a bem do meu perfeito restabelecimento.

Intrigava-me, sobretudo, o estranho mistério dessa ilha e dessa gente. Reuni


todos os meus conhecimentos geográficos, que eram assaz extensos, mas não
consegui recordar-me da existência de alguma ilha nessa zona do Oceano
Pacífico. E, pelo que Íris me dizia, a ilha era grande, muito grande, toda ela
habitada e otimamente cultivada. Seria possível que os nossos peritos
ignorassem esse verde oásis no meio do deserto oceânico?

Num desses dias, aventurei-me a perguntar à minha gentil mentora e amiga


sobre esse particular. Sorriu-se ela enigmaticamente, e respondeu:

– Não, a nossa terra não é conhecida dos Telúricos.

Assim apelidava ela os habitantes do mundo donde eu viera.

– Mas – repliquei – os nossos navios conhecem todos os mares do globo, e,


ultimamente, os nossos aviões devassam todas as latitudes e longitudes da
atmosfera terrestre...

Íris fez com o índice da mão direita um gesto negativo, assumiu ares ainda
mais misteriosos e disse:

– Não, meu amigo, os Telúricos não podem chegar até aqui.

– Por que não? – perguntei.

– Porque ELE não o permite. ELE, o Grande, o Eterno...

– Ele, quem? – Explique-me isto, por favor, Íris.

– Os nossos Videntes são arautos d’ELE, e pela força d’ELE impedem a


aproximação de qualquer ser ainda não idôneo para viver neste ambiente.

Olhei, estupefato, para a jovem de cujos lábios finos brotavam tão enigmáticas
palavras. Lá estava ela, à minha frente, sentada num banco rústico de bambu
verde-amarelo, numa atitude natural, graciosa, espontaneamente disciplinada –
nunca a vi de pernas cruzadas – de tronco erecto, mãos sobre os joelhos,
cabeça erguida e com os olhos iluminados por um fulgor longínquo. O cabelo
liso, escuro, ligeiramente acastanhado, emoldurava-lhe belamente o rosto oval,
de tez antes morena que clara. Ao contemplá-la atentamente, percebi que a
posição dos seus olhos, de um castanho escuro, era ligeiramente oblíqua,
lembrando tipo asiata, embora fosse difícil situá-la em algum dos países desse
continente por nós conhecidos. Íris, como todos os habitantes de Cosmorama,
usava trajo simples, levíssimo, espécie de túnica curta sem mangas, feita de
um tecido de fibra vegetal. Soube mais tarde que essa vestimenta não tinha
propriamente o fim de cobrir a nudez do corpo, nem mesmo para protegê-lo
das intempéries, mas servia antes para indicar a que grupo ou classe social
cada um pertencia. Pois essas túnicas, muito ralas e semitransparentes,
variavam de cor, conforme a respectiva classe.

A vestimenta de Íris era de um delicado verde-capim, harmonizando com o


bronze suave da sua epiderme.

Depois de meditar em silêncio nas últimas palavras da jovem, perguntei-lhe,


escandindo vagarosamente as palavras:

– Como podem os vossos Videntes impedir o descobrimento desta ilha?

– Para os Telúricos – respondeu Íris – é difícil compreender tal coisa, porque a


sua evolução está ainda no segundo estágio.

– Como? será que a senhora não sabe...

– A senhora? – interrompeu-me ela, sorrindo – Bem se vê que és dos


Telúricos...

– Será que você não sabe –

– Por que esse “você”? aqui só se fala por “tu”, seja a quem for.

– Não sabes tu, Íris, que nós temos rádio, radar e televisão?...

Ao dizer “tu” a essa fascinante creatura de Deus, senti todo o encanto – ia


quase dizendo, toda a pureza e sinceridade – que vai nesse trato. Por que é
que nós, os Telúricos, abandonamos esse lindo “tu” e nos emaranhamos no
complicado e impuro cipoal de Vossa Senhoria, Vossa Excelência, Vossa
Majestade, Vossa Excelência Reverendíssima, Vossa Eminência, e até esse
horrível e blasfemo Vossa Santidade? Mesmo os títulos “senhor”, “senhora”,
“você” são insuportáveis a quem se habituou a pôr o Eu humano acima de
qualquer profissão ou função social, política ou eclesiástica, que essa pessoa
ocupe talvez por algum tempo, mas que em nada afeta a essência da natureza
humana. Esse puríssimo “tu”, se outra coisa não fosse, cinge de um halo de
beleza e poesia a ilha de Cosmorama.
Ao proferir as majestosas palavras “rádio, radar e televisão”, algo ofendido no
meu orgulho Telúrico, pensei de mim para mim: Será que Íris já ouviu essas
palavras e lhes conhece o sentido?...

Ela, porém, não se mostrou nada surpresa, limitando-se a responder


calmamente:

– O rádio, o radar e a televisão dos Telúricos estão baseados em processos


puramente mecânicos, ao passo que as nossas experiências são humanas.

– Explique-se... explica-te, por favor, Íris.

– Nós não necessitamos de aparelhos metálicos para transmitir e receber


mensagens de qualquer parte do Cosmos; a nossa alma emite e recebe
vibrações. Quando alguma creatura ainda não-idônea se aproxima de nossa
ilha, seja por mar, seja pelo ar, os nossos Videntes emitem uma onda espiritual
que despista o invasor, dando-lhe outro rumo, sem que ele o saiba.

– Quer dizer que os vossos Videntes operam com uma espécie de controle
remoto, como nós fazemos por meio de ondas eletrônicas?

– Mais ou menos.

– Usaste, há pouco, a palavra “não-idôneo”, Íris. Entendo que isto quer dizer
não devidamente espiritualizado.

– É exato, contanto que entendas a palavra “espiritual” no sentido cósmico, e


não como ela é, geralmente, usada entre vós.

– Mas, neste caso, como é que eu, que não me considero muito avançado em
espiritualidade, consegui romper a muralha invisível e penetrei neste recinto
sagrado?

– Quanto a ti, meu amigo – respondeu Íris, apontando-me o índice e dando


uma inflexão simpática à palavra “amigo” – há um plano especial, de que te
falarei em outra ocasião. Por hoje te digo apenas que as Potências Cósmicas
te destinaram a levar aos Telúricos algo do que vais ver e viver aqui em
Cosmorama.

Levantando-se, erecta e esguia como uma chama, juntou as palmas das mãos
ao peito, inclinou-se sobre as pontas das mãos em direção a mim e disse com
reverência:

– Salem aleikum!

– Salem aleikum – respondi eu, sabendo que isto quer dizer “a paz esteja
contigo”.
Retirou-se Íris, demandando as praias do mar, onde iam realizar-se, como cada
dia, as cerimônias cósmicas do pôr-do-sol.

Quanto a mim, deixei-me ficar imerso num mundo de pensamentos e


sentimentos, até que me envolveu de todo o véu da noite...
Ritos e Ritmos Sacros

Quando, naquela tarde, Íris se despediu de mim, dizendo que ia tomar parte
nos festejos do pôr-do-sol, ardia eu de impaciência por assistir também a esses
ritos. Mas não fui convidado, e sem convite especial nenhum estranho pode
presenciar essas solenidades.

Só muito mais tarde foi-me concedido esse privilégio, que marcou um ponto
culminante nas fascinantes experiências da minha vida, verdadeiro banquete
para minha permanente sede de coisas verdadeiras e belas.

A ilha de Cosmorama é, geralmente, plana, cortada, porém, de numerosas


colinas suavemente arredondadas. Há dois montes muito elevados, que, no
inverno e boa parte da primavera, estão coroados de neves. Do monte do norte
descem numerosos arroios, alguns dos quais confluem na planície, formando
um rio de volume respeitável. Também, ao sopé do monte do sul, brotam
diversas nascentes, mas que demandam o oceano separadamente, irrigando
vastas baixadas cobertas de culturas de todo o gênero. Os Cósmicos – é assim
que os habitantes se apelidam a si mesmos – vivem, principalmente, de
agricultura, sem serem vegetarianos absolutos: alimentam-se também de ovos,
leite, queijo e outros produtos animais, que não exijam destruição de vida. Essa
abstenção de carnes obedece mais a um apurado instinto biológico-sanitário do
que a princípios ético-religiosos.

Mas disto falaremos em outra ocasião. Para hoje registrei no meu diário a
grande experiência estético-espiritual que tive ao assistir ao que os Cósmicos
chamam Homenagem ao Sol Nascente.

Muito antes que o globo solar emergisse das águas do Pacífico, achavam-se
milhares de homens, mulheres e crianças reunidos na vastíssima plataforma de
uma colina, cujo topo aplainado deve medir pelo menos um quilômetro de
diâmetro. No centro do extenso planalto, ajardinado, e, em parte, arborizado,
ergue-se um templo circular, construído de pedra alvíssima todo ele. Não há,
propriamente, paredes; todo o santuário é uma espécie de hall aberto,
lembrando gigantesco cogumelo de neve.

Quando, nessa memorável manhã, cheguei ao alto da Colina Sagrada e fui


conduzido por Íris à entrada do templo, mal pude crer no testemunho dos meus
olhos e ouvidos. Por momentos, fiquei como que extático fora de mim, pelo que
via e ouvia...
Pela extensa borda da plataforma circular da colina estavam dispostas milhares
de crianças, primeiro as pequeninas de menos de um metro de altura; depois,
mais para dentro, outro círculo, um pouco mais alto; seguiam-se outros
círculos, de crianças de tamanho ascendente. Depois delas, jovens de ambos
os sexos, dispostos também pelo tamanho; e, finalmente, as senhoras e os
homens, nos círculos interiores, ladeando o santuário, rodeado de colunatas
alvas como a neve das montanhas. Nas escadarias graduadas que
circundavam o templo se achavam dispostos simetricamente, os Videntes.

Cada pessoa nesses gigantescos círculos trajava túnica de cor diferente,


começando pelo branco imaculado das crianças, passando daí para um róseo
pálido até um vermelho vivo, sucedido por várias graduações de azul, verde,
até culminar em trajos cor-de-ouro luminoso, que assinalava as filas dos
Videntes. Dir-se-ia um imenso arco-íris a rodear uma montanha de neve,
perdendo-se no horizonte longínquo, nas vagas indefinidamente verde-azuis do
mar, visível de três lados da colina, situada na ponta duma vasta península.

O silêncio era absoluto. Quem fechasse os olhos, julgar-se-ia achar em pleno


Saara, sem alma viva pelos arredores. A ordem e disciplina espontânea dos
Cósmicos é algo que ninguém pode imaginar que não as tenha presenciado.

No momento em que o sol emergia das águas do Pacífico e o seu primeiro


segmento radiante lançava enorme esteira de ouro movediço na superfície
líquida, a um sinal dado, todos esses círculos de pessoas ergueram ao céu os
olhos e as mãos abertas em cálice como que oferecendo uma dádiva e
esperando receber algum dom das alturas. Ao mesmo tempo, um dos
Videntes, lá do alto, proferia uma prece, pausada e solenemente. Terminada
esta, toda a assembléia, num coral sintonizado, começou a cantar hinos ao Pai
das Luzes, acompanhando os cânticos com movimentos rítmicos das mãos e
do corpo.

Eu, de tão deslumbrado, não sabia se estava sonhando ou acordado.

Por vezes, os bailados lembravam o majestoso ondular de trigais ao sopro da


viração; outras vezes semelhavam o saltitar das gotas líquidas que fugissem
duma cachoeira ao bater nos rochedos. De intervalo a intervalo, uma das filas
de crianças, de túnica branca, disparava, graciosa e ágil, passando entre duas
outras filas de outra cor, como se uma lançadeira executasse rápido vai-e-vem
pelas tramas e urdiduras versicolores de um tear.

Quando o sol se achava a certa altura sobre o horizonte, cessaram de chofre


os cânticos, continuando, porém, os ritmos sacros, ao som de instrumentos
musicais.

Por fim, no meio de profundo silêncio, todos se quedaram, imóveis, de mãos


postas ao peito e olhos semifechados. Perguntei a Íris o que estavam fazendo.
Também ela se achava na mesma atitude de estátua, e, sem se mover,
respondeu-me a meia voz: “É hora da meditação. Sintoniza a tua alma com
Ele, o Grande, o Eterno”.

Eu, o Telúrico, não quis passar vergonha diante dos Cósmicos, e fiz o possível
para me conservar imóvel durante meia hora, como todos eles; não sei se
minha alma esteve também imobilizada, focalizando o grande Centro invisível
que todos esses seres estranhos, desde as criancinhas até os adultos e
anciãos, estavam adorando intensamente. Comecei a saborear a inefável
beleza que há na visão da verdade. Percebi também – não me pergunte o leitor
como! – que espiritualidade é juventude que ignora velhice.

O Rito do Sol Nascente terminou com um vibrante clangor de trombetas.

Enquanto íamos descendo da colina, perguntei à minha gentil mentora se essa


cerimônia se repetia todas as manhãs.

– Não com essa solenidade – respondeu ela – mas em forma mais simples;
hoje é o equinócio da primavera, e por isto comemoramos tão festivamente o
nascer do astro benéfico.

Fez-me, depois, uma pergunta desconcertante: quis saber se eu tinha


acompanhado, durante a meditação, os pensamentos do Rajah. Rajah é o
título de uma classe dos grandes Videntes. Respondi-lhe que não, nem achava
possível tal coisa.

– É verdade – disse ela calmamente – Entre os Telúricos há poucos que


saibam perceber os pensamentos de outrem sem que eles sejam
materializados pelos lábios; aqui estamos todos habituados a perceber os
pensamentos de outra pessoa, quando esta o deseja.

Conversamos longamente sobre este assunto, misterioso para mim, natural


para ela e os Cósmicos, em geral.

Perguntou-me, ao depois, se eu queria acompanhá-la aos campos, onde ia


associar-se aos outros, já em plena atividade. “Aqui em Cosmorama”,
acrescentou, “todos trabalham; o trabalho dá grande alegria e bem-estar”.

– E dá também saúde e dinheiro – acrescentei ingenuamente, na minha


insipiência de Telúrico. Íris sorriu apenas, com aquele sorriso leve e simpático,
e nada replicou. Percebi então que minha observação era descabida, porque
não circulava dinheiro algum entre os Cósmicos e, quanto ao estado de saúde
nunca vira um só indivíduo doente, fraco, deformado. Também não havia
farmácias, hospitais nem médicos.
Como Íris acelerava o passo para se associar aos demais trabalhadores
agrícolas, recalquei uma dúzia de perguntas que me ardiam na alma, e no meio
dum grupo de homens, pus mãos à obra.

Nunca na minha vida trabalhei com tanto entusiasmo. E, sem saber nem
querer, acompanhei, à surdina, as melodias rítmicas que alguns cantavam a
meia-voz.
Em Harmonia com o Infinito

Muitas semanas haviam passado desde que eu arribara, tão misteriosamente,


a essa ilha de mistério. Rápida fora a minha convalescença, graças ao
tratamento que recebera de seus habitantes. O termo “tratamento” não deve
ser tomado no sentido em que é usado entre nós. Não fui tratado em nenhum
hospital, que não existe; nem tomei remédio algum – que também não existe
em Cosmorama –; nem tampouco tive a visita de algum especialista ou médico
– que nada disto se conhece entre os Cósmicos.

Esteve à minha cabeceira, como ouvi mais tarde, um dos Videntes, pôs as
mãos sobre a minha fronte, quando eu me achava ainda em estado de coma
profundo, depois de ser arrojado à praia pelas vagas do mar.

– Dize-me, Íris, que fez o Vidente, quando eu me achava meio morto? –


perguntei-lhe um dia.

– Não fez nada – respondeu ela. – Apenas canalizou para dentro de teu
organismo a saúde do Infinito, e tuas energias desarmonizadas harmonizaram-
se novamente.

– E isto tu chamas não fazer nada?

– Não, não foi o Vidente que fez alguma coisa; foi ELE, o Grande, o Eterno,
que te deu vida e saúde. Nós somente servimos de intermediários e veículos
d’ELE.

– Pode todo homem servir de veículo d’ELE?

– Pode e deve.

– Como?

– Libertando-se de tudo que obstrua os canais que ligam todos os seres a Ele.
Mas... sobre este ponto te falará o grande Rajah, mais tarde.

– Ninguém morre nesta ilha?

– Todos morrem.

– Mas... se não há doenças?


– Morte não é doença. A morte é um processo tão natural e inevitável como o
nascimento e a vida; mas as moléstias não fazem parte da natureza do
Cosmos. Se não houvesse morte, não haveria vida em evolução ascendente.

– Até hoje, não vi pessoa idosa nesta ilha.

– Não viste? Viste muitas com cem, e algumas com duzentos anos.

– Que estás dizendo, Íris?

– É como digo. Aquele Vidente que dirigia a meditação, do alto da escadaria do


santuário, tem mais de cem anos de idade.

– Vi alguns com cabelo branco, mas todos pareciam jovens, no vigor da idade.

– Quem vive em harmonia com o Infinito não conhece decrepitude senil; vive
em pleno vigor, físico e mental, até que em seu corpo expire a última fração de
energia – e o organismo pára, porque é chegado o seu tempo de parar.

Olhei atentamente para o semblante de Íris, que também me olhava, e não


pude compreender que numa jovem de tão pouca idade habitasse a sabedoria
dos séculos e milênios. Falava com facilidade das coisas mais difíceis.

– Como é possível, Íris, – murmurei – que tu, que não deves ter vinte anos,
saibas essas coisas tão avançadas?...

– Vinte anos? – exclamou ela com uma risada jovial, sacudindo de leve a linda
cabeleira escura que lhe emoldurava o formoso semblante. – Eu tenho mais
que o dobro dessa idade que me dás.

– Não digas!...

– Digo-o, porque é verdade.

– E, ainda por cima, tens a coragem de confessar isto, com tanta


simplicidade...

– Por que não?

– Entre nós, os Telúricos, as jovens negam quanto podem a sua idade, e


presenciam com horror os primeiros sintomas do outono e inverno da sua vida.

– Sei disto, sei disto. Mas, algum dia, elas serão como nós.

Houve uma pausa silenciosa, repleta das vibrações invisíveis do Além.

– Dize-me, Íris – prossegui – como é possível que saibas de tudo que acontece
entre nós? Nunca nenhum dos Cósmicos esteve na terra dos Telúricos; como
podes, pois, ter notícias do que lá acontece? Vós viveis nesta imensa solidão,
isolados de todo o resto do Universo...
– Meu caro Delfos! – exclamou ela. Esqueci-me de mencionar que Íris me pôs
o nome de Delfos, abreviação da palavra grega adelfós, que quer dizer irmão;
aliás, os Cósmicos todos se tratam por irmão e irmã (Delfos e Delfe, derivados
de adelfós e adelfé). Para os mais idosos, muitos usam o título de Pai ou
Mestre.

– Nós não vivemos separados do resto do mundo – continuou Íris – sabemos


de tudo que acontece entre os habitantes da Terra e entre todos os outros
seres conscientes do Cosmos; isto é, sabemos aquilo que nos interessa saber.
Temos a possibilidade de afinar a nossa alma por certas ondas que vibram no
espaço.

– Como nós fazemos com o rádio e a televisão?

– Mais ou menos assim, com a diferença de que já não usamos aparelhos


materiais. A alma, quando atinge certo grau de evolução, é mais potente que
qualquer máquina inerte.

– Voltemos a falar dos vivos e dos mortos!

– Mortos? não no sentido dos Telúricos.

– Sei que vós entendeis por morte algo bem diferente do que a maior parte dos
habitantes da nossa terra.

– Entendemos aquilo que é verdade.

– Que é a verdade?

– A verdade é a consciência da realidade. A verdade sobre o homem é que ele


necessita de certos meios para atingir o seu grande destino.

– Quer dizer, que, depois desta vida terrestre, vem outra vida, ou outras
vidas?...

– Nem outra vida nem outras vidas, meu caro Delfos; nós não cremos em outra
vida.

– Não? não posso crer que sejais tão materialistas, depois de tudo que vi e
ouvi em Cosmorama.

– Certamente que não, porque vivemos na luz da verdade.

– A verdade, porém, é que há outra vida...

– A verdade é que a vida é uma só, sempre a mesma, embora passe por
diversos estágios de evolução. Começa aqui, num corpo material, e continua
alhures em outro corpo.

– Num corpo astral?


– É assim que alguns Telúricos lhe chamam; mas isto é simples questão de
nome. Pouco importa que nome demos a esse corpo. O fato é que os que, pelo
corpo material, colheram a experiência necessária, terão necessidade de um
instrumento mais aperfeiçoado, e o desejo gera a realidade. O corpo material
se transforma num corpo imaterial, cada vez mais sutil e idôneo, consoante as
experiências superiores que a alma colher.

– A nossa física nuclear dos últimos tempos provou que toda a matéria é, em
última análise, energia, algo imaterial, como o éter, a luz, a vida.

– Há milhares de anos que nós sabemos disto, como, aliás, os mais avançados
dentre os Telúricos também sabiam, muito antes que a ciência experimental o
confirmasse, aliás, bem precariamente, nos laboratórios.

– Como? há milhares de anos vós sabíeis disto?

– Sim, nós somos os seres conscientes mais antigos sobre a face deste
planeta. Quando nossos irmãos da Atlântida desapareceram, só nós
sobrevivemos, porque nos incumbe a grande missão de levar a nossos irmãos
Telúricos o conhecimento da verdade integral, para que também entre eles seja
proclamado o reino d’ELE, como foi entre nós.

– Íris, tu me falas com tamanha clareza e segurança dos mais tenebrosos


mistérios da existência, que julgo cada vez mais estar sonhando...

– Não, meu caro Delfos, estiveste sonhando muito tempo; agora é que estás
começando a acordar. O grande Rajah servirá de veículo para que ELE te
introduza na luz meridiana da verdade total.

E lá se foi ela, esse mistério cósmico em forma de uma jovem...


Auscultando a Vida da Natureza

Certa manhã, vieram Íris e Almah convidar-me para tomar parte numa
excursão a ser realizada por um grupo de amigos.

Estava eu ansioso por saber como é que se divertiria humanamente um povo


plenamente sintonizado pela alma do Cosmos. Se eu, o Telúrico, recebesse
um convite para participar na terra de um passatempo chefiado por pessoas
“virtuosas”, dificilmente me animaria a aceitar semelhante convite, porque entre
nós a palavra “virtude” tem um ressaibo suspeito que é péssimo fator de
publicidade; é quase sempre sinônimo de “insípido” ou “fastidioso”. Preferimos
ser alegremente maus a tristonhamente bons. Entretanto, pelo que eu vira e
vivera em Cosmorama, tinha a certeza de que uma excursão organizada por
esses homens plenamente humanos, porque integralmente divinos, devia ser
mais interessante do que um piquenique engendrado pelos mais inteligentes
pecadores e animado pelas mais fascinantes beldades da Terra. Nós, os
Telúricos, não conseguimos ainda realizar uma síntese entre Verdade e
Beleza, entre ser bom e ser belo, entre algo puro e ao mesmo tempo
empolgante.

Éramos um grupo de umas vinte pessoas, de ambos os sexos. Muito de


madrugada, subimos, de canoa, rumo à capital da ilha, que se chama
Filadélfia, o que significa “amor fraterno”. Remamos pelo gosto de remar; os
Cósmicos são grandes amigos do esporte, ou que melhor nome tenha. Cada
barco era provido de um pequeno motor de popa, que era posto em atividade
só quando os remadores queriam descansar.

Já havia eu verificado, com grande surpresa que os Cósmicos não


empregavam, para acionar os seus aparelhos, nenhum dos combustíveis por
nós usados, nem mesmo a eletricidade. Não pense o leitor que usassem
energia atômica; não, não se serviam dela, e isto por motivos de “amizade para
com a Natureza”, como Íris me explicou – coisa assaz enigmática para um
Telúrico como eu, habituado a considerar a Natureza como escrava, e não
como amiga. Cheguei a saber, mais tarde, que conheciam a eletricidade e a
energia nuclear, e, em tempos idos, delas se haviam servido como nós; mas
hoje em dia, abandonaram a última. Tanto para acionar as suas máquinas
como também para iluminação e calefação, servem-se da energia solar, ou,
como eles costumam dizer, da Luz Celeste. Para captar essa energia usam
aparelhos muito simples, que absorvem grande cópia de irradiação solar, que
passa a ser transformada e conservada numa espécie de acumuladores, e
usada quase do mesmo modo como nós usamos uma pilha elétrica ou uma
bateria.

Enquanto remávamos rio acima, fui relembrando em silêncio o que sabia da


identidade de todas as energias físicas: eletricidade, magnetismo, gravitação,
luz...

Todas as cidades de Cosmorama são iluminadas com essa luz solar


“armazenada”. Filadélfia elevou ao auge da beleza a sua iluminação pública.
Não se vêem essas luzes berrantes e ofensivas com que os anunciantes
Telúricos. enfeiam as ruas das nossas cidades; não existem mesmo letreiros
luminosos para fazer a insolente publicidade de alguma mercadoria. As
legendas de Cosmorama são mantidas em tons suaves e estéticas, tratando,
quase todas, de assuntos que enchem de um profundo bem-estar o homem.

Não vi arranha-céus em Filadélfia. As casas de moradia estão rodeadas de


jardins e hortas. Nenhum dos edifícios comerciais e industriais tem mais de três
andares, e todos eles apresentam aspecto leve e sorridente, simbolizando a
alegria com que os Cósmicos se entregam ao trabalho.

Em vista da facilidade que o emprego da luz solar oferece à indústria, seria de


esperar que todo trabalho em Cosmorama fosse mecanizado – o que, todavia,
não acontece. A maior parte do trabalho é manual, porque o Cósmico encontra
uma satisfação especial em produzir com suas próprias mãos os objetos de
que necessita para o conforto e embelezamento da sua vida. Quase todos os
aparelhos que vi são pequenos, muitos deles portáteis, sendo antes
complemento do que substituição do trabalho manual.

Depois de deixarmos Filadélfia, fomos subindo uma montanha rochosa, que se


ergue pouco além do perímetro urbano. Os caminhos em ziguezague ou
espiral, abertos nas rampas e nos anfractos rochosos do monte são de uma
beleza única, fazendo lembrar as nossas estradas de Petrópolis, Teresópolis
ou arredores das “Agulhas Negras” do Itatiaia. Repetidas vezes passamos por
debaixo de cachoeiras, que saltavam, em vasto arco espumejante, por cima
dos trilhos da selva, perdendo-se no fundo de hiantes abismos, donde
exalavam tênues nuvens de vapores d’água, em que fantásticos semicírculos
desenhavam delicados halos septicolores.

Pelo meio-dia, atingimos o cume de um dos montes, onde nos sentamos e


tomamos a nossa refeição.

Era tão espontânea a alegria e amizade no meio desses jovens – entre os


quais havia dois pares de noivos – que contagiava qualquer pessoa que não
fosse precisamente bloco de gelo. Verifiquei pela primeira vez na vida que
amor, de per si, nada tem que ver com satisfação carnal, embora esta possa
ser uma expressão natural do amor. A satisfação carnal, tomada isoladamente,
é antes o contrário do amor, porque é uma expressão de egoísmo pessoal,
para cuja realização um sexo necessita do outro; quer dizer que uma pessoa
se serve da outra pessoa como meio para alcançar um fim egoístico, o que é
anticósmico. O âmbito do amor é incomparavelmente mais vasto do que a
satisfação do instinto sexual, esse atavismo animal do homem de baixa
evolução. O amor é tipicamente humano; o Eros não se encontra, entre os
brutos, que só conhecem libido.

Sendo que os habitantes de Cosmorama representam o mais alto nível de


evolução humana que conheço, era natural que, para eles, o instinto sexual
estivesse integrado no amor.

O infra-homem abusa, o semi-homem recusa, o pleni-homem usa suas


faculdades, subordinando-as harmonicamente às superiores e realizando
assim a perfeição do Todo Humano.

Enorme foi o meu susto quando, de improviso, emergiu da penumbra da


floresta a cabeça rajada de um tigre. Soltei um grito involuntário de terror e
escondi-me por detrás do tronco duma árvore. Os meus companheiros riram-se
dos meus temores, e, para me provar que não havia razão para tal, Almah
passou o braço pelo pescoço macio do felino, fez-lhe festinhas e ofereceu-lhe o
resto do seu lanche. Pediu-me a jovem que me aproximasse e acariciasse o rei
da floresta: fi-lo com alguma relutância, e verifiquei que as minhas “auras
positivas” já haviam prevalecido sobre as “auras negativas”; do contrário, a fera
não me teria considerado amigo.

Ainda nessa mesma tarde tive repetido ensejo de ver que não há “animais
selvagens”; há tão-somente “homens selvagens”. O “homem selvagem” é o
homem sensorial-mental, ainda não racionalizado pelo espírito. É este o
espécime que predomina entre nós, os Telúricos civilizados.

Em tempos pré-históricos, antes que no homem despertasse o intelecto


dormente, não existia inimizade entre o mundo dos homens e o mundo dos
animais. Depois do despertar do intelecto começou o homem a divorciar-se da
Natureza – e originou-se um estado de beligerância, latente ou manifesta, que
hoje vigora entre o homem e a natureza. O homem intelectualizado é tirano e
explorador da natureza, por ele escravizada, atitude essa a que a natureza
responde com uma hostilidade, implícita ou explícita.

Mas, quando o homem, do nível da simples intelectualidade, ascende a altura


da racionalidade do espírito, desaparece a hostilidade entre ele e a natureza,
porque nesse nível reina universal harmonia: uma creatura plenamente
sintonizada com o Creador não pode deixar de ser naturalmente sintonizada
com todas as outras creaturas de Deus que estão em harmonia com a causa
suprema do universo. Nesse supremo grau de evolução deixou o homem de
ser escravo da natureza, como o homem inconsciente; e deixou também de ser
escravocrata, como o homem apenas intelectualmente consciente: tornou-se
amigo e aliado da natureza, razão porque esta o considera como seu “irmão
mais velho” e lhe abre espontaneamente os seus íntimos recessos e suas
misteriosas forças, pondo-as alegremente à disposição do homem divinizado,
na instintiva certeza de que um ser plenamente harmonizado com o Creador é
incapaz de abusar de alguma das creaturas de Deus, porque todo abuso é filho
do egoísmo; mas no pleni-homem o egoísmo foi definitivamente suplantado
pelo amor.

Passamos toda essa tarde a conviver deliciosamente com a natureza e a falar


sobre as relações entre ela e o homem. Saí desse passeio mais enriquecido do
que se lera uma biblioteca inteira...
Assim Dizia o Rajah

Certo dia, fui chamado inesperadamente à presença do grande Rajah.


Estranha foi a minha surpresa ao transpor o limiar da porta do modesto
cubículo, feito, como muitas outras casas, de canas roliças de um bambu muito
grosso e resistente, de várias cores, verde, verde rajada de amarelo, e até
verde listrado de vermelho. Os Cósmicos são estetas e artistas por índole;
inspirados pela natureza, que sempre une o belo ao útil, constroem as mais
lindas e confortáveis vivendas com essas canas inteiriças de bambu.
Descobriram um processo engenhoso de produzir, mediante polinização
cruzada, novas variedades dessa gramínea, conservando-lhe indefinidamente,
por meio de um verniz vegetal, as lindas cores naturais. Sendo que os lisos
canudos são muito grossos – chegando alguns a medir um palmo de diâmetro
– o ar do interior dos gomos funciona como regulador natural de temperatura,
mantendo dentro das casas um ambiente agradável, quase constante.

Quando entrei na casa de bambu rajado do Vidente, fui saudado


silenciosamente pelas pequenas chamas de sete velas de cera de abelha,
esteticamente dispostas sobre um singelo candelabro, feito também de bambu
auriverde. O ar estava impregnado de um aroma característico, fortemente
suave, quase devocional, provindo da cera ou resina derretida.

Sentei-me num tamborete, e o Rajah explicou-me com poucas palavras a razão


por que me mandara chamar. Tinha ordem d’ELE, disse, para me iniciar na
alma da Verdade Libertadora. Durante as diversas horas que falou, lenta e
sobriamente – horas que deslizaram como cinco minutos – não proferiu uma só
vez a palavra “Deus” ou “Cristo”, mas tudo que disse “d’ELE” visava o Lógos
que em tempo se fez carne e habita em nós.

Começou por dizer que sabia que ELE não tinha ainda vindo ao mundo dos
Telúricos. Julgando que o Rajah laborasse em erro, pedi licença para retificar-
lhe a asserção, narrando-lhe com poucas palavras a história terrestre do
Nazareno. O Rajah, embora estivesse perfeitamente a par de tudo, escutou-me
com toda a atenção, sem me interromper uma única vez. Esse silêncio
receptivo é, aliás, um dos mais encantadores atributos dele e dos Cósmicos em
geral; nunca desdenhavam ouvir o que eu tinha a dizer: nunca mostravam
impaciência ou enfado; o seu silêncio me dava coragem para dizer tudo que
me ia na alma – e isto nos faz tanto bem...
Quando terminei a minha exposição, disse o Vidente, pausadamente, como
que sopesando o valor e alcance de cada uma das suas palavras:

– Sei, meu caro Delfos, que ELE veio corporalmente à vossa terra; mas o que
quero dizer é que não veio ainda espiritualmente às almas dos Telúricos, salvo
poucas exceções. A verdadeira vinda d’ELE ainda não ocorreu entre vós, a
vinda em espírito e em verdade. O Lógos se fez carne e habitou entre vós em
corpo mortal, mas ainda não se fez espírito e habita em espírito dentro de cada
um de vós. Aqui, porém, ELE já veio em toda a verdade e plenitude, como,
algum dia, aparecerá no meio de vós.

– Que acontece, irmão mestre, quando ELE aparece plenamente num homem?
– perguntei.

– Desabrocha então nesse homem o reino celeste, em toda a sua Verdade,


Beleza e Felicidade. O homem descobre em si o seu verdadeiro Eu humano,
que é divino.

– Quer dizer – interpus – que o homem se torna intensamente espiritual?

– A palavra “espiritual” é equívoca e facilmente ilusória; entre os Telúricos é


usada, muitas vezes, para designar um homem que desertou da vida humana
normal e vive em perpétua contemplação passiva, longe do mundo, julgando
por vezes, até necessário usar vestimenta especial ou algum outro distintivo
que o diferencie dos “profanos”. Não, não é este o efeito da verdadeira vinda
d’ELE. Quando ELE, de fato, entra na vida de um homem, torna-se esse
homem integralmente humano, porque totalmente divino. Dize-me, caríssimo
Delfos, reparaste nos habitantes de Cosmorama algum homem ou alguma
mulher que fosse menos humano devido ao descobrimento do reino d’ELE
dentro de si?

– Não, senhor Rajah...

– Dize simplesmente “Rajah”; aqui não há senhores nem servos, aqui só há


amigos e irmãos.

– O que mais me encanta aqui – prossegui com profunda convicção e vivo


entusiasmo – é precisamente essa sorridente espontaneidade com que os
Cósmicos seguem o caminho da compreensão superior; vivem essa vida divina
com a naturalidade de quem respira o ar que os circunda.

– Aqui entre nós, a Razão impera soberana. Não me entendas mal, meu caro
Delfos; não me refiro ao intelecto, mas à Razão do homem, que é a sua
afinidade direta com o Infinito, o Absoluto, o Eterno. O homem genuinamente
racional possui a verdade integral sobre si mesmo, sobre o mundo e sobre
Deus.
Vigoram ainda no mundo dos Telúricos dois erros funestos, que não lhes
permitem enxergar a Verdade integral. Grande parte vive exclusivamente para
a vida material dos sentidos e do intelecto, como se só de pão vivesse o
homem. Outra parte, embora menor, foge da vida e procura viver unicamente
para o que eles chamam a vida do espírito. Tanto estes como aqueles
falsificam o homem, e toda falsificação, seja para a esquerda, seja para a
direita, é funesta e acabará por levar o homem à infelicidade. Os materialistas
fazem do homem um corpo sem alma, os espiritualistas pretendem reduzir o
homem a uma alma sem corpo. No entanto, o homem não é nem cadáver, nem
fantasma; ele é uma síntese de corpo e alma. Encontrar essa síntese e vivê-la
praticamente é o segredo da felicidade, e foi para este fim que ELE veio das
celestes mansões dos Cosmos para este plano inferior da terra.

Quando o homem começa a viver esta grande síntese, quando o espírito


ilumina, permeia e vivifica todas as coisas materiais da vida – então começa o
homem a viver a plenitude da vida e compreende o que ELE quis dizer com as
palavras: “Eu vim para que os homens tenham a vida, e a tenham na maior
abundância”.

– Irmão mestre, as tuas palavras são a expressão explícita de algo que,


implicitamente, me dormia na alma, há longos anos, algo que eu mais
adivinhava e farejava do que sabia nitidamente, algo que andava em gestação
dentro de mim, mas ainda não havia nascido. Agora veio à luz, graças a ti,
essa formosa prole da Verdade integral – e sinto que esta verdade é Vida.
Alegria, Felicidade...

– Saber é saborear que o espírito de Deus vive em cada átomo e em cada


astro, em cada pirilampo e em cada relâmpago, em cada ocaso e em cada
alvorada, em cada berço e em cada ataúde – isto, meu caro amigo, é ser sábio
e santo, é ser bom e feliz, é cumprir jubilosamente o grande e belo destino da
nossa existência...

– Mestre querido, eu considero aquele meu naufrágio como o início da minha


vida verdadeira nesta ilha tão humana e tão divina.

– Entretanto, aqui não tens estada permanente, meu irmão; aqui arribaste
apenas como imigrante temporário; daqui terás de emigrar, após haveres
terminado o teu estágio; voltarás ao meio dos Telúricos para lhes levar a
mensagem do espírito d’ELE que aqui estás vivendo, porque só se sabe o que
se vive, e o que não se viveu não se sabe, nem se pode despertar nos outros.
Lá na terra do teu nascimento físico, os mais avançados te acompanharão
como amigos e aliados; outros menearão a cabeça e te lamentarão como
pobre vítima de alucinação e insanidade; outros ainda, os mais atrasados, te
perseguirão como um perigo religioso e social, porque demolidor dos seus
ídolos e fetiches. É inevitável que assim aconteça; mas não te desconsoles
com isto, meu irmão. O teu trabalho não vale pelos resultados visíveis que dele
colheres; vale pelo que é em si mesmo, vale pela pureza da tua intenção, vale
pelo desinteresse, amor e entusiasmo que a ele presidirem – porquanto
indizivelmente sublime é nossa missão de cooperadores da Divindade.

– Sei e sinto profundamente, amigo Rajah, que nunca mais poderá ser infeliz
quem uma vez foi intensamente feliz – e eu vivo aqui a mais pura e profunda
felicidade da minha vida.

– Os homens chamados “maus” são apenas homens infelizes. Nenhum homem


feliz é mau. A felicidade que nasce da verdade é tão expansiva que envolve em
seus cálidos fulgores todos os seres do Universo, como irmãos e irmãs – e
esse luminoso halo que cinge a verdadeira felicidade se chama bondade, amor,
benevolência, simpatia. A infelicidade, porém, difunde em torno de si trevas e
frialdade, que se chamam maldade, ódio, malquerença. Quem vive à luz da
verdade é feliz, e quem é feliz é bom – bom em si mesmo, e bom para seus
semelhantes.

***

Quando me retirei do sorridente bangalô de bambu multicolor do grande


Vidente, tive a impressão de ser uma espécie de borboleta levíssima a adejar
nos ares ensolarados; parecia já não ter corpo; sentia-me tão leve como o mais
imponderável dos sopros de Deus, tão luminoso como o mais brilhante dos
raios do Sol. Não compreendia como, algum dia, pudesse desprezar algumas
das creaturas de Deus que margeavam os caminhos da minha vida: pedras e
plantas, insetos e aves, animais e, sobretudo, os homens que comigo seguiam
as mesmas avenidas e os mesmos trilhos, rumo ao Infinito...

Sentia que compreender tudo é amar tudo.

Passando por um bosque, sentei-me ao pé duma pequena cascata, que


saltava, em três fios paralelos, do alto de um rochedo, como três caudas de
cometa, pulverizando-se no fundo do leito cheio de pequenas pedras brancas.
Daí subia aos ares tenuíssima poeira d’água, umedecendo a folhagem em
derredor e formando arco-íris em miniatura nos pontos onde o sol rompia as
frondes das árvores, atingindo o vaporoso véu de noiva. Umas grandes
libélulas, verdes, vermelhas e cor de chocolate, doidejavam por cima das
águas, ora pairando no ar sobre as quatro elegantes asas vítreas, ora baixando
até a flor d’água, tocando-a de leve com a extremidade do corpo fusiforme e
jogando ritmicamente umas gotinhas d’água para a margem da poça. Até hoje
não descobri o porquê desse jogo estranho que todas as libélulas maiores
executam...

Por largo tempo, banhei minha alma na delícia desse silêncio, que era vasto e
profundo, abstração feita do ruído monótono da cascata, que parecia tornar
ainda mais consciente a imensa quietude da natureza em derredor...
Mais profundo ainda era o silêncio dentro de minha alma – um silêncio sonoro,
fecundo, eloquente, “ditos indizíveis”, que eu vivia intensamente através de
todas as latitudes e longitudes, altitudes e profundidades do meu ser... Se
alguém me perguntasse o que era isto, não o saberia dizer; mas, quando
ninguém me pede definição desse quê indefinível, então eu sei perfeitamente o
que é – sei-o como quem sabe do sabor de um manjar que se saboreia...
Assim como só se sabe o que é a vida vivendo-a, assim saboreava eu esse
jubiloso mistério e exultava silenciosamente no fascinante abismo do meu
Além-de-dentro...

Em momentos desses, a palavra “morrer” é para mim o maior dos contra-


sensos, um invólucro sem conteúdo, um símbolo sem simbolizado, uma
palavra à toa sem nenhum sentido real. A morte não existe para quem vive a
plenitude da vida, como eu a vivia nesses momentos eternos. Que diferença
faz que eu tenha ou não tenha essa ligeira vestimenta material, que não sou
eu? Sei e sinto, com indestrutível certeza, que esse corpo físico não é o meu
verdadeiro Eu, embora ainda seja meu, por um pequeno lapso de tempo. Esse
deslocamento da consciência, da periferia ilusória para o verdadeiro centro do
homem, é o único argumento que dá certeza plena e definitiva da vida eterna.

Coisa estranha! nos momentos mais humanos e mais divinos da minha vida eu
sinto, com infalível nitidez, a grande unidade da vida universal do Cosmos, de
que sou uma pequena partícula autoconsciente, ao lado de outros focos,
também autoconscientes, meus semelhantes humanos, e a par de numerosos
infrafocos, semiconscientes, subconscientes, meus irmãos menores do mundo
sensitivo, vegetal e mineral. E todos nós, em diversos graus de consciência,
somos eflúvios e arautos da consciência Cósmica, oniconsciente – da grande
Cosmoconsciência...

Panteísmo? há quem tenha horror a esse fantasma, que ele mesmo creou,
porque não sabe o que é. O que se sabe não inspira terror; todo terror é filho
da ignorância ou do erro. Panteísmo quer dizer “tudo Deus”; é apenas outro
vocábulo para politeísmo (muitos deuses), estágio de evolução inferior,
possível antes do desabrochar da visão racional, que revela a grande unidade
essencial que há por detrás – ou melhor, dentro – da vasta pluralidade
existencial do Universo. A evolução normal da maior parte da humanidade vai
do panteísmo (ou politeísmo) através do dualismo rumo ao monismo do UNO
pelo VERSO ao UNIVERSO. Todo homem que se aproxima da sua maturidade
experimentará o eterno UM dentro dos MUITOS temporais. Se Deus fosse
apenas muitos, sem ser um, o mundo seria um horroroso caos dispersivo, sem
unidade; se Deus fosse apenas um, sem ao mesmo tempo ser muitos, o
mundo seria uma insuportável monotonia estática, sem variedade dinâmica.
Mas, uma vez que é da íntima essência da natureza de Deus ser um na
essência e muitos nas existências, esse mundo é uma grandiosa harmonia, um
genuíno Uni-verso; um em diversos, diversos em um. Universo – é esta a mais
verdadeira, a mais bela, a mais profundamente filosófica e mística de todas as
palavras que existem em língua latina; quem a formulou deve ter sido um gênio
intuitivo da primeira ordem. Universo – unidade na diversidade, diversidade
com unidade?...

Estava eu abismado nessas cogitações, que em mim eram pensadas sem que
eu as pensasse conscientemente, sentindo-me um com a grande vida cósmica,
e diversos de todos os outros indivíduos, – quando um ruído característico se
fez ouvir por detrás de mim; voltei a cabeça, e vi um par de esquilos ornados
de caudas de penacho hasteadas como bandeiras. Desciam pelo tronco liso
duma árvore para me verem de perto. E também eles, me dizia o eco
longínquo dos meus pensamentos, eram emissários da Vida Eterna e
Universal, meus irmãos menores, como diria Francisco de Assis. Parece que
me compreendiam porque se aproximaram de mim quase ao alcance da mão,
fitando-me com intensa curiosidade através daqueles seus grandes olhos
redondos...

Sentia-me deliciosamente universificado.

Unificado com o Deus do mundo – diversificado nos mundos de Deus...


O Mistério do Além-de-Dentro

Os habitantes de Cosmorama, sintonizados com Deus e os homens, sentem-


se, por isto mesmo, espontaneamente harmonizados com a Natureza. Aliás,
ninguém pode estar realmente unido à parte subconsciente do Universo, sem
que mantenha uma união permanente com o Universo oniconsciente.

Pela primeira vez em minha vida tive a consciência nítida do divórcio habitual
em que nós, os Telúricos, vivemos com o mundo circunjacente.

O homem puramente sensorial, ainda não intelectualizado, convive com a


Natureza, porque dela é parte integrante, dominado pelas mesmas leis
automáticas que regem esse departamento do universo, escravo de instintos
subconscientes, como qualquer pedra, planta ou animal.

O homem intelectualizado emancipa-se parcialmente das leis da Natureza


inferior, graças à conquista da ego-consciência, que é privilégio humano, aqui
no planeta Terra. E, por via de regra, o homem intelectualmente consciente do
seu ego, se torna egoísta, egocêntrico, ególatra. Arvora-se em tirano, ditador e
explorador da Natureza. A Natureza é, para ele, uma escrava, ou “vaca
leiteira”. Toda a nossa técnica moderna é uma escravização da Natureza. Mas,
como podia a escrava ser amiga do escravocrata? Por isto, a Natureza é
inimiga do homem Telúrico, do homem intelectual ainda não racional. Era
inevitável que o homem, deixando o primitivo Éden da subconsciência e
entrando na zona secundária da ego-consciência serpentina, se visse num
mundo de “espinhos e abrolhos”, não já identificado com os animais do Éden:
era natural que esses animais sentissem a distância que, agora, os separava
do Adi-Aham (Adam), que, de sócio subconsciente que fora, se tornara
dominador ego-consciente da Natureza inferior.

O homem, ultrapassando os sentidos e o intelecto, o homem racional,


plenamente sintonizado com a eterna Ratio, o Lógos, a Razão Espiritual do
Infinito, o Homem Cósmico por excelência, já não é escravo nem escravocrata
da Natureza, mas, sim, amigo e aliado, porque compreende a Natureza e a
Natureza o compreende. Esse homem é, por assim dizer, esposo da sua bela
esposa Natura, e os dois, num misterioso conúbio, geram uma prole que
nenhum deles, isoladamente, podia procriar. O homem que, ante o altar da
eterna Divindade e com as bênçãos do Sumo Sacerdote do Universo, casa
com a Natureza, é o creador do Mundo Cósmico, que é o consórcio entre o
espírito e a matéria, entre o terrestre e o celeste. O Cósmico é sempre um
misto entre o material e o espiritual, entre o mundano e o divino. E essa fusão
dos elementos de baixo e de cima, de pluralidade e unidade, do Verso e do
Uno, é que produz um mundo de inefável poesia, porque poesia é
essencialmente um consórcio unitário entre duas coisas diferentes, é a
“identidade dos opostos”, a misteriosa síntese das antíteses. Poesia é unidade
na diversidade, diversidade com unidade. Quem percebe a essência única nas
muitas existências, e nessas muitas existências percebe a única essência,
esse homem é poeta. Poesia é Natal e Páscoa ao mesmo tempo: o Natal da
materialização do espírito, e a Páscoa da espiritualização da matéria. Poesia é
Encarnação do eterno Lógos e ressurreição da matéria efêmera, eternizada.
Assim é o homem Univérsico.

A vida do homem cósmico oscila suavemente entre o Natal da encarnação de


Deus na Natureza e a Páscoa da ressurreição da Natureza em Deus. Para ele,
já não é possível ver Deus sem a Natureza, nem a Natureza sem Deus. Quanto
mais esse homem entra Natureza adentro, tanto mais penetra ele na vida de
Deus. Quanto mais se naturaliza mais se “diviniza”.

Assim como os amantes não se exploram mutuamente, mas espontaneamente


servem um ao outro, e nesse querer-servir encontram a suprema beatitude,
assim também o homem cósmico não explora a Natureza, mas cultiva-a
carinhosamente, e ela, da sua parte, lhe abre, espontânea e jubilosamente, os
seus segredos e tesouros. Por isto, o homem cósmico é, em virtude da sua
cidadania, um taumaturgo, porque a taumaturgia não é outra coisa senão o
intercâmbio espontâneo entre as forças latentes da Natureza e sua utilização
natural pelo homem. Os chamados “milagres” são os filhos legítimos desse
fecundo conúbio entre a linda esposa Natura e o vigoroso esposo Homem
Univérsico.

Francisco de Assis, depois do Cristo, talvez o maior homem cósmico que a


humanidade Telúrica conhece, havia feito os seus esponsais, como ele diz:
com D. Pobreza, isto é, tinha adquirido a “pobreza pelo espírito” ou a “pureza
do coração”, que não é senão a completa e definitiva libertação do mundo dos
sentidos escravizados e do mundo do intelecto escravizante, ingressando no
fascinante universo da “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”.

O homem sensorial é compulsoriamente dependente.

O homem intelectual é ilusoriamente independente.

O homem racional é espontaneamente interdependente.

***

Homem, Deus, Natureza – dessa formosa trindade vi a mais bela harmonia


entre os homens integrais que encontrei em Cosmorama. Devido a essa
compreensão e a esse amor, os Cósmicos evitam divorciar-se da Natureza,
como evitam divorciar-se do autor da Natureza. Não constroem cidades fora da
Natureza. As casas residenciais são térreas, e os poucos edifícios de mais de
um andar, estão invariavelmente cercados de espaçosos terraços lindamente
ajardinados com variedades de flores, que eles cultivam com grande amor.

O culto religioso dos Cósmicos vai sempre de mãos dadas com os eventos
naturais. A meditação diária, praticada por eles com a mesma regularidade
com que o homem Telúrico toma o seu banho diário, está inseparavelmente
vinculada ao nascer do sol. Nós, os Telúricos, tacharíamos de “panteístico” o
culto religioso dos Cósmicos; mas eles se orgulham dessa designação. Eles
sabem instintivamente que há muitos deuses, mas uma só Divindade, que se
revela de muitos modos; sabem que o Creador transcende todas as suas
creaturas, mas sabem também que ele está imanente em cada uma delas,
porque todas as coisas do mundo existem, vivem, sentem, pensam e amam na
Divindade. Entre eles é tão impossível o panteísmo, que nega a transcendência
para afirmar somente a imanência de Deus no mundo, como impossível é o
dualismo (ou pluralismo), que afirma a transcendência e nega a imanência do
Creador em suas creaturas. Os Cósmicos professam tanto a transcendência
como a imanência de Deus, e isto confere à religiosidade deles algo de
longínquo, misterioso e terrífico, inspirado na infinita transcendência da
Divindade – e ao mesmo tempo algo de propínquo, afetivo e familiar, inerente
ao sentimento da imanência de Deus. Não pode haver religiosidade profunda e
deliciosa sem esse senso de distância e de proximidade, sem esse quê de
majestade e esse quê de intimidade, sem esse sentimento terrífico do Infinito
Além-de-fora e esse sentir benéfico do Infinito Aquém-de-dentro. Deus é
Senhor e Amigo, o grande Tu de fora e o querido Eu de dentro.

Um mundo sem mistérios seria um mundo sem encantos, mares, montanhas,


abismos, desertos, florestas virgens, noites estreladas – quanta magia
anônima.

Um ser humano sem mistérios deixa de ser fascinante. Uma pessoa


integralmente devassada é insípida, sem encantos nem atrativos. Deve haver
em cada pessoa, um departamento virgem, anônimo, ignoto, misterioso, algum
santuário onde só a alma dessa pessoa possa entrar e estar e sós consigo.
Sem esse recanto sagrado a pessoa se torna banal e enfadonhamente
insípida.

Se os Telúricos soubessem o que isso quer dizer, deixaria de haver divórcios,


porque todo divórcio deriva do desencantamento dos encantos, da banalização
do sagrado, da profanação do santuário da personalidade humana. O homem
profano faz de outro ser humano o que costuma fazer com a natureza: explora-
o em benefício do seu egoísmo; mas toda exploração é profanação, todo
egoísmo é sacrilégio. O amor não é somente um imperativo categórico da
ética, ele é, antes de tudo, o requisito fundamental da estética.
***

Os Cósmicos, quase todos eles, tomam o seu banho diário no oceano; só


alguns, moradores do interior, se servem das águas dos rios. Existem também
chuveiros, mas são usados quase exclusivamente por crianças. Mesmo estas
preferem as águas das cachoeiras. Como não há hospitais em Cosmorama,
não há necessidade de chuveiros internos. Os Cósmicos vivem quase
inteiramente ao ar livre. Nem fazem caso de chuvas. Tenho visto famílias
inteiras a trabalhar nos campos, horas seguidas, com chuvas torrenciais. Como
a indumentária deles é simples, enxuga rapidamente, depois da chuva.
Resfriados são desconhecidos entre eles, porque o seu organismo tonificado
vibra em perfeita harmonia com as oscilações da temperatura. Os Cósmicos
participam da eterna sanidade do Cosmos.

A meditação matutina não é algo fora da vida ou adicionada à mesma, faz


parte integrante da existência. Seria inconcebível, em Cosmorama, que uma
pessoa religiosa fosse alvo de chacota, pelo fato de viver na presença de Deus.
Viver à luz de Deus é, para eles, tão natural e evidente como viver à luz do sol.
Como não existem homens fisicamente doentes, também não há entre eles
homens moralmente enfermos.

A distinção arbitrária que nós, os Telúricos, fazemos entre “natural” e


“sobrenatural” é desconhecida entre eles. Para eles, tudo é natural. Deus é
infinitamente natural, e quanto mais divino tanto mais natural é o homem.

Quando me refiro à meditação, não deve essa palavra ser tomada no sentido
que, em geral, tem entre nós. Para dizer aos Telúricos o que os Cósmicos
entendem por meditação, não me ocorre ilustração melhor do que a
comparação com uma planta em plena luz solar. Que é que essa planta faz?
Ei-la imóvel, de cabeça erguida com as verdes mãozinhas das folhas
espalmadas ao luminoso astro, procurando sempre colocá-las de tal modo que
apanhem a maior soma possível do luci-cálido mistério que lhes vem das
alturas. A planta nada faz senão assumir uma atitude de total receptividade; o
resto é cosmo-feito. Recebe luz e energia solar proporcional à sua
receptividade. E, como as folhas, mediante os verdes grânulos de clorofila, são
as principais antenas receptoras da luz, não pode a planta viver e prosperar por
muito tempo sem essa atividade das folhas.

Quando, pela primeira vez, vi milhares de pessoas, na praia do mar, crianças e


adultos, em atitude de meditação, tive a impressão de estar contemplando um
imenso jardim cheio de flores de vários tamanhos, feitios e cores. Os Cósmicos
preferem fazer a sua meditação em pé, e, como a sua disciplina é perfeita, não
lhes é difícil ficarem em pé, imóveis como estátuas, uma hora inteira.

Durante essa tonificante harmonia pleni-consciente, o Cósmico, como já


dissemos, ergue as mãos, palmas para cima, até a altura dos ombros, como
que a oferecer uma dádiva ao céu e esperando receber algo das alturas.
Lembro-me de ter visto nas catacumbas de Roma as imagens dos “orantes”
nessa mesma atitude dativo-receptiva. Em outras ocasiões, os Cósmicos em
oração meditativa erguem as mãos à altura dos olhos, formando uma espécie
de cálice aberto, enquanto os olhos se conservam semifechados, imóveis, sem
pestanejar, durante todo esse tempo.

É observação universal que a nossa respiração, que em estado normal de


repouso se repete cerca de 16 vezes por minuto, baixa sensivelmente quando
nos concentramos intensamente em algum problema mental ou espiritual,
chegando a 6 e até 4 in-e-exalações por minuto: quer dizer, a respiração se
tornou cerca de 4 vezes mais lenta que no estado comum. E isto, sem nenhum
esforço consciente da parte do homem, mas como processo automático e
espontâneo do organismo. O trabalho físico produz o fenômeno contrário,
acelerando gradualmente a respiração. O esforço material requer aumento de
oxigênio para a sua combustão, e por isto multiplica inconscientemente as
lufadas de ar que veiculam o precioso gás vivificante. A atividade mental ou
espiritual não necessita de maior quantidade de oxigênio, mas precisa de uma
qualidade superior desse elemento vitalizador; por isto, o organismo, em
perfeita sintonização com a vida da mente e da alma, procura reter dentro dos
pulmões, por mais tempo, o oxigênio inalado, distribuindo lentamente pelos
tecidos celulares e pelo sangue do corpo. Paralelamente a essa distribuição
lenta do oxigênio inalado corre o misterioso processo da “pranificação” desse
elemento material. O “prana” ou a “força vital” contida no oxigênio não é
utilizado pelo corpo material, que necessita apenas do oxigênio comum, físico;
mas a mente a alma, para seus fins mais sutis, procuram extrair essa força vital
do oxigênio, e por isto obrigam os pulmões, automaticamente, a retardar as in-
e-exalações.

Exemplifiquemos: Com um copo de água, deitado jeitosamente sobre uma


pequena roda d’água, posso mover um pouco essa roda. Com essa mesma
água, transformada em vapor, posso mover uma pequena máquina a vapor, e
conseguir maior rendimento do que com a simples água não-vaporizada. Se
decompuser essa mesma água em hidrogênio e oxigênio, poderei acionar com
qualquer um desses dois gases altamente inflamáveis algum aparelho adrede
construído para esse fim, obtendo resultado maior. Mas, se conseguisse
desintegrar os bilhões e bilhões de átomos de hidrogênio e de oxigênio
contidos num copo d’água teria energia nuclear suficiente para mover os
reatores de um avião na sua viagem ao redor do globo terrestre.

Quer dizer que a mesma energia, quando submetida ao impacto de um agente


poderoso, fornece uma força imensamente superior ao coeficiente energético
da mesma, quando não devidamente desintegrada.
Os Cósmicos – que são irmãos gêmeos dos lendários Atlantes, cujo continente
“Atlantis” foi tragado pelas vagas do mar – já se utilizaram, em tempos idos, da
energia atômica, para fins industriais. Ultrapassaram, porém, esse estágio
evolutivo, que consideram “violento” e, hoje em dia, se servem unicamente da
luz solar como fonte de energia. Também os seus aparelhos volantes – espécie
de aviões circulares ou oblongos – são movidos por energia solar, alcançando
velocidade e dirigibilidade incomparavelmente superiores aos mais perfeitos
engenhos da técnica Telúrica. Além disto, os corpos dos Cósmicos não se
ressentem dos efeitos dessa estupenda velocidade, porque se acham
devidamente sintonizados e sincronizados com este ritmo.

Também no plano espiritual ultrapassaram os Cósmicos o estágio da


“desintegração atômica”. O sistema de meditação que praticam é um perfeito
paralelo à utilização da energia solar que usam para sua indústria; sabem crear
em sua alma tão intensa voltagem, mediante profunda introspecção, que as
energias físicas, do alimento e do ar, se transmudam em energias espirituais.
Assim como, mediante o “jejum pulmonar” extraem do oxigênio material o
“prana” espiritual, da mesma forma também sabem extrair das calorias físicas
dos alimentos assimilados as energias metafísicas, servindo-se para isto do
“jejum estomacal”, que, desde tempos imemoriais, foi praticado, e continua a
ser praticado por todos os grandes gênios cósmicos da humanidade. Entre a
geração Telúrica dos nossos dias, o verdadeiro sentido do jejum é quase
totalmente desconhecido ou falsamente interpretado; grande parte do
Cristianismo não vê no jejum outra coisa senão uma finalidade de “penitência
ou mortificação pelos pecados”; outro setor do Cristianismo rejeitou-o como
relíquia de superstição. No entanto, o próprio autor do Evangelho “jejuou
quarenta dias e quarenta noites”, disse a seus discípulos que “certa casta de
maus espíritos só se expulsava por meio de oração e jejum”, e recomendou a
seus discípulos que se servissem desse meio para alcançar iluminação
superior.

Os Cósmicos estão perfeitamente familiarizados com o mistério do “jejum


pulmonar” e com o segredo do “jejum estomacal”, porque sabem, há milênios,
o que nós só agora descobrimos: que a realidade básica de todos os corpos
físicos e de todos os elementos químicos é a luz; que todas as coisas são
“lucigênitas” e podem por isto ser “lucificadas”, Pela mesma razão, todos os
seres do universo são “lucífagos”. As calorias dos nossos alimentos são luz; a
força vital do oxigênio é luz. Saber utilizar-se da essência-luz dos alimentos e
da essência-luz do ar equivale a apoderar-se dum veículo para atingir as
alturas da Consciência Cósmica.

A oração ou cosmo-meditação é indispensável, como fator positivo, para extrair


dos alimentos e do ar essa essência-luz.
“Depois de ter jejuado quarenta dias e quarenta noites, Jesus teve fome” – por
que só depois, e não durante esse período? Porque enquanto o corpo recebe
calorias de alta qualidade, não pode sentir fome, porque a qualidade intensiva
supre a quantidade extensiva. Quando o “tentador”, obsessionado ainda pela
mentalidade Telúrica, sugere ao jejuador a transformação de pedra em pão,
para matar a fome, o Homem Cósmico lhe faz ver que nem só de pão vive o
homem, mas de toda a vibração que sai da fonte do infinito.

***

“Nas escolas de Cosmorama, que são frequentadas por todas as crianças de


mais de cinco anos, as matérias atinentes à saúde espiritual, mental e material
são tratadas paralelamente: Não se pode dizer que haja ensino religioso
nesses institutos, porque a religião não é algo justaposto à vida física e
intelectual, é um dos aspectos do homem integral. O mesmo acontece, aliás,
em todo o decurso da vida dos Cósmicos. Entre eles, homem sem religião seria
coisa tão anormal como um homem sem intelecto ou sem integridade corpórea,
homem aleijado, surdo, mudo, cego, coxo, ou vítima de qualquer outra
deficiência. Ateu seria para eles algo tão anormal como um homem sem uso da
mente ou um morto.

A ginástica, o esporte, os exercícios calistênicos, os bailados rítmicos fazem


parte integrante da vida em Cosmorama. Existe entre eles enorme variedade
de jogos ao ar livre, jogos para ambos os sexos separadamente, como também
jogos em conjunto.

Um dia, perguntei a Íris porque não existiam grandes fábricas com chaminés
fumegantes nessa ilha. Respondeu-me que o período propriamente industrial
desse povo pertencia ao passado. Tempo houve em que os Cósmicos eram
simples caçadores e pescadores; depois, pastores e agricultores; mais tarde,
comerciantes e industriais; atualmente são – é difícil definir o que eles são hoje
em dia. Existem, por toda a parte, pequenas máquinas, práticas e estéticas,
para o uso doméstico, movidas por energia solar, transformada em
magnetismo, mas não há indústria pesada, que seria, aliás, supérflua no meio
dessa gente.

Cultivam os campos; têm vastos pomares, hortas e jardins, entremeados de


lagos, parques, piscinas e campos de recreio. Sendo que esse povo é, de
preferência, frugívoro, predominam em Cosmorama os pomares. Ouvi, com
surpresa, que eles usam a soja, o amendoim e muitos outros produtos vegetais
para suprir as proteínas da carne, que não usam. A sua genética vegetal acusa
milhares de anos de dianteira à dos Telúricos. Com facilidade conseguem os
Cósmicos produzir novas variedades de árvores frutíferas ou de arbustos de
bagas comestíveis, mediante a polinização cruzada.
Certo dia, manifestei a Íris o desejo de levar para a nossa terra algumas mudas
ou sementes, quando para lá voltasse; ela meneou a cabeça e sorriu
enigmaticamente, sem me responder.

Daquela vez, não sabia eu porquê...

Hoje sei...
A Luz no Alto do Candelabro

Na manhã do solstício de inverno, que é dia especial de meditação em


Cosmorama, Íris me convidou para uma visita ao grande Vidente. É que o
Rajah atendera ao meu desejo de entrar mais profundamente nos mistérios da
cosmo-meditação.

O que o Rajah me disse, nessa manhã, sobre meditação esclareceu todas as


minhas obscuridades.

O que é essencial para os Cósmicos é a transição da pequena ego-consciência


pessoal para a grande cosmo-consciência universal.

O Vidente frisou o fato de que não há nenhum caminho psicotécnico que nos
possa introduzir no mistério do nosso verdadeiro Eu cósmico; somente a
própria vivência de cada dia é que pode abrir os caminhos. E essa vivência
implica quase sempre uma estranha sofrência, num sofrimento metafísico da
nossa própria insuficiência. Sem essa vivência e essa sofrência, repetiu o
Vidente, não há possibilidade de auto-conhecimento e auto-realização.

Fiz ver ao Rajah que, entre os Telúricos, é quase geral a opinião de que
iniciação e auto-realização obedecem a uma técnica secreta, que os gurus
conhecem e de cuja revelação depende o destino espiritual do discípulo. Contei
ao Rajah que entre nós há mestres que prometem iniciar seus candidatos em
30 dias, ou até menos.

Nesta gloriosa manhã de solstício de inverno, fiz uma longa cosmo-meditação,


que me pareceu uma estranha viagem cósmica. Quando o Vidente estava no
auge da sua consciência cósmica, totalmente imóvel como uma estátua de
granito, sem pestanejar nem respirar perceptivelmente, todo o ambiente da
salinha de bambu rajado, em que estávamos, parecia imantado de um
levíssimo fluido magnético, que envolvia tudo e penetrava o meu corpo, dando-
me a deliciosa sensação de estar flutuando livremente no espaço. Eu nada
mais sentia da presença do meu corpo. Eu era espírito, alma, pura consciência,
um sopro cósmico perfeitamente consciente de mim mesmo.

Quando pelo fim da meditação do Vidente, reingressei no cárcere da minha


estreita ego-consciência, dissipou-se aquela delícia inefável, – mas nunca se
apagou totalmente a reminiscência beatífica desse êxtase, ou que outro nome
tenha. Mesmo na tradicional prisão da minha pequena ego-consciência,
continuei a ser feliz. É que eu tinha a definitiva certeza de que eu não sou o
invólucro do meu ego visível, mas sim o conteúdo do meu Eu invisível. E,
quando se tem a certeza da verdade sobre si mesmo, todos os sofrimentos são
toleráveis. E não somente toleráveis, no sentido negativo, mas até desejáveis,
em sentido positivo. Não que os sofrimentos sejam algum fim, como para
certos sadistas e masoquistas, mas eles são um meio para nos distanciarmos
cada vez mais da funesta ilusão da ego-identificação, e nos aproximam cada
vez mais da verdade da nossa Eu-identificação, da nossa cosmo-identidade, da
nossa Teo-identidade.

E quando o homem uma única vez foi realmente feliz pela experiência da
verdade sobre si mesmo, nunca mais pode ser infeliz, nem mesmo no meio de
sofrimentos; ele faz a estranha experiência de que a felicidade do Eu e
sofrimentos do ego são compatíveis.

Tudo é tolerável quando o homem se tolera a si mesmo.

Quando, nessa manhã de solstício de inverno, me retirei do modesto bangalô-


tricolor do Rajah, eu compreendi, mais nitidamente do que nunca, as palavras
do Cristo: “O Reino dos Céus não vem com observâncias, nem se pode dizer:
ei-lo aqui! ei-lo acolá! O Reino dos Céus está dentro de vós – mas é uma luz
debaixo do velador, que deveis colocar no alto do candelabro”.

Eu tinha a impressão de que a luz do Reino dos Céus em mim estava colocada
no alto do candelabro da minha consciência cósmica.
Cosmocracia

Havia meses que eu vivia no meio dessa humanidade estranha de


Cosmorama. E não tinha ainda plena certeza se tudo isto era uma realidade ou
então um sonho fantástico – talvez um sonho para além de toda a realidade.

O que mais me intrigava era a total ausência de governo em Cosmorama.


Nenhum presidente, nenhum governador, nenhum prefeito, nenhuma polícia;
nem advogados, nem juízes – nada disto havia na misteriosa ilha.

Um dia, pedi à Íris que me mostrasse a Constituição de Cosmorama; sorriu-se,


meneou a cabeça – e não me respondeu.

E, apesar da completa ausência de legislação e policiamento, não havia crimes


em Cosmorama. Nunca vi uma penitenciária nem uma cadeia. Se os Cósmicos
fossem homens primitivos, espécie de animais, seria compreensível essa
ausência de legislação. Também a natureza não tem governo, e tudo vive em
paz. Mas a população desta ilha era de avançada evolução mental, e
ultramental.

Quando travei mais familiaridade com o Rajah, ousei pedir explicação sobre
essa espécie de sem-governo, que em grego se chamaria anarquia, não uma
anarquia negativa, caótica, mas uma anarquia positiva, cósmica. O que o
grande Vidente me disse foi a confirmação explícita de algo que eu já sentira
implicitantemente, e que tentei concretizar nos meus livros.

Os dois extremos da natureza, o nadir do instinto e o zênite da intuição, não


necessitam de governo externo, porque cada ser tem dentro de si o seu
governo interno. Todos são cosmo-governados. O mundo instintivo do mineral,
do vegetal e do animal é governado pela Inteligência Cósmica, que, nesses
seres é totalmente inconsciente, embora pleni-consciente em si mesma. Toda a
natureza infra-hominal vive numa harmonia automática, da qual não pode
exorbitar. A permanente luta da natureza não contradiz a essa cosmocracia; é
uma luta de equilíbrio construtor, mas não de extermínio destruidor.

No mundo do homem-integral, o instinto subconsciente da natureza é


substituído pela razão pleni-consciente, que se manifesta como consciência,
razão, espírito. O nadir do inconsciente, culminou no zênite do pleni-
consciente.
A Consciência Cósmica impera de dentro do próprio homem integral, que age
como cosmo-agido, cosmo-vivido, cosmo-consciente. Esse homem não perdeu
a sua ego-personalidade, mas esta maturou em cosmo-individualidade. E, devi-
do a essa imanência da consciência cósmica, o homem plenamente humano
não necessita de um governo externo, uma vez que o seu governo interno
dispensa qualquer legislação de fora.

Somente o homem apenas ego-consciente necessita de um governo externo. A


ego-personalidade baseada na intelectualidade é, por sua natureza, centrífuga
e discordante. A lei externa é um substituto, embora precário, da lei interna,
ainda inoperante.

No homem racional impera a cosmocracia; o homem intelectual é governado


pela democracia, que é a designação de uma personalidade para governar as
outras personalidades. A fim de garantir certa paz social, resolvem os egos
encarregar um ego para os governar, para que possa haver uma paz relativa
entre eles. Essa paz relativa da democracia não passa de um armistício, que é
melhor do que guerra, embora não seja uma paz real e duradoura. O governo
democrático deve contentar-se com uma paz precária, porque a paz duradoura
não é atributo da ego-personalidade.

Quando o Rajah me expôs estas verdades, perguntei-lhe se não havia outras


formas de governo, ao que ele me explicou que, além da cosmocracia racional
e da democracia intelectual, existia a monocracia ditatorial, onde um homem,
sem consultar os outros, se arvora em governo, seja por hereditariedade, como
nos antigos reinos e impérios, seja à força de armas, como em certas ditaduras
modernas.

Retirei-me da presença do grande Vidente com a certeza de que os Cósmicos


dessa ilha longínqua representavam um estágio avançado, além da nossa
humanidade Telúrica, ainda no plano da democracia ou da monocracia. Se a
razão cósmica conseguisse superar a nossa inteligência analítica, iria a nossa
humanidade proclamar uma maravilhosa cosmocracia.

Mas... essa cosmocracia supõe consciência cósmica dentro de cada


indivíduo...

Vislumbrei a alvorada de uma nova humanidade, em horizontes longínquos...


“O Reino de Deus será proclamado sobre a face da terra... e haverá um novo
céu e uma nova terra...”
Equidistante da Ásia e da América

Passamos parte dessa tarde a vagar pelas selvas que cobrem as rampas da
montanha. Nunca vi tão imensa variedade de flores, sobretudo orquídeas,
como nessas matas de Cosmorama. Duas vezes nos encontramos com feras,
uma vez com uma onça malhada, e outra vez com uma manada de javalis.
Nenhum de nós levava armas de espécie alguma. Com grande surpresa
minha, esses animais selvagens eram amigos e tão mansos como gatos e
coelhinhos domésticos. Veio-me a idéia de que, onde não há homens
“selvagens”, também não há animais selvagens. Um dos meus companheiros,
vendo que não havia no chão coquinhos suficientes para os javalis, lançou mão
de uma vara de bambu e com ela fez cair abundante chuva de cocos maduros
de um cacho ainda suspenso no pé. Os porcos do mato, aliás tão ferozes,
andaram catando avidamente as nozes duríssimas, mesmo por entre os pés da
gente, sem terem medo de nós nem darem o menor sinal de hostilidade.

Reencontramos também aqueles dois veados, o filhote ainda em seu trajo


listrado de bebê; ofereci-lhes um tenro palmito, que eles comeram com grande
apetite, acabando por lamber-me a mão, como que agradecendo, ou, quiçá,
pedindo mais.

Ao entardecer voltamos para junto do “Lago das Avencas”, onde o Rajah havia
ficado. Foi resolvido que só desceríamos das alturas depois do pôr do sol, a fim
de apreciarmos o espetáculo do ocaso, do alto de um penhasco, pouco acima
do lago.

O Vidente e eu tomamos a dianteira, sozinhos, e fomos sentar-nos no topo do


rochedo, reatando o fio das nossas meditações.

Pedi ao mestre que me desse uma idéia clara sobre o consórcio entre a vida
ativa e passiva, de extroversão e introversão, que o homem integral deve
realizar em sua existência.

– Estamos no meio entre a Ásia e a América – exordiou o Rajah – o que é bem


simbólico para a atitude do homem cósmico. Nossos irmãos da Atlântis eram o
elo entre a Europa e o hemisfério ocidental, mas deixaram de existir.

Abrindo um parêntesis, o grande Vidente insinuou porque o povo de Atlântis


desapareceu tão misteriosamente, deixando apenas imprecisos vestígios e
lendas nebulosas da sua existência. Depois prosseguiu dizendo:
– A humanidade Telúrica sofre ainda de dois grandes males, no meio dos
quais, equidistantes deste e daquele, jaz o grande Bem. No Ocidente
predomina geralmente a atividade físico-mental, incompleta, unilateral – ao
passo que o homem do Oriente é, por via de regra, demasiadamente propenso
a se perder em fantásticas divagações místicas, acabando por desertar de tudo
que pertence à vida material, social, científica, técnica, etc. O ocidental é, não
raro, escravo da matéria e analfabeto do espírito – o oriental compraz-se em
desertar da matéria e cai por vezes, vítima de um espiritualismo unilateral.
Aquele labora de hipertrofia físico-mental – este sucumbe a uma hipertrofia
pseudo-espiritual. Nem este nem aquele fazem jus ao título de “homem
cósmico”.

Difícil seria dizer qual desses males seja o maior, se o materialismo do


Ocidente, se o espiritualismo do Oriente – tomo esses dois termos apenas
como paradigmas estilizados – acrescentou com ênfase – porque não ignoro
que em cada uma dessas zonas do globo há numerosas pessoas que seguem
outra orientação. Entretanto, é um fato secular que a Ásia, sobretudo o extremo
Oriente, representa, de preferência, a tendência ascético-mística, assim como
a América concretiza, em geral, a tendência puramente material e técnica.

Ora, como dizia, tanto o materialismo como o espiritualismo representam dois


tipos de homem imperfeito, porque fraco e receoso de afirmar o mundo de
Deus em toda a sua verdade e deslumbrante plenitude. O materialismo afirma
a parte visível e inteligível do mundo negando ou ignorando a vasta zona
invisível e ultra-inteligível. O espiritualista, por seu turno, nega ou despreza a
matéria para afirmar o espírito, já que lhe parece impossível afirmar ao mesmo
tempo os dois.

Se o materialista é analfabeto total do mundo imaterial, o espiritualista é, por


assim dizer, um principiante, um aluno da escola elementar, no cenário do
universo total.

O homem cósmico, porém, não nega nem o espírito nem a matéria; afirma um
e outra, porque sabe que ambos são revelação de Deus, e toda revelação de
Deus é, por sua própria natureza, afirmável. Quem nega o que Deus afirma é
contra Deus. Deus afirma tão bem o mundo material como o mundo espiritual.
Se assim não fosse, nenhum deles existiria. Ambos entraram na existência em
virtude duma afirmação do Onipotente, e perseveram na existência graças à
afirmação do Onisciente.

O homem integral não afirma a matéria para negar o espírito, como o


materialista – nem afirma o espírito para negar a matéria, como o espiritualista.
O homem cósmico está com os pés solidamente firmados na terra, e com a
cabeça gloriosamente banhada pela luz do céu. Quando trabalha na terra não
se esquece do céu – e, quando contempla o céu não perde de vista a terra.
– Grande verdade estás dizendo! – exclamei quase sem querer – Mas, como
pode um pobre mortal, escravizado pelas coisas do mundo tangível, libertar-se
da escravidão da matéria e alcançar a gloriosa liberdade dos filhos de Deus?
Não é que o mundo, ao mesmo tempo que revela, também vela a Divindade?
Como pode revelar o que vela? como pode a natureza material, que parece
empecilho, tornar-se auxílio para o conhecimento de Deus?

– Meu irmão, há, em todas as coisas da vida, três fases ou estágios; em


primeiro lugar, deve o homem crer na suprema Realidade, embora ainda a
ignore e dela não tenha experiência imediata. Depois, deve viver, intensa e
assiduamente, essa sua crença, dela permeiando a sua vida cotidiana, os seus
pensamentos e os seus sentimentos, como se dessa Realidade já tivesse
experiência própria. Essa vivência nascida da crença, e anterior à sapiência, é
a parte mais difícil. Sem o estágio preliminar do crer e viver ninguém pode
chegar ao ponto definitivo do saber. Ninguém pode dar o passo último sem
primeiro dar o penúltimo. Ninguém pode saber sem primeiro crer.

***

A estas palavras do Rajah, seguiu-se um grande silêncio, um silêncio tão


profundo que eu julgava até ouvir o crescer das plantas e a respiração dos
insetos em derredor. Qualquer palavra humana seria uma profanação, e até o
pensamento seria um sacrilégio na sacralidade desse silêncio.

Por sobre o lago bailavam no ar duas borboletas de asas alvíssimas


ligeiramente debruadas de azul, que me fizeram lembrar a Papilio Innocentia
que o cientista alemão descrevia tão entusiasticamente, no livro “Inocência”, do
Visconde de Taunay. Contemplando o bailado dos lepidópteros, disse
vagarosamente o Rajah:

– A lagarta não se transforma em borboleta se não passar pela crisálida.

– A crisálida é o ocaso da lagarta – acrescentei eu – e a alvorada, da borboleta.

– A cosmo-meditação – prosseguiu o Vidente – é a ponte que leva o homem


profano ao homem sacro. Durante esse sono místico, se concentram todas as
energias vitais do homem para elaborarem a nova creatura alada. De portas
fechadas, em total silêncio e solidão, se formam os novos órgãos do homem
cósmico, que não rasteja mais pelas baixadas, mas adeja nas luminosas
alturas, sem perder o contacto com a terra. Quando desce das alturas, pousa
de leve sobre uma flor, apenas para beber uma gotinha de néctar.

Ego-vivente, cosmo-vivido e cosmo-vivente murmurei de mim para mim...


Assim é o homem integral.
Almah Fala da Atlântida

Repetidas vezes haviam Íris, Rajah e outros habitantes de Cosmorama aludido,


de passagem, à vida e morte de um continente que, em tempos remotos,
existira no outro grande oceano do globo terráqueo. Dele ficara até nossos dias
o nome “Atlântico”, quando a substrutura desse adjetivo, o nome “Atlantis”, se
perdera no mistério e no anonimato da pré-história da nossa raça.

Que era feito de Atlantis?

Um dia, aventurei-me a solicitar a Íris ulteriores explicações sobre esse ponto


nebuloso, caso as potências superiores lho permitissem. Ela recebeu o meu
pedido, calma e serenamente, o que me encheu de esperança da não-
existência duma proibição da parte do mundo invisível; sabia eu que nenhum
Cósmico diria uma só palavra que estivesse em desarmonia com a consciência
dele orientada pela inspiração superior.

– Vou chamar minha irmã Almah – disse ela – porque ela melhor do que
ninguém entende desse assunto; tanto assim que alguns dos ascendentes dela
estiveram em Atlantis.

– Como? – estranhei – os ascendentes dela? e não são eles também


ascendentes teus?

– Almah é apenas 50% minha irmã; os outros 50% dela não circulam nas
minhas veias.

Antes que eu pudesse formular nova pergunta sobre essa misteriosa semi-
revelação, Íris desapareceu, e daí há pouco voltou em companhia de Almah.
Sentamo-nos à sombra duma nogueira. Olhei atentamente para o rosto da
recém-chegada, e, pela primeira vez, descobri que tinha as feições exatas de
Hat-Shep-Sut, cujo maravilhoso retrato está sobre a minha mesa de trabalho.
Hat-Shep-Sut é o nome daquela “filha do faraó” que, segundo o texto bíblico,
encontrara o pequeno hebreu nos canaviais do Nilo e o adotou por filho,
educando-o “em toda a sabedoria dos egípcios”, no palácio real de seu pai.
Como ela mesma não tinha filho, pôs ao pequeno o nome de “Moses”, isto é,
“filho”. Uma cabeça escultural dessa inteligente conselheira de três reis foi
encontrada, há tempos, nas ruínas do Egito e acha-se num dos museus da
Europa. Possuo um retrato fiel dessa cabeça, cujos olhos enigmáticos, vácuos
das coisas propínquas e plenos de realidades longínquas, exercem estranho
fascínio sobre os que tenham tido contato com os mundos que se alargam para
além dos horizontes visuais – esses mundos ignotos e ultra-reais em que os
olhos da esfinge de Gizeh, os de Hat-Shep-Sut e de outros videntes estão
submersos. Quando se olha de perto o retrato que tenho sobre a mesa não se
descobrem pupilas nem íris nos olhos da formosa egípcia; vistos, porém, de
longe, esses olhos revelam intensa expressão e o observador está convencido
de lhes descobrir íris e pupilas. O nariz afilado e os lábios delgados de Hat-
Shep-Sut refletem a permanente disciplina e espiritualidade da alma que, um
dia, animava esse formoso invólucro. Quão estupendo deve ter sido o original,
quando tão sugestiva é uma cópia longínqua do mesmo!

Olhando, em silêncio, para Almah, eu disse, à meia-voz cheio de surpresa:

– Hat-Shep-Sut...

Almah ouviu esse nome, e, sorrindo de leve, acenou com a cabeça, como que
aprovando o que eu pensava sem o externar. O que eu pensava era isto: esta
jovem, com olhos e semblante egípcios, deve ter parentesco ou afinidade com
aquela misteriosa “filha do faraó”. Não me animei a lhe fazer pergunta sobre
este particular, mas tenho a certeza de que minha intuição não me iludiu.

A hora que então se seguiu foi para mim de estranhas revelações. Tudo quanto
Almah passou a dizer sobre Atlantis e seus habitantes, sobre a vasta cultura
científico-técnica e o fim trágico dessa humanidade anterior à nossa, já o
entressabia eu, na zona noturna do meu subconsciente, sem o poder formular
conscientemente. Almah serviu de catalizadora consciente e explícita do
conteúdo do meu subconsciente implícito, fazendo subir à superfície diurna os
elementos que dormiam na noite profunda de minha alma.

Segundo a mitologia greco-romana, esvaído eco de tempos e eventos remotos,


o gigante Atlas sustentava em seus possantes ombros – ou melhor, sobre a
vértebra cervical – a esfera celeste. Para o oeste do atual Gibraltar, ou das
“colunas de Hércules”, existia um vasto complexo de ilhas, ou melhor, um
continente chamado Atlantis, ou Atlântida. Os seus habitantes eram dotados de
tão intenso poder Intelectual que penetravam os mistérios da natureza e deles
faziam servos dóceis da sua vida. Corna entre eles o provérbio: os Atlânticos
sustentam com sua cabeça a abóbada celeste! Daí a figura simbólica de Atlas,
pálida reminiscência de uma grande realidade histórica.1

1. A guerra dos “Titãs” e a história da “Torre de Babel” têm o mesmo sentido simbólico que a
lenda de Atlas.

Quando a ciência e técnica desse povo privilegiado atingiu o auge do seu


esplendor, conseguiu ele extrair, das partículas últimas da matéria, as energias
latentes de que necessitava para o conforto máximo de sua vida. Chegaram ao
ponto de realizar em seus laboratórios o processo de fotossíntese (com grande
estranheza minha, Almah usou esta mesma palavra grega, adotada pela
ciência moderna dos Telúricos) que, por via de regra, é feita pela clorofila das
folhas das plantas; e assim se tornaram independentes do mundo vegetal,
creando sinteticamente os seus alimentos. Conseguiram os Atlantes também
invisibilizar e desponderar as substâncias e o seu próprio corpo. “Desponderar”
é a tradução correspondente a um termo usado por Almah, e quer dizer tirar o
“pondus”, palavra latina para “peso”; desponderar seria, pois, eliminar o peso
ou a gravitação dos corpos.

De posse da misteriosa energia intra-atômica e dos mistérios íntimos da


natureza, os Atlantes proclamaram a sua completa independência do mundo
circunjacente, graças ao poder da inteligência. Resolveram, então, celebrar a
sua grandeza, erigindo magnífico templo a Lúcifer, ao “Porta-Luz”, isto é, à
Inteligência, soberana e onipotente, como diziam.

De improviso, apareceu no meio deles um profeta do Altíssimo, vindo de outros


planos do Universo, mostrando que a Inteligência, por mais poderosa em seu
setor, não era onipotente nem autônoma, mas serva da Razão, ou, como ele
dizia, do Espírito. Os Atlantes, porém deslumbrados pelos fulgores do Intelecto,
zombaram do emissário do Espírito, acoimando-o de retrógrado e
obscurantista, inimigo das gloriosas conquistas deles, e acabaram por eliminar
do seu meio esse profeta da suprema Divindade.

Desde então, Lúcifer dominou soberano em Atlantis. E com isto começou a


tragédia desse povo...

– Deus o castigou, não foi? – observei.

– Não – replicou Almah – Deus não castiga ninguém. Cada um se castiga a si


mesmo com o efeito inexorável dos seus atos, retos ou incorretos. Os Atlantes,
de posse das energias íntimas da natureza, perderam o controle sobre as
mesmas. A Inteligência descobre as energias, mas não as controla; Lúcifer cria
os problemas, mas não os solve. Para controlar e solver os problemas do
homem faz-se mister o advento de um poder superior ao do Intelecto – mas os
Atlantes fecharam as portas a esse poder, cavando assim a sua própria ruína.
Suicidaram-se pela força do Intelecto divorciado do poder do Espírito, porque a
faculdade intelectual é egoísta por natureza, e todo egoísmo é suicida e
autodestruidor. Constrói e destrói. Os Atlantes não compreenderam essa
filosofia cósmica, e pereceram por falta de sapiência, vítimas da sua própria
insipiência intelectualista.

Almah dizia estas coisas estupendas com tamanha simplicidade e tão intensa
penetração que eu estava como que extático, e, por fim, diluiu-se numa como
nebulosa dourada a figura da linda egípcia; em vez dela via eu o semblante do
profeta de Nazaré, e, por vez, a efígie de João Evangelista, a falarem sobre a
epopéia multimilenar das “trevas e da luz”... sobre “os homens que amaram
mais as trevas que a luz, porque as suas obras eram más”, sobre o “príncipe
deste mundo”, sobre “Satan a tentar o Cristo” – tudo isto era pensado dentro de
mim, sem que eu, propriamente, o pensasse conscientemente... E, como
relâmpago em plena noite, via eu diante de mim a flamejante verdade: o que
aconteceu aos Atlantes pode acontecer aos Telúricos, se proclamarem a
soberania do Lúcifer do Intelecto sobre o Cristo da Razão.

Almah voltou a emergir da longínqua nebulosa da minha visão, e prosseguiu na


exposição dos acontecimentos em Atlantis. Durante a inauguração do
grandioso templo a Lúcifer, disse ela, encheram-se todos os espaços noturnos
de estupendos prodígios pirotécnicos, brilhando em todas as cores e
cambiantes, envolvendo as ilhas de Atlantis num deslumbramento feérico de
que ninguém pode fazer idéia. De súbito, deu-se violenta reação em cadeia das
energias nucleares, fenômeno não previsto pelos peritos – e incendiou-se a
cidade... Na fração de um segundo, o vasto incêndio atômico se alastrou pelo
continente inteiro, saltando de ilha a ilha, desintegrando todos os elementos...
Era de tal natureza essa reação catenária de desintegração nuclear que não
afetava as águas do oceano em derredor. Mas todas as ilhas de Atlantis
desapareceram instantaneamente da face do globo...

Lúcifer vencera em toda a linha... E o rasto da sua vitória era assinalado pelos
abismos do nada, das trevas, do grande silêncio da morte universal...

Silêncio absoluto, profundo, longo, repleto de eloquência, seguiu-se a essa


narrativa. Quedávamo-nos, os três, à sombra da nogueira, absortos em
meditação, como se fôssemos a taciturna esfinge do deserto... Os meus
pensamentos iam dos Atlantes aos Telúricos e daí aos Cósmicos... Ante meus
olhos internos desfilavam Lúcifer, o Cristo, Einstein, Oppenheimer, Hiroshima,
Nagasaki...

Mas uma vez fui acometido da sensação estranha de estar sonhando ou de ter
morrido naquele naufrágio em pleno Oceano Pacífico... Não! eu estava
acordado e vivo... Se não estivesse vivo, nem poderia pensar ter morrido... Se
não estivesse acordado, não poderia ver tudo isto com tamanha clareza e
nitidez... Acabei por convencer-me definitivamente de que há uma realidade
para além da vigília natural dos nossos sentidos e da nossa mente. O “terceiro
céu” de Paulo devia ser essa zona da realidade ultra-sensorial e ultra-
intelectual – a grande realidade do mundo intuitivo da razão espiritual.

Depois de longa pausa meditativa, ousei quebrar a quietude que nos envolvia,
e perguntei a Almah se a tragédia dos Atlantes tinha algum sentido no quadro
total dos mundos conscientes; pois sabia eu que nada acontece à margem dos
planos das Potências Cósmicas, e que o próprio Intelecto, por mais que
pretenda emancipar-se da jurisdição da Onipotência e Onisciência divinas, tem
de cooperar, em última análise, com a harmonia do Todo; pode, sim, o Intelecto
crear dissonâncias na grande orquestra do universo, mas essas próprias
dissonâncias se enquadram, finalmente, na eterna Sinfonia Cósmica – que é
uma “sinfonia inacabada”...
Respondeu-me a minha Hat-Shep-Sut rediviva que ainda não estava terminada
a missão dos Atlantes; que eles, graças à sua avançada ciência e técnica,
estavam em condições e tinham o destino de entrar em contato com as outras
humanidades do nosso sistema solar, e de outros sistemas, que apareciam
toda vez que os habitantes conscientes e livres de outras unidades siderais
estivessem a pique de cometerem os mesmos desatinos que motivaram a
tragédia deles, proclamando Lúcifer como o soberano da sua vida.

Nestas alturas, ardia-me na alma uma pergunta que não externei. Queria saber
se os nossos chamados “discos voadores” tinham alguma relação com os
Atlantes, sobretudo depois de verem como nós costumamos solver os nossos
problemas à boca de canhões e com bombas atômicas; se eles vinham
prevenir-nos do iminente perigo, no caso que o Espírito do Cristo não
conseguisse dominar o Intelecto de Lúcifer.

Almah adivinhou os meus pensamentos. Sorriu-se suavemente e, fazendo


gesto negativo com o índice da mão direita, disse:

– Há segredos que não é licito revelar antes do tempo; a seu tempo, porém, o
que hoje é obscuro amanhã será claro... Guia-te, Delfos, pelo que ELE disse –
e tudo estará certo... 2

2. O leitor que quiser saber das minhas relações, com os discos voadores, leia o capítulo “Eu e
os discos voadores” do meu livro “Luzes e Sombras da Alvorada”.

Separamo-nos.

Em casa, rememorei certos textos do Evangelho – e apareciam numa luz nova,


como se os ouvisse pela primeira vez...

Sim, ELE sabia de certas coisas que nós ignoramos...


Regresso ao Mundo dos Telúricos

– Íris! Almah! Mestre Rajah!...

De olhos arregalados olhei em derredor. Ninguém respondeu aos meus


clamores de angústia.

– Está delirando – disse uma voz perto de mim.

– Delirando? eu? por quê?

– Porque não existe ninguém por aqui com esses nomes.

– Ninguém? aqui em Cosmorama?...

– Que vem a ser Cosmorama?

– A ilha do Cristo vivo e do homem perfeito, onde passei anos tão felizes...

Entreolharam-se os presentes... Davam de ombros, meneavam a cabeça com


tristeza. Um deles disse à meia-voz que ia chamar o médico.

– Médico? – mas não há médicos em Cosmorama. Também, para que médico,


se não há doentes no paraíso da saúde integral?

– Há muitos doentes entre nós – e um deles está aqui...

Dizendo isto, o tal olhou para mim. Compreendi que me tomava por um doente,
um pobre mentecapto.

– Está muito enganado! – exclamei – eu não estou doente, nem nunca mais
estarei doente, desde que entrei no reino da perfeita sanidade.

E, para provar o que dizia, saltei da cama e corri para o jardim defronte ao
edifício. Sentei-me num banco de pedra, à sombra duma árvore. Vi, numa
cadeira de rodas, um pobre paralítico. Duma janela do segundo andar do
hospital, partiam gemidos de dor. Daí a pouco, vi dois homens de avental
branco carregando numa padiola um objeto coberto dum lençol branco.

– Que é isto? – perguntei.

– É o corpo de um jovem que acaba de falecer de tuberculose.


– Então, aqui ainda se morre em plena juventude? fica-se doente? onde
estou?...

– Estás em tua terra natal.

– No ocidente cristão?

– Sim, num país cristão.

– Mas, por que não há Cristo nesse país cristão?

Entreolharam-se os dois enfermeiros e um deles disse, quando prosseguiam


com o seu cadáver de 18 primaveras:

– Coitado! fugiu do manicômio...

Deixei o jardim do hospital e desci pela estrada que conduzia à cidade próxima.
Na primeira encruzilhada deparei com um esqueleto semi-vivo, deitado à beira
do caminho. Estendeu-me um par de braços descarnados e por entre os lábios
pálidos lhe coou este pedido: uma esmolinha pelo amor de Deus!

Remexi nos bolsos, à procura de algum pedaço de metal morto ou dum farrapo
de papel estampado na Casa da Moeda, com que prolongar pudesse por mais
uns dias a esquálida miséria do pobre aleijado; mas nada encontrei. Neste
momento, um lampejo súbito me passou pela alma; fitei o infeliz, e ele me fitou,
imóvel, esperando receber o que pedira. Eu, porém, lhe disse com voz firme:
“Amigo e irmão! metal morto não o tenho, mas em nome de Jesus, o Cristo
vivo, eu te ordeno: levanta-te e anda!” Levantou-se o aleijado como se nunca
estivera doente. Prostrou-se-me aos pés, abraçando-me e chorando de alegria.

– Não sou eu que te dei saúde, meu amigo – respondi-lhe – Foi ELE, o Grande,
o Eterno, do qual sou apenas humilde servo e arauto. A ELE, sim, agradece o
benefício que te fez.

Segui o meu caminho, deixando o homem estupefato.

Passei defronte a uma igreja aberta. Os sinos acabavam de chamar os fiéis


para a hora de culto. Entrei, para ouvir o que o ministro de religião diria do
Cristo; pois no topo do santuário se erguia a cruz da redenção.

Entregaram-me um livro de cânticos sacros, que em cada página falava do


homem pecador, “filho da ira divina”, procurando encher de terror ao “fogo
eterno” os que frequentavam essa igreja.

Fechei o livro e pus-me a esperar.

Nisto apareceram dois homens com umas bandejas. Passaram pelo santuário,
pela cabeceira dos bancos, recolhendo metal e papel mortos para a
manutenção do culto ou do pastor. Vieram-me à mente as palavras do Cristo
vivo, proibindo a seus discípulos que levassem ouro ou prata nos seus cintos,
ordenando que de graça dessem o que de graça haviam recebido.

Quando os coletores de metal e papel inertes haviam terminado a sua tarefa,


apareceu o pastor da Igreja, trajando ampla veste talar preta; assim já o vira eu
na rua, fumando alentado charuto; o feitio e a cor da vestimenta tinham o fim
de mostrar a todos que esse homem era devotado às coisas do espírito e não
pertencia à massa dos profanos. Lembrei-me das palavras d’ELE sobre a
ostentação de insígnias religiosas e exibição de vestes roçagantes, como eram
usadas pelos chefes religiosos do povo de Israel, que rejeitaram o Cristo.

Subiu ao púlpito; mas não falou do Cristo; levou quase uma hora a lançar
violentos anátemas contra os que não pertenciam à sua igreja e prognosticou-
lhes eterna condenação num lugar onde haveria choro e ranger de dentes.

Desiludido de não encontrar o Cristo entre esses cristãos, afastei-me e fui


andando a esmo, até chegar a uma praça pública, onde havia grande
aglomeração de pessoas a escutar a palavra de alguém que falava do alto de
um estrado improvisado. Associei-me à multidão e, ávido, pus-me a escutar o
que o pregador dizia. Falava de um Deus vingador tão pequenino que cabia
entre as duas capas de um livro que ele levava na mão e brandia contra os
impenitentes; esse Deus se havia revelado, durante alguns séculos, a um
povinho minúsculo, deixando em completa ignorância a imensa maioria da
humanidade... Mas, havia quase vinte séculos que esse Deus se retirara do
cenário e nunca mais se revelara a ninguém...

Não, não era aqui a sede do reino de Deus; não era aqui que imperava o
espírito do Cristo...

Segui avante.

À beira dum lago encontrei um grupo de homens em oração. Quando o chefe


da turma me avistou, convidou-me para descer à agua, a exemplo dos outros,
e submergir nela a fim de ser salvo; os que assim faziam, afirmava ele,
pertenciam a Deus, ao passo que os outros eram do diabo; isto, dizia o
pregador, era a doutrina do Cristo, de quem ele era arauto e ministro fiel.

Retirei-me em silêncio – e ele pediu aos mergulhadores que orassem por este
pecador impenitente.

Na noite seguinte desabou enorme tempestade, que fez transbordar os rios.


Depois do nascer do sol cheguei a uma casa solitária no meio dum arvoredo, e
percebi choros e gritos de dor de uma família inteira em alarido. Acerquei-me
de uma senhora desgrenhada e com o desespero estampado no semblante,
perguntando pelo motivo de tamanha angústia. Em vez de me responder, ela
apontou para o outro lado do rio, onde se via um vulto vestido duma túnica cor
da noite, cercado de alguns outros homens em trajes civis. Não compreendi a
princípio, a linguagem semântica da desesperada.

– É o padre!... é o padre! – bradava ela, apontando para o vulto negro. – Não


pode passar... a enchente levou a ponte!... e não há canoa!... meu filho vai
morrer sem Deus!... não pode confessar-se! não pode receber o corpo de
Jesus!... Jesus está do outro lado, e meu filho está aqui!... Pobre de meu filho
vai morrer sem Deus!...

Compreendi, finalmente, o que havia: Jesus duplamente preso: ligado a um


pedacinho de pão, não podia libertar-se desse punhado de matéria inerte e
unir-se ao moribundo; impedido pelas águas turvas da caudalosa torrente, não
podia transpor a distância que o separava do infeliz pecador. Não era possível
o perdão, era impossível a união... E assim, a vinte metros de distância, não
podia o jovem entrar no reino de Deus e era condenado a morrer em seus
pecados, morrer sem Deus...

Lembrei-me do poder do Cristo vivo e imortal que andava sobre as ondas do


lago de Genesaré e dava ordem ás águas e aos ventos – e compreendi que
esse Cristo do Evangelho e o Jesus da teologia desse povo não podiam ser o
mesmo; pois, que semelhança havia entre aquele Cristo onipotente e este
Jesus impotente que os cristãos adoravam?...

Quis consolar a pobre mulher e sua família, falando-lhes do Cristo eterno e


onipresente, aquele que está conosco todos os dias até à consumação dos
séculos, aquele que ilumina a todo o homem que vem a este mundo, aquele
que dá a todos os que o recebem em espírito, o poder de se tornarem filhos de
Deus; fiz ver-Ihes que é o espírito que vivifica e que a carne de nada vale –
mas foi tudo inútil; ela me repeliu de si como herege e renegado...

E o jovem deste lado da torrente morreu em desespero, à vista de Deus, que


estava do outro lado da torrente e não a podia transpor...

Deixei a família em desespero e continuei o meu caminho solitário através das


campinas. Sentia náuseas dessas horripilantes caricaturas do Cristo. Porque é
que todos esses homens viviam no jardim d’infância espiritual, brincando com
bonecos e fantoches, que consideravam seres vivos e identificavam com o
mundo glorioso do Cristo? Tive saudade da Universidade do espírito que
encontrara em Cosmorama...

Comecei a compreender também o porquê das misérias físicas do mundo dos


Telúricos: é que o Cristo não viera ainda a esse povo; tinham ouvido falar de
Jesus que, havia quase vinte séculos, andara por uma terra longínqua, mas
não tinham vivido o Cristo interno que dentro de cada homem vive, como que
dormente, à espera da grande alvorada. Onde não é vivido o espírito do Cristo,
não opera a força do Cristo...
Grande foi a minha alegria quando, na manhã seguinte, deparei com um grupo
de pessoas reunidas numa casa modesta, iluminadas pelo espírito d’ELE.

Entrei e ouvi a linda saudação: “A paz seja contigo, irmão!”.

Acabavam eles de fazer a sua meditação diária, a sua comunhão com Deus,
estavam todos ocupados na confecção ou no conserto de roupas, sapatos,
sandálias e outros objetos para os que disto necessitavam. O ambiente estava
prenhe de força e de paz, de alegria e de trabalho. Perguntei-lhes a que igreja
ou denominação pertenciam. Responderam-me que eram todos operários
livres do reino de Deus, embora alguns deles fossem membros de um
determinado grupo religioso. Se quiser, disse um jovem sorridente, enquanto
batia a sola de um sapato, pode chamar-nos de Irmãos Anônimos da
Fraternidade Branca.

Perguntei-lhes se tinham algum livro de estatutos ou regulamento, ao que um


deles me respondeu que toda a sua filosofia, teologia e política se resumia nas
palavras do Mestre: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda
a tua alma, com toda a tua mente e com todas as tuas forças – e amarás o teu
próximo como a ti mesmo”.

Outro me respondeu:

“A minha sabedoria consiste nisto: Há mais felicidade em dar do que em


receber”.

Compreendi que esses homens e essas mulheres eram irmãos e irmãs dos
habitantes de Cosmorama. Apenas havia eu proferido o nome da ilha dos
Cósmicos, quando, todos a uma só voz, exclamaram:

– Ah! tu também és cidadão de Cosmorama?

– Como? – estranhei – Conheceis esse paraíso perdido na vastidão do


oceano?

– Não é nenhum paraíso perdido na vastidão do oceano – disse uma jovem


parecida com Almah. – Está dentro de cada um de nós. Tens fé na comunhão
dos santos, irmão?

– Tenho, sim.

– Pois, a comunhão dos santos é esta e a de todos os que vivem o espírito do


Cristo. O reino de Deus não é um lugar, alguma ilha longínqua; é um estado de
alma, é a consciência divina dentro do homem, é a sua vida sintonizada com o
infinito...

Parecia-me que Íris estivesse falando...

– Mas – perguntei – porque tive de sofrer naufrágio para lá chegar?...


– Todos nós somos náufragos também. Sem primeiro naufragar, ninguém pode
entrar na plenitude da vida.

– Bendito e louvado seja Deus! – exclamei num arroubo de incoercível alegria –


Estou ainda em Cosmorama! É esta a linguagem de casa, o modo de falar do
Rajah, de Íris, de Almah, de todos aqueles seres maravilhosos com quem vivi
anos tão felizes!... Ainda estou em Cosmorama...

– Se não tivesses naufragado não terias arribado a Cosmorama e não terias


entrado nesta vida. Cosmorama está dentro de ti, e de nós...

– E por que devem os homens primeiro sofrer naufrágio?

– Porque tomam o seu falso ego pelo seu Eu verdadeiro. O naufrágio não é
outra coisa senão a morte da ilusão e o nascimento da verdade, a morte do
pseudo-eu físico-mental e a ressurreição do verdadeiro Eu espiritual, do Cristo
interno...

– Ah! bem dizia o grande Mestre: “Se o grão de trigo não morrer ficará estéril –
mas, se morrer produzirá muito fruto”...

– Era necessário, meu irmão, que naufragasses para o mundo para que
pudesses ajudar o mundo. Não pode ajudar o mundo quem é do mundo. Só
quem está no mundo sem ser do mundo é que pode ser um redentor para o
mundo.

– “O Cristianismo – disse um desses náufragos do falso eu – é uma afirmação


do mundo, que passou pela negação do mundo”.

– De fato, ninguém pode possuir algo com segurança e sem perigo quem não
se despossuiu de tudo e entrou na gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Só
quem possui sem ser possuído é que é realmente um possuidor, e só ele está
no reino de Deus e pode ajudar outros a entrar nesse reino.

Depois disto, os Irmãos Anônimos formaram círculo, deram-se as mãos uns


aos outros, fazendo de mim um dos elos dessa “cadeia cósmica”, e cantaram
com vibrante entusiasmo o magnífico hino de consagração.
Ecos Cósmicos Entre os Telúricos
– O Clube dos Amigos da Verdade

Havia tempo que eu regressara de Cosmorama ao meio das realidades


Telúricas – embora estas me fossem menos reais que aquele sonho cósmico,
continuava a sentir-me “naufragado”, não já naquela longínqua ilha em pleno
Oceano Pacífico, mas sim nas arenosas praias deste planeta Terra, que se me
convertera em terra estranha. Sabia que aqui estava apenas como imigrante,
com “visto” temporário.

Uma voz interna impelia-me a espalhar entre meus irmãos Telúricos algo da luz
e força que colhera entre os Cósmicos. Um dia, estávamos reunidos, alguns
irmãos espirituais e eu, à sombra amena de um bosque, quando foi resolvido
que cada um de nós, sintonizados pelo mesmo espírito, nos espalhássemos
pelo mundo, cada um no setor da sua profissão, e semeássemos os
grãozinhos da verdade libertadora que em nós estavam brotando, florescendo,
frutificando. Fundamos algo que, em linguagem Telúrica, se poderia denominar
um “Clube dos Amigos da Verdade”. De fato, porém, o nosso sodalício não
tinha nome algum, nem distintivo, nem bandeira, nem estatutos, nem nada
daquilo que as sociedades humanas costumam ter. Éramos um grupo anônimo
de seres humanos dispostos a fazer triunfar no mundo fora de nós aquela coisa
grande e bela que cantava vitória dentro de cada um de nós – coisa essa que
se poderia chamar “Verdade”, “Bondade”, “Amor”, “Liberdade”, “Felicidade”,
porque tudo isto é o mesmo.

Como disse, não tínhamos nem temos distintivo, e isto para evitar qualquer
fossilização daquele divino fluído que nos vitaliza. Entretanto, adotamos uma
ligeira senha de reconhecimento mútuo, ou melhor, de advertência espiritual.
Toda vez que algum dos Irmãos estiver prestes a resvalar pelo declive da
rotina habitual que nos cerca – declive feito de mentiras, hipocrisias,
insinceridades e egoísmos de todas as formas e cores – o Irmão monitor,
percebendo o perigo, põe a mão direita à altura do coração, com os dedos
voltados para cima, simbolizando uma chama a apontar o céu. O Irmão
periclitante, vendo esse silencioso “SOS”, se lembra do compromisso de honra
que tem com a Verdade, e pára no meio do traiçoeiro declive em que a força do
hábito e a sugestão do ambiente o colocavam, forcejando por voltar às serenas
alturas de Verdade Redentora, onde a paz habita e onde a felicidade canta
hosanas de eterna beleza e beatitude.
De tempos a tempos, tornamos a reunir-nos à sombra daquele mesmo bosque,
e cada um de nós narra, com verdade e singeleza, as aventuras e experiências
por que passou, no seu bandeirismo pelas selvas da Verdade.

No princípio, aconteciam com esses neófitos, e acontecem ainda, fatos


estranhos, que, a despeito da sua seriedade, beiram, por vezes, as fronteiras
do cômico e hilariante. É que, a princípio, esses recém-conversos de um
mundo de mentira e insinceridade multimilenar para um mundo de verdade se
esquecem do fato de serem discípulos da Verdade Integral!

Passarei a referir alguns desses episódios.

Um dia, passando por uma praça pública, vi, no alto duma tribuna improvisada,
um jovem político, em vésperas de eleições; exaltava às nuvens do céu o seu
candidato político, afirmando que era dever de patriotismo votar nesse homem,
e só nele, porque nele estava a salvação do país. Nisto percebi que o orador
era membro novel do nosso grupo espiritual. Coloquei-me bem defronte à
tribuna e, sem que ninguém o percebesse, pus a mão direita em forma de
chama à altura do peito. O fogoso orador, assim que percebeu aquilo, abriu
ligeira pausa, concentrou-se por uns momentos, e prosseguiu com voz firme,
dizendo: “Amigos e correligionários. Peço vênia para retificar algumas das
minhas asserções. O meu candidato, como suponho, é homem bom, embora
eu não o possa apontar como o melhor de todos, espero que fará o possível
pela prosperidade de nossa terra. De resto, não quero ocultar a meus ouvintes
que não é só o sentimento puro do patriotismo que me move, mas também...
os srs. compreendem, não é?... como sempre acontece em ocasiões dessas...
a gente não trabalha de graça... sei que vou ter uma boa colocação, se o nosso
candidato sair eleito”...

Neste teor, continuou ele a falar, no meio dum silêncio sepulcral, o que fazia
adivinhar que algo de insólito e inaudito estava acontecendo nesse comício
político, algo como uma subitânea invasão das potências de outros mundos na
esfera deste planeta sublunar – não precisamente uma incursão de
“marcianos” em “discos voadores”, mas algo parecido, ou até mais estupendo
do que isto; parecia até que se aproximasse a segunda vinda do Cristo, sobre
as nuvens do céu, com grande poder e majestade...

Alguns dos ouvintes meneavam a cabeça, murmurando: “Esse homem


enlouqueceu”. Outros saíram do comício, irritados, praguejando entre dentes:
“Infame traidor! tartufo sem caráter! vendeu a consciência aos nossos
inimigos!” Não poucos, porém, com os olhos cheios de luz e o coração a
transbordar de entusiasmo, diziam e repetiam: “Graças a Deus! a humanidade
ainda não está perdida!” Alguns desses últimos apertaram a mão do orador,
com grande calor e efusão, pedindo até que os abençoasse, porque viam nele
uma espécie de Messias ou avatar enviado dos reinos da luz eterna ao meio
das trevas desta terra.
***

Em outra ocasião, um dos nossos Irmãos anônimos foi comprar uns litros de
leite. Incidentemente, perguntou ao vendedor se aquilo era leite puro e integral,
ao que o outro respondeu categoricamente: “Leite puríssimo, 100%!” Nosso
Irmão olhou para o leite meio azulado, e olhou para o vendedor, um tanto
encabulado, e disse-lhe baixinho ao ouvido: “Você faz parte do Clube dos
Amigos da Verdade, não é?” Ao que o outro, empalidecendo por uns
momentos, replicou: “Ah! sim!... tinha-me esquecido”... E, voltando-se a todos
os compradores circunstantes, declarou em voz alta: “Amigos, faço-lhes saber
que isto aqui é leite com água, mas podem estar certos de que contém
essência de leite, entre 50 a 70 por cento”.

E passou a vender a “essência de leite” pelo preço marcado sem cobrar aos
fregueses a porcentagem de água – o que teve sobre todos os efeitos de um
grande milagre ocorrido em plena luz do dia. “Louvado seja Deus!” exclamou
uma velhinha, “que ainda existe no mundo um homem capaz de dizer a
verdade a 100%!”...

O vendedor prometeu vender, daí por diante, leite integral e puro, pelo preço
comum, e cumpriu a sua palavra. Esse acontecimento excepcional a tal ponto
impressionou os fregueses que a cidade em peso quis comprar leite só desse
homem: nosso Irmão honesto enriqueceu em pouco tempo e foi contratando a
produção do leite de toda a redondeza, enviando para cada empresa de
laticínios um colega também amigo da Verdade Integral – e defensor do leite
integral...

***

Estava repleto de ouvintes o luxuoso auditório da Academia de Letras da nossa


cidade. Assomou à tribuna um jovem simpático, impecavelmente trajado e, com
um sorriso não menos simpático e impecável, começou a exordiar a
conferência que para essa grande solenidade havia cuidadosamente preparado
e levava imortalizada num maço de tiras de papel. Após as costumeiras
saudações ao distinto público, principiou ele o seu discurso, dizendo:

“Eu, apesar da minha absoluta incompetência e total indignidade (aqui o orador


abriu uma pausa, aparentemente para tomar fôlego, na verdade, porém, para
melhor ouvir e saborear os dulcíssimos “não-apoiados” nas primeiras filas de
ouvintes), confiado, contudo, na vossa proverbial indulgência e bondade,
abalanço-me a abordar o magno problema que aqui nos reuniu”.

Neste momento, percebeu o orador que alguém, na segunda fila de cadeiras,


punha a mão direita à altura do coração com os dedos voltados para cima. Foi
como se um raio lhe caísse na cabeça. Puxou do lenço, passou-o pela testa
como se estivesse suando frio, pigarreou algumas vezes, compôs a linda
gravata e disse com voz firme:

“Amigos ouvintes, vou retificar o que acabo de dizer: Eu, graças a minha
extraordinária competência e dignidade excepcional, e confiando também na
vossa grande bondade, peço vênia para abordar o magno assunto desta noite”.

Era tão grande o silêncio no vasto salão repleto de ouvintes que se julgava até
perceber o discreto latejar do sangue através das artérias e veias dos corpos.
Todos, de pescoço esticado e respiração suspensa, bebiam sofregamente
palavra por palavra; houve quem quisesse saber se o orador dissera aquilo
mesmo ou se era alguma ilusão auditiva da parte do ouvinte. Começavam a
dizer, a meia-voz, uns aos outros: “Que foi que ele disse?... Como? Disse isto
mesmo?... Impossível!... Está louco!... É um santo!... Como se explica isto?...
Que foi que aconteceu com ele”?...

Entretanto, o orador, esquecido do seu maço de tiras escritas, continuava a


falar, com crescente inspiração, improvisando deslumbrante sucessão de
idéias que a tal ponto empolgaram a assistência que todos se esqueceram da
hora que passou como um minuto, e, quando o simpático conferencista
perorava as últimas frases, todos estavam ansiosos para aplaudi-lo
delirantemente – quando, inesperadamente, o orador lhes pediu que não
dessem palmas, mas que cada um fosse para casa e meditasse em silêncio
nas verdades que ouvira...

***

Certo casalzinho profano resolveu associar-se ao movimento anônimo dos


Amigos da Verdade. A vontade dos dois era boa, mas os hábitos antigos eram
mais fortes do que a luz da alvorada espiritual que despontava em suas almas
– e por isto houve frequentes eclipses em plena alvorada. Um desses eclipses
maiores ocorreu do seguinte modo:

Numa daquelas madrugadas, lá pelas 3 horas, o marido voltou para casa;


entrou de mansinho, nas pontas dos pés, para não acordar a esposa, a qual,
todavia, lhe percebeu a chegada e perguntou onde estivera tanto tempo.

– Não és capaz de adivinhar, querida, com quem me encontrei.

– Quem foi?

– Encontrei-me, numa esquina da Rua Direita, com o caríssimo amigo


Praxedes, antigo colega de estudos na Faculdade de Direito; não o via há mais
de dez anos. Arrastou-me para um clube, e lá estivemos relembrando os bons
tempos de antanho, ao ponto de nos esquecermos totalmente do tempo – e
assim deixei de gozar da tua querida companhia, Maria.
A esposa, através das pálpebras semi-fechadas de sono, fitava o marido com
uma expressão silenciosamente interrogativa, e acabou por dizer
pausadamente:

– Antônio, já te esqueceste de que somos membros dos Amigos da Verdade?


Praxedes é nome de homem ou de mulher?

Antônio teve, nesse momento, a impressão de estar sentado numa dessas


fatídicas cadeiras elétricas dos Estados Unidos e que, nesse instante, recebia a
carga mortífera de mil volts. Não morreu, mas ficou meio tonto. Depois de se
refazer da primeira tontura produzida por essa inesperada eletrocução, disse,
quase que balbuciando as palavras, sílabas e letras da resposta:

– E verdade, Maria... Falei de um amigo... Mas, é favor trocar esse “o” final por
um “a” – e tudo está certo... Você compreende, querida, são as nossas velhas
fraquezas, que custa abandonar assim de sopetão... Mas, vou acabar com
elas... Afinal de contas, somos dos Amigos da Verdade... Boa noite, meu bem.

– Boa noite, meu amor...

***

Meu amigo XY é devotado apicultor; sabe lidar até com as famigeradas


abelhas africanas. Fez um bom dinheirinho com a venda de mel e geléia real,
rotulados como “100% naturais e puros” – embora não dispense ingredientes
secretos como melado de engenho, glicose, karo; ou então purê de batata
inglesa, suco de mamão verde e outras substâncias que a apis mellifera ignora.

XY teve a imprudência de entrar no Clube dos Amigos da Verdade – e foi um


desastre para o seu negócio. Sua Majestade a Consciência derrotou todos os
conchavos curvilíneos de outrora. XY verificou que não se pode servir a dois
senhores, a Deus e ao dinheiro...

A maior crise, porém, por que passou o Clube dos Amigos da Verdade, ocorreu
quando alguns dos seus sócios sugeriram que até a declaração de Imposto de
Renda fosse feita sob os auspícios da Verdade. Houve protestos violentos,
acalorados debates, e quase 2/3 dos sócios do Clube se retiraram. Imagine-se:
após quase 2000 anos de cristianismo tradicional, um cristão é obrigado a
guiar-se pela cristicidade real da Verdade! Mas a minoria que ficou fiel
compensava pela qualidade a quantidade que desertou.

***

Neste teor, foram se multiplicando os casos, trágicos e cômicos, porque algo


de insólito invadira a nossa pacata cidade burguesa e suas vizinhanças.

Verificamos que não há coisa mais revolucionária do que a Verdade, quando


integralmente vivida e heroicamente praticada.
Mahatma Gandhi tinha razão em identificar Deus com a Verdade. Razão tinha
ele também ao dizer que a Verdade é dura como diamante e delicada como flor
de pessegueiro. No princípio, a gente sofre a dureza diamantina da Verdade
desconhecida; mas, no fim a Verdade conhecida e vivida lembra a delicadeza
de uma flor.

A verdade vivida é como uma dolorosa intervenção cirúrgica nos tecidos


íntimos da alma, lembrando afiado bisturi a rasgar impiedosamente as carnes
vivas, em busca de algum apostema oculto no interior do organismo. Não há
anestesia, nesse setor; a gente tem de aguentar no duro toda a intensidade
das dores causadas pela penetração da Verdade nos íntimos refolhos da alma
falsificada...

Mais tarde, porém, depois de suportada corajosamente essa dolorosa


operação, começa o homem a sentir-se como esperançoso convalescente.
Muito pus, muita sujeira foi eliminada, e o organismo ficou sadio e leve. Tem-se
então a impressão de estar sentado no banco de algum jardim bafejado pelas
cálidas carícias de um sol matutino, todo novo, rejuvenescido. O homem que
ressuscitou para a Verdade Integral sente uma onda de vida nova e pura a
pulsar-lhe vigorosamente pelas artérias da alma. E o ditoso convalescente se
abandona a esse divino influxo da grande e ignota sanidade espiritual, que vem
substituir todas as grandes e pequenas moléstias e enfermidades de outrora.
Verifica, aos poucos, que morreu e ressuscitou; que se despojou do “homem
velho” que anda ao sabor das suas concupiscências e dos seus orgulhos, e se
revestiu do “homem novo”, creado em verdade, justiça e santidade... Verifica
que o reino de Deus é “justiça, paz e alegria no espírito santo”...

E verifica com surpresa que até sua saúde vai melhorando.

Compreende esse homem regenerado porque é necessário naufragar primeiro


em pleno deserto de águas, afogar-se nos abismos de algum “Oceano
Pacífico”, longe de todas as praias antigas, a fim de arribar à verdejante ilha do
homem integral, a algum ignoto “Cosmorama”, à visão total de si mesmo, da
humanidade, do mundo e de Deus...

Só depois desse grande naufrágio do ego humano e desse grande salvamento


pelo Eu divino é que o homem, redento de todas as suas velhas irredenções,
pode se tornar um redentor para seus semelhantes e conduzi-los ao reino de
Deus.
O Nosso Ideal Supremo

A Fundação ALVORADA para o Livro Educacional é um esforço unificante,


global e harmônico de homens e mulheres de boa vontade. É um início e uma
certeza. É um estado de espírito e uma oportunidade para todos.

É uma instituição-empresa estruturada e orientada para o centro da nova


realidade da Era de Aquário: a educação do Homem Integral ou univérsico.

Proclama e promove a integração da ciência e da religião, do antigo e do novo,


do material e do espiritual, do oriente e do ocidente, como condição essencial
para libertar o homem de sua tríplice infelicidade: doença corporal, desarmonia
mental e ignorância espiritual.

Ensina e educa que a meta vital e fundamental é o próprio Homem e que há


um só método e meio para atingi-la: Ser para servir e servir para Ser.

O supremo objetivo e ideal da Fundação ALVORADA é levar ao Homem a


mensagem do Cristo (auto-conhecimento e auto-realização). Continuar o
“Movimento para a Consciência Crística”, iniciado, aqui na terra, há quase dois
mil anos. Essa Mensagem, nos tempos presentes, foi recreada, intuitivamente,
pelo educador e filósofo contemporâneo, HUBERTO ROHDEN e apresentada
ao mundo na forma da Filosofia Univérsica.

Esta escalada educacional será objetivada pela publicação e sistemática


distribuição de livros de alto nível educacional. Obras de motivação para a
atualização do potencial humano: biografias inspirativas e idealistas; e textos
informativos, formativos e transformativos da consciência do homem.

Serão editoradas obras de ROHDEN em Braile, a fim de levar a filosofia


univérsica a todas as pessoas. As principais obras deste autor serão traduzidas
e coeditadas em outras línguas. HUBERTO ROHDEN é o principal editorando
da Fundação.

Faz parte do programa geral desta instituição a promoção e a execução de


cursos e conferências em universidades, centros educacionais, colégios, etc.,
no intuito de difundir, nacionalmente, a doutrina do auto-conhecimento e da
auto-realização – princípios da filosofia univérsica.

Objetiva, igualmente, ensinar, difundir e institucionalizar no processo


civilizatório brasileiro, o hábito da prática da COSMO-MEDITAÇAO – unificação
do finito (homem) com o Infinito (Deus). A cosmo-meditação é o fundamento da
filosofia univérsica.

A Fundação ALVORADA para o Livro Educacional está vinculada, cultural e


espiritualmente, à ALVORADA – Instituição Cultural e Beneficente (CENTRO
DE AUTO-REALIZAÇÃO), cujos fundamentos originaram a própria Fundação.

A Fundação ALVORADA realiza, ainda, outros trabalhos em áreas humanas de


vital importância no processo cultural brasileiro: proclama e vivencia uma
consciência ecológica, plantando e distribuindo mudas e sementes da árvore-
símbolo pau-brasil (Caesalpinia echinata) a universidades, faculdades,
instituições culturais, quartéis e particulares, creando, no homem, uma visão
unificada e global do Universo.

Verdadeiramente, a síntese da nossa vivência e proclamação é esta: o homem


(creatura) pode e deve crear em si mesmo uma nítida consciência de unidade
com o Creador. Viver esta Verdade é dar solução à toda problemática humana

Tudo é UM
DADOS BIOGRÁFICOS

Huberto Rohden

Nasceu na antiga região de Tubarão, hoje São Ludgero, Santa Catarina, Brasil
em 1893. Fez estudos no Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia
e Teologia em universidades da Europa – Innsbruck (Áustria), Valkenburg
(Holanda) e Nápoles (Itália).

De regresso ao Brasil, trabalhou como professor, conferencista e escritor.


Publicou mais de 65 obras sobre ciência, filosofia e religião, entre as quais
várias foram traduzidas para outras línguas, inclusive para o esperanto;
algumas existem em braile, para institutos de cegos.

Rohden não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou e
dirigiu o movimento filosófico e espiritual Alvorada.

De 1945 a 1946 teve uma bolsa de estudos para pesquisas científicas, na


Universidade de Princeton, New Jersey (Estados Unidos), onde conviveu com
Albert Einstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito mundial da
Filosofia Univérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a
constituição do próprio Universo, evidenciando a afinidade entre Matemática,
Metafísica e Mística.

Em 1946, Huberto Rohden foi convidado pela American University, de


Washington, D.C., para reger as cátedras de Filosofia Universal e de Religiões
Comparadas, cargo este que exerceu durante cinco anos.

Durante a última Guerra Mundial foi convidado pelo Bureau of lnter-American


Affairs, de Washington, para fazer parte do corpo de tradutores das notícias de
guerra, do inglês para o português. Ainda na American University, de
Washington, fundou o Brazilian Center, centro cultural brasileiro, com o fim de
manter intercâmbio cultural entre o Brasil e os Estados Unidos.

Na capital dos Estados Unidos, Rohden frequentou, durante três anos, o


Golden Lotus Temple, onde foi iniciado em Kriya-yoga por Swami Premananda,
diretor hindu desse ashram.

Ao fim de sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidado
para fazer parte do corpo docente da nova International Christian University
(ICU), de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e
Religiões Comparadas; mas, por causa da guerra na Coréia, a universidade
japonesa não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi
nomeado professor de Filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual não
tomou posse.

Em 1952, fundou em São Paulo a Instituição Cultural e Beneficente Alvorada,


onde mantinha cursos permanentes em São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia,
sobre Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho, e dirigia Casas de Retiro
Espiritual (ashrams) em diversos estados do Brasil.

Em 1969, Huberto Rohden empreendeu viagens de estudo e experiência


espiritual pela Palestina, Egito, Índia e Nepal, realizando diversas conferências
com grupos de iogues na Índia.

Em 1976, Rohden foi chamado a Portugal para fazer conferências sobre


autoconhecimento e autorrealização. Em Lisboa fundou um setor do Centro de
Autorrealização Alvorada.

Nos últimos anos, Rohden residia na capital de São Paulo, onde permanecia
alguns dias da semana escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos
definitivos. Costumava passar três dias da semana no ashram, em contato com
a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário-modelo.

Quando estava na capital, Rohden frequentava periodicamente a editora


responsável pela publicação de seus livros, dando-lhe orientação cultural e
inspiração.
À zero hora do dia 8 de outubro de 1981, após longa internação em uma clínica
naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiu deste
mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras em
estado consciente foram: “Eu vim para servir à Humanidade”.

Rohden deixa, para as gerações futuras, um legado cultural e um exemplo de


fé e trabalho, somente comparados aos dos grandes homens do século XX.

Huberto Rohden é o principal editando da Editora Martin Claret.


Relação de obras do
Prof. Huberto Rohden

Coleção Filosofia Universal

O pensamento filosófico da Antiguidade


A filosofia contemporânea
O espírito da filosofia oriental

Coleção Filosofia do Evangelho

Filosofia cósmica do Evangelho


O Sermão da Montanha
Assim dizia o Mestre
O triunfo da vida sobre a morte
O nosso Mestre

Coleção Filosofia da Vida

De alma para alma


Ídolos ou ideal?
Escalando o Himalaia
O caminho da felicidade
Deus
Em espírito e verdade
Em comunhão com deus
Cosmorama
Por que sofremos
Lúcifer e Lógos
A grande libertação
Bhagavad Gita (tradução)
Setas para o infinito
Entre dois mundos
Minhas vivências na Palestina, Egito e Índia
Filosofia da arte
A arte de curar pelo espírito. Autor: Joel Goldsmith (tradução)
Orientando
“Que vos parece do Cristo?”
Educação do homem integral
Dias de grande paz (tradução)
O drama milenar do Cristo e do Anticristo
Luzes e sombras da alvorada
Roteiro cósmico
A metafísica do cristianismo
A voz do silêncio
Tao Te Ching de Lao-tse (tradução)
Sabedoria das parábolas
O Quinto Evangelho segundo Tomé (tradução)
A nova humanidade
A mensagem viva do Cristo (Os quatro Evangelhos – tradução)
Rumo à consciência cósmica
O homem
Estratégias de Lúcifer
O homem e o Universo
Imperativos da vida
Profanos e iniciados
Novo Testamento
Lampejos evangélicos
O Cristo cósmico e os essênios
A experiência cósmica
Panorama do cristianismo
Problemas do espírito
Novos rumos para a educação
Cosmoterapia

Coleção Mistérios da Natureza

Maravilhas do Universo
Alegorias
Ísis
Por mundos ignotos

Coleção Biografias

Paulo de Tarso
Agostinho
Por um ideal – 2 vols. autobiografia
Mahatma Gandhi
Jesus Nazareno
Einstein – o enigma do Universo
Pascal
Myriam
Coleção Opúsculos

Catecismo da filosofia
Saúde e felicidade pela cosmo-meditação
Assim dizia Mahatma Gandhi (100 pensamentos)
Aconteceu entre 2000 e 3000
Ciência, milagre e oração são compatíveis?
Autoiniciação e cosmo-meditação
Filosofia univérsica – sua origem sua natureza e sua finalidade

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