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COSMORAMA
Estranhas vivências na ilha do homem integral
UNIVERSALISMO
Sumário
Advertência
Reaparecendo
Naufrágio
O Mistério do Além-de-Dentro
Cosmocracia
A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se
aniquila, tudo se transforma”; se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa,
mas se escrevemos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.
Não lhes pude responder nem sim nem não, porque nenhum destes vocábulos
teria sentido exato; porquanto, o que se pode pensar e dizer não é a verdade.
Somente uns poucos que tiveram a rara felicidade de morrer e ressuscitar
poderão compreender o sentido real das minhas palavras paradoxais. Nos
capítulos finais, aliás, encontrará o leitor uma insinuação da verdade.
A uma jovem, que fora minha aluna e desejava entrar na vida real do Eu divino,
escrevi-lhe diversas cartas insistindo em que naufragasse corajosamente, a fim
de ressuscitar gloriosamente em Cosmorama. Mas, ao que parece, ela teve
medo desse naufrágio espontâneo; continua agarrada às praias do velho ego e
às tépidas querências habituais...
Não sei quantos dias fiquei inconsciente, após aquela tremenda catástrofe.
Depois de mais algumas horas – ou dias, quem sabe? – já havia dentro de mim
luz suficiente para que eu conseguisse concatenar, com certa lógica, os
trágicos acontecimentos ocorridos naquela imensa solidão do Oceano Pacífico.
Por isto, tenho até hoje grande dificuldade em crer se estou realmente vivo, ou
se morri, isto é, se tenho ainda o meu corpo terrestre, porque nunca acreditei
que pudesse estar realmente morto, algum dia; mas é possível que eu não
tenha mais o meu invólucro físico e viva apenas na antiga sensação habitual
como se ainda tivesse um corpo palpável... Quem sabe se estou sonhando?...
Talvez que tenha ultrapassado a extrema fronteira d’além do país dos sonhos e
viva agora no mundo da realíssima realidade, para além de todas as vigílias e
de todos os sonos e sonhos?... E se também isto fosse um sonho apenas?...
Tudo isto passou, confusamente, pela tela longínqua, semi-escura, da minha
consciência interna, enquanto eu conservava ainda os olhos fechados, nem
percebia som algum ao redor de mim. O silêncio era absoluto, universal...
Depois de muitas horas – ou de muitos dias, quem sabe? – ouvi vozes suaves,
esvaídos ecos, como que vindos a mim de infinita distância – vozes, mas sem
palavras distintas...
Finalmente, tive força suficiente para entreabrir os olhos. Havia diante de mim
algo como uma neblina tecida de verde, azul e ouro. Sentia-me docemente
embalado nessa nebulosa irreal – ou talvez ultra-real – e tive a impressão de
que uma mão suave e cálida, indizivelmente suave e querida, me passasse
mansamente pelas faces... Quem sabe se isto era o céu?...
Por fim, consegui abrir os olhos de todo. Por cima de mim pendiam enormes
flabelas de verdes palmeiras sustentadas por esguios estípites brancos e
pardacentos. Ao longe, espraiava-se o céu azul. E ao redor de mim havia luz,
muita luz, bela e cariciosa, como uma primavera de amor e benevolência...
Sim, eu estava sonhando... Não era possível que, no meio daquele imenso
deserto de águas, o maior do globo, em que eu me afogara, houvesse seres
humanos, olhos luzentes, mãos cariciosas. Reunindo todas as forças, levantei
a mão direita e coloquei-a firmemente sobre a fronte, para me certificar de que
eu ainda existia e estava acordado. Consegui também colocar a minha mão
sobre aquela que me acariciava as faces – era real como a minha, com sangue
quente e pulsações de vida real como a minha – mas, quem sabe? se também
isto era sonho, um sonho sonhado?...
Andei marcando passo nesse círculo vicioso, não sei quanto tempo. Depois
recaí ao silencioso abismo das trevas anteriores.
– Onde estou? – perguntei – estou vivo? não morri? quem sois vós, seres
queridos?...
Só mais tarde, muito mais tarde, cheguei a saber de tudo; a princípio, era
necessário que eu vivesse num ambiente de grande calma, para refazer as
forças.
Soube, então, que estava numa ilha, que seus habitantes chamavam
“Cosmorama”. Estranhei o nome grego, que quer dizer “visão mundial”, tanto
mais que a língua que meus ignotos hospedeiros e amigos falavam não era
grega, embora, de vez em quando, ocorressem vocábulos de origem helênica.
Eu não entendia o que eles diziam, mas, ao que pude verificar repetidas vezes,
sabiam perfeitamente o que eu dizia.
A minha intérprete era ainda mais linda que o nome que usava – Íris.
Íris, Íris!... fui repetindo de mim para mim. Faz lembrar arco-íris, símbolo de paz
e bonança – e, mais forte que dantes uma voz íntima me dizia que tudo isto
não era um sonho. Paz e bonança embalam tua vida, dizia essa voz, depois de
muitas tormentas e dum inesperado naufrágio... Não tentes acordar!... Continua
a dormir e a sonhar esse sonho, que é mais real que todas as pseudo-
realidades dos que ainda não naufragaram para as ilusões nem arribaram
ainda à ilha da grande verdade...
Não, não era sonho! Lá estava diante de mim, concreta e tangível, essa jovem
sobremaneira bela, mas duma beleza tal que me fazia amá-la sem o mais leve
desejo de a possuir. Aliás, mais tarde, durante todo tempo que vivi em
Cosmorama, verifiquei que o amor entre esses seres era como puríssima luz
solar, e não como alguma fumegante tocha de piche; não amavam para
explorar o ente amado nem para satisfazer por meio dele os seus instintos.
“Luz sem fumaça” – foi esta a expressão que se estereotipou em minha alma, e
que lancei no meu diário íntimo, ao presenciar os amores desses homens e
dessas mulheres. Se os meus companheiros terrestres lerem isto, pensarão
que o amor em Cosmorama seja algo enfadonho, descolorido, anêmico,
artificial; mas é exatamente o contrário; é um amor de intenso colorido, cheio
de ardor e vitalidade. Mas, para crer coisa tão incrível, seria necessário
experimentá-la pessoalmente; porque, afinal de contas, o homem só sabe
realmente aquilo que saboreou e sofreu nas íntimas profundezas do seu ser...
Seria necessário naufragar – para viver tão intensamente.
Íris não tardou a tornar-se a minha melhor amiga, e me dizia coisas tão
estupendas e com tamanha simplicidade que nenhum homem de nossa terra o
poderá acreditar, e dirá que tudo foi sonho meu. Nem eu insisto em que algum
leitor deste livro creia na realidade do que vou contando. Peço-lhe apenas que
não se esqueça de que há muitos sonhos, cujo conteúdo é infinitamente mais
real e verdadeiro do que todas as chamadas realidades dos homens que nunca
viveram, plenamente acordados, no mundo dos sonhos.
Íris Fala-me dos Videntes
Íris fez com o índice da mão direita um gesto negativo, assumiu ares ainda
mais misteriosos e disse:
Olhei, estupefato, para a jovem de cujos lábios finos brotavam tão enigmáticas
palavras. Lá estava ela, à minha frente, sentada num banco rústico de bambu
verde-amarelo, numa atitude natural, graciosa, espontaneamente disciplinada –
nunca a vi de pernas cruzadas – de tronco erecto, mãos sobre os joelhos,
cabeça erguida e com os olhos iluminados por um fulgor longínquo. O cabelo
liso, escuro, ligeiramente acastanhado, emoldurava-lhe belamente o rosto oval,
de tez antes morena que clara. Ao contemplá-la atentamente, percebi que a
posição dos seus olhos, de um castanho escuro, era ligeiramente oblíqua,
lembrando tipo asiata, embora fosse difícil situá-la em algum dos países desse
continente por nós conhecidos. Íris, como todos os habitantes de Cosmorama,
usava trajo simples, levíssimo, espécie de túnica curta sem mangas, feita de
um tecido de fibra vegetal. Soube mais tarde que essa vestimenta não tinha
propriamente o fim de cobrir a nudez do corpo, nem mesmo para protegê-lo
das intempéries, mas servia antes para indicar a que grupo ou classe social
cada um pertencia. Pois essas túnicas, muito ralas e semitransparentes,
variavam de cor, conforme a respectiva classe.
– Por que esse “você”? aqui só se fala por “tu”, seja a quem for.
– Não sabes tu, Íris, que nós temos rádio, radar e televisão?...
– Quer dizer que os vossos Videntes operam com uma espécie de controle
remoto, como nós fazemos por meio de ondas eletrônicas?
– Mais ou menos.
– Usaste, há pouco, a palavra “não-idôneo”, Íris. Entendo que isto quer dizer
não devidamente espiritualizado.
– Mas, neste caso, como é que eu, que não me considero muito avançado em
espiritualidade, consegui romper a muralha invisível e penetrei neste recinto
sagrado?
Levantando-se, erecta e esguia como uma chama, juntou as palmas das mãos
ao peito, inclinou-se sobre as pontas das mãos em direção a mim e disse com
reverência:
– Salem aleikum!
– Salem aleikum – respondi eu, sabendo que isto quer dizer “a paz esteja
contigo”.
Retirou-se Íris, demandando as praias do mar, onde iam realizar-se, como cada
dia, as cerimônias cósmicas do pôr-do-sol.
Quando, naquela tarde, Íris se despediu de mim, dizendo que ia tomar parte
nos festejos do pôr-do-sol, ardia eu de impaciência por assistir também a esses
ritos. Mas não fui convidado, e sem convite especial nenhum estranho pode
presenciar essas solenidades.
Só muito mais tarde foi-me concedido esse privilégio, que marcou um ponto
culminante nas fascinantes experiências da minha vida, verdadeiro banquete
para minha permanente sede de coisas verdadeiras e belas.
Mas disto falaremos em outra ocasião. Para hoje registrei no meu diário a
grande experiência estético-espiritual que tive ao assistir ao que os Cósmicos
chamam Homenagem ao Sol Nascente.
Muito antes que o globo solar emergisse das águas do Pacífico, achavam-se
milhares de homens, mulheres e crianças reunidos na vastíssima plataforma de
uma colina, cujo topo aplainado deve medir pelo menos um quilômetro de
diâmetro. No centro do extenso planalto, ajardinado, e, em parte, arborizado,
ergue-se um templo circular, construído de pedra alvíssima todo ele. Não há,
propriamente, paredes; todo o santuário é uma espécie de hall aberto,
lembrando gigantesco cogumelo de neve.
Eu, o Telúrico, não quis passar vergonha diante dos Cósmicos, e fiz o possível
para me conservar imóvel durante meia hora, como todos eles; não sei se
minha alma esteve também imobilizada, focalizando o grande Centro invisível
que todos esses seres estranhos, desde as criancinhas até os adultos e
anciãos, estavam adorando intensamente. Comecei a saborear a inefável
beleza que há na visão da verdade. Percebi também – não me pergunte o leitor
como! – que espiritualidade é juventude que ignora velhice.
– Não com essa solenidade – respondeu ela – mas em forma mais simples;
hoje é o equinócio da primavera, e por isto comemoramos tão festivamente o
nascer do astro benéfico.
Nunca na minha vida trabalhei com tanto entusiasmo. E, sem saber nem
querer, acompanhei, à surdina, as melodias rítmicas que alguns cantavam a
meia-voz.
Em Harmonia com o Infinito
Esteve à minha cabeceira, como ouvi mais tarde, um dos Videntes, pôs as
mãos sobre a minha fronte, quando eu me achava ainda em estado de coma
profundo, depois de ser arrojado à praia pelas vagas do mar.
– Não fez nada – respondeu ela. – Apenas canalizou para dentro de teu
organismo a saúde do Infinito, e tuas energias desarmonizadas harmonizaram-
se novamente.
– Não, não foi o Vidente que fez alguma coisa; foi ELE, o Grande, o Eterno,
que te deu vida e saúde. Nós somente servimos de intermediários e veículos
d’ELE.
– Pode e deve.
– Como?
– Libertando-se de tudo que obstrua os canais que ligam todos os seres a Ele.
Mas... sobre este ponto te falará o grande Rajah, mais tarde.
– Todos morrem.
– Não viste? Viste muitas com cem, e algumas com duzentos anos.
– Vi alguns com cabelo branco, mas todos pareciam jovens, no vigor da idade.
– Quem vive em harmonia com o Infinito não conhece decrepitude senil; vive
em pleno vigor, físico e mental, até que em seu corpo expire a última fração de
energia – e o organismo pára, porque é chegado o seu tempo de parar.
– Como é possível, Íris, – murmurei – que tu, que não deves ter vinte anos,
saibas essas coisas tão avançadas?...
– Vinte anos? – exclamou ela com uma risada jovial, sacudindo de leve a linda
cabeleira escura que lhe emoldurava o formoso semblante. – Eu tenho mais
que o dobro dessa idade que me dás.
– Não digas!...
– Sei disto, sei disto. Mas, algum dia, elas serão como nós.
– Dize-me, Íris – prossegui – como é possível que saibas de tudo que acontece
entre nós? Nunca nenhum dos Cósmicos esteve na terra dos Telúricos; como
podes, pois, ter notícias do que lá acontece? Vós viveis nesta imensa solidão,
isolados de todo o resto do Universo...
– Meu caro Delfos! – exclamou ela. Esqueci-me de mencionar que Íris me pôs
o nome de Delfos, abreviação da palavra grega adelfós, que quer dizer irmão;
aliás, os Cósmicos todos se tratam por irmão e irmã (Delfos e Delfe, derivados
de adelfós e adelfé). Para os mais idosos, muitos usam o título de Pai ou
Mestre.
– Sei que vós entendeis por morte algo bem diferente do que a maior parte dos
habitantes da nossa terra.
– Que é a verdade?
– Quer dizer, que, depois desta vida terrestre, vem outra vida, ou outras
vidas?...
– Nem outra vida nem outras vidas, meu caro Delfos; nós não cremos em outra
vida.
– Não? não posso crer que sejais tão materialistas, depois de tudo que vi e
ouvi em Cosmorama.
– A verdade é que a vida é uma só, sempre a mesma, embora passe por
diversos estágios de evolução. Começa aqui, num corpo material, e continua
alhures em outro corpo.
– A nossa física nuclear dos últimos tempos provou que toda a matéria é, em
última análise, energia, algo imaterial, como o éter, a luz, a vida.
– Há milhares de anos que nós sabemos disto, como, aliás, os mais avançados
dentre os Telúricos também sabiam, muito antes que a ciência experimental o
confirmasse, aliás, bem precariamente, nos laboratórios.
– Sim, nós somos os seres conscientes mais antigos sobre a face deste
planeta. Quando nossos irmãos da Atlântida desapareceram, só nós
sobrevivemos, porque nos incumbe a grande missão de levar a nossos irmãos
Telúricos o conhecimento da verdade integral, para que também entre eles seja
proclamado o reino d’ELE, como foi entre nós.
– Não, meu caro Delfos, estiveste sonhando muito tempo; agora é que estás
começando a acordar. O grande Rajah servirá de veículo para que ELE te
introduza na luz meridiana da verdade total.
Certa manhã, vieram Íris e Almah convidar-me para tomar parte numa
excursão a ser realizada por um grupo de amigos.
Ainda nessa mesma tarde tive repetido ensejo de ver que não há “animais
selvagens”; há tão-somente “homens selvagens”. O “homem selvagem” é o
homem sensorial-mental, ainda não racionalizado pelo espírito. É este o
espécime que predomina entre nós, os Telúricos civilizados.
Começou por dizer que sabia que ELE não tinha ainda vindo ao mundo dos
Telúricos. Julgando que o Rajah laborasse em erro, pedi licença para retificar-
lhe a asserção, narrando-lhe com poucas palavras a história terrestre do
Nazareno. O Rajah, embora estivesse perfeitamente a par de tudo, escutou-me
com toda a atenção, sem me interromper uma única vez. Esse silêncio
receptivo é, aliás, um dos mais encantadores atributos dele e dos Cósmicos em
geral; nunca desdenhavam ouvir o que eu tinha a dizer: nunca mostravam
impaciência ou enfado; o seu silêncio me dava coragem para dizer tudo que
me ia na alma – e isto nos faz tanto bem...
Quando terminei a minha exposição, disse o Vidente, pausadamente, como
que sopesando o valor e alcance de cada uma das suas palavras:
– Sei, meu caro Delfos, que ELE veio corporalmente à vossa terra; mas o que
quero dizer é que não veio ainda espiritualmente às almas dos Telúricos, salvo
poucas exceções. A verdadeira vinda d’ELE ainda não ocorreu entre vós, a
vinda em espírito e em verdade. O Lógos se fez carne e habitou entre vós em
corpo mortal, mas ainda não se fez espírito e habita em espírito dentro de cada
um de vós. Aqui, porém, ELE já veio em toda a verdade e plenitude, como,
algum dia, aparecerá no meio de vós.
– Que acontece, irmão mestre, quando ELE aparece plenamente num homem?
– perguntei.
– Aqui entre nós, a Razão impera soberana. Não me entendas mal, meu caro
Delfos; não me refiro ao intelecto, mas à Razão do homem, que é a sua
afinidade direta com o Infinito, o Absoluto, o Eterno. O homem genuinamente
racional possui a verdade integral sobre si mesmo, sobre o mundo e sobre
Deus.
Vigoram ainda no mundo dos Telúricos dois erros funestos, que não lhes
permitem enxergar a Verdade integral. Grande parte vive exclusivamente para
a vida material dos sentidos e do intelecto, como se só de pão vivesse o
homem. Outra parte, embora menor, foge da vida e procura viver unicamente
para o que eles chamam a vida do espírito. Tanto estes como aqueles
falsificam o homem, e toda falsificação, seja para a esquerda, seja para a
direita, é funesta e acabará por levar o homem à infelicidade. Os materialistas
fazem do homem um corpo sem alma, os espiritualistas pretendem reduzir o
homem a uma alma sem corpo. No entanto, o homem não é nem cadáver, nem
fantasma; ele é uma síntese de corpo e alma. Encontrar essa síntese e vivê-la
praticamente é o segredo da felicidade, e foi para este fim que ELE veio das
celestes mansões dos Cosmos para este plano inferior da terra.
– Entretanto, aqui não tens estada permanente, meu irmão; aqui arribaste
apenas como imigrante temporário; daqui terás de emigrar, após haveres
terminado o teu estágio; voltarás ao meio dos Telúricos para lhes levar a
mensagem do espírito d’ELE que aqui estás vivendo, porque só se sabe o que
se vive, e o que não se viveu não se sabe, nem se pode despertar nos outros.
Lá na terra do teu nascimento físico, os mais avançados te acompanharão
como amigos e aliados; outros menearão a cabeça e te lamentarão como
pobre vítima de alucinação e insanidade; outros ainda, os mais atrasados, te
perseguirão como um perigo religioso e social, porque demolidor dos seus
ídolos e fetiches. É inevitável que assim aconteça; mas não te desconsoles
com isto, meu irmão. O teu trabalho não vale pelos resultados visíveis que dele
colheres; vale pelo que é em si mesmo, vale pela pureza da tua intenção, vale
pelo desinteresse, amor e entusiasmo que a ele presidirem – porquanto
indizivelmente sublime é nossa missão de cooperadores da Divindade.
– Sei e sinto profundamente, amigo Rajah, que nunca mais poderá ser infeliz
quem uma vez foi intensamente feliz – e eu vivo aqui a mais pura e profunda
felicidade da minha vida.
***
Por largo tempo, banhei minha alma na delícia desse silêncio, que era vasto e
profundo, abstração feita do ruído monótono da cascata, que parecia tornar
ainda mais consciente a imensa quietude da natureza em derredor...
Mais profundo ainda era o silêncio dentro de minha alma – um silêncio sonoro,
fecundo, eloquente, “ditos indizíveis”, que eu vivia intensamente através de
todas as latitudes e longitudes, altitudes e profundidades do meu ser... Se
alguém me perguntasse o que era isto, não o saberia dizer; mas, quando
ninguém me pede definição desse quê indefinível, então eu sei perfeitamente o
que é – sei-o como quem sabe do sabor de um manjar que se saboreia...
Assim como só se sabe o que é a vida vivendo-a, assim saboreava eu esse
jubiloso mistério e exultava silenciosamente no fascinante abismo do meu
Além-de-dentro...
Coisa estranha! nos momentos mais humanos e mais divinos da minha vida eu
sinto, com infalível nitidez, a grande unidade da vida universal do Cosmos, de
que sou uma pequena partícula autoconsciente, ao lado de outros focos,
também autoconscientes, meus semelhantes humanos, e a par de numerosos
infrafocos, semiconscientes, subconscientes, meus irmãos menores do mundo
sensitivo, vegetal e mineral. E todos nós, em diversos graus de consciência,
somos eflúvios e arautos da consciência Cósmica, oniconsciente – da grande
Cosmoconsciência...
Panteísmo? há quem tenha horror a esse fantasma, que ele mesmo creou,
porque não sabe o que é. O que se sabe não inspira terror; todo terror é filho
da ignorância ou do erro. Panteísmo quer dizer “tudo Deus”; é apenas outro
vocábulo para politeísmo (muitos deuses), estágio de evolução inferior,
possível antes do desabrochar da visão racional, que revela a grande unidade
essencial que há por detrás – ou melhor, dentro – da vasta pluralidade
existencial do Universo. A evolução normal da maior parte da humanidade vai
do panteísmo (ou politeísmo) através do dualismo rumo ao monismo do UNO
pelo VERSO ao UNIVERSO. Todo homem que se aproxima da sua maturidade
experimentará o eterno UM dentro dos MUITOS temporais. Se Deus fosse
apenas muitos, sem ser um, o mundo seria um horroroso caos dispersivo, sem
unidade; se Deus fosse apenas um, sem ao mesmo tempo ser muitos, o
mundo seria uma insuportável monotonia estática, sem variedade dinâmica.
Mas, uma vez que é da íntima essência da natureza de Deus ser um na
essência e muitos nas existências, esse mundo é uma grandiosa harmonia, um
genuíno Uni-verso; um em diversos, diversos em um. Universo – é esta a mais
verdadeira, a mais bela, a mais profundamente filosófica e mística de todas as
palavras que existem em língua latina; quem a formulou deve ter sido um gênio
intuitivo da primeira ordem. Universo – unidade na diversidade, diversidade
com unidade?...
Estava eu abismado nessas cogitações, que em mim eram pensadas sem que
eu as pensasse conscientemente, sentindo-me um com a grande vida cósmica,
e diversos de todos os outros indivíduos, – quando um ruído característico se
fez ouvir por detrás de mim; voltei a cabeça, e vi um par de esquilos ornados
de caudas de penacho hasteadas como bandeiras. Desciam pelo tronco liso
duma árvore para me verem de perto. E também eles, me dizia o eco
longínquo dos meus pensamentos, eram emissários da Vida Eterna e
Universal, meus irmãos menores, como diria Francisco de Assis. Parece que
me compreendiam porque se aproximaram de mim quase ao alcance da mão,
fitando-me com intensa curiosidade através daqueles seus grandes olhos
redondos...
Pela primeira vez em minha vida tive a consciência nítida do divórcio habitual
em que nós, os Telúricos, vivemos com o mundo circunjacente.
***
O culto religioso dos Cósmicos vai sempre de mãos dadas com os eventos
naturais. A meditação diária, praticada por eles com a mesma regularidade
com que o homem Telúrico toma o seu banho diário, está inseparavelmente
vinculada ao nascer do sol. Nós, os Telúricos, tacharíamos de “panteístico” o
culto religioso dos Cósmicos; mas eles se orgulham dessa designação. Eles
sabem instintivamente que há muitos deuses, mas uma só Divindade, que se
revela de muitos modos; sabem que o Creador transcende todas as suas
creaturas, mas sabem também que ele está imanente em cada uma delas,
porque todas as coisas do mundo existem, vivem, sentem, pensam e amam na
Divindade. Entre eles é tão impossível o panteísmo, que nega a transcendência
para afirmar somente a imanência de Deus no mundo, como impossível é o
dualismo (ou pluralismo), que afirma a transcendência e nega a imanência do
Creador em suas creaturas. Os Cósmicos professam tanto a transcendência
como a imanência de Deus, e isto confere à religiosidade deles algo de
longínquo, misterioso e terrífico, inspirado na infinita transcendência da
Divindade – e ao mesmo tempo algo de propínquo, afetivo e familiar, inerente
ao sentimento da imanência de Deus. Não pode haver religiosidade profunda e
deliciosa sem esse senso de distância e de proximidade, sem esse quê de
majestade e esse quê de intimidade, sem esse sentimento terrífico do Infinito
Além-de-fora e esse sentir benéfico do Infinito Aquém-de-dentro. Deus é
Senhor e Amigo, o grande Tu de fora e o querido Eu de dentro.
Quando me refiro à meditação, não deve essa palavra ser tomada no sentido
que, em geral, tem entre nós. Para dizer aos Telúricos o que os Cósmicos
entendem por meditação, não me ocorre ilustração melhor do que a
comparação com uma planta em plena luz solar. Que é que essa planta faz?
Ei-la imóvel, de cabeça erguida com as verdes mãozinhas das folhas
espalmadas ao luminoso astro, procurando sempre colocá-las de tal modo que
apanhem a maior soma possível do luci-cálido mistério que lhes vem das
alturas. A planta nada faz senão assumir uma atitude de total receptividade; o
resto é cosmo-feito. Recebe luz e energia solar proporcional à sua
receptividade. E, como as folhas, mediante os verdes grânulos de clorofila, são
as principais antenas receptoras da luz, não pode a planta viver e prosperar por
muito tempo sem essa atividade das folhas.
***
Um dia, perguntei a Íris porque não existiam grandes fábricas com chaminés
fumegantes nessa ilha. Respondeu-me que o período propriamente industrial
desse povo pertencia ao passado. Tempo houve em que os Cósmicos eram
simples caçadores e pescadores; depois, pastores e agricultores; mais tarde,
comerciantes e industriais; atualmente são – é difícil definir o que eles são hoje
em dia. Existem, por toda a parte, pequenas máquinas, práticas e estéticas,
para o uso doméstico, movidas por energia solar, transformada em
magnetismo, mas não há indústria pesada, que seria, aliás, supérflua no meio
dessa gente.
Hoje sei...
A Luz no Alto do Candelabro
O Vidente frisou o fato de que não há nenhum caminho psicotécnico que nos
possa introduzir no mistério do nosso verdadeiro Eu cósmico; somente a
própria vivência de cada dia é que pode abrir os caminhos. E essa vivência
implica quase sempre uma estranha sofrência, num sofrimento metafísico da
nossa própria insuficiência. Sem essa vivência e essa sofrência, repetiu o
Vidente, não há possibilidade de auto-conhecimento e auto-realização.
Fiz ver ao Rajah que, entre os Telúricos, é quase geral a opinião de que
iniciação e auto-realização obedecem a uma técnica secreta, que os gurus
conhecem e de cuja revelação depende o destino espiritual do discípulo. Contei
ao Rajah que entre nós há mestres que prometem iniciar seus candidatos em
30 dias, ou até menos.
E quando o homem uma única vez foi realmente feliz pela experiência da
verdade sobre si mesmo, nunca mais pode ser infeliz, nem mesmo no meio de
sofrimentos; ele faz a estranha experiência de que a felicidade do Eu e
sofrimentos do ego são compatíveis.
Eu tinha a impressão de que a luz do Reino dos Céus em mim estava colocada
no alto do candelabro da minha consciência cósmica.
Cosmocracia
Quando travei mais familiaridade com o Rajah, ousei pedir explicação sobre
essa espécie de sem-governo, que em grego se chamaria anarquia, não uma
anarquia negativa, caótica, mas uma anarquia positiva, cósmica. O que o
grande Vidente me disse foi a confirmação explícita de algo que eu já sentira
implicitantemente, e que tentei concretizar nos meus livros.
Passamos parte dessa tarde a vagar pelas selvas que cobrem as rampas da
montanha. Nunca vi tão imensa variedade de flores, sobretudo orquídeas,
como nessas matas de Cosmorama. Duas vezes nos encontramos com feras,
uma vez com uma onça malhada, e outra vez com uma manada de javalis.
Nenhum de nós levava armas de espécie alguma. Com grande surpresa
minha, esses animais selvagens eram amigos e tão mansos como gatos e
coelhinhos domésticos. Veio-me a idéia de que, onde não há homens
“selvagens”, também não há animais selvagens. Um dos meus companheiros,
vendo que não havia no chão coquinhos suficientes para os javalis, lançou mão
de uma vara de bambu e com ela fez cair abundante chuva de cocos maduros
de um cacho ainda suspenso no pé. Os porcos do mato, aliás tão ferozes,
andaram catando avidamente as nozes duríssimas, mesmo por entre os pés da
gente, sem terem medo de nós nem darem o menor sinal de hostilidade.
Ao entardecer voltamos para junto do “Lago das Avencas”, onde o Rajah havia
ficado. Foi resolvido que só desceríamos das alturas depois do pôr do sol, a fim
de apreciarmos o espetáculo do ocaso, do alto de um penhasco, pouco acima
do lago.
Pedi ao mestre que me desse uma idéia clara sobre o consórcio entre a vida
ativa e passiva, de extroversão e introversão, que o homem integral deve
realizar em sua existência.
O homem cósmico, porém, não nega nem o espírito nem a matéria; afirma um
e outra, porque sabe que ambos são revelação de Deus, e toda revelação de
Deus é, por sua própria natureza, afirmável. Quem nega o que Deus afirma é
contra Deus. Deus afirma tão bem o mundo material como o mundo espiritual.
Se assim não fosse, nenhum deles existiria. Ambos entraram na existência em
virtude duma afirmação do Onipotente, e perseveram na existência graças à
afirmação do Onisciente.
***
– Vou chamar minha irmã Almah – disse ela – porque ela melhor do que
ninguém entende desse assunto; tanto assim que alguns dos ascendentes dela
estiveram em Atlantis.
– Almah é apenas 50% minha irmã; os outros 50% dela não circulam nas
minhas veias.
Antes que eu pudesse formular nova pergunta sobre essa misteriosa semi-
revelação, Íris desapareceu, e daí há pouco voltou em companhia de Almah.
Sentamo-nos à sombra duma nogueira. Olhei atentamente para o rosto da
recém-chegada, e, pela primeira vez, descobri que tinha as feições exatas de
Hat-Shep-Sut, cujo maravilhoso retrato está sobre a minha mesa de trabalho.
Hat-Shep-Sut é o nome daquela “filha do faraó” que, segundo o texto bíblico,
encontrara o pequeno hebreu nos canaviais do Nilo e o adotou por filho,
educando-o “em toda a sabedoria dos egípcios”, no palácio real de seu pai.
Como ela mesma não tinha filho, pôs ao pequeno o nome de “Moses”, isto é,
“filho”. Uma cabeça escultural dessa inteligente conselheira de três reis foi
encontrada, há tempos, nas ruínas do Egito e acha-se num dos museus da
Europa. Possuo um retrato fiel dessa cabeça, cujos olhos enigmáticos, vácuos
das coisas propínquas e plenos de realidades longínquas, exercem estranho
fascínio sobre os que tenham tido contato com os mundos que se alargam para
além dos horizontes visuais – esses mundos ignotos e ultra-reais em que os
olhos da esfinge de Gizeh, os de Hat-Shep-Sut e de outros videntes estão
submersos. Quando se olha de perto o retrato que tenho sobre a mesa não se
descobrem pupilas nem íris nos olhos da formosa egípcia; vistos, porém, de
longe, esses olhos revelam intensa expressão e o observador está convencido
de lhes descobrir íris e pupilas. O nariz afilado e os lábios delgados de Hat-
Shep-Sut refletem a permanente disciplina e espiritualidade da alma que, um
dia, animava esse formoso invólucro. Quão estupendo deve ter sido o original,
quando tão sugestiva é uma cópia longínqua do mesmo!
– Hat-Shep-Sut...
Almah ouviu esse nome, e, sorrindo de leve, acenou com a cabeça, como que
aprovando o que eu pensava sem o externar. O que eu pensava era isto: esta
jovem, com olhos e semblante egípcios, deve ter parentesco ou afinidade com
aquela misteriosa “filha do faraó”. Não me animei a lhe fazer pergunta sobre
este particular, mas tenho a certeza de que minha intuição não me iludiu.
A hora que então se seguiu foi para mim de estranhas revelações. Tudo quanto
Almah passou a dizer sobre Atlantis e seus habitantes, sobre a vasta cultura
científico-técnica e o fim trágico dessa humanidade anterior à nossa, já o
entressabia eu, na zona noturna do meu subconsciente, sem o poder formular
conscientemente. Almah serviu de catalizadora consciente e explícita do
conteúdo do meu subconsciente implícito, fazendo subir à superfície diurna os
elementos que dormiam na noite profunda de minha alma.
1. A guerra dos “Titãs” e a história da “Torre de Babel” têm o mesmo sentido simbólico que a
lenda de Atlas.
Almah dizia estas coisas estupendas com tamanha simplicidade e tão intensa
penetração que eu estava como que extático, e, por fim, diluiu-se numa como
nebulosa dourada a figura da linda egípcia; em vez dela via eu o semblante do
profeta de Nazaré, e, por vez, a efígie de João Evangelista, a falarem sobre a
epopéia multimilenar das “trevas e da luz”... sobre “os homens que amaram
mais as trevas que a luz, porque as suas obras eram más”, sobre o “príncipe
deste mundo”, sobre “Satan a tentar o Cristo” – tudo isto era pensado dentro de
mim, sem que eu, propriamente, o pensasse conscientemente... E, como
relâmpago em plena noite, via eu diante de mim a flamejante verdade: o que
aconteceu aos Atlantes pode acontecer aos Telúricos, se proclamarem a
soberania do Lúcifer do Intelecto sobre o Cristo da Razão.
Lúcifer vencera em toda a linha... E o rasto da sua vitória era assinalado pelos
abismos do nada, das trevas, do grande silêncio da morte universal...
Mas uma vez fui acometido da sensação estranha de estar sonhando ou de ter
morrido naquele naufrágio em pleno Oceano Pacífico... Não! eu estava
acordado e vivo... Se não estivesse vivo, nem poderia pensar ter morrido... Se
não estivesse acordado, não poderia ver tudo isto com tamanha clareza e
nitidez... Acabei por convencer-me definitivamente de que há uma realidade
para além da vigília natural dos nossos sentidos e da nossa mente. O “terceiro
céu” de Paulo devia ser essa zona da realidade ultra-sensorial e ultra-
intelectual – a grande realidade do mundo intuitivo da razão espiritual.
Depois de longa pausa meditativa, ousei quebrar a quietude que nos envolvia,
e perguntei a Almah se a tragédia dos Atlantes tinha algum sentido no quadro
total dos mundos conscientes; pois sabia eu que nada acontece à margem dos
planos das Potências Cósmicas, e que o próprio Intelecto, por mais que
pretenda emancipar-se da jurisdição da Onipotência e Onisciência divinas, tem
de cooperar, em última análise, com a harmonia do Todo; pode, sim, o Intelecto
crear dissonâncias na grande orquestra do universo, mas essas próprias
dissonâncias se enquadram, finalmente, na eterna Sinfonia Cósmica – que é
uma “sinfonia inacabada”...
Respondeu-me a minha Hat-Shep-Sut rediviva que ainda não estava terminada
a missão dos Atlantes; que eles, graças à sua avançada ciência e técnica,
estavam em condições e tinham o destino de entrar em contato com as outras
humanidades do nosso sistema solar, e de outros sistemas, que apareciam
toda vez que os habitantes conscientes e livres de outras unidades siderais
estivessem a pique de cometerem os mesmos desatinos que motivaram a
tragédia deles, proclamando Lúcifer como o soberano da sua vida.
Nestas alturas, ardia-me na alma uma pergunta que não externei. Queria saber
se os nossos chamados “discos voadores” tinham alguma relação com os
Atlantes, sobretudo depois de verem como nós costumamos solver os nossos
problemas à boca de canhões e com bombas atômicas; se eles vinham
prevenir-nos do iminente perigo, no caso que o Espírito do Cristo não
conseguisse dominar o Intelecto de Lúcifer.
– Há segredos que não é licito revelar antes do tempo; a seu tempo, porém, o
que hoje é obscuro amanhã será claro... Guia-te, Delfos, pelo que ELE disse –
e tudo estará certo... 2
2. O leitor que quiser saber das minhas relações, com os discos voadores, leia o capítulo “Eu e
os discos voadores” do meu livro “Luzes e Sombras da Alvorada”.
Separamo-nos.
– A ilha do Cristo vivo e do homem perfeito, onde passei anos tão felizes...
Dizendo isto, o tal olhou para mim. Compreendi que me tomava por um doente,
um pobre mentecapto.
– Está muito enganado! – exclamei – eu não estou doente, nem nunca mais
estarei doente, desde que entrei no reino da perfeita sanidade.
E, para provar o que dizia, saltei da cama e corri para o jardim defronte ao
edifício. Sentei-me num banco de pedra, à sombra duma árvore. Vi, numa
cadeira de rodas, um pobre paralítico. Duma janela do segundo andar do
hospital, partiam gemidos de dor. Daí a pouco, vi dois homens de avental
branco carregando numa padiola um objeto coberto dum lençol branco.
– No ocidente cristão?
Deixei o jardim do hospital e desci pela estrada que conduzia à cidade próxima.
Na primeira encruzilhada deparei com um esqueleto semi-vivo, deitado à beira
do caminho. Estendeu-me um par de braços descarnados e por entre os lábios
pálidos lhe coou este pedido: uma esmolinha pelo amor de Deus!
Remexi nos bolsos, à procura de algum pedaço de metal morto ou dum farrapo
de papel estampado na Casa da Moeda, com que prolongar pudesse por mais
uns dias a esquálida miséria do pobre aleijado; mas nada encontrei. Neste
momento, um lampejo súbito me passou pela alma; fitei o infeliz, e ele me fitou,
imóvel, esperando receber o que pedira. Eu, porém, lhe disse com voz firme:
“Amigo e irmão! metal morto não o tenho, mas em nome de Jesus, o Cristo
vivo, eu te ordeno: levanta-te e anda!” Levantou-se o aleijado como se nunca
estivera doente. Prostrou-se-me aos pés, abraçando-me e chorando de alegria.
– Não sou eu que te dei saúde, meu amigo – respondi-lhe – Foi ELE, o Grande,
o Eterno, do qual sou apenas humilde servo e arauto. A ELE, sim, agradece o
benefício que te fez.
Nisto apareceram dois homens com umas bandejas. Passaram pelo santuário,
pela cabeceira dos bancos, recolhendo metal e papel mortos para a
manutenção do culto ou do pastor. Vieram-me à mente as palavras do Cristo
vivo, proibindo a seus discípulos que levassem ouro ou prata nos seus cintos,
ordenando que de graça dessem o que de graça haviam recebido.
Subiu ao púlpito; mas não falou do Cristo; levou quase uma hora a lançar
violentos anátemas contra os que não pertenciam à sua igreja e prognosticou-
lhes eterna condenação num lugar onde haveria choro e ranger de dentes.
Não, não era aqui a sede do reino de Deus; não era aqui que imperava o
espírito do Cristo...
Segui avante.
Retirei-me em silêncio – e ele pediu aos mergulhadores que orassem por este
pecador impenitente.
Acabavam eles de fazer a sua meditação diária, a sua comunhão com Deus,
estavam todos ocupados na confecção ou no conserto de roupas, sapatos,
sandálias e outros objetos para os que disto necessitavam. O ambiente estava
prenhe de força e de paz, de alegria e de trabalho. Perguntei-lhes a que igreja
ou denominação pertenciam. Responderam-me que eram todos operários
livres do reino de Deus, embora alguns deles fossem membros de um
determinado grupo religioso. Se quiser, disse um jovem sorridente, enquanto
batia a sola de um sapato, pode chamar-nos de Irmãos Anônimos da
Fraternidade Branca.
Outro me respondeu:
Compreendi que esses homens e essas mulheres eram irmãos e irmãs dos
habitantes de Cosmorama. Apenas havia eu proferido o nome da ilha dos
Cósmicos, quando, todos a uma só voz, exclamaram:
– Tenho, sim.
– Porque tomam o seu falso ego pelo seu Eu verdadeiro. O naufrágio não é
outra coisa senão a morte da ilusão e o nascimento da verdade, a morte do
pseudo-eu físico-mental e a ressurreição do verdadeiro Eu espiritual, do Cristo
interno...
– Ah! bem dizia o grande Mestre: “Se o grão de trigo não morrer ficará estéril –
mas, se morrer produzirá muito fruto”...
– Era necessário, meu irmão, que naufragasses para o mundo para que
pudesses ajudar o mundo. Não pode ajudar o mundo quem é do mundo. Só
quem está no mundo sem ser do mundo é que pode ser um redentor para o
mundo.
– De fato, ninguém pode possuir algo com segurança e sem perigo quem não
se despossuiu de tudo e entrou na gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Só
quem possui sem ser possuído é que é realmente um possuidor, e só ele está
no reino de Deus e pode ajudar outros a entrar nesse reino.
Uma voz interna impelia-me a espalhar entre meus irmãos Telúricos algo da luz
e força que colhera entre os Cósmicos. Um dia, estávamos reunidos, alguns
irmãos espirituais e eu, à sombra amena de um bosque, quando foi resolvido
que cada um de nós, sintonizados pelo mesmo espírito, nos espalhássemos
pelo mundo, cada um no setor da sua profissão, e semeássemos os
grãozinhos da verdade libertadora que em nós estavam brotando, florescendo,
frutificando. Fundamos algo que, em linguagem Telúrica, se poderia denominar
um “Clube dos Amigos da Verdade”. De fato, porém, o nosso sodalício não
tinha nome algum, nem distintivo, nem bandeira, nem estatutos, nem nada
daquilo que as sociedades humanas costumam ter. Éramos um grupo anônimo
de seres humanos dispostos a fazer triunfar no mundo fora de nós aquela coisa
grande e bela que cantava vitória dentro de cada um de nós – coisa essa que
se poderia chamar “Verdade”, “Bondade”, “Amor”, “Liberdade”, “Felicidade”,
porque tudo isto é o mesmo.
Como disse, não tínhamos nem temos distintivo, e isto para evitar qualquer
fossilização daquele divino fluído que nos vitaliza. Entretanto, adotamos uma
ligeira senha de reconhecimento mútuo, ou melhor, de advertência espiritual.
Toda vez que algum dos Irmãos estiver prestes a resvalar pelo declive da
rotina habitual que nos cerca – declive feito de mentiras, hipocrisias,
insinceridades e egoísmos de todas as formas e cores – o Irmão monitor,
percebendo o perigo, põe a mão direita à altura do coração, com os dedos
voltados para cima, simbolizando uma chama a apontar o céu. O Irmão
periclitante, vendo esse silencioso “SOS”, se lembra do compromisso de honra
que tem com a Verdade, e pára no meio do traiçoeiro declive em que a força do
hábito e a sugestão do ambiente o colocavam, forcejando por voltar às serenas
alturas de Verdade Redentora, onde a paz habita e onde a felicidade canta
hosanas de eterna beleza e beatitude.
De tempos a tempos, tornamos a reunir-nos à sombra daquele mesmo bosque,
e cada um de nós narra, com verdade e singeleza, as aventuras e experiências
por que passou, no seu bandeirismo pelas selvas da Verdade.
Um dia, passando por uma praça pública, vi, no alto duma tribuna improvisada,
um jovem político, em vésperas de eleições; exaltava às nuvens do céu o seu
candidato político, afirmando que era dever de patriotismo votar nesse homem,
e só nele, porque nele estava a salvação do país. Nisto percebi que o orador
era membro novel do nosso grupo espiritual. Coloquei-me bem defronte à
tribuna e, sem que ninguém o percebesse, pus a mão direita em forma de
chama à altura do peito. O fogoso orador, assim que percebeu aquilo, abriu
ligeira pausa, concentrou-se por uns momentos, e prosseguiu com voz firme,
dizendo: “Amigos e correligionários. Peço vênia para retificar algumas das
minhas asserções. O meu candidato, como suponho, é homem bom, embora
eu não o possa apontar como o melhor de todos, espero que fará o possível
pela prosperidade de nossa terra. De resto, não quero ocultar a meus ouvintes
que não é só o sentimento puro do patriotismo que me move, mas também...
os srs. compreendem, não é?... como sempre acontece em ocasiões dessas...
a gente não trabalha de graça... sei que vou ter uma boa colocação, se o nosso
candidato sair eleito”...
Neste teor, continuou ele a falar, no meio dum silêncio sepulcral, o que fazia
adivinhar que algo de insólito e inaudito estava acontecendo nesse comício
político, algo como uma subitânea invasão das potências de outros mundos na
esfera deste planeta sublunar – não precisamente uma incursão de
“marcianos” em “discos voadores”, mas algo parecido, ou até mais estupendo
do que isto; parecia até que se aproximasse a segunda vinda do Cristo, sobre
as nuvens do céu, com grande poder e majestade...
Em outra ocasião, um dos nossos Irmãos anônimos foi comprar uns litros de
leite. Incidentemente, perguntou ao vendedor se aquilo era leite puro e integral,
ao que o outro respondeu categoricamente: “Leite puríssimo, 100%!” Nosso
Irmão olhou para o leite meio azulado, e olhou para o vendedor, um tanto
encabulado, e disse-lhe baixinho ao ouvido: “Você faz parte do Clube dos
Amigos da Verdade, não é?” Ao que o outro, empalidecendo por uns
momentos, replicou: “Ah! sim!... tinha-me esquecido”... E, voltando-se a todos
os compradores circunstantes, declarou em voz alta: “Amigos, faço-lhes saber
que isto aqui é leite com água, mas podem estar certos de que contém
essência de leite, entre 50 a 70 por cento”.
E passou a vender a “essência de leite” pelo preço marcado sem cobrar aos
fregueses a porcentagem de água – o que teve sobre todos os efeitos de um
grande milagre ocorrido em plena luz do dia. “Louvado seja Deus!” exclamou
uma velhinha, “que ainda existe no mundo um homem capaz de dizer a
verdade a 100%!”...
O vendedor prometeu vender, daí por diante, leite integral e puro, pelo preço
comum, e cumpriu a sua palavra. Esse acontecimento excepcional a tal ponto
impressionou os fregueses que a cidade em peso quis comprar leite só desse
homem: nosso Irmão honesto enriqueceu em pouco tempo e foi contratando a
produção do leite de toda a redondeza, enviando para cada empresa de
laticínios um colega também amigo da Verdade Integral – e defensor do leite
integral...
***
“Amigos ouvintes, vou retificar o que acabo de dizer: Eu, graças a minha
extraordinária competência e dignidade excepcional, e confiando também na
vossa grande bondade, peço vênia para abordar o magno assunto desta noite”.
Era tão grande o silêncio no vasto salão repleto de ouvintes que se julgava até
perceber o discreto latejar do sangue através das artérias e veias dos corpos.
Todos, de pescoço esticado e respiração suspensa, bebiam sofregamente
palavra por palavra; houve quem quisesse saber se o orador dissera aquilo
mesmo ou se era alguma ilusão auditiva da parte do ouvinte. Começavam a
dizer, a meia-voz, uns aos outros: “Que foi que ele disse?... Como? Disse isto
mesmo?... Impossível!... Está louco!... É um santo!... Como se explica isto?...
Que foi que aconteceu com ele”?...
***
– Quem foi?
– E verdade, Maria... Falei de um amigo... Mas, é favor trocar esse “o” final por
um “a” – e tudo está certo... Você compreende, querida, são as nossas velhas
fraquezas, que custa abandonar assim de sopetão... Mas, vou acabar com
elas... Afinal de contas, somos dos Amigos da Verdade... Boa noite, meu bem.
***
A maior crise, porém, por que passou o Clube dos Amigos da Verdade, ocorreu
quando alguns dos seus sócios sugeriram que até a declaração de Imposto de
Renda fosse feita sob os auspícios da Verdade. Houve protestos violentos,
acalorados debates, e quase 2/3 dos sócios do Clube se retiraram. Imagine-se:
após quase 2000 anos de cristianismo tradicional, um cristão é obrigado a
guiar-se pela cristicidade real da Verdade! Mas a minoria que ficou fiel
compensava pela qualidade a quantidade que desertou.
***
Tudo é UM
DADOS BIOGRÁFICOS
Huberto Rohden
Nasceu na antiga região de Tubarão, hoje São Ludgero, Santa Catarina, Brasil
em 1893. Fez estudos no Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia
e Teologia em universidades da Europa – Innsbruck (Áustria), Valkenburg
(Holanda) e Nápoles (Itália).
Rohden não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou e
dirigiu o movimento filosófico e espiritual Alvorada.
Ao fim de sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidado
para fazer parte do corpo docente da nova International Christian University
(ICU), de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e
Religiões Comparadas; mas, por causa da guerra na Coréia, a universidade
japonesa não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi
nomeado professor de Filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual não
tomou posse.
Nos últimos anos, Rohden residia na capital de São Paulo, onde permanecia
alguns dias da semana escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos
definitivos. Costumava passar três dias da semana no ashram, em contato com
a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário-modelo.
Maravilhas do Universo
Alegorias
Ísis
Por mundos ignotos
Coleção Biografias
Paulo de Tarso
Agostinho
Por um ideal – 2 vols. autobiografia
Mahatma Gandhi
Jesus Nazareno
Einstein – o enigma do Universo
Pascal
Myriam
Coleção Opúsculos
Catecismo da filosofia
Saúde e felicidade pela cosmo-meditação
Assim dizia Mahatma Gandhi (100 pensamentos)
Aconteceu entre 2000 e 3000
Ciência, milagre e oração são compatíveis?
Autoiniciação e cosmo-meditação
Filosofia univérsica – sua origem sua natureza e sua finalidade