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Cláudio Kazuo Akimoto Júnior
Maria Lívia Tourinho Moretto
RESUMO
Desde as origens da medicina ocidental, na Grécia Antiga, com Hipócrates (460 – 370
A.C.) (Grammaticos & Diamantis, 2008), já se discutiam os possíveis riscos envolvidos em um
tratamento de saúde e a possibilidade de que o tratamento cause dano ao paciente. Diante deste
risco, destacavase a importância de que aquele que conduz o tratamento o fizesse com a devida
cautela, atenção e perícia na busca por evitar ou reduzir eventuais danos ao paciente. Neste
sentido, o juramento hipocrático, adotado até hoje na prática médica, estabelece logo como
primeiro princípio a “não maleficência” (primun non nocere), ou seja, primeiramente, devese
cuidar para que o tratamento não venha a causar danos ao paciente, sendo esse o ponto de base
da ética médica (Jones, 1868).
Implícita nessas orientações está a concepção de que o tratamento pode causar tanto
efeitos positivos quanto negativos para o paciente. Atualmente, a possibilidade de danos ou
prejuízos causados pelo tratamento a um paciente é comumente referida pelo conceito de
iatrogenia. Segundo o dicionário, iatrogenia seria: “Parte da Medicina que estuda a ocorrência de
doenças que se originam do tratamento de outras; patologia da terapêutica”. O significado do
termo é amplo, podendo englobar categorias diversas: efeitos adversos, colaterais, deterioração,
complicações, usados de modo intercambiável na literatura (Padilha, 2001). O termo iatrogenia
não é aplicável apenas a tratamentos médicos, mas também à outros profissionais de saúde
(Padilha, 2001). Para Tavares (2007, pg. 181):
“Iatrogenia abrange, portanto, os danos materiais e psicológicos causados ao
paciente não só pelo médico como também por sua equipe (enfermeiros,
psicólogos, assistentes sociais e demais profissionais)”
Apesar do reconhecimento dos possíveis efeitos iatrogênicos dos tratamentos desde
tempos antigos, bem como estudos atuais que indicam o potencial iatrogênico na área de saúde
(Starfield, 2000), o tema da iatrogenia nem sempre é tratado com a devida seriedade. Em
especial, dentre profissionais da área de saúde mental, o tema ainda é pouco abordado (Padilha,
2007).
Apesar de atualmente vinculada à noção de efeito adverso do tratamento, em sua origem
grega, a palavra iatrogenia deriva do radical iatro (“iatrós”), que significa médico, curandeiro; e
significando aquele que gera, que produz; e do prefixo “Ia”, que
da palavra geno (“gennáo”),
indica uma qualidade, ou seja, iatrogenia, em sua origem, se referiria a todos efeitos produzidos
pelo curandeiro, toda consequência produzida por um tratamento, seja ela benéfica ou prejudicial
ao paciente (Tavares, 2007). Podemos aqui extrair um primeiro ponto de interesse, na noção de
que tanto os efeitos de cura, quanto efeitos iatrogênicos seriam inerentes a qualquer tratamento
ou processo de cura.
Acerca dos impactos da atuação do médico no curso de um tratamento, Balint (1957, pg.
198) afirma que "...de longe a droga mais usada na prática médica é o próprio médico.”. Destaca
também as dificuldades que essa constatação apresenta, vez que a "droga" médico não tem uma
farmacologia clara, tampouco regras de dosagem e nem uma descrição de potenciais efeitos
colaterais ou adversos. Temos a idéia de que, tal qual um remédio, o trabalho do profissional de
saúde, caso mal administrado, também pode ser prejudicial ao paciente e, ao invés de promover
sua cura e um reestabelecimento, poderia causar agravamento do sofrimento ou perpetuação da
doença.
Em pesquisas recentes, constatase que cerca de um terço dos pacientes não apresentam
melhoras ou até pioram (Hansen, Lambert & Forman, 2002). Em pesquisas com pacientes fora
de um ambiente experimental controlado, mais de 50% não responderam ao tratamento e uma
média de 8% pioraram. Em outro artigo, a estimativa é de que aproximadamente 10% das
pessoas pioram após o início do tratamento (Jarret, 2007). Entre crianças as taxas de piora
ficaram entre 14%, e 24% (Warren et al., 2010).
Diante desses resultados, se seguimos as propostas de Bergin e de Balint, de que todo
tratamento capaz de gerar efeitos de tratamento, traz em si também o risco de efeitos nocivos ao
paciente, podemos entender que o reconhecimento dos alcances do poder de uma práxis e dos
mecanismos que operam no sentido da cura está intimamente ligada ao reconhecimento também
de seus limites, riscos e possibilidades de fracasso ou, em outras palavras, seu potencial
iatrogênico. Assim sendo, de onde afinal cada tratamento retira a sua eficácia e de que modo isso
influencia no sucesso ou fracasso de um tratamento?
O PODER COMO CAUSADOR DE EFEITOS IATROGÊNICOS
Maleval (2004) discute o que classifica como as três grandes epidemias de patologias
iatrogênicas já registradas, que se espalharam pela América do Norte nas últimas décadas,
quando dezenas de milhares de pacientes norteamericanos foram vítimas de: distúrbios de
personalidades múltiplas; síndromes de falsas lembranças; ou então relatos de sequestros
extraterrestres.
Na década de 80, a síndrome de personalidade múltipla assumiu caráter epidêmico nos
Estados Unidos, com mais de 30 mil casos registrados. Psicoterapeutas conduziam tratamentos
em que buscavam se comunicar com personalidades ocultas de seus pacientes e reencontrar
lembranças que, em tese, teriam sido recalcadas pelo paciente. Recolhiam relatos extravagantes e
conferiam crédito a tais narrativas, que frequentemente remetiam à graves episódios de sedução,
abuso sexual, tortura, participação em rituais satânicos ou sexuais, realizados por pais ou
familiares. Os pacientes então, amparados por seus terapeutas, denunciavam às autoridades os
abusos supostamente vividos e buscavam a justiça em busca de reparação, sendo pais e
familiares investigados e processados por denúncias de satanismo, incesto e abuso de menores.
Contudo, nunca nenhuma investigação criminal foi capaz de confirmar tais alegações. Ainda que
não tenha havido condenações judiciais, as repercussões de casos como esse na mídia e o
impacto na vida dessas famílias foram devastadoras. Situação semelhante se desenrolou em
relação à síndrome de rapto extraterrestre e aos casos de personalidade múltipla.
A partir desses casos epídêmicos, Maleval denuncia os riscos de práticas
psicoterapêuticas que reduzem a dinâmica do tratamento à mera aplicação técnicas autoritárias
de influência ou sugestão sobre o paciente, tomando o paciente como um objeto plástico, a ser
moldado e manipulado, e não como um sujeito dotado de singularidade.
Ao situar os efeitos iatrogênicos como efeitos de uma atuação psicoterapêutica pautada na
posição autoritária e de exercício de poder, Maleval localiza o que seria um elemento central
para leitura do potencial iatrogênico dos tratamentos: a posição de dominação do terapeuta sobre
o paciente, ou, melhor dizendo, os usos feitos do poder no curso de um tratamento. Tais
iatrogenias seriam então resultado de um uso indevido do poder conferido pelo dispositivo
clínico.
Ao focar exclusivamente na aplicação de um método e na eficácia terapêutica, perdese
de vista a íntima relação entre técnica e ética, excluindose a possibilidade de uma discussão
sobre a ética envolvida no tratamento e o papel do profissional em sua condução, discussão essa
que possibilitaria que mudanças na técnica pudessem ser acompanhadas de mudanças também na
ética, ou seja, nos fins perseguidos. E viceversa. O exemplo do percurso de Freud é claro nesse
sentido.
Ao longo de sua formação, Freud traça um percurso partindo de sua formação na escola
de Berheim, em que o poder de cura estava essencialmente calcado no que era chamado de poder
da sugestão, via hipnose. A princípio Freud via na hipnose a possibilidade do exercício de um
poder quase ilimitado sobre o outro. Esse primeiro momento seria então pautado pelo
apagamento dos sintomas por meio da autoridade do terapeuta. Em um segundo momento, o
poder da sugestão passa a quer questionado, na medida em que Freud adquiria experiência, de
modo que a questão ética envolvida no tratamento foi posta antes mesmo de sua Interpretação
dos Sonhos (Freud, 1911/1996). Mesmo anos mais tarde em Psicologia das Massas e Análise do
Eu (1921/1996, pg. 114) Freud, ao retomar o tema da sugestão, reconhece o caráter autoritário do
que chamou de “tirania da sugestão” nas prática hipnóticas.
Temos aqui uma mudança importante, quando a resistência do paciente à sugestão pode
ser compreendida também como uma tentativa de manutenção de sua liberdade (Checchia,
2012). Mas o ponto fundamental referese não mais apenas à eficácia da cura ou da eliminação
do sintoma, mas uma mudança no registro do entendimento do direcionamento do tratamento e
de sua ética. Isso porque aparece como valor norteador da clínica a liberdade do sujeito. Ao
abandonar a hipnose e convidar o paciente a falar livremente em asssociação livre, Freud
promove uma mudança que situa o terapeuta não mais em posição de autoridade, retirando
também o paciente de sua posição apenas passiva no tratamento.
Mas ao criar a regra da associação livre, Freud se depara com novos problemas clínicos.
A partir da relação transferencial estabelecida entre analista e paciente, a resistência é o grande
inimigo a se combater, cabendo ao analista a intervenção por meio da interpretação.
Interpretação como efeito do trabalho do analista sobre a associação livre, com base na
trasferência e a fim de superar as resistências. O aparecimento da transferência e das
interpretações são indícios dos novos remanejamentos das relações de poder no dispositivo da
cura (Checchia, 2012).
Vamos acompanhando que mudanças na teoria, nos problemas clínicos, são
acompanhadas de mudanças na ética da prática, nos fins perseguidos e, consequentemente da
posição em que o analista se coloca diante do paciente. Neste sentido, um dos ganhos do método
proposto por Freud é a possibilidade de que a própria sugestão ou resistência possam aparecer na
transferência, podendo elas mesmas serem analisadas:
A sugestão, quando permanece intocada, encobre e deixa inalterados os processos que
levaram à formação do sintoma, bem como as relações de poder estabelecidas entre terapeuta e
paciente, reforçando o caráter de mestria envolvido nesta relação transferencial hierárquica e
aumentando seu potencial iatrogênico. Mas teria então a psicanálise resolvido o problema da
iatrogenia?
A QUESTÃO DO PODER NA PSICANÁLISE
Ainda que a psicanálise se mostre atenta a esse risco iatrogênico decorrente de uma
postura autoritária por parte do terapeuta, configurando seu dispositivo clínico de modo a buscar
mitigar esse risco, não podemos considerar que tal montagem seja suficiente para resolver o
problema do exercício de poder no tratamento, tampouco para eliminar seu potencial iatrogênico.
Lembrando nosso fio condutor de que todo tratamento que produz efeitos de cura, apresenta
também um potencial iatrogênico.
"O poder não está, pois, fora do discurso. O poder não é nem a fonte nem a
origem do discurso. O poder é algo que funciona através do discurso, porque
o discurso é, ele mesmo, um elemento em um dispositivo estratégico de
relações de poder." (Foucault, 1978/1994, p. 465)
O que temos é que o poder se manifesta, não apenas como um exercício de poder
unilateral por parte do terapeuta. O questão do poder se aproxima mais de uma dinâmica
constante de enfrentamento e resistência, que opera em ambos os sentidos, de uma parte a outra.
Neste sentido podemos retomar a frase de Lacan (1958/1998, pg. 592), em A direção do
tratamento e os princípios de seu poder : “Pretendemos demonstrar como a impotência em
sustentar autenticamente uma práxis reduzse ao exercício de um poder”. Lacan alerta aqui para
o risco de que uma prática não sustentada autenticamente venha a recair exclusivamente,
reduzirse, apenas a um exercício de poder. Mas de modo algum podemos daí extrair que, ao
sustentar a prática analítica de maneira autentica estaríamos livres de questionar os fluxos de
poder presentes no tratamento. É a partir disso que podemos compreender o alerta feito por
Lacan (19641965/2006, pg. 417), acerca da prática do psicanalista:
“Isto não é para nos enganarmos juntos com uma advertência sobre a
responsabilidade na prática. Tu sabes bem que todo exercício de um poder
não é somente sujeito a um erro, mas a este cúmulo de engano de ser
benfeitor em seu erro.”
Assim, temos uma indicação direta de Lacan acerca da prática psicanalítica em sua
relação com o poder e que teria como consequência também a presença do risco de erros em sua
condução. Mais do que isso, Lacan alerta ainda para o risco de que o erro cometido passe
despercebido, sendo tomado como uma boa ação por parte do analista, pela ideia de que se está
fazendo o bem pelo outro. Desse modo, a responsabilidade que se trata, do lado do analista, não
é aquela de fazer o bem pelo paciente, numa posição de benfeitor, professor, mestre ou outra
semelhante, tampouco pretender eliminar as relações de poder e resistência em curso no
tratamento.
Pelo contrário, a responsabilidade do analista estaria situada na possibilidade de
reconhecer essas dinâmicas de poder para, a partir daí, poder operar no sentido de promover
incrementos na liberdade do sujeito e, consequentemente, combater situações de dominação, seja
no modo como o sujeito se posiciona em sua relação com o outro, seja no âmbito de sua relação
com o analista e mesmo na relação consigo mesmo, sendo essas as condições de possibilidade
para redução do potencial iatrogênico dos tratamentos.
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