Você está na página 1de 20

Experts by experience, demedicalization and the emergence of al-

ternative approaches to mental health care: Gaining Autonomy


& Medication (GAM) in Brazil1

ABSTRACT: Este trabalho aborda uma estratégia de cuidados em saúde mental,


alternativa à lógica medicalizante hegemônica: a Gestão Autônoma da Medicação
(GAM). Criada no Canadá em 1993 a partir dos anseios de usuários e ex-usuários
de serviços de saúde mental, ela se caracteriza pela valorização de suas experiências
e saberes, usualmente negligenciados na prática clínica psiquiátrica, sobretudo no
que diz respeito aos seus tratamentos medicamentosos. Trazida ao Brasil quase 20
anos mais tarde através da parceria entre pesquisadores brasileiros e canadenses,
guardados seus princípios, a GAM brasileira passou por importantes transforma-
ções, objetivando uma adaptação ao novo contexto. Buscamos explorar aqui as di-
ferenças entre o guia GAM canadense e brasileiro, atentando para as especificidades
de sua aplicação na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que terá como foco: o
fornecimento de informações qualificadas sobre as drogas psiquiátricas aos usuá-
rios, a reflexão crítica sobre seus direitos nos serviços de saúde e o estabelecimento
participativo de um plano de ação, visando a promoção de sua autonomia e a me-
lhoria da qualidade de vida. Por fim, ainda que considerados os avanços da Reforma
Psiquiátrica brasileira e a emergência de iniciativas como a GAM no Brasil, questi-
onamos os limites do debate sobre a desmedicalização no contexto brasileiro atual.

1. Introdução

Temos assistido, nas últimas décadas à emergência de propostas alternativas, tanto


de abordagens epistemológicas, como de práticas de cuidados no campo da saúde
mental que podem ser entendidas como desmedicalizantes, já que rejeitam, em al-
guma medida, as teses da psiquiatria tradicional hegemônica sobre as causas e ma-
nifestações do sofrimento psíquico, bem como os tratamentos usualmente dispen-
sados por médicos/psiquiatras aos que vivenciam experiências desse tipo.
Neste trabalho, abordaremos a Gestão Autônoma da Medicação (GAM),
uma estratégia de cuidado criada no Canadá em 1993 e que tem suas raízes nos
anseios de usuários e ex-usuários de serviços de saúde mental, especialmente da-
queles que fazem uso regular de psicotrópicos. Sua implementação no Brasil ocorre

1
Authors: Letícia Hummel do Amaral (UFSC) & Javier Guevara Marzal (UFSC)
2

quase vinte anos mais tarde, após pesquisa que buscou entender as especificidades
do contexto local, adaptar o guia à nova realidade e, assim, testar seus efeitos sobre
os sujeitos envolvidos nos tratamentos. Tal processo vai culminar na criação do guia
GAM brasileiro (ONOCKO-CAMPOS et al, 2012) e na disseminação desta estra-
tégia nos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), do Sistema Único de
Saúde (SUS), em diversas regiões do país.
A despeito das diferenças entre a GAM canadense e brasileira, cabe desta-
car a centralidade do respeito e valorização da voz e saberes dos usuários e ex-
usuários dos serviços de saúde mental, tanto quanto aos sentidos atribuídos às suas
experiências de sofrimento e/ou loucura, quanto nas decisões sobre seus tratamen-
tos, fazendo tensionar as relações de saber-poder entre a psiquiatria e seus, assim
chamados, pacientes.

2. Discursos e práticas desmedicalizantes no campo da saúde


mental

Os processos de medicalização da vida têm atraído a atenção de estudiosos desde a


década de 1960, quando o termo apareceu pela primeira vez no âmbito da sociologia
da saúde2. Em resumo, eles expressam a redefinição de problemas das mais diversas
instâncias da vida em termos médicos, que passam a ser descritos pela linguagem
médica, entendidos pela racionalidade médica e tratados por intervenções médicas.
(CONRAD, 2007). A medicalização ocorre segundo uma concepção de ciência mé-
dica que discute o processo saúde-doença como centrado no indivíduo, privilegi-
ando uma abordagem biológica organicista em detrimento de seus condicionantes
sociais, políticos e culturais.

2 Talcott Parsons (1961) foi o primeiro sociólogo a empregar o termo, porém sua abordagem era
funcionalista e focava no papel social do doente e do médico, perspectiva bastante distinta dos traba-
lhos de perspectiva crítica que vieram alguns anos depois, como aqueles de M. Foucault, I. Illich, e es-
pecialmente entre autores da Antipsiquiatria clássica: D. Rosenham; R. D. Laing, D. Cooper, T. S.
Szasz, E. Goffman, além de F. Basaglia e E. Venturini.
3

Nesse debate, destaca-se Illich (1975) que lança mão da noção de iatrogê-
nese – iatros (médico) e genesis (origem) – para abordar os malefícios provocados
pela medicina ocidental institucionalizada. A iatrogênese clínica refere-se às doen-
ças causadas pelos próprios cuidados de saúde, como os efeitos colaterais dos me-
dicamentos, as intervenções cirúrgicas desnecessárias e a produção de traumas psi-
cológicos. A iatrogênese social relaciona-se aos efeitos sociais não desejados dos
impactos da medicina, em especial, à crescente dependência da população em rela-
ção às prescrições médicas e ao controle social pelo diagnóstico, resultante da me-
dicalização de categorias sociais. E a iatrogênese estrutural/ cultural por meio da
qual a medicina subsomi do sofrimento seu significado íntimo e pessoal, transfor-
mando-o em uma questão técnica. Neste caso, o problema resulta da destruição do
potencial cultural das pessoas para lidarem de forma autônoma com a doença, com
a dor ou com a morte. (GAUDENZI; ORTEGA, 2012).
No Brasil contemporâneo, Amarante & Freitas (2017) e Caponi (2019)
apontam para os resultados iatrogênicos das práticas psiquiátricas ao longo da his-
tória, muitas das quais são hoje consideradas métodos de tortura e violação de di-
reitos humanos (a exemplo da camisa de força, lobotomia e eletrochoque). Enfati-
zam-se, aqui, as críticas que insurgem dos usuários dos serviços de saúde mental
em relação ao sofrimento causado pelo uso de psicofármacos, cujas prescrições têm
aumentado em larga escala ano após ano, inclusive em território brasileiro3, desde
sua descoberta acidental na década de 1950.
Assim, a iatrogênese psiquiátrica também se manifesta como complica-
ções dos tratamentos medicamentosos. São os chamados efeitos colaterais,

3
Dados recentes (2020), obtidos pela agência de notícias R7 junto à Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa), apontam aumento considerável no consumo de substâncias psicoestimulantes, como
o metilfenidato (Ritalina/Concerta) e a lisdexanfetamina (Venvanse). Em relação à primeira, o con-
sumo de caixas por ano saltou de 1.343.545 em 2011 para 2.240.873 em 2019, enquanto a segunda,
que é mais recente no mercado, passou de 11.065 caixas em 2011 para 616.325 em 2019. É digno de
nota que essas sejam as medicações mais receitadas para pré-escolares e escolares diagnosticados com
transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Fonte: https://noticias.r7.com/saude/venda-de-reme-
dios-derivados-de-anfetamina-bate-recorde-no-brasil-24102020
4

usualmente não mencionados aos pacientes na prática clínica, tais como: discinesia
tardia (espasmos involuntários em partes do rosto) e tremores, problemas cardíacos,
metabólicos (ganho/perda significativo de peso) e na vida sexual (anorgasmia e di-
minuição da libido), além da intoxicação direta4, dos sintomas debilitantes de abs-
tinência e dos problemas resultantes de interação medicamentosa (muitos psiquia-
tras são adeptos à polifarmácia). Argumenta-se, ainda, sobre distúrbios afetivos e
de comportamento associados ao consumo regular de psicotrópicos.

Os sistemas de classificação atuais em psiquiatria não consideram os


componentes iatrogênicos da psicopatologia relacionados à toxici-
dade comportamental. Distúrbios afetivos causados por drogas mé-
dicas, bem como efeitos paradoxais, manifestações de tolerância
(perda de efeito clínico, refratariedade), abstinência e transtornos
pós-abstinência, são cada vez mais comuns devido ao uso generali-
zado de drogas psicotrópicas na população em geral. Tal negligência
é séria, uma vez que é improvável que as manifestações de toxicidade
comportamental respondam aos tratamentos psiquiátricos padrão e
podem ser responsáveis pelo amplo espectro de distúrbios incluídos
na rubrica genérica de resistência ao tratamento. O termo “comorbi-
dade iatrogênica” refere-se às modificações desfavoráveis no curso,
características e capacidade de resposta ao tratamento de uma doença
que pode estar relacionada a terapias administradas anteriormente.
Tais modificações também podem levar a um desenvolvimento serial
de múltiplas complicações médicas e psiquiátricas (iatrogenia em
cascata). (FAVA; RAFANELLI, 2019, p. 137)

É muito grave que problemas causados pelos medicamentos prescritos se-


jam usualmente entendidos por psiquiatras como sintomas resistentes da doença
original ou referidos ao aparecimento de outras patologias, o que pode levar ao in-
cremento de novas drogas no tratamento (GUY et al, 2020).
Mas se os processos de medicalização da vida têm sido extensamente ana-
lisados em suas diversas facetas e consequências, Gaudenzzi e Ortega (2012) de-
fendem a importância de se realizar estudos sobre a desmedicalização, isto é, sobre
os movimentos de resistência à medicalização. Eles propõem, ademais, o estatuto

4
A síndrome serotoninérgica (SS) foi descrita na década de 1970 em pacientes que ingeriam altas do-
ses de triptofano e, posteriormente, também reconhecida naqueles fazendo uso combinado de antide-
pressivos tricíclicos e inibidores da MAO. Atualmente, é comum em pacientes tomando antidepressi-
vos da classe dos inibidores seletivos de recaptação da serotonina (ISRS), psicotrópico receitado para
tratar depressão, transtorno do pânico e transtorno obsessivo-compulsivo, e também em derivados usa-
dos para tratamento da enxaqueca (sumatriptano). Fonte: http://www.polbr.med.br/ano02/ar-
tigo1002.php
5

da medicalização dos autores Illich e Foucault como ferramenta-chave para tais es-
tudos:

Apesar de Illich enfatizar o lado opressivo da cultura medicalizada


ocidental, seu estudo – uma vez que se destina a oferecer instrumen-
tos para se pensar no restabelecimento de um equilíbrio ético-político
entre ações de saúde autônomas e heterônomas – permite analisar a
crescente aparição de movimentos contestatórios à medicalização,
aquilo que Foucault, de forma mais explícita e detalhada, apresentou
através de sua visão de poder e governamentalidade, em que a possi-
bilidade de invenção de formas de resistência a partir das lutas em
torno da subjetividade era uma realidade sempre presente.
(GAUDENZI; ORTEGA, 2012, p. 27-28)

Acompanhando a trajetória do pensamento foucaultiano, percebe-se que


existe, no final da década de 70 e início de 80, um deslocamento de preocupação
temática que passa do estudo sobre o poder no Ocidente - a soberania, o poder dis-
ciplinar, o biopoder, e as técnicas de governo das populações - para as práticas de
si: do conhecimento e do cuidado de si. Ele caminha, nesse sentido, de uma análise
sobre o governo dos outros para outra centrada no governo de si, de uma preocupa-
ção com o sujeito político para a possibilidade de um sujeito ético (FOUCAULT,
2004).
Segue-se que a ética do cuidado de si pode ser entendida como a produção,
por sujeitos e coletivos, de práticas de liberdade que insurgem como possibilidade
de resistência ao assujeitamento das subjetividades a qualquer dessas modalidades
de relações de poder. É nesse marco teórico, das possibilidades de exercício da li-
berdade e autoprodução mais autônoma da vida, pensadas por Foucault e Illich, que
se encontra este trabalho.

3. Os expertos por experiência e os embates discursivos no campo


da saúde mental

Existe, atualmente, um intenso embate epistemológico no campo da saúde


mental entre as diferentes áreas do conhecimento, especialmente entre os enuncia-
dos e práticas da psiquiatria de viés biológico (modelo biomédico hegemônico) de
um lado, e teóricos da saúde coletiva, da sociologia, da psicologia e psicanálise,
6

além da chamada “psiquiatria crítica”5, de outro. Entende-se que, nesses embates,


estão colocadas disputas pelos sentidos da loucura, do sofrimento ou do adoeci-
mento psíquico, de suas causalidades e manifestações, e por propostas muitas vezes
divergentes de modelos de assistência, envolvendo escolhas terapêuticas. Nessa se-
ara, não se pode esquecer, à luz de Foucault, daqueles saberes usualmente conside-
rados leigos, advindos dos próprios sujeitos que vivem experiências de sofrimento
psíquico e a quem designaremos, tal qual Rose (2019): os expertos por experiência.
Trata-se de usuários(as) e ex-usuários(as) dos sistemas de saúde mental que
vêm reclamando por espaço e voz nas discussões sobre este tema, propondo um
maior protagonismo na qualificação das experiências vividas, além da participação
nas decisões sobre políticas públicas, bem como sobre as alternativas terapêuticas
que são definidas para si. Portanto, o debate sobre a dupla: medicalização-desmedi-
calização no contexto da saúde mental passa, necessariamente, pela compreensão
da existência de jogos de verdade que historicamente têm legitimado certos saberes,
em detrimento do silenciamento de outros (FOUCAULT, 1976, 2006).
E aqui, enfatiza-se a hierárquica e, muitas vezes, opressiva relação do mé-
dico psiquiatra (detentor do saber racional) com seu paciente (louco destituído de
razão), e cujo estigma de alienado de sua própria experiência o impede de falar por
si, de construir subjetivamente uma narrativa mais autônoma para sua história, por-
tanto, de encontrar outros sentidos que sejam significativos para as experiências
vivenciadas, para além do diagnóstico psiquiátrico, isto é, das explicações com fun-
damento em desordens cerebrais e herança genética.
É importante retomar Foucault, no prefácio da História da Loucura
(1976):

Quanto a uma linguagem comum, não existe; não existe mais tal
coisa; a constituição da loucura como doença mental, no final do sé-
culo XVIII, evidencia um diálogo rompido, põe a separação como já
afetada e lança ao esquecimento todas aquelas palavras gaguejantes,
imperfeitas e sem sintaxe fixa em que a troca entre loucura e razão
foi feita. A linguagem da psiquiatria, que é o monólogo da razão

5
A exemplo de Joanna Montcrieff na Inglaterra, Allen Frances nos Estados Unidos, além de Paulo Ama-
rante, Octavio Serpa Jr, Rossano Cabral Lima e Deivisson Santos no Brasil.
7

sobre a loucura, só se estabeleceu a partir dessa “ruptura no diálogo”.


(FOUCAULT, 1976, p.52)

Historicamente silenciados pelo saber-poder psiquiátrico, quando não tran-


cafiados, drogados e submetidos a tratamentos ultrainvasivos, muitos usuários e ex-
usuários dos sistemas de saúde mental têm buscado modelos alternativos de com-
preensão de suas experiências de sofrimento psíquico, as quais muitas vezes se con-
trapõem e desafiam o saber e as práticas da psiquiatria tradicional hegemônica.
Ou seja, veremos que a GAM é uma proposta de cuidado em saúde mental,
em certa medida contrária à lógica medicalizante, que busca retirar a centralidade
da doença e do psicofármaco (embora não necessariamente rejeitando-os completa-
mente) e passa a focar, antes, no saber experiencial dos usuários, valorizando suas
subjetividades e a singularidade das histórias de vida. Tal estratégia pode ser enten-
didas, à luz de Foucault, como práticas de liberdade, pois fazem resistência à relação
hierárquica de poder entre saberes legitimados e saberes assujeitados no campo da
saúde mental.
Até agora, as grandes pesquisas sobre a psiquiatria centraram suas referên-
cias naqueles que são usualmente considerados os experts: especialistas médicos,
pesquisadores científicos, gestores de políticas e acadêmicos. Questiona-se, nesse
sentido quanto às vozes dos usuários dos serviços de saúde mental, os sobreviventes
de internações compulsórias, de tratamentos involuntários ou de medicações de
longo termo, isto é, os sujeitos supostamente “tratados” por psiquiatras. Eles não
estariam em melhor lugar para julgar os benefícios da psiquiatria? (ROSE, 2019)
Rose (2019) salienta que a constatação mais fundamental a se fazer na his-
tória da psiquiatria é a persistência do monólogo da razão sobre a loucura e, então,
ele defende:

Mas já passou da hora de virar para o outro lado. A psiquiatria e as


profissões associadas à psiquiatria reivindicam legitimidade não ape-
nas em sua objetividade; mas também porque estão empenhados em
ajudar e não em prejudicar aqueles que analisam, diagnosticam e tra-
tam. Certamente então, no mínimo, aqueles a quem eles ministram
ganham o direito de falar, de dar suas próprias opiniões sobre o tra-
tamento dispensado a eles. (ROSE, 2019, p.151)
8

Essa tem sido a premissa das iniciativas a que chamamos desmedicalizan-


tes que emergiram nas últimas décadas, sobretudo em países do norte global, como
Canadá, Holanda, Finlândia e EUA6. Cada vez mais, autores críticos da área aten-
tam para a importância de se considerar a voz, a experiência e o saber dos usuários
de serviços de saúde mental sobre os tratamentos que recebem 7.

4. As origens da Gestão Autônoma da Medicação (GAM) e sua


transformação ao contexto brasileiro: o GGAM-BR

A Gestão Autônoma da Medicação (GAM), como estratégia alternativa de cuidado


em saúde mental, foi desenvolvida na década de 1990 no Quebec (Canadá) e, desde
então, tem sido adaptada e implementada em outros países, como Brasil, Espanha e
Japão, visando responder a alguns problemas fundamentais: a prescrição/utilização
acrítica e o grande aumento no consumo de psicofármacos, tanto em relação à quan-
tidade quanto ao tempo de consumo e, assim também, ao baixo empoderamento
(pouca informação, participação e capacidade de negociação) dos usuários de ser-
viços de saúde mental nas decisões sobre seus tratamentos, com a usual centraliza-
ção de poder nos profissionais de saúde. (ONOCKO-CAMPOS et al, 2012)
(SANTOS, 2014)

A GAM surge no contexto do movimento de recovery em saúde men-


tal, um movimento iniciado na década de 1970 em países anglo-sa-
xões, mobilizado por pessoas com diagnóstico de esquizofrenia, em
defesa da compreensão de que os indivíduos não poderiam ser redu-
zidos aos diagnósticos de transtornos mentais. O movimento reco-
very compreende que a doença é apenas uma das esferas da vida hu-
mana e abre espaço para a recuperação/reestabelecimento capaz de
conviver com a condição de adoecimento, sem necessariamente a to-
tal remissão dos sintomas. O recovery é um processo dinâmico, não
linear, e tem, como possíveis espaços para seu desenvolvimento, gru-
pos de mútua ajuda, movimentos pelos direitos civis e de valorização
dos usuários. (SANTOS et al, 2020, p. 171)

6
Open Dialogue, Hearing Voices Movement, GAM, as well as some peer-to-peer supporting groups for
psychiatric drugs withdrawal, such as SurvivingAntidepressants/ The Inner Compass Initiative
9

No Canadá, a motivação inicial para a criação da GAM emerge de uma


demanda dos usuários da rede de serviços alternativos de saúde mental8, de base
comunitária e abordagem psicossocial, que reclamavam da falta de informação so-
bre as medicações que lhes eram prescritas, dos efeitos nocivos indesejáveis relaci-
onados ao uso e à retirada dos psicofármacos, da continuação do sofrimento apesar
do ‘tratamento medicamentoso’, do desejo expresso de muitos usuários de viver
sem as medicações (SANTOS et al 2020).
De acordo com o guia canadense (RRASMQ; AGIDD-SMQ; ÉRASME,
2019), a GAM se assenta nos seguintes princípios: na compreensão ampla não re-
ducionista dos sujeitos e das experiências de sofrimento psíquico, para além da do-
ença, as quais exigem respostas múltiplas; no reconhecimento dos usuários como
especialistas de suas experiências com as medicações; no entendimento de que as
drogas psiquiátricas diferem em termos simbólicos entre os usuários, assumindo
diferentes significados; no respeito aos direitos dos usuários no acesso a informa-
ções sobre seu tratamento, no consentimento do cuidado, na obtenção de assistência
e na participação nas decisões sobre seu tratamento; e ainda, na compreensão de
que ‘qualidade de vida satisfatória’ é um parâmetro pessoal, distinto entre os sujei-
tos. Nesse sentido, a GAM visa empoderar, por meio da reflexão e de um plano de
ação, os usuários de psicofármacos no enfrentamento de seus problemas relativos
às medicações, à saúde e a seus contextos sociais-relacionais, e seu objetivo último
é a melhoria da qualidade de vida. A proposta valoriza, ademais, a participação de
outros atores, como cônjuge/família/amigos, profissionais de saúde e organizações
comunitárias que podem funcionar como rede de apoio, fornecendo suporte e infor-
mações ao longo do processo.

8
Le Regroupement des ressources alternatives en santé mentale du Québec (RRASMQ). Outras insti-
tuições envolvidas na GAM canadense são: - Association des groupes d’intervention en défense des
droits en santé mentale du Québec (AGIDD-SMQ) e a Équipe de recherche et d’action en santé men-
tale et culture (ÉRASME) (FRQSC). Disponível em: http://www.rrasmq.com/ - http://www.agidd.org/
- https://erasme.ca/ . A GAM obteve financiamento do Ministério da Saúde e da Assistência Social do
Canadá.
10

O primeiro guia pessoal GAM9 foi criado em 2001 a partir de longas dis-
cussões entre usuários e técnicos, e se voltou àqueles diagnosticados com transtor-
nos mentais graves. É um material notadamente autorreflexivo e está dividido em
sete passos: 1) “Awakening”, que aborda os direitos dos usuários de serviços de
saúde mental, sobretudo no que diz respeito às medicações; 2) “Observing and Re-
flecting”, quando o usuário é convidado a fazer uma análise da própria vida, sua
relação com as medicações, buscando indicar mudanças na direção de uma melhor
qualidade de vida e bem-estar; 3) “Find the right people, information and tools”, em
que o sujeito é orientado a encontrar informações confiáveis sobre as medicações,
definir uma rede de apoio e as estratégias para lidar com momentos difíceis; 4) “De-
ciding”, quando o sujeito é colocado de frente à decisão de continuar, reduzir ou
interromper tal ou qual medicação de que faz uso; 5) “Planning and preparing for
change”, que atenta para a importância de se estabelecer um plano de ação e aborda
a negociação com o psiquiatra/ médico prescritor, informando ao usuário o processo
de retirada e seus usuais efeitos no corpo e nas emoções de forma que, como pessoa
de direitos, ele saiba antes dos possíveis obstáculos e desafios na jornada e conheça
estratégias alternativas para lidar com o sofrimento; 6) “A method to reduce or stop
medication and lessen withdrawal reactions”, momento em que se avisa sobre a
grande dificuldade que pode ser parar uma medicação psiquiátrica e se recomenda,
caso seja o desejo do sujeito, um método de redução gradual e progressivo que torna
o processo mais tolerável; 7) “Managing withdrawal reactions and emotions”,
quando se apontam as principais reações sentidas no processo de retirada de qual-
quer classe de psicofármacos, a saber: ansiedade, nervosismo, agitação, problemas
no sono, necessidade de descansar e dormir mais, irritabilidade e fadiga. Em se-
guida, apresenta-se uma longa lista de reações físicas e psicológicas conhecidas,
legitimadas pela experiência dos usuários, para cada classe específica de psicotró-
pico - antidepressivos, antipsicóticos, tranquilizantes, estimulantes, estabilizadores
de humor. Por fim, são fornecidas dicas de como manejar sentimentos e sensações

9
Em francês, sob o título Gestion autonome de la médication de l’âme: mon guide personnel (2001)
11

intensas, explicando que quando se ingere drogas psiquiátricas, muitas emoções


(raiva, medo, tristeza) ficam adormecidas e que, por isso, ao viver o processo de
retirada é comum e compreensível que tais emoções e sentimentos voltem à tona.
(RRASMQ; AGIDD-SMQ; ÉRASME, 2019)
É importante destacar que não há, mesmo na GAM original, a prerrogativa
da interrupção do tratamento medicamentoso. Esta é uma decisão pessoal do usuá-
rio, que se assim o desejar, terá acesso por meio do guia a informações qualificadas
sobre os sintomas mais comuns de abstinência, além de ferramentas para lidar com
os desafios decorrentes do processo de redução/retirada. Ademais, recomenda-se
expressamente que o usuário nunca o faça sem o acompanhamento de um médico.
À propósito, cabe salientar que o consentimento informado é a bandeira
atual levantada por aqueles que se sentem prejudicados pelos sistemas de saúde
mental e pelo consumo de psicotrópicos. Entende-se que, sem informação qualifi-
cada e honesta, não há possibilidade de escolha. Impõe-se, então, o reconhecimento
de um fato: medicações psiquiátricas podem causar diferentes danos, incluindo de-
pendência química que resulta no aparecimento de sintomas de abstinência, em
muitos casos severos e debilitantes, para grande parte daqueles que tentam reduzir
ou interromper seu uso10 (Guy et al 2020). A lista de sensações e sentimentos desa-
gradáveis e perturbadores é grande, e está descrita no guia canadense.
Importante destacar, nesse debate, o livro The myth of the chemical cure:
a Critique of Psychiatric Drug Treatment (Montcrieff, 2008). Em resumo, Montcri-
eff defende uma mudança na prática clínica que saia do modelo centrado na doença
para um modelo centrado na droga. Isto é, que se abandone as falsas explicações
sobre a existência de um desequilíbrio químico cerebral, usualmente fornecidas
àqueles que chegam a um serviço de saúde mental com queixas de sofrimento psí-
quico, uma explicação não comprovada cientificamente (ROSE, 2019) e, portanto,
um mito. Em seu lugar, ela propõe que os psiquiatras assumam uma posição mais

10
Na Inglaterra (Guy et al, 2020), pesquisas recentes apontam em torno de 40 a 50% no caso de anti-
depressivos, por exemplo. Porém, em geral, na prática clínica, afirma-se que esses efeitos de retirada
são de leves a moderados, auto-limitados e de curta duração.
12

honesta/crível e forneçam aos seus pacientes informações corretas sobre a ação dos
psicotrópicos no cérebro. Em vez de sustentar que eles sejam necessários para cor-
rigir um suposto desequilíbrio cerebral (déficit de serotonina, por exemplo) subja-
cente às doenças, defende-se que a classe médica reconheça o seu real funciona-
mento, isto é, a de levar os pacientes a um estado cerebral alterado induzido pelas
medicações as quais, muitas vezes, têm o poder de diminuir certos sintomas e trazer-
lhes algum benefício, já que mascaram emoções e mudam comportamentos indese-
jáveis, mas que nunca irão curar tal ou qual patologia. Apenas a partir dessa mu-
dança paradigmática seria possível uma prática mais honesta e ética com os pacien-
tes da psiquiatria que, dessa forma, sentir-se-iam verdadeiramente livres para
escolher o tratamento oferecido e consentir, ou não, com ele.
Já no Brasil, a GAM emerge de uma parceria internacional entre pesquisa-
dores da UNICAMP, UFRJ, UFF, UFRGS e o projeto GAM canadense, vinculado
à Universidade de Montreal. Em consonância com os preceitos da Reforma Psiqui-
átrica brasileira11 - que vai culminar no estabelecimento de uma nova política de
saúde mental com base no modelo de atenção psicossocial de base comunitária em
2001 -, a implementação da GAM envolveu um projeto robusto de pesquisa-ação
por meio do qual, assim como no Canadá, reuniram-se usuários, pesquisadores e
trabalhadores da saúde mental de alguns Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)
selecionados12, visando entender as especificidades locais e adaptar a estratégia ao
contexto brasileiro. A partir dos resultados dessa pesquisa multicêntrica inicial
(ONOCKO-CAMPOS et al, 2012b), realizada ao longo de 2009 e 2010, começou a
ser escrito o GGAM-BR13: Guia de Cuidado Compartilhado da Medicação Psiqui-
átrica, finalizado em 2013. Há diferenças entre a iniciativa canadense e a nacional
que merecem destaque.

11 Valorização da democracia, do cuidado em liberdade, da participação, da cidadania, da autonomia


dos usuários de serviços de saúde mental.
12
Escolheu-se como estratégia a realização de 4 grupos de intervenção (GI), que ocorreram ao longo de
10 meses no Rio de Janeiro (RJ), em Campinas (SP), em Novo Hamburgo (RS) e na Universidade Esta-
dual de Campinas (Unicamp-SP).
13 Disponível em: https://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/default/files/paga-

nex/guia_gam_para_dowload_com_correcoes.pdf
13

A primeira refere-se à exclusão, do GGAM-BR (ONOCKO-CAMPOS et


al, 2012a), da segunda parte do guia original que relacionado à retirada das drogas
psiquiátricas. Pesquisadores afirmam que, diferentemente do contexto canadense,
os usuários (n=30) dos CAPS não expressavam o desejo de retirar as medicações 14.
Pelo contrário, como usuários de direitos do Sistema Único de Saúde (SUS) e da
Rede de atenção psicossocial (RAPS), pediam pela garantia de acesso gratuito às
mesmas, além de expressarem o anseio por se ter mais diálogo na relação com os
profissionais. (ONOCKO-CAMPOS et al, 2012) (SANTOS, 2014)
Portanto, o guia brasileiro não trabalha com a proposta de retirada/redução
das medicações. O foco é proporcionar as condições para que o usuário alcance
maior autonomia na direção de uma cogestão de seu tratamento, que não deve se
resumir ao consumo dos psicofármacos, mas que pode incluí-los como parte impor-
tante de um projeto terapêutico individual e multidisciplinar. Santos (2014) afirma,
assim, que a experiência GAM brasileira seria mais bem definida como Gestão
Compartilhada da Medicação.
Mais recentemente, Palombini e Del Barrio (2021) vão defender que, de
fato, não houve uma adaptação do guia canadense para a realidade brasileira, mas
antes, uma completa transformação. Conforme Surjus (2019), a tradução para o por-
tuguês da segunda parte do guia, referente à retirada/redução das medicações, foi
cogitada por pesquisadores-referência no tema. Em 2019, objetivava-se realizar
uma revisão do GGAM-BR que incluísse tais questões, porém, ao final, o projeto
não obteve financiamento. Além do argumento citado relativo à falta de desejo dos
usuários dos CAPS em retirar as medicações, sustenta-se que:

Considerando o cenário da política de saúde mental no país, cujo


projeto reformista, apesar dos seus avanços, não evitou que o trata-
mento farmacológico mantivesse lugar central e frequentemente ex-
clusivo entre as ofertas terapêuticas, os pesquisadores avaliaram que
a pesquisa se inviabilizaria na rede de serviços se mantivesse a pro-
posta do Guia original na íntegra. Havia também o temor, no tocante
aos psiquiatras pesquisadores, de que o Conselho de Medicina, órgão
fiscalizador da profissão de caráter eminentemente conservador, re-
agisse mal à proposta do Guia, imputando-lhes de pronto a acusação

14 Existe relato de usuário, publicados no site MadinBrasil que poderia hoje desafiar essa assertiva.
https://madinbrasil.org/2020/10/vozes-desmedicalizantes-amor-odio-e-respeito-pelos-psicofarmacos/
14

de ‘exercício antiético’ da profissão. (PALOMBINI; DEL BARRIO,


2021, p. 208)

Vemos, então, que a exclusão da segunda parte do guia canadense teve


também motivações políticas e epistemológicas subjacentes15.
Outra particularidade da GAM brasileira é a ênfase na grupalidade, em
vista do contexto de aplicação, em geral, nos Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS) e a dinâmica de seus serviços. A linguagem escrita foi também adaptada.
As perguntas endereçadas aos usuários - diferentemente do guia canadense que uti-
liza o pronome “eu” (ênfase na autorreflexão) - são feitas usando os pronomes
“você” e “nós”, reforçando o aspecto dialógico, coletivo e cogestivo. Além disso,
há preocupação com o emprego de uma linguagem mais fácil (evitando termos
muito técnicos), levando em consideração o contexto brasileiro de enorme desigual-
dade social e, portanto, de grave inequidade de acesso aos bens materiais e culturais.
O guia GAM pessoal brasileiro16 propõe um processo de seis passos, que
assim como no canadense, implicam reflexão e ação: 1) Conhecendo um pouco so-
bre você; 2) Observando a si mesmo; 3) Ampliando a sua autonomia; 4) Conver-
sando sobre os medicamentos psiquiátricos; 5) Por onde andamos; 6) Planejando
nossas ações; Anexo 1: Informações sobre alguns medicamentos psiquiátricos;
Anexo 2: Informações sobre algumas interações medicamentosas; Anexo 3: Infor-
mações sobre algumas plantas medicinais; Anexo 4: Lei 10.216: Lei da Reforma
Psiquiátrica.

Ao longo da leitura, o usuário é conduzido a uma reflexão acerca do


modo como o medicamento psiquiátrico passou a fazer parte de sua
vida, sobre seus direitos como usuário da rede de saúde mental, sobre
a sua experiência com a medicação, sobre sua rede de apoio e sobre
as possibilidades de tratamentos alternativos aos quais ele pode vir a
ter acesso. O fio condutor, ao longo da discussão em todos esses

15
Sabe-se que, no Brasil, o Conselho Federal de Medicina tem, inclusive, apoiado o retorno ao mo-
delo hospitalocêntrico, o que representa um grande retrocesso na política de saúde mental brasileira e a
ameaça da volta de práticas opressivas e de violação dos direitos humanos.

16
Há também, no Brasil, o Guia de Apoio ao Moderador (2014) que visa auxiliar os profissionais de
saúde atuantes na RAPS que queiram iniciar grupos GAM em seus locais de trabalho. Há, inclusive,
uma formalidade na contratação do serviço. Disponível em: https://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/de-
fault/files/paganex/guia_gam_moderador_-_versao_para_download_julho_2014.pdf
15

temas, está relacionado a uma valorização da experiência do usuário


e ao aumento do controle pessoal sobre o uso do medicamento, con-
tando para isto com o apoio dos profissionais de saúde e da rede de
apoio. (SANTOS, 2014, p.30)

Importante iniciativa foi a criação, em 2017, do Observatório Internacio-


nal de práticas da Gestão Autônoma da Medicação (GAM)17, uma rede-escola co-
laborativa de produção de conhecimento, apoio e fomento, atualmente sob a coor-
denação da UNIFESP (Campus Baixada Santista - Profa Dra Luciana T. Surjus),
composta por diversas universidades públicas e privadas brasileiras, além da Uni-
versitat Rovira i Virgili (Espanha) e Université Montreal (Canadá). A intenção é
fortalecer a troca de conhecimento e experiências entre pesquisadores nos diferentes
locais onde a estratégia tem sido mobilizada.
Desde a criação do GGAM-BR, houve ampla disseminação desta iniciativa
em diversas regiões do país, cujas experiências têm sido relatadas em trabalhos aca-
dêmicos: dissertações, teses, artigos, sobretudo nas áreas da psicologia, medicina e
saúde coletiva. Cabe mencionar, ainda, como especificidade brasileira, a inaugura-
ção de experiências GAM realizadas com público infanto-juvenil em CAPS-i
(CALIMAN; CESAR, 2020), assim como com usuários em tratamento devido ao
abuso ou dependência de álcool e outras drogas em CAPS-AD. Segundo Ferreira et
al (2021), a problemática, neste caso, recai no recorrente uso cruzado de drogas
psiquiátricas, drogas ilícitas e álcool, o que intensifica os riscos à saúde, evidenci-
ando as fragilidades da RAPS no cuidado a pessoas que usam diferentes drogas.
Outrossim, uma inserção em trabalhos publicados por pesquisadores em
GAM, a partir de suas experiências, revela que tal estratégia tem tido efeitos consi-
derados positivos, tanto para os usuários dos serviços, quanto para os trabalhadores
da saúde mental, os quais encontraram na escuta dos usuários uma experiência for-
mativa, levando-os a repensar sua atuação clínica a partir de outras bases (SANTOS,
2020). O GGAM-BR tem se mostrado, de acordo com os autores, uma ferramenta

17
Disponível em: https://observatoriogam.unifesp.br
16

importante na promoção de autonomia e na construção de relações mais dialógicas


entre os sujeitos envolvidos nos tratamentos em saúde mental, fazendo tensionar a
tradicional hierarquia entre saberes legitimados e assujeitados.

Os dispositivos utilizados na GAM - como apoio institucional, apoio


matricial, grupos e rodas de conversa - e sua maneira de operar - par-
ticipativa e cogestiva - incidem sobre a micropolítica das relações,
fortalecendo o sentido de termos como democracia, cidadania e au-
tonomia, cruciais para uma efetiva atenção psicossocial e para a vi-
gência do Sistema Único de Saúde conforme aos seus princípios.
Ademais, passados dez anos da GAM no Brasil, percebemos sua ca-
pilarização pela rede de atenção psicossocial, alcançando serviços de
atenção primária, além daqueles destinados a usuários de álcool e
outras drogas e também os que se dedicam a infância e juventude.
Esta expansão da estratégia suscitou um uso inventivo e localmente
situado do guia GAM-BR, mostrando que, preservados os seus prin-
cípios, as possibilidades de trabalho com a estratégia GAM são múl-
tiplas. (FERRER et al, 2020, p. 5)

Conclusão
Reitera-se que a GAM tem origem no movimento dos sobreviventes da psiquiatria,
formado por pacientes e ex-pacientes psiquiátricos que se sentiram, em alguma me-
dida, lesados pelos tratamentos que receberam. No Brasil, de outro modo, foi uma
iniciativa de pesquisadores e trabalhadores da saúde mental que trataram, através
dos grupos de intervenção, de considerar a experiência e anseios dos usuários que
integrariam os grupos, no desenvolvimento e adaptação da estratégia.
Há uma importante questão a ser colocada aqui. No Brasil, existe uma plu-
ralidade de movimentos organizados de usuários de serviços de saúde mental. Con-
tudo, por que não existe, tal como nos Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, um mo-
vimento de ex-usuários/ sobreviventes da psiquiatria? Conforme Freitas (2021):

Neste último caso, o que estaria explicitamente sendo afirmado para


a sociedade é que apesar de terem sido vítimas da psiquiatria, apesar
dos danos pessoais e intersubjetivos, conseguiram “sobreviver” à
Psiquiatria. Quantas coisas importantes esses movimentos estariam
ensinando à sociedade brasileira, não é mesmo? Senão, o quanto os
profissionais de saúde estariam aprendendo com essas experiências
de vida? Onde há movimentos organizados de “ex-usuários” e “so-
breviventes” da psiquiatria, o ‘discurso do mainstream’ da psiquia-
tria ganha fissuras onde sementes do “novo” podem ser germinadas.
(FREITAS, 2021, s/p)
17

Respondendo à questão, Freitas (2021) argumenta que a Reforma Psiqui-


átrica brasileira tem enfatizado o deslocamento da assistência prestada em asilos
para aquela do território sem, contudo, oferecer ferramentas alternativas que aquela
do diagnóstico e dos tratamentos medicamentosos. E que no território, isto é, nos
serviços de base comunitária, a mudança foi no sentido de uma ampliação do mer-
cado para o exercício do próprio poder psiquiátrico, mesmo que se reconheça que
não faltam boas intenções por parte de profissionais. Então, se essas iniciativas sur-
gem por dentro do Estado, e são profissional-dependentes, ficam sujeitas a forças
políticas, como aquelas que inviabilizaram a tradução da segunda parte do guia ca-
nadense.
Cabe trazer, por fim, alguns dados quantitativos que corroboram a asser-
tiva de Freitas (2021). Em pesquisa realizada (SILVA et al, 2020) com usuários
(n=467) de 11 CAPS de diferentes modalidades - CAPS I, II, III/ CAPS-i e CAPS-
AD - objetivando entender a prescrição de psicofármacos dentro dos serviços de
uma região de MG, salienta-se a prática comum da polifarmácia:

Os resultados obtidos nesta região concordam com outros estudos


que apontam uso médio de 2 a 3 medicamentos por paciente para o
tratamento de transtornos mentais. No entanto, o destaque para o
maior número de medicamentos prescritos nos CAPS- AD e CAPS
III, valores acima da média, pode identificar a necessidade de con-
dutas prioritárias para estas modalidades de serviço, no que diz res-
peito ao monitoramento do uso de medicamentos. (SILVA et al,
2020, p. 2877)

Como destacado, uma das manifestações mais importantes da iatrogenia


psiquiátrica refere-se à prática de polifarmácia e as interações medicamentosas que
podem levar, inclusive, à hospitalização dos usuários. Considerada a linha tênue
entre cuidado, controle e dano na prática clínica psiquiátrica, é importante refletir-
mos em que medida as experiências GAM no Brasil têm sido, efetivamente, capazes
de fazer frente à lógica medicalizante na assistência oferecida dentro dos serviços
substitutivos de saúde mental.
18

Referências
AMARANTE, P.; FREITAS, F. Medicalização em Psiquiatria. Coleção Temas
em Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.

CALIMAN, Luciana Vieira; CESAR, Janaína Mariano. A GAM no ES: invenções


com crianças, familiares e trabalhadores. Rev. Polis Psique, Porto Alegre, v. 10, n.
2, p. 166-188, ago. 2020. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/sci-
elo.php?script=sci_arttext&pid=S2238-152X2020000200009&lng=pt&nrm=iso>
Acesso em 26 mar. 2022. http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.104628.

CAPONI, S. Uma sala tranquila: neurolépticos para uma biopolítica da indife-


rença. São Paulo: LiberArs, 2019.

CONRAD, P. The medicalization of society: on the transformation of human


conditions into treatable disorders. Baltimore: The Johns Hopkins University
Press, 2007.

FERREIRA, I. M. F.; AVARCA, C. A. C; AMORIM, A. K. M. A; VICENTIN,


M. C.G. Gestão Autônoma da Medicação em CAPS-AD: fronteiras e borragens
entre drogas prescritas e proscritas. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental/Bra-
zilian Journal of Mental Health, [S. l.], v. 13, n. 34, p. 31-53, 2021. Disponível
em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/76792. Acesso em: 2
abr. 2022.

FERRER, A. L.; PALOMBINI, A. L; AZAMBUJA, M. A. Gestão Autônoma da


Medicação: um olhar sobre dez anos de produção participativa em saúde mental a
partir do Brasil. Revista Polis e Psique, v. 10, n. 2, p. 1-8, 2020.

FOUCAULT, Michel. Histoire de la folie a l’age classique. Première Preface. Pa-


ris: Gallimard, 1976

_________________. O poder psiquiátrico: curso no Collège de France (1973-


1974). São Paulo: Martins Fontes, 2006.

_________________. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In:


Ética, sexualidade, política. São Paulo: Forense Universitária, 2004, p. 264-287.
(Ditos & Escritos V).

FAVA, Giovanni A.; RAFANELLI, Chiara. Iatrogenic factors in psychopathol-


ogy. Psychotherapy and psychosomatics, v. 88, n. 3, p. 129-140, 2019.

FREITAS, F. Reforma Psiquiátrica e o Movimento Organizado de Usuários.


Por que não há Movimentos de Ex-Usuários ou de Sobreviventes da Psiquiatria
no Brasil? In: Blog MadInBrasil -
19

GAUDENZI, P.; ORTEGA, F. O estatuto da medicalização e as interpretações de


Ivan Illich e Michel Foucault como ferramentas conceituais para o estudo da des-
medicalização. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 16(40), 21-34, 2012.

GUY, A; BROWN, M; LEWIS S; HOROWITZ, M. The ‘patient voice’: patients


who experience antidepressant withdrawal symptoms are often dismissed, or mis-
diagnosed with relapse, or a new medical condition. Therapeutic Advances in
Psychopharmacology. January 2020. doi:10.1177/2045125320967183

ILLICH, I. A expropriação da saúde: nêmesis da Medicina. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 1975.

MONCRIEFF, Joanna. The myth of the chemical cure: a Critique of Psychiatric


Drug Treatment. Palgrave Macmillan, London, 2008.

ONOCKO-CAMPOS, R. S.; PASSOS, E.; PALOMBINI, A. et al. Guia da Gestão


Autônoma da Medicação – GAM. DSC/FCM/UNICAMP; AFLORE; DP/UFF;
DPP/UFRGS, 2012a. Disponível em: https://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/de-
fault/files/paganex/guia_gam_para_dowload_com_correcoes.pdf Acesso em: 15
jan 2022

ONOCKO-CAMPOS, R. S.; PASSOS, E.; PALOMBINI, A. et al. GESTÃO


AUTÔNOMA DA MEDICAÇÃO – Guia de Apoio a Moderadores.
DSC/FCM/UNICAMP; AFLORE; DP/UFF; DPP/UFRGS, 2014. Disponível em:
https://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/default/files/paganex/guia_gam_modera-
dor_-_versao_para_download_julho_2014.pdf Acesso em: 15 jan 2022

ONOCKO-CAMPOS, Rosana Teresa et al. Adaptação multicêntrica do guia para a


gestão autônoma da medicação. Interface - Comunicação, Saúde, Educação [on-
line]. 2012b, v. 16, n. 43. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1414-
32832012005000040. Acesso em: 17 jan 2022

PALOMBINI, A; DEL BARRIO, L. R. Gestão Autônoma da Medicação, do Que-


bec ao Brasil: uma aposta participativa. Saúde em Debate, v. 45, p. 203-215, 2021.
Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/sdeb/2021.v45n128/203-215/pt.
Acesso em: 19 mar 2022

REGROUPEMENT DES RESSOURCES ALTERNATIVES EN SANTÉ


MENTALE DU QUÉBEC; ASSOCIATION DES GROUPES
D’INTERVENTION EN DÉFENSE DES DROITS EN SANTÉ MENTALE DU
QUÉBEC; ERASME. GAM - Gaining Autonomy & Medication. My personal
guide. Québec: Regroupement des ressources alternatives en santé mentale du Qué-
bec, 2019.
20

SANTOS, D. V. D. A gestão autônoma da medicação: da prescrição à escuta


(Tese de doutorado). Faculdade de Ciências Médicas, Programa de Pós-graduação
em Saúde Coletiva. Universidade Estadual de Campinas: Campinas, SP, Brasil,
2014.

SANTOS, D. V. D. et al. A Gestão Autônoma da Medicação em Centros de Atenção


Psicossocial de Curitiba (PR). Saúde em Debate [online]. 2020, v. 44, spe 3 [Aces-
sado 25 Fev 2022], pp. 170-183. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0103-
11042020E315>. Epub 13 Ago 2021. ISSN 2358-2898.
https://doi.org/10.1590/0103-11042020E315.

SILVA, S. N.; LIMA, M. G.; RUAS, C. M. Uso de medicamentos nos Centros de


Atenção Psicossocial: análise das prescrições e perfil dos usuários em diferentes
modalidades do serviço. Ciência & Saúde Coletiva [online]. v. 25, n. 7, 2020.
Acesso em 18 mar 2022. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-
81232020257.23102018>. ISSN 1678-4561. https://doi.org/10.1590/1413-
81232020257.23102018.

SURJUS, L. T. L. S. Observatório Internacional das práticas de Gestão Autô-


noma da Medicação (GAM). In: Anais… VII Congresso Internacional da
ABRAMD. 2019.

Você também pode gostar