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1. Introdução
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Authors: Letícia Hummel do Amaral (UFSC) & Javier Guevara Marzal (UFSC)
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quase vinte anos mais tarde, após pesquisa que buscou entender as especificidades
do contexto local, adaptar o guia à nova realidade e, assim, testar seus efeitos sobre
os sujeitos envolvidos nos tratamentos. Tal processo vai culminar na criação do guia
GAM brasileiro (ONOCKO-CAMPOS et al, 2012) e na disseminação desta estra-
tégia nos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), do Sistema Único de
Saúde (SUS), em diversas regiões do país.
A despeito das diferenças entre a GAM canadense e brasileira, cabe desta-
car a centralidade do respeito e valorização da voz e saberes dos usuários e ex-
usuários dos serviços de saúde mental, tanto quanto aos sentidos atribuídos às suas
experiências de sofrimento e/ou loucura, quanto nas decisões sobre seus tratamen-
tos, fazendo tensionar as relações de saber-poder entre a psiquiatria e seus, assim
chamados, pacientes.
2 Talcott Parsons (1961) foi o primeiro sociólogo a empregar o termo, porém sua abordagem era
funcionalista e focava no papel social do doente e do médico, perspectiva bastante distinta dos traba-
lhos de perspectiva crítica que vieram alguns anos depois, como aqueles de M. Foucault, I. Illich, e es-
pecialmente entre autores da Antipsiquiatria clássica: D. Rosenham; R. D. Laing, D. Cooper, T. S.
Szasz, E. Goffman, além de F. Basaglia e E. Venturini.
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Nesse debate, destaca-se Illich (1975) que lança mão da noção de iatrogê-
nese – iatros (médico) e genesis (origem) – para abordar os malefícios provocados
pela medicina ocidental institucionalizada. A iatrogênese clínica refere-se às doen-
ças causadas pelos próprios cuidados de saúde, como os efeitos colaterais dos me-
dicamentos, as intervenções cirúrgicas desnecessárias e a produção de traumas psi-
cológicos. A iatrogênese social relaciona-se aos efeitos sociais não desejados dos
impactos da medicina, em especial, à crescente dependência da população em rela-
ção às prescrições médicas e ao controle social pelo diagnóstico, resultante da me-
dicalização de categorias sociais. E a iatrogênese estrutural/ cultural por meio da
qual a medicina subsomi do sofrimento seu significado íntimo e pessoal, transfor-
mando-o em uma questão técnica. Neste caso, o problema resulta da destruição do
potencial cultural das pessoas para lidarem de forma autônoma com a doença, com
a dor ou com a morte. (GAUDENZI; ORTEGA, 2012).
No Brasil contemporâneo, Amarante & Freitas (2017) e Caponi (2019)
apontam para os resultados iatrogênicos das práticas psiquiátricas ao longo da his-
tória, muitas das quais são hoje consideradas métodos de tortura e violação de di-
reitos humanos (a exemplo da camisa de força, lobotomia e eletrochoque). Enfati-
zam-se, aqui, as críticas que insurgem dos usuários dos serviços de saúde mental
em relação ao sofrimento causado pelo uso de psicofármacos, cujas prescrições têm
aumentado em larga escala ano após ano, inclusive em território brasileiro3, desde
sua descoberta acidental na década de 1950.
Assim, a iatrogênese psiquiátrica também se manifesta como complica-
ções dos tratamentos medicamentosos. São os chamados efeitos colaterais,
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Dados recentes (2020), obtidos pela agência de notícias R7 junto à Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa), apontam aumento considerável no consumo de substâncias psicoestimulantes, como
o metilfenidato (Ritalina/Concerta) e a lisdexanfetamina (Venvanse). Em relação à primeira, o con-
sumo de caixas por ano saltou de 1.343.545 em 2011 para 2.240.873 em 2019, enquanto a segunda,
que é mais recente no mercado, passou de 11.065 caixas em 2011 para 616.325 em 2019. É digno de
nota que essas sejam as medicações mais receitadas para pré-escolares e escolares diagnosticados com
transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Fonte: https://noticias.r7.com/saude/venda-de-reme-
dios-derivados-de-anfetamina-bate-recorde-no-brasil-24102020
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usualmente não mencionados aos pacientes na prática clínica, tais como: discinesia
tardia (espasmos involuntários em partes do rosto) e tremores, problemas cardíacos,
metabólicos (ganho/perda significativo de peso) e na vida sexual (anorgasmia e di-
minuição da libido), além da intoxicação direta4, dos sintomas debilitantes de abs-
tinência e dos problemas resultantes de interação medicamentosa (muitos psiquia-
tras são adeptos à polifarmácia). Argumenta-se, ainda, sobre distúrbios afetivos e
de comportamento associados ao consumo regular de psicotrópicos.
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A síndrome serotoninérgica (SS) foi descrita na década de 1970 em pacientes que ingeriam altas do-
ses de triptofano e, posteriormente, também reconhecida naqueles fazendo uso combinado de antide-
pressivos tricíclicos e inibidores da MAO. Atualmente, é comum em pacientes tomando antidepressi-
vos da classe dos inibidores seletivos de recaptação da serotonina (ISRS), psicotrópico receitado para
tratar depressão, transtorno do pânico e transtorno obsessivo-compulsivo, e também em derivados usa-
dos para tratamento da enxaqueca (sumatriptano). Fonte: http://www.polbr.med.br/ano02/ar-
tigo1002.php
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da medicalização dos autores Illich e Foucault como ferramenta-chave para tais es-
tudos:
Quanto a uma linguagem comum, não existe; não existe mais tal
coisa; a constituição da loucura como doença mental, no final do sé-
culo XVIII, evidencia um diálogo rompido, põe a separação como já
afetada e lança ao esquecimento todas aquelas palavras gaguejantes,
imperfeitas e sem sintaxe fixa em que a troca entre loucura e razão
foi feita. A linguagem da psiquiatria, que é o monólogo da razão
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A exemplo de Joanna Montcrieff na Inglaterra, Allen Frances nos Estados Unidos, além de Paulo Ama-
rante, Octavio Serpa Jr, Rossano Cabral Lima e Deivisson Santos no Brasil.
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Open Dialogue, Hearing Voices Movement, GAM, as well as some peer-to-peer supporting groups for
psychiatric drugs withdrawal, such as SurvivingAntidepressants/ The Inner Compass Initiative
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Le Regroupement des ressources alternatives en santé mentale du Québec (RRASMQ). Outras insti-
tuições envolvidas na GAM canadense são: - Association des groupes d’intervention en défense des
droits en santé mentale du Québec (AGIDD-SMQ) e a Équipe de recherche et d’action en santé men-
tale et culture (ÉRASME) (FRQSC). Disponível em: http://www.rrasmq.com/ - http://www.agidd.org/
- https://erasme.ca/ . A GAM obteve financiamento do Ministério da Saúde e da Assistência Social do
Canadá.
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O primeiro guia pessoal GAM9 foi criado em 2001 a partir de longas dis-
cussões entre usuários e técnicos, e se voltou àqueles diagnosticados com transtor-
nos mentais graves. É um material notadamente autorreflexivo e está dividido em
sete passos: 1) “Awakening”, que aborda os direitos dos usuários de serviços de
saúde mental, sobretudo no que diz respeito às medicações; 2) “Observing and Re-
flecting”, quando o usuário é convidado a fazer uma análise da própria vida, sua
relação com as medicações, buscando indicar mudanças na direção de uma melhor
qualidade de vida e bem-estar; 3) “Find the right people, information and tools”, em
que o sujeito é orientado a encontrar informações confiáveis sobre as medicações,
definir uma rede de apoio e as estratégias para lidar com momentos difíceis; 4) “De-
ciding”, quando o sujeito é colocado de frente à decisão de continuar, reduzir ou
interromper tal ou qual medicação de que faz uso; 5) “Planning and preparing for
change”, que atenta para a importância de se estabelecer um plano de ação e aborda
a negociação com o psiquiatra/ médico prescritor, informando ao usuário o processo
de retirada e seus usuais efeitos no corpo e nas emoções de forma que, como pessoa
de direitos, ele saiba antes dos possíveis obstáculos e desafios na jornada e conheça
estratégias alternativas para lidar com o sofrimento; 6) “A method to reduce or stop
medication and lessen withdrawal reactions”, momento em que se avisa sobre a
grande dificuldade que pode ser parar uma medicação psiquiátrica e se recomenda,
caso seja o desejo do sujeito, um método de redução gradual e progressivo que torna
o processo mais tolerável; 7) “Managing withdrawal reactions and emotions”,
quando se apontam as principais reações sentidas no processo de retirada de qual-
quer classe de psicofármacos, a saber: ansiedade, nervosismo, agitação, problemas
no sono, necessidade de descansar e dormir mais, irritabilidade e fadiga. Em se-
guida, apresenta-se uma longa lista de reações físicas e psicológicas conhecidas,
legitimadas pela experiência dos usuários, para cada classe específica de psicotró-
pico - antidepressivos, antipsicóticos, tranquilizantes, estimulantes, estabilizadores
de humor. Por fim, são fornecidas dicas de como manejar sentimentos e sensações
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Em francês, sob o título Gestion autonome de la médication de l’âme: mon guide personnel (2001)
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Na Inglaterra (Guy et al, 2020), pesquisas recentes apontam em torno de 40 a 50% no caso de anti-
depressivos, por exemplo. Porém, em geral, na prática clínica, afirma-se que esses efeitos de retirada
são de leves a moderados, auto-limitados e de curta duração.
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honesta/crível e forneçam aos seus pacientes informações corretas sobre a ação dos
psicotrópicos no cérebro. Em vez de sustentar que eles sejam necessários para cor-
rigir um suposto desequilíbrio cerebral (déficit de serotonina, por exemplo) subja-
cente às doenças, defende-se que a classe médica reconheça o seu real funciona-
mento, isto é, a de levar os pacientes a um estado cerebral alterado induzido pelas
medicações as quais, muitas vezes, têm o poder de diminuir certos sintomas e trazer-
lhes algum benefício, já que mascaram emoções e mudam comportamentos indese-
jáveis, mas que nunca irão curar tal ou qual patologia. Apenas a partir dessa mu-
dança paradigmática seria possível uma prática mais honesta e ética com os pacien-
tes da psiquiatria que, dessa forma, sentir-se-iam verdadeiramente livres para
escolher o tratamento oferecido e consentir, ou não, com ele.
Já no Brasil, a GAM emerge de uma parceria internacional entre pesquisa-
dores da UNICAMP, UFRJ, UFF, UFRGS e o projeto GAM canadense, vinculado
à Universidade de Montreal. Em consonância com os preceitos da Reforma Psiqui-
átrica brasileira11 - que vai culminar no estabelecimento de uma nova política de
saúde mental com base no modelo de atenção psicossocial de base comunitária em
2001 -, a implementação da GAM envolveu um projeto robusto de pesquisa-ação
por meio do qual, assim como no Canadá, reuniram-se usuários, pesquisadores e
trabalhadores da saúde mental de alguns Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)
selecionados12, visando entender as especificidades locais e adaptar a estratégia ao
contexto brasileiro. A partir dos resultados dessa pesquisa multicêntrica inicial
(ONOCKO-CAMPOS et al, 2012b), realizada ao longo de 2009 e 2010, começou a
ser escrito o GGAM-BR13: Guia de Cuidado Compartilhado da Medicação Psiqui-
átrica, finalizado em 2013. Há diferenças entre a iniciativa canadense e a nacional
que merecem destaque.
nex/guia_gam_para_dowload_com_correcoes.pdf
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14 Existe relato de usuário, publicados no site MadinBrasil que poderia hoje desafiar essa assertiva.
https://madinbrasil.org/2020/10/vozes-desmedicalizantes-amor-odio-e-respeito-pelos-psicofarmacos/
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Sabe-se que, no Brasil, o Conselho Federal de Medicina tem, inclusive, apoiado o retorno ao mo-
delo hospitalocêntrico, o que representa um grande retrocesso na política de saúde mental brasileira e a
ameaça da volta de práticas opressivas e de violação dos direitos humanos.
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Há também, no Brasil, o Guia de Apoio ao Moderador (2014) que visa auxiliar os profissionais de
saúde atuantes na RAPS que queiram iniciar grupos GAM em seus locais de trabalho. Há, inclusive,
uma formalidade na contratação do serviço. Disponível em: https://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/de-
fault/files/paganex/guia_gam_moderador_-_versao_para_download_julho_2014.pdf
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Disponível em: https://observatoriogam.unifesp.br
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Conclusão
Reitera-se que a GAM tem origem no movimento dos sobreviventes da psiquiatria,
formado por pacientes e ex-pacientes psiquiátricos que se sentiram, em alguma me-
dida, lesados pelos tratamentos que receberam. No Brasil, de outro modo, foi uma
iniciativa de pesquisadores e trabalhadores da saúde mental que trataram, através
dos grupos de intervenção, de considerar a experiência e anseios dos usuários que
integrariam os grupos, no desenvolvimento e adaptação da estratégia.
Há uma importante questão a ser colocada aqui. No Brasil, existe uma plu-
ralidade de movimentos organizados de usuários de serviços de saúde mental. Con-
tudo, por que não existe, tal como nos Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, um mo-
vimento de ex-usuários/ sobreviventes da psiquiatria? Conforme Freitas (2021):
Referências
AMARANTE, P.; FREITAS, F. Medicalização em Psiquiatria. Coleção Temas
em Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.