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Cindy Sherman – retardo infinito

Cezar Bartholomeu
Cindy Sherman lida com problema-chave da fotografia: a suplementação da pre-
sença com produção de sentido. No entanto, a noção de presença é mantida
como fundo para as figuras de sua obra, numa pose de morte do autor, o que
permite rever as interpretações psicanalíticas produzidas sobre essa obra.
Fotografia, teoria, arte contemporânea, crítica.

A maior parte da obra de Cindy Sherman des dadas pela cultura da qual participa
consiste, na verdade, de um mesmo traba- e não como impulso interno. Assim,
lho que se desdobra em múltiplos resulta- suas fotografias revertem os termos de
dos. A obra não é uma ou todas as fotos, arte e autobiografia; usam a arte não
mas a máquina que as produz. O jogo que para revelar o verdadeiro ser do artis-
se arma entre conceito, série e fotos é ne- ta, mas para mostrar que o ser é uma
cessário para sua existência e demonstra, em construção imaginária. Não há verda-
primeiro lugar, que a obra de um artista pode deira Cindy Sherman nessas fotografi-
ser uma economia, o que possibilitaria as; há apenas os disfarces que assume.
revitalizar o conceito de estilo para a arte E ela não cria esses disfarces; escolhe-
contemporânea, já que esse jogo, a cada vez, os, apenas, do mesmo modo que to-
dispõe das mesmas regras para ser jogado. dos fazemos. A pose da autoria é exi-
mida não só pelo modo mecânico de
É amplamente divulgado o fato de que a fabricar as imagens, mas também pelo
economia que caracteriza sua obra gira em apagamento de qualquer persona es-
torno do autorretrato. A descrição de seu sencial ou contínua, ou mesmo um ros-
trabalho normalmente parte dessa caracte- to reconhecível nas cenas.1
rística sutil e surpreendente das fotos que, no
entanto, produz e sustenta suas fotografias: O fantasma da falta da assinatura humana na
imagem acompanha a fotografia desde sua
As fotografias de Sherman são todas invenção. Tal ideia se fixa particularmente a
autorretratos nos quais ela aparece partir do livro de Fox Talbot (Lápis da natu-
disfarçada, encenando um drama cuja reza), no qual se forma o mito da ‘gênese
particularidade não é dada. A ambi- automática’ da fotografia, justificada pela au-
guidade da narrativa acompanha a sência da artesania e pelo papel do sol na
ambiguidade do ser, que é tanto ator produção da imagem: já que não é produzi-
na narrativa quanto seu criador. Pois, da pela mão humana, a foto parece de fato
se Sherman é literalmente autocriada criação milagrosa. Esse fantasma do auto-
Sem título # 412
(clowns), 2004 nesses trabalhos, ela é criada na ima- matismo do dispositivo, que persegue a fo-
fotografia colorida gem de estereótipos femininos conhe- tografia desde sua invenção, não só justifica
130,2 x 104,6cm cidos; seu ser é, portanto, compreen- as imagens a partir da ciência que ajuda a
Fonte: Metro pictures - http://
www.metropicturesgallery.com/ dido como contingente às possibilida- estruturá-las, mas produz inveja histórica do

ARTIGOS • CEZAR BARTHOLOMEU 53


fotógrafo em relação ao artista: a fotografia da obra de Sherman: a generalidade da série
é verdadeira ou, no mínimo, plausível por evidencia os traços comuns aos retratos, isto
causa de sua justificação científica. No en- é, os diferentes modos da caracterização dos
tanto, não seria criação tanto quanto uma personagens e a semelhança da modelo que
obra plástica o é, pois a imagem da fotografia indica tratar-se de autorretratos.
é retirada do mundo como interpretação e
não a ele acrescentada num ato de criação. As séries de Cindy Sherman são pequenos
arquivos produzidos pela artista. As fotos
Não é estranho que Crimp localize a foto- se constituem a partir de indícios externos
grafia de Sherman parcialmente em naturali- ao indivíduo, e esse aspecto, do disfarce, do
dade na qual a ausência da artista se torna vestuário e da pose, nas séries, evidencia ser
positiva, indicando a inversão dessa inveja parte de um código maior. A matéria-prima
histórica que ocorre a partir do momento das obras de Sherman é código cultural iden-
em que arte e fotografia começam a partici- tificado como sintaxe e tornado estética;
par do mesmo circuito, e o valor que se san- torna-se estilo, que pode ser extraído ou
ciona é o da imanência. O trabalho de inventado, e que pressupõe um ponto de
Sherman legitima seu status de artista a par-
vista global capaz de manipular esse código;
tir desse uso diferenciado que tira partido
a obra de Sherman, nesse sentido, retoma e
da frieza da câmera em vez de pranteá-la.
ao mesmo tempo revisa o projeto de August
Sua estratégia de trabalho, no entanto, está
Sander como retratista universal,
longe de qualquer naturalidade, e é neces-
sário examinar o funcionamento de sua obra. repropondo fotografias concebidas como
fragmentos a partir de um olhar classificatório.
A descrição de Crimp é o que se evidencia
à primeira vista. O retrato, caracterizado pelo Sua construção, calcada na pose e nos obje-
disfarce, opõe-se ao conceito tradicional de tos de cena que constituem máscara, na ver-
autorretrato como a multiplicidade se opõe dade, alimenta uma série de leituras sobre a
à unidade. Nunca se vê só uma fotografia, obra, que a remete menos ao problema de
mas um grupo: as fotografias de Cindy seu tema (a história da arte, o cinema, as
Sherman, desde o início de sua obra, são fábulas infantis) e, em geral, mais aos que,
expostas em conjunto, como série de retra- como dispositivo, ela tematiza: as questões
tos unidos pela temática. Essas fotos serão de uma cultura pós-moderna (o feminismo,
comercializadas individualmente, mas então a fragmentação, o simulacro). A obra de
se multiplicam em tiragens. Se o corte sus- Sherman, de um modo ou de outro, remete
tenta a fotografia, configurando-a como par- ao problema contemporâneo da cultura; a
ticularidade de tempo e espaço, sua multi- questão estaria em não fazer uso dos retra-
plicação impede a visão dessa particularida- tos apenas como suporte ou ilustração de
de; a imagem ingressa num rol que se sus- uma discussão; a deliberação da operação
tenta conceitualmente. Na série permite-se que os produz deve dissuadir desse ponto
ao espectador identificar-se com cada obra de vista, do mesmo modo que impede a
e, ao mesmo tempo, sabota-se essa parida- identificação com os retratos e mantém
de analógica com o objeto, retirando a for- conosco distanciamento que parece refor-
ça do conceito de ‘ser’ (da obra e de um çar o da artista. A questão do ser, questão
suposto retratado), situando os personagens de fundo em sua obra, jamais é tocada em
na generalidade e evidenciando o projeto sua particularidade.

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A artista produz retratos explorando em Os retratos formam grade homogênea, in-
primeiro lugar a convenção da interioridade dicando que cada um deles tem igual valor,
do autorretrato, que expõe como falsa. O são todos equidistantes do centro, que é o
ser não transparece na representação (ape- verdadeiro ser de Cindy Sherman. Deseja-
nas a simulação de sua aparência), e, em se- se encontrar o ser; deseja-se que a repre-
gundo lugar, as representações não são trans- sentação o revele; o fato de o trabalho de
parentes; possuem códigos que são mani- Sherman constituir-se serialmente indica que
pulados, e, assim, entre contexto e ser, per- o objetivo não é atingido: cada imagem, na
cebe-se vazamento em que o código pode verdade, declara a ausência do ser; reveste-
ser aplicado ao espectador do mesmo modo se da característica do luto. A representa-
que à imagem. Na obra de Sherman, desde ção fotográfica possui relações celebradas
os stills de filmes sem título até suas obras com temporalidade mortuária. A questão,
mais recentes, em nenhum momento a fo- porém, vai além disso: é o próprio investi-
tografia é capaz de propor um autorretrato mento falho na aparência que é a morte.
definitivo. A própria multiplicação de ima- Revela-se, assim, relação profunda entre
gens o prova: a ausência da autora, a incapa- Sherman e a obra de Warhol. O ser é esva-
cidade de retratá-la é condição para a exis- ziado em prol de seu ‘estar’, congelado para
tência das múltiplas representações e faz a posteridade: “A profundidade do auto-
parte da economia desses retratos. matismo da fotografia não deve ser lida só

Sem título (socialites),


2007/2008
fotografia colorida
158,9 x 179,7cm
Fonte: Metro pictures - http://
www.metropicturesgallery.com/

ARTIGOS • CEZAR BARTHOLOMEU 55


em sua produção mecânica de imagem da de Barthes, declara a incompetência da re-
realidade, mas em sua mecânica derrota de presentação da fotografia diante do ser: ela
nossa presença nessa realidade.”2 A foto, falha, ao materializar apenas aquilo que é
assim, esconde a mortalidade da autora au- material. O invisível do ser que está como
sente, que pretende viver para sempre como potencial na aparição da própria coisa não é
fato cultural. captado. Ora, essa falha da fotografia é ób-
via no campo do retrato desde Nadar, para
O todo dos autorretratos de Cindy Sherman quem a aparência do retratado deve ser
não é uma grande assemblage da qual se suplementada por densidade que, examina-
produza, na totalidade, um eu: cada um dos da, finalmente conduz ao tema do ser: seja
retratos admite mal os demais não porque na pose, no olhar, na roupa ou no raro
se reportem ao mesmo eu, mas porque, fi- complemento de cena, algo faz insistir na
nalmente, parecem não se reportar a eu al- densidade da aparência. Suplementar com
gum, mostrando-se genéricos: configuram- sentido a aparência do ser é a estratégia que
se no máximo como personagens. Na ver- confirma a inteligência de Nadar como fo-
dade, o espectador deseja que houvesse essa tógrafo e cronista de seu tempo, estratégia
narrativa (prometida nos títulos) que fizes- que revela o problema constituído pela obra
se as imagens pertencerem – finalmente de Sherman.
pertencerem, senão ao ser, ao real.
O retrato essencial de Sherman não sobre-
No centro da obra de Sherman está o viveria ao espectador do mesmo modo que
autorretrato essencial desejado, para o qual o retrato da mãe de Barthes, justamente
todos os demais são hipóteses que nunca porque o ser não pode ser representado
se confirmam. É interessante pensar que exteriormente: é necessário suplementar sua
toda a operação de interpretação de sua aparência. A semelhança entre esses dois
obra parte da análise de um movimento que retratos doados à invisibilidade, no entanto,
não está necessariamente na imagem, mas parece terminar aí: foram subtraídos por ra-
na incompletude da imagem, que aponta, zões muito diversas.
negativamente, da morte de seu autor para
a multiplicação desses personagens cuja ano- O problema do retrato da mãe, no livro de
nimidade persiste ecoando sua incomple- Barthes, é que a imagem da mãe deve, ela
tude. Tais retratos só pertencem a esse mesma, reproduzir como punctum esse de-
momento de analogia com o espectador e sejo potente do filho – reproduzir o punctum
demandam ser preenchidos com ficções que para o outro (afetar ao outro como a nós) é
animem tal identidade; mas a verdade é que, a definição do problema da sobrevivência
nesse rebaixamento do ser pela identidade, da imagem. Essa foto, no entanto, não tem
rapidamente as diversas identidades se dis- propriamente solução, uma vez que só o fi-
sipam para ser substituídas por outra e ou- lho tem tal relação com a imagem. Por ou-
tra, e outra, infinitamente. tro lado, se for refeita, não será mais a ima-
gem da mãe – perderá sua historicidade que
Nenhuma imagem temporária pode ocupar inclui a conjuntura que finalmente produz
o lugar dessa fotografia “primordial” de modo esse punctum. Se for reeditada (no acrésci-
efetivo, e, de algum modo, a falta dessa foto mo posterior de uma legenda, por exem-
parece espelhar a falta da fotografia da mãe plo), perderá seu caráter de fotografia
de Barthes em seu livro A câmara clara. O canônica e não caberá mais na teoria de fo-
retrato faltante de Sherman, como o da mãe tografia de Barthes. A única possibilidade de

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manter o desejo, assim, é não mostrar a foto, particularizá-lo como tal, percebendo a dife-
preservando seu potencial afetivo. rença do ser. Para amar, é necessário dife-
renciar, saber que o outro difere segundo a
No caso de Sherman, o retrato não sobre- manifestação de uma interioridade que ultra-
vive à própria autora. Não se trata de uma passa a codificação. Para o narcisista, o outro
questão de afeto, mas de ciência da impos- não existe: há eu mesmo numa performance
sibilidade da transmissão do afeto. A artista com o outro, travestido de outro. O outro,
é ciente do descompasso entre essência e no entanto, não existe como tal, existe ape-
aparência que caracteriza o aparato fotográ- nas como generalidade que redefine meus li-
fico, mas persiste lidando com a tentativa mites, burlando-os em uma projeção. A pose
frustrada de produzir uma imagem materia- da morte do autor, assim, além de questão
lista do ser, de pura aparência. O desejo de artística, implica pulsão dirigida a si mesmo,
ser é constituído como problema a ser des- na grandiosa insatisfação de seu reconheci-
naturalizado na obra de Sherman (pois de mento – do reconhecimento de seu corpo
antemão sabemos que nenhuma foto satis- enquanto ser. Há na obra de Sherman, as-
faria). No entanto, o desejo fundamenta o sim, não apenas a ciência da incapacidade
processo, seja a partir da relação com o es- de representar o ser, mas tirania determi-
pectador ou na sofisticada obsessão narci- nando que a particularidade (do espectador)
sista: a incapacidade de expor-se e a decisão deve submeter-se à generalidade do outro,
de expor-se como o outro. multiplicada em inflação narcisista.
Desejar normalmente significa desejar o ou- A diferença, assim, entre o problema de
tro. Dizer que o outro é outro implica Nadar e de Sherman, é que Sherman opera

Sem título, 1985


184,2 x 125cm cada

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na ciência da incapacidade de a fotografia situariam na naturalidade na qual o indiví-
ser, buscando a pura suplementação. O su- duo precede o grupo. Sua obra faz ver que
plemento, entretanto, necessita da represen- o grupo prescinde do indivíduo, e, ao mes-
tação para se mostrar, do mesmo modo que mo tempo, faz com que o espectador se
a identidade necessita de um ser. Resulta, veja todo o tempo como indivíduo (na pari-
assim, que nos retratos de Sherman a foto- dade da analogia entre espectador e cada
grafia parece criar o ser, sem que o ser crie, um dos retratos).
antes, a fotografia; tal ilusão interessa ao cam-
po da arte, uma vez que este, na contem- Sua obra, assim, opera uma negatividade em
poraneidade, se pauta pela neutralidade es- relação ao ser enquanto supostamente pro-
tética, isto é, em geral dispensa a expressão duz nele espaçamento que dá lugar ao sen-
como dado. tido. Esse ser (do autor) se ausenta, o que
é mito criado pelo próprio trabalho, que
O que a obra de Sherman faz, na verdade, é deseja se inscrever em pose de autoria es-
simplesmente inverter a ordem presumida- pecífica – a pose da morte do autor. Morte
mente natural do aparecimento, em virada do autor, portanto, como figura de estilo de
sabiamente preconizada pela obra de neutralidade estética que fabrica a aparição
Warhol: primeiro vemos a identidade, como de obra visual cujo tema é o autorretrato.
figura que rapidamente se transforma em
problema de identidade (social), definida pelo O conceito de morte do autor não é de modo
sentido, e, em seguida, o ser, cujas formação algum novidade: é anunciado pelo grupo de
e constatação dependem da qualificação da Yale e mesmo pela filosofia de Heidegger, mas
identidade (pelo espectador que lhe injeta sobretudo por Roland Barthes. Está relacio-
ficção ou memória), que passa a emular a nado aos argumentos de Barthes e de Derrida
questão do ser que, no entanto, permanece relativos a determinado modo de produção
fundo para a figura. Cada um dos retratos literária que tem início no século 19, mas tam-
vibra entre figura e fundo, entre essa identi- bém a uma característica que perpassará o
dade parcial e ser emulado que parasita a conceito de pós-modernidade: a de negação
imaginação do espectador a partir da apre- de uma ontoteologia fundada no ser e na
ensão do personagem que transita entre presença que remete todo significado à
imanente e transcendente, ou seja, entre a transcendência.
idealidade que faz interpretar e a particulari-
O autor, quando se acredita nele, é
dade que atrela o retrato ao personagem.
sempre concebido como o passado de
A obra de Sherman, entretanto, não produz seu próprio livro: livro e autor situam-
séries de retratos, invertendo tal relação se automaticamente em linha única di-
entre ser e identidade como questão de for- vida entre antes e depois. Pensa-se que
mação do ser (pensando esteticamente este o autor alimenta o livro, o que quer
par formação/dissolução do ser na cultura), dizer que ele existe antes, pensa, sofre,
isto é, como problema de uma sociedade vive para o livro e está na relação de
que modela o sujeito a partir de seus códi- antecedência com seu trabalho equi-
gos culturais (o que, novamente, apontaria a valente à de um pai com seu filho. Em
obra de Warhol). Ao contrário, a obra de completo contraste, o moderno scrip-
Sherman pensa o indivíduo ainda mais prag- tor nasce simultaneamente com o tex-
maticamente que Warhol e tira partido das to, não está de qualquer modo equipa-
expectativas antecipadas sobre o ser, que o do com um ser que precede ou exce-

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de a escrita, não é sujeito tendo o livro O ponto de vista cultural versa sobre o sen-
como predicado; não há outro tempo tido, mantendo o problema do ser como
senão aquele da enunciação, e cada fundo. Trabalha admitindo a derrota do pon-
texto é escrito no aqui e agora.3 to de vista global e assim ensejando todas as
interpretações ligadas à cultura e a seu esta-
O paralelo entre a explicação de Crimp e o do pós-moderno. O fotograma remete à
ponto de vista da morte do autor parece evi- totalidade do filme; sabe-se que há uma to-
dente: recusar a presença do autor é ter ciên- talidade, embora ela seja inalcançável, e o
cia da obra como representação. Visa observá- jogo é suprir esse fragmento, a imagem, com
la modernamente, na autonomia, em sua eco- comentários que são, na verdade, legendas
nomia própria e por seus próprio méritos. As das quais os retratos são ilustrações. A con-
imagens de Sherman, segundo sua constru- sideração entre ser e sentido é a de que o
ção, podem apontar para determinado pe- sujeito é suporte para uma escrita infinita.
ríodo histórico, mas sempre se situam na Esse ponto de vista indica que uma análise
atemporalidade – no ponto de vista, poste- da obra de Sherman, de um modo ou de
rior ao modernismo, em que todos os tem- outro, se deve localizar entre a arte, a psica-
pos se oferecem ao olhar (o modernismo nálise e a antropologia, como locais da
como olhar global das formas no tempo); desnaturalização do ser, mas, principalmen-
são sempre autônomas em sua construção. te, da desnaturalização da relação entre ser
Essa pretendida autonomia, no entanto, es- e sentido.
barra na operacionalização posta em ação
pelas obras de Sherman. Elas contam com Não é o caso de assumir posição de com-
o desejo, que as faz funcionarem e que, pos- pleta aderência a uma teoria; é necessário,
sivelmente, fundamenta o cálculo que pro- na ciência da aparição, no entanto, compreen-
duz as obras: desejo de morte do autor? der o fenômeno da obra. As obras de Sherman
parecem oferecer-se aos grandes temas
No caso de Sherman, o que fundamenta o culturalistas: feminismo, simulacro, cinema,
interesse pelo trabalho é a noção de ser, estudos nos quais a obra aparentemente
que é velada para dar lugar ao aspecto irôni- assume um papel passivo, sua construção
co da obra. O desejo de ser do espectador abandonada em prol de seu efeito; sem o
encontra lugar no desejo de morte do autor problema da presença do ser, rebaixa-se essa
– articulação que deve ser examinada, mas obra ao conceito material de identidade, for-
que não se anuncia como espaçamento na mado, como diria Derrida, na iterabilidade,
obra, como lugar em que esse desejo do ser enquanto ela continua a fazer uso de um
encontraria morada e se sublimaria, mas conceito naturalista de ser como fundo.
como derrota prevista do desejo, que man-
tém obra, como autor, em semivida que Por outro lado, o segundo grande viés críti-
apenas retarda sua morte. Ou melhor, a co da obra de Sherman faz uso da psicanáli-
sublimação que constitui a obra de Sherman se lacaniana, na tentativa mais profunda de
evidencia depender do desejo do especta- observar a operação que ocorre em suas
dor para retardar o funcionamento da pulsão fotos. A psicanálise de fato parece fornecer
de morte da autora. ao trabalho de Sherman um lugar de funcio-
namento crítico bastante interessante, mais
A obra de Sherman é normalmente criticada próximo dos problemas efetivos da obra e
a partir de dois pontos de vista: o estudo da de sua construção. É como o compreendem
cultura e as teorias da psicanálise. Rosalind Krauss e Hal Foster, por exemplo,

ARTIGOS • CEZAR BARTHOLOMEU 59


para quem a obra de Sherman lida primaria- Do ponto de vista de Foster, na obra de
mente com o olhar e com a sexualidade. Sherman o corpo não é recipiente do ser
De acordo com Krauss, a obra de Sherman tanto quanto da materialização deliberada
se afirma no voyeurismo, ou seja, a relação da visão e desse conflito, que buscaria ma-
entre um espectador que consome as ima- terializar conscientemente. Nesse sentido, a
gens e, em contrapartida, uma autora que opção pelo uso da fotografia estaria na na-
substitui sua imagem por personagens, o que tureza sexual do dispositivo – no modo pelo
caracterizaria como fetiche (por conta da qual a velatura da imagem é sedução que
autoencenação). As posições de Krauss e incita e retarda a penetração.
Foster fazem apelo ao conceito da pulsão
escópica, mas, do mesmo modo, à questão Tanto Krauss quanto Foster fazem leitura
da sexualidade; em ambos os casos chega- bastante meticulosa da obra de Sherman,
se ao conceito de polarização sexual, seja observando obras específicas e discorrendo
no conceito de falo e castração, seja no con- cuidadosamente sobre a teoria lacaniana (so-
ceito lacaniano de visão; a fotografia pode bretudo Foster, que no final de seu texto
ser vista no jogo de tal polarização. confronta Derrida a Lacan). Seu ponto de
vista, no entanto, parece ocasionalmente
Para Foster a obra de Sherman é conclusiva
em relação ao conceito de pulsão escópica. desejar ver a teoria empregada, mais do que
Sua obra confirmaria uma leitura lacaniana a prática da artista. Antes ilustração da pulsão
não apenas no efeito de ausência de um ser escópica, a obra de Sherman é operaciona-
unificado, que se dissolve nos diversos de- lização de tal pulsão, fundada no desejo de
sejos e pulsões que o rasgam, mas sobretu- morte do autor como pose de morte do
do como representação da projeção em tela autor, e é nestes termos da psicanálise, os
que se produz entre olhar e visão (o que de uma projeção narcisista que busca subli-
caracteriza o modelo escópico de Lacan, mação, que devemos vê-la.
bastante calcado na lição de Merleau-Ponty).
Para Lacan, a pulsão de morte é o movi-
Seus retratos desmantelariam seu tema (o
mento básico do ser; os desejos remetem
ser) enquanto rasgam o véu da representa-
inevitavelmente à pulsão, isto é, a uma eco-
ção (do trauma) contra a visão, isto é, con-
nomia na qual o objeto funciona como
tra o olhar como instituição. A obra de atrator, motivando percurso inconsciente por
Sherman, assim, constituiria em sua última parte do sujeito. O sujeito, na verdade, não
fase uma escotomização como resistência ou se caracteriza pelo objeto de seu desejo, mas
sobrevivência (da mulher) ao confronto pelo percurso, isto é, o modo pelo qual pro-
entre olhar e visão (que se dá nessa ‘tela’ de cura insistentemente preencher seu vazio.
representações em conflito, que nada mais No entanto, para Lacan, todas as pulsões se
é que o próprio ser). referem à pulsão de morte, isto é, são pulsão
e produzem repetição mecânica, desejam a
Nesse esquema de coisas o impulso extinção do estímulo que as produz e bus-
para erodir o tema e rasgar a tela le- cam alcançar impossível estado de satisfa-
vou Sherman, de seu trabalho inicial, ção, que equivale à satisfação da morte (a
preso pela visão, ao longo de sua obra mesma da não vida uterina).
intermediária, invadida pela visão, a seu
trabalho recente, obliterado pela visão, A pulsão de morte, nos autorretratos, é ca-
apenas para retornar como partes racterística de projeção narcisista que busca
disjuntadas de bonecas.4 impor sua ordem simbólica ao mundo; esse

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conceito está na raiz da obra de Sherman. 3 Barthes, 1977: 145; grifos do original.
O início do narcisismo está no conceito 4 Foster, 2004: 149.
lacaniano de estádio do espelho e no modo
erótico pelo qual o corpo se unifica na iden-
tificação do outro – identificação que ocor-
Bibliografia
re a partir do olhar. A projeção narcísica, na
fase adulta, no entanto, falha em conceber o BARTHES, Roland. Image – music – text. New York: Hill
outro como outro e, ao contrário, projeta and Wang, 1977.
sua imagem fragmentada como o outro. A BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova
articulação entre espectador e autora, assim, Fronteira, 1984.
se explicaria a partir da projeção que ofere- CAVELL, Stanley. The world viewed. Cambridge: Harvard
ce ao olhar a identidade em vez do corpo University Press, 1979.
(já que o corpo não se unificou e, se não
CRIMP, Douglas. On the museum’s ruins. Cambridge: MIT
está morto, está sempre morrendo). Press, 1983.
A identidade em Sherman, assim, não é a DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Campinas: Papirus,
maturação social do ser, mas seu esgarça- 1991.
mento; não consiste de relações em movi- ______________ . Gramatologia. São Paulo: Perspectiva,
mento, mas de relações materialmente (ou 1999.
deveríamos dizer formalmente) cristalizadas. FOSTER, Hal. Prosthetic Gods. Cambridge: MIT Press, 2004.
Na verdade, o que as fotos de Sherman ofe- _______________. The return of the real. Cambridge: MIT
recem é uma ordem simbólica definida a Press, 1996.
partir da identidade, que por sua vez se de-
KRAUSS, Rosalind. Bachelors. Cambridge: MIT Press, 1999.
fine como regra do ser. Seus retratos de-
mandam a identificação imaginativa por par- LACAN, Jacques. O seminário livro XI. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985.
te do espectador que retarda a morte da
autora enquanto justificam sua projeção SEEL, Martin. Aesthetics of appearing. Stanford: Stanford
Unversity Press, 2005.
narcísica negando o ser do espectador, ou
seja, negando sua particularidade. Na SOULAGES, François (org.). Photographie et inconscient.
ambiguidade entre qualificação exteriorizada Paris: Éditions Osiris, 1986.
plena de sentido e obscurecimento do au- THIS, Claude (org.). De l’art et de la psychanalyse. Paris:
tor como pose, as fotos de Cindy Sherman Ensba, 1999.
são retardo infinito entre o preenchimento TISSERON, Serge. Le mystère de la chambre claire. Paris:
e a multiplicação da imagem e a certificação Flammarion, 1996.
final da ausência do ser, a morte.

Cezar Bartholomeu é artista plástico, atua priorita-


riamente no campo das imagens técnicas, sobretudo a
fotografia. Doutor em Artes Visuais pela Escola de Belas
Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, atual-
mente é professor do curso de especialização de Artes
Visuais: no Senac-RJ.

Notas
1 Crimp, 1983: 122.
2 Cavell, 1979: 25.

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