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Cezar Bartholomeu
Cindy Sherman lida com problema-chave da fotografia: a suplementação da pre-
sença com produção de sentido. No entanto, a noção de presença é mantida
como fundo para as figuras de sua obra, numa pose de morte do autor, o que
permite rever as interpretações psicanalíticas produzidas sobre essa obra.
Fotografia, teoria, arte contemporânea, crítica.
A maior parte da obra de Cindy Sherman des dadas pela cultura da qual participa
consiste, na verdade, de um mesmo traba- e não como impulso interno. Assim,
lho que se desdobra em múltiplos resulta- suas fotografias revertem os termos de
dos. A obra não é uma ou todas as fotos, arte e autobiografia; usam a arte não
mas a máquina que as produz. O jogo que para revelar o verdadeiro ser do artis-
se arma entre conceito, série e fotos é ne- ta, mas para mostrar que o ser é uma
cessário para sua existência e demonstra, em construção imaginária. Não há verda-
primeiro lugar, que a obra de um artista pode deira Cindy Sherman nessas fotografi-
ser uma economia, o que possibilitaria as; há apenas os disfarces que assume.
revitalizar o conceito de estilo para a arte E ela não cria esses disfarces; escolhe-
contemporânea, já que esse jogo, a cada vez, os, apenas, do mesmo modo que to-
dispõe das mesmas regras para ser jogado. dos fazemos. A pose da autoria é exi-
mida não só pelo modo mecânico de
É amplamente divulgado o fato de que a fabricar as imagens, mas também pelo
economia que caracteriza sua obra gira em apagamento de qualquer persona es-
torno do autorretrato. A descrição de seu sencial ou contínua, ou mesmo um ros-
trabalho normalmente parte dessa caracte- to reconhecível nas cenas.1
rística sutil e surpreendente das fotos que, no
entanto, produz e sustenta suas fotografias: O fantasma da falta da assinatura humana na
imagem acompanha a fotografia desde sua
As fotografias de Sherman são todas invenção. Tal ideia se fixa particularmente a
autorretratos nos quais ela aparece partir do livro de Fox Talbot (Lápis da natu-
disfarçada, encenando um drama cuja reza), no qual se forma o mito da ‘gênese
particularidade não é dada. A ambi- automática’ da fotografia, justificada pela au-
guidade da narrativa acompanha a sência da artesania e pelo papel do sol na
ambiguidade do ser, que é tanto ator produção da imagem: já que não é produzi-
na narrativa quanto seu criador. Pois, da pela mão humana, a foto parece de fato
se Sherman é literalmente autocriada criação milagrosa. Esse fantasma do auto-
Sem título # 412
(clowns), 2004 nesses trabalhos, ela é criada na ima- matismo do dispositivo, que persegue a fo-
fotografia colorida gem de estereótipos femininos conhe- tografia desde sua invenção, não só justifica
130,2 x 104,6cm cidos; seu ser é, portanto, compreen- as imagens a partir da ciência que ajuda a
Fonte: Metro pictures - http://
www.metropicturesgallery.com/ dido como contingente às possibilida- estruturá-las, mas produz inveja histórica do
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A artista produz retratos explorando em Os retratos formam grade homogênea, in-
primeiro lugar a convenção da interioridade dicando que cada um deles tem igual valor,
do autorretrato, que expõe como falsa. O são todos equidistantes do centro, que é o
ser não transparece na representação (ape- verdadeiro ser de Cindy Sherman. Deseja-
nas a simulação de sua aparência), e, em se- se encontrar o ser; deseja-se que a repre-
gundo lugar, as representações não são trans- sentação o revele; o fato de o trabalho de
parentes; possuem códigos que são mani- Sherman constituir-se serialmente indica que
pulados, e, assim, entre contexto e ser, per- o objetivo não é atingido: cada imagem, na
cebe-se vazamento em que o código pode verdade, declara a ausência do ser; reveste-
ser aplicado ao espectador do mesmo modo se da característica do luto. A representa-
que à imagem. Na obra de Sherman, desde ção fotográfica possui relações celebradas
os stills de filmes sem título até suas obras com temporalidade mortuária. A questão,
mais recentes, em nenhum momento a fo- porém, vai além disso: é o próprio investi-
tografia é capaz de propor um autorretrato mento falho na aparência que é a morte.
definitivo. A própria multiplicação de ima- Revela-se, assim, relação profunda entre
gens o prova: a ausência da autora, a incapa- Sherman e a obra de Warhol. O ser é esva-
cidade de retratá-la é condição para a exis- ziado em prol de seu ‘estar’, congelado para
tência das múltiplas representações e faz a posteridade: “A profundidade do auto-
parte da economia desses retratos. matismo da fotografia não deve ser lida só
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manter o desejo, assim, é não mostrar a foto, particularizá-lo como tal, percebendo a dife-
preservando seu potencial afetivo. rença do ser. Para amar, é necessário dife-
renciar, saber que o outro difere segundo a
No caso de Sherman, o retrato não sobre- manifestação de uma interioridade que ultra-
vive à própria autora. Não se trata de uma passa a codificação. Para o narcisista, o outro
questão de afeto, mas de ciência da impos- não existe: há eu mesmo numa performance
sibilidade da transmissão do afeto. A artista com o outro, travestido de outro. O outro,
é ciente do descompasso entre essência e no entanto, não existe como tal, existe ape-
aparência que caracteriza o aparato fotográ- nas como generalidade que redefine meus li-
fico, mas persiste lidando com a tentativa mites, burlando-os em uma projeção. A pose
frustrada de produzir uma imagem materia- da morte do autor, assim, além de questão
lista do ser, de pura aparência. O desejo de artística, implica pulsão dirigida a si mesmo,
ser é constituído como problema a ser des- na grandiosa insatisfação de seu reconheci-
naturalizado na obra de Sherman (pois de mento – do reconhecimento de seu corpo
antemão sabemos que nenhuma foto satis- enquanto ser. Há na obra de Sherman, as-
faria). No entanto, o desejo fundamenta o sim, não apenas a ciência da incapacidade
processo, seja a partir da relação com o es- de representar o ser, mas tirania determi-
pectador ou na sofisticada obsessão narci- nando que a particularidade (do espectador)
sista: a incapacidade de expor-se e a decisão deve submeter-se à generalidade do outro,
de expor-se como o outro. multiplicada em inflação narcisista.
Desejar normalmente significa desejar o ou- A diferença, assim, entre o problema de
tro. Dizer que o outro é outro implica Nadar e de Sherman, é que Sherman opera
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de a escrita, não é sujeito tendo o livro O ponto de vista cultural versa sobre o sen-
como predicado; não há outro tempo tido, mantendo o problema do ser como
senão aquele da enunciação, e cada fundo. Trabalha admitindo a derrota do pon-
texto é escrito no aqui e agora.3 to de vista global e assim ensejando todas as
interpretações ligadas à cultura e a seu esta-
O paralelo entre a explicação de Crimp e o do pós-moderno. O fotograma remete à
ponto de vista da morte do autor parece evi- totalidade do filme; sabe-se que há uma to-
dente: recusar a presença do autor é ter ciên- talidade, embora ela seja inalcançável, e o
cia da obra como representação. Visa observá- jogo é suprir esse fragmento, a imagem, com
la modernamente, na autonomia, em sua eco- comentários que são, na verdade, legendas
nomia própria e por seus próprio méritos. As das quais os retratos são ilustrações. A con-
imagens de Sherman, segundo sua constru- sideração entre ser e sentido é a de que o
ção, podem apontar para determinado pe- sujeito é suporte para uma escrita infinita.
ríodo histórico, mas sempre se situam na Esse ponto de vista indica que uma análise
atemporalidade – no ponto de vista, poste- da obra de Sherman, de um modo ou de
rior ao modernismo, em que todos os tem- outro, se deve localizar entre a arte, a psica-
pos se oferecem ao olhar (o modernismo nálise e a antropologia, como locais da
como olhar global das formas no tempo); desnaturalização do ser, mas, principalmen-
são sempre autônomas em sua construção. te, da desnaturalização da relação entre ser
Essa pretendida autonomia, no entanto, es- e sentido.
barra na operacionalização posta em ação
pelas obras de Sherman. Elas contam com Não é o caso de assumir posição de com-
o desejo, que as faz funcionarem e que, pos- pleta aderência a uma teoria; é necessário,
sivelmente, fundamenta o cálculo que pro- na ciência da aparição, no entanto, compreen-
duz as obras: desejo de morte do autor? der o fenômeno da obra. As obras de Sherman
parecem oferecer-se aos grandes temas
No caso de Sherman, o que fundamenta o culturalistas: feminismo, simulacro, cinema,
interesse pelo trabalho é a noção de ser, estudos nos quais a obra aparentemente
que é velada para dar lugar ao aspecto irôni- assume um papel passivo, sua construção
co da obra. O desejo de ser do espectador abandonada em prol de seu efeito; sem o
encontra lugar no desejo de morte do autor problema da presença do ser, rebaixa-se essa
– articulação que deve ser examinada, mas obra ao conceito material de identidade, for-
que não se anuncia como espaçamento na mado, como diria Derrida, na iterabilidade,
obra, como lugar em que esse desejo do ser enquanto ela continua a fazer uso de um
encontraria morada e se sublimaria, mas conceito naturalista de ser como fundo.
como derrota prevista do desejo, que man-
tém obra, como autor, em semivida que Por outro lado, o segundo grande viés críti-
apenas retarda sua morte. Ou melhor, a co da obra de Sherman faz uso da psicanáli-
sublimação que constitui a obra de Sherman se lacaniana, na tentativa mais profunda de
evidencia depender do desejo do especta- observar a operação que ocorre em suas
dor para retardar o funcionamento da pulsão fotos. A psicanálise de fato parece fornecer
de morte da autora. ao trabalho de Sherman um lugar de funcio-
namento crítico bastante interessante, mais
A obra de Sherman é normalmente criticada próximo dos problemas efetivos da obra e
a partir de dois pontos de vista: o estudo da de sua construção. É como o compreendem
cultura e as teorias da psicanálise. Rosalind Krauss e Hal Foster, por exemplo,
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conceito está na raiz da obra de Sherman. 3 Barthes, 1977: 145; grifos do original.
O início do narcisismo está no conceito 4 Foster, 2004: 149.
lacaniano de estádio do espelho e no modo
erótico pelo qual o corpo se unifica na iden-
tificação do outro – identificação que ocor-
Bibliografia
re a partir do olhar. A projeção narcísica, na
fase adulta, no entanto, falha em conceber o BARTHES, Roland. Image – music – text. New York: Hill
outro como outro e, ao contrário, projeta and Wang, 1977.
sua imagem fragmentada como o outro. A BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova
articulação entre espectador e autora, assim, Fronteira, 1984.
se explicaria a partir da projeção que ofere- CAVELL, Stanley. The world viewed. Cambridge: Harvard
ce ao olhar a identidade em vez do corpo University Press, 1979.
(já que o corpo não se unificou e, se não
CRIMP, Douglas. On the museum’s ruins. Cambridge: MIT
está morto, está sempre morrendo). Press, 1983.
A identidade em Sherman, assim, não é a DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Campinas: Papirus,
maturação social do ser, mas seu esgarça- 1991.
mento; não consiste de relações em movi- ______________ . Gramatologia. São Paulo: Perspectiva,
mento, mas de relações materialmente (ou 1999.
deveríamos dizer formalmente) cristalizadas. FOSTER, Hal. Prosthetic Gods. Cambridge: MIT Press, 2004.
Na verdade, o que as fotos de Sherman ofe- _______________. The return of the real. Cambridge: MIT
recem é uma ordem simbólica definida a Press, 1996.
partir da identidade, que por sua vez se de-
KRAUSS, Rosalind. Bachelors. Cambridge: MIT Press, 1999.
fine como regra do ser. Seus retratos de-
mandam a identificação imaginativa por par- LACAN, Jacques. O seminário livro XI. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985.
te do espectador que retarda a morte da
autora enquanto justificam sua projeção SEEL, Martin. Aesthetics of appearing. Stanford: Stanford
Unversity Press, 2005.
narcísica negando o ser do espectador, ou
seja, negando sua particularidade. Na SOULAGES, François (org.). Photographie et inconscient.
ambiguidade entre qualificação exteriorizada Paris: Éditions Osiris, 1986.
plena de sentido e obscurecimento do au- THIS, Claude (org.). De l’art et de la psychanalyse. Paris:
tor como pose, as fotos de Cindy Sherman Ensba, 1999.
são retardo infinito entre o preenchimento TISSERON, Serge. Le mystère de la chambre claire. Paris:
e a multiplicação da imagem e a certificação Flammarion, 1996.
final da ausência do ser, a morte.
Notas
1 Crimp, 1983: 122.
2 Cavell, 1979: 25.