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Nicole Lima,
Mestranda em Poéticas Artísticas Contemporâneas do PPGAV - UDESC*
Resumo: “Uma imagem não substitui coisa alguma”, disse Sherrie Levine. No entanto,
para que nos apresente uma imagem, a fotografia é uma resultante física de um
palpável – algo que a precedeu para que ela exista. Nesse jogo, a fotografia reifica o
ato e ao mesmo tempo se torna paradoxalmente o seu invisível: objeto que para ser
visto precisa ser reconhecido. Nessa lógica a fotografia é tudo o que não está na
imagem, seja ela o retrato de um cão adormecido ao sol ou de uma laranja sobre a
mesa, o que eu vejo é o cão que está em mim e ao mesmo tempo não está mais,
como o gosto passado da laranja que eu comi. Entre o ato, a coisa em si e o
espectador, em que limite uma fotografia é portadora de significados e em que outros
pode ativar significâncias?
Palavras-chave: imagem; espectador; fotografia.
*
Fotógrafa autoral, crítica e pesquisadora em artes e linguagens visuais, Mestranda em Artes Visuais –
UDESC – Florianópolis SC.Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UFPR – Curitiba PR e aluna do
curso de Especialização em História da Arte Moderna e Contemporânea na Escola de Música e Belas
Artes do Paraná.
imagético para toda e qualquer dúvida no dicionário. Novas tecnologias à parte,
é também provável que se eu simplesmente pedir que você “imagine uma
fotografia de ____________”, mesmo sem preencher a lacuna, você seja
capaz de acessar infinitas geografias, rostos anônimos, objetos que jamais
tocou, mas que de alguma forma existem, porque você os vê, exatamente
agora. Afinal, o que vemos quando vemos? Como essa relação entre a
fotografia e a representação atravessa o observador no campo da arte? Entre o
ato, a coisa em si e o espectador, em que limite uma fotografia é portadora de
significados e em que outros pode ativar significâncias?
“Uma imagem não substitui coisa alguma”, afirmou Sherrie Levine1. No entanto,
para que nos apresente uma imagem, a fotografia é uma resultante física de
um palpável – algo que a precedeu para que ela exista. Nesse jogo, a
fotografia reifica o ato e ao mesmo tempo se torna paradoxalmente o seu
invisível: objeto que para ser visto precisa ser reconhecido, e para ser
reconhecido precisa ser abandonado, substituído por todos os outros que o
antecedem em ordem inversa até que voltemos ao primeiro encontro. Essa
operação não se dá literalmente e sim pertence à ordem do trauma: troco o
referente pela significância que ele produz, por seu efeito em mim.
No livro Ante el Tiempo (2006), Didi-Huberman fala sobre a imagem, e diz que
“estar diante da imagem é estar diante do tempo” e pergunta: “Que tipo de
tempo? De que plasticidades e de que faturas, de que ritmos e de que golpes
de tempo pode tratar-se esta imagem?”. Para o autor, o olhar captura e expõe
o presente, reconfigurando-o incessantemente. Ele então nos deixa a pergunta:
“Como se pode estar à altura de todos os tempos que esta imagem diante de
nós conjuga sobre tantos planos?”
Em seu trabalho A Última Foto (2006) [Fig. 1], Rosângela Rennó convidou 43
fotógrafos profissionais para fotografar o Cristo Redentor usando câmeras
mecânicas de diversos formatos que colecionou ao longo dos últimos 15 anos.
As câmeras, usadas pela última vez, foram lacradas. O projeto é constituído
por 43 dípticos, compostos pelas câmeras e a última foto registrada por elas. O
trabalho de Rosângela Rennó traz reflexões que não estão no objeto, mas que
nos levam a crer que o habitam, como se aquela imagem exposta fosse a capa
de um livro que contém todas as anteriores, ou que estas estão guardadas na
memória da caixa preta da câmera exposta ao seu lado.
3
[Fig.1] A Última Foto – Rosângela Rennó, (2006).
Assim como Susan Sontag afirma que toda fotografia é um depois, a sua
inserção no espaço é um depois do depois, assim como no trabalho After
Walker Evans (1979), que inaugura a série de reproduções e apropriações de
Sherrie Levine. Para esse trabalho, Sherrie Levine refotografou as cópias do
catálogo de fotografias de Walker Evans (1936) e as expôs publicamente como
sendo de sua autoria. Em 2001, Michael Mandiberg digitalizou as mesmas
fotografias e criou os sites AfterWalkerEvans.com e AfterSherrieLevine.com.
4
MITCHELL, W.J.T. What do pictures want? (2005) Tradução da autora: “Um quadro é algo com uma
moldura que penduramos sobre uma parede; a imagem é algo que aparece dentro do quadro”.
O espaço reinventado da fotografia:
O gesto do corte, do cut, segundo Dubois, pressupõe também o que ele exclui,
que o autor denomina espaço off. O que ironicamente fica de fora da análise de
Dubois, é que, além da relação in e off (dentro e fora) delimitada pelas
margens do campo bidimensional da imagem, a fotografia tem outras camadas
que não podem ser entendidas apenas pela relação com seu passado e suas
bordas. Uma fotografia traz mais do que a pretensão de nos providenciar uma
genuína lasca de uma realidade. Para Dubois o espaço fora da imagem faz
parte do que está dentro, como “os insetos no Âmbar” (p.181), imutável,
congelado e acessível no seu significado em qualquer tempo futuro.
O maior equívoco do autor talvez seja justamente crer que existe um inseto,
quando só temos o âmbar. É a nossa imaginação que acredita no passado
acessível, no significado contido. A imagem-in, nessa lógica, não é um portal
para o real-off. O que está fora só pode ser construído (inventado?) pelo
espectador. O que está dentro não é apenas uma fatia, e sim um todo. Se
cortarmos, literalmente, com uma tesoura uma imagem fotográfica ao meio e a
reapresentarmos à quem quer que seja, teremos dois inteiros e não duas
metades. Quem as ver acreditará quiçá que foram fotografados em instantes
distintos. Se repetirmos então esse gesto inúmeras vezes e emoldurarmos os
fragmentos, ainda assim, aos olhos do espectador teremos tantos novos
inteiros quantos cortes a superfície suportar, mas nunca chegaremos à parte
que nos devolveria ao todo.
Pensando nesse efeito, em meu trabalho intitulado Sobre (2008) [Fig. 3], lanço
mão de uma série de imagens de diferentes temas/tempos/lugares agrupadas
sobre uma parede. Além das relações que provoco com a justaposição nos
eixos bidimensionais (da esquerda para direita, de cima para baixo), deixo
pequenos pedaços de giz branco sobre uma pequena mureta que também
utilizo como parte da instalação, abrindo espaço para o espectador criar e
anotar sobre a parede quaisquer outras relações possíveis de sobreposições
dentro e fora do campo da imagem. A proposta é causar um deslocamento do
olhar sobre o próprio ato de olhar. Uma praia deserta não é mais uma praia
deserta quando alguém escreve sobre ela: “sombra sobre quarta-feira” ou
“adeus sobre amanhã.
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[Fig. 3] Sobre, Nicole Lima (2008)
5
Registro da exposição da autora, feito pela própria.
Em seu trabalho Perder de Vista (2008), o fotógrafo Felipe Prando questiona
essa terceira dimensão da imagem, nos privando do horizonte e da fuga. Numa
das salas da exposição, uma imensa fotografia toma quase toda a extensão da
parede – o que parece uma pedra é uma imagem de um bloco de concreto,
ampliado muito além do seu tamanho natural, como uma barreira, fortaleza
intransponível. Na sala ao lado, em uma das paredes, Felipe escreve a
mesma frase repetida com pontuação diferente: “hoje se pode ver tudo. hoje se
pode ver tudo?”. Quase quando eu, espectadora, abandonava a sala com a
dúvida, um dedo apontou: “lá!” Olho para fora da janela e encontro outra
enorme imagem colocada sobre o edifício ao lado. Atravesso a sala em direção
à próxima janela e o meu desejo se realiza: outra imagem, um horizonte do
outro lado da rua.
Um ano mais tarde, a fotógrafa Milla Jung nos apresenta o trabalho Deserto do
Real (2009) [Fig. 4]. Entre as imagens, um conjunto de fotografias de
superfícies cegas: paredes, lonas que quase nada dão a ver. Milla então fecha
a janela invisível6 ao recobrir a face fotográfica com uma cortina de ferro como
se dissesse “não, o seu desejo não está aqui”. Um olhar onde tudo é superfície
e ali é que o diálogo da obra acontece. Olhar que desafia-nos a pensar na sua
interioridade, que se atreve a falar do que não se vê, mas que se sabe que
está lá, ou ao menos se pensa que sabe.
Tanto o trabalho de Felipe Prando como o de Milla Jung são obras que falam
sobre a impenetrabilidade das coisas, sua solidão absoluta, o mistério que não
é para ser revelado, onde é a superfície que conversa com o espectador. Mas
não porque nela estão as questões, mas porque justamente nada dizem, muito
questionam e nos obrigam a imaginar o que gostaríamos que trouxessem a
tona. Como se ainda crentes tivéssemos a certeza de que algo ocultam: a
carne da imagem, recoberta de sua pele: o papel.
6
Roland Barthes define a superfície fotográfica em
A Câmara Clara (1984) como uma “janela invisível”.
7
[Fig. 4] Deserto do Real, Milla Jung (2009)
O efeito do real
“Tudo o que não invento é falso”8
Trago como exemplo as Esculturas Anônimas de Bernd and Hilla Becher, que
receberam o prêmio Leão de Ouro por escultura (e não por fotografia) na
Bienal de Veneza de 1990. De torres d’água a silos de armazenamento de
cereais, a insistência monumental no centro do quadro. Não existe nostalgia. A
arquitetura é fotografada frontalmente, sem sugestão de perspectiva ou
contexto. Não há sombras, nuvens ou traços de atividade humana. Um olhar
mudo, atemporal, que constrói seu discurso no silêncio. Nada acontece e então
algo “acontece”: aos olhos saltam variações sutis entre uma e outra imagem. O
autor se dissolve. Não sabemos quem as fez, nem quem as fotografou. Isso
não foi, isso não é. Volto à pergunta: que espaço é este? Quem os constrói?
Observo o cão dormindo fotografado por Gabriel Orozco [Fig. 5], que recortei e
colei sobre a parede. É o cão que ele me dá, mas não é o cão que eu vejo e
8
Manuel de Barros na abertura do livro Memórias Inventadas: A Segunda Infância (2006).
sim a mim mesma, adormecida nas pedras, desfrutando ao mesmo tempo do
sonho e do mundo. Entre a realidade e a imagem, “no chão seco que as
separa”9, é que se produz o espaço vital em que o artista transita e em que a
fotografia é possível.
9
Ref. ao poema supra citado “A Realidade e a imagem” de Manoel Bandeira, 1958.
REFERÊNCIAS:
BARROS, Manoel de. Memórias Inventadas: A Segunda Infância. São Paulo: Planeta
do Brasil, 2006.
BARTHES, Roland. A Câmera Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1984
BARTHES, Roland. Óbvio e Obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1990.
BAUDRILLARD, Jean. “O assassinato do real” In: A ilusão vital. Rio de Janeiro: Rocco,
2001.
BAUDRILLARD, Jean. De um fragmento a outro. São Paulo: Zouk, 2003.
BAUDRILLARD, Jean. “A fotografia ou a escrita da luz: literalidade da imagem” In: A
troca impossível. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2002.
BOURRIAUD, Nicolas. A Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
BREA, José Luis. “Objetos Inespecíficos” In: Nuevas estrategias alegóricas. Madrid:
Técnos, 1991.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed.34, 1998.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Argentina: Adriana Hidalgo, 2006.
DUBOIS, Philippe. O Acto Fotográfico. Lisboa: Vega, 1992.
ENTLER, Ronaldo. "Entre a memória e o esquecimento: o realismo da obra de Sophie
Calle". Studium, v. 22. Campinas: Laboratório de Media e Tecnologias de
Comunicação - IA - Unicamp, 2005. [http://www.studium.iar.unicamp.br/22/05.html]
FOSTER, Hal. The Return of the Real. Londres: MIT Press, 1996.
GREENBERG, Clement. Arte e cultura: Ensaios críticos. São Paulo: Ática, 1989.
JUNG, Carl Gustav. Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. São Paulo: Vozes, 2002.
MITCHELL, W.J.T. What do pictures want? The lives and loves of images. Chicago:
University of Chicago Press, 2005.
SONTAG, Susan. On photography. New York: 1977
ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo, 2003.