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IMAGEM E ESPECTADOR: CONDICIONANTES DA FORMAÇÃO DO


ESPAÇO FOTOGRÁFICO

Nicole Lima,
Mestranda em Poéticas Artísticas Contemporâneas do PPGAV - UDESC*

Resumo: “Uma imagem não substitui coisa alguma”, disse Sherrie Levine. No entanto,
para que nos apresente uma imagem, a fotografia é uma resultante física de um
palpável – algo que a precedeu para que ela exista. Nesse jogo, a fotografia reifica o
ato e ao mesmo tempo se torna paradoxalmente o seu invisível: objeto que para ser
visto precisa ser reconhecido. Nessa lógica a fotografia é tudo o que não está na
imagem, seja ela o retrato de um cão adormecido ao sol ou de uma laranja sobre a
mesa, o que eu vejo é o cão que está em mim e ao mesmo tempo não está mais,
como o gosto passado da laranja que eu comi. Entre o ato, a coisa em si e o
espectador, em que limite uma fotografia é portadora de significados e em que outros
pode ativar significâncias?
Palavras-chave: imagem; espectador; fotografia.

Abstract: “A Picture is no substitute of anything”, said Sherrie Levine. However, in


order to present us with an image, a photograph is a physical result of something
palpable – something that preceded it so that it could exist. In this game, photography
reifies the act and at the same time becomes paradoxically invisible of its own: an
object that in order to be seen needs to be recognized. In this logic, the photograph is
everything’s that is not in the picture, be it the portrait of a sleeping dog under the sun
or an orange on the table, what one sees is the dog that lies within one, and at the
same time is no longer there, just as the taste of all the oranges past. Between the act,
the thing itself and the spectator, at what limit is a photograph bearer of significances of
significations?
Key words: image; spectator; photography.

O que você fotografa? Amigos, familiares, pores-do-sol? Em mais de 150 anos


de uso corrente, dos novos ricos vitorianos à ponta esferográfica da caneta
com que agora escrevo, da alegria das bodas à miséria da guerra, é possível,
senão provável que cada objeto ou fato acontecido tenha ao seu lado uma
imagem fotográfica. Na era das imagens Google, Flickrs, e toda sorte de
indexação de arquivos digitais, já não precisamos sequer conhecer a
arbitrariedade da palavra para imaginar: basta digitar e lá está o equivalente


























































*
 Fotógrafa autoral, crítica e pesquisadora em artes e linguagens visuais, Mestranda em Artes Visuais –
UDESC – Florianópolis SC.Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UFPR – Curitiba PR e aluna do
curso de Especialização em História da Arte Moderna e Contemporânea na Escola de Música e Belas
Artes do Paraná.


imagético para toda e qualquer dúvida no dicionário. Novas tecnologias à parte,
é também provável que se eu simplesmente pedir que você “imagine uma
fotografia de ____________”, mesmo sem preencher a lacuna, você seja
capaz de acessar infinitas geografias, rostos anônimos, objetos que jamais
tocou, mas que de alguma forma existem, porque você os vê, exatamente
agora. Afinal, o que vemos quando vemos? Como essa relação entre a
fotografia e a representação atravessa o observador no campo da arte? Entre o
ato, a coisa em si e o espectador, em que limite uma fotografia é portadora de
significados e em que outros pode ativar significâncias?

“Uma imagem não substitui coisa alguma”, afirmou Sherrie Levine1. No entanto,
para que nos apresente uma imagem, a fotografia é uma resultante física de
um palpável – algo que a precedeu para que ela exista. Nesse jogo, a
fotografia reifica o ato e ao mesmo tempo se torna paradoxalmente o seu
invisível: objeto que para ser visto precisa ser reconhecido, e para ser
reconhecido precisa ser abandonado, substituído por todos os outros que o
antecedem em ordem inversa até que voltemos ao primeiro encontro. Essa
operação não se dá literalmente e sim pertence à ordem do trauma: troco o
referente pela significância que ele produz, por seu efeito em mim.

A princípio essa operação estaria sujeita apenas à subjetividade do


observador, uma vez que a experiência individual e intransferível da
significância ativada pela imagem da produziria resultados distintos a partir de
cada um que a visse. Por outro lado uma imagem, e nisso concordo com a
frase de Sherrie Levine, não seria necessária se a ativação dessa significância
dependesse unicamente do referente: se uma fotografia de algo não
corresponde ao objeto em questão, por que então fotografamos algo?

Essa pergunta é justamente a base da discussão que seguirá: como a


fotografia se apropria não da coisa em si, mas da coisa enquanto imagem de

























































1
 Sherrie Levine e Louise Lawler: “A Picture is No Substitute for Anything” artigo publicado na revista
WEDGE #02 (1982).

si: ready-made do already-made. E como essa apropriação nos desapropria
desse espaço quando acreditamos no already been there, ainda que “lá” nunca
tenhamos estado, nem jamais estaremos, porque “lá” não existe. No entanto
esse “lá” nos transporta para algum lugar que nada nos diz de onde ele foi
extraído, porque na imagem ele existe enquanto “destempo”. Mas se não
vamos “lá”, então, para onde vamos?
O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva
e desce refletido na poça de lama do pátio.
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,
2
quatro pombas passeiam.

Em Arte e Cultura (1961) Clement Greenberg define o quadro como “uma


entidade que pertence à mesma ordem de espaço que os nossos corpos”; o
espaço pictórico perdeu seu dentro e tornou-se todo um fora. Será possível
afirmar que a fotografia também perdeu seu dentro e tornou-se fora? O que
não está na imagem, mas é imaginado a partir da imagem, estaria mesmo fora
dela? Como o jogo representacional se estrutura nesse espaço entre o fora e o
dentro? Não pretendo aqui elaborar um tratado sobre o que venha a ser A
Fotografia – essa que vem precedida de artigo definido e em letras maiúsculas
– enquanto objeto artístico, e sim buscar uma compreensão de como a
fotografia, venha ela de onde vier, pode ser utilizada como um dispositivo que,
ativado, pode se inserir no Espaço (também em maiúsculas) da Arte. É esse
espaço, “no chão seco” do jogo representacional entre o espectador e a
imagem (seria esse o real?), que eu pretendo investigar nesse artigo.

Para que molhemos nossos pés em algumas dessas questões inerentes ao


debate contemporâneo sobre a imagem no tempo e no espaço, além de
revisitar os clássicos A Câmera Clara, de Roland Barthes, (1984); On
Photography, de Susan Sontag (1977) e O Acto Fotográfico, de Philippe
Dubois (1992), recorrerei aqui à alguns teóricos, mais especificamente à Jean
Baudrillard e Georges Didi-Huberman. Já para problematizar o debate da
representação x real embasarei também meu discurso e nos texto O Retorno

























































2

(Bandeira, M. 1958: 351)


do Real, de Hal Foster (1996); Bem Vindo ao Deserto do Real, de Slavoj Zizek
(2003); e Objetos Inespecíficos, de José Luis Brea (1991). Para incluir o
espectador como co autor na fatura dessa imagem em questão, citarei alguns
trechos de A Estética Relacional, de Nicolas Bourriaud (2009).

A imagem fotográfica no tempo:

No livro Ante el Tiempo (2006), Didi-Huberman fala sobre a imagem, e diz que
“estar diante da imagem é estar diante do tempo” e pergunta: “Que tipo de
tempo? De que plasticidades e de que faturas, de que ritmos e de que golpes
de tempo pode tratar-se esta imagem?”. Para o autor, o olhar captura e expõe
o presente, reconfigurando-o incessantemente. Ele então nos deixa a pergunta:
“Como se pode estar à altura de todos os tempos que esta imagem diante de
nós conjuga sobre tantos planos?”

Em seu trabalho A Última Foto (2006) [Fig. 1], Rosângela Rennó convidou 43
fotógrafos profissionais para fotografar o Cristo Redentor usando câmeras
mecânicas de diversos formatos que colecionou ao longo dos últimos 15 anos.
As câmeras, usadas pela última vez, foram lacradas. O projeto é constituído
por 43 dípticos, compostos pelas câmeras e a última foto registrada por elas. O
trabalho de Rosângela Rennó traz reflexões que não estão no objeto, mas que
nos levam a crer que o habitam, como se aquela imagem exposta fosse a capa
de um livro que contém todas as anteriores, ou que estas estão guardadas na
memória da caixa preta da câmera exposta ao seu lado.

3
[Fig.1] A Última Foto – Rosângela Rennó, (2006).

Em outro trabalho, Bibliotheca (2002), Rosângela Rennó expôs 37 vitrines


contendo álbuns antigos de fotografia. As questões do álbum de família como
um álbum universal são frequentemente trazidas à tona na fotografia
contemporânea, pergunto: por que? É importante aqui estabelecer que ver o
referente e reconhecer o conteúdo literal de uma imagem não é o mesmo do
que sofrer seu efeito, e que efeito trazem para nós imagens que, justamente
por serem tão íntimas, não deveriam nos dizer respeito?

Para Didi-Huberman, a imagem não é o reflexo do indivíduo subjetivo mas o


próprio corpo de um pensamento. Paro o autor, entre o passado e o presente,
imagens são atravessadas por uma memória, “memória que jamais saberá por
inteiro o que acumula” (1998). É desse acúmulo que a fotografia pode se valer
enquanto dispositivo que aciona cada indivíduo e suas latências. Neste
momento existe um atravessamento que traz consigo tantas memórias e tantos
véus quantos o espectador permita aproximarem-se e enriquecerem esta
experiência do olhar. Este é o tempo impuro que vem contaminado de outros

























































3
Fonte: site da fotógrafa: http://www.rosangelarenno.com.br/


tempos, outros passados.

O tempo deslocado no espaço:


“The picture is something with a frame that you hang on a wall;
4
the image is something that appears in a picture”.

Assim como Susan Sontag afirma que toda fotografia é um depois, a sua
inserção no espaço é um depois do depois, assim como no trabalho After
Walker Evans (1979), que inaugura a série de reproduções e apropriações de
Sherrie Levine. Para esse trabalho, Sherrie Levine refotografou as cópias do
catálogo de fotografias de Walker Evans (1936) e as expôs publicamente como
sendo de sua autoria. Em 2001, Michael Mandiberg digitalizou as mesmas
fotografias e criou os sites AfterWalkerEvans.com e AfterSherrieLevine.com.

O depois que Levine traz a mostra é uma reapresentação (representação?) do


depois que já existia na imagem, mas que não era explícito na sua primeira
versão. É preciso que ela nos convença de que nem ela nem nós estamos
diante de uma mulher, e sim diante da imagem de outra imagem de uma
mulher (feita por outra mulher).

Em 2008, a fotógrafa Curitibana Patrícia Lion produz Memória Construída, um


objeto feito de um cubo mágico (brinquedo típico dos anos 80) e pequenos
fragmentos de imagens “de família” apropriadas de pesquisas na internet. À
medida que brincamos com o cubo, nos perdemos da imagem original, à qual
nunca voltaremos e ao mesmo tempo a reconstruímos/substituímos pelo seu
“espectro”. O trabalho de Patrícia nos conduz a tentar reproduzir uma imagem
que já sabemos de antemão estar perdida. Ainda assim, mesmo quando
brincamos com essa remota possibilidade, ela se refaz em fragmentos que
tentamos recompor mentalmente quando abandonamos o cubo.


























































4
MITCHELL, W.J.T. What do pictures want? (2005) Tradução da autora: “Um quadro é algo com uma
moldura que penduramos sobre uma parede; a imagem é algo que aparece dentro do quadro”.


O espaço reinventado da fotografia:

(...) a imagem-ato fotográfica interrompe, detém, fixa, imobiliza, destaca,


separa a duração, captando dela um único instante. espacialmente, da mesma
maneira, fraciona, levanta, isola, capta, recorta uma porção de extensão. A foto
aparece dessa maneira, no sentido forte, como uma fatia, uma fatia única e
singular de espaço-tempo, literalmente cortada ao vivo. (...) Pequeno bloco de
estando-lá. (DUBOIS,1992, p. 161)

O gesto do corte, do cut, segundo Dubois, pressupõe também o que ele exclui,
que o autor denomina espaço off. O que ironicamente fica de fora da análise de
Dubois, é que, além da relação in e off (dentro e fora) delimitada pelas
margens do campo bidimensional da imagem, a fotografia tem outras camadas
que não podem ser entendidas apenas pela relação com seu passado e suas
bordas. Uma fotografia traz mais do que a pretensão de nos providenciar uma
genuína lasca de uma realidade. Para Dubois o espaço fora da imagem faz
parte do que está dentro, como “os insetos no Âmbar” (p.181), imutável,
congelado e acessível no seu significado em qualquer tempo futuro.

O maior equívoco do autor talvez seja justamente crer que existe um inseto,
quando só temos o âmbar. É a nossa imaginação que acredita no passado
acessível, no significado contido. A imagem-in, nessa lógica, não é um portal
para o real-off. O que está fora só pode ser construído (inventado?) pelo
espectador. O que está dentro não é apenas uma fatia, e sim um todo. Se
cortarmos, literalmente, com uma tesoura uma imagem fotográfica ao meio e a
reapresentarmos à quem quer que seja, teremos dois inteiros e não duas
metades. Quem as ver acreditará quiçá que foram fotografados em instantes
distintos. Se repetirmos então esse gesto inúmeras vezes e emoldurarmos os
fragmentos, ainda assim, aos olhos do espectador teremos tantos novos
inteiros quantos cortes a superfície suportar, mas nunca chegaremos à parte
que nos devolveria ao todo.

Isso acontece porque acreditamos em imagens, mesmo quando racionalmente


sabemos que ela é parcial ou potencialmente uma farsa. Assim como eu
acredito que há um abismo atrás da janela que vejo ao fundo no 10o andar,

mesmo sem me aproximar dela, ou como eu “sei” que a mulher na fotografia de
Jeff Wall está olhando para algo que está ao seu lado direito mesmo quando o
próprio Jeff Wall admite ser uma montagem, que não há nada lá, ainda assim
eu continuo vendo o que ela (a imagem? a mulher?) não vê, mas aponta. O
fato é que no instante em que olho aquela fotografia, eu estou diante de algo. A
imagem existe e é a partir da sua existência material que podemos estabelecer
essa negociação de causas e efeitos, seja sob forma de análise sistemática ou
de afetos.

Em seu artigo Objetos Inespecíficos (1991), José Luis Brea menciona a


justaposição/acumulação como forma de entrecruzamento alegórico, citando,
entre outras, a obra da fotógrafa Cindy Sherman. Estranhamente, Cindy
Sherman nunca trabalha com justaposições e sim com imagens únicas, em sua
série Untitled Film Stills (1978) [Fig. 2]. Por outro lado a imagem está ao lado,
num “espaço entre”, um passado e um futuro de uma história que nunca
existiu. A justaposição aqui se faz apenas através da imaginação do
espectador: imaginamos a cena que precede aquele ponto da narrativa, bem
como o seu desfecho, ainda que cientes de que ambos não existem. Mesmo
quando Cindy Sherman me revela seu rosto e toda a farsa da montagem,
prefiro crer na existência do filme de onde ela “extraiu” essa única imagem.

[Fig. 2] “Untitled Film Still #92″. – Cindy Sherman (1981).



Cindy Sherman também nos obriga a retirar suas camadas quando nos
desmente no ato fotográfico: sabemos que é um auto retrato, que lá está ela,
mas nunca a vemos. Sherman desaparece do auto retrato como Dorian Gray
diante da morte, porque ainda que saibamos que “lá” está ela, somos apenas
capazes de imaginá-la antes e depois do simulacro a que presta seu corpo. Ela
existe no espaço fora-antes-atrás da imagem, reificada pelo expectador.

Pensando nesse efeito, em meu trabalho intitulado Sobre (2008) [Fig. 3], lanço
mão de uma série de imagens de diferentes temas/tempos/lugares agrupadas
sobre uma parede. Além das relações que provoco com a justaposição nos
eixos bidimensionais (da esquerda para direita, de cima para baixo), deixo
pequenos pedaços de giz branco sobre uma pequena mureta que também
utilizo como parte da instalação, abrindo espaço para o espectador criar e
anotar sobre a parede quaisquer outras relações possíveis de sobreposições
dentro e fora do campo da imagem. A proposta é causar um deslocamento do
olhar sobre o próprio ato de olhar. Uma praia deserta não é mais uma praia
deserta quando alguém escreve sobre ela: “sombra sobre quarta-feira” ou
“adeus sobre amanhã.

5
[Fig. 3] Sobre, Nicole Lima (2008)


























































5
Registro da exposição da autora, feito pela própria.


Em seu trabalho Perder de Vista (2008), o fotógrafo Felipe Prando questiona
essa terceira dimensão da imagem, nos privando do horizonte e da fuga. Numa
das salas da exposição, uma imensa fotografia toma quase toda a extensão da
parede – o que parece uma pedra é uma imagem de um bloco de concreto,
ampliado muito além do seu tamanho natural, como uma barreira, fortaleza
intransponível. Na sala ao lado, em uma das paredes, Felipe escreve a
mesma frase repetida com pontuação diferente: “hoje se pode ver tudo. hoje se
pode ver tudo?”. Quase quando eu, espectadora, abandonava a sala com a
dúvida, um dedo apontou: “lá!” Olho para fora da janela e encontro outra
enorme imagem colocada sobre o edifício ao lado. Atravesso a sala em direção
à próxima janela e o meu desejo se realiza: outra imagem, um horizonte do
outro lado da rua.

Um ano mais tarde, a fotógrafa Milla Jung nos apresenta o trabalho Deserto do
Real (2009) [Fig. 4]. Entre as imagens, um conjunto de fotografias de
superfícies cegas: paredes, lonas que quase nada dão a ver. Milla então fecha
a janela invisível6 ao recobrir a face fotográfica com uma cortina de ferro como
se dissesse “não, o seu desejo não está aqui”. Um olhar onde tudo é superfície
e ali é que o diálogo da obra acontece. Olhar que desafia-nos a pensar na sua
interioridade, que se atreve a falar do que não se vê, mas que se sabe que
está lá, ou ao menos se pensa que sabe.

Tanto o trabalho de Felipe Prando como o de Milla Jung são obras que falam
sobre a impenetrabilidade das coisas, sua solidão absoluta, o mistério que não
é para ser revelado, onde é a superfície que conversa com o espectador. Mas
não porque nela estão as questões, mas porque justamente nada dizem, muito
questionam e nos obrigam a imaginar o que gostaríamos que trouxessem a
tona. Como se ainda crentes tivéssemos a certeza de que algo ocultam: a
carne da imagem, recoberta de sua pele: o papel.


























































6
Roland Barthes define a superfície fotográfica em
A Câmara Clara (1984) como uma “janela invisível”.


7
[Fig. 4] Deserto do Real, Milla Jung (2009)

Se tentássemos tocar a interioridade dessas duas obras tirando os seus véus,


nada teríamos, pois não há possibilidade de explicitar o que só existe
ocultando-se. O que vemos quando vemos? A imagem é algo que nos
aproxima do mundo, ou que nos afasta dele na mesma medida? Para
Baudrillard, pensar o mundo é uma reação a que o mundo nos pense, da
mesma maneira que diante de uma imagem é o próprio objeto que nos pensa.
Trata-se de uma reversibilidade entre objeto e olhar, “a regra do jogo pertence
tanto ao sujeito quanto ao objeto, algo se joga sem que o sujeito seja dono do
jogo” (BAUDRILLARD, 2003).

Ao considerar a fotografia como ato também do observador, encontro as


descontinuidades entre um real inapreensível e uma realidade construída, a
necessidade de criar uma nova sintaxe que acolha a desordem causada pela
imagem fotográfica, num jogo ao qual somos convocados, tanto observadores
como fotógrafos, a mexer as peças.

























































7
Fotografia tirada por mim em visita à exposição Deserto do Real de Milla Jung (2009).

Também pensando na elaboração coletiva de significado, Nicolas Bourriaud
em A Estética Relacional descreve a imagem como uma “arena de troca” onde
“a realidade é um produto de negociação e afirma: “é preciso dois para produzir
uma imagem”. Esses dois não são o autor e o seu objeto, nem a fotografia e o
seu espectador: os dois são o espaço e o encontro; a forma(ação) com a sua
significância.

O efeito do real
“Tudo o que não invento é falso”8

Hoje, a simples menção da palavra real promove curiosidade ou desconforto.


Quando em seu livro Bem vindo ao deserto do real o filósofo esloveno Slavoj
Zizek (2003) - fala que é possível se produzir o “efeito da verdade”, ele traz à
luz, dentre outras, duas questões: primeiro, se o que se convenciona como real
hoje seria mesmo um deserto. E segundo: na preconizada aridez do deserto,
seria o único alento o conjunto formado por oásis e miragem?

Trago como exemplo as Esculturas Anônimas de Bernd and Hilla Becher, que
receberam o prêmio Leão de Ouro por escultura (e não por fotografia) na
Bienal de Veneza de 1990. De torres d’água a silos de armazenamento de
cereais, a insistência monumental no centro do quadro. Não existe nostalgia. A
arquitetura é fotografada frontalmente, sem sugestão de perspectiva ou
contexto. Não há sombras, nuvens ou traços de atividade humana. Um olhar
mudo, atemporal, que constrói seu discurso no silêncio. Nada acontece e então
algo “acontece”: aos olhos saltam variações sutis entre uma e outra imagem. O
autor se dissolve. Não sabemos quem as fez, nem quem as fotografou. Isso
não foi, isso não é. Volto à pergunta: que espaço é este? Quem os constrói?

Observo o cão dormindo fotografado por Gabriel Orozco [Fig. 5], que recortei e
colei sobre a parede. É o cão que ele me dá, mas não é o cão que eu vejo e

























































8
Manuel de Barros na abertura do livro Memórias Inventadas: A Segunda Infância (2006).


sim a mim mesma, adormecida nas pedras, desfrutando ao mesmo tempo do
sonho e do mundo. Entre a realidade e a imagem, “no chão seco que as
separa”9, é que se produz o espaço vital em que o artista transita e em que a
fotografia é possível.

[Fig. 5] Perro durmiendo – Gabriel Orozco (1990)


























































9
Ref. ao poema supra citado “A Realidade e a imagem” de Manoel Bandeira, 1958.

REFERÊNCIAS:

BARROS, Manoel de. Memórias Inventadas: A Segunda Infância. São Paulo: Planeta
do Brasil, 2006.
BARTHES, Roland. A Câmera Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1984
BARTHES, Roland. Óbvio e Obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1990.
BAUDRILLARD, Jean. “O assassinato do real” In: A ilusão vital. Rio de Janeiro: Rocco,
2001.
BAUDRILLARD, Jean. De um fragmento a outro. São Paulo: Zouk, 2003.
BAUDRILLARD, Jean. “A fotografia ou a escrita da luz: literalidade da imagem” In: A
troca impossível. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2002.
BOURRIAUD, Nicolas. A Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
BREA, José Luis. “Objetos Inespecíficos” In: Nuevas estrategias alegóricas. Madrid:
Técnos, 1991.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed.34, 1998.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Argentina: Adriana Hidalgo, 2006.
DUBOIS, Philippe. O Acto Fotográfico. Lisboa: Vega, 1992.
ENTLER, Ronaldo. "Entre a memória e o esquecimento: o realismo da obra de Sophie
Calle". Studium, v. 22. Campinas: Laboratório de Media e Tecnologias de
Comunicação - IA - Unicamp, 2005. [http://www.studium.iar.unicamp.br/22/05.html]
FOSTER, Hal. The Return of the Real. Londres: MIT Press, 1996.
GREENBERG, Clement. Arte e cultura: Ensaios críticos. São Paulo: Ática, 1989.
JUNG, Carl Gustav. Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. São Paulo: Vozes, 2002.
MITCHELL, W.J.T. What do pictures want? The lives and loves of images. Chicago:
University of Chicago Press, 2005.
SONTAG, Susan. On photography. New York: 1977
ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo, 2003.

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