Você está na página 1de 23

Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

A vocação pós-histórica da fotografia.


Leonardo Ventapane

Na virada dos anos 70 para os anos 80, os trabalhos de Sherrie Levine


impulsionaram a consciência das possibilidades do fotográfico na compreensão e na
investigação da imagem na arte contemporânea, ultrapassando a recorrente faceta
comprobatória da imagem fotográfica na arte conceitual, enquanto registro de ações
efêmeras ou instrumento de captura de um readymade-idéia. Levine se utilizou de toda
a frontalidade da fotografia para abordar de maneira direta as questões sobre a imagem
e sobre a arte favorecidas pelo fotográfico. Re-fotografando reproduções de fotografias
de Walker Evans e Edward Weston, a artista incita a discussão dos temas da
apropriação e do apagamento do original pelo viés da fotografia, aprofundando as
operações características da arte pós-histórica de descolamento entre arte e objeto de
arte e deslocamento da noção de aura deste objeto.
Nesse sentido, re-fotografar as reproduções de fotografias consideradas ‘de arte’,
tiradas por ‘mestres’ de uma fotografia considerada clássica, é um ato preciso de auto-
conscientização que não reivindica para a fotografia apenas o reconhecimento de sua
natureza enquanto imagem (e não como signo). Como observa Wall, os trabalhos destes
mestres jogavam “com a fronteira entre o foto-jornalismo em si e o foto-jornalismo
como um conceito dentro do contexto teórico e prático da arte modernista” 1 , e neste
sentido, a re-fotografá-los é reconhecer, nesta ambivalência, o potencial destas imagens
enquanto imagens-de-arte. Segundo François Soulages,

“(...) quando [a fotografia] se toma ela mesmo por objeto, isto é, quando ela é fotografia
da fotografia, não apenas ela realiza plenamente a dimensão de inacabável que a constitui, mas
além disso ela cria, às vezes, obras capitais e reforça sempre esta dimensão essencial de toda
arte que é a capacidade à reflexividade, à interrogação e à crítica. A fotografia é, portanto,
insubstituível, porque, sendo um questionamento dela mesma, ela nos esclarece sobre a arte e
sobre a imagem.” 2

1 WALL, 2007: 118.


2 SOULAGES, 2001: 307.
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

2
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

Fotografar uma fotografia é um ato de subversão. O espaço revelado pela re-


fotografia é um espaço vazio, perturbador, criado pela explicitação da reprodutibilidade
e da frontalidade do fotográfico, através da própria explicitação da reprodutibilidade e
da frontalidade do fotográfico. É uma reflexividade perturbadora que deixa claro que a
frontalidade fotográfica pouco revela: o que ela ‘dá a ver’ não é aquilo que a imagem
mostra, mas algo que, ao mesmo tempo, é ela e está além dela, na ‘dimensão de
inacabável que a constitui’, afirmada por Soulages. A situação pode ser comparada à do
ator e personagem título do filme “Quero ser John Malkovich” 3 , que, após descobrir
que um sujeito havia encontrado uma ‘passagem secreta’, atrás de um móvel de
escritório, para sua própria mente, não resiste à tentação de, também ele, pensar o que
ele mesmo pensa, ver o que ele mesmo vê. Para sua (e para nossa) surpresa, no entanto,
esta incursão ‘elevada à segunda potência’ para dentro de si, lhe apresenta uma imagem
perturbadora: todas as pessoas possuem o seu rosto e tudo o que elas são capazes de
pronunciar é o seu sobrenome. Ao apontar, então, diretamente para a arte, e mais
especificamente, para uma fotografia-como-arte, ao olhar diretamente pra si, a
fotografia faz uso desta sua frontalidade tanto para indicar e reforçar a existência de
uma dimensão além de si, um não-lugar, que desabilita qualquer noção de origem para
sua imagem-de-arte, como também para reivindicar – consciente como (a
personagem) Malkovich – o seu próprio lugar na arte, enquanto arte.
No entanto, este lugar na arte nada tinha a ver com a ‘campanha’ promovida
pelos museus na década de 70 de recuperação do aurático através, contraditoriamente,
da própria fotografia e do re-avivamento da pintura expressionista. Ao contrário, a re-
fotografia proclama, como afirma Wall,

“(...) que todas as fotografias que poderiam intencionar/significar qualquer coisa não
apenas já haviam sido tiradas, mas também que o processo de institucionalização ao qual elas
foram necessariamente submetidas já havia falsificado seus significados e invalidado os
projetos emancipatórios sobre os quais o mundo ético de seus projetos poéticos foi fundado.” 4

Isto é, a tentativa desesperada de se atribuir uma aura à fotografia e afirmá-la


como arte a partir de sua unicidade como objeto, enquanto imagem-objeto-de-arte, só
seria possível através do esquecimento proposital do fato de sua natureza poética (isto

3 Título original: Being John Malkovich./ EUA, 1999 / Direção: Spike Jonze / Roteiro: Charlie Kaufman.
4 WALL, 2007: 119.
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

é, sua realização enquanto intenção de arte) estar justamente voltada para a


emancipação da imagem-fotografia da foto-suporte. É neste sentido, o de não permitir
que este esquecimento ocorra, que as re- fotografias de Levine promovem a
exaustão da aura, um esvaziamento da imagem-suporte. Partindo da noção de
reprodutibilidade técnica 5 investigada na fotografia por Walter Benjamin, Douglas
Crimp associa esta emancipação diretamente à parcela da natureza da fotografia que a
habilita ser reproduzida ad infinitum. Para ele,

“O desaparecimento da aura, a dissociação de trabalho e estrutura da tradição, é um


resultado inevitável da reprodução técnica. Isso é algo que todos nós experimentamos.
Sabemos, por exemplo, da impossibilidade de experimentar a aura de uma pintura como a
Mona Lisa, mesmo estando diante dela no Louvre. Essa aura tem sido profundamente
depreciada pelas mil vezes que temos visto sua reprodução, e nenhum nível de concentração irá
restaurar sua unicidade para nós.” 6

Desta maneira,os desdobramentos da noção de reprodutibilidade técnica não


estão restritos à fotografia, mas em nenhum outro lugar eles se tornam tão evidentes.
Na foto, a técnica não encontra esconderijo no gesto, na presença da mão do pintor. Ela
está ali, na presença daquilo que é fotografado. E é este o trabalho da fotografia tomada
em sua natureza técnica: apagar, esvaziar esta presença até que ela se revele não mais
uma presença material, mas uma “presença como um tipo de adicional do fato de estar
lá, um aspecto fantasmagórico da presença que é seu excesso, seu suplemento” 7 . Crimp
afirma que, para Benjamin,

“a especialização em fotografia é uma atividade diametralmente oposta à especialização


em pintura: significa olhar não para a mão do artista, mas para a incontrolada e incontrolável
intrusão da realidade, a qualidade absolutamente única e até mesmo mágica, não do artista,
mas de seu assunto”. 8

5 BENJAMIN, 1987: 165-196.


6 CRIMP, 2004: 128-129.
7 Id. Ibid.: 128.
8 Id. Ibid.:: 129.
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

E este não era um fato lamentável para Benjamin, mas sim a confirmação de que
“o significado social da reprodução, particularmente em sua forma mais positiva, é
inconcebível sem o aspecto destrutivo, catártico, sua liquidação dos valores tradicionais
da herança cultural” 9 . Simplesmente não havia como voltar atrás, ou fingir que esta
tomada de consciência da qualidade ‘maquinal’ da fotografia não atravessaria, daquele
ponto em diante, toda criação visual. O apagamento/deslocamento da aura se confirma,
através do fotográfico, como uma característica da arte contemporânea.
Talvez, o exemplo mais emblemático do impacto deste conceito, ou desta tomada
de consciência nas artes visuais, esteja, novamente, centrado na figura de Andy Warhol.
A repetição através do maquinal presente em seus trabalhos, refere-se diretamente a
esta lógica de reprodutibilidade técnica, atuando como estratégia de arte que opera o
desligamento final entre as velhas estruturas críticas sustentadas até então por
Greenberg e a compreensão pós-histórica da arte. É possível dizer que a abordagem do
artista, nos anos 60, aproxima-se das re-fotografias realizadas por Levine, no sentido
em que agrava o distanciamento executado pela instância maquinal virtualmente
original. Em Warhol, as gradações da matriz fotográfica dão lugar às cores fortes
impressas pela serigrafia, dando forma a Marilyns, Elvis, Elizabeths, Maos e Andys; as
caixas Brillo do artista desafiam as caixas Brillo nos supermercados; e quando é a
fotografia que está em questão, ela se apresenta também multiplicada e destituidora de
qualquer noção de origem, de verdadeiro ou falso, seja na série “Death and Disaster”,
da década de 60, ou em trabalhos mais recentes, como Untitled (Brooke Shields), já na
década de 80.
Apesar disto, não existe uma evidência forte que permita afirmar um interesse de
Warhol em privilegiar o fotográfico enquanto campo e ferramenta de investigação, da
arte ou simplesmente da própria fotografia. No caso deste artista, a fotografia inseria-se
no contexto maior de estratégias que colaboravam para a crença Pop no principio de
“ser tão conhecido quanto a lata de sopa Campbell’s” 10 , e, neste sentido, não havia
espaço dentro da estratégia Pop de discussão e polemização das relações entre arte e
mídia, arte e vida, high-art e low-art, através de imagens ao mesmo tempo banais e
pregnantes, entre outras ‘ações’ fronteiriças que reclamavam seu reconhecimento
enquanto arte, para que a fotografia pudesse ser explorada em grande parte das
possibilidades inerentes a sua dimensão tecno-cultural. Em Warhol, como em

9 BENJAMIN, op. cit.


10 Entrevista de Leo Castelli, Artstudio, nº.8 in CAUQUELIN, op. cit.: 114.
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

Duchamp, a fotografia não está separada de outras formas e mídias de arte, e como
conseqüência desta postura niveladora de especificidades díspares, alguns destes
trabalhos envolvendo fotografias, e outros que se seguiram, pela força do exemplo, nos
anos 60 e 70, se distanciavam de qualquer critério de fotografia. Segundo Wall,

“Todo jovem artista conceitual que usava a fotografia mas se recusava a ser chamado de
fotógrafo poderia apontar para os exemplos maçantes da fotografia tradicional como evidência
da necessidade de se escapar dos confinamentos da tradição e de suas normas estéticas.” 11

Ele prossegue,

“Infelizmente, esta mistura de fotografia com outras coisas, como pintura, impressos, ou
artes tridimensionais, conduziu quase que imediatamente para os híbridos inconvincentes que
são, de maneira lamentável, tão característicos da arte desde então. Um argumento igualmente
forte que poderia ser tirado daí é que escapar dos confinamentos da ‘fotografia’ era um caminho
para a ruína porque não havia nenhum critério válido no mundo intermídia, nem poderia ter
algum. A fotografia, podemos argumentar, tem uma natureza muito específica como uma forma
de arte e como um medium, e combiná-la com outras coisas não resultou em nada novo como
fotografia além da simples redução do fotográfico em elementos de uma estética de colagem
que não estava sujeita a julgamentos em termos fotográficos, e talvez não estivesse sujeita a
nenhum tipo de julgamento estético.” 12

Neste ponto, as re-fotografias de Sherrie Levine deixaram claro que encarar a


fotografia de frente se mostrava essencial para que um sentido de fotografia-como-arte
pudesse finalmente afirmar-se no fotográfico e para o fotográfico. Ao contrário da
dispersão de Warhol, era necessário adensar, concentrar o interesse na fotografia
promovendo uma reflexividade específica e particular que pudesse, a partir daí, abri-la
para as outras artes. Escolher re-fotografar alguns dos mestres de uma fotografia de
arte dita clássica, indica que não apenas o interesse em refletir a fotografia a partir dela
mesma não é novidade como também que é apenas através deste interesse que o
próprio meio em si pode ser explorado enquanto fonte inesgotável de possibilidades.
Nesse contexto, o ‘olhar para trás’ de Levine parece indicar a presença de
estratégias e metodologias fotográficas que, se em suas épocas, desarmonizavam das

11 WALL, 2007: 174-5.


12 WALL, 2007: 175.
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

abordagens estereotipadas do momento, hoje, retrospectivamente, estas mesmas


estratégias e metodologias se revelam extremamente atuais, prenunciadoras de um
entendimento pós-histórico da fotografia. Tal prenunciação fundamenta é identificada
por Cauquelin, no caso geral da arte, em três nomes em especial: Marcel Duchamp, o
próprio Andy Warhol e o marchand-galerista-colecionador, Leo Castelli. Ela os
classifica como ‘embreantes’ 13 – termo tomado emprestado da lingüística – pelo fato
destes homens terem revelado, ainda numa situação ‘moderna’, “indícios [que]
permitiam antever a chegada do novo estado de coisas” 14 , isto é, do novo ‘modelo’
proposto para a arte com a desestruturação dos dogmas modernistas. Neste sentido,
‘embreante’ é um termo aplicável também no caso da fotografia. E, ainda que não
tenham se tornado tão emblemáticos quanto Warhol ou Duchamp, a atuação
embreante destes fotógrafos/artistas no universo particular da fotografia contribuiu
para revelar a fotografia ela mesma como uma prenunciadora, uma embreante,
guardando certa vocação contemporânea desde seu surgimento e, por isso mesmo,
ampliadora deste seu universo em direção às outras artes.
Dois exemplos bastante conhecidos da arte em geral são de especial importância
neste caso. O primeiro exemplo diz respeito às fotografias e aos grupos tipológicos de
estruturas industriais do casal alemão Bernhard (Bernd) (1931-2007) e Hilla (1934)
Becher, enquanto o segundo trata das fotografias de lugares-comuns e dos “livros
conceituais” do americano Edward Ruscha (1937). Estas abordagens, contemporâneas
entre si, situam-se numa atmosfera pré-conceitual, concomitante às experiências pop
de Warhol, e indicam, enquanto embreantes, a presença das particularidades reveladas
pela adesão total ao fotográfico destes criadores no centro da discussão e da prática da
atual fotografia pós-histórica.
O registro fotográfico de caixas-d’água, instalações industriais, galpões, etc,
todos em franco e acelerado desaparecimento, realizado por Bernd Becher (Alemanha,
1931-2007) e Hilla Becher (Alemanha, 1934), não passaria de um simples inventário,
uma simples catalogação, como afirma Tamisier, “se [estas fotografias] não estivessem
governadas por um conceito, ou sobretudo por uma tese” 15 . Esta tese surge do encontro

13 Cauquelin (Cf. CAUQUELIN, 2005: 87-88) cita a definição de ‘embreante’ dada por Roman Jakobson em seu

Essais de linguistique générale (Le Seuil, 1963). Segundo ele, “o termo ‘embreante’ designa, em lingüística, unidades
que têm dupla função e duplo regime, que remetem ao enunciado (a mensagem, recebida no presente) e ao
enunciador que a anunciou (anteriormente). Os pronomes pessoais são considerados embreantes, pois ocupam um
lugar determinado no enunciado, onde são tomados como elementos do código, além de manterem uma relação
existencial com um elemento extralingüístico: o de fazer ato da palavra.”
14 CAUQUELIN, op. cit.: 87.
15 TAMISIER, 2007: 103.
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

de duas experiências fotográficas diferentes: de um lado, o fascínio incondicional de


Bernd pelas estruturas industriais desde a infância e sua percepção, já como estudante
da Kunstakademie Düsseldorf, de que a fotografia oferecia “uma representação
(depiction) muito mais vívida do assunto fotografado do que ele poderia alcançar” 16
com suas ilustrações das usinas; de outro, o comprometimento técnico de Hilla com a
fotografia, alicerçado na experiência como assistente de Walter Eichgrun, um fotógrafo
conservador, de técnica apurada 17 . Se o desaparecimento acelerado destas estruturas
industriais serviu de pretexto inicial para o trabalho do casal, a abordagem fotográfica
desenvolvida ao longo de toda uma vida forçou a reavaliação daquilo que até então era
compreendido como fotografia-como-arte e, assim, contribuiu para inserir a fotografia
em uma lógica pós-histórica de discussão e realização.
Para eles, usinas siderúrgicas, torres de água, celeiros, gasômetros, torres de
resfriamento, chaminés industriais, entre outras, eram consideradas “uma forma de
arquitetura que tem a essência do equipamento, ela não se relaciona ao design ou à
arquitetura. Ela diz respeito às construções de engenharia com uma estética própria.” 18
O simples fato de um alto-forno, em função das elevadas temperaturas em jogo, não
poder contar com nenhum adendo estético ou implicação de gosto, desperta uma
discussão do fotográfico e mesmo filosófica, a respeito das estratégias de valorização
das particularidades de cada meio e dos caminhos para que estas características possam
ser reveladas. Esta compreensão pessoal, sutil e poetisadora de uma realidade
extremamente marcada pela imponência do maquinal, no entanto, não se dá através de
nenhuma estratégia deformadora, psicologizante ou interpretativa destas estruturas. Ao
contrário, a estratégia dos Becher baseia-se na frontalidade da fotografia para isolar o
objeto e desestimular qualquer iniciativa discursiva de uma imagem representativa do
mundo.
Essa frontalidade era viabilizada, ou normatizada, por “regras protocolares” que
privilegiavam a clareza e o desnudamento do assunto fotografado. Assim, quando eles
optaram por um equipamento fotográfico pesado, com negativo de grande formato,
adequado a este tipo de fotografia contemplativa, não era para “enfatizar uma tradição,
ou para espelhar o passado; era simplesmente para usar uma câmera que tirasse fotos

16 COLLINS, 2002.
17 A família de Eichgrun fotografou, por três gerações, a corte prussiana.
18 COLLINS, 2002.
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

com o máximo de nitidez possível.” 19 , preterindo a manuseabilidade de um outro tipo


de câmera em prol da clareza da fotografia. Se propuseram-se a fotografar somente em
dias nublados, com uma luz difusa e homogênea, foi para que todas as suas ampliações
contassem com uma mesma gama de cinzas – sem contrastes profundos que pudessem
adicionar alguma dramaticidade ou distrair a atenção do assunto tratado –
descontextualizando e homegeneizando a estrutura, permitindo comparar as fotografias
entre si e somente naquilo que restava de essencial a esta comparação: a própria
estrutura em si mesma, em toda a plenitude de sua realidade material. Se utilizavam
escadas, ou se valiam de pequenos andaimes ou elevações de onde realizavam suas
fotografias, era para, mais uma vez, favorecer a visão clara e frontal das estruturas
industriais, ‘corrigindo’ a perspectiva e destacando o centro da estrutura em vez de sua
orientação verticalizante. Eliminada ao máximo a presença (subjetiva) do sujeito, o
objeto passa a falar de seu ponto de vista.
Desta maneira, estas regras protocolares delimitadas pelos Becher para sua abordagem
particular do fotográfico, segundo Tamisier, dão origem “a uma fotografia realizável
para ela mesma e por ela mesma, cujos objetos in situ não passam de suplementos” 20 ,
isto é, suas presenças foram esvaziadas por esta abordagem frontal, e suas existências
se tornaram um excesso. De uma ‘arquitetura de engenharia’, quer dizer, a partir de
uma estrutura construída estritamente de acordo com seu aspecto funcional,
subsistindo apenas daquilo que lhe basta, os Becher deram origem a uma “fotografia de
engenheiros”, como afirma Collins, que existe em e para suas especificidades. Uma
imagem gravada, documental, suficiente em sua eficiência, naquilo que ela é. “E quando
as estruturas foram sendo demolidas e desmontadas,

19 Id. Ibid.
20 TAMISIER, 2007: 109.
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

10
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

11

como se nunca estivessem estado ali, as fotos permaneceram” 21 , sustentando algo que
apenas elas foram capazes de revelar, mesmo quando aquelas estruturas ainda estavam
de pé.
No início dos anos 60, os Becher passaram a organizar e a apresentar estas
fotografias em grupos tipológicos, ainda que estas imagens fossem tratadas como
unidades autônomas. Esta organização desenvolve-se, basicamente, por duas razões,
segundo Collins. Primeiramente, a rigorosa abordagem fotográfica do casal dava origem
a um levantamento detalhado destas estruturas, “revelando grupos e sub-grupos,
próximo do que era feito pelos zoologistas do século XIX” 22 , favorecendo a comparação.
“Quanto mais delicadas as diferenças, melhor eram ilustradas pela tipologia.” 23 Em
segundo lugar, “a tipologia utilizada pelos Becher favorece enfaticamente o escrutínio, e
é isso o que torna cada uma de suas imagens fascinantes.” 24 Assim sendo, organizadas
em grupos de 15 fotografias, por exemplo, um comportamento instintivo de
aproximação e afastamento era naturalmente despertado no observador.
Em todo este contexto, é compreensível que os primeiros trabalhos dos Becher
tenham andado à margem da arte. E é compreensível também, pelas relações que
colocava em jogo, que o reconhecimento destas fotografias enquanto arte tenha partido
de Andre e Smithon, do outro lado do Atlântico – ainda que o trabalho dos alemães não
tivesse aspirações exatamente conceituais. Para Andre e Smithson, ficava claro que
estas fotografias estavam comprometidas com o esvaziamento do objeto, com um ‘além
da imagem’ que não se revelaria a não ser através da própria imagem, e que regras
claras capazes de fornecer uma leitura de transmutação temporal, ou explicitar uma
“temporalidade superior” 25 , como afirma Tamisier, ao que poderia ser tomado à conta
de pura catalogação, atribuíam ao trabalho uma seriedade diante do não-estético que é
sustentada pela ‘aura de seriedade em si’.
No entanto, apesar da sensibilidade dos artistas norte-americanos frente aos
propósitos dos Becher, seus trabalhos estavam voltadas para uma abordagem
primordialmente filosófica da arte, onde a fotografia, apesar de importante, não era
simplesmente a mídia escolhida, como no caso de Andre, ou assumia, na maioria das

21 COLLINS, 2002.
22 COLLINS, 2002.
23 Id. Ibid.
24 Id. Ibid.
25 TAMISIER, 2007: 107.
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

12

vez, um aspecto de registro diferenciado daquele desenvolvido pelo casal alemão, como
no caso das fotografias conceituais de Robert Smithson. Gostassem ou não, os Becher
tiveram sua arte situada na esfera do conceitualismo, e a seriedade com que seus
trabalhos eram desenvolvidos colaborava para o reconhecimento destas imagens como
inseridas no campo da arte e, conseqüentemente, para o estabelecimento da noção de
fotografia-como-arte, nas agitações iniciais da arte pós-histórica.
A arte norte-americana dos anos 60 e 70 não era insensível às abordagens de
frontalidade envolvendo a fotografia, ainda que os trabalhos desenvolvidos nesse
sentido assumissem características distintas da rigorosa fotografia dos Becher. Não se
pode afirmar, porém, que a fotografia de Bernd e Hilla tenha sido fundamental ao
desenvolvimento desta compreensão do fotográfico em meio à pop, ao minimalismo e
ao conceitualismo, ou se esta percepção se daria por si só, de uma maneira ou de outra.
De fato, o artigo de Andre 26 , na Artforum, de 72, deve ter influenciado fortemente toda
uma geração de artistas / fotógrafos dos Estados Unidos, mas à época, as imagens dos
Becher já eram realizadas há mais de 10 anos. Ainda assim, considerando o primor
técnico como uma dos pilares da fotografia dos Becher, é irônico assistir, na arte norte-
americana, esta frontalidade do fotográfico sendo conjugada a uma estratégia de
‘empobrecimento’ da mídia – numa linha que já vinha sendo desenvolvida pelo
fotógrafo Robert Frank e por outros nos anos 50 – mimetisando um amadorismo não
apenas técnico, mas também temático. Este empobrecimento manifestava-se como
crença metodológica generalizada da arte da década de 60 e 70, no não-estético
enquanto estratégia de arte. Não foi diferente com a fotografia. Segundo Jeff Wall,

“Muitos exemplos desta mímesis do amadorismo podem ser encontrados no corpus do


foto-conceitualismo, e talvez possa ser dito que praticamente todos os foto-conceitualistas
entregavam-se a ela em algum grau. Mas um dos casos mais puros e exemplares é o grupo de
livros publicados por Edward Ruscha entre 1963 e 1970.” 27

É então no sentido da conjugação da frontalidade do fotográfico ao amadorismo


técnico, que reafirma a seriedade de sua abordagem na publicação de livros com as
imagens realizadas de acordo com esta premissa, que Ed Ruscha é identificado como o

26A atenção para o trabalho dos Becher nos Estados Unidos foi despertada a partir do artigo “A Note on Bernd and
Hilla Becher”, de Carl Andre, na Artforum, de dezembro de 1972, pp. 59-61.
27 WALL, 2007: 165.
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

13

segundo exemplo de embreante fotográfico desta pesquisa. Num momento em que


grande parte da arte norte-americana diluía as especificidades da fotografia em meio a
outros interesses, Ruscha explorou a fotografia a partir do próprio fotográfico,
renovando a compreensão do plano de representação da imagem ao eleger como tema
de suas fotos a face banal e corriqueira do ambiente a sua volta.

Para Wall, foi através deste processo de ‘amadorização’ que a fotografia pôde,
mais uma vez, aprofundar a reflexão sobre suas particularidades, superando
definitivamente a investigação no plano do objeto-fotografia em prol dos
desdobramentos incitados por uma idéia, um conceito, por algo para além da imagem,
que não o referente nem mesmo o plano da imagem em si, em termos formais e
técnicos. É neste sentido que, em seu texto Marks of Indifference, Jeff Wall procura
traçar “os caminhos que levaram a fotografia a realizar-se decisivamente como uma arte
modernista nos experimentos dos anos 60 e 70” 28 , onde ele aponta como um dos
principais componentes (ou motivações) desta realização o fato de a fotografia ser uma
arte de figuração, “o único resultado possível da câmera” 29 . O estímulo dado à pintura e
à escultura, durante o modernismo, para questionar o valor da técnica e da habilidade
na representação, engendra-se tardiamente no meio fotográfico com esse encolhimento
do apuro técnico, permitindo testar “o meio a partir de seus elementos indispensáveis,
sem abandonar a figuração”. 30

Assim, quando as investigações permeadas pelo fotográfico tornaram-se


recorrentes na Arte Conceitual, já no final dos anos 60 e na década de 70, elas tinham a
seu favor as experiências acumuladas na agitação das primeiras cinco décadas do século
XX. Por um lado, estas investigações compreenderam a lição de abandono do
virtuosismo deixada por mestres da Straight Photography, valendo-se do ‘espírito de
reportagem’ e de registro que atuou como método de desligamento mais evidente entre
a fotografia e a tradição pictórica – principalmente através da negação da composição e
da “encenação”. Por outro lado, as fotografias da Arte Conceitual se beneficiavam da
radicalização das abordagens de transposição das barreiras entre a high art e a low art,
entre a arte e a vida, entre outras, levadas adiante pela Pop Art.

28 WALL, 2007: 143.


29 Id. Ibid.: 158-159.
30 Id. Ibid.: 159.
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

14

As discussões trazidas à tona pela Pop impulsionavam essa experimentação


guiada pelo “amadorismo” e pelo “anonimato”, pelo “não-estético” e pelo “não-artista”.
A exploração das novas circunstâncias que o fenômeno dos mass media propiciaram a
respeito das relações entre imagem, objeto e produto, entre espectador e consumidor,
abriu de vez as portas à hibridação arte-vida, e a vida cotidiana, bem distante daquela
da propaganda, passava a servir, cada vez mais, de matéria de investigação à arte. Isto
ficava patente especialmente nas manifestações fotográficas iniciais da Pop, onde
parecia haver “uma corrida para se achar a imagem mais perfeita, metafisicamente
banal”, achar “aquela cifra que demonstra a habilidade da cultura de continuar mesmo
quando todo aspecto do que foi conhecido na arte moderna como seriedade, expertise e
reflexividade já havia caído” 31 . E foi justamente através desta brecha, onde se
confundem a vida comum e a produção artística, que a Arte Conceitual, já atuando,
mesmo que desavisadamente, sob uma lógica pós-histórica, intuiu direcionar os
procedimentos fotográficos que mais tarde constituiriam uma noção de fotografia
contemporânea como um dos destaques da arte de nosso tempo.

Considerando a efemeridade de muitas de suas atividades e mesmo o hesitante


status a elas conferido, a Arte Conceitual tinha na fotografia uma ferramenta não
apenas de registro como também de reafirmação da intenção dessas atividades
enquanto arte. Se, por um lado, estas atividades ou ‘ações de arte’ do conceitualismo
eram tão ‘desmontáveis’ quanto as estruturas industriais dos Becher, por outro, a
banalidade da grande maioria destas proposições era o que ditava o ritmo destas
fotografias, tornando visível a lacuna aberta pela atividade em si. Mais do que a
transgressão calculada das vanguardas no início do século XX, a Arte Conceitual levou
adiante as experiências Pop com o não-estético como estratégia de discussão da obra-
de-arte, através do banal e do cotidiano, enquanto transgressão temática, e do
amadorismo, enquanto transgressão técnica, onde, segundo Wall,

“o não-estético é transformado em arte, mas ao longo da linha de fratura do choque. O


choque causado pela aparição do não-estético em um trabalho sério é acalmado pela aura de
seriedade em si.” 32

31 WALL, 2007: 160.


32 WALL, 2007: 160.
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

15

No entanto, pode-se dizer que esta conquista da seriedade do não-estético,


especialmente em se tratando de fotografia, não se filiaria tão facilmente à arte do
conceitualismo, exclusivamente via Warhol. Considerando a pura noção de registro
como um exemplo típico do não-estético fotográfico, era preciso que esta noção se
mostrasse passível de uma reestruturação a favor da arte, transformadora do banal
enquanto potência reveladora, a partir da própria fotografia. E nesse sentido, a
experiência de Ruscha, ainda no início dos anos 60, que poderíamos julgar ingênua
diante de todos os desdobramentos alcançados pela fotografia até o final dos anos 70,
mostra-se hoje, talvez, como a mais “fotográfica” das abordagens pré-contemporâneas
do conceitualismo. Enquanto as fotografias de “monumentos” de Smithson no final dos
anos 60 eram sustentadas por uma estrutura discursiva capaz de rebater quase todo
tipo de crítica, em Ruscha a resposta incisiva vinha no silêncio de uma imagem muda e
esvaziada, desorientando e acalmando pela “aura de seriedade em si”, de maneira que o
choque causado pela aparente ausência de propósito de suas imagens fizesse com que
elas se remetessem muito mais fortemente à própria fotografia, enquanto reveladora de
uma outra realidade. De certo, as questões de consumo e reprodução em série da Pop
eram filtradas por Ruscha, mas, como explica Mariño, “se Warhol levantava seu
imaginário fotográfico das fontes de cultura de massa, ele também redirecionava esse
imaginário para o venerável meio da pintura. Ruscha, ao contrário, utilizava a
fotografia diretamente (...)” 33 .
Considerando ainda que as fotografias de Smithson, por exemplo, nasciam de
um conceito, de uma idéia ou ao menos de um discurso afim de estimular uma
discussão e assim retornar ao conceito, as de Ruscha nasciam da própria imagem e não
necessariamente clamavam por um discurso estruturado. A abordagem do artista
estava tão clara na imagem, que pouco precisava ser realmente dito.

“Embora uma ou duas imagens sugiram algum reconhecimento do critério de fotografia


de arte, ou mesmo de uma fotografia de arquitetura (e.g., ‘2014 S. Beverly Glen Blvd.’), a
maioria parecia ter prazer em uma rigorosa exposição de lapsos genéricos: relação imprópria de
lentes para a distância do assunto, insensibilidade quanto à hora do dia ou qualidade da luz,
enquadramento excessivamente funcional, com excisões abruptas dos objetos periféricos, falta
de atenção no caráter específico do momento que estava sendo fotografado – num todo, uma

33 MARIÑO, 2004: 72.


Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

16

performance hilária, uma mímesis [mimicry] quase sinistra do modo como “as pessoas” fazem
imagens das moradias e construções com as quais estão envolvidas.” 34

Dessa maneira, para Wall, o que estas séries de fotografias de postos de gasolina,
de piscinas, e fachadas deixavam expostas as relações que a pessoa comum desenvolve
com o meio no qual está inserida e como essa incapacidade de distanciamento pode
atuar em favor da não-estética enquanto estratégia de arte, através do fotográfico.
As especificidades da fotografia expostas por esta abordagem eram
aprofundadas, como no caso dos Becher, pela estratégia de exibição destas imagens.
Ainda que repletas de “erros de amador”, de limitações técnicas, essas imagens eram
organizadas em livros que nada informavam além dos locais onde as fotografias foram
tiradas e do ano de sua realização, reforçando, entre outros aspectos, a noção de que
estas fotografias se apropriavam de uma experiência direta do mundo como estratégia
de reflexão sobre suas próprias particularidades, e não como método de
reconhecimento ou preservação documental de um referente pré-existente a sua
realização. Ainda de acordo com Wall, “enquanto trabalhos redutivistas,” essas
fotografias são “modelos de nossas relações reais com seus assuntos/temas, em vez de
representações dramatizadas que transfiguram essas relações ao tornarem impossível
para nós estabelecer tais relações com eles.” 35 Estas relações reais, no entanto, devem
ser compreendidas no âmbito do acesso direto, viabilizado tanto pela fotografia de
Ruscha quanto pela dos Becher, àquilo que subsiste como fundamental e específico do
assunto fotografado. Piscinas, postos de gasolina, prédios, ruas e fachadas tornavam-se
suplementos de uma realidade exclusivamente fotográfica.
Assim, enquanto as investidas fotográficas posteriores, através de Smithson e
Graham, por exemplo, pareciam sempre pender para fora da imagem (e em direção à
linguagem), os postos de gasolina ou as piscinas de Ruscha acabam de certa forma por
enfatizar a idéia de que “uma foto é sempre invisível”. 36 Não no sentido das barreiras
impostas pelo que Barthes chamava de “teimosia do referente” 37 , mas sim, levando em
consideração a inextrincável capacidade de figuração da fotografia que, segundo Wall, a
impediria de “seguir o conceitualismo puro ou lingüístico, até suas fronteiras” e assim

34 WALL, 2007: 165.


35 WALL, 2007: 265.
36 BARTHES, 1984: 16.
37 Id. Ibid.: 15-16.
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

17

realizar-se como uma “experiência da negação da experiência”. É justamente em função


desta contribuição da fotografia na história das imagens, isto é, ser capaz de viabilizar o
acesso direto a uma realidade específica do assunto fotografado de um modo
particularmente fotográfico, e de nenhum outro, que a foto se torna invisível, se torna
uma experiência: proporcionando uma “experiência da experiência” 38 . Pois, como bem
assinalado por Tamisier em relação às fotografias dos Becher, e que também pode ser
aplicado à Ruscha,

“(...) não se trata de revelar uma ordem ou uma estética do mundo, um formalismo que
ultrapassaria a superfície fotográfica, que estruturaria o mundo, e faria retornar o Referente
fotográfico como vínculo da fotografia enquanto representação.” 39

O desprendimento técnico simulado e a banalidade temática falseavam, em Ruscha, a


importância do referente nas relações construídas pela fotografia. No entanto, sua
“quase uma não-fotografia” 40 descontextualizava o local fotografado a partir da
oscilação criada no observador entre o reconhecimento e o estranhamento de sua
própria visão “amadora”, numa imagem esvaziada de qualquer sentido enquanto
imagem-de-arte. Ao abrir mão da imagem técnica ou esteticamente “correta”, Ruscha
reforçava as especificidades da fotografia adicionando uma dramaticidade que não se
vê nas imagens dos Becher, mas que, de algum modo, surtia efeito no sentido mesmo de
uma inversão eficiente: se, para uma estrutura estranha, suja, restrita e distante, como
aquelas fotografadas por Bernd e Hilla, a claridade e a nitidez da imagem fotográfica se
encarregavam de impulsionar esta oscilação entre o reconhecimento e o
estranhamento, para os lugares de Ruscha, que eram acessíveis, corriqueiros, banais,
esta oscilação funciona a partir da própria inclusão da banalidade do olhar cotidiano e
despretensioso na abordagem fotográfica.

Esta oscilação, por fim, talvez tenha sido a lição mais importante deixada por
estes embreantes para a fotografia pós-histórica. O arraigamento das especificidades da
fotografia nas abordagens dos Becher e de Ruscha, em vez de enclausurar a mídia
fotográfica em seus próprios círculos, esterilizando-a – como no processo de

38 WALL, 2007: 167, passim.


39 TAMISIER, 2007: 107.
40 Ed Ruscha in Mariño, 2004: 64.
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

18
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

19

esterilização da pintura em face dos radicalismos do modernismo – pôde, ao contrário,


dotá-la de um destemor diante das circunstâncias favoráveis à hibridação da época
atual. Investigar suas particularidades não deveria fechar a fotografia em definições que
viessem a estagná-la sob este e/ou aquele ‘modelo’ bem-sucedido. A abordagem destes
embreantes e a compreensão que eles demonstraram ter a respeito das relações
colocadas em jogo pelas especificidades do fotográfico, contribuíram para o
reconhecimento definitivo da fotografia enquanto arte, curiosamente, dados os esforços
modernistas, recolocando a figuração no centro da discussão da imagem
contemporânea.
Numa declaração um tanto radical para os dias atuais, um dos pioneiros da Nova
Objetividade, Albert Renger-Patzsch, em um artigo de 1927, conclamava outros
fotógrafos para a observância das especificidades do fotográfico, julgando necessário
colocar em discussão a autonomia da fotografia:

“Abandonemos então a arte aos artistas e procuremos fazer com os instrumentos da


fotografia fotografias que possam existir graças as suas qualidades fotográficas sem que
tomemos emprestado o que quer que seja da arte.” 41

Bem compreendida, ou melhor, contemporaneamente compreendida, esta autonomia


contribuiria, sim, num assenhoramento da fotografia de suas qualidades, mas, em
última instância, é justamente esta mesma autonomia que, não muito tempo depois de
Renger-Patzsch, veio colaborar, já numa lógica pós-histórica, com a imbricação da
fronteira arte-fotografia, mantendo preservadas as especificidades do meio fotográfico.
Já na contemporaneidade, Tamisier também não ignora que as possibilidades
abertas pelo fotográfico em direção à arte tornam-se frágeis se a fotografia não se torna
ciente de seu próprio potencial. Ele afirma:

“(...), a fim de que esta fotografia contemporânea seja possível, a fim de que a arte
contemporânea a receba e a instaure como um dos pólos-maiores de sua vitalidade, é preciso
que ela seja instituída, definida, normatizada. (...) Para que a imagem fotográfica participe da
hibridação, se mestice, contamine e seja contaminada, é preciso que ela tenha algo como um

41 RENGER-PATZSCH apud TAMISIER, 2007: 97.


Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

20

código genético através do qual ela fusiona, recupera, substitui, gene por gene ou totalmente os
códigos dos outros materiais.” 42

E foi exatamente isto o que reflexão suscitada pelos trabalhos sérios dos Becher e de
Ruscha, para além de toda e qualquer estratégia utilizada, imprimiu à fotografia: um
esforço em tornar-se capaz, a sua maneira, de acessar e permitir o acesso às outras
artes, certa de que suas especificidades estão asseguradas. A influência destes
embreantes na arte não se daria de forma tão irrepreensível, caso o sentido final de seus
trabalhos não estivessem voltados antes para uma abertura do que para uma tautologia
fotográfica. E é a própria contemporaneidade que confirma o papel decisivo destes
artistas na arte como um todo e na fotografia em particular. Os Becher passaram a
lecionar, a partir de 1976, na universidade onde estudavam 43 , a Kunstakademie
Düsseldorf, e entre seus alunos encontravam-se alguns dos mais destacados fotógrafos
da atualidade, entre eles, Thomas Struth, Andreas Gursky, Candida Höffer e Thomas
Ruff. Edward Ruscha foi nomeado, em 2006, conselheiro do Museum of Contemporary
Art de Los Angeles, e sua embreante atemporalidade pode ser ilustrada por um trecho
de um artigo de Douglas Crimp, que narra sua surpresa ao encontrar um exemplar do
livro de Ruscha, Twenty-six Gasoline Stations, de 1963, nas estantes da biblioteca
pública de Nova York, na seção de ‘Transportes’, quando realizava, na década de 80,
uma pesquisa encomendada sobre a história dos transportes. Ele recorda:

“Lembro-me de ter pensado como era curioso que o livro tivesse sido catalogado
errôneamente e estivesse situado entre os livros de automóveis, estradas e similares. (...) Mas
agora, devido às considerações surgidas do debate pós-moderno, mudei de opinião. Agora sei
que os livros de Ed Ruscha não correspondem às categorias de arte que servem para catalogar
livros na biblioteca, e que nisto consiste parte de seu valor. O fato de que não haja lugar para
Twenty-six Gasoline Stations dentro do atual sistema de classificação é um índice do
radicalismo desta obra em relação aos modos de pensar estabelecidos.” 44

Voltando às re-fotografias de Sherrie Levine, pode-se compreender então por


que o seu aparecimento no final dos anos 70 soa como uma síntese acertada das

42 TAMISIER, 2007: 92.


43 Bernd Becher faleceu em 2007.
44 CRIMP, 2003: 48.
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

21

potencialidades do fotográfico, deflagradas no início dos anos 60. Em pouco menos de


duas décadas, arte e fotografia afinaram seus ritmos, seus interesses, e os velhos
mestres da fotografia viram, inusitadamente, suas aspirações à arte realizadas através
de suas próprias imagens. Através de sua estratégia, Levine parecia decretar que a
fotografia estava suficientemente experimentada, que poderia aventurar-se resoluta em
meio as abordagens (cada vez mais filosóficas) da arte. No final dos anos 70, então, a
fotografia mostrou-se determinante na compreensão de uma contemporaneidade já
formada na arte bem distante da lógica modernista.
Além disso, renovando a compreensão da imagem, as re-fotografias dos mestres
feitas por Levine davam ares de sagrado à dessacralização da arte, reativando a
discussão sobre a obra-de-arte e a obra-prima na contemporaneidade. Para Danto,
ainda que seja surpreendente, a possibilidade de existirem obras-primas mesmo depois
do ‘fim da arte’, pode ser justificada, ainda que insuficientemente segundo ele próprio,
pelo fato de que as obras-primas pós-históricas que ele poderia enumerar seriam

“(...) impossíveis em outras condições: elas requereram, com efeito, uma estética e uma
tecnologia que não podiam existir quando se estava ainda na época do modernismo. Se, com
Clement Greenberg, admitimos a idéia de que o modernismo se define pelo acesso à consciência
de si e, por conseqüência, de que a arte deve ser o tema da arte modernista, estamos, na época
pós-moderna, libertos dessa auto-análise e, por conseqüência, novamente capazes de reatar
com a grande tradição da obra-prima, na busca de visões mais formidáveis.” 45

Especificamente em relação à fotografia, é Soulages quem reafirma este sentido


fundamental do meio como obra, afirmando que “(...) em resumo, [a fotografia] toma
toda a sua força, todo o seu mistério e todo o seu valor apenas quando ela se torna
obra.” 46
São estas visões ‘formidáveis’ que, através de abordagens variadas, a fotografia
contemporânea vem construindo.

45 DANTO, 2003: 91.


46 SOULAGES, 2001: 307.
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

22

REFERÊNCIAS

ARCHER, Michael. Arte Contemporânea – Uma história concisa. Tradução: Alexandre Krug e Valter Lellis
Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BACHELARD, Gaston. Le droit de rêver. 2ème édition – Paris: Quadrige/PUF, 2002.

BARTHES, Roland. A Câmara Clara – Nota sobre a fotografia. Tradução: Júlio Castañon Guimarães. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade – O pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1996. – (Coleção Leitura).

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica in Walter Benjamin, Obras
Escolhidas. Magia e técnica, arte e política – São Paulo: Brasiliense, 1987.

BOURRIAUD, Nicolas . Esthétique relationnelle – Collection Documents sur l’art. Les presses du réel: 1998.

_______________. O que é um artista (hoje)? in Revista Arte & Ensaios, nº 10. Tradução Felipe Barbosa. Rio
de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais / Escola de Belas Artes, UFRJ, 2003. FERREIRA, Glória e
VENÂNCIO FILHO, Paulo (org.) – pp. 77-78.

CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea: uma introdução. (tradução: Rejane Janowitzer) – São Paulo:
Martins, 2005.

CHASSEY, Éric de. Platitudes. Une histoire de la photographie plate. Paris: Gallimard, 2006.

COLLINS, Michael. The Long Look in TATE Magazine, issue 1, sept./oct. 2002.
http://www.tate.org.uk/magazine/issue1/thelonglook.htm

COTTON, Charlotte. La Photographie dans l’art contemporain. Paris: Thames & Hudson, 2005. (traduzido do
original em inglês, de 2004)

COUTO, Maria de Fátima Morethy, Duas visões sobre a Pop Art: Clement Greenberg e Arthur Danto in
Arte & Ensaios, nº 10, ano 2003, pp. 51-57.

CRIMP, Douglas. Del museo a la biblioteca in PICAZO, G. e RIBALTA, J. Indiferencia y Singularidad .


Barcelona: Gustavo Gili, 2003. Título original do artigo: “The Museum’s Old / The Library’s New Subject”, publicado
em BOLTON, R. (ed.), The Contest of Meaning: Critical Histories of Photography – Cambridge: The MIT Press,
1989.

____________. A atividade fotográfica do pós-modernismo. In: Revista Arte & Ensaios n. 11. Rio de
Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/Escola de Belas Artes. UFRJ. 2004: 127-133. Tradução:
Claudia Tavares.

DAMISCH, Hubert. La Dénivelée. À l’épreuve de la photgraphie. Paris: Seuil, 2001.

DANTO, Arthur C. Philosophizing Art. California: University of California Press, 2001.

____________ . A idéia de obra-prima na arte contemporânea. In: Revista Arte & Ensaios n. 10. Rio de
Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/Escola de Belas Artes. UFRJ. 2003: 85-91. Tradução:
Guilherme Bueno.

____________. Após o Fim da Arte: A Arte Contemporânea e os Limites da História. Tradução: Saulo
Krieger. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

DE DUVE, Thierry. Voici, 100 ans d’art contemporain. Gand-Amsterdam: Ludion, 2000.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Tradução de Eloisa de Araújo Ribeiro; revisão filosófica de Renato Janine
Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2007 – (Cinema 2).

ELKINS, James (ed.). Photography Theory. New York: Routledge, 2007.

FRANCASTEL, Pierre. Pintura e Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

FRIED, Michael. Being There : Michael Fried on two pictures by Jeff Wall. ArtForum, setembro de 2004.
http://www.findarticles.com/p/articles/mi_m0268/is_1_43/ai_n7069043
Leonardo Ventapane trecho da Dissertação de Mestrado "O olhar movimento no projeto fotográfico de Jeff Wall" UFRJ-PPGAV-2008

23

____________ . Arte e objetidade. In: Revista Arte & Ensaios n. 09. Rio de Janeiro. Programa de Pós-
Graduação em Artes Visuais/Escola de Belas Artes. UFRJ. 2002: 130-147. Tradução: Milton Machado.

___________. Contre la théâtralité – Du Minimalisme à la photographie contemporaine. Paris :


Gallimard, 2007.

___________. Jeff Wall, Wittgenstein et le quotidien. Les Cahiers du Mnam, no. 92, verão de 2005.

GALASSI, Peter. Jeff Wall. New York : The Museum of Modern Art, 2007. (Publicado em conjunto com a exposição
Jeff Wall, organizada pelo MoMA, de Nova York, e pelo San Francisco Museum of Modern Art, em 2007-2008).

GINGRAS, Nicolas. De l’invisible et autres préoccupations photographiques. 1999.


http://media.macm.org/biobiblio/Wall_j/wall-gingras-fr1.htm - acessado em 2006.

GRUNDBERG, Andy. Crisis of the real: writings on photography since 1974 (Aperture Writers & Artists
on photography), New York: Aperture, 2005.

HEGEL, Friedrich. Estética: a idéia e o ideal. In: Hegel. Tradução de Orlando Vitorino. São Paulo: Nova Cultural,
1991. (coleção: Os Pensadores)

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard (Problems of Modern European
Thought). London: Harper Collins, 1991.

KRAUSS, Rosalind. Sculpture in the Expanded Field. In: October, vol. 8 (Spring, 1979), pp. 30-44.

MARIÑO, Melanie. Almost not photography. In “Conceptual art: theory, myth, and practice”, editado por
Michael Corris, Cambridge University Press, 2004.

NEWHALL, B. (ed.) Photography: Essays & Images. Boston: MoMA, New York Graphic Society, 1980.

PICAZO, Gloria e RIBALTA, Jorge (eds.) Indiferencia y Singularidad. Barcelona: Gustavo Gilli, 2003.

ROUILLÉ, André. La photographie: Entre document et art contemporain. Paris: Gallimard, 2005.

SONTAG, Susan.Regarding the pain of others. New York: Picador, 2003.

SOULAGES, François. Esthétique de la photographie. Paris: Nathan, 2001.

TAMISIER, Marc. Sur la photographie contemporaine. Paris: L’Harmattan, 2007.

TUMLIR, Jan. The Hole Truth – Jeff Wall Interview. ArtForum, março de 2001.
www.findarticles.com/p/articles/mi_m0268/is_7_39/ai_75761314

WALL, Jeff. “Marks of Indifference”: Aspects of Photography in, or as, Conceptual Art. In:
“Reconsidering the object of art:1965-1975”, publicação que acompanhou a exposição homônima, org. por Ann
Goldstein e Anne Rorimer, entre 15 de outubro de 1995 e 4 de fevereiro de 1996.

________. Jeff Wall: Selected Essays and Interviews. New York: The Museum of Modern Art, 2007.
(Publicado em conjunto com a exposição Jeff Wall, organizada pelo MoMA, de Nova York, e pelo San Francisco
Museum of Modern Art, em 2007-2008)

WOOD, Paul. Arte Conceitual. Tradução: Betina Bischof. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

REFERÊNCIAS - OUTRAS MÍDIAS

Bad at Sports
http://badatsports.com

TATE – Online Events Archive


http://www.tate.org.uk/onlineevents/archive/

Você também pode gostar