1) A fotografia e o cinema libertaram as artes plásticas da obsessão pela semelhança ao satisfazerem definitivamente o apetite humano por ilusão de forma objetiva através da reprodução mecânica.
2) Ao contrário da pintura, a fotografia beneficia de uma transferência de realidade do objeto para a sua imagem, conferindo-lhe credibilidade e poder de convicção sobre o espectador.
3) O cinema completa a objetividade fotográfica ao adicionar o elemento do movimento, concluindo assim a
1) A fotografia e o cinema libertaram as artes plásticas da obsessão pela semelhança ao satisfazerem definitivamente o apetite humano por ilusão de forma objetiva através da reprodução mecânica.
2) Ao contrário da pintura, a fotografia beneficia de uma transferência de realidade do objeto para a sua imagem, conferindo-lhe credibilidade e poder de convicção sobre o espectador.
3) O cinema completa a objetividade fotográfica ao adicionar o elemento do movimento, concluindo assim a
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1) A fotografia e o cinema libertaram as artes plásticas da obsessão pela semelhança ao satisfazerem definitivamente o apetite humano por ilusão de forma objetiva através da reprodução mecânica.
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Uma psicanálise das artes plásticas poderia considerar a prática
do embalsamamento como um facto fundamental da sua génese. Na origem da pintura e da escultura encontraria o «complexo» da múmia. A religião egípcia, toda ela orientada para a morte, fazia depender a sobrevivência da perenidade material do corpo. Com isso, satisfazia uma necessidade fundamental da psicologia humana: a defesa contra o tempo. A morte não é senão a vitória do tempo. Fixar artificialmente as aparências carnais do ser é arrancá-lo ao rio da duração: arrumá-lo na vida. Era natural salvar estas aparências na própria realidade do morto, na sua carne e nos seus ossos. A primeira estátua egípcia é a múmia do homem curtido e petrificado no natrão. Mas as pirâmides e os labirintos dos corredores não eram garantia suficiente contra a eventual violação do sepulcro; era preciso ainda tomar outras providências contra o acaso, multiplicar as hipóteses de salvaguarda. Assim, colocavam-se perto do sarcófago, junto com o trigo destinado à alimentação do morto, estatuetas de terracota, espécies de múmias sobressalentes capazes de substituírem o corpo no caso de este ser destruído. Deste modo se revela, nas origens religiosas da estatuária, a sua função primordial: salvar o ser pela aparência. E sem dúvida se pode considerar um outro aspecto do mesmo projecto, tomado na sua modalidade activa, o urso de argila crivado de flechas na caverna pré-histórica, substituto mágico identificado ao animal vivo para a eficácia da caça. É ponto assente que a evolução paralela da arte e da civilização destituiu as artes plásticas destas funções mágicas (Luís XIV não se fez embalsamar: contentou-se com o seu retrato, pintado por Lebrun). Mas esta evolução não podia senão sublimar, em nome do pensamento lógico, essa necessidade incoercível de exorcizar o tempo. Não se acredita já na identidade ontológica de modelo e retrato, mas admite-se que este nos ajuda a recordar aquele e, portanto, a salvá-lo de uma segunda morte espiritual. A fabricação da imagem libertou-se decididamente de qualquer utilitarismo antropocêntrico. Não se trata já da sobrevivência do homem, mas, de forma mais geral, da criação de um universo ideal à imagem do real e dotado de um destino temporal autónomo. «Que coisa vã a pintura» se por trás da nossa admiração absurda não se descortinar a necessidade primitiva de resistir ao tempo pela perenidade da forma! Se a história das artes plásticas não é somente a da sua estética, mas em primeiro lugar a da sua psicologia, então ela é essencialmente a da semelhança, ou, se se quiser, do realismo. A fotografia e o cinema, enquadrados por estas perspectivas sociológicas, explicariam muito naturalmente a grande crise espiritual e técnica da pintura moderna que se origina em meados do século XIX. No seu artigo «Verve», André Malraux escrevia que «o cinema não é senão o aspecto mais evoluído do realismo plástico que começa com o Renascimento e encontra a sua expressão limite na pintura barroca». É verdade que a pintura universal alcançara diferentes tipos de equilíbrio entre o simbolismo e o realismo das formas, mas, no século XV, a pintura ocidental começou a desviar-se da preocupação primordial com a realidade espiritual expressa por meios autónomos, para combinar a sua expressão com a imitação mais ou menos completa do mundo exterior. O acontecimento decisivo foi sem dúvida a invenção do primeiro sistema científico e, de certo modo, já mecânico: a perspectiva (a câmara escura de Da Vinci prefigurava a de Niépce). Esta permitia ao artista conferir a ilusão de um espaço a três dimensões onde os objectos se pudessem situar como na nossa percepção directa. Daí em diante a pintura viu-se esquartejada entre duas aspirações: uma propriamente estética — a expressão das realidades espirituais em que o modelo se encontra transcendido pelo simbolismo das formas —, e outra que não é senão um desejo puramente psicológico de substituir o mundo exterior pelo seu duplo. Esta necessidade de ilusão, ao desenvolver-se tão rapidamente, em função da sua própria satisfação, devorou pouco a pouco as artes plásticas. No entanto, não tendo a perspectiva resolvido senão o problema das formas e não o do movimento, era natural que o realismo se prolongasse na procura da expressão dramática do instante, espécie de quarta dimensão psíquica capaz de sugerir a vida na imobilidade torturada da arte barroca . Certamente que os grandes artistas sempre conseguiram a síntese dessas duas tendências: hierarquizaram-nas, dominando a realidade e absorvendo-a na arte. Acontece, porém, que nos encontramos em presença de dois fenómenos essencialmente diferentes, que uma crítica objectiva deve saber dissociar para compreender a evolução pictórica. A necessidade de ilusão não cessou, a partir do século XVI, de trabalhar interiormente a pintura. Necessidade totalmente mental, em si mesma não estética, cuja origem só se pode ir buscar à mentalidade mágica, mas necessidade eficaz, cuja atracção desorganizou profundamente o equilíbrio das artes plásticas. A querela do realismo na arte provém deste mal entendido, da confusão entre a estética e o psicológico, entre o verdadeiro realismo, que resulta da necessidade de exprimir a significação simultaneamente concreta e essencial do mundo, e o pseudo- realismo de aparência enganosa (ou do engano do espírito), que se contenta com a ilusão das formas . E é por isso que a arte medieval, por exemplo, parece não sofrer tal conflito: violentamente realista e altamente espiritual ao mesmo tempo, ignora o drama que as possibilidades técnicas vieram revelar. A perspectiva foi o pecado original da pintura ocidental.
Niépce e Lumière foram os seus redentores. A fotografia, ao
redimir o barroco, libertou as artes plásticas da sua obsessão pela semelhança. Isto porque a pintura se esforçava, em vão, por nos dar a ilusão, e esta ilusão bastava à arte, enquanto a fotografia e o cinema são descobertas que satisfazem definitivamente, e na sua própria essência, a obsessão de realismo. Por mais hábil que fosse o pintor, a sua obra estava sempre hipotecada por uma inevitável subjectividade. Diante da imagem uma dúvida persistia, por causa da presença do homem. Assim, o fenómeno essencial na passagem da pintura barroca à fotografia não reside no mero aperfeiçoamento material (a fotografia ainda continuaria por muito tempo inferior à pintura na imitação das cores), mas num facto psicológico: a satisfação completa do nosso apetite de ilusão por uma reprodução mecânica da qual o homem é excluído. A solução não estava no resultado, mas na génese . É por isso que o conflito entre estilo e semelhança é um fenómeno relativamente moderno, cujos vestígios não se poderiam encontrar antes da invenção da chapa sensível. Vê-se bem que a objectividade fascinante de Chardin nada tem a ver com a do fotógrafo. É no século XIX que começa verdadeiramente a crise do realismo, da qual Picasso é hoje o mito, que irá pôr em causa ao mesmo tempo as condições de existência formal das artes plásticas e os seus fundamentos sociológicos. Liberta do complexo de semelhança, a pintura moderna abandona-a ao povo , que passa a identificá-la, daí em diante, por um lado com a fotografia, e por outro com a única pintura que lhe é dedicada.
A originalidade da fotografia em relação à pintura reside, pois, na
sua objectividade essencial. Tanto é que se chama precisamente «objectiva» ao conjunto de lentes que constitui o olho fotográfico em substituição ao olho humano. Pela primeira vez, entre o objecto inicial e sua representação nada se interpõe a não ser um outro objecto. Pela primeira vez também, uma imagem do mundo exterior se forma automaticamente, sem a intervenção criadora do homem, segundo um rigoroso determinismo. A personalidade do fotógrafo só entra em jogo pela escolha, pela orientação, pela pedagogia do fenómeno: por muito visível que esteja na obra final, não figura nela na mesma qualidade que a do pintor. Todas as artes são fundadas na presença do homem; somente na fotografia usufruímos da sua ausência. Ela age sobre nós como um fenómeno «natural», como uma flor ou um floco de neve cuja beleza é inseparável de sua origem vegetal ou telúrica. Esta génese automática subverteu radicalmente a psicologia da imagem. A objectividade da fotografia confere-lhe um poder de credibilidade que está ausente de qualquer obra pictórica. Sejam quais forem as objecções do nosso espírito crítico, somos obrigados a acreditar na existência do objecto representado, efectivamente «re-presentado», isto é, tornado presente no tempo e no espaço. A fotografia beneficia de uma transferência de realidade da coisa para a sua reprodução . O mais fiel desenho pode fornecer-nos mais indícios acerca do modelo, mas não possuirá nunca, a despeito do nosso espírito crítico, o poder irracional da fotografia que domina a nossa convicção. A pintura também já não é senão uma técnica inferior da semelhança, um sucedâneo dos processos de reprodução. Só a objectiva nos dá do objecto uma imagem capaz de «libertar», do fundo do nosso inconsciente, esta necessidade de substituir um objecto por algo melhor do que um decalque aproximado: o próprio objecto, mas liberto das contingências temporais. A imagem pode ser nebulosa, deformada, sem cores, sem valor documental; mas ela procede pela sua génese da ontologia do modelo — ela é o modelo. Daí o encanto das fotografias de álbuns. Essas sombras cinzentas ou sépias, fantasmagóricas, quase ilegíveis, que deixam de ser os tradicionais retratos de família para constituírem a inquietante presença de vidas fixadas no seu tempo, libertas do seu destino, não pelo prestígio da arte mas em virtude de uma mecânica impassível: porque a fotografia não cria, como a arte, eternidade, ela embalsama o tempo, subtraindo-o simplesmente à sua própria corrupção.
Nesta perspectiva, o cinema vem a ser a consecução no tempo
da objectividade fotográfica. O filme não se contenta apenas em conservar o objecto captado num dado momento, como, nos fósseis, o corpo intacto dos insectos de uma era passada; ele liberta a arte barroca de sua catalepsia convulsiva. Pela primeira vez, a imagem das coisas é também a imagem da sua duração, como que uma múmia da mudança. As categorias da semelhança, que especificam a imagem fotográfica determinam portanto também a sua estética em relação à pintura. As virtualidades estéticas da fotografia residem na revelação do real. Um reflexo no passeio molhado, ou um gesto de uma criança, não depende de mim distingui-los no tecido do mundo exterior; só a impassibilidade da objectiva, despojando o objecto de hábitos e preconceitos, de toda a ganga espiritual que embota a minha percepção, poderia torná-lo virgem à atenção e, portanto, ao meu amor. Sobre a fotografia, imagem natural de um mundo que não conhecíamos ou não podíamos ver, a Natureza, enfim, faz mais do que imitar a arte: ela imita o artista. E pode mesmo ultrapassá-lo no seu poder criador. O universo estético do pintor é heterogéneo ao universo que o envolve. O quadro encerra um microcosmo essencial e substancialmente diferente. A existência do objecto fotografado participa, pelo contrário, da existência do modelo com uma impressão digital. Com isso, ela junta-se realmente à criação natural em vez de a substituir por outra. Foi isso o que o surrealismo vislumbrou, ao apelar à gelatina da chapa sensível a fim de engendrar a sua teratologia plástica. É que, para o surrealismo, o efeito estético é inseparável da eficácia mecânica da imagem sobre o nosso espírito. A distinção lógica entre o imaginário e o real tende a ser abolida. Toda a imagem deve ser sentida como objecto e todo o objecto como imagem. A fotografia constituiu, portanto, uma técnica privilegiada da criação surrealista, já que ela materializa uma imagem que participa da Natureza: uma verdadeira alucinação. A utilização do trompe l’oeil e da precisão meticulosa dos detalhes na pintura surrealista são disto a contraprova. A fotografia apresenta-se pois como o acontecimento mais importante da história das Artes Plásticas. Ao mesmo tempo sua libertação e realização, ela permitiu à pintura ocidental desembaraçar-se definitivamente da obsessão realista e reencontrar a sua autonomia estética. O «realismo» impressionista, sob os seus álibis científicos, é o oposto do trompe l’oeil. A cor, aliás, só pôde devorar a forma porque esta já não possuía importância imitativa. E quando, com Cézanne, a forma retomou a posse da tela, já não o fora, em todo caso, conforme a geometria ilusionista da perspectiva. A imagem mecânica, ao opor à pintura uma concorrência que atingia, para lá da semelhança barroca, a identidade do modelo, por sua vez obrigou-a a converter-se em objecto. De nada vale a condenação pascaliana, uma vez que a fotografia nos permite, por um lado, admirar na sua reprodução o original que os nossos olhos não teriam sabido amar, e na pintura um puro objecto cuja referência à natureza já não é mais a sua razão de ser.