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1 o devir otaku. -

do mundo
l Christine Greiner

1
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o Japão vem t estando , avant l a lettre, mui t os
comportamentos sugeri dos r ecent ement e par a l idar
com o mundo i nf ect ado pe l o covi d - 19 . Por lá ,
ni ngué m nunca se cumpri mentou abraçando , beij ando
o u dando as mãos . Todos usam máscara para sair de
casa q uando estão doent es . E a vi da na c l a usura já
fa z part e de uma porcentagem relevante da população
e ntre 18 e 40 anos , sem mencionar os i dosos q ue vêm
sendo c uidados por robôs .
Desde o século XVII é admi ss í vel o sexo com
,. bone cas (l ove dol l) e aparat os sexuais . Não há
l limites entre r eal e ficciona l. Nem para o amor, nem
para a guerra .
o que temos a aprender com nossos antípodas? Que
exper iências r adicais emergem do mergulho em suas
(anti) na r rativas de realidade ficciona l ?

uma história cheia de contradições


o t e r mo otaku foi traduzido do japonês como "nerd"
ou "geek". Não se sabe exatamente quando começou a
ser empregado com este significado , uma vez que na
linguagem formal quer di zer " senhor (a)" , referi ndo-
se à segunda pessoa e "sua casa" ou "casa de
alguém". A d ife r e nça é a grafia - a linguagem f ormal
é escr i t a em kanj i (pict ogramas de ori gem c hinesa)
e a gíri a (para ot aku-ne r d) em kat akana (escr ita
fonética usada para pal avras estrangeiras) . Talvez ,
desde o i níci o , os otakus - ner ds t enham sido
considerados estrangeiros no próprio Japão .
Há quem diga que j á se falava em otaku como um
apelido para quem f a zia part e de f ã - cl ubes de ficção
científica em torno de 1960 . Mas f oi a partir de
1983, quando Nakarnori Aki o pub licou otaku no hon
(O livr o do otaku) que o t ermo f oi definitivament e
'' r essignificado para nomear os f ãs de urna certa
"subcultura" japonesa de rna ngás, a nimes e vi deogarnes .
A part ir da e ntrada do novo milêni o , essa tal
"subcul tura " f oi catapultada das r edes de pi ratar ia
para urna indústr ia de entret enimento r i quíssima e
,
globa l , composta por uma pluralidade de mercadori as
impor tadas do J - pop (Japan Pop) . Além dos p r odut os
digitais mais f amosos , há toda uma cul t ur a l visual,
que migrou junt o , envol vendo moda , maquiagem,
hobbi es e modos de vida .
Assim, no i níci o dos anos 80 , os ~t akus f oram
r esponsáveis pela fu ndação de uma c ul tura j aponesa
de i nternet . Publ i cações como Monogatari Shôhiron
. . .
(Teoria da Narrativa de Consumo , 1989) de Ot suka
Ei j i e o takugaku nyílmon (Introdução aos e s tudos
,. o taku, 198 6), de Okada Toshi o , val orizaram a
l produção otaku reconhecendo nela poss í veis
rel ações com a c ul tura tradi cional j aponesa e a
as car acterís ticas urbanas do período Edo t ambém
conhecido como shogunat o Tokugawa (1603- 1868 ) . Al é m
disso, f or am c r iados s i tes , comunidades, j ogos
e manuai s de relaci oname nto exportados (extra -
ofici almente) pelo mundo .
No e ntanto , entre 1988 e 89 , um aconteci mento
mudou o rumo deste movi mento . o otaku Miyazaki
Tsut omu sequestrou e assass i nou quatro meni nas na
r egião de Tóquio e Sa itama . o cri me tornou a imagem
dos otakus marginali zada e i denti ficada com uma
ati tude de criminosos . Est e est ereót ipo persisti u
por vári os a nos e até o fina l da década de 1990,
continuava i nc i tando uma for te resistência da par t e
dos japoneses para acei tar o que cons i der avam uma
"subcultura " de criminosos e psicopatas . o ut r os
acontecime ntos que agravaram a s i tuação foram os
atentados t erroristas da sei ta Aum Shi nr ikyô c r i ada
por Asahara Shôkô , que l a nçaram, e m 1995, gás sar in
nos metrôs de Tóquio . Asahara recr utou adeptos,
sobretudo entre j ovens otakus , uma vez que agia
pri or itariamente nas redes .
•' Embora esses escândal os t e nham repercuti do nas
mídi as i nter naciona i s , o contexto otaku será
apresent ado com mai s detalhes (e de f or ma mais
ob j etiva) ao Ocidente, apenas em 1999, quando o
j ornal ista Etienne Barral publica o seu l ivro-
,
r epor tagem o t aku : Les En f an t s du Vi rtuel (Ot aku :
os Filhos do Virt ua l ) 1 • Logo no prime iro capítulo ,
Barr al desc reve a experi ênci a de watanabe Ko j i
fa zendo sexo com seu computador. Segundo o autor ,
est e del írio ma r ca o nascimento do Homo Vi r tuens que
c r i a r ia novos cami nhos par a escapar da r eal i dade
encontrando p r azer excl usivamente no mundo vir t ual .
Simul t aneamente aos divert imentos car nai s com
os par ceiros de s i lício , o Homo Vi rtuens também
descobre r api damente como ganhar dinheiro explorando
,. as novas t erritori a l idades . Além da massiva pr oduç ão
l de j ogos e a nimes , em 2000 , o artista pop Murakami
Takashi publ i ca o seu Man ifesto super flat . Murakami
se assume como otaku convict o e afirma a r e l açã o
entre art e e me r cador ia de maneira nada pejor ati va .
De acor do com Mur akami , toda mercadoria, inclus i ve
obr as de arte, f a z circular i dei as . o que se vei c ula
entr e os consumidores não são apenas os obj e t os , mas
também sentimentos e subjet i vi dades . Por i sso , a l ém
de ter um valor, a seu ver , est a movi me ntação deveria ·
ter um preço, uma vez q ue os art i s t as preci savam
1 sobr eviver como qualquer out ro t rabalhador.
Mura ka mi t ambém c ha mou a atenção par a uma
r e l ação e ntre as obras c r i adas por otakus e a
noção de kijin (excêntricos) mui t o pr esente e ntre
p i ntor es do perí odo Edo e a t ores do teatro kabuki .
Es t es a r t i stas eram excên tricos não apenas no
senti do de ser em estra nhos ou bi zarr os , mas por q ue
i nsistiam em cri a r e v i ver f ora dos padrões ,
mas sempre com algum propós i to . Nes t e sentido , ·
cons i der ar a c ul t ura ot aku como s ubcul t ura seria um
e l ogi o à subversão estética e pol í t ica .
Alguns estudiosos da c ul tura ot aku , como Azuma
Hiroki , r e conhe cem ainda , uma clar a rel ação entre
1 o pop j aponês e os movi mentos pop da c ultura
americana , sobr etudo aqueles que ocorrer am entre

1 Barral, Etiê nne Otaku : Fi lhos do Vi rtua l , t rad. Mar ia Te r e sa Van Acker .
Ed. Se nac 2000 .
,
1950 e 1970 . De acordo com Azuma 2 , entre a tradi ção
j aponesa e a c ultura otaku sempre aparece o pop
dos Estados Unidos, que não f oi simplesmente
importado, mas sim, "domesti cado", em um movimento
del iberadamente a nti- col onial . Azuma se ref ere
à resistência japonesa em buscar se adaptar ou
desejar o que chama de "gr a ndes narra tivas " como o
pensamento moderno europeu. · o desinteresse pelas
grandes nar rativas que no Ocidente é f or mul ado por
alguns pensadores como a passagem do moderno ao
,. pós - moderno , nunca fez muito sentido na c ul t ur a
j aponesa , a não ser em um c i rcuit o intelectual muito
pequeno . São as pequenas narrativas ficcionais q ue
sempre pareceram reverberar e deflagrar o q ue seria,
por exemplo, o comportamento de consumo chara- moe .
Chara v i ria de character (personagem em inglês) e
moe estaria relac i onado ao sentimento de excitação
ou prazer em relação a uma per sonagem específica .
Sobret udo após a cri se econômi ca japonesa
que começa na segunda metade dos anos 1 980 ,
r adi cal i zando- se após 1990 , i nstaura - se o que Azuma
ident ifica como a narra tiva das co ffe e mugs (canecas
de ca fé) e outros souvenirs . Nesta lógica moe, até
mesmo a autoria das pequenas narrativas é di luída ,
como aconteceu por exemplo com a personagem Di Gi
Charat ou Digito , c r iada em 1998 . Ela f oi concebida
como uma mascote para vender produtos de a nime e
produtos rela tivos a j ogos de vídeo- game, aparecendo
em comerciais de TV e depois como 'personagem de
ani me e novel as . A partir de então, s urgiram outras
personagens como Rabi - em- Rose e Petit Charat em
1999, criadas por fã s ao invés de produtores .
como expl i ca Azuma 3 , esses p r o j etos começam
a nascer como fragmentos : produtos associados,
•' si tuações e i magens que emergem sem a ut oria definida.
Não há hi stórias , nem mensagens . Apenas fluxos de
sensações e adesões múl t iplas .

2 Azuma, Hiroki Otaku : Japan 's database animals, translated by Jonathan


E. Abel and Shion Kono . University o f Minnesota Press, 2009.
3 Ibidem:41.
' Relaci onado a este aspect o da cultura ot aku, o q ue
mai s chama a atenção é o modo como essa dinâmica
passa a afetar a {não) convi vênci a presenci al e ntre
as pessoas, estabel ecendo zonas de indi stinção entre
ficção e real i dade .
um exemplo embl emáti co é o bai rro de Aki habara
em Tóqui o . Na época feudal concentrava artesãos e
comerciantes . Em 1930 , começa a se especializar
na venda de e l etrodomésticos e, após a II Grande
Guerra , em rádi os e outros aparel hos e l etrônicos .
o wal kman instaura uma verdadeira revol ução e dá
-,. iní c i o à uma primeira experi ência de i ntrospecção :
1 . .
a musica para uma pessoa so .
.
Com o surgimento dos pri meiros dispositivos
digitais , Aki habara firma - se como centro dos otakus
e de um mundo de f antas i a sem igual . Além do
comércio de produt os pop como games, anime, r oupas e
art e f atos , concentra o maior númer o de sex- shops do
J apão e cafés especi al i zados como os c hamados Ma i d
Café . o primeiro é i naugurado em 2001 e mantém até
hoje as características que popul arizaram o gêner o :
garçonet es vestidas de empregadas domésticas que se
diri gem aos c lient es, em sua maioria homens , como
mestres . Encontros do mesmo tipo são replicados
virtualmente .

o estilo de vida otaku


o perfil otaku sempre f oi mui t o específico . A ma i oria
do sexo masculino , com tendências anti ssoci ais ,
grande apreço por coleções {especi' almente dos
personagens f avori t os ) e o dese j o de apenas conviver
presenci a l mente com seres humanos , quando f or
estritamente necessário e a través da t ecnol ogia - a
pri ncípi o computadores e depois celulares.
Na s ua versão mais radical, conheci da como
'' hiki komori, os otakus passam os di as trancados em
seus quartos e não conversam presencial mente nem com
os fami liares . Alguns moram sozinhos , encomendando
comida e entretenimentos apenas pelo comput ador . Têm
namoradas virtuais (hol ogramas, bonecas ou r obôs)
, com as quais f azem sexo , trocam mensagens pelos
celulares e , em certos casos , chegam a reali zar
cerimôni as de casamento .
Pa r a se apr oximar desse modo de vida tão peculiar,
um primeiro passo é perceber que a c ultura japonesa
não concebe a di f e r ença entre ser vivo e objeto
inani mado da mesma f orma que o resto do mundo . I sso
se r eflet e de maneira rel evante. na r elação com robôs
e per sonagens , mas t ambém es t á present e no t eatro
tradi cional .
Uma das grandes manifestações artís t icas no
,. J apão é o teatro de mari onet es , c uj o gênero mais
i conhecido é o bunr aku, concebido no século XVI . Na
encenação , três mani pul adores lidam com cada boneco
que , por sua vez, t or na- se p r otagonist a da peça .
o treinamento desenvolvi do para dar vi da a estes
bonecos vi sa a continui dade r adical e ntre o corpo
vivo do manipulador e o corpo do boneco , de modo
a t or nar i ndi s t int a a fronteira entr e um e outro ,
ass im como f az parecer i rrel evant e a di cotomia entr e
corpo v i vo e cor po mort o . Neste context o , t odos os
corpos são vi vos e em movimento, uma vez q ue não se
part e da hierar qui a ent re s uj eito e ob j eto .
outras exper iências a r tís t icas também testaram a
indi stinção entre vi da e mort e , s uj ei t o e obj eto ,
como por exempl o a dança but ô proposta por Hi j ikata
Tat s umi , no final da década de 1950 . Hij ikat a propõe
como ponto de partida da sua exper iênci a um corpo
mort o q ue dança 4 • ,
o modo como essas q uestões surgem na vida
cotidiana não é d ife r e nte . Desde 2014 , vári os
templ os budis t as japoneses c r iaram, por exemplo ,
memor iai s para r obôs "mortos ". o nome deste tipo
de fu neral é literal mente r obottosô . Ao anal isar
o que c hama de Robo Sapi ens Japani cus, J enni fer
''
Rober tson 5 l embra o caso de AIBO, o cachorro robô
da Sony . A produção dest es pets ocor reu de 1 999
4 A e ste respe ito v er Uno , Kuniichi Hi j i ka t a Tatsum.i , p ensa r um corpo
esgotado, t r a d. Ch r istine Gre iner e Erne sto Filho . n - l ediçõe s .
5 Robertson , J e nni fe r Robo Sa p i ens Jap a ni cus , rob ots, gender, Family and
the Jap anese Nat i on . Un iversit y o f Ca l i f o rn ia Pre ss , 2018 .
, a 2006 . Em 2014, a Sony deixou de fabr i car as
peças . Pa r a acalmar o desesper o de vári as f amíl i as
desamparadas pela perda dos pets, uma companhia
j aponesa especi al izada em consert ar robôs (A-FUN)
r ecrutou ex-func ionários da Sony para tratar os
r obôs dani ficados , a través de um pr ograma de doação
de ó r gãos . Na ocasi ão, 180 AI BOs f o r am inter nados e
se c r iou uma lista de espera para os transpl antes .
Não havi a dúvi da de que os pets e r am par te essencial
das f amílias . Em janeiro de 2012 , de zenove r obôs
que nã o puderam ser r ecuperados f o r am i nc l uídos no
> fune r al do tempo Kôf uku-j i na cidade de !sumi . o
1 templ o , um dos mai s tradic ionais com cer ca de 450
anos , providenciou um memori al , a traindo cober t ura
da míd i a l ocal e i nt erna cional .
Embora a notíci a tenha s i do recebida com surpr esa
fora do Japão , a apr oximação entre budi smo e
r obót ica , j á vi nha sendo investigada há algumas
décadas . Em 1974 , o r obotici sta Mor i Masahiro
publicou Mo ri Masahi ro no bukkyô nyumon, traduzido
em i nglês c omo The Buddha i n the Robot (O Buda no
Robô) , no qual decl a r ava que os robôs t êm, sem
dúvi da , a nature za de Buda dentro deles . o budismo
não discrimina seres a nimados e ser es i nanimados . os
robôs não seri am exceção .

sexo otaku
Mas apesar de t odos esses es t ranhament os , é pr ovável
que nada pareça mai s s urpr eendent e do que os
'
encontros sexuais e a f e t ivos entre pessoas e outros
objet os como bonecas , hologramas e robôs .
De f a t o , nada é tão r ecente como pode par ecer à
primeira vist a . Em 1 964, ou se j a , algumas décadas
ant es do de lírio de wat anabe t r a nsando com seu
c omputador; o a r t i s t a Nam J un Paik passou um ano
'' em Tóqui o , onde e ncontrou o engenheiro Abe Shuya .
J untos c riaram o Robot K- 456 . Paik c oncebeu esse
r obô com seios e pênis , o q ue fa zia do pr ot ótipo nã o
apenas um r obô p i oneiro t r a nsnaci onal , mas um robô
transgêne r o , destruído alguns anos depois durant e a
, performance de um acidente de carro p l anejado pel o
próprio Paik em Nova York.
o debate concei t ual e pol ítico a este respei t o ,
ganhou um novo ritmo a parti r da publ i cação de Donna
Haraway, Manifesto Ciborgue, em 1984 . A imagem do
cibor gue expõe o desafio premente de se acabar com
a di cotomia entre natureza e c ultura que tornava a
sexualidade dete r minada pelo organismo biol ógico .
Haraway , J ud i th Butler e, mais recentemente , Paul
Preciado , vão escl arecer que a sexual i dade não é
uma identidade dada a priori e que se constitui
> na aliança entre natureza e cultura (e j amais na
1 sua dicotomia). A materialidade do corpo é sígni ca
e não determi nada por ór gãos . Mai s uma vez, o
desautomatismo dos órgãos proposto por Antonin
Ar taud em 1925 em L' Ombili c de limbes (Umbi go dos
Limbos) se reinventou 6 •
Mas c uriosamente, esta questão nunca f oi
rel evante no Japão porque não se fazia necessári o
desautomatizar a visão determinista e biológica
do corpo . o motivo é s i mples : esta prerrogativa
nunca existiu. Ist o não significa que no contexto
j aponês o sexo não esteja relacionado i ntimamente
às relações de poder. Muito menos que a di f erença
(abissal ) entre gêner os não faça parte do cotidi ano
j aponês em d i versas instânci as. No entanto, admi te-
1 se um t i po de relação afetiva e sexua l , não
exclusivamente entre pessoas humanas, q ue está, por
sua vez, também relacionada à potência da c lausura
e aos desdobramentos que a ficção i' nstaura na vida
cotidiana j aponesa, sobretudo a partir da presença
cada vez mais i nci siva de hologramas, r obôs e j ogos
digitais.

''
6 Nas obras completas de Artaud, a noção de corpo de sem órgãos é
sugerida inicialmente no texto Umbigo de Limbos e depois reaparece Em
para acabar com o juízo de deus. O tema é retomado por Deleu ze e Guattari
em Mil Platôs, quando f alam especificamente sobre "como criar para si
um corpo sem órgãos", considerando a proposta de Artaud não como um
conceito, mas como uma pratica. É esta noção de prática que me remete a
Butler e Preciado no sentido de construir um corpo e não adequá - lo à uma
identid~de pronta.
, como expl i ca Agnes Gi ard 7 é provável que a pr imei ra
love doll (boneca s e xual ) t enha aparec i do no qui nt o
tomo da obra publicada em 1686 , Shokoku k ôshoku sandai
o t oko (O Terce iro Homem que só viveu para amar, em
todas as suas províncias), escrita por Saikaku Ihara .
É a história de uma moça jovem c hamada Komurasaki que
se apai xona por um empregado da loja ,de s e us pais.
o rapaz, Geisuke, também se apaixona por e l a. No
entant o , o amor t orna- se i mpossível porque os pais da
garota esco lhem out ro marido para a filha. Na noite
de .núpcias , Geisuke ent ra no quarto dos noivos como
,. um fantasma (bakemono) e o marido fica apavorado . Ao
1 contar o episódi o para os pai s da noi va, estes decidem
constr uir uma boneca, semelhante à Komur a s aki. Es ta
boneca tem incl us i ve uma vagi na (ou "forma de mi nha
mulher", em j aponês azuma - gata) . Na noite segui nte,
o noivo s e t ranca no quarto com a boneca. o fan t asma
retor na decidi do a mata-lo , no entanto , ao ver a
boneca , sente um desejo i ncontrolável de transar com
ela , o que de fato acontece . Assim, Gei suke encont r a
a paz e a boneca passa a ser considerada a pr otet ora
que se ofer ece par a resol ver "o desejo f rustrado de um
1 homem que sofre e pode ser t r ansformado em assassino
potenci al" .
Na mesma ocas i ão da publicação deste livro,
s urgem as pri meiras imagens de masturbação com
" i nstrumentos" em Kôshoku kinmô zui (Coleção de
imagens eróticas para esclarecer a juventude) . o
artista Yoshida Ha nbei apr esenta com humor uma
variedade de dispositi vos sexuai s 'indi spensávei s ,
para o a mor . o l i vro é reedi tado em di versas versões
p i ratas durante quase um século, o u se j a, a té 1770 ,
q uando apar ece com o títul o modificado para Kôshoku
tabi makura (O Travesseiro das viagens amor osas) .
os model os de bonecas e i nstrumentos sexuai s não
'' cessaram de evoluir do per í odo Edo a té hoje . os
mai s sofisticados seguem a di nâmi ca dos a utomóvei s ,
e não por acaso muitos dos seus produtores saí ram
das fábricas automotivas. As bonecas, por exemplo ,
7 Giard, Agnes Un désir d'humain, les love doll au Japon. Paris: Les
Belles Le ttres, 2016 .
, costumam ser vendidas aos pedaços e montadas na
casa do consumidor . Em parte, i sso se dá porque
as casas no Japão são pequenas e fica mais fác il
guarda-las aos pedaços .
Em e ntrevista à Gi ard, o engenheiro Tsuruhi sa
da Indústria Oriente, explicou que se cercar
de bonecas é, a seu ver, o mesmo que se cercar
de "espelhos do cor ação" . Ele usou a expressão
kokor o no kagami q ue também poderia ser traduzida
como espelhos da mente ou espelhos do espírito .
É bom lembrar q ue kokoro significa ao mesmo t empo
,. intelecto e afeto . ª
i De acordo com Tsuruhisa é absolutamente
necessário ter algo para amar. Ninguém pode se
t or nar humano sem um contat o com ob j e to de amor,
mesmo que este seja uma love doll .
A i ndústria do sexo no Japão, continua sendo
pri oritariamente masculina, embora os dispositivos
e bares de companhei ros para mulheres sejam cada
vez mais requis itados .
Além das bonecas e r obôs , há um i ncremento de
empresas q ue cri am hol ogramas e vocalóides . um
dos primei ros ícones f oi a cant ora pop Hatsune
Miku . A Gatebox, que c riou o holograma de Miku,
já expediu mais de 3700 certificados de casamentos
interdimensionai s entre pessoas e hologramas.
1 A maioria são homens ota kus que conf essam t er
s i do assedi ados a vida toda por mul heres rea is ,
decidi ndo então , casar com um holo9rama . A
Gatebox cri ou d i spos itivos q ue permitem troca de
mensagens com o holograma dura nte o dia e a t é mesmo
instruções domés ticas como acender as luzes de casa
e ligar o f or no para aquecer a comida .
Há q uem diga que o i ncre mento dos hologramas
f emini nos está diretamente relacionado à
'' independência das mul heres na sociedade j aponesa
e ao f or t a l ecimento do desint eresse e m constituir
f amíl i as, o que espelha uma pluralidade de relações
amorosas de t odos os gêneros .

8 I bidem:295.
I Tal vez se j a i mport ante notar como estas
experi ências j aponesas - por mai s estranhas q ue
possam parecer aos nossos ol hos - acabam sugeri ndo
questões nada tri viai s , para estes moment os de
confinamento e uso ini nterrupto das redes sociai s e
dos d i spos i tivos digi tais .
Afinal, o devi r otaku do mundo seri a uma f orma de
lidar com nossos fantasmas?
Entre temores e dese j os , o mergul ho nas
realidades fic cionais abriri a caminhos para
construir col eti vamente próteses para a solidão?
>
i
Christine Greiner é professora do Departamento de
Artes da PUC- SP onde coordena o Centro de Estudos
Ori ent a i s .

''

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