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1 o devir otaku. -
do mundo
l Christine Greiner
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o Japão vem t estando , avant l a lettre, mui t os
comportamentos sugeri dos r ecent ement e par a l idar
com o mundo i nf ect ado pe l o covi d - 19 . Por lá ,
ni ngué m nunca se cumpri mentou abraçando , beij ando
o u dando as mãos . Todos usam máscara para sair de
casa q uando estão doent es . E a vi da na c l a usura já
fa z part e de uma porcentagem relevante da população
e ntre 18 e 40 anos , sem mencionar os i dosos q ue vêm
sendo c uidados por robôs .
Desde o século XVII é admi ss í vel o sexo com
,. bone cas (l ove dol l) e aparat os sexuais . Não há
l limites entre r eal e ficciona l. Nem para o amor, nem
para a guerra .
o que temos a aprender com nossos antípodas? Que
exper iências r adicais emergem do mergulho em suas
(anti) na r rativas de realidade ficciona l ?
1 Barral, Etiê nne Otaku : Fi lhos do Vi rtua l , t rad. Mar ia Te r e sa Van Acker .
Ed. Se nac 2000 .
,
1950 e 1970 . De acordo com Azuma 2 , entre a tradi ção
j aponesa e a c ultura otaku sempre aparece o pop
dos Estados Unidos, que não f oi simplesmente
importado, mas sim, "domesti cado", em um movimento
del iberadamente a nti- col onial . Azuma se ref ere
à resistência japonesa em buscar se adaptar ou
desejar o que chama de "gr a ndes narra tivas " como o
pensamento moderno europeu. · o desinteresse pelas
grandes nar rativas que no Ocidente é f or mul ado por
alguns pensadores como a passagem do moderno ao
,. pós - moderno , nunca fez muito sentido na c ul t ur a
j aponesa , a não ser em um c i rcuit o intelectual muito
pequeno . São as pequenas narrativas ficcionais q ue
sempre pareceram reverberar e deflagrar o q ue seria,
por exemplo, o comportamento de consumo chara- moe .
Chara v i ria de character (personagem em inglês) e
moe estaria relac i onado ao sentimento de excitação
ou prazer em relação a uma per sonagem específica .
Sobret udo após a cri se econômi ca japonesa
que começa na segunda metade dos anos 1 980 ,
r adi cal i zando- se após 1990 , i nstaura - se o que Azuma
ident ifica como a narra tiva das co ffe e mugs (canecas
de ca fé) e outros souvenirs . Nesta lógica moe, até
mesmo a autoria das pequenas narrativas é di luída ,
como aconteceu por exemplo com a personagem Di Gi
Charat ou Digito , c r iada em 1998 . Ela f oi concebida
como uma mascote para vender produtos de a nime e
produtos rela tivos a j ogos de vídeo- game, aparecendo
em comerciais de TV e depois como 'personagem de
ani me e novel as . A partir de então, s urgiram outras
personagens como Rabi - em- Rose e Petit Charat em
1999, criadas por fã s ao invés de produtores .
como expl i ca Azuma 3 , esses p r o j etos começam
a nascer como fragmentos : produtos associados,
•' si tuações e i magens que emergem sem a ut oria definida.
Não há hi stórias , nem mensagens . Apenas fluxos de
sensações e adesões múl t iplas .
sexo otaku
Mas apesar de t odos esses es t ranhament os , é pr ovável
que nada pareça mai s s urpr eendent e do que os
'
encontros sexuais e a f e t ivos entre pessoas e outros
objet os como bonecas , hologramas e robôs .
De f a t o , nada é tão r ecente como pode par ecer à
primeira vist a . Em 1 964, ou se j a , algumas décadas
ant es do de lírio de wat anabe t r a nsando com seu
c omputador; o a r t i s t a Nam J un Paik passou um ano
'' em Tóqui o , onde e ncontrou o engenheiro Abe Shuya .
J untos c riaram o Robot K- 456 . Paik c oncebeu esse
r obô com seios e pênis , o q ue fa zia do pr ot ótipo nã o
apenas um r obô p i oneiro t r a nsnaci onal , mas um robô
transgêne r o , destruído alguns anos depois durant e a
, performance de um acidente de carro p l anejado pel o
próprio Paik em Nova York.
o debate concei t ual e pol ítico a este respei t o ,
ganhou um novo ritmo a parti r da publ i cação de Donna
Haraway, Manifesto Ciborgue, em 1984 . A imagem do
cibor gue expõe o desafio premente de se acabar com
a di cotomia entre natureza e c ultura que tornava a
sexualidade dete r minada pelo organismo biol ógico .
Haraway , J ud i th Butler e, mais recentemente , Paul
Preciado , vão escl arecer que a sexual i dade não é
uma identidade dada a priori e que se constitui
> na aliança entre natureza e cultura (e j amais na
1 sua dicotomia). A materialidade do corpo é sígni ca
e não determi nada por ór gãos . Mai s uma vez, o
desautomatismo dos órgãos proposto por Antonin
Ar taud em 1925 em L' Ombili c de limbes (Umbi go dos
Limbos) se reinventou 6 •
Mas c uriosamente, esta questão nunca f oi
rel evante no Japão porque não se fazia necessári o
desautomatizar a visão determinista e biológica
do corpo . o motivo é s i mples : esta prerrogativa
nunca existiu. Ist o não significa que no contexto
j aponês o sexo não esteja relacionado i ntimamente
às relações de poder. Muito menos que a di f erença
(abissal ) entre gêner os não faça parte do cotidi ano
j aponês em d i versas instânci as. No entanto, admi te-
1 se um t i po de relação afetiva e sexua l , não
exclusivamente entre pessoas humanas, q ue está, por
sua vez, também relacionada à potência da c lausura
e aos desdobramentos que a ficção i' nstaura na vida
cotidiana j aponesa, sobretudo a partir da presença
cada vez mais i nci siva de hologramas, r obôs e j ogos
digitais.
''
6 Nas obras completas de Artaud, a noção de corpo de sem órgãos é
sugerida inicialmente no texto Umbigo de Limbos e depois reaparece Em
para acabar com o juízo de deus. O tema é retomado por Deleu ze e Guattari
em Mil Platôs, quando f alam especificamente sobre "como criar para si
um corpo sem órgãos", considerando a proposta de Artaud não como um
conceito, mas como uma pratica. É esta noção de prática que me remete a
Butler e Preciado no sentido de construir um corpo e não adequá - lo à uma
identid~de pronta.
, como expl i ca Agnes Gi ard 7 é provável que a pr imei ra
love doll (boneca s e xual ) t enha aparec i do no qui nt o
tomo da obra publicada em 1686 , Shokoku k ôshoku sandai
o t oko (O Terce iro Homem que só viveu para amar, em
todas as suas províncias), escrita por Saikaku Ihara .
É a história de uma moça jovem c hamada Komurasaki que
se apai xona por um empregado da loja ,de s e us pais.
o rapaz, Geisuke, também se apaixona por e l a. No
entant o , o amor t orna- se i mpossível porque os pais da
garota esco lhem out ro marido para a filha. Na noite
de .núpcias , Geisuke ent ra no quarto dos noivos como
,. um fantasma (bakemono) e o marido fica apavorado . Ao
1 contar o episódi o para os pai s da noi va, estes decidem
constr uir uma boneca, semelhante à Komur a s aki. Es ta
boneca tem incl us i ve uma vagi na (ou "forma de mi nha
mulher", em j aponês azuma - gata) . Na noite segui nte,
o noivo s e t ranca no quarto com a boneca. o fan t asma
retor na decidi do a mata-lo , no entanto , ao ver a
boneca , sente um desejo i ncontrolável de transar com
ela , o que de fato acontece . Assim, Gei suke encont r a
a paz e a boneca passa a ser considerada a pr otet ora
que se ofer ece par a resol ver "o desejo f rustrado de um
1 homem que sofre e pode ser t r ansformado em assassino
potenci al" .
Na mesma ocas i ão da publicação deste livro,
s urgem as pri meiras imagens de masturbação com
" i nstrumentos" em Kôshoku kinmô zui (Coleção de
imagens eróticas para esclarecer a juventude) . o
artista Yoshida Ha nbei apr esenta com humor uma
variedade de dispositi vos sexuai s 'indi spensávei s ,
para o a mor . o l i vro é reedi tado em di versas versões
p i ratas durante quase um século, o u se j a, a té 1770 ,
q uando apar ece com o títul o modificado para Kôshoku
tabi makura (O Travesseiro das viagens amor osas) .
os model os de bonecas e i nstrumentos sexuai s não
'' cessaram de evoluir do per í odo Edo a té hoje . os
mai s sofisticados seguem a di nâmi ca dos a utomóvei s ,
e não por acaso muitos dos seus produtores saí ram
das fábricas automotivas. As bonecas, por exemplo ,
7 Giard, Agnes Un désir d'humain, les love doll au Japon. Paris: Les
Belles Le ttres, 2016 .
, costumam ser vendidas aos pedaços e montadas na
casa do consumidor . Em parte, i sso se dá porque
as casas no Japão são pequenas e fica mais fác il
guarda-las aos pedaços .
Em e ntrevista à Gi ard, o engenheiro Tsuruhi sa
da Indústria Oriente, explicou que se cercar
de bonecas é, a seu ver, o mesmo que se cercar
de "espelhos do cor ação" . Ele usou a expressão
kokor o no kagami q ue também poderia ser traduzida
como espelhos da mente ou espelhos do espírito .
É bom lembrar q ue kokoro significa ao mesmo t empo
,. intelecto e afeto . ª
i De acordo com Tsuruhisa é absolutamente
necessário ter algo para amar. Ninguém pode se
t or nar humano sem um contat o com ob j e to de amor,
mesmo que este seja uma love doll .
A i ndústria do sexo no Japão, continua sendo
pri oritariamente masculina, embora os dispositivos
e bares de companhei ros para mulheres sejam cada
vez mais requis itados .
Além das bonecas e r obôs , há um i ncremento de
empresas q ue cri am hol ogramas e vocalóides . um
dos primei ros ícones f oi a cant ora pop Hatsune
Miku . A Gatebox, que c riou o holograma de Miku,
já expediu mais de 3700 certificados de casamentos
interdimensionai s entre pessoas e hologramas.
1 A maioria são homens ota kus que conf essam t er
s i do assedi ados a vida toda por mul heres rea is ,
decidi ndo então , casar com um holo9rama . A
Gatebox cri ou d i spos itivos q ue permitem troca de
mensagens com o holograma dura nte o dia e a t é mesmo
instruções domés ticas como acender as luzes de casa
e ligar o f or no para aquecer a comida .
Há q uem diga que o i ncre mento dos hologramas
f emini nos está diretamente relacionado à
'' independência das mul heres na sociedade j aponesa
e ao f or t a l ecimento do desint eresse e m constituir
f amíl i as, o que espelha uma pluralidade de relações
amorosas de t odos os gêneros .
8 I bidem:295.
I Tal vez se j a i mport ante notar como estas
experi ências j aponesas - por mai s estranhas q ue
possam parecer aos nossos ol hos - acabam sugeri ndo
questões nada tri viai s , para estes moment os de
confinamento e uso ini nterrupto das redes sociai s e
dos d i spos i tivos digi tais .
Afinal, o devi r otaku do mundo seri a uma f orma de
lidar com nossos fantasmas?
Entre temores e dese j os , o mergul ho nas
realidades fic cionais abriri a caminhos para
construir col eti vamente próteses para a solidão?
>
i
Christine Greiner é professora do Departamento de
Artes da PUC- SP onde coordena o Centro de Estudos
Ori ent a i s .
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