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saber de experiência*
20 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19
Notas sobre a experiência e o saber de experiência
Eu creio no poder das palavras, na força das
palavras, creio que fazemos coisas com as palavras
produzem sentido, criam realidades e, às vezes, fun e, também, que as palavras fazem coisas conosco.
cionam como potentes mecanismos de subjetivação. As palavras determinam nosso pensamento porque
não pensamos com pensamentos, mas com palavras, As palavras com que nomeamos o que somos, o que
não pensamos a partir de uma suposta genialidade fazemos, o que pensamos, o que percebemos ou o
ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E que sentimos são mais do que simplesmente
pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou palavras. E, por isso, as lutas pelas palavras, pelo
“argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas significado e pelo contro le das palavras, pela
vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e imposição de certas palavras e pelo silenciamento
ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o ou desativação de outras palavras são lutas em que
sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras. se joga algo mais do que simples mente palavras,
E, portanto, também tem a ver com as pala vras o algo mais que somente palavras.
modo como nos colocamos diante de nós mes mos,
diante dos outros e diante do mundo em que vi 1. Começarei com a palavra experiência. Pode
vemos. E o modo como agimos em relação a tudo ríamos dizer, de início, que a experiência é, em espa
isso. Todo mundo sabe que Aristóteles definiu o nhol, “o que nos passa”. Em português se diria que a
homem como zôon lógon échon. A tradução desta experiência é “o que nos acontece”; em francês a ex
expressão, porém, é muito mais “vivente dotado de periência seria “ce que nous arrive”; em italiano,
palavra” do que “animal dotado de razão” ou “quello che nos succede” ou “quello che nos
“animal racional”. Se há uma tradução que accade”; em inglês, “that what is happening to us”;
realmente trai, no pior sentido da palavra, é em alemão, “was mir passiert”.
justamente essa de traduzir logos por ratio. E a A experiência é o que nos passa, o que nos
transformação de zôon, vivente, em animal. O acon tece, o que nos toca. Não o que se passa, não o
homem é um vivente com palavra. E isto não signi que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam
fica que o homem tenha a palavra ou a linguagem muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada
como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma nos acon tece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está
ferramenta, mas que o homem é palavra, que o organizado para que nada nos aconteça.1 Walter
homem é enquanto pa lavra, que todo humano tem a Benjamin, em um texto célebre, já observava a
ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de pobreza de experiências que caracteriza o nosso
palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a
que é o homem, se dá na palavra e como palavra. experiência é cada vez mais rara.
Por isso, atividades como con siderar as palavras, Em primeiro lugar pelo excesso de informação.
criticar as palavras, eleger as pala vras, cuidar das A informação não é experiência. E mais, a
palavras, inventar palavras, jogar com as palavras, informação não deixa lugar para a experiência, ela é
impor palavras, proibir palavras, transfor mar quase o con trário da experiência, quase uma
palavras etc. não são atividades ocas ou vazias, não antiexperiência. Por isso a ênfase contemporânea na
são mero palavrório. Quando fazemos coisas com as informação, em estar informados, e toda a retórica
palavras, do que se trata é de como damos sentido destinada a constituir nos como sujeitos informantes
ao que somos e ao que nos acontece, de como e informados; a infor mação não faz outra coisa que
correlacionamos as palavras e as coisas, de como no cancelar nossas possi
meamos o que vemos ou o que sentimos e de como
1
vemos ou sentimos o que nomeamos. Em espanhol, o autor faz um jogo de palavras impossível
Nomear o que fazemos, em educação ou em qual no português: “Se diria que todo lo que pasa está organizado
quer outro lugar, como técnica aplicada, como para que nada nos pase”, exceto se optássemos por uma tradução
como “Dir-se-ia que tudo que se passa está organizado para que
práxis reflexiva ou como experiência dotada de
nada se nos passe” (Nota do tradutor).
sentido, não é somente uma questão terminológica.
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Notas sobre a experiência e o saber de experiência
igual mente nos excita por um momento, mas sem
deixar qualquer vestígio. O sujeito moderno não só
também, por exemplo, nossa idéia de aprendizagem, está in formado e opina, mas também é um
inclusive do que os pedagogos e psicopedagogos consumidor vo raz e insaciável de notícias, de
cha mam de “aprendizagem significativa”. Desde novidades, um curioso
peque nos até a universidade, ao largo de toda nossa impenitente, eternamente insatisfeito. Quer estar per
traves sia pelos aparatos educacionais, estamos manentemente excitado e já se tornou incapaz de si
submetidos a um dispositivo que funciona da lêncio. Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual,
seguinte maneira: primeiro é preciso informar-se e, tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o
depois, há de opi nar, há que dar uma opinião choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a
obviamente própria, críti ca e pessoal sobre o que velocidade e o que ela provoca, a falta de silêncio e
quer que seja. A opinião seria como a dimensão de memória, são também inimigas mortais da
“significativa” da assim chamada “aprendizagem experiência.
significativa”. A informação seria o objetivo, a
Nessa lógica de destruição generalizada da
opinião seria o subjetivo, ela seria nossa reação expe riência, estou cada vez mais convencido de que
subjetiva ao objetivo. Além disso, como rea ção os apa ratos educacionais também funcionam cada
subjetiva, é uma reação que se tornou para nós vez mais no sentido de tornar impossível que
automática, quase reflexa: informados sobre alguma coisa nos aconteça. Não somente, como já
qualquer coisa, nós opinamos. Esse “opinar” se disse, pelo funciona mento perverso e generalizado
reduz, na maio ria das ocasiões, em estar a favor ou do par informação/ opinão, mas também pela
contra. Com isso, nos convertemos em sujeitos velocidade. Cada vez esta mos mais tempo na escola
competentes para res ponder como Deus manda as (e a universidade e os cur sos de formação do
perguntas dos professo res que, cada vez mais, se professorado são parte da escola), mas cada vez
assemelham a comprova ções de informações e a temos menos tempo. Esse sujeito da for mação
pesquisas de opinião. Diga-me o que você sabe, permanente e acelerada, da constante atualiza ção,
diga-me com que informação conta e exponha, em da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o
continuação, a sua opinião: esse o dis positivo tempo como um valor ou como uma mercadoria, um
periodístico do saber e da aprendizagem, o sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre
dispositivo que torna impossível a experiência. de aproveitar o tempo, que não pode protelar
Em terceiro lugar, a experiência é cada vez qualquer coisa, que tem de seguir o passo veloz do
mais rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa que se passa, que não pode ficar para trás, por isso
passa demasiadamente depressa, cada vez mais mesmo, por essa obsessão por seguir o curso
depressa. E com isso se reduz o estímulo fugaz e acelerado do tempo, este sujeito já não tem tempo.
instantâneo, ime diatamente substituído por outro E na escola o currículo se organiza em pacotes cada
estímulo ou por ou tra excitação igualmente fugaz e vez mais numerosos e cada vez mais curtos. Com
efêmera. O aconteci mento nos é dado na forma de isso, também em educação esta mos sempre
choque, do estímulo, da sensação pura, na forma da acelerados e nada nos acontece.
vivência instantânea, pontual e fragmentada. A
Em quarto lugar, a experiência é cada vez mais
velocidade com que nos são dados os rara por excesso de trabalho. Esse ponto me parece
acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo importante porque às vezes se confunde experiência
novo, que caracteriza o mundo moderno, impe dem com trabalho. Existe um clichê segundo o qual nos
a conexão significativa entre acontecimentos. li vros e nos centros de ensino se aprende a teoria, o
Impedem também a memória, já que cada aconteci sa ber que vem dos livros e das palavras, e no
mento é imediatamente substituído por outro que
trabalho se adquire a experiência, o saber que vem no campo educa cional que, depois de criticar o
do fazer ou da prática, como se diz atualmente. modo como nossa sociedade privilegia as
Quando se redige o currículo, distingue-se formação aprendizagens acadêmicas, pre tende implantar e
acadêmica e expe riência de trabalho. Tenho ouvido homologar formas de contagem de
falar de certa ten dência aparentemente progressista
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Notas sobre a experiência e o saber de experiência
oportu nidade, sua ocasião. A palavra experiência
tem o ex de exterior, de estrangeiro,3 de exílio, de
to”. Do ponto de vista da experiência, o importante estranho4 e também o ex de existência. A experiência
não é nem a posição (nossa maneira de pormos), é a passa gem da existência, a passagem de um ser
nem a “o-posição” (nossa maneira de opormos), que não tem essência ou razão ou fundamento, mas
nem a “im posição” (nossa maneira de impormos), que simples mente “ex-iste” de uma forma sempre
nem a “pro posição” (nossa maneira de propormos), singular, finita, imanente, contingente. Em alemão,
mas a “ex posição”, nossa maneira de “ex-pormos”, experiência é Erfahrung, que contém o fahren de
com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de viajar. E do antigo alto-alemão fara também deriva
risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que Gefahr, perigo, e
se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas
não se “ex-põe”. É incapaz de experiência aquele a 3
Em espanhol, escreve-se extranjero. (Nota do tradutor)
quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a 4
Em espanhol, extraño. (Nota do tradutor)
quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe gefährden, pôr em perigo. Tanto nas línguas
chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem germâni cas como nas latinas, a palavra experiência
nada ocorre. contém inseparavelmente a dimensão de travessia e
perigo.
3. Vamos agora ao que nos ensina a própria
pala vra experiência. A palavra experiência vem do 4. Em Heidegger (1987) encontramos uma defi
latim experiri, provar (experimentar). A experiência nição de experiência em que soam muito bem essa
é em primeiro lugar um encontro ou uma relação exposição, essa receptividade, essa abertura, assim
com algo que se experimenta, que se prova. O como essas duas dimensões de travessia e perigo
radical é periri, que se encontra também em que acabamos de destacar:
periculum, perigo. A raiz indo-européia é per, com a
qual se relaciona antes de tudo a idéia de travessia, e [...] fazer uma experiência com algo significa que
secundariamente a idéia de prova. Em grego há algo nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós,
numerosos derivados dessa raiz que marcam a que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em
travessia, o percorrido, a passagem: peirô, “fazer” uma experiência, isso não significa precisamente
atravessar; pera, mais além; peraô, passar atra vés, que nós a fa çamos acontecer, “fazer” significa aqui:
perainô, ir até o fim; peras, limite. Em nossas sofrer, padecer, to mar o que nos alcança receptivamente,
línguas há uma bela palavra que tem esse per grego aceitar, à medida que nos submetemos a algo. Fazer uma
de travessia: a palavra peiratês, pirata. O sujeito da experiência quer dizer, portanto, deixar-nos abordar em
experiência tem algo desse ser fascinante que se ex nós próprios pelo que nos interpela, entrando e
põe atravessando um espaço indeterminado e perigo submetendo-nos a isso. Pode mos ser assim
so, pondo-se nele à prova e buscando nele sua transformados por tais experiências, de um dia para o
outro ou no transcurso do tempo. (p. 143) sofredor, padecente, receptivo, aceitante,
interpelado, submetido. Seu contrário, o su jeito
O sujeito da experiência, se repassarmos pelos incapaz de experiência, seria um sujeito firme, forte,
verbos que Heidegger usa neste parágrafo, é um su impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apá tico,
jeito alcançado, tombado, derrubado. Não um autodeterminado, definido por seu saber, por seu
sujeito que permanece sempre em pé, ereto, erguido poder e por sua vontade.
e seguro de si mesmo; não um sujeito que alcança Nas duas últimas linhas do parágrafo,
aquilo que se propõe ou que se apodera daquilo que “Podemos ser assim transformados por tais
quer; não um sujeito definido por seus sucessos ou experiências, de um dia para o outro ou no
por seus po deres, mas um sujeito que perde seus transcurso do tempo”, pode ler se outro componente
poderes precisa mente porque aquilo de que faz fundamental da experiência: sua capacidade de
experiência dele se apodera. Em contrapartida, o formação ou de transformação. É ex
sujeito da experiência é também um sujeito
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Notas sobre a experiência e o saber de experiência
que a posse de uma série de cacarecos para uso e
desfrute.
cia é uma espécie de mediação entre ambos. É
Nestas condições, é claro que a mediação entre
impor tante, porém, ter presente que, do ponto de o conhecimento e a vida não é outra coisa que a
vista da experiência, nem “conhecimento” nem apro priação utilitária, a utilidade que se nos
“vida” signi ficam o que significam habitualmente. apresenta como “conhecimento” para as
Atualmente, o conhecimento é essencialmente necessidades que se nos dão como “vida” e que são
a ciência e a tecnologia, algo essencialmente completamente indistintas das necessidades do
infinito, que somente pode crescer; algo universal e Capital e do Estado.
objetivo, de alguma forma impessoal; algo que está
Para entender o que seja a experiência, é
aí, fora de nós, como algo de que podemos nos necessá rio remontar aos tempos anteriores à ciência
apropriar e que podemos utilizar; e algo que tem moderna (com sua específica definição do
que ver fundamen talmente com o útil no seu conhecimento obje tivo) e à sociedade capitalista
sentido mais estreitamente pragmático, num sentido (na qual se constituiu a definição moderna de vida
estritamente instrumental. O conhecimento é como vida burguesa). Du rante séculos, o saber
basicamente mercadoria e, estritamen te, dinheiro; humano havia sido entendido como um páthei
tão neutro e intercambiável, tão sujeito à máthos, como uma aprendizagem no e pelo padecer,
rentabilidade e à circulação acelerada como o dinhei no e por aquilo que nos acontece. Este é o saber da
ro. Recordem-se as teorias do capital humano ou es experiência: o que se adquire no modo como
sas retóricas contemporâneas sobre a sociedade do alguém vai respondendo ao que vai lhe aconte
conhecimento, a sociedade da aprendizagem, ou a cendo ao longo da vida e no modo como vamos
so ciedade da informação. dando
Em contrapartida, a “vida” se reduz à sua sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber
dimen são biológica, à satisfação das necessidades da experiência não se trata da verdade do que são as
(geral mente induzidas, sempre incrementadas pela coi sas, mas do sentido ou do sem-sentido do que
lógica do consumo), à sobrevivência dos indivíduos nos acon tece. E esse saber da experiência tem
e da so ciedade. Pense-se no que significa para nós algumas características essenciais que o opõem,
“qualida de de vida” ou “nível de vida”: nada mais ponto por pon to, ao que entendemos como
conhecimento. conhecimento científico, fora de nós, mas somente
Se a experiência é o que nos acontece e se o tem sentido no modo como configura uma
saber da experiência tem a ver com a elaboração do personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em
sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, definitivo, uma forma humana singular de estar no
trata-se de um saber finito, ligado à existência de um mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de
indivíduo ou de uma comunidade humana conduzir-se) e uma estética (um estilo). Por isso,
particular; ou, de um modo ainda mais explícito, também o saber da expe riência não pode
trata-se de um saber que revela ao homem concreto beneficiar-se de qualquer alforria, quer dizer,
e singular, entendido individual ou coletivamente, o ninguém pode aprender da experiência de outro, a
sentido ou o sem-sentido de sua própria existência, menos que essa experiência seja de algum modo
de sua própria finitude. Por isso, o saber da revivida e tornada própria.
experiência é um saber particular, subjetivo, A primeira nota sobre o saber da experiência su
relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é blinha, então, sua qualidade existencial, isto é, sua
o que acontece, mas o que nos acontece, duas relação com a existência, com a vida singular e con
pessoas, ainda que enfrentem o mesmo creta de um existente singular e concreto. A
acontecimento, não fa zem a mesma experiência. O experiên cia e o saber que dela deriva são o que nos
acontecimento é comum, mas a experiência é para permite apropriar-nos de nossa própria vida. Ter
cada qual sua, singular e de alguma maneira uma vida pró pria, pessoal, como dizia Rainer Maria
impossível de ser repetida. O saber da experiência é Rilke, em Los Cuadernos de Malthe, é algo cada
um saber que não pode separar-se do in divíduo vez mais raro, qua se tão raro quanto uma morte
concreto em quem encarna. Não está, como o própria. Se chamamos
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Resumos/Abstracts